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OS MODOS DE PERCEPÇÃO DA ARTE E DA CIÊNCIA E AS POSSÍVEIS LEITURAS DO MUNDO NO MUSEU DO IMAGIN ÁRIO
Marília Papaleo Fichtner 1
Na infância, todos nós brincamos de fazer coleções: coleções de
tampinhas, figurinhas, pedras, conchas, bichinhos, santinhos, carrinhos, entre
outras. Fazer uma coleção significa que a mente está tentando inserir um
objeto dentro de uma série. Assim, quando colecionamos borboletas, uma
borboleta passa a pertencer à família ou classe de todas as borboletas. Quem
faz isso está criando categorias lógicas para ordenar o mundo. A idéia de
ordenar o mundo do ponto de vista da ciência teve uma origem, uma gênese:
os herbários criados pelos europeus, a partir do século XVII, tendo por
inspiração a natureza do Brasil. Ana Maria Belluzzo (1999), em O Brasil dos
viajantes, destaca o quanto a curiosidade de formar coleções propiciou o
nascimento da história natural como a ciência da ordem. O modelo de
pensamento criado pela classificação na botânica, no século XVIII, serviu,
inclusive, como paradigma para a ordenação do mundo. Como na cultura é
possível acumular e transmitir conhecimento, hoje, até as crianças sabem
colocar borboletas e plantas em suas respectivas categorias lógicas. E isso
torna o mundo um lugar compreensível porque cada coisa ocupa o seu lugar
como é o caso das borboletas na pintura abaixo:
1 Psicóloga. Doutora em Teoria da Literatura. Professora substituta da disciplina “Leitura e Literaura 0 a 6 anos” e professora e supervisora de estágio da disciplina”Prática e Análise de Prática”, na FACED/UFRGS. Membro do GEIN – Grupo de Estudos de Educação Infantil – A leitura, a escrita e a produção narrativa auto-biográfica em sala de aula.
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Fonte: O Brasil dos viajantes, Ana Maria Belluzzo (1999). Um lugar no Universo, p.30. Quadro do naturalista inglês Henry Walter Bates, Batterflies, realizado no século XIX. O perfil de um taxonomista revela também os prazeres da mente, pois ordenar os objetos do mundo em um pequeno cosmos gratifica a inteligência e já pode ser considerado prazer estético.
Porém, nem sempre percebemos as borboletas como seres que
pertencem à família das borboletas. Conforme a cor ou a luminosidade, elas
podem virar bruxas. Aí a idéia ou conceito de borboleta é destituído do atributo
de categoria lógica e volta a habitar o reino da fantasia e do imaginário infantil
retratado nos contos de fadas e nas histórias de Monteiro lobato. Por isso, um
museu deve ser um lugar em que o visitante encontre fantasia e realidade, pois
a inteligência organiza o mundo organizando-se a si mesma. E, neste sentido,
o intelecto é apenas um setor ou segmento da imaginação.
O importante, entretanto, é distinguir o seguinte aspecto: quando alguém
olha uma borboleta e, mesmo sem pensar, a insere na família das borboletas
esse alguém está usando o olho que pensa e reflete. Logo, esta pessoa esta
fazendo valer em seu sistema de orientação e definição do real o modo de
percepção da ciência. Agora, quando uma pessoa vê uma borboleta e,
subitamente, a borboleta se transforma em uma bruxa, esta pessoa está
fazendo valer o modo de percepção da arte. E o que está sendo dramatizado
em sua mente é o confronto com um mundo mágico e encantado e esta
transformação dá prazer, o chamado prazer estético. A mente se pergunta com
alegria: Isto é uma borboleta ou uma bruxa? Isto é um coelho ou um pato?
Brincar com a instabilidade das formas e tomar uma decisão, mesmo que
provisória, nos dá alegria porque nos sentimos autores, criadores de algo,
criadores do mundo, mesmo que o mundo esteja representado nas miniaturas
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do brinquedo infantil. Esta é a alegria que podemos observar no jogo da
criança que explora, durante toda a infância, a transformação do objeto.
Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 35). Frente a essa imagem, a pergunta que a mente se faz é a seguinte: Isto é um coelho ou um pato?
Por serem um lugar para colocar o mundo em ordem – tal como os
armários e gavetas de nossas casas –, os museus guardam a nossa memória
através de documentos e registros, chamados, na cultura letrada, de fontes
primárias. Antes de existirem museus, bibliotecas e fontes primárias, o homem
aprendeu a guardar a memória contando histórias. A figura do contador de
histórias é de certa forma a primeira biblioteca ou museu ambulante que o
homem inventou. Então, vou aproveitar a ocasião e contar uma história para
vocês guardarem uma coisa na memória. Que coisa é essa? Eu quero que
vocês guardem na memória que tipo de processo mental ocorre na mente
quando se armazena informação.
Um viajante vai a uma Terra Desconhecida e vê que lá existe um
elefante e um gato, quanto ele volta pra casa, ele conta que viu um elefato. Os
pesquisadores, cientistas e artistas, ouvem o relato do viajante, desenham,
pintam e bordam as coisas da imaginação e cria-se o senso comum de que na
Terra Desconhecida habita uma estranha criatura chamada Elefato.
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ELEFATO
Fonte: Livro da com-fusão. Ilan Brenman; Fé (2004).
Assim é a mente humana, ela inventa coisas que inventam outras
coisas. Não se pode subestimar o papel desempenhado pelas primeiras
histórias que ouvimos e pelas primeiras imagens divulgadas em livros (hoje
também a televisão e o computador) na formação das impressões, idéias e
visões que formamos da paisagem, da natureza e do homem enquanto
imagem mental. Vamos inventar mais imagens: o que surge da mistura entre
demônio e índio? Dá um demíndio.
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DEMÔNIO + ÍNDIO = DEMÍNDIO
Fonte: O Brasil dos viajantes. Ana Maria Moraes Belluzzo (1999). O Imaginário e o Desconhecido (p. 25). Detalhe do quadro, anônimo,O Inferno, pintado na primeira metade do século XVI. Na versão apresentada o Inferno é comandado pelo índio demonizado.
Segundo Belluzzo, este quadro registra o esforço do conquistador
português de inserir um novo ser no imaginário da cultura cristã. O jogo
estabelecido pela representação tira proveito da correlação direta entre pecado
carnal e castigo corporal. O quadro apresenta o demônio com os atributos do
índio, fazendo com que o índio passe a ter os atributos do demônio. Esta
analogia revela o teor fictício deste retrato. Logo, o pintor deste quadro não
está preocupado em conhecer o índio e sua cultura, mas, distorcendo a
compreensão, o pintor apenas expressa o que o índio significa para a cultura
cristã ao confrontar os valores de ambas.
A força ontológica do imaginário, ou seja, sua capacidade de inserir os
seres em uma ordem maior, a do universo, nos escapa, pois, hoje, o
pensamento científico (e a lógica em sentido amplo) já nos são familiares; por
isso mesmo, parece que sempre é mais difícil penetrarmos no âmbito da
palavra imagem. Assim, antes de tudo gostaria de esclarecer em que contexto
estou usando o termo imagem, tendo em vista que é a imagem que faz com
que nossas mentes criem elefatos e demíndios. Para tanto, cito o estudo de
Ana Maria Belluzzo, O Brasil dos viajantes, que aborda essa questão:
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Em que consiste a dimensão vaga do imaginário? O estudo da imagem apreende, das obras, o seu caráter de representação mental e não de representação do mundo. A dimensão do imaginário não é considerada como uma ocorrência exclusiva do discurso artístico. Todos os documentos apresentam ao historiador a sua cota de imaginário, à medida que este dirige sua atenção para o teor simbólico neles contidos e não somente para o que reproduzem. A dimensão do imaginário, mais orientada para o mundo interior do que exterior, poetiza mais do que aponta. A obra artística constitui um campo especialmente fértil para esse tipo de especulação. (p. 14)
Mais uma vez, é necessário deixar bem claro que quando falo em
imagem associada à memória, penso na imagem como uma representação
mental e, nesse caso, uma representação mental fugidia que não está sujeita à
verificação empírica, a nenhum dado da experiência que envolva os sentidos, a
percepção, sempre estando sujeita a se desligar do contexto original e passar a
gravitar livremente, podendo, em algum momento, vir a se cristalizar sob forma
de evidência sensível. Laura de Mello e Souza (1986), em O diabo e a Terra de
Santa Cruz, nos dá um exemplo que esclarece essa questão:
Colombo acreditava em monstros, leitor da Imago Mundi do cardeal Dáilly. Este falava de povos “cujos costumes decaíram da natureza humana”, de “homens selvagens antropófagos, com feição disforme e horrível, nas duas regiões extremas da Terra [...]: trata-se de seres acerca dos quais é difícil precisar se são homens ou bestas”. Colombo pensava que, mais para o interior da terra que descobrira, depararia com homens de um olho só, e outros com focinho de cachorro. Em 8 de janeiro de 1492, viu três sereias pularem fora do mar, decepcionando-se com seu rosto: não eram tão belas como pensara. Na direção do poete, escrevia a Santágel, as pessoas nasciam com rabo. (p. 50)
As idéias de Colombo relatadas acima, exemplificam de forma magistral
em que sentido e como a imagem se constitui em representação mental
(individual) que acaba se cristalizando em evidência sensível. No caso de
Colombo, essa evidência sensível se cristaliza porque, como aponta Laura de
Mello e Souza, ele vivia “numa época em que ouvir valia mais do que ver, os
olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via era filtrado
pelos relatos de viagem, de terras longínquas, de homens monstruosos que
habitavam os confins do mundo conhecido” (p. 22). Tudo faz crer que Colombo
ouvira relatos da Odisséia de Homero.
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Ao ver sereias no mar, Colombo criou, a seu modo, um elefato, ou seja,
ele misturou o peixe real com a imagem da sereia descrita na literatura dos
tempos de Homero. Então, quando alguém diz que viu um elefato, esse alguém
está usando uma estratégia cognitiva que o homem inventou pra guardar a
imagem das coisas na memória, trazendo à presença, ou seja, trazendo ao
presente coisas que não existem mais ou simplesmente pararam de acontecer,
de durar. Por exemplo, quando o ser humano começa a enterrar os mortos esta
é uma forma de demonstrar a presença ou permanência do outro através da
imagem mental ou memória. Este “saber” define o vínculo com a vida e com os
objetos, gerando, inclusive, no homem, a necessidade de cuidar das coisas
que existem ou existiram no passado e, portanto, se manifestam no presente
através da memória.
Logo, guardar informações na memória não é importante apenas para
responder as perguntas da prova ou para marcar a questão certa no vestibular.
Historicamente, a memória existe para que o homem crie estratégias de
sobrevivência. As estratégias ou ferramentas mais interessantes que o homem
inventou foram a leitura, a fala e a escrita. A linguagem permite a comunicação
do pensamento. Voltando à memória do elefato, observem que esta forma de
guardar informação é esquemática e funciona quase como uma caricatura.
Como nos desenhos infantis que trabalham com a simplificação da forma,
Picasso, por exemplo, consegue desenhar um touro em um só traço.
À luz da razão essa forma de ver as coisas pode parecer absurda e
distorcida. Todavia, queiramos ou não, só existe o que podemos guardar na
memória e transmitir às outras gerações. Quando o ser humano consegue isso
ele cria a cultura. Dentro da cultura, o cientista estuda, por exemplo, o elefato e
passa a ser um especialista em elefatos. Isso significa que só ele entende
deste assunto, mais ninguém. Com o desenho ou o molde do elefato em sua
mente, ele volta ao habitat desta estranha criatura e aprende agora a
reconhecer e a descriminar da imagem do elefato, a singela existência de um
elefante e de um gato. Surpreendido, o cientista escreve e divulga que elefatos
não existem são apenas seres fictícios, frutos da imaginação prodigiosa do
homem. Quando alguém consegue esse intento – ou seja, descrever o fato em
si, o fato de que na Terra Desconhecida não existem elefatos e sim apenas
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elefantes e gatos – esse alguém transita do modo de percepção da arte
(vinculado à imagem) para o modo de percepção da ciência (que produz
conhecimento).
Todavia, é importante destacar que a mente faz essa com-fusão –
entendida como a fusão ou mistura das coisas entre si – porque o tempo passa
e, ao longo de milênios, o ser humano precisa se lembrar de que existe (ou
existiu) uma infinidade de outros seres e outras coisas no mundo. Se alguém
consegue guardar na memória um elefato ou desenhar um touro em um só
traço, esse alguém está produzindo um pensamento criador. Então, quando
valorizamos a cooperação entre os modos de percepção da arte e da ciência,
estamos valorizando ou falando, na verdade, sobre a origem do pensamento
criador. E este pensamento fica registrado no livro da com-fusão.
Agora, vamos brincar com o ponto de vista da ciência. Vamos
desencantar a lua e percebê-la com objetividade. Em A descoberta da sombra,
de Platão a Galileu, a história de um enigma que fascina a humanidade,
Roberto Casati (2001) descreve a primeira vez em que observou um eclipse
total da Lua pouco depois da meia noite em Paris. Segundo ele, a Lua estava
bem enquadrada pela janela (ele morava em um arranha-céu) e brilhava
magnífica, apesar da poluição visual da ville lumière. Baseado na descrição
científica do eclipse, Casati achava que o aspecto interessante deste fenômeno
fosse o lento deslizar da sombra da Terra sobre a Lua. Sua expectativa era a
de acompanhar o traço no céu de um feixe de luz negra projetado por um farol
negativo. Qual não foi o seu susto, porém, quando, com olhos de quem
descobre pela primeira vez um objeto, viu a Lua como ela verdadeiramente é:
A Lua é um pedregulho tenebroso, bastante grande, que está a certa distância acima da minha cabeça e estranhamente não cai em cima de mim. Naturalmente, eu conhecia as leis que a mantém firme em sua órbita, mas meus olhos, não acostumados a ver pedras suspensas no céu, não queriam ouvir a voz da razão. Como de resto, havia escapado dos meus olhos a idéia, aliás velha conhecida minha, de que a Lua é uma grande pedra escura, pois de costume a luz diáfana da superfície lunar regala o olhar com a ilusão de uma lanterna delicada e leve. (p. 8)
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Casati relata que a experiência de observar o eclipse serve não só para
mudar nossa maneira de pensar a Lua – expelindo-a definitivamente do
universo mitopoético para confiná-la apenas no mundo mineral – mas,
sobretudo, para nos dar a dimensão da natureza do intelecto em sua tarefa de
corrigir percepções enganosas. Através da brincadeira de observar o eclipse
em um confortável arranha-céu de Paris, Casati faz referência ao jogo de
ilusões e aparências com que nos deixamos envolver no pretenso
conhecimento dos objetos que nos cercam.
Como no relato de Casati, na maioria das vezes, agimos com certas
suposições sobre a natureza dos objetos tendo em vista informações
perceptuais. Então, se vemos alguém se afastando, a imagem na retina se
torna menor, e o espectador, tomado pelo jogo das ilusões e aparências do
real, vê a pessoa ficando menor. O pensamento lógico, todavia, nos informa
que a pessoa continua do mesmo tamanho: ela está apenas se afastando. Só
consegue fazer isso quem construiu a noção de constância do tamanho de um
objeto, mesmo que a imagem na retina tenha mudado de escala. Existem
outras constâncias que lidam com a capacidade de reconhecer que a forma
dos objetos é a mesma, ainda que o espectador o esteja olhando de ângulos
diferentes. A capacidade lógica de corrigir distorções perceptivas com que os
objetos são enquadrados na mente é chamada de constância da forma. O
mesmo tipo de constância vale para as cores, para a luz, etc. As várias
constâncias juntas determinam o conceito mais amplo de constância do objeto.
Tal constância envolve o reconhecimento de que os objetos continuam os
mesmos embora se nos afigurem outros através de aparências e estados
enganosos como Casati relata que percebemos a Lua no cotidiano. O mundo
nos escapa com suas formas aparentes, mutáveis e enganosas. Aliás, a figura
da página 3 é um coelho ou um pato?
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Ernest Gombrich (1987) destaca que, “sabedouros” das instabilidades
dos objetos que crescem ou diminuem, se aproximam ou se afastam a revelia
de nossas vontades, os seres tiraram proveito do disfarce e da máscara para a
sobrevivência da espécie. A seguir veremos uma mariposa-folha disfarçada de
folha, a mariposa-esfinge, por sua vez, pintou uma máscara horrenda em suas
asas, criando a ilusão, frente ao predador, da presença do rosto de um animal
feroz e enorme. Por fim, a máscara humana denota o quanto o artefato
chamado máscara adquire valor estético na decoração do alojamento tribal na
Nova Guiné. A razão nasce quando o pensamento “corrige” as percepções
enganosas, apresentando à mente a aparência de um mundo estável. Ou seja,
o intelecto decide que a imagem é um pato e nunca mais ela será lida como um
coelho, criando, desta forma, a noção de um mundo estável, em que as coisas
se comportam de forma previsível. O dono da mente que faz isso, já pode ser
considerado um pequeno cientista. Agora, quando a cabeça que comanda essa
mente sente imenso prazer em brincar e criar o jogo das ilusões (isto é um
coelho ou um pato?), certamente, essa cabeça é a de um artista. Lidar com as
aparências e estados enganosos do real, antes de tudo, faz parte das
estratégias de sobrevivência de todos os seres no planeta e, portanto, possui
um sentido vital. Observemos as imagens que seguem:
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Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 25). Mariposa disfarçada de folha = MAFOLHA
Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 26). Mariposa com cara de mau = MARIMAU
Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 27). Máscara decorativa = prazer estético
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O mistério da transformação dos objetos une antropologia, arte e ciência
por diferentes motivos. O artista se compraz com o jogo com ilusão; o cientista
quer saber como as coisas são e funcionam, promovendo, à revelia de nossos
desejos, o conhecimento. O conhecimento gera desilusão que, enfim, provoca
o desencantamento do mundo. Logo, o jogo com a ilusão-desilusão é
fundamental para a descoberta do ambiente e a orientação dos seres no tempo
e no espaço. Nessa perspectiva, a vida (o estar vivo) assume o viés de um
jogo, cujo ritual envolve os caprichos e surpresas de um baile à fantasia. Como
a mariposa-folha ou a mariposa-esfinge, o homem também tem que saber
dançar neste baile de máscaras. O homem descobriu um jeito muito especial
de lidar com a instabilidade dos objetos: ele transformou o que surpreende e
assusta em jogo e prazer estético. Vejamos as imagens que seguem:
Fonte: Registros do trabalho da arte-terapeuta Marise Zimmerman.
As fotos acima nos permitem indagar em um sentido concreto: Qual é o
tamanho do mundo para o homenzinho? E para o gigante? Mas alto lá, a
definição de o que é um gigante ou um anão depende de como vemos,
interpretamos e posicionamos o corpo em relação às coisas. O boneco em sua
escala absoluta é a mesmo, não varia de tamanho. O que se transforma é o
contexto ou a figura-fundo em que ele é percebido, fato que altera a percepção
do próprio boneco. O mesmo raciocínio é válido para a bola pequena dentro da
caixa grande que pode representar a grandeza do universo ou a pequenez do
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planeta Terra e de seus habitantes em um universo que, como propõe William
Shakespeare, flutua ao sabor dos deuses em uma casca de noz.
Na primeira caixa, a grande, o boneco pode ser percebido como um
anão ou, ao contrário, pode ser apresentado como Ulisses, um herói que
desafia as forças do destino em um mundo vasto e ilimitado como na epopéia.
Na terceira caixa, a pequena, o boneco pode ser visto como um gigante ou
como alguém que se sente apertado em um mundo opressivo e pequeno –
igual a como se sente um adolescente quando começa a questionar os pais e a
se rebelar contra a família. Também podemos criar com a linguagem novas
realidades. Podemos dizer que na caixa grande mora o menor gigante do
mundo e que, na pequena, habita o maior anão do mundo. Tudo depende de
como vemos, nos posicionamos e interpretamos as coisas. Nesse sentido, a
linguagem transfigura a natureza dos objetos, criando, redefinindo e nomeando
o real. Ou seja, a linguagem também cria o real, pois ela é uma forma de
operar sobre o mundo.
Gombrich, na seção El descubrimiento visual por el arte, argumenta que
a realidade nos mostra uma diversidade de imagens que confundem e
atordoam. Para combater tal desorientação criada pela diversidade do real, o
homem inventou o símbolo e com ele a arte. Nesta perspectiva, a arte
apresenta formas esquemáticas que nos permitem recordar e reconhecer algo
familiar, estável. O discurso artístico permite que o observador/leitor crie mapas
mentais e simbólicos e, a partir deles, estime na língua das imagens e do afeto
o tamanho das coisas que nos assustam e das coisas que nos fascinam, entre
as quais está a perplexidade com a grandeza do universo e, dentro dele, não
raro, com a pequenez de nosso mundo interior. Antes de pensarmos com
lógica, as primeiras idéias ou imagens que fazemos das coisas ficam
registradas em nossas mentes numa espécie de grande livro da com-fusão. A
este livro pertence, por exemplo, a história de O pequeno príncipe. Esta história
apresenta a riqueza do mundo interior através do desenho infantil, entendido
como as imagens mentais que fazemos do mundo.
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Até os seis anos, o pequeno príncipe gostava de desenhar e com
orgulho mostrava seus trabalhos aos adultos que, por sua vez, não
compreendiam o que ele havia feito. Um dos momentos mais encantadores da
narrativa é a perplexidade do narrador-criança ao perceber que os adultos
pensavam que o desenho mais importante de sua vida – uma jibóia comendo
um elefante – fosse apenas um chapéu. Inconformado com a não
compreensão dos adultos, nosso herói desenhou o elefante dentro da cobra
em transparência.
Para o adulto, o desenho representa um chapéu (“Isto é um chapéu/Por
que eu ia ter medo de um chapéu?”); para o Pequeno Príncipe o desenho é
uma jibóia engolindo um elefante. Di Leo (1985) observa que o realismo
intelectual é marcado pela apresentação dos objetos a partir de um modelo
interno e não pelo modo como o objeto é visto realmente. A respeito das coisas
do mundo, a criança desenha o que sabe (ou deseja) que deveria estar ali. Os
desenhos infantis mostram as pessoas vistas através de paredes e de todos os
tipos de transparências. Os desenhos infantis revelam uma visão subjetiva do
mundo, pautada por uma vívida imaginação, cheia de fantasia, curiosidade e
criatividade.
O Pequeno Príncipe seria uma criança mais feliz e até, talvez, um
pequeno cientista, se, frente a suas inquietações existenciais, viajasse na
esteira do pintor naturalista Eckout que veio ao Brasil, no século XVII, com a
missão holandesa comandada por Mauricio de Nassau. Enquanto o pequeno
príncipe usa a transparência para revelar que seu desenho não é um chapéu,
mas uma cobra engolindo um elefante; Eckhout corta o invólucro de alguns
frutos com a intenção de lhes revelar o interior. Como Bobi-pai e Bobi-filho,
ambos lançam mão da transparência: o menino para dar asas à imaginação; o
artista para pintar a natureza, buscando também descrever o objeto. As
pinturas de Eckhout retratam os alimentos e por isso apresentam ao europeu a
fecundidade das terras brasileiras, criando em seu gesto descritivo uma nova
visualidade para a compreensão do mundo. No dizer de Ana Belluzzo, essa
nova visualidade – ao contrário da aparição de monstros e bestas vagando
pelo Novo Mundo, como foi o caso das imagens que Cristóvão Colombo viu na
América tendo em mente as narrativas de Homero –, surge, na pintura de
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Eckhout, da informação dos sentidos e da observação criteriosa e direta do
objeto.
Quando olhamos alguma coisa com os olhos da imaginação a mente
registra ou anota no nosso cérebro a realidade observada e mais a realidade
inventada. Di Leo (1985) observa que o realismo intelectual é marcado pela
apresentação dos objetos a partir de um modelo interno e não pelo modo como
o objeto é visto realmente. A respeito das coisas do mundo, a criança desenha
o que sabe (ou deseja) que deveria estar ali. Os desenhos infantis mostram as
pessoas vistas através de paredes e de todos os tipos de transparências. Os
desenhos infantis revelam uma visão subjetiva do mundo, pautada por uma
vívida imaginação, cheia de fantasia, curiosidade e criatividade. É nesse
domínio que surge a imagem como modo de figurar o real através da arte, este
modo, mais poetisa do que aponta, sendo, entretanto, a fonte de todo o
pensamento criador, na arte ou na ciência.
Sempre que o ser humano se vê frente ao impensável, ao desconhecido,
a mente produz analogias e metáforas em que predominam conteúdos poéticos
e fictícios que ocupam o lugar da pretensa observação e descrição do real. Por
quê? Para termos a ilusão de que compreendemos o que está ocorrendo a
nossa volta. Com isso, criamos outra ilusão: a de que o mundo é estável e
permite que possamos controlar as coisas que nos assustam, tornando-as
amigáveis. Assim, a força do imaginário configura antes de tudo as imagens
mentais daquele que imagina. E aquele que imagina coloca no outro, nos
objetos e na paisagem, o que teme em si mesmo. Logo, as produções
imaginárias dão pouco crédito às observações descritivas do real, pois
apresentam como no desenho do Pequeno Príncipe – uma cobra engolindo um
elefante – antes que a visão realista do objeto o modelo interno ou imagem
mental do pintor.
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Fonte: O Brasil dos viajantes, Ana Maria Belluzzo (1999). À direita, detalhe do quadro, anônimo, O Inferno, pintado, na primeira metade do século XVI, em Portugal. Na pintura do demônio transformado em índio (p. 25), predomina o uso da imagem, sobressai, portanto, o olho que imagina. À esquerda, detalhe da natureza-morta pintada por Albert Eckhout em sua vinda ao Brasil com a missão holandesa comandada por Mauricio de Nassau no século XVII. A pintura que apresenta a inflorescência de palmeiras e a cesta de especiarias (p. 116), nela predomina o olhar
Não menos fictícias do que o demônio transformado em índio ou os
episódios da Odisséia que Colombo esperava encontrar no Novo Mundo são
as imagens da natureza e dos animais que revelam o país exótico
“documentado” por Frei André de Thevet. Segundo Belluzzo, as histórias de
viagem e os escritos sobre terras desconhecidas faziam ecoar outros textos,
assim como reaproveitavam as imagens procedentes dos relatos dos primeiros
viajantes que estiveram nas terras do Brasil. O monstruoso insinua-se até
mesmo “numa ave de bico tão grosso e comprido como o resto do corpo“ (p.
36).
Belluzzo destaca que a presença de deformidades e desvios em relação
ao padrão ideal de proporcionalidade entre as partes do corpo dos animais,
provoca a imaginação, instiga a aparição estranha aos olhos do europeu
educado pelo ideal da beleza clássica. O desconcerto da proximidade de
pedaços incongruentes “mina secretamente a linguagem”, como diria Michel
Foucault. Frente ao desconhecido, trata-se efetivamente da impossibilidade do
conhecimento. A supremacia da imagem indica em certos casos que o homem
está diante de um mundo que lhe escapa (p. 36-37).
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O aí ou aití, o nosso bicho-preguiça, é descrito por Thevet como um ser
inacreditável e nunca visto, o animal “mais disforme que se possa imaginar” –
diga-se de passagem mais disforme e assustador do que o nosso simpático
elefato, que surge da mistura de elefante com gato. Thevet conta ter gravado
do natural a imagem de “um ser do tamanho de um mono adulto, apresentando
uma barriga tão grande que chega quase a se arrastar no chão, a cabeça
lembra a de uma criança, como também a cara” (p. 36-37).
Thevet afirma que quando preso, o bicho-preguiça suspira como uma
criança que sente dores. Seu pelo é cinzento e felpudo como o de um ursinho.
Patas compridas com quatro dedos, três com grandes unhas parecendo
grandes espinhas de carpa, com as quais trepa na árvore, onde fica mais
tempo que na terra. Quase sem pelo no cauda com três dedos de
comprimento. Ninguém jamais o viu se alimentando”. E conclui: “Vive de
vento”. Na descrição do bicho-preguiça as analogias parciais suprimem a
integridade do todo. O desconcerto da proximidade de pedaços incongruentes
“mina secretamente a linguagem”, como diria Foucault. Trata-se efetivamente
da impossibilidade do conhecimento. A supremacia da imagem indica em
certos casos que o homem está diante de um mundo que lhe escapa (p. 36-
37).
Assim, o imaginário e o desconhecido colocam o ser humano frente à
produção de analogias e metáforas em que predominam conteúdos poéticos e
fictícios frente a pretensa observação e descrição objetiva do real. A
impossibilidade de conhecimento lógico, substituída pela apreensão intuitiva do
objeto é uma das marcas dos padrões de visualidade propostos pela arte
enquanto expressão da imagem. Esta forma simbólica de ver o mundo será
desconstruída por meio das “correções” que o intelecto faz das aparências e
estados enganosos com que os seres se afiguram a percepção.
Para problematizar as questões apresentadas até aqui, podemos dizer
que a imagem, por meio das ambigüidades e analogias dramatiza à
instabilidade do real (isto é um pato ou coelho?), trazendo como memória mais
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profunda a nossa participação no universo na dimensão ontológica, ou seja, a
arte nos lembra que pertencemos a ordem de todos os seres que usam
máscaras em sua luta pela sobrevivência. A diferença do homem em relação a
outras espécies é o fato de que o homem consegue gratificar o intelecto com o
jogo das ilusões e aparências do real e isto, mesmo que na ordem da
sobrevivência, já constitui prazer estético. Por isso, a máscara pode virar um
objeto decorativo e de embelezamento do ambiente. O que diferencia o homem
do animal é que, a partir da instabilidade das formas dos objetos o homem
construiu narrativas que dão formas a sentimentos e imagens mentais. Logo, o
que se nos afigura disforme como o medo do escuro ou da sombra funciona
como matriz da imagem da bruxa das histórias infantis, dando vida e voz a
outros tantos bichos apavorantes que caracterizam, no folclore e na cultura
popular, o ciclo da angústia infantil.
Dar forma aos monstros é um jeito de criar estabilidades no mundo
interior e, nesse sentido, funciona como um proto-pensamento, um
pensamento imagético que, como o sonho, prepara o nascimento da razão. A
própria Ana Maria Belluzzo não deixa de lembrar a edição infantil dos relatos
de Hans Staden, realizada por Monteiro Lobato (2001) que se apropria do
relato [do conquistador], criando, a partir dele, uma narrativa destinada à
criança. Segundo ela, Lobato encontra “nessa história fabulosa a fantasia e a
realidade do Brasil” (p. 14).
Segundo Ana Maria Belluzzo, desde os relatos de Hans Staden aos
estudos de Humboldt na primeira metade do século XIX a análise das
principais obras produzidas pelos mais importantes viajantes estrangeiros que
por aqui passaram ao longo de quatro séculos configura o modo como o
europeu olhou o Brasil. Segundo ela, o acervo destes artistas e cientistas não
apenas traz registros, mas fundamentalmente configura um “verdadeiro
panorama da formação da identidade brasileira” (p. 11) Este registro é
composto por gravuras, mapas, pinturas, desenhos, tapeçarias e outros
recursos plásticos, que, em conjunto, formam a visão de um país. Segundo
Belluzzo, o exame desse material permite conhecer o caráter imaginário das
primeiras referências visuais sobre o Brasil, “passando pelo esforço do
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conhecimento científico da natureza, e chegando à visão romântica das
paisagens brasileiras do século XIX”. A historiadora destaca que “o olhar dos
viajantes espelha também a condição de nos vermos pelos olhos deles”.
Segundo ela, “as imagens do país de formação colonial européia são
introjetadas como imagens do Brasil, contribuindo para formar nossa dimensão
inconsciente” (p. 13). Ao incluir as aventuras de Hans Staden no projeto
editorial dirigido às crianças, não é outro o objetivo de Lobato do que o de
desconstruir a identidade brasileira forjada pelo olhar do conquistador.
Inserindo a tradição oral dos contadores de história na cultura letrada, Dona
Benta reconta a Pedrinho, Emília e ao Visconde de Sabugosa a história
fundadora do imaginário de nossa cultura, abrindo espaço ao diálogo e dúvidas
da criança.
Na ilustração, ao final do livro, sentada comodamente em uma cadeira
de balanço, vemos Dona Benta, que faz as vezes do velho contador de
histórias, relatando a narrativa fundadora das imagens e representações que o
europeu fez do Brasil e que por nós foram interiorizadas em uma espécie
substrato imaginário ou inconsciente (sócio)cultural. E claro, como fomos vistos
como bichos apavorantes e índios demonizados, a suave voz do narrador traz
consolo e aconchego, possibilitando ao leitor a transformação do objeto, a
transformação da auto-imagem. Por isso, porque o real nasce da possibilidade
de antes ter sido sonhado, um museu (e por que não, a sala de aula) devem
ser lugares em que o visitante ou aluno encontre fantasia e realidade, pois a
inteligência organiza o mundo organizando-se a si mesma. E, neste sentido, o
intelecto é apenas um setor ou segmento da imaginação.
Em síntese, para compreendermos como o homem ordena o mundo,
contando histórias e criando coleções de objetos esquisitos podemos simular a
seguinte situação a partir de objetos criados pela pedagoga Júlia Baptista.
Primeiro:
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O olho que imagina vê tudo em um só golpe de vista. Como as coisas são incongruentes entre si, pois as partes não encaixam com o todo, o olho que imagina cria objetos curiosos, cria elefatos. A seguir o olho começa a focar com mais precisão e a discriminar os objetos entre si.
Aos poucos o olho começa a reconhecer um polvo, uma borboleta e uma raia. Ele dá vida a esses seres imaginários...
O esforço de reconhecer, analisar e nomear os objetos já é uma tarefa do olho que pensa e reflete. Ele diz: Sim, isto é uma raia!
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Agora o olho que pensa e reflete pode pensar na raia fora do contexto onde ele a viu, abstraindo a situação. Ele também pode criar uma família raias.
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O olho que pensa e reflete pode isolar a borboleta de seu contexto também e ressignificar o que viu, dizendo: Isso não é uma borboleta, é só uma folha .
O olho que imagina pode entrar na discussão e dizer: não é uma borboleta sim!
Eu a vi voando pó aí!
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REFERÊNCIAS
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Objetiva, Metalivros, 1999. BRENMAN, Ilan; Fé. O livro da com-fusão. São Paulo: Brique-Book, 2004. CASSATI, Roberto. A descoberta da sombra, de Platão a Galileu, a história de um enigma que fascina a humanidade. São paulo: Companhia das Letras, 2001. DI LEO, Joseph H. A interpretação do desenho infantil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. GOMBRICH, E. H. La imagen y el ojo. Madrid: Alianza, 1987. JORGE, Ana Lúcia Cavani. O acalanto e o horror. São Paulo: Escuta, 1988. LOBATO, Monteiro. Aventuras de Hans Staden. São Paulo: Brasiliense, 2001.
ROCHA, Ruth. Odisséia. São paulo: Companhia das Letrinhas, 2000. SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2000. SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.