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Oficina do Portal Literal Disponível em http://portalliteral.terra.com.br/oficina/oficina-de-contos

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Portal literal

http://portalliteral.terra.com.br/oficina/oficina-de-contos

Oficina de Contossobre o professor

com Jos Castello 10 aulas de 22/9/2008 a 26/9/2008 encerrada

Jos CastelloNascido no Rio de Janeiro, em 1951, o jornalista e escritor Jos Castello vive em Curitiba desde 1994, onde mantm uma disputada oficina literria. mestre em Comunicao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi reprter de Veja, redator do semanrio Opinio, chefe da sucursal carioca de Isto e editor dos suplementos Idias/Livros e Idias/Ensaios, do Jornal do Brasil. Colunista de O Globo, articulista do jornal literrio Rascunho, autor do perfil de Vinicius de Moraes: O poeta da paixo(Relume-Dumar, 2005) e Joo Cabral de Mello Neto: O homem sem alma/Dirio de tudo (reeditado pela Bertrand Brasil em 2006), do romance Fantasma (Record, 2001) e de A literatura na poltrona (Record, 2007), entre outros.como funcionam as oficinas?

Obtenha aqui as respostas para as dvidas mais frequentes sobre as oficinas. Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007. Em 18 de julho o escritor e crtico literrio Jos Castello dar incio aqui Oficina de Contos do Portal Literal. Confira a lista dos dez autores que tiveram seus contos selecionados e tero o acompanhamento direto do mestre. 1. Bruno Machado de Oliveira 2. Wilson Rodrigues de Carvalho 3. Cristiano Lopes Tavares 4. Felipe Lenhart 5. Ricardo Santos 6. Barbara Hansen 7. Robson Ramos 8. Drika Amaral 9. Aline Amsberg 10. Maria Valria de Lima Schneider As aulas podero ser acompanhadas por qualquer um, a qualquer tempo. O grupo acima receber um endereo eletrnico especial para que seus exerccios semanais sejam discutidos diretamente com o professor. Aproveitem as lies!

Oficina encerrada em 26/9 Confira as aulas e os exerccios corrigidos abaixo, e participe das prximas oficinas.aula n 1

Primeira aulaEm sua primeira aula, Jos Castello destaca que cada conto oferece, secretamente, sua prpria definio do que um conto. E prope um exerccio surpreendente. ______________ Diz o dicionrio que o conto uma narrativa breve e concisa, que apresenta unidade dramtica e tem a ao concentrada em um nico ponto de interesse. A definio sintetiza as idias mais comuns que cercam, como velhas supersties, o conceito de conto. No traz uma regra, uma norma, no um dogma: mas , ainda assim, um bom ponto de partida. E, como todo ponto de partida, existe no para que nele estacionemos, mas para que o superemos. A palavra conto vem de "conputus", do latim, que, entre outros significados, guarda o sentido de "clculo". De fato, na arte de escrever contos existe muito de percia, de busca de rigor e preciso, de luta

contra o excesso e o suprfluo. claro, cada autor estabelece seus prprios objetivos, fixa suas prprias fronteiras e lida com suas prprias idias a respeito do que escreve. Os contos de Machado de Assis, como "A cartomante", ou "A mulher de preto", no se parecem com um conto clebre do argentino Jlio Cortzar, como "O perseguidor". Ambos se distanciam muito de uma fbula de Esopo, como "A raposa e as uvas", dos relatos de Charles Perrault, como "O barba azul", e tambm de qualquer uma das cem narrativas guardadas no Decamero, de Boccaccio. Ainda assim, todos costumam ser chamados, genericamente, de contos. Em resumo: cada escritor deve criar e fixar sua prpria definio de conto. Pouco servem as explicaes ligeiras, como a idia de que o conto , por regra, uma narrativa curta. O mais importante conto de Cortzar, "O perseguidor", tem cerca de 70 pginas. Tem quase o mesmo tamanho, por exemplo, que O quieto animal da esquina, um dos romances (ou novelas) do gacho Joo Gilberto Noll. A via das medies e muito perigosa. H sempre muito de arbitrrio quando se diz que "O perseguidor" um conto e O quieto animal da esquina, ao contrrio, um romance. Em um livro famoso, Assim se escreve um conto, o escritor argentino Mempo Giardinelli, depois de admitir que o conto "indefinvel", ainda assim arrisca algumas definies. Conto seria o relato de uma breve srie de incidentes assim como, no interior brasileiro, se contam "causos", um sinnimo de conto. O conto seria uma histria acabada e perfeita, como num crculo, do qual o suprfluo est excludo. Ou ainda: conto seria um relato em que o argumento, o assunto e os incidentes so fundamentais e, nesse caso, os contos se interessariam apenas "pelo que est acontecendo", e nada mais. So definies precrias, que podem ser desmentidas com facilidade. Muitos contos famosos, como o "William Wilson", de Edgar Alan Poe, e "O Horla", de Guy de Maupassant, atribuem tanto valor s atmosferas quanto aos eventos, o que desmente a primeira definio. Os contos do argentino Jorge Luis Borges, como os clebres "As Kenningar" e "Tln, Uqbar, Orbis Tertius", so muito mais exerccios intelectuais do que relatos factuais, e desmentem a segunda. Um conto filosfico como "O ovo e a galinha", que Clarice Lispector apresentou no I Congresso Mundial de Bruxaria, desmente a terceira. Talvez se possa pensar, a favor das definies, que elas so criadas justamente para serem desmentidas e mesmo tradas. Para servirem de baliza, de referncia como as faixas luminosas nas estradas escuras. Isso, contudo, no facilita as coisas para quem escreve. O conto continua a ser um problema que cada escritor precisa resolver a seu modo. Na verdade, cada conto oferece, secretamente, a sua prpria definio de conto. O que define o conto, se que, depois do Modernismo ele ainda suporta definies, , acreditam alguns, a tendncia concentrao. Podemos pensar nos relatos contidos nasMil e uma noites, o grande clssico da literatura rabe, reunio, na verdade, de 1001 contos. Cada uma das histrias se basta. Nelas se concentram um nmero limitado de personagens, se desenrolam um pequeno nmero de eventos, em geral reunidos no mesmo lugar e no mesmo tempo. H, no conto, uma tendncia forte economia de recursos. A convergncia dos vrios elementos em jogo para um mesmo foco, de alguma forma muito precria, ajuda a definir o conto. Os magnficos contos do escocs Robert Louis Stevenson, como "O ladro de cadveres", viriam confirmar isso. Mas, como sustentar essa idia a respeito do conto diante dos densos e delicados relatos de Gustave Flaubert, como o clebre "Uma alma simples"? Narrativas como "O capote" e "O nariz", do russo Nicolai Gogol, devem receber a definio de contos? E, se no so contos, o que so? Pense-se em Clarice Lispector. Relatos breves como "Feliz aniversrio", ou "O crime do professor de matemtica" suportam, sem grandes dificuldades, a definio de conto. Mas, nos livros de contos de Clarice, encontramos narrativas complexas e misteriosas, como "O ovo e a galinha" e "O relatrio da coisa". Sero mesmo contos, s porque esto guardadas em livros de contos? H quem afirme que alguns dos relatos breves de Clarice, como "O relatrio da coisa", sequer fazem parte da literatura pertenceriam, mais, filosofia. Clarice se irritava com essas tentativas de classificao. Sabia que classificaes costumam servir, quase sempre, como mordaas ou como muletas para esconder a preguia dos classificadores. O argentino Adolfo Bioy Casares, ainda que sempre fascinado pela fora das histrias, ajudou a explodir a idia do conto, emprestando a seus relatos breves uma complexidade que, em geral, s se espera dos romances. Contos como "A serva alheia" sero mesmo contos? Se acreditarmos piamente no que dizem os manuais de literatura, talvez no seja possvel afirmar isso. Contudo, claro que so contos, e no s isso, mas alguns dos mais magnficos contos j escritos. H ainda a idia corrente de que o conto ou guarda um mistrio como nos "contos de mistrio" e nos "contos de terror" ou bem guarda um enigma. No primeiro caso, do mistrio, h sempre uma expectativa de soluo, de desvendamento, de fecho esclarecedor. Nesse sentido, e apesar da extenso, os romances policiais da inglesa Agatha Christie seriam, na verdade, contos. No segundo caso, do enigma, privilegiam-se em geral as atmosferas, as reflexes psicolgicas, as meditaes. Escritores fabulosos como Anton Tchekhov, o autor de "A dama e o cachorrinho", radicalizaram essa opo pelo realismo intimista. "Onde est marcada a cruz", a pea do norte-americano Eugene O'Neill, por exemplo, cumpre com muito

mais rigor os preceitos clssicos dos contos do que grande parte das narrativas que ostentam esse nome. So clichs, foras do hbito, comodidades que, no fim, examinam o conto s na superfcie, mais em busca das semelhanas, do que em busca daquilo que realmente importa: sua marca original. No custa lembrar que a literatura , antes de tudo, o terreno do particular e os contos, claro, no ficam de fora disso. Hoje muitos escritores praticam o conto mais realista, que se aproxima da fotografia, do cinema e da reportagem. Contos de Joo Antonio, como os reunidos em O guardador, ou, Copacabana, so contos ou reportagens? Ao escrev-los, ele praticava literatura, ou jornalismo? O que dizer das magnficas crnicas de Rubem Braga, ou daquelas assinadas por Paulo Mendes Campos e Carlinhos Oliveira? Como fixar, com segurana, a fronteira entre a crnica e o conto? A mesma dvida surge com a leitura das narrativas curtas de Ernest Hemingway. O velho e o mar, seu romance mais famoso, no um conto mas guarda mais rigor e tenso que a maioria de seus contos. O norte-americano Truman Capote chegava a dizer que escrevia "romances de no-fico". Ironizava, assim, com a mania de classificar. Capote sempre surpreendeu, e at chocou, com a liberdade interior que se concedia. Em vez de ajudar, clichs sempre atrapalham. Do a impresso ligeira de que estabelecem uma ordem, uma classificao, um cnone. Mas, quase sempre, descartam aquilo que os contos (e a literatura) tm de melhor: a capacidade de perturbar e de surpreender. Ento, quando voc se sentar para escrever um conto, esquea desses padres, dessas classificaes, e tente estabelecer, com firmeza e convico, seu prprio rumo. Cada escritor cria sua tradio, cria seu passado, cria suas influncias e cria, tambm, suas definies. Escrever , antes de tudo, buscar a voz interior, isto , perseguir aquela marca que distingue um escritor de todos os outros. E isso no se aprende, no se ensina, isso se encontra. Mais importante que saber o que fazer saber o que no fazer. Da a importncia de afastar-se, antes de tudo, daquelas facilidades repeties, frmulas prontas, definies que amordaam e bloqueiam o caminho do escritor. o trabalho mais difcil e de aparncia menos nobre: saber o que um escritor no , saber o que um escritor no quer. Porque cada escritor , sempre, um escritor diferente. O que o define e legitima a voz inconfundvel. Uma pgina de Guimares Rosa, ou de Clarice Lispector, ou de Jos Saramago, lanada ao vento, ser sempre inconfundvel. Ou o escritor busca essa marca, ou no merece ser chamado de escritor. ________________ A partir da prxima semana, comeamos a trabalhar casos especficos. Para facilitar a vida dos alunos, tomarei por base os contos reunidos em Os cem melhores contos brasileiros, antologia organizada pelo crtico e poeta talo Moriconi, para a editora Objetiva. Mas os contos citados ao longo desta primeira aula podem ser tomados, tambm, como pontos de partida para a leitura e a reflexo.

Arquivo de apoio: 6217_of_contos.exercicio_1.doc (EXERCICIO_1.DOC - 27 Kb)aula n 2

Segunda aulaJos Castello analisa trs contos de Machado de Assis e uma conversa com Bernardo Carvalho, alm de oferecer preciosas dicas baseadas na experincia de Julio Cortzar, Nicolai Gogol e Clarice Lispector. O mestre tambm prope um 'exerccio de duplicao'. ______________ O escritor argentino Ricardo Piglia costuma dizer que um conto relata sempre uma histria, enquanto na verdade conta outra. A idia incorporada por Bernardo Carvalho em seu romance mais recente, O sol se pe em So Paulo quando, logo no incio do captulo 3, seu narrador reflete: "A literatura o que no se v. A literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histrias acontecem em outro lugar". As idias de Piglia e de Bernardo ajudam a pensar o carter duplicado e secreto do conto. Narrativas curtas, compactas, com grande economia de personagens e de acontecimentos, os contos costumam ser tomados, erradamente, como "fices simples". Como se fossem, apenas, esboos, ou redues de romances potenciais. Este engano leva muitos leitores, e tambm o que mais grave escritores, a desprezar o conto, ou a trat-lo como uma aventura literria menor. atravs da aparente simplicidade que o conto, em geral, ilude, arrasta e prende o leitor. O conto , podemos pensar grosseiramente, a arte do mnimo. Com um mnimo de recursos, de elementos, de

personagens e de linhas, ele narra uma falsa pequena histria para, atravs dela, abrir um abismo aos ps do leitor. Para testar essa hiptese (que, claro, muitos contos extraordinrios desmentem, pois escrever desviar-se e desmentir), parto, hoje, de trs contos, estupendos contos, de Machado de Assis: "A cartomante", "O espelho" e "Pai contra me". Um leitor apressado dir que "A cartomante" a histria clssica de um tringulo amoroso, no caso entre Rita, Vilela e Camilo. No deixa de ser verdade mas reduzir o conto de Machado a isso menosprezar o que ele tem de mais importante. Machado explora em seu conto, sim, clssicos aspectos psicolgicos: a ansiedade de Camilo, as dvidas e temores de Vilela (que o escritor levou ao extremo, no romance, em Dom Casmurro, com o tringulo Bentinho, Escobar e Capitu), o amor escorregadio de Rita. Mais que esses eventos psicolgicos, contudo, o que est em jogo em "A cartomante" a relao do homem com o desconhecido, que se sintetiza na figura da adivinha. A possibilidade (ou sonho) de anteviso do futuro, as supersties a respeito das intenes ocultas que regem as coisas, o poder (ou a impotncia) humana para manipular o destino, a presena secreta do mistrio nas miudezas da vida cotidiana so temas que, numa corrente paralela, sustentam secretamente o relato. Deparamos, nesse conto, com a grandeza de Machado: como quem no quer nada, narrando histrias comuns e at banais, com personagens que se deixam envolver pelo previsvel e que se doam ingenuamente aos apelos e sedues mais vulgares, ele pe seu leitor frente a frente com algumas das mais difceis questes da existncia humana. no particular, e ao encontrar uma maneira inconfundvel de tratar esse particular, que Machado de Assis se aproxima das foras secretas que animam nossa vida. Foras que ele esconde no cenrio banal do consultrio de uma cartomante, um lugar em que se decide, na verdade, no o destino humano, mas nossa impotncia diante desse destino. Machado faz algo muito parecido, e talvez ainda mais atordoante, em "O espelho". O escritor deu a seu conto um subttulo: "Esboo de uma nova teoria da alma humana". Trata-se do relato de uma histria vivida por Joo, um homem de 45 anos, um "capitalista inteligente" que descobriu que no temos s uma alma, a interior, mas, na verdade, temos duas: temos tambm uma alma exterior. "Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro", ele relata a quatro companheiros que o ouvem, luz de velas, em uma casa de Santa Tereza, no Rio. O conto o relato do modo doloroso como fez essa descoberta, duas dcadas antes, quando era um rapaz de 25 anos. Para orgulho da famlia, mas tambm para desconfiana dos amigos, acabara de ser nomeado alferes da guarda nacional. Emocionada, uma tia viva, moradora em um stio solitrio, o convida para passar alguns dias com ela. Mas no o sobrinho que recebe, e sim o alferes. Em vez de cham-lo de Joozinho, como sempre fez, s o chama de "o senhor alferes". Enche-o de gentilezas. Entrega-lhe, ainda, um presente, um antigo espelho, trazido ao Brasil pela corte de D. Joo VI, que dependura na parede de seu quarto de hspede. O rapaz se envaidece com tantas atenes. A tia exige, em contrapartida, que ele ande sempre com sua roupa de alferes. Atende ao pedido, mas logo depois compreende que, com tudo isso, "o alferes eliminou o homem". Ele relata: "No fim de trs semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes". O alferes era sua alma exterior que podia se encarnar, tambm, em par de botas, uma pera, ou um chocalho de criana, pois a alma exterior, diz, pode exibir qualquer aparncia, pode ser ligar a qualquer coisa. Essa alma exterior havia aniquilado sua alma interior e era agora tudo o que lhe restava. Sbito, a tia obrigada a partir para amparar uma filha enferma. Os escravos, logo em seguida, abandonam a casa. O alferes fica sozinho no stio. tomado, ento, por um insuportvel vazio. Um dia, em plena crise, resolve se observar no espelho: tudo o que v uma imagem turva, difusa, em franca decomposio, do homem que j foi, ou que julgava ainda ser. Essa imagem s recobra a nitidez quando lhe ocorre vestir a farda de alferes. Entende, ento, que tudo o que lhe sobrou a alma exterior, incorporada naquela vestimenta militar. A alma interior, que se refere a seus aspectos humanos, foi por ela devorada. "O espelho" um conto filosfico. A idia das duas almas, que a princpio parece absurda, mostra-se hoje, um sculo depois, incrivelmente atual. Vivemos em um mundo de duplicaes, de clones e de virtualidade. Um mundo em que as pessoas costumam ser reduzidas a ttulos, a contas correntes, a imagens na mdia, a currculos, a crachs. A "alma exterior" d as cartas num mundo que se define pela superfcie e pela velocidade e que tem horror profundidade e lentido. Pensando assim, um sculo depois, espanta a sensibilidade de Machado. Sensibilidade que, se nos deixarmos levar pela figura sedutora da cartomante, se aproxima da premonio. Mas essa duplicao narrativa guarda um segundo aspecto que, de modo sutil, mas insistente, est

presente em toda a literatura de Machado. A segunda alma como a da mulher que s pensava nas estaes de pera lrica e, depois, passa a s pensar nos bailes da rua do Ouvidor fala das obsesses. Obsesses, idias fixas, manias, paixes. Fala, portanto, de modo muito sutil e secreto, da prpria literatura, que , sempre, ao menos quando se escreve para valer, efeito de paixo. Eis a a matria prima dos escritores: a obsesso em escrever. Contra tudo, contra todos e apesar de tudo, continuar a escrever. Falei de Bernardo Carvalho: recentemente o ouvi afirmar que a literatura , para ele, a coisa mais importante, "mais importante que tudo". Escritores radicais penso em Joo Gilberto Noll, para ficar em outro brilhante escritor contemporneo adotam a literatura como uma espcie de sacerdcio. Uma coisa que est acima de todas as outras. Na mesma conversa, ouvi Bernardo dizer ainda: "A literatura a minha religio". Apontava assim a "segunda alma" de que Machado fala em seu conto, alma que existe mesmo para aqueles que, como Bernardo, se declaram ateus ou seja, no acreditam na existncia da primeira. Escritores costumam se deter longamente na reflexo sobre esse "massacre". Algo que aparentemente vem de fora, a literatura (mas vem mesmo?), o invade e ocupa um lugar privilegiado em seu interior. No entanto e eis a lio que Machado nos d em "O espelho" a literatura no filosofia, nem teoria literria, ou ensaio sociolgico. Literatura literatura e apenas isso e tudo isso. Machado trabalha idias, idias difceis, densas, imprecisas, perigosas, usando exclusivamente o instrumento delicado da narrao. Com isso, no fecha, no "soluciona", no bloqueia o pensamento, no conclui; ao contrrio, abre novos caminhos, descerra novas perspectivas e nos oferece novas maneiras de pensar e de ver. Dizia Joo Cabral: a literatura "d a ver". O argentino Julio Cortzar, mestre do conto de quem j falei na oficina anterior rememorou, um dia, em entrevista a Ernesto Bermejo, sua tendncia para criar personagens super-intelectuais, sujeitos "que especulassem com muita inteligncia sobre certos problemas metafsicos". S conseguiu vencer esse vcio, que bloqueava sua escrita, quando decidiu "seguir o caminho inverso, construir um personagem assimilvel ao homem da rua". a arte de Nicolai Gogol em seu O capote. o que faz Robert Musil mesmo em um romance monumental como O homem sem qualidades. o que faz Graciliano Ramos ao criar Luis da Silva, o atordoado e frgil protagonista de Angstia. o que Cortzar faz em seus magnficos contos. Penso no terceiro conto de Machado que propus a vocs: "Pai contra me". Ele comea em tom circunspeto, distanciado, quase professoral, de ensaio, ou estudo histrico. Os cinco primeiros pargrafos mais parecem uma lio de histria social, que rememora os ofcios e aparelhos ligados antiga escravido, entre eles o ofcio de perseguidor de escravos fujes. S no sexto pargrafo Machado, enfim, nos introduz na histria de Cndido Neves, de seu amor por Clara e de suas imensas dificuldades com o trabalho e a sobrevivncia. Impasses que tenta resolver adotando o ofcio de perseguidor de escravos em fuga. Clara tem uma tia, Mnica, mulher austera que, depois de cri-la, vigia de perto seu amor por Cndido. A vida do casal dura, o ofcio de caador de escravos instvel e Clara tem que se desdobrar cosendo para fora. Engravida, tem o beb, mas o casal despejado dias depois. A situao se agrava e a tia, pensando no recm nascido, convence-os a entregar o beb Roda dos enjeitados instituio que abriga crianas desamparadas. Cndido se recusa, mas, enfim, pressionado pela misria, aceita os argumentos da tia. Pega o beb, mas, no caminho, cruza na rua com uma escrava fujona em troca de quem se promete um excelente dinheiro. Deixa a criana numa farmcia, sai atrs da mulher e consegue peg-la; ela se desdobra em lamrias e pede piedade no por ela, mas pela criana que carrega na barriga. Cheio de fria, e mesmo assim, Cndido ignora seus apelos e a entrega aos seus donos. Na luta para fugir, ela aborta e o filho morto salva o filho de Cndido. Na aparncia, Machado escreveu um relato social, que aborda a misria e o desespero, relato que vem adornado por algumas pinceladas de anlise dos costumes. Mas ser s isso? "Pai contra me" trata, mais que isso, da diviso em que todo ser humano se funda, abismo sobre o qual todos existimos. Contudo, em vez de teorizar, ou mesmo de construir teorias fantasiosas como em "O espelho", Machado aferra-se unicamente aos fatos, e apenas a eles, para escrever uma histria ela tambm, afinal, comum. Que, no entanto, carrega em seu interior (como a escrava grvida) questes e impasses que vo muito alm dela. A ciso interior do homem, sua animalidade, o modo como o desespero pode massacrar algum, a aflio extrema que nos leva aos atos mais repulsivos so questes que latejam no interior de "Pai contra me". E que, de certa forma, ultrapassam a histria que lemos ou que, pelo menos, a duplicam. Para falar de uma coisa, Machado fala de outra. Para pensar sobre uma coisa, nos leva a pensar e a "ver" outra. nas entrelinhas, como dizia Clarice Lispector, que a literatura se escreve. Jogamos a isca a narrativa literal. Mas, quando essa isca fisga o que realmente interessa, dela j no podemos nos livrar,

porque isca e coisa se misturaram. Essa mistura entre o que se diz e o que no se diz, o que se pensa e o que no se pensa, o que se escreve e o que no se escreve , enfim, a literatura.

Arquivo de apoio: 7325_of.contos.exercicio_2.doc (CONTOS.EXERCICIO_2.DOC - 20 Kb)aula n 3

Terceira aulaA duplicidade que se passa "para alm da fico", como se um mistrio acenasse para o leitor de fora do conto, e a perigosa fronteira entre a fico e a vida so alguns dos temas explorados na terceira aula de Jos Castello. ______________ O escritor pernambucano Raimundo Carrero gosta de lembrar a conhecida (e aparentemente intil) frmula de Mrio de Andrade: "Conto tudo aquilo que a gente chama de conto". A idia vale tambm, claro, para o romance romance tudo o que se chama de romance. Volto a Carrero, que no s um grande romancista, mas tambm contista. Um romance como A histria de Bernarda Soledade, que ele escreveu nos anos 70 e tem pouco mais de cem pginas, pode ser tomado como um conto longo. Ele mesmo admite que, num movimento inverso, seu estupendo romance Sombra severa foi, durante um bom tempo, um conto curto e depois um conto um pouco mais longo. Carrero, ainda, quem recorda que Gilberto Freyre, cheio de dvidas para definir seuBernarda Soledade, safou-se inventando uma nova definio, um novo gnero: "quase novela", ou "meia novela". A amplitude da frmula criada por Mrio de Andrade, se por um lado confere extrema liberdade aos contistas, de outro lhes tira a segurana e o cho. Se conto mesmo tudo aquilo que chamamos de conto, de onde um contista deve partir? E mais: o que se espera, exatamente, que um contista escreva? Carrero quem recorda, ainda, um dos exemplos mais dramticos dessa fronteira quebradia (e traioeira) entre os gneros: A metamorfose, o clebre conto longo, ou novela (quase novela), ou mesmo romance breve de Franz Kafka. Pergunto: estaria Kafka interessado nesse problema quando escreveu A metamorfose? J disse em aula anterior que o conto, em geral (mas sei o quanto me arrisco com esse "em geral"...), se define pela concentrao. Num de seus cadernos de notas, o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), extraordinrio contista, mas tambm um grande dramaturgo, registra em palavras secas e brevssimas, como era de seu estilo um brevssimo episdio que lhe inspirou um conto que nunca escreveu. Ele anotou: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milho, volta para casa, se suicida". Leitor apaixonado de Tchekhov, o argentino Ricardo Piglia viu nesse episdio resumido entre cinco vrgulas a sntese o esqueleto de um conto clssico. "A forma clssica do conto est condensada no ncleo dessa narrao futura e no escrita", ele afirma em seuO laboratrio do escritor. Um personagem (um homem), um lugar (Monte Carlo), um destino (vai ao cassino), um evento extraordinrio (ganha um milho), uma soluo (volta para casa), um desfecho inesperado (se suicida). E eis um conto. Mas romances mesmo os menos ortodoxos dos romances tambm no poderiam se encaixar no esquema proposto por Piglia? Fracasso dos esquemas, das frmulas prontas, das formas... Mas vamos l. Penso em um de meus romances prediletos (na verdade, um dos livros fundamentais em minha vida de leitor): A paixo segundo G.H., o estranho romance que Clarice Lispector publicou em 1964. Arrisco-me a nele experimentar a frmula de Tchekhov condensada por Piglia. Um personagem (G.H.), um lugar (sozinha em seu apartamento, depois de demitir a empregada), um destino (vai ao quarto de servio), um evento extraordinrio (mata uma barata e decide com-la), uma soluo (interroga-se sobre aquilo que escapa, aquilo que fica "depois de depois do pensamento"), um desfecho inesperado (experimenta uma espcie mundana de epifania, isto , de apario sbita do sagrado). Piglia observa que, no episdio-sntese rascunhado por Tchekhov, aparece (como j disse em minha Aula 2) o carter duplo dos contos. Na aparncia, a histria de algum que se torna milionrio no tem qualquer relao com a histria de algum que se suicida. No entanto, o mesmo personagem quem faz as duas coisas enriquece e, ato contnuo e imprevisto, se mata. Aqui fica claro que, sob a histria que o leitor l, em seu interior, uma trama secreta e imperceptvel se desenrola alguma coisa que confere (ou pelo menos promete conferir) um sentido ao episdio. No penso, contudo, s no carter duplo que se desenrola no plano ficcional. Como na aula passada, interessa-me mais ainda a duplicidade que se passa "para alm da fico" como se uma coisa dessas, na

verdade, fosse possvel! Como se, para uma fico, houvesse "algo alm". Semana passada, falei do sentido oculto que lateja, sempre, no interior de qualquer narrativa. Algum j reclamou que o exerccio que acompanhou aquela aula, a Aula 2, que eu chamei de Exerccio de Duplicao, no corresponde exatamente ao tema exposto. Talvez isso seja verdade. Em minha defesa posso dizer que essas duplicaes se passam, em geral, em trs planos. Primeiro, como no Exerccio de Duplicao, no interior da prpria narrativa. Segundo, como na exposio da Aula 2, na esfera do sentido, ou malha de sentidos ocultos que sustentam, mas tambm desvirtuam, uma narrativa. Hoje venho falar de um terceiro plano: o da perigosa fronteira entre a fico e a vida. Dito de outra maneira: a fronteira que separa (mas separa mesmo? ou mistura de modo definitivo?) a imaginao do real. do que venho tratar hoje e o Exerccio das Metamorfoses, que passo ao fim desta aula, se refere, em particular, a esse plano. Parto no de um conto, mas de um romance, um comovente romance que acabo de ler: O filho eterno, de Cristovo Tezza. Romance? Tezza, que pai de um rapaz com Sndrome de Down, o gentil Felipe, relata a dura histria dessa paternidade que se mistura sua dura luta para se tornar o grande escritor que . uma histria de forte fundo autobiogrfico, mas que, apesar disso, guarda a estrutura clssica de um romance. E Tezza, ciente do fio de navalha sobre o qual o escreveu, sustenta corajosamente essa definio: romance. Outros escritores brasileiros j fizeram experincias aparentemente parecidas. Escreveram relatos de forte estofo autobiogrfico, e depois os definiram como romances. Mas no basta definir, no basta aplicar um rtulo a um livro. preciso que o livro, ainda que tramado sobre laos biogrficos, se imponha (sobretudo para o leitor que desconhece esses laos) como uma obra de fico. Este o caso de O filho eterno: um leitor distante, ou desatento, poder l-lo como pura inveno, e se convencer de que pura inveno mesmo. E no perder nada do que se guarda no livro de Tezza. Ao ler O filho eterno, pensei logo na definio que o norte-americano Truman Capote deu a seu A sangue frio: "romance de no-fico". Tezza, contudo, prefere chamar seu livro de "romance brutalmente autobiogrfico" e, sem dvida, com isso cunhou uma expresso talvez menos precisa, mas muito mais forte. O que nos interessa nesta aula, porm, est muito alm dessas tentativas de definio de gnero que, na verdade, so sempre um tanto fracassadas. O que nos interessa pensar que mesmo o mais experimental dos romances, o mais fantstico, o mais inverossmil deles e no apenas aqueles que evocam a biografia ou a autobiografia tem sempre um p fincado no real. Escrever sempre distorcer, provocar uma metamorfose e aqui comeo a explicar o exerccio que proponho a vocs hoje, o Exerccio das Metamorfoses. Mas muito importante distinguir logo: distoro no colocar mscaras, no "traduo" de uma coisa por outra, no disfarce. No tomar uma coisa por outra, fazer uma metfora (transferncia de campo semntico raposa por uma pessoa astuta, por exemplo), ou uma metonmia (designar um objeto por outro copo por bebida, por exemplo). No trabalhar com figuras de linguagem, nem uma questo de estilo. distorcer mesmo, e a um ponto em que j quase nada mais se reconhea. tirar, do conhecido, o desconhecido. Arrancar algo que, a princpio, supomos no s que no est l, como que no poderia estar l. Arrancar o inesperado, que nem sempre agradvel, e nunca o que se imagina. O francs Gustave Flaubert (18211880, outro romancista) dizia que escrever desvelar o "monstro" que se guarda dentro de cada um de ns. O "monstro" um animal espantoso, assombroso; escrever fico , nesse sentido, lidar com o espanto e o assombro. Todo grande relato enigmtico e nos coloca diante de algo que no podemos resolver. No porque sejamos leitores incapazes ou relapsos, mas porque no suportam mesmo uma soluo. Diante do enigma nos interrogamos, e ficamos apenas com a perplexidade das perguntas. No mximo para seguir uma idia de Luiz Alfredo Garca Roza, mais um romancista arriscamos uma decifrao (como os adivinhos, os quiromantes e os leitores de bola de cristal). Quer dizer: chegamos a respostas muito precrias, provisrias e totalmente desprovidas de provas. Entramos na esfera de algo que se aproxima da crena, da muita gente, num engano brutal, associar a inveno literria religio. o checo Milan Kundera (mais um romancista...) quem nos fala do "despotismo da histria". Refere-se crena (aqui eu prefiro pensar em superstio) segundo a qual toda fico conta uma histria, e que toda histria guarda uma transposio de algum modo direta, literal, para o real. Mas a literatura se passa "alm" da histria. O mais importante em O filho eterno, para voltar ao livro de Cristovo Tezza, est alm dos acontecimentos, e isso apesar de todo o livro girar a partir e em torno de um acontecimento atordoante, o nascimento de um filho com Down. No fosse a maneira inteligente como Tezza relata sua histria, isto , a maneira como circunda e bordeja o real, e o livro no teria a mesma fora, isso apesar da fora da histria que ele se empenha em contar. Essa transposio que tende ao literal (porque, de fato, nunca chega a ele) resume, de uma forma muito precria, o trabalho de Truman Capote em A sangue frio. Um livro que tem a estrutura de um romance,

mas que pe essa estrutura a servio de uma histria real, ou uma histria de "no-fico". A servio de uma estratgia (diramos "jornalstica") de aproximao do mundo. J Cristovo Tezza faz coisa bem diferente. Embora parta de um fundo autobiogrfico, e no faa nenhum esforo para esconder ou disfarar isso, Tezza trabalha sobre sua histria com um conjunto de ilaes, de pensamentos, de meditaes que a transportam para uma esfera que vai alm da autobiografia. E que, de uma forma direta, mas convincente, a distorcem isto , dela fazem uma fico. A idia de "no-fico" s com muito esforo (talvez excessivo) cabe no livro de Tezza. Falar de um "romance brutalmente autobiogrfico", como ele mesmo sugere, uma maneira muito mais eficiente de falar de O filho eterno. Vocs diro: esta uma oficina de contos, mas voc s fala de romances. Na verdade, conto e romance compartilham o grande universo da fico. Embora tenham cnones e tradies distintos, so criaes que privilegiam o imaginrio e a inveno, e que s de modo muito indireto guardam alguma relao com a verdade. Mesmo num romance comoO filho eterno, livro em que o impulso para a autobiografia parece submeter e guiar o autor, essa relao complexa, no simples, no uma relao de equivalncias, ou de tradues. Se lemos um texto no-ficcional como a "Carta ao pai", de Franz Kafka, longa carta que o autor checo escreveu para seu pai no ano de 1919, cinco anos antes de morrer e quando j era um homem adulto de 36 anos de idade, carta que nunca chegou a entregar (na verdade, ele a entregou me, que o protegia do pai, e no ao pai!), entendemos melhor ainda o abismo obscuro de que os ficcionistas tiram suas narrativas. A literatura de Kafka, enigmtica e fechada, nada tem de autobiogrfica. Ao contrrio: ela uma espcie de cortina, espessa e enigmtica, com que Kafka recobre e veda o acesso a si. Mas, como as cortinas, se nos escondemos atrs delas, alguma pista sempre fica: uma sombra, uma forma que se reala discretamente sob o pano, um enrugamento que denuncia uma presena. Assim tambm nas fices, em todas as fices. Depois da leitura de Carta ao pai, a obra de Franz Kafka, toda ela, incluindo seus trs grandes romances (Amrika, O castelo e O processo), pode ser lida de outra maneira de uma perspectiva radicalmente diferente. No, no to simples: a carta no "explica" a obra. Na verdade, ela nada soluciona. Em vez disso, complica e torna ainda mais intrincada a leitura da mesma obra. Numa palavra simples: enriquecea. Ela tambm no , como alguns querem crer, um conto que se disfara em correspondncia. E no entanto uma carta que, em vez de constar dos Dirios e dos textos confessionais do escritor checo, sempre editada (e no Brasil tambm) lado a lado a suas grandes fices. Creio que raros livros representam, como Carta ao pai para Franz Kafka, esse papel chave, essa funo devastadora. A rigor, toda a obra de Kafka gira em torno da mesma questo. De onde vm as fices? No temos o rastro biolgico para seguir, como quando perguntamos de onde vm as crianas. Na literatura, tudo muito mais difcil. No existem respostas, mas s simulaes de respostas. Carta ao pai uma simulao (ou tentativa fracassada) de resposta. Contudo, guarda uma fora e uma radicalidade que nos obrigam a reler toda a obra de Kafka de outra maneira. Porque falei de Franz Kafka, a partir dele que ofereo meu exerccio de hoje.

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Quarta aulaA quarta aula de Jos Castello traz o rigor e a secura da "poesia de pedra" de Joo Cabral de Melo Neto para ajudar o contista a livrar-se dos clichs. Marianne Moore e Milan Kundera tambm vm ao auxlio dos alunos. ______________ Venho tratar hoje no de um contista, mas de um poeta. Eu sei: parece estranho falar de um poeta em uma oficina de contos. Mas, tenho certeza, isso nos ser muito til. Ocorre-me aqui uma sentena clebre de Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, um romance-chave na literatura no sculo 19. Frase que, no meu entender, serve no s ao romancista, mas tambm ao contista e ao poeta: "Sempre me esforcei para adentrar a alma das coisas". claro: romances, contos, poemas, cada gnero tem sua histria. Histrias que fundam tradies, hbitos, certezas ainda que precrias certezas. Mas existe alguma coisa que, para alm dos gneros e da histria, funda aquilo que chamamos de literatura. Talvez se possa pensar nesse "adentrar a alma" de que Flaubert nos fala.

Lembro de outro grande romancista, o checo Milan Kundera, para quem o romance no "s mais um gnero literrio, um galho entre os galhos de uma s rvore". Com essa afirmao, Kundera luta para afirmar a particularidade do romance gnero que, a seu ver, no se confunde com qualquer outro. As particularidades do conto e da poesia tambm podem (e devem) ser afirmadas por contistas e poetas. Nada disso, porm, apaga o lastro comum em que os escritores, de qualquer gnero, trafegam. Escrever, dizia Flaubert, lutar para penetrar na alma (nos segredos) do mundo. E, para se arriscar a isso, cada escritor deve traar seu prprio mtodo, escavar seu prprio caminho. Feitas essas ressalvas, volto a Joo Cabral de Melo Neto, um poeta numa oficina de contistas. Embora nunca tenha escrito contos, o poeta Joo Cabral de Melo Neto, com sua esttica da secura, do corte e do rigor, pode nos ajudar muito a pens-los. Poetas, como contistas, so artesos da palavra, o que j os deixa muito prximos. Alm disso, Cabral no foi um poeta qualquer. Foi, antes de tudo, um poeta que lutava para no "fazer poesia", como se diz dos romnticos e dos lricos. Queria, em vez disso, e em suas prprias palavras, "despoetizar a poesia". Fazer uma poesia sem poesia projeto que at hoje, em alguns poetas, provoca grande mal-estar. Uma "poesia sem poesia": isto , uma poesia livre de todos os clichs que, por hbito e preguia, atribumos poesia e ao potico. Uma poesia sem adornos, sem exageros, livre dos enfeites e de metforas, distante o mais possvel da retrica. Poesia de pedra, poesia de osso "poesia de cabra", dela dizia o lrico Vinicius de Moraes , poesia concreta. Uma poesia dos substantivos e no dos adjetivos. Um duro projeto, que torna a arte do poeta ainda mais difcil mas, tambm, ainda mais potente. Por que no pensar, roubando a idia de Cabral, de um "conto sem conto"? Isto : um conto liberto de todos os clichs, todos os hbitos, todos os vcios normalmente a eles atribudos. Joo Cabral reclamou, muitas vezes, da preguia e do convencionalismo que a seu ver, em seu tempo (e no hoje?), vigoravam entre os poetas. Todo mundo, de fato, acha que pode escrever poesia, nem que seja um "poema de amor", ou um "poema de homenagem", ou "de despedida". At nos cartes postais, nos telegramas de aniversrio, nas lpides de cemitrio, nos apelos da publicidade, nos bolos de casamento identificamos muitas vezes algo que, apressadamente, chamamos de "poesia". Pensa-se, em geral, que basta uma lgrima, ou uma dor de cotovelo, ou a expresso mais forte de um sentimento, para que a poesia, como num passe de mgica, aparea. "O brasileiro em geral no muito de trabalho", Cabral se lamentava. O que o poeta desejava afirmar? Que a poesia, ao contrrio dos que crem em Musas, em anjos, ou no poder da inspirao, ou ainda em manifestos estticos e palavras de ordem que devem ser cumpridos ao p da letra, , sempre, o resultado de um imenso esforo e de muita disciplina intelectual. E, sobretudo, de uma arriscada e solitria viagem pessoal. O poeta no "incorpora" a poesia, como um mdium. Ela, ao contrrio, se faz passo a passo, pea a pea, como um edifcio (Cabral sempre se interessou pela arquitetura e pelos arquitetos), ou como uma cadeira. Muito mais que ao mdium, ou ao mgico, pensava Cabral, a poesia obra do arteso. Mas disciplinar-se no significa, ele dizia, submeter-se a regras alheias. Ao contrrio: "Cada pessoa deve encontrar a sua forma rgida para a sua maneira de ser e depois segui-la", disse numa longa conversa com Andr Pestana. Cada poeta (cada contista, podemos experimentar a troca) deve criar seus prprios limites, sua prpria armadura, sua prpria estrada, e a eles se aferrar com toda a fora. A partir da, no deve mais abrir mo do caminho que escolheu, por mais difcil que ele venha a ser. Criar suas prprias proibies, seus prprios tabus, seus prprios riscos e depois a eles se submeter com o mximo de rigidez e sem recuar: eis a estratgia do poeta. Mas no basta ser radical, no basta "desejar romper". Cabral que sempre foi considerado um grande inovador, e a quem as vanguardas literrias, at hoje, esto sempre a citar como um grande mestre deixou claro, numa entrevista a O Globo, a distncia que o separava dos vanguardistas. Resumiu assim: "Aceito a inovao caso ela venha a ser funcional e no como um meio de ser diferente". Inovar, para Cabral, no era "fazer o novo", mas encontrar um caminho prprio, o mais adequado e mais eficaz, para chegar a um objetivo pessoal. O carter funcional da inovao que precisa "funcionar" para de fato ser nova lhe tira, assim, o verniz glamouroso e escandaloso que tantos atribuem. E lhe confere um carter mais problemtico, que inclui a idia de eficincia e que tem em vista, sempre, um destino. Claro, a poesia (e a literatura) no serve para nada, ento no estamos falando aqui de um carter utilitrio, ou de uma funo social. O funcional se refere mais s idias, aos projetos, e, sobretudo, aos objetivos que cada artista fixa para si. Chegar a si: eis o objetivo, no fim, de todo escritor, poeta, contista, ou romancista. Lies sbias, penso, tambm para um contista: decidir aonde quer chegar e depois seguir, com firmeza, por esse caminho, sem arredar o p, sem ceder ao cansao ou desnimo, por mais difceis que sejam os

desafios que escolheu para si. Volto aqui definio de Mario de Andrade que citei em outra aula: "Conto tudo o que chamamos de conto". O importante no saber o que um conto, mas se, uma vez resolvido o que ele , e cada contista resolve isso a seu modo, cumprir o que se prometeu. Numa antiga entrevista que deu ainda nos anos 60 em Lisboa, Cabral falava de seu descontentamento com o Pgaso, o cavalo que voa, que considerado o smbolo da poesia. Ao crtico Jos Carlos de Vasconcelos, do Dirio de Lisboa, ele sugeriu: "Ns deveramos ter como smbolo da poesia no o Pgaso, mas a galinha, ou peru, que so aves que no voam. Para o poeta, o difcil no voar e o esforo que ele deve fazer esse". A galinha: uma ave que cisca e que, em vez de cobiar grandes vos, trabalha com a ateno voltada para o cho, para o imediato, para as miudezas, em busca de seu alimento. Contem-se e contenta-se com o menor. Ela uma boa imagem tambm para o contista. Vos exagerados podem lev-lo a perder o rumo e a se dispersar. Mais seguro se deter no caminho que traou para si e ali, como uma galinha concentrada na busca de seus farelos, permanecer firme. Mais uma vez Cabral repete: conter-se, conservar-se firmemente agarrado ao cho, endurecer, restringir-se. Nada de vos inteis, de divagaes tortuosas, de experincias "sublimes", de exageros, de excessos. Nada de grandes elevaes, nenhuma nobreza, nenhuma grandiosidade. A poesia (o conto) um trabalho duro, em que o escritor precisa sujar as mos. Cabral propunha uma poesia terra a terra, apegada aos problemas concretos e submissa a estratgias inteligentes desafios brutos e sem facilidades, que cada poeta deve traar para si mesmo. Isso quer dizer: antes de escrever, escolher e fixar os limites da escrita. Erguer normas pessoais inventar essas normas e depois a elas se submeter. Desenhar os limites de seu destino. Desse modo, a liberdade deixa de ser algo de que nos embebedamos, para se tornar a camisa de fora que escolhemos, livremente, vestir. No leva embriaguez, mas ateno. No leva a "qualquer coisa", mas s preciso. Tudo isso vale, e muito, para o contista. Escrever contos no derramar-se, sem qualquer pudor, no caminho pantanoso das palavras. No soltar a imaginao e deixar que ela ferva, que entre em ebulio. Ao contrrio: criar obstculos e objetivos, rgidos, duros, e fixar com nitidez um destino ainda que no se chegue a realiz-lo, ainda que nunca se chegue, de fato, at ele. conter-se. O contista, como o poeta cabralino, precisa saber onde pisa e em que direo caminha. Ainda que essas escolhas se dem, como em geral acontece, no escuro, e sejam motivadas por razes secretas que lhe escapam, a elas que o contista deve ser fiel. Apesar de si e apesar da prpria ignorncia e dos prprios limites, no recuar, no voltar atrs. Em uma entrevista concedida nos anos 70 Folha de S. Paulo, Joo Cabral argumenta: "Se a literatura problemtica porque ela existe. No dia em que a tivermos burocratizada, com o poeta sentado em uma mesa na funo de fazer versos, a sim a literatura estar morta". O poeta (o contista) no escreve por encomenda, ou para corresponder a padres, ou para se adaptar a cnones. No segue as tendncias da moda como, por exemplo, a indstria do automvel, ou os atelis de costura. Clarice Lispector dizia: "Eu no coso para fora, eu coso para dentro". Logo, no existem modismos, no existem manequins, no existem fitas mtricas; a medio interior. Sero essas, de fato, escolhas que o poeta (o contista) chega a fazer? Ou, em vez disso, so apenas coisas que se impem e que, uma vez reconhecidas como partes de sua voz, o levam a se submeter? Nesse caso, e para seguir a pista deixada por Joo Cabral, o contista no se submete a algo de fora, a um cnone, ou uma palavra de ordem, ou a um guru. Submete-se, antes, a si. Em outras palavras: contmse. E s ali, naquela priso pessoal (Cabral poderia pensar nos engradados em que se espremem as galinhas...), que ele arrisca alguns vos. Vos pequenos, precisos, em direes claras e com o retorno includo. Os vos decisivos. Uma estratgia, sem dvida, trabalhosa, at porque ela empurra o escritor, qualquer escritor, poeta, contista, romancista, para uma grande solido intelectual. Em uma entrevista que concedeu nos anos 80, Cabral diz: "Sou um poeta meio marginal, que de certa forma fugiu do lirismo e do romantismo comuns na poesia brasileira". margem dos grandes movimentos e das grandes ondas, Cabral se isolou em seu caminho, apegou-se ferozmente a sua voz, suportou todas as conseqncias disso, e s por isso se tornou um grande poeta. A estratgia, insisto, serve tambm para o contista: no aferrar-se a sua solido, quando fiel a si e a mais ningum, que um contista se afirma. Faz parte desse retorno ao essencial o apego de Joo Cabral no s Espanha, mas literatura espanhola. Cabral disse certa vez ao crtico e poeta Antonio Carlos Secchin: "A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam. Parece que a linguagem comeou pelas palavras concretas". Este retorno s "coisas que so", que Cabral cultivou na rida paisagem espanhola, uma lio estupenda tambm para o contista. Tambm o contista pratica

um gnero que tende ao compacto, e que em geral se centra em um s tempo e em uma s ao, que se prende a poucos personagens, que se aferra a uma histria com a obstinao de cont-la at o fim e mais nada. O contista, em geral (mas como perigoso o geral!), no se interessa pelo adorno, pela divagao, pela meditao. Ele tem uma histria a relatar, um relato a resolver, e escreve para resolv-lo. Cabral recorda as literaturas primitivas os contos de fadas, as lendas, as gestas, o cancioneiro medieval em que o objetivo era apenas um: contar uma histria. Exemplos que remetem a uma idia decisiva: a de conteno. Conter-se: este deve ser o principal exerccio de um contista. Agarrar seu projeto, ater-se a ele, restringir-se, exigindo de si mesmo nitidez e rigor. O Exerccio de Conteno que hoje proponho a voc se inspira no s, nas lies de Joo Cabral de Melo Neto, mas tambm nos versos de outra grande poeta, que admiro muito, a norte-americana Marianne Moore. Uma poeta que, Cabral declarou mais de uma vez, foi decisiva em sua formao literria. So estes os versos de Marianne, que esto no fecho do poema "Silncio", aqui em traduo de Jos Antonio Arantes: "O sentimento mais profundo sempre se mostra em silncio; no em silncio, mas conteno". A palavra inglesa aqui traduzida como "conteno", "restraint", pode ser traduzida tambm por restrio, limitao, ou controle trs outras idias que servem bastante a nosso propsito. Pois so restrio, limitao e controle que ajudam a formar no s um poeta, mas um contista.

Arquivo de apoio: 9040_of.contos.exercicio_4.doc (CONTOS.EXERCICIO_4.DOC - 21 Kb)aula n 5

Quinta aulaLuigi Pirandello, E.M. Cioran e Franz Kafka so trazidos por Jos Castello quinta aula para ensinar sobre a dana de mscaras da literatura. O desafio proposto pelo mestre nesta semana trabalha paradoxos, mais uma vez, para fugir dos clichs. ______________ Ainda a pista preciosa que nos foi dada no por um contista, mas por um grande poeta, Joo Cabral de Melo Neto: escrever (poemas, contos, romances) "dar a ver". aprender a ver, podemos modificar um pouco a idia. apurar o olhar, refin-lo, de modo que se acostume a ver o que em geral no v. A ver a instabilidade (a vida) e no a estabilidade (a morte). E no se limitar a ver "como todos vem". No ver o que j esperamos encontrar, ver para confirmar, mas ver de novas maneiras, de novos ngulos, novas perspectivas, ver para levar um susto. Procura-se uma coisa, e encontra-se outra e se suporte isso, e se faa algo no a partir do Mesmo perdido, mas a partir do Outro que se encontrou. Palavra da moda, Outro, que est no jargo de psicanalistas, de antroplogos, de socilogos. Palavra conceito que existe para abrir portas, mas que, s vezes, as fecha. O perigo das palavras! Uma afilhada querida, Rita Lemgruber, sempre me diz que, incomodada com a camisa de fora (e no com a fora!) dos jarges, prefere chamar o Outro de Fulaninho. Sua "traduo" no podia ser mais certeira! O dicionrio define Fulano como a "designao vaga de pessoa incerta, ou de algum que no se quer nomear". Fulaninho, o diminutivo, carrega, ainda, uma dose de mau-humor, de desdm, de ironia. O Outro isso: uma maneira insuficiente de nomear algum, ou uma maneira de chamar algo a que, enfim, no conseguimos dar nome algum. Escrever, em conseqncia, livrar-se das mscaras sociais, culturais, protocolares, de etiqueta, de boas maneiras que vestimos para existir. Para enfrentar a vida. Dos culos habituais que usamos para ver e que nos levam aos mesmos enquadramentos e aos mesmos pontos de vista. Arrancar as mscaras, para encontrar no o que j conhecemos, mas o que desconhecemos. Encontrar o Outro ou o Fulaninho, como Rita me sugere. Aquele que mal suporta o peso de um nome! E o que acontece quando despimos essas mscaras? A iluso realista leva a crer que, sob a mscara nefasta, encontraremos desenterraremos! homens de carne e osso. Homens "verdadeiros", a verdade nua e crua. E a mscara ficaria, ento, do lado da mentira, da falsificao, do medo, da fuga, da chantagem. Um escritor genial dramaturgo, mas tambm contista e ainda romancista como o italiano Luigi Pirandello (1867-1936) j nos mostrou, contudo, que tal verdade secreta e perfeita, que se guardaria sob as mscaras, simplesmente no existe. A vida, ele pensava, um desfile de mscaras e a questo no se livrar delas, j que so as mscaras que nos elevam ao nvel da linguagem e que, portanto, nos tornam humanos. A questo, bem diferente, e bem mais complexa, saber lidar com elas. E no vacilar espera do rosto "verdadeiro", que no conseguiremos ver. Esse o grande engano dos escritores realistas erro brutal daqueles que pretendem fazer da literatura um veculo de acesso verdade ou, pelo menos, de

desmascaramento da verdade. Tiramos uma mscara, e outra, e mais outra e nesse arrancar sem fim, o que nos surge no se parece nem um pouco com a verdade. Se a verdade alguma coisa, ela apenas esse arrancar interminvel de mscaras. Entre os aforismos de Luigi Pirandello, reunidos por Gino Ruozzi a partir da leitura de suas peas e narrativas, existe um que me interessa em particular. Aqui o traduzo precariamente, com meu italiano vacilante (apenas mscara do italiano!). Diz Pirandello: "O absurdo da vida no tem necessidade de parecer verossmil, porque verdadeiro". Oh frase! Volto ao dicionrio: verossmil aquilo que "semelhante verdade", "que parece verdadeiro". a verdade provvel, mas sob a qual resta sempre uma larga margem de dvida, de inconsistncia, de suspeita. O que nos diz Pirandello? Que a verdade no precisa "parecer verdadeira", porque verdade j . Em outras palavras: que a verdade, em geral, no se parece com a verdade!! Ela no tem as caractersticas estabilidade, certeza, clareza que em geral atribumos verdade. Ela estranha, e provoca suspeita. Logo: a verdade no se deixa pegar, no se deixa fotografar, no se deixa definir. Cada vez que arrancamos uma mscara, ns apenas nos aproximamos um pouco mais dela, o que bem diferente de chegar at ela. Isso, claro, coisa que nem sempre suportamos. Queremos sempre, desde meninos, uma verdade serena, previsvel, que combine com nossas expectativas e que nos deixe vontade e seguros. Aquela verdade que, na primeira infncia, numa falsificao indispensvel, nos dada pela figura poderosa da me. Pirandello trata disso em um belo conto, "Retorno", que est em O marido de minha mulher, coletnea de doze narrativas breves que esto chegando ao mercado brasileiro em traduo de Jacob Penteado, pela Odissia Editorial. H outra bela reunio de contos do escritor italiano, Kaos e outros contos sicilianos, em traduo de Fulvia Moretto, publicada pela Nova Alexandria em 2001. Os dois livros oferecem exemplos notveis da arte do conto. E da dana louca de mscaras que sustenta toda literatura. Mas vamos ficar em "Retorno". A leitura do conto me faz lembrar o comentrio de Maurice Blanchot a respeito de Franz Kafka: "Kafka queria destruir sua obra porque acreditava que ela estava destinada a reafirmar e engrandecer o mal-entendido universal". Foi o sonho de escapar da perfeio de escapar da verdade irretocvel que o levou a pedir ao amigo Max Brod, pouco antes de morrer, que queimasse tudo o que escreveu. Kafka temia ser santificado. Temia que seus escritos viessem a ser lidos como lies luminosas e verdadeiras. Felizmente, Brod no o atendeu. "Retorno", o conto de Pirandello, se d em torno de um mal-entendido. Eles ameaam os escritores, como Kafka mas, ao mesmo tempo, so a matria prima de seus escritos. Vamos ao conto. Depois de muitos anos, Paulo Marra volta ao "triste povoado ao alto da montanha" em que nasceu. Vai direto at sua casa de infncia, que encontra em runas. Ao reencontrar seu passado, em vez de sentir felicidade, Marra sente "mgoa e nusea". Mgoa, desgosto, porque tem a sensao de que seu passado lhe foi roubado. Nusea, repugnncia, porque no pode aceitar a casa desolada e semi-destruda que v. Algumas mulheres conversam sentadas em pedras que rodeiam a casa. Sua vontade expuls-las (mas a casa no lhe pertence mais!) e precisa controlar esse sentimento. Marra sente que a presena daqueles estranhos lhe rouba o direito de experimentar o desencanto e a mgoa que dominam suas recordaes. Mgoa de qu? De no ver o que esperava ver. No s de que no corresponda ao que esperava, mas at mesmo desminta o que acreditava que ia ver motivo, afinal, de seu retorno aldeia. Passado carregado de duras recordaes, como as violncias que o pai praticava contra a me que, frgil, morreu depois de um espancamento. "Agora, voltando, depois de tantos anos, terra natal, no tinha sido reconhecido por ningum", Marra constata. todo um passado, cheio de feridas, que lhe roubado. E por qu? Por causa da aparncia da mscara que o tempo colocou sobre seu rosto. "Somente um tal se aproximara, um que ele nem podia imaginar quem pudesse ser". O que significa dizer: tambm ele, Marra, roubava, daqueles moradores que persistiram na aldeia, no s seu passado, mas sua identidade. Fazia com eles o mesmo que faziam consigo. S um homenzinho estranho o reconhece. Marra pensa que o sujeito se parece com o diabo. Isto , com a pior ameaa. Logo percebe, no entanto, que se deixa vencer pela imaginao. Pergunta-se o que o leva a fraquejar, a ceder a impresses, a deixar que a imaginao se apodere de sua mente. Percebe, ento, que a culpa que o assola, porque deixou o pai sim, o pai assassino morrer na misria, sem nada fazer por ele. A mscara do pai violento, nesse momento, cai. Algo tambm abala a memria pura que tinha da me. Mscaras por todos os lados, eis o que lhe resta. Eis tudo o que temos para amar, ou odiar. O belo conto de Pirandello pe em cena os aspectos vacilantes e ambguos daquilo que chamamos de admirao. Tambm o que chamamos, ao contrrio, de repdio. No se trata de escolher entre os dois, mas de livr-los da iluso de certeza. Nada bom, ou mau. O bem e o mal se misturam, se confundem,

se alternam, e nunca podemos nos decidir, com segurana, onde cada um deles est. Essa a potncia da literatura: lidar com esses paradoxos, sem precisar solucion-los, sem precisar tomar partido. o que os contos de Pirandello nos mostram. O Exerccio de Admirao que se segue inspira-se no livro homnimo do filsofo romeno E. M. Cioran (1911-1995). Os Exerccios de admirao de Cioran, traduzidos no Brasil por Jos Thomaz Brum, renem ensaios e prefcios do escritor, e tratam de admiraes fortes por Samuel Beckett, por Scott Fitzgerald, por Mircea Eliade. Cioran, o amargo, trabalha suas admiraes, porm, com distncia e prudncia. Primeiro porque admirar no significa idealizar, no significa exagerar. A admirao pode ser, como em Cioran, dura e at cruel. Depois porque, quando admiramos um escritor, nem sempre sabemos por que o fazemos; nem sempre conseguimos dar um nome ao que nos mantm "presos" a ele. Qual o segredo, qual o "impasse" (j que escritores no fornecem respostas) que nos puxa? Ento, como faz Cioran, transformar escritores em personagens pode nos ajudar a levar, e a eles tambm, para o terreno pantanoso e frtil da literatura. Inclu-los, em vez de exclu-los, no campo das palavras e das mscaras. Escritores so tambm, enfim, personagens. So mscaras, que circulam no meio literrio, na imprensa literria, na literatura, nas capas (mscaras!) dos livros. A descoberta, de aparncia atordoante, benfica. Ela nos d mais liberdade para escrever. Para, enfim, experimentar a mscara de escritor sabendo que outras mscaras continuam, ainda, nossa disposio. Para ser Outro ou, como me sugere a inspirada Rita, para vestir a mscara de Fulaninho. Para aceitar, enfim, que no existem rostos limpos, corretos e definitivos, s o dos mortos, e mesmo assim a terra os come. Nesse caso, a crtica literria fica por conta dos vermes e dos insetos.

Arquivo de apoio: 9948_of.contos.exercicio_5.doc (CONTOS.EXERCICIO_5.DOC - 20 Kb)aula n 6

Sexta aulaAnalisando o radicalismo de Clarice Lispector, que explodiu os conceitos de conto e romance, Jos Castello lembra que escrever mexer com algo que est alm de ns. O exerccio da semana demanda esse algo "alm". ______________ Hoje vou tratar de uma escritora radical. Uma mulher que explodiu no s nossas idias a respeito do conto, mas tambm do romance. Que expandiu at fronteiras impensveis a imagem que, em geral, mesmo nos casos extremos de James Joyce, Marcel Proust e Franz Kafka, temos a respeito da literatura. Sim, vou falar de Clarice Lispector que, para mim, sempre uma referncia inevitvel. E, para falar de Clarice e de sua estratgia literria quase suicida, pois ao ampliar os limites da literatura a prpria literatura que ela coloca em risco, vou tratar de dois dos contos mais enigmticos que escreveu: "O ovo e a galinha", que est em Laos de famlia, livro de 1960, e "O relatrio da coisa", de Onde estiveste de noite, de 1974. A primeira impresso que se tem a de que ambos no so contos. Talvez no sejam nem mesmo literatura. Clarice leu "O ovo e a galinha" em um congresso de bruxaria, em Bogot. "O relatrio da coisa" j mereceu o interesse de filsofos e tambm de psicanalistas que pouco ou nada se interessam pela literatura. Ser "O ovo e a galinha" um texto mstico? Ser mesmo "O relatrio da coisa" uma pea de fico? Mas, se no so contos, o que eles so? L estamos ns, de novo, no impasse interminvel: o que vem primeiro, o ovo, ou a galinha? O que vem primeiro? Os contos realmente existentes, ou nossa idia do que um conto deva ser? Clarice nos deixa, sempre, diante de perguntas incmodas. Quando escrevia, a ltima coisa que a preocupava era preencher uma forma, corresponder a expectativas, cumprir com esmero preceitos tcnicos, reforar ou confirmar tradies. Pouco se interessava, tambm, em se opor s tradies, em contest-las, em destru-las. No escreveu para chocar, ou para agredir, ou para desmentir. A relao de Clarice com a literatura estava acima dessas circunstncias e dessas estratgias que, por hbito, associamos ao literrio. "Por que escrevo? E por que bebemos gua?" ela comparava. Os modelos, as tradies, os cnones no passam de "desculpas", Clarice pensava, que usamos para ousar escrever. So, no mximo, pontos de partidas, que no podem se transformar nem em obsesses

positivas (coisa do "bom aluno"), nem em exemplos negativos (coisa do "aluno rebelde"). Em literatura no existe a nota 10, ou a nota zero. Nem aprovao, nem reprovao. Existe coragem, ou no existe. Ou bem o escritor encontra e se aferra a sua prpria voz, ou fracassa. Se desistirmos das iluses literrias, temos enfim a chance de ler os contos de Clarice, mesmo os mais difceis e enigmticos, com alguma liberdade. Sem esperar encontrar nada, sem desejar nada, sem exigir nada simplesmente ler, e "sofrer" do que lemos. Quanto mais desarmado um leitor se aproxima de um livro, melhor poder l-lo. No s o escritor que deve ser livre, o leitor tambm. Eles so as duas pontas do que chamamos de literatura. Ela no existe sem nenhum dos dois. J disseram, algumas vezes, que minha viso da literatura "idealista", pois no me preocupo com os cnones, com as leis de mercado, com as modas literrias, com os princpios tericos, com as tendncias e as escolas. Mas penso o contrrio: idealistas so os outros, no eu. Idealistas partem do antigo modelo platnico: h um ideal impecvel que paira sobre ns, e nosso destino cumpri-lo, ou reproduzi-lo, e nada mais. Muitos acreditam que, agindo assim, submetendo-se a cnones e s modas e s ltimas leis da teoria, agem de forma sensata e realista. Pois acredito, ao contrrio: que agem da forma idealista mais escandalosa. Que perdem o cho. Quem no idealista, nada idealiza, nada espera. E esse "nada esperar" a melhor atitude para um leitor. Oferecer-se, livre, de peito aberto, para o "tiro" disparado pelo livro que abre. Entregar-se, sem desejos e sem ideais. Idealista , ao contrrio, quem pensa que a literatura deve ser isso ou aquilo, que deve provocar tal ou tal coisa, que deve lidar com tais princpios, ou tais estratgias. Estes, sim, vem a literatura como a repetio montona e no mximo "brilhante", no mximo "bem escrita" de um modelo. Como "resultado" e no como aventura. E, para mim, literatura antes de tudo aventura. Os escritores tambm precisam esquecer dos modelos, ou no tero liberdade para escrever. Clarice Lispector no tinha modelos. No os cultivava. No se interessava por eles. Seus livros partem de anotaes vagas, que ela tomava ao acaso, em tiras de papel, guardanapos, folhas de jornal, sempre na mais absoluta solido. Escrevia por impulsos, por ondas, por jatos, sem uma direo pr-estabelecida, sem esboos, sem estratgias. Abdicava do controle sobre o que escrevia, entregava-se ao que viesse, fosse o que fosse. E sabia aceitar o que lhe vinha, por menos que compreendesse o que lhe vinha. Est tudo em seus contos. Basta ler "O ovo e a galinha", um dos mais radicais que escreveu. "De manh na cozinha sobre a mesa vejo o ovo", ela comea. Frase terrvel para comear um conto, frase que parece imprestvel. Intil e at perigosa. Como tirar uma histria disso? Mas Clarice avana: "Olho o ovo com um s olhar. Imediatamente percebo que no se pode estar vendo um ovo". E o conto comeou. Dessa impossibilidade, e no de um ato, de uma ao, de um feito, ele comeou. Surgiu de um nada. Surgiu da estupidez de um ovo. Pronto: de um ovo, do simples ovo de uma galinha, Clarice parte para uma reflexo sobre a percepo. Um ovo: olhamos para um ovo, qualquer ovo, e ele "" todos os ovos. Ovos no tm nome, no tm identidade, no se distinguem, a no ser por coisas muito insignificantes como a cor, ou o tamanho. "O ovo no tem um si-mesmo. Individualmente ele no existe", Clarice diz. O ovo a "Coisa". Ou, como preferia dizer s vezes, o "Isto". o "It", dizia tambm. Maneiras que tinha para chamar o que lhe escapava. "It" pronome neutro que, no ingls, fala das coisas sem gnero. Fala das coisas. "Isto" nos faz lembrar o "Isso", outro nome que os psicanalistas do ao "Id", a parte mais profunda do psiquismo, na qual se movimentam materiais sob os quais no temos controle algum. "Coisa": "objeto inanimado, aquilo que existe", diz o dicionrio. Existe e s: isso lhe basta. A viso do ovo da "Coisa" sobre a mesa leva a narradora a refletir sobre o perigo da repetio. O ovo tem uma casca, e essa casca se repete. S tem exterior e, no entanto, "o ovo a alma da galinha", ela diz. Mas tambm podemos pensar o contrrio: a galinha pode ser o disfarce do ovo, sua fantasia, sua mscara. Aquilo que o protege e lhe permite atravessar o tempo sem se quebrar. Aquilo que, apesar de tudo, persiste como uma pedra, como um planeta. Estamos na terceira pgina e o que aconteceu at agora? Nada. Tudo o que aconteceu est na primeira linha: "De manh na cozinha sobre a mesa vejo o ovo". Essa frase, a rigor, "" o conto. O resto, todo o resto, o conto inteiro, uma reflexo sobre o prprio conto. Quero dizer com isso: uma reflexo sobre a literatura. Sim, "O ovo e a galinha" um texto crtico. , de certo modo, mais crtica literria que fico. Nela, como faz tantas vezes, Clarice reflete sobre o papel das palavras. Para que servem? Para apontar, ou para encobrir? Para revelar, ou para esconder? Se que servem para alguma coisa. Narrar fazer essas perguntas, nelas persistir. E, no entanto, Clarice no se arrisca no ensaio, Clarice persegue sua

personagem e persiste em seu projeto de fico. No abre mo da literatura, mesmo se atirando fora dela. Do ovo, a narradora de Clarice (Clarice?) parte para uma reflexo sobre a galinha, uma ave em geral desprezada, tratada como sonsa e insignificante, uma ave sem atributos. Seu nico atributo o ovo. A galinha, ela diz, vive em um grande sonho, vive em estado de devaneio isto , uma ave incapaz de pensar, incapaz de se conectar com o real. "A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecida da galinha o ovo". Por sofrer (e apesar de todas as galinhas parecerem sempre a mesma galinha), a galinha tem uma alma, pois na verdade s tem vida interior. No exterior, ela s uma galinha qualquer, isto , ela s a casca da galinha. "A nossa viso de sua vida interior o que ns chamamos de galinha", a narradora diz. Mas, embora s tenha vida interior, a vida pessoal da galinha no tem interesse algum. A vida interior da galinha o ovo. E mais nada. A galinha existe para servir o ovo, "por isso uma galinha no pode ser feliz". Da meditao sobre a galinha, Clarice salta (que abismo!) para uma meditao sobre o amor. O amor o reconhecimento. aquilo que a galinha incapaz de sentir o que uma galinha no . Quanto ao mais, somos apenas veculos da prpria vida, e nisso nos assemelhamos s galinhas. "O meu mistrio eu ser apenas um meio, e no um fim", ela escreve. Somos to transitrios e estpidos quanto as galinhas. E disso, enfim, que fazemos literatura, como tudo o mais. Por isso, a galinha precisa esquecer do ovo: para que possa ser. Ns homens, do mesmo modo, temos que esquecer da obra e da mitologia que a cerca, a da Grande Obra, para que a obra possa existir. Clarice faz aqui no s uma defesa do esquecimento, mas da ignorncia. "O que me revela que talvez eu seja um agente a idia de que meu destino me ultrapassa", diz. Destino, obra. Literatura. Escrever mexer com algo que est alm de ns. No engrandecer-se, ao contrrio diminuir-se. Se nos damos conta de que somos apenas poeira dentro de uma enorme galxia, diminumos. Somos massacrados. Mas isso nos fornece nosso lugar. O ponto de onde podemos partir, dele e de mais nenhum. A galxia nos carrega, nos "". Somos, como a galinha, agentes de algo ou algum que desconhecemos e que no dominamos. Falamos (escrevemos) para esquecer essa submisso de que no podemos escapar. Falamos muitas vezes no automtico cacarejamos. O ovo a obra , ento, o impossvel, Clarice nos leva a ver. A galinha s consegue botar ovos porque indiferente a eles. Essa indiferena tambm fora da criao humana, e, portanto, da criao literria. Isso no significa no trabalhar, no lutar, no se empenhar. Significa que, antes disso, h um momento em que o esquecimento e a meditao se sobrepem ao suor e ao trabalho. Tornam-se mais fortes que o prprio autor. Autor? Mas como garantir que somos donos do que escrevemos? Inspirao? Nada disso, a palavra velha e intil. Se for para tomar uma imagem fsica, podemos falar (bem melhor) em expirao, o ato de expulsar o ar dos pulmes, de expulsar aquilo que temos dentro de ns e que nem sabemos o que . A leitura do segundo conto, "O relatrio da coisa", provoca reflexes muito parecidas, e to angustiantes. Conto (conto?) em que Clarice, exatamente como faz em romances geniais como A paixo segundo G.H. e gua viva, escreve no para fazer literatura, mas para arriscar-se alm dela. "O meu jogo aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatrio a antiliteratura da coisa", adverte logo no terceiro pargrafo. Desistncia da literatura ou, ao contrrio, expanso da noo restrita e medrosa que temos normalmente da literatura? Creio que Clarice poderia repetir, aqui, as palavras de Franz Kafka em uma das cartas a Felice: "Todo o meu modo de viver est orientado exclusivamente para a criao literria. O tempo escasso; as foras so exguas; o escritrio um pavor e o lar ruidoso". Escreve-se apesar do cotidiano. Apesar dos obstculos. Apesar de ns mesmos. Kafka, de alguma forma, compartilhava da idia de literatura que, em "O relatrio da coisa", Clarice expressa. Anti-literatura, ou anti alguma coisa que, em geral, consideramos "literria", mas que literatura, a rigor, no ? Clarice como Kafka via-se como um campo humano (um campo espiritual) em que se defrontavam foras antagnicas. De um lado, o social (o "G. H. at nas valises"), mscara da mulher, da escritora, da autora. De outro, esse sujeito pequeno que sofre a presso da "Coisa", que no passa de um joguete em suas mos. Que se expe ao risco e que faz dessa exposio uma maneira de existir. Uma maneira de escrever. Neste segundo conto, em vez de um ovo, Clarice parte de um relgio, da marca "Sveglia" "o que (em italiano) quer dizer acorda", ela lembra. O relgio uma coisa. Por ser uma coisa, ele leva a narradora a se perguntar se ela tambm uma coisa. Ele a "acorda". A coisa denuncia a inconstncia do humano. Escreve: "Eu creio no Sveglia. Ele no cr em mim. Acho que minto muito. E minto mesmo. Na Terra se mente muito". Existir mentir portar mscaras, desempenhar papis, adaptar-se a situaes, defender-se do pior. Escrever mentir tambm. Pessoa e seu verso fabuloso: fingir que sente a dor que

deveras sente. Mas onde est a histria? Onde est o conto? E onde Clarice pretende chegar? Ela deixa claro, desde as primeiras linhas: no sabe. Deixa-se arrastar pela objetividade de um relgio, da "Coisa" e a "Coisa" ento que toma o lugar de personagem, que se expe ao relatrio e se torna objeto da escrita. "Sveglia no admite conto ou romance, o que quer que seja. Permite apenas transmisso. Mal admite que eu chame isto de relatrio. Chamo de relatrio do mistrio". Transmisso de qu? Da perplexidade que escrever. "O relatrio da coisa" uma transmisso da experincia da impossibilidade da escrita. Mas s porque impossvel, s porque ningum consegue (como se marca um gol, ou se ganha na loteria, ou resolve um problema matemtico), s por isso continuamos a fazer. Sveglia (a coisa) "apenas ". E esse "apenas " que "O relatrio da coisa", e tambm toda a literatura magistral de Clarice, toma como objeto. Estranho projeto: o de tomar como destino um ponto em que jamais se chega. Ento, com uma obscuridade que apenas finge clarear, a narradora de Clarice (Clarice?) passa a dizer o que Sveglia, e o que no . Passa a classificar o mundo e a apontar a gratuidade, a inoperncia, a futilidade das classificaes. Comea seu relatrio. "O galo Sveglia. O ovo puro Sveglia. Mas s o ovo inteiro, completo, branco, de casca seca, todo oval". O ovo novamente, imagem que retorna sempre, at nas narrativas infantis de Clarice (penso em "A vida ntima de Laura, a galinha"). "No ter nenhum segredo e no entanto manter o enigma Sveglia", prossegue. Sveglia o silncio. E, diante da "Coisa", tudo o que lhe resta como escritora o relatrio, e no a literatura. "J te odeio. J queria poder escrever uma histria: um conto ou romance ou uma transmisso. Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que no escreverei mais nada". Clarice escreve sobre o impasse no s "a cerca" dele, mas "em cima" dele. Posso dizer mais: dentro dele. Contos? difcil incluir "O relatrio da coisa" e "O ovo e a galinha" nos modelos de conto de que dispomos. No entanto, os dois se incluem em livros de contos, importante e festejados livros de contos. So contos que explodem a literatura e explodem a prpria idia de conto. Mas cuidado: no so ensaios, no so divagaes, no so confisses, no so "pensamentos", ou "anotaes", ou "desabafos". Fossem s isso e no nos interessariam, no nos iluminariam. Quando os lemos, mesmo diante de personagens que apenas falam e que se escondem nas palavras, estamos diante da "Coisa". A vida pulsa na escrita de Clarice. Alguma coisa autnoma, e muito bem construda, e que bem mais que um punhado de palavras soltas, nos seduz. Clarice no tinha nenhuma dvida, nenhum "respeito" pela literatura, e por isso se deu tanta liberdade, se permitiu escrever como quis e, mais que isso, como era. o exerccio difcil que proponho a vocs nessa semana. Que partam de uma histria simples, que lhes dou por itens, como num relatrio, e a partir delas, numa exploso, cheguem a alguma coisa mais que no seja a histria. Mas ateno: o que devem escrever um conto. Por mais que avancem e se desviem das normas, devem se conservar (como faz Clarice sempre) no terreno da fico. Arquivo de apoio: 1162_of.contos.exercicio_6.doc (CONTOS.EXERCICIO_6.DOC - 20 Kb)aula n 7

Stima aulaNa stima aula de sua Oficina Literria, Jos Castello parte de dois dos mais importantes contos da literatura brasileira para tratar de qualidades essenciais ao escritor: estabelecer e dominar ambigidades. ______________ Parto hoje de dois dos contos mais importantes da literatura brasileira na segunda metade do sculo 20. Falo de "Feliz ano novo", de Jos Rubem Fonseca, que est no livro homnimo de 1975. Relato atordoante que, para bem e para o mal, marcou um grande nmero dos contistas surgidos a partir dos anos 70. E de "Feliz aniversrio", conto de Clarice Lispector includo em Laos de famlia, livro de 1960. Um dos mais brutais e perturbadores relatos escritos por Clarice. Dois contos geniais, duas vises divergentes a respeito da felicidade. E duas vises antagnicas, mas igualmente radicais, a respeito da arte do conto e da prpria literatura. Duas provas indiscutveis de que, em literatura, quanto mais se diverge da norma, quanto mais o escritor se desvia e "erra", mais forte a escrita . A contraposio entre eles, que venho experimentar nesta aula, abre uma fenda pela qual podemos vislumbrar uma infinidade de caminhos. Quebra nossas certezas a respeito do que o literrio, lana-nos no terreno da dvida e da suspeita instaura, enfim, a literatura.

Rubem Fonseca escreveu "Feliz ano novo" nos anos mais tortuosos da ditadura militar e do espectro, por ela criado, de um Brasil Grande. Seu conto tem uma estrutura fotogrfica, seno cinematogrfica, do submundo carioca. duro, grosseiro, brutal, desagradvel, mal escrito at e desses elementos difceis, supostamente negativos, que a grandeza do relato surge. Noite de reveillon, as famlias se renem para a festa, vestem suas melhores roupas, empanturram-se de assados e doces, danam uma alegria que se avizinha hipocrisia e tambm depresso. "Travestem-se" com roupas que esto, provavelmente, acima de suas posses e de sua realidade. Fantasiam-se. O Ano Novo, na verdade uma simples mudana no calendrio, no passa de uma das mais fortes fantasias modernas a respeito da felicidade. No Brasil da ditadura, pas dividido entre o Bem e o Mal, os que se deliciam com a riqueza nada querem saber a respeito dos que resistem na misria. Dois mundos, dois Brasis. Ignorando esse abismo, ultrapassando-o, Rubem Fonseca transporta para a literatura os marginais, assaltantes, desviantes, homens que nada tm a perder, porque nada ganharam do milagre brasileiro. "Feliz ano novo" narrado de modo seco, realista, direto. Dilogos sem meias palavras, frases rpidas e mal estruturadas, clichs, palavres, desespero a linguagem chula e inculta dos derrotados. A ao veloz, as decises impulsivas, os atos impensados. Os pargrafos curtos indicam um tipo de respirao quase animal, da qual o pensamento parece excludo. As respostas e idias surgem, sempre, sob a presso do imediato. No existem vos, meditaes, reflexes, mediaes. Tudo muito duro e objetivo. E a leitura nos atinge como um soco. At que, em um carro roubado, os marginais chegam a So Conrado, um bairro de grandes manses. Mascarados, com meias femininas enfiadas no rosto, eles invadem uma festa. A partir da, Rubem Fonseca se detm no relato quase cirrgico da violncia. E nos transporta para o interior do mal. No s violncia fsica, mas psicolgica, moral, sexual. O relato do assalto manso feito em palavras secas. Ao, pura ao, sem nada de muito sensacional, a no ser a fora atordoante das pequenas violncias. Sim, h morte, brutal, mas tudo se iguala, de certo modo, aos rituais de um teatro pragmtico to pragmtico quanto o dos homens que jogam na Bolsa, ou negociam nas agncias bancrias. Os assaltantes tm tudo o que querem. Felizes, retornam ao morro. Bebida e comida roubadas so dispostas sobre uma mesa. O conto termina no momento em que eles, imitando suas vtimas, brindam um "feliz ano novo". Em que experimentam uma felicidade roubada. Sem divagaes, sem o desejo de dar lies, Rubem Fonseca retrata uma felicidade que ambgua e confusa. Felicidade que carrega a morte e, tambm, a infelicidade. J em "Feliz aniversrio", o conto genial de Clarice, a infelicidade a matria secreta que perturba e lateja na felicidade de uma festinha de 89 anos. A famlia, vinda do subrbio, mas tambm de Ipanema, chega aos poucos a Copacabana para a festa de D. Anita, a quase nonagenria. Cadeiras dispostas ao longo das paredes, uma mesa tpica de festa de famlia, guardanapos coloridos, bales, groselhas e aluses ao "Happy Birthday". Logo depois do almoo, a aniversariante encarcerada em seu vestido de festa, com presilha, broche e um odor forte de gua de colnia. Em contraste com todas as manifestaes de carinho, admirao, afeto que recebe, a velha se conserva em silncio. Silncio enigmtico e ameaador. A barulheira de filhos e netos no a perturba. Vista de fora, s uma velha feliz, que se aproxima dos noventa, ainda inteira, cercada dos descendentes queridos que celebram sua longevidade, protegida entre os seus. No fundo, a velha despreza os seres opacos, azedos, infelizes que gerou. Sujeitos treinados s para macaquear a felicidade, enquanto sofrem por dentro sem nem mesmo perceber que sofrem. Seres que no suportam o pensamento, que lidam mal com os sentimentos e para quem a vida nada mais que a sustentao de um script. At que, para expulsar todo o nojo que carrega dentro de si, num impulso, como um rapazola tolo, a velha cospe com fora no cho. Cospe sua indignao, seu dio, todos os sentimentos que, por cansao, por tdio, j no transforma mais em palavras. Cospe para, assim, falar. Depois, muito serene, pede um copo de vinho e reage dura aos que argumentam que o lcool pode no ser saudvel para uma "vovozinha". As reaes violentas da velha como a ao rspida dos assaltantes no conto de Rubem Fonseca interrompem antecipadamente a festa. O ritual ainda se estende um pouco mais, os atores insistem e se esforam para se ater ao script dos aniversrios e sustentar uma felicidade que j foi escandalosamente denunciada. Felicidade que como um bolo mal batido desandou. Os filhos, que quase nunca se vem ou se falam, apressam-se nas despedidas. Um deles presenteia a velha com um doloroso e irnico "at o

ano que vem". Ao contrrio do conto de Rubem Fonseca, a festa no foi invadida por marginais, no foi tomada de assalto, ou destruda por foras violentas despachadas desde o exterior. Ao contrrio: de dentro da velha, de seu interior murcho, de seu universo psicolgico rangente e cheio de rugas, que o mal surge. O mal no pode aqui ser atribudo a agentes estrangeiros, no pode ser "sociologizado", no pode ser explicado por essa ou aquela teoria. No, a velha, pobre e deprimida velha, ela mesma o carrega. Todos o carregamos, s que o conservamos sob certo controle, disfarado em educao, em serenidade e, at, em alguma felicidade. Mas, em algum momento, sem que possamos perceber que ele se aproxima e nos ameaa, a mscara se racha e ento explode. Explode quase numa reao animal, como a cusparada da velha. E a no podemos culpar os outros, ou nos apegar a explicaes externas, temos que nos ver com ns mesmos. So duas histrias que tratam do mal. Na primeira, "Feliz ano novo", o mal vem de fora, uma agresso externa, que nos invade, saqueia, paralisa, mata. No algo que temos, mas algo de que sofremos. Algo que nos contamina. Na segunda histria, "Feliz aniversrio", ao contrrio, ele vem de dentro, vem de onde menos se espera do corao piedoso e venervel da velha aniversariante. Vem exatamente de onde no deveria estar. Contudo, nenhum dos dois contos nos oferece lies de moral. Nenhum dos dois conclui, ou nos leva a concluir isso ou aquilo. Rubem Fonseca mostra a violncia e a fria dos miserveis que invadem a festa, mas mostra tambm a futilidade, a irrealidade, a soberba de suas "vtimas". De modo que, ao final do relato, quase simpatizamos com os invasores que, em torno da mesa de Dona Candinha, se preparam para devorar sua ceia roubada. Mas tambm no chegamos a ter simpatia, no aderimos inteiramente a eles, porque o mal-estar causado pela leitura das pginas anteriores, repletas de violncia, no permite isso. Em outras palavras: estamos diante de personagens que levam nosso bom senso a fracassar. O bom senso e as solues prontas j no funcionam, preciso arriscar-se a pensar e, ainda mais, arriscar-se a suportar os paradoxos. Tambm a velha de Clarice Lispector, se desperta nossa simpatia pela coragem e pelo olhar crtico que despeja sobre os sentimentos burocrticos de sua famlia, e ainda pelo modo como se contm at que, no cabendo mais em si, transforma todas as palavras que lhe entravam na mente numa grosseira cusparada, desperta, tambm por isso, e pelos sentimentos duros, e pela sua burocracia interior (ao fim do relato, tudo o que se pergunta se haver jantar...), nossa repulsa. Ou, pelo menos, provoca em ns, leitores, uma srie de sentimentos ambguos e incompatveis entre si. A riqueza dos dois contos est justamente a: eles no s no oferecerem, mas tambm no permitem qualquer tipo de soluo. Em vez de fecharem o caminho do leitor com uma moral, uma lio, uma teoria, uma tese eles a rasgam, a ampliam, a libertam. Histrias breves e de aparncia simples, elas nos conduzem a sentimentos paradoxais que, ao fim, s nos resta suportar. invivel por isso mesmo qualquer tentativa de enquadrar os dois contos no velho estilo do bangue-bangue, hoje encenado em narrativas to populares como as de Harry Porter, em que o Bem luta contra o Mal. E nas quais, no fim, um lado triunfa, enquanto o outro esmagado. No, o Bem no est aqui, e o Mal ali. A moral, as boas lies, as apologias e as condenaes sumrias no cabem na literatura. Se nela aparecem, a estragam e a simplificam. Ou bem o escritor pode suportar a ambigidade e o horizonte que se abre ao fim de um relato, ou melhor que faa outra coisa.

Arquivo de apoio: 1632_of.contos.exercicio_7.doc (CONTOS.EXERCICIO_7.DOC - 20 Kb)aula n 8

Oitava aulaNa oitava aula da Oficina de Contos vemos que a literatura feita mais de perguntas do que de certezas. Jos Castello recorre a ensaios de Ernesto Sabato para mostrar as vantagens de um caminho "inseguro" para o escritor. ______________ Volto aos argentinos sempre a eles. Temos no Brasil, claro, escritores estupendos. Mas, afora uma minoria, a maior parte deles, por uma tradio algo misteriosa, se esquiva de pensar abertamente a literatura que pratica. Existem, evidente, as grandes excees. Escritores como Raimundo Carrero, Autran Dourado, Silviano Santiago, Joo Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, Srgio Sant'Anna e Fernando Monteiro esto sempre a pensar, e a falar abertamente a respeito do que pensam. Tenho certeza de que

esqueo de outros, e lhes devo desculpas por isso. Entre os mortos, Osman Lins, o grande romancista de Avalovara, enfrentou de frente, sempre, esse desafio. Um poeta como Joo Cabral nunca dele se esquivou. A maioria, no entanto, por certo faz suas reflexes na intimidade, protegidos pelo silncio dos escritrios e da meia-luz, em sua luta diria com a pgina em branco. Sem pensar sobre o que escreve ningum consegue escrever. Mas domina entre os escritores, em geral, a idia incmoda de que no devem falar a respeito do que fazem. Seria como quebrar a magia, como um mgico que revela seus truques. Essa tarefa caberia aos crticos, aos leitores especializados, aos jornalistas literrios, jamais a eles. "Escritores escrevem. O que pensam, ou deixam de pensar, est em seus livros", ouvimos com muita freqncia dizerem. Abdicam, assim, de seu direito de interferir no debate literrio. Roubam do leitor, ainda, a possibilidade de compartilhar suas reflexes. Mesmo assim, quando so entrevistados, exibem, muitas vezes, idias fortes e originais. Contudo, em livros, ou de forma mais sistematizada, arriscam-se menos, ou quase nunca. Em seus prprios escritos literrios conservam essas reflexes latentes, ou submersas. Fingem que elas no existem, que no esto ali. S acredita nisso quem quer. Todo romance, livro de contos, de poemas, traz em seu interior um conjunto de idias a respeito da literatura. Todo livro uma tomada de posio a respeito da literatura e tambm do mundo. Escrever fazer escolhas e correr riscos. Da a prtica da literatura envolver perigo e, em conseqncia, despertar medo. E a verdade que, desde o sculo 20, os argentinos se arriscam bem mais. Ou, pelo menos, tm menos pudor em expor e compartilhar os riscos que correm e as ameaas que enfrentam. Entre eles, destaco o nome de Ernesto Sabato. Suas idias esto espalhadas em muitos livros entre eles Homens e engrenagens, lanado entre ns pela Papirus em 1993; O escritor e seus fantasmas, traduzido pela Companhia das Letras em 2003; e Antes do fim, que a mesma editora lanou em 2000. E ainda em A resistncia, livro que ela planeja lanar em 2008. Mas o que mais me impressiona entre eles Heterodoxia, ensaio de 1953, que a Papirus traduziu no Brasil em 1993. simples: o ensaio de Sabato uma enftica defesa do pluralismo, da divergncia, da surpresa, do antidogmatismo e todos esses fatores imprevistos que so decisivos no trabalho do ficcionista, seja ele romancista, ou contista. Nascido em 1911, em Buenos Aires, Ernesto Sabato fez um caminho incomum at a literatura: antes de se tornar escritor, cursou um doutorado em Fsica, na Universidade de La Plata. Em 1938, viajou para Paris, para trabalhar, como fsico, no Laboratrio Curie. Cinco anos depois, aos 34 anos de idade, tomou uma deciso sbita e grave: abandonou a cincia para se dedicar exclusivamente literatura. Seu primeiro livro, Uno y el Universo, que marca sua estria de escritor, de 1945. Cinco anos antes de publicar Heterodoxia, Sabato lanou aquele que , at hoje, seu romance mais importante, O tnel, tambm j traduzido no Brasil. Heterodoxia um livro de fragmentos. Uma coleo de notas dispersas e comentrios anotados ao sabor das circunstncias, captulos de no mais que meia dzia de pargrafos cada uma, que tratam de temas to distantes quanto a bissexualidade, o medo do caos, as ansiedades, o pessimismo, a importncia da simplicidade e a tradio dos romances policiais. Aprecio, antes de tudo, a disposio de Sabato para pensar com liberdade, desordenadamente, o modo como se permite flutuar sobre as idias, a coragem com que convoca temas difceis e perturbadores e os enfrenta com uma postura desarmada e criativa, o esprito errtico e nebuloso com que escreve seus livros. Coragem que caracteriza, em geral, o trabalho dos escritores, sempre metidos em impasses que no escolheram, lidando com idias que surgem sem que saibam de onde, seguindo caminhos que no conseguem ver, e nem mesmo nomear. Aprecio, portanto, a coragem que Sabato tem de interrogar, de suspeitar, de colocar em dvida e de querer saber. Ele no est interessado em criar sistemas, em estabelecer normas ou esquemas, em ordenar ou modificar o mundo, em classificar e discriminar. Tudo isso deixou para os cientistas. Sabe que a literatura outra coisa, que