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XIII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis XIII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 27 de novembro a 01 de dezembro de 2017 O VERNACULAR COMO TRADIÇÃO UM ESTUDO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA LETRA NO CONTEXTO URBANO Alice Neumann Uniritter [email protected] Dr. Marlon Uliana Calza Doutor em Comunicação e Informação [email protected] Resumo: O presente artigo traz a temática do design vernacular como tradição e uma análise tipográfica que tem a cidade e os centros urbanos contemporâneos como pano de fundo. Buscou-se, dessa maneira, através de uma pesquisa bibliográfica, identificar a relação da tipografia em um contexto de desenvolvimento da comunicação como um todo e da linguagem escrita e do alfabeto na vida cotidiana da sociedade. Observou-se que, ao analisar a cidade como mídia, é preciso levar em consideração todos os elementos dos processos de uma comunicação no âmbito visual. Observou-se também que os novos meios de comunicação foram responsaveis por revolucionar não só a maneira como nos relacionamos com o espaço e com o tempo mas também com a maneira como passamos a desenhar as letras que comunicam tudo que que nos rodeiam. E, por fim, observamos que países desenvolvidos se relacionam de maneira diferente com o design de manifestação vernacular por possuírem maior e mais longa tradição tipográfica. Dessa maneira, em países menos desenvolvidos como o Brasil, uma tradição tipográfica acaba por nascer junto com um resgate por uma identidade local. 1 Introdução O presente estudo foi elaborado sob orientação do professor Dr. Marlon Calza durante a realização da disciplina Moda, Comunicação e Inovação, no curso de Mestrado em Design na Universidade Uniritter, no ano de 2017. Através de uma pesquisa bibliográfica multidisciplinar, o ponto de partida da pesquisa foi tentar identificar o momento e o contexto histórico no qual as letras, a partir de um olhar do design gráfico e da tipografia, deixaram as páginas impressas do livros e periódicos e ganharam as ruas. Nesse momento, a tipografia deixa para trás uma tradição um tanto conservadora no que diz respeito ao desenho das letras, transformando-as em múltiplas possibilidades. Para tanto, foi necessário coletar informações acerca da história da comunicação, das mídias e das cidades como as reconhecemos hoje: não somente como centros urbanos mas também como organismos vivos, flexíveis, mutáveis, e que acabam por refletir a nossa própria identidade, ou seja, a maneira como nos reconhecemos no ambiente em que estamos inseridos. Se a tipografia é a cara da linguagem, como afirma Ellen Lupton na abertura de seu livro Pensar com Tipos (2006), e nossos centros urbanos estão superlotados de informações visuais a serem decodificadas, como as letras, nesse ambiente, podem influenciar a maneira como percebemos o meio e a nós mesmos?

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    XIII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 27 de novembro a 01 de dezembro de 2017

    O  VERNACULAR  COMO  TRADIÇÃO  -‐  UM  ESTUDO  SOBRE  O  DESENVOLVIMENTO    

    DA  LETRA  NO  CONTEXTO  URBANO  

    Alice Neumann Uniritter [email protected] Dr. Marlon Uliana Calza Doutor em Comunicação e Informação [email protected] Resumo: O presente artigo traz a temática do design vernacular como tradição e uma análise tipográfica que tem a cidade e os centros urbanos contemporâneos como pano de fundo. Buscou-se, dessa maneira, através de uma pesquisa bibliográfica, identificar a relação da tipografia em um contexto de desenvolvimento da comunicação como um todo e da linguagem escrita e do alfabeto na vida cotidiana da sociedade. Observou-se que, ao analisar a cidade como mídia, é preciso levar em consideração todos os elementos dos processos de uma comunicação no âmbito visual. Observou-se também que os novos meios de comunicação foram responsaveis por revolucionar não só a maneira como nos relacionamos com o espaço e com o tempo mas também com a maneira como passamos a desenhar as letras que comunicam tudo que que nos rodeiam. E, por fim, observamos que países desenvolvidos se relacionam de maneira diferente com o design de manifestação vernacular por possuírem maior e mais longa tradição tipográfica. Dessa maneira, em países menos desenvolvidos como o Brasil, uma tradição tipográfica acaba por nascer junto com um resgate por uma identidade local.

    1 Introdução

    O presente estudo foi elaborado sob orientação do professor Dr. Marlon Calza durante a realização da disciplina Moda, Comunicação e Inovação, no curso de Mestrado em Design na Universidade Uniritter, no ano de 2017. Através de uma pesquisa bibliográfica multidisciplinar, o ponto de partida da pesquisa foi tentar identificar o momento e o contexto histórico no qual as letras, a partir de um olhar do design gráfico e da tipografia, deixaram as páginas impressas do livros e periódicos e ganharam as ruas. Nesse momento, a tipografia deixa para trás uma tradição um tanto conservadora no que diz respeito ao desenho das letras, transformando-as em múltiplas possibilidades.

    Para tanto, foi necessário coletar informações acerca da história da comunicação, das mídias e das cidades como as reconhecemos hoje: não somente como centros urbanos mas também como organismos vivos, flexíveis, mutáveis, e que acabam por refletir a nossa própria identidade, ou seja, a maneira como nos reconhecemos no ambiente em que estamos inseridos. Se a tipografia é a cara da linguagem, como afirma Ellen Lupton na abertura de seu livro Pensar com Tipos (2006), e nossos centros urbanos estão superlotados de informações visuais a serem decodificadas, como as letras, nesse ambiente, podem influenciar a maneira como percebemos o meio e a nós mesmos?

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    Dividida em três capítulos, a pesquisa identifica, primeiro, o campo do estudo: a cidade como mídia, geradora de significados e de identidade. No segundo momento, analisamos a atuação das letras dentro desse contexto urbano e como a linguagem escrita se relaciona de maneira direta com o desenvolvimento da sociedade. Em seguida, trazemos a reflexão de Priscila Farias (2011) sobre o vernacular e a tradição tipográfica em países subdesenvolvidos, como o Brasil, e a importância de buscar traços locais em um mundo globalizado. 2 A Cidade como Mídia

    Foi lentamente que a comunicação se institucionalizou nas sociedades tradicionais. A comunicação interpessoal e a comunicação pública atuavam de maneira paralela em uma transmissão das normas e dos costumes. Essa institucionalização da comunicação trouxe categorias profissionais que acabaram por assumir uma função como que de vigilantes de uma memória coletiva ao transmitirem certos tipos de mensagens: como bardos, feiticeiros, chefes de tribos, mercadores, administradores, escribas, bailarinos e etc. Quanto maior o nível de complexidade daquela sociedade que se desenvolvia, mais organizada e institucionalizada se tornava a sua comunicação.

    A vida nos novos centros urbanos foi se estabelecendo a partir do crescimento dos burgos ao longo dos séculos XII e XIII, liberando os homens pouco a pouco do campo e do feudalismo. Existia riqueza na vida material e troca entre diferentes culturas. O surgimento das cidades está relacionado com uma mudança de percepção muito profunda, como coloca Juliana Smith (2011), o início de uma consciência de individualidade que deu origem não somente ao renascimento e posteriormente, ao humanismo, mas também ao consumismo. Esse momento histórico, já entre os séculos XIV e XV, também é apontado como a semente do regime capitalista.

    É possível relacionar a idade moderna da comunicação com o advento da imprensa, invenção do século XV. Essa constatação se encontra no livro Um Mundo Muitas Vozes (Unesco, 1983) no qual os autores também atentam para o fato de que, apesar de ser uma constatação legítima, é preciso levar em consideração que há cerca de 25 séculos o ser humano já gravava em madeira e em pedra. Os primeiros livros impressos, publicados por Gutemberg a partir de 1450 (Fonseca, 2008), e a popularização desse novo formato fomentaram a multiplicação dos conhecimentos e das ideias, mas a informação de massas só ocorreu mais tarde.

    (...) tanto os inconvenientes quanto as vantagens da comunicação moderna tem suas raízes num passado remoto, mas vivo ainda hoje entre nós, trata-se dos meios de comunicação ainda utilizados nas diferentes partes do mundo ou então do patrimônio social, que é ao mesmo tempo o resultado e a causa da evolução da comunicação. (UNESCO, 1980, p. 8)

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    No século XIX, com a Revolução Industrial passamos a redefinir conceitos de tempo e distância com ferrovias, barcos a vapor e novos meios de comunicação: o telégrafo, o rádio, a fotografia e o cinema. Dentro dessa perspectiva, a “Revolução Industrial” e a “Revolução da Comunicação” podem ser vistas como parte de um mesmo processo (Brigs e Burke, 2002). A inserção de novos meios reconfigura completamente as formas de organização da comunicação em sociedade, tanto na esfera pública quanto da privada.

    Uma poética dos meios nos ajuda a definir, dessa maneira, a cidade como meio de comunicação. A se fazer uma breve analise da frase o meio é a mensagem, do sociólogo canadense Marshall McLuhan (1964), podemos compreender, hoje, como é clara a existência de influência do suporte na própria mensagem, fato até ignorado ignorado pelos pesquisadores da comunicação. Dentro dessa relação meio-código-mensagem é impossível fazer uma desassociação de qualquer um dos três elementos, pois qualquer alteração em uma das partes provocaria mudança de sentido em todo o processo de comunicação.

    Podemos afirmar, dessa maneira, que a mensagem não está nem fora do meio nem passa por ou é conduzida por um canal, ela é, de fato, parte inseparável do meio e do código:

    Se de um lado, como dizíamos antes, entre cada um dos elementos ou fatores (emissor, receptor, código, meio, mensagem, contexto) do processo comunicacional há uma ação de mediação ou semiose, cujo sentido só é passível de ser conhecido (e reconhecido) na concretude mesma da chamada mensagem, de outro, há também uma ação de mediação (ou semiose) entre meio, código e mensagem. (CARAMELLA, 2009, p. 26)

    Segundo Bruno Munari (2001), a comunicação visual se dá praticamente com tudo que o que os nossos olhos podem ver. Porém, ele afirma, todas as imagens tem um valor diferente segundo o contexto em que estão inseridas. “O receptor das mensagens visuais está imerso em um ambiente cheio de perturbações que podem alterar ou até mesmo anular o processo de comunicação.” Munari não só reforça, de certa maneira, a teoria de McLuhan, colocando o ambiente (meio) como um dos agentes transformadores, como também pode começar a levantar uma reflexão sobre a responsabilidade de quem produz essas mensagens, de maneira intencional ou não, de levar essas perturbações em consideração.

    Ao se fazer uma relação da definição de Munari diretamente com o cenário urbano, é possível considerar, por exemplo, um outdoor em meio a muitos outros, tanto como mensagem em si quanto como uma de suas interferências. O resultado não depende só do contexto das mediações da mensagem, mas também da intenção e da atenção (ou falta de) do receptor. Com esse único exemplo podemos perceber a complexidade com que os processos de comunicação visual acontecem no contexto urbano, mesmo em situações

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    controladas, tal qual um anúncio (produzido por um profissional) em um espaço público (controlado).

    Chico Homem de Mello, em um ensaio de 2009 chamado O novo, o risco, o futuro, coloca o papel do designer como o de quem da materialidade sígnica a esses meios, como um papel chave nos processos de interlocução. Mello alerta para a armadilha de um design que se considera onipotente ao pensar-se como uma linguagem própria, ou seja, autossuficiente. É nas outras linguagens, afirma, que está a potencialidade do novo.

    Para João Batista Ciaco (2009), “a identidade do homem contemporâneo mostra-se indissociável da cidade. Os processos de elaboração de sentido passam por ou estão nos processos urbanos.” Compreendemos, então, ao entrar na questão da identidade, que ela não diz respeito a uma instância imobilizada. Algo deve haver, em diferentes níveis, de condições que permanecem e condições em mudança. Identidade requer, de alguma forma, um mínimo de permanência (ao menos permanecer na mudança), bem como o novo não se apresenta e não tem sentido se não for revelado, se não destaca-se, contra um fundo de permanência. Podemos pensar, dessa maneira, em mudança como produtora de identidade.

    Ao trazer como exemplo a Rua Oscar Freire colocamos a moda como um desses agentes de mudança. Um dos endereços mais cobiçados do Brasil, está sempre se reconstruindo conforme as marcas e as lojas que ali habitam. Ao longo de sua história, já mudou de nome três vezes e hoje vive, como a rua da moda, em constante substituição em busca pelo novo. As fachadas mudam mas as características das construções passadas permanecem, fazendo emergir um passado que precisa existir para dar vida ao curso do presente, como afirma Ciaco.

    Podemos dizer, de forma geral, que as cidades servem como um palco no qual inúmeras mensagens disputam nossa atenção e acabam, de alguma maneira, por definir nossa identidade em algum lugar entre meio, código e mensagem. Diversas vozes atuam ao mesmo tempo nesse palco e através da comunicação visual elas se materializam. As letras, parte essencial dessa comunicação, vestem-se em um jogo de simbolismos aparentemente inofensivo, mas no qual é possível perceber inúmeras camadas de significado. 3 A Letra na Cidade

    A tipografia e a cidade estão associadas em suas histórias, desenvolvimentos e transformações ao longo do tempo. Não foi possível identificar, como proposto em um primeiro momento para este estudo, o momento exato em que as letras ganharam as ruas, pois no desenvolvimento da linguagem escrita e das sociedades organizadas, uma sempre influenciou a outra.

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    Há mais de quatro mil anos, os mesopotâmios já utilizavam inscrições para registrar autoria ou propriedade de construções. A forma de escrita cuneiforme é originária da suméria e foi adotada, na época, por mais de 15 línguas diferentes (Farias, 2009). Junto com os hieróglifos egípcios, são as formas de escrita mais antigas que conhecemos. Podemos dizer, portanto, que é nesse contexto das civilizações formadas entre os rios Tigre e Eufrates, por volta de 3000 a.C., que encontramos as primeiras informações escritas na rua.

    A influência das inscrições das civilizações grega e romana, a partir de 500 a.C., pode ser percebida até os dias de hoje, pois são a origem do que chamamos de letras maiúsculas. Um dos exemplos mais icônicos dessa manifestação são as letras inscritas na Coluna de Trajano, conhecidas como modelo de referência do estilo pela beleza dos seus traços. A Coluna é um marco comemorativo do imperador Trajano, se encontra em Roma e foi entregue no ano de 114. (Costa, 2008)

    Os grafites, que fazem parte da história da cidade de Pompéia, mais ou menos nessa mesma época, só foram descobertos, junto com a própria cidade, no século XVIII. Coberta por um vulcão no ano de 79, a cidade ficou submersa e desaparecida por mais de 1600 anos. A medida que as camadas de cinzas vulcânicas foram desaparecendo, o que se encontrou foram muros cobertos de letras. Segundo Joan Costa (2008), os muros eram testemunhas das preocupações cotidianas: “denúncias, maldições, além de proclamações eleitorais, politica e amor, e, a menudo, expressões jocosas, era assim a matéria prima de uma escritura popular todavia não cursiva.” As letras encontradas se pareciam com as formas formais tradicionais das inscrições capitulares oficiais, mas traziam uma velocidade e uma despreocupação na formalização do traço que, no futuro, chegariam a gerar as formas de uma escritura cursiva.

    Boa parte das letras que utilizamos até hoje na composição de textos tiveram origem nos modelos manuscritos praticados na Europa medieval e renascentista. “A configuração dos textos impressos com tipos móveis, por sua vez, influenciou a forma e a composição de escritas expostas em lugares públicos, e vice-versa” (Farias, 2011). Ou seja, com o passar dos anos, a partir da repetição de formas promovida pelas técnicas tipográficas e do acúmulo de escritas no espaço urbano, padrões foram sendo configurados.

    Na descrição das configurações desses padrões podemos perceber a grande influência do sistema de fabricação e distribuição de tipos móveis no estabelecimento dos gostos nacionais, e consequentemente, na identidade tipográfica de determinados países. (FARIAS, 2011, p. 164)

    Como vimos anteriormente, a “Revolução Industrial” também revolucionou a maneira como nos comunicamos, dando início a uma nova era. No que diz respeito ao campo da tipografia, o final do século XIX foi marcado por uma grande variedade de novas fontes disponíveis no mercado. As novas formas tipográficas deveriam atender às novas

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    necessidades de comunicação. Nesse momento, com uma nova sociedade rapidamente transformada em urbana e industrializada, as letras precisavam atender, tanto em forma como em técnica de reprodução, o que conhecemos hoje como comunicação de massa. “Tipografias maiores, mais expressivas e com maior impacto. As letras deveriam funcionar como formas visuais com valor plástico e a tipografia passou a competir com a litografia.” (Costa, 2008). Ellen Lupton (2006) descreve essa fase desde um ponto de vista estrutural:

    Fontes grandes e pesadas foram feitas com a distorção dos elementos anatômicos das letras clássicas. Fontes com altura, largura e profundidade assombrosas apareceram: expandidas, contraídas, sombreadas, vazadas, engordadas, lapidadas e floreadas. As serifas deixaram de ser acabamento para tornarem-se estruturas independentes e a tensão vertical das letras tradicionais enveredou por novos caminhos. (LUPTON, 2006, p.21)

    Os tipos de madeira apareceram nessa época, juntamente com o desenvolvimento do pantógrafo, resultaram na flexibilização dos tipos em grandes formatos. O peso e o custo da madeira eram muito menores para atender a necessidade de grandes formatos, podendo ser produzidos com até 2 metros de altura. Essa mecanização terminou por afastar completamente o alfabeto da tradição caligráfica. Os avanços tecnológicos e as prensas a vapor reduziram drasticamente, o tempo necessário para se produzir uma nova fonte completa, permitindo uma ampliação da gama de tipografias existentes. As primeiras letras sem serifas aparecem, somente então, no contexto dessas letras de grande formato, utilizadas em cartazes de rua.

    Pela metade do século XIX, o processo litográfico já alcançava a impressionante velocidade de dez mil folhas impressas por hora (Ambrose-Harris, 2007), viabilizando economicamente a produção em série e a distribuição em massa dessas artes gráficas. Os primeiros pôsters, impressos em técnicas tipográficas, praticamente não traziam ilustrações. A litografia surgiu em um momento em que a estética dos artefatos produzidos começou a ser questionada, e foi importante justamente por abranger arte e indústria. Os cartazes invadiram as ruas das grandes metrópoles em todos os tipos de cores e formatos, consagrando-se como mídia e ganhando muitas vezes status de obra de arte. (Cirker, 1990)

    Ao andarmos na rua, somos todos, invariavelmente, consumidores de tipografia. As letras apresentam um papel vital em nossas vidas todos os dias. “Nos ajudam a navegar pela cidades, a fazer escolhas, a fazer compras, a nos manter seguros e, as vezes, até podem jogar alguns truques.” (Hindmann, 2015). Sobre a variedade das letras que se apresentam, Peter Dawson diz:

    Enquanto a sociedade moderna e a tecnologia reinventam e expandem a forma como nos comunicamos, somos cada vez mais confrontados com uma vasta gama de mensagens, seja elas impressas, on-line ou as que nos rodeiam no ambiente construído. As palavras que queremos e precisamos ler (e, ocasionalmente, não desejamos ler) estão organizadas em uma variedade de tipos tão diferentes, que o

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    interesse e o entusiasmo por tipografia nunca esteve tão grande. (DAWSON, 2013, p.10)

    O número de fontes disponíveis hoje, considerando todos os estilos e categorias, passa seguramente a quantidade de cento e cinquenta mil exemplares ou mais, e contanto. De fato, navegar nesse oceano de formas de letras, separar e identificar uma em relação a outra, pode ser uma tarefa exaustiva. Sarah Hindmann (2015) afirma que, de maneira local, essa combinação de formas, em uma região específica, pode trazer inúmeras informações sobre o lugar. Analisando somente a combinação de letras encontradas na sinalização de uma cidade específica, por exemplo, é possível refletir sobre sua situação social e econômica e sobre o seu desenvolvimento histórico. A isso ela da o nome de DNA Tipográfico.

    Ao transitar pela rua de uma cidade há sempre letras que falam, discutem, conversam, confidenciam, afirmam ou identificam. As letras, segundo Costa (2008), “se transformam em gritos de guerra, em mensagens persuasivas, em poemas visuais, em assinaturas de identidade ou em simples signos abstratos com valor estético”. A letra chega a ter maior valor que o seu conteúdo. Os signos tem o poder de comunicar a vontade e a cultura do homem.

    Fachadas de estabelecimentos, placas indicativas e comerciais, propagandas em muros e faixas, pichações e grafites, entre outros, podem ser consideradas manifestações de interferências tipográficas que se pode perceber ao caminhar pelas ruas de uma cidade. A disputa pelos espaços de comunicação é acirrada. Anna Paula Gouveia e Priscila Farias definem paisagem tipográfica como aquela “formada por um subconjunto de elementos gráficos presentes no ambiente urbano: os caracteres que formam palavras, datas, e outras mensagens compostas por letras e números.” (Gouveia et all., 2007 apud Finizola, 2010)

    Fátima Finizola (2010) coloca que, parte dessas informações, no Brasil, é desenvolvida por profissionais e geralmente produzida por sistemas digitais, podendo variar as tiragens de acordo com a demanda, desde uma única fachada até uma série de outdoors estratégicamente colocados em espaços regulamentados. A outra parte dessa comunicação é desenvolvida por “cidadãos comuns, geralmente por processos manuais, caracterizando-se como instrumentos de comunicação alternativos que ocupam de forma aleatória os espaços públicos da cidade”.

    4 O Vernacular como Tradição

    Como vimos, as paisagens tipográficas urbanas de cada região são mais do que apenas elementos de sua cultura visual. Cabe, nesse momento, entender porque essas questões se fazem ainda mais relevantes dentro da prática do design gráfico em países menos desenvolvidos, como o Brasil.

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    O interesse pelo vernacular é até certo ponto recente e teve sua origem na arquitetura. O termo faz referência àquilo que pertence à um determinado lugar, uma manifestação que não sofreu influências externas. Portanto, o vernáculo também pode trazer conotações de algo que é puro. No Brasil, o termo popular tem sido usado como sinônimo de vernacular para denominar manifestações de comunicação que encontramos na rua e que não sofreram influência de escolas ou teorias de design.

    No design gráfico e na tipografia, podemos definir artefatos vernaculares como produtos de práticas de design desenvolvidas antes, ou a despeito, da instituição das escolas de design modernistas, principalmente por artistas anônimos, e no contexto do comércio. Placas pintadas à mão e impressos efêmeros (tais como cartazes e embalagens) são exemplos típicos de design vernacular. (FARIAS, 2011, p. 167)

    Apesar de o livro impresso ser um dos marcos do renascimento, contando, portanto, mais de quinhentos anos, a história da chegada da imprensa na América Latina se estende pelos séculos seguintes. O Brasil, devido a uma série de proibições e censuras por parte da corte portuguesa, foi um dos últimos países a instituir a prática da impressão com tipos móveis na América Latina. A tipografia foi oficialmente introduzida no Brasil somente com a transferência da Corte real portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro. Tanto que o primeiro jornal brasileiro foi impresso fora do país. Exilado em Londres, Hipólito José da Costa imprimiu o Jornal Correio Braziliense, em primeiro de julho de 1808, e o periódico era enviado clandestinamente em navios para o Brasil. Em setembro do mesmo ano é que podemos considerar o marco do primeiro jornal impresso no país, a Gazeta do Rio de Janeiro, que funcionava como um órgão oficial do governo português. (Sodre, 2011)

    Com tantas complicações, censura e mistificação, podemos dizer que o design de tipos é uma atividade que, em países periféricos ou emergentes, ganhou impulso somente com o desenvolvimento e a popularização de tecnologias digitais, a partir do final da década de 1980. O computador pessoal e, posteriormente, a internet, colocaram o desenho de fontes ao alcance de todos, tanto na posição de produtores como na de usuários e consumidores de tipografia.

    Nesse mesmo período, como afirma Farias (2011), é possível notar, dentro da prática do design europeu e norte-ameticano, uma incorporação de formas e estilos inspirados por práticas ou por artefatos que evoluíram antes da instituição das escolas de design modernas ou até mesmo fora delas. O que é importante ressaltar, na interpretação da informação que nos traz Farias, é que a incorporação de elementos vernaculares no design de tipos possui significados distintos quando realizada em países que contam com um forte legado tipográfico e em países onde certa tradição tipográfica pode ser iniciada a partir dessa incorporação.

    Daí a importância do aspecto social do design, já que ele é também responsável pela configuração de identidades por meio da expressão visual de elementos da cultura local.

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    Tony Fry (2017) amplia a questão dividindo a prática do design, sob o aspecto de países colonizadores e países colonizados, no que ele chama de um hemisfério Sul globalizado:

    Como podemos observar, as letras presentes nas ruas das cidades, assim como em manuscritos e artefatos gráficos, sempre tiveram muita influência na configuração de estilos tipográficos associados a diferentes culturas europeias e norte-americanas. Não obstante, em países onde o design gráfico e de tipos emergiu como resultado da popularização de tecnologias digitais, como os da América Latina, ela adquire, sem sombra de dúvida, um significado diferente, uma vez que é contemporânea ao próprio nascimento de alguma forma de tradição tipográfica.

    A reflexão de Priscila Farias ganha ainda mais pertinência quando a somamos à teoria de Tony Fry. Ao nos colocarmos de maneira consciente e crítica dentro do ambiente em que estamos inseridos, podemos fazer a pergunta de quanto o que vemos, de fato, reflete a nossa identidade? Onde estaria ela, então? O vernacular, sob o ponto de vista tipográfico, representa vozes que de certa forma ainda não sofreram essa influência vertical, uma vez que os artefatos analisados são produzidos por pessoas comuns, não designers.

    3 Conclusões

    A história da comunicação e a história das cidades fazem parte de uma mesma história. Os centros urbanos servem como cenário para as transformações da sociedade desde suas primeiras manifestações, e a maneira como nos comunicamos está diretamente relacionada com a maneira como entendemos o tempo e a distância.

    Foi nas sociedades antigas que a comunicação, aos poucos, se institucionalizou, mas foi no Renascimento que os centros urbanos começaram a se configurar da maneira como os conhecemos hoje. A Revolução Industrial mecanizou processos acelerando a comunicação com seus novos meios, culminando em uma Revolução da Comunicação e o que passamos a enteder como a era da modernidade. Hoje, dentro do que podemos chamar livremente de uma era da informação, a comunicação se da em massa e tempo e distância se tornaram conceitos bastante abstratos e subjetivos.

    É possível identificar a cidade como mídia quando analisamos a máxima de McLuhan que diz que o meio é a mensagem. A partir de uma breve reflexão, já é possível compreender que o autor não limita a mensagem ao meio, mas inclui o mesmo dentro dos processos de significação da comunicação. Esse conceito se acentua ainda mais quando o colocamos sob a perspectiva da comunicação visual.

    Não foi possível identificar, como proposto inicialmente, um momento exato em que as letras passam a assumir o controle das ruas das grandes cidades. Desde antes do

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    desenvolvimento do nosso alfabeto, as civilizações e os centros urbanos se apoiaram na linguagem escrita como parte da vida cotidiana. Mas podemos apontar, primeiro, a revolução industrial como o momento em que as letras perdem de vez a sua tradição caligráfica. Os avanços tecnológicos, que multiplicaram a velocidade de produção de fontes, e a necessidade de comunicar de forma cada vez mais expressiva, libertaram os parâmetros até então utilizados para o desenho das letras, fazendo surgir uma variedade de opções nunca antes vista.

    A litografia, por sua vez, não só viabilizou e popularizou o cartaz como mídia, que encheu as ruas das grandes metrópoles de todas as cores e de todos os formatos, como foi abraçada por grandes artistas plásticos como Jules Chéret (1836-1932) e Édouard Manet (1832-1883), permitindo que ilustração e informação escrita pudessem se relacionar de maneira mais orgânica. É dessa época os movimentos de estilo Art Nouveau e Art Deco, com letterings perfeitamente integrados tanto na arquitetura quanto nas artes gráficas.

    Fontes são como granadas multisensoriais (Hindmann, 2015). Com um olhar um pouco mais atento é possível começar a perceber como a paisagem tipográfica pode influenciar não só o conteúdo de uma mensagem em si, mas também como percebemos o nosso meio e quem somos dentro dele.

    As coisas ordinárias que nos cercam são geralmente consideradas mundanas, mas são, na verdade, cheias de variedade, de mistério e de pistas que iluminam o nosso ambiente e a nós mesmos. Essas coisas cotidianas podem ser partes do mundo natural, como pássaros, plantas, insetos ou nuvens. Ou elas podem fazer parte do mundo artificial, o mundo projetado, que a maioria das pessoas não considera - trincos, talheres, o trilho de segurança em uma estrada. E talvez o aspecto mais elementar e onipresente do design do dia-a-dia seja a tipografia. (COLES, 2014, p. 8)

    Dentro desse contexto, vernacular, sob o ponto de vista do design gráfico e de tipos, são aquelas fachadas ou placas comerciais ou qualquer tipo de sinalização feita em ambiente urbano por não designers, geralmente de forma artesanal e exposta em locais não regulamentados. Ocupando a outra parte do espaço da comunicação visual planejada por designers e publicitários. A tipografia popular se estabelece como uma apropriação singular da linguagem, “uma voz de resistência que não se posiciona antagonicamente à expressão institucionalizada, mas resiste a ela de forma silenciosa. (Martins, 2007, p.32)

    Ao traçar um parâmetro, é possível observar como a tradição tipográfica e a relação com o design vernacular se da de forma completamente distinta em regiões com longa tradição tipográfica e regiões nas quais ela começa a ser construída. Enquanto o popular pode ser considerado apenas mais um estilo em países desenvolvidos, em países sem tradição tipográfica o interesse acadêmico e as inúmeras pesquisas no campo demonstram uma tentativa de resgate e construção de identidade.

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    Nossa relação com as letras tem distintos fatores relacionados com a interação cotidiana entre as pessoas, a identidade e a cultura. Priscila Farias e Fátima Finizola são dois exemplos de pesquisadoras brasileiras que se dedicam ao assunto. Suas publicações começaram a definir o campo do design vernacular e abrir caminho para novas pesquisas, mas também, para que a voz popular começasse a ser escutada e levada em consideração por designer de tipos e por designers gráficos. O interesse acadêmico gerou também uma série de projetos de criação de famílias tipográficas baseadas em padrões populares, uma maneira interessante de dar visibilidade ao espírito do lugar no qual o projeto foi realizado e da pertinência de buscar traços de identidades locais em um mundo globalizado.

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    Referências AMBROSE e HARRIS. Fundamentos de la tipografia. 2007. Barcelona: Parramón Ediciones , 2007. BRIGGS, Asa, BURKE, Peter. Uma história social da mídia. Jorge Zahar Editor Ltda. 2002, 2006 CARAMELLA, Elaine. In CARAMELLA Et all. Mídias: Multiplicação e convergências. São Paulo: Editora Senac, 2012. CIACO, João Batista S. In CARAMELLA Et all. Mídias: Multiplicação e convergências. São Paulo: Editora Senac, 2012. COLES, Stephan. In DAWSON, Peter. The Field Guide do Typography: Typefaces in the urban landscape. Londres: Thames & Hudson, 2014. 384p. COSTA, Joan, RAPOSO, Daniel. La Rebelion de los Signos: El alma de la letra. Buenos Aires: La Crujía, 2008. DAWSON, Peter. The Field Guide do Typography: Typefaces in the urban landscape. Londres: Thames & Hudson, 2014. 384p. FARIAS, Priscila. In DA COSTA BRAGA, Marcos. O papel social do design gráfico. São Paulo: Senac, 2011. FARIAS et all. In CARAMELLA Et all. Mídias: Multiplicação e convergências. São Paulo: Editora Senac, 2012. FINIZOLA, Fátima. Tipografia Vernacular Urbana: Uma análise dos letreiramentos populares. São Paulo: Blucher, 2010. FONSECA, Joaquim. Tipografia e Design Gráfico. Porto Alegre: Bookman, 2008. FRY, Tony. Design for/by “The Global South”, Design Philosophy Papers, 15:1, 3-37, DOI: 10.1080/14487136.2017.1303242 HINDMANN, Sarah. The type taster: How fonts influence you. Londres: Type Tasting, 2015 (limited first edition) LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: Guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo: Cosac Naify, 2006. MARTINS, Bruno. Tipografia Popular: Potências do ilegível na experiência do cotidiano. São Paulo: Editora Annablume, 2007. MCLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensão do homem.

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    MELLO, Chico Homem de. In CARAMELLA Et all. Mídias: Multiplicação e convergências. São Paulo: Editora Senac, 2012. MUNARI, Bruno. Design e Comunicação Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997. UNESCO. Um mundo muitas vozes. São Paulo: Editora José Olympio, 1983. CIRKER, Hayward e Blanche. The Complete “Masters of the poster”: all 256 color plates from “les Maîtres de l`affiche”. Toronto: Dover Publications, 1990. SCHMITT, Juliana. In BONADIO, Maria Claudia Et all. História e Cultura de Moda. São Paulo: Estação das Cores e Letras Editora, 2011. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editoras, 2011.