o turismo como elemento relevante da reestruturação do transporte ferroviário de passageiros
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
VINÍCIUS POLICARPO QUINTÃO
O TURISMO COMO ELEMENTO RELEVANTE DA REESTRUTURAÇÃO DO TRANSPORTE
FERROVIÁRIO DE PASSAGEIROS
Ouro Preto 2009
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VINÍCIUS POLICARPO QUINTÃO
O TURISMO COMO ELEMENTO RELEVANTE DA REESTRUTURAÇÃO DO TRANSPORTE
FERROVIÁRIO DE PASSAGEIROS
Ouro Preto 2009
Monografia apresentada ao Curso de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Turismo. Orientador: Prof Ms. Leandro B. Brusadin
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VINÍCIUS POLICARPO QUINTÃO
O TURISMO COMO ELEMENTO RELEVANTE DA
REESTRUTURAÇÃO DO TRANSPORTE FERROVIÁRIO DE PASSAGEIROS.
COMISSÃO EXAMINADORA: Prof. Dr. Ricardo Silveira Martins Universidade Federal de Minas Gerais Prof. Msc. Bruno Pereira Bedim Universidade Federal de Ouro Preto Prof. Msc. Leandro Benedini Brusadin Universidade Federal de Ouro Preto
Ouro Preto, ____de_________________de 2009
Monografia apresentada ao Curso de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Turismo. Orientador: Prof Ms. Leandro B. Brusadin
3
Dedico este trabalho a Denise Policarpo Damião, mãe e grande amiga, que sempre procurou me trazer de volta quando estive sem rumo.
4
AGRADECIMENTOS
Mesmo sendo impossível agradecer a todos os colaboradores pela realização deste trabalho, me prontifico a prestar um solene agradecimento a algumas pessoas e organizações que merecem certo destaque:
À minha família e aos meus amigos, por constituir grande parte de minha formação moral, sempre me ampararem nos momentos mais difíceis e demonstrarem o quanto somos insignificantes sozinhos;
Ao Prof. Ms. Leandro Benedini Brusadin, que proporcionou a execução deste trabalho através de uma excepcional metodologia para o tratamento dos conflitos de idéias entre orientador e orientando, nunca se projetando por sobre minhas motivações e sempre adequando os diversos pontos de vista ao objetivo primordial da pesquisa;
Aos professores Dr. Ricardo Silveira Martins e Ms. Bruno Pereira Bedim,
por fornecerem cópias de arquivos bibliográficos indispensáveis à realização deste trabalho e aceitarem participar da banca examinadora do mesmo;
À UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto – e seus funcionários em
geral, ao DETUR - Departamento de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto – e a todos os professores com os quais pude dividir minhas idéias, pelas bases fornecidas para meu desenvolvimento acadêmico.
Às organizações: Eurostat, o Ministério de assuntos territoriais, infra-
estrutura, transporte e turismo do Japão, INSEE – Institut National de la Statisque et dês Études Économiques, a extinta ADTrem – Agência de Desenvolvimento do Trem Rápido entre Municípios, ao Ministério dos Transportes, ao Ministério do Turismo e a todos os demais organismos os quais atenderam prontamente minhas solicitações por publicações periódicas e relatórios das atividades turísticas e de transporte;
À República K-Zona por nos ensinar a conviver em grupo, respeitar as diferenças individuais e convergir esforços com vistas a um objetivo comum.
5
"A tarefa mais importante de um cientista é certamente contribuir para o avanço de sua área de conhecimento. A segunda tarefa mais importante é escapar da visão estreita de uma especialização excessiva, interessando-se ativamente por outros campos em busca do aperfeiçoamento pelo saber que é a missão cultural da ciência. A terceira tarefa é estender aos demais a compreensão de seus conhecimentos, reduzindo ao mínimo o jargão científico, do qual muitos de nós temos orgulho.”
Karl Popper
6
RESUMO
Os serviços de transporte são denotados como indispensáveis às práticas de turismo. As relações existentes entre as práticas turísticas e o transporte ferroviário de passageiros estão presentes nesse trabalho. A revisão dos acontecimentos históricos de cada atividade e os estudos de caso isolados bem como sua posterior contextualização com as ordens vigentes ao longo do tempo indicam as condições de utilização do transporte ferroviário pelo turismo ao redor do mundo. Baseando-se nas análises comparativas entre países como a Franca, o Japão e o Brasil, torna-se possível identificar o papel do turismo no processo de reestruturação do transporte ferroviário de passageiros ao redor do mundo. Palavras-Chave : Turismo; Transporte Ferroviário; Intermodalidade; Competição Modal; Reestruturação.
7
ABSTRACT
Transportation services are denoted as essential to the practices of tourism. The relationship between tourism and the practices of rail passengers are present in this work. A review of the historical events of each activity and individual case studies and the subsequent frame with the current orders over time indicates the conditions for use of rail for tourism around the world. Based on comparative analysis between countries such as France, Japan and Brazil, it is possible to identify the role of tourism in the restructuring of rail passenger transport around the world.
Key words: Tourism; Rail; Intermodality; Mode competition; Restructuring.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Concepção antiga das relações intermodais .......................................... 31 Figura 2 - Concepção contemporânea das relações intermodais ........................... 31 Figura 3 - Concepção efetiva das relações intermodais ......................................... 34 Figura 4 - Tempo de percurso versus Velocidade máxima ..................................... 54 Figura 5 - Comparação entre Maglev e TAV (High Speed Train) ........................... 55 Figura 6 - Distribuição dos principais rios no território francês ............................... 70
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Passageiros por quilômetro transportados no ano de 2006 .................. 60 Tabela 2 - Comparação entre os modais Ferroviário e aéreo ................................ 61 Tabela 3 - Correlações entre Pkm, TOE e TCO2 .................................................... 62 Tabela 4 - Extensão das redes TEN-T entre 2003 e 2020 ..................................... 63 Tabela 5 - Comparação entre modais na França, em 2006 ................................... 72
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Número anual de passageiros em viagens de dois ou mais dias ......... 19 Gráfico 2 - Distribuição da demanda de passageiros por modal ............................ 20 Gráfico 3 - Viagens ferroviárias de passageiros na Austrália ................................. 25
9
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANAC Agência Nacional de Aviação Civil
ANTT Agência Nacional de Transportes Terrestres
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
EC European Comission
EEA European Environment Agency
EF Estrada de Ferro
HSGT High Speed Ground Transport
HSST High Speed Surface Transport
INSEE Institut Nationale de la Statitique et des Études Économiques
MAGLEV Magnetic Levitation
OMT Organização Mundial do Turismo
PKM Passageiros-quilômetro
RFFSA Rede Ferroviária Federal
SNCF Société Nationale des Chemins de Fer
TAV Trem de Alta Velocidade
TCO2 Toneladas de dióxido de carbono
TEN-T Trans-European Networks in Transport
TGV Train à Grand Vitesse
TOE Toneladas de Óleo Equivalente
UNWTO United Nations Word Tourism Organization
VME Velocidade Máxima Experimental
VMO Velocidade Máxima Operacional
10
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
1. OS TRANSPORTES E O TURISMO..................................................... 15 1.1 Turismo: conceitos e paradigmas ...................................................... 15 1.2 A Relação entre os Transportes e o Turismo..................................... 18 1.3 O Modal Aquaviário e o Turismo........................................................ 19
1.3.1 Transporte fluvial ........................................................................ 20 1.3.2 Transporte marítimo.................................................................... 21
1.4 O Modal Rodoviário e o Turismo ....................................................... 22 1.5 O Modal Aeroviário e o Turismo ........................................................ 25 1.6 O Modal Ferroviário e o Turismo ....................................................... 27 1.7 Meios de Transporte e Atrativos Turísticos: a possível sinonímia ..... 30 1.8 A Intermodalidade no Transporte Turístico ........................................ 33
2. O TRANSPORTE FERROVIÁRIO: Aspectos Históricos e as Competições Intermodais....................................................................................................... 42
2.1 A Máquina a Vapor e a Locomotiva ................................................... 43 2.2 O Auge do Modal Ferroviário no Mundo ............................................ 51 2.3 As Competições Modais: Transporte Ferroviário versus Transporte Rodoviário..................................................................................................... 58 2.4 As Inovações Tecnológicas: Tav’s e Maglev ..................................... 63 2.5 As Competições Modais: Transporte Ferroviário versus Transporte Aeroviário...................................................................................................... 68
3. A UTILIZAÇÃO DO MODAL FERROVIÁRIO NO TRANSPORTE DE PASSAGEIROS PELO MUNDO ...................................................................... 72
3.1 O Caso Japonês: Pioneirismo em Tav’s ............................................ 78 3.2 O Caso Francês: A flexibilidade e disseminação do TGV.................. 83 3.3 O Caso Brasileiro: A acirrada competição entre os modais rodoviário e ferroviário...................................................................................................... 89 3.4 Turismo e o Transporte Ferroviário: possibilidades e dificuldades .... 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 103
11
INTRODUÇÃO
A atividade turística vem se tornando cada vez mais presente nas pautas
de discussão de diversas esferas da sociedade, tanto nos setores privado
quanto público. Dadas as características do turismo, ressalta-se a
indispensabilidade dos serviços de transporte, e, a partir disto emergem
discussões, tanto acadêmicas quanto mercadológicas, acerca da aplicação e
do controle das diferentes tecnologias para o deslocamento. A partir destas
questões propõe construir uma reflexão acerca da relação entre o turismo e o
transporte ferroviário. Foi utilizado subsídio científico de diferentes áreas do
conhecimento, sendo as opiniões por vezes discordantes, na tentativa de
construir um estudo detalhado e o quão fiel o possível às manifestações
analisadas. A construção de um referencial teórico almejou identificar
processos históricos e relações os quais definem os elementos abarcados pelo
objeto de pesquisa. Foram abordados casos específicos com o intuito de
exemplificar e examinar as reações provocadas pelas relações as quais
constituem o objeto primário de análise. O trabalho foi desenvolvido por meio
de pesquisa bibliográfica, embate de teorias, análise de relatórios das
atividades abordadas e posterior cruzamento dos resultados constatados pelos
relatórios com as teorias elencadas.
No Capítulo 1 abordam-se os aspectos inerentes à atividade turística e
sua relação com os serviços de transporte. Inicia-se pela conceituação dos
elementos turismo e transporte para, em seguida, discorrermos acerca de cada
um dos modais inseridos nas atividades de transporte. Foram relacionadas
diferentes áreas de pesquisa com o intuito de esclarecer a contribuição das
distintas formas de transporte para a efetivação das atividades turísticas. Em
12
seguida, buscou-se esclarecer o intuito da pesquisa, diferindo da linha de
abordagem muitas vezes adotada pelos autores, a qual constitui análises dos
diferentes usos das estruturas de equipamento obsoletas (seja como museus
ou atrativos turísticos), não ressaltando seu caráter inicial puramente logístico.
Ao final do capítulo, ressaltamos as relações entre os diferentes modais de
transporte, tanto os casos de complementação quanto os de competição,
construindo uma nova percepção da forma como a organização do setor de
transportes se configura inserida no atual contexto global.
Estabelecidos os conceitos iniciais, no Capítulo 2 situa-se o estudo do
modal ferroviário. Algumas características do modal ferroviário em si, ressaltam
alguns dos atuais usos para o mesmo. Traçamos um breve histórico acerca da
máquina a vapor, tecnologia de fundação para o modal, e da locomotiva,
equipamento de aplicação inicial da referida tecnologia com o intuito de
transporte. Ao fornecer tais bases para o entendimento do surgimento do
modal, torna-se possível uma análise da motivação para a implantação do
transporte ferroviário (dos momentos de alto investimento para o mesmo) em
diversos países, com o intuito de destacar as diferentes motivações para sua
aplicação. A fim de demonstrar a realidade competitiva do setor de transportes,
particularmente no caso do transporte ferroviário, analisamos as relações com
o modal rodoviário, em um primeiro momento, e o aéreo em um segundo
momento. Entre as duas análises isoladas é feita uma breve exposição e
contextualização da aplicação das tecnologias TAV (Trem de Alta Velocidade)
e Maglev (Magnetic Levitation) para o transporte ferroviário de passageiros ao
redor do mundo.
13
Feitas as considerações teóricas frente ao objeto de pesquisa, partimos
no Capítulo 3 para o estudo das atuais formas como o modal é empregado pelo
mundo, dando ênfase a países onde as competições são mais acirradas, os
fluxos maiores e as pesquisas mais avançadas. Para que o entendimento da
situação fosse mais abrangente, optou-se por três estudos de caso dentre as
diversas possibilidades: Japão, França e Brasil. Para cada estudo fora traçado
um breve histórico da atividade ferroviária no país, o desenvolvimento da
mesma, as políticas que influenciaram o setor e o atual panorama com relação
ao transporte ferroviário de passageiros para cada caso. O último tópico deste
capítulo foi construído com o intuito de demonstrar e analisar as possibilidades
e dificuldades que o transporte ferroviário apresenta com relação ao turismo.
Também são traçadas possíveis correlações entre os elementos chave do
tópico.
Para finalizar a obra apresentamos considerações extraídas do
cruzamento dos estudos de caso com a análise teórica feita, levando em conta
tanto alternativas já aplicadas quanto novas possibilidades. Em resumo,
podemos afirmar que a relação entre o transporte ferroviário de passageiros e
o turismo tem, no cenário global atual, se modificado e reafirmado
constatações de uma potencialidade de influência recíproca revelada em
tempos de outrora. Apesar de as competições modais, se apresentarem como
a forma predominante da relação intermodal, a complentaridade entre os
diferentes serviços também apóia a teoria de que o transporte ferroviário possui
vantagens competitivas bastante claras. Ao buscar as informações para a
realização deste trabalho foi constatado que, quando da existência de dados, a
dificuldade para correlacionar indicadores que, por terem sido construídos de
14
acordo com parâmetros diferentes, atrapalharam a análise de um cenário mais
amplo. Nesse trabalho, focaram-se diferentes campos de estudo, reafirmando o
caráter multidisciplinar pelo qual o turismo é estudado.
15
1. OS TRANSPORTES E O TURISMO
1.1 Turismo: conceitos e paradigmas
A conceituação do termo “Turismo” é alvo de freqüentes embates
científicos, com reflexos das diversas vertentes. A Organização Mundial do
Turismo (OMT1, 1994, p. 5) atualmente possui a seguinte definição:
Turismo compreende as atividades de pessoas viajando e permanecendo em lugares que não seu ambiente usual, por não mais do que um ano consecutivo, motivada por lazer, negócios e outros propósitos que não o exercício de uma atividade remunerada no local visitado. O uso deste conceito abrangente torna possível identificar o turismo entre países (internacional) bem como o turismo no interior de um país (doméstico). “Turismo” refere-se a todas as atividades de visitantes, incluindo tanto “turistas (visitantes que pernoitam)” quanto “excursionistas (que não pernoitam)” 2. (traduzido e adaptado pelo autor)
Como citada, a conceituação adotada pela OMT atualmente, abrange diversos
setores econômicos (transportes de passageiros, entretenimento, hospedagem,
promoção de eventos a negócios ou não e outros) e ainda busca a distinção
entre o turista e o excursionista (tradução nossa), sendo que turista é todo
visitante que pernoita no destino. É interessante ressaltar que a última frase do
conceito apresentado pela OMT define que o termo “Turismo” se refere a todas
as atividades de visitantes, incluindo tanto “turistas (visitantes que pernoitam)”
quanto “excursionistas (que não pernoitam)”. Daí pode-se depreender que o
Turismo, apesar de remeter diretamente ao turista como ator principal, na 1 Traduzido a partir de UNWTO (1994). 2 Tourism comprises the activities of persons travelling to and staying in places outside their usual environment for not more than one consecutive year for leisure, business and other purposes not related to the exercise of an activity remunerated from within the place visited. The use of this broad concept makes it possible to identify tourism between countries as well as tourism within a country. "Tourism" refers to all activities of visitors, including both "tourists (overnight visitors)" and "same-day visitors".
16
realidade, responde também pela atuação de excursionistas, visitantes que não
são turistas, tornando o fenômeno infinitamente complexo e dinâmico. De
acordo com Mathiesen e Wall (1982) apud Cunha (1997, p. 9 grifo nosso):
O turismo é o movimento temporário de pessoas para destinos fora dos seus locais normais de trabalho e de residência, as actividades desenvolvidas durante a sua permanência nesses destinos e as facilidades criadas para satisfazer as suas necessi dades 3.
Assim, observa-se a importância das facilidades criadas para satisfazer as
necessidades dos turistas, ou seja, levam-se em conta, também, os serviços à
disposição dos mesmos.
O dinamismo e a complexidade inerentes ao Turismo podem ser
facilmente visualizados quando são analisados fatores aparentemente não
relacionados ao fenômeno. Como, por exemplo, no caso de atentados
terroristas (fator psicológico), crises petrolíferas (fator econômico), ou
mudanças na postura legislatória de um país (fator social). Os fatores citados
foram formulados a título descritivo e podem se entrelaçar na análise de um
único evento, adquirindo, assim, o caráter complexo do fenômeno turístico.
De um prisma psicológico pode-se dizer que por se caracterizar como
um mercado de serviços o Turismo está intrinsecamente relacionado às
motivações e necessidades dos turistas. De acordo com Maslow (1943) os
seres humanos têm suas necessidades psicológicas organizadas em níveis de
satisfação, sendo que, a manutenção da satisfação em qualquer dos níveis
depende, também, do meio no qual o indivíduo está inserido. Dessa forma
pode-se notar que, caso ocorra algum evento que possa alterar a percepção do
turista acerca do destino final ou transitório de uma viagem, esta poderá até,
ser cancelada.
3 Grifo nosso
17
Como setor da economia, o Turismo, assim como define Stynes (1997),
possui implicações em diversos outros setores através dos impactos diretos,
indiretos e induzidos, e, por conseqüência, também é afetado por eles. Devido
ao caráter sistêmico da economia, as ocorrências em setores diversos podem
afetar enormemente o Turismo, mesmo que, a princípio, não seja explícita a
relação entre tais setores econômicos. Segundo Lickorish e Jenkins (2000, p.
9-10) Em particular, a natureza heterogênea do setor dificulta a avaliação do
seu impacto na economia em relação a outros setores, e isto implica na
necessidade da utilização de contas satélite com o intuito de mensurar os
impactos gerados pelo Turismo.
Os aspectos sociais do Turismo também devem ser destacados, uma
vez que, as práticas turísticas, por se realizarem a partir de dados
deslocamentos, freqüentemente incorrem em contatos entre pessoas que se
desconhecem (sejam as diferenças culturais de maior ou menor grau), a partir
disto um fenômeno social é operado, seja ele de interação ou repulsão. As
relações obtidas são assimiladas por ambas as partes e têm conseqüências
diversas, como a adoção de medidas políticas, a criação de conflitos culturais e
outros fatos sociais de natureza diversa.
De acordo com o exposto anteriormente, é notável a complexidade do
fenômeno, e com isto é de alto grau de dificuldade a distribuição dos métodos e
ferramentas de análise para o mesmo. Tal multidisciplinaridade confere ao
Turismo a necessidade de reflexões que envolvam variados segmentos das
ciências.
18
1.2 A Relação entre os Transportes e o Turismo
O fenômeno turístico e os serviços de Transportes exprimem forte
relação, atingindo explícita dependência mútua. Uma afirmação
freqüentemente utilizada é a de que não existe Turismo sem a existência de
deslocamento, como versa Beni (2003) apud Ansarah (2003, p. 19), e por
conseqüência não se pode visualizar o fenômeno desvinculado da operação de
sistemas e estruturas de transporte, como defende Ferreira (2008),
considerando as atuais distâncias percorridas pelo homem. Lamb e Davidson
(1996) apud Page (2001, p. 16), versam que o transporte é um dos três
componentes fundamentais do turismo. Os outros dois são o produto turístico
(a oferta) e o mercado turístico (a demanda).
Um dos difundidos autores brasileiros na área de Transportes e Turismo,
Palhares (2002, p. 27), inicia um capítulo de sua obra “Transportes Turísticos”,
com o seguinte parágrafo:
Como forma de definir a atividade de transporte, mas especificamente para o caso do transporte voltado para o turismo, o mesmo pode ser tido como a atividade meio que interliga a origem de uma viagem turística a um determinado destino (e vice-versa), que interliga vários destinos turísticos entre si (primários e secundários) ou que faz com que os visitantes se desloquem dentro de um mesmo destino primário ou secundário.
No capítulo supracitado Palhares afirma que o Transporte voltado ao uso
turístico é empregado no sentido de um serviço de interligação entre origem e
destino, ou destino e destino ou mesmo aquele o qual promove o
deslocamento dentro de um destino. A partir do raciocínio iniciado pelo autor é
notável a objetividade com a qual o mesmo define o objeto de pesquisa
19
Transporte para uso Turístico, e revela a necessidade da existência dos
serviços para o deslocamento, uma vez que não se poderia alcançar o destino
de outra forma que não utilizando-se de ao menos uma forma de transporte4.
Uma vez constituinte do fenômeno turístico estes sistemas de transporte
assumem papel de grande importância na mensuração do fluxo de turistas,
tanto em aspectos quantitativos, quanto qualitativos.
Em seqüência são feitas as apresentações de cada um dos modais de
transporte e também suas relações com o Turismo. Vale ressaltar que são
breves descrições, pois, a análise aprofundada de cada modal não é o objeto
deste trabalho, sendo importante apenas para situar as relações estabelecidas
nos transportes turísticos e denotar sua importância enquanto inseridos nos
sistemas turísticos.
1.3 O Modal Aquaviário 5 e o Turismo
O modal Aquaviário responde atualmente, por navegação em cruzeiros
(tanto fluviais quanto marítimos) e, pela atividade dos ferries, meios de
transporte aquáticos que também operam em ambientes marítimos e fluviais,
mas possuem objetivos nitidamente distintos dos cruzeiros. A utilização
turística do modal se dá em grande parte em forma de atrativo, e não com a
finalidade logística de outrora. Para entendimento da utilização para o mero
4 Excluindo-se da afirmação as viagens que são realizadas em toda sua extensão a pé. 5 A opção pela utilização do termo “aquaviário” foi por abranger tanto as formas de navegação fluviais quanto as marítimas.
20
deslocamento é necessária uma breve descrição histórica do transporte
aquaviário.
Para Roná (2002, p. 127) o uso turístico das embarcações deu-se em
meados do século XIX, com a consolidação dos navios movidos a vapor, pois
eles, por não dependerem dos ventos, podiam cumprir os horários
predeterminados. No período que se estendeu desde meados do século XIX,
como citado, até o findar da Segunda Guerra Mundial, o modal aquaviário
reinou absoluto em ocasiões de travessias intercontinentais, primeiramente
pela velocidade e conforto, e posteriormente pelo mesmo conforto e glamour
presentes em uma viagem transatlântica. A decadência do modal, quando da
utilização turística de caráter puramente logístico (com o intuito de
deslocamento entre origem e destino, e não como ocorre no caso dos
cruzeiros) pode ser atribuída, diretamente, ao modal aeroviário, pois, segundo
Palhares (2002) as tarifas mais atraentes e a velocidade superior fizeram com
que o modal aquaviário fosse superado.
O transporte aquaviário pode ser dividido em fluvial e marítimo, a seguir
ambas as modalidades são abordadas separadamente.
1.3.1 Transporte fluvial
A navegação fluvial é caracterizada como de interior, ou seja, em rios,
lagos e represas (Roná, 2002). Normalmente as embarcações utilizadas para
transporte de grupos maiores são substancialmente diferentes das utilizadas
em alto mar, pois devem ser adaptadas quanto ao calado6, com exceção a
6 Distância da quilha do navio (fundo) até a linha d’água. (Arraes, 2006)
21
alguns rios que apresentam grande profundidade, a exemplo do Amazonas e o
São Lourenço, no Brasil. O transporte de passageiros em vias fluviais, ainda
desempenha papel logístico, assim como afirma um documento da
Administração das Hidrovias da Amazônia Oriental (AHIMOR, 2007, s.p.):
De toda a malha hidroviária brasileira o rio Amazonas é a principal via de escoamento de cargas gerais, passageiros, grãos e minérios, além de constituir-se na mais importante via de transporte para a população que vive às margens de seus afluentes. É via de transporte de grande parte da produção de grãos que é transportada pelo rio Madeira e de toda a bauxita que escoa pelo rio Trombetas, além de ser a principal via de transporte de graneis líquidos e de insumos e produtos oriundos da Zona Franca de Manaus.
De acordo com a passagem citada, a utilização do rio Amazonas é vital
para o deslocamento da população marginal da região, configura a principal
opção para os povoados situados em meio à floresta amazônica.
1.3.2 Transporte marítimo
A navegação marítima é caracterizada como exterior, e no caso do
transporte de passageiros é representada por cruzeiros marítimos, e ferries,
que são veículos de menor autonomia, adequados também ao transporte de
veículos, mas que atuam entre portos próximos (são muito comuns na Europa).
A participação dos cruzeiros marítimos cresce a cada ano (v. Gráfico 1),
que demonstra a distribuição de passageiros para cruzeiros de dois ou mais
dias entre 1990 e 2007.
22
Gráfico 1 – Número anual de passageiros em viagens de dois ou mais dias (em milhares)
Fonte: CLIA, 2008. De 3.900.000 passageiros em 1990, o mercado alcançou a marca de,
aproximadamente, 12.500.000 passageiros em 2007, configurando um
incremento de 220,5%. A crescente em que se inseriu o setor na última década
trouxe à tona novas relações entre os modais de transporte e pôde de certa
forma, atrair novamente investimentos para zonas portuárias com a finalidade
de implantação de infra-estrutura não-cargueira. É importante ressaltar a
sazonalidade da demanda, sendo que, para grande parte das empresas não
existe perda de mercado ao longo do ano, pois, oscilam entre o verão no
hemisfério norte e no hemisfério sul.
Os Ferries, apesar de também operarem em rotas fluviais, oferecem
grande variedade de rotas marítimas, como as conexões entre o Reino Unido e
o continente europeu.
1.4 O Modal Rodoviário e o Turismo
O modal rodoviário é, se comparado aos demais modais abordados no
presente trabalho (ferroviário, aéreo e aquaviário), o respondente pela
preferência da maioria dos viajantes nos países europeus (v. Gráfico 2),
23
contrariando determinados estereótipos de que o modal ferroviário tenha
predominância no cenário dos transportes, ainda que sejam considerados
apenas os casos dos modais terrestres (descartando desta forma o modal
aeroviário).
Gráfico 2: Distribuição da demanda de passageiros p or modal (bilhões pkm 7)
0
1000
2000
3000
4000
5000
Carros 4510
Ônibus 585
Ferroviário 352
Aéreo 680
Nota: Os dados são referentes aos 23 países componentes da European Environment Agency (Agência Européia para o meio ambiente8). Para o transporte ferroviário foram desconsiderados dados referentes a bondes e metrôs. Fonte: Adaptado de EEA, 2006.
É notável a expressiva predominância da utilização de carros sobre as
demais alternativas para deslocamento nos 23 países participantes da Agência
Européia para o Meio Ambiente. Vale ressaltar que os dados apresentados
ainda subdividem o transporte rodoviário entre carros e ônibus, e ainda
descartam as demais formas de transporte aplicadas em vias rodoviárias
(como caminhões, motocicletas, bicicletas, carruagens e etc.). Essa
importância do transporte rodoviário para o turismo é, freqüentemente,
denotada por diversos autores, como é o caso de Cunha (1997, p. 15):
7 Pkm é uma medida de passageiros deslocados por quilômetro, denominada passageiros-quilômetro. É obtida a partir da multiplicação do número total de passageiros transportados pelos quilômetros de percurso. Segundo Palhares (2002), tal conceito refere-se à soma das distâncias que todos os passageiros percorreram numa determinada ligação durante um certo período. 8 Tradução feita pelo autor
24
É comum dizer-se que sem transportes não há turismo, mas tal afirmação será também válida para as vias rodoviárias, na medida em que estas constituem as mais importantes vias de acesso aos destinos turísticos.
As vias rodoviárias possuem maior alcance que as vias férreas, marítimas e
aéreas, e os motivos da superioridade nesse quesito “cobertura geográfica” são
variados, podendo advir do relevo de um país, das condições econômicas de
uma nação ou até dos aspectos políticos de um povo. Se comparadas ao
transporte ferroviário, as práticas de deslocamento em vias rodoviárias
demonstraram vantagens competitivas que construíram o atual cenário de
dominância sobre os demais modais. Pode-se entender melhor esse processo
a partir do trecho seguinte (Prideaux e Carson, 2003, p. 307):
As inovadoras técnicas de produção em massa de automóveis, de Henry Ford, deram continuidade à revolução dos transportes terrestres, possibilitando aos viajantes ir a lugares ainda inacessíveis por ferrovias, e libertou os mesmos viajantes das restrições impostas pelos horários dos serviços ferroviários e sua rede de distribuição limitada. Posteriormente, o transporte aéreo completou a revolução das viagens, permitindo à humanidade visitar quase qualquer parte do globo. Enquanto o modal aéreo superou o ferroviário e o rodoviário nos trajetos de longo percurso, o carro se tornou a forma preferida para os pequenos percursos em grande parte dos países desenvolvidos9. (traduzido e adaptado pelo autor)
Assim como citado a partir da popularização do acesso aos automóveis, os
viajantes obtiveram maior liberdade na escolha dos destinos turísticos, na
distribuição de horários e também um melhor aproveitamento dos recursos
financeiros em virtude da diferença entre os custos inerentes de cada um dos
processos. A preferência pelas vias rodoviárias, em percursos de menores
9 Henry Ford’s innovative mass automobile production techniques continued the land transport revolution, enabling travellers to go to those places still inaccessible by rail and freeing land travellers from the constraints of railway timetables and limited network options. Later, air travel was to complete the travel revolution, allowing humanity to visit almost any part of the globe. While air travel superseded rail and road travel in the long-haul sector, the car has become the preferred mode of transport for short-distance travel in many developed countries.
25
distâncias, é relacionada, diretamente, aos fatores tempo de viagem, custo,
conforto e liberdade de escolha.
Um conceito utilizado para referenciar tal tipo de turismo é o Self-drive
Tourism10, que em uma aproximação ao termo original poderia ser dito como
Turismo Auto Guiado. Nesse tipo de prática os turistas optam pela liberdade de
escolha com relação à quase qualquer variável relacionada a seu
deslocamento (custo, destino, velocidade, partida, passageiros), exatamente
por ser o próprio viajante quem irá conduzir o veículo (ou mesmo se deslocar a
pé). Com o intuito de caracterizar este tipo de turismo, Carson e Waller (apud
Prideaux e Carson, 2003) enfatizam que o self-drive tourism ocorre comumente
em nível regional, onde os visitantes, freqüentemente, não possuem
alternativas para o transporte. Essa falta de opção é comumente decorrente da
superioridade espacial, inerente ao modal, já citada, incorrendo em uma malha
rodoviária que permite ao turista visitar locais de difícil acesso.
1.5 O Modal Aeroviário e o Turismo
O modal aeroviário representa um segmento de mercado amplamente
utilizado e de notável importância no tocante à integração entre países (sejam
estes de um mesmo continente ou de continentes diferentes). O ponto de
partida da aviação comercial dificilmente poderia ter esboçado o
posicionamento em que o setor se encontra, inserido na economia mundial.
Partindo da pequena frota de quatro dirigíveis, operados pela Deutsche
10 É importante ressaltar que a utilização do conceito define o Turismo rodoviário, mas nem todo tipo de Turismo Auto Guiado é praticado através de transporte rodoviário.
26
Luftschiffahrts A.G., entre 1910 e 1914 (Palhares, 2002), o número de
aeronaves cadastradas, apenas no Brasil, atingiu a marca de 11.857 unidades,
de acordo com relatório publicado pela Anac (2009). A operação de vôos
comerciais passou da situação inicial de horários não programados para uma
atividade comercial dependente de enorme sincronização e de alta
sensibilidade quando se trata da impressão do consumidor acerca dos serviços
prestados. A profissionalização do setor cresceu rapidamente, amparada pela
regulamentação das atividades, em dissonância com a prestação dos demais
serviços de turismo, como no caso da hotelaria e os demais setores de apoio
intrínsecos ao funcionamento do sistema turístico.
Com vistas a tornar o setor de aviação comercial mais competitivo,
muitos países recorreram a procedimentos de desregulamentação do setor de
aviação civil. Os procedimentos ocorreram de formas diferentes ao redor do
mundo, mas, os objetivos podem ser ditos comuns, como versa o artigo 8° da
Lei de Criação da Anac (2005), a Agência Nacional de Aviação Civil Brasileira
(excluindo-se os incisos da atual exposição, por não ser necessária uma
análise mais aprofundada):
Art. 8o Cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade.
Os aeroportos são os que representam melhor a nova tendência mundial
para os terminais de transporte, onde as receitas advindas de outras atividades
que não o transporte, ou de forma indireta com relação a este, crescem cada
vez mais. A transformação destes terminais em verdadeiros centros de
negócios, compras e/ou lazer, adquiriu grande importância nos últimos anos.
27
Os serviços ofertados em aeroportos são direcionados aos viajantes (sendo
eles turistas ou não), mas, eventualmente acabam também atraindo residentes
do entorno, proporcionando uma nova ordem, a de utilização de aeroportos
desvinculada às funções de transporte, assim como salienta Palhares (2001, p.
45-46):
Em função de suas grandes e modernas estruturas arquitetônicas, a disponibilidade de múltiplos serviços e diversidade de comércio, muitos aeroportos pelo mundo tornaram-se mais do que locais de pouso e decolagem de aeronaves, de embarque e desembarque de cargas e passageiros. Com isso, os terminais puderam expandir seus mercados consumidores dos tradicionais clientes (passageiros, empresas aéreas, agentes de carga e aviação geral – táxi-aéreo e aeronaves privadas) para outros clientes potenciais, tais como: moradores próximos ao aeroporto, empregados das empresas aéreas e da administração do aeroporto, visitantes e os acompanhantes dos passageiros, comerciantes e indústrias da região etc.
A relação entre o Turismo e os aeroportos fica evidenciada quando se
analisa um caso recente, onde o Governo do Rio Grande do Sul e a Embratur
firmaram um acordo para o financiamento da construção do Aeroporto
Internacional de Hortênsias, em Canelas (RS) (Palhares, 2001, p. 132-133). A
partir do caso apresentado é notável a crença na capacidade de alavancagem
do turismo por meio do investimento em estruturas aeroviárias. Estruturas
estas que criam também certas áreas de influência ao redor dos terminais,
distribuindo impactos econômicos, tanto de forma direta, indireta ou induzida,
como afirma Palhares (2001).
1.6 O Modal Ferroviário e o Turismo
O modal ferroviário é empregado em larga escala, atualmente, para o
transporte de cargas e o deslocamento de passageiros em áreas urbanas,
28
sendo que as conexões intermunicipais e internacionais se tornaram
gradativamente mais escassas após a Segunda Guerra Mundial. A
disseminação dos metrôs e a utilização nostálgica/cênica das ferrovias são o
cenário remanescente das composições sobre trilhos. A popularização dos
automóveis, a aplicação prática das turbinas na aeronáutica e os novos
paradigmas sociais (como o Welfare State), induziram os passageiros a
optarem por formas alternativas de transporte, mais compatíveis com suas
ambições. No caso dos Estados Unidos, a malha ferroviária atingiu sua maior
extensão no ano de 1916, quando seus trilhos percorriam 408.833 km, porém,
sofreu uma retração de dois terços em 1980 (Martins e Filho, 1998). Na
Austrália, por exemplo, as viagens de passageiros, através do transporte
ferroviário (v. Gráfico 3), são expressas em sua quase totalidade (em mais de
98% dos casos) na forma urbana.
Gráfico 3 – Viagens ferroviárias de passageiros na Austrália (em milhões )
0
100
200
300
400
500
600
700
2002/2003 2003/2004 2004/2005 2005/2006 2006/2007
Viagens urbanas Viagens não urbanas Total de viagens
Fonte: Adaptado de ARA, 2008.
Para Palhares (2002) esse tipo de serviço tem pouca representatividade,
do ponto de vista do turista, se comparado às modalidades de médio e longo
trajeto, em virtude de se restringirem aos centros urbanos, onde grande parte
da demanda do equipamento é de usuários rotineiros. Sistemas ferroviários
29
que interligam cidades são vantajosos para o turista, uma vez que este
pretende se deslocar rapidamente entre as localidades, e a um baixo custo.
Em diversas localidades foram adotadas alternativas ao crescente
abandono das estruturas ferroviárias, como a utilização das antigas
locomotivas e composições na operação de circuitos cênicos (para a promoção
da contemplação do trajeto) ou nostálgicos, onde o “ponto importante é a
tentativa de manter a vivência de uma viagem ferroviária viva” (Mamede et al,
2008, p. 82). Autores defendem este ponto de vista, demonstrando a
potencialidade do modal ferroviário no sentido mais puro de atrativo turístico, e
não apenas como elemento logístico, como é o caso de Allis (2006, p. 121),
que afirma que “as ferrovias, por uma série de razões, podem ser atreladas à
atividade turística por sua capacidade de materializar momentos históricos das
regiões onde se instalou”. Alguns itinerários são mundialmente conhecidos e
cultuados, como o Orient Express (que se tornou cenário de filmes e livros,
como o “Murder on The Orient Express”, de Agatha Christie) e o Trans-Siberian
(com mais de nove mil quilômetros de extensão, cruza toda a Rússia).
A restauração das composições cria um fetiche ainda maior do produto
turístico, fazendo com que a aquisição do serviço se torne sinônimo de status
social, como se pode depreender de um dos textos promocionais constantes no
endereço eletrônico da empresa The Venice Simplon-Orient-Express:
Atualmente, os carros reluzentes do Venice Simplon-Orient-Express continuam a transportar passageiros pela Europa ao longo de paisagens surpreendentes de uma das mais românticas jornadas do mundo. O mundo da Orient-Express é hoje verdadeiramente internacional e os passageiros podem desfrutar de experiências similares a bordo do Eastern & Oriental Express no sudeste da Ásia e
30
o Road to Mandalay em Mianmar (antiga Brimânia)11. (traduzido e adaptado pelo autor)
A utilização das histórias acerca do antigo serviço de transporte, para
promover outros itinerários, é, visivelmente, uma estratégia de mercado
interessante que se apóia exatamente no fetichismo da manutenção do status
quo. Essa transformação, de um elemento da oferta turística em um atrativo
turístico, por si só pode ser denominada como um processo de sinonímia entre
os atrativos turísticos e os serviços de transporte.
1.7 Meios de Transporte e Atrativos Turísticos: a p ossível sinonímia
É comum que a concepção do passageiro, acerca de um modal de
transporte, se traduza em algo mais do que apenas um recurso logístico,
principalmente quando não se trata de um serviço que ele disponha
frequentemente. O fetichismo inerente à utilização do transporte aéreo, por
exemplo, foi determinante para a criação do status que tal modal conferia a
seus utilizadores há algumas décadas atrás. A disseminação de estereótipos
relacionados a modais acaba por criar novas relações econômicas que podem,
ou não, afetar a configuração das redes de transporte. Por exemplo, a
concepção de que os trens cênicos e nostálgicos são rentáveis alternativas
para estruturas ferroviárias obsoletas, pode levar ao desinvestimento em novas
tecnologias ferroviárias, de caráter puramente logístico.
11 Today, the gleaming carriages of the Venice Simplon-Orient-Express continue to transport passengers across Europe in exquisite surroundings on one of the most romantic journeys in the world. The world of the Orient-Express is now truly international and passengers can enjoy a similar experience on board the Eastern & Oriental Express in South East Asia and the Road To Mandalay in Myanmar (ancient Burma).
31
As ferrovias turísticas são um exemplo de como o poder público
encontra alternativas para a obsolescência de suas estruturas, e, a partir
destas medidas tais equipamentos se diferenciam por aspectos que não a
prestação de um serviço de deslocamento, conforme afirma Allis (2006, p.
116):
Como nosso objeto de estudo central, as ferrovias turísticas são determinadas a partir do refinamento do entendimento sobre o deslocamento para o turismo, em que a atratividade se dá mais pela diferencialidade deste meio de transporte, do que pelos fatores logísticos.
A concepção de que as vias férreas e suas composições possam ser
utilizadas como atrativos por si só é contrária à linha defendida neste trabalho,
sendo que tais políticas são como empecilhos ao desenvolvimento da
tecnologia ferroviária de transporte de passageiros, tanto para turistas quanto
para não-turistas. Os utilizadores das redes de transporte exigem eficiência,
baixo custo, conforto e outros atributos que estruturas ultrapassadas não
podem proporcionar aos clientes atuais, e, isto também se torna um agravante
na sustentação dos modelos defendidos por gestores públicos que incentivam
os trens turísticos. Outro ponto importante é a sazonalidade a qual estão
submetidas as práticas turísticas, pois, os picos de utilização das vias férreas
poderiam ser maiores que as marcas registradas em um serviço de logística,
mas, a distribuição de freqüências de utilização deverá ser contínua e
ininterrupta, para que o serviço se mantenha ativo, e não dependente de
subsídios cruzados.
Uma discussão de grande relevância é apresenta por Krippendorf
(2001), no que tange às mudanças de conduta da sociedade, em uma
transição (ou simples retorno a um dos cenários anteriores) do abandono do
32
culto ao “ter” e retomada do culto ao “ser”, baseando-se nas últimas
reviravoltas operadas nas mais tardias décadas do século passado. Para
Krippendorf, a sociedade começa a sinalizar novos rumos, de uma regressão
nas características consumistas e novas luzes sobre a construção intelectual
do homem, porém, discorda de autores que afirmam que esta nova
configuração social já está presente em nossos dias, como se verifica na
passagem seguinte (Krippendorf, 2001, p. 117):
Contrariamente às afirmações de alguns, ainda estamos numa sociedade do trabalho, e não numa sociedade do lazer. Uma sociedade que se obstina em dar prioridade à moral tradicional do trabalho e ao princípio do pleno emprego tomado no sentido de emprego em tempo integral. Que nos impõem um ritmo de vida rígido e nos prescreve quando devemos trabalhar, de scansar e quando devemos tirar férias. Sempre todos juntos, s ob o signo das sardinhas em lata. 12
A manutenção de atrativos como os citados trens turísticos vai de
encontro a uma operação rentável de tais aparatos ao decorrer do tempo. A
perpetuação de uma ordem industrial na sociedade confere ao lazer status
secundário, de bem13 intangível dispensável, o qual só se obtém acesso após a
aquisição dos bens de primeira necessidade (de forma semelhante aos níveis
de satisfação apresentados por Maslow, organizados em sistemas de
dependência). Sendo assim, a opção pela utilização das estruturas de
transporte travestidas de atrativos turísticos, será feita se, e somente se, os
turistas obtiverem todos os bens (e serviços), de primeira necessidade, tais
como segurança, alimentação, restauração, e etc. Percebe-se que a oferta de
serviços de transporte de caráter puramente logístico (de alta qualidade), se faz
indispensável para que o turista sinta-se à vontade para usufruir dos atrativos.
12 Grifo nosso. 13 Utilizou-se a palavra “bem” apenas pela comodidade da abordagem comumente utilizada de bens de primeira necessidade e bens dispensáveis.
33
Esse raciocínio nos leva a crer que, muito antes de relegar um modal à função
de museu, atrativo de contemplação, ambiente de palestras, o mesmo pode ser
remodelado com vistas a fornecer bases sólidas para uma experiência turística
de qualidade.
Seguindo a linha de raciocínio proposta pelo presente trabalho, o item
seguinte apresenta a introdução às discussões acerca do relacionamento entre
os diferentes modais de transporte, suas vantagens e seus empecilhos.
1.8 A Intermodalidade no Transporte Turístico
Assim como a conceituação do termo “Turismo” encontra alguns
embates teóricos, o caso relativo ao termo intermodalidade também apresenta
empecilhos a um entendimento imediato. Ao se iniciar qualquer pesquisa
acerca dos termos relacionados à intermodalidade, tem-se à disposição alguns
termos como a interoperabilidade (interoperability) e a interconectividade
(interconnectivity), sendo que cada uma das três definições busca abarcar uma
dimensão do problema. As estruturas de transporte e seus aspectos de
implantação são abordados pela interoperabilidade e as considerações acerca
da operação das estruturas e a otimização das transferências entre modais
ficam a cargo da interconectividade (Suresh, 2007). Quanto ao conceito de
intermodalidade, propriamente dito, existem variações, no presente trabalho
serão apresentadas a atual conceituação adotada pela European Comission
(EC), e sua antiga definição, sendo essa apenas para ilustrar a mudança dos
estudos e aquela para nortear as presentes considerações. A definição
34
anterior, publicada em 1997 (EC apud Reggiani et al., 2000, p. 52) é menos
específica, mantendo referência à intermodalidade para o transporte em geral:
Intermodalidade é uma característica de um sistema de transporte a qual possibilita a pelo menos dois diferentes modais serem utilizados de forma integrada, objetivando uma corrente de serviço “porta-a-porta”. Além disso, é um indicador de qualidade do nível de integração entre as diferentes formas de transporte. Dessa forma mais intermodalidade significa mais integração e complementaridade entre os modais, os quais provém escopo para uma utilização mais eficiente dos sistemas de transporte14. (traduzido e adaptado pelo autor)
A definição supracitada apresenta uma afirmação que é mais como uma
conseqüência da aplicação do modelo, e não uma parte propriamente dita do
modelo: mais intermodalidade significa mais integração e complementaridade
entre os modais, os quais provém escopo para uma utilização mais eficiente
dos sistemas de transporte. Isso torna o conceito confuso e
desnecessariamente extenso. No caso da atual definição adotada pela
European Comission, pode-se perceber maior poder de síntese e foco no
transporte de passageiros: Passenger intermodality is a policy and planning
principle that aims to provide a passenger using different modes of transport in
a combined trip chain with a seamless journey (Müller et al, 2004, p. 1). Em
suma o conceito afirma que a intermodalidade, para o passageiro, é um
princípio de política e planejamento que busca prover aos utilizadores
diferentes modos de transporte em uma corrente combinada de viagem, onde
não exista “jornada costurada”. Esse último conceito apresenta uma nova
concepção para o termo intermodalidade, abandonando a visão de que tal
verbete tenha como significância a mera conexão entre diferentes modais de
14 Intermodality is characteristic of a transport system which allows at least two different modes to be used in an integrated manner in a ‘door-to-door’ transport chain. In addition, it is a quality indicator of the level of integration between different transport modes. In that respect more intermodality means more integration and complementarity between modes, which provides scope for a more efficient use of transport system.
35
transporte, e ainda faz referência específica ao transbordo de passageiros
(ponto fundamental para a presente discussão). Ao afirmar que a
intermodalidade, para os passageiros, é um princípio de política (pública) e
planejamento, o(s) autor(es) criam um entendimento de essencialidade, ou
seja, de que esse é um recurso que deve ser utilizado para que exista maior
eficiência na utilização dos sistemas de transporte, e, conseqüentemente para
a expansão do setor do Turismo. Em seguida vem a expressão “jornada
costurada”, que busca expressar a interrupção da fluidez na transição entre os
diferentes modais, como se existissem dificuldades para tais permutas entre os
serviços de transporte (como por exemplo a excessiva distância entre duas
estações ferroviárias, combinada à ausência de um serviço de locação de
automóveis e uma escassez na oferta de linhas coletivas de ônibus).
A intermodalidade tem fundamental importância para o fenômeno
turístico, especialmente no atual estágio em que se encontra, uma vez que o
acesso às localidades se torna cada vez mais abrangente e as barreiras
geográficas são subjugadas de forma combinada. As concepções acerca da
integração entre os modais de transporte se alteraram bastante com o passar
dos anos, segundo Stubbs e Jegede (1998), pode-se dividir as concepções em
dois estágios, sendo o primeiro proveniente de um cenário tradicional (v. Figura
1), e o segundo cenário, proveniente de uma visão contemporânea (v. Figura
2).
36
Figura 1: Concepção antiga das relações intermodais
Fonte: Adaptado de Stubbs e Jegede (1998).
Figura 2: Concepção contemporânea das relações inte rmodais
Fonte: Adaptado de Stubbs e Jegede (1998).
37
É de imediata percepção o caráter simplório de ambas as concepções,
onde as competições são unidirecionais e bilaterais, enquanto o que ocorre é
uma competição tridimensional acirrada entre rodovias, aerovias e ferrovias em
determinadas localidades (competição que se desequilibra de acordo com
variáveis externas, como a distância pretendida pelo passageiro, o conforto, o
custo e até a companhia). Outra falha de ambos os modelos é a ausência da
complementaridade existente entre os modais aéreo e aquaviário, rodoviário e
ferroviário e etc. As relações intermodais se tornaram mais complexas com a
disseminação das condições de implantação de estruturas, as políticas de
popularização do transporte aéreo, o crescimento da indústria de cruzeiros, a
adaptação de composições ferroviárias para contemplação e/ou passeios
cênicos e/ou nostálgicos e até os investimentos em tecnologia ferroviária de
alta velocidade e/ou Maglev.
As integrações entre os modais, de suma importância, e sua aplicação
ótima, se fazem mister, pois, apesar de se mostrar uma solução altamente
atraente, pode se tornar um grande problema caso seja implantada de forma
precipitada, causando problemas como os engarrafamentos em rodovias
(citados na Figura 2). Para tal deve-se atentar para todos os aspectos inerentes
ao público/região alvo dos projetos. São de vital importância a modelagem da
demanda de passageiros, o mapeamento do perfil dos usuários das estruturas,
o levantamento das características geográficas do local (tanto físicas quanto
políticas) e muitos outros aspectos os quais possam denunciar quaisquer
possíveis falhas futuras e/ou presentes.
38
Alguns problemas começam a surgir no tocante aos projetos atuais,
pois, a realidade se mostra cada vez mais difícil de ser traduzida em modelos.
As citadas relações parecem não serem tão nítidas e determinantes.
Uma terceira concepção, em distinção às duas outras apresentadas por
Jegede e Stubbs, começa a se esboçar, e representa uma proposta importante
de estudo para novos trabalhos e melhor entendimento da realidade. Devem-se
levar em conta outros aspectos relacionados ao Turismo, que afetam a oferta
dos serviços de transporte, de forma a criar novas relações intermodais.
As estratégias de marketing de empresas dos setores relacionados
estreitamente ao Turismo são exemplos nítidos de como o sistema de
transporte se envolve no mercado turístico a um nível muito mais complexo do
que a mera superficialidade percebida. A venda de pacotes fly and drive15 e air
and sea16 é um exemplo onde as empresas congregam em apenas um produto
serviços de transporte de diferentes modalidades, assim, oferecem um valor
agregado maior ao turista, ao passo que este percebe tal facilidade e se sente
atraído pelas vantagens competitivas oferecidas pelas redes intermodais. Um
dos casos mais nítidos é o dos programas de fidelização por milhagem das
companhias aéreas e ferroviárias (são os mais comuns, mas também existem
programas em locadoras de automóveis, por exemplo), que passaram a
oferecer vantagens para determinadas redes hoteleiras, o que configura novas
relações entre diferentes setores da economia, por exemplo, criando
integrações verticais (transporte-hotel), e torna nítida a atuação das forças de
mercado traçadas por Porter (Montgomery e Porter, 1998, p. 12): minimizando
15 São pacotes de serviços que incluem bilhetes aéreos e aluguel de automóveis no destino pretendido. 16 Pacotes que incluem bilhetes aéreos e marítimos, utilizados em grande escala para cruzeiros marítimos.
39
a ameaça de novos entrantes, aumentando o poder de competição frente aos
concorrentes, aumentando o poder de barganha com os fornecedores (mais
ainda se as empresas envolvidas na integração fizerem uso dos mesmos
produtos) e clientes e também por fortalecerem seus serviços criam maior
resistência a serviços substitutos.
A partir do exemplo citado pode-se perceber que as relações
intermodais se tornaram mais complexas e também imprevisíveis, conferindo
certa obsolescência aos antigos modelos para a compreensão das relações
intermodais. Pensando nisso pode-se imaginar uma nova concepção (v. Figura
3), que chamaremos de “efetiva”, onde as relações são imprevisíveis e livres e
a competição existe entre todos os modais a nível global. Como forma de
representar a imprevisibilidade das relações, tanto complementares quanto
competitivas, optou-se por utilizar setas preenchidas na cor cinza e traçados
intermitentes. A figura representa um sistema aberto, ou seja, as forças
externas a ele devem ser consideradas, afinal de contas elas definem também
o funcionamento do mesmo e todas suas variáveis afetam as demais (devido à
característica sistêmica e global dos atuais mercados).
40
Figura 3: Concepção efetiva das relações intermodai s
Fonte: Criado pelo autor
Essa nova concepção busca traduzir o sentimento de imensurabilidade
que os atuais mercados globalizados podem conferir às relações políticas,
econômicas e sociais. Tornando as construções de modelos explicativos
tarefas complexas e, por vezes, falhas. As tentativas de denotar padrões de
comportamento, desempenhadas pelos autores, acabam por criar restrições
virtuais ao livre mercado que não correspondem aos fluxos reais de
passageiros, recursos e serviços.
Pensando nisso pode-se afirmar que os sistemas de transporte, através
das relações intermodais, acompanham o processo de globalização dos
mercados, e, desta forma também adquirem imprevisibilidade e
imensurabilidade. É cada vez maior a preocupação no que concerne à
mensuração dos impactos de cada um dos setores da economia (como citado
no início deste capítulo), e, iniciativas como contas satélite e multiplicadores
41
são utilizadas, com freqüência cada vez maior, por institutos de análise
econômica na árdua tarefa de traduzir impactos diretos, indiretos e induzidos
sobre as economias, em diferentes níveis.
42
2. O TRANSPORTE FERROVIÁRIO: Aspectos Históricos e as
Competições Intermodais
O transporte ferroviário é um dos mais antigos modais de transporte
utilizados pelo homem. A dispersão da tecnologia ferroviária ao redor do
mundo obedeceu a diferentes lógicas, desencadeando diferentes processos de
crescimento e/ou retração posteriores. A implantação das estruturas
ferroviárias possibilitou muitos feitos para as nações, em algumas foi a forma
de integrar o território, em outras a forma de desbravá-lo, por exemplo. De
acordo com Drury (1991, p. 2):
Ferrovias possuem quarto componentes: estrutura fixa (linha férrea, sinalização e prédios), material rodante, recursos humanos e estrutura financeira. Os recursos humanos operam o material rodante ao longo da estrutura fixa, e a estrutura financeira dá suporte às operações. Mas o que chamamos de ferrovia não inclui, necessariamente, todos os quatro componentes17. (traduzido e adaptado pelo autor)
A concepção citada, de que as ferrovias podem ser ditas como um
conjunto de quatro elementos permite-nos notar que a operação das estruturas
ferroviárias e, conseqüentemente, sua manutenção, dependem de um
investimento contínuo (e significativo, ao contrário do cenário brasileiro) , de
mão-de-obra capacitada e de desenvolvimento de tecnologia competitiva. Essa
questão tecnológica é a principal das causas do atual descrédito do transporte
ferroviário, posto que a utilização de outros modais se diz vantajosa em virtude
da eficiência alcançada pela alta tecnologia presente em veículos rodoviários,
17 Railroads have four components: fixed plant (track, right of way and buildings), rolling stock, human organization and financial structure. The human organization operates the rolling stock over the fixed plant, and the financial structure supports the operation. But what we call a railroad does not have necessarily all four components
43
aéreos e aquaviários, enquanto na realidade, vem à tona a verdadeira situação
com relação ao transporte ferroviário de passageiros em países como o
Canadá, a França e o Japão. O modal ferroviário possui, nos países
americanos, e principalmente os ditos periféricos, uma aceitação maior na
utilização para o transporte de cargas, como é o caso do Brasil18 que possui
uma malha ferroviária predominantemente direcionada ao transporte de carga.
Atualmente existem diversos tipos de vias ferroviárias, veículos e
terminais, bem como forças motrizes e públicos-alvo de seus serviços,
ressaltando-se sempre que a permanência, de estruturas obsoletas, em
operação, cria um cenário enganoso de que o desenvolvimento tecnológico do
modal não existiu. Para compreender esse desenvolvimento do modal
ferroviário é necessário entender as necessidades humanas de deslocamento,
tanto de cargas quanto de passageiros, nos diferentes países. No presente
capítulo é analisada a trajetória histórica do transporte ferroviário, abordando
momentos chave e alguns de seus impactos sobre os demais modais.
2.1 A Máquina a Vapor e a Locomotiva
O desenvolvimento do modal ferroviário foi viabilizado, principalmente,
pela invenção da máquina a vapor, e sua gênese foi o produto do intercâmbio
de trabalhos de diversos autores. O início da odisséia fora concebido por
Herão, em Alexandria (Egito) por volta de 250 A.C., quando este construiu a
18 No Brasil a relação o volume de passageiros-quilômetro transportado pelo transporte ferroviário e o aéreo é de 0,82%, enquanto nos Estados Unidos esta relação chega a 2,5%, na União Européia a relação representa cerca de 70,20% e no Japão atinge 460%.
44
Eolípila19, porém, a importância da transformação de energia térmica em
movimento só foi completamente percebida quando Isaac Newton, em 1690,
descreveu-a em termos científicos, através do Princípio de Ação e Reação20
(Endurthi, 2001). O passo seguinte fora dado por um cidadão francês chamado
Denis Papin, que implementara um novo sistema para fervura sob alta pressão,
como consta na obra “Steam/ its generation and uses” (Babcock e Wilcox,
1978, p. 3):
Nem todos os recentes desenvolvimentos do uso do vapor foram diretamente no sentido de motores e bombas. Em 1680 o Dr. Denis Papin, um francês, inventou um digestor a vapor para propósitos culinários, utilizando “uma caldeira submetida à alta pressão”. Para prevenir uma possível explosão, Papin adicionou um artifício o qual se tornou a primeira válvula de segurança da qual se tem registro21. (traduzido e adaptado pelo autor)
A utilização primária da tecnologia a vapor (desconsiderando a aplicação
de Herão, já que o mesmo não obteve nenhuma utilidade para sua Eolípila)
fora totalmente diferente daquelas que a tornou mundialmente famosa. Nos
primórdios de sua aplicabilidade fora utilizada em cozinhas com o intuito de
acelerar o processo de elevação da temperatura de recipientes. A invenção de
Papin possuía dois pontos importantes que, inicialmente, não foram levados
19 La eolípila es la primera máquina térmica de que se tiene evidencia escrita. Su principio físico es el de acción o reacción; consiste en un globo o esfera hueco colocado sobre una plataforma, de manera que puede girar alrededor de un par de varillas, una de ellas hueca. Por ésta sube el vapor de agua, el cual escapa del globo hacia el exterior por dos tubos doblados, orientados tangencialmente em direcciones opuestas y colocados en los extremos de um diámetro perpendicular al eje del globo. Al ser expelido el vapor, el globo reacciona a esta fuerza y gira alrededor de su eje. Este sistema, en que los chorros de agua en lugar de vapor actúan de fuerza motriz, es el utilizado en los aspersores de riego. (Luquin, 2005, p. 3) 20 Também conhecida como a Terceira Lei de Newton, versa que quando um corpo A exerce uma força sobre um corpo B, o corpo B reage sobre A, exercendo nele uma força de mesmo módulo, de mesma direção e sentido contrário. (Máximo e Alvarenga, 1997) 21 Not all early developments in steam use were directed toward engines and pumps. In 1680 Dr. Denis Papin, a Frenchman, invented a steam digester for culinary purposes, using “a boiler under heavy pressure”. To avoid an explosion, Papin added a contrivance which is the first safety valve of record.
45
em conta: primeiro a curiosa condição de que o vapor d’água que impulsionara
o pistão para cima, após se condensar criara uma zona de vácuo que,
automaticamente puxava o pistão à sua posição inicial; segundo a utilização da
primeira válvula de segurança de registro em sistemas pressurizados.
Posteriormente Thomas Savery patenteia um modelo de motor movido a
vapor, para a retirada de água das minas de carvão inglesas. O antigo
problema da retirada de água das minas gerava um incômodo logístico, a
utilização, em alguns casos, de até 500 espécimes eqüinos com o intuito de
fornecer potência na operação de roldanas e baldes. Infelizmente sua invenção
não obteve a utilização para a qual foi desenhada, pois, as freqüentes
explosões tornavam seu emprego receoso entre os trabalhadores. Com a
disseminação da notícia, um ferreiro chamado Thomas Newcomen, que vivia
nas proximidades da cidade de Savery, foi até sua residência oferecer suas
habilidades para a forja e manipulação do ferro, e em troca obteve a permissão
para poder reproduzir o modelo revolucionário de Savery. A partir de uma
réplica que alojou nos fundos de sua residência, Thomas Newcomen planejou
melhorias significativas para o modelo anterior (Bellis, 1997).
Em 1708, após algumas tentativas, Thomas Newcomen e John Calley,
um inventor, que como Newcomen, também não possuía instrução formal em
engenharia e nem em ciências mecânicas, conseguiram implementar algumas
melhorias no protótipo de Savery, mas não obtiveram o sucesso pretendido,
apesar de estarem prontos para patenteá-la. Quatro anos depois, em 1712, a
dupla projetou e produziu um modelo chamado Atmospheric Steam Engine,
onde aplicaram a tecnologia de Papin (de criação de vácuo para a manutenção
do ciclo, com a implementação de estruturas de escape para a água
46
condensada) na retirada de água das minas de carvão (Babcock e Wilcox,
1978), o ponto nítido do sucesso de Newcomen e Calley é a proposta de
integrar as inovações de Papin ao modelo de Savery, obtendo, assim, maior
segurança na operação da máquina a vapor.
Por volta de 1763 em Glasgow (Escócia), um engenheiro chamado
James Watt, teve seu primeiro contato com a máquina a vapor de Newcomen e
Calley, ao ser requisitado para reparos na estrutura do aparato. Este jovem
engenheiro, que passara os últimos anos construindo instrumentos musicais
em suas horas de lazer e que, após proibições das corporações de ofício e
uniões mercantes, conseguiu iniciar sua oficina mecânica, foi o responsável por
conseguir mensurar a quantidade de calor necessária para produzir o vapor
necessário à operação da máquina. De forma ocasional Watt provou a
existência do calor latente22, e a partir daí produziu uma máquina capaz de
reaproveitar o volume de água usado para condensar o vapor pressurizado, e
reaquecer um recipiente contendo seis vezes seu peso (Bellis, 1997c). O
mesmo Watt aplicou outras inovações ao modelo de Newcomen e Calley,
anexando ao mesmo um condensador, biela e manivela para comando e
transmissão de movimento e um regulador, porém a forma como utilizou a
pressão produzida pelo vapor não foi suficientemente forte, tornando o motor
desnecessariamente grande e pesado, o que frustrou sua tentativa de utilizá-lo
em pequenas unidades de transporte (Devaux, 1964).
A intenção de James Watt, de aplicar sua bmáquina a um aparato de
deslocamento, foi satisfeita pouco tempo depois, em 1769, por um engenheiro
militar francês, chamado Nicolas-Joseph Cugnot. O processo desenvolvido por 22 A quantidade de calor por unidade de massa que precisa ser transferida para produzir uma mudança de fase é chamada de calor de transformação ou calor latente [...]. (Resnick, Halliday e Krane, 2003, p. 256).
47
Cugnot consistia no abandono da solução de Papin para a manutenção do ciclo
do motor (através da condensação do vapor produzido). Cugnot adotou um
eixo que conectava os dois pistões de seu motor, estes implantados em
posições iniciais opostas, produzindo assim um ciclo mecânico ao ser
acionado. O veículo desenvolvido era inicialmente um protótipo de trator militar,
com o intuito de tracionar peças de artilharia pesada, as quais não possuem
nenhum tipo de mecanismo de deslocamento (Netindustries, 2008). A
viabilidade do projeto de Cugnot não se concretizou pelas limitações de
combustível e design, onde a autonomia era baixíssima e a caldeira frontal se
mostrara totalmente instável.
Após os resultados obtidos por Cugnot, os projetos baseados em pistões
pressurizados e vapor d’água sofreram algumas reviravoltas, mas, quando a
patente de James Watt expirou, muitos engenheiros franceses não se sentiram
constrangidos na aplicação de sua tecnologia, e na Inglaterra, apesar de
gradativamente mais lento, os inventores passaram a assimilar os projetos de
Watt. Um dos responsáveis pelos novos projetos fora Richard Trevithick, um
engenheiro inglês. Ocorreu que em uma ocasião um proprietário de uma das
grandes empresas de forja, solicitou que Trevithick comparecesse à cidade
onde sua empresa se situava, para discutir sobre a implantação de motores a
vapor sob alta pressão. Esse pedido era fruto de um atrito, ocorrido entre os
proprietários de oficinas de forja próximas a um dos recém abertos canais
ingleses (Tann, 2004).
Quando, na, ocasião um importante canal possuía nada menos que 49
eclusas, distribuídas ao longo de 24 quilômetros de extensão (Tann, 2004), e a
possibilidade de futuros problemas de superlotação da via aquática já eram
48
nítidas. Com o possível cenário previsto, Samuel Homfray indagou sobre a
adoção de outro modal de transporte, mas, Richard Crawshay (proprietário da
Cyfartha Ironworks) era o acionista majoritário da concessão do canal, e
expressava sua preferência pelos barcos. O ponto decisivo foi uma cláusula do
Ato de Concessão do Canal, que definia que, a todo e qualquer acionista
localizado até quatro milhas do canal principal, era permitido executar
“collateral cuts or railways23” (Tann, 2004). A partir desta condição, alguns
outros acionistas discutiram tal medida, incluindo estruturas de planificação das
vias pelas quais seus veículos de transporte (ainda não definidos locomotivas,
pois se configuravam em carrocerias puxadas por cavalos) deveriam trafegar.
As estruturas propostas não eram como as atuais, paralelas e longilíneas, mas
sim molduras de ferro em blocos de pedra, com o intuito de manter a tração
entre as patas dos cavalos e o solo, a partir da preocupação pelo peso das
composições. Rapidamente surgiu a proposta de buscar o desenvolvimento de
algum sistema motorizado para desempenhar tais atividades.
Tomando conhecimento dos planos do grupo, Crawshay se mostrou
cético, e propôs a Homfray um desafio: apostou significativa quantia na
hipótese de que era impossível desenvolver algum maquinário que
possibilitasse o deslocamento de um carregamento de 10 toneladas ao longo
de 9,5 milhas, e que este, em seguida, cumprisse o mesmo percurso vazio24. O
motor para tentar cumprir o trajeto fora construído em 1804, porém não obteve
23 Termo interpretado pelo autor como todo e qualquer desvio de percurso do canal e adoção de estruturas ferroviárias para transporte. 24 O intuito de a proposta de Crawshay adotar como parâmetro tal distância é de que a maioria das oficinas situava-se noas arredores de Merthyr Tydfil, a 9,5 milhas de distância de Abercynon, onde se localizava o cais mais próximo.
49
sucesso no âmbito da aposta, em virtude de um amálgama de fatores (Tann,
2004).
Posteriormente aos testes do veículo desenvolvido em 1804, Trevithik
propôs em Londres (no ano de 1808) um modelo que se desenvolvia sobre um
circuito circular de madeira, que, novamente foi impedido de obter sucesso total
quando a via se partiu (Tann, 2004). Toda a investida de Trevithick provou que
as composições poderiam alcançar aderência suficiente aos trilhos, e executar
tais tarefas tendo como força motriz a máquina a vapor.
Pode-se dizer que as tentativas de Richard Trevithick (de produzir uma
locomotiva segura e eficiente para o transbordo de carga) aliadas à iniciativa
adotada pelo grupo encabeçado por Samuel Homfray, (de homogeneizar os
terrenos por onde suas composições trafegariam), produziram um cenário de
iminente progresso no que tange às soluções para problemas das minas de
carvão. Minas estas presentes em diversas regiões da Inglaterra, e, fora em
Wylan que um homem nasceu para alterar bruscamente a realidade mineira.
George Stephenson era filho de Robert Stephenson, um homem que
trabalhara como “bombeiro” na mina de carvão de Wylan e residia com sua
família às margens do caminho dos carros de carga das minas (caminho este
construído em madeira). O primeiro trabalho de George fora o de vigiar as
vacas que transitavam nos arredores da via de transporte, para que não
interferissem no trânsito dos animais que puxavam os carros de carga, e, sua
fascinação pelas máquinas e os assuntos das minas de carvão cresceu
continua e significativamente (Ross, 2000). Após aprender a ler e calcular, e
trabalhar em diversos setores das minas, Stephenson se mudou para a
Escócia, onde se interessou por uma mina (Killingworth) onde se utilizava um
50
motor como o desenvolvido por James Watt, o mais eficiente da época (Bellis,
1997d).
Quando Stephenson descobriu que dois engenheiros projetavam uma
locomotiva para operar nas minas de carvão de Wylam, decidiu tomar a
iniciativa e alcançar o feito antes, e, com dez meses de trabalho conseguiu
construir o modelo chamado Blutcher (Bellis, 1997d). Esta primeira locomotiva
possuía uma capacidade de reboque ainda restrita, assim como sua
velocidade, mas, foi o invento que demonstrou a superioridade das rodas
dotadas de sulcos nas laterais (visando estabilidade e segurança), e também a
viabilidade da aplicação da tecnologia ferroviária para transporte de cargas
pesadas. Depois da construção primeira locomotiva os proprietários da mina de
Killingworth, surpreendidos, contrataram Stephenson para a implantação de
uma ferrovia entre Hetton e Sunderland, com a extensão de oito milhas.
Após o projeto privado o inventor fora contratado para a construção de
ferrovias públicas, como a que conecta Darlington a Stockton-On-Tees (sua
locomotiva chamada Locomotion cobriu o trajeto de nove milhas em duas
horas). O grande momento de Stephenson foi quando a diretoria da ferrovia
Liverpool-Manchester lançou um concurso para inventores que propusessem
uam locomotiva capaz de operar em seu trajeto. O prêmio de quinhentas libras
fora ganho por Stephenson com sua mais nova locomotiva, a Rocket (Ross,
2000). A partir de seus feitos George Stephenson permaneceu como
engenheiro diretor de diversas ferrovias, até sua morte em 1848.
A invenção da máquina a vapor fora o ponto inicial do transporte de
passageiros sem a utilização de tração animal de qualquer tipo. De acordo com
as informações expostas pode-se pressupor que o transporte de carga fora o
51
responsável pela criação do Turismo de massa , uma vez que, somente a
partir da criação da locomotiva a vapor (para reboque de cargas nas minas de
carvão da Inglaterra) que Thomas Cook pôde consolidar a conhecida excursão
ferroviária de 184125, tomada como marco inicial do Turismo tal qual é
estipulado pelos principais autores da área como nome precursor dessa
atividade. Levando em conta esta relação deve-se atentar para
interdependência dos transportes de carga e de passageiros, tanto para a
manipulação das pesquisas quanto para o gerenciamento das estruturas.
Como no caso das ferrovias brasileiras, utilizadas majoritariamente para o
transbordo de carga e dotadas de uma espacialização altamente favorável ao
deslocamento de passageiros, serviço outrora difundido e atualmente
abandonado.
2.2 O Auge do Modal Ferroviário no Mundo
Como visto, as ferrovias foram idealizadas para o transporte de carga
mineral, mas rapidamente se difundiram como um modal eficiente no transporte
de diversos produtos (e também de passageiros), e puderam contabilizar, no
caso de alguns países, malhas ferroviárias muito extensas. Segundo Martins e
Filho (1998), os Estados Unidos da América, em 1916, possuíam
aproximadamente 408.833 km de voas férreas (o equivalente a
25 Em 1841, um vendedor de bíblias, chamado Thomas Cook, andara 15 milhas para um encontro de uma liga contra o alcoolismo em Leicester [Inglaterra]. Para um outro encontro, em Loughborough, ocorreu-lhe a idéia de alugar um trem para levar outros colegas. Juntou 570 pessoas, comprou e revendeu os bilhetes, configurando a primeira viagem da agenciada. (Barretto, 2001, p. 51)
52
aproximadamente dez voltas completas ao redor do planeta26). Ainda segundo
Martins e Filho (1998), a implantação das primeiras ferrovias nos Estados
Unidos obedeceu a uma lógica de viabilização da especialização da produção.
Isso quer dizer que a rede de transportes ferroviárias fora, inicialmente,
projetada para fornecer ao país uma vantagem de mercado, abordada por
Adam Smith e David Ricardo, de poder dar ênfase àqueles processos nos
quais se diferenciam pela eficiência superior, e adquirir de pólos externos os
demais produtos e/ou serviços os quais consegue disponibilizar a um custo
maior ou igual ao de mercado. Neste caso dos EUA a especialização fora
destinada a um desenvolvimento interno, já que tais ferrovias não previam
conexões externas, mas interestaduais e intermunicipais, desvinculadas de
qualquer intenção final exportadora.
O desenvolvimento ferroviário mexicano se deu através de uma lógica
diferente da operada nos EUA, pois as ferrovias surgiram de um planejamento
voltado à exportação, setor de mercado que se mostrava prejudicado pelas
características geográficas mexicanas e a dispersão de sua população. Os
centros mexicanos de produção nunca foram compatíveis com rotas de
escoamento marítimo para os bens, assim como afirma Coatsworth (1979, p.
947):
Antes das ferrovias o México dependia quase que exclusivamente, do transporte terrestre. Diferentemente dos Estados Unidos e a Grã-Bretanha, ou até da Rússia Czarista e a Colômbia, o México não possuía nenhum sistema de transporte fluvial. Exceto pelo transporte de carga em três grandes lagos próximos a centros populacionais de grande altitude, alguns lanços acima de vários rios que a partir do golfo seguiam até ao sopé das montanhas, o transporte aquaviário interno era desconhecido. A maioria da população e as atividades econômicas mexicanas sempre se localizaram afastadas de ambas as faces litorâneas, em platôs e vales montanhosos, a navegação costeira nunca foi expressiva no México como foi para a Europa e
26 O perímetro da Terra, segundo Venturi (sem data) é de 40.076 km.
53
para os Estados Unidos. O retorno financeiro advindo do transporte de carga, portanto, era alto27. (traduzido e adaptado pelo autor)
Essa concentração demográfica em vales e platôs fez com que o
transporte terrestre se tornasse mais do que apenas uma alternativa, e sim a
única solução para o escoamento da produção. Apesar da acessibilidade e
velocidade dos trens, a arrecadação com o transporte de passageiros se
mostrava um negócio de baixa rentabilidade, justificado em parte pelos baixos
salários praticados no país (que conferiam ao tempo um valor baixo28). Para
Coatsworth (1979), o transporte de carga, ainda incipiente, possuía boa
remuneração, e isso foi decisivo para o estágio seguinte do desenvolvimento
ferroviário mexicano.
Com a disponibilidade de mão-de-obra e altas taxas de transporte, os
investidores estrangeiros e os empreendedores locais tomaram o México como
ótimo celeiro de investimentos, e aqueceram o mercado de exportação agrícola
e mineração moderna. A partir disto, o país iniciou um ciclo rápido de
contribuição mútua, entre as os referidos setores de produção (agrícola e
mineiro) e transporte ferroviário. O auge do transporte ferroviário mexicano se
deu em 1910, com 19.205 km em trilhos, porém, em 1911, com o fim da
ditadura de Porfírio Diaz (1877-1910) e a explosão de movimentos
revolucionários, as construções ferroviárias foram suspensas e a estrutura
27 Before the railroad Mexico depended almost exclusively on overland transportation. Unlike the United States and Britain, or even Tsarist Russian and Colombia, Mexico had no river system suitable for use in transportation. Except for local freight across three large lakes near highland population centers and short hauls up several rivers from the Gulf to the base of the mountains, internal water transport was unknown. Since most of the population and economic activity was always been located far from the two coasts, in plateaus and mountain valleys, coastal shipping never played the role in Mexico that it did in Europe and the United States. Unit savings from railroad freight transport, therefore, were high. 28 O valor do tempo poderá ser mensurado se tomado como tempo de trabalho, de forma que cada hora longe de seus afazeres custe a um trabalhador o equivalente à enésima parte de seu salário (onde n corresponde ao número de horas trabalhadas no período de remuneração). (Coatsworth, 1979, p. 944-945)
54
existente fora seriamente danificada. Após a turbulência a economia mexicana
começou a crescer novamente no início da década de 1920, mas a atenção
dispensada ao transporte ferroviário não fora a mesma, e isto condenou o
modal no país.
Na Alemanha a implantação do modal ferroviário teve início por volta de
1840, com a importação de quase todas as estruturas necessárias para a
operação das ferrovias. Segundo Fremdling (1977), a indústria metalúrgica
alemã, em 1840, ainda operava de acordo com métodos medievais, e sua
capacidade produtiva nem de longe atingira o nível de suporte da demanda por
locomotivas, trilhos e as demais constituintes do rol ferroviário. O transporte de
bens no interior do país se mostrava complicado pela situação política entre
seus 38 estados.
Com a fundação do primeiro Zollverein29, em 1834, houve grande
facilitação dos processos, e as políticas foram direcionadas a um favorecimento
das atividades industriais domésticas de maior perícia30. O transporte de
cargas fora a grande prioridade da ferrovia alemã quando de sua implantação e
as atividades industriais necessárias à sustentação do modal foram
estimuladas, e o modal ferroviário fora inserido em uma relação de
reciprocidade de estímulos com a indústria de base alemã (quanto mais crescia
a demanda pelas ligações ferroviárias, através do favorecimento das tarifas de
transporte, mais a indústria aumentava sua produção e ofertava equipamentos
29 Segundo Chastain (s.d.), Zollverein fora um acordo alfandegário entre os 38 estados constituintes do império alemão pré-unificado. Fora implantado, rescindido e renovado em duas ocasiões, com diferentes configurações. 30 De forma semelhante ao operado nos EUA, atenuadas algumas diferenças, como, por exemplo, o fato de a política tarifária alemã ter favorecido a importação de bens não-finalizados, como o ferro gusa. Nos EUA as tarifas do ferro laminado e do ferro gusa foram igualadas, causando um efeito de favorecimento aos produtos já processados. (Fremdling, 1977)
55
ao setor ferroviário). O transporte de passageiros, por sua vez, se encontrava
em situação mais delicada, tanto pela situação política interna do império,
quanto pelo retorno financeiro apresentado no transporte da carga.
Segundo Metzer (1974), na Rússia o transporte ferroviário fora
idealizado com os propósitos de: 1) Homogeneizar as taxas operadas pelo
transporte de passageiros e carga no território russo 2) Estimular o mercado
interno (como nos casos alemão e estadunidense) 3) Obter maior eficiência na
alocação de recursos através da flexibilidade dos trajetos dos trilhos, em
comparação ao transporte aquaviário. Com os objetivos traçados o governo
russo concedeu vantagens para a operação de ferrovias e direcionou suas
políticas no sentido da distribuição da produção interna de grãos, tanto para
consumo interno quanto para a exportação (uma vez que a produção de trigo e
centeio possuía assimilação diferente no mercado interno).
O transporte de cargas também fora a prioridade do governo russo,
apesar de a primeira ferrovia construída na Rússia não possuir fins comerciais,
e nem de transporte de cargas, pois serviu aos propósitos de deslocamento do
Czar, entre sua residência de rotina e sua residência de verão, como pode ser
verificado em trecho da obra de Metzer (1974):
A primeira ferrovia russa foi construída em 1837. Conectava São Petersburgo e a Vila do Czar, a residência de Verão do Czar, com cerca de vinte e dois quilômetros de trajeto. Tratava-se, meramente, do brinquedo do Czar31. (traduzido e adaptado pelo autor)
Ainda segundo Metzer (1974), a construção das ferrovias russas pode
ser denotada em dois grandes momentos distintos, como se pode verificar no
trecho abaixo:
31 The first railway in Rússia was built in 1837. It connected St. Petersburg and Tsarskoye Selo, the Tsar’s summer residence, a distance of about fourteen miles. It was, however, merely the “Tsar’s toy”.
56
A primeira linha férrea de viés econômico, entre Moscow e São Petersburgo, foi inaugurada em 1851, seguida pela linha São Petersburgo-Viena (Via Warsaw) em 1862, anunciando a construção massiva na Rússia Européia, que durou desde a década de 1860 até a Primeira Guerra Mundial. A disseminação ferroviária concentrou-se, de qualquer forma, em dois momentos distintos: o primeiro entre 1866 e 1875, e o segundo de 1893 a 190532. (traduzido e adaptado pelo autor)
Os dois momentos são caracterizados como o de construção dos
caminhos tronco e a distribuição dos ramais rumo ao interior do páis e aos
pequenos centros produtivos, respectivamente. A rede ferroviária russa
culminava nos grandes portos de transporte de cargas, e cresceu, como já dito,
até meados do início da Primeira Guerra Mundial, tendo, a partir de então,
sofrido grandes perdas.
A utilização das ferrovias, quando de seu início, fora majoritariamente
com o intuito de deslocamento de cargas, planificação de tarifas alfandegárias
e estímulo de mercados domésticos (excluindo-se o turismo de tais mercados,
uma vez que a gênese do fenômeno turístico moderno é tida como a excursão
de Thomas Cook, em 1841, período contemporâneo aos processos de
construção das ferrovias nos países analisados). O caso russo, da ferrovia de
ligação entre as residências do Czar, é um evento isolado e desprovido de
qualquer intenção comercial. Como Metzer (1974) afirma, é apenas um
brinquedo do Czar, que não despertou nenhum interesse de disseminação do
transporte massivo de passageiros (além do necessário para a manutenção
das comunicações e do emprego, descartando a funcionalização pelo lazer)
pelo território russo.
32 The first economic line, between Moscow and St. Petersburg, was opened in 1851, followed up by the St. Petersburg-Vienna (Via Warsaw) line in 1862, heralding the massive construction in European Russia which continued from the 1860’s until World War I. It was concentrated, however, in two distinct surges: the first between 1866 and 1875, and the second from 1893 to 1905.
57
Segundo Lardner (apud Martins e Filho, 1998, p. 77), a construção de
ferrovias em território belga se deu com o intuito de manter a comunicação com
os demais países circunvizinhos após a independência. Uma conseqüência
notável da implantação do modal na Bélgica, comum a outros casos, fora a
dinamização do comércio interno.Alguns outros casos foram abordados por
autores como Martins e Filho, mas não são necessários ao desenvolvimento
deste trabalho.
Com a apresentação dos casos anteriores percebe-se que o turismo não
fora uma prioridade para os governos quando da idealização das redes de
transporte ferroviário, apesar de comumente ser construída uma relação entre
o fenômeno e o transporte ferroviário em virtude do pioneirismo de Thomas
Cook, na Inglaterra. Ao desenvolver meios de transporte capazes de
desempenhar atividades sobre-humanas (como trafegar a velocidades muito
superiores à dos homens e com cargas muito superiores às dos animais e
demais equipamentos de deslocamento terrestre), a possibilidade de utilizar
tais estruturas para o deslocamento de pessoas em um tempo cada vez menor
passou a se tornar cada vez mais evidente. Pensando nisso o referido
vendedor de bíblias iniciou a atividade de fretamento de meios de transporte
para grupos fechados a partir de estruturas de carga, antes utilizadas para
unicamente transportar minério, carvão e outros recursos.
A utilização do transporte ferroviário, no início do século XX entrou em
declínio, em função de diferentes causas, mas uma delas fora decisiva para o
abandono dos trilhos quase que totalmente (com exceção de alguns países
que serão abordados posteriormente neste trabalho): a opção rodoviária. O
surgimento da alternativa terrestre ao transporte ferroviário desencadeou uma
58
competição entre os modais ferroviário e rodoviário, contribuindo para o
declínio da atividade ferroviária e abrindo novas perspectivas de transporte,
conforme é tratado no próximo item.
2.3 As Competições Modais: Transporte Ferroviário versus Transporte
Rodoviário
O transporte ferroviário, como demonstrado no item anterior, conquistou
a preferência de diversos investidores no século XIX, em virtude de sua
superioridade frente ao modal aquaviário (tratando-se, obviamente, de
deslocamentos intracontinetais), que até o momento se apresentara como a
única forma de deslocar cargas e passageiros através de alguma força motriz
advinda de um esforço não-animal. O transporte ferroviário demonstrou a
possibilidade de integrar territórios, através de redes de transportes terrestres,
e viabilizaram tais redes por meio de máquinas capazes de atingir velocidades
inimagináveis para comboios, baseados em animais de tração, que se
dispusesse a transportar os mesmos volumes.
A eficiência do modal ferroviário despertou nos governos, dos países
onde a ferrovia se instalara, uma potente ferramenta configuradora de redes de
transporte, às quais poderiam conceder a seus detentores o controle das
relações (econômicas, culturais e etc.) entre diferentes partes dos territórios.
Tal controle poderia demonstrar um poder de dinamização da economia que
seria extremamente positivo ao país, porém, poderia demonstrar um poder de
sítio tremendo, ou também desfavorecer regiões menos propensas à produção
59
de certos produtos. Esse quadro instigou a regulamentação excessiva do
modal, e dessa forma estancou diversos investimentos que poderiam advir da
iniciativa privada, construindo um cenário em que o transporte de cargas e
passageiros, através de vias férreas, se mostraria viável apenas em ramais de
grande fluxo e as mercadorias possuíam alto valor, pois os fretes não poderiam
ser praticados livremente pelas operadoras.
Segundo Martins e Filho (1998, p. 79) O contínuo desenvolvimento
científico e tecnológico, que outrora havia elevado as ferrovias à categoria de
principal modal de transporte no século XIX, atuou favoravelmente com relação
às rodovias no século XX. As iniciativas privada e pública direcionaram seus
esforços e investimentos para o modal rodoviário em virtude da combinação
das características do novo modal (maior flexibilidade operacional, a menor
regulamentação sobre as atividades, o menor custo de implantação das vias e
a maior eficiência dos veículos) e os fatos contemporâneos (A crise mundial de
1929, A Primeira Guerra Mundial e A Segunda Guerra Mundial), os quais
determinaram a viabilidade rodoviária em detrimento da opção ferroviária. No
caso argentino a situação se tornou cada vez mais complexa em virtude da
impaciência dos investidores britânicos, que, independentemente do cenário
internacional e o ciclo natural das culturas, exigiram uma remessa contínua de
capital advindo do mercado argentino, como afirma Schvarzer (1999, p. 4),:
A crise da década de trinta bloqueou as já escassas possibilidades de expansão da atividade pampiana. A retração dos mercados mundiais foi paralela ao estancamento, e a declinação física das culturas da região. O material rodante de capital britânico enfrentou a conseqüente deteriorização da demanda de carga originada na Argentina. A baixa atividade agrária afetava seu retorno e sua rentabilidade, ao mesmo tempo em que agrega um elemento adicional para desestimular toda e qualquer tentativa de melhoria técnica. Além disso, a pressão dos acionistas britânicos para a manutenção do fluxo de dividendos efetivos até a Grã-Bretanha promoveu remessas contínuas de quantias da Argentina. Essa
60
superposição negativa de estancamento da demanda local de cargas e a pressão dos acionistas em busca de benefícios líquidos resultavam incompatíveis com a melhora potencial do sistema ferroviário e, inclusive, erodia a continuidade do processo operacional. Com efeito, as respostas empresariais a tais condições de mercado levaram a uma intensa contração de todas as inversões de renovação, permitindo o desgaste contínuo e crescente de equipamentos e instalações33. (traduzido e adaptado pelo autor)
A pressão de investidores internacionais, como citado, foi fatal para a
rede ferroviária argentina, e o governo do país assumiu a sua maior decisão
estratégica relativa a transporte ao incentivar a construção de rodovias, como
alternativa para o transporte de carga (Schvarzer, 1999, p. 4). A implementação
de vias rodoviárias demonstrou a baixa competitividade do modal ferroviário na
argentina, que não pôde reagir em virtude da regulamentação.
O caso brasileiro tem notável relação com a baixa flexibilidade do
sistema ferroviário, pois, a estrutura fora implantada com o intuito de dar
suporte à economia essencialmente exportadora brasileira, direcionando os
trilhos rumo aos portos regionais (Ângelo, 1997 apud Martins e Filho 1998, p.
80). Com a industrialização nacional se intensificando foram supridos mercados
de consumo para diversos produtos antes importados, e também fora
nacionalizada a compra de grande quantidade da matéria-prima antes
exportada. Esse crescimento do mercado interno, em diferentes níveis das
cadeias produtivas, demandava a estruturação de redes de transporte que
diferissem dos antigos ramais “centro produtivo – porto”. O modal rodoviário
33 La crisis de la década del treinta bloqueó las ya escasas posibilidades de expansión de la actividad pampeana. El cierre de los mercados mundiales fue paralelo al estancamiento, y la declinación física de las cosechas de la región. Los ferrocarriles de capital británico se enfrentaron al consiguiente deterioro de la demanda de carga originada en la Argentina. La menos actividad agraria afectaba sus ingresos y su rentabilidad, al mismo tiempo que agrega un elemento adicional para desestimular todo ensayo de mejora técnica. Para más, la presión de los accionistas británicos por sostener el flujo de dividendos en efectivo hacia Gran Bretaña promovió la remisión continua de ganancias desde la Argentina. Esa superposición negativa de estancamiento de la demanda local de cargas y la presión de los accionistas por beneficios líquidos resultaba incompatible con la mejora potencial del sistema ferroviario e, incluso, erosionaba la misma continuidad del proceso operativo. En efecto, las respuestas empresarias a esas condiciones del mercado llevaron a una intensa contracción de todas las inversiones de renovación, permitiendo el desgaste continuo y creciente de equipos e instalaciones.
61
apresentava características adequadas ao momento brasileiro, segundo
Martins e Filho, (1998, p. 80) as rodovias, com custos de implantação e prazos
de maturação inferiores, revelaram-se mais adequadas para suportar um
intenso processo de industrialização, e o cenário favorecera ainda mais as
rodovias com a implementação do Plano de Metas pelo governo de Juscelino
Kubitschek, que investira massivamente na expansão de rodovias e incentivou
a indústria automobilística34.
Assim como já abordado no primeiro capítulo deste mesmo trabalho e
reafirmado no parágrafo anterior, a superioridade do modal rodoviário
concretizou-se em virtude da alta adaptabilidade espacial do modal rodoviário,
a liberdade decisória (tanto para destinos quanto para horários) do viajante e a
produção em massa de veículos para trânsito em vias rodoviárias. Para o
Turismo esta superioridade demonstrou grande revolução nas formas de
viagem, e concedeu aos viajantes a independência almejada. Essa perspectiva
é analisada por Prideaux e Carson (2003, p. 307-308):
A indústria do Turismo foi beneficiada enormemente pela habilidade dos automóveis de prover, quase que de forma irrestrita, viagens terrestres, e, em nações desenvolvidas uma proporção significante de viajantes domésticos utilizam-se de carros como a principal forma de transporte para os feriados. Na Austrália, por exemplo, o Bureau of Tourism Research publicou que 70 por cento de todas as viagens são efetuadas através de carros. A indústria do Turismo tem respondido a esta preferência pela viagem de carro desenvolvendo novas formas de acomodação, tipificadas por parques de estacionamento e motéis, e investindo em atrações turísticas localizadas a maiores distâncias dos grandes centros urbanos35. (traduzido e adaptado pelo autor)
34 Segundo Almeida (2006, p. 201) o investimento destinado ao setor de transportes (29,6%) abarcaria reaparelhamento e construção de ferrovias; pavimentação e construção de rodovias; serviços portuários e de dragagens; marinha mercante; transportes aeroviários;, porém, beneficiou o setor automobilístico em grande parcela, apoiado também pela Instrução 113, da Superintendência da Moeda e do Crédito, que previa facilidades com relação à importação de equipamentos sem cobertura cambial. 35 The tourism industry has benefited enormously from the car’s ability to provide almost unrestricted land travel and in developed nations a significant proportion of domestic travellers utilise cars as their main form of holiday transport. In Australia, for example, the Bureau of
62
Como observado por Prideaux e Carson a competição entre os citados modais
refletiu conseqüências drásticas no setor do Turismo, uma vez que influenciou
a construção de meios de hospedagem e investimentos em atrativos turísticos
distantes de centros de maior densidade populacional e nível de urbanização
mais elevado. Tais alterações ditaram novas formas de Turismo e contribuíram
enormemente para uma maior individualização36 das práticas turísticas.
O modal rodoviário alcançou altos percentuais de prevalência para
deslocamentos intracontinentais e foi difundido e adotado ao redor do mundo
como o meio de transporte mais utilizado na atualidade. Para comprovar tal
afirmação vide o Gráfico 2, presente na página 20 do capítulo 1, onde é
apresentada a participação de cada modal37 de transporte na demanda total de
passageiros dos 23 países integrantes European Environment Agency.
Com o modal rodoviário conquistando cada vez mais espaço no quadro
da demanda de transporte de cargas e passageiros, os governos
implementaram projetos como a iniciativa do governo inglês através do Road
and Rail Traffic Act de 1933, que flexibilizava as tarifas e concedia
exclusividade em contratos de transporte de cargas para o modal ferroviário,
porém não obteve sucesso (Martins e Filho, 1998, p.80). Seguindo a lógica de
expansão contínua do modal rodoviário a indústria automobilística brasileira
Tourism Research reported that 70 per cent of all trips are undertaken by car. The tourism industry has responded to this preference for car travel by developing new forms of accommodation, typified by caravan parks and motels, and investing in tourism attractions located away from major urban centres.
36 Entenda esta individualização como a prática de Turismo por grupos pequenos, normalmente utilizadores de um ou poucos automóveis, que não utilizasse meios coletivos de transporte e, tampouco, meios de hospedagem de alta capacidade. 37 Vale ressaltar que a divisão entre os modais levou em conta carros, ônibus, composições ferroviárias e aeronaves, desconsiderando as linhas metroviárias urbanas. Isso demonstra que a real expressividade do modal rodoviário é, na realidade, o somatório das cotas para carros e ônibus.
63
saltou de uma produção anual de pouco mais de 200 mil unidades em 1969,
para pouco mais de 750 mil unidades em 1978 (ANFAVEA apud Palhares,
2002, p. 189). A malha rodoviária brasileira, em 1940, contava, segundo
Palhares, (2002, p. 223-224):
Com apenas 423 quilômetros de rodovias federais e estaduais pavimentadas (...,) em 1950 o País já possuía o dobro de rodovias pavimentadas do que nos cinco anos anteriores.(...) A década de 1960 foi caracterizada pela interligação de todas as capitais estaduais, com exceção de Manaus e Belém, por rodovias federais. (...) Na década de 1980, o País possuía 47 mil quilômetros de rodovias federais pavimentadas.
Neste contexto a opção ferroviária parecia fadada à extinção em pouco
tempo, não fossem algumas iniciativas de países que há algumas décadas
haviam investido seus esforços em pesquisa para o modal ferroviário. A
conseqüência de tais tentativas foi a aplicação de tecnologias inovadoras e
revolucionárias, presente no próximo tópico.
2.4 As Inovações Tecnológicas: Tav’s e Maglev
Com a popularização da alternativa rodoviária, grande parte dos países
abriu mão de todo ou grande parte do investimento destinado à manutenção e
pesquisas no setor ferroviário, porém, alguns poucos países mantiveram tais
incentivos, como o caso japonês que buscava como objetivo o aumento da
velocidade de transporte para cerca de 250 km/h. A interrupção dos projetos
japoneses com a Segunda Guerra Mundial atrasou os planos que só foram
retomados em meados da década de 1950, culminando na inauguração do
primeiro trem de alta velocidade do mundo em 1° de outubro de 1964, na
cidade de Tóquio, na ocasião da realização dos Jogos Olímpicos (Palhares,
64
2002, p. 304). A tecnologia desenvolvida pelo Japão ficou conhecida como
HSGT (High Speed Ground Transport), HSST (High Speed Surface Transport)
ou TAV (Trem de Alta Velocidade), caracterizada pela operação de
composições em linhas ferroviárias normais que atinjam velocidades superiores
a 200km/h ou 250km/h em linhas ferroviárias adaptadas. Esse progresso
possibilitou um novo olhar ao modal ferroviário, posto que a alta segurança,
excepcional pontualidade, baixo custo de operação e alta capacidade de carga,
possuíam potencial competitivo com relação ao inovador transporte aéreo.
De acordo com Palhares (2002, p. 304):
Com o êxito obtido no Japão, a operadora do sistema ferroviário francês, a SNCF (Société Nationale des Chemins de Fer), iniciou no ano de 1966 os estudos para implantação de uma linha de alta velocidade chamada de TGV (Train à Grande Vitesse). Declarada de interesse nacional em 1976, uma linha entre Paris e Lyon foi inaugurada em duas fases, nos anos de 1981 e 1983.
A implantação do TGV em Paris abriu caminho para o desenvolvimento
de pesquisas em TAV em diversos países da Europa, e despontaram como
centros europeus de pesquisa, em transporte ferroviário de alta velocidade, a
própria França e a Alemanha.
Posteriormente à implantação dos referidos TAV, em 1974, a empresa
japonesa de transporte aéreo Japan Airlines iniciou pesquisas para formas de
transporte mais rápidas entre o centro de Tóquio e o aeroporto de Narita. A
alternativa escolhida pelo grupo de pesquisa japonês fora a de levitação
magnética (Maglev – Magnetic Levitation), baseando-se em uma aplicação de
tecnologia alemã implantada tanto na Alemanha quanto na Grã-Bretanha
(Vuchie e Casello, 2002, p. 39), que apesar de ser de baixa velocidade
demonstrou a viabilidade mecânica de tal iniciativa. Com tal incentivo científico
os pesquisadores japoneses desenvolveram e implementaram protótipos que
65
rapidamente romperam as barreiras de velocidade alcançadas por mecanismos
de transporte terrestres, facilmente alcançando velocidades superiores a
400km/h.
Os sistemas de Levitação Magnética se baseiam em princípios básicos
de magnetismo e podem ser desenvolvidos a partir de repulsão, atração ou
indução magnética. A tecnologia japonesa foi desenvolvida a partir da repulsão
magnética e, dentre a bibliografia pesquisada não foi encontrada nenhuma
justificativa pra que alguma forma de aplicação da tecnologia magnética seja
preterida em detrimento de outra, ou seja, não foram encontradas evidências
de disparidade quanto à eficiência de cada alternativa magnética. A propulsão
dos veículos também pode variar entre a utilização de motores elétricos e a
aplicação de correntes elétricas em bobinas dos trilhos. A notoriedade de tais
projetos é o ganho em segurança, baixo consumo energético e relativa
emissão de ruídos e poluentes já que o sistema demonstra extrema
estabilidade, ausência de contato com as vias e alimentação por corrente
elétrica (Coimbra, 2006).
Apesar da aparente superioridade operacional da tecnologia Maglev,
quando confrontada aos TAV’s, a diferença que se atesta ao efetuar um estudo
mais detalhado não é realmente compensatória. Por exemplo, a figura 4
reproduz um gráfico que demonstra como o ganho de velocidade influência na
economia de tempo em deslocamentos de até 250 quilômetros. Segundo o
autor do gráfico, o ganho de tempo para as velocidades acima de 250 km/h
passam a ser insignificantes se comparados aos ganhos nos intervalos
anteriores (este raciocínio é sustentado pelo destaque da letra “a”, no gráfico
da Figura 4). Também demonstra que em percursos menores a velocidade
66
passa a ter uma influência ainda menor, ou seja, quanto menor for o percurso
em questão, menor será a vantagem competitiva da adoção de tecnologia
Maglev (este raciocínio é sustentado pelo destaque da letra “b”, no gráfico da
Figura 4).
Figura 4 – Tempo de percurso versus Velocidade máxima
Fonte: Vuchie e Casello, 2002.
Além das duas justificativas sustentadas pelas letras “a” e “b” no gráfico,
Vuchie e Casello (2002, p. 36) também apresentam a justificativa de que o
aumento nos custos para a implantação da tecnologia Maglev não é
proporcional ao aumento de velocidade alcançado, contestando a visão de que
os TAV’s já não são viáveis, uma vez que a tecnologia Maglev já se encontra
em um patamar de desenvolvimento que se tornou aplicável comercialmente.
Outro ponto importante que os autores destacam é a diferença existente entre
a velocidade máxima experimental (VME) e a velocidade máxima operacional
(VMO) de cada sistema, pois, os sistemas não operam em VMO, que tende a
67
ser de 50% a 80% maior do que a VME alcançada por este mesmo sistema. O
problema é que a divulgação dos avanços tecnológicos diz respeito,
normalmente às VME, e causam erros de avaliação de projetos no sentido de
que a adoção de tais tecnologias só poderá alcançar tal velocidade em
condições extremamente controladas e de alta previsibilidade, o que não
constitui o cenário real.
O estudo de Vuchie e Casello conclui que a implementação da
tecnologia Maglev, se comparada à tecnologia de TAV não é justificada por
fatos, mas sim por expectativas construídas a partir de que a velocidade, a
emissão de ruídos e o consumo de energia são quesitos básicos (mesmo que o
consumo energético, por unidade transportada, tenha sido atestado superior
nas composições Maglev). A Figura 5 reproduz uma tabela que contém as
conclusões alcançadas pelos autores.
Figura 5 – Comparação entre Maglev e TAV (High Speed Train)
Fonte: Vuchie e Casello (2002).
68
2.5 As Competições Modais: Transporte Ferroviário versus Transporte
Aeroviário
O cenário delineado pelo abandono do modal ferroviário por preferência
pelo modal rodoviário foi ainda complementado pelo rápido desenvolvimento do
transporte aéreo de longa distância e grande capacidade (com a aplicação
viável de turbinas após a Segunda Guerra Mundial e outras tecnologias), como
afirma Palhares (2002, p. 105):
Na segunda metade da década de 1950, há uma revolução na aviação comercial com o surgimento de aeronaves maiores como os modelos Comet, Caravelle, Boeing 707 e Douglas DC-8. No final dos anos 60 e início dos anos 70, aparecem as primeiras aeronaves wide-body, em particular o Boeing 747 e o Douglas DC-10, que impulsionaram ainda mais o desenvolvimento da aviação comercial.
As inovações apontadas por Palhares (2002) atestaram a característica
última que o transporte aéreo ainda não havia conquistado, a alta capacidade
de carga38. Esta grande capacidade aliada às condições de que o transporte
aéreo alcança uma cobertura geográfica quase total e o contínuo
desenvolvimento tecnológico no sentido de diminuição de custos, fizeram com
que o transporte terrestre (tanto ferroviário quanto rodoviário) sofresse grande
abalo, e orientou muitas políticas em favor das malhas aeroviárias.
Essa nova orientação nos setores de transporte levou à disseminação
de aeroportos e à explosiva onda de companhias aéreas, o que por sua vez
gerou grandes inconvenientes aos órgãos reguladores da atividade. As
medidas adotadas foram sendo alteradas com o tempo e em muitos países
ocorreu a desregulamentação do setor, que acabara por atingir uma situação
38 Levando em conta que a palavra carga é aplicada neste momento como qualquer espécie de público-alvo para o serviço de transporte, sejam objetos ou pessoas.
69
semelhante à do transporte ferroviário quando da aparição do transporte
rodoviário. Porém, o transporte aéreo é dotado de particularidades as quais
não permitem total otimização do processo, como por exemplo a localização de
terminais que é de alta periculosidade para núcleos de alta densidade
demográfica, forçando sua construção em locais afastados dos grandes
centros (que geralmente são seus maiores usuários).
A predominância do modal aeroviário para os deslocamentos de longa
distância foi nítida após a Segunda Guerra Mundial, com uma demanda de
passageiros crescente e conferências internacionais para o estabelecimento de
acordos sobre o espaço aéreo. Com a implantação do TGV em Paris, a
participação do transporte aeroviário na divisão modal de passageiros foi
significativamente alterada, como afirmam Park e Ha (2006, p. 97):
Na França, em 1981, a rota Paris-Lyon (450 km) foi inaugurada como a primeira roda do TGV, o que iniciou a competição entre o transporte aéreo e o transporte ferroviário de alta velocidade. Quando a rota leste do TGV foi introduzida, o transporte aéreo da mesma região decresceu quase pela metade sua participação modal, de 30% para 15%. A parte disso, a participação modal do transporte ferroviário englobava uma distância operacional maior então o volume de redução foi relativamente pequeno, mas no caso da rota Paris-Marseilles (700 km), a participação modal do transporte aéreo passou do intervalo entre 45-55% para 35-45%, e na rota Paris-Nice (900 km) caiu de 55-65% para 50-60%. Isso significa que a demanda pelo transporte aéreo foi influenciada pela distância operacional. Em outras palavras, no caso da França, as rotas de curta distância, ou rotas de trajeto inferior a 500 quilômetros, foram impactadas consideravelmente39. (traduzido e adaptado pelo autor)
39 In France 1981, the Paris-Lyon route (450 km) was opened as the very first route of the TGV, thus ushering in competition between air and high-speed rail. Once the eastern high-speed rail route was introduced, the eastern air transport route volume share decreased by almost half, from 30% of air transport modal share to 15%. Apart from this, the rail modal share encompassed a longer operational distance so the volume of reduction was relatively small, but in the case of the Paris-Marseilles route (700 km), the air modal share dropped from 45–55% to 35–45% and the Paris-Nice route (900 km) dropped from 55–65% to 50–60%. This means that air transport demand was influenced by the operational haul length. In other words, in the case of France, short line-haul length routes, or routes less than 500 km in length, were impacted significantly.
70
Os autores afirmam que, as alterações na demanda de passageiros por
serviços aéreos foram mais significativas para as rotas com percursos
inferiores a 500 quilômetros, sendo que as rotas mais longas não sofreram
tanta influência, em virtude da velocidade média operacional das aeronaves
serem bastante superiores às dos TAV’s. O fator decisivo para as escolhas
encontra-se nas atividades operacionais indispensáveis a estes modais, como
por exemplo a preparação antes da partida, a coordenação dos veículos nas
rotas e outras atividades as quais Palhares (2002, p. 308) elenca e justifica:
Nas viagens até 500 quilômetros de distância, o tempo gasto no deslocamento do passageiro desde a origem da sua viagem (casa, escritório, etc.) até o aeroporto, além dos tempos de apresentação para o check-in, embarque, taxiamento, pouso e decolagem das aeronaves, e é claro, do tempo de deslocamento do aeroporto até o seu destino final, terminam por eliminar a vantagem que as aeronaves apresentam em termos de velocidade. Isso ocorre porque, com distâncias inferiores a 500 quilômetros, enquanto o tempo efetivo de vôo pode durar menos do que uma hora, o tempo gasto com as atividades mencionadas pode vir a representar aproximadamente outras duas horas.
Baseando-se no fato de que a grande maioria dos terminais aeroviários
localiza-se fora dos grandes centros e os terminais ferroviários possuem a
versatilidade de habitá-los, pode-se presumir que o tempo de deslocamento até
o terminal venha a ser consideravelmente superior para os passageiros que
buscam o transporte aéreo. Neste contexto, também se pode verificar que o
transporte ferroviário pode servir como corredor intermodal entre os centros de
negócios e os terminais aeroviários, confirmando sua participação modal
mesmo quando o transporte aeroviário prevalecer. A análise fora efetuada com
base no transporte ferroviário de TAV’s, que demonstram sua alta eficiência em
percursos de menor distância, mas, caso a alternativa Maglev seja aplicada, o
transporte aeroviário ainda poderá enfrentar outra grande perda de participação
modal.
71
Vale ressaltar que os turistas buscam formas de deslocamento que
ofereçam o maior número de vantagens por um menor número de recursos40.
Claro que existem segmentações no setor turístico com relação a
consumidores sensíveis a preços, tempo e conforto, mas, é notável a aversão
dos passageiros às perdas excessivas de tempo quando da utilização das
estruturas de transporte com fins primordialmente de deslocamento. Os TAV’s
alcançam tal nível de satisfação por oferecem um serviço de alta pontualidade,
segurança, baixa tarifa e considerável dinamismo (uma vez que não se exigem
os mesmos procedimentos extenuantes para o embarque em aeroportos). A
partir dos dados apresentados, pode-se constatar que a competitividade do
modal ferroviário cresceu nos últimos anos frente aos demais modais, a
despeito do declínio abrupto proporcionado pela iniciativa rodoviária, no século
XX. A aplicação das novas tecnologias proporcionou o ressurgimento do
transporte ferroviário de passageiros e o estabelecimento de novas relações
intermodais.
Considerando o quadro traçado pelas pesquisas, os governos optam
pelas formas de transporte que mais lhes convém, e, seguindo esta lógica, no
próximo capítulo alguns casos são analisados e utilizados para ilustrar as
vantagens e os problemas da utilização do transporte intermunicipal de
passageiros via modal ferroviário.
40 Tempo e dinheiro literalmente.
72
3. A UTILIZAÇÃO DO MODAL FERROVIÁRIO NO TRANSPORTE DE
PASSAGEIROS PELO MUNDO
O transporte ferroviário de passageiros representou um avanço
expressivo no deslocamento terrestre no século XIX, competindo diretamente
com o transporte aquaviário, quando se tratando de trajetos intracontinentais. A
competição intermodal foi decisiva para o declínio da atividade ferroviária de
transporte, tanto de passageiros quanto de cargas, entretanto, governos como
o francês e o japonês investiram em pesquisas que demonstraram a eficiência
do modal para os interesses condizentes aos séculos XX e XXI, o que causou
uma reviravolta na distribuição da participação dos modais de transporte.
Partindo dessa premissa, surgem indagações que são inerentes ao objeto de
estudo dessa pesquisa. Dessa forma, analisar-se-á o transporte ferroviário e o
turismo de acordo com as ações no transporte ferroviário japonês, francês e o
brasileiro.
As tecnologias mais discutidas, atualmente, para o transporte ferroviário
são as de TAV’s e Maglev, como tratado no capítulo anterior. Entretanto, a
implantação e a revitalização de trechos ferroviários acabam por encontrar um
obstáculo muitas vezes infundado: a crença de que a alternativa rodoviária
oferece custos mais baixos e retorno do investimento superior ao da opção
ferroviária. O estudo de Ângelo (1987), através de um estudo de caso para
uma variante ferroviária, demonstra (através de projeções e análises de séries
históricas) que a instalação de estrutura ferroviária não só responde por um
custo menor (em casos de demanda suficiente, como trechos de fluxos densos)
73
como também alcança uma crescente contínua de retorno superior às
reportadas pelo modal rodoviário. Vale ressaltar, também, que no estudo em
questão não foram mensurados outros benefícios advindos da redução na
demanda rodoviária, como o número de acidentes.
O emprego do modal ferroviário para o deslocamento de passageiros ao
redor do mundo encontra-se em uma situação bastante diferente da atestada
no Brasil, como pode ser observado na Tabela 1. O transporte aéreo, para a
realidade brasileira, alcançou desempenho cerca de 120 vezes maior ao
equivalente ferroviário, relação que na União Européia não chegou a 1,5 vezes,
e no caso dos Estados Unidos cerca de 40 vezes. O caso japonês é chamativo,
a relação alcança uma superioridade ferroviária de cerca de 4,5 vezes.
Analisando os números e levando em conta a configuração geográfica de cada
país/bloco econômico, temos que o único elemento que têm seu território
situado totalmente em ilhas responde pelo maior tráfego ferroviário, superando
os demais componentes do estudo, que têm superfícies terrestres
imensamente maiores.
Tabela 1 – Passageiros por quilômetro transportados no ano de 2006
Passageiros-quilômetros transportados em 2006 (em m ilhares de pkm) País/Bloco Econômico Ferroviário Aéreo
União Européia 384.000.000 547.000.000 Japão 396.000.000 86.000.000 Estados Unidos 23.700.000 950.500.000 Brasil 463,517 56.579,553
Fonte: Eurostat (2009) e Relatórios Anuais de Acompanhamento das Concessões Ferroviárias da ANTT (2007). Adaptado pelo Autor
O transporte ferroviário de passageiros tem reconquistado espaço na
distribuição modal. A participação majoritária do transporte ferroviário, em
transportes de passageiros, se dá em caráter urbano, através de metrôs e trens
urbanos (conforme Gráfico 3, constante no primeiro capítulo deste mesmo
74
trabalho), porém, em alguns países, a quota de passageiros que optam pelo
modal em deslocamentos interurbanos, já supera a opção aérea em alguns
trechos, como no caso do fluxo doméstico francês, onde o transporte ferroviário
movimentou, em 2006, cerca de três vezes mais passageiros do que o
transporte aéreo (Eurostat, 2009). Segundo Arduin e Ni (2005, p. 22):
A tecnologia de TAV’s não só é rápida, também provou ser um modal de transporte seguro, confortável e eficiente para a população em geral. Em suma, revitalizou o transporte ferroviário e se tornou um símbolo da sociedade moderna41. (traduzido e adaptado pelo autor)
A opção ferroviária demonstrou sua eficiência, no âmbito dos TAV’s,
para os deslocamentos inferiores a 500 quilômetros (Palhares, 2002), o que
caracteriza uma correlação nítida com o turismo interno para diversos países
do mundo, os quais, por questões geográficas são incompatíveis com
percursos maiores. Para tais países, os quais não dispõem de dimensões
territoriais extensas (como é o caso do Brasil, da Rússia, do Canadá, dos
Estados Unidos da América, da China e da Índia), a utilização do transporte
ferroviário para o transbordo de passageiros é altamente atrativo, dadas suas
características.
Nos países de maior dimensão, como no caso do Brasil e dos Estados
Unidos, o modal ferroviário foi relegado, majoritariamente ao transporte de
bens de consumo e de capital, uma vez que a configuração territorial permite a
expansão da rede ferroviária e o transporte de passageiros fora consolidado
através dos modais rodoviário e aéreo. Nos Estados Unidos, a participação do
41 Not only is high-speed rail fast, it has also proved to be a safe, comfortable and efficient transport mode for the general population. In short, it has revitalized railway transport and has become a symbol of modern society.
75
transporte ferroviário interurbano42 corresponde a 43% e 0,275%, nos
transportes de cargas e passageiros, respectivamente (Eurostat, 2009), por
outro lado, o transporte aéreo responde por 11% do deslocamento de
passageiros (sendo sequer abarcado no relatório em questão). Um argumento
que pode ser apresentado em defesa da utilização do modal ferroviário pode
ser a eficiência na utilização da energia consumida pelos equipamentos.
A partir de dados de diversas tabelas constantes no relatório “Panorama
of Transport 2009” (Eurostat, 2009), acerca dos fluxos de passageiros inseridos
na União Européia, o consumo energético dos equipamentos de transporte e a
emissão de poluentes de tais estruturas construiu-se a Tabela 2. Os dados
apresentados na Tabela 2 expressam uma comparação entre o desempenho
dos modais aéreo e ferroviário, baseados nos quesitos passageiros-quilômetro,
consumo de toneladas de óleo equivalente (TOE43) e emissão de toneladas de
dióxido de carbono (TCO244).
Tabela 2 – Comparação entre os modais Ferroviário e aéreo
Modal
Ano: 2006 – Doméstico
Pkm (bi) Consumo energético (mil TOE)
Emissão de Poluentes (mil TCO 2)
Ferroviário 384 9.199 9.923.000 Aéreo 547 51.856 25.799.800
Fonte: Eurostat (2009). Adaptado pelo autor
Partindo da análise da Tabela 2 foram estabelecidas correlações entre
os dados apresentados. Tais correlações foram expressas na Tabela 3.
42 Aqui não se consideram formas de transporte ferroviário como os trens urbanos e os metrôs. 43 TOE é a sigla, em inglês, para Toneladas de Óleo Equivalente (Tons of Equivalent Oil), um indicador utilizado para fins de comparação entre equipamentos que utilizam diferentes fontes energéticas. 44 TCO2 é a sigla para toneladas de dióxido de carbono. Uma medida para emissão de poluentes.
76
Tabela 3 – Correlações entre Pkm, TOE e TCO 2 para a Tabela 2 Modal
Ano Base: 2006 – Doméstico Pkm/TOE Pkm/TCO 2
Ferroviário 41.743,7 38,7 Aéreo 10.548,8 21,2 Fonte: Criado pelo autor
O primeiro indicador produzido relacionou o volume de passageiros-
quilômetro transportados (Pkm) e o consumo de toneladas de óleo equivalente
(TOE) pelos equipamentos de transporte, o que expressa o volume de
passageiros transportado para cada tonelada de óleo equivalente consumida.
O resultado do cálculo demonstra que, em termos gerais, ou seja, incluindo os
transportes urbanos, para os parâmetros analisados a eficiência45 do modal
ferroviário alcança aproximadamente quatro vezes o nível expressado pelo
modal aéreo. O segundo indicador relacionou o volume de passageiros-
quilômetro (Pkm) e o volume de dióxido de carbono emitido pelos
equipamentos de transporte (TCO2), demonstrando o volume de passageiros-
quilômetro transportado a partir da emissão de uma tonelada de dióxido de
carbono, o que pode-se nomear “responsabilidade individual por emissões”, tal
qual diminui à medida que o número de passageiros transportados aumenta,
ao custo de um volume de emissões invariável. O resultado desta operação
explicita que, seguindo os parâmetros assumidos, a eficiência para o transporte
ferroviário alcança 180% do desempenho do modal aéreo.
Baseando-se nos tratados de constituição e regimento da Comunidade
Européia (Treaties), foi proposto um projeto denominado TEN-T (que é uma
sigla para “Redes Trans-européias de transporte” 46) no qual se prevêem
investimentos em redes internacionais de transporte, que relacionem os países 45 Quando utilizamos o termo eficiência buscamos expressar as diferentes grandezas dos coeficientes criados, com o intuito de compará-los entre os dois modais de transporte. 46 Trans-European Networks in Transport.
77
componentes do bloco econômico, simples ou intermodais. O Parlamento
Europeu e o Conselho da União Européia estabeleceram, através da “Decision
No 1692-96-EC” as diretrizes gerais para os projetos de redes de transporte
transeuropéias, em consonância com os tratados de criação da comunidade
européia. A constituição de tais redes de transporte é uma iniciativa em sintonia
com os propósitos da Comunidade, conforme a própria decisão explicita em
uma de suas passagens:
Considerando que o estabelecimento e desenvolvimento de redes transeuropéias contribuem para a realização de importantes objetivos da Comunidade, assim como o pleno funcionamento do mercado interno, o fortalecimento econômico e a coesão social47. (traduzido pelo autor)
De acordo com o relatório “Panorama of Transport 2009”, os modais
mais beneficiados através das redes TEN-T são o ferroviário (sendo que mais
de 10% da infra-estrutura instalada é direcionada aos TAV’s), rodoviário e
fluvial, conforme apresenta a Tabela 4.
Tabela 4 – Extensão das redes TEN-T entre 2003 e 20 20 (km)
Modal 2003 Abril de 2008 48 2020 Ferroviário 83.300 95.140 116.975 Rodoviário 74.500 76.842 80.708 Navegação interna 14.100 15.881 17.763 Fonte: Eurostat (2009). Adaptado pelo autor. Levando em conta os dados apresentados percebe-se que a postura da
União Européia perante o modal ferroviário continua e, provavelmente
continuará sendo de investimento prioritário no setor de transportes.
Comparando dois gráficos constantes no relatório “Implementation of the
47 Whereas the establishment and development of trans-European networks contribute to the attainment of major Community objectives, such as the smooth functioning of the internal market and the strengthening of economic and social cohesion.
48 Estimativa baseada em um outro estudo denominado SG-Tren “TEN-T, Implementation of the Priority Projects, Progress Report” (Eurostat, 2009).
78
Priority Projects Progress Report”, um retratando o período entre 1996-2003 e
o outro 2003-2004, pode-se delinear uma mudança na direção dos
investimentos aplicados à iniciativa de constituição das redes TEN-T. No
primeiro período abarcado, o projeto direcionava 48% de seus recursos para o
modal ferroviário, 31% para o modal rodoviário, 12% para o modal aeroviário e
9% para o modal aquaviário (esta quota distribuída entre portos marítimos e
estruturas para navegação fluvial). No período seguinte, todos os modais
sofreram retração orçamentária (7% para o modal rodoviário, 4% para o modal
aeroviário e 2% para o modal aquaviário), sendo que apenas o modal
ferroviário recebeu um reajuste da ordem de 13% (EC, 2008).
Com o intuito de enriquecer a análise da questão do transporte
ferroviário de passageiros, nos tópicos seguintes discutem-se as situações de
alguns outros países no tocante às políticas públicas de transporte, relevo e o
setor de transporte em si. Os critérios adotados foram selecionados com vistas
a traçar um quadro comparativo entre os casos, ou seja, com dados que
poderiam ser obtidos e comparados a título de um parâmetro comum.
3.1 O Caso Japonês: Pioneirismo em Tav’s
A história do transporte ferroviário japonês tem início no século XIX,
ainda durante o xogunato Tokugawa. Segundo Aoki (1994, p. 28) as formas de
transporte japonesas na era feudal eram, em sua maioria, de navegação (tanto
marítima como fluvial), contrastando com primitivas alternativas terrestres de
transporte através de homens e animais, uma vez que não se utilizavam
carruagens. O país, em contraste com o ocidente, sofria uma grande
79
discrepância entre os estágios de desenvolvimento de seus transportes
aquaviário e terrestre, sendo que o último encontrara nos rios grandes
obstáculos, pela ausência de pontes. A iniciativa estrangeira constantemente
sugerira a construção de ferrovias, e alguns japoneses antes do governo Meiji
também aderiram a tais propostas, que, por sua vez, não chegaram a gerar
nenhum tipo de ação, uma vez que o xogunato sucumbira. Segundo Aoki
(1994, p. 28):
Em 1869, Harry Parkes, o representante do governo britânico no Japão, defendeu que as ferrovias ajudariam o Japão no sentido da modernização, insistindo que o governo investisse no setor ferroviário o mais rápido possível. O ano de 1869 foi medíocre para a colheita de arroz em Tohoku e Parkes explicou que, ferrovias poderiam viabilizar um rápido transporte de arroz proveniente de outras áreas do país, com o intuito de minimizar os efeitos da fome. O governo Meiji concordou com a implantação de ferrovias por razões políticas, para pôr um fim ao feudalismo e centralizar o poder no país49. (traduzido e adaptado pelo autor)
Comparando as condições de surgimento da ferrovia no Japão com os
demais casos abordados neste mesmo trabalho (Inglaterra, Estados Unidos,
México, Alemanha, Bélgica e Brasil), o cenário japonês assemelha-se com a
situação belga pós-independência, porém, o caso seria de saída do feudalismo
e centralização de um novo poder nacional. Entretanto, segundo Aoki (1994), a
construção de ferrovias no Japão não fora sempre livre de oposição interna,
como o caso dos militares, que priorizavam o investimento em armamentos e o
isolamento. Isolamento este que era muito comum entre os japoneses que
receavam a presença de estrangeiros nas obras ferroviárias (tanto operários
quanto métodos e ferramentas). A oposição militar chegou a atrasar a
49 In 1869, Harry Parkes, the British Minister to Japan, advocated that railways would help modernize Japan insisting that the government build them as soon as possible. 1869 was another poor year for the rice harvest in Tohoku and Parkes explained that railways could carry rice quickly from other areas to Tohoku thereby minimizing the effects of famine. The Meiji government agreed to build railways for political reasons, to put an end to feudalism and centralize power in Japan.
80
implantação de linhas entre Shimbashi e Shinagawa, não permitindo a
instalação margeando a baía de Tóquio. A desconfiança dos militares perante a
iniciativa estrangeira era bastante justificada, levando-se em conta de que a
política de isolamento do ocidente havia sido abandonada recentemente e o
receio do contato com outros povos permanecia.
A construção das redes ferroviárias japonesas foi um processo
minucioso, já que o país possui uma distribuição territorial bastante complicada,
conforme afirma Koyama (1997, p. 36):
O território japonês é composto, relativamente, por pequenas porções de terras baixas, consistindo majoritariamente em planícies aluviais costeiras. A construção de ferrovias iniciou-se com a instauração da era Meiji (1868-1912) e, uma vez que a tecnologia de construção era imatura, as primeiras linhas foram construídas nestas áreas costeiras. Os trilhos foram apoiados, principalmente, sobre a terra, como aterros e estacas. Muitas pontes ferroviárias sobre rios também foram construídas naquela época. Gradualmente, com o progresso das tecnologias de túneis, as ferrovias passaram a conectar cidades e vilas antes isoladas pelas montanhas50. (traduzido e adaptado pelo autor)
O desenvolvimento tecnológico japonês fora um dos pontos decisivos
para o sucesso do modal ferroviário no país, não só pela condição geográfica,
mas também pela tentativa de domínio econômico dos britânicos. O
investimento dos japoneses na formação de mão-de-obra qualificada para o
planejamento das ferrovias e operação das mesmas fora este ponto chave que
alavancou o desenvolvimento das tecnologias, como o Engineer Training
College que iniciara suas atividades em 1877 (levando em conta que a primeira
ferrovia japonesa fora aberta em 1872) e formara 24 jovens engenheiros
japoneses antes de seu fechamento, em 1882 (Aoki, 1994). 50 Japan has a relatively small proportion of lowland, consisting mainly of alluvial coastal plains. Railway construction started in the early Meiji era (1868-1912) and since the construction technology was still immature, the first lines were built in level coastal areas. The rails were laid mostly on earth structures such as embankments and cuttings. Many railway bridges over rivers were also built at that time. Gradually, with progress in tunneling technology, railways were constructed connecting towns and cities previously isolated by mountains.
81
A construção das ferrovias fora executada tanto pela iniciativa privada
quanto pelo poder público, entretanto, em 1906, a maioria das linhas fora
estatizada através da lei de nacionalização das ferrovias51 (Soejima, 2003).
Com a aquisição das vias pelo poder público, este criou uma empresa para
administrá-las, a Japanese National Railways (JNR), que rapidamente decidiu
que os laboratórios de pesquisa necessitavam de cientistas de ponta, e
recrutaram técnicos e engenheiros do exército e da marinha japoneses e de
companhias privadas (Soejima, 2003).
Para Koyama (1997, p. 36), a situação nas décadas de 1950 e 1960, de
rápido crescimento econômico, refletiu em dificuldades para a obtenção de
terrenos para a construção de novas ferrovias, e a disseminação da cultura
rodoviária contribuiu para o congestionamento das rodovias e o aumento de
acidentes em cruzamentos rodoferroviários. A já comprovada capacidade de
expansão da tecnologia ferroviária, por parte dos japoneses, orientou as
construções para estruturas elevadas que preveniriam acidentes com
cruzamentos e também dariam luz a novas possibilidades, entre as quais as
alterações aerodinâmicas para o incremento da velocidade operacional das
composições.
A meta era otimizar o transporte ferroviário, e torná-lo ainda mais
eficiente, através de estudos de aerodinâmica e eficiência energética. Os
esforços resultaram no projeto shinkansen, em 1959, e antes das Olimpíadas
de Tóquio em, 1964, os trens-bala já circulavam pela linha Tokaido (Nakagawa
e Hatoko, 2007, p. 151), o que demonstra novamente a perícia tecnológica com
a qual os japoneses pesquisaram a otimização para o transporte ferroviário. A
51 Railway Nationalization Law, 1906.
82
iniciativa fora motivada pela saturação do ramal Tóquio-Kobe, passando por
Kyoto e Osaka, que no ano de 1956 respondera a uma demanda muito grande
e apontara a necessidade de construção de outra linha para suportar a oferta.
Segundo Nakagawa e Hatoko (2007) a meta era a construção de um corredor
entre Tóquio e Osaka, que pudesse ser percorrido em apenas três horas
(levando em conta sua extensão de 515 km). Os esforços superaram o objetivo
inicial e proveram o país com uma rede de TAV que alcançou em 2005 a
extensão de 2280 km.
É inegável a influência do pioneirismo japonês em outras partes do
mundo, como por exemplo, a França, que em 1981 inaugurou o primeiro TAV
do ocidente, interligando Paris a Lyon em apenas duas horas e meia (levando
em conta a distância de 417 km). O contraste maior é que, a despeito do
sucesso internacional alcançado pela tecnologia desenvolvida no Japão, o
povo japonês começou a desacreditar do potencial de desenvolvimento dos
TAV, em função da crise do petróleo, a crise econômica japonesa e a falência
da operadora ferroviária estatal, a Japanese National Railways (Nakagawa e
Hatoko, 2007). A conseqüência deste cenário fora uma disseminação dos
benefícios, advindos das novas tecnologias para o transporte ferroviário,
mundo afora (tal qual culminara na adoção de projetos como o “ICE” na
Alemanha, o “Acela” nos Estados Unidos, o “AVE” na Espanha e o
“Direttissima” na Itália) e a retração dos investimentos para os projetos de
expansão das redes Shinkansen dentro do próprio Japão.
Até 1987 a JNR era a proprietária das linhas, construídas à custa de
altos empréstimos tomados a partir de fundos conservadores como a
previdência. Os juros aplicados eram altíssimos, em função da crença no
83
desenvolvimento proporcionado pelas novas estruturas, mas, culminaram em
dívidas muito maiores do que as condições de pagamento assumidas. A
situação resultou na privatização da JNR, tornando-se Japan Railway
Companies (JR). A opção adotada foi o controle das linhas pelo governo
(através das operadoras) e os trens seriam controlados pela iniciativa privada
(Nakagawa e Hatoko, 2007). Com as medidas administrativas bem focadas e a
operação das estruturas de forma racional, a tecnologia de TAV foi
reconquistando espaço e credibilidade entre o povo japonês. Atualmente, de
acordo com o relatório “Panorama of Transport 2009” (Eurostat, 2009), o
transporte ferroviário de passageiros foi mais representativo no Japão do que
em toda a União Européia, alcançando uma cifra de 396 bilhões de
passageiros-quilômetro no ano de 2006.
3.2 O Caso Francês: A flexibilidade e disseminação do TGV
A exemplo do caso britânico, o surgimento das ferrovias francesas foi
motivado também pela atividade mineradora, e, da mesma forma fora um
processo iniciado por poucos agentes privados em pontos isolados do território
francês, salva a consideração de que no caso da França as políticas públicas
atrasaram consideravelmente seu desenvolvimento, ocorrendo, inclusive,
oposição fundamentada em alegações da alteração do modo de vida
camponês. A disposição do sistema ferroviário francês, em meados de 1840,
se configurava como uma rede radial centrada em Paris e tendo como destinos
as regiões e portos economicamente mais importantes como destinos
(Schwartz e Gregory, 2008, p. 8). A forma como o sistema fora concebido pode
84
ser caracterizada como um processo misto, de ímpeto da iniciativa privada e
continuidade por meio da esfera pública.
A caracterização do processo como misto aproxima o status francês,
simultaneamente, dos processos ocorridos na Inglaterra (conforme já
enunciado) e na Rússia. Após o interesse dos investidores privados, assim
como no caso inglês, as ferrovias francesas obedeceram a um processo de
ligação entre centros e portos de relevante importância econômica (como a
situação russa) e, em um segundo momento (aqui se faz necessária uma
distinção de que, ocorreram duas etapas de um primeiro momento, e somente
em 1878 culminara um segundo momento) ocorrera a implantação de ferrovias
de interesse local.
Analisando de um prisma temporal, os autores Schwartz e Gregory
(2008), afirmam que o processo descontínuo francês (caracterizado desta
forma ao se comparar com o caso inglês) ocorrera em função das já citadas
oposições da esfera pública (atrasando) e em consequência da combinação da
derrota para a Prússia (1870), a repressão sangrenta pela Comuna de Paris
(1871) e as extremas posturas liberais da Terceira República, que assumiu
como medida urgente a expansão tão abrangente o quanto possível dos
caminhos de ferro franceses. Outra característica importante abordada pelos
autores fora a de que a responsabilidade pelas diferentes partes do sistema
fora atribuída a diferentes elementos da sociedade, tendo assumido o estado a
responsabilidade pela infra-estrutura, e os investidores privados o compromisso
com a superestrutura.
Entretanto esse panorama de divisão fora reorganizado posteriormente,
adicionando às competências das empresas, o dever da construção da infra-
85
estrutura ferroviária. A construção da infra-estrutura pelo governo, aliada à
implantação da superestrutura pelos investidores, disseminaram o modal
ferroviário ao longo da França, porém, ao delegar às empresas, a obrigação da
construção de toda a estrutura, os resultados se mostraram mais eficientes, o
que pode denotar a ineficiência do estado para a implementação do transporte,
em uma análise mais profunda.
A exemplo do caso japonês, a França também enfrentou problemas com
sua configuração geográfica para a implantação dos trilhos. Primeiramente,
vale ressaltar que a França era detentora de uma pré-disposição à operação do
modal aquaviário, tanto internamente quanto em âmbito marítimo (uma vez que
ocupa determinada faixa continental, possuindo tanto litoral norte quanto litoral
sul), e também a disposição dos rios no território francês, conforme demonstra
a Figura 6. A abundância de vias fluviais possibilitava uma rede de transporte
aquaviário adequada aos interesses franceses (tanto públicos quanto privados)
e essa rede foi um dos entraves na inserção do modal ferroviário, uma vez que
existia a alegação de que a chegada do transporte ferroviário causaria grandes
problemas ao modo de vida dos camponeses. É interessante perceber que o
desenvolvimento do transporte ferroviário na Inglaterra se deu em função da
inoperância de alguns canais, que culminou na busca de alternativas modais,
enquanto na França, como já dito, os canais mantiveram a preferência dos
camponeses e produtores por algum tempo.
86
Figura 6 – Distribuição dos principais rios no terr itório francês
Fonte: About-France.com
Segundo Schwartz e Gregory (2008. p. 11):
Mesmo com o amadurecimento da tecnologia, as companhias ferroviárias mantinham-se relutantes em assumir os custos de levar o serviço ferroviário às regiões em altitude, considerando estes, investimentos medíocres52. (traduzido e adaptado pelo autor)
A presença dos Alpes franceses ao sul do país era o motivo dos
problemas com a motivação dos investidores apontada por Schwartz e
Gregory. Afinal, é sabido que a implantação de estrutura ferroviária em território
montanhoso demanda análises técnicas profundas e a adoção de tecnologias
como cremalheiras53 e funiculares54.
52 But even as the technology matured, rail companies were reluctant to undertake the extraordinary costs of bringing rail service to upland regions that were considered poor investments. 53 O sistema cremalheira, adotado em trechos de alta inclinação, é um tipo de tração que tem como característica um terceiro trilho dentado, no centro da linha. Esse trilho forma uma engrenagem com uma roda, também dentada, localizada nas locomotivas. Essa engrenagem permite que a força da tração da locomotiva vença a inclinação do terreno, sem derrapar pelo baixo atrito das rodas da locomotiva com a superfície lisa dos trilhos (Lacerda, 2005, p. 194).
54 Os sistemas funiculares são sistemas de tracção ferroviários para vias planas ou com forte inclinação onde o veículo é accionado por um sistema de cabos (Guedes, 2003, p. 10).
87
De acordo com a lógica desigual de desenvolvimento do sistema
ferroviário francês, formulada a partir da combinação dos estimulantes ao
desenvolvimento e as condições geopolíticas (incluindo aqui Primeira Guerra
Mundial e a crise de 1929), o governo francês criou em 1938 a SNCF55,
nacionalizando a rede ferroviária (Bouley, 1994). Após a Segunda Guerra
Mundial, cerca de 40% do material rodante fora destruído, e a ordem de
reconstrução se baseava na aquisição em massa de locomotivas a vapor dos
Estados Unidos. Entretanto, a utilização de locomotivas elétricas, alcançava
maior eficiência e velocidade, em ramais já eletrificados, obviamente (Bouley,
1994). A Alemanha planejara eletrificar os ramais franceses, porém, após
sucessivos testes falhos abandonou o projeto. Posteriormente a própria França
promovera a eletrificação dos ramais que receberam os projetos alemães e dos
demais, integrando a rede ferroviária francesa.
Os franceses buscaram se especializar na utilização da eletricidade
como combustível do modal ferroviário, e em março de 1955, na região de
Landes, alcançaram a marca de 331km/h com duas locomotivas. A notícia
causou espanto em diferentes âmbitos da sociedade, começando pelo próprio
pessoal da SNCF (Bouley, 1994). Com a implantação do Tokaido Shinkansen,
em 1964, os franceses tiveram a prova maior da viabilidade da aplicação do
transporte ferroviário no século XX, assim como conclui Bouley (1994, p. 51):
A partir disto, concluo que, o que o Japão tomou emprestado da França, retornou fielmente através da excelência de suas opções iniciais e pela rivalidade criativa que inspirou56. (traduzido e adaptado pelo autor)
55 Société Nationale des Chemins de Fer.
56 From that, I conclude what Japan borrowed from France, it has returned faithfully through the excellence of its initial choices and by the creative rivalry it inspires.
88
A inauguração do primeiro ramal TGV, entre 1981 e 1983, demonstrou o
pioneirismo francês no transporte ferroviário de alta velocidade (Vickerman,
1997, p. 22). A rede ferroviária francesa passou de uma extensão total de
34.070 km, em 1990, para 29.286 km, em 2005 (Eurostat, 2009). Tal retração
demonstra o contraste da lógica de desenvolvimento do modal quando
comparado ao histórico no país. A primazia pela eficiência do material rodante
vem substituindo a necessidade de disseminação dos caminhos, juntamente
com as ligações intermodais (exemplo notável a ligação entre o aeroporto
Chrarles de Gaulle e a rede TGV).
Para demonstrar a relevância do modal ferroviário, tanto para o
deslocamento de carga quanto para o de passageiros, construiu-se a Tabela 5.
Tabela 5 – Comparação entre modais na França, em 20 06
Modal Carga (milhares de toneladas) Passageiros (bilhões de pkm) Rodoviário 2.113.756 768.9 Ferroviário 70.592 91.5
Fonte: Eurostat (2009). Adaptado pelo autor. A comparação se deu entre os referidos modais pelo fato de o transporte
rodoviário possuir a maior representatividade na divisão modal francesa (tanto
para carga quanto para passageiros) e por também utilizarem-se os mesmos
indicadores, tanto para o modal ferroviário e o rodoviário, na construção do
relatório consultado. A partir da Tabela 5 construíram-se relações para a
demonstração da representatividade do modal ferroviário, sendo a primeira a
relação entre o total de carga entre o modal ferroviário e o rodoviário,
apresentando um coeficiente de 3,18%. Para os passageiros a relação
alcançou o coeficiente de 11,9%. Caso seja assumida uma relação direta entre
os modais e sua utilização (isolando os demais fatores, apenas para uma
análise de representatividade), pode-se dizer que o modal ferroviário é utilizado
89
três vezes mais (a relação alcança uma razão de 3,74) para o transporte de
passageiros do que para o transbordo de carga dentro território francês.
A inserção da França na União Européia torna-a um exemplo a ser
seguido pelos demais países, na busca pela construção de estruturas para os
TAV’s, em consonância com os planos para as redes TEN-T.
3.3 O Caso Brasileiro: A acirrada competição entre os modais
rodoviário e ferroviário
Como exposto no capítulo anterior a motivação para a disseminação do
transporte ferroviário no Brasil fora promover uma economia agrícola
exportadora. O planejamento para a rede ferroviária visava estritamente ao
atendimento da necessidade de escoamento da produção agrícola, ou seja, os
ramais normalmente tinham como origem um pólo exportador e como destino
um porto. Tendo estes princípios como base, em 30 de abril de 1854, “D. Pedro
II inaugurou a estrada de Ferro (EF) Mauá” (Palhares, 2002), dando início às
construções ferroviárias no Brasil. O nome da ferrovia era uma homenagem a
Irineu Evangelista de Souza (o Barão de Mauá), um dos maiores banqueiros e
empreendedores do Brasil.
Após a referida ferrovia, o Barão de Mauá também investiu em outras
linhas férreas, como a EF Dom Pedro II (interligando Rio de Janeiro a
Queimados e posteriormente se tornou EF Central do Brasil), a Recife-São
francisco, a Bahia-São Francisco e a Santos-Jundiaí, contribuindo para a
distribuição da malha ferroviária ao longo do território nacional. Segundo
Palhares (2002), os ramais que interligavam grandes cidades eram escassos, e
90
os interestaduais quase inexistentes, o que reafirmava a política de exportação
assumida pelos governantes.
Até meados da década de 1930, o desenvolvimento ferroviário obedeceu
a lógica supracitada, sendo que a extensão total da malha brasileira alcançou,
aproximadamente, 30 mil km e continuou a crescer ao longo do século XX. A
construção da rede ferroviária brasileira não encontrou obstáculos como os
Alpes suíços ou a divisão territorial do país em um arquipélago, entretanto, o
dever dos planejadores em transportes não fora também tão simples, como
ressalta o relatório do BNDES (1999b, p. 170):
Deve-se reconhecer que a geografia brasileira não é das mais propícias à implantação de redes de transportes, devido às inúmeras serras, vales e outros acidentes geográficos. Da mesma forma que os portos foram locados nos melhores pontos do litoral (identificados há 500 anos pelos colonizadores portugueses), as ferrovias foram construídas aproveitando os tabuleiros de planaltos e de vales para assentamento das linhas.
Uma análise das condições geográficas brasileiras revela os motivos do
traçado da malha, afinal, a convergência que pode ser constatada com relação
à cidade de São Paulo se justifica em virtude do posicionamento da cidade com
relação ao Porto de Santos e os Estados de Goiás, Minas Gerais e Paraná
(BNDES, 1999b).
Com a tardia industrialização brasileira, a forma como as ferrovias
distribuíram-se aparentou ser um aparato pouco eficiente, uma vez que o
objetivo das redes de transporte passaria a ser o de dinamizar a economia
estruturando os mercados internos de fornecimento de insumos e distribuição
de bens, diferentemente do modelo de exportação. Juntamente com o cenário
delineado surge a opção rodoviária, com maior flexibilidade, tanto de infra-
estrutura quanto de manipulação de tarifas, reduzindo drasticamente a
competitividade das ferrovias. O controle das concessionárias ferroviárias era
91
majoritariamente privado e após o declínio da lucratividade dos processos, a
rede foi estatizada em 1957, dando origem à Rede Ferroviária Federal
(RFFSA), tornando pública a operação das ferrovias, e não só a administração
das vias. Entretanto, após 1990 a RFFSA havia se tornado uma prestadora de
serviços para um número restrito de clientes, em geral de minérios e
combustíveis. Tais características forçaram o governo a privatizar as atividades
ferroviárias, mediante a cobrança de taxas mínimas de concessão (BNDES,
1999a, p. 1).
Após a medida de privatização as malhas foram assumidas por
concessionários que em geral exploram o transporte de carga, havendo o
transporte de passageiros em apenas dois dos treze trechos sob concessão.
Pode-se afirmar que a forma com a qual o transporte ferroviário é operado
atualmente no país remonta ao modelo exportador de fundação das redes do
modal, afinal, não existe a ligação entre centros populacionais com o intuito de
transporte de passageiros e também não existe uma busca pela dinamização
da economia, mas sim a utilização do transporte massivamente para a
exportação de minérios e fornecimento de combustíveis (sendo este último
aspecto um direcionamento de insumos, porém, não atinge um fluxo que a
nosso ver seria delineado como estímulo ao mercado interno) (BNDES, 1999a).
O cenário brasileiro encontra-se estagnado em um transporte de carga
que não abrange grande variedade de produtos/insumos e rejeita o tráfego de
passageiros, ao contrário dos outros casos apresentados neste mesmo
capítulo. Atualmente existe um projeto para a criação de um TAV ligando
Campinas (no estado de São Paulo) à cidade do Rio de Janeiro (no estado do
Rio de Janeiro), refazendo o traçado fundamental da maior ponte-aérea do país
92
(a ponte aérea Rio-São paulo). Segundo Barbosa e Brasil (2009) a aplicação
do projeto encontra-se em fase de licitação, programada para o segundo
semestre de 2009, sendo que a finalização da construção das estruturas e
início das operações obedece a uma expectativa do governo para o início do
ano de 2014 (ano da copa do Mundo de Futebol no Brasil). Segundo números
fornecidos pela Ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, o TAV possui potencial
para absorver 67,1% da demanda do transporte efetuado pelos ônibus, 47,9%
da demanda dos automóveis e 47,3% da demanda do transporte aéreo (todos
estes valores assumidos para o mesmo trecho, obviamente). Segundo o
mesmo estudo o planejamento do governo abarca oito estações para o ramal
inicial, sendo que existem estações sugeridas que serão julgadas pelas
comissões de avaliação do projeto.
3.4 Turismo e o Transporte Ferroviário: possibilida des e dificuldades
Dada a necessidade de deslocamento para a prática turística, denotada
no conceito da Organização Mundial do Turismo, apresentado no primeiro
capítulo deste mesmo trabalho, o transporte se configura um meio essencial
para a concretização da experiência turística. A aplicação dos modais visa ao
atendimento das necessidades dos homens de se deslocarem no tempo e no
espaço, e, no caso do turista, visa à viabilização do início e do fim desta
jornada. Levando-se em conta que o tempo de deslocamento tem diminuído
cada vez mais entre a origem e o destino dos passageiros, a concorrência no
mercado de transportes se dá em função dos tempos totais de viagem. É óbvio
que fatores como segurança e conforto também são considerados, mas em
93
menor grau, como denota Bouley (1994, p. 49), ao recolocar as palavras de
Roman Guardini: “Em geral, o homem não sabe onde está indo ao certo, mas
faz questão de ir o mais rápido o quanto é possível57” (traduzido e adaptado
pelo autor).
O transporte ferroviário de passageiros vem se apresentando uma
alternativa aos demais modais de deslocamento em diversas partes do mundo,
através de velocidades competitivas, alta segurança e conforto, como exposto
no capítulo 2 deste mesmo trabalho. As conexões entre as linhas construídas
separadamente (como no caso da integração da rede ferroviária francesa), a
conexão intermodal (como no caso de aeroportos franceses como o Charles de
Gaulle) e até a competição direta com outros meios de transporte demonstram
a capacidade do transporte ferroviário de passageiros em reassumir sua
parcela nas economias mundiais.
No que tange ao Turismo, é notável a participação de tais estruturas
para o funcionamento do setor, como nos exemplos de integração intermodal
com aeroportos, o design dos produtos turísticos é altamente influenciado, uma
vez que a intermodalidade pode ser uma solução ao gargalo comum que
ocorre no momento da troca de modal. Os turistas podem optar pela aquisição
de bilhetes integrados e obter melhores preços e economizar tempo não só
através de tempo de deslocamento, mas também pela utilização de recursos
como o code-share58, ao invés da busca pelo serviço de deslocamento
desvinculado, por vezes mais caro e mais demorado.
57 In general, man does not know where He is going, but He wants to GO there as fast as possible. 58 O uso de code-share, por exemplo, permite que um a empresa aérea possa vender passagens com o seu nome e código (code), ainda que parte ou todo o percurso seja compartilhado (share) com outra companhia aérea. Tal procedimento traz conveniências para o
94
No caso das competições modais diretas, ocorre que o transporte aéreo,
por exemplo, possui procedimentos técnicos que consomem quantidades de
tempo às quais acabam por tornar o tempo total de viagem superior às do
transporte ferroviário de alta velocidade, como abordado no capítulo 2,
dependente de rotinas mais simples, freqüências maiores e, por vezes, tarifas
mais baixas.
Quanto à integração das redes, é também indubitável a relevância da
possibilidade de passageiros poderem atravessar um país, ou trafegarem pelo
continente sem alterarem seu modal de transporte e com uma fluidez maior do
que através do modal aéreo, pelas referidas freqüência de partidas e maior
simplicidade operacional.
Um dos grandes problemas apresentados ao desenvolvimento do
transporte ferroviário atual, é a impossibilidade (salvo no caso do Eurotunnel)
de vencer a grande barreira natural dos oceanos. Tal problema é visto como
uma limitação grave das possibilidades de deslocamento, proporcionada pelo
modal aéreo. As alegações giram em torno de que o transporte ferroviário é
lento, ineficiente e poluente. Tais indagações podem ser questionadas a partir
de dados apresentados neste mesmo trabalho, como as altas velocidades
operacionais alcançadas pelos TAV, a “eficiência” no consumo de uma mesma
quantia de combustível (o cálculo leva em conta o volume de passageiros
transportados a partir de uma mesma quantia de combustível aplicada), e
aquilo que chamamos aqui de divisão da responsabilidade individual por
emissões, na qual o transporte ferroviário demonstrou refletir maiores
coeficientes. As possibilidades que apresentamos neste capítulo demonstram a passageiro, que pode voar com apenas um bilhete de companhia aérea, além de realizar apenas um check-in, independentemente do fato de estar fazendo várias conexões com diversas companhias aéreas. (Palhares, 2002, p. 70).
95
potencialidade do modal aplicado a países com díspares dificuldades, como a
distribuição territorial japonesa e o relevo francês, explicitando o quanto a
versatilidade das novas tecnologias pode solucionar problemas detectados a
partir de características geográficas naturais, por exemplo.
Segundo Garrec (2008, p. 17):
Se a contribuição econômica dos turistas estrangeiros é importante para a economia francesa, é, no entanto, o turismo doméstico o maior respondente pelas atividades turísticas na França: dele advém dois terços do consumo turístico e as estadias. A contribuição do turismo para o PIB francês foi estimada em cerca de 6,2% para o ano de 2007, com valores baseados na estimativa do consumo doméstico de turismo na França (117,6 bilhões de euros em 2007). Comparativamente, na Espanha, o turismo alcança aproximadamente 12% do total do PIB59.
Analisando a afirmação da autora, percebe-se que a contribuição do turismo
doméstico na França é de aproximadamente 66%, o que nos leva a crer que a
rede de serviços turísticos do país alcança níveis, no mínimo, satisfatórios na
percepção dos franceses. Inserido nesta rede de serviços turísticos está o
sistema de transportes, o qual desempenha papel fundamental e indispensável
ao turismo. Segundo Arduin e Ni (2005), diariamente cerca de 250 mil
passageiros desfrutam dos serviços do TGV, sendo que, após a inauguração
dos serviços ferroviários de alta velocidade na França, a demanda efetiva de
usuários dos modais aéreo e rodoviário declinou em trechos onde as viagens
eram inferiores a três horas (vale ressaltar que, no estudo apresentado pelos
autores, existem 13 rotas de TGV e apenas três delas têm percursos onde a
duração total da viagem excede três horas).
59 Si l’apport économique des touristes étrangers est important pour l’économie française, ce sont cependant les résidents qui font la majorité du tourisme en France : ils réalisent les deux tiers des nuitées et de la consommation touristique. Le poids du tourisme dans le PIB est estimé à 6,2 % en 2007, chiffre basé sur l’estimation de la consommation touristique intérieure en France (117,6 milliards d’euros en 2007). À titre de comparaison, ce poids du tourisme dans le PIB est de l’ordre de 12 % en Espagne.
96
É evidente que a inserção de oferta de serviços do modal ferroviário em
competição com o modal aéreo não é tão simples o quanto se alega, pois além
da aprovação dos estados, a iniciativa confronta os interesses dos lobbys de
transporte já estabelecidos, incorrendo no famoso problema de novos entrantes
delineado por Porter (vide bibliografia do referido autor). A manipulação da
oferta de serviços pode ser um grande desafio às organizações que almejam
conquistar espaço no mercado, por exemplo, a realização de promoções para
tarifas, que poderia ser fatal a uma empresa recém estabelecida, garante a
manutenção de uma prestadora de serviços mais antiga, que posteriormente
poderá se recuperar por meio da parcela de mercado mantida. O exemplo
citado é apenas uma das possibilidades de combate aos novos entrantes e foi
utilizado para ilustrar como o processo de diversificação modal pode ser
complexo de se efetuar.
O turismo, dependente direto dos serviços de transporte, funciona
também como elemento relevante para as decisões no que tange às
alternativas modais. Se levadas em conta as diferentes vantagens de cada
forma de transporte, poder-se-á alcançar uma análise detalhada acerca da
melhor alternativa para cada situação. Como o turismo desenvolve-se de
formas particulares, de acordo com os agentes determinantes de cada local60,
o modal de transporte que venha a ser adotado deve fornecer soluções para as
diferentes necessidades de cada caso (deve-se levar em conta a segmentação
dos mercados turísticos).
Portanto as possibilidades e as dificuldades, para a implantação do
transporte ferroviário de passageiros, são fatores determinantes na análise da 60 Não alegando que não existam fatores comuns, apenas ressaltando que as atividades turísticas se dão de acordo com os parâmetros situacionais, ou seja, varia de acordo com o quadro vigente no tempo e no espaço.
97
viabilidade da aplicação do modal, e, pensando nisso devem ser levados em
conta os pontos expostos neste trabalho quando da realização de estudos de
comparação modal. Percebe-se que, a gama de possibilidades advindas dos
TAV nos países analisados, demonstra a potencialidade do modal frente às
demais alternativas contextualizadas nos atuais cenários existentes, e deve ser
também considerada sua participação nos mercados de turismo, uma vez que
se apresenta uma alternativa vantajosa frente às demais forma de transporte,
tanto de um ponto de vista das tarifas quanto do conforto e do tempo total de
viagem (fatores altamente relevantes para os turistas).
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise da relação entre os transportes e o Turismo, da breve
explanação acerca de cada modal e da demonstração da existência das
relações de intermodalidade e sinonímia em atrativos turísticos, pudemos
observar a relevância das estruturas de transporte para as práticas turísticas e
também perceber a influência que tais práticas acabam por produzir sobre os
mercados de transporte. Com relação ao atual estágio de desenvolvimento dos
mercados globais consideramos que a tentativa de traçar sistemas que possam
apreender as relações intermodais se tornou um ato bastante falho, uma vez
que as relações se tornaram complexas e multidirecionais, como demonstrado
pela nova concepção de relações intermodal proposta. Entendemos que uma
análise dos cenários de atuação intermodal deve levar em conta o ambiente
nos quais tais sistemas estejam inseridos, como por exemplo, uma análise que
contextualize a oferta de serviços de transporte dentro de um mercado onde
existe competição pela demanda e na qual as organizações utilizam-se de
alianças estratégicas e outras ferramentas para agregar valor aos serviços
prestados.
Ao reler a história da máquina a vapor, da locomotiva e do transporte
ferroviário pudemos perceber como a dinâmica do transporte e os interesses
nacionais (nos diferentes países abordados) se relacionaram, culminando em
medidas internacionais e competições científicas com o intuito de desenvolver
soluções para problemas inerentes a certos modais de transporte. Fora
também possível delinear características gerais das competições modais entre
99
os setores rodoviário e ferroviário, e entre os setores aeroviário e ferroviário,
levando em conta as diferentes vantagens competitivas atribuídas a cada
alternativa. O desenvolvimento de novas tecnologias possibilitou algumas
alterações nas ordens vigentes que determinavam a participação dos
diferentes setores de transporte na divisão modal. Tais inovações tecnológicas
reorganizaram os mercados de transporte, e concederam a certos países
vantagens competitivas que tornaram possíveis projetos visionários de
integração de seus territórios criando maior independência de panoramas
internacionais de mercado.
A utilização de alguns exemplos, para ilustrar a atual situação do modal
ferroviário no transporte de passageiros ao redor do mundo, possibilitou uma
compreensão melhor de como o modal tem conquistado espaço no mercado
global e convencido governos de países que buscam a diversificação das
alternativas de transporte.
Ao explicitar algumas relações do transporte ferroviário atual com o
turismo percebe-se o potencial de desenvolvimento recíproco dos setores,
quando da combinação de forças. Como visto, no caso francês, o turismo
doméstico representou, em 2007, a maioria do fluxo turístico no país, e
analisando a demanda do transporte ferroviário, supõe-se uma favorável
relação entre o modal e as atividades turísticas, uma vez que os
deslocamentos na maioria das rotas de TGV estabelecidas estão inseridas no
limite definido como competitivo frente ao modal aéreo (inferior ou igual a três
horas de viagem). As determinações da União Européia para a implantação
das redes TEN-T, também explicitam a predominância da atenção ao modal
ferroviário (como exposto pelas mudanças na distribuição de recursos para a
100
efetivação do plano). Tais decisões podem ser analisadas frente aos cenários
consolidados, ou seja, de crises do transporte aéreo e bons resultados para as
redes de TAV.
A predisposição a adaptações intermodais (como os casos de
aeroportos integrados a terminais de TAV e/ou metrôs e trens urbanos)
qualifica o modal ferroviário frente às necessidades de transporte dos
passageiros inseridos no contexto atual de fluxo altamente dinâmico. As
práticas turísticas demonstram a necessidade de deslocamento rápido e
confiável, que não absorva grande parte dos recursos disponibilizados para a
efetivação das experiências turísticas, dados os aspectos favoráveis do modal
apresentados percebe-se a complentaridade entre as referidas atividades.
As redes de transporte ferroviário, responsáveis por fluxos de outrora,
encontram-se em desuso em grande parte dos países, levando em
consideração os casos analisados e os cenários produzidos pelo turismo,
afirma-se o possível papel das atividades turísticas na reestruturação do
transporte ferroviário de passageiros.
Dada a necessidade de eficiência para um melhor funcionamento do
mercado, são efetuados estudos de comparação, otimização e rendimento das
estruturas, dos equipamentos e dos processos adotados. Para a construção do
presente estudo, foi encontrada grande dificuldade para a obtenção de dados
estatísticos. A adoção de parâmetros diferentes para os relatórios dos
governos dificulta análises comparativas e medições de eficiência. Também a
inexistência de séries de dados para as relações turismo e os transportes, tanto
de caráter doméstico quanto internacional, dificulta a proposição de
correlações.
101
Os dados encontrados para o turismo doméstico também apresentam
problemas, pois são aproximações obtidas de forma indireta, e não por meio de
pesquisas in loco. Como no caso do relatório do Ministério do Turismo
denominado “Caracterização e Dimensionamento do Turismo Doméstico no
Brasil”, onde a obtenção dos dados se dá através de pesquisa junto a uma
amostra reduzida de domicílios e os resultados são tomados como
representativos do universo de pesquisa. É nítida a necessidade de
desenvolvimento de métodos mais precisos para o mapeamento da real
demanda doméstica, uma vez que tais fluxos são representativos (apesar de
não se ter a real dimensão do qual representativos são), como no caso francês
comentado na página 77 deste mesmo trabalho. É importante ressaltar que a
utilização destes dados não é por si uma prática errônea, tampouco
insuficiente, apenas devem-se buscar alternativas para a mensuração do real
contingente de deslocamentos, como ocorre em qualquer tipo de análise
estatística sobre objetos de estudo que não sejam puramente descritos por
números (como qualidade de vida).
Devem ser pensadas formas de medir os fluxos turísticos domésticos,
com o intuito de descobrir a real relevância das atividades para os impactos do
setor.
A realização de análises de natureza análoga ao presente estudo é
imprescindível para que sejam realizadas comparações modais, correlações
com as formas de turismo e a revelação das correlações entre os setores.
Pode-se sugerir, também, a criação de indicadores que relacionem o
desempenho das estruturas de transporte e os fluxos turísticos, de forma a
102
revelar como a sinergia realmente ocorre, tanto em âmbitos nacional como
internacional.
Como não se esgotam as possibilidades de pesquisa, afirmamos que
este estudo abre portas para a construção de pesquisas de comparação modal
e medição dos fluxos turísticos domésticos, baseando-se em análises
estatísticas e estudo de cenários dinâmicos.
103
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