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Os "Por Quês" Matemáticos dos Alunos e as Respostas dos Professores Sérgio Lorenzato* Introdução Um momento freqüente e muito im- portante no processo ensino-aprendi- zagem da Matemática em sala de aula é o afloramento da curiosidade discen- te sob a forma de POR QUÊ. Cabe ao professor não só conhecer a resposta correta, isto é, o PORQUÊ, como tam- bém saber ensiná-Ia. Mas o que vem a ser o POR QUÊ? POR QUÊ significa procedimento matemático ou seu resul- tado e, portanto, é elemento básico para a aprendizagem significativa; sem o significado a aprendizagem se dá de maneira superficial, sem compreen- são. E o que tem acontecido, em sala de aula, com os POR QUÊS e PORQUÊS? Das raÍzes às questões básicas Por 15 anos ensinei Matemática a crianças e adolescentes e há 27 anos trabalho com a preparação e aperfei- çoamento de professores em serviço. Durante essa vivência observei que: · os alunos freqüentemente apre- sentam aos seus professores os POR QUÊS; · os PORQUÊS não estão presentes nos cursos de formação de professores; · raramente os professores respon- dem adequadamente aos POR QUÊS. Assim sendo, e considerando a im- portância que tanto os POR QUÊS como os PORQUÊS desempenham no processo ensino-aprendizagem da Ma- temática, surgiram as seguintes ques- tões básicas: · Quais são os POR QUÊS dos alu- nos? · A quais conteúdos os POR QUÊS se referem? · Em quais níveis de dificuldades eles se situam? · Os professores detêm os conheci- mentos necessários para responder aos POR QUÊS corretamente? Questionário A fim de tentar responder às ques- tões básicas mencionadas, foi elabora- do um questionário para professores, constituído de perguntas propostas pe- los alunos durante aulas. Foi solicitado aos professores que dessem as mesmas respostas que dariam aos alunos, se eles lhes propusessem, em sala de aula, tais questões. Seguem-se alguns exem- plos, nos quais foi conservada a lin- guagem que os alunos empregaram ao * Professor do Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade de Educação da UNI- CAMPo 73

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Os "Por Quês" Matemáticos dosAlunos e as Respostas dos

ProfessoresSérgio Lorenzato*

Introdução

Um momento freqüente e muito im-portante no processo ensino-aprendi-zagem da Matemática em sala de aulaé o afloramento da curiosidade discen-te sob a forma de POR QUÊ. Cabe aoprofessor não só conhecer a respostacorreta, isto é, o PORQUÊ, como tam-bém saber ensiná-Ia. Mas o que vem aser o POR QUÊ? POR QUÊ significaprocedimento matemático ou seu resul-tado e, portanto, é elemento básicopara a aprendizagem significativa;sem osignificado a aprendizagem se dáde maneira superficial, sem compreen-são.

E o que tem acontecido, em sala deaula, com os POR QUÊS e PORQUÊS?

Das raÍzes às questõesbásicas

Por 15 anos ensinei Matemática acrianças e adolescentes e há 27 anostrabalho com a preparação e aperfei-çoamento de professores em serviço.Durante essa vivência observei que:· os alunos freqüentemente apre-sentam aos seus professores os PORQUÊS;

· os PORQUÊS não estão presentesnos cursos de formação de professores;

· raramente os professores respon-dem adequadamente aos POR QUÊS.

Assim sendo, e considerando a im-portância que tanto os POR QUÊScomo os PORQUÊS desempenham noprocesso ensino-aprendizagem da Ma-temática, surgiram as seguintes ques-tões básicas:

· Quais são os POR QUÊS dos alu-nos?

· A quais conteúdos os POR QUÊSse referem?

· Em quais níveis de dificuldadeseles se situam?

· Os professores detêm os conheci-mentos necessários para responder aosPOR QUÊS corretamente?

Questionário

A fim de tentar responder às ques-tões básicas mencionadas, foi elabora-do um questionário para professores,constituído de perguntas propostas pe-los alunos durante aulas. Foi solicitadoaos professores que dessem as mesmasrespostas que dariam aos alunos, seeles lhes propusessem, em sala de aula,tais questões. Seguem-se alguns exem-plos, nos quais foi conservada a lin-guagem que os alunos empregaram ao

*Professor doDepartamento deMetodologia deEnsino da Faculdade de Educação da UNI-CAMPo

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Os .Por Quês"Matemáticos dos Alunos

propô-Ias:

· Por que para fazer a conta 23 x 31devo pular casas para a esquerda?

· Por que o "O"é chamado zero?· Por que o "5" é dessa forma?· Por que o mínimo múltiplo comum

é sempre maior ou igual ao máximodivisor comum de dois números?

· Por que não posso dividir um nú-mero por zero?

· Por que para dividir frações devomultiplicar a primeira pela segundainvertida?

· Por que a área do losango é calcu-lada pela fórmula (D .d) : 2?

· Por que 1t é igual a 3,14?· Por que o cálculo da raiz quadrada

de um número deve ser feito da manei-ra como fazemos?

· Por que um número negativo vezesum número negativo dá um númeropositivo?

· Por que Wi+ -..fbnão é ...Ja+ b?

· Por que ...J2 ....J2 =4 mas ...J2 + ...J2 :1=

4?

Amostra e coleta dedados

Responderam ao questionário, du-rante o período de 1978-1991, 1.700professores (participantes de cursos deaperfeiçoamento por mim ministra-dos), que possuíam, em média, 10 anosde experiência de magistério. Abran-gendo 9 países latino-americanos (Ar-gentina, Brasil, Chile, Equador, Hon-duras, Panamá, Paraguai, RepúblicaDominicana e Venezuela) e 18 cidadesde 14 Estados brasileiros (Acre, Ama-pá, Amazonas, Bahia, Distrito Fede-ral, Goiás, Maranhão, Mato Grosso,

Minas Gerais, Paraná, Rondônia, RioGrande do Sul, São Paulo e Sergipe),os professores assim se distribuíramcom referência às faixas etárias deseus alunos:

Número deprofessores

5121.032156

Idade dos alunos

07 a 1011 a 1415 a 17

Critérios para análisedos dados

Após listagem das perguntas, estasforam classificadas conforme a área daMatemática a que pertenciam (Álge-bra, Aritmética, Geometria e Trigono-metria) e também de acordo com o graude escolaridade a que se referiam (1@/4@série, 5@/8@série e 22grau). .

Os POR QUÊS foram também clas-sificados segundo sua natureza (con-ceitual, convencional, etimológico ehistórico) e por nível de habilidade exi-gida (memória e compreensão).

Os POR QUÊS foram, ainda, sepa-rados em "respondidos corretamente","respondidos incorretamente" ou "nãotiveram qualquer resposta". Assim,por exemplo, diante da pergunta: "Porque 1tvale 3,14?",as respostas: "Porque1té uma constante", "Porque assim foideterminado por matemáticos", "Por-que 1tfaz parte da fórmula", foram con-sideradas incorretas; no entanto, a res-posta: "Porque 1té o quociente da cir-cunferência pelo seu diâmetro", foi con-siderada correta por indicar o conceitode 1t,apesar de faltar rigor matemáticona linguagem.

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Análise dos resultados

Analisando cerca de 20.000 respos-tas dadas pelos professores, alguns re-sultados foram constatados:

1. Osprofessores responderam correta-mente s6 a 5% dos POR QUÊS: issonão significa que somente 5% dosprofessores possuem o necessárioconhecimento para dar respostascorretas, }lem que somente 5% dosPOR QUES têm sido ensinados cor-retamente. Na verdade, infelizmen-te esse resultado indica que o ensinopara uma aprendizagem significati-va tem sido fortemente negligencia-do em sala de aula; indica, ainda,que a formação matemática dos pro-fessores deixa muito a desejar. Econsiderando-se que ninguém ensi-na o que não sabe e que as questõesforam propostas por alunos, pode-seafIrmar que a situação é muito sé-ria.

2. Dos POR QUÊS não respondidos ourespondidos incorretamente peloprofessor, 90% se referiam à Aritmé-tica ou Algebra: dentre os PORQUÊS propostos pelos alunos, tam-bém 90% deles se referiam à Arit-mética ou Álgebra. No entanto, con-siderando que os professores têmmanifestado nítida preferência porensinar estas áreas da Matemática,em detrimento da Geometria, nãoera de se esperar um desempenhodocente bem acima dos 10% apre-sentados? E por que os alunos nãopropuseram questões sobre Geome-tria?

3. Os prefessores do 22 grau (de estu-dantes de 15 a 17 anos) responde-ram incorretamente a 81% dos "PORQUÊS" relativos a 1'1/4'1 série e a53% dos relativos a 5'1/8'1 séries:

considerando que os professores queatuam no 22 grau geralmente sãograduados por universidade, estesresultados indicam que esses pro-fessores não possuem oconhecimen-to necessário para ensinar.

4. Dos POR QUÊS não respondidos ourespondidos incorretamente, 72% sereferiam a conceitos matemáticos: ébem verdade que a maioria dasquestões dos alunos foi sobre concei-tos, mas não deveriam os professo-res apresentar um melhor desempe-nho exatamente sobre as questõesconceituais? De modo semelhante,as questões que demandavam co-nhecimento sobre convenção mate-mática ou história da Matemáticaou etimologia foram igualmenteconsideradas difíceis pelos professo-res.

5. Com relação ao nivel de habilidadeexigido para cada questão, 23% sereferiam à mem6ria e 77% à com-preensão: questões do tipo "Por queo 'O' se chama zero?" ou "Por que osinal da adição é +?" foram classifi-cadas na categoria memória. No en-tanto, "Por que 11:vale 3,14?" ou "Porque (-3) . (-5) = +15?" pertencem àcategoria compreensão.

6. Todas as respostas sobre GeometriaPlana Euclidiana foram erradas:devido ao baixo número de PORQUÊS sobre Geometria, foi elabora-do um teste com 8 questões sobre osconceitos de ângulo, paralelismo,perpendicularismo, círculo, períme-tro, área.evolume. Aplicado em 255professores brasileiros que leciona-vam para crianças de 7 a 11 anos,foram obtidas 2.040 respostas erra-das; e mais, somente 8% dos profes-sores admitiram que ensinam Geo-metria aos seus alunos e foram unâ-nimes em reconhecer que lhes faltaadequada metodologia para ensiná-

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Os .Por Quês'" Matemáticos dos Alunos

Ia. Assim sendo, não é exagero afir-mar que os professores não ensinamGeometria e não possuem conheci-mentos geométricos.

Considerações finais

Este estudo mostra que os PORQUÊS estão ausentes doensino da Ma-temática e, portanto, também daaprendizagem, o que seguramente tor-na esta muito pobre, superficial e inú-til; as conseqüências dessa ausênciasão, no mínimo, maléficas para os alu-nos, tanto no que se refere à aquisiçãode conhecimento como a comporta-mentos para com a Matemática. Pode-mos inferir também que a ausência dosPOR QUÊS transcende as fronteiraspolíticas dos países latino-americanos

e não depende das condições de vidadesses povos.

Vários dos resultados deste estudoindicam uma mesma direção: a forma-ção dos professores de Matemáti.ca estámuito deficiente. No entanto, conside-rando que muitos são professores quese apóiam inteira e freqüentemente nolivro didático para ministrarem suasaulas, pode-se supor que os livros didá-ticos também possuam elevada parcelade culpa nessa situação.

Pode-se dizer, ainda, que a Aritmé-tica e a Álgebra têm sido pobrementeensinadas e que a Geometria raramen-te tem sido ensinada.

Desse modo, eis o dilema que seapresenta: ensinar sem se estar bempreparado ou não ensinar porque nãose está bem preparado.

Em outras palavras, o dilema é: en-sinar pobremente ou não se ensinar.

Mas não haveria outra opção?

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Resumo o conhEtcimento dosPOR QUES, isto é, dossignificados dos procedimentos matemáti-cosou de seus resultados é fundamental noprocesso ensino-aprendizagem da Mate-mática.

E quais POR QUÊS matemáticos osalu-nos manifestam em sala de aula? Os pro-fessores possuem os conhecimentos pararesp,.ondera essas questões? Como os PORQUES têm sido respondidos?

A fim de elucidar tais questões, foi apli-cado um questionário a 1700 professoresde 9 países latino-americanos e de 14 Es-tados brasileiros, com alunos de 7 a 17anos. A análise dos dados mostra que, den-tre os quase 100 POR QUÊS propostospelos alunos, os professores responderamcorretamente a só 5%. Os POR QUÊS nãorespondidos ou respondidos incorretamen-te foram classificados segundo seu conteú-do matemático (90% se referiram à Arit-mética e à Álgebra), segundo sua natureza(72%foram conceituais) e segundo a habi-lidade exigida (77% se referiram à com-preensão e 23%, à memória).

A análise dos dados permitiu concluirque: a) os POR QUÊS estão ausentes dassalas de aula; b) a ausência dos POR QUÊStranscende as fronteiras políticas dos paí-ses latino-americanos e não depende dasdiferentes condições de vida dessaspopulações; c)a formação de professores de12e 22graus está muito deficiente; d) Arit-mética e Álgebra têm sido pobremente en-sinadas e Geometria quase não tem sidoensinada.

Palavras-chaves: Formação de professo-res, Educação Matemática, ensino comcompreensão, método de Ensino, aprendi-zagem significativa.

Ab t t Fundamental to theS rac Mathematical teach-

ing-leaming process is the knowledge ofthe "whys", that is, the meanings ofmath-ematical procedures or their results. Butwhich mathematical "whys" are manifes-ted by students in the classrooms and doteachers possess the required knowledgeto respond to these questions? How havethe "whys" been responded to by the tea-chers?

With the objective ofinvestigating thesequestions, a research instrument was ap-plied to 1700 teachers of students aged 7to 17 years old. These teacher were drawnfrom 9 Latin American Countries and 14Brazilian States.

An analysis of the data demonstratedthat of the 100 "why questions" proposedby the students, the teachers respondedcorrectly to only 5% of them. The "whyquestions" not responded to or incorrectlyresponded were classified according tomathematical content (90% refered toArithmetic or Algebra), nature (72% wereconceptual) and abilities required (77%re-fered to comprehension and 23% in mem-ory).

The results permitted to draw the follow-ing conclusions: a) the "whys" are absentfrom the classroom; b) the absence of the"whys" transcend the political boundariesof Latin American Countries and do notdepend upon the different life conditions ofthe population; c) primary and secondaryteacher preparation is deficient; and d)Arithmetic and AIgebra are poorly taughtand Geometry is almost never taught.

Descriptors: Teacher training, Math-ematical Education, teaching comprehen-sion, teaching methods, significant leam-ing.

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