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Oscar Niemeyer: a arquitetura renegada na cidade de São Paulo1
Luis Espallargas Gimenez
CAU-EESC-USP
1 Em diversas ocasiões Oscar Niemeyer mostra descontentamento com quase toda a obra de arquitetura executada na cidade de São Paulo, ao ponto de recusar a autoria delas. O Parque Ibirapuera, entre as obras construídas na década de 1950, parece ser a única obra tolerada. Outros projetos como o edifício Triângulo, edifício Eiffel, galeria Califórnia e a sede do Instituto de Resseguros são esquecidos pelos autores dos livros que reúnem sua obra. Em todo caso, a indústria Duchen, o edifício Montreal e o edifício COPAN aparecem em algumas publicações da obra.
Edifício COPAN, foto Nelson Kon
Resumo A arquitetura de Oscar Niemeyer construída na cidade de São
Paulo na década de 1950 parece menor se depender da opinião do
arquiteto que sempre a desautoriza e trata com reserva. Também
parece ofuscada pela avaliação mais generalizada dos críticos e
historiadores que consideram esse período consumido por projetos
mercantis, pela cidade tradicional e pelo desperdício de
avassaladora capacidade criadora. Assim se pode explicar o
costume em exaltar outras fases creditadas como mais
glamourosas e decisivas.
O ensaio quer evitar o preconceito que dispõe julgamentos
preparados e consensuais da obra de Niemeyer ou da arquitetura
moderna brasileira para estabelecer opinião independente,
amparada em juízos de valor sobre edifícios obscuros, e para
demonstrar que também eles têm atributos.
O ensaio tem como hipótese que a noção “moderna” no Brasil,
consideradas história e cultura, encerra particularidade que exige
da arquitetura o espetáculo e a coragem. Por isso a torna
insensível frente à atitude moderna clara, discreta e suficiente.
Abstract The architecture of Oscar Niemeyer built in the city of São Paulo in
the fifties seems minor if considered the architect’s opinion which
always disallows it and treats it with reservation. It also remains
obfuscated by the more generalized appraisal of critics and
historians who consider this period as consumed by commercial
projects, the traditional city and the waste of an overwhelming
creative capacity. Thus can be explained the custom of exalting
other phases credited as more glamorous and decisive.
The essay intends to avoid the prejudice comprised of pre-made
and consensual judgments of either Niemeyer’s work or the
Brazilian modern architecture in order to establish an independent
opinion, supported by judgments of value related to obscure
buildings, and to demonstrate that these do also have attributes.
The essay has as hypothesis that the “modern” concept in Brazil,
considered both history and culture, ceases the particularity which
demands from architecture the spectacle and the courage.
Consequently it becomes insensitive in the face of modern attitude
which is clear, discrete and sufficient.
Hors-d’œuvre Apesar de inalcançável, a idéia do que caracteriza e constitui nossa
arquitetura moderna combinada com a correlata tarefa prevista
para o arquiteto moderno brasileiro se identifica, em grande
medida, com o exemplo dado por seu protagonista principal, o
arquiteto Oscar Niemeyer2. Essa idéia aspira ao equivalente
reconhecimento e destaque e nela adquirem força a
excepcionalidade, a inventividade e o heroísmo artísticos, marcas
constantes da opção cultural e progressista no Brasil. No entanto,
tão apreciada pela categoria, seja pelo ambicioso modelo, seja pela
corajosa postura, essa idéia esbarra em sua improvável
desnecessária reprodução ou aplicação se consideradas a
realidade e as condições da maioria das incumbências dadas aos
arquitetos. De maneira ambígua, até contraditória, Niemeyer
constitui uma referência sem ser um modelo, pois se move num
2 RECAMÁN, Luiz. Oscar Niemeyer: forma arquitetônica e cidade no Brasil moderno. Tese de doutorado defendida pelo Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientador: Prof. Dr. Celso Favaretto, 2002. Em uma tese favorável às idéias divulgadas pelo controvertido teórico de arquitetura, Manfredo Tafuri, em que se discute o sentido e os limites do plano e da racionalidade da arquitetura moderna para demonstrar o inevitável fracasso de experiências e proposições sempre controladas e dissimuladas pelos interesses burgueses, o autor vai se concentrar exclusivamente na interpretação da versão moderna de Le Corbusier e na obra do arquiteto Oscar Niemeyer, sem esclarecer se a última exemplifica, categoricamente, o conjunto da arquitetura e da cidade brasileira produzidas pelo conjunto dos arquitetos, ou se essa obra apenas é representativa.
Edifício Montreal: Planta do térreo, Planta com sanitário coletivo e
estrutura Planta do 1º ao 11º andar e Planta do 13º ao 20º andar
distinto segmento de demandas e também porque há risco de um
resultado patético quando é copiado, como costuma acontecer com
as citações da arte personalista. A meta inatingível coloca em
evidência a profunda descontinuidade entre a narração mitificada
dessa porção de arte moderna brasileira e o que deveria ser sua
vantajosa difusão prática e sua definitiva afirmação no desfavorável
ambiente construtivo nacional. O arquiteto maior é exaltado por
encarnar o grande artista, mas não por ser o mestre. Sem ensinar,
sem transferir, sem favorecer a consolidação da atitude moderna
mais abrangente, provoca um impasse, ou a dificuldade para
constituir a modernidade como um feito coletivo. A escolha
romântica estabelece e reproduz uma acepção moderna imprecisa
e referida a ações excepcionais, nacionais e individuais. Para
dificultar ainda mais, essa ideologia conspira para que a arte
moderna prestigiosa fique restrita apenas aos acontecimentos
áulicos ou especiais e, com isso, obstrui ou mascara a desejável
fecundidade e procedência de projetos feitos em condições
freqüentes através de elaborações modernas desprendidas e
autênticas para quaisquer que sejam tipo e tamanho do encargo.
Uma característica congênita e previsível na ação moderna mais
abrangente e desacostumada com copiosos recursos materiais,
alheia à liberdade inventiva e avessa á exigência do expediente
monumental e provocativo já que encontra e reconhece sua
legitimidade na adequação aos meios, na concepção oportuna, na
síntese, na ordem e na construção precisa da forma.
Rega-bofe A impressionante obra de Oscar Niemeyer acusa muitas
transformações. Transformações que aqui interessam, não por
causa da impressionante perenidade produtiva do arquiteto, nem
tampouco em função dos variados pressupostos que se alternam
ao longo de tantos anos para constituir motivo de projetos
francamente estilísticos no início da carreira e cada vez mais
pessoais e caprichosos a partir dos anos de 1950, mas pela
procedência do encargo. Pela queixa de resultados decepcionantes
quase sempre atribuídos à mesquinhez e à interferência do cliente
particular e, por isso, considerados impuros. Distorcidos quando a
encomenda é feita pela iniciativa privada que costuma ser
considerada impertinente.
É importante destacar que se faz distinção ao conjunto de obras de
Oscar Niemeyer entre as situações em que pratica uma arquitetura
com programa convencional, habitacional ou urbano3, e condições
3 LEAL, Daniela Viana. "OSCAR NIEMEYER E O MERCADO IMOBILIÁRIO DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 1950: O escritório satélite sob direção do arquiteto
em que são atendidos programas públicos ou institucionais
implantados em espaços livres ou abertos: entre o que é
estabelecido pelo empreendedor no lote urbano e aquilo que se
produz para o governo, em glebas isoladas. Essa distinção não se
deve a qualquer alternância no manejo dos partidos do arquiteto,
mas à presumida dificuldade que encontram quando são
submetidos a idiossincrasias, ingerência econômica ou exigência
no desempenho.
Carlos Lemos e os edifícios encomendados pelo Banco Nacional Imobiliário". Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e orientada pelo professor doutor Marco Antonio Alves do Valle, em 2003. É decisiva a citação deste ensaio. A interpretação do valioso levantamento desta dissertação defende a idéia mais imediata de que “a liberdade formal e programática” tão característica do “poeta das formas livres” entra em conflito com o “voraz” mercado imobiliário e com a burocracia anacrônica e normativa do código de obras municipal. Fatores que juntos degradariam a genuína expressão do artista mais inspirado, indispondo-o. Assim, a pesquisa assume, em sintonia com a crítica consensual, a genialidade como condição obrigatória do valor e alcance artísticos de Niemeyer. A conseqüência desta ideologia vê como natural, até automático, rebaixar, mesmo repudiar, as encomendas feitas pela iniciativa privada e desobrigar-se do juízo estético isento em busca dos atributos modernos que essas obras possam encerrar já que pressupõe produção feita em situação amoral. Interessa a dissertação de Leal porque faz opção pela arquitetura menos visitada e bastarda se depender do autor. Leal o faz porque é inédito pesquisar essa parte mais obscura e desconhecida, porém não hesita em alinhar-se com os que a consideram inferior.
Edifício Eiffel: Plantas pares e ímpares, revista Acrópole 208
Esse tipo de esquema crítico faz acreditar numa revanche em que
o arquiteto Niemeyer sente na própria pele a inadequação do
brilhantismo plástico e ousadia construtiva quando submetidos a
relações sociais e produtivas comuns, modestas ou restritas, em
muitos casos, até legítimas e conseqüentes para a decisiva solução
da arquitetura e das questões modernas. É possível que ao sentir-
se desprotegido, longe dos jantares em que se fomentam as belas
artes enredado no tentáculo do especulador Oscar Niemeyer
teme por sua idéia de arquitetura e seu calculado papel
profissional, se turvados por desabonador comércio imobiliário e
por esse motivo prefere banir tantos projetos do currículo para
depurar a obra genial e aceitar a exclusividade de Brasília e do
poder.
Não se sabe com certeza porque aqueles edifícios tratados com
repúdio, considerados vulgares, o fazem abandonar o escritório
piloto paulista4. Por que deformados pela interferência? Por que
movidos pelo capital que conflita com a convicção comunista? Pela
quantidade de implicâncias legais e tantas concessões que fazem
4 Carlos Lemos Alberto Cerqueira Lemos é o arquiteto encarregado do escritório que desenvolve e fiscaliza os projetos de Oscar Niemeyer em São Paulo, com exceção do Parque Ibirapuera para o qual foram montados escritório e equipe especiais.
desbordar o limite da paciência? Por qualquer rixa bairrista ou
desacato a sua crescente notabilidade5?
Há certo exagero ao apontar tantas discrepâncias no resultado e
sucesso destes dois momentos e considerar que os
empreendimentos particulares têm “resultado final decepcionante”,
todavia que expressam objetos “bem comportados” ou “sem grande
ousadia formal” 6. Outros dizem que, na cidade de São Paulo, os
projetos de prédios em lotes não enfatizam aspectos públicos ou
urbanos porque não têm oportunidade de desenhar praças ou
espaços abertos ilimitados7.
Na verdade, parece haver preconceito por parte do cronista
tendencioso e acostumado a dar destaque à figura e à novidade.
As obras de Oscar Niemeyer dos anos de 1950 na cidade de São
Paulo parecem apontar para o que há de mais integrado à cidade
em comparação com o resto de sua obra. Reclama-se da falta de
empenho formal porque a noção mais imediata que se tem da
majestade estimula o exagero e o excesso.
5 LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Viagem pela Carne - São Paulo: Edusp, 2005, pp. 157-8. O autor publica um bilhete de Oscar Niemeyer em que se pode ler que com exceção do parque Ibirapuera, abre mão da autoria de todas as outras obras paulistanas. Também Carlos Lemos, muito próximo do arquiteto carioca, vai se perguntar sobre essa decisão, já que, se algumas obras foram alteradas, outras seguiram á risca seus projetos. 6 LEAL, op. cit. p.13. 7 Ibid., p. 17.
Diferenças não apenas na divulgação e importância dadas aos
temas encarregados pelos governantes, com relação a outros
propostos pelo genérico, mas ao mesmo tempo, exigente e seletivo
mercado imobiliário. Diferença apontada na própria dedicação do
autor e na atenção secundária dada pelos estudiosos ao conjunto
“comercial” de obras paulistas desenvolvido entre o sucesso do
complexo da Pampulha na cidade de Belo Horizonte e a tarefa de
desenhar Brasília.
Tal observação lembra imediatamente a interessada e protetora
ação do estado e de seus governantes quando, no papel do cliente,
estimulam e praticam uma sorte de mecenato decisivo
deformador para a promoção do gênero perseguido pela
arquitetura moderna no Brasil e que ajuda a explicar tanto
esplendor. O progresso e a modernização encarregados de tirar o
país do subdesenvolvimento e atraso são sempre associados
àquela arquitetura nova, oferta tão favorável e pródiga do arquiteto
moderno brasileiro: arquitetura com suficiente fotogenia e aparência
futurista para ilustrar a propaganda oficial e tantos portfólios
políticos. Não é exagero imaginar que a arquitetura ao representar,
como acontece com toda a arquitetura aderente a significados, se
submete ao imperativo da favorável opinião popular, ao mesmo
tempo em que jura lealdade regional. É fácil antecipar que não
pode corresponder a uma arquitetura intelectiva que promove
prazer estético da forma abstrata e de sua estrutura para sustentar
a concepção moderna mais exigente e nem tampouco que aspira à
universalidade por intermédio do entendimento visual da arquitetura
e arte contemporâneas. Quase sempre se está diante de objetos
Edificio COPAN, Planta Tipo
artísticos que propiciam prazer sensível8 e se particularizam
restringem-se na brasilidade que institui um sentimento
doméstico ou recortado daquilo que é moderno, sentimento que
apenas pode expor uma condição periférica e transformada dessa
arte, um sentimento inexato que, com atalhos, compromete a
integração completa desses pressupostos artísticos.
A política vê na arquitetura moderna símbolo e feição renovados do
Brasil para mudar mais na aparência do que na arraigada e injusta
prática de poder. Por isso estabelece compromissos e exigências
especiais para seu partido e produção. Necessário é que essa
arquitetura convença todos da mudança e porvir, como de fato
parece convencer o grosso dos arquitetos que assim podem
idealizar uma profissão transcendente e, em contrapartida, assumir
todas as deformações profissionais derivadas. Cumprida a
prioridade, não há problema com o imenso esforço que essa
arquitetura pressupõe, nem tampouco com o dispêndio que implica.
8 O conceito de “prazer sensível” serve para que Emmanuel Kant, na Crítica do Juízo, distinga o gozo imediato de sensações agradáveis, individuais e efêmeras proporcionadas pelos sentidos que se encerram quando deixa de existir sua fontecomo quando alguém se alimenta de algo apetitoso de outra experiência, mais elevada, universal e permanente, denominada “prazer estético” que ocorre quando se experimenta a sensação estética do mundo, da ordem, da forma ou do sentido construtivo Uma intelecção inacessível à razão e à convenção.
Astuto, Oscar Niemeyer antecipa esses acordos e estabelece
conveniências tácitas e pessoais que dêem lugar a essa arte
extraordinária e envolvente ao mesmo tempo em que exibe sua
surpreendente facilidade com o croqui e a criação. Como ninguém,
vai cultivar a imagem do gênio iluminado com inspiração abundante
para propor fantasias e assombrar.
Entretanto, como nem tudo acontece nos grandes salões, por
vezes, sem o conforto de patrocinadores, há de enfrentar o mundo
inexorável e contábil dos negócios, da convenção resistente, da
solução defensável, da adequação irrepreensível, do orçamento, da
subordinação entre disponibilidade e idéia, do funcionário público e
seu carimbo. Um mundo maçante ou aborrecido para os notáveis e,
por outro, um mundo dependente de eficiência, economia e
resultado: ambiente em que a arquitetura moderna está obrigada a
alcançar respeito e conformidade.
Ao contrário do que se costuma pensar9, por paradoxal que possa
parecer, é nesse ambiente tido como hostil e desesperançado que
Oscar Niemeyer projeta convincentes e modernas propostas
urbanas. No meio em que tantos profissionais julgam inexistir
9 BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981. Deve ser destacado que sobre o período da década de 1950 na cidade de São Paulo, o livro de Yves Bruan traz apenas fotos da Indústria Duchen e do parque Ibirapuera.
condições para produzir boa arquitetura, Niemeyer expõe
sobresselente capacidade para lidar com ela.
Deve-se contestar essa idéia generalizada e viesada que se faz do
ideal artístico moderno brasileiro, porque ela não apenas desvirtua
o juízo que se estabelece sobre a arquitetura para decidir o que é
relevante, o que se publica, o que se tomba e se protege, o que
documentar e estudar, como também influi nas alternativas
oferecidas para a produção de arquitetura ao impor o modelo ideal
imaculado para uma arquitetura que certamente se cumpre nas
condições concretas, às vezes modestas, que interferem na maioria
dos projetos de arquitetura. A insistência numa arquitetura moderna
de talha magnificente faz com que o mercado imobiliário fique
desatendido pela arquitetura, pelas escolas de arquitetura, e
explica, em grande medida, como são as cidades.
Tenciona-se apontar que a arquitetura de Oscar Niemeyer
produzida para a iniciativa privada e voltada para operações
imobiliárias na cidade de São Paulo, ao contrário do que se admite
e da desfavorável opinião do autor, tem inegáveis atributos
arquitetônicos. Isso traz interesse na discussão da teoria e da
história, mas acima de tudo, tem repercussão positiva na produção
de arquitetura, porque fazem falta bons arquitetos que identifiquem
os fundamentais problemas de sua atividade. Não porque acatam Conjunto COPAN, as duas lâminas desde a Avenida Ipiranga
ou interpretam melhor seus lugares-comuns e seu gosto duvidoso,
mas porque, como agentes, têm distinção para condicionar uma
parte desse mercado que afastado da costumeira grandiloqüência,
da busca de fama, da falta de expectativa, da má formação
profissional e de incontáveis equívocos, pode também ser suprido
pela forma e construção apropriadas. Oscar Niemeyer dos edifícios
paulistanos da década de 1950 aproxima-se mais do profissional
atento e perspicaz que sabe como construir como quem se soma à
cidade, e menos do artista oficial que se protege nos grandiosos
palácios com os que quer representar a coletividade.
A fase paulistana de Niemeyer parece subestimada porque as
estratégias utilizadas para divulgar a causa da arquitetura baseiam-
se em critérios óbvios e propagandistas, porque precisam da maior
platitude para explicar um fenômeno inacessível à maioria. Ao
menoscabar os práticos, elevados e universais argumentos da
concepção moderna da arquitetura para confirmar o talento do
brasileiro na genialidade do artista se divulga a grandeza da
profissão, mas se restringe sua necessária repercussão coletiva, o
melhor caminho para alcançar o reconhecimento da arquitetura.
Viradinho Na contramão do que o hábito crítico cita e recita à exaustão nas
publicações e fotografias em que se apreciam a personalidade
notável e a superação artística que os programas institucionais
favorecem, é na cidade de São Paulo que se dá prioridade à
demanda corrente, aos projetos submetidos a relações que devem
enfrentar e comprovar a pertinência de soluções modernas.
Situações em que o oportuno no artefato moderno se torna
evidente, em que a comparação não deixe dúvida sobre a
vantagem moderna na cidade, mesmo enfrentada ao desafio da
cidade existente e informal. Um juízo desnecessário e improvável
se a complicação, contradição e custo são aspectos secundários
face à vantagem midiática10 que se possa atingir com arquitetura.
Ganho publicitário, cuja estratégia costuma exagerar o culto ao
artista.
10 Stanislaus von Moos emprega a perspicaz expressão “gigantesca operação midiática” para referir-se ao canteiro de obras de Brasília na palestra intitulada “Notas sobre a retórica do canteiro: a cidade como processo” no 7º seminário DO.CO.MO.MO - Brasil na UFRGS- Propar, Rio Grande do Sul, outubro de 2007. O palestrante chama a atenção para a impressionante quantidade de fotos e fotógrafos famosos que documentam o canteiro de Brasília. Moos sustenta que a propaganda estatal desse canteiro tenha sido uma das mais ostensivas da arquitetura moderna no século XX.
Os comentários a seguir referem-se a três projetos de Oscar
Niemeyer construídos em São Paulo11, desenhados para empresa
de desenvolvimento imobiliário que aposta na fama do arquiteto
para viabilizar e promover empreendimentos. Portanto é de se
esperar que pressuponham um resultado formal diferenciado,
inclusive provocativo, e que admita custo suplementar.
O edifício Montreal, na esquina da Avenida Ipiranga com Avenida
Cásper Líbero, de 1950-51, o edifício COPAN sigla com nome da
contratante: Companhia Pan-americana de Hotéis e Turismo, na
Avenida Ipiranga com Rua Araújo, de 1952 e o edifício Eiffel, entre
a Rua Araújo e a Rua Marquês de Itu, de 1952-53.
O primeiro recorre ao expediente da aprovação para funcionar
como hotel e, desta maneira, burlar restrições às áreas mínimas
residenciais, aprovar ventilação indireta nos sanitários12 e explorar
a vendável invenção imobiliária conhecida como “kitchenette”,
origem do programa da casa própria ofertada segundo o inovador
11 Além do Parque Ibirapuera e Memorial da América Latina, obras oficiais do arquiteto na cidade de São Paulo, Oscar Niemeyer tem diversos projetos encarregados pela iniciativa privada. Considerados irregulares quanto ao resultado, mesmo por seu autor, muitos foram ignorados nos livros de sua obra. Numa lista preliminar foram lembrados: indústria Duchen, edifício Triângulo, edifício Eiffel, edifício Montreal, edifício do Instituto de Resseguros, edifício COPAN, galeria Califórnia, hospital Edmundo Vasconcelos ou Gastroclínica. 12 SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (org). A Promoção Privada de Habitação Econômica e a Arquitetura Moderna 1930-1964. São Carlos: RiMa, 2002, p. 170.
Edifício Montreal, foto da maquete, editora Mondadori, 1975
plano “preço de custo condominial”. O edifício COPAN é o seu
primeiro empreendimento habitacional aprovado com os sanitários
internos ventilados por dutos. Já o edifício Eiffel é projetado como
empreendimento de padrão elevado no centro da cidade de São
Paulo ao considerar a região e a ampla vista voltada para a Praça
da República13.
Nos três edifícios são propostas formas e fachadas incomuns,
inclusive diversas se apreendidas na aparência e se consideradas
como tipos. Tais características fazem refletir sobre a obrigatória
ruptura e a previsível superação da arquitetura moderna com
respeito à noção convencional que se tem das fachadas e de suas
janelas. O edifício Eiffel corresponde à exceção no uso de brise-
soleil. Com orientação predominante para este, é possível que nele
tenha sido descartado o uso de brise-soleil em placas horizontais
para explicitar o arranjo de unidades em duplex na fachada. As três
propostas feitas em curto período de tempo, à primeira vista,
parecem estranhas entre si, sem que isso constitua surpresa, pois
é comum alegar o experimentalismo assíduo do autor para dar
vazão à incessante criatividade. Entretanto, pese a originalidade e
feitas ressalvas no caso do edifício COPAN, são experiências que
13 Conforme explica um dos moradores, o arquiteto Luciano Margotto, é pouco conhecido o fato dos apartamentos dos últimos andares do edifício Eiffel constituir unidades triplex.
recebem menos atenção dos especialistas e pouco ou nada
prosperam o que se exige das experiências modernas como
alternativas consistentes e multiplicáveis para a concepção de
edifícios verticais na cidade de São Paulo quando experimenta
taxas de construção civil inéditas. Essa constatação permite pensar
que, além de autorais, não correspondem ainda à proposta
moderna mais clara, econômica, eficiente. Por isso devem ser
vistos como casos esporádicos que dependem da circunstância
da autoria, mas também se apresentam como exemplos
preliminares ou experimentais da arquitetura moderna que precisa
de um ciclo de desenvolvimento e aperfeiçoamento. Se não há
familiaridade no resultado desses edifícios, não se deve afirmar que
haja diferença na maneira de dar importância ao considerar suas
relações com a cidade. É possível afirmar que a implantação e a
apresentação dos três edifícios na cidade de São Paulo resultem
da preocupação reiterada de Niemeyer com as premissas do
edifício moderno no espaço urbano e que essas relações fazem
desses edifícios exemplos notáveis da interação da arquitetura com
o urbanismo, porque é certo que cada um, à sua maneira, confirma
seu decisivo sentido e adequação na cidade como, desde o
princípio, acontece na sede do MESP, no Rio de Janeiro.
Entre os edifícios que pertencem ao grupo de projetos incentivados
pelo plano de avenidas do prefeito Prestes Maia na cidade de São
Paulo de 193914, o edifício Montreal se sobressai com sua planta
tipo que como o esquema cubista costura polígonos variados: a
forma circular das lajes e a organização das “kitchenettes” segundo
corredores que compõem um triângulo. Ao longo de tantos anos, o
edifício passa por um processo ininterrupto de abandono, um
fenômeno comum em edifícios centrais compostos por pequenas
unidades habitacionais. Esse envelhecimento, somado à
progressiva perda da acuidade visual para a validação da
arquitetura, torna mais difícil enxergar os atributos da construção,
exige estremo esforço para distinguir a ordem e a solução sintética
e isola-las das condições desfavoráveis. Contudo, ainda é possível
descobrir decisões formais competentes.
Em comum, os edifícios Montreal e Eiffel têm modelos de
arquitetura vertical conhecidos, princípios configuradores de seus
desenhos. A diferença principal do edifício Montreal, também sua
14 Alguns dos edifícios focais do Plano de Avenidas que tinham prerrogativas especiais de construção: Edifício Viadutos de João Artacho Jurado em 1950, Edifício Jornal Estado de São Paulo de Jacques Pilon e Franz Heep em 1946, Edifício Saturno e São Vito de Aron Kogan em 1952-59, Edifício Itália de Franz Heep em 1953, Mirante do Vale de Aron Kogan em 1960, Edifício Conde de Prates de Giancarlo Palanti em 1952 e edifício CBI Esplanada de Lucjan Korngold em 1946.
Edifício Montreal, vista frontal desde a Avenida Cásper Líbero
grande qualidade, é pese sua perfeita geometria cilíndrica e
independência formal aderir ao alinhamento e, em conseqüência,
à cidade como espaço formado por planos contínuos. Equivale ao
que se possa considerar uma solução consagrada para edifícios na
esquina das cidades do século XIX e não é por acaso que esse
envelope cilíndrico é previsto no Plano das Avenidas de Prestes
Maia como tantas outras esquinas de São Paulo beneficiadas com
gabaritos adicionais para reforçar o destaque visual. Edifícios de
terminação desenhados para ser apreciados a 45°. Preferidos
pelos arquitetos acadêmicos porque excitam todos os recursos
monumentais disponibilizados pelo projeto de arquitetura, propiciam
perspectivas urbanas destacadas e, também, sugerem hierarquia e
simetria, condições que os lotes intermediários da quadra não
suportam. O edifício Montreal equivale a tantos casos de
construção angular e justaposta às paredes de divisa dos edifícios
vizinhos e bem ajustada ao espaço público que é o logradouro. É
um tipo análogo ao emblemático e isolado edifício Flatiron acabado
em 1902, desenhado pelo arquiteto de Chicago, Daniel Burnham
(1846-1912) na cidade de Nova Iorque, também essa proposta
rememora a equilibrada e rigorosa planta clássica de 1936
projetada pelo arquiteto Rino Levi (1901-65) no edifício Guarani no
Parque D. Pedro II, na mesma cidade de São Paulo. No caso do
edifício Guarani, planta e elevações são aderentes, pois constroem
mutuamente segundo esquema acadêmico previsível e
comportado, o que não é o caso do edifício Montreal que explicita
uma estrutura reticular e irregular do tipo “Dom-inó” com dois
pórticos múltiplos organizados numa planta em “V” que se distorce
no vértice e não se ajusta amistosamente à porção cilíndrica do
edifício. Em oposição ao extremo cuidado demonstrado no
acabamento e na unidade das fachadas há certa displicência com o
desenho do núcleo central de circulação e com o arranjo de
kitchenettes em corredores retilíneos que faceiam o triângulo
formado pela estrutura. A liberdade da planta livre torna-se mais
atrevida no térreo quando mostra um esquema distributivo que
antecipa futura e recorrente caligrafia que, nesse caso, se complica
ainda mais com a informalidade dos pilares e num esquema vertical
rebaixado pelo acesso desde a calçada ao núcleo central com
provável intuito de aumentar a área comercial do térreo,
semelhante ao proposto no edifício Triângulo de 1950, do mesmo
arquiteto, na confluência das ruas Direita, José Bonifácio e Quintino
Bocaiúva. Os térreos parecem sempre coincidir com as partes
menos resolvidas dessa arquitetura e da arquitetura paulistana em
geral.
A ausência de placas do brise-soleil em um dos andares cumpre a
previsível tarefa de estabelecer correção visual num edifício com
tanta altura. Essa mesma interrupção do brise-soleil horizontal
marca o gabarito da quadra no décimo primeiro pavimento para ser
retomado mais acima, até o vigésimo andar. Na face oeste há um
brise-soleil vertical que protege a fachada voltada para o poente
conforme indicam maquete e fotos de época, mas que foi
arrancado com o tempo, como também foi arrancado o brise-soleil
metálico do edifício Triângulo por causa do ruído da chuva, como
relata quem lembra.
Desde a sede do MESP, Niemeyer não mostra remorso ao
deformar e descompassar estruturas e, com isso, leva a crer que a
estrutura regular do artefato não constitui uma pauta ordenadora
para seu trabalho, ao contrário, essas descontinuidades podem
servir até como mote artístico.
Por outro lado, como para Niemeyer a apresentação do edifício é
decisiva, importa registrar que vai defender com energia seu
volume exato contra a normativa do código de obras e que, além de
combater o recuo obrigatório das últimas lajes, estuda a concisão e
integridade das fachadas voltadas para as Avenidas Ipiranga e
Cásper Líbero, na faixa de onze pavimentos construídos junto à
divisa com o vizinho. A foto da maquete mostra, na face plana da Edifício Montreal, vista lateral desde a Avenida Cásper Líbero
Avenida Ipiranga, o recuo no décimo andar com a eliminação da
última kitchenette do corredor e, ao mesmo tempo, se pode ver
toda fachada lateral contínua com brise-soleil vertical. Já as fotos
de época revelam que a parede dessa faixa com dez kitchenettes é
perfurada por janelas convencionais e, ao estabelecer outro
padrão, distingue-se visualmente das texturas abstratas do edifício,
para igualar-se à paisagem. Com esse truque, Niemeyer dá mais
regularidade à forma dos planos das fachadas ao mesmo tempo
em que define, com pequenos recuos e sombras dentro de sua
própria elevação, a justaposição e arranque do edifício moderno e
mais alto em oposição ao painel convencional de prédios da cidade
existente. Ao somar dois padrões na fachada, garante com seu
próprio projeto o desejado destaque formal da torre, pois não confia
nas decisões posteriores dos arquitetos vizinhos e tampouco nas
alterações dos gabaritos.
Já o modelo que se pode presumir no caso do edifício Eiffel não
tem nada com o anterior do tipo aderente e consagrado nas
cidades estruturadas pelas ruas-corredor. Trata-se, certamente, da
adaptação engenhosa do “gratte-ciel cartésien”, um protótipo
urbano, vertical e tardio de Le Corbusier15. Um tipo que também
encontra seu antecedente clássico ou barroco, em palácios e
edifícios urbanos, nessas coincidências que os historiadores
apreciam expor para sustentar o retorno e submissão do moderno
ao clássico, mas que apenas serve para confirmar a suficiente
praticabilidade da arquitetura moderna e as sobreposições que
essa exigência vai estabelecer com a arquitetura clássica
transformada em admirável ferramenta de projeto para a
construção das capitais européias a partir da sistematização
alcançada pelos teóricos franceses do século XIX.
Niemeyer propõe uma situação inusitada para um tipo de edifício,
cujo original está orientado e isolado em quadras descomunais
contornadas por auto-estradas. Agora, a torre original de vidro
voltada para o sul vai ajustar-se a um lote e, especialmente, a suas
divisas e tornar-se cega em seu lado traseiro.
A vista para a Praça da República tem uma importância decisiva
para o projeto, por isso o arquiteto decide que todos os moradores
devem usufruí-la. Niemeyer não reproduz o esquema da planta do
15BILL, Max. Le Corbusier & P. Jeanneret - Œuvre complète 1934-1938, Zurich: Les Editions d’Architecture, 7ª edição, 1964, pp. 74-77. O projeto “Le gratte-ciel cartésien” de Le Corbusier substitui a torre cruciforme da “cité des affaires” do plano de 1936 para o centro de Paris, patrocinada com o nome de “Plan Voisin” e já aparecem no plano de urbanização de Hellocourt (usina francesa Bat’a em Lorraine) de 1935.
edifício Montreal e ocupa o ângulo das esquinas, porque nesse
arranjo apenas algumas unidades ficam voltadas para a paisagem.
Recua-se o corpo do edifício e voltam-se todos os caixilhos das
unidades para a amplidão da praça. Tal escolha transforma suas
costas a capa do livro aberto numa sucessão de paredes
cegas com superfícies importantes, paredes que aguardavam
contrapartida dos vizinhos para completar o acabamento urbano,
mas a mudança de código e os recuos obrigatórios vão expor para
sempre. Como no caso do edifício COPAN, o que nele é
serpenteante para aumentar unidades, no edifício Eiffel é dobrado
para aumentar o comprimento e no edifício Montreal coincide com o
alinhamento para obter também o maior desenvolvimento linear no
corpo de unidades.
Este conjunto simétrico de três fachadas intercala planos de
esquadrias metálicas com elementos vazados e dessa maneira
explicita a novidade das unidades duplex. Desenho de fechamento
e caixilho superlativos e raros nestas latitudes. Obcecados com a
estrutura dos edifícios modernos, pior ainda com suas
possibilidades expressivas, muitos arquitetos iludem-se com o que
parece o tema principal dessa arquitetura e passa despercebido
que entre as maiores conquistas da arquitetura do século XX estão
os fechamentos montados, “cladding” ou fachadas pré-fabricadas.
Por esse motivo, não se dá importância àquilo que o edifício Eiffel
tem de melhor.
A planta do edifício, pese sua simetria e possível associação a tipos
ou modelos da arquitetura acadêmica, não recorre à autoridade
histórica, mas acerta a implantação e encontra sentido num terreno
triangular porque responde às divisas e alinhamentos angulados
que definem as orientações das construções no entorno imediato
Edifício Eiffel, planta sobre Cadastro GEGRAN 1973, montagem
com frontalidade, planos normais e ângulos retos. Niemeyer deve
intuir que o edifício cartesiano de Le Corbusier estabelece direção e
ponto focal para os planos de vidro frontais e que tal característica
coincide com o que ele precisa. Ao mesmo tempo, Niemeyer deve
dar-se conta que o edifício isolado do arquiteto francês com três
partes, é adequado naquela condição angular, focal e, ainda,
estreita da cidade convencional. A implantação do edifício Eiffel é
genuinamente moderna porque o modelo, não importa mais se
histórico ou “corbusiano”, encontra um ajuste formal e nexo preciso
na estrutura da cidade, uma condição impecável.
O edifício COPAN parece ter sua referência dimensional nas
“Unités d’habitation” de Le Corbusier. A medida colossal e
metropolitana de um edifício que se curva para tornar-se favorável
aos números e assim acompanhar a tendência da década de 1950
e refletir aquilo que arquitetos acreditam devem ser os edifícios
modernos para atender o crescimento das cidades. A maior
demanda é suprida por imensas edificações mistas, pequenas
cidades que embutem moradia, trabalho, setores de serviço e
comércio.
O edifico COPAN é sempre associado à solução mais plástica, livre
e sensual do arquiteto quando, na verdade, deveria ser entendido
como sua proposta moderna mais radical e controvertida16. A planta
metropolitana e serpenteante da lâmina justapõe e disfarça cinco
edifícios, diferentes classes sociais, pois está dividida em porções
com diversos tipos e tamanhos de unidade habitacional
organizadas segundo esquemas variados e conflitantes de
circulação vertical em núcleos e circulação horizontal com corredor.
O arquiteto Carlos Lemos afirma que desde o começo, esse
empreendimento prevê a mistura de diferentes padrões
habitacionais igualados pela magnífica uniformidade exterior, em
que o brise-soleil horizontal vai revelar surpreendente expressão
pública ao proteger a privacidade e cobrir a multiplicidade de
milhares de moradores. Tal decisão, longe de ser indiferente,
envolve complicadas adaptações nas plantas do edifício para
sustentar as porções construídas segundo diferentes sistemas
distributivos. Parecem ser necessárias estruturas específicas em
cada caso, no entanto qualquer diferença estrutural pode liquidar a
forma contínua da elevação. Outra vez, tolera-se a adaptação
construtiva numa mesma fachada oculta por brise-soleil. Ao obrigar
um edifício com diferentes ritmos e plantas ao mesmo regime
16 Muitos podem contar como o arquiteto Paulo Mendes da Rocha enrola uma folha de papel em forma de “S” enquanto faz elogios ao edifico COPAN e a atira sobre a mesa para mostrar com que facilidade ela mantém estabilidade em pé, algo impossível no caso de uma folha plana. Dessa maneira ensina e convence todos da forma estrutural apropriada desse edifício.
estrutural, é introduzida a divergência funcional para complicar uma
equação que leva de volta ao conflito entre forma e estrutura da
sede do MESP.
Indiferente ao gesto favorável ou contrário à cidade17 e às curvas
espontâneas e sensuais, a ondulação do edifício COPAN obedece
a critérios precisos de construção do artefato inconformes com uma
figura serpenteante casual ou gestual como se quer fazer pensar. O
“S” se constrói segundo uma operação geométrica exata que une
três segmentos retos com arcos tangentes de círculo. O primeiro
segmento é paralelo à Avenida Ipiranga e à lâmina frontal e mais
alta do hotel, o segundo segmento reto é paralelo às edificações
traseiras e o terceiro segmento reto é paralelo à Rua Araújo.
Portanto a hipótese formativa da lâmina e os critérios de
implantação do edifício dão legalidade a uma forma pautada pelo
acordo geométrico com objetos e linhas presentes. Essa atenção
do conjunto metropolitano pode ser confirmada também com sua
entrega na divisa do vizinho da Rua Araújo, ajustada com admirável
cuidado.
17 RECAMÁN, op. cit. p. 195: “Mas é no Copan, em sua implantação incrustada em área já bastante verticalizada (para os padrões da cidade) que as alterações da lâmina vão procurar uma inserção urbana que ao mesmo tempo preserve a autonomia volumétrica do edifício, e prescinda do vazio circundante da experiência em Petrópolis [hotel Quitandinha]. O esforço de integração à desordem da cidade potencializa a desenvoltura da curva, transformando-a em “S”.”
Edifício Eiffel, detalhe da fachada
Duas conclusões: primeiro, a arquitetura moderna proposta na
cidade, por inovadora que seja, está apta para buscar e
estabelecer relações formais que constituam hipótese conceptiva
única, nova e própria das condições que enfrentam ou resolvem e,
segundo, as linhas curvas e as retas ortogonais não constituem
necessariamente opções antípodas de projeto, como sugere a
oposição apressada entre o “orgânico” e o “racional”, entre
“europeu” e “brasileiro”. Por esse motivo, as curvas premeditadas
não trazem qualquer constrangimento para a estética moderna e
seu propósito de ordem. Como se quer sustentar, a forma
curvilínea do edifício COPAN não corresponde a uma adesão
estilística diferenciada do arquiteto, escolha que até um discurso
pela liberdade irrestrita favorece. Ao contrário, a exigência de
legalidade do artefato longe de submeter-se aos impulsos
inspirados e arbitrários, longe de aprofundar o caos urbano ou
expor desordem social, busca estabelecer adesão visual e
correlação íntegra entre forma nova, construções existentes e
estrutura pública. A implantação dos edifícios Montreal, Eiffel e
COPAN faz retornar à mesma e incontestável indagação, àquilo
que se espera de um grande arquiteto. Ao aterem-se às fases e ao
uso variado de modelos ou tipologias, críticos e historiadores
incorrem num diversionismo insensato.
Macedônia O que mais se alega contra a arquitetura moderna é que ela é
inadequada para solucionar a complexidade, variedade e
crescimento da cidade tradicional e amparar famílias em frios,
indiferenciados e tediosos modelos regulares. Insiste-se que a
arquitetura moderna serve quanto muito para a cidade moderna,
que a concepção moderna é excludente, danifica e desfigura
lugares históricos. Por isso, para a mente intolerante, a arquitetura
moderna não constitui opção para dar resposta às cidades, assim
como para os cronistas de Niemeyer, sua obra moderna encontra o
melhor resultado nos traços que estabelecem concomitantes
relações espaciais.
Essas afirmações soam parciais. Não apenas se pode afirmar que
todos os edifícios de São Paulo de Oscar Niemeyer, na primeira
metade dos anos de 1950, estão controlados pela mesma atenção
à cidade, como também que não há distinção formal entre os
mesmos se for entendida a forma moderna, não na aparência e na
figura, mas na relação estética profunda que o artefato estabelece
em seu interior e com outros objetos. É sensato ponderar que nos
tempos da forma manipulada por princípios puro-visibilistas,
resolve-se simultaneamente a forma da cidade e a forma do
artefato. Se for assim, Niemeyer tem para todos esses projetos
habitacionais a mesma atitude conseqüente, mesmo quando utiliza
soluções diferentes.
É singular imaginar hoje a arquitetura brasileira se, ao invés de
acudir ao chamado de Kubitschek, Niemeyer insiste na
possibilidade de estabelecer vínculos apropriados entre a
construção moderna e a cidade histórica. Aceita que nessa
condição mais árdua e imprevisível há uma intensidade estética
rigorosa que dispensa o espetáculo. Em tal devaneio ganha São
Paulo com mais edifícios notáveis, ganha Brasília por deixar de ser
a cidade de um só arquiteto e ganha o arquiteto ao acatar a
concepção universal e reconhecida pelos que preferem entender a
sentir e dispensam explicações do que é feito pelo arbítrio como
oferenda.
Contudo a história segue em frente, o convite para a capital e a
pressão para ser o maior arquiteto moderno são irrecusáveis. É a
obrigação dessa nobreza que vai engendrar nas comprimidas e
alinhadas fachadas da Galeria Califórnia (1951-54), abertas para a
Rua Barão de Itapetininga e Rua Dom José de Barros, um jeito de
formalismo estrutural que simboliza os renovados compromissos
estilísticos do arquiteto. A partir do que Yves Bruand chama de
Edifícios Eiffel e COPAN na Rua Araújo
“desenvolvimento das pesquisas estruturais” 18. Os pilares de
forma “V” não apenas causam dissabores, dada a má vontade e a
soberba de calculistas paulistanos, como também transtornam a
solução e proporção das fachadas nas estreitas ruas-corredor ao
empurrar para cima a primeira laje sustentada por longilíneas e
oblíquas árvores estruturais, invenção tão antiga quanto o século
XIX19. As elevações ajustadas às medidas da cidade entram em
conflito e se revelam inadequadas para esse avantajado
expediente estrutural adossado ao fechamento das lojas. Não há
dúvida, por isso entende-se que a aceitação irrestrita dessa estética
convencional inicia a fuga das “pesquisas” para um campo em que
ficam à vontade, em que alcançam melhor resultado, quando não
estão constrangidas por vínculos visuais, em lugares convencionais
de medidas determinadas.
18 BRUAND op. cit. p.155. 19 BARDI, Lina Bo. Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura. Tese apresentada para concurso da cadeira de Teoria de Arquitetura da FAUUSP. São Paulo, 1957, pp. 7-8, “Um estudante de arquitetura, por exemplo, tem o direito, e um professor tem o dever de saber que os pilares em forma de V, tão em moda hoje em dia, embora usados, em nossa época, por primeira vez por Le Corbusier, haviam sido projetados, por Viollet-le-Duc em 1872. É possível que um jovem arquiteto apelando para a colaboração de um calculista possa sustentar a estrutura de um edifício com tais pilares, ignorando os precedentes; todavia, se ele se gabasse dessa descoberta, teríamos o direito de sorrir, invocando a história.”
Bibliografia BILL, Max. Le Corbusier & P. Jeanneret- Œuvre complete 1934-
1938. Zurique: Les editions d’Architecture, 1964.
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
LEAL, Daniela Viana. Oscar Niemeyer e o mercado imobiliário de
São Paulo na década de 1950: O escritório satélite sob direção do
arquiteto Carlos Lemos e os edifícios encomendados pelo Banco
Nacional Imobiliário. Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2003.
LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Viagem pela carne. São Paulo:
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NIEMEYER, Oscar. Oscar Niemeyer. Milão: Mondadori, 1975.
RECAMÁN, Luiz. Oscar Niemeyer: forma arquitetônica e cidade no
Brasil moderno. Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2002.
SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (org). A promoção Privada de
Habitação Econômica e a Arquitetura Moderna 1930-1964. São
Carlos: RiMA, 2002.
XAVIER, Denise. Arquitetura metropolitana. São Paulo:
Annablume, FAPESP, 2007.
Galeria Califórnia, Rua Barão de Itapetininga