ouro e preces: a procissão joanina de corpus christi

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Ouro e preces: a procissão joanina deCorpus ChristiJoão Vicente Melo aa Swansea UniversityPublished online: 21 Feb 2012.

To cite this article: João Vicente Melo (2012) Ouro e preces: a procissão joanina de Corpus Christi,Bulletin of Spanish Studies: Hispanic Studies and Researches on Spain, Portugal and Latin America,89:2, 193-206, DOI: 10.1080/14753820.2012.657769

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Ouro e preces: a procissao joaninade Corpus Christi

JOAO VICENTE MELO

Swansea University

Introducao

Celebrada pela primeira vez em Liege em 1246, apos os esforcos de SantaJuliana de Mont-Cornillon, a procissao de Corpus Christi passou a integraras festividades oficiais da Igreja Catolica em 11 de Agosto de 1264, com apublicacao da bula Transiturus de hoc mundo assinada pelo Papa Urbano IV.A procissao inspirada pelas visoes de Santa Juliana foi adoptada por Romapara confirmar a doutrina da transubstanciacao. Por celebrar o SantissımoSacramento, a procissao tornou-se rapidamente numa das festividades maisimportantes da Cristandade e numa questao de orgulho cıvico. Guildas emunicıpios participavam na organizacao da Festa de Corpus Christi nao sopara aumentar o prestıgio das suas cidades, mas sobretudo para consolidar ecelebrar o seu poder na vida polıtica e economica das cidades. O envolvimentode actores nao-religiosos na organizacao da procissao permitiu a introducaode elementos profanos que colidiam, muitas vezes, com a solenidade desejadapelas autoridades eclesiasticas.

Em Lisboa, a procissao do Corpo de Deus era um dos momentos maisrelevantes do calendario cıvico e religioso da capital Portuguesa desde oreinado de D. Afonso III (1248�1279). Organizada pelo Senado da cidade epelos ofıcios, a procissao oferecia a populacao um enorme festival comcaracterıstica carnavalescas que se tornou famoso por dancas como amourisca, a judenga, a retorta e a danca das espadas. Estas dancas eramhabitualmente seguidas por um longo desfile de carros alegoricos inspiradosnas vidas dos santos padroeiros dos ofıcios ou nas accoes de monarcasPortugueses, imperadores Romanos e personagens bıblicos. No seculo XVI, aprocissao passou a incluir dragoes e gigantones. Por vezes, eram tambemrecreadas batalhas entre Cristaos e Mouros que evocavam a conquista deLisboa e a Reconquista da Penınsula Iberica.1

1 Maria Eugenia Reis Gomes, Contribuicoes para o Estudo da Festa no Antigo Regime(Lisboa: Instituto Portugues de Ensino a Distancia, 1985), 18�19. A recreacao de batalhasentre Mouros e Cristaos era um elemento festivo partilhado por outras regioes com umpassado de ocupacao Muculmana como o sul de Espanha e a Sicılia.

ISSN 1475-3820 print/ISSN 1478-3428 online/12/02/000193-14# Bulletin of Spanish Studies. http://dx.doi.org/10.1080/14753820.2012.657769

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A presenca de elementos populares e profanos numa cerimonia quepretendia glorificar o Corpo de Deus revelou uma certa inabilidade por partedas autoridades eclesiasticas e da Coroa de submeter a plebe. Em 1592, nasequencia de varias queixas apresentadas pelo Bispo de Lisboa, o Senado foiforcado a publicar um edito que obrigava a populacao a estar ‘sem chapeus,seguindo o Senhor com a reserva e veneracao que Ele exige’.2 Ao longo doseculo XVII, o Senado continuou a publicar varios editos com o objectivo deeliminar a presenca do profano, mas sem resultados praticos. Um viajanteFrances que assistiu a procissao mencionou que ‘depois do servico divino,dentro das igrejas, mulheres ricamente vestidas dancam ao som de guitarrase castanholas em frente ao Santıssimo Sacramento, cantando cancoesprofanas, tomam mil posturas indecentes e impudicas que mais conviriama lugares publicos que a Igrejas, que casas de oracao’.3

Apos a criacao do Patriarcado de Lisboa com a publicacao da bula InSupremo Apostolates Solio de 7 de Novembro de 1716, a Igreja e a Coroativeram uma nova oportunidade para transformar o Corpus Christi de Lisboa.Para D. Joao V, a criacao do novo Patriarcado tratava-se de uma importantevitoria diplomatica, que reforcava as pretensoes de Portugal ser reconhecidocomo uma verdadeira potencia Catolica com um estatuto equiparavel ao deFranca, Espanha ou Austria. O Patriarcado incentiva tambem as aspiracoesde D. Joao em transformar a capital Portuguesa no segundo centro doCatolicismo. As doacoes generosas concedidas pela Coroa Portuguesa aoPapado forcaram Roma a conceder ao novo patriarca varios privilegiosproximos daqueles usufruıdos pelo papa como o uso de um trono, umbaldacchino e um palio. Numa tentativa de reforcar a aproximacao daimagem publica do patriarca a do papa, a Coroa introduziu o modelocerimonial Romano em todas as cerimonias do Patriarcado. Seguindo ocerimonial Romano, os conegos da Patriarcal foram, por exemplo, autorizadosa usar mitras e habitos escarlates e tinham precedencia sobre a nobreza.4

O significado religioso e a importancia da festa do Corpo de Deus na vidacıvica de Lisboa tornaram a procissao num evento que poderia ser associado aimagem de prestıgio e autoridade que a Coroa pretendia desenvolver para oPatriarca. Em 12 de Maio de 1717, a procissao passou a ser regulada por umnovo regimento elaborado sob a influencia da Coroa. Uma nova ordem deprecedencia foi introduzida de forma a respeitar e realcar a posicao e prestıgiodos participantes. Mulheres, negros e charameleiros foram proibidos departicipar na procissao. As fachadas e janelas de todas as casas de Lisboadeviam ser decoradas com tapecarias e sedas, enquanto os passeios seriamcobertos de flores e areia branca. O desfile profano de gigantones, dragoes e

2 Camara Municipal de Lisboa, Livro 18 dos Assentos do Senado, B12, fls. B.3 Manuel Bernardes Branco, Portugal e os Estrangeiros, 3 vols (Lisboa: Imprensa

Nacional, 1879), I, 296.4 Angela Delaforce, Art and Patronage in Eighteenth-Century Portugal (Cambridge:

Cambridge U. P., 2002), 180.

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carros, bem como as dancas, foram excluıdos das celebracoes. D. Joaopretendia, assim, aproximar o Corpus Christi as cerimonias reais, e aintervencao da Coroa estendeu-se a introducao de novos elementos festivosassociados as festas regias como luminarias, fogos de artifıcio, salvas deartilharia e musica marcial.

O triunfo do Sacramento

As transformacoes impostas por D. Joao V culminaram na procissao de 8 deJunho de 1719 e foram celebradas por Inacio Barbosa de Machado numpanegırico intitulado Historia critico-chronologica da instituicam dafesta, procissam, e officio do Corpo Santissimo de Christo. Machado foiprovavelmente instruıdo por D. Joao V para registar o dia ‘em que vimos aquanto pode chegar a grandeza, a profusao, e a magnificencia do seu augustocoracao’.5 A Historia critico-chronologica apresenta a procissao joanina comoum triunfo do esplendor e da serenidade real sobre os espectaculos burlescose populares da procissao organizada pelo municıpio e pelos ofıcios, oferecendouma descricao detalhada de quase todos os aspectos relacionados com o novoCorpus Christi.

Machado inicia a sua descricao com as primeiras horas da manha de 8 deJunho, altura em que os sinos das igrejas Lisboetas ofereceram um ‘festivalsonoro’ que convidava a populacao da cidade a participar nas celebracoes doSantıssimo Sacramento. Por volta das 5 da manha, o Patriarca e os seusacolitos entravam na Basılica depois de terem sido transportados por umacarruagem dourada. Duas horas mais tarde, as ‘vozes de prata’ da Basılicaanunciavam o inıcio da procissao. O primeiro grupo a sair da Patriarcal eraformado pelos ofıcios divididos de acordo com a sua antiguidade. Cada ofıcioera identificado por bandeiras com imagens dos seus santos padroeirosdecoradas com elementos de prata e ouro. Numa tentativa de demonstrar avitalidade economica de Lisboa, Machado refere que o excesso de ouro e prataobrigava a que os estandartes fossem carregados por quatro homens.A presenca dos ofıcios na procissao*os unicos sobreviventes da antigafesta do Corpo Deus*permitia demonstrar nao so a centralidade de Lisboana economia do Reino e do Imperio, como criava um elo de ligacao entre anova procissao joanina e a velha procissao medieval, transmitindo umaimagem de submissao da cidade a interferencia da Coroa na procissao.6

Apos o desfile dos ofıcios seguia-se uma imagem coberta de ouro ediamantes de S. Jorge a oprimir um ‘generoso bruto’. S. Jorge era escoltadopor trombeteiros e bateristas transportados por cavalos que anunciavam aentrada de um cavaleiro ‘montado em hum cavallo acubertado, que levando

5 Inacio Barbosa Machado, Historia critico-chronologica da instituicam da festa,procissam, e officio do Corpo Santissimo de Christo (Lisboa: Officina Patriarcal deFrancisco Luıs Ameno, 1759), 130.

6 Machado, Historia critico-chronologica, 167�68.

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huma comprida bandeira mostrava ser como Alferes da Milicia antiga’7 e queencabecava 46 cavalos da Casa Real cobertos por veludos verdes e adornadoscom pecas de ouro e prata.8 A imagem de S. Jorge, ‘especial protector desteReino contra as armas de Castella nos conflictos mais perigosos’9 foraintroduzida por D. Joao I como sinal de reconhecimento pela vitoria sobreCastela em 1385.10 Desde entao a imagem passou a ser associada a umpassado militar heroico que foi brevemente revivido em 1717 com a vitoria deuma armada Portuguesa sobre a marinha Turca em Matapao. Apesar daderrota do Turco, o clima de tensao permanente com Espanha e a experienciaPortuguesa na Guerra da Sucessao Espanhola alimentavam sentimentos deanimosidade em relacao a Madrid. A imagem relembrava assim os sucessosPortugueses contra Espanha, um paıs mais de maior dimensao e com maispoder que podia ser facilmente comparado com um ‘generoso bruto’ movidopor intencoes hostis.11 A utilizacao de imagens religiosas para difundirmensagens polıticas nao era um exclusivo do Corpus Christi lisboeta. Em1606, por exemplo, as autoridades Venezianas utilizaram a procissao paradifundir varias mensagens contra o Papa apresentando varios tableauxvivants com referencias a separacao entre o poder secular e eclesiastico.12

Contudo, se um dos objectivos da imagem de S. Jorge era impressionar ascomunidades estrangeiras de Lisboa, a procissao estava longe de ser bemsucedida. O botanico Suico Merveilleux considerava a imagem como‘inconveniente’ por estar excessivamente decorada e chegou mesmo amencionar que os cavaleiros que escoltavam S. Jorge nao demonstravam amagnificencia do Rei de Portugal.13

A imagem de S. Jorge tinha tambem uma importante funcao cerimonial,estabelecendo uma divisao entre o desfile profano ou secular dos ofıcios e aprocissao do Santıssimo Sacramento*dominada pelo Patriarca e pelo Rei eassente num ideal de serenidade que pretendia reforcar a exaltacao do poderdivino e da Coroa. Apos a imagem, a procissao apresentava a audienciaaqueles que eram responsaveis pela sua vida espiritual e terrena. Asirmandades e confrarias, o clero das paroquias, os membros menores daInquisicao, teologos e os ministros e advogados da ‘Curia Patriarcal’ foram osprimeiros elementos da ordem polıtica e religiosa a desfilarem pelas ruas de

7 Machado, Historia critico-chronologica, 168.8 Charles Boxer, The Golden Age of Brazil: Growing Pains of a Colonial Society (Los

Angeles: Univ. of California Press, 1962), 246�47.9 Machado, Historia critico-chronologica, 168.

10 Jose Manuel Tedim, Festa Regia no Tempo de D. Joao V (Porto: Univ. Portucalense,1999), 219.

11 Boxer, The Golden Age of Brazil, 247.12 Edward Muir, Civic Ritual in Renaissance Venice (Princeton : Princeton U. P., 1981),

228�29.13 Charles Frederic Merveilleux, ‘Memorias instrutivas sobre Portugal’, em O Portugal

de D. Joao V visto por Tres Forasteiros, ed. Castelo Branco Chaves (Lisboa: BibliotecaNacional, 1983), 131�257 (222).

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Lisboa.14 A sua presenca na procissao era um sımbolo da contribuicao daIgreja para o bem-estar da populacao (irmandades e confrarias), consolacaoespiritual (clero das paroquias), educacao (teologos) e decencia moral(Inquisicao). A ‘Curia Ecclesiastica’ era seguida pelo que Machado definiacomo o ‘mais nobre, e illustre de todo o Reino, assim na fidalguia donascimento, e grandeza de lugares, como no profundo de letras’15*umgrupo composto por membros dos Conselhos de Estado, dos tribunais e dastres ordens militares. De forma a evitar eventuais conflitos entre os grandespela sua disposicao na procissao, a ‘prudencia de Sua Magestade’ fez com queeste grupo nao fosse abrangido pelas regras de procedencia do novoregimento.16 Com efeito, a simples presenca dos membros do aparatomilitar, administrativo e judicial do Reino cumpria o objectivo da procissaode exaltar a Coroa.

A entrada do Patriarca era preparada por um grupo de pajens e capeloesvestidos de acordo com o cerimonial Romano, e acompanhados peloscantores da Basılica Patriarcal em ‘consonancia Angelica’. Os cantoresforam seguidos por varios ‘acolytos Patriarcaes’ e subdiaconos, formandoum grupo que excedia ‘o numero de quarenta Ministros da Santa Igreja’ e quedeu lugar a um outro grupo de seis capelaes e dois ‘cubicullarios doEminentissimo Patriarca’ que envergavam ‘Mitras de pompa Ecclesiastica’que simbolizavam ‘o lugar, e dignidade do Eminentissimo Patriarca’.17

Imediamente a seguir aos capelaes e cubilcullarios vinham dois tenentesda Guarda que preparavam a entrada de um ‘Subdiacono mais moderno’, quetransportava a Cruz Patriarcal, e de dois capelaes que erguiam duas varasenfeitadas com cravos que, segundo Machado, representavam ‘o alto poder daIgreja, para absolver das Censuras, e reconciliar os separados da ComunhaoCatholica’.18 Ao contrario das procissoes celebradas na Austria ou emFranca, esta mensagem contra-reformista nao se destinava a Protestantes,mas a comunidade Crista-Nova. A repressao de praticas cripto-Judaicasera ainda uma das grandes preocupacoes das autoridades eclesiasticasPortuguesas, e a raison d’etre da Inquisicao e das suas cerimonias dereconciliacao e castigo*os auto-da-fe.19 Por exaltar o triunfo da verdadeirafe, a procissao de Corpus Christi oferecia a todos aqueles que judaizavam oucometiam praticas hereticas, uma oportunidade para se reconciliarem com aIgreja e regressarem pacificamente a comunidade.

Depois das promessas de reconciliacao, as ruas de Lisboa recebiam doisnovos grupos de clerigos composto por lentes da Universidade de Coimbra e

14 Machado, Historia critico-chronologica, 187.15 Machado, Historia critico-chronologica, 187.16 Machado, Historia critico-chronologica, 187.17 Machado, Historia critico-chronologica, 190.18 Machado, Historia critico-chronologica, 191.19 Francisco Bethencourt, Historia das Inquisicoes. Portugal, Espanha e Italia (Lisboa:

Cırculo de Leitores, 1994), 243�45.

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por varios ‘Deputados’ do Tribunal do Santo Ofıcio. Segundo Machado, estes‘Illustrissimos Conegos’ eram acompanhados por tres familiares.20 Apesar dareconciliacao prometida pela Cruza Patriarcal, a presenca de inquisidores e aparticipacao dos seus familiares relacionava a procissao com as celebracoesde pureza de sangue realizadas nos autos-de-fe, onde os familiares dosinquisidores conduziam os condenados ao cadafalso. As campanhas de purezade sangue, inspiradas nas praticas inquisitoriais Espanholas, pretendiamidentificar e impedir o acesso de Cristao-Novos a cargos relevantes naadministracao publica e na Igreja, e contribuıram para a promocao deatitudes hostis a ligacoes matrimoniais entre conversos e grandes. Estarassociado a um membro da Inquisicao nao so trazia prestıgio a uma casaaristocratica, como era uma prova visıvel de incorrupcao genealogica, algoque era celebrado e protegido pela Confraria da Nobreza*uma organizacaoelitista e restrita fundada pelos marqueses de Alegrete, Valenca e Angejacom o objectivo de impedir a entrada de Cristaos-Novos na nobreza.21

A presenca da Inquisicao tambem poderia ter outro significado. Duranteas Guerras da Restauracao, as relacoes entre a Coroa e o Santo Ofıcio forambastante turbulentas. Apesar da separacao do fim do domınio Habsburgo,Espanhola, a Inquisicao Portuguesa era dominada por clerigos que deviam asua posicao a Madrid e cuja lealdade a nova dinastia de Braganca era dubia.De facto, as campanhas inquisitoriais contra varios mercadores e banqueirosCristao-Novos que apoiaram a Restauracao, aumentaram as suspeitas de queo Santo Ofıcio pretendia o fracasso da causa independentista. Perante aaparente hostilidade dos inquisidores a nova ordem polıtica, D. Joao IVchegou considerar a dissolucao da Inquisicao. Em 1674, na sequencia devarias pressoes diplomaticas lideradas pelo Padre Antonio Vieira, Romasuspendeu a Inquisicao Portuguesa por um perıodo de sete anos. O Tribunaldo Santo Ofıcio seria reabilitado durante o reinado de D. Pedro II, apos umareorganizacao das suas estruturas hierarquicas. A partir de 1688, aInquisicao voltou a organizar regularmente autos-de-fe, e entre 1702 e1707 os autos foram organizados anualmente.22 Ao longo do reinado de D.Joao V, a presenca de membros da famılia real nas cerimonias publicas doSanto Ofıcio era frequente. O rei e a rainha, por exemplo, assistiram aosautos celebrados em Lisboa em 1728, 1729, 1731, 1746 e 1748.23

A presenca dos ‘Deputados do Santo Ofıcio’ poderia ser, assim,interpretada como uma demonstracao do regresso da Inquisicao a sua

20 Machado, Historia critico-chronologica, 192�93.21 Jaime Cortesao, Alexandre de Gusmao (Lisboa: Livros Horizonte, 1984), 94.22 Antonio Filipe Pimentel, Arquitectura e Poder: O Real Edifıcio de Mafra (Lisboa:

Livros Horizonte, 2001), 58.23 Ver o apendice de Jose Lourenco Domingues de Mendonca e Antonio Joaquim

Moreira, Historia dos Principais Actos e Procedimentos da Inquisicao em Portugal, introducaode Joao Palma-Ferreira (Lisboa: Cırculo de Leitores, 1980) para o numero total de autos-de-feorganizados em Lisboa durante o perıodo joanino.

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antiga posicao de influencia e proximidade do poder real. Todavia, apesar doaumento da actividade inquisitorial no reinado de D. Joao V, os inquisidoresperderam muita da sua autonomia. A nomeacao do Inquisidor-Geral, Cardealda Cunha, para o Conselho de Estado permitiu que D. Joao submetesse aactividade da Inquisicao aos interesses polıticos e pessoais do rei. Merveilleuxreparou na submissao do Santo Ofıcio mencionando que a accao dosinquisidores estava reduzida ao combate da ‘blasfemia, sodomia, poligamiae a correccao dos Judeus, nao podendo ser classificada como injusta por que oseu poder e limitado pelas leis do Estado’.24 Embora o rei controlasse osinquisidores, estes eram ainda temidos pelo seu zelo persecutorio contraCristao-Novos, hereges e crıticos da ordem polıtico-religiosa como odramaturgo Antonio Jose da Silva, que foi condenando a fogueira em 1739por judaizar.

O grupo do patriarca celebrava ‘a sua grandeza Ecclesiastica, enobilissimo nascimento’. Defronte do patriarca desfilavam ‘com grandepompa vestidos de Corte e tochas acezas’ os seus familiares*o Secretario deEstado Diogo de Mendoca de Corte-Real e os Senhores de Villaflor, Carapitoe Belmonte, para alem do Vedor da Rainha e Senhor das Alcacovasacompanhado pelo seu filho.25 Estes ‘Illustrissimos Cavalheiros’ eramescoltados por pajens, capelaes e acolitos que lancavam ‘aromaticos fumos’.Seguia-se, entao, o patriarca coberto por um toldo branco (‘de largura,e grandeza proporcionada a magestade do Eminentissimo Patriarca’)suportado por oito varas douradas carregadas por ‘Beneficiados assistentes’.Acompanhavam o patriarca varios diaconos assistentes que levavam ‘a caudado Eminentissimo Patriarca’ e envergavam mitras douradas. O cortejopatriarcal incluıa, ainda, cinco cantores ‘que moviao a devocao e ternuraaos Catholicos com as suas vozes, que prostrados adoravao ao Senhor, quelouvavao com as suas vozes’.26

Quando a procissao atingiu a porta da Basılica Patriarcal, onde a famıliareal esperava o patriarca, as varas do toldo foram entregues a um grupoformado pelo rei, os infantes, o conde de Ribeira Grande (que presidia oSenado de Lisboa) e os marqueses de Fronteira (Conselho de Estado), Minas(Conselho da Guerra), Niza (Almirante dos Mares da India) e Alegrete (Vedordos Contos e Condutor da Rainha). O grupo real envergava os habitos dasordens militares do Reino e era escoltado pela Guarda Real. D. Joaoenvergava um habito especial que respeitava a sua posicao enquantoGovernador e Mestre da Ordem de Cristo e Administrador da Ordem deAvis. O infante D. Francisco envergava outro habito especial enquanto Priordas ordens do Crato e S. Joao de Malta. Os restantes elementos estavamvestidos como oficiais das ordens de que eram membros.

24 Merveilleux, ‘Memorias’, 168.25 Machado, Historia critico-chronologica, 193.26 Machado, Historia critico-chronologica, 195.

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Ao segurar o toldo, D. Joao concretizava o momento mais importante daprocissao, reunindo os poderes fundamentais do Reino*divino, eclesiastico ereal. Da mesma forma que D. Joao celebrava os feitos militares e o mecenatocultural do seu reinado sendo retratado como um general envergando umaarmadura, como um homem de letras na companhia de Clio, ou como umimperador Romano rodeado por colunas jonicas, a presenca do rei naprocissao e a sua proximidade em relacao ao Santıssimo Sacramentotornavam ‘real’ a imagem do monarca como o Vigario de Deus, umintermediario entre Deus e o Reino. O sucesso de um ritual ou de umacerimonia, como referia Pierre Bourdieu, reside na capacidade dos actorespolıticos utilizarem sımbolos estereotipados que demonstrem que actuam nasua capacidade de delegados, e nao em nome proprio ou em nome da suaautoridade.27 Desta forma, a proximidade entre D. Joao e o Sacramentopossibilitava a legitimacao do poder do rei, apresentando-o como umobediente servo de Deus que tinha a especial obrigacao de proteger aordem social criada pela Divina Providencia. A iconografia do Corpus Christipossibilitava, assim, a difusao de uma mensagem polıtica assente na imagemde uma sociedade obediente e pacıfica, onde o rei obedecia a Deus, e anobreza, o clero e o povo obedeciam ao rei e a Deus. Com efeito, a Festado Corpo de Deus foi utilizada por D. Joao V para manipular o sistemasimbolico dos seus subditos. As restricoes e regras de procedencia impostaspelo novo regimento seguiam os princıpios ideologicos que sustentavam aordem social vigente e a concepcao absolutista do poder real desenvolvida porD. Joao, criando uma projeccao espacial das divisoes sociais do Portugalsetecentista.28

O Sacramento percorreu, entao, as imediacoes da Basılica Patriarcalatravessando um patio que ligava a Basılica ao Palacio Real. Como emVeneza, a proximidade entre as sedes do poder secular e temporal sugeriaque nao existia nenhuma divisao entre os dois.29 Esta ideia esteve por tras daconstrucao do Edifıcio Real de de Mafra, um Palacio-Convento situado numapequena aldeia a 40 km de Lisboa, onde D. Joao V, sem sucesso, pretendeuestabelecer a corte Portuguesa.

Quando o Sacramento abandonou o Terreiro do Paco, o duque de Cadavale os marqueses de Abrantes e Gouveia substituıram os grandes queinicialmente tinham segurado o toldo. Ate aos momentos finais da procissao,o toldo foi transportado por diferentes membros dos conselhos do Estado,Casa Real e Corte. O prestıgio conferido pela proximidade em relacao aoSacramento, fazia com que o toldo se tornasse num instrumento de

27 Pierre Bourdieu, Language and Symbolic Power (Cambridge: Polity Press, 1991),115.

28 Bourdieu, Language and Symbolic Power, 186.29 Asa Boholm, The Doge of Venice*The Symbolism of State Power in the Renaissance

(Gothenburg: Univ. of Gothenburg, Institute for Advanced Studies in Social Anthropology,1990), 261.

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reconhecimento publico da superioridade de um grupo muito restrito degrandes. Com efeito, D. Joao utilizou o Sacramento como uma especiede recompensa ou premio que era atribuıdo aqueles que estavam maisproximos do seu projecto polıtico. O toldo tambem podia ser utilizado comoum veıculo para o rei transmitir mensagens especıficas. A presenca demembros das Cortes, por exemplo, era um sinal de que apesar de D. Joaonunca ter convocado Cortes, a Coroa continuava a respeitar o principal orgaolegislativo do Reino*uma mensagem que pretendia reduzir o receio de que orei pretendia estabelecer uma tirania financiada pelo ouro Brasileiro.

A exclusao imposta pelo regimento a participacao de mulheres naprocissao fez com que Machado omitisse a rainha, bem como os outroselementos femininos da famılia real e da aristocracia. Embora D. Joao Vtenha sido considerado por historiadores como Ana Vicente e AntonioPimentel como um rei que tentou melhorar a posicao das mulheres nacorte, a exclusao de qualquer tipo de participacao feminina na procissao eraum sinal de que o rei respeitava as regras tradicionais que regiam os modelosde convivialidade entre homens e mulheres. No entanto, D. Joao provocou aindignacao de alguns sectores aristocraticos ao abrir as audiencias regiasa mulheres de todas as condicoes sociais e ao promover um modelo deconvivialidade heterossexual na corte.

As regras impostas pelo regimento seguiam as praticas de reclusaofeminina do Portugal moderno descritas pelos varios viajantes estrangeirosdos seculos XVII e XVIII que ridiculizavam o isolamento a que as mulheresPortuguesas eram vetadas. Alguns do relatos feitos por estrangeirosmencionavam que as mulheres eram apenas autorizadas pelos paise maridos a saırem de casa para visitarem Igrejas ou participar emcerimonias religiosas.30 Estes momentos de liberdade eram, no entanto,mais raros nas famılias mais abastadas, que possuıam, muitas vezes, capelasprivadas.31 Como referiu Charles Boxer, a subordinacao das mulheresIbericas inspirava-se numa certa imagem da Virgem Maria que advogavaum ideal de castidade e discricao que devia ser seguido por todas asmulheres.32 A reclusao dos elementos femininos de uma famılia era, assim,considerada como o meio mais eficaz para atingir este ideal e umademonstracao de pureza moral que honrava uma famılia verdadeiramenteCatolica. Desta forma, durante a procissao, as mulheres deveriam observar o

30 Francisco Manuel de Melo, por exemplo, recomendava aos leitores da sua Carta deGuia de Casados, que foi traduzida para Ingles por John Stevens com o tıtulo The Governmentof a Wife (1697), para controlarem as suas mulheres e filhas, e evitarem momentos deconvivialidade com homens que nao fossem conhecidos pela famılia.

31 Ana Vicente, As Mulheres Portuguesas vistas por viajantes estrangeiros: seculosXVII� XIX� XX (Lisboa: Gotica, 2001), 42.

32 Charles Boxer, A Mulher na Expansao Ultramarina Iberica (Lisboa: LivrosHorizonte, 1977), 124�25, 135.

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desfile com discricao e entender a Festa do Corpo de Deus como um momentode meditacao.

A famılia real oferecia, assim, um exemplo de bom comportamentodurante a Festa do Corpo de Deus. Enquanto o rei participava na devocaopublica do Santıssimo Sacramento, a rainha observava a cerimonia dasjanelas do palacio do Secretario de Estado. Segundo o autor da Description,D. Mariana de Austria apesar de ausente do cortejo real, tinha da janela dopalacio de D. Diogo Mendoca de Corte-Real uma visao soberba de toda aprocissao, como estivesse no centro da procissao.33

D. Mariana agia de acordo com a descricao que era esperada de umamulher devota, observando a procissao com o recato indicado pelo regimento.Mas para a maioria das Lisboetas, a Festa do Corpo de Deus estava longe deser um momento de introspeccao religiosa. Segundo Merveilleux, a procissaoera um dia em que era permitido observar uma mulher sem restricoes oumedo. Para muitas raparigas adolescentes, a procissao era uma oportunidadepara encontrar ou seduzir potenciais maridos e amantes. Merveilleux queconsiderava que a devocao da populacao na Festa do Corpo de Deus nao eracredıvel, referiu que muitas mulheres procuravam atrair os olhares damultidao com vestidos ostentosos, ou surgindo nas janelas sem veus echapeus.34 Numa alusao aos amores freiraticos, Merveilleux tambemmencionou que os frades mais jovens eram presenteados com floresatiradas por raparigas. O Suico tera mesmo assistido a um episodio em queum frade foi ferido por uma ‘cama cheia de petalas de rosa’.35

As razoes da ostentacao

Ao longo da Historia critico-chronologica, Machado faz uma descricaodetalhada da forma como as ruas e os edifıcios foram decorados. O nıvel dedetalhe e a linguagem utilizada revelam que Machado pretendia nao soexaltar a nova procissao Joanina, mas impressionar os seus leitores. Odestaque concedido aos trabalhos decorativos seguia a preocupacao de D.Joao V em criar um cenario que transmitisse a imagem de esplendor real edivino sugerida pelas regras do novo regimento. Para assegurar esteobjectivo, a Coroa nomeou Johann Friedrich Ludovice e Claude Lapradepara dirigirem as decoracoes. Para alem da direccao dos dois arquitectosreais, D. Joao V encomendou um arco triunfal a Fillipo Juvarra*que seencontrava em Lisboa em 1719 a estudar a construcao de um novo palacioreal*e Vieira Lusitano, que regressara da Accademia di San Luca em Roma,elaborou um painel dedicado ao triunfo do Sacramento.

33 Anonimo, ‘Descricao da Cidade de Lisboa’, em O Portugal de D. Joao V Visto por TresForasteiros, ed. Castelo Branco Chaves (Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 1983), 37�128 (p. 63).

34 Merveilleux, ‘Memorias’, 223.35 Merveilleux, ‘Memorias’, 223�24.

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As decoracoes eram especialmente sumptuosas nos dois centros do podersecular e temporal*a Basılica Patriarcal e o Paco Real. Enquanto palco damissa de Corpus Christi, a capela-mor da Basılica foi cuidadosamentedecorada ‘nao havendo lugar em que o ouro, ou a seda nao estivesseornando aquella Magnifica Capella’. Os paineis dedicados a vida de NossaSenhora foram ornados com ‘cortinas douradas’. No altar, onde ‘se unia o ricoao magestoso’, foram colocados, ‘a maneira de Roma’, seis casticais de prataque iluminavam um Cristo crucificado numa cruz de prata, enquanto ofrontal foi coberto de ‘ouro lavrado em seda branca’.36 A capela consagrada aoSantıssimo Sacramento foi concebida como ‘hum globo de luzes, e humretrato do Empyreo’, tendo sido decorada com um trono dourado e casticaisde prata que iluminavam o Sacramento.37 As decoracoes incluıam, ainda,estatuas de santos feitas em prata, imagens do Sacramento e frases retiradasda Bıblia.

A Tribuna Real da Basılica foi coberta com ‘magestosas cortinas dedamasco de ouro carmesim’, enquanto a galeria que ligava o Palacio aTribuna Real foi decorada com tapecarias que ilustravam a vida deAlexandre Magno38*uma alusao a presenca Portuguesa na India, que eraapresentada desde o reino de D. Manuel I como uma continuacao dacampanha de Alexandre. A presenca de tapecarias relacionadas como afigura historica e heroica de Alexandre podia tambem estar relacionadas comas vitorias Portuguesas de 1713 sobre o rei do Canara.39

A fachada da Basılica foi adornada com paineis sobre temas como ostriunfos da Fe e do Sacramento, as accoes de Nossa Senhora, Salomao, osApostolos e ‘outras Historias sagradas, e profanas, porem todas fabricadaspelos melhores Mestres da Europa’.40 A referencia a coleccao real nao foi feitapor acaso. Os quintos do ouro Brasileiro permitiram a D. Joao criar uma dasmaiores bibliotecas e coleccoes de arte da Europa setecentista. O reiPortugues promoveu, em 1712, a criacao de uma academia artıstica emRoma destinada a estudantes Portugueses, com o objectivo de incentivar aemergencia de uma cena artıstica nacional genuına.

A Festa do Corpo de Deus oferecia, assim, uma oportunidade para exibir opatrimonio artıstico da Coroa Portuguesa e cimentar a reputacao de D. Joaoenquanto mecenas. O ımpeto coleccionista de D. Joao V atingiria um augeentre 1727 e 1728, o ano em que o Palacio Real recebeu uma coleccao de 150gravuras organizada pelos irmaos Jean e Pierre-Jean Marinette. Osembaixadores Portugueses em Haia e Londres, D. Luıs da Cunha eAntonio Castelo Branco, adquiriram varias obras nos mercados de arte

36 Machado, Historia critico-chronologica, 148.37 Machado, Historia critico-chronologica, 150.38 Machado, Historia critico-chronologica, 158.39 Mario Domingues, D. Joao V. O Homem e a Sua Epoca (Lisboa: Prefacio, 2006),

114�15.40 Machado, Historia critico-chronologica, 152.

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locais. D. Joao era regularmente informado por D. Luıs da Cunha dasactividades de outros monarcas coleccionistas como Cristina da Suecia,Eugenio de Saboia e o Grao-Duque da Toscania.41 Em 1727, D. Luıs daCunha vendeu a D. Joao V a sua coleccao privada, que incluıa obras deRembradnt, Rubens e Van Dyck. Uma parte consideravel das coleccoes reaisdesapareceu com o terramoto de 1755, ou foi transferida para o Riode Janeiro durante a fuga da famılia real para o Brasil em 1807. Paraalem das obras de arte da coleccao real e patriarcal, Machado menciona queo atrio da Basılica foi coberto com 250 tapecarias, a maioria em estilo gotico,‘argumento famoso da sua antiguidade’.42 O patio foi decorado por umatarja de seda representando a vida de S. Joao Baptista, o santo homonimodo rei.43

No Terreiro do Paco foram erguidas ‘sessenta e huma columnas, equatorze pilares quadrados, quatro majestosos frontipicios, cincoenta e duasmedalhas, e tantas pyramides’.44 Esta ‘maquina’ era completada por quatroporticos em estilo Jonico, uma opcao que Machado considerava ‘muito propriapara os ornamentos, com que se revestio para o dia da solemnidade’. Osplintos das colunas foram embelezados com ouro, e os pilares ‘mostravao serde marmore mesclado de roxo, azulado e branco’.45 Os espacos entre ascolunas foram ocupados por 52 medalhas douradas com imagens de Cristo,Nossa Senhora e do ‘Santissimo Sacramento collocado sobre hum Caliz’numa das faces, e as armas do Patriarca e do Senado de Lisboa na outra. Asmedalhas eram suportadas por cabos de ferro camuflados por tafetascarmesins. Machado revela, ainda, que tres mil covados de tafeta foramgastos nas decoracoes do terreiro, ‘nao se reparando no dispendio, mas so namagnificencia’.46

As ruas atravessadas pela procissao foram cobertas com toldos ‘ornadosde ouro, e seda’ de onde pendiao medalhas douradas com imagens doSacramento e as armas do Pratriarca e do Senado. O chao foi coberto comareia e flores cujas ‘as cores lisongeavao os olhos, e com o cheiro o olfacto’*uma util imitacao das decoracoes Romanas que possibilitava a reducao dosodores desagradaveis de uma cidade que nao possuıa um sistema de esgotosadequado, e que se aproximava da imagem da ‘bela estrebaria’ descrita porCavaleiro de Oliveira e Henry Fielding. As janelas das casas com vista para odesfile foram cobertas com ‘preciosas cortinas’ adornadas com franjas de ouroe prata, e as paredes cobertas por telas, los e damascos que chegavam ‘aoslugares mais altos das moradas’.47 As 149 colunas de marmore erguidas na

41 Maria Beatriz Nizza da Silva, D. Joao V (Lisboa: Cırculo de Leitores, 2006), 278.42 Nizza da Silva, D. Joao V, 152.43 Machado, Historia critico-chronologica, 152.44 Machado, Historia critico-chronologica, 157.45 Machado, Historia critico-chronologica, 157.46 Machado, Historia critico-chronologica, 158�59.47 Machado, Historia critico-chronologica, 164�65.

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Rua Nova confirmaram, segundo Machado, que ‘a vaidade ilustre a Cidade deLisboa, excedeo no capricho, e no conceito a toda admiracao’. Com efeito, aHistoria Critico-Chronologica refere que todas as colunas foram cobertas porsedas, los e telas adornados com elementos de ouro e prata. Na vespera daprocissao, os Ourives do Ouro, ‘que sempre fazem brio de servirem ao seuPrincipe’, organizaram na Rua Nova uma luminaria descrita como ‘humaesfera de estrela, e hum globo de luzes’. As ruas das principais igrejas deLisboa Ocidental foram tambem decoradas com ‘preciosas alfayas’, bem comooutros edificios relevantes como os palacios do patriarca e do tesoureiro doHospital de Todos os Santos.48

As decoracoes eram entendidas como um acto obrigatorio de purificacaopara preparar Lisboa para celebrar o Santıssimo Sacramento. A presenca deelementos sagrados na via publica funcionava como uma extensao do altarda Basilica Patriarcal. Como nas procissoes Venezianas, existia a intencao detransformar as ruas de Lisboa em via sacrae, em caminhos sacralizados quecriavam um espaco unico que so deveria ser ocupado por um numero restritoe selecto de pessoas.49 O esplendor e riqueza das decoracoes era tambementendido como uma forma de exaltacao da fe e um incentivo a devocao doCorpo de Deus.50

A sumptuosidade das cerimonias religiosas era tambem um acto deretribuicao pela proteccao concedida por Deus a Portugal. As concepcoesprovidencialistas que dominavam o pensamento polıtico Portugues no iniciodo seculo XVIII apresentavam a evolucao polıtica, economica e social doReino como uma consequencia das accoes da Divina Providencia. Seguindoesta perspectiva, a descoberta de ouro no Brasil seria uma recompensa porPortugal ser um ‘emporio da fe e da religiao’, como escreveu o Brasileiro FreiApolinario da Conceicao.51 Para aumentar a proteccao divina, o Reinodeveria homenagear Deus de acordo com os benefıcios recebidos. Amelhoria do culto divino era, assim, uma questao de Estado relacionadacom o bem-estar espiritual e material dos vassalos da Coroa Portuguesa. Porexemplo, a concessao ao Patriarcado de uma pensao de 200,000 cruzados foijustificada por D. Joao V como absolutamente necessaria para agradecer,com uma percentagem dos quintos do ouro extraıdo das minas Brasileiras, ofacto da Divina Providencia ter aumentado a fortuna da Coroa.52 Estes actosde generosidade real ofereciam as demonstracoes de esplendor da Coroa e daIgreja uma dimensao moral,53 favorecendo, assim, o desenvolvimento de uma

48 Machado, Historia critico-chronologica, 165�66.49 Muir, Civic Ritual in Renaissance Venice, 210.50 Anthony Woodward, Rome: Time and Eternity (Upton upon Severn: Images, 1995),

121.51 Citado por A. J. R. Russell-Wood, em From Colony to Nation: Essays on the

Independence of Brazil (Baltimore: Johns Hopkins U. P., 1975), 186.52 Citado por Luıs Vasco Oliveira, em O Significado do Luxo no Reinado de D. Joao V.

Alguns Aspectos (Braga: Livraria Cruz, 1974), 7.

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justificacao teologica para o projecto absolutista do quarto monarca daDinastia de Braganca.

Consideracoes finais

Entre 1719 e 1755, o ano do Grande Terramoto de Lisboa, a procissao doCorpo de Deus foi organizada com a sua ‘usual magnificencia’, comoinformava um manuscrito anonimo de 1730. A pompa visual dascerimonias joaninas pretendia seduzir a populacao atraves da construcaode um cenario que demonstrava a autoridade, poder e gloria alcancados pelorei. Esta dimensao polıtica e pedagogica das cerimonias barrocas esteve portras da decisao de D. Joao de interferir na Festa do Corpo de Deus. Asumptuosidade da procissao joanina permitiu a construcao da imagem de D.Joao V como o ‘Rei Magnanimo’, para alem de ter contribuıdo para umasacralizacao do poder real.54 Com efeito, o regimento de 1717 foi elaboradopara aumentar a presenca da Coroa na vida religiosa do Reino. Cerimoniascomo a Festa do Corpo de Deus ofereciam uma oportunidade para Coroaorganizar uma exibicao permanente do seu poder, com a vantagem deassociar o sistema polıtico do absolutismo joanino a uma ordem moral ouespiritual aprovada por Deus. Atraves da promocao de uma atmosferafestiva, as dimensoes visuais e auditivas da procissao foram utilizadaspara manipular a audiencia, criando um sentimento de unidade, ou aimagem de uma sociedade que partilhava as mesmas crencas. O CorpusChristi Lisboeta, como outras festas organizadas pela Coroa, pretendia,assim, educar a populacao, integrando os seus subditos num sistema devalores que respeitava a ordem social e polıtica do absolutismo joanino.

53 Angela Barreto Xavier e Antonio Manuel Hespanha, ‘As Redes Clientelares’, em, OAntigo Regime, ed. Antonio Manuel Hespanha (Lisboa: Cırculo de Leitores, 1993), 381�93(pp. 382�83).

54 Rui Bebiano, Dom Joao V, poder e espectaculo (Aveiro: Estante, 1987).

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