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Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 16 (set. 2009) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa PONTA DE LANÇA E O PAPEL DO ESCRITOR NA CRÍTICA OSWALDIANA Frederico Henrique Faustino (UEL) [email protected] RESUMO: O artigo em questão pretende abordar as ideias críticas de Oswald de Andrade, presentes na coletânea Ponta de lança (1945), com o intuito de observar quais os caminhos apontados pelo au- tor modernista para o desenvolvimento da literatura e as artes de uma forma geral. Nosso objetivo principal será o de demonstrar a importância que o engajamento político dos artistas desempenha na constituição do pensamento crítico oswaldiano. Dessa forma pretendemos contribuir para a compre- ensão da produção cultural brasileira na primeira metade do século XX. PALAVRAS-CHAVE: Oswald de Andrade, modernismo, crítica literária, engajamento. No livro Texto, crítica, escritura (1993), Leyla Perrone-Moisés traça uma panora- ma da crítica em quatro momentos, a saber, a crítica enquanto réplica (imitação), enquanto simulacro, relacionada à ideologia e a crítica enquanto arte, que Barthes denomina de crítica da escritura. A crítica enquanto réplica baseia-se em uma concepção religiosa da obra literária, segundo a qual o crítico deveria submeter-se ao discurso literário por este conter uma verdade transcendental só perceptível ao autor. Portanto, a crítica configura- se como um discurso inferior. Isso muda, de acordo com Perrone-Moisés, a partir do Romantismo, motivada principalmente pelos questionamentos sobre a existência de uma verdade absoluta, que pudesse ser plasmada pelo autor para, só então, ser decifrada pelo crítico. É neste sentido que nos propomos a utilizar as ideias de Ro- land Barthes e Leyla Perrone-Moisés, visto que ambos abordam o problema de uma perspectiva muito próxima. Barthes, no artigo “O que é a crítica”, aponta alguns con- ceitos sobre a crítica literária a partir da situação dos críticos franceses na década de 1960. Posteriormente, Leyla Perrone-Moisés reafirma as ideias do autor e sintetiza os caminhos apontados pelo crítico no seguinte:

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  • Terra roxa e outras terras Revista de Estudos LiterriosVolume 16 (set. 2009) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa

    PONTA DE LANA E O PAPEL DO ESCRITOR NA CRTICA OSWALDIANA

    Frederico Henrique Faustino (UEL)[email protected]

    RESUMO: O artigo em questo pretende abordar as ideias crticas de Oswald de Andrade, presentes na coletnea Ponta de lana (1945), com o intuito de observar quais os caminhos apontados pelo au-tor modernista para o desenvolvimento da literatura e as artes de uma forma geral. Nosso objetivo principal ser o de demonstrar a importncia que o engajamento poltico dos artistas desempenha na constituio do pensamento crtico oswaldiano. Dessa forma pretendemos contribuir para a compre-enso da produo cultural brasileira na primeira metade do sculo XX.PALAVRAS-CHAVE: Oswald de Andrade, modernismo, crtica literria, engajamento.

    No livro Texto, crtica, escritura (1993), Leyla Perrone-Moiss traa uma panora-ma da crtica em quatro momentos, a saber, a crtica enquanto rplica (imitao), enquanto simulacro, relacionada ideologia e a crtica enquanto arte, que Barthes denomina de crtica da escritura.

    A crtica enquanto rplica baseia-se em uma concepo religiosa da obra literria, segundo a qual o crtico deveria submeter-se ao discurso literrio por este conter uma verdade transcendental s perceptvel ao autor. Portanto, a crtica configura-se como um discurso inferior. Isso muda, de acordo com Perrone-Moiss, a partir do Romantismo, motivada principalmente pelos questionamentos sobre a existncia de uma verdade absoluta, que pudesse ser plasmada pelo autor para, s ento, ser decifrada pelo crtico. neste sentido que nos propomos a utilizar as ideias de Ro-land Barthes e Leyla Perrone-Moiss, visto que ambos abordam o problema de uma perspectiva muito prxima. Barthes, no artigo O que a crtica, aponta alguns con-ceitos sobre a crtica literria a partir da situao dos crticos franceses na dcada de 1960. Posteriormente, Leyla Perrone-Moiss reafirma as ideias do autor e sintetiza os caminhos apontados pelo crtico no seguinte:

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    Frederico Henrique Faustino (UEL)Ponta de lana e o papel do escritor na crtica oswaldiana

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    Optando pela modernidade, restam crtica duas possibilidades. A primeira cientfica [...] Teremos ento uma metalinguagem cada vez mais formalizada, cada vez menos verbal e discursiva. [...] O outro o da escritura. [...] Esse discurso [...] entrar, em p de igualdade com o discurso potico, na circularidade infinita da linguagem. (1993: 29)

    O caminho cientfico formado pela crtica institucional, que se desenvolve nas universidades. Neste mbito, a crtica desenvolveu-se aliada outras correntes do pensamento, tais como o existencialismo, o marxismo, a psicanlise, o estruturalis-mo e a lingustica. De acordo com Barthes, cada uma destas correntes corresponde a um posicionamento ideolgico e caberia aos crticos assumi-lo e aceitar o fato de que a leitura que eles fazem de determinada obra no constitui uma verdade absoluta acerca da obra, aceitando assim outras leituras da mesma obra, mas com referen-ciais terico-crticos diferentes. Como nos diz Barthes: A crtica outra coisa diversa de falar certo em nome de princpios verdadeiros. Portanto, o pecado maior, em crtica, no o da ideologia, mas o silncio com o qual ela recoberta: esse silncio culpado tem um nome: a boa conscincia ou, se se preferir, a m-f (Barthes 1970: 159-160) .

    Para o autor, a crtica caracteriza-se como metalinguagem, ou seja, como um dis-curso ideologicamente marcado que atua sobre outro, o do autor, tambm ideologi-camente marcado. De acordo com Barthes, a tarefa da crtica seria puramente formal, consistindo em ajustar, como bom marceneiro que aproxima apalpando inteligen-temente duas peas de mvel complicado, a linguagem que lhe fornece sua poca [...] linguagem, isto , ao sistema formal de constrangimentos lgicos elaborados pelo prprio autor segundo sua poca (1970: 161).

    O segundo caminho indicado por Barthes para crtica constitui-se da crtica realiza-da pelos prprios escritores, na qual o exerccio da crtica aproxima-se do processo da criao potica. Segundo Leyla Perrone-Moiss, neste momento que a crtica conseguiria se libertar dos entraves ideolgicos da crtica universitria. A crtica dos escritores receberia as marcas da experincia artstica do seu autor, tornando-se ela tambm uma obra de arte, assim como afirma Jean-Yvs Tadi: a crtica dos artis-tas uma obra de arte, a reconstituio de um estilo por outro, a metamorfose de uma linguagem em outra (1992: 11). Alm disto, a crtica dos escritores estaria ligada prpria sobrevivncia da literatura. Pode-se notar, portanto, a importncia desse tipo de crtica na prpria dinmica das transformaes literrias, pelo fato de que o escritor-crtico tem uma maior liberdade com relao ao crtico acadmico e tambm pelo fato de conhecer, ele prprio, os meandros da criao literria, conforme afir-ma Leyla Perrone-Moiss: A crtica dos escritores no visa simplesmente auxiliar e orientar o leitor (finalidade da crtica institucional), mas visa principalmente estabe-lecer critrios para nortear uma ao: sua prpria escrita, presente e imediatamente futura. Neste sentido, uma crtica que confirma e cria valores (1998: 11).

    neste sentido que Jean-Yves Tadi afirma que a crtica literria desejaria igualar-se aos textos por ela analisados por meio da produo de alguns excelentes escrito-res que se entregaram tambm ao exerccio da crtica.

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    No contexto brasileiro, coube ao Modernismo o papel de despertar de maneira mais significativa o senso crtico de nossos escritores, embora este senso j estivesse presente em grandes nomes da nossa literatura como, por exemplo, Jos de Alencar e Machado de Assis. Mas por ter assumido para si um posicionamento mais reflexivo a respeito da realidade e das artes brasileiras, o movimento modernista abriu o cami-nho para que os seus mais significativos representantes pudessem se aventurar na atividade crtica a fim de estabelecer de uma maneira mais precisa os rumos a serem seguidos em suas prprias obras e na literatura brasileira como um todo. o caso, de Mrio de Andrade, Cassiano Ricardo, Srgio Milliet e de Oswald de Andrade, por exemplo.

    Na produo crtica de Oswald de Andrade, em particular, nota-se a presena de questes relacionadas ao fazer literrio e tambm questes mais abrangentes como as que envolvem o nosso processo de formao cultural e econmico. Oswald pro-cura, na coletnea Ponta de lana, fazer um balano das principais contribuies do Modernismo, bem como avalia obras de vrios autores nacionais e estrangeiros pro-curando analisar a maneira como a literatura se relaciona com a sociedade, alm de debater questes polticas e culturais que agitavam o mundo e a literatura de sua poca.

    Com relao s colocaes de Barthes e Leyla Perrone-Moiss, podemos dizer que a crtica oswaldiana corrobora as ideias desses estudiosos. Com relao forma, po-demos constatar em Ponta de lana alguns aspectos daquilo que Barthes chama de crtica da escritura, ou seja, um discurso crtico que se aproxima da linguagem liter-ria. Os textos da coletnea, principalmente os artigos, sofrem uma grande influncia da linguagem jornalstica, visto que o jornal foi o suporte inicial destes textos, po-dendo ser, em alguns aspectos, comparados crnica. Alm disso, o autor emprega recursos literrios na construo de seus textos, tais como: o uso de dilogos, a fuso dos gneros literrios, o uso de metforas e diversas figuras de linguagem, principal-mente a ironia. Portanto, com relao ao aspecto formal, os textos de Ponta de lana apresentam uma liberdade maior que a encontrada em textos da crtica acadmica, nos quais o autor est preso regras que orientam a produo do conhecimento dentro do mbito acadmico.

    O que nos interessa aqui, de maneira mais particular, o aspecto do engajamento crtico de Oswald de Andrade. Neste sentido, pode-se dizer que cabem muito bem crtica oswaldiana os eptetos de investido, interessado e implicado com os quais Leyla Perrone-Moiss caracteriza a crtica dos escritores. Isso porque se encontra em Ponta de lana as ideias de Oswald de Andradecom relao ao papel social que o escritor e a literatura deveriam exercer. Nosso intuito o de salientar a importncia de Oswald de Andrade, enquanto crtico, no desenvolvimento de um pensamento crtico bra-sileiro e mostrar de que maneira muitas de suas ideias vo ao encontro de alguns pressupostos da crtica latino-americana, que mais recentemente tem levantado a questo do papel do escritor e da literatura latino-americanos.

    J se tornou ponto pacfico afirmar que uma das maiores contribuies literrias de Oswald de Andrade para a literatura brasileira foi a questo da antropofagia cul-

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    tural. Como se sabe, este caminho passa pela apropriao de elementos oriundos das culturas que colonizaram o nosso pas, retirando das mesmas os elementos que pudessem representar uma modernizao da cultura e da sociedade brasileiras ao serem amalgamados aos elementos que formariam o carter nacional. A questo do ser brasileiro, que perpassa todo o nosso modernismo, est na base do iderio antro-pofgico de Oswald de Andrade e, alm das implicaes literrias, gerou ainda um lastro de discusses tambm no mbito da crtica literria.

    Confrontando o discurso literrio latino-americano com o europeu, Silviano San-tiago prope a derrubada de um discurso crtico de tendncia positivista, preocupa-do em encontrar na literatura produzida na Amrica Latina as influncias absorvidas das fontes europias. Este posicionamento crtico exerceria uma funo reducionis-ta sobre a literatura latino-americana, pois tal discurso reduz a criao dos artistas latino-americanos condio de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de prprio (Santiago 2000: 18).

    O crtico observa claramente a necessidade de se ressaltar o valor das obras pro-duzidas pelos pases em subdesenvolvimento e o faz justamente partindo de algumas observaes de Oswald de Andrade. De acordo com Santiago, seria impossvel tentar compreender a literatura produzida na Amrica Latina como um discurso homog-neo. Ela s ter sentido a partir do momento em que for analisada atravs do ponto de vista desconstrutor da antropofagia, segundo a qual o discurso literrio latino-americano deveria ser compreendido como um discurso heterogneo, formado pela mistura do discurso local e do estrangeiro.

    No que diz respeito ao contexto latino-americano, percebemos que h, em Ponta de lana, a necessidade de se pensar a cultura e a literatura latino-americanas par-tindo das peculiaridades sociais que marcam profundamente as produes culturais destes pases. Oswald de Andrade ressalta a necessidade do engajamento poltico-social dos escritores brasileiros e latino-americanos. Suas afirmaes vm ao encon-tro do pensamento de alguns crticos latino-americanos.

    Na conferncia Literatura e conscincia poltica na Amrica Latina, Alejo Car-pentier condena a falta de engajamento dos nossos escritores ou o falso engajamen-to dos que, apesar de reconhecerem as dificuldades que assolam a Amrica Latina, nada fazem para mudar isso. Com relao a estes escritores, afirma Carpentier: Tal intelectual est cheio, no fundo, de boas intenes; mas a sua repugnncia ante toda a atividade sistemtica, ante toda a afirmao comprometedora, faz com que con-temple sem se mexer as piores injustias ou aceite, com incrvel irresponsabilidade, qualquer ddiva ou propina (s/d: 49) .

    Da mesma forma, no contexto brasileiro, a atitude de Oswald de Andrade e de outros modernistas denota a preocupao dos mesmos em refletir sobre a realida-de brasileira. Conforme afirma Affonso vila (1975), o nosso movimento modernista constitui-se como um momento de reflexo a respeito da realidade e da linguagem brasileiras.

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    Com relao a um trabalho crtico que tivesse como ponto de partida as condies particulares do contexto brasileiro e latino-americano, os textos de Ponta de Lana podem ser considerados um primeiro passo nesse sentido, embora como procedi-mento terico-metodolgico estas ideias s fossem formuladas de maneira mais sis-temtica a partir da dcada de 1970.

    Cornejo Polar prope algumas idias que poderiam orientar os rumos da crtica literria latino-americana. Para o peruano, a crtica literria, de uma forma geral, en-frenta uma crise. No caso de crtica latino-americana, esta crise torna-se dupla, pois alm de articular os problemas gerais da crtica a crtica na Amrica Latina precisa adaptar-se ao seu contexto scio-cultural peculiar. Polar ope-se ao estruturalismo por acreditar que este tipo de crtica limita a compreenso do objeto literrio, pois como nos diz o prprio crtico: Esquecemos que a literatura signo e que inevitavel-mente remete a categorias que a excedem: ao ser humano, sociedade, histria; esquecemos, ao mesmo tempo, que a literatura produo social, parte integrante de uma realidade e uma histria nunca neutras (Polar 2000: 19-20).

    O crtico entende que, no contexto europeu, no qual a literatura apresenta-se como resultado de uma cultura mais homognea, os mtodos crticos imanentistas se aplicariam de maneira coerente. No entanto, a literatura na Amrica Latina torna-se um objeto mais complexo, por refletir um processo de formao cultural muito heterogneo, no qual convergem as contribuies de culturas muito dispares. Neste contexto, seria insuficiente a implantao de um mtodo crtico que no levasse em considerao os aspectos exteriores criao literria.

    Recamos ento no questionamento levantado por Santiago: qual seria pois o papel do intelectual hoje em face das relaes entre duas naes que participam de uma mesma cultura, a ocidental, mas na situao em que uma mantm o poder eco-nmico sobre a outra? (2000: 17), e que tem sua resposta na antropofagia oswaldia-na, na medida em que Santiago prope que a literatura latino-americana configure-se em uma leitura-escritura dos textos oriundos da tradio cultural europia. Nesta releitura entraria em ao o processo antropofgico no qual o leitor-escritor latino-americano, partindo do texto original, recria o seu sentido ao incorpor-lo, utilizan-do-o no seu discurso de maneira irreverente, parodstica e muitas vezes antagnica.

    A valorizao de uma arte que representasse as condies da sociedade em que foi concebida no privilgio de Oswald de Andrade. Segundo Tadi, a anlise das relaes entre a sociedade e a literatura surge no sculo XIX e vai se desenvolver, so-bretudo, a partir das ideias de Marx. Trata-se, portanto, de uma tendncia muito em voga nos estudos literrios durante a primeira metade do sculo XX. O prprio Lukacs analisa, em O romance histrico (1937), as obras em busca da ao recproca entre o desenvolvimento econmico e social e a concepo do mundo e a forma artstica que dela resultam (Tadi 1992: 168). O pensamento de Goldmann tambm corrobora a tendncia crtica defendida por Oswald, pois no seu mtodo de anlise o elemento essencial no estudo da criao literria, reside no fato de a literatura e a filosofia serem, em planos diversos, expresses de uma viso de mundo e de as vises de mundo no serem individuais, mas, sim, sociais (Tadi 1992: 173). Antonio Candido,

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    no artigo Crtica e Sociologia, avalia o uso dos critrios sociais na interpretao de obras literrias. Embora mais contido, o brasileiro defende a importncia destes fatores na interpretao da obra quando estes elementos atuam na composio do que h de essencial na obra enquanto obra de arte (Candido 2000: 6). Podemos afirmar, a partir dessas definies, que esse o mesmo empenho que anima os co-mentrios crticos de Oswald de Andrade em Ponta de lana. O escritor-crtico elege o seu cnone particular valendo-se de critrios ideologicamente marcados pela sua opo poltica de esquerda.

    No que diz respeito questo do engajamento, Jean Paul Sartre afirma que o es-critor est de certo modo envolvido com a sociedade visto que ele utiliza a linguagem como um meio para indicar algo que est alm dela. Podemos perceber, portanto, que, para Sartre, falar agir, exercer uma atividade transformadora sobre o mun-do, sobre os outros homens e sobre si mesmo. Desta forma o papel do escritor deve ser o de falar para o seu presente tentando persuadir os homens a partilharem com ele desta mesma ao transformadora, j que, como nos diz Sartre: O escritor de-cidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsa-bilidade. [...] Do mesmo modo, a funo do escritor fazer com que ningum possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele (2004: 21).

    Para Barthes, o engajamento literrio deve ser capaz de questionara a prpria ma-neira como a literatura se impe na sociedade, ou seja, ele deve exercer uma reviso do prprio saber. Se para Sartre o escritor engajado deveria falar para o seu presen-te, para Barthes, pelo contrrio, o escritor para falar com o seu presente tem que se relacionar com o seu passado, problematizando a maneira como a literatura se apresentava anteriormente. Portanto, o engajamento literrio muito mais indireto para Barthes do que para Sartre, justamente pela sua ligao com a histria, como nos explica o prprio crtico:

    A Histria est ento diante do escritor como advento de uma opo necessria entre vrias morais da linguagem; obriga-o a significar a Literatura segundo possveis que ele no domina [...] a partir do momento em que o escritor deixa de ser uma testemunha universal para se tornar uma conscincia infeliz (por volte de 1850), o seu primeiro gesto foi escolher um compromisso com a sua forma, seja assumindo, seja recusando a escrita do seu passado. (2000: 4-5)

    Diante destas palavras, inevitvel que se faa uma aproximao do conceito de engajamento literrio que apresentamos at aqui, baseando-nos nas ideias de Sar-tre e Barthes, com a atividade crtica de Oswald de Andrade e a sua participao no Modernismo brasileiro. Parece-nos que o autor modernista traz bem forte o intuito de valorizar uma literatura politicamente engajada, que estivesse voltada para a re-flexo acerca dos problemas que afligiam o mundo na dcada de 1940. Para tanto, o escritor-crtico rompe, tambm no mbito da crtica, com todo e qualquer conceito de literatura que pudesse apresentar o rano das velhas formas de se compreender

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    a literatura. Isso se deve ao prprio carter questionador do movimento modernista e ao seu aspecto de ruptura. De acordo com Affonso vila (1975), o modernismo re-presenta, dentro do desenvolvimento do projeto literrio brasileiro, um momento de reflexo a respeito da realidade e da linguagem brasileiras.

    O texto-chave para a percepo do caminho indicado por Oswald de Andrade o artigo intitulado Sobre o romance. Trata-se de um panorama traado pelo autor-crtico sobre o desenvolvimento do gnero. Construdo em forma de dilogo, o arti-go apresenta dois interlocutores que discutem questes relativas ao romance, mais especificamente ao romance moderno. O romance, segundo Oswald de Andrade, uma representao do mundo sob o ponto de vista de um determinado artista que est, por sua vez, vinculado a um determinado posicionamento ideolgico dentro da sociedade. E justamente nessa questo que reside a problemtica do romance moderno: Meu caro, em matria de romance nada h que marque o comeo de nossa era como um romance russo da ltima dcada o romance da construo so-cialista. H um marco final que dado pela Montanha mgica. Um marco inicial dado pela Energia, de Gladkov. E um grande marco antinormativo que o Ulisses de Joyce (Andrade 2004: 89).

    Oswald de Andrade resume, neste trecho, toda a histria do romance afirmando que sua forma clssica j no encontraria espao no mundo de sua poca, na qual o humanismo, que nutria aquelas narrativas, estava sendo destrudo pelos horrores da guerra. O fim do romance burgus teria sido marcado pelas obras de Mann e Proust, pois, segundo Oswald de Andrade, Mann o fim do rpido e fulgurante humanismo alemo [...] Enquanto Proust a deliqescncia a que chegou o laboratrio de auto-anlise da burguesia... (2004: 86). Ao Ulisses, Oswald de Andrade atribui a funo de ruptura com o romance burgus para que se preparasse caminho para a renovao promovida pelo romance proletrio. por meio da experimentao esttica que se romperia com os paradigmas do passado, para que o foco do romance deixasse de ser o burgus individualizado e passasse a ser a figura coletiva do proletariado. Portanto, com grande alegria que Oswald de Andrade aclama a contribuio dos romancistas russos, principalmente Gladkov, na implantao de um romance que refletisse a viso de mundo da classe trabalhadora. Essa sntese elaborada por Oswald de Andrade para o gnero romanesco evidencia que o seu pensamento crtico apresenta na sua base um amlgama dos projetos esttico e ideolgico que de acordo com Joo Luiz Lafet (2000) orientam o desenvolvimento do movimento modernista entre ns. In-teressante, por ser anloga aos comentrios de Oswald de Andrade a respeito do romance, a sua posio com relao a Machado de Assis e a Euclides da Cunha. Para ele, a grandeza dos dois escritores consiste no fato de que a obra do primeiro representava a decadncia da classe burguesa, enquanto a do segundo representava o surgimento da fora da organizao popular em nossas letras, conforme podemos notar no seguinte trecho: O pessimismo de Machado um pessimismo de classe. Nele, j existe fixado o germe de toda uma sociedade condenada. Em Euclides, surge a esperana do povo, a mstica do povo, a anunciao do povo brasileiro (Andrade 2004: 173).

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    esse o elemento que, para Oswald de Andrade, diferenciava a nova orientao da literatura daquela que vinha sendo praticada at ento. Ainda nessa conferncia, fica evidente o carter poltico que o movimento modernista adquire para Oswald de Andrade, pelo fato do crtico ligar o Modernismo de 22 Inconfidncia Mineira. Neste texto, Oswald de Andrade faz um balano do modernismo ressaltando a importn-cia da Antropofagia, apontando como devedores desta corrente literria alguns dos maiores escritores das geraes que se seguiram sua, tais como: Drummond, Muri-lo Mendes, Jorge de Lima, etc, pois a grande colaborao do movimento antropof-gico deve-se ao fato de ele despertar os nossos escritores e intelectuais para o nosso primitivismo cultural e para a nossa realidade poltica.

    Segundo Heloisa Toller Gomes (2005), a noo de antropofagia funciona, para Oswald de Andrade, como uma metfora a partir da qual se poderia compreender o Brasil e o nosso paradoxal processo de formao cultural, ao questionar de maneira bem-humorada e irreverente a continuao de uma arcaica estrutura poltica, econ-mica e cultural implantada no Brasil pelos colonizadores. Para a autora, a antropofa-gia oswaldiana consiste na devorao do nosso legado cultural, neste processo se daria a negao dos padres culturais pr-estabelecidos para que se pudesse valori-zar os elementos que realmente so constitutivos de nossa formao cultural. Dessa forma, a antropofagia evidenciaria os paradoxos de nossa formao scio-cultural. sob este aspecto que a antropofagia se faz presente nas pginas crticas de Ponta de Lana, como nos diz o prprio Haroldo de Campos:

    Creio que, no Brasil, com a Antropofagia de Oswald de Andrade, nos anos 20[...], tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialgico e dialtico com o universal. Ela no envolve uma submisso (uma catequese), mas uma transculturao; melhor ainda, uma transvalorao: uma viso crtica da histria como funo negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriao como de expropriao, desierarquizao, desconstruo. (2004: 234-5)

    nesse sentido que se compreende as crticas feitas por Oswald de Andrade a Cas-siano Ricardo, em Bilhete aberto, no qual o crtico acusa o nativismo da poesia de Cassiano Ricardo de no ser autntico, de no revelar as genunas riquezas da nossa cultura: As suas canes nativas so como esses bonecos de cermica que represen-tam Pai Joo e Peri, Anhangera e d. Pedro II, mas que vm da Alemanha, produzidos em srie (Andrade 2004: 63).

    Oswald defende, nos artigos e conferncias de Ponta de lana, a implantao de uma arte capaz de representar o povo, as mazelas do cotidiano dos trabalhadores e capaz de desnudar os mecanismos de estruturao da sociedade capitalista, para que o povo se conscientizasse das necessidades de mudana. Isso fica evidente em seus comentrios, a respeito do teatro e sua funo social, feitos nos artigos Do teatro que bom... e Diante de Gil Vicente. Em ambos, Oswald de Andrade ressalta o ca-rter coletivista do teatro e sua funo pedaggica, que est presente desde sua ori-gem, mas sobretudo no teatro medieval. Por isso, em Diante de Gil Vicente, aponta

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    a atualidade do dramaturgo portugus na maravilhosa virilidade satrica e mstica do Auto da barca! (Andrade 2004: 128).

    J em Do teatro que bom..., o autor se detm, de maneira mais aprofundada, na defesa do que ele chama de teatro de estdio. Um teatro que, recuperando al-gumas das caractersticas dos autos medievais, retomasse o seu sentido inicial que era o de espetculo popular e educativo (Andrade 2004: 154).

    A leitura do artigo Destino da Tcnica, talvez, nos ajude a entender melhor as ideias de Oswald de Andrade com relao ao teatro de estdio. Neste texto, Oswald de Andrade analisa as transformaes da intelectualidade geradas pelo processo de industrializao e desenvolvimento surgido a partir da ascenso do capitalismo. De acordo com a sua tese utpica, o domnio da tcnica poderia levar os homens a se li-bertarem das mos aduncas e toscas do proprietrio de valores (2004: 73). Portan-to, segundo o escritor, seria necessrio conscientizar essa nova classe que se formava no interior das sociedades capitalistas, os tcnicos, visto que ela que tem o domnio sobre os meios de produo, para que, juntamente com o proletariado, ela pudes-se instaurar as mudanas sociais, to caras ao marxismo, conscientizada que estaria pela arte de uma era ciclpica (Andrade 2004: 72), isto , capaz de chegar a todos com sua mensagem politicamente engajada. claro que se podem fazer objees tanto ao comprometimento de Oswald de Andrade com as idias marxistas como ao carter utpico de suas aplicaes. Mas nos parece que dentro de seu projeto crtico e literrio esse carter utpico assume uma coerncia que o torna relevante.

    Em relao s artes plsticas, Oswald de Andrade faz, em A evoluo do retrato, um panorama das transformaes desta representao artstica. Oswald de Andrade sintetiza de maneira espetacular toda a sua concepo da histria da arte, bem como seus ideais quanto aos rumos que ela deveria tomar, na histria do Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Da mesma maneira que a figura do jovem Dorian foi se dege-nerando ao longo do romance de Wilde, at ser destruda pelo modelo, o retrato do individualismo burgus vai se exacerbar at culminar nas degeneraes estticas das vanguardas, que abririam caminho para uma pintura de cunho social.

    A defesa desse tipo de pintura tambm feita na conferncia Aspectos da pin-tura em Marco Zero, pronunciada em 1944, na qual o autor discute os caminhos da pintura de sua poca atravs das posies antagnicas de dois dos personagens do romance Cho, o arquiteto Jack de So Cristvo, defensor do modernismo sem compromisso, o modernismo esttico, polmico e negativista (Andrade 2004: 177), e o pintor Carlos de Jaert, que v razo para o modernismo, na pintura social que ele produziu (Andrade 2004: 177). Oswald de Andrade conclui defendendo a pintura que nas suas duas vertentes, tanto no experimentalismo esttico quanto na pintura social, buscam a liberdade de expresso. Afirma que as vanguardas foram importan-tes, pois sem as audcias da pintura de vanguarda no seria possvel, sob a rigidez do academicismo, o surgimento de um enfoque que privilegiasse o debate em torno dos problemas sociais que agitavam o mundo naquele momento.

  • Terra roxa e outras terras Revista de Estudos LiterriosVolume 16 (set. 2009) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa

    Frederico Henrique Faustino (UEL)Ponta de lana e o papel do escritor na crtica oswaldiana

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    Constata-se, desta forma, que a produo crtica de Oswald de Andrade tem como fulcro o posicionamento ideolgico do autor, a partir do qual ele tenta refletir sobre os caminhos que deveria seguir a literatura, no Brasil e no mundo. As concepes formuladas por Oswald de Andrade, em Ponta de lana, sobre a literatura e papel do engajamento social dos escritores, alm de orientar as criaes estticas do prprio autor, so um bom ponto de partida paro o pesquisador interessado em compreen-der a produo cultural da primeira metade do sculo passado.

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    PONTA DE LANA AND THE WRITERS ROLE IN THE OSWALDIAN CRITICISM. ABSTRACT: The present article discusses Oswald de Andrades critical ideas included in his omnibus Ponta de lana (1945). I intend to identify the ways pointed out by the author for the development of literature and arts as a whole. The main goal is to demonstrate the importance that the artists political engagement plays on the Oswaldian critical thought. Thus I expect to contribute to the understand-ing of the Brazilian cultural production during the first half of the 20th century.KEYWORDS: Oswald de Andrade, modernism, literary criticism, engagement.

    Recebido em 15 de julho de 2009; aprovado em 30 de outubro de 2009.