oiro de minas - a nova poesia das gerais

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SOBRE O REINO DE PASÁRGADA Pasárgada, adj. 2 gén. Relativo ou pertencente a Pasárgadas. S. 2 gén. Natural ou habitante dessa cidade. Pasárgadas, primeira capital da Pérsia, que se dizia ter sido funda- da por Ciro, ao N.E. de Persépo- lis; hoje Murghab (Lello Universal Dicionário Enciclopédico Luso-Bra- sileiro, Lello & Irmão Editores, Porto, 1980, 2: 472). Manuel Bandeira conta no seu livro Itinerário de Pasárgada: “Vou-me embora p’ra Pasárgada!” Foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome Pasárgada quando tinha os meus dezasseis anos e foi num autor grego… Esse nome de Pasárgada que significa “campo dos persas” ou “tesouro dos persas”, sus- citou na minha imaginação uma pai- sagem fabulosa, um país de delícias, como o de “L’invitation au voyage” de Baudelaire. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora p’ra Pasárgada” Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e ten- tei realizá-lo, mas fracassei. Já nesse tempo eu não forçava a mão. Aban-

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organização: Prisca Agustoni

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  • SOBRE O REINO DE PASRGADA

    Pasrgada, adj. 2 gn. Relativo oupertencente a Pasrgadas. S. 2 gn.Natural ou habitante dessa cidade.Pasrgadas, primeira capital daPrsia, que se dizia ter sido funda -da por Ciro, ao N.E. de Perspo -lis; hoje Murghab (Lello UniversalDicionrio Enciclop dico Luso-Bra -sileiro, Lello & Irmo Editores,Porto, 1980, 2: 472).

    Manuel Bandeira conta no seulivro Itinerrio de Pasrgada:

    Vou-me embora pra Pasrgada! Foio poema de mais longa ges tao emtoda a minha obra. Vi pela primeiravez esse nome Pasr gada quandotinha os meus dezas seis anos e foinum autor grego Esse nome dePasrgada que significa campo dospersas ou tesouro dos persas, sus -citou na minha imaginao uma pai-sagem fabulosa, um pas de delcias,como o de Linvitation au voyagede Baudelaire. Mais de vinte anosdepois, quando eu morava s naminha casa da Rua do Curvelo, nummomento de fundo desni mo, damais aguda sensao de tudo o queeu no tinha feito na minha vida pormotivo da doena, saltou-me desbito do subcons ciente esse gritoestapafrdio: Vou-me embora praPasrgada Senti na redondilha aprimeira clula de um poema, e ten-tei realiz-lo, mas fracassei. J nessetempo eu no forava a mo. Aban -

  • donei a ideia. Alguns anos depois,em idnticas circuns tncias dedesalento e tdio, me ocorreu omesmo desabafo de evaso davida besta. Desta vez o poemasaiu sem esforo, como se j esti-vesse pronto dentro de mim.Gosto desse poe ma porque vejonele, em es coro, toda a minhavida; e tam bm porque parece quenele soube trans mitir a tantasoutras pessoas a viso e promessada minha adoles cncia, - essaPasrgada onde pode mos viverpelo sonho o que a vida madrastano nos quis dar

    A propsito da pronncia de

    Pa sr gada:

    O conhecimento de que o s inter -voclico sonoro em portu gus,equiparando-se ao som do z, e amaneira como o topnimo estgrafado no Dicionrio Etimolgicode Antenor Nascentes (V,II), e,ainda, a nitidez do prprio ManuelBandeira no disco que gravou, nofim da dcada de 50 no deixamdvidas de que a pronncia como som de z. Creio que a tendnciapopular, hiperurbanista, de pro -nunci-la com s surdo deve sercon ta minao semntica e sonorado verbo passar, uma vez quePasr gada contm o sentido utpi-co de passar alm. (GilbertoMendona Teles, in Vou-meEmbora Pra Pa sr gada (poemasescolhidos), Jos Olympio Editora,Rio de Janeiro, 1986, X).

  • Oiro de MinasA nova poesia das Gerais

    Prisca AgustoniSeleco e prefcio

    Colaborao de Carolina de Oliveira Barreto e Andr Luz de Freitas Dias

  • 7DA MINERAO: SEUS MTODOS & ACHADOS

    Prisca Agustoni

    Para alm de suas dimenses continentais, a sociedade brasi-leira merece ser pensada a partir de suas mltiplas realidades cul-turais, polticas e econmicas. Estas, se por um lado geram confli-tos dramticos, por outro, revelam situaes em que sobressaemlies mpares de colaborao e solidariedade entre as pessoas.Diante dessa complexa perspectiva, entende-se que o pas expos-to nos espaos privilegiados dos mdia nacional e internacionalno responde pela diversidade que, de facto, o sustenta. Dito deoutro modo, um olhar crtico sobre a realidade brasileira demons-tra que o Brasil meditico no seno uma face entre outras (ins-tigantes e desafiadoras) da sociedade nacional. Esse tema leva-nosde volta dcada de 1950 e permite-nos observar que os doisBrasis, detectados naquela poca pelo socilogo francs JacquesLambert, j eram (e continuam sendo) vrios Brasis.

    Esse comentrio, brevssimo, de natureza sociolgica, nosparece indispensvel no momento em que se pretende justificaruma antologia de poesia brasileira contempornea. Primeiro, por-que no jogo das relaes literrias, as controvrsias em torno daorganizao de antologias carta por demais conhecida. H sem-pre motivos, com razes maiores ou menores, para que os auto-res seleccionados e os no seleccionados, bem como os crticos eos leitores, ratifiquem ou subestimem o trabalho do responsvelpela colectnea. Segundo, porque tratando-se de uma antologiade poesia brasileira contempornea, no esperamos outro enre-do, pois o que ora apresentamos um recorte deste cenrio po-tico e mais especificamente de uma das regies geogrficas dopas, o estado de Minas Gerais.

    Apesar das divergncias manifestadas nas opinies de poetase crticos, na poesia brasileira do sculo XX, possvel conside-rar-se trs linhas de fora, que se mantiveram at ao incio dadcada de 1980: a primeira, derivada da Semana de Arte Moderna,realizada em So Paulo, em 1922, caracterizou-se pelo esforo deactualizao da poesia brasileira em relao aos novos temas, for-mas e prticas em curso na Europa dos movimentos de vanguar-da; a segunda, por um desejo de conteno dos apelos das van-guarda propostos pelos modernistas; e a terceira, pelo experimen-talismo tcnico-formal do Concretismo.

    Evidentemente, essas linhas sofreram matizaes que, ao mes -mo tempo em que fixaram procedimentos, possibilitaram a emer-

    PREF

    CIO

  • 8gncia de traos distintivos de vrios autores. Na primeira linha des-tacaram-se, entre outros, Mrio de Andrade e Oswald de An drade.Deste, a gerao da chamada Poesia Marginal (final dos anos 1970)se apropriou do poema curto ou poema-piada, da linguagem inci-siva capaz de capturar os flashes do cotidiano. Na segunda verten-te, Ceclia Meireles e Pricles Eugnio da Silva Ramos recuperaramo tom elegaco de herana clssica. De modo particular, JooCabral de Melo Neto, includo nesta que foi chamada de Geraode 45, criou depois uma trajectria prpria, marcada por uma po-tica antilrica. A este, entre outros nomes, se referiram os mentoresda Poesia Concreta. Esta terceira linha de fora tem nos irmosHaroldo e Augusto de Campos e em Dcio Pignatari os articulado-res de uma potica em que palavra, som e imagem (potica verbi-vocovisual) combinam-se na construo do poema-objecto.

    A ttulo de exemplo, pode-se dizer que as matizes dessaslinhas desdobraram-se em poticas de largo flego individual,como a de Jorge de Lima ou dos mineiros Carlos Drummond deAndrade e Murilo Mendes, a partir do Modernismo de 1922; ou ade Affonso vila, a partir do experimentalismo dos concretistas.Esse processo estimulou a manifestao de poticas que incli-nando-se mais para esta ou para aquela vinculao esttica ou,mesmo, rechaando esta ou aquela , forjaram um mosaico devozes na poesia brasileira do sculo XX. difcil, portanto, dese-nhar uma cartografia dessas vozes, j que de norte a sul do paselas ecoaram com feies prprias, atravs de nomes comoFerreira Gullar, Manoel de Barros, Carlos Nejar, Afonso Romanode SantAnna, Max Martins, Hilda Hilst, Thiago de Melo e tantosoutros. O facto que tcnicas, heranas estticas e ideolgicasmanuseadas mediante expectativas individuais vm marcando apoesia brasileira moderna.

    Este painel teve sua traduo no contexto de Minas Gerais,onde poetas de diferentes geraes, para alm de trafegarempelas linhas de fora mencionadas (atravs dos j citadosDrummond, Murilo Mendes e Affonso vila, por exemplo), inter-feriram nelas para tecer sua prpria linguagem potica. Em fun-o disso, nomes como o de Emlio Moura, Abgar Renault, DantasMota, Henriqueta Lisboa, Las Corra de Arajo, Adlia Prado eAdo Ventura inscreveram-se com vigor na cena literria do pas.

    Diante do exposto, a tarefa de organizar a presente antologia,numa aluso ao ttulo que a encima, converteu-se num desafiosimilar aos dos mineradores, cujo ofcio se nutre do brilho dometal precioso encontrado ou por encontrar. No caso da antolo-gia, o sonho do eldorado foi substitudo por alguns critrios que,salvo engano, nos permitiram tocar algumas pedras raras e tam-

  • 9bm vislumbrar um veio maior, que o da poesia mineira e bra-sileira contemporneas.

    Ao nos debruarmos sobre a produo mineira contempor-nea, tornou-se evidente que a escolha do(s) critrio(s) de selec-o dos autores deveria embasar-se em algum elemento vincula-do mais recente histria da poesia brasileira. Ou seja, era neces-srio procurar, no diversificado e original painel de (novos) poe-tas surgidos dentro e fora de Minas, aqueles cuja obra comeou aganhar destaque a partir da dcada de 1980, aps a proliferaode vozes relacionadas esttica marginal e, sobretudo, aps o cr-tico momento poltico vivenciado pelo pas, que colocou sua cul-tura sob o jugo e a censura do regime militar, entre 1964 e 1985.

    Em decorrncia disso, seleccionamos para essa antologia aobra de poetas que reflectiram e tambm transformaram, na sub-til tessitura da linguagem, a riqueza das diversas vertentes estti-cas que os precederam. Procuramos destacar a pluralidade decaminhos trilhados pelos poetas, considerando no apenas a suaactuao como poetas mas, evidenciando, tambm, o modo comoeles estabeleceram a consolidao de um consenso crtico, para-lelamente aos seus processos de criao. Esse recorte nos parecerelevante, j que na actualidade a actuao do poeta e do intelec-tual no seio da sociedade reveste-se no s de aspectos relacio-nados a posicionamentos polticos, mas igualmente produode um discurso terico (muitas vezes estimulado pelas estruturasacadmicas) ou jornalstico, bem como organizao de eventos,espectculos e festivais nos quais reservado poesia e perfor-mance potica um espao privilegiado.

    Para nos referirmos ideia da consolidao de um consensocrtico, baseamo-nos em alguns dados objectivos, que atribuemparticular relevo s obras dos autores aqui seleccionados, quaissejam: a incluso de poemas em outras antologias, as tradues epublicaes em outros pases (em revistas ou antologias), os pr-mios literrios, as crticas e as resenhas que apontam a originali-dade e densidade da obra, etc. Com evidncia, nada justifica total-mente a escolha de um autor em lugar de outro, uma vez queestamos lidando com um universo o da experincia potica atravessado, em geral, pela subjectividade. No entanto, comosempre ocorre em casos similares, prevaleceu a necessidade de sefazer um recorte e de se indicar alguns critrios organizadores afim de dar presente antologia uma configurao.

    Considerados os pressupostos acima, encontramo-nos diantede um painel assaz rico quanto diversidade de temas e estilos.Os dez autores que aqui representam a nova poesia das MinasGerais revelam o seu rosto plural, um rosto to enigmtico e

  • 10

    camuflado quanto as minas ocultas nas montanhas da bela paisa-gem brasileira. pluralidade desafiadora desse painel soma-se ariqueza do microcosmo de palavras e smbolos que compem apotica de cada autor.

    Contudo, possvel garimpar e encontrar nessa diferenaalguns temas que perpassam, como uma coluna vertebral, a poe-sia mineira contempornea. E isso, talvez, por serem temas queesto presentes, desde a modernidade, na tradio lrica ociden-tal. Em termos gerais, a memria se perfila como um leitmotiv aoqual o sujeito recorre para extrair os elementos de uma histriapessoal construda sob uma perspectiva mtica. Nesse sentido arecuperao da mitologia um procedimento amplamenteempregue pelos poetas aqui apresentados para, ao se referirem auma histria e a um sujeito universais, edificarem a prpria mito-logia pessoal, nica e intransfervel. Uma mitologia porttil, medida humana, passvel de ser guardada num livro, num bolso,num verso.

    Se a memria, por um lado, particulariza uma experincia defeio ontolgica, por outro, a representao do espao fsico(muitas vezes, um lugar no nomeado, mas identificado comoalguma regio de Minas Gerais) ou mental se universaliza, graas palavra potica. Isso ocorre na medida em que o aspecto regio-nal (a gente, a fala, a natureza e os factos de Minas) se abre paraa representao de um lugar mtico, universal, recm surgido docaos, mediado e modelado pela palavra criadora, tal como lemosna ltima estrofe do poema Vicentim, reparador de livros, deFernando Fbio Fiorese Furtado: e posso mudar em verbo/ at altima paisagem.

    Outro tema recorrente, embora abordado de inmeras manei-ras nos poemas desta antologia, a cidade como lugar de passa-gem, de encontro e desencontro do indivduo. Uma vez mais,esse tema caro modernidade exibe nos versos dos poetas osseus flneurs contemporneos, sujeitos errantes que experimen-tam o estranhamento e o encanto. Essas vrias aproximaes cidade reiteram o facto dela se constituir como um lugar queengole e devolve outros espaos, reais ou mentais, um lugar noqual como recita o ltimo verso do poema Labirinto de RicardoAleixo o sujeito, custa de se perder, se reconhece. A solido,terceiro tema essencial, decorre ento da experincia urbana, masno somente dela. Ecoando o verso drummondiano mundo,vasto mundo, pode-se dizer que dele tambm se desprende umsentimento de solido. Nessa direco, os elementos da natureza(a pedra, a gua, o pssaro) so mensageiros desse infinito quealumbra e esmaga, com a sua potncia e beleza, o ser humano, e

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    sugerem, principalmente na potica de Eustquio Gorgone deOliveira, Donizete Galvo e Wilmar Silva, o enigma de um mundoindizvel atravs das palavras.

    A leitura atenta do conjunto de textos aqui propostos mostra-nos ainda uma grande abertura para o dilogo com as fontes lite-rrias mais variadas, ou seja, com vertentes culturais diferencia-das, privilegiadas por cada autor, como se ver a seguir.

    Uma adaptao contempornea dos traos marcantes doBarroco, assim como a manifestao de um sentir expressionistaemolduram os versos de Eustquio Gorgone de Oliveira, fazendocom que sua poesia no seja classificvel dentro de nenhuma dasvertentes tradicionais que caracterizaram a poesia brasileira dosculo XX. O mesmo pode ser dito sobre a poesia de JlioPolidoro, na qual o tom coloquial e irnico disfara habilmente ofundo filosfico ou existencialista. Outro percurso instigante seobserva atravs da fuso entre o formalismo ps-concretista e aspreocupaes estticas e sociais caras a Ricardo Aleixo, numapoesia que deixa visveis as marcas da vanguarda, ao mesmotempo em que potencializa as ambiguidades e as possibilidadesde significao do seu discurso pessoal. Por sua vez, a dicocontida de Donizete Galvo se prope como um filtro que depu-ra e transforma o desprezo e a decomposio do corpo e domundo com os seus valores mais puros em matria potica.J a poesia de Maria Esther Maciel revela o intenso intercmbiocom outras linguagens artsticas, como o cinema e a pintura, natentativa de captar o paradoxo da vida, sintetizado claramente nopoema A voz e o espelho a partir de uma sugesto de Octavio Paz.O mundo figurado nos poemas de Fernando Fbio Fiorese Fur -tado exprime a densidade da histria individual e colectiva queconfluem para desenhar diferentes metforas do corpo, como seestas fossem uma segunda pele que concentra as linhas de umareflexo existencial e metapotica.

    No caso da poesia de Edimilson de Almeida Pereira, poss-vel dizer que o autor reelabora aspectos da oralidade e da estti-ca barroca na qual os objectos, as palavras e os significados estoembutidos uns dentro dos outros, maneira das bonecas russasque esto encaixadas, cada uma contendo em si a outra. o sen-tido atribudo a um mundo engendrado por palavras e abertopara a existncia de outros mundos possveis. A poesia de IacyrAnderson Freitas explicita a procura, por vezes dolorosa, de coi-sas e sentimentos profundos e cotidianos que constituem a raizontolgica do ser humano que, frequentemente, se encontra exi-lado num tempo e num espao em estado de desmoronamento eque se agarra, desesperado, palavra e memria para salvar as

  • 12

    sobras desse processo de desmantelamento interior. Por seuturno, preocupados no com a descrio dos objectos ou da natu-reza, mas com a apreenso do dilogo entre esses elementos e ocorpo-linguagem do poeta, os textos de Wilmar Silva resultamnuma inquietante leitura das experincias do homem. Quanto potica de Fabrcio Marques, o cotidiano apreendido com iro-nia, ou seja, a noo do dia-a-dia como o espao e tempo dosacontecimentos previsveis sugerida e esvaziada atravs da pala-vra potica. A esse processo superpe-se um cotidiano cerzidocom pequenas iluminaes expressas atravs de uma linguagemcoloquial.

    Como salientamos anteriormente, o ofcio da minerao incerto e desafiador, porque nos coloca aqui na condio de lei-tores diante de um campo de experincias poticas em parteconhecido, em parte a ser desvendado. Essa tenso consiste numdos mais fortes apelos para que se possa pensar a poesia minei-ra e brasileira contemporneas como um territrio aberto a novosdilogos e experimentaes. Oiro de Minas , portanto, um con-vite para que os leitores compartilhem uma experincia crtica eenriquecedora, ao longo dessa viagem potica s Gerais.

    Juiz de Fora, Minas Gerais, 05 de Novembro de 2007

  • Eustquio Gorgone de Oliveira

    Donizete Galvo

    Jlio Polidoro

    Ricardo Aleixo

    Maria Esther Maciel

    Fernando Fbio Fiorese Furtado

    Edimilson de Almeida Pereira

    Iacyr Anderson Freitas

    Wilmar Silva

    Fabrcio Marques

    Sobre os Autores

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    OIRO DE MINAS

    ND

    ICE

  • 15

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

    Com banhos de ouro

    Nas cordas vocais as cantoras

    Saem de si para a cidade.

    Rebecas enterradas na garganta, obos

    Alguns cancerosos a primazia

    Da matria sobre o tempo. Tempo

    De soobrar nos ltimos veios-veios

    Do rio chamado ouro, tempo

    De tocar nas procisses em harpa e

    Comer a rom vermelha da cerimnia.

  • 16

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

    a poesia vai sendo assim

    escrita, cardo-santo no

    estmago. Aos poucos,

    outra luz na noite,

    azul que costura o corpo

    das crianas. Em glebas,

    os fonemas se encontram,

    os amargos e os mais doces.

    A poesia vai sendo assim

    escrita. Enquanto

    houver tardes, mbulas,

    cada palavra ser guardada

    em leos santos.

  • 17

    Fugir de cidade em cidade.

    no adianta.

    Com ferraduras de talco

    deixo marcas.

    Todos sabem onde estou:

    verde debruado em verde,

    branco em coradouro branco.

    Ruas vales ravinas,

    tabuleiros de abraos,

    abrigo pegadio?

    Todos sabem onde estou:

    azul em covas de azul,

    amarelo revezando amarelo.

    Atrs de decalques

    impossvel ficar.

    Em uma janela da sala

    muito visvel.

    Devo continuar sempre

    repintando as telas.

    Todos sabem onde estou:

    na flor vermelha, de cinza.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 18

    AMOR METLICO

    Sei que quando te amo

    no h falsos sudrios

    e

    estrelas maiores do cu

    amamentam as pequenas

    e

    anjos regentes do mundo

    desfazem a programada via-sacra

    e

    os sonhos-assaltantes se capitulam

    como dois mosteiros vazios

    e

    a pia batismal purifica

    o desejo vindo do corpo

    e

    santos refazem os milagres

    devorados pelo tempo

    e

    os cabelos sobem no barco

    que desce entre os espermas.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 19

    NOVOS POEMAS

    No me aterroriza a tua falta

    mas o vazio das palavras.

    Da ausncia posso retirar imagens

    e pr nos carretis

    os abraos.

    Das palavras, tudo em vo.

    Um pssaro doente, voando,

    diz mais do que eu.

    Por isso tua ausncia

    o eclipse menor.

    Ela pouco me fere.

    uma cidade inteira

    que, imvel, me persegue.

    As palavras, sim, inflamam o corte.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 20

    As pedras no indagam.

    No silncio, guardam definies.

    Sem a pegajosa angstia,

    o tempo passa por elas.

    Os sinais das chamins

    cristalizam nosso inverno.

    Cada qual em seu brido,

    enredamos a vida com palavras.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 21

    MS DE MARIA

    Aquela igreja uma mulher que no sai da praa

    E toda vestida de branco e azul

    Bate seus brincos chamando os cristos.

    Todos respeitam seus tijolinhos e bancos,

    E dentro dela a Virgem verga-se do teto

    Como uma fruta madura e viosa.

    A orbe se assusta e acalma, serpenteia,

    E o povo parece um grande louva-a-deus

    Mirando o altar. Sim, a igreja

    uma fmea cheia de anjos, caiada,

    Estufada de msica, granulada,

    E alimentando a solido dos homens

    Pela placenta colorida das vidraas.Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 22

    A SOLIDO

    A solido ama

    coraes completos.

    noiva que prope

    tachonar a liberdade.

    Visita qualquer um,

    criana ou adulto.

    Brota nos travesseiros

    como flor de macela.

    E muitas vezes arma

    seu camarim num tumor.

    a noite terrvel

    que se adere ao sonho.Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 23

    Atravesso a cidade.

    Vejo crianas no trio das escolas.

    Dentro dos coretos,

    redemoinhos de nibus.

    Sigo meu corpo, canoa.

    Apenas uma vez a solido

    usou meus cabelos como remo.

    Quase imergi entre o povo.

    S a lngua me serviu de leme.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 24

    Os dias se aproximam

    de maneira intermitente.

    Se houver desvo, h morte.

    Rosas propositais insurgem

    contra as rosas naturais,

    e espadas-de-so jorge duelam:

    as que ficam nos lates

    contra as que seguem o corpo.

    Amarelssimos cravos.

    Nesta fresta dos dias

    eles se apegam a ns

    como arames farpados.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 25

    Descanso no pequeno aposento

    e j no me cobro respostas.

    A respirao brota em meu peito

    como flor que esteve sem gua.

    Ouo rudos que no ouvia

    enquanto estava desperto.

    No recolhimento me nutro:

    despensa onde fica o milho.

    Durmo sobre ele, nele me perco.

    Tambm sou o cereal perecvel.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 26

    presa em flor de tijolos

    o quarto tem seu perfume

    longe das ruas e praas.

    alli os lenis se abrem

    para o bule e a loua genital.

    no Ribeiro a saudade

    fermenta fora

    do mapa.

    a solido tanta

    e abandona os corpos

    na fuga.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 27

    eles se abraavam na sala

    como cobras que se picam

    dando filhos de pedra

    aos alicerces das casas.

    em plena luz do dia

    caranguejos rficos

    dormiam em seus braos.

    quando ela o deixou

    tornou-se uma montanha

    para a solido escavar.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 28

    rosto claro feito a pincel.

    em dezembro se apegou luz

    como as parasitas do parto.

    ps o verde pssego no ventre

    e no bere o nome de sua av.

    na messe e nos meses de fome

    que o amor esteja ao teu lado

    e a felicidade no seja tola

    de ser apenas palavra.

    Eust

    quio

    Gorg

    one

    de

    Oliv

    eira

  • 29

    SILNCIO

    De pedra ser.

    Da pedra ter

    o duro desejo de durar.

    Passem as legies

    com seus ossos expostos.

    Chorem os velhos

    com casacos de naftalina.

    A nave branca chega ao porto

    e tinge de vinho o azul do mar.

    O macio da rocha,

    de costas para a cidade

    sete vezes destruda,

    celebra o silncio.

    A pedra cala

    o que nela di.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 30

    ITINERRIO

    Revolva com sua lngua

    os lenis de areia:

    ergue-se a cidade submersa.

    Deixe que a palavra morda

    a outra palavra e salte,

    exibindo guelras e escamas.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 31

    QUEDA

    No outono, a carne soobra.

    As mas do rosto cedem

    e a testa expe seus vincos.

    Os lagartos procuram as rochas

    e pedem sol para suas couraas.

    Vista da janela,

    a cidade das cinzas

    provoca cansao e nusea.

    O mar de pedra soterra

    a rvore dos brnquios.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 32

    MENOS

    Voc no v o homem, o pssaro, a mulher no gesto de Mir?

    Sinta o que ele traa: a tela pulsa, a boca murmura, o sexo arde.

    Voc no v graa no zen falado de Joo Arcanjo?

    Oua o que ele anuncia: do sopro exato surge a geometria.

    No mundo das pedras lisas no cabe a dor.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 33

    INVENO DO BRANCO

    all this had to be imaginedas an invisible knowledge

    Wallace Stevens

    O tanque o avesso da casa.

    A rebarba.

    A ferrugem tomando conta da boca.

    O tanque a parenta decada,

    que machuca os olhos das visitas

    com suas carnes rachadas.

    O tanque onde se lava o coador

    e o p de caf de seguidas manhs

    desenha uma poa de gua preta.

    Uma arraia-mida,

    ervas e craca e limo,

    flora sem-vergonha,

    infiltra-se em suas paredes.

    beira do poo,

    algum imaginou copos-de-leite.

    Bebendo a umidade,

    em verde e branco brotaram.

    Reiventados pela distncia,

    erguem-se vvidos,

    mais brancos que o branco,

    artifcio de vidro.

    Recm-nascidos.

    S porque eles existem,

    o tanque e seu corpo saloio

    foram salvos do esquecimento.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 34

    DA NATUREZA

    o berne

    plantado

    no lombo do boi

    estremunha

    ao ser cutucado

    com leo queimado

    o verme

    solapa

    a polpa da goiaba

    estremece

    na fruta sem forma

    cada no cho

    o germe

    gira

    feito parafuso

    que fura a casca

    em verde tremula

    folha ao vento

    o verbo

    entranha-se

    na carne

    ganha corpo

    faz dos msculos

    seus vocbulos

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 35

    RETCULA

    Do corpo que teve,

    se um dia o teve,

    no h mais sinal.

    A cada fotograma,

    a memria o distorce.

    Retorce lembranas.

    Superpe figuras.

    Entorta os membros,

    acentua vincos.

    Amplia manchas.

    Msculos em magenta.

    Ossos em amarelo.

    Superposio de formas

    em filme fora de registro.

    Do primeiro corpo,

    no percebeu o sopro

    da carne ainda fresca.

    Quando se deu conta,

    o momento passara.

    Restaram: esse esgar,

    essas raias de sangue,

    esse olhar que se assusta

    todas as manhs

    com o borro no espelho.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 36

    TAPERA

    Deixe que os morcegos

    ocupem o forro

    e as caixas de marimbondo

    tomem conta dos seus cantos.

    Deixe que a macega

    suba pela escada at o alpendre

    e prolifere nas rachaduras do reboco.

    Deixe que o musgo

    cubra o tampo da cisterna

    e que os escorpies

    armazenem veneno sob os tijolos.

    Nada di mais do que a lembrana da casa,

    encravada como um prego

    que lateja na memria.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 37

    LIVRO DE CABECEIRA

    Ri as unhas,

    os cantos dos dedos

    e os ns da mo

    at que doer

    seja uma forma

    de esquecimento.

    Lanha-se com

    caco de vidro

    cada pedao da pele

    para que se auto-revele

    a urdidura de cicatrizes,

    incunbulo, xilogravura,

    esgar de mscara:

    a dor como escritura.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 38

    MAPA

    ama o inominadoo perecvelo particulara coleo de cacos de louaos arreios e os antolhos das mulasa caixa de ferramentas do avo cavalo baio com o olho cegoa luz do sol sobre as encostasa dureza das macabas

    nomeia as coisas que pedemo nascimento pela palavraescrita que se transformaem outra escrita

    geografia de migalhasdicionrio pessoal de falasditas na labuta concretasem reconstituir um mundocuida de um retalho:o fragmento pelo todosenhor de restolhos e rebotalhosinventrio de perdasrol de inutilidadesvasos vazios e quebrados

    sem esperana sem consolo,com a pacincia de um boisegue tua trilha de erros:rastro de palavrasmarcas da passagem

    serpentear de frases

    mapas de dor e descontentamento. Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 39

    LEMBRANA DE SEVERO SARDUY

    Quando se fere

    com a tesoura

    a haste

    da manga,

    escorre

    o lquido,

    visco

    oloroso

    que prenuncia

    nas ventas

    o gozo.

    Antecipao

    do paraso

    na tarde calorenta

    do suco de manga

    gelado

    que desliza

    pela garganta.

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 40

    OS HOMENS E AS COISAS

    sem os objetos

    o corpo no tem gravidade

    diapaso

    prumo

    o corpo precisa de contrapesos:

    a mesa

    a porta

    a cama

    cavidades onde lana seus parafusos

    sem os objetos

    o corpo se perde nos buracos

    sugados pela mente

    dispersa-se em crculos centrfugos

    o corpo necessita dos objetos

    para que estes confirmem

    sua existncia em fuga

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 41

    MUNDO MUDO

    salta, mundo,

    desse caroo

    de pedra

    em que ests aprisionado

    toda a rua termina

    em muro

    toda palavra representa

    uma falha

    salta, mundo,

    desse caroo

    de pedra

    vence

    as camadas de aluvio

    para que aflore

    um gro

    um broto

    um grito

    para quem est exausto

    de auscultar teu corpo

    ferido

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 42

    MARGEM

    o rio morto

    o rio ftido

    o rio podre

    o rio lodo

    o rio negro

    espelho que reflete

    prdios e carros

    trilhos e latas

    o rio e a memria das guas

    margem

    herldica

    esttica

    uma gara

    ergue

    para o cu

    a hiprbole

    do seu alvo

    pescoo

    Doniz

    ete

    Gal

    vo

  • 43

    h um furo

    no bolso do palet

    to fundo

    que di

    espio de longe

    o tempo que passa

    e no consigo

    entender

    tudo se gasta:

    tecido, sonho, traa

    e o vazio

    to fundo

    que diJ

    lio P

    olid

    oro

  • 44

    me, perdi vossos carneiros

    no sei por onde

    eles se foram

    nem percebo

    o novelo

    que me envolve,

    mas vejo a noite, me,

    cheio de medo

    a noite

    varreu dos olhos a pureza

    o pastor tornou-se rs

    de outro rebanho

    perdoai, me,

    no so meus

    vossos carneiros

    Jlio

    Polid

    oro

  • 45

    Sou eu mesmo meu parente

    e me vivo a modo vrio, permanente.

    Sou eu mesmo meu parente

    nas ruelas e cidades.

    E comporto muitos corpos

    que fundem o nico,

    a nica satisfao,

    o nico desejo, que permanecer.

    Sendo parte desse sangue

    sou meu sangue

    e, sendo parte de meu sangue,

    meu parente seu sangue;

    mas eu, como parte de outra parte,

    no sou parte,

    enquanto meu parente,

    como parte do que sou,

    me sendo um tanto (j) me pertence.

    Jlio

    Polid

    oro

  • 46

    Eu me declaro morte

    e a pergunta que no fao

    saber se ainda permaneo.

    Como pessoa ou despessoa

    sou extremo.

    E por declarao movo dois plos.

    De um lado, sou a morte,

    do outro, sou a vida.

    Mas, o que significo

    como centro de dois nortes?

    A razo no me explica

    porque aconteo junto a ela

    e, gnio ou no, a supero.

    Porque, estando alm de mim,

    sou mais do que posso

    e me adiantando, permaneo.J

    lio P

    olid

    oro

  • 47

    efmero

    sou pouco

    quero mais longe

    o arco do meu soco

    perto da travessia

    em que pomos

    o olhar

    efmero

    sou parco

    algo quer seguir alm de mim

    resistir o que no posso

    atravessar meu corpo

    para que meu corpo o atravesse

    no quero ser efmero

    no arco do meu soco

    Jlio

    Polid

    oro

  • 48

    INDECISO

    s vezes meu desejo

    no notar que tudo passa

    e que envelheo na medida que envelheo

    Por vezes meu intento evitar

    que a busca de um espao me enlouquea

    que todos descubram

    que devo dinheiro aos inimigos

    qu saibam que nunca tive namorada

    s vezes eu me sinto muito bobo

    conservando os costumes de famlia

    e comprando queijo na mesma padaria

    s vezes o provvel do poema

    no fosse essa carncia

    que sinto ao dizer que sinto s vezes

    Jlio

    Polid

    oro

  • 49

    MOSAICO

    Dissociadas as palavras

    e seu desencanto.

    Ningum responder

    pela cor do dia.

    Todos vo ficar embaraados:

    (a memria

    na curva

    de ns mesmos).

    No se erga essa mo,

    o grito infirma.

    No ptio de outra manh

    daremos melhor desculpa.J

    lio P

    olid

    oro

  • 50

    persigo, da fala, a plena expresso

    da sala nunca aberta, o corredor

    que nos conduza ao Verbo sem autor

    e que traduza as coisas do poro.

    mas como seduzir a seduo

    e como, sendo ovelha, ser pastor,

    se a fala, como falso condutor,

    tem muitas e nenhuma direo?

    Jlio

    Polid

    oro

  • 51

    eu sei, mas por saber, sei que sou parco,

    tudo que no tenho o que perco:

    a morte se aproxima e fecha o cerco,

    descreve uma espiral, desenha um arco.

    sou para o oceano menos que um barco,

    me sinto sobre a terra qual esterco;

    fecundo esse fogo de que me acerco

    com o ar que se sufoca sob o charco.

    eu sei e por saber sei que sou pouco,

    perdido, navegando como louco,

    procuro por um cais que no conheo.

    eu sei, pois por saber sei que pressinto:

    no gesto de perder, que no consinto,

    me enleia alguma teia que no teo.

    Jlio

    Polid

    oro

  • 52

    a alma vem nomear as coisas:

    noite, lobos, uivos para a lua

    tempo

    essa arena sem touro

    orion segura o nada

    trs marias

    sobre a terra

    o corpo a curva

    longe, o verbo nascituro

    rompendo a distncia

    e a boca

    abastada de espuma

    e rano

    Jlio

    Polid

    oro

  • 53

    MINARETES DE ISTAMBUL

    Muezim arranha

    o cu da mesquita,

    xeques do jardim de Rumi.

    Mul brande

    o rosrio da sapincia

    em nosso susto.

    A luz

    arrosta a indiferena.

    Minaretes de Istambul.

    Sonhar acordado:

    por dentro,

    o lado de fora

    azul.

    Jlio

    Polid

    oro

  • 54

    PERTENA

    o que falta

    identifica

    o abandono

    afasta

    o contingente

    estrangeiro

    segue, pois, a no escolha

    tua nau suspensa

    no bordejo

    o que falta

    expressa

    no sentena

    veleiro

    a deslocar o vento

    Jlio

    Polid

    oro

  • 55

    RELGIO

    o tempo

    passa e sobrevive

    o ip s idia

    do que foi

    daquele lado

    um outeiro sobrepe-se

    a outro

    e outros

    o monculo

    mais gasto que as horas

    v mover-se a engrenagem

    dispensa

    o arbtrio do olhar

    sem escolha

    o silncio

    gira seu ponteiro

    Jlio

    Polid

    oro

  • 56

    GEOGRAFIA DO ABRIGO

    a geografia do abrigo

    outro ngulo da ris

    os bondes no mais

    aponto o corpo que passa

    e no vemos

    de mos dadas

    o cone nos leva ao labirinto

    o abrigo isto:

    mechas

    na esquina do quarto

    insetos colidindo

    com a poeira

    nesta geografia

    o olhar conspira

    nova perspectiva

    Jlio

    Polid

    oro

  • 57

    LAVA

    Meianoite que no passa. Nervos

    saltando e estes sinais de inferno:

    o disco emperrado da melancolia,

    a curva

    ascendente da tua ausncia

    e o grito que no sai

    lngua morta ,

    que se desmancha dentro,

    lava.

    Meianoite e um quarto.

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 58

    POTICA

    Aprendi com Valry

    um pouco disto que fao:

    Eu mordo o que posso

    (palavra, carne ou osso)

    Me acho

    me acabo de vez

    me disfaro

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 59

    O ANJO

    V i , e n f i m ,

    o a n j o , c a r a a

    c a r a , m e u i g u a l

    ( n o s e u

    c o m e o , s e u f i m ) ,

    m e u o u t r o ,

    o d e a s a s l i m -

    p a s , o q u e q u a n t o

    m a i s r o t o

    m a i s i n -

    t e i r o d e n t r o

    d e m i m .

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 60

    OUTROS, O MESMO

    O c o r p o ,

    e s s e t r a p o .

    O r a , P a s c a l ,

    p o r q u e n o

    e s s e t e x t o ?

    P e n s e b e m :

    p o d e r s e r

    o u t r o s , o

    m e s m o s o b

    r e o u t r o s

    - u m

    p a l i m p s e s t o .

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 61

    TRVIO

    v a z i o a t o

    f u n d o

    c r i s p a d o n a

    t r e v a

    m a i s u m

    d i a d e s

    l i z a p a r a

    d e n t r o

    d e u m

    d o s t r s

    c a m i n h o s

    s e m v o l t a

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 62

    JOO

    n o i m p o r t a

    o s a m b a .

    t e m s e m p r e

    u m s a m p l e

    d o l t i m o

    i n s t a n t e a n t e s

    d o m u n d o

    c o m e a r d o n a d a .

    n e m i m p o r t a

    o m u n d o .

    s e m p r e

    o m e s m o s a m b a

    e - e m g l i s s a n d i ,

    d a g a r g a n ta

    a o s d e d o s -

    a q u e l e s i l n c i o ,

    a q u e l e n a d a

    s a m p l e a d o .

    n o i m p o r t a

    o

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 63

    BISPO DO ROSRIO

    quem fez e refez

    cem vezes o

    caminho do mundo

    at antes

    cem vezes na

    cabea o longo

    trecho entre o

    mar e o

    cu

    quem re fez o

    caminho da perda

    com seu manto

    de

    ver deusfilho

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 64

    DOIS

    dois irmos no comeo. o que sabe o

    caminho e o outro: dois. e no h

    retorno. dois irmos desde nunca. um,

    o que v e conta. outro, o que ouve.

    dois. no se separam. por onde passam,

    o mundo: o corao de um pssaro,

    desvios, carcaas de antlopes, cidades

    riscadas do mapa, o dorso tigrino de um

    pressgio, o tempo mais velho, um deus

    trocando a pele. dois irmos ainda agora.Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 65

    CINE-OLHO

    Ummeninono.Eramaisumfelino,umExuafelinadochispandoentreoscarros-umpontoriscadoalasernanoitederuacheia-aliparaosladosdo Mercado. Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 66

    ELA AQUELA

    ela

    aquela

    noite

    no

    falava

    (ouvi-la

    era

    ouvir

    asas

    - as

    de

    uma

    serpente

    que

    as

    tivesse),

    voava

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 67

    CONFIDNCIA

    Prefiro a paciente

    proeza das traas,

    meu rapaz,

    aos versinhos

    bem traados

    dos quais

    te mostras capaz

    (asspticos e srios

    como os de

    ningum mais).

    Ah! Ler-te

    penetrar na paz

    dos cemitrios.

    Ainda respiras, mas

    j se entrel,

    junto aos ttulos

    dos teus livros,

    os dois precisos

    vocbulos

    (Aqui jaz)

    com que, um dia,

    te saudaro os vivos.

    Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 68

    MQUINA ZERO

    Quarto dia: entendo que o que preciso, se q

    uero mesmo continuar a perambular com alguma chance de xito p

    or uma cidade ( duas ) como Berlim, de sapatos de largo flego. Caminho ( penso e

    nquanto caminho ), permevel a tudo: ao frio ao sol cortante, s crianas t

    urcas com seu comrcio informal de brinquedos usados, b

    eleza sem rumo da adolescente que ( longas pernas abertas sobre um p

    rosaico selim de bicicleta ) cavalga o c

    omeo da tarde, aos grafites que dariam belas fotos, Topografia d

    o Terror, s runas, ao rasta que me sada ( R

    asta ! ) na Wilhelmstrasse, s lascas do Muro na vitrine da pequena l

    oja, ao amarelo-zoom do metr a

    pontando na curva antes do teatro,

    Histria, Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 69

    LABIRINTO

    Conheo a cidadecomo a sola do meu p.

    Esprito e corpo prontospara evitar

    outros humanos polciascarros nibus buracos

    e dejetos na caladaincorporo hoje o Sombra amanh

    o Homem Invisvel sexta noite

    o perigoso Ningume sigo.

    Como os cegosconheo o labirinto

    por pis-lopor t-lo

    de cor na ponta dos ps maneira tambm do que

    fazem uns poucoscom a bola

    num futebol descaloqualquer. Conheo a

    cidade toda (a mnima dobra retas cada borda

    curvas) e nela custa de me

    perder mereconheo. Ric

    ardo A

    leix

    o

  • 70

    A UMA (OUTRA) PASSANTE

    est feito :

    ao meu

    olhar ( o

    olhar no

    dobra esquinas )

    agora s

    resta

    dobrar

    a esquina

    ou entoRic

    ardo A

    leix

    o

  • 71

    AULA DE DESENHO

    Estou l onde me invento e me fao:

    De giz meu trao. De ao, o papel.

    Esboo uma face a rgua e compasso:

    falsa. Desfao o que fiz.

    Retrao o retrato. Evoco o abstrato

    Fao da sombra minha raiz.

    Farta de mim, afasto-me

    e constato: na arte ou na vida,

    em carne, osso, lpis ou giz

    onde estou no sempre

    e o que sou por um triz.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 72

    PAISAGEM COM FRUTAS

    Duas peras sobre a mesa

    esperam a tua fome.

    O dia verde

    e o vento tem cores provisrias.

    Sobre o muro

    um pssaro mudo

    de olhar escuro

    perscruta a tua sombra

    Ele sabe

    que ningum sabe

    em que azul

    ocultas

    teu absurdo.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 73

    NOTURNO

    a T. S. Eliot

    O dia noite no poema:

    Sombras, pedras, luas secas

    encobrem a estao das flores.

    Sobre o deserto

    memory and desire

    ainda restam:

    ecos entre as cinzas

    deste verso.

    Will it bloom this year?

    Na terra triste do poema

    enterro o fim e o infinito:

    me fao silncio, eclipse.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 74

    OFCIO

    Escrever

    a gua

    da palavra mar

    o vo

    da palavra ave

    o rio

    da palavra margem

    o olho

    da palavra imagem

    o oco

    da palavra nada.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 75

    MANUSEIO

    Tpidas

    essas mos

    que divagam

    devagar

    por meus relevos

    bvios

    e demoram

    fundo

    no obscuro

    ponto

    onde o corpo

    se abisma

    e silencia,

    absurdo.

    devagar

    por meus relevos

    bvios

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 76

    SOBRE UM FILME DE WONG KAR-WAY

    O corpo e seus possveis.

    O dentro que, na pele,

    vira flor.

    Os cheiros, a memria

    do que, de to breve,

    no fica

    seno como sombra

    lquida

    quase ctrica

    desse amor.M

    aria

    Est

    her

    Mac

    iel

  • 77

    ECLIPSE

    A lua desliza

    sob as sombras

    do sol

    que no h:

    luz de escuros

    vu para o olhar

    que no v

    seno

    a cor lils

    da noite

    que reluz

    num verso

    de luard.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 78

    DO CORAO DO PAI

    O corao do pai fala

    O corao do pai falha

    O corao do pai cala

    O corao do pai pra

    O corao do pai passa

    a limpo o corao

    da filha que fala

    por um fio.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 79

    BLACKHEATH

    A poesia me chama entre as rvores

    de folhas incompletas.

    O vento frio, apesar de terno.

    Corvos mancham o azul sem peso

    desta tarde que no comea.

    O trem tambm me chama.

    E no vou.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 80

    AMOR

    Na vspera de ti

    eu era pouca

    e sem

    sintaxe

    eu era um quase

    uma parte

    sem outra

    um hiato

    de mim.

    No agora de ti

    aconteo

    tecida em ponto

    cheio

    um texto

    com entrelinhas

    e recheio:

    um preciso corpo

    um bastante sim.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 81

    CLANDESTINIDADE

    Permanece em mim

    como um segredo

    e que ningum escute

    teu silncio na minha boca

    nem a linguagem de teus olhos

    que em mim se inscreve

    como poema

    Torna-te clandestino

    em meu pas sem nome

    e desenha em mim

    o teu enigma

    teu reverso

    e teu verso sem traduo

    Te exila em minha teia

    me define com tua senha

    perenizando em meu corpo

    o teu mistrio

    entre cortinas,

    no refgio exato dos lenis.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 82

    DESTERRO

    Desabitado o corpo

    resta a sombra

    do anjo sem nome

    O reino do longe

    aqui: na terra

    insone, onde a pedra

    consome a falsa raiz.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 83

    A VOZ E O ESPELHO

    (sobre um paradoxo de Octavio Paz)

    Tu presencia me deshabita:

    saio a esmo

    sem medida do mesmo

    no ermo de mim:

    fao-me diversa

    convexo-me em ti

    no reverso

    onde me perco

    revejo-me, reescrita

    e recomeo, inversa

    embora a mesma

    mas ao medir-me

    no mais te vejo

    e no instante

    do espelho finito

    reflito:

    tu ausencia me habita.

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 84

    CONTRATO

    Sombras que conheo:

    Confio a vs

    o meu excesso

    o nome avesso

    que me empresto

    a imagem vria

    que me dei.

    Viajo ao longe

    do que sou, alm

    do meu espanto

    Levo a face

    deixo o espelho

    e seu reflexo

    Em vosso rosto

    deposito

    o meu assombro

    Mar

    ia E

    sther

    Mac

    iel

  • 85

    O CORPO E AS CIDADES

    De quantas cidades estive

    (e no digo as que, de passagem,

    guardei apenas uma rubrica

    e o rumor do jornal dormido, das cidades

    nem aquelas em livro escritas em geral

    ou contrabando dos amigos

    em cartes-postais e souvenirs),

    poucas vestiram este corpo,

    camisa feita de encomenda,

    sem rugas, pences, rebordos.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 86

    Embora me sirvam de abrigo,

    dos cenrios s personagens,

    forneam o de que preciso das cidades

    para um plgio de Pasrgada sob medida

    ou minha taca de bolso,

    das cidades entre parnteses

    (neste poema ou na memria),

    nenhuma desconhece a rgua,

    o trao do corpo que as escreve,

    escreve como quem se entrega.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 87

    De quantas cidades estive,

    Diamantina tem o tamanho

    do corpo com que se ama e vive, de Diamantina

    com folgas e bolsos largos

    para acolher-nos no regao.

    Tem os olhos na altura do homem,

    e ruas que arregaam as mangas,

    e ptios de pssaros destros,

    e capelas que erguem as saias

    para deixar fugir o cu.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 88

    AV DEPOIS DE MORTA

    A av ainda rega o canteiro

    onde mirraram os brinquedos.

    Mesmo morta ainda

    ralha com a tempestade

    que escondeu os meninos

    em outra idade.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 89

    VICENTIM, REPARADOR DE LIVROS

    Fui muitos antes.

    Desta pequena queda,

    um corpo oblquo espera

    mapa ou sentena.

    Da histria me desfao,

    rascunhando uma rosa

    nos obiturios.

    Erratas tambm recolho

    com mos que desconheo:

    a linhagem do homem

    ningum sabe.

    A limpo e a luto passo

    livros, desertos, cidades

    os hspedes

    em frases demudados.

    E posso mudar em verbo

    at a ltima paisagem.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 90

    CAPRICHOS BIBLIOGRFICOS

    Livro s existe no plural.

    De modo que no h como abrir

    um nico, sem com isso outro,

    e assim acionar a espiral

    que, par em par, outros abrir;

    o mesmo que a mo dentro do bolso

    surpreendesse outro e, nesse um, outros

    bolsos em seqncias infinitas,

    semelhana de uma dzima;

    e em cada qual houvesse chaves

    de cofres h muito saqueados,

    de gavetas que nenhuma abre,

    da cidade depois dos brbaros,

    porque chegamos sempre tarde.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 91

    Como dissera versos antes,

    para o livro chegamos tarde,

    cedo demais para o no-livro;

    na estante um espelho inimigo,

    esse olhar s possvel quando

    o silncio entre amantes queda,

    e o mnimo rumor tanto

    que, no corpo, o corpo analfabeta.

    Livro como, em outros, a morte

    se abre para ensaio ou trgua;

    livro mapa, mesmo conforme,

    onde o territrio desconcerta;

    quando no h enigma algum

    nem termo, incio ou promessa.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 92

    CADERNETA DE CAMPO

    1.

    a lio onde terminao professor como um mortoa ss com suas floreso professor de semiticaque olha a prpria sombraenfim atravessar a porta

    como um livro no labirinto

    2.

    (saber demais desconfia)de menos saber se fazo que ensina a esquecero nome o nmero o texto

    uma rvore sem razes

    3.

    abrir um livro ampliar a noiteem que um professor de literaturapersegue pequenas verdades policiaisseqestra-se ao espelho ao sentidomesmo porque ele o assassino

    mas no o autor dos falsos indcios Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 93

    DEAD LETTER

    percorr-la nunca por inteiro

    de forma que permanea

    um cadver sobre a mesa

    centro mvel espreita

    do stimo selo de indcios

    do que era tua letra

    a fuga a febre o gasto

    andar o crculo

    s e desarmado

    excesso de olhos e unhas

    como um gato vigiando

    a sombra do pssaro

    escrever-me tua vingana:

    palavras so diques ainda

    quando dizes todo o oceano

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 94

    Mesmo os tios alfaiates desconhecem

    a fazenda e o fio com que tecemos

    ou nos tece essa camisa adulta

    de esquecimento, os bolsos vazios,

    a no ser por uma pgina

    da tabuada de menos.

    Intil postular o priplo

    da bicicleta alem:

    os pedais riem deste corpo

    sem rodas e sem rumo,

    pedalando para o caos.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 95

    A CASA

    na rua da Casa no passe.

    o futuro ser pstumo

    a fachada da Casa no olhe.

    os olhos sero outros

    no calada da Casa no pise.

    a terra ser queda

    os frutos da Casa no coma.

    dentro as paixes disparam

    aos viventes da Casa no fale.

    qualquer palavra rendio

    os cmodos da Casa no visite.

    os gatos enlouquecem de tanta beleza

    na Casa eu vivo.

    os ausentes so minha famlia

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 96

    DANAO

    Bom mesmo

    era morar num lugar

    de nome bonito

    Nossa Senhora dos Remdios,

    So Tom das Letras,

    Dores do Turvo

    cultivar violetas e samambaias

    e fazer do itinerrio dos peixes

    minha mstica.

    E no

    ficar polindo os ossos do mito.Fe

    rnan

    do F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 97

    COMO DESFAZER BAGAGENS

    Como quem de viagem

    demora a acomodar-se

    ao clima, ao horrio,

    s vogais de outra sintaxe,

    tambm escrever estranha

    quando muda de paisagem.

    Como quem de viagem,

    o que carrega apouca

    a dicionrios, passagens

    e alguma muda de roupa,

    tambm escrever exige

    aprender a descartar-se.

    Como quem de viagem

    pouco ou nada decifra

    do manuscrito-cidade

    (mal soletra as esquinas),

    tambm escrever ensina,

    menos importa encontrar-se.

    Como quem de viagem

    evita, quando sabe,

    os apelos do fssil,

    do que fausto adrede,

    tambm escrever prefere

    o que se d sem salvas.

    Fern

    ando F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 98

    Como quem de viagem

    sabe o prazer de andar

    sem endereo ou idade,

    com a roupa amassada,

    tambm escrever comparte

    esse corpo sem abas.

    Como quem de viagem,

    para rever a janela onde

    lhe sorriu uma criana,

    o embarque adiaria,

    tambm escrever alcana

    os vestgios desse dia.

    Como quem de viagem,

    das malas faz relicrio

    de rostos, rudos e mares,

    de balas, livros e cidos,

    escrever tambm seria

    como desfazer bagagens.Fe

    rnan

    do F

    bio

    Fio

    rese

    Furtad

    o

  • 99

    NA CASA DA PALAVRA

    os homens que falam poeira cad sua misria

    comentam o motivo de falarem poeira cad

    sua misria.

    Poeira cad sua misria no s poeira cad

    sua misria: mas o ovo de outras coisas.

    Os homens que falam poeira cad sua misria

    se vestem de poeira cad sua misria. Eles se

    conhecem desde-o--do-mundo pela msica

    que poeira cad sua misria faz neles.

    O modo de falar poeira cad sua misria deixa

    a lngua no sal.

    Os homens que falam poeira cad sua misria

    treinam de us-la. E nunca repetem o que dis-

    seram no camaleo poeira cad sua misria.

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 100

    O JOGO DO CLICE

    Um homem s morto v o besouro da palavra,

    mas o vivo no seu terno domingo que pode

    negociar. Quantos chegaram das oraes e,

    lagarto, a compreenso sua do cu punha cabe-

    los brancos na manh.

    O vivo e o morto devem conhecer a misria do

    vento, cada um a seu tempo. Assim irmos vo

    desejar o abrao das palavras.

    O que esperar do esqueleto que pretende ser

    um texto? E no vivo algo espera? O corpo da

    mulher teve graas porque sonhou na gua. E

    c, no h o morto nem o vivo mais certos da

    palavra.

    A diferena no que fazem: um v o besouro

    da palavra, o outro negocia.

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 101

    O CORPO

    Ainda est l, apesar dos anos. De um lado a outro,

    desvia-se das pedras, toca as margens cada vez mais hu-

    mano. A roupa se desfez, os sapatos, o que havia nos

    bolsos. Nada restou, mas o corpo flutua alheio chuva,

    ao vento, vingana. H muito nos povoa, suas rugas no

    pertencem ao tempo de seu sacrifcio. So de agora, nos

    interrogam. Que fazer desse corpo que no sabemos de

    onde veio e se instalou em ns?

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 102

    SLABA

    Outra lngua alicia o palato, no se quer instrumen-

    to de suicdio. No pode ser engolida para selar o desejo.

    para uso desobediente, sendo mais livre quanto mais

    nos pertence. A essa lngua no se veda o devaneio, uma

    vez afiada a vida tudo o que se queira. No est na boca

    e nela se arvora. Testa o sentido, duvida de si mesma. Vai

    ao baile, est nua ao meio-dia. No lngua do suplcio

    nem do vexame, desenrola os signos e se pronuncia.

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 103

    EXERCCIOS

    do sangue

    Antes da circulao, o desprendimento, como se a

    histria fendesse em queda livre. Depois, apalpar a

    rugosidade do labirinto.

    do luto

    O brao remove um chinelo dentre a herana. A

    tarde golpeia. No pela falta do par, mas pela curvatura

    que torna o calado estranho aos ps.

    da cegueira

    A lama uma rgua de outra preciso. Pelo tanto

    que a roda afunda, d a saber o peso dos bois e se esto

    firmes, quando a derrapagem o piso.

    da alegria

    O dente o ponto agudo do assobio. Sua sibila-

    o submerge na caverna. Mas, aberta a boca, o dente

    expe a pedra de amolar.

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 104

    ARCA

    Para conter a sete chaves d-se a arca.

    Senhora de si, contra cupins e traas,

    contra a ameaa dos anfbios. Maior a do

    esquecimento. Passando de casa em casa,

    de um parente a outro atinge a inrcia de

    jamais ancorar. Embora seja esse o plural

    da vida, alguma raiz reclama seus gumes.

    Arcas so abraos de vegetal e homem,

    contrato de gravidez. Uma vez no rebojo

    se multiplicam em alarmes. Em pugnas

    e morte, em lenis enxovais, em minas.

    Para exibir a sete chaves o invisvel s

    mesmo a arca e a famlia que nos habita.Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 105

    A GRO SECO

    O mundo ainda no comeou. Chifres, aranhas,

    miolos so vrgulas de um corpo que no se mostrou. E

    no sabemos quando arrear as garras. O que tem sido

    mel e cinza em nossa lngua no ser nada.

    Tambm somos rascunhos. Vai-se o dia em que

    aliciamos as delcias. Os dias durariam se durssemos.

    Passou por mim o cordo. Uma duas sanhas. A prenda

    no precipcio. Quero dizer o nome.

    O nome inscrito na cisterna. O nome que os

    martelos trepidaram. Passou o cordo de sangue. Ficou

    depois de minha sede. Vejo sua miragem. A famlia o

    elege, ele se curva mas se foi desde que chegara.

    O rio sumiu a ponte, cinzas tomam a cidade. A

    noiva deserta. O verbo que foi esterco dispersa. Passou

    por mim, me entardeceu. Talvez a fome, talvez a peste.

    Se me exilam, mais deslindo os reveses.

    Me querem os que me rendem. Passa o terceiro

    carro. O quarto para lavar os cabelos. Estamos saindo,

    apesar do medo. Ao meio da praa, o grande carro. Pas-

    sou por ns, encardimos por ele.

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 106

    BA INGLS

    Casado, minha viagem comea.Deixo a esposa e algum benefciopara o recm-nascido: pensareinele enquanto o navio sulcao canal da mancha. Entenda, para bem da famlia a mudana.No amo Birminghan mais que Fado,porm o dinheiro se planta na outraesquina do canal da mancha.Montarei um hotel distinto e a cadaano retorno para saber dos filhos.(E a esposa? mais do que a casano pede outro merecimento?) Entenda, a vida tem suas costuras.Providenciei um ba fornido onde cabem as nsias de quem se habituou montanha e slides da manh. (A esposa, mais queavental, no querer outro lao?O fogo que no se aparta e entreum carinho e outro no se resumaao parto?). Entenda, Birminghanno distante, e esse ba inglsrecebe os saldos que as castanhasde Fado no garantem. (A esposano come, se descabela e as unhasferem o vento). Entenda, um hotelno se abandona assim: o cadastrode clientes impede outra mudana.O amor que me ame entre Fadoe o canal da mancha. (A noite alicioua esposa? ela se deu, que importa).Rendas sobram no banco, clientes no hall. O idioma alheio fala, se me calo.Estufa a mesa de tanto fruto. Maso ba , por que se esvazia no lucro? Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 107

    SENHORITA DESESPERO

    Chamem o amador de bluesvou bater nele como boxeur.

    Na casa onde mora, luas mexem os olhos at ferver.

    Chamem o amador de bluesvou mat-lo arrumar emprego.

    Tenho de magoar sua ris. Vejo sua pele sob a blusa

    movendo rios incndios. Vou mat-lo se me faz feliz.

    Chamem o amador de bluesque persegui dias e noites.

    E soube miservel sem irm. Chamem vou mat-lo

    depois ganhar dinheiro. Quero ser das que danam

    at fechar o clube e ferir no trax meu companheiro.

    Chamem o amador de bluesno confio nele mais no.

    desses que entram a alma e fazem a gente arder.

    Chamem o amador de blues. Vou bater nele como boxeur. Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 108

    PRECEITO

    Se algum quer matar-me

    tire os cadaros do amor.

    No somos a primeira sede

    mas sua cara famlia.

    A que almoa o domingo

    e vira a misria pelo avesso.

    O incndio nos assedia

    e no come em nossa mesa.

    A menos que sua nsia

    seja outro mantimento.

    Se algum quer matar-me

    de amor, dance a aspereza.

    Nada aqui se faz sem ritmo.Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 109

    AULA

    Fala de vendedor ambulante

    signo em rotao. A gente

    lana no ar o que temde ser

    dito e colhe nem sempre

    o fruto de algo vendido.

    Repetimos as falas aceitas

    para garantir a venda, mas

    o risco do improviso o que

    h. Trs por dois, duas por

    uma essa sintaxe apraz.

    A gente lana no ar. Se der

    ritmo ganhamos a feira, se

    no, fazemos finta de baile.Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 110

    HISTRIA ANTI-NATURAL

    HOMEM BALA

    Um emprego no bastapara sanar as dvidas.Quanto mais ajustotanto preciso ajuntar.Quando paro, tudoem mim trabalha.E j uma outra dvida,crescendo no sujoda antiga, se anuncia.Mal deso na praaum brao me cobra,outros me olham.Tudo em mim se rala.O que sobra geraoutra promissria.

    HOMEM GOL

    Falhar um direito, em meu caso, um caos.Se me ausento do lance como se acabasse o gs para o almoo.Cada boca tem a fomedo juzo final at que ojuiz apite: acabou.O jogo agora se disputamesmo sem partida.No h dono do time,bola tambm no h.A ttica minha e sua atacar na defensiva.

    HOMEM MOSCA

    Para lies de levezanada mais que o corpo.Se possvel um anncioem que a sorte nos Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 111

    convide sua fazenda.Para se manter no ar preciso msculose alguma tolerncia.Nossa natureza pedra, se muito, espuma.Mas no ser absurdoflutuar na palavrauma vez e outras.

    HOMEM R

    O incio do mergulhoest na ausncia da gua.Quando tudo esgotocomo achar o que se busca:um brao e um dejetoso uma s carcaa.Recuperamos as coisasem partes e com issoa luta se reapresenta.Num brao o corpo,num chassi a mquinaque o precipitou no rio.Mergulhar dar incioa um quebra-cabeas.

    HOMEM NU

    A mo que me devassano colhe senofiascos de um tecido.H muito me imprimoem formas anuladas.As que tm medoe, sendo muitas, vosozinhas ao labirinto.Onde no h marcasvigem meus dedos.O nome que ostento um cl de annimosassociados & filhos. Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 112

    ESCARIAES

    Paredes em branco, portas

    janelas azuis. Fila de casas

    com orgulhos enfileirados.

    Uma ordem dentro da outra.

    Quartos, metade quartos.

    Searas, enfim, para a cisma

    do criador. Nada insinua

    ruptura. A chuva no frisou

    o branco, o mar se conteve.

    Receios arrastaram os que

    esperavam, a moblia no.

    O suor de antes no legou

    a mensagem do sacrifcio.

    Esse, aninhado no corpo,

    tambm se dilui, s a astcia

    abre sulcos sob o retrato.

    Edim

    ilson d

    e A

    lmei

    da

    Per

    eira

  • 113

    NO LTIMO DIA

    Chegado o tempoem que tudo se fundesobre meu corpo.

    O beijo me acusa s milciase eu sei desde muitoque todo beijo traio.

    Conto os que me condenarame no compreendoo assdio das mortes em mim,o avano de todas as digresses contra meu nome,esse azul que no se curvadiante de nenhum sacrifcio.

    Contemplo apenas o que me coube.

    Ao sul e ao largodemovo os fogos da transfigurao.

    Chegada a hora maiorem que o ar se ajoelha,em que os numerais se fundem,em que a trindaderasura o zero dos milnios, em quea eternidade inteira se escoana proa de um segundo,em que sombra de meu nomeos abutres oram e comem.

    A hora em que Deus coloca-se prova

    e comigo partilha o fardo de ser homem. Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 114

    EM MIL

    tracejaram no espaoa horizontal de um nome

    at sangrar seu sumo(enquanto o mar se assenta

    calmamentenas patas traseiras)

    exclamaes gretadas como riosescorrem para a morte

    no sabemos o que fazerpor isso no fazemos nada

    o esquecimento sulcanosso ombroe nos diz no se esqueampor favor no se esqueam

    na margem esquerda e na margem direitadesolao

    das pegadas pulam escorpiesdo calcanhar uma nusea suntuosa

    estamos livrese oramos

    nossa f divide em mila escurido Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 115

    FUI EU

    Teu rosto me acusa.

    Teu rosto

    todo um passado

    me transcendendo.

    De frente, olhos fixos,

    esse passado me sonda,

    me assalta e

    de minuto a minuto

    me principia.

    Volto enfim a nascer,

    mais desolado e s

    a cada dia.

    Mas no seria esse o meu rosto?

    Olho em torno, interrogo-me

    : meio-dia que busca o sol-posto.

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 116

    ESSE ESTRANHO NOME

    Ainda buscava

    um qualquer afago

    com a palavra.

    Em tudo

    via esmorecer o rito,

    o cho, a fala, depois

    o cu apenas, mais nada.

    Que incndio

    abate o encanto

    desta casa? Onde

    a promessa dos dias,

    os retratos provinciais,

    as cartas

    jamais escritas,

    porquanto lidas

    no estrume e na febre,

    o amor? Onde o amor,

    esse estranho nome?

    Procuramos deveras

    e queda

    o tesouro

    no tocado.

    Aos poucos,

    surge a sede

    de escavar a terra

    com a terra. Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 117

    De escrev-la

    margem,

    como algo vivo

    ou quase:

    entre as herdades

    no podemos v-la

    (nunca a soubemos

    ao certo).

    Depois, escultura tmida,

    erigir seus moldes

    no caderno

    (traio, traio

    sua msica extrema).

    Buscamos o abismo

    no o dano, as letras, o

    contorno que

    de leve

    se estiola:

    o que escrevemos

    como lembrana

    nos escreve.

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 118

    PRESENA

    Todas as noites nesta espera.Tudo excessivo, sufocante.O cu, at mesmo o cuem demasia.

    Sbitoestamos ssdiante da casa.Os viventes perderam-se: insdia,asco? Um ramo de floresfustiga o instante.

    Ah, a velha falta de ar, os retratosirrefutveis, o ruirde datas no sentidase a vaga lembrana de um pomar.

    Na sala,a presena terrvel. Os tumbeiros.Um mar de ocasosnos devora (eis que devemosenfrent-la, essa presena).

    Ainda que pudssemos implorarnova permuta as reses imaginrias, alqueiresde sombra ou limo nossa herdade no se afastaria:

    passado o priplo, resistiramos,com o troncoj tombando das coxias. Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 119

    MURILIAMES/ 3

    levaram-me pelas mos

    sobre o feno

    fizeram-me reconhecer

    os oceanos que me modelaram

    para o ocaso

    agora entendo

    o espasmo que rebenta

    dos alheios frutos

    a ferrugem e o claustro

    sob toda a magnitude que amo

    com os olhos em fogo

    fizeram-me reconhecer

    os ventos que me anteciparam

    a surpresa

    com seus sulcos

    e a treva

    sobre toda a extenso

    que amo

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 120

    POSSESSO

    sei que esta tarde e este mar

    so meus

    porque aqui sonhou-os o amor um dia

    e tambm o que declaro

    s milcias tuas

    e a grandeza sem mcula

    desta hora

    os tubrculos

    as vertentes de sais

    incendiados por teu rosto

    tudo foi aqui sonhado um dia

    em cada linha em cada letra em cada

    prefixo ou pronome

    desse amor

    que entre corpos

    se consome

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 121

    DILVIO

    lento

    por entre os autos

    o amor elabora seu queixume

    as guas vieram

    perfurar a ordenao dos meses

    arquitetura que se entrega

    escarpa amarelecida

    por seus tomos

    o amor sedimentou meu corpo

    no corpo de outros viventes

    ouo ainda

    o trabalho dessas fuses

    e seu leve fascnio

    pelo extermnio

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 122

    ESTNCIA

    os viventes arrastaram

    as oficinas do dia

    sem palavra ou canto

    um oceano amanheceu-me

    suas guas percorrem agora

    a antiga estncia

    vo lavar tudo

    vo deixar as memrias

    em bando

    me alucinandoIa

    cyr

    Ander

    son F

    reita

    s

  • 123

    j no se divisa o menino

    sob um cu de ossos, vozes.

    morto h muito

    e povoado agora com

    a voz absurda dos mortos,

    a lngua infantil,

    o hlito em fogo dos mortos,

    caminha

    como se longe, noutra

    fbula, um vento

    por sua ausncia flusse

    (como se dentro

    soasse ainda

    seu tambor).

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 124

    neste cho sem memria

    os pianos nos espreitam

    para o possvel susto

    perdida a mensagem dos povos

    algum falar em nosso nome

    no saberemos quando

    onde a fatura

    das famlias lucinda

    cada no poo?

    sua lembrana

    nos inquirindo

    onde? onde?

    ningum responde

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 125

    canso-me sempre

    do embate das cousas

    as muitas lutas

    que tingem

    at o acar

    das frutas

    ou algo que lembre

    repetidos enredos

    entre meus dedos

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 126

    APENAS ELE

    tudo muito quieto

    no fosse o menino

    brincando

    na memria

    eis nossa infncia

    entre os mveis

    como o retrato

    de ceclia

    algum toca o piano

    apenas ele

    destoa

    da moblia

    Iacy

    r Ander

    son F

    reita

    s

  • 127

    VOYEUR

    sim as abelhas picam teu corpo

    e eu nada fao seno mir-lo

    entre plens aucarados de inverno

    so fmeas que abatem tua pele

    e fecundam todo o enxame

    e o mel e a cera

    entre a colmia eu me escondo

    no seio de tua flora

    antes que me revelem festa

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 128

    VNUS

    sigo pela flora

    teu cu e azul

    ateadas tochas

    miostis no ser

    setas de bronze

    crispadas a urze

    o vu de vnus

    fincado em mim

    tua fruta floral

    de arabesca raiz

    teu corpo desnudo

    o bosque de heras

    onde frestas de sol

    cortaram teu pbis

    sim houve eclipse

    no ardor da gua

    lpido e lascivo

    sorvi tua ausncia

    eu hirto e dctil

    um potro de fogo Wilm

    ar S

    ilva

  • 129

    TTIS

    tua fronte coroada de gua

    crivou meus olhos de viajor

    seguindo a rota das mars

    alcancei as algas marinhas

    celestial anjo dos sargaos

    emergiu do verdor das rochas

    tecido de mida constelao

    sorvi teu suor e teu aroma

    ttis outonal do meu sonho

    a exalar lume em tua tez

    ttis guarnecida de falenas

    acalenta meu pranto noturno

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 130

    XODO

    comemos a fruta

    que o tempo madurou

    no ventre da terra

    devoramos sua casca

    seu miolo e suas fibras

    e as sementes midas

    de saliva e sal

    no vingam na aridez

    sulcamos seu imo

    e retemos o sumo

    viemos de algum lugar

    perdido na memria:

    forasteiros campestres

    estradeiros da morte

    galgamos o infinito

    miramos os pssaros

    e ouvimos gorjeios

    desfeitas as rdeas

    os potros sumiram

    caminheiros sem rumo

    iremos a algum lugar

    matinais ou vespertinos

    marginais e viperinos

    fiamos nossos destinos

    sob o sol e sob a lua Wilm

    ar S

    ilva

  • 131

    CETICISMO

    no sei onde pr minhas dvidas

    chorei em vesperal

    e derreti meu olhar

    visto os pulsos e exangue

    guardo relquias em antiqurios

    os relgios de meu orfanato

    sem vislumbr-los

    tiveram os ponteiros quebrados

    empobreci de tdio vivo

    o que deter ante o brilho

    remanescente da lua

    um bicho de fogo renasce

    de dentro de mim

    uma montanha com espectro solar

    e prisma de esfinge

    msica vinda das trevas

    fere o meu corao

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 132

    CLERA

    sem dvida essa fadiga me entardece

    mais forte do que o vento

    o vento que no da famlia dos chacais

    e me procura com uma lente invisvel

    o vento que racha as paredes

    e atravessa a pintura

    o vento que atravessa a pintura

    e diz que os decibis

    das flores que lhe oferto

    esto em anomaliaW

    ilmar

    Silv

    a

  • 133

    A COMPOSIO DA PALAVRA

    a derradeira nascente

    acende a ilha cercada de guas

    derradeira vertente

    os lobos

    que varam atrs de alimento

    e a primpara seta eu que lano

    e vo

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 134

    e agora nesse escuro de assustar coruja

    nessa madrugada de amolar machado com a lngua

    feito vara verde treme o corpo da alma

    quando voc fala olhando a janela

    o quadrpede cor de terra do lado de dentro

    perto da porta meio de banda

    fera armada atrs do metlico

    aquela tarde em casa

    quando o norte fez presena

    crina rabo de cavalo

    eu joo eu tenho que ensinar esse cachorro a ser cachorro

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 135

    e depois de bater a laje vem esse temporal

    e depois desse temporal vem os ps sobre a laje

    sobre a laje os olhos a verter guas de arco-ris

    e cristalino sobre a laje

    as ris as membranas as retinas as imagens

    os olhos de lince para o lince olhar a laje

    os estragos da chuva na laje

    e depois a laje pisada e vista

    a laje meio a meio e virgem a laje

    a laje para o cume

    o cume da laje para o meu pssaro rouxinol

    sim a casa para a chuva a constelao de sis e luas e estrelas

    a colheita de canrios

    e o plantio das palmas e plantasW

    ilmar

    Silv

    a

  • 136

    antes de rodar a roda dgua vem essa chuva

    vem de longe o rumor o barulho de orvalho na rom

    essa boca e essa lngua que mina em linfa

    essa furna e por um instante essa boca fechada

    em seguida o estrondo a cabea em pnico

    esse assombro de mula em busca do mulo

    vem de longe o vexame esse medo

    essa clera de irisar em si o rumor nesse pomar

    de repente ferido pela boca

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 137

    ARRANJO DE

    SANHAO

    E GERNIOS,

    DIA 16

    eu/ dia-a-dia-dia no exerccio de liberdade

    e vo, rasante - o meu beijo de sanhao

    preparo entre canteiros guarnecidos

    de gernios, rseo, cultivo o possvel

    gosto de encontro aos lbios de ceres

    mas, agora - em pleno meio do cerrado

    anseio, impvido, penacho eu pavo

    ramagem de estios, geada ao corpo, eu -

    antes, salto do galho e lasco: sol aceso

    lume, lpido, tempo de outono, sisW

    ilmar

    Silv

    a

  • 138

    ARRANJO DE

    GAIVOTAS

    E PAMPULHA,

    DIA 31

    eu-menino-do-campo, te fao conviva

    e digo que a palavra que escrevo

    origem, invento gaivotas no serto

    ilha meu corpo de encontro ao teu

    aqui, longe, aps o inverno da tempestade

    verto o amlgama da pampulha veleiro

    arco-ris que choram de solido, eu

    agora impvido e celeste, anjo de fogo

    eu-espelho dgua, narciso e orfeu

    flautas e flores, eu-pssaro cais e flora -W

    ilmar

    Silv

    a

  • 139

    1

    eu quebrado por voc sou estilhaos no lago de prpura/

    l entre ns e calos, sou esta enxurrada que invade

    eu/ aquele que vem com faunos de flautas e flechas

    sou o mesmo wilmar silva de mil diamantes nos olhos

    e mesmo que haja asas de arribao na mira da boca:

    o que fao com esta lngua na mina de sangue/

    vem agora um ourio com vestigio de godiva,

    eu/sou este cavalo com escamas nas crinas

    e cascalho para cavalgar num corpo distante/

    mais que esta noite com centelhas de semens

    que nascem entre meus dedos de sonhos/ eu

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 140

    2

    / eu que venho com um ramalhete de espinhos na carne

    derramo lminas e facas nos olhos dos ps,

    ainda sim/ serro um pssaro/ de asas nos braos

    coiote eu/ eu hiena nascer de um rio sem margem,

    piscoso envenenado de tanto mergulhar na terra

    eu perdido no escuro da madrugada atrs de voc

    um ermo eu: uma ave ferida no ermo eu:

    apenas um caador alcana a lontra no dorso

    sou eu este que vem armado de flechas e dardos/

    para uma flecha presa no umbigo a minha lngua

    para um dardo derretido na virilha a boca de beijos

    Wilm

    ar S

    ilva

  • 141

    SINTA MEU PULSO

    Eis que projeto um poema

    sobre o abismo branco

    da pgina em alarme.

    Ao primeiro descuido

    e minha revelia,

    jaz e volta, germe

    que adquire vida prpria.

    Com poderes de reger-me,

    manda que eu v

    pela selva selvagem

    dos textos e dos sentidos.

    E, antes de ir-me,

    com amor me

    olha, e diz, como diria

    meu pai: fique firme.

    Fabrci

    o M

    arques

  • 142

    O MAR

    diante das gals

    e j com sono

    o velho olha o mar

    com rugas de marfim

    com as lembranas

    removidas pelos garis

    outras levadas pelas mars

    indo de paris ao par

    o velho amarfanha

    o que lembra

    e o mar se marfa

    nesta noite gris

    Fabrci

    o M

    arques

  • 143

    NERUDA ENCONTRA LORCA

    De mim fugiam pssaros

    s quatro horas da tarde.

    Pssaros tranquilos,

    pssaros lentos

    de mim fugiam,

    deixando em meu peito,

    no entanto, suas asas.

    s quatro horas da tarde sem vento.

    Fabrci

    o M

    arques

  • 144

    FICANDO TARDE

    Estou ficando tarde. E o tempo

    vai carpindo antes do tempo

    rugas de cansao e lucidez.

    Com ar de melancolia

    (estou ficando tarde)

    percorre o rosto um sorriso.

    As horas se gastam, amarelam

    como quando a vida arde

    - albor na pele, sem aviso.

    Fabrci

    o M

    arques

  • 145

    TALHER

    foi s brandir o talher

    em meio s chvenas

    para o silncio agitar

    saudades de ser barulho

    Fabrci

    o M

    arques

  • 146

    TAMBOR

    tudo

    principia

    com um som

    um estampido

    que arromba

    um domingo

    de chumbo

    no mundo

    eco de trombeta

    fundo sem

    assombro

    vislumbre

    de sombra

    na penumbra

    por si j

    abumbrosa

    tudo comea

    tudo sucumbe

    com um som

    de tambor

    ou texto

    truncado Fabrci

    o M

    arques

  • 147

    O TEXTO QUE VAI

    o textoque vaiaquiescritono meu

    nenhumalinhajogadaao infinito

    palavraalgumame pertence

    desconfiede tudopode serque seja

    disfarcedisfaradode desastre

    ou

    plgioque se despededa sombrae vaina direocontrria Fa

    brci

    o M

    arques

  • 148

    MANH

    manh

    to

    magnfica

    que

    a

    moa

    de

    olhos

    de

    amndoa

    ignoraria

    se

    surgisse

    o

    apocalipse

    entre

    as

    magnlias

    Fabrci

    o M

    arques

  • 149

    ENCANTAMENTO PELO SAMBA

    a poesia est com tudoe no est prosa

    a poesiano tem pressano tem prazono tem glosa

    a poesiaest em ramosest em rosa

    rima petrosatexto veludoescrita porosa

    quempor acasomantmacesaa brasa

    e vibrandoa brisada histria

    prima por servazadadeproezae glria

    a poesiaest em tudoe no prosa Fa

    brci

    o M

    arques

  • 150

    EDUCAO DOS SENTIDOS

    l vem voc

    entre estrondo

    e gemido

    chamando

    fala

    mos que tocam

    o que poderia ter sido

    e olhos que dizem

    sou todo ouvidos.

    Fabrci

    o M

    arques

  • 151

    CRUZEIRO 2X1 ATLTICO

    pensava

    em minha filha

    na doce luz

    da manh

    no que

    a bola

    bateu

    na trave

    perdi

    a chance

    do empate

    j nos descontos

    a torcida

    no entende

    tanta coisa

    que acontece

    no lance

    do relance

    de um timo

    de segundo

    Fabrci

    o M

    arques

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    NOTURNO

    pensando que a vida um mergulho

    atravesso a chuva e vou andando

    andando quase de brincadeira

    pensando que a vida um mergulho

    na chuva e vou, como quem se molha

    e deixa na calada a alma umedecida

    vou de alto a baixo, pelo centro, pela beira

    no cu s vezes lua nova, s vezes cheia

    atravesso a chuva e vou andando

    s vezes duchamp, s vezes padre vieira

    atravesso a chuva, a alma umedecida

    passa pelos olhos a vida inteira

    enquanto do oitavo andar de um tdio

    um homem se joga num pulo suicida

    e cai diante de mim, osso puro

    no cho todo vermelho

    e diz, olho no olho, antes do suspiro:

    vai e escreve o que digo, filho;

    quando voc cair (de qualquer maneira)

    - isto no falha faa muito barulho Fabrci

    o M

    arques

  • 153

    AUTO-RETRATO EMBAADO

    Vinte anos tenho

    e as feridas

    expostas em desenho

    Em carne viva

    a vida me chama:

    quando escuto, venho

    Entre objetos que me acolhem

    E tudo aquilo que no dia

    escapa aos olhos

    em sonho retenho

    Neste engenho

    a minha fora

    empenho,

    como o moribundo que se recusa a partir

    Fabrci

    o M

    arques

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    ADMIRVEL PLPEBRA DO DIA

    Admirvel plpebra do dia

    estranha ao poeta que,

    insone, esgueira-se sob

    a fina chuva de melancolia

    a perseguir palavras

    como se prolas

    incrustadas na pele,

    no mrmore, na pupila

    e nem percebe a estaturia

    disposta na praa

    de cuja proa partem

    imagens vazias

    de modernidades tardias

    Fabrci

    o M

    arques

  • 156

    Eustquio Gorgone de Oliveira nasceu em Caxambu, a 22 de Abrilde 1949. licenciado em Letras e Pedagogia. Entre os livros publica-dos, destacam-se: Delirium-tremens (1974), Minas (1983), Fuzis lepo-rinos (1984), Exerccios (1986), Comarca do Rio das Mortes (1990),Tear de Imagens (1990), Girassol Fixo (1995), Passagem naOrfandade (1999); Rubra Casca (2002), Manuscritos de Pouso Alto(2004), Ossos Naves (2004), A Janela do Verbo Assistir (2006).Actualmente reside em Caxambu. Foi finalista do Prmio MuriloMendes, de Juiz de Fora, em 2003, e vencedor do mesmo prmio em2004. Obteve em 2005, o prmio de Incentivo criao literria daFundao Clvis Salgado, de Belo Horizonte, e ganhou, em 2006, oPrmio Cidade Belo Horizonte. Donizete Galvo nasceu em Bordada Mata, a 24 de Agosto de 1955. formado em Administao de Em -pre sas e Jornalismo. Reside em So Paulo. Publicou: Azul Navalha(1988), As Faces do Rio (1991), Do Silncio da Pedra (1996), A Carnee o Tempo (1997), Ruminaes (1999), Pelo Corpo (em parceria comRonald Polito, 2002), Mundo Mudo (2003). Jlio Polidoro nasceu emJuiz de Fora, a 29 de Julho de 1959. Trabalha actualmente na reaadministrativa da Universidade Federal de Juiz de Fora. Reside nessamesma cidade. Publicou: Treze Poemas Essenciais (1979), PequenosAssaltos (1990), Orla dos Signos (2001), Outro Sol (poesia reunida,2004). Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte, a 14 de Setembrode 1960. Actua em diferentes reas das artes contemporneas comoperformer, msico e crtico. Coordenador do Festival de Arte Negrade Belo Horizonte (FAN, 1995-2006), idealizador e redactor-chefe darevista RODA, tambm organizador da Bienal Internacional dePoesia da mesma cidade, onde reside. Publicou: Festim (1992), ARoda do Mundo (em co-autoria com Edimilson de Almeida Pereira,1996); Quem Faz o Qu? (infanto-juvenil,1999) Trvio (2001),Mquina Zero (2003). Maria Esther Maciel nasceu em Patos deMinas, a 01 de Fevereiro de 1963. Vive em Belo Horizonte desde1981. professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal deMinas Gerais. Poeta e crtica literria, publicou: Dos Haveres do Corpo(poesia, 1985), As Vertigens da Lucidez: Poesia e Crtica em OctavioPaz (ensaio, 1995), A Lio do Fogo (ensaio, 1998); Triz (poesia,1998); Vo Transverso (ensaio, 1999), A Memria das Coisas (ensaio,2004), O Livro de Zenbia (prosa potica, 2004). Fernando FbioFiorese Furtado nasceu em Pirapetinga, a 21 de Maro de 1963.Desde 1972 reside em Juiz de Fora, onde professor da Faculdadede Letras da Universidade Federal. Publicou, entre outros, os livros depoesia e ensaio: Leia, no cartomante (poesia, 1982), Exerccio deVertigem & Outros Poemas (1985), Ossrio do Mito (poesia, 1990),Trem e Cinema: Buster Keaton on the railroad (ensaio, 1998), CorpoPorttil (poesia reunida, 2002), Dicionrio Mnimo (poemas em prosa,

    SOBRE

    OS

    AU

    TO

    RES

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    2003), Murilo nas cidades: os horizontes portteis da moderni da de(ensaio, 2003). Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz deFora, a 18 de Julho de 1963. Professor de Literaturas Brasileira ePortuguesa na Universidade Federal de Juiz de Fora. Autor de inme-ros livros de poesia, ensaio e literatura infanto-juvenil. Na rea decincias sociais publicou em co-autoria com Nbia M. Gomes NegrasRazes Mineiras: os Arturos (1988) e Flor do No Esquecimento: cul-tura popular e processos de transformao (2002). Em poesia editouDormundo (1985), Livro de Falas (1987); sua obra potica encontra-se nos volumes Zeosrio Blues (2002), Lugares Ares (2003), Casa daPalavra (2003), As Coisas Arcas (2003). Em literatura infanto-juvenileditou Histrias trazidas por um cavalo marinho (2005), Loas aSurundunga (2006), entre outros. Ganhou inmeros prmios nacio-nais na rea das cincias sociais, assim como na rea da literat