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Os lapidários medievais e as doenças femininas: um estudo de caso a partir do
Liber Lapidum do MS Rawlinson A 273 (c. século XIV)
Raíssa Rocha Bombini1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Ana Maria Alfonso-Goldfarb
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Introdução
O presente trabalho se ocupa, de forma particular, dos lapidários medievais, ou
ainda, das coletâneas de pedras e gemas que eram utilizadas como amuletos e talismãs,
além dos estudos que os fundamentavam. Nosso enfoque está em entender a relação que
possa existir entre determinadas pedras, destinadas à saúde da mulher, as quais
aparecem reproduzidas na literatura dos lapidários, e o período de calamidade do século
XIV, quando a Peste Bubônica afligiu as Ilhas Britânicas. Defendemos que essa relação
se daria porque, na época das pestes, haveria uma maior preocupação e cuidado com a
diminuição populacional, o que pode vir a justificar a transmissão do conhecimento
sobre determinadas pedras para a proteção feminina.
Para o nosso objetivo, buscamos trazer à tona um lapidário medieval – anônimo
até o momento - pouco conhecido pelos estudiosos, i.e. o Liber Lapidum (f. 64v – f.
68v) presente no manuscrito bodleiano Rawlinson A 273, datado do século XIV. Sob a
luz de uma nova perspectiva de análises, esse lapidário - esquecido no tempo e nas
prateleiras da biblioteca - torna-se revelador, contribuindo imensamente para a
finalidade da pesquisa. Vale esclarecer que não se trata de uma simples variante do
1 Trabalho financiado por bolsa Capes e com apoio de projetos CNPq e FAPESP. As autoras agradecem a
Bodleian Library pelo envio do material.
conhecido lapidário de Marbode2, apesar de seu título aparecer em bases de dados
ligado constantemente a este documento.
Pelo viés documental, pensando as fontes e relações intrínsecas do texto, o Liber
Lapidum interessa-nos aqui por dar testemunho da forma como se tratava, a partir de
amuletos, a vitalidade feminina e, particularmente, a proteção da gestante e da lactante.
Entre as cinquenta pedras descritas nesse lapidário, há três que contêm essa proteção.
São elas a Jaspide (Jaspe)3, a Ethide (Aetite)4 e a Galactica5. No presente trabalho,
analisamos especialmente uma, considerada de grande importância pelo autor anônimo:
a pedra Galactica, também chamada de Galaritides, Galactides, Galaxias, entre muitas
outras variações e nomes (LECOUTEUX, 2012: 137).
Sobre a documentação
Antes de tratarmos propriamente da pedra, é importante situá-la em seu suporte
físico e textual, isto é, o manuscrito Rawlinson A 273, em primeiro lugar, e o Liber
Lapidum, em segundo. Com 145 fólios, o manuscrito A 273 é um documento do tipo
códex e encontra-se, atualmente, na Bodleian Library, dentro da coleção de Manuscritos
Rawlinson. Ainda não foi descoberto nenhum patrono, copista ou autor da obra. Nem
mesmo o colofón cumpre com sua função de trazer esses nomes. Da mesma forma, não
foram descobertas possíveis cópias que mostrem a família à qual esse manuscrito
pertence, informação que também a Bodleian Library careceu em fornecer. Assim
sendo, no momento, o MS Rawlinson A 273 continua de procedência indeterminada,
exceto pela provável origem inglesa, identificada pela paleografia e pela frequência em
que aparecem, nas cartas que compõem o manuscrito, os nomes do Bispo da Cantuária,
dos reis Edward I, Edward II e Edward III, além de acontecimentos de seus reinos.
2 O Lapidário de Marbode de Rennes, originalmente intitulado De Lapidibus, apesar de aparecer com
outros nomes em diferentes bases, é um trabalho de referência que une diversas tradições de lapidários.
Do final do século XI, é composto em versos e descreve a aparência, a localização e as propriedades de
dezenas de pedras. Teve grande influência na literatura dos lapidários produzidos nos séculos posteriores. 3 Essa pedra tem a virtude de facilitar o parto. Sobre a Jaspe, ou Jaspis, ver: LECOUTEUX, Claude. A
Lapidary of Sacred Stones: Their Magical and Medicinal Powers Based on the Earliest Sources. p. 159. 4 Essa pedra tem as virtudes de ajudar no momento do parto e prevenir aborto. Sobre a Aetite, conhecida
como “pedra de águia” ou “pedra grávida”, ver LECOUTEUX, Claude. A Lapidary of Sacred Stones:
Their Magical and Medicinal Powers Based on the Earliest Sources. p. 36 a 40. 5 Não foram encontrados nomes correspondentes em português para essa pedra.
Sobre o período em que o manuscrito teria sido produzido, sustenta-se que seja a
segunda metade do século XIV pela presença de algumas datas dentro de determinadas
cartas, como: Responsio Edw. III. ad papam Benedictum XII. De pace cum Philippo de
Valesio, Franciae rege, tractanda, de 30 Jan. 1340 (fol. 112v); Litera imperatoris
(Ludovici IV., de Bavaria,) missa Regi Angliae de pace cum Francia tractanda; de 14
ou 25 de Junho de 1341 (fol. 115v); Litera missa Regi Angliae per papam Clem. VI, ad
pacem exhortans; de Feb. 1347 (fol. 116v).
Apesar de numerosas, as cartas compõem apenas uma parte do manuscrito.
Incialmente, há três libelli ligados a (pseudo-)Aristóteles (Secreta Aristotelis, f. 1r;
Aristotelis liber de pomo, f. 27v; Planctus philosophorum de morte Aristotelis, f. 31r),
seguidos por dois ligados à figura do imperador Alexandre, o Grande (Historia
Alexandri imperatoris, f. 31r; De mirabilibus mundi, tempore Alexandri, f. 61r).
O Liber Lapidum, estudado aqui, encontra-se na sequência, junto ao pequeno
tratado astronômico Omnia signa lunae per annum (f. 68v). Em seguida, há dois
tratados “filosóficos” (Altercatio philosophorum, f. 69v; De secretis secretorum
philosophiae, f. 76r) e um alquímico (Opus imperfectum, f. 80v). A partir daí, os textos
que se seguem, entre os quais estão as cartas, aparecem ora ligados a temas religiosos,
ora ligados ao reinado inglês e seu território.
Mesmo parecendo, à primeira vista, haver uma aleatoriedade nos tratados,
acreditamos que exista uma lógica na presença de cada texto, assim como na sequência
em que estão colocados. Parecem dar testemunho de uma tradição literária muito antiga,
que já foi comentada pelo historiador medievalista Lynn Thorndike, em sua obra A
History of Magical and Experimental Sciences, e, mais recentemente, por uma das
autoras do presente estudo, em sua obra Livro do Tesouro de Alexandre. Essa tradição,
identificada e estudada por Alfonso-Goldfarb no manuscrito que dá nome ao seu livro,
traz as figuras de Aristóteles/Alexandre em obras medievais, preferencialmente
herméticas, expressando uma relação de mestre/discípulo na transmissão de saberes
(ALFONSO-GOLDFARB, 1999: 28). No mesmo sentido, Lynn Thorndike nos relata
que essa tradição relacionava o Imperador e o Filósofo, cooperando entre si, à busca de
conhecimentos vindo de diversas partes do mundo conquistado (THORNDIKE, 1923:
246).
Plínio, o Velho, em sua principal obra, Naturalis Historia, apresenta um breve
comentário a respeito de Aristóteles e Alexandre que exemplifica o que foi explicitado
acima:
Alexandre, o Grande, estando inflamado com um forte desejo de se
familiarizar com a natureza dos animais, confiou a realização desse
desígnio a Aristóteles, um homem que detinha o mais alto grau em
todos os ramos da aprendizagem; para qual finalidade colocou sob o
seu comando alguns milhares de homens em todas as regiões da Ásia
e da Grécia (...). (Tradução nossa) (PLÍNIO, Nat. Hist., VIII, 17)
Roger Bacon, já no século XIII, nos dá testemunho da mesma história de Plínio,
porém ampliando a busca de conhecimento de Alexandre e Aristóteles para além dos
animais: “Aristóteles, com a autoridade de Alexandre, mandou dois mil homens para
ganhar conhecimento experimental de todas as coisas que estão na face da terra”
(BACON, Opus maius, VI, I: 585). Por fim, no final do século XIII ou início do XIV,
Marcus Grecus, em seu Liber Ignium, inclui o mestre e o discípulo nas expedições,
comentando que Aristóteles viajou com Alexandre, descobrindo coisas novas
(THORNDIKE, 1923: 252 e 253).
Passemos, então, à relação do que foi dito até aqui com o lapidário do MS
Rawlinson A 273, ou ainda, à lógica que possa existir entre os textos inicias do
manuscrito, isso é, de (pseudo-)Aristóteles e Alexandre, com o Liber Lapidum. Tudo
indica que essa relação se apresenta duplamente: em primeiro lugar, as expedições
alexandrinas em busca de novos conhecimentos, organizadas por Aristóteles, passavam
por regiões que são a origem de muitas pedras apresentadas no lapidário. Por exemplo,
um dos lugares que teriam sido visitados por Alexandre e seus homens foi a Índia. Era
bastante conhecida no medievo ocidental uma suposta carta de Alexandre a Aristóteles,
saída das histórias sobre o Imperador, intitulada Alexandri Magni Epistola ad
Aristotelem de mirabilibus Indiae (THORNDIKE, 1923: 555). Nesse sentido, são
apresentadas como de origem indiana as pedras Berillo, Panteron, Adamante e Jaspide.
Em segundo lugar, pensando a transmissão de conhecimentos sobre as pedras e a
ordem dos textos no manuscrito – primeiro os aristotélicos e depois os alexandrinos, ou
seja, primeiro do mestre, depois do discípulo - o Filósofo, que “detinha o mais alto grau
em todos os ramos da aprendizagem”, parece entregar os saberes das pedras, que seus
dois mil homens reuniram, ao Imperador, que financiou as expedições. Assim, o ciclo se
completa. Thorndike nos traz um relato medieval que acreditamos poder sustentar essa
relação: em um manuscrito do século XV (Laud. Misc. 708), temos a descrição das
virtudes e composições de quatro pedras filosóficas que “teriam sido enviadas por
Aristóteles a Alexandre” (THORNDIKE, 1922: 235). Essa descrição está na sequência
de uma tradução do tratado pseudo-aristotélico Secretum secretorum, que também está
presente no MS Rawlinson A 273.
Outra relação intertextual que levantamos aqui se dá entre o tratado pseudo-
aristotélico De pomo (fol. 27v) e o Liber Lapidum. O tratado, aparentemente traduzido
no século XIII, traz a figura de Aristóteles em seu leito de morte ensinando a seus
discípulos questões sobre o universo e sobre a própria morte. Em meio a seus
ensinamentos, o Filósofo comenta a influência dos corpos celestes sobre o mundo
inferior, ou sublunar. Ainda que apareça associada a Aristóteles, a influência celestial
ou a magia astral, que foi amplamente estudada na Idade Média, tem suas origens na
Antiguidade. O estudioso David Pingree, que dedicou muito do seu trabalho aos estudos
celestes dos povos antigos, comenta que os conhecimentos astrológicos e astronômicos
foram sendo passados entre as culturas, não de forma linear, mas, sim, em trocas
constantes6 (PINGREE, 1989: 227).Também discute como a religião dos (pseudo-
)Sabeans de Harran - uma mistura de ideias mesopotâmicas, indianas, iranianas,
neoplatônicas e ptolomaicas – gerou a magia astral, a qual foi descrita em textos árabes
entre os séculos IX e XIII, espalhando-se pelo mundo islâmico e impactando o medievo
cristão através das traduções ao latim. Essa magia explicaria, tanto no oriente quanto no
ocidente, a influência dos corpos celestes sobre o mundo sublunar (PINGREE, 2002: 9).
De acordo com o conhecimento que foi sendo produzido nesse caldeirão de culturas
antigas, conhecido por hermeticismo, a influência astral ou celeste viria dos poderes
planetários, ou ainda, dos espíritos planetários, que são poderes intermediários entre a
divindade máxima e o homem. Segundo o estudioso, esses espíritos eram criaturas
divinas enviadas por Deus às esferas celestes para supervisionar os eventos sublunares
(PINGREE, 2014: 481).
6 Sobre esse tema, ler PINGREE, D. Classical and Byzantine Astrology in Sassanian Persia. Dumbarton
Oaks Papers, v. 43, p. 227-239, 1989.
Aparentemente, as ideias de magia astral adentraram o ocidente cristão não
apenas em decorrência das traduções, a partir do árabe, de tratados que apresentavam a
influência celeste, mas também pelo vácuo que o aristotelismo deixou para a filosofia
escolástica quanto aos quatro elementos e suas qualidades, que compunham todas as
coisas do mundo sublunar, não serem suficientes para explicar todos os fenômenos
naturais. Algumas operações naturais geradas pelos corpos inferiores não podiam ser
reduzidas a suas qualidades primárias ou à mistura elemental (complexio) e certas
qualidades não podiam ser percebidas pelos sentidos humanos, ou ainda, não eram
manifestas. Assim, os efeitos dependiam de virtudes, propriedades ou poderes
chamados “ocultos”. O estudioso Nicolas Weill-Parot, em seu artigo Astrology, astral
influences, and occult properties in the Thirteenth and Fourteenth centuries, mostra-nos
que a busca pela causa das virtudes ocultas, nesse período, transcendeu o mundo
sublunar e passou aos astros e esferas celestes (WEILL-PAROT, 2010: 202),
fortalecendo-se pela magia astral que chegava do Oriente Médio.
Sem sermos injustos com Aristóteles, é importante notarmos, também, que uma
parte de seu pensamento pode ter encorajado práticas astrológicas e mágicas. Na obra
De generatione et corruptione, II, 9, o filósofo nos apresenta a ideia de que entre a
madeira (matéria) e a cama (forma) há um poder agente, pois o elemento não pode
produzir algo por si só. Essa ideia teria sido adaptada posteriormente até chegar à noção
de que as formas – sublunares - eram governadas por formas supralunares, ou ainda,
inteligências associadas às esferas celestes.
Voltamos, assim, ao De Pomo, presente no MS Rawlinson A 273, ao Filósofo
em seu leito de morte comentando a influência dos corpos celestes sobre o mundo
sublunar e, enfim, à sua relação com o Liber Lapidum. A forma como as gemas,
enquanto amuletos, eram entendidas passava pelas noções explicitadas até aqui. Como
veremos mais adiante, as pedras desse lapidário contêm virtutes que não se explicam
pela complexio, mas sim pelas influências celestes.
Isso fica mais claro na segunda parte do lapidário7, identificada entre os fólios
f.67v e 68v. Esta tem como fonte o “Lapidário Techel/Azareus” que é, na verdade, um
7 Dividimos o Liber Lapidum em duas partes, uma vez que são dois textos diferentes, de fontes distintas.
A primeira parte compreende o texto entre f. 64v a 67v, enquanto a segunda compreende o texto entre
f.67v e 68v.
texto composto, ou ainda, a união de materiais de duas tradições, Techel e Azareus,
figuras às quais foi atribuída a obra. Esse complexo, estudado a fundo recentemente por
Katelyn Mesler sob a visão judaica, encontra-se fragmentado por vários manuscritos
dos séculos XIII e XIV (MESLER, 2014: 76), entre eles, o Rawlinson A 273. Sua
característica é apresentar as imagens que deveriam ser feitas em pedras para atribuí-las
às virtudes celestes. Não há menção à origem, aparência ou etimologia da gema, ao
contrário da primeira parte do Liber Lapidum (f. 64v a 67v).
A primeira parte é bastante distinta do Complexo Techel/Azareus, parecendo
estar fundamentada em um conhecimento tácito. Como veremos adiante, seu texto traz
informações parecidas com outros lapidários, antigos e medievais, que também
apresentam as virtudes das pedras. Contudo, essas obras não são copiadas, nem citadas
literalmente. Alguns desses lapidários-fonte são o de Plínio, o Velho, Dioscórides,
Solinus, Isidoro de Sevilha e Marbode, além do Lapidário de Alfonso X.
A respeito dessas fontes, é importante notarmos que, assim como os saberes
astrológicos comentados anteriormente, o conhecimento sobre pedras e gemas também
tem suas raízes na antiguidade remota de saberes indianos, mesopotâmicos e egípcios.
A menção desses lugares nas origens das pedras do Liber Lapidum é um indício dessa
longa tradição, que foi passada, então, à cultura helênica, com autores como Teofrasto,
Dioscórides e Meliteniotes e, posteriormente, aos autores romanos, como Plínio, o
Velho, e Solinus. A extensa linhagem de lapidários com que nos defrontamos aqui,
cujos conhecimentos são transmitidos e tecidos a cada geração, parecem indicar a
importância que as pedras amuletos tinham para as sociedades. Não seria diferente para
a Idade Média, que transmite esses conhecimentos em obras como de Isidoro de Sevilha
e Marbode, mas discutindo o papel dos estudos mágicos no meio cristão escolástico.
Em trabalhos mais recentes a respeito dos amuletos e talismãs medievais,
Charles Burnett mostra que o estudo dos talismãs (imagines) esteve entre as sete artes
liberais durante boa parte da Idade Média. Em algumas obras, como Disciplina
clericalis, de Petrus Alfonsi (séculos XI e XII), e De divisione philosophiae, de
Dominicus Gundissalinus (século XII), a necromancia ou nigromancia, entendida como
uma tradução comum para a palavra árabe sihr, ou “magia”, aparece como parte
importante do conhecimento. Vale ressaltar, inclusive, que em De divisione
philosophiae, Gundissalinus reorganiza a aristotélica árvore de conhecimentos e inclui
nigromancia secundum physicam, talismãs e alquimia dentre o que deveria ser
aprendido (BURNETT, 1996: 2 a 4).
A diferença entre nigromancia e talismãs na obra de Gundissalinus parece fazer
referência a uma ampla discussão que ocorreu na Idade Média a respeito do que era
permitido ou não para o Cristianismo em termos de magia com pedras, isto é, aquela
prática que envolve os poderes celestes elevados ou que envolve a invocação de
espíritos e demônios, criaturas do mundo sublunar (BURNETT, 1996: 5). Uma das
maiores autoridades nesse assunto foi (pseudo?)Alberto Magno, que discutiu os três
tipos de magia talismânica em sua obra Speculum astronomiae. O primeiro seria
abominável, por usar fumaças em rituais e invocações de demônios. O segundo seria
detestável, por empregar personagens, nomes (estrangeiros) e exorcismos, indo contra a
fé cristã. O terceiro tipo, avesso aos anteriores, retira seu poder apenas das esferas
celestes, sendo, então, permitido (BURNETT, 1996: 3).
Segundo Pingree, os tratados abomináveis seriam derivados da magia astral
elaborada pelos (pseudo-)Sabeans de Harran nos séculos IX e X, conforme explicamos
anteriormente. Trazem a criação de talismãs utilizando magia baseada nos momentos
astrológicos apropriados, com rituais e preces ao planeta regente, que enviaria seus raios
às pedras. A magia permitida é igualmente derivada dos antigos conhecimentos
mesopotâmicos, também retirando seu poder dos astros. Entretanto, esse poder dado aos
talismãs depende apenas do elemento apropriado, de sua relação com o planeta e do
momento astrológico correto, eliminando-se os rituais com preces dos Sabeans.
(PINGREE, 2014: 480 e 481).
Uma vez que o Liber Lapidum não contém em seu texto a invocação de espíritos
e demônios ou a prece aos planetas regentes, apesar de retirar dos astros a virtude das
gemas, podemos considerar que estava presente no meio cristão inglês do século XIV
por pertencer à terceira categoria explicitada por Alberto Magno. Tudo indica que tenha
sobrevivido até os nossos dias por não ser uma ameaça aos dogmas da Igreja,.
Uma das poucas menções a esse lapidário está em um trabalho de 1922, escrito
por Joans Evans, que foi Bibliotecária do St. Hugh’s College, em Oxford, intitulado
Magical Jewls in the Middle Ages and Renaissance particularly in England. Nesse
compêndio, Evans traz informações sobre diversos lapidários medievais ingleses,
comentando brevemente suas particularidades. Sobre o Liber Lapidum, a autora escreve:
Um lapidário em prosa em latim é dado em um manuscrito inglês do
século XIV na Bodleian Library. Esse pertence à categoria popular; dá
destaque às virtudes sobrenaturais sobre as medicinais e registra um
número considerável de fábulas sobre pedras. Inclui a turquesa e
várias das pedras encontradas mais comumente nos lapidários do que
na vida cotidiana, e embora não possua nenhuma característica de
interesse particular, representa bem o lapidário comum do século XIV.
(Tradução nossa) (EVANS, 1922: 70)
Quando Joans descreve esse lapidário inglês como comum ou corrente e
composto por fábulas e virtudes sobrenaturais acima das medicinais, a autora paga
tributo ao período em que se insere, cujo viés historiográfico é característico do século
XIX e início do XX. Seus juízos de valor às pedras e à orientação em geral do lapidário
se explicam aí. Por isso, ainda que tenha sido considerado um tanto desinteressante pela
autora, as gemas do Liber Lapidum merecem ser compreendidas não em suas
características sobrenaturais, mas no período e na tradição literária a qual pertencem.
Sobre a pedra para proteção feminina
Passamos, finalmente, à questão principal do trabalho. Das mais diversas virtutes
que as pedras do Liber Lapidum contêm, algumas são destinadas a aplacar dores em
partes específicas do corpo, expelir venenos, tirar a febre, afastar visões fantásticas,
afastar doenças, tornar alguém amável, curar os insanos etc. Contudo, para o propósito
desta pesquisa, interessa-nos analisar uma daquelas pedras que contribuíam com a saúde
feminina e, por extensão, à sobrevivência das crianças: a gema Galactica. Conforme
dito anteriormente, há outras duas pedras mencionadas no Liber Lapidum que também
apresentam virtudes destinadas à saúde da mulher, i.e. a Jaspide (Jaspe) e a Ethide
(Aetite), que não serão cerne do presente trabalho, mas que também dão testemunho do
cuidado que houve com a população em épocas de pestes e fome.
A Galactica tem seu nome originado da palavra grega para leite, gala (γάλα), e,
por isso, é conhecida como a “pedra (do) leite”. É dita ser um quartzo branco ou
acinzentado de cor uniforme, encontrada, antigamente, nos Rios Nilo e Achelous, ou
Aqueloo8 (LECOUTEUX, 2012: 135).
Passando ao nosso documento, o anônimo autor do Liber Lapidum traz as
seguintes informações a respeito dessa gema: “A gema Galactica é a mais preciosa das
gemas. É dita ter sozinha as virtudes de todas as pedras. De cor acinzentada. Dá máxima
abundância de leite à portadora. Dá um parto fácil. (...) Afasta coceira e outras pestes.
(...) É originada do rio Nilo e Achelous” (Tradução nossa) (MS RAWLINSON A 273, f.
65r).
Antes de fazermos qualquer análise, é essencial mostramos como algumas das
principais fontes dos Liber Lapidum transmitiram o conhecimento a respeito dessa
pedra através dos tempos, até chegar no século XIV e, respectivamente, ao manuscrito
Rawlinson A 273.
Começamos pela obra Naturalis Historia, de Plínio, o Velho. Nessa grande obra,
do século I, o autor menciona brevemente a pedra, que aparece com os nomes de
Galactitis (“pedra do leite”), Leucogæa (“terra branca”), Leucograpritis (“pedra branca-
listrada”) e Synnephitis (“nublada”). A respeito dos nomes, o estudioso W. L.
Hildburgh, escrevendo em meados do século passado sobre amuletos relacionados à
lactação na Espanha, levanta a hipótese de que Plínio teria confundido e amalgamado
mais de uma pedra naquela conhecida por Galactitis (HILDBURGH, 1951: 437). As
informações apresentadas sobre a pedra no Naturalis Historia são:
Galaxias. Galactitis, leucogæa, leucograpritis, ou synnephitis.
Gallaica. Gassinade. Glossopetra. Gorgonia. Goniaæa. –
Galaxias, chamada por alguns de "galactitis", (…) é da cor
uniforme do leite; outros nomes dados a ela são leucogæa,
leucographitis, e synnephitis, e, quando dissolvida na água,
tanto no sabor e na cor maravilhosamente assemelha-se ao leite.
Essa pedra estimula a secreção do leite em mulheres que estão
amamentando, é dito; além disso, preso ao pescoço das
crianças, produz saliva e se dissolve quando colocado na boca.
Dizem também que priva as pessoas de sua memória: é
produzida nos rios Nilo e Achelous. (Tradução nossa)
(PLÍNIO, Nat. Hist., XXXVII, 59)
8 Rio localizado na região oeste da Grécia.
Diferentemente de Plínio, Dioscórides, também no século I, apresenta uma pedra
intitulada “Galaktites Lithos”, associada ao giz ou à cal, com outras características.
Segundo o autor, a pedra seria assim chamada por liberar algo leitoso. Sua cor seria
como das cinzas e seu gosto doce. Entre suas virtudes, não há qualquer uma destinada à
saúde feminina, mas sim à cura de úlceras oculares. Para esse propósito, teria que ser
dissolvida em água (DIOSCÓRIDES, Greek Herbal, V, 150).
A pedra Galactica também aparece na obra de Solinus, aproximadamente do
século IV, (Solinus, G. Iulii Solini, Collectanea Rerum Mirabilium - Solinus Advento
Salutem 25, VII) e em Isidoro de Sevilha, dos séculos VI e VII (Isidori Hispalensis
Episcopi Etymologiarum Siue Originum - Liber XVI: De Lapidibus et Metallis). Em
ambos os lapidários, é dada à pedra a virtude feminina de enriquecer os seios da mulher
lactante que a trouxer consigo. Já em Marbode, nos séculos XI e XII, (Libellus de
Lapidibus preciosis, Tit.LXI), uma informação importante ao nosso estudo é
acrescentada, isto é, o fato de a pedra dar à mulher um parto fácil, o que também
aparece na Galactica do Liber Lapidum.
Tudo indica que essa pedra também esteja presente no famoso Lapidário de
Alfonso X, do século XIII, porém com o nome zarocan:
Do primeiro grau do signo de Gêmeos está a pedra que dizem
zarocan. Esta é de cor branca de clara brancura, por isso parece um
osso bem gasto. (...) A natureza é quente e úmida. E há muitas minas
dela pelo mundo, mas as maiores são as da terra de Barbaria e de
Espanha. E são encontradas nas margens do mar e dos rios. A virtude
desta pedra é tal que faz crescer muito o leite para as mulheres que a
trazem. E o mesmo faz a outro animal qualquer. E, portanto, os
bárbaros fazem suas mulheres as trazerem nos pescoços (...). E é útil,
além disso, para o mesmo quando a colocam em electuários e a dão de
comer. E é boa contra melancolia, e serve muito às úlceras que se
fazem nos olhos. E a estrela que está na ponta da Ursa Menos, a que
chamam o “Cabreito de Benanays”, tem poder sobre essa pedra, e
dela recebe a força e a virtude. E quando esta estrela estiver no
ascendente, mostra essa pedra mais claramente suas obras. (Tradução
nossa) (ALFONSO X, Lapidario, 61: 63-64)
Apesar de a zarocan ter a mesma virtude feminina apresentada nos lapidários de
origem grega, esta traz, também, diferenças cruciais para com os outros textos, tal como
sua origem. Enquanto em Plínio a Galactica é dita ser encontrada no Egito e na Grécia,
no Lapidário de Alfonso X a zarocan é dita ser encontrada na Barbaria9 e na Espanha.
É possível que a Galactica tenha ainda relação com outras duas pedras descritas
no Lapidário de Alfonso X, a Geleatez e a axufaraquid. Sobre a primeira é dito que
“esta é branca semelhante ao leite, e é muito clara, e é encontrada nas sepulturas dos
antigos. E à mulher que a tiver pendurada a si, acrescenta o leite” (ALFONSO X,
Lapidario H.1.15, IV, 27: 217). Sobre a segunda é dito ser encontrada em rios e fazer
crescer o leite em mulheres (ALFONSO X, Lapidario, 136: 119).
Podemos perceber que há duas tradições de virtudes geralmente associadas à
Galactica: a primeira se relaciona à saúde feminina (Plínio) e a segunda à cura dos
olhos (Dioscórides). O Liber Lapidum apresenta apenas a primeira como pudemos
perceber. Ainda assim, é possível considerar que as informações sobre as gemas do
lapidário sejam uma composição de diferentes fontes, conforme já indicado acima.
Atentemo-nos, agora, à virtude voltada às mulheres grávidas e lactantes, de
alguma forma escolhida para compor a Galactica. Sua reprodução em um manuscrito
parece demostrar uma preocupação que vai além da saúde da mulher, passando para a
saúde da criança. Acreditamos que essa preocupação possa estar associada a uma
grande queda populacional e, consequentemente, à necessidade de um novo
povoamento. Vários fatores podem ocasionar uma alta mortalidade. Entre eles, estão a
guerra, as pestes e a fome, presentes constantemente na Idade Média.
O século XIV vivenciou, nas Ilhas Britânicas e em outras partes da Europa, um
grande período de fome, mas seu maior flagelo foi a Peste Bubônica. Enquanto
trabalhos recentes ainda discutem como sua ampla e rápida propagação teria ocorrido,
há consenso sobre seu terrível impacto para a população da Inglaterra, a qual diminuiu
significativamente em meados do século XIV.
Não há consenso, porém, se a Peste teria afetado, de forma mais avassaladora, as
mulheres ou os homens nesse período. Sandy Bardsley, estudiosa na questão de gênero
aplicada à Inglaterra medieval, defende que o número de mulheres nesse período era
bem inferior ao dos homens. Os motivos para isso seriam vários, como a alimentação
9 A Barbaria é a região dos Berberes, povos do Norte da África que falam a língua berbere.
mais precária, a propensão a doenças e o risco da gravidez (BARDSLEY, 2014: 301 a
305).
Tanto a queda populacional quanto a maior mortalidade feminina podem ter
incentivado a preocupação em se buscar proteção e profilaxia para as mulheres grávidas
e lactantes, o que explicaria, por sua vez, a reprodução de um lapidário com a pedra
Galactica no século XIV inglês. A própria virtude da Galactica de afastar pestes pode
ajudar a sustentar esse argumento.
O uso de amuletos para se proteger da Peste Bubônica não foi estranho aos
medievais. Don C. Skemer nos relata a procura de amuletos textuais de proteção nesse
período, alguns especificamente contra esse mal (SKEMER, 2006: 2 e 155). Por isso,
também podemos imaginar que o uso de pedras com virtudes celestes para proteger as
mulheres, a fim de aumentar a população, possa ter ocorrido.
Essas relações citadas até aqui ainda estão em investigação. Apesar de haver
trabalhos sobre os amuletos textuais medievais e seus usos, como a grande obra de Don
C. Skemer, os trabalhos sobre as pedras sendo utilizadas como amuletos nesse período
de calamidade ainda são poucos. Por isso, nosso foco está centrado nas possíveis redes
de saberes sobre as pedras e suas virtudes, além de como esses conhecimentos se
ligavam ao período em que eram difundidos.
Referências
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