os direitos da personalidade - emerj.tjrj.jus.br ·...
TRANSCRIPT
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 67
Palestra proferida no Seminário realizado em15.02.2002.
Excelentíssimo Senhor Desembar-gador Sergio Cavalieri, demais autori-dades que compõem a mesa diretora, emparticular o Excelentíssimo SenhorDesembargador e Professor Luiz Roldãode Freitas que será o debatedor apósnossa exposição. Preliminarmente, agra-deço a Vossa Excelência, de forma pe-nhorada, o convite formulado pela Dire-ção da EMERJ para participar desse im-portantíssimo Seminário destinado aodebate sobre o Código Civil de 2002, bemcomo, manifestar minha imensa satis-fação em participar, nesta oportunida-de, em Encontro de expressiva magni-tude, ora promovido pela Escola da Ma-gistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Nós que estivemos à frente da Es-cola da Magistratura do Paraná durantequatro anos, podemos avaliar a impor-tância de encontros dessa natureza, es-pecialmente no momento em que o Bra-sil começa a discutir o seu estatuto maisimportante - o Código Civil de 2002 que,como já foi afirmado hoje pela manhã,pelo Excelentíssimo Senhor MinistroMoreira Alves, é a Constituição do cida-dão privado. Antes de iniciar minha ex-posição, Senhor Desembargador SergioCavalieri, peço permissão a Vossa Exce-lência para prestar uma homenagem aum ilustre representante da Magistra-tura do Estado do Rio de Janeiro, com oqual tive a imensa satisfação de convi-ver, por ocasião em que dirigíamos a Es-cola da Magistratura do Paraná, nos inú-meros Encontros promovidos pela Esco-la Nacional da Magistratura, na oportu-nidade coordenada pelo ExcelentíssimoSenhor Ministro Sálvio de Figueiredo. As-
sim, peço vênia para prestar homena-gem a um homem culto, inteligente, afá-vel e jurista de escol, na pessoa do ex-Diretor da EMERJ - o DesembargadorCláudio Vianna de Lima.
Faço-a a uma pessoa realmente es-pecial, e que certamente ocupou um es-paço importante na história do Poder Ju-diciário do Rio de Janeiro. Confesso queestou um pouco apreensivo, não obstanteminha longa experiência no magistériosuperior e, minha participação em inú-meros eventos em diversos locais, tal-vez exatamente pela grande responsa-bilidade em dirigir-me a um público se-leto após a exposição do Ministro MoreiraAlves, que é o professor dos professores,o mestre dos mestres. Disse a ele, du-rante o almoço, que me sentia como umadas inúmeras letras que compõem o Có-digo genoma e, vou tentar tecer algu-mas considerações sobre um dos temasmais importantes presentes no CódigoCivil.
Senhores Magistrados, advogados,alunos da Escola da Magistratura, Se-nhoras e Senhores presentes. No quetange ao tema relativo à personalidade,o novo Código Civil abriu espaço extraor-dinário na defesa do ser humano, masnão simplesmente, como iremos obser-var, apenas da pessoa física ou natural,particularmente, de todos os elementosvalorativos integrantes da pessoa. Pri-meiramente, na época conturbada emque vivemos, onde se processam mudan-ças substanciais, inovações e surpresasque a vida sócio-político-econômica nosreserva, observamos que a pessoa natu-ral ocupa o centro de um sistema.
O ser humano, indiscutivelmente,tem que ser encarado sob dois pontosde vista: o ponto de vista ontológico - o
Os Direitos da Personalidade
PPPPPROFESSORROFESSORROFESSORROFESSORROFESSOR C C C C CLAYTONLAYTONLAYTONLAYTONLAYTON R R R R REISEISEISEISEIS
Magistrado aposentado. Professor da Escola da Magistratura do Paraná
66 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
que já havia, no momento em que foi efe-tuada aquela venda, concebido uma cri-ança), dá à luz uma criança e, vinte e umanos depois, essa criança se torna maiore entra com uma ação de ineficácia da-quela venda, dizendo que já era concebi-da e, portanto, tinham que ter nomeadoum curador do ventre para que ele mani-festasse a anuência por ela. E por três adois, fui voto vencedor, mas houve pedi-dos de vista no sentido de considerar quenão havia nenhum cômodo do nascituropara esse efeito. Então, considerou-se queé anulável, foi para, possivelmente, per-mitir o problema da confirmação, que ébem mais lógico do que a ineficácia, ten-do em vista que posteriormente aquelesque não anuíram, porque não lhes foi per-guntado, venham a fazê-lo.
Para concluir, quero salientar quenão se seguiu estritamente, com esseproblema de anulação, por exemplo nafraude contra credores, o problema dese saber se havia inoponibilidade ouse havia anulação. Seguiu-se a anula-ção justamente por questões de con-veniência prática, tendo em vista a dis-ciplina do Instituto. Embora, teorica-mente, possa ser discutível. E isso, ob-viamente ocorre, pois um Código tam-bém não é simplesmente umrepositório de doutrina rigorosamentepura, é necessário atender a aspectosde conveniência, por isso mesmo é umato político.
Desembargador Humberto ManesÉ como na Lei de Falência em que se
diz que é inoponível em relação à massa...Ainda dentro dessa distinção en-
tre negócio jurídico e ato jurídico emsentido estrito, só conheço no Brasil umcivilista contrário a isso, o Prof. PauloCavalcante, salvo engano. Pode ser di-fícil a distinção, mas que ela existe,existe. E aí vem a indagação que meformularam: A empresta a B determi-
nada quantia e estabelece que a dívidaé de natureza quesível. Na datamarcada, A não procura B para recebera quantia devida. Indaga-se: quandonascerá a pretensão?
Ministro Moreira AlvesNo momento em que foi violado o
direito subjetivo do credor. E quando éque ocorre? O problema vem dainexecução relativa e da inexecução ab-soluta. Conseqüentemente, se a dívidaainda tiver algum interesse para o cre-dor, haverá apenas mora. Caso contrá-rio, haverá o inadimplemento absoluto eaí não há dúvida alguma de que há aviolação do direito subjetivo e, portanto,corre prescrição.
Desembargador Humberto ManesHá cerca de quarenta anos, li uma
petição inicial de uma ação rescisóriareferente ao direito das sucessões.Distribuído o feito, caiu com o Desem-bargador Alcino Pinto Falcão comorelator, que proferiu o seguinte despa-cho: �Cite-se, todavia, dado o brilhan-tismo em que foi redigida a petição ini-cial, dificilmente a contestação pode-rá ter êxito�. Então indago ao MinistroMoreira Alves: Quem redigiu essa pe-tição inicial?
Ministro Moreira AlvesA resposta cabe àquele que expôs
esse fato e, conseqüentemente, umadas duas: ou não sabe quem foi e, por-tanto, eu também não saberia, ou sabequem foi e, conseqüentemente, devedecliná-lo.
Desembargador Humberto ManesFoi o então jovem advogado Moreira
Alves. Li essa petição no DepartamentoJurídico do Banco do Brasil em 1962. ODes. Pinto Falcão proferiu esse despa-cho, e a ação acabou logo ali..
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 65
tos são quase que anedóticos, são as-pectos raríssimos, obviamente. O aspectosério é aquele em que há uma invasão.Por exemplo, um prédio de cinqüentaandares que invade dez centímetros doterreno do vizinho. Pelo Código Civil, elepassaria a ser o principal e o terreno, oacessório. O novo Código acabou com oproblema de acessório e principal nessecaso, da inversão, e se estabeleceu noDireito das Coisas - de que foi incumbi-do o Desembargador Ebert ViannaChamoun - o princípio de que, quandoisto ocorresse, se houvesse boa-fé porparte do construtor, então haveria um tipode indenização e, conseqüentemente,passaria a ser proprietário daquela faixaque foi construída. Se houvesse má-fé,então haveria também uma indenizaçãodecuplicada e com uma série de agra-vantes decorrentes justamente do prin-cípio da má-fé. Mas se estabeleceu por-tanto que, nesses casos, haveria não pro-priamente que transformar o principal eo solo passaria a ser acessório, mas seentendeu de resolver o problema combase na indenização para o efeito de pre-servação da coisa de maior valor.
Porém não se tratou dessa conver-são, justamente pela circunstância deque se considerou que essa hipótese édaquelas que dariam margem a uma in-denização conforme houvesse boa-fé oumá-fé, até por aplicação analógica des-se outro princípio. E, conseqüentemen-te, seria uma forma de punir, emboramantendo sem que se declarasse aque-la modificação de considerar que o valordo prédio poderia ser maior do que o va-lor do terreno, o que às vezes também éum problema, porque em curto prazo detempo, às vezes, pode ocorrer o contrá-rio. E quando suceder o problema de osdois terem o valor parecido, como se re-solve? Será que a regra da inversão de-veria ser aplicada?
Por isso é que se afastou esse prin-cípio, considerando, inclusive, que ca-sos dessa natureza são absolutamenteraros. São casos, não digo anedóticos,mas são aqueles de academia, não sãocasos que ocorram na vida prática, em-
bora, vez por outra, possam ocorrercomo, por exemplo, o casamento de umhomem com homem ou de uma mulhercom outra, enquanto o casamento forainda um instituto em que a união ocor-ra somente entre um homem com umamulher.
Desembargador Humberto ManesOutra pergunta: Entre os requisi-
tos do negócio jurídico, lembro-me deque Vossa Excelência estudou tambémo problema da legitimação ou legitimi-dade, mas, como não se prende a umasistematização, não foi colocado na Par-te Geral. Então entendo que na ParteEspecial, em cada texto de legitimação,o novo Código enfrenta a questão real-mente. E no tocante da venda a des-cendente, sempre houve uma grandediscussão sobre a conseqüência da nãoautorização de um dos descendentespara a prática do ato. Recordo-me deque há um acórdão antigo do STF, doMinistro Aliomar Baleeiro, mostrandoque o ato era nulo, o que impediria aconfirmação do negócio, porque ele de-clarou que era nulo. Há os que susten-tam que é ineficaz; outros, que simples-mente é anulável e que permitiria a con-firmação. Foi por isso que o Código pre-feriu adotar como causa de anulação.No Código antigo era o art. 1.132.
Ministro Moreira AlvesO que está se sucedendo é que, na
Parte Geral, não se tratou do problemada ineficácia, mas se observa que hávários artigos que dizem: �essa situaçãoé de ineficácia� ou �essa situação é deanulação�. Por outro lado, esse proble-ma do pai com relação aos filhos, ascen-dentes com relação a descendentes, étão sério que no Supremo houve umagrande discussão, se eu não me enganoeu pertencia à Segunda Turma e fui, afi-nal, voto vencedor da seguinte hipótese:um pai obteve a anuência de dez ou onzefilhos, que o casal tinha, no sentido de ven-der o bem a um deles. Acontece que, pos-teriormente, a esposa do vendedor e, por-tanto, a integrante do casal (que não sabia
64 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
tratou desse tema. Já imaginaram seo Código tratasse de todos os assun-tos? Eu comentava aqui com meu co-lega: agora vem a hora da complica-ção! É a hora dos problemas que noscausam certas perplexidades. Confes-so aos senhores que continuo comgrandes dificuldades em uma série deinstitutos, pois não é possível dar dis-ciplina a tudo. Até porque essa disci-plina, para integrar um Código, preci-sa estar dentro daquelas que já se en-contram devidamente estratificadas.Até hoje esse é um problema delica-do, com relação ao qual não háestratificação alguma. De modo que,infelizmente, a resposta que posso daré essa: continua o problema com rela-ção ao novo Código Civil, porque se elefosse resolver tudo, viraria aquele li-vrinho do imposto de renda com per-guntas e respostas.
Lembro-me daquela anedota quecontam do tempo de D. Pedro II. Diziamque ele foi ao antigo hospício na PraiaVermelha e que, lá chegando, encontrouum sujeito e começou a conversar comele sobre literatura grega, literatura la-tina etc.. No final da conversa, o sujeitolhe disse que era um homem absoluta-mente normal, absolutamente são, e queos parentes dele o colocaram ali paradizer que ele era louco. Sendo assim, D.Pedro foi ao Juliano Moreira, que era odiretor, e disse que o homem era abso-lutamente lúcido e que havia conversa-do com ele quase uma hora, demons-trando uma cultura absolutamenteinvulgar. O diretor disse para D. Pedroque ele ainda não tinha visto quandoaquele homem subia em uma árvore ecantava de galo.
Desembargador Humberto ManesO Superior Tribunal de Justiça tem
dado indenização por dano moral à pessoajurídica. O que acha Vossa Excelência?
Ministro Moreira Alves Confesso que quando deixar de
ser Ministro do Supremo - para que nãodigam que há uma rivalidade entre os
antigos Ministros do Supremo que tam-bém julgavam a respeito de todas asmatérias, confesso aos senhores queera o Supremo dos meus sonhos, por-que não ficávamos apenas com a apli-cação do artigo tal da Constituição, pa-rágrafo tal - e ficamos praticamenteapenas no terreno publicístico, que meperdoem os publicistas, mas reservo-me o direito de que, quando me apo-sentar no ano que vem, dar a respostaa respeito do que penso sobre esse pro-blema.
No novo Código Civil se diz expres-samente que há direito de personalida-de. Dispõe o artigo 52: �Aplica às pesso-as jurídicas, no que couber, a proteçãodos direitos da personalidade.� De modoque este é um dispositivo que trata deum aspecto que é, de certa forma, polê-mico, por isso mesmo é que diz �no quecouber�.
Desembargador Humberto ManesLembro-me de que o autor José de
Alencar, no livro �A hipoteca�, reclama-va da solução então vigente de uma pes-soa construir, em um pântano, um cas-telo, mas pelo ordenamento vigente aconstrução seria um acessório em rela-ção ao solo, que seria o principal. Daísurgiram várias conseqüências e o Có-digo de 1916 consagrou essa regra. Oautor San Tiago Dantas reclamou dissoe propôs uma outra solução: quando sedemonstrasse que a construção seria deum valor maior do que o do solo, estepassaria a ser o acessório. Isso aconte-ceu em uma rua nobre do Leblon em queum cantor comprou um terreno, foi paraa Alemanha, onde ficou mais de um anoe contratou uma empresa que, por en-gano, construiu o palacete no terreno dovizinho. Quando ele retornou, o conflitojá estava armado. Como podemos resol-ver isso hoje? Será que poderíamos apli-car esse esquema?
Ministro Moreira AlvesO Código Civil trata realmente des-
se aspecto, contudo, esqueceu um outromuito mais comum, porque esses aspec-
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 63
diz-se que se aplica a decadência aodisposto nos artigos 195 e 198, inciso I,que diz respeito, por exemplo, a absolu-tamente incapaz, em que não deveriaocorrer a decadência.
E, finalmente, vem um título in-teiro sobre prova. Considerou-se que,embora judicialmente o que deve re-gular a prova são seus meios de pro-dução em juízo, a prova é ainda maté-ria de direito privado, tendo em vistaque não se aplica apenas para as ques-tões que estão em juízo, mas se apli-ca a todo e qualquer fato jurídico. Con-seqüentemente, manteve-se isso e seestabeleceram alguns princípios no-vos. Vou aludir ao artigo 231 que diz:�Aquele que se nega a submeter-se aexame médico necessário não poderáaproveitar-se de sua recusa.� E artigo232: �A recusa à perícia médica orde-nada pelo juiz poderá suprir a provaque se pretendia obter com o exame.�Isso é tão importante que já houve noSTF uma questão realmente interes-sante. Foi um habeas corpus, porqueum juiz determinou que fosse condu-zido sob vara um indivíduo para quese retirasse dele sangue para efeitode um exame qualquer do qual havianecessidade. E ele impetrou, então,um habeas corpus.
Sendo assim, deu-se um fatocuriosíssimo: os liberais do STF admi-tiram e os conservadores por seis votosa cinco não admitiram, dizendo que nin-guém podia obrigar a um indivíduo quediz que tem terror, pânico, de se verespetado por uma agulha de injeção, aser obrigado a fazê-lo. Nesse caso che-ga-se à conclusão de que se um indiví-duo se recusa, isso funciona como umaverdadeira presunção contra ele e, por-tanto, com o ônus da prova transferidopara ele, dificultando portanto a suadefesa.
Meus senhores, quando sou obri-gado, portanto, a fazer uma análise ge-nérica dessa natureza, faço sempre umabrincadeira dizendo que felizmente fizuma façanha que é atravessar o OceanoPacífico a nado. É claro que com todas
as deficiências dessa travessia. Muitoobrigado.
DEBATES
Desembargador Humberto ManesA primeira pergunta é sobre a capa-
cidade e a incapacidade. Vamos usar alinguagem do Código de 1916, não é a sen-tença de interdição que cria incapacida-de. Então, se o indivíduo estava louco, naterminologia do Código revogado e praticaum negócio jurídico, este será nulo. Sehouver a sentença de interdição, claro estáque o outro contraente nem poderá ale-gar que desconhecia essa situação de in-capacidade. Contudo, vamos imaginar quealguém abra um jornal e leia um anúnciode uma venda de um apartamento e que,através de um corretor, vá até o imóvel econheça o vendedor, naquele mesmo diatire todas as certidões e mais tarde ve-nha a saber que, embora não interditado,o vendedor é louco. Sendo assim, sur-gem dois problemas: de um lado, a tute-la do interesse do incapaz, pois ele élouco. E, em segundo lugar, no outro pra-to da balança, a proteção a quem agiude boa-fé dentro daquela situação deaparência. E para que lado penderá abalança dentro do Código Civil novo?Como resolveríamos esse problema hoje?
Ministro Moreira AlvesO problema se resolve como resol-
vemos hoje, ou seja: esse problema nãofoi tratado no novo Código Civil. Essasempre foi uma questão realmente deli-cada, porque sem a interdição, sucedeque há muito louco, doente mental e atéretardado, que aparentemente nãoexterioriza isso.
O problema que surge é esse: per-guntam se será nulo ou anulável? Atéporque tem que se demonstrar que eleé louco. Será nulo mesmo ou isso é umato que deverá ser anulado, e portantohá a necessidade de uma decisão quedesconstitua esse ato?
É o problema que ocorre hoje. Eperguntam por que o Código Civil não
62 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
Então diz-se que nasce a pretensãoquando há a violação do direito subjeti-vo. Darei um exemplo que me parece bas-tante claro: há um contrato entre al-guém e um pintor para que pinte o seuretrato. O pintor, então, começa a pin-tar, perde a inspiração e, como não querjogar fora o seu nome, diz que não irácumprir essa obrigação de pintar o re-trato porque perdeu a inspiração e nãopode fazê-lo. Então, como ninguém podeser coagido a praticar um ato, conse-qüentemente aquela prestação que erade fazer, por aquele pintor, no momentoem que ele viola o direito subjetivo doque seria retratado, na realidade setransforma em uma prestação diversa,ou seja, em uma indenização se houveralgum prejuízo ou, então, que o que se-ria retratado contrate a pintura do seuretrato por um outro pintor, pague a essepintor e cobre do pintor primitivo aquiloque pagou ao que executou o seu retra-to.
Isso, em última análise, é o que oautor Pontes de Miranda disse que a pre-tensão seria, uma ação civil. Por quê?Porque é aquela pretensão que levada ajuízo deixa de ser ação civil, passando aser ação de direito público, que é justa-mente a ação decorrente do direito quese tem de se exigir do Estado que estepreste a jurisdição. (Essa prestação éjurisdicional no momento em que ingres-sa em juízo.) Contudo, enquanto isso nãoacontece, ela continua no terreno do di-reito privado, tanto assim que há neces-sidade de que a pretensão seja resisti-da, para que a proteção seja levada ajuízo.
Conseqüentemente, a pretensãoseria aquela modalidade de prestação di-versa da anterior, em que ainda nãohavia a violação do direito subjetivo eque vai ocorrer quando houver essa vio-lação. O que sucede inclusive nas dívi-das em dinheiro com o problema do au-mento em decorrência dos juros, dosjuros de mora, enfim daquelas quantiasque por ventura sejam punitivas em vir-tude da demora. Foi isso que se preten-deu quando se disse no artigo 189 que,
�violado o direito, (...)� - que é o subjeti-vo, pois só este pode ser violado. Quantoao direito potestativo, como sujeita aoutra parte, não há que se falar em vio-lação - �(...) nasce para o titular a pre-tensão, a qual se extingue, (...)� - o quese extingue é a pretensão, não é nem odireito subjetivo e nem a ação. Tanto queo autor Pontes de Miranda teve que in-terpretar a ação como ação civil, o queos alemães chamam de pretensão. E,conseqüentemente, quando se fala emação, todos pensam em ação judicial.Contudo, está errado, pois a ação judi-cial sempre existe. Em última análise,pela teoria abstrata da ação, ela nadamais é do que o direito de pedir ao Esta-do, que venha prestar jurisdição, tenhaou não razão.
Por outro lado, há um capítulo so-bre disposições gerais em que conservamuitas vezes o que há no Código de 1916:as causas que impedem ou suspendeme as que interrompem a prescrição. Emseguida, vêm os prazos de prescrição comaquela observação: só é prescrição aqui-lo cujo prazo estiver nos artigos 205 e206. Tudo mais será decadência, salvose expressamente se falar que é pres-crição.
Por isso mesmo, falou-se em prazode decadência na Parte Geral com rela-ção à anulação do negócio jurídico. E fez-se a distinção entre decadência legal ea convencional. A decadência legal éaquela que pode ser invocada ex officio
pelo juiz, enquanto que a convencional,não. Na decadência convencional, issodecorre da vontade das partes. É o caso,por exemplo, da retrovenda em que é pos-sível se estabelecer um prazo de deca-dência inferior a três anos e portanto aspartes podem renunciar a esse prazo, po-dem abrir mão dele e aí então se apli-cará o prazo legal de três anos, quepode ser declarado pelo juiz de ofíciotendo em vista que se trata de deca-dência legal.
Por outro lado, na decadência, sal-vo disposição em contrário, não se apli-cam as normas que impedem, suspen-dem ou interrompem. Por isso mesmo,
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 61
fui um defensor dele antes de ser juiz.Depois, quando verificamos as dificulda-des que há, e em matéria de dano mo-ral, confesso-lhes que talvez seja heré-tico, mas considero sempre que o efeitodo dano moral nada mais é do que propi-ciar uma pena privada em favor da víti-ma. Só com uma diferença: é uma penaprivada que é mais agravada ainda doque as penas privadas tradicionais quese limitam à pessoa do ofensor. Aqui essapena privada se transmite aos herdei-ros. Contudo, vejo como uma verdadeirahipocrisia se falar em reparação de dorou em satisfação de dor. Pergunto o se-guinte: um Rockfeller, por exemplo, po-deria receber alguns milhões de dóla-res como dano moral em virtude da dorque ele sofreu por um neto seu ter sidoatropelado? Isso para ele causa algumaalguma satisfação? Não. A única satis-fação que teria, é ver punido aquele queo ofendeu. E isso, em última análise,traduz-se em, sem quaisquer tipos dehipocrisias que sejam, sentimento deuma certa vingança. Não a vingança doolho por olho, dente por dente, mas, pelomenos, a de ver punido aquele que cau-sou o dano.
A grande dificuldade é quanto à fi-xação do valor do dano. Nos Estados Uni-dos, o indivíduo passa a vida inteira re-zando para que alguém o ofenda paraque ele enriqueça. Isso tem que ficar acritério do juiz e se espera que os juízessejam suficientemente esclarecidos nosentido de não transformar isso em in-dústria.
Por outro lado, aqui se determinacomo ato ilícito a figura do abuso de di-
reito. O artigo 187 diz: �Também come-te ato ilícito o titular de um direito que,ao exercê-lo, excede manifestamente oslimites impostos pelo seu fim econômicoou social, pela boa-fé ou pelos bons cos-tumes�. A boa-fé aqui é a boa-fé objeti-va.
Vêm agora a prescrição e a deca-dência. O novo Código tem um capítulosobre a prescrição e outro sobre a deca-dência, baseado naquilo que já está setornando clássico na doutrina em que
há decadência quando não há o cum-
primento de um direito potestativo. Há
prescrição quando há a violação de um
direito subjetivo. E mais, por isso mes-mo esses direitos potestativos são cha-mados de direitos sem pretensão por-que não dão margem a uma pretensão.Ao passo que os direitos subjetivos sãodireitos com pretensão porque dão mar-gem a uma pretensão. Então, por isso éque a nulidade e a anulação são prazosde decadência, enquanto que a violaçãode um direito de crédito, por exemplo,dá margem a um prazo de prescrição.
Por outro lado, adotou-se a figurada pretensão para fugir do problema deprescrever a ação ou o direito. Isso por-que do direito decai-se, mas sabem ossenhores que o direito subjetivo não de-saparece integralmente quando ocorreprazo de prescrição, tanto assim quesurge aquela figura tradicionalmente co-nhecida como a da obrigação natural.Isso, a meu ver, nada mais é do que aobrigação decorrente de um direito sub-jetivo enfraquecido que perdeu a suavirtualidade de ataque. E direito subje-tivo enfraquecido que, em última análi-se, se vira um título justificativo da não-repetição no caso de prescrição se hou-ver, por exemplo, um pagamento volun-tário, se a parte quiser pagar, obviamen-te por isso não é um mero dever moral,daí a figura da obrigação natural, quese a parte quiser solver a sua dívida cujapretensão esteja prescrita. Aqui não hádireito de repetição, por quê? Porquecontinua a existir aquele direito subje-tivo enfraquecido que atua como um ver-dadeiro título que legitima a não-repe-tição. E portanto legitima a transferên-cia da propriedade, com relação ao ob-jeto do pagamento, por não se tratar dedever meramente moral, mas de umdever jurídico decorrente dessa chama-da obrigação natural. A meu ver, é umtítulo justificativo da não-admissão darepetição no caso de o pagamento tersido voluntário. E é por isso mesmo quese fala em pretensão.
O que é pretensão? Essa é uma dasfiguras mais difíceis de se conceituar.
60 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
vontades e, conseqüentemente, por issoé que se fala em nulidade.
Por outro lado, ainda com relaçãoa esses defeitos, há o artigo concernenteà conversão do negócio jurídico. O arti-go 170 admite que o negócio jurídico nulopossa ser convertido, se tiver os requisi-tos de outro negócio que seja válido. Aca-ba com a imprecisão técnica do CósdigoCivil que fala em ratificação em matériade anulação, quando na realidade, rati-fica-se, dando poderes que não foram da-dos em matéria de representação, e seadota a técnica mais moderna, que é ada confirmação ou não do ato.
Com relação à nulidade, acaba oproblema da prescrição de nulidade. Nãohá prescrição de nulidade e nem deanulabilidade. Isso sempre foi dito comrelação ao casamento. Porém, com rela-ção ao negócio jurídico, há até umasúmula do Supremo dizendo que pres-crevem negócios nulos em vinte anos.Contudo, isso é uma erronia porque nes-se caso não existe violação de direitossubjetivos e, conseqüentemente, não hánenhuma pretensão decorrente dessa vi-olação. Logo, não há prescrição nenhu-ma tendo em vista a circunstância deque aqui não se viola direito de outro.Apenas o que há é um fato que vicia e,portanto, invalida um negócio celebradoentre as partes. Por isso, em matéria deanulação, o prazo passa a ser de deca-dência. Tanto que diz o artigo 178: �É dequatro anos o prazo de decadência parapleitear-se a anulação do negócio jurí-dico, contado: (...)� Enfim, aqui se man-têm aquelas regras que, pelo Código se1916, se aplicam com relação à prescri-ção. Mas é prazo de decadência. E ossenhores irão observar uma circunstân-cia: na Parte Geral tudo aquilo que forprazo de decadência vem expresso comoprazo de decadência. O que não estiverexpresso, mas estiver nos artigosconcernentes à prescrição, tratar-se-áde prescrição.
E, mais ainda, para facilitar, noCódigo Civil todos os prazos da Parte Es-pecial que não forem expressamente di-tos prazos de prescrição, são de deca-
dência. Os prazos de prescrição são ape-nas aqueles mencionados na Parte Ge-ral como: �são prazos de prescrição detantos anos�.
Isso facilita obviamente o que noCódigo Civil sempre foi um problemasério. E mais, gerava-se, em matériade casamento, nulidade e anulação -prazo de decadência; em matéria de ne-gócio jurídico - prescrição.
Por outro lado, com relação ao ne-gócio nulo, este não é sanável por de-curso de tempo; o que pode ocorrer é aprescrição em decorrência, por exem-plo, da restituição de alguma coisapaga em virtude de contrato nulo. Con-tudo, aí o problema é de prescrição,porque se trata do direito de obter res-tituição, e não problema decorrente dadeclaração de nulidade do negócio ju-rídico. Por isso é que se diz que o ne-gócio jurídico não se sana pelo decur-so de tempo.
A seguir vem o Título II - Dos Negó-cios Jurídicos Lícitos, a que já aludi, eo Título III - Dos Atos Ilícitos, em que háalgumas alterações importantes: com re-lação aos atos ilícitos se retira do artigo159 do Código atual, que fala: �violar di-reitos ou causar dano�.
No artigo 186 do novo Código Civilse coloca: �violar direitos e causardano�, porque se trata de ato ilícitoabsoluto e este decorre justamente nãode atos ilícitos relativos (como porexemplo o contrato), mas decorre da-queles atos que são absolutamente ilí-citos, ou seja: são violações de direitosubjetivos que se opõem contra todose por isso são chamados direitos abso-lutos. Então é por isso que se coloca�violar direito e causar dano�. Com aadmissão da possibilidade de haveruma violação que não cause dano denatureza material.
Dispõe o artigo 186: �Aquele que,por ação ou omissão voluntária, negli-gência ou imprudência, violar direito ecausar dano a outrem, ainda que exclu-sivamente moral, comete ato ilícito.�
Confesso aos senhores que quantoa esse problema do dano moral, sempre
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 59
ação não tinha, ou não devia ter, esseconhecimento, portanto se preserva asua boa-fé subjetiva e se preserva comisso o negócio.
O estado de perigo e a lesão são doisinstitutos novos que apresentam uma di-ferença: em um caso, há o estado de pe-rigo em que não há possibilidade (comoocorre na lesão) de não se decretar aanulação do negócio se for oferecido su-plemento suficiente ou se a partefavorecida concordar com a redução doproveito. Por outro lado, na lesão, há aocorrência da premente necessidade ouda inexperiência, ao passo que no estadode perigo é apenas a premente necessi-dade de salvar-se. E também, tratando-se de pessoa não pertencente à famíliado declarante, o juiz decidirá se ocorreou não essa figura do estado de perigocomo defeito do negócio jurídico.
Na fraude contra credores, as mo-dificações são pequenas. Ampliou-se onúmero de legitimados, admitindo queigual direito assiste aos credores cujagarantia se tornaria insuficiente. Issode maneira expressa se admitiu. Há pe-quenas modificações a esse respeito.
No capítulo concernente àinvalidade do negócio jurídico, colocou-se a simulação, que deixa de ser defeitodo negócio jurídico e, portanto, um cha-mado vício social do negócio jurídico, àsemelhança, aliás, da fraude contra cre-dores, que não é propriamente um de-nominado vício da vontade. Mas deixade ser, porque aqui não ocorre propria-mente vício, o que há é falta de vontade.E, conseqüentemente, acaba com simu-lação inocente, simulação não inocen-te, não importa o que seja.
Se a simulação é absoluta, o negó-cio jurídico se diz nulo, justamente por-que há uma aparência da existência denegócio jurídico. E se a simulação é re-lativa, é nulo o negócio simulado e o ne-gócio dissimulado poderá ser válido sese admitir a sua validade conforme a fi-gura que ele represente. Portanto, nes-te caso, continua-se a admitir simula-ção inocente. É o caso, por exemplo, dealguém fazer uma doação a um amigo
que era muito rico e ficou pobre e quenão quer com isso parecer que está dan-do esmola. Então ele faz essa doação si-mulando uma compra e venda - o que oCódigo Civil chamava de simulação ino-cente - mas que, obviamente, continuaa ser admitida, pois é nula essa simula-ção que é relativa porque na realidade oque vai valer é o contrato de doação, onegócio jurídico dissimulado.
Por outro lado, também acaba comaquela regra de que um simulante nãopode opor-se a outro simulado, o que criaproblemas. Por exemplo, com relação anegócio usurário, lembro-me de que tiveum recurso extraordinário em que a saí-da foi a Súmula 400. Hoje essa é asúmula mais odiada, contudo, naquelaépoca, foi a súmula mais genial que oSupremo fez em toda a sua história,quando falava em negativa de vigência enão, em contrariedade. Ele dizia que sea interpretação for razoável, não for ab-solutamente desarrazoada, não é nega-tiva de vigência. Então, como não falavaem contrariedade que diz respeito à in-terpretação - hoje o STJ fala em contra-riedade ou negativa de vigência, de modoem que aí se afasta a Súmula 400 porcausa da contrariedade - contudo naqueletempo era diferente - a saída que se teveem um caso de simulação para dissimu-lar um negócio usurário foi justamente ade que parte da doutrina, pelo menos, eme lembro de que até foi citado o meuprofessor de algumas aulas, que foi umdos Desembargadores que mais honra-ram esse Tribunal, o DesembargadorSerpa Lopes. Ele sustentava que emborao Código falasse que um simulante nãopodia se valer da simulação para subtra-ir-se aos efeitos do negócio simulado,nesse caso, tendo em vista a gravidadedo vício, da nulidade decorrente de umnegócio dissimulado usurário, era de ad-mitir-se que houvesse a possibilidadedessa invocação de simulação por umsimulante; porém isso tudo acabou. Hojeé considerado nulo, e não inexistente.Em rigor deveria ser inexistente, contu-do é considerado nulo porque há essaaparência decorrente de um acordo de
58 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
são modalidades de negócios, masautolimitações da vontade. Não há propri-amente uma modalidade de negócio sobcondição. É um negócio cuja vontade éautolimitada pela condição. Com referên-cia a esse tratamento, destaco que o arti-go 121 diz: �Considera-se condição acláusula que, derivando exclusivamenteda vontade das partes, subordina o efeitodo negócio jurídico a evento futuro e in-certo.� Aqui, portanto, estamos em umaconcepção subjetiva, condição como cláu-sula, e não o conteúdo dessa cláusula,mas em seguida, vem o aspecto objetivo,subordinado ao efeito do negócio jurídicoa evento futuro e incerto. E declarou-seexpressamente que só há condição quan-do ela deriva exclusivamente da vontadedas partes. As chamadas condiciones
iuris, as condições de direito, não são con-dições, mas requisitos de eficácia do ne-gócio jurídico, mas não condições no sen-tido técnico, por isso tirou-se do novo Có-digo Civil a condição tácita, a qual é re-quisito, não é condição. Por outro lado, dis-ciplina-se a invalidade das condições in-compreensíveis ou contraditórias, o Códi-go Civil não trata disso.
Com relação ao encargo ou modo,nesse capítulo, disciplina-se o problemade encargo ilícito ou impossível em quese considera não anulável o negócio, mascomo não escrito o encargo ilícito ouimpossível, salvo se constituir um moti-vo determinante da liberalidade. Vejamos senhores: aqui não se usa a expres-são causa, pois o Código novo continua aser anticausalista, por isso mesmo é queno artigo 90, do Código Civil de 1916,onde antes se falava em causadeterminante, modificou-se tambémpara motivo determinante.
Em seguida vêm os defeitos do ne-gócio jurídico, onde se incluem duas fi-guras novas com relação ao Código de1916, que são o estado de perigo e a le-são. Aqui, no tratamento do erro, háalgumas modificações sendo que se dis-ciplina especificamente o chamado errode direito, que não se confunde comaquela que alguns dizem presunção,dizem outros ficção, de que a ninguém é
dado ignorar a lei, porque o erro aqui éconsiderado como elemento capaz deinvalidar o negócio jurídico para que serespeite a lei, e não para que se viole alei. É aquele caso de um negócio jurídi-co em que se compra um terreno parase erguer uma fábrica. Ambas as partessabem disso, mas ignoram que há umapostura municipal que proíbe que naque-le local se edifiquem fábricas, portantonesse caso se admite (é a teoria clássi-ca do erro de direito) a invalidade do ne-gócio pelo erro de direito. Por outro lado,o erro de cálculo apenas autoriza a reti-ficação da autorização de vontade.
Em seguida vem o dolo, vem o tra-tamento do dolo em que se continua aobservar aquela diferença entre o doloacidental e o causal.
Depois vem o tratamento da coação,em que se admite a coação que diz respei-to à pessoa não pertencente à família. Ossenhores vão observar que o novo Códigoconcede ao juiz grandes poderes, inclusi-ve várias cláusulas gerais, até a boa-fé ob-jetiva, justamente por isso não é possível otratamento pormenorizado normativo deuma série de condutas, de uma série deatitudes, de uma série de atos.
Pois bem, então se admite que hajacoação quando a ameaça diga respeito aterceiro que não seja pertencente à fa-mília do paciente, cabendo ao juiz veri-ficar se, no caso, realmente, ocorre essaameaça. Aqui continua a coação comovício, compulsiva, e não, portanto, comocoação física, que é falta de vontade.
Por outro lado, há um dispositivoque é bastante importante, o artigo 155que diz: �Subsistirá o negócio jurídico,se a coação decorrer de terceiro, semque a parte a que aproveite dela tivesseou devesse ter conhecimento; mas oautor da coação responderá por todas asperdas e danos que houver causado aocoacto�.
O Código Civil, neste caso, anula onegócio jurídico. No novo Código pre-serva-se o negócio, estabelecendo-seperdas e danos para aquele que foi o cau-sador. E se preserva o ato justamenteporque a parte que aproveitou dessa co-
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 57
Por outro lado, tratou-se do silên-cio, considerando que ele importaanuência quando as circunstâncias ouos usos o autorizarem e não for neces-sária a declaração de vontade expres-sa. Daí seguem-se três regras de in-terpretação, sendo que uma foi retira-da dos contratos. Os negócios jurídicosbenéficos e a renúncia interpretam-seestritamente; isso, no Código Civil, es-tava nos contratos. E no artigo 113 (ar-tigo mais importante com relação à in-terpretação), adotou-se a boa-fé objeti-va, ou seja, aquela boa-fé preceptiva,que no nosso direito já vinha do artigo131 do Código Comercial. Esse artigotambém falava que os contratos comer-ciais também deviam ser interpretadosconforme a boa-fé. Contudo a nossa dou-trina em geral considerava que aquelaera a boa-fé subjetiva, o que é um erro,pois a boa-fé subjetiva é ínsita ao sujei-to.
Quando se fala que o negócio deveser interpretado de acordo com a boa-fé, isso se traduz naquela boa-fé, cha-mada pela doutrina como boa-fénormativa, ou seja, aquela boa-fé queimplica a regra de que os negócios jurí-dicos devem ser celebrados com lealda-de, com transparência e, mais, que im-plica inclusive a possibilidade de o juizconsiderar que, na declaração de vonta-de, ainda que ela seja lacunosa com re-lação a certos deveres, chamados deve-res secundários ou instrumentais -como, por exemplo, o dever de custódiada coisa, embora no contrato não se alu-da a isto como uma obrigação da parte;o dever de sigilo pelos segredos que sesabe em decorrência do negócio; o de-ver de permitir que se execute perfeita-mente o contrato, por uma das partes -são deveres que, muitas vezes, não es-tão expressos no contrato, mas que de-correm justamente dessa boa-fénormativa, objetiva.
Conseqüentemente, coloca-se aquique os negócios jurídicos devem ser in-terpretados conforme a boa-fé e os usosdo lugar da sua celebração, dando ao juizuma certa margem. Digo isso, mas não
para que cada juiz julgue de acordo coma sua cabeça e o seu conceito de justi-ça, até porque a coisa mais injusta domundo é não saber, de antemão, qual ojuiz que irá nos julgar e qual o conceitode justiça que ele tem.
O problema aqui, evidentemente, éde se aplicarem aqueles princípios, pois,obviamente, não é possível estabelece-rem-se todos os deveres secundários quesão os instrumentais, mas que se admi-tem como ínsitos a uma regra de leal-dade entre as partes e de observânciadaquilo que lealmente se deve observar,em decorrência da celebração de umnegócio jurídico de natureza bilateral ouplurilateral.
Em seguida vem o tratamento darepresentação. É um capítulo novo, oCódigo Civil também não tem esse capí-tulo, onde se estabelecem princípiosapenas com referência à representaçãolegal. Como disse aos senhores, no an-teprojeto também se aludia à represen-tação convencional. Contudo a Comis-são também não aderiu a isso e se man-teve apenas uma disciplina sobre a re-presentação legal, sendo que no artigo120 se diz que na representação volun-tária os requisitos e efeitos vêm na Par-te Especial, que é justamente na disci-plina do contrato de mandato. Nesse ca-pítulo da representação, há a disciplinado contrato consigo mesmo. Há a disci-plina do conflito entre representante erepresentado, sendo que com relação aocontrato consigo mesmo, os senhores en-contram no artigo 117: �salvo se o per-mitir a lei ou o representado, é anulávelo negócio jurídico que o representante,no seu interesse ou por conta de outrem,celebrar consigo mesmo�. Parágrafo Úni-co: �Para esse efeito, tem-se como cele-brado pelo representante o negócio rea-lizado por aquele a quem os poderes hou-verem sido substabelecidos.� De modo queé para pegar também o substabelecido atu-ando em lugar do representante.
Depois vêm as autolimitações da von-tade. E aqui temos a condição, o termo ouencargo. Não se fala mais em modalidadede negócio jurídico. Isso na realidade não
56 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
sentação é ínsita ao contrato de man-dato, ao contrário de outros sistemasjurídicos, como, por exemplo, o sistemajurídico romano em que não havia essavinculação entre a representação e ocontrato de mandato.
A seguir, vem o tratamento da con-dição, do termo e do encargo, porque sãoautolimitações à vontade. E tanto sãoautolimitações da vontade que, tradici-onalmente, denominam-se elementosacidentais. Contudo, a qualidade deacidentalidade eles só têm enquanto sãoabstratos, pois no momento em que onegócio é celebrado sob condição a ter-mo ou é praticado com encargo, esseschamados tradicionalmente elementosacidentais se tornam essenciais, porquesão autolimitações da vontade. Portan-to, vem uma seqüência lógica, depois dese tratar dos requisitos de validade, su-mariamente; da manifestação de vonta-de; da interpretação da vontade; da re-presentação (que diz respeito também àvontade), vem a disciplina dessas cláu-sulas que autolimitam a vontade. Emseguida vem o tratamento dos defeitosdo negócio jurídico para, posteriormen-te, vir um capítulo concernente àinvalidade do negócio jurídico. E, final-mente, já não mais no título negócio ju-rídico, vem o título II - Dos Atos Jurídi-cos Lícitos - justamente para caracteri-zar a diferença entre os outros atos ju-rídicos que não são negócios jurídicos.
Com relação à disciplina do Negó-cio Jurídico, temos, nas disposições ge-rais, que atentar para as seguintes ino-vações: em primeiro lugar, a reservamental, do artigo 110: �A manifestaçãode vontade subsiste, ainda que o autorhaja feito a reserva mental de não que-rer o que manifestou, salvo se dela oque o destinatário tinha conhecimento.�Há uma circunstância que é importanteobservar: aqui, em rigor, se consideraesse negócio jurídico como inexistente.Por isso mesmo não se acatou uma dascríticas que fizeram no sentido de quedeve ser nulo. Tanto que não se disseque essa manifestação de vontade,quando o destinatário tiver conhecimen-
to da reserva mental, acarretaria a nu-lidade. Mas sim: subsiste, se não tiverconhecimento e não subsiste, ou seja,não se forma, se tiver esse conhecimen-to. Ao contrário do que vai ocorrer com asimulação, onde também há falta de von-tade.
Então, a reserva mental é um casode falta de vontade, como a simulação.Contudo, na reserva mental não há oacordo de vontade entre os simulantes,sendo portanto uma circunstância uni-lateral, enquanto que na simulação hásempre o acordo entre os simulantes.Lá há uma aparência que se cria. Daí arazão pela qual se considerou que deve-ria ser tratada como nulidade propria-mente. É certo que, a não ser nesse dis-positivo, eu, pelo menos não encontro ne-nhum outro em que se trate deinexistência, não naquele sentido que érealmente difícil de se determinar o queseja, em matéria de negócio jurídico emgeral, um negócio jurídico inexistente,tendo em vista o fato que geralmente sediz: �são aqueles negócios em que faltaum elemento material.� Aqui é muitodiferente do que ocorre com o casamen-to, que é um ato entre um homem e umamulher. Assim, o fato de duas pessoasdo mesmo sexo se casarem é considera-do um casamento inexistente, assimcomo o casamento celebrado por delega-do de polícia, por exemplo. Mas essa teo-ria da inexistência, em matéria de casa-mento sempre teve relevo, até pela dife-rença da inexistência com relação à nu-lidade. Nessa se exige, inclusive, umaação declaratória de nulidade; enquantoque lá, a nulidade se confunde com ainexistência com referência aos seusefeitos, porém nesse tratamento aqui sefalou em subsistência e insubsistênciaporque o ato não chega sequer a formar-se, tendo em vista que, quando uma par-te declarou com reservas e a outra sabiadessa reserva, isso era como uma decla-ração jocosa de vontade, uma brincadei-ra ou uma representação teatral, em queambas as partes sabem que aqui não háato nenhum e, portanto, o negócio jurídi-co é absolutamente inexistente.
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 55
tar-se-ia inclusive a possibilidade dea parte contrária saber qual seriaesta vontade interna.
Jamais vingou uma teoria da con-cepção do negócio jurídico como sendouma declaração de vontade, em queaquilo a que se devesse dar relevânciaseria apenas a declaração, tendo em vis-ta também a circunstância de que essateoria fosse absolutamente objetiva, demodo que muitas vezes a declaração nãocorresponderia àquilo que realmente aspartes desejaram ou àquilo que se pre-sumia que elas tinham desejado. Porisso mesmo é que a concepção subjetivaseguida aqui, e de certa forma era se-guida no Código Civil (Eduardo Espíndola,por exemplo, sempre defendeu isso), erauma concepção subjetiva mitigada pelacircunstância de que o declarante seauto-responsabiliza por uma declaraçãomal feita. E o declaratário tem a seufavor a confiança que emana para eledaquilo que foi declarado. Isso significadizer que se continua a considerar queo elemento preponderante é a vontade(ao contrário do que ocorre com a con-cepção preceptista) mas não aquela von-tade interna absoluta, não é aquilo quea doutrina chama de dogma da vontade,como vem desde Savigny no Século XIX.É uma concepção subjetiva mitigada,justamente porque se leva em conside-ração a declaração se ela foi mal feitae, conseqüentemente, por falha do de-clarante, ele se auto-responsabiliza poraquele defeito.
E com relação ao declaratário, eletem a sua posição preservada desde omomento em que aquela declaração pôdegerar nele a confiança de que era umadeclaração que devesse acolher. Istodecorre, inclusive, de alguns princípiosque se adotam no projeto. Assim, porexemplo, o problema de uma modifica-ção que se fez no artigo 85 do CódigoCivil de 1916, que era o único preceitorelativo à interpretação com referênciaao ato jurídico. O artigo 85 dizia o se-guinte: �Nas declarações de vontade seatenderá mais à sua intenção que aosentido literal da linguagem.�
Desde o manual de Paulo Lacerda,naqueles quatro volumes, que EduardoEspíndola apresentou como comentá-rios relativos aos atos jurídicos, ele jásustentava que embora se fale �se aten-derá mais a sua intenção�, dizia ele:�Não é bem assim, isso não significa queseja o dogma da vontade interior. Deveser interpretado esse dispositivo comose ele dissesse que se atende mais aintenção nas declarações de vontadeconsubstanciadas.� Essa crítica, a meuver, é perfeitamente acolhível e, conse-qüentemente, por isso é que se fez alte-ração que, aparentemente, muitos po-derão dizer a mesma coisa, mas que nãoé. Isso justamente para mostrar que aquinão há teoria da vontade interna pura,dogma de vontade, tanto que se disseque �nas declarações de vontade seatenderá mais à intenção nelasconsubstanciadas.� Quer dizer: leva-seem consideração a intenção, pois da sim-ples declaração não se pode interpretartambém contra a manifesta vontade daspartes. Mas considera-se mais a inten-ção nelas consubstanciadas do que osentido literal da linguagem e, conse-qüentemente, não há nem o dogma dadeclaração, pois a declaração prevale-ceria sobre tudo, nem o dogma da von-tade, em que a vontade interna é queteria prevalência absoluta.
Nas disposições gerais, os senho-res observem que a estrutura do trata-mento do negócio jurídico foi diferenteda estrutura dada pelo Código Civil. Aquia estrutura inicia com disposições ge-rais, em que se começa com alusão aosrequisitos de validade. Em seguida, tra-ta-se de problemas que se relacionam àmanifestação de vontade e à interpre-tação dessa manifestação de vontade; aseguir vem, um capítulo relativo à re-presentação, que no anteprojeto origi-nal, tratava tanto da legal quanto da con-vencional, mas que, por maioria, a co-missão revisora daquela época enten-deu que devia tratar apenas da repre-sentação legal, e não da convencional,remetendo esta, como é da nossa tradi-ção, ao contrato de mandato. A repre-
54 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
que não é tão louco para pular o muroenquanto o vizinho estiver lá, espera queeste saia em férias, e então pula o muroe esculpe uma belíssima estátua. Comisso, sucede que se torna proprietário,tendo em vista o modo de aquisição daespecificação. Apesar de juridicamentenão ter vontade e juridicamente não tersequer consciência, daí a razão pela qualnão se pode identificar esta ação huma-na com aquelas outras do garoto que pes-ca o peixe ou a do casamento, ou aindaoutras em que haja efeitos estritamentelegais, tendo em vista a circunstância deque lá há a necessidade de uma consci-ência ou a necessidade de uma vontadequalificada, embora os efeitos não sejamnegociais. Aqui, não. A doutrina alemãchama de ato-fato, principalmente porisso: são ações humanas natura-listicamente, mas que juridicamente sãoconsideradas como fato jurídico em sen-tido estrito, assemelhados, por exemplo,à queda de um raio em uma árvore queextingue o direito de propriedade. Por issomesmo é que a esses atos-fato não seaplica nenhum dos princípios do negóciojurídico, ao contrário do que pode ocor-rer em relação aos fatos jurídicos em sen-tido estrito.
Isso é importante inclusive sob umaspecto: aquele caso da compra do picolépela criança, não há dúvida alguma deque é uma compra e venda, que a doutri-na chama de compra e venda manual.Pergunta-se: por que essa compra e ven-da manual não é um contrato? Não é umcontrato justamente por ser um ato jurí-dico em sentido estrito; aqui, basta a sim-ples consciência e os efeitos são rigoro-samente legais. Não é possível estabele-cerem-se efeitos que não os que estejamna lei. Portanto, não há necessidade davontade qualificada, basicamente por nãohaver sequer a autonomia da vontade ea lei, por isso mesmo, estabelecer que osefeitos são, puramente, os legais.
Esse exame, a meu ver, é impor-tante, já que até hoje não se conseguiufazer uma doutrina geral a respeito dosatos jurídicos em sentido estrito, comonão se conseguiu também fazer uma te-
oria geral sobre os fatos jurídicos emsentido estrito. Tendo em vista, princi-palmente com relação aos atos jurídicosem sentido estrito, o fato de eles sereminumeráveis. Qualquer ato que produzaefeitos legais, e portanto sejam atos ju-rídicos em que não haja vontade negocial,se enquadra nessa categoria. Ou neces-sitando de uma simples consciência, oude uma vontade qualificada, embora essavontade qualificada não dê margem à pos-sibilidade de se estabelecer um conteú-do negocial. Daí a razão pela qual não háuma teoria geral a esse respeito. Por issomesmo é que, naquele título relativo aosatos jurídicos lícitos, se diz que se apli-cam aos atos jurídicos, que não são ne-gócios jurídicos, tudo aquilo que for cabí-vel. Compete, evidentemente ao juiz, ten-do em vista a circunstância de que nãoseria possível fazer no Código algo quenem mesmo a doutrina consegue fazer.Faremos uma análise sobre o negócio ju-rídico, análise, evidentemente, sumária,destacando os pontos importantes.
Em primeiro lugar, é de se salien-tar que se mantém no Código atual aconcepção subjetiva do negócio jurídico.Sabem os senhores, que ao lado daconcepção subjetiva há uma concep-ção defendida por alguns grandes ju-ristas, como Betti, na Itália, que ado-ta uma teoria normativa, que é umateoria objetiva do negócio jurídico. Emque se considera (também chamadaconcepção preceptiva) que do negóciojurídico não nascem propriamente re-lações jurídicas, e sim normas queautodisciplinam as relações que se es-tabelecem entre as partes em virtudedo negócio jurídico. Essa doutrina, ge-ralmente, não tem sido seguida pelosCódigos, que adotam, em geral, a con-cepção subjetiva. Não uma concepçãosubjetiva radical, em que se conside-ra absolutamente predominante achamada vontade interna, ou vontadeinterior, tendo em vista a circunstân-cia de que, se assim fosse, seria mui-tas vezes quase impossível de se afe-rir exatamente, a não ser por meio depresunções. Muito mais que isso: afas-
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 53
a consciência, há outros em que há ne-cessidade não apenas da consciência,mas até da vontade qualificada. Emboraisso seja bastante controvertido, a meuver, é a categoria em que se pode encai-xar a figura do ato jurídico do casamen-to, em virtude do qual nasce a relaçãojurídica do casamento. Esse ato jurídicoexige vontade qualificada, não há dúvi-da alguma. Mas pergunta-se: é possívelaos nubentes darem conteúdo a esse atoou o conteúdo desse ato é dado estrita-mente pela lei? Há autonomia da vonta-de? Há a possibilidade de as partes mo-dificarem os efeitos legais que são atri-buídos ao casamento, como, por exem-plo, casar-se sob a condição de se dis-solver o casamento, se um dos cônjugesdeixar de gostar do outro após certo tem-po, ou casar-se a termo?
Vejam os senhores que todos aque-les princípios que dizem respeito à au-tonomia da vontade, não se aplicam. Nãohá a chamada vontade negocial, de modoque fica difícil sustentar que o casamen-to seja um contrato. Além disso, essafigura do contrato não atenderia ao ca-samento, tendo em vista a circunstân-cia da necessidade daquilo que a dou-trina geralmente chama de testemunhaqualificada, que é a presença de um sa-cerdote (no caso do casamento religiosodepois convertido em casamento civil) ea presença de uma autoridade civil compoder para celebrar o casamento. O atocomplexo, criado na Alemanha, diz queo casamento não é um contrato, porquese exige naquele essa vontade qualifi-cada; seria sim um ato dos três, �atocomplexo�, em que dois participavam ati-vamente e o outro era uma testemunha,embora uma testemunha tão qualifica-da que tinha que declarar os nubentes�casados�, pois sem essa declaração nãohaveria casamento. Vejam que esse atojurídico é diferente daquele que se cha-ma negócio jurídico, em que a principalespécie é justamente a do contrato. Nes-ses atos jurídicos em sentido estrito,quando se exige apenas consciência, nãohá maior problema porque aqui não hávontade negocial, não há possibilidade
de conteúdo negocial, e os efeitos desseatos são estritamente os efeitos legais.Quanto ao casamento, há uma série deprincípios que se aplicam ao negócio ju-rídico com relação à vontade qualifica-da, e aí há uma observação digna de serfeita: os senhores reparem que os Códi-gos têm uma teoria sobre o casamento,uma teoria que se aparta, de certa for-ma, da teoria geral do negócio jurídico.Assim, por exemplo, não se admite doloem matéria de casamento para efeito deanulação, isso devido àquele princípiofrancês: �Qui a fait de mariage, trompe qui
peut�, ou seja, em se tratando de casa-mento, engana quem pode, e alguns maissatíricos diriam: enganado quem quer.Por outro lado, há casos de coação, quesão típicos de casamento e não dos ne-gócios jurídicos em geral. Nos Códigoshá, portanto, um tratamento diferencia-do do casamento com relação à ParteGeral concernente ao negócio jurídico,justamente por isto: certos princípios donegócio jurídico são aplicáveis, mas ou-tros não o são, tendo em vista a circuns-tância de que, com relação aos efeitos,não havendo a autonomia da vontade nosentido de poder dar conteúdo ao ato,não temos que o casamento possa serqualificado como negócio jurídico, pelomenos no meu entendimento, emborahaja muitos que continuem a sustentarisso, mas com essa dificuldade: ondeestá a vontade negocial, que é absoluta-mente necessária ao negócio jurídico eao contrato, que é a principal figura donegócio jurídico?
Finalmente, aquilo que na doutri-na alemã é chamado, ao mais das vezes,de atos-fato, que outros chamam de atosde atuação. Mas esses atos-fato jurídicosão, naturalisticamente, atos de vonta-de, mas juridicamente, não. Ou seja: alei não leva em consideração, de formaalguma, a vontade de quem praticou oato. O exemplo clássico é o daespecificação: a do escultor louco, quepelo simples fato de ser louco não deixade poder ser um gênio, e um dia verifi-ca que no terreno do vizinho tem umabela pedra de mármore informe, e ele,
52 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
atos jurídicos, porém diante de atos ju-rídicos praticados em desconformidadecom a lei ou com os bons costumes.Essa alusão aos outros atos jurídicosfoi feita com certo caráter didático.Sabem os senhores que Código não élivro de escola, mas tem também umcaráter didático em matéria dessa re-levância, porque, graças aos estudosque começaram principalmente comManick e com Klein, verificou-se quenão era mais possível adotar-se, tec-nicamente, aquela generalidade da ex-pressão ato jurídico, como se fosse tudoa mesma coisa, tendo em vista o fatode que distinguimos nitidamente es-pécies de atos jurídicos que apresen-tam uma disciplina diversa. E mais:alguns atos aparentemente são jurí-dicos, mas na realidade são fatos jurí-dicos no sentido estrito. Para sinteti-zar, é uma matéria que demandariauma explanação muito maior, pois ossenhores encontram hoje, em geral, adoutrina aludindo a três tipos de atojurídico. Sendo que o terceiro nem se-quer é propriamente ato jurídico. Aquiloque os alemães chamam de atos-fatojurídico, que foi a nomenclatura ado-tada por Pontes de Miranda no Brasil.Na Itália, Cariota Ferrara, por exem-plo fala em meros atos jurídicos. Oschamados atos jurídicos em sentido es-trito, apresentam uma particularida-de: alguns são bastante semelhantesao negócio jurídico, outros são bem di-versos. Finalmente o negócio jurídico.A diferença entre eles se faz ou pelaanálise da vontade, ou pela análise dadisciplina que se lhe dá.
Com relação aos negócios jurídicos,são atos jurídicos que exigem, necessa-riamente, uma vontade qualificada que,pelo princípio da autonomia da vontade,permite que as partes dêem conteúdo aesse ato jurídico desde que, evidente-mente, não seja ele contrário às leis eaos bons costumes. Mas essa vontade,chamada negocial, tem que ser qualifi-cada justamente por isto: porque graçasa ela é possível dar-se conteúdo. Por issomesmo, na chamada teoria objetiva do
conceito de negócio jurídico, diz-se queo negócio jurídico é a auto-regulamen-tação das relações entre as partes, con-seqüentemente é normativo, no sentidode se criarem normas para disciplinaras relações entre as partes, relaçõesque decorrem desse negócio jurídico. Daía razão pela qual verificamos que todaaquela disciplina que vem nos capítulosconcernentes aos atos jurídicos do Có-digo de 1916, na realidade, aplica-se aonegócio jurídico. Ou seja: àqueles atosjurídicos que necessitam de uma von-tade qualificada e mais � que, pelo prin-cípio da autonomia da vontade, podemdar, até certo ponto, conteúdo a esseato jurídico praticado.
Temos os atos jurídicos em senti-do estrito e aí há uma subdivisão: al-guns demandam apenas consciência,não exigem sequer vontade (assim,por exemplo, é o caso da ocupação),adquire-se a propriedade quando al-guém se apodera de coisa sem dono.Ora, o apoderar-se significa ato deassenhoreamento e para isso é precisoque haja consciência. Então o recém-nas-cido, por exemplo, se segurar uma vari-nha de pesca e, durante aquele perío-do de tempo em que está agarrado àquelavara, se for fisgado um peixe, este nãoserá dele. Mas um garoto de 5 ou 6anos, que já tenha consciência, embo-ra não sabendo o que é o direito de pro-priedade, ele sabe que está pescandoaquele peixinho para levar para sua mãefritar. Conseqüentemente, nesse últi-mo caso, já temos que ele se tornaproprietário bastando apenas a simplesconsciência. Não se aplicam, é claro, aesses atos, aqueles princípios que di-zem respeito ao negócio jurídico, comoa representação, problema de capaci-dade, de autonomia da vontade, enfim,todos aqueles dispositivos que, como severifica pelo próprio exame dos atos ju-rídicos, aplicam-se apenas àqueles quenecessitam de uma vontade qualifica-da, com a possibilidade de ela dar con-teúdo negocial a este ato jurídico.
Mas ao lado desses atos jurídicosem sentido estrito, para os quais basta
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 51
da prova, tendo em vista a circunstânciade que a prova não é apenas de negóciojurídico, mas de qualquer fato jurídico.
Neste Livro III, a parte mais com-plexa é, sem dúvida, a relativa ao ne-gócio jurídico. Adotou-se essa nomen-clatura, afastando-se a de ato jurídi-co do Código Civil, porque o Código de1916, quando foi elaborado, emboraClóvis Beviláqua fosse muito apegadoaos autores alemães, nesse particu-lar seguiu a orientação francesa. Nãoadotou a figura do negócio jurídico,talvez por considerar que era uma fi-gura muito técnica, no sentido demuito abstrata. Adotou então a técni-ca, que vem do Código de Napoleão,de falar em ato jurídico, como se to-dos os atos que produzissem efeitosjurídicos fossem atos jurídicos.
Lembro-me de que, quando estu-dante de Direito, escrevi um artigo paraum livro, uma coletânea de trabalho, queé a vergonha de minha vida. Eu dizia alique não podia entender quando se fala-va nos requisitos e na validade e se exi-gia: a capacidade das partes, objeto líci-to, possível, determinado e forma pres-crita ou não defesa em lei. �Não dá paraentender, será que na ocupação, porexemplo, quando Joãozinho vai pescarum peixe é possível exigir-se capacida-de das partes para efeito de anular essapescaria que ele fez? Ou no caso deMariazinha que vai ao bar da esquinapara comprar um picolé com trocadosdados por sua mãe? Isso sendo um con-trato, obviamente, daria margem à apli-cação: incapaz absolutamente de fato �nulidade, daria margem para que se per-guntasse: será que caberia representa-ção pelo pai ou pela mãe? E se não ostivesse, caberia ao tutor?� Por isso mes-mo, ainda estudante, escrevi esse arti-go, quando ainda não se falava nisso.
Na doutrina brasileira, não conhe-ço nenhum trabalho daquela época emque se tratasse dessa matéria. Proble-ma aliás, que mesmo na doutrinagermânica, os senhores só vão encon-trar a partir de Savigny, e portanto, apartir do corifeu da Escola Estóica, os
primeiros acenos a esse respeito. Sen-do que mesmo nos pandectistas do finaldo século, os senhores não encontramnenhuma teoria sobre as diferentes es-pécies dos atos jurídicos, que não aque-le disciplinado pelo Código de 1916, emque na técnica germânica usou-se o ter-mo correspondente de negócio jurídico.
Vamos encontrar estudos maisaprofundados a esse respeito somentedepois da promulgação de nosso CódigoCivil, graças a um grande civilista ale-mão que foi Manick, que escreveu vári-os trabalhos a esse respeito, e a umentão jovem civilista austríaco, PeterKlein, que também escreveu um livrosobre as atuações humanas que nãoeram negócios jurídicos, mas sim atosjurídicos diversos do negócio jurídico.
Essa distinção é importante, e porisso mesmo, a disciplina do negócio ju-rídico, exigiu que se fizesse aquilo queo Código Civil Português de 1967 fez,ou seja: abrir um título para os atosjurídicos lícitos que não sejam negóci-os jurídicos. Este título deu margem aenorme discussão no Brasil, inclusivepor grandes civilistas brasileiros quesustentavam que era um absurdo falarem ato jurídico lícito como se houvesseum ato jurídico ilícito, e tendo em vistaa circunstância de que todo ato jurídi-co seria lícito e todo ato ilícito não se-ria jurídico. Isso evidentemente é ab-solutamente falho por uma circunstân-cia: o crime por ventura não é um ins-tituto jurídico? E por que isso? Porqueobviamente são atos jurídicos todos osatos que produzem algum efeito jurídi-co, conseqüentemente, como diria Pon-tes de Miranda, são os atos que entramno mundo do direito. Daí a razão pelaqual os atos jurídicos podem ser lícitoscomo ilícitos, por isso colocar-se nessetítulo: Dos Atos Jurídicos Lícitos.
Dirão alguns: �mas por que nãose falou então em atos jurídicos ilíci-tos?� Para manter a nomenclatura doCódigo, tendo em vista a circunstân-cia de que esta expressão �atos ilíci-tos� é uma expressão elíptica, ocorreque também aqui estamos diante de
50 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
às agências ou filiais, com relação, evi-dentemente mais restrita, apenas às re-lações profissionais. No mais, conserva-ram-se os princípios do Código de 1916.
No livro II - Dos Bens, partiu-separa a adoção apenas da expressão bens,sendo certo que esse conceito de bensnão se identifica com o de coisas. En-tão, preferiu-se ficar apenas no concei-to de bens. Por outro lado, nesse Livroconcernente aos bens, os senhores ob-servam que, em virtude da admissão ex-pressa à figura da pertença, retiraram-se da enumeração dos bens imóveis osbens imóveis por destinação.
É preciso salientar o seguinte: ve-jam os senhores que o Código Civil nãoé código para se inovar por inovar, nempara se fazer doutrina. É justamentepara retratar aquilo que já estáestratificado na jurisprudência e na dou-trina, salvo, evidentemente, se houveralgum motivo de grande relevância parase apresentar uma inovação. Com rela-ção a conceitos técnicos, evidentemen-te, isso aqui não é livro de doutrina parase defenderem teses. Daí a razão pelaqual certas inovações são no sentido deingressar termos agora em lei expres-sa, o que, obviamente, facilita o traba-lho não só dos advogados, do MinistérioPúblico, como também dos própriosjuízes, porque não há mais necessidadede se invocar doutrina nem jurisprudên-cia, basta invocar o texto legal.
Com relação aos bens divisíveis, oCódigo de 1916 tinha uma imperfeiçãopor falta, por omissão. Ele dizia: �Coi-sas divisíveis são as que se podem par-tir em porções reais e distintas, forman-do cada qual um todo perfeito.� É aque-la hipótese de um indivíduo que deixa,após a sua morte, um brilhante de, porexemplo, 500 quilates, único no mun-do, com 10 herdeiros e um �espírito deporco� entre eles que diz: �bem, isso aíé divisível, porque é fracionável e cadafração conserva a sua parte, então va-mos dividir.� E com isso, obviamente,10 diamantes de 50 quilates cada umvalem muitíssimo menos que um únicode 500 quilates. Por outro lado, tam-
bém, o prejuízo do uso a que se desti-nam; é o caso de um terreno que seriadividido em várias partes, e ficaria, porexemplo, com uma frente de 2 metrospor 50 metros de fundos, obviamente vi-raria um corredor.
Com isso, ingressa agora no textolegal aquilo que sempre se seguiu emdoutrina e jurisprudência.
Há que salientar que, em relaçãoaos bens singulares e coletivos, obser-va-se que no artigo 90 conceitua-se afigura da universalidade de fato; e noartigo 91, a universalidade de direito, oque não se encontra no Código de 1916.
Em relação aos bens reciprocamen-te considerados, há uma inovação impor-tante: a do artigo 93 no que diz respeitoàs pertenças. O que é amplamente utili-zado. Sabem os senhores, por exemplo,que quando se vende um automóvel, aqui-lo que a doutrina germânica chama depertenças (tapetes, ferramentas, certascoisas que são acessórias) deveriam se-guir a condição do principal, no entantonão seguem, salvo se houver declaraçãoexpressa nesse sentido. Essas coisasacessórias que não seguem o principalsão as pertenças, daí dizer o artigo 93:
“São pertenças os bens que, não
constituindo partes integrantes, se
destinam, de modo duradouro,
ao uso, ao serviço ou ao afor-
moseamento de outro.”
Por isso mesmo é que não se falamais em imóvel por destinação, tendo emvista a adoção da figura da pertença.
Segue-se agora um dos pontos maiscomplexos da Parte Geral: os relativosaos fatos jurídicos com relação ao negó-cio jurídico. Manteve-se a denominaçãodo livro III como Dos Fatos Jurídicos, por-que, embora a grande maioria dos prin-cípios diga respeito a uma das espéciesde ato jurídico, que é o negócio jurídico,é certo que continua nesse Livro o trata-mento de Fatos Jurídicos. Assim é comrelação ao problema da prescrição e dadecadência e com relação ao problema
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 49
está no Código Civil. Destaco a maisimportante referência, por ser inovado-ra, e parece-me que atende a um crité-rio de justiça - a do parágrafo único doartigo 33 �se o ausente aparecer, e fi-car provado que a ausência foi voluntá-ria e injustificada, perderá ele, em fa-vor do sucessor, sua parte nos frutos erendimentos.�
Segue-se o tratamento das pesso-as jurídicas.
Com relação a estas, manteve-seno Código Civil a disciplina genéricadas pessoas jurídicas de direito públi-co. Isso em decorrência da circunstân-cia de que, embora não fosse eviden-temente uma matéria de direito civil,entendeu-se que seria convenienteesta manutenção, dado à circunstân-cia de não termos um código relativoao direito público, no qual essa maté-ria fosse inserida. O que, aliás, tam-bém ocorre com relação aos bens pú-blicos, que também foram mantidos àsemelhança do que ocorre no Códigode 1916.
Mas os senhores verificam que háalgumas modificações. Assim, por exem-plo, no artigo 41, inciso IV, alude-se àsautarquias, e no inciso V: �as demaisentidades de direito público criadas porlei.� Este é um princípio que se encon-tra no Código mexicano e que tem a van-tagem de, se por ventura, a atividadecriadora dos publicistas fizer surgir umnovo tipo, já se enquadra, genericamen-te, nesse inciso.
Por outro lado no artigo 44, os se-nhores observam que não se alude maisàquela literal sinonímia entre socieda-
de e associação. O Código Civil fala emassociações ou sociedades quando, naverdade, são pessoas jurídicas distintas,tanto é que se colocam as associações,as sociedades e as fundações.
No parágrafo único do referido ar-tigo, há um dispositivo que decorre jus-tamente do tratamento que se deu àsassociações (o que não se encontra noCódigo Civil), estabelecendo que ao invésde os princípios das sociedades se apli-carem por analogia às associações, fez-
se o contrário: os princípios das associa-ções é que, subsidiariamente, se aplicamàs sociedades, que são objeto do Livro IIda Parte Especial deste Código que dizrespeito ao Direito das Empresas, que eraa antiga atividade negocial do projeto en-caminhado ao Congresso.
Em um capítulo inteiro, Capítulo II,os senhores encontram um tratamentopormenorizado das associações, inclusi-ve com a admissão (admissão essa delonga data na doutrina e na jurisprudên-cia) da despersonalização da pessoa ju-rídica para o efeito de que o associadonão se ocultasse atrás da pessoa jurídi-ca.
Com relação às fundações, há umpreceito de importância no parágrafoúnico do artigo 62: �a fundação somentepoderá constituir-se para fins religiosos,morais, culturais ou de assistência.� Nãose admitem mais as fundações com fi-nalidade de natureza puramente econô-mica. Na disciplina das fundações, háalgumas modificações que o tempo, evi-dentemente, não me permite fazer umaanálise maior, daí a razão pela qual alu-do a essa regra, que é, sem dúvida, amais importante das inovações.
Segue-se o título concernente a do-micílios, onde há duas modificações im-portantes. A primeira delas: deixou dehaver aquela duplicidade de conceitos dedomicílio, ou seja, residência com inten-ção de permanência e centro habitualde atividades. Não há mais que se falarnessa duplicidade de domicílio para osmesmos efeitos, tanto que se consideraque o domicílio da pessoa natural é olugar onde ela estabelece sua residên-cia com ânimo definitivo. No entanto,mais adiante, manteve-se, no artigo 72,como uma parcela daquele centro de ati-vidades habituais e se estabelece umverdadeiro domicílio profissional para asrelações jurídicas decorrentes da profis-são da pessoa. Dizendo o artigo 72: �Étambém domicílio da pessoa natural,quanto às relações concernentes à pro-fissão, o lugar onde esta é exercida.� Aquié quase que um �pandam� com relaçãoàs pessoas jurídicas no que diz respeito
48 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
mente incapazes - temos os maiores dedezesseis e os menores de dezoito anos.Eu sempre fui voto vencido com relaçãoao problema da idade. Considero que,quanto mais se complicam as relaçõesjurídicas no mundo, mais se tende abaixar a idade para efeito de capacida-de. Partindo-se do falso pressuposto deque manter-se uma idade, como era ocaso da idade de vinte e um anos, signi-ficaria uma capitis diminutio. Entãosurgem aqueles exemplos clássicos: seé possível ir para a guerra, morrer naguerra, dirigir automóvel aos dezoitoanos, por que não pode ter capacidadede fato para regular toda sua vida civil?Eu sempre fui defensor de que fossemmantidos os vinte e um anos, o que nacomissão prevaleceu, mas o relatorJosaphat Marinho, nas inúmeras vezesem que nos encontramos em meu gabi-nete, convenceu-me de que não haviapossibilidade de que fossem mantidos osvinte e um anos, porque a tendênciamundial era no sentido de se baixar essaidade para os dezoito anos.
Lembro-me até de um fato curioso,quando, fazendo uma explanação na Câ-mara dos Deputados, a Deputada RitaCamata perguntou-me: - �o que o senhorme diz dos dezoito anos?� Eu lhe respon-di que fui contra, e ela disse: - �Graças aDeus encontrei alguém que pensassecomo eu�. Eu lhe respondi: - �E veja quea senhora não é como eu, que sou con-servador, a senhora é uma liberal!�
Continuando com os incisos:
II – os ébrios habituais, os viciados
em tóxicos, e os que, por deficiên-
cia mental, tenham o discernimento
reduzido;
IV – os excepcionais, sem desenvol-
vimento mental completo;Manteve-se a figura dos pródigos e
se retirou, na parte das incapacidadesabsolutas, a indicação dos ausentes, ten-do em vista a circunstância de que o au-sente não é propriamente incapaz, tan-to que, no lugar onde ele estiver pre-sente, ele continua capaz. Assim, tecni-
camente, não tinha sentido mantê-locomo absolutamente incapaz.
Por outro lado, o parágrafo únicodetermina que a capacidade dossilvícolas - também se achou que essaexpressão de certa forma eradiscriminatória com relação aos índios- será regulada por legislação especial.
No artigo 7°, disciplinou-se (o quenão ocorre no Código Civil de 1916) amorte presumida sem ser o caso de au-sência. Ou seja: quando for extrema-mente provável a morte de quem estavaem perigo de vida e se alguém, desapa-recido em campanha ou feito prisionei-ro, não for encontrado até dois anos apóso término da guerra.
Mais adiante há todo um capítulosobre os direitos da personalidade, a res-peito dos quais o nosso Código Civil de1916 nada abordou. Aliás, isso não foipor culpa de Clóvis Beviláqua. Saibam ossenhores que essa categoria dos direi-tos da personalidade, até o final do sé-culo passado, era uma categoria bastan-te contestada por vários autores, consi-derando que não era possível que, aomesmo tempo, alguém fosse sujeito e ob-jeto de direito. Só mais adiante é que sefirmou a distinção entre a personalida-de global e aspectos da personalidade, e,conseqüentemente, esses direitos depersonalidade têm como objeto não a per-sonalidade globalmente considerada, masapenas aspectos da personalidade.
E procurou-se dar uma disciplinaque segue de perto a do projeto revistode 1965, do Professor Orlando Gomes.Vejam os senhores que também nãohouve nenhuma vaidade no sentido dese dizer: �Não! Aquilo que também nosprojetos anteriores se apresentava (oupelo menos na época foi redigido comomerecedor de acolhimento), foi acolhi-do.� É certo que há um artigo, o de nú-mero 21, que não vem do projeto do Pro-fessor Orlando Gomes, nos outros, hápequenas modificações relativas ao pro-blema da inviolabilidade da vida privadada pessoa natural.
Em seguida, com relação à ausên-cia, segue-se, em linhas gerais, o que
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 47
entei justamente que considerava queembora a maioria dos Códigos não tenhaa Parte Geral (até por influência do Có-digo Civil francês), no entanto, esta par-te geral é absolutamente indispensávelpara um sistema que siga aquela fórmu-la realmente artística e científica dadapor Lafayette, no sentido de que o siste-ma deve partir justamente de princípiosque vão esclarecer os princípios que seseguem, numa ordem de sucessão da fa-cilidade para a dificuldade.
Com relação à Parte Geral, o quese observa é que nela se trata dos prin-cípios gerais, que depois são aplicadosna Parte Especial. Tanto assim, que ossenhores verificam, por exemplo, que emnegócio jurídico - ao contrário do queocorre com a maioria dos códigos queexaminam os princípios relativos a elena teoria do contrato - depois é precisoaplicar essa teoria por analogia aos de-mais negócios jurídicos que não se en-contrem no direito das Obrigações, e por-tanto naquele fragmento da Parte Espe-cial. Mas vamos fazer uma análise, evi-dentemente perfunctória, sobre as prin-cipais inovações contidas nessa ParteGeral do novo Código Civil.
O Livro I continua a tratar das pes-soas como sujeitos de direito. Aí nota-mos que há algumas observações quemerecem destaque. Quero dizer de iní-cio que a substituição do termo �ser hu-mano� por �pessoa� não foi de minha la-vra, até porque quanto ao artigo 2° quan-do diz �a personalidade civil da pessoacomeça do nascimento com vida...�, eupergunto: e a da pessoa jurídica? Seráque ela também nasce com vida? O pro-blema aqui foi que o vocábulo �homem�não podia ser utilizado, porque seriamachismo; �ser humano� também nãopodia, porque de alguma forma se vin-culava a �homem� e �humano� vindo dehomo, e, conseqüentemente, não podiaser nem homem, nem ser humano, etambém quanto a dizer �homem e mu-lher� acharam que não ficaria bem. As-sim, decidiram usar o vocábulo �pessoa�.
Nesse Livro concernente às Pesso-as, vamos destacar alguns aspectos. Em
primeiro lugar, o problema da incapaci-dade de fato.
O artigo 3° salienta que:
“São absolutamente incapazes de
exercer pessoalmente os atos da
vida civil:
I – os menores de dezesseis anos”.
Mais adiante veremos que a modi-ficação que se fez foi em relação à maio-ridade e não ao problema do absoluta-mente incapaz, menor de 16 anos.
II – os que, por enfermidade ou de-
ficiência mental, não tiverem o ne-
cessário discernimento para a prá-
tica desses atos;
III – os que, mesmo por causa tran-
sitória, não puderem exprimir sua
vontade.
Afastou-se, no inciso II, a expres-são �loucos de todo o gênero�, assim comose afastou a figura única do surdo-mudosem poder exprimir a sua vontade e sefoi além: admitiu-se inclusive em casosde paralisia (que na maioria das vezes épermanente, mas pode ser transitória),e por isso se determinou no inciso III -�mesmo por causa transitória�. Essa ex-pressão é para abarcar aqueles casos emque a pessoa durante um certo lapso detempo não pode exprimir, de forma algu-ma, a sua vontade.
Lembro-me de um caso dramáticode um colega de faculdade, ProfessorOscar Barreto, que sofreu uma parali-sia total e apenas se comunicava peloabaixar e levantar das pálpebras, ma-neira pela qual dava sinais de estar lú-cido, porém impossibilitado de exprimira sua vontade. Sua esposa combinoucom ele que uma piscada significariasim, e duas, não. Em casos dessa na-tureza, portanto, temos uma hipótesede absolutamente incapaz, evidente-mente, enquanto permanecer a causatransitória.
Por outro lado, com relação ao arti-go 4° - e aí vem a disciplina dos relativa-
46 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
viamente, nos torna muito difícil um es-tudo aprofundado de direito civil. Quan-do digo que o Código Civil é sem dúvidaalguma �O Código�, é porque, na reali-dade, ele é uma legislação altamentecomplexa, e mais: é uma verdadeiraconstituição do homem comum, tendoem vista que disciplina as nossas rela-ções jurídicas antes do nosso nascimento� com relação ao nascituro � e até de-pois da nossa morte. Conseqüentemen-te, diz de perto com toda a vida do serhumano.
Quando a comissão elaboradora doanteprojeto, supervisionada pelo Profes-sor Miguel Reale, se reuniu pela primei-ra vez em 1969, partiu do princípio deque era orientação do governo de então(e a meu ver absolutamente correta), quese redigisse não uma reforma parcial doCódigo Civil, mas se fizesse uma revisãoapenas com as modificações que se afi-gurassem necessárias. Daí a razão pelaqual os senhores verificam que foi con-servado tudo aquilo que merecia ser,tendo em vista a circunstância de quemesmo a evolução do mundo modernonão havia se alterado com relação à suadisciplina.
Na Parte Geral, os senhores verifi-cam que há vários dispositivos que sãocópia ipsis litteris do Código Civil, atépor uma circunstância: é sabido que umadas grandes tragédias de qualquer le-gislação nova é justamente o fato de que,se alterar uma vírgula, jorram dezenas,centenas, milhares de páginas de in-térpretes para se saber qual foi a inten-ção oculta daquela modificação, quandomuitas vezes trata-se de um erro de da-tilografia.
De certo que, por isso buscou-seconservar tudo aquilo que merecesseser conservado, apenas modificar aqui-lo que devesse ser modificado. Enfim,inovar não apenas por inovar, mas ape-nas quando necessário fosse. O novoCódigo Civil mantém em suas linhasestruturais o sistema do Código queainda continua em vigor, a ser revoga-do. Farei alusão a ele como o Códigode 1916. O sistema é o germânico,
embora na Parte Especial, sabem ossenhores, Clóvis Beviláqua não seguiua ordem do BGB (Código Civil Alemão)que começa com as obrigações, em se-guida passa para as coisas, família esucessões.
Clóvis Beviláqua, filosoficamente,começou pela família, porque entendeuque as relações do homem com a famí-lia deveriam ser colocadas em primeiroplano. Em seguida, passou ao direito dascoisas, ou seja, da relação material en-tre pessoa e coisa (ou bem) e em tercei-ro lugar, colocou no Código de 1916 adisciplina do direito das obrigações, asrelações jurídicas entre pessoas, e, fi-nalmente, o direito das sucessões comoparte final da Parte Especial, precedidaela de uma Parte Geral em que se tra-tou, em três Livros, das Pessoas, dasCoisas e dos Fatos Jurídicos.
Em linhas gerais, o que sucedecom o novo Código é isso: manteve-seessa sistemática e apenas com rela-ção à Parte Especial se afastou delapara seguir o BGB. Obrigações - com odireito das empresas, depois Coisas,depois Família e finalmente Sucessões.
Na Parte Geral, a que nos interes-sa hoje, verifica-se que, em vez de seconstituir um Livro só, manteve-se o sis-tema do Código Civil, o de três Livros. Oprimeiro deles, o das Pessoas; o segun-do, o dos Bens (não se fala mais em coi-sas ou bens, se fala apenas em bens) e,finalmente, o terceiro Livro, sobre os Fa-tos Jurídicos onde se trata primordial-mente da figura do negócio jurídico.
Com relação às inovações que seapresentam na Parte Geral, e quero sa-lientar, uma vez mais, que continuou aexistir, não pelo fato de haver elaboradoo anteprojeto da Parte Geral do CódigoCivil.
Estou convencido de que fui esco-lhido pelo Professor Miguel Reale paraintegrar a Comissão, em virtude de umaAula Magna em que examinei o CódigoCivil Português, principalmente no to-cante à sua Parte Geral - eu era, naépoca, o mais jovem catedrático da Fa-culdade de Direito de São Paulo. Sali-
Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 45
muito tempo parado no Senado, mas emseguida houve um trabalho realmenteinsano por parte do relator-geral da co-missão, que o examinou - o SenadorJosaphat Marinho e, finalmente com oprojeto de volta à Câmara, também gra-ças ao esforço do Deputado RicardoFiúza, foi possível concluir essa elabo-ração legislativa para termos o novo Có-digo Civil, que muitas vezes é conside-rado absoleto por não ter tratado dequestões, que ainda são altamente po-lêmicas, a respeito das quais, obviamen-te, há necessidade, primeiro, de uma le-gislação extravagante de experimenta-ção. Chegou-se até a falar que ele deve-ria considerar assuntos como aclonagem, a fertilidade in vitro, a en-genharia genética, e coisas dessa natu-reza, quando é certo que tudo isso de-manda uma série de reflexões e de es-forços. Mesmo nos países em que já le-gislaram sobre esses temas, as legisla-ções estão em verdadeira fase experi-mental, tendo em vista as circunstânci-as de que a própria ciência tem sériasdúvidas a respeito desses problemas.
O Código Civil não foi feito para ser-vir de lei de experimentação. O CódigoCivil não é, evidentemente, uma lei pe-rene, mas uma lei que deve ter uma per-manência bem maior, tendo em vista quese trata de um sistema. Falo hoje issosem qualquer parti pri, porque apesarda apresentação do meu dileto amigo De-sembargador Manes, eu há muitos anospouco estudo direito civil, tendo em vis-ta a circunstância de que o SupremoTribunal Federal é uma Corte eminen-temente de direito público, e com �aque-la� sobrecarga de trabalho. No ano pas-sado foram distribuídos quase 100.000processos para 10 ministros, o que, ob-
Senhoras e Senhores, é com mui-ta satisfação que venho, nesta manhã,fazer uma explanação geral a respeitoda Parte Geral do novo Código Civil.
Depois de mais de 25 anos, o pro-jeto do Novo Código Civil, que foi para oCongresso em 1975, teve afinal sua san-ção, transformando-se no Novo CódigoCivil, que, de acordo com disposição nelecontida, deverá ter o prazo vacatio legis
de um ano.É preciso desde logo salientar que
esta circunstância de o projeto ter tra-mitado pelo Congresso Nacional por poucomais de 25 anos, não é de espantar nin-guém. Basta atentarem os senhorespara que, por exemplo, o Código CivilPortuguês de 1967 demorou 22 anos en-tre a sua elaboração inicial e a sançãofinal. O próprio Código Civil Alemão -BGB, o primeiro projeto de 1874, so-mente foi aprovado em 1896, para en-trar em vigor em 1900. É certo que oscódigos que são feitos e entram em vi-gor rapidamente são aqueles dos perío-dos de ditadura. Assim, por exemplo, oCódigo Francês de 1804, se não fora apessoa de Napoleão, que chegou inclu-sive a presidir inúmeras sessões com acomissão que elaborara o anteprojeto,esse não haveria saído. O Código Italia-no de 1942 também saiu, graças à deci-são política do então dirigente da Itália,Mussolini.
Por isso, quando se fala que estenosso, novo Código já nasceu obsoleto,isso é, evidentemente, muito relativo,tendo em vista a circunstância de que oprojeto teve uma tramitação longa pelaCâmara dos Deputados, depois passou
Parte Geral do Novo Código Civil
MMMMMOREIRAOREIRAOREIRAOREIRAOREIRA A A A A ALVESLVESLVESLVESLVES
Ministro do Supremo Tribunal Federal e membro da Comissão do Projeto do Novo Código Civil
Palestra proferida no Seminário realizado em15.02.2002.
44 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
tão minha, passou a denominar-se �po-der familiar�,
É claro que essas alterações im-portaram na emenda de vários disposi-tivos, substituindo-se, por exemplo, pelotermo �ser humano� a palavra genérica�homem� anteriormente empregada.Mais importante, porém, foram as novasregras que vieram estabelecer efetivaigualdade entre os cônjuges e os filhos,inclusive no pertinente ao Direito dasSucessões.
Nesse sentido, o cônjuge passou aser também herdeiro, em virtude da ado-ção de novo regime geral de bens no ca-samento, o da comunhão parcial, corri-gindo-se omissão existente no Direitodas Sucessões.
Por outro lado, o Projeto vem disci-plinar melhor a união estável como novaentidade familiar, que, de conformida-de com o parágrafo 3º do Art. 226 daConstituição, só pode ser entre o homeme a mulher. Com a redação dada à ma-
téria, não há confusão possível com oconcubinato, visto como, nos termos dacitada disposição constitucional, a leideve facilitar a conversão da união es-tável em casamento.
Não é demais ponderar, que, no to-cante à igualdade dos cônjuges e dosfilhos, o disposto na nova Carta Magnarepresentou adoção das emendas ofere-cidas pelo senador Nelson Carneiro, oque facilitou o pronunciamento da Câ-mara Alta, ao depois completado pela Câ-mara dos Deputados, graças a oportunaalteração do Regimento do CongressoNacional.
Eis aí, em largos traços, qualé o espírito do novo Código Civil ,com alguns exemplos de suas prin-cipais inovações.
Após tantos anos de trabalho ededicação - sem se perceber qual-quer remuneração do Estado - o nos-so sentimento maior é o do devercumprido..