os gestos dos mortos - alfred hitchcock, peter greenaway e stan brakhage

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 136 Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007 

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Os Gestos Dos Mortos - Alfred Hitchcock, Peter Greenaway e Stan Brakhage.

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

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    Alexandre Rodrigues da Costa

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    Gestos dos mortos:

    Hitchcock, Greenaway e

    BrakhageAlexandre Rodrigues da Costa

    Doutor em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG

    Professor de Literatura da Faculdade Pitgoras

    Resumo: Este artigo analisa a presena da morte nas obras de

    Alfred Hitchcock, Peter Greenaway e Stan Brakhage, com

    o propsito de perceber de que maneira esses cineastas se

    utilizam do corpo como uma forma de inverter o olhar, no

    momento em que buscam, atravs do cadver, refletir o

    vazio da imagem, o fundo falso sobre o qual se sustentam

    todas as coisas.

    Palavras-chave: Morte. Cadver. Imagem. Olhar.

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    Como pensar e articular a imagem cinematogrfica como algo

    que faz do vazio a sua verdade, ao nos obrigar a permanecer

    em silncio enquanto tudo nos escapa? Para Maurice Blanchot,

    a partir desse vazio que resulta o lado dramtico da imagem,

    pois ela fala, a propsito de cada coisa, de menos que a coisa,

    mas de ns, e a nosso propsito, de menos que ns, desse

    menos que nada subsiste e permanece quando no existe

    nada (BLANCHOT, 1987: 256). Conceber a imagem a partir

    do vazio que a envolve deixar transparecer a morte como

    parte de um processo, no qual o ato de ver, na busca por um

    sentido pleno, se apaga no prprio objeto que o originou. Neste

    caso especfico, o objeto sobre o qual nos deteremos nada mais

    que o corpo, mas o corpo morto, despojo que se afasta de

    ns, no momento em que desaparece atrs daquilo que imita:

    a morte. Mas o que a morte tem em comum com o cinema?

    Como ela pode tornar visvel isso que se perde, quando parece

    estar mais prximo de ns? Enfim, de que maneira a morte

    pode nos revelar o mundo de simulaes em contraponto a

    um mundo de inscries verdadeiras?

    Assim, em um primeiro instante, tentaremos, a partir desses

    questionamentos, perceber em que medida cineastas como

    Alfred Hitchcock e Peter Greenaway fazem da morte uma

    forma de reflexo sobre aquilo que define o cinema como

    uma espcie de mise-en-scne de gestos e rituais. Depois, em um segundo instante, analisaremos como a morte, no filme

    The act of seeing with ones own eyes (1971), de Stan Brakhage, nega a iluso da imagem e faz da total ausncia de gestos a

    sua representao definitiva.

    Diferente do que ocorre no filme de Brakhage, no qual o

    silncio se sobrepe ao mundo dos gestos, nos filmes de Alfred

    Hitchcock e Peter Greenaway, os gestos se tornam uma espcie

    de linguagem secreta das coisas mudas, uma vez que, se a

    palavra trada pela sua inexatido, eles vm a ocupar o seu

    lugar dentro da imagem, revelando aquilo que at ento se

    escondeu. Nesse sentido, o espectador se posiciona frente a um

    cinema cujas imagens exigem mais do que ateno: exigem

    que ele questione o seu lugar de espectador no momento em

    que se torna a presena desse outro que se encontra sua

    frente. Mas antes de essa cumplicidade do espectador com o

    personagem ser passiva, ela exatamente aquilo que o leva,

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    Alexandre Rodrigues da Costa

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    1 Em uma entrevista concedida a Peter Bogdanovich, Orson Welles afirmou tambm esse ideal de cinema:Peter Bogdanovich: Preminger disse uma vez que, se pudesse, no cortaria nunca. Ele gostaria de fazer um filme numa tomada s. Orson Welles: Esse tempo vir, quando o tape for aperfeioado e eles pararem de pr filme na cmera. Quando comecei, percebi isso e at comentei com Toland: No ridculo que o filme esteja na cmera? Ele concordou e me disse: Um dia ser apenas uma espcie de olho eltrico. No vamos mais precisar arrastar o filme ou motor s vamos carregar lentes. (BOGDANOVICH, 1995: 257-258).

    de maneira consciente, a temer o que o atrai, a perceber que a

    ao que se desenha sua frente o tornou cmplice de atitudes

    e comportamentos que at ento ele desprezava. Os filmes que

    escolhemos para relacionar a morte imagem cinematogrfica

    como possibilidade representativa so O cozinheiro, o ladro, sua mulher e o amante (The cook, the thief, his wife, and her lover, 1989), de Peter Greenaway, e Festim diablico (Rope, 1948), de Alfred Hitchcock. Neles, as aes, que se originam

    a partir dos rituais em torno da comida, fazem do escatolgico

    uma forma de o espectador encarar seus prprios medos e

    tambm questionar o espao que o corpo ocupa a partir de

    seus excessos.

    Adaptao de uma pea de Patrick Hamilton, Festim diablico no , apesar disso, teatro filmado. Nesse filme, Hitchcock

    realiza o sonho de quase todo cineasta: filmar sem cortes.1

    No entanto, como cada rolo permitia apenas dez minutos de

    filmagens, era preciso que, ao final desse tempo, a cmera se

    aproximasse de uma pessoa ou de um objeto para comear

    no rolo seguinte a partir desse ponto. Assim, sem dissolues

    ou lapsos temporais, tendo como lugar das aes um nico

    cenrio e desenrolando-se continuamente, o filme oferece

    ao espectador dois jogos: um que consiste em participar da

    montagem, em perceber como se d a manipulao do tempo

    e do espao, e outro que explora nosso olhar e curiosidade

    como elementos constitutivos do festim. Pois atravs da

    movimentao em torno da comida que, mais do que jogadores,

    nos tornamos cmplices das aes que se desenrolam na tela

    nossa frente. Como? necessrio, antes de mais nada, saber

    do que trata o filme. Dois rapazes, guiados pela idia de que

    um ser humano supostamente superior pode retirar a vida de

    outros, estrangulam um colega de escola e escondem seu corpo

    em um ba, sobre o qual mais tarde serviro um coquetel. Para

    este, convidam os pais do morto, sua noiva e um professor da

    universidade, em cujas teorias os assassinos se inspiraram. Ao

    longo do filme, seremos os nicos, alm dos assassinos, a saber

    o que se esconde naquele ba: seremos cmplices e voyeurs, saborearemos a comida, temendo que o cadver dentro do ba

    seja descoberto. Como observa Noel Simbolo: Hitchcock se

    coloca ao nvel do homem morto e a histria ser mostrada

    a partir do ponto de vista do morto. Este ltimo est sempre

    presente, e ns, espectadores-voyeurs, estamos com ele na

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

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    mala... (SIMBOLO, 1969: 53). Eis que, entregues viso,

    nos fascinamos a ponto de no conseguirmos desviar nossos

    olhos, de fugir do que est nossa frente. Reflexo que

    Maurice Blanchot assim desenvolve:

    Mas o que acontece quando o que se v, ainda que

    distncia, parece tocar-nos mediante um contato

    empolgante, quando a maneira de ver uma espcie de

    toque, quando ver um contato distncia? Quando o que

    visto impe-se ao olhar, como se este fosse capturado,

    tocado, posto em contato com a aparncia? No um

    contato ativo, no qual existem ainda iniciativa e ao

    num verdadeiro exerccio do sentido ttil, mas em que o

    olhar atrado, arrastado, e absorvido num movimento

    imvel e para um fundo sem profundidade. O que nos

    dado por um contato distncia a imagem, e o fascnio

    a paixo da imagem (BLANCHOT, 1987: 23).

    Greenaway, em O cozinheiro..., tambm no deixa de explorar o olhar, a imagem que nos seduz ao mesmo tempo

    em que nos incomoda. Para isso, ele se utiliza do teatro

    como denncia do artifcio da imagem e como pacto com

    o espectador. O filme comea com cortinas que se abrem

    e termina com cortinas que se fecham. Durante toda

    a exibio, os travellings nos oferecero uma sensao prxima daquela que temos quando assistimos a uma

    pea, na qual a estrutura dos cenrios, a engrenagem

    que os compe, se deixa ver. Em muitas das transies

    de cenrios, a cmera revela a parede que separa os

    ambientes. Parede que no sabemos se faz parte da

    prpria estrutura do cenrio ou se onde se processa a

    montagem, onde um plano se liga ao outro. Dvida que

    simplesmente a afirmao de um jogo, de um pacto

    que aceitamos quando compramos o ingresso, e de um

    comentrio de Greenaway sobre o artifcio do cinema:

    Voc no pode ser real no cinema. Voc faz uma deciso

    sobre forma e artifcio a cada vinte e quatro quadros por

    segundo do filme (GREENAWAY, 1991: 110). Aceitamos

    o escatolgico que o filme nos impe no porque ele nos

    impressione, mas porque ele fala de um mundo que ainda

    o nosso. Mundo diante do qual nos curvamos, uma vez

    que, citando novamente Blanchot, se fixamos um rosto,

    um canto de parede, no acontece tambm abandonarmos

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    Alexandre Rodrigues da Costa

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    ao que vemos, estar sua merc, sem poder algum diante

    dessa presena, de sbito estranhamente muda e passiva?

    (BLANCHOT. 1987:256-257).

    Se as imagens das coisas nos colocam num estado de

    submisso, o que dizer ento das imagens que nos so

    oferecidas pelos cineastas? Tanto as imagens de Festim diablico quanto as de O cozinheiro... so articuladas por uma montagem muito prxima dos primeiros filmes

    mudos, que, conforme Flvia Cesarino Costa, em contraste

    com a montagem invisvel e a verossimilhana dos filmes

    narrativos posteriores, faz alarde de sua prpria presena,

    da manipulao que esta presena revela e de sua vinculao

    construo de uma iluso (COSTA, 1995: 117). Nesses

    primeiros filmes, de acordo com Flvia Cesarino,

    seja interpelado nos filmes de magia, seja dividindo a

    cumplicidade com os voyeurs das fices, seja recebendo os olhares curiosos dos passantes captados pela cmera,

    o espectador sabe que uma pea de um jogo tcito de

    iluses explcitas. (...) Assim como o reconhecimento da

    presena do pblico no tem nada a ver com as regras de

    constituio de um universo diegtico fechado e autnomo,

    da mesma maneira a montagem presente nestes filmes

    tambm no faz parte deste projeto. Ela no objetiva

    esconder-se a si mesma e s outras marcas de enunciao.

    Pelo contrrio, em certos momentos, at faz alarde de sua

    prpria artificialidade (COSTA. 1995:121). 2

    Esse alarde que o cinema faz de sua prpria artificialidade,

    da cumplicidade com o espectador, pode ser visto na

    penltima seqncia de O cozinheiro..., quando Georgina pergunta a Richard, o cozinheiro, o que ele tinha visto nos

    seus encontros com o amante. Todo o seu relato aquilo

    que tambm vimos. Nesse dilogo, percebemos que no

    somos apenas espectadores, mas voyeurs. Somos voyeurs, porque nosso olhar manipulado e levado a se deter em

    portas que se abrem e se fecham, na comida, na loua

    sobre a mesa, nos gestos que podem trair os amantes.

    Temos prazer em ver, por mais repugnante que seja a cena.

    Participamos de uma mentira, a traio de Georgina, e,

    como em Festim diablico, de um ritual, de um jogo. Por isso, no devemos estranhar que haja algumas semelhanas

    2 Como exemplo de uma das primeiras explicitaes do ficcional e do reconhecimento da presena do espectador, Flvia Cesarino cita o filme The big swallow: Em The big swallow, 1901, temos dois personagens: um homem que est sendo filmado e o cineasta que o fotografa. Vemos este homem enquadrado do ponto de vista do fotgrafo, que, portanto, no aparece (j que est atrs da cmera e reparte conosco seu ngulo de viso). O personagem no est gostando de ser filmado, por isso aproxima-se da cmera (e portanto de ns, espectadores) com ameaas. Como a filmagem no se interrompe, o homem, irado, aproxima-se da cmera com a boca aberta, para engolir o fotgrafo (e portanto nos engolir tambm). Vemos um escuro e em seguida o fotgrafo, caindo para dentro da goela do personagem. Neste momento, o cineasta passou para o campo de viso da tela e deixou de ter seu ponto de vista associado ao nosso. Em seguida vemos o homem afastando-se, mastigando o fotgrafo e sua cmera, explodindo numa gargalhada e lanando-nos olhares de cumplicidade (COSTA, 1995: 119).

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

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    na abordagem que Hitchcock e Greenaway fazem sobre a

    morte, a comida e o sexo.

    Em Festim diablico, a comida sobre o ba, lugar onde antes se guardavam livros, agora tmulo, altar para

    sacrifcios, o reflexo do corpo que se decompe, que

    comea a assemelhar-se a si mesmo, no momento em

    que aqueles que o amam, ou fingem am-lo, o tornam

    presente. O crime transformado em arte precisa ser, mais

    do que ritualizado, degustado, assim como o cadver

    de Michael, em O cozinheiro..., pertencer ao mundo da arte culinria. No toa, portanto, que em Festim diablico e O cozinheiro..., h referncias arte. No filme de Hitchcock, os quadros do apartamento de Brando e

    Charles, os dois assassinos, no so peas para decorar o

    cenrio, mas uma forma de fazer com que a ao no se

    prenda unicamente aos atores. Logo no incio do filme, aps

    aquilo que os dois personagens consideram o assassinato

    perfeito, o dilogo que tm acontece numa sala onde h

    um quadro com uma garota chorando. A imagem desse

    quadro se projeta no dilogo, negando-o, apagando as

    comparaes que Brando faz entre assassinato e arte:

    Nunca fao nada que no seja perfeito. Sempre quis ter

    mais talento artstico. Assassinato tambm pode ser arte.

    O poder de matar to gratificante quanto o de criar.

    Nesse sentido, a pintura, tanto em Festim diablico quanto em O cozinheiro..., provoca um recuo do mundo, desperta como conscincia, e o que antes era evento retratado

    apodera-se de ns. Os quadros, manipulados pelo cenrio,

    pela fotografia, tornam opacos os personagens que esto a

    sua frente, interrompendo o dramtico e fazendo do vazio

    a ambigidade das formas. No o que acontece com a

    pintura de Frans Hals, Banquete dos oficiais da Companhia de Milcia de So Jorge em Haarlem, em O cozinheiro...? O salo principal do restaurante passa a ser o lugar onde

    crime e ordem convivem ao mesmo tempo. Os homens

    retratados por Frans Hals atuam no filme, seus olhares

    se projetam no apenas sobre o ladro e seus comparsas,

    mas sobre ns. Estamos no abismo de suas telas, no limite

    onde as sombras delineiam olhares e o que subsiste o

    lado brilhante da comida e sua indiferena.

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    Alexandre Rodrigues da Costa

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    Indiferena que se torna vingana. Pois pela palavra se morre,

    pela palavra o ato se consome. No filme de Hitchcock, os dois

    estudantes, levando as palavras do professor a termo, praticam

    o assassinato como uma espcie de unio espiritual, uma

    prova de que so superiores e uma tentativa de criar uma obra

    de arte: o crime perfeito. No filme de Greenaway, Michael

    morre sufocado pelas pginas dos livros que ama. Georgina,

    para vingar a morte do amante, segue o desejo de Albert,

    obrigando este a cumprir aquilo que prometera em seu acesso

    de fria: vou mat-lo e depois com-lo. Essa vingana, que

    usa a palavra como artifcio, est tambm em Festim diablico. a vingana do professor revoltado com a interpretao que

    suas palavras assumiram, atirando contra as trevas, jurando

    aos assassinos que eles sero mortos. Em ambos os casos, a

    vingana se realiza atravs das palavras, seja as de Albert,

    que Georgina segue literalmente, seja as do professor, que

    evoca o cdigo penal. H diferenas, no entanto, que devem

    ser assinaladas. Para sua vingana, Georgina utiliza-se das

    mesmas armas de Albert. Ao mat-lo, ela subverte o poder,

    e seu crime, em vez de ser algo hediondo para ns, torna-se

    aceitvel, uma vez que ela mata no um simples ladro, mas

    um canibal. J em Festim diablico, o professor que entrega seus dois ex-alunos talvez seja to culpado quanto eles, pois

    no passaram de instrumentos do esprito do professor e

    realizaram um gesto at ento terico. Sua loucura permite

    ao professor tomar conscincia de seu erro, mas pagando o

    preo do sacrifcio humano (SIMBOLO, 1969: 53). Assim,

    sem opes e fora de procriar novos erros que Giorgina e

    Rupert conquistam sua humanidade. Condio sobre a qual

    nos pergunta E. M. Cioran:

    Como escapar ao absoluto de si mesmo? Seria preciso

    imaginar um ser desprovido de instintos, que no portasse

    nenhum nome e a quem fosse desconhecida sua prpria

    imagem. Mas tudo no mundo nos devolve nossos traos;

    e a prpria noite nunca bastante espessa para impedir

    que nos miremos (CIORAN, 1989: 67).

    Noite que encontra semelhanas nos dois cineastas. Em Festim diablico, a revelao do crime acontece quando as cores lutam umas contra as outras, quando a morte, o horror e o

    vcio aprofundam, na noite, o desespero. Em O cozinheiro...,

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    apesar dos dias que separam um acontecimento do outro,

    a fotografia usada no salo do restaurante garante unidade

    temporal e psicolgica, intensificando a violncia que a se

    realiza atravs de uma cor que vai do vermelho at o negro.

    Nessas duas seqncias finais, o corpo dentro do ba e o corpo

    estendido sobre a bandeja apontam para um horror impreciso,

    quando as coisas e a comida ganham tanta primazia quanto os

    corpos. Comer mesa, evocando os alimentos atravs de seus

    nomes, uma forma de se sentir superior aos demais, de fugir

    animalidade. No entanto, se as regras de comportamento

    mesa no so obedecidas, retornamos a essa animalidade e a

    comida perde sua aura ritualstica. Toda a violncia praticada

    por Albert possui conotaes com a comida: as fezes que seu

    devedor, nu e humilhado, se v obrigado a comer; o menino

    cantor forado a comer os botes de sua prpria roupa,

    para depois ter o umbigo arrancado pelo ladro; a morte de

    Michael, o amante, que sufocado pelas pginas de seu livro

    predileto sobre a Revoluo Francesa.

    Em Festim diablico, a superioridade dos dois jovens no resulta do ato de terem tirado a vida de algum, mas de

    comerem em silncio o corpo daquele que mataram. Comer

    torna-se uma arte teatral: para tanto, necessrio conhecer as

    regras que dominam o palco. Por isso, no filme de Greenaway,

    a superioridade de Georgina e de seu amante sobre Albert

    no advm simplesmente de tra-lo, mas da compreenso

    das regras culturais e do prazer que ela tem em degustar

    tanto os pratos do cozinheiro quanto em trair Albert. Toda

    essa engrenagem s possvel graas maneira como cada

    fotograma se revela: um quadro onde os costumes e os hbitos

    em volta da comida apontam para a morte. Como revela

    Richard, o cozinheiro, numa das seqncias finais do filme:

    Cobro muito por tudo que for preto: uvas, azeitonas,

    amoras. As pessoas gostam de lembrar a morte. Comer

    coisas pretas como se comessem a morte. como se

    dissessem: viu morte, estou te comendo!

    Comer seria ento uma forma de aprender a morrer?

    Para Michel Serres, a mesa, como o corpo, abrilhanta-se

    de pequenas represas e nforas e taas, garrafas, copos,

    pratos, ningum come completamente o tempo que corre.

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    Alexandre Rodrigues da Costa

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    So necessrios estoques intermedirios. Pequenos lagos de

    memria, os copos (SERRES, 2001: 182). Assim, se o corpo

    se assemelha mesa, o tempo que se represa sobre ela o da

    memria, que torna presentes os gestos daqueles que mataram

    pelo amor e o prazer de degustar essa morte repetida. Mas

    o espao que se abre na mesa tambm o da morte nos

    ensinando a nomear cada um dos prazeres que encontramos

    nossa frente, incluindo, a, a vaidade, a memria que nos

    aprisiona nesse amor por ns mesmos. No esse o motivo

    que levou os holandeses, por exemplo, a construrem, atravs

    de suas naturezas-mortas, toda uma reflexo sobre a morte?

    A comida nas pinturas holandesas funciona como um aviso

    sobre a brevidade da vida. Nesse caso, temos, ao mesmo

    tempo, uma obra de arte e um sermo visual. Para aqueles

    que so obcecados pela comida, a morte no tem espao,

    o futuro e a decomposio no os incomodam. Mas se, ao

    contrrio, temos uma obsesso pela morte, uma fome de

    morte? Citando novamente Cioran:

    Contra a obsesso da morte, os subterfgios da

    esperana revelam-se to ineficazes como os argumentos

    da razo: sua insignificncia s faz exacerbar o apetite

    de morrer. Para triunfar sobre este apetite s h um

    nico mtodo: viv-lo at o fim, sofrendo todas as

    suas delcias e tormentos, nada fazer para escamote-lo.

    Uma obsesso vivida at saciedade anula-se em seus

    prprios excessos. De tanto insistir sobre o infinito da

    morte, o pensamento chega a gast-lo, a nos enojar dele, negatividade demasiado plena que no poupa nada e

    que, mais do que comprometer e diminuir os prestgios

    da morte, desvela-nos a inanidade da vida (CIORAN,

    1989: 20).

    Mas eis que sempre nos perguntamos: ainda no muito cedo

    para morrer? Ao servirem o coquetel, Charles e Brando se traem

    com suas prprias palavras Matamos pelo prazer do perigo

    e de matar. Estamos vivos. Verdadeira e maravilhosamente

    vivos , pois eles, to concentrados em seu intento de se

    exclurem do mundo, esquecem que, em seu plano, a comida,

    em suas infinitas combinaes, resiste ao fluxo que a dissolve,

    a mistura. No percebem que, de repente, em vez deles, cada

    uma das formas que ela aparenta ter torna-se o centro do

    mundo e os mantm mais prximos da morte.

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    No entanto, ou o corpo apodrece em silncio, sob olhares

    que no podem atingi-lo, ou se exibe como refeio. Na

    verdade, a imagem, possibilidade obscura, sombra o tempo

    todo presente atrs da forma viva e que agora, longe de se

    separar dessa forma, transforma-a inteiramente em sombra

    (CIORAN, 1989: 65). Em ambos os casos, no se diria que,

    ao contempl-lo, pudesse extrair dele grande coisa, pois o

    corpo escondido s pode servir de trunfo para os assassinos,

    se estes o exibirem como obra de arte, e o corpo exposto como

    refeio, se nos livrarmos daquilo que nos impede de abraar

    o canibalismo: o nojo. Conforme Cioran, a aproximao

    do nojo, dessa sensao que nos separa fisiologicamente do

    mundo, revela-nos quo destrutvel a solidez de nossos

    instintos ou a consistncia de nossos laos (CIORAN, 1989:

    65). Aos vivos, resta apenas se deter frente a essa imagem que

    a ausncia do objeto, o corpo perto da condio de coisa,

    quando o cadver o reflexo tornando-se senhor da vida

    refletida, absorvendo-a, identificando-se substancialmente

    com ela, ao faz-la passar do seu valor de uso e de verdade

    para algo incrvel incomum e neutro (BLANCHOT, 1987:

    260). O corpo se dissolve no corpo assim como Narciso se

    atira nas guas.

    Aquele que pratica o canibalismo no olha para os lados, mas

    lambe a prpria ferida, mutila a prpria carne, sem aguardar

    a promessa de uma felicidade gustativa. Nesse sentido,

    para Brando e Charles, de Festim diablico, e para Albert, de O cozinheiro..., o canibalismo no identificao nem incorporao, mas repulsa por aquilo que no se consegue

    obter: uma refeio sua imagem e sua semelhana. Da,

    curvarem-se sobre o corpo frente como se estivessem fazendo

    uma orao. Orao que tambm daquele que est morto:

    Quando me traram ou assassinaram, quando algum

    foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me

    restava, ou quando soube que vou morrer eu no

    como. No sou ainda esta potncia, esta construo,

    esta runa. Empurro o prato, rejeito a carne e seu

    sangue (LISPECTOR, 1982: 93).

    O olhar dos mortos sempre um tanto deprecatrio

    (CALVINO, 1994: 109). Recusa-se o nome, mantm-se

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    Alexandre Rodrigues da Costa

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    a indeciso, e tudo que excede, corpo mutilado, carne

    despedaada, inverte o olhar. No to fcil fingir-se de morto.

    Ainda mais para aqueles que esto vivos e nutrem-se dos

    mortos. Talvez por isso, outro cineasta, no to preocupado

    com a narrativa quanto Hitchcock e Greenaway, decida filmar

    cadveres sendo dissecados, para mostrar um olhar que vem

    a ser, que, enfim, se descobre, a partir da morte do corpo. Em

    seu filme The act of seeing with ones own eyes, Stan Brakhage filma exatamente isso, nada mais que corpos de homens

    e mulheres mortos, nus, sendo cortados, tendo suas faces

    colocadas ao avesso, suas roupas manipuladas com a frieza

    daquilo que prprio da morte. Cada parte do corpo, seu sexo

    ou suas vsceras, se apresenta como algo novo, j que no mais

    pertence ao mundo dos vivos, mas das coisas idnticas a si

    mesmas. Junto com as mos que manuseiam esses corpos, a

    cmera penetra na carne at alcanar o ponto em que esta se

    torna quase que abstrao. Conforme Blanchot, o cadver

    sua prpria imagem (BLANCHOT, 1987: 260), pois, assim

    como a arte, ele no se perde no mundo da utilidade, do uso,

    mas, ao contrrio, faz do nada sua semelhana, sua imagem.

    Da os desenhos dos msculos, agora expostos luz, se

    revelarem como imagens insondveis, abismos que no podem

    representar nada, pois nada mais se esconde sua frente.

    Os planos dos corpos, no filme de Brakhage, pem em foco

    o gesto fixado pela metade, insinuado nesse jogo que no

    mais o seu. Diante desses corpos, preciso renunciar s

    prprias imagens ou, ento, aceitar nada seno o que bvio,

    a imobilidade do que, s vezes, nos mortal, e que se repete

    atravs do que se oculta diante do puro prazer da perda.

    Talvez, por isso, sejamos levados a um novo aprender a ver3

    no momento em que os enquadramentos se configuram como

    forma de fazer o olhar se afastar de si mesmo, de se aproximar

    daquilo que escapa ao sentido. Pois, se o movimento da cmera

    busca ultrapassar o tempo, para fazer deste no a rejeio para

    fora da vida, mas a vida que se contrai sob a morte, porque

    os gestos, a, encontram-se sedimentados, enterrados em uma

    histria que no pode ser mais contada.

    Nesse sentido, a prpria noo do que seria o cinema

    colocada em questionamento. Nos filmes de Brakhage, ao

    contrrio dos de Hitchcock e de Greenaway, quase no h

    3 Em seu texto Metforas da viso, o prprio Brakhage j chamava a ateno para a necessidade de se libertar do medo de ver o mundo como se fosse a primeira vez: Ver fixar... contemplar. A eliminao de todo o medo est na viso... que deve ser o alvo. Uma vez a viso doada aquela viso que parece inerente ao olho da criana, um olho que reflete a perda de inocncia de forma mais eloqente do que qualquer outra caracterstica humana, um olho que, desde cedo, aprende a classificar percepes, um olho que espelha o movimento do indivduo em direo morte pela sua crescente incapacidade de ver (BRAKHAGE, 1983: 341).

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

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    atores, o que predomina o trabalho solitrio com a cmera e

    o pequeno oramento, que permitem ao cineasta criar sua obra

    sem a interferncia dos grandes estdios. Esse tipo de atitude

    parte de uma insatisfao de Brakhage em relao ao cinema

    do sculo XX, no qual a manipulao da imagem tem como

    objetivo a mera iluso do espao tridimensional e a narrativa

    de fatos reconhecveis: o absoluto realismo da imagem

    cinematogrfica uma iluso do sculo vinte, essencialmente

    Ocidental (BRAKHAGE, 1983: 349). Estamos diante de um

    cineasta cujo conceito de cinema bem diferente daqueles

    defendidos por Hitchcock e Greenaway, j que, para Brakhage,

    um cinema que impede o espectador de perceber, de acordo

    com suas palavras, o truque dos vinte e quatro quadros um

    cinema que funciona como sedativo:

    Oh, espectador de olhos lentos, a mquina do cinema tritura

    sua existncia! Seus relmpagos so fabricados atravs de

    fotogramas totalmente brancos interrompendo o fluxo das

    imagens fotografadas; seus dramas reais se compem de

    um jogo vivo de formas e linhas em duas dimenses; a linha

    do horizonte e as configuraes de fundo bombardeiam

    a imagem do cavaleiro enquanto a cmera se move com

    ela; as curvas do tnel explodem longe do perseguido (a

    cmera o segue) a perspectiva do tnel converge sobre

    o perseguidor (a cmera o precede); o sonho do beijo em

    close-up se deve pureza linear dos traos faciais em oposio desordem do fundo; o xarope consolador do filme no seu

    todo o sedativo da repetio imagtica, um sentimento

    semelhante ao de contar carneiros para dormir(BRAKHAGE,

    1983: 348-349).

    O trabalho sobre o fotograma se origina, portanto, como uma

    forma de romper com essa repetio imagtica, com as formas

    transparentes da tridimensionalidade. Nesse sentido, os filmes

    de Brakhage levam o espectador a ter outras experincias

    que no aquelas condicionadas pelo cinema tradicional,

    uma vez que o que predomina em seu discurso a imagem

    bidimensional, a superposio, os ritmos estabelecidos dentro

    das prprias imagens, seja atravs da montagem, seja atravs

    da pintura realizada sobre o fotograma. Da a ausncia de

    trama, de fatos objetivos, que possam ser narrados, pois

    exigida do espectador uma participao bem diferente do que

    a simples comunho com os personagens que se movem sua

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    Alexandre Rodrigues da Costa

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    frente. Como observa Fred Camper: De maneira semelhante

    ao que ocorre com a obra de arte moderna e diferente dos

    entretenimentos de massa, os filmes de Brakhage se dirigem

    mais ao espectador como indivduo do que como membro de

    um grupo. Para assistir a um filme de Brakahge, necessrio

    estar profundamente s: s consigo mesmo, s no processo de

    descobertas do prprio eu (CAMPER, 2003: 5). Ao rejeitar a

    continuidade espacial e temporal, o cineasta estabelece com

    o espectador um outro tipo de pacto: o de questionar suas

    experincias e percepes acerca do mundo visvel que o rodeia.

    Para Brakhage, no h distino entre percepo e viso, j

    que ver fixar... contemplar (BRAKHAGE, 1983: 341). Da

    que, em muitos de seus filmes, os objetos e o espao que estes

    ocupam no so reconhecidos. Isso porque Brakhage oferece ao

    espectador uma viso sem preconceitos, livre dos parmetros

    determinados pela sociedade, similar da criana antes de

    sofrer as coeres e imposies da linguagem. Se a identidade

    dos objetos destruda em favor de um cinema voltado para

    a valorizao da superfcie bidimensional e da textura da

    imagem, o espectador tem a chance de perceber como sua

    interao com o filme no se d mais pelos artifcios da iluso,

    pelas convenes que controlam a percepo, mas por um olhar

    voltado para a prpria conscincia, capaz de entender que a

    compreenso est alm da mera representao.

    Em The act of seeing with ones own eyes, o que temos a afirmao de um olhar que no representa nada, uma vez

    que a plenitude da morte no assinalada somente pela

    preciso do corte nos cadveres, mas pelo silncio que

    domina todo o filme. Se a palavra torna-se excessivamente

    suficiente, ordenada, para existir, estamos sempre na

    iminncia de, por um momento, tudo perder o sentido. E

    o sentido que se quer aqui parecer ser o da instabilidade,

    do silncio prestes a desabar, a nos soterrar com algo que

    simplesmente a certeza definitiva. Os enquadramentos

    dos cadveres fazem com que a imagem venha a exaurir a

    si mesma, deixando a sensao de que o espao da tela s

    pode se configurar atravs desse silncio que nos encerra.

    Pois, envolvidos por ele, percebemos que a ausncia se torna

    presente, palpvel como a medida de um corpo abandonada

    na pausa de nosso olhar.

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    Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenway e Brakhage

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    Por isso, talvez soe estranho encontrar artigos que abordam

    The act of seeing with ones own eyes como um documentrio, justificando tal classificao a partir das palavras com as quais

    Brakhage descreve a si mesmo: eu sou o mais meticuloso

    documentarista do mundo, porque eu documento o ato de

    ver assim como tudo aquilo que a luz me traz (BRAKHAGE,

    1982: 188). Embora os movimentos da cmera, em The act of seeing with ones own eyes, lembrem a maneira como os documentrios tradicionais se detm sobre a realidade, ou

    seja, poucos cortes, tomadas longas com o intuito de fazer o

    espectador vivenciar o assunto como se estivesse no momento

    da filmagem, o filme de Brakhage parte para outra direo: a

    de, na ausncia de fatos objetivos, de um narrador onisciente

    expondo informaes, levar o espectador a se confrontar

    com aquilo que ele define como realidade. Algum poderia

    argumentar que esse o objetivo de quase todo documentrio,

    mas, no caso de Brakhage, no podemos esquecer que,

    conforme Jacques Aumont, o cinema no interessante nem

    como linguagem nem como expresso vigorosa da realidade

    visvel (expresso vigorosa que no passa de uma forma de

    linguagem, mais opressora e mais banal ainda que outras),

    mas somente como stio de viso (AUMONT, 2004: 65).

    Se Brakhage insiste em afirmar que todos os seus filmes so

    documentrios,4 porque o entendimento que ele possui dessa

    categoria de filme passa pela noo de representao do ato de

    ver como percepo. Nesse sentido, o mundo para Brakhage o

    mundo visual, no qual a morte no surge como acontecimento

    a ser temido, fato a ser isolado, mas como parte integrante da

    percepo, no momento em que os cadveres so contemplados

    a partir das suas formas internas, das gradaes de cor que

    surgem de cada msculo e nervos que o compem.

    Assim, em The act of seeing with ones own eyes no h comentrio, voz em off a nos narrar fatos trgicos, mas apenas a carne aberta a tal ponto que s lhe resta tornar-se, como

    Medusa ao olhar seu prprio reflexo, um simulacro de si

    mesma. Para o corpo esvaziado de todas as suas promessas, no

    h significado, no h palavra que se possa usar, pois o peso da

    carne se cobre com o olhar do espectador. Este, transformado

    no mais mrbido dos voyeurs, assiste nudez de seu prprio despedaamento, do olho que se inquieta com feridas mortas

    que no podem ser cicatrizadas.

    4 o que o prprio Brakhage expe em uma de suas entrevistas: Eu

    acho mesmo que meus filmes so documentrios. Todos eles. Eles

    so minhas tentativas de conseguir, de forma mais precisa o possvel, a

    representao do ato de ver. Eu nunca fantasio. Eu nunca inventei algo apenas

    com o objetivo de fazer uma imagem interessante. Eu sempre lutei com muito

    esforo para conseguir chegar o mais perto de um equivalente, em filme,

    daquilo que realmente vejo (BRAKHAGE, 1973: 10. Traduo do autor).

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    Alexandre Rodrigues da Costa

    Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 136-151, jan.-jun. 2007

    No seriam essas imagens, oferecidas pela cmera de Brakhage,

    uma forma de dizer que nossas faces refletidas no espelho j

    no so suficientes? Que, prximo dos mortos, seramos como

    eles? Talvez s haja uma certeza, a de que no h como fugir

    de coisas incrustadas em nossa carne, uma vez que a cmera

    volta-se para ns, espera do momento apropriado, daquilo

    que o olho no consegue ver, mas ainda assim o fere.

    Referncias

    AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Trad. Marina Appenzeller.Campinas, So Paulo: Papirus, 2004.

    BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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    BRAKHAGE, Stan. Stan and Jane Brakhage (and Hollis Frampton) Talking. In: Brakhage Scrapbook, ed. Robert A. Haller. New Palz, New York: Documentext, 1982.

    BRAKHAGE, Stan. Metforas da viso. In: XAVIER, Ismail (org.). A experincia do cinema. Rio de Janeiro: Edies Graal: Embrafilme, 1983.

    CALVINO, Italo. Palomar. Trad. Ivo Barroso. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.

    CAMPER, Fred. Stan Brakhages films. In: By Brakhage an anthology. The Criterion Collection DVD, 2003.

    CIORAN, E. M. Brevirio de decomposio. Trad. Jos Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

    COSTA, Flvia Cesarino. O primeiro cinema. So Paulo: Scritta, 1995.

    GREENAWAY, Peter. Interviews. Edited by Vernon Gras and Marguerite Gras. University Press of Mississipi/Jackson, 1991.

    HITCHCOCK, Alfred. In: TRUFFAUT, Franois. Hitchcock e Truffaut entrevistas. Trad. Maria Lucia Machado. 3. ed. So Paulo: Brasiliense, 1986.

    LISPECTOR, Clarice. Laos de famlia. 12. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1982.

    SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Trad. Elo Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

    SIMBOLO, Noel. Alfred Hitchcock. Rio de Janeiro: Record, 1969.

    TRUFFAUT, Franois. Hitchcock e Truffaut entrevistas. Traduo de Maria Lucia Machado. 3 ed. So Paulo: Brasiliense, 1986.

    Rsum: Cet article analyse la prsence de la mort dans les travaux dAlfred Hitchcock, Peter Greenaway et Stan Brakhage, dans le but de percevoir comment ces ralisateurs utilisent le corps comme une forme pour inverser le regard, au moment o ils cherchent, au moyen du cadavre, reflter le vide de limage, les fausses apparences sur lesquelles se basent toutes choses.

    Mots-cls: Mort. Cadavre. Image. Regard.

    Abstract: This article analyzes the presence of death in the works of Alfred Hitchcock, Peter Greenaway and Stan Brakhage, with the purpose of perceiving how those directors use the body as a form to inverting the look, at the moment in that they seek, through the cadaver, to reflect the emptiness of the image, the fake bottom on which all the things are born.

    Keywords: Death. Corpse. Image. Stare.