o universo poético de raul pompeia
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O universo poético de Raul PompeiaTRANSCRIPT
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Ivo, Lêdo, 1924-2012O universo poético de Raul pompeia / Lêdo Ivo – Campi-
nas, Sp: Editora da Unicamp, 2012.
1. pompeia, Raul, 1863-1895 – O Ateneu. 2. Ficção brasi-leira. 3. poesia brasileira. 4. Literatura brasileira – História e crítica. I. Título.
cdd B869.34 B869.14 B869.09
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Índice para catálogo sistemático:
1. pompeia, Raul, 1863-1895 – O Ateneu B869.34 2. Ficção brasileira B869.34 3. poesia brasileira B869.14 4. Literatura brasileira – História e crítica B869.09
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isbn 978-85-268-1003-7
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Raul PompeiaDesenho de Pereira Netto, 1895.
Fonte: Acervo da Academia Brasileira de Letras.
Sondei! sondei! sondei! Desafiei o gênio negro das metamorfoses; insultei as vertigens do abismo!...
Raul pompeia, Canções sem metro
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Sumário
Apresentação – No portão de Raul pompeia .................. 11
O rei e o espetáculo ..................................................................................... 27
O edifício alegórico ..................................................................................... 55
Os prestígios da noite ................................................................................ 89
A cosmologia malograda ...................................................................... 109
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Apresentação
No portão de Raul Pompeia1
Lêdo IvoMarço de 1995
Quando este livro foi publicado pela primei ra vez, em 1963, ano do centenário do seu nas cimento, Raul Pompeia habitava o purgatório invocado por SainteBeuve para justificar o es quecimento e as injustiças a que ficam sujeitos os grandes ou bons escritores após a morte.
O nosso sistema literário, que existe desde o alvorecer da nossa nacionalidade — quando na vastidão geográfica se levantaram as vozes de Anchieta, Bento Teixeira Pinto e Botelho de Oliveira, entre tantas outras —, oferece, em sua permanên
1 Texto de apresentação da 2a edição de O universo poético de Raul Pompeia, de 1996, na Coleção Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras.
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cia quadrissecular, ocasiões numero sas para que possamos verificar a surpreenden te operação póstuma em que a lápide ou a areia não sepultam apenas os despojos físicos do es critor. Também escondem, e às vezes por sécu los, a obra e a palavra, a voz e o canto; e o nome antes glorioso ou ofendido, ou prometido a uma posteridade reparadora, fica a aguardar a res surreição provável ou improvável, o chamamen to de um novo presente ou de um novo futuro. As literaturas têm, assim, um ar perene de pon tas de icebergs e o que está escondido e sepulta do corresponde a tesouros.
No caso específico de Raul Pompeia, ele ja zia decerto no purgatório saintebeuveano da não existência quando a Livraria São José, do sau doso e sempre querido mercador de livros Carlos Ribeiro, lançou este ensaio que ora se reedita no texto original.
Era o ano do seu centenário de nascimento, mas a obsessão rotulatória que caracteriza um exercício crítico enraizado na pedagogia, na leitura cosmética e no conforto das repetições tranquilizadoras, estava longe de propiciar à efeméride a evocação e a identificação de um perfil li terário que se distinguisse pela sua niti dez e por
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essa veracidade sempre procurada no espaço ambíguo e movediço da arte literária.
A insistente e monótona inclusão de Raul Pompeia no rol dos nossos naturalistas juramentados, ao lado de Aluísio Azevedo, Franklin Távora e Júlio Ribeiro, se estendia desde a história literária mais autorizada e peremptó ria ao mais singelo manual escolar. José Veríssimo chegou a considerar O Ateneu a amos tra mais distinta, se não a mais perfeita, do Naturalismo no Brasil. A leitura desastrada, procedida durante o império do nosso Realismo, foi repetida e até papagueada por Mário de Andrade que, em pleno Modernismo, proclamou, em O empalhador de passarinho, que o romance de Raul Pompeia “representa exatamente os princípios estéticos, os elementos e os processos técnicos do Naturalismo”.
No portentoso Panorama do movimento simbolista brasileiro, em que acolheu tão fervorosamente os cultores do nosso Simbolismo, inclusi ve dando abrigo seguro a numerosas vozes desgarradas ou insignificantes, Andrade Muricy excluiu Pompeia, muito embora os poemas em prosa do Canções sem metro lhe assegurem galas de precursor naquele movimento e se identifi quem
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claramente com os processos de renovação poética europeia patentes no Gaspard de la nuit, de Aloy sius Bertrand, e nos poemas em prosa de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. Salientese, aliás, que as Canções sem metro editadas em 1900, quatro anos após o suicídio de Pompeia, não suscitavam o interesse ou a leitura dos sim bolistas aborígines, que preferiam abeberarse no Gouaches do poeta português João Barreira, lendoo reverentemente, como se fosse texto sagrado.
Outro grande expoente do Modernismo pátrio, Manuel Bandeira, também ignorou ou não enxergou o Simbolismo e o Impressionismo ostensivos de Raul Pompeia, preferindo metêlo no fiacre parnasiano. Em sua Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana, lá estão alguns poemas em prosa de Pompeia entre os seios marmóreos das musas de Olavo Bilac e os cre púsculos intermináveis de Alberto de Oliveira.
Os modernistas brasileiros jamais conseguiram colocar Pompeia no lugar certo. Ou talvez os incomodasse a modernidade antecipada do autor de O Ateneu. Com sua escrita artística, visão formal e poemática do romance, lingua gem em que os símbolos e as impressões se en laçam e se fun
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dem, ele era um desnorteante elefante branco. Entretanto, advertências lon gínquas poderiam ter evitado essas leituras ne gligentes e os malentendidos. O velho irascível Sílvio Romero já havia concedido a Pompeia um lugar distinto, o do “psicologismo idealista com tendências simbólicas”. Seu teor simbólico e sua filiação ao romance psicológico e subjetivista já tinham sido registrados por Araripe Júnior, que não he sitara em invocar a seu favor a visão órfica de Mallarmé. E Agripino Grieco chegou a garantirlhe uma primazia em nossa prosa impressionista, acentuando ainda que as Canções sem metro, tão desprezadas pelos simbolistas e modernis tas, apresentavam ritmos até então inexistentes na poesia brasileira.
As pistas erradias ou esparsas que procura vam guiar a aferição crítica de Raul Pompeia para o território da escrita artística e da mani festação simbólica não haviam prosperado, impondolhe a condição vexatória de simbolista recusado pelos simbolistas e impressionistas, menoscabado pelos modernistas e aprisionado num Naturalismo que sua obra desmente de modo ofuscante.
O autor de O universo poético de Raul Pompeia fundou o seu exercício ensaístico na circunstância
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de ser O Ateneu um romance poemático, ou um poema em prosa, que desdo bra imagens e impressões visuais e sonoras, ao levantar a crônica de um mundo esvaído — o mundo de um colégio interno, inserido na peda gogia discriminatória da sociedade do Segundo Reinado — com uma visão extremamente sensí vel ao predomínio ou sortilégio das cores, às metamorfoses, ao encanto dos reflexos e luzes difusas, à captação das nuanças geradas pela luz errante. Enquanto Machado de Assis e Euclides da Cunha são prosadores em preto e branco, ou em cores frias, Raul Pompeia ostenta, como nenhum outro protagonista literário no Brasil, o sentimento da cor luminosa e viva e a adesão à claridade.
Ele pode e deve ser comparado aos pintores impressionistas franceses — um Manet, um Renoir, um Degas —, que, dando adeus ao ateliê e armando os seus cavaletes ao ar livre, assumi ram uma nova maneira de ver e olhar e pintar, e redescobriram na natureza a palpitação origi nal da vida, projetando em suas telas o espetá culo das decomposições prismáticas ocasionadas pelo fluir dos instantes, as linhas fugidias e os meiostons que dissolvem formas e desgeometrizam corpos e
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objetos, a migração cromática que dilui perspectivas e paisagens e restaura o império das vibrações coloridas. Nesse sentido, é Pompeia, pela sua capacidade de fixar o mutá vel e o evasivo, um grande pintor impressionista. A descrição de dona Ema, a mulher do profes sor Aristarco, diretor do colégio, é puro Renoir. É uma descrição impressionística, só compará vel à dos corpos, nus ou vestidos, dos grandes pintores da carne. Nem mesmo o velho sátiro dissimulado que foi Machado de Assis logrou escrever este “e o cetim vivia com ousada trans parência a vida oculta da carne”, que compõe a aparição maravilhosa daquela virtuosa e sumarenta senhora que, compensando o espinhoso labor pedagógico do professor Aristarco, estava plenamente aparelhada para assegurarlhe as mais invejáveis noites de almirante.
Aliás, essa movimentação no mundo da carne e das sensações carnais alcança o domínio do mais aceso e audacioso fetichismo sexual e se espraia até o homossexualismo.
Afortunada na descrição dos corpos femininos ou adolescentes, a paleta estilística de Pompeia não é menos admirável no registro das paisagens e dos episódios, sempre latejantes e cromá
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ticos, quer se trate de um piquenique no Jardim Botânico, do registro da morte do abolicionista Luís Gama ou da partida da família imperial para o exílio, em “Uma noite histórica”, de esplêndida e seca magia verbal. A luz dos trópicos caminha pelas páginas de O Ateneu.
Enquanto os personagens de Machado de Assis não sentem calor, os de Pompeia acusam todos os sinais do clima ou da atmosfera. Rica de verde e azul, de branco e dourado, a ensolarada paisagem carioca está presente em seu roman ce, luminosa ou mormacenta.
Quando Pompeia se suicidou, no Natal de 1895, Machado de Assis o retratou, numa crônica:
Raul era todo letras, todo poesia, todo Goncourts.
Estes dois irmãos famosos tinham qualidades que se
ajustavam aos talentos lite rários e psicológicos do nos
so jovem patrício, que os adorava. Aquele livro era um
eco de colégio, um feixe de reminiscências, que ele sou
bera evo car e traduzir na língua que lhe era familiar, tão
vibrante e colorida, língua em que compôs os numero
sos escritos da imprensa diária, nos quais o estilo res
pondia aos pensamentos.
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Eco do colégio... “Vais encontrar o mundo, disse meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a lu ta.” Nessas palavras iniciais do romance — ou crônica de saudades — Pompeia projeta a sua visão do universo. Luz matinal e feroz, ela cla reia todo esse romance poemático que ainda hoje intriga o leitor atento pelo seu frescor estilístico, intransigente modernidade e fatura atenta e peregrina, tão próximo está do Realismo mágico de um Alain Fournier (Le Grand Meaulnes), de uma Virginia Woolf, de Thomas Wolfe ou de um Jean Giraudoux. Evocando um colégio, e fazen do renascer pela memória e imaginação sua in fância de menino interno, Pompeia retratou, na verdade, a escola da vida. Viver é um ofício cruel e trágico. Não há fronteiras entre o mundo das crianças e o dos adultos, muito embora costumemos evocar, “com saudade hipócrita”, a nossa meninice.
Sob o prestígio da fama e da publicidade, O Ateneu é, na realidade, um exemplo da pedago gia industrial, uma máquina de fazer dinheiro. As verdades da vida são mentiras. Os alunos do educandáriomodelo não passam de uma corte de mentirosos, covardes, invejosos, dissimulados e até pervertidos sexuais.
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— Mais le vert paradis des amours enfantines,
L’innocent paradis, plein de plaisirs furtifs*
que Baudelaire celebrou, esconde o demônio em sua relva.
Numa visão terrível que antecipa Marcel Proust — especialmente o de Sodome et Gomorrhe —, Raul Pompeia converte o seu tempo perdido em tempo reencontrado, no friso de impiedade em que procede ao desfile dos meninos internos. A seu ver, o colégio é comparável a uma jaula, a um espaço concentracionário.
Dos escritores do Segundo Reinado foi Pompeia um dos que mais souberam documen tar a estrutura de uma sociedade fundada no poder do dinheiro. O educandário é um microcosmo do mundo hierarquizado, regido por privilégios, discriminações e injustiças, e dividi do em castas. Os alunos que pagam em dia são aprovados com louvor, os que atrasam um se mestre são reprovados.
* “Mas o verde paraíso dos amores pueris, O inocente paraíso, cheio de prazeres furtivos”. Observação: Todas as traduções em nota foram realizadas por
Marcos Siscar para a Editora da Unicamp.
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