os elementos dionisíacos presentes na origem da tragédia grega · os ritos dionisíacos que eram...

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Lidiana Garcia Geraldo Os elementos dionisíacos presentes na origem da Tragédia Grega Campinas 2017 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

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  • Lidiana Garcia Geraldo

    Os elementos dionisacos presentes na origem da Tragdia

    Grega

    Campinas

    2017

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

  • Lidiana Garcia Geraldo

    Os elementos dionisacos presentes na origem da Tragdia

    Grega

    Orientador: Prof. Dr. Flvio Ribeiro de Oliveira

    Campinas

    2017

    Dissertao apresentada ao Instituto de Estudos

    da Linguagem da Universidade Estadual de

    Campinas como parte dos requisitos exigidos

    para a obteno do ttulo de Mestra em

    Lingustica.

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL

    DA DISSERTAO DEFENDIDA PELA ALUNA

    LIDIANA GARCIA GERALDO E ORIENTADA PELO

    PROFESSOR DR. FLVIO RIBEIRO DE OLIVEIRA.

  • BANCA EXAMINADORA:

    Flvio Ribeiro de Oliveira

    Trajano Augusto Ricca Vieira

    Josiane Teixeira Martinez

    Patrcia Prata

    Fernando Brando dos Santos

    IEL/UNICAMP

    2017

    Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de

    vida acadmica do aluno.

  • Ao Denizar, por sempre me querer to bem.

  • Agradecimentos

    Agradeo primeiramente a Deus pelas oportunidades concedidas e por iluminar

    caminhos que pareciam inacessveis para mim.

    Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) e

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo apoio

    concedido minha pesquisa. Processo n.: 2015/06454-9, Fundao de Amparo Pesquisa do

    Estado de So Paulo (FAPESP).

    Agradeo ao meu namorado Denizar que sempre acreditou nas minhas capacidades.

    Agradeo-o pela compreenso dos momentos ausentes, quando troquei a sua companhia pela a

    dos livros. Agradeo-o, tambm, pela sua pacincia ao ouvir-me falar de todas as descobertas

    que fiz durante o desenvolvimento desse trabalho. Agradeo-o pelo amor e carinho

    incondicional que sente por mim.

    Agradeo minha me Maria Aparecida por ter me ensinado a acreditar nas minhas

    potencialidades e a no me abater covardemente diante das dificuldades. Agradeo por todo

    amor e orgulho que sente por mim. Agradeo por sempre ter me incentivado a estudar e a gostar

    disso: a minha trajetria acadmica a nossa conquista.

    Agradeo ao professor orientador Flvio Ribeiro de Oliveira por sua generosidade

    ao orientar-me e pela delicadeza e firmeza ao indicar-me as pertinentes adequaes que

    deveriam ser feitas nesse trabalho. Agradeo-o pelas excelentes aulas ministradas, que

    proporcionaram tanto conhecimento e possibilitaram o enriquecimento da minha pesquisa.

    Agradeo-o pela pacincia ao ensinar-me tudo o que hoje sei e exponho nesse estudo. Graas

    ao seu ensinamento e exemplo pude amadurecer e aperfeioar a minha conduta acadmica.

    Agradeo-o, tambm, pela valorizao dos meus esforos e pelo reconhecimento dado durante

    a minha evoluo.

    Agradeo ao professor Trajano Vieira por ter aceitado os meus convites para

    participar das bancas de exame de qualificao e de defesa desse trabalho. Agradeo-o pelas

    pertinentes sugestes e pelos comentrios to valiosos, que auxiliaram muito o aperfeioamento

    da pesquisa. Agradeo-o grandemente pelas excelentes aulas ministradas, pela clareza das

    exposies e pela leveza com que conduzia as aulas, que eram muito agradveis. Agradeo-o

    pela gentileza ao indicar-me e emprestar-me livros que foram fundamentais para o

    desenvolvimento dessa pesquisa: muito obrigado. Agradeo, tambm, por ter me presenteado

    com uma excelente edio da Potica de Aristteles.

  • Por fim, agradeo professora Josiane Martinez pela gentileza ao ter aceitado o

    meu convite para participar das bancas de exame de qualificao e de defesa desse trabalho.

    Agradeo-a pela delicadeza ao fazer as pertinentes crticas e ao indicar-me as melhorias que

    deveriam ser feitas nesse trabalho: suas sugestes foram essenciais para o aperfeioamento da

    pesquisa.

  • Resumo

    O presente estudo visa investigar os elementos dionisacos presentes nas origens da

    tragdia grega, explorando o pressuposto de que tal gnero potico pode ter se desenvolvido de

    uma antiga performance coral associada aos cultos de Dioniso. Orientando-se atravs dos

    estudos referenciais dos autores Pickard-Cambridge (1927, 1953), Burkert (1966), Else (1957a;

    1957b; 1967), Kernyi (2002), Lesky (1996a, 1996b, 1985), Sousa (2003), entre outros, a

    pesquisa tem o intuito de compreender o contexto de formao da arte trgica no sculo VI a.C.,

    seguindo o pressuposto que considera Tspis o inventor do espetculo trgico e investigando

    os ritos dionisacos que eram praticados na tica. Para cumprir tal propsito, realiza-se a

    anlise das duas principais tradies, correntes na Antiguidade, que forneceram informaes

    sobre as provveis origens do drama trgico.

  • Abstract

    The present study aims to investigate the Dionysian elements in the origins of Greek

    Tragedy, exploring the hypothesis that such poetic genre may have developed from an ancient

    choral performance associated with Dionysian cults. The work is guided through the referential

    studies of Pickard-Cambridge (1927, 1953), Burkert (1966), Else (1957a; 1957b; 1967),

    Kernyi (2002), Lesky (1996a, 1996b, 1985), Sousa (2003), among others. The research has

    the intention of understanding the formation context of the tragic art in the 6th century B.C.,

    following the assumption that considers Thespis the inventor of the tragic spectacle, and of

    investigating the Dionysian rites that were practiced in Attica. To fulfill this purpose, it is

    carried out the analysis of the two main traditions, currents in the Antiquity, which provided

    information on the probable origins of the tragic drama.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................ 11

    1. AS ORIGENS DA TRAGDIA, SEGUNDO ARISTTELES ...................................................... 17

    1.2. A REIVINDICAO DOS DRICOS PARA AS ORIGENS DA TRAGDIA ................................. 22

    1.2.1. As causas para o surgimento da arte potica ............................................................... 26

    1.3. O DITIRAMBO E AS ORIGENS DA TRAGDIA ...................................................................... 33

    1.3.1. As relaes do ditirambo com o universo dionisaco ................................................. 38

    1.3.2. O ditirambo de Arion .................................................................................................. 44

    1.3.3. As performances ditirmbicas em Atenas ................................................................... 55

    1.4. A PASSAGEM PELA FASE SATRICA E A HIPTESE DE UM DITIRAMBO SATRICO ......... 59

    1.4.1. Os coros trgicos de Sicione e o provrbio ................ 68

    1.4.2. A etimologia de como a cano dos (stiros) bodes ................................ 77

    1.5. OS ELEMENTOS DIONISACOS PRESENTES NA TEORIA DE ARISTTELES SOBRE AS

    ORIGENS DA TRAGDIA ............................................................................................................ 96

    2. AS ORIGENS DA TRAGDIA GREGA COM TSPIS: A REIVINDICAO TICA .................. 102

    2.2. AS ORIGENS RELIGIOSAS DA TRAGDIA GREGA: A TEORIA ALEXANDRINA .................. 121

    2.2.1. A formao da erudio Alexandrina ....................................................................... 125

    2.2.2. Eratstenes e a teoria alexandrina para as origens da tragdia ................................. 131

    2.3. A ETIMOLOGIA DE COMO A CANO PELO BODE COMO PRMIO E/OU

    SACRIFICADO A DIONISO ...................................................................................................... 146

    2. 4. AS PRODUES DE TSPIS: AS PEAS E A INVENO DA MSCARA TRGICA .............. 170

    2.5. A POLTICA RELIGIOSA DE PISSTRATO E A INSTITUIO DA GRANDE DIONSIA .......... 183

    2.5.1. O festival da Grande Dionsia no perodo Clssico ................................................. 196

    2.6. MAS, AFINAL, QUAL A RELAO DA TRAGDIA COM DIONISO? ................................. 205

    CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................ 215

    DOCUMENTAO TEXTUAL ................................................................................................... 218

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................................ 222

  • 11

    Introduo

    O principal objetivo deste trabalho investigar os elementos dionisacos presentes

    nas origens da tragdia grega, explorando o pressuposto de que tal gnero potico pode ter se

    desenvolvido de uma performance coral associada aos antigos desempenhos rituais da religio

    dionisaca. Para cumprir tal propsito, necessrio analisar as principais tradies, correntes

    na Antiguidade, que forneceram informaes sobre as provveis origens do drama trgico.

    Desse modo, o estudo se baseia fundamentalmente na anlise e interpretao cuidadosa de duas

    tradies consistentes por meio das quais os gregos antigos procuraram explicar o surgimento

    da tragdia. Ambas as tradies indicam, a seu modo, a existncia de elementos dionisacos que

    estariam presentes no processo de desenvolvimento e consolidao da arte trgica em Atenas,

    durante os sculos VI e V a.C.

    A origem da tragdia um tema que instiga os interessados em literatura desde

    sempre, j que tal conhecimento proporcionaria uma melhor compreenso do gnero potico

    que tanto diz acerca da natureza humana. Essa temtica tambm se relaciona com a histria de

    origem do teatro, que no surgiu em outro lugar to cedo quanto na Grcia no sculo VI a.C. A

    origem da tragdia, portanto, um assunto atual que atrai vivamente a curiosidade de helenistas,

    historiadores, antroplogos e todos aqueles que se interessam pela histria do drama.

    Logo, as evidncias existentes sobre as origens da tragdia tm sido coletadas e

    estudadas h mais de um sculo por helenistas do mundo todo, que tm produzido um vasto

    material sobre o assunto. No entanto, no Brasil, as investigaes acerca deste tema so ainda

    incipientes, o que dificulta o acesso a este conhecimento e o desenvolvimento de pesquisas

    nacionais que seriam muito relevantes no somente para o campo de Estudos Clssicos, mas,

    tambm, para os campos de Histria da Arte e Histria da Literatura. Sendo assim, torna-se

    imperativa a necessidade de se estudar as origens da tragdia, partindo da anlise do

    conhecimento produzido ao longo de, aproximadamente, cem anos de pesquisa internacional.

    Assim, tem-se obras clssicas sobre a histria de origem e desenvolvimento da

    tragdia grega, como o livro Dithyramb, Tragedy and Comedy de Pickard-Cambridge (1927),

    e o promissor artigo de Walter Burkert (1966), Greek Tragedy and Sacrificial Ritual, que trata

    da problemtica das origens da tragdia a partir do campo da Histria da Religio. Atualmente,

    o estudo das origens da tragdia ainda encontra um frutfero debate com os estudos de Scott

    Scullion, por exemplo, os artigos Tragedy and Religion: The Problem of Origins (2005) e

    Nothing to do Dionysus: Tragedy Misconceived as Ritual (2002), e de Maria Broggiato, com o

    artigo Eratosthenes, Icaria and the Origins of Tragedy (2014), que, alm de proporem um

  • 12

    importante dilogo com as obras dos helenistas clssicos, fornecem novas interpretaes para

    as evidncias antigas.

    Nota-se, portanto, que essa temtica ainda muito presente para os estudiosos da

    rea de Estudos Clssicos. Mas, deve-se reconhecer, obviamente, que no possvel encontrar

    uma resposta definitiva para o problema das origens da tragdia, visto a natureza incerta das

    evidncias que possumos fato que nos torna incapazes de completar as inmeras lacunas

    existentes na tradio antiga. No entanto, justamente tal tarefa que os estudiosos modernos

    tm se esforado para cumprir ao longo dos anos, o que faz desta uma problemtica atual.

    Sendo assim, deve-se admitir que nenhum perodo da histria do drama na Grcia

    mais obscuro do que o perodo das origens da tragdia. Costumeiramente, diz-se que a

    tragdia sempre se desenvolveu em relao ao culto dionisaco, salientando-se o fato de que

    Dioniso foi o deus patrono do teatro. Logo, deve-se enfatizar que a tragdia no somente se

    desenvolveu associada ao culto dionisaco, mas, tambm, junto com a cidade-estado, ao lado

    do progresso poltico e econmico de Atenas. Nesse contexto histrico-social, o culto

    dionisaco, assim como a tragdia, foi amplamente incentivado e valorizado pela poltica

    religiosa dos tiranos atenienses.

    Com efeito, o drama, na Antiguidade grega, sempre foi desempenhado em festivais

    religiosos e, no caso de Atenas, a tragdia, a comdia e o drama satrico foram representados

    exclusivamente no contexto do maior festival de honra a Dioniso, no seu teatro sagrado1. A

    tragdia grega tambm foi uma performance religiosa na medida em que se baseava,

    essencialmente, no mito. Por mais que os mitos que a compunham no fossem

    predominantemente dionisacos, alguns estudiosos2 tm visto uma essncia dionisaca no foco

    da tragdia na violncia familiar, transgresso da ordem e loucura destrutiva.

    Pode-se notar, assim, a necessidade de se investigar as relaes mais ntimas entre

    a tragdia e a religio e culto de Dioniso, analisando o que as tradies antigas disseram a

    respeito dessa proximidade com o deus. Logo, observa-se que qualquer estudo que pretenda

    investigar as origens da tragdia deve comear, obrigatoriamente, com a anlise e interpretao

    das duas tradies antigas que trataram do assunto. Essas teorias so as nicas evidncias

    existentes, provenientes da Antiguidade, que indicaram possveis causas e contextos que

    levaram ao surgimento do drama trgico. Alm da anlise dessas tradies, sero consideradas

    passagens costumeiramente evocadas para sustentar a veracidade dessas teorias. Essas tradies

    1 Cf. Csapo e Miller, 2009, p. 5. 2 Como Vernant e Vidal-Naquet (1999), Trabulsi (2004), Spineto (2005), e Goldhill (1990).

  • 13

    e passagens apresentam diversas dificuldades, uma vez que transmitem informaes muitas

    vezes inseguras, de autoria e fontes incertas, alm de serem, em sua maioria, tardias (datadas

    muito depois dos sculos VI e V a.C.).

    importante ressaltar que no sero analisadas as teorias modernas sobre as origens

    da tragdia. O presente estudo focar especificamente as duas principais tradies antigas que

    exprimiram os pressupostos dos antigos acerca das razes e contextos que levaram criao do

    gnero trgico. A evidncia textual que se refere ao processo de origem e desenvolvimento da

    tragdia escassa, mas no desprezvel. A evidncia textual antiga mais importante que temos

    a Potica de Aristteles, pertencente ao sculo IV a.C. Alm desta, temos informaes

    provenientes sobretudo das enciclopdias bizantinas Suda e Etymologicum Magnum, algumas

    passagens de Herdoto e de Plutarco e muitas outras de lexicgrafos, gramticos e fillogos

    antigos.

    A primeira tradio que ser analisada, portanto, est presente nas sees III e IV

    da Potica de Aristteles. As informaes presentes nessas sees do tratado constituem a nica

    tradio, acerca das origens da tragdia, diretamente baseada em um testemunho da

    Antiguidade3. Logo, uma sria considerao sobre a emergncia da tragdia deve comear com

    a anlise dos testemunhos de Aristteles a respeito da gnese do drama4.

    A teorizao de Aristteles acerca das origens da tragdia, a primeira que se

    conhece, exerceu grande influncia sobre os estudos etimolgicos do termo

    (tragdia). Sabe-se, portanto, que a origem e o significado das palavras e

    so temas de grande controvrsia entre os intelectuais modernos. Segundo Pickard-Cambridge

    (1927, p. 149), consideram-se trs principais explicaes etimolgicas para os termos5, sendo

    que uma delas est relacionada s informaes fornecidas por Aristteles na Potica, de que a

    tragdia teve as suas origens nas performances improvisadas do ditirambo e que, no incio, ela

    era constituda por elementos satricos (cf. 1449a 9 e segs.). A etimologia desenvolvida a partir

    das informaes de Aristteles a de que significaria um coro de stiros caprinos6

    3 Cf. Else, 1967, p. 12. 4 Cf. Scullion, 2002, p. 102; e Seaford, 2009, p. 379. 5 Segundo Pickard-Cambridge (1927, p. 149), as trs principais etimologias atribudas aos termos e so: (i) que designaria um coro de stiros caprinos, logo a significaria a cano dos

    (stiros) bodes; (ii) que nomearia um coro, no representando stiros, mas vestidos com peles de bodes,

    como se fosse uma vestimenta antiga com valor religioso, neste caso, a significaria a cano dos bodes;

    (iii) que designaria um coro danando pelo bode como prmio ou no sacrifcio do bode, neste caso, a

    significaria a cano pelo bode como prmio ou a cano no sacrifcio do bode, ambas as etimologias

    podem ser adequadamente conciliadas, se considerar-se que o bode ganhado como prmio foi, em seguida,

    sacrificado em uma cerimnia solene. 6 Minha traduo a partir do ingls. A passagem da Potica costumeiramente utilizada para sustentar essa hiptese etimolgica a 1449a 9 e segs., na qual Aristteles afirma que a tragdia surgiu dos solistas do ditirambo e que,

  • 14

    (PICKARD-CAMBRIDGE, 1927, p. 149). Observa-se que tal etimologia interfere intimamente

    no significado atribudo , que passaria a significar a cano dos (stiros) bodes.

    A segunda tradio antiga que ser analisada paralela tradio aristotlica e

    atribui as origens da tragdia tica. De acordo com tal tradio, a tragdia teria se

    desenvolvido de um costume tico rural segundo o qual a no era associada a uma

    cano dos (stiros) bodes. Conforme essa tradio tica, a seria derivada de uma

    festa campestre, onde as pessoas danavam e cantavam para obter o bode como prmio do

    .

    Segundo Sousa (2003, p. 64-65), essa tradio relacionada ao nome de Tspis e

    tem certas afinidades com a teoria alexandrina, difundida sobretudo por Eratstenes no sculo

    III a.C., que procura explicar a etimologia de e oferecer uma causa de surgimento

    para a performance trgica. Logo, a tradio tica costuma ser conectada a um 7

    imaginado por Eratstenes em sua Ergone. Higino (De astronomia, II, 4) expe o mito: Dioniso

    ensinou a Icrio o cultivo da vinha, mas, quando ele plantou a videira, um bode despedaou a

    planta e a comeu. Irado, Icrio matou o animal e de sua pele fez um saco, cheio de vento, em

    torno do qual os homens danaram e cantaram8. Por essa razo, Eratstenes disse:

    . Existem duas tradues possveis para a declarao de

    Eratstenes, considerando as possibilidades de se interpretar + acusativo: (i) Icria, onde

    primeiro danaram em torno do bode ou (ii) Icria, onde primeiro danaram por um bode.

    Para Pickard-Cambridge (1927, p. 102), se a declarao de Eratstenes deve ser

    associada com as origens da tragdia, este fato vai depender da interpretao das palavras

    . J Kernyi (2002, p. 278) afirma que os dois significados possveis (em

    torno de ou por um bode) no se anulam e podem querer dizer que o bode era o prmio da

    vitria, mas, tambm, que o desempenho por meio do qual essa vitria era possvel consistia de

    uma dana em volta do bode.

    no incio, era constituda por elementos satricos. Os adeptos dessa hiptese etimolgica, de que a

    significaria a cano dos (stiros) bodes, acreditam na existncia de uma espcie de ditirambo satrico que

    teria dado origem tragdia. Entretanto, consideraes devem ser feitas em relao a tal etimologia, bem como s

    informaes fornecidas por Aristteles a respeito das origens da tragdia nas performances improvisadas do

    ditirambo e na sua proximidade com o elemento satrico. A teoria etimolgica e as informaes de Aristteles

    devem ser analisadas cuidadosamente, pois so temas muito contestados pelos intelectuais modernos. Tais anlises

    sero realizadas no decorrer desse estudo. 7 Causa ou razo histrica (cf. Pickard-Cambridge, 1927, p. 195). Ver tambm Liddell e Scott (1996, p. 44), s.v. -. 8 O mito foi consultado em: http://www.theoi.com/Text/HyginusAstronomica.html. Acesso em 25 de janeiro de 2016, s 10h29min.

    http://www.theoi.com/Text/HyginusAstronomica.html
  • 15

    Assim, baseando-se no procedimento descrito no mito transmitido por Higino, se

    podem atribuir dois significados palavra , sentidos que tambm explicariam as

    causas dessa performance. A traduo do termo seria: um coro danando ou pelo bode como

    prmio ou ao redor do bode como sacrifcio9 (PICKARD-CAMBRIDGE, 1927, p. 149). A

    primeira das duas interpretaes apoiada pela tradio do Mrmore de Paros (ep. 43)10,

    segundo a qual Tspis ganhou um bode como prmio por sua vitria no primeiro concurso

    dramtico; a segunda interpretao sustentada pela declarao de Eratstenes. Tambm para

    Pickard-Cambridge (1927, p. 165), as duas tradues possveis podem ser conciliadas se

    entender-se que o bode foi ganhado como prmio e depois sacrificado a Dioniso.

    Observa-se, com Sousa (2003, p. 65), que os escritos de Eratstenes, discpulo de

    Calmaco, a quem teria sucedido na direo da biblioteca de Alexandria, exerceram grande

    influncia sobre a histria do drama antigo. Mas importante salientar que o nome de

    Aristteles tambm aparece nos testemunhos acerca de Tspis. Sabe-se atravs de Temstio

    (Orationes, XXVI, p. 316 d) que o filsofo atribuiu a inveno do prlogo e do dilogo a Tspis.

    No entanto, como Pickard-Cambridge (1927, p. 109) assinala, na Potica, Aristteles no

    mencionou Tspis: o filsofo somente atribuiu a inveno do segundo ator a squilo. Mas a

    ausncia de Tspis, na Potica, no seria prova de que Aristteles no pensou no poeta como o

    inventor do primeiro ator. Para Pickard-Cambridge, Temstio11 estava, possivelmente, se

    referindo a alguma passagem perdida do tratado Sobre os poetas.

    Tais so, portanto, as snteses das duas tradies antigas que sero consideradas

    para a investigao das origens da tragdia e da presena de elementos dionisacos em seu

    contexto de formao. Logo, o estudo est dividido em dois captulos que investigam

    separadamente as duas tradies antigas: o primeiro captulo destinado somente anlise e

    interpretao da tradio aristotlica presente nas sees III e IV da Potica. Nesse captulo,

    ser analisado o real valor das passagens que costumam ser evocadas para se comprovar a

    veracidade da teoria aristotlica, e tambm ser investigada a hiptese etimolgica que

    considera a como a cano dos (stiros) bodes.

    O segundo captulo destinado anlise e interpretao da tradio tica e da

    teoria alexandrina sobre as origens da tragdia. Nesse captulo, sero analisadas as diversas

    9 Minha traduo a partir do ingls. 10 Cf. FGrHist 239 A 43. O Mrmore de Paros uma importante inscrio cronolgica datada de aproximadamente 260 a.C. (ver Pickard-Cambridge, 1953, p. 69). 11 Temstio foi um ilustre filsofo e retrico pertencente ao sculo IV d.C. Dedicou-se, principalmente, filosofia de Aristteles, embora tenha estudado, tambm, os sistemas de Pitgoras e Plato. (Cf. Smith, vol. III, 1870, p.

    1024).

  • 16

    passagens concernentes tradio tica, salientando-se o seu real valor para o conhecimento

    acerca das origens da tragdia. Tambm ser feita uma cuidadosa investigao da teoria

    alexandrina, relacionada ao nome de Eratstenes, que fundamentalmente baseada na tradio

    tica das origens da tragdia. Alm disso, ser realizada a anlise da hiptese etimolgica que

    considera a como a cano pelo bode como prmio e/ou pelo bode como sacrifcio.

    As anlises e interpretaes das tradies antigas e das passagens mencionadas

    sero sustentadas, principalmente, pelos estudos crticos de Pickard-Cambridge (1927; 1946;

    1953), Else (1957a; 1957b; 1967), Flickinger (1918; 1913), Lesky (1996a, 1996b, 1985),

    Adrados (1983), Sousa (2003), Trabulsi (2004), Spineto (2005), Scullion (2002; 2005), entre

    outros12. A traduo da Potica, que ser utilizada neste estudo, de Pinheiro (2015). Algumas

    passagens gregas sero traduzidas por mim e, nesses casos, no haver a meno ao tradutor.

    Quando as passagens no forem traduzidas por mim, ser feita a meno ao tradutor, bem como

    ao ano e pgina da obra em que se encontra a respectiva traduo.

    12 Com relao ao critrio de emprego das citaes, relativas s diversas obras consultadas nesse estudo, utiliza-se as normas estabelecidas pela ABNT NBR 10520.

  • 17

    1. As origens da tragdia, segundo Aristteles

    Uma das principais tradies que devem ser consideradas para o estudo das origens

    da tragdia e para a investigao de possveis elementos dionisacos, presentes em seu contexto

    de formao, aquela exposta por Aristteles nas sees III e IV de seu tratado .

    De acordo com Else (1967, p. 12), as informaes expostas nessas sees da Potica se

    constituem na nica tradio diretamente baseada em um testemunho da Antiguidade. Scullion

    (2002, p. 102), por sua vez, ressalta que as evidncias mais importantes para as origens da

    tragdia se encontram na Potica de Aristteles.

    Deste modo, observa-se a importncia de se considerar as informaes fornecidas

    por Aristteles para a investigao das origens da tragdia e de suas possveis relaes com o

    universo dionisaco. importante salientar, com Pickard-Cambridge (1927, p. 89), que tudo o

    que atribudo ou conjecturado sobre as origens da tragdia ou definitivamente baseado nas

    declaraes de Aristteles ou se trata de interpretaes das suas declaraes no tratado. Lesky

    (1996a, p. 29) tambm reconhece que as informaes prestadas por Aristteles, na Potica, so

    as mais concretas que temos sobre as origens da tragdia.

    De acordo com Halliwell (1987, p. 1), a Potica parte de um trabalho que foi

    compilado por Aristteles, entre os anos de 360 a 320 a.C., para ser utilizado como notas de

    leitura na educao de jovens filsofos. Segundo Pinheiro (2015, p. 24), para a datao e a

    posio da Potica na obra de Aristteles ainda no se tem um consenso determinado. Assim,

    a maioria dos estudiosos considera a possibilidade de que o tratado tenha sido um projeto que

    envolveu a obra de Aristteles como um todo; isto , a Potica seria um tratado que se

    disseminou por todos os perodos da vida intelectual do filsofo, sendo que, muito

    provavelmente, recebeu um tratamento especial no ltimo perodo de sua vida, quando estava

    em Atenas.

    Halliwell (1986, p. 324) salienta que, no caso da Potica, no fcil estabelecer

    mtodos comparativos que possam ser utilmente aplicados para a datao do tratado; mas ele

    considera que a Potica recebeu a ateno de Aristteles por mais de um perodo da sua vida

    intelectual. Dessa maneira, o autor (1986, p. 330) acredita que a Potica tem as suas razes no

    pensamento inicial de Aristteles, no perodo de seu contato direto com Plato, e que alguma

    parcela do tratado foi redigida antes de 347 a.C., mas, tambm, que recebeu a ateno tardia do

    filsofo. Assim, a Potica representa, provavelmente, o primeiro livro do tratado utilizado em

    um curso oferecido no Liceu, durante a ltima dcada e meia da vida de Aristteles.

  • 18

    Segundo Pinheiro (2015, p. 25), a obra de Aristteles se compreende em trs

    perodos. O primeiro corresponde primeira estadia do filsofo em Atenas, na condio de

    discpulo de Plato, entre os anos de 367 e 347 a.C. Nesse perodo, Aristteles estaria sob a

    influncia de seu mestre, e possvel que as reflexes de Plato sobre as artes tenham suscitado

    o interesse de Aristteles em desenvolver a sua prpria teoria sobre a representao artstica.

    Entretanto, no possvel determinar, nesse primeiro perodo, o quanto Aristteles j se

    interessava pelos temas abordados na Potica, uma vez que as obras produzidas por ele nesse

    perodo no chegaram at ns. Pinheiro (2015, p. 25, nota 12) assinala que restam apenas

    algumas linhas do dilogo (Sobre os poetas), pertencente primeira fase da obra

    de Aristteles.

    Ainda de acordo com Pinheiro (2015, p. 25), o segundo perodo da vida intelectual

    de Aristteles se daria na corte da Macednia, como preceptor de Alexandre, entre os anos de

    342 e 336 a.C. Nesse perodo, Aristteles desenvolveu grande interesse pela obra de Homero.

    O terceiro e ltimo perodo ocorreria durante a segunda estadia do filsofo em Atenas, perodo

    em que Aristteles teria ensinado no Liceu, por volta de 335 a 323 a.C. A seo III da Potica

    parece oferecer os indcios necessrios para se considerar que a sua redao se deu nesse

    perodo em Atenas. Segundo Magnien (apud Pinheiro, 2015, p. 25), na passagem 1448a 30,

    Aristteles parece se posicionar geograficamente em Atenas13.

    importante assinalar, de acordo com Halliwell (1986, p. 328), que usualmente

    assumido que a seo IV da Potica relaciona-se de algum modo com o trabalho de Aristteles

    sobre a tradio teatral ateniense: as pesquisas didasclias14 que so, plausivelmente, atribudas

    ao ltimo perodo de vida do filsofo. Tal data recebe suporte pelo fato de que, em 320 a.C.,

    Aristteles estava provavelmente engajado na sua pesquisa documentria sobre os Jogos

    13 Cf. Potique, Aristote, traduo de Michel Magnien, Paris: Librairie Gnrale Franaise, 1990, p. 20. 14 Segundo Flickinger (1918, p. 318-19), os arcontes atenienses parecem ter mantido registros das competies dos festivais dionisacos: o arconte epnimo na Grande Dionsia e o rei arconte nas Leneias. Esses registros no

    foram compilados para interesses de pesquisa literria, tal como ocorreu nos tempos alexandrinos, mas meramente

    para a convenincia privada dos oficiais e para propsitos documentrios. Aparentemente, tais registros consistiam

    de uma srie de inscries que determinava os coregos, tribos, poetas , atores, peas e os vitoriosos nas

    vrias performances ditirmbicas e dramticas. No sculo IV a.C., esses arquivos foram publicados por Aristteles,

    em seu trabalho intitulado Didasclias. O principal objetivo do filsofo, nessa obra, foi compilar os registros e

    organiz-los em sequncia cronolgica, tornando-os disponveis para um pblico amplo. Sendo assim, conforme

    Flickinger (1918, p. 322), aproximadamente em 278 a.C., duas inscries foram compiladas a partir da publicao

    de Aristteles dos registros teatrais: a pedra Didasclias, que fornecia o programa completo dos eventos

    dramticos, mas no ditirmbicos, dos festivais da Grande Dionsia e das Leneias, e a Lista de Vitoriosos que

    registrava a quantidade de vitrias ganhas pelos poetas e atores nas performances trgicas e cmicas

    desempenhadas nos dois festivais dionisacos. Ainda de acordo com Flickinger (1918, p. 330), as Didasclias, de

    Aristteles, foram tambm a fonte, direta ou indiretamente, de alguns tratados, colees de dados confidenciais,

    catlogos, que lidavam com vrias fases da histria teatral grega, e que foram compilados por Dicearco, Calmaco,

    e Aristfanes de Bizncio. Para ver as inscries gravadas na pedra Didasclias e na Lista de Vitoriosos, cf.

    Pickard-Cambridge, 1953, p. 110-120.

  • 19

    Pticos. No entanto, deve ser admitido que nada, na Potica, pressupe as Didasclias, mas

    algumas passagens sugerem um conhecimento detalhado de cronologia (cf. 1448a 33 e segs.;

    1449a 14 e segs.; 1449a 28-31, 1449a 37-1449b 9).

    Assim, como observa Pinheiro (2015, p. 20), a Potica , de fato, uma obra tardia.

    Ela bem posterior ao perodo ureo da tragdia, em que squilo, Sfocles e Eurpides

    compuseram os grandes clssicos do drama grego, mas, ainda assim, constitui a primeira

    formulao abrangente e teoricamente fundamentada sobre a arte potica. De fato, pode-se

    afirmar que a Potica, primeira obra do gnero, inaugurou uma tradio (PINHEIRO, 2015,

    p. 26).

    Dessa forma, ainda segundo Pinheiro (2015, p. 7-8), por mais que a Potica seja

    considerada uma obra incompleta e lacunar, cujas partes conservadas parecem constituir uma

    compilao de notas destinadas a auxiliar Aristteles durante uma exposio oral, nada disso

    impediu que seu tratado se constitusse numa obra fundamental, tanto para o estudo de um

    gnero especfico de produo literria quanto para a prpria definio de arte potica. Dessa

    forma, a Potica, de Aristteles, deve ser compreendida como uma discusso sobre o modo

    de composio do poema ( ), que visa ensinar a compor ou a criar um poema

    mimtico, segundo os critrios expostos pelo filsofo.

    De acordo com Halliwell (1987, p. 3), a tragdia j era representada h mais de um

    sculo e meio quando Aristteles veio pela primeira vez a Atenas para estudar na Academia de

    Plato, em 367 a.C. Nessa data, os atenienses no s produziam novas peas para os festivais

    dramticos, como tambm eram encorajados a reencenar as peas antigas15. Assim, ainda

    segundo Halliwell (1987, p. 2), Aristteles pde ver as peas da tradio dramtica ateniense

    que foram produzidas no teatro cerca de meio sculo depois da morte de Sfocles e Eurpides,

    e, tambm, teve acesso s perspectivas iniciais, tanto escritas quanto orais, sobre as tragdias

    produzidas durante a vida desses dramaturgos.

    Sendo assim, Halliwell (1987, p. 2) destaca que a Potica, de Aristteles, o nico

    documento substancial, proveniente do perodo clssico ateniense, que devota uma positiva

    considerao ao drama trgico. Assim, no final da seo IV, pode-se encontrar a existncia de

    uma tradio detalhada, embora puramente oral, sobre os estgios do desenvolvimento teatral

    da tragdia. Entretanto, Halliwell (1987, p. 5) salienta que, em tal seo, Aristteles fornece seu

    prprio esboo da evoluo da tragdia (e da poesia como um todo). Logo, a seo IV apresenta

    um esquema abstrato que reside sobre as prprias concepes filosficas de Aristteles.

    15 Segundo Flickinger (1918, p. 204), em 386 a.C. foi dado um lugar regular, no programa da Grande Dionsia, para a repetio de uma tragdia antiga. Entretanto, tal pea estava fora da competio trgica.

  • 20

    Desse modo, para Halliwell (1987, p. 3), a maior preocupao de Aristteles, na

    Potica, terica, pois o tratado baseado, sistematicamente e prescritivamente, sobre a

    natureza da poesia, e sobre os valores e concepes envolvidos na sua composio e

    experimentao. Seu ponto de vista terico inevitavelmente condicionado por diversos

    fatores, no somente concernentes poesia e cultura grega em geral, mas tambm decorrentes

    da perspectiva individual e da mentalidade filosfica de Aristteles.

    Assim, torna-se tema de grande controvrsia, entre os intelectuais modernos, a

    validade das declaraes de Aristteles sobre as origens da tragdia: se se deve ser considerada

    a validade histrica de tais declaraes ou se se trata, apenas, de teorizaes do prprio

    Aristteles sobre os provveis percursos percorridos pela tragdia ao longo de seu

    desenvolvimento.

    Desta forma, Flickinger (1918, p. 5) considera que o conhecimento moderno sobre

    as origens da tragdia no comparvel com o conhecimento de Aristteles. De fato, exceto

    para as peas existentes, toda a informao moderna sobre as origens do drama derivada,

    direta ou indiretamente, do filsofo. Sendo assim, Flickinger julga arriscado rejeitar as

    concluses de Aristteles e recorrer a puras conjecturas sobre o tema. Entretanto, o autor

    assinala que necessria precauo para se recorrer s informaes fornecidas pelo filsofo:

    deve-se estar certo de que no o fazemos dizer mais ou menos do que ele de fato disse.

    Wilamowitz-Moellendorf (1889, p. 48), na sua edio do Hracles, de Eurpides,

    considerou Aristteles a nossa melhor testemunha para os fatos da histria da composio tica.

    Para o autor (1889, p. 49), Aristteles a maior autoridade que versou sobre a histria de origem

    e desenvolvimento do drama trgico, e, por isso, as suas declaraes, na Potica, no devem

    ser negligenciadas. Entretanto, Wilamowitz-Moellendorf reconhece que se deve contar,

    tambm, com outros testemunhos antigos, que do possveis informaes sobre o tema. Para

    Bywater (1909, p. 135), a confisso de Aristteles sobre a sua ignorncia em relao s origens

    da comdia (1449a 36 a 1449b 8) torna claro que o filsofo sabia mais da histria da tragdia

    do que ele de fato relatou.

    Depew (2009, p. 127), por sua vez, tambm concebe que Aristteles estava

    transmitindo fatos histricos a respeito das origens da tragdia. Para o autor, tal certeza vem do

    fato de que o filsofo afirmou maior conhecimento acerca da genealogia da tragdia do que da

    comdia. Assim, Aristteles demonstrou conhecer os autores dos aperfeioamentos cruciais

    para o desenvolvimento da tragdia: ele indica que squilo introduziu dois atores e aumentou

    as partes dialogadas da pea, e que Sfocles introduziu trs atores e a cenografia (1448b 16-

    19).

  • 21

    Lesky (1985, p. 250) tambm considera positivamente as declaraes histricas

    de Aristteles. Para o autor, evidente que o filsofo estava mais prximo das origens da

    tragdia do que ns, sendo muito provvel que Aristteles, ao compor a Potica, tenha realizado

    estudos preliminares to cuidadosos quanto aqueles que ele fez para a sua Poltica. Lesky

    (1996a, p. 31) no considera irrelevante a observao de que o filsofo viveu apenas dois

    sculos aps a criao da tragdia, enquanto nos encontramos a uma distncia de mais de dois

    milnios do evento em discusso.

    Entretanto, Lesky (1996a, p. 30-31) reconhece que no possvel ter certeza se

    Aristteles estava apresentando fatos reais ou apenas hipteses em suas declaraes sobre as

    origens da tragdia. Para o autor, afirmar que o filsofo apresenta apenas suposies

    infundadas, em suas declaraes, contradiz o que se sabe sobre os seus mtodos de trabalho nas

    reas de histria. Mas Lesky admite a impossibilidade de se saber a natureza das fontes de

    Aristteles. Assim, o autor ressalta a necessidade de se verificar se as demais informaes

    conservadas acerca das origens da tragdia coincidem com aquelas expostas na Potica,

    formando, em conjunto, um quadro convincente.

    J Pickard-Cambridge (1927, p. 128) supe que Aristteles estava apenas

    teorizando, sendo perfeitamente possvel interpretar as suas declaraes sob esse ponto de vista.

    Entretanto, considerar as informaes de Aristteles como uma teoria retira todo o seu valor

    histrico. Mas Pickard-Cambridge (1927, p. 128-29) considera difcil aceitar a autoridade do

    filsofo sem questionamento, uma vez que, provavelmente, na seo IV, ele estaria usando a

    sua liberdade de teorizar sobre o provvel desenvolvimento da arte trgica.

    Segundo Sousa (2003, p. 45), a maior parte dos testemunhos acerca da origem da

    tragdia nas performances improvisadas do ditirambo e na fase satrica, pela qual o drama

    primordial teria passado, depende da tradio fornecida por Aristteles na Potica. No entanto,

    a principal dificuldade de se aceitar a validade histrica das declaraes do filsofo reside no

    fato de no se compreender como teria se dado a passagem da fase satrica, em que predomina

    a linguagem burlesca, para a elocuo austera.

    evidente que a elocuo austera das tragdias existentes contradiz a veracidade

    da declarao de Aristteles, a respeito da fase satrica da tragdia. Assim, Sousa (2003, p. 45)

    frisa a dificuldade de se conceber o encadeamento lgico e a ligao necessria, dentro do

    sistema de Aristteles, entre o satrico (burlesco) inicial e a tragdia (austera) final. Desse modo,

    a discordncia resulta principalmente na dificuldade de coordenar o satrico com o trgico

    (SOUSA, 2003, p. 47).

  • 22

    De qualquer maneira, Sousa (2003, p. 60-61) reconhece que o primeiro testemunho

    que temos acerca dos primrdios da tragdia aquele proveniente de Aristteles, na seo IV

    de sua Potica, segundo a qual a tragdia nasceu de um princpio improvisado, o ditirambo,

    passando por uma fase satrica, at que, tardiamente, adquiriu o seu alto estilo (1449a 9 e segs.).

    Agregadas a estas informaes esto as reivindicaes dos dricos quanto origem da tragdia

    (III, 1448a 29 e segs.), que, unidas s declaraes da seo IV, compem a sntese da teoria

    aristotlica das origens.

    Dessa maneira, na discusso acima, foram feitas as consideraes sobre a

    importncia da Potica para os estudos das origens da tragdia, bem como o seu papel na

    tradio antiga, e a sua repercusso para os estudos modernos. Nas sees subsequentes deste

    captulo, sero realizadas as anlises das declaraes de Aristteles nas sees III e IV da

    Potica, bem como a anlise dos testemunhos que podem ser relacionados s informaes

    aristotlicas.

    1.2. A reivindicao dos dricos para as origens da tragdia

    Na seo III, da Potica, Aristteles procura esboar as origens etimolgicas da

    palavra e o desenvolvimento histrico da poesia, introduzindo uma discusso a respeito

    das reivindicaes dricas para as origens da poesia dramtica, que teria sido uma inveno

    drica (nas Mgaras da metrpole e da Siclia, no caso da comdia; e no Peloponeso,

    provavelmente em Corinto e Sicione, no caso da tragdia). Assim, segundo Pickard-Cambridge

    (1927, p. 142), os problemas em relao existncia de algum tipo de tragdia no Peloponeso

    no podem ser separados das reivindicaes dricas para as origens da tragdia.

    importante salientar que, na anlise desta seo, sero abordados, apenas, os

    argumentos concernentes s origens da tragdia. Ento, Aristteles (1448a 25 e segs.) diz:

    (...) Da alguns terem declarado que tais composies devem ser nomeadas

    poemas dramticos {drmata}, pois nelas se mimetizam personagens em

    ao {drntas}. Eis por que tambm os dricos reivindicam para si a origem

    da tragdia e da comdia (a comdia reivindicada a uma s vez pelos

    megricos daqui, que dizem que ela surgiu no momento em que estavam sob

    o regime democrtico; e pelos megricos da Siclia, pois desse local que

    advm o poeta Epicarmo, bem anterior a Quinidas e a Magnes; a tragdia

    requerida por alguns dos dricos que habitam o Peloponeso), tomando as

    palavras como signo de evidncia; pois declaram nomear as aldeias perifricas

    de kmas enquanto os atenienses as nomeiam demos e que o termo

    comediantes {kmidos} no provm de estar possudo {kmzein}, tal

    como dito, mas porque vagavam entre as aldeias {kmas} na condio de

  • 23

    degradados, expatriados de suas cidades; e tambm porque eles {os dricos}

    atribuem a poien {fazer} o termo drn, enquanto os atenienses prttein.

    Como se pode observar, na passagem acima, tem-se esboado trs argumentos

    pertencentes s reivindicaes dricas: o primeiro e o ltimo so relacionados com questes

    etimolgicas, e o segundo relacionado com a histria especfica de desenvolvimento da

    comdia e da tragdia. Para Else (1967, p. 21), tais reivindicaes surgem de uma tentativa, por

    parte de alguns dricos, no final do sculo IV a.C., de derivar as origens da tragdia e da

    comdia de uma nica raiz de desenvolvimento.

    Desse modo, Else (1967, p. 21-22) acredita que os argumentos da passagem citada

    acima no so neutros em relao s reivindicaes dricas para as origens da comdia, sendo

    que Aristteles as favorece implicitamente. Assim, na sua discusso, o filsofo tende a

    direcionar maior nfase para a comdia e para as alegaes de que esta foi inventada pelos

    megarenses. J a reivindicao para a tragdia mencionada de maneira breve: esta foi

    inventada por alguns dos dricos que habitam o Peloponeso (1448a 35). Aqui, Else acredita

    que Aristteles estava se referindo a Corinto e Sicione, ou seja, aos trabalhos de Arion (em

    Corinto) e Epgenes (em Sicione).

    Entretanto, Pickard-Cambridge (1927, p. 144) ressalta que Aristteles no cita

    qualquer escritor drico que tenha defendido tais reivindicaes, e, tambm, no manifesta

    direto acordo ou desacordo em relao s reivindicaes dos dricos para as origens do drama.

    Pickard-Cambridge reconhece que os argumentos citados so amplamente ruins, mas tais

    reivindicaes podem ter alguma credibilidade se as declaraes possurem algum suporte

    verdadeiro, e se existir evidncias que as confirmem.

    O primeiro argumento da reivindicao drica aquele que se refere s origens

    etimolgicas de e , argumento que procura reivindicar as origens da poesia

    dramtica como um todo. Desse modo, os dricos argumentavam que as performances cmicas

    e trgicas eram chamadas de porque elas imitavam homens em ao ().

    Entretanto, Lord (1974, p. 223) assinala que as comdias no costumavam ser chamadas de

    , e o termo no foi usado para nome-las at o perodo imperial romano.

    Com efeito, segundo Else (1957a, p. 106-107), a maior dificuldade do argumento

    encontra-se justamente no fato de que as comdias ticas no eram chamadas de nos

    dias de Aristteles, ou mesmo depois; desse modo, tal etimologia estaria se referindo a algo que

    no existia. No entanto, certamente as tragdias e as peas satricas poderiam ser assim

  • 24

    denominadas, e muito provavelmente o termo foi usado para comdias dricas, no

    somente no territrio drico, mas tambm em Atenas.

    De acordo com Lord (1974, p. 223), era um termo aplicado exclusivamente

    para a tragdia e a pea satrica; e, segundo Else (1957a, p. 107), no existe evidncia de

    como um termo atribudo comdia tica, ou comdia do tipo tico, antes do perodo imperial.

    Nota-se, ento, que esse o ponto fraco do argumento etimolgico drico. De fato, como Else

    assinala, o que os dricos tinham para mostrar na forma de dramas eram, sem dvida, de

    natureza cmica e no trgica, e a tica era precisamente o gnero ao qual o termo

    no foi aplicado.

    Para Else (1957a, p. 107), no h grandes dvidas de que Aristteles aceitou, com

    algumas reservas, a etimologia e a reivindicao drica; e o detalhe lxico, de que no

    foi usado para designar comdias ticas, parece no t-lo perturbado. Desse modo, podem-se

    encontrar indicaes de um positivo interesse de Aristteles para as palavras e : no

    somente o filsofo seleciona como a principal palavra em sua definio de tragdia16,

    como tambm ele inclinado a usar onde o ponto a ser enfatizado a concentrao e a

    economia da forma dramtica17.

    Else (1957a, p. 107) tambm salienta que Aristteles usa compostos de que

    so quase certamente novas palavras criadas por ele: (1448b 35; 1459a 19) e

    (1448b 37). Assim, observa-se que, nesses casos, tais palavras designam uma

    caracterstica essencial do conceito de drama, sendo certo que Aristteles tinha um interesse

    especial por essa palavra.

    Sobre as origens da tragdia no Peloponeso, salienta-se um testemunho de Temstio

    (Orationes, XXVII, p. 337 b) segundo o qual os sicinios teriam sido os inventores da tragdia,

    e os poetas ticos os seus aperfeioadores. Costuma-se considerar que Temstio retirou tal

    alegao do tratado perdido Sobre os poetas, de Aristteles18. Esse testemunho pode ser til

    para a compreenso das informaes de Aristteles sobre a origem e desenvolvimento da

    tragdia nas terras do Peloponeso. O testemunho o seguinte:

    16 , , ,

    (1449b 24-27). pois a tragdia a mimese de uma ao de carter elevado, completa e de

    certa extenso, em linguagem ornamentada, com uma das espcies de ornamento distintamente distribudas por

    suas partes; mimese que se efetua por meio de aes dramatizadas e no por meio de uma narrao, e que, em

    funo da compaixo e do pavor, realiza a catarse de tais emoes. Traduo de Pinheiro (2015, p. 72-73). Grifos

    meus. 17 Cf. 1453b 32, 1454b 3, 1455b 15, 1456a 15, 1459b 22-27 e 1460a 30. 18 Lord (1974, p. 221), Else (1957, p. 115) e Pickard-Cambridge (1927, p. 129) consideram que as declaraes de Temstio, nas Orationes, se referem ao dilogo Sobre os poetas de Aristteles.

  • 25

    , 19. Partindo do pressuposto de que Aristteles pode

    ter sido a fonte de tal informao, Lord (1974, p. 222) considera a possibilidade de que o

    filsofo aceitasse a tradio segundo a qual a tragdia teria sido uma inveno drica e

    originada no Peloponeso, mais especificamente, nas regies de Sicione e Corinto. No entanto,

    o autor reconhece que, na Potica, Aristteles mostra cautela no que se refere reivindicao

    drica para a origem da tragdia, uma vez que ele menciona tal reivindicao de maneira breve

    a tragdia requerida por alguns dos dricos que habitam o Peloponeso (1448a 35) sem

    maiores comentrios e justificativas.

    Else (1957a, p. 117) assinala que os sicinios no so mencionados explicitamente

    na Potica, embora seja altamente provvel que, na passagem, Sicione esteja implicitamente

    includa, ao lado de Corinto e talvez Fleio. Alm disso, Else salienta que se Aristteles acreditou

    que a tragdia tinha evoludo do ditirambo, ele deve ter aceitado a reivindicao daqueles que

    habitam o Peloponeso. Desse modo, Pickard-Cambridge (1927, p. 145) assinala que a

    reivindicao drica para as origens da tragdia pode ser sustentada pela tradio que se refere

    a Arion, de Metimna, poeta proveniente de Lesbos, que instituiu as reformas no ditirambo em

    Corinto, sob a tirania de Periandro; e pela tradio sustentada pelos registros de Herdoto (V,

    67) sobre os coros trgicos de Sicione.

    Com relao ao ltimo argumento etimolgico, Else (1957a, p. 121), se referindo

    aos trabalhos de Richards (1900)20 e Snell (1928)21, considera que no uma palavra

    exclusivamente drica: aparece na linguagem tica em todos os perodos, embora tenha

    se tornado incomum na prosa tica do quarto sculo, exceto em Plato e Demstenes, razo que

    absolveria Aristteles por ter pensado que tal palavra no fosse tica.

    J Pickard-Cambridge (1927, p. 144), tambm considerando os estudos de Richards

    (1900), acredita que no uma palavra originalmente tica, embora fosse usada livremente

    na poesia tica e nos escritores de prosa que admitiam o uso de palavras e frases poticas, como

    Antifonte, Tucdides e Plato. era usada raramente em Demstenes, e no era

    frequentemente usada pela maioria dos oradores ticos. Portanto, para Pickard-Cambridge,

    no , quase certamente, uma palavra jnica, e a declarao de que esta uma palavra

    drica pode ser verdadeira, embora no seja provado.

    Ainda de acordo com Pickard-Cambridge (1927, p. 144-45), em tico, ,

    principalmente, uma palavra com conotao religiosa e era usada, especialmente, em

    19 E, da tragdia, os sicinios foram os descobridores; os poetas ticos, os aperfeioadores. 20 Cf. Richards, H. On the word . Classical Review, 14 (1900), p. 388-93. 21 Cf. Snell, B. Aischylos und das Handel im Drama. Philologus Supplementband, 20.1 (1928), p. 1-7.

  • 26

    performances srias e solenes. era um termo raramente usado para a comdia clssica

    tica, e era regularmente aplicado para a tragdia e o drama satrico. Assim, os cultos de

    mistrios eram chamados em Elusis, e a maioria dos usos de na prosa tica

    (desconsiderando os escritores acima citados que usavam a palavra em expresses poticas)

    pode ser explicada pelo sentido religioso do termo.

    Pickard-Cambridge (1927, p. 147) ressalta que comum considerar as

    peculiaridades dialetais dos coros da tragdia tica como evidncias para a reivindicao drica.

    Desse modo, a principal substncia da linguagem trgica tica, com uma infuso de formas

    picas e jnicas, e outras formas dialetais usadas na poesia lrica, existindo, tambm, um

    considervel nmero de palavras e formas que so distintivamente dricas, principalmente nas

    pores lricas da tragdia. Portanto, razoavelmente provvel que algumas caractersticas da

    linguagem da tragdia tica sejam explicveis pela influncia drica, fato que atribui algum

    sentido reivindicao drica. Contudo, isso explicaria somente as origens da poro lrica da

    tragdia. Webster (apud Pickard-Cambridge, 1966, p. 112) tambm considera altamente

    provvel a hiptese de que o estilo e a linguagem da tragdia primitiva foram influenciados pela

    lrica coral do Peloponeso.

    Portanto, considerando todo o argumento que expe a reivindicao drica para a

    inveno da tragdia, Else (1957a, p. 222) acredita que a passagem 1448a 29 da Potica

    representa um gesto de aprovao, por parte de Aristteles, em relao s reivindicaes

    dricas. Isso significa que o filsofo, provavelmente, pensou nos antecedentes do drama (depois

    de Homero) se estabelecendo em terras dricas. Assim, nota-se uma atitude pr-drica de

    Aristteles em relao s origens da tragdia: o ditirambo de Arion, em Corinto, e os coros

    trgicos de Sicione talvez fossem elementos presentes na sua teoria de desenvolvimento da

    tragdia.

    1.2.1. As causas para o surgimento da arte potica

    Na seo IV, da Potica, Aristteles projeta a sua teoria sobre a origem e

    desenvolvimento da arte potica, aps expor, na seo anterior, a reivindicao dos dricos para

    a inveno da poesia dramtica, atribuindo a inveno da comdia aos megarenses, e a inveno

    da tragdia aos dricos que habitam o Peloponeso. Na seo atual, Aristteles tentar

    demonstrar as causas naturais que levaram ao surgimento da arte potica, bem como a histria

    de origem da poesia trgica e cmica.

  • 27

    Duas causas, ambas naturais, parecem ter dado origem arte potica como um

    todo. De fato, a ao de mimetizar se constitui nos homens desde a infncia,

    e eles se distinguem das outras criaturas porque so os mais mimticos e

    porque recorrem mimese para efetuar suas primeiras formas de

    aprendizagem, e todos se comprazem com as mimeses realizadas. (1448b 4 e

    segs.).

    No incio da seo IV, Aristteles apresenta duas causas naturais para o surgimento

    da arte potica. A primeira diz respeito ao de mimetizar, que comum a todos os homens,

    pois eles se desenvolvem, desde a infncia, atravs da prtica da mimese; dessa maneira, os

    homens so as criaturas mais mimticas, e recorrem 22 para aprender e, assim, obter

    as suas primeiras formas de conhecimento. A segunda causa natural a satisfao que os

    homens adquirem por meio das prticas mimticas. Portanto, como assinala Else (1957a, p.

    128), a causa para o surgimento da arte potica seria o amor, inato e universal, que os homens

    possuem pela aprendizagem.

    Segundo Halliwell (1987, p. 79), a teoria de Aristteles para as origens da arte

    potica ousada e essencialmente simples. Desse modo, as duas causas naturais da poesia

    so declaradas como o universal instinto do homem para se engajar na atividade mimtica (fato

    verificado no comportamento ficcional e imitativo das crianas) e a sua propenso para sentir

    prazer com as prticas mimticas. Ambas as premissas so reduzidas a um fator comum: a

    necessidade e o prazer humano pelos processos de aprender e compreender. Assim, Aristteles

    concebe a arte potica como um fenmeno cultural, derivada do impulso natural do homem em

    compreender o mundo da ao humana por meio de representaes.

    Dessa forma, segundo Else (1957a, p. 129), o surgimento da mimese deve-se a um

    princpio profundo e intelectual, que constitui a natureza humana em geral. Assim, o prazer em

    aprender pertence a todos os homens porque este um impulso humano fundamental, uma vez

    que a mimese o modo inicial da aprendizagem humana, e todos os homens respondem

    intelectualmente a tais imitaes.

    (...) Uma vez que a atividade mimtica nos natural, e tambm o uso da

    melodia e do ritmo (pois evidente que os metros fazem parte dos ritmos),

    22 Representao pelos meios da arte, especialmente da poesia dramtica (Liddell e Scott, 1996, p. 1134, s.v. -). Halliwell (1987, p. 71) ressalta a dificuldade de se compreender o conceito de mmsis utilizado por

    Aristteles, na Potica, uma vez que o filsofo no oferece uma definio para tal conceito. Assim, o autor

    favorece o termo representao para a traduo, e, segundo a sua interpretao (1987, p. 147), Aristteles

    significa mmsis como uma representao ficcional, idealmente na forma dramtica, do comportamento

    humano. Para Else (1957a, p. 12), mmsis aparece, na Potica, em sentido verbal e ativo, ou seja, o termo no

    significa apenas imitaes ou modos de imitao, mas processos imitativos. Nesse sentido, o processo

    mimtico a atividade da arte potica, o processo imitativo do homem em ao.

  • 28

    aqueles que, desde o incio, eram naturalmente mais bem dotados para esse

    fim conduziram e deram, pouco a pouco, origem poesia a partir das

    improvisaes. A poesia se dividiu segundo caracterizaes prprias: de um

    lado, os mais elevados mimetizavam as belas aes e aquelas dos homens que

    agem desse modo; de outro, os menos elevados mimetizavam as aes

    infames, compondo, em primeiro lugar, difamaes {invectivas}; enquanto

    aqueles outros, hinos e elogios. (1448b 20 e segs.).

    Continuando o seu delineamento das causas que levaram ao surgimento da arte

    potica, Aristteles diz que aqueles que eram naturalmente mais favorecidos atividade

    mimtica conduziram o desenvolvimento da poesia a partir das improvisaes. Desse modo,

    Else (1957a, p. 134) observa que a origem da arte potica foi o trabalho de homens com

    habilidades excelentes: ou seja, mesmo que todos ns sejamos capazes de nos satisfazer com

    imitaes artsticas, nem todos ns somos capazes de produzi-las.

    Segundo Else (1957a, p. 135-36), na passagem acima, os fatores que geraram a

    poesia esto divididos. Esses fatores so as caractersticas do objeto mimetizado, que,

    consequentemente, produziram dois tipos de poesia, ao longo de seu desenvolvimento. Assim,

    a dicotomia 23-24 um dado objetivo que faz da poesia uma representao da

    vida, uma vez que ela representa homens em ao, e tais homens so, necessariamente, de tipos

    superiores ou inferiores.

    Para Halliwell (1987, p. 80), a emoo, e seu necessrio envolvimento na mimese,

    est, tambm, implcita nas duas correntes bsicas que separam a poesia desde o seu estgio

    inicial: o gnero srio, que foi na origem encomistico, e implicava sentimentos de admirao,

    direcionando elogios ao seu objeto; e o gnero humorstico ou satrico, que incorporava

    sentimentos de hostilidade e desaprovao em relao ao seu objeto.

    Halliwell (1987, p. 80-81) considera que tais emoes so apresentadas no tanto

    como fontes primrias da poesia, mas mais como consequncias naturais de seu interesse pelos

    aspectos ticos da ao humana. essencialmente em termos desse interesse tico que

    Aristteles interpreta esses dois grandes ramos da tradio potica. Assim, o esquema

    evolucionrio da poesia se conecta com as observaes sobre o carter humano, uma vez que

    ela lida com personagens superiores e inferiores. Dessa maneira, a dicotomia entre a poesia

    sria e a poesia humorstica (com implicaes emocionais e ticas para os dois tipos) justifica

    o esboo de Aristteles sobre a histria da poesia.

    23 Bons, excelentes (Liddell e Scott, 1996, p. 1630, s.v. -). 24 Pessoas de baixo nvel, isto , comuns (Liddell e Scott, 1996, p. 1919, s.v. ).

  • 29

    De acordo com Else (1967, p. 22), a narrativa de Aristteles registra um

    desenvolvimento, de natureza entelquia25, da arte potica em direo perfeio, comeando

    com a diviso da poesia entre o gnero srio e o gnero burlesco. Logo, a futura meno ao

    ditirambo (1449a 9) se relaciona com a aluso ao perodo de improvisaes (1448b 27), em que

    Aristteles afirma que a poesia sria surgiu de hinos e elogios. Nesse caso, o antigo ditirambo

    uma especificao de hinos, que era entoado a Dioniso e que foi transformado em um tipo

    de encmio, quando Arion introduziu temas heroicos nas canes ditirmbicas.

    Desse modo, Halliwell (1987, p. 81) observa que, nas consideraes de Aristteles

    sobre a evoluo da poesia, os dados factuais da histria literria (se que o filsofo teve acesso

    a eles) so subordinados sua perspectiva terica sobre o desenvolvimento da histria natural

    da poesia. Assim, Aristteles, em seu esquema, deixa claro que as improvisaes ditirmbicas,

    que deram origem prototragdia, so de menor importncia em relao ao decisivo

    descobrimento da forma trgica por Homero, na Ilada e na Odisseia.

    (...) Quanto a Homero, tal como foi o supremo poeta de temas elevados (pois

    no apenas compunha de modo excelente, como se dedicou s mimeses

    dramticas), foi tambm o primeiro a delinear as formas da comdia; dando

    forma dramtica no invectiva, mas ao cmico. Com efeito, uma analogia se

    impe: a Ilada e a Odisseia esto para as tragdias assim como o Margites

    est para as comdias. (1448b 33 e segs.).

    Segundo Halliwell (1987, p. 81-82), a poesia sria, isto , pica, se desenvolveu do

    impulso original para retratar e celebrar as aes dos homens nobres e excelentes, mas a

    essncia da tragdia envolve tais personagens em grandes mudanas de fortuna, que causam

    piedade e medo queles que as contemplam. Dessa forma, a evoluo da poesia sria se move

    de uma simples origem encomistica para um estgio no qual uma perspectiva trgica

    introduzida. por essa inovao, e por trazer novas qualidades dramticas poesia sria, que

    Aristteles considera Homero supremo entre os poetas de temas elevados. Portanto, Homero

    considerado o responsvel por descobrir um potencial que j existia naturalmente na arte

    25 A um princpio terico, desenvolvido por Aristteles, aplicvel a vrios domnios do mundo natural e cultural. De acordo com Pfeiffer (1998, p. 68), tal ideia central para toda a filosofia de Aristteles e importante

    para a compreenso de sua teoria literria. Segundo esse princpio terico, todos os organismos vivos se movem e

    mudam para alcanar a sua forma final () e, assim, atingir a sua prpria natureza (). Logo, deve-se

    ressaltar que, na teoria de Aristteles, existe uma analogia entre os organismos vivos e a literatura, como se pode

    observar na Potica (1458a 20). Entretanto, nota-se uma diferena essencial: os organismos vivos tm seu

    dentro deles desde o comeo, mas as formaes literrias so originadas de fora, por um , e, por isso, o

    seu desenvolvimento supostamente anlogo quele do ser vivo. Por esse motivo, Aristteles considera que foi

    atravs do trabalho dos grandes poetas que as formaes literrias puderam alcanar a sua prpria natureza, ou

    seja, atingir o seu nvel de perfeio.

  • 30

    potica, ou seja, o natural padro das possibilidades mimticas (concepo entelquia do

    desenvolvimento da arte potica).

    Como se pode notar na citao acima, para Aristteles, Homero realizou uma

    mudana fundamental na forma da poesia. Lord (1974, p. 204) observa que Homero foi

    proeminente nos temas srios porque, alm de compor de maneira brilhante, ele comps

    imitaes dramticas sobre tais temas; e, no obstante, tambm vislumbrou a forma da comdia,

    ao dramatizar o risvel. Por isso, Homero foi o primeiro poeta a compor imitaes dramticas,

    e, mais precisamente, a vislumbrar a forma da poesia dramtica como tal. Assim, Aristteles

    sugere que, atravs do Margites, Homero delineou a forma cmica, e, atravs da Ilada e da

    Odisseia, a forma trgica.

    Assim, podem-se observar, nas sees XXIII e XXIV da Potica, as razes pelas

    quais Aristteles considerou a Ilada e a Odisseia superiores a todos os outros poemas picos.

    Pfeiffer (1998, p. 73) destaca que, para o filsofo, somente a Ilada e a Odisseia correspondiam

    sua concepo de poesia pica perfeita. Desse modo, na passagem 1459a 17, Aristteles

    afirma que o enredo de uma mimese narrativa (isto , um poema pico) deveria ser composto

    maneira das tragdias: dramaticamente e em torno de uma nica ao, formando um todo

    completo, com comeo, meio e fim (cf. 1459a 20), para que tal mimese atingisse a sua perfeio

    e produzisse o prazer prprio de seu gnero. Mais adiante, na passagem 1459a 29, Aristteles

    revela que Homero se destacou, dentre os poetas picos, porque ele foi o primeiro que elaborou

    os seus poemas de acordo com tal princpio de composio: no caso da Ilada, Homero no

    pretendeu compor o poema tratando de toda guerra de Troia, abrangendo os seus dez anos, mas

    abordou apenas uma fase, formando um todo completo e coerente fato que possibilitou uma

    viso e apreciao de todo o conjunto da obra.

    De acordo com Kitto (1980, p. 80), no caso da Ilada, Homero no pretendeu

    escrever sobre a guerra, nem mesmo sobre as partes dela, mas sim acerca do tema esboado

    claramente nos primeiros cinco versos do poema, a saber, a ira de Aquiles. Para o autor, o que

    d forma ao poema no algo externo, como a guerra, mas justamente o conceito trgico de

    que uma disputa entre dois homens traria o sofrimento, a morte e a desonra a tantos outros.

    Kitto (1980, p. 92) ainda observa que toda a narrao apresenta uma unidade: os acontecimentos

    tm as suas causas e os seus efeitos que so julgados de acordo com certas leis morais. O

    fundamento divino do poema significava, substancialmente, que as aes particulares narradas

    eram, ao mesmo tempo, singulares e universais.

    Por isso, segundo Else (1967, p. 76), a Ilada, com a sua viso dupla acerca do

    herosmo e dos limites trgicos do herosmo, a raiz de toda a tragdia. Mas, ser mostrado,

  • 31

    mais adiante, que foi o gnio de Tspis que colocou a viso homrica do heri em foco por

    meio do novo espetculo dramtico, inventado por ele. A tragdia de Tspis traria, pela primeira

    vez, o passado mtico para o presente, e possibilitaria que o grande homem (o heri) estivesse

    em contato direto com o homem comum. Atravs do ator, que representava o prprio heri, e

    o coro, que representava o cidado ordinrio, os atenienses puderam sentir o sofrimento do

    heri e simpatizar com ele, de um modo novo e completamente direto. Por meio do espetculo

    trgico, todos os atenienses, nobres e camponeses, tiveram a oportunidade de encontrar, no

    mesmo local, a comum identificao emocional com o esprito heroico herdado graas pica

    homrica.

    Sendo assim, segundo Pfeiffer (1998, p. 74), na compreenso de Aristteles, os dois

    poemas de Homero possuam unidade, completude e grandeza, como a tragdia tica. Tal

    unidade no foi atingida por nenhum dos picos alm de Homero. Contudo, a tragdia ainda foi

    considerada, por Aristteles, como a possuidora de um grau ainda mais elevado de unidade, por

    isso foi concebida como superior ao gnero pico. Por Homero ter sido o primeiro poeta a lidar

    adequadamente com os temas elevados (cf. 1448b 33), ele antecipou as imitaes

    dramticas, e, por isso, a Ilada e a Odisseia foram consideradas anlogas tragdia, assim

    como o Margites anlogo comdia.

    Portanto, de acordo com Lord (1974, p. 207), por temas elevados Aristteles

    significa precisamente temas trgicos, assim, dentre os poetas dignos (picos), Homero foi o

    nico poeta de temas elevados. Para Aristteles, Homero no somente delineou a forma

    dramtica da tragdia, como, tambm, criou o seu contedo, ou seja, a alma ou a ideia da

    tragdia.

    Quando a tragdia e a comdia surgiram, cada poeta se atrelou, em funo de

    sua prpria natureza, a esta ou quela modalidade de poesia: uns se tornaram

    produtores de comdias, em vez de poemas imbicos; outros de tragdias, em

    vez de epopeias, pois estas formas so mais complexas e mais estimadas do

    que aquelas outras. (...). (1449a e segs.).

    Na passagem acima, Aristteles traa o desenvolvimento da tragdia aps a

    descoberta da forma dramtica por Homero. Assim, quando a tragdia e a comdia surgiram,

    cada poeta se engajou no tipo de poesia que estava de acordo com a sua natureza individual:

    uns se dedicaram comdia, abandonando os poemas imbicos, e outros se dedicaram

    tragdia, abandonando os poemas picos. De acordo com o raciocnio de Aristteles, os poetas

  • 32

    abandonaram as formas poticas antigas, isto , a poesia imbica e a heroica, porque os novos

    gneros eram manifestadamente superiores.

    Segundo Else (1957a, p. 146-47), o surgimento das formas poticas da comdia e

    da tragdia, que aludido em 1449a, ocorreu primeiro em Homero, ou seja, as formas mais

    complexas e estimadas, que suplantaram as formas antigas, eram aquelas que tinham sido

    delineadas por ele. Assim, quando os primeiros rudimentos da tragdia e da comdia

    comearam a surgir, os poetas abandonaram as formas poticas costumeiras, isto , os versos

    imbicos e heroicos, e se dedicaram s formas novas porque eram maiores e melhores. Else

    (1957a, p. 146) observa que tal esboo de desenvolvimento deixa uma lacuna cronolgica na

    teoria de Aristteles, uma vez que os sculos que separam Homero das mudanas realizadas

    pelos poetas posteriores permanecem em branco, sem maiores explicaes.

    Lord (1974, p. 207) salienta que a narrativa de Aristteles sobre o desenvolvimento

    da tragdia dominada por uma ideia entelquia, sendo que a potencialidade natural da tragdia,

    seu estgio de perfeio, a tragdia sofocliana. Desse modo, a inovao de Homero foi

    descobrir a potencialidade dramtica da poesia e usar adequadamente a 26 que viria a

    caracterizar o gnero trgico. Assim, depois de Homero, a arte potica sofreria muitas mudanas

    at alcanar a sua excelncia definitiva na tragdia de Sfocles.

    importante salientar, de acordo com Kitto (1980, p. 98), que seria um erro

    qualificar os poemas picos de Homero como tragdias, pois tais poemas eram o que

    pretendiam ser: poemas picos com toda a lentido e qualidades expansivas que caracterizam

    o seu gnero. No obstante, eram intensamente trgicos, como no caso da Ilada, que esboou

    toda a tragicidade da condio humana nos conflitos de Aquiles e Agammnon. Assim, as aes

    devem ter as suas consequncias: as aes mal pensadas tm maus resultados. Kitto (1980, p.

    101) observa que a nota trgica que ressoa na Ilada, e em muitas outras obras da literatura

    grega, foi gerada pela tenso entre duas foras: um gosto apaixonado pela vida e uma clara

    apreenso de seu cenrio inaltervel.

    De acordo com Else (1957a, p. 153), a teoria das causas originrias da poesia

    dramtica, presente nas passagens iniciais da seo IV da Potica, permite reconhecer a

    presena de um padro de desenvolvimento que Aristteles acreditou ser comum a todas as

    artes: um comeo () muito modesto, mas pleno de possibilidades; depois, um longo e

    gradual desenvolvimento; e, finalmente, a sua realizao total. Assim a tragdia se desenvolveu

    na concepo de Aristteles: ela comeou como um princpio improvisado, atravs de hinos e

    26 Forma, natureza (Liddell e Scott, 1996, p. 482, s.v. ). No caso da poesia, a trata dos elementos

    constituintes de um dado tipo de poesia (cf. Lord, 1974, p. 208).

  • 33

    encmios, ento, os poetas, gradualmente, a desenvolveram e expandiram at ela alcanar o seu

    completo desenvolvimento.

    Contudo, Else (1957a, p. 153) assinala que, na narrativa de Aristteles, o padro

    geral usado para um propsito particular, que o de mostrar que a tragdia uma forma

    perfeita, que se desenvolveu de um comeo improvisado at culminar na sua forma natural.

    Nota-se que esse padro parte de uma ideia entelquia, aplicvel a todo ser animado ou

    inanimado, que resulta na realizao plena de todas as suas potencialidades.

    Portanto, pode-se observar que as consideraes de Aristteles, sobre o

    desenvolvimento da poesia dramtica, partem de suas concepes essencialmente tericas a

    respeito da natureza da arte potica, e no, necessariamente, de fontes histricas. Desse modo,

    como Else (1957a, p. 126) salientou, a histria de Aristteles , de fato, uma construo a

    priori que j vinha sendo realizada ao longo das trs sees introdutrias precedentes. Por isso,

    as declaraes da seo IV, da Potica, no devem ser consideradas como um documento

    histrico, mas como um compndio do pensamento de Aristteles sobre as possveis causas que

    geraram e desenvolveram a poesia dramtica como tal.

    1.3. O ditirambo e as origens da tragdia

    A prxima considerao de Aristteles a respeito das origens da tragdia a famosa

    declarao de que esta surgiu 27, ou seja, dos iniciadores

    desse hino cultual, entoado em honra a Dioniso, em contextos religiosos, como uma cano

    ritual que visava adorao do deus.

    (...) Qualquer que seja seu estado atual, a prpria tragdia e a comdia

    surgiram de um primeiro motivo improvisado: a primeira provm daqueles

    que conduziam o ditirambo; a outra, dos que conduziam os cantos flicos,

    composies ainda hoje muito estimadas em nossas cidades. A tragdia se

    desenvolveu pouco a pouco, medida que progredia cada uma das partes que

    nela se manifestavam. E aps muitas transformaes ocorridas, ela se fixou

    justo quando atingiu sua natureza prpria. (1449a 9-15).

    Assim, como se pode observar na passagem acima, Aristteles afirma que tanto a

    tragdia quanto a comdia surgiram de um primeiro motivo improvisado: a tragdia teve a

    sua origem nos improvisos dos solistas do ditirambo, e a comdia nos iniciadores dos cantos

    flicos, composies que ainda eram muito valorizadas em seu tempo. Nota-se que a presente

    27 Daqueles que conduziam o ditirambo. Traduo de Pinheiro (2015, p. 61).

  • 34

    declarao, sobre as origens da tragdia nos improvisos do ditirambo, condiz com o relato

    anterior de que a poesia sria surgiu dos hinos e elogios, que mimetizavam as aes dos homens

    nobres e superiores (1448b 20).

    Desse modo, importante salientar a observao de Else (1967, p. 13) de que a

    passagem acima mostra claros paralelos com a passagem anterior (1448b 20 e segs.), na qual

    Aristteles primeiro mencionou o surgimento da poesia nas improvisaes, sendo que a matriz

    da poesia sria foi identificada como os hinos e encmios. Possivelmente, ento, o

    ditirambo, na presente passagem, um equivalente especfico de hino. Else (1967, p. 22)

    ainda ressalta que o antigo ditirambo foi certamente um tipo de hino, e a introduo de

    contedos heroicos na cano, reforma realizada por Arion, fez com que o ditirambo se

    tornasse, de fato, um tipo de encmio.

    Sendo assim, costuma-se interpretar a declarao de Aristteles dizendo-se que a

    tragdia se desenvolveu das performances improvisadas dos hinos ditirmbicos. Para Flickinger

    (1918, p. 4-5), o fato mais bem autenticado na histria do drama grego, sendo expressamente

    declarado nas antigas informaes e completamente substanciado pelas peas antigas, o de

    que a tragdia surgiu de uma performance coral e somente gradualmente atingiu suas

    caractersticas teatrais.

    Desta maneira, segundo Lesky (1985, p. 250), Aristteles deriva toda a poesia

    dramtica da improvisao, e, no caso da tragdia, assinala como o princpio do

    desenvolvimento os do ditirambo. Assim, pode-se traduzir esse termo grego como

    iniciadores ou solistas28, se entender-se que estes so os cantores que iniciam o canto, o

    introduzem, e, assim, enfrentam o coro que responde. Para Lesky (1996b, p. 61), quando

    Aristteles utilizou tal palavra, ele, provavelmente, pretendia acentuar a posio desse solista

    frente ao coro que respondia.

    Para Else (1967, p. 12-13), no pode haver dvida de que a declarao

    se refere a uma performance coral, mas Aristteles sugere que

    ele no est pensando no coro em si, mas em certo indivduo que ficava defronte ao coro e que

    dava a ele um tema para ser cantado. Assim, parece que a relao entre o e o coro

    ditirmbico deve ter prefigurado, na mente de Aristteles, a tardia relao entre o ator e o coro

    no desempenho trgico.

    Pickard-Cambridge (1927, p. 123) tambm acredita que Aristteles pensou no

    do ditirambo, que estava em uma posio independente do coro, como o primeiro ator.

    28 Na verso espanhola utilizada, a palavra foi traduzida como entonadores. No texto acima, utilizei iniciadores/solistas do canto como tradues possveis para o portugus.

  • 35

    Sendo assim, o no era, simplesmente, o lder do coro (), mas sim o lder de

    toda a performance, que, apesar de estar conectado com o coro e iniciar uma cano com ele,

    no era, necessariamente, da mesma natureza ou do mesmo sexo. Assim, algumas passagens da

    Ilada29 ilustram o significado do termo, sendo que a maioria dessas passagens se refere s

    lamentaes fnebres. Por exemplo, o trecho citado abaixo descreve a lamentao pela morte

    de Heitor, no ltimo livro da Ilada (V, v. 720-23), quando as mulheres se juntam para

    iniciar o :

    ,

    , 30

    Na passagem acima, pode-se observar que os so os cantores que

    entoam/iniciam a lamentao fnebre, e as mulheres, que so as integrantes do coro, os

    acompanham, respondendo ao entoado por eles. Nota-se, tambm, que os e

    o coro dessa lamentao no eram do mesmo sexo e nem da mesma natureza. Logo, presume-

    se que o era independente do coro e responsvel por iniciar ou conduzir uma cano,

    estabelecendo o seu tema ou o seu objeto de adorao/lamentao, que deveria ser

    acompanhada pelo coro.

    Conforme Sousa (2003, p. 53), seguindo a declarao de Aristteles, no se pode

    afirmar, pura e simplesmente, que o ditirambo foi a clula primordial da tragdia; mas que o

    princpio do drama trgico reside, principalmente, em uma inovao fecunda: certa atividade

    peculiar dos solistas do ditirambo. Sendo assim, seria no entoar o ditirambo, atividade j

    no puramente lrica, nem ainda perfeitamente dramtica, que se deveriam procurar as origens

    da tragdia. Desse modo, o significado de , entoar/iniciar, designa claramente certa

    atividade de um solista perante um coro: o solista entoa/inicia uma frase, e o coro responde.

    Este procedimento era sempre o mesmo em diversas ocasies festivas, quer se tratasse de

    lamentao fnebre ou de uma alegre marcha guerreira. Assim, o , que era o solista a

    quem o coro respondia, poderia vir a ser a mesma personagem que respondia ao coro trgico,

    ou seja, o .

    Sendo assim, Lord (1974, p. 212-13) tambm salienta que Aristteles no derivou

    a tragdia diretamente do ditirambo, mas sim, mais precisamente, daqueles que conduziam o

    ditirambo, ou seja, dos . Assim, no era a substncia ou a ideia do ditirambo que

    29 Cf. as passagens: Il. XVIII, v. 49, 316, e 603. 30 E ao lado [do leito] colocaram cantores como iniciadores () dos trenos, e enquanto eles lhe treneavam a lamentosa cano, as mulheres lamentavam em seguida [i.e. respondiam].

  • 36

    interessava a Aristteles, mas sim, o modo como o conduzia tal performance. Portanto,

    os solistas do ditirambo forneceram o modelo para aquela colaborao responsiva entre o

    indivduo e o coro, atividade que se tornaria uma importante caracterstica, e, de fato, a forma

    fundamental, do drama trgico. No entanto, a performance ditirmbica, embora adaptvel s

    exigncias da poesia dramtica, no foi em si mesma dramtica, nem continha a

    potencialidade para se tornar dramtica31. Dessa forma, Aristteles indicou, nas passagens

    1448b 33, que o aspecto propriamente dramtico da tragdia derivava somente de Homero.

    Para Pickard-Cambridge (1927, p. 124), o se transformou em um ator

    quando ele recebeu um discurso (no uma cano) do qual o coro no participava (tal mudana

    atribuda a Tspis32), e quando ele se tornou a personificao de um personagem heroico ou

    divino (j no sendo meramente o lder de um corpo no dramtico de adoradores, como eram

    os executantes do ditirambo). Entretanto, o que se tornou um ator era, de acordo com

    Aristteles, o do ditirambo, e, embora o ditirambo circular do quinto sculo a.C.

    tivesse um corifeu, e no um , o ditirambo em sua forma inicial tinha, certamente, um

    , tal como foi Arquloco.

    No papel deste solista, que iniciava o canto, Lesky (1985, p. 250) tambm acredita

    que se deve considerar Arquloco (ao redor de 640 a.C.33) que, nos versos de um fragmento

    atribudo a ele (fr. 120 West), afirma saber entoar () o belo canto de Dioniso, quando

    o vinho domina os seus sentidos. Nesse enfrentamento, entre o e o coro, Aristteles

    viu a origem e o desenvolvimento posterior do elemento dialogal e dramtico da tragdia.

    Assim, Adrados (1983, p. 41) assinala que o ditirambo cantado nas Grandes

    Dionsias e nas Leneias era um canto entoado por um coro circular, relacionado de algum modo

    com Dioniso, mas que continha um tema pico e um carter srio, entretanto no mimtico.

    Em tal ditirambo, no havia um , e o nico dado que menciona um , no

    contexto do ditirambo, o fragmento de Arquloco citado acima. Mas o autor (1983, p. 42)

    ressalta que em diversos tipos da lrica dionisaca, que invocavam a presena de Dioniso, mas

    no recebiam o nome de ditirambo, existia o , que, portanto, era um tipo de cantor

    familiar para Aristteles. Ento, Adrados acredita que, possivelmente no tempo de Aristteles,

    foram conservados ditirambos deste tipo (que continham a presena do ), mesmo que

    31 Conforme Plato (Repblica, III, 394 b-c) indicou, o ditirambo era um gnero coral eminentemente narrativo no qual as aventuras do heri eram narradas pelo prprio poeta, que no imitava o heri, mas, apenas, contava as suas

    faanhas em terceira pessoa. Desse modo, o ditirambo no era um gnero dramtico, mas, sim, um gnero

    narrativo. 32 Aristteles no menciona Tspis na Potica, embora Temstio (Orationes, XXVI, 316 d) declare que o filsofo atribuiu ao poeta as invenes da fala dos atores e do prlogo. 33 Cf. Csapo e Miller, 2009, p. 10.

  • 37

    os ditirambos literrios, representados nas grandes festas, no fossem constitudos pelos

    . Para o autor, no existe nada de estranho na hiptese de que ambos os ditirambos

    possam ter existido em conjunto: um ditirambo literrio, com contedo pico, e outro ditirambo

    ritual, com a presena de um .

    Desse modo, Tierney (1944, p. 334) considera mais razovel interpretar a

    declarao de Aristteles, quando ele afirma que a tragdia surgiu dos improvisos, como se

    referindo ao ditirambo primitivo, anterior a Arion. Para fundamentar tal hiptese, ento, utiliza-

    se o famoso fragmento de Arquloco, no qual se encontra uma meno desse primitivo

    ditirambo em sua forma improvisada.

    Sendo assim, segundo Pickard-Cambridge (1927, p. 5), a mais antiga meno ao

    ditirambo encontrada no fragmento de Arquloco de Paros (fr. 120 West), que viveu na

    primeira metade do sculo VII a.C (aproximadamente em 680-640 a.C.34):

    / , 35. Em tal

    fragmento, o ditirambo chamado de o belo cntico do soberano Dioniso, e a sua especial

    conexo com o deus atestada.

    Para Pickard-Cambridge (1927, p. 18-19), os versos de Arquloco parecem implicar

    uma cano conduzida por um integrante de um grupo de cantores, e no sugerem se tratar de

    uma composio literria para um coro, mas mais o cantar improvisado do , com o qual

    o grupo de adoradores se une, cantando um refro tradicional. Flickinger (1918, p. 7), por sua

    vez, ressalta que se deve observar que Arquloco no afirma que sabe escrever um ditirambo,

    mas sim que sabe participar de um como um bbado. Portanto, tal performance seria,

    como Aristteles disse, altamente improvisada, sendo, talvez, ligada a algum canto ritual.

    Tierney (1944, p. 335) observa que , entoar, cognato de ,

    iniciadores/solistas, citado na passagem 1449a 9 da Potica. Para o autor, Arquloco estava

    falando, plenamente, de uma performance dionisaca na qual o improvisava uma

    cano em honra a Dioniso, estando inspirado pela bebida (o vinho) do deus. Assim, pode-se

    pressupor que, de fato, tenha existido uma performance dionisaca que era constituda por uma

    cano coral, talvez improvisada para a ocasio, e por algum tipo de recitativo em tetrmetros

    trocaicos. Assim, Tierney acredita que existe pouca razo para se duvidar que o fragmento de

    Arquloco se refira a tal performance.

    34 Cf. Flickinger, 1918, p. 7. 35 Como entoar o ditirambo, o belo cntico do soberano Dioniso, eu sei, de nimo ferido pela fulminante centelha do vinho. Traduo de Eudoro de Sousa (2003, p. 196).

  • 38

    Para Else (1957a, p. 157-58), muito provvel que Aristteles tivesse os versos de

    Arquloco em mente quando afirmou que a tragdia se originou dos solistas do ditirambo,

    pois o improviso de Arquloco, o seu ditirambo embriagado, a evidncia que fornece o

    paralelo mais prximo da declarao de Aristteles. Desse modo, uma coincidncia merece

    ateno especial: o filsofo, em 1449a 22, diz que o metro da tragdia inicial era o tetrmetro

    trocaico, e o fragmento de Arquloco tambm foi escrito em tetrmetro trocaico. Assim, muito

    provvel que a afirmao de Aristteles, sobre o metro inicial da tragdia, aponte para esse

    estgio ditirmbico.

    Entretanto, Else (1967, p. 13) ressalta que difcil determinar de qual tipo de

    performance Aristteles estava realmente falando. Assim, por mais que o fragmento de

    Arquloco seja persuasivo, o filsofo no menciona Dioniso