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ORDENAR E ENSINAR PARA PRODUZIR E PROGREDIR: AS INFÂNCIAS E JUVENTUDES NA USINA CATENDE DE COSTA AZEVEDO, O TENENTE (1920-1950), E A PEDAGOGIA DO TRABALHO. Renata Conceição Nóbrega Santos Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região [email protected] Sobre a fonte que serviu de fio condutor deste artigo. Em 1941 circulou a publicação “O Homem e a Terra na Usina Catende”. Uma coletânea de imagens e artigos escritos por personalidades de destaque da política, da igreja e da sociedade pernambucana e nacional, fonte que integra o acervo pessoal da pesquisadora, mas conta com exemplar no acervo da biblioteca do Instituto Ricardo Brennand (PE). Sobre a obra, a edição 00295 do Diario de Pernambuco, de 17 de dezembro de 1941 (acessível no acervo digital da hemeroteca da Biblioteca Nacional), na coluna ‘Cousas da cidade’, veiculou sob o título ‘UM LIVRO SOBRE CATENDE’ o seguinte: A Usina Catende acaba de editar um livro, que é um documentario da obra de renovação economica e social que o sr. Costa Azevedo veio realizando naquele município. Reune depoimentos espontaneos de varios visitantes homens de diferentes profissões e tudo o que eles dizem pode ser facilmente comprovado. Costa Azevedo construiu, graças á sua ação decidida e enérgica, e ás suas qualidades de mando uma obra absolutamente inedita em Pernambuco. Foi ele quem primeiro irrigou as terras, quem primeiro aproveitou as caldas, quem primeiro empregou a agricultura racionalizada. Não há exagero em dizer-se que a lavoura da cana apresenta duas fases antes e depois da grande excelencia que ele iniciou e vem [ilegível] a bom termo. É uma obra que nos interessa a todos nós pernambucanos, porque põe em relevo o esforço de um homem de nossa terra, que por iniciativa e inspiração sua operou verdadeira revolução nos metodos agricolas e industriais. O livro, embora esclarecesse em suas primeiras linhas não ter um “sentido apologético” às obras sociais da Usina Catende, cuidou de expor exaustivamente a racionalização da produção, a organização do trabalho e dos trabalhadores, o peso econômico do empreendimento na economia brasileira e a assistência social prestada não só aos filhos de trabalhadores, mas aos órfãos em geral naquela localidade. A coletânea de artigos escolhidos e reunidos numa obra da própria Usina Catende, na maioria deles reprodução de escritos publicados em jornais daquele período, assim como as imagens que ali foram dispostas para compor e reforçar o discurso pretendido pela Usina Catende é indiciário de que o exame dessas fontes não pode prescindir do

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ORDENAR E ENSINAR PARA PRODUZIR E PROGREDIR: AS INFÂNCIAS E

JUVENTUDES NA USINA CATENDE DE COSTA AZEVEDO, O TENENTE

(1920-1950), E A PEDAGOGIA DO TRABALHO.

Renata Conceição Nóbrega Santos

Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região

[email protected]

Sobre a fonte que serviu de fio condutor deste artigo.

Em 1941 circulou a publicação “O Homem e a Terra na Usina Catende”. Uma coletânea

de imagens e artigos escritos por personalidades de destaque da política, da igreja e da

sociedade pernambucana e nacional, fonte que integra o acervo pessoal da pesquisadora,

mas conta com exemplar no acervo da biblioteca do Instituto Ricardo Brennand (PE).

Sobre a obra, a edição 00295 do Diario de Pernambuco, de 17 de dezembro de 1941

(acessível no acervo digital da hemeroteca da Biblioteca Nacional), na coluna ‘Cousas

da cidade’, veiculou sob o título ‘UM LIVRO SOBRE CATENDE’ o seguinte:

A Usina Catende acaba de editar um livro, que é um documentario da obra de

renovação economica e social que o sr. Costa Azevedo veio realizando

naquele município. Reune depoimentos espontaneos de varios visitantes –

homens de diferentes profissões – e tudo o que eles dizem pode ser

facilmente comprovado.

Costa Azevedo construiu, graças á sua ação decidida e enérgica, e ás suas

qualidades de mando uma obra absolutamente inedita em Pernambuco. Foi

ele quem primeiro irrigou as terras, quem primeiro aproveitou as caldas,

quem primeiro empregou a agricultura racionalizada. Não há exagero em

dizer-se que a lavoura da cana apresenta duas fases antes e depois da grande

excelencia que ele iniciou e vem [ilegível] a bom termo.

É uma obra que nos interessa a todos nós pernambucanos, porque põe em

relevo o esforço de um homem de nossa terra, que por iniciativa e inspiração

sua operou verdadeira revolução nos metodos agricolas e industriais.

O livro, embora esclarecesse em suas primeiras linhas não ter um “sentido apologético”

às obras sociais da Usina Catende, cuidou de expor exaustivamente a racionalização da

produção, a organização do trabalho e dos trabalhadores, o peso econômico do

empreendimento na economia brasileira e a assistência social prestada não só aos filhos

de trabalhadores, mas aos órfãos em geral naquela localidade.

A coletânea de artigos escolhidos e reunidos numa obra da própria Usina Catende, na

maioria deles reprodução de escritos publicados em jornais daquele período, assim

como as imagens que ali foram dispostas para compor e reforçar o discurso pretendido

pela Usina Catende é indiciário de que o exame dessas fontes não pode prescindir do

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alerta de se manter “a imprensa sob suspeição” e a própria publicação, mas, no sentido

destacado pela Autora Tania Regina de Luca, ou seja, observando-se “a importância de

se identificar cuidadosamente o grupo responsável pela linha editorial, estabelecer os

colaboradores mais assíduos” (PINSKY & LUCA, 2011, p. 140), dentre outros.

Ademais, em relação às imagens, que se encontram na condição de fonte cerne do

exame historiográfico aqui proposto, é preciso ver ao redor (BRUCE, 2013; SANTOS,

2017), na medida em que “a imagem do real retida pela fotografia (quando preservada

ou reproduzida) fornece o testemunho visual e material dos fatos aos espectadores

ausentes da cena. A imagem fotográfica é o que resta do acontecido” (KORSOY, 2001,

p. 36-37), mas a ele não se resume e, não necessariamente, a ele foi fidedigna. Nesse

sentido, pois, o exame historiográfico procedido em tais fontes percebe nelas algo além

da mera ilustração dos temas e mesmo os temas não são abordados sem interesses

específicos, sendo este ou aquele tema mais enfatizado através dos textos e ou das

imagens analisadas. A própria escolha pela ênfase ou pelo silêncio são evidências

passíveis de exame na condição de objeto historiográfico.

O momento histórico, o público e o privado: o Código dos Menores de 1927 no reforço

do discurso da ordem e do progresso e a “Catende de Tenente”.

A temática da assistência às infâncias e juventudes, aliás, pode ser encontrada nos

periódicos que circulavam à época e que refletia o momento histórico nacional balizado,

dentre outras, nas ideias e práticas que serviram de inspiração ao Código dos Menores

de 1927, que “não previa a instituição de direitos” e sim uma espécie de “orientação

preventiva e repressora que visava à punição dos não ajustados ao processo de

desenvolvimento empreendido pelo país” (MIRANDA, 2008, p. 79-80):

O Juizado de Menores passou a promover uma série de políticas assistenciais

voltadas para assistência desses meninos. As escolas correcionais construídas

na capital e no interior de Pernambuco na década de 1930 marcaram uma

nova dinâmica de institucionalização da assistência à infância no Estado.

Através do ensino profissionalizante, centenas de garotos foram

encaminhados às oficinas de carpintaria, sapataria, marcenaria. Por meio da

perspectiva do controle e disciplina, o Estado buscou disciplinar o cotidiano

dos meninos, impondo padrões de comportamento e sentimento.

(MIRANDA, 2008, p. 23-24)

Naquele momento histórico, a dimensão de celebração na forma de um dia nacional

direcionado à criança não se limitava ao lúdico, pois era o dia da criança que trabalha,

conforme foi publicado no Pequeno Jornal: Jornal Pequeno (PE), ano 1944, edição 231,

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de 12 de outubro de 1944, acessível no acervo digital da hemeroteca da Biblioteca

Nacional:

DIA DA CRIANÇA QUE TRABALHA – Amanhã o dia será dedicado à

Criança que Trabalha e é o seguinte o programa a ser observado: (…).

escolas/lugares citados na programação – Escola Profissional Feminina,

Centro Educativo Operário do Cordeiro, escolares do Centro Operário de

Areias, escolares do Centro Operário de Santo Amaro, Casa do Pequeno

Jornaleiro e do Pequeno Gazeteiro.

No caso da Usina Catende e de Tenente o que se destaca, além de outros fatores, é a

promoção da dita assistência a partir de uma iniciativa aparentemente privada, ou seja,

sem a iniciativa, intervenção ou mesmo autorização estatal. Em termos de presença do

Estado na Catende de Tenente, quando isso se deu, o primeiro prefeito do recém criado

município, em setembro de 1928, era o filho de Tenente, João da Costa Azevedo. A

igreja matriz e a sede da edilidade foram fruto de doações da Usina Catende e até os

funcionários que atuariam pela primeira vez na fiscalização e arrecadação da feira

municipal foram “cedidos” por tenente para ajudar o único coletor que era, de fato,

funcionário do município (MENEZES, 2014, p. 154-157).

Na publicação de 1941 são vistas as fotos de tais “doações” ao município de Catende

(Fotografias 01 e 02):

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Fotografias 01 e 02 – Fonte: obra “O Homem e a Terra na Usina Catende”, 1941, reprodução.

Todavia, apesar de um grande número de assuntos, as imagens que predominaram na

publicação eram as associadas à assistência social. Mesmo nesse tema, a ênfase se deu

pela utilização de imagens de jovens sendo ordenados para terem disciplina e

dominarem ofícios.

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Contabilizando as fotografias e os temas nela explorados.

Publicadas 41 fotografias na coletânea, a primeira delas, localizada logo em seguida aos

“Esclarecimentos Preliminares”, apresentou-se sob o título “Paisagem” e retratou

palmeiras imperiais, cana de açúcar, parte de uma construção de alvenaria e vistas da

plantação (MINTZ & WOLF, 2010; DABAT, 2012).

Em seguida, quatro fotografias representavam as técnicas de modernização e

racionalização da cultura da cana, as duas primeiras com visões de plano amplo da

paisagem e das obras de irrigação e as duas seguintes com a cana de açúcar em primeiro

plano, nela inseridos, possivelmente, proprietários, técnicos e trabalhadores.

Ainda se utilizou de duas fotografias referentes ao maquinário da irrigação (geradores

de energia e suas ‘instalações’) e de duas imagens de doações “ao município” e “ao

clero”, reproduzidas no tópico anterior: a sede administrativa e a paróquia.

Dentre as imagens que compõem o livro, ao final, uma retrata a casa grande e outra uma

pequena criação de animais.

Destarte, observou-se que o grupo de onze imagens está restrito a três dos seis capítulos

de uma obra que tratou, ao longo de todos eles, do papel econômico e social da Usina

Catende sob a gestão de Costa Azevedo, o ‘Tenente’ (decênios de 1920 a 1950).

Entretanto, mesmo enfatizando a amplitude dos temas que seriam tratados naquele livro,

o remanescente fotográfico, composto por trinta imagens, dispostas ao longo de todos

os capítulos, restringiram-se à temática da assistência social.

Destas, observou-se em menor medida que o discurso ali trazido reforçava a questão dos

mocambos e da edificação de moradia aos trabalhadores (quatro fotografias), bem como

da prestação de atendimentos médicos (duas fotografias específicas).

Percebeu-se, pois, que na composição da temática da obra editada pela Usina Catende

em 1941 utilizaram-se imagens fotográficas, em sua maioria, mais precisamente vinte e

quatro fotografias de uma juventude ordenada, organizada e produtiva naquela

“laboring landscape” (ROGERS, 2009).

Interessante o destaque de uma das imagens que aparentemente indicava “menores

abandonados” e desordenados, portanto, prestes a serem ordenados a partir das lições

que receberão da Usina Catende. É que em tal imagem, como bem destacou o professor

Humberto Miranda por ocasião da comunicação oral deste artigo, estão tais “menores”

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devidamente perfilhados e organizados em uma formação simétrica, assemelhada

mesmo a um conjunto militar devidamente ordenado, remanescendo rastros da dita

“desordem” ou do dito “abandono” apenas nas vestes desencontradas (não

uniformizados) e nos calçados inexistentes (Fotografia 03):

Fotografia 03 – Fonte: obra “O Homem e a Terra na Usina Catende”, 1941, reprodução.

Foi, pois, o destaque desse grupo de fotografias o reforço do discurso assistencial

focado nas infâncias e juventudes, independentemente de a temática escrita na obra de

1941 contasse com temas ligados ao progresso tecnológico e produtivo da empresa e

não apenas a questões de ordem social.

Viu-se nas fotografias ali publicadas desde o lactente (fotografias referentes a um

lactário), passando pelo ensino profissionalizante e cívico, com serviço militar

obrigatório incluído nas atividades a serem desempenhadas pelos jovens da Usina

Catende. Tais imagens de jovens em formação ordenada estavam e perfeita sintonia à

produção de bens de consumo e à manutenção do projeto de progresso da nação, num

reforço do ideário de que aos “menores” é melhor dar uma ocupação do que a

“vadiagem” tão temida desde os idos dos debates pós-abolição (AZEVEDO, 2008)O

aspecto subliminar desse discurso se dá na adjetivação de quem seriam esses

“menores”: os pobres e desvalidos.

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Resultantes da contabilidade das imagens e algumas abordagens teóricas

historiográficas preliminares: conclusões possíveis.

Somaram-se 24 imagens nas quais se apresentaram recortes de meninas e meninos na

orfandade ou simplesmente filhos e filhas de operários e trabalhadores rurais.

A primeira imagem de “menores abandonados”, como já visto no tópico anterior, para,

imediatamente em seguida, ser veiculada uma imagem supostamente desses mesmos

“menores” em “sua transformação no Centro de Escoteiros ‘Newton Cavalcanti’

(internato de 110 menores)” (Fotografia 04):

Fotografia 04 – Fonte: obra “O Homem e a Terra na Usina Catende”, 1941, reprodução.

Evidenciaram-se das imagens, dentre outros, alguns aspectos da pedagogia para o

trabalho, com aprendizagem de ofícios artísticos (carpintaria, sapataria, alfaiataria,

bordado etc.) e da lavoura (hortaliças, raízes, frutíferas e cana de açúcar), permitindo a

percepção, dentre outros, de divisão do trabalho a partir do gênero, mesmo nos ofícios

da lavoura (Fotografias 05 e 06):

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Fotografia 05 – Fonte: obra “O Homem e a Terra na Usina Catende”, 1941, reprodução.

Fotografia 06 – Fonte: obra “O Homem e a Terra na Usina Catende”, 1941, reprodução.

Em estudo acerca da criação de escolas técnicas no Paraná, no período de 1900 a 1950,

a autora Maria Josélia Zanlorenzi aborda a educação para o trabalho e o processo

histórico de institucionalização estatal dessa prática, que representa, dentre tantas

outras, uma das atuações do Estado na desoneração do capital:

A educação profissional foi incumbida pela classe dominante de preparar o

contingente de pessoas para sustentar o sistema capitalista, cuja sociedade se

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apresentava dividida entre os proprietários e não proprietários (...). Por meio

da educação, pensou-se em uma formação que respondesse às necessidades

da sociedade capitalista e, tratando-se de um ensino para os desprovidos dos

bens materiais, a formação para o trabalho foi tida como solução. (...) A

característica de uma escola com o ensino profissional direcionado à

formação para o trabalho, fugindo do cunho assistencial, aconteceu com o

desenvolvimento da industrialização e da modernização que visou à educação

profissional como formação da força de trabalho necessária para as

indústrias. Este modelo de ensino técnico se efetivou e se desenvolveu de

maneira definida a partir da década de 1930. (...) A educação sofreu

alterações; passou pela necessidade de aperfeiçoamentos com dupla

finalidade: a formação do trabalhador para as novas demandas do mercado e

a disciplinação deste indivíduo para as redefinições do capital, que exigia

trabalhadores qualificados para o domínio das máquinas. (2017, p. 33-34)

É o que se depreende, por exemplo, da Constituição de 1937, em seu artigo 129, ao

tratar do “ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas”,

citado pela autora Otaíza de Oliveira Romanelli e referido como uma oficialização do

ensino profissional no Brasil na condição de “ensino destinado aos pobres” (2014, p.

156).

Nada obstante o fato de a análise historiográfica acerca desse momento histórico, dos

anos 1930 aos anos 1940, ter concluído pela preponderância de uma atuação estatal

direta, apesar de existir de fato a perspectiva de estatização da caridade (PASSETTI,

1999; MIRANDA, 2016; MOURA, 2007), o caso da Usina Catende e de ‘Tenente’,

dentre outras análises possíveis a partir das fontes examinadas, especialmente das

imagens (BARBOSA, 2006; BRIZUELA, 2012, KOSSOY, 2001; PINSKY & LUCA,

2011) representou o pleno exercício de poderes tipicamente estatais pela iniciativa

privada daquele local. E, dentre tais poderes, destacou-se o desempenho do papel

assistencial para forjar, nas várias infâncias e juventudes urbanas e rurais de Catende,

futuros trabalhadores e trabalhadoras.

Além disso, a Usina Catende de Tenente não perderia o contato ideológico e discursivo

com o período em que era da igreja esse atributo assistencial e mais especificamente

educacional (PASSETTI, 1999; MIRANDA, 2016), o que se destaca inclusive de

artigos veiculados naquela publicação de 1941, que trouxeram referências, dentre

outras, à encíclica “Rerum Novarum”, publicada pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de

1891.

Em Catende, a iniciativa privada incorporaria, em matéria de assistência e, detidamente,

na aplicação da pedagogia para o trabalho, tanto uma inspiração cristã da prática dos

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anos antecedentes, quanto uma perspectiva estatal laica em construção naquele

momento histórico no plano da educação brasileira, especialmente a educação

profissional. Nesse último sentido, aliás, embora não tenha havido declaração expressa

de substituição ao Estado, na obra publicada em 1941 Tenente é referido como

industrial que se antecipou às leis trabalhistas de Getúlio, assinadas em 1º de maio de

1941.

Naquele industrial, substituto da assistência estatal e promotor da caridade cristã, o “pai

patrão” ordenaria e ensinaria as infâncias e juventudes de Catende pelo progresso da

nação através do trabalho e da respectiva produção.

A análise das fontes permitiu acessar as “laboring landscapes” (ROGERS, 2009) da

Usina Catende de meados do século XX, com recorte nas infâncias e juventudes do

local através da organização dos “menores abandonados” e dos filhos de trabalhadores e

trabalhadoras, ensinando-lhes ofícios e, com isso, forjando-os como colaboradores do

progresso, inseridos nas expectativas da “boa ordem”. Perpetuam assim as relações

capitalistas de exploração do trabalho.

Para além da discussão central proposta neste artigo, a pesquisa demonstrou que, ao

menos naquele momento histórico o campo, diferentemente do que se poderia pensar,

era tão ou mais moderno do que a cidade. Isto era verdadeiro, inclusive, nesta temática

da assistência às infâncias e juventudes, o que seria razoável quando considerada a

proporção direta do progresso em relação ao quantitativo populacional rural se

comparado ao urbano nesse período. Os censos demográficos do IBGE demonstram que

a população urbana brasileira apenas superou a população rural a partir dos anos 1970,

conforme tabela do percentual da população urbana reproduzida por Maria Yedda

Linhares (et. al., 1999, p. 151) e onde se vê para 1940 o percentual de apenas 31,2% de

população urbana, para 1950 vê-se 36,1%, para 1960 estima-se em 45% e, em 1970,

passa a 55,9%. Não por acaso, ao enaltecer o desfile público de escoteiros, o Diario de

Pernambuco se reportou aos que “marcharam” pela Usina Catende ao chegarem à

cidade:

Realiza-se hoje nesta capital a Parada da Juventude [há duas fotos dos

escoteiros da Usina Catende] OS ESCOTEIROS DE CATENDE NA

PARADA DA JUVENTUDE. Desfilarão, hoje, na Parada Juventude

Brasileira, os escoteiros da Usina Catende, em numero de 90, afora a banda

de clarins. O grupo é composto de menores orphãos e abandonados que a

Usina, em cumprimento ao seu programa de asssistencia social, tomou sob

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sua proteção. O nucleo dispõe de excelentes instalações typographicas, de

sapataria, alfaiataria, fabricação de gelo e de farinha, além de extensos

terrenos para plantações de lavoura cedidos para a aprendizagem agricola

daqueles menores. (…) Hontem, após a chegada ao Recife, os pequenos

escoteiros de Catende desfilaram pelas ruas da cidade despertando sympathia

da população pela disciplina e garbo com que se apresentaram. (...)

(Diario de Pernambuco, ano 1940, edição 208, de 4 de setembro de 1940,

acessível no acervo digital da hemeroteca da Biblioteca Nacional)

As fontes foram marcantes, dessa forma, para se propor uma revisão de um discurso

aparentemente consentâneo a uma realidade de atraso no campo e progresso na cidade.

Ao menos naquele período histórico, o interior agroindustrial conhecia o progresso.

Finalmente, para além de tais questões, outro dado naquele contexto político e social

que mereceu registro nessa pesquisa foi se de fato as realizações privadas atribuídas à

Usina Catende e à gestão de Tenente ter-se-iam acontecido sem qualquer suporte

público, uma vez que apesar de os periódicos enaltecerem a iniciativa privada daquele

agroindustrial, desde 1933, minimamente, há documentação na Biblioteca do Instituto

Ricardo Brennand (PE) e no Memorial Estatístico do Brasil do Ministério da Fazenda

(acervo em parte digitalizado e em parte localizado no RJ) referente aos incentivos

públicos e mesmo empréstimos de dinheiro público aos plantadores e usineiros da cana

de açúcar através do Instituto de Açúcar e do Álcool (IAA). Observa-se dessa mesma

documentação, a exemplo da Ata da 29ª Reunião Ordinária do IAA, de 29 de junho de

1938, queantes mesmo do IAA e ao longo de sua existência também se perpetuaram as

linhas de financiamento rural do Banco do Brasil que atendiam especificamente os

interesses agroindustriais da cana-de-açúcar.. Sendo assim, ainda que as iniciativas

sejam atribuídas ao Tenente e à sua visão empreendedora e “comprometida com o

social”, quem parece ter pago boa parte da conta foi mesmo o Estado brasileiro.

Nesse contexto, o presente estudo apresentou, pois, uma breve amostra da história das

infâncias e juventudes e da sua exploração para o trabalho. E, tendo por perspectiva a

noção de economia mundo (WALLERSTEIN, 1985) e, nela inserida, a plantação

(MINTZ & WOLF, 2010; DABAT, 2012) e a paisagem (GOMES, 2007; ROGERS;

2009), para além das mudanças de papéis clérigos, estatais ou privados na assistência às

infâncias e juventudes, ou mesmo da promiscuidade entre tais papéis, a pesquisa

evidenciou uma permanência do propósito de ordenar para produzir, a qual norteou o

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capitalismo mesmo e especialmente se tratando da educação de infâncias e juventudes

no momento histórico examinado.

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