p stumas 25 12 2014.doc) · lua minguante parecia sorrir misteriosamente, como a escarnecer da...
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D’Ori Vergalhão
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Póstumas
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D’Ori Vergalhão
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PÓSTUMAS
Póstumas
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D’Ori Vergalhão
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Dedico a cada um dos meus leitores em
particular.
Póstumas
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A beleza é exclusividade do coração. Somente o que amamos torna-se belo aos nossos olhos.
e-mail:
D’Ori Vergalhão
7
NNoottaa ddoo aauuttoorr::
PPaarraa eevviittaarr ppoossssíívveeiiss ccoonnssttrraannggiimmeennttooss,, ttrrêêss
ppeerrssoonnaaggeennss ddeessttaa oobbrraa eessttããoo ccoomm nnoommeess
ffiiccttíícciiooss..
D’Ori Vergalhão
Póstumas
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CAPITULOS
Preâmbulo..............Pg. 9
I..............................Pg. 17
II.............................Pg. 25
III............................Pg. 31
IV............................Pg. 39
V.............................Pg. 45
VI............................Pg. 51
VII...........................Pg. 61
VIII..........................Pg. 67
IX............................Pg. 71
X.............................Pg. 75
XI............................Pg. 79
XII...........................Pg. 85
XIII..........................Pg. 91
XIV..........................Pg. 97
XV...........................Pg. 103
Final........................Pg. 109
D’Ori Vergalhão
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PREÂMBULO
- “Não adianta cara! Você anda a caçar a sorte que não tem; nunca a teve! Pode escrever o melhor entre os melhores poemas ou romances, superar Giórgos Seféris ou Mikhail Sholokhov. Ainda assim ninguém o quererá ler. É primazia de quem nasceu com o traseiro voltado para a lua e você o teve voltado para um buraco negro, no momento do seu nascimento”. – Sorriu sarcástico a me olhar fixamente nos olhos e prosseguiu: - “É como perseguir borboletas no escuro; cantar pagodes sem saber tocar viola, entende?”
Horrível ouvir aquela voz! Medonha também a cara do sujeito que, com mansidão, quase aos cochichos me falava naquele momento. Nunca revelara seu nome. Surgia do nada, cabelos e barbas crescidos, vestido em trajes de andante. No começo assustou-me pacas, mas com o passar do tempo fui me resignando à sua presença e sarcasmo. Visitava-me desde a minha meninice, tinha eu sete ou oito anos quando o vi pela primeira vez. No meu quarto, sozinho estava eu à porta trancada. Quis correr, mas segurou-me por um braço frustrando a minha fuga.
Póstumas
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- Você fica!...
Percebi, naquele momento, que de nada me adiantaria fugir mesmo, pois no meu íntimo mais recôndito alguma coisa sussurrava que, por mais que fugisse ou me ocultasse, a perseguição seria assídua e implacável e sem demora estaria apanhado. E fui me habituando com as visitas desse meu “amigo” indesejado.
Deixei-o vaporizar e sai de casa. A noite avançava a muito, já se fazia madrugada e estava frio. Na escuridão que a tudo amantava vislumbrei aos poucos o espectro da grande mangueira no quintal dos fundos. Galguei, não sem alguma dificuldade, o grosso e áspero tronco e trepei num de seus galhos, dali passando com agilidade de felino para o telhado de casa. Sentei-me bem no topo, sobre as comunheiras e olhei o céu de junho. Acima da minha cabeça as estrelas principiavam a dançar voluptuosas e faceiras e, bem no meio do céu, a lua minguante parecia sorrir misteriosamente, como a escarnecer da minha cara. Era assim. Cada vez que “ele” aparecia durante a noite, e quase sempre só vinha de noite, eu trepava no telhado e era a mesma lua minguada que eu avistava, nunca uma magnífica lua cheia.
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Pensei com meus botões: - Realmente, não devo ter nascido com a bunda virada para a lua!
A manhã veio me apanhar ainda encavalado no topo do telhado. João Descalço gritou, ao longo da trilha que o conduzia à roça, me acenando com a sua mão esquerda como seu costume desde que a direita segurava o cabo da enxada sobre o ombro:
- Eita Zé! Virou coruja ou o quê? - E se foi caminho adiante, gargalhando a me mangar.
Desci rapidamente e voltei ao meu quarto. Com resignação e desânimo rasguei todos os textos, o que vinha eu escrevendo e os demais escritos e reescritos meses, anos antes, fui à cozinha e os atirei dentro do fogão a lenha, ficando a ver os pequenos retalhos de papel queimando vorazmente, a levantar fagulhas.
Enquanto isso ouvia minha mãe ordenar, lá de dentro do seu quarto:
- Beba seu café com leite, Zé e vá já tratar das galinhas e dos porcos!
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Deixei de escrever, pois conclui que não me valia! Minha timidez eu amaldiçoava. Por ela jamais mostrara meus textos a alguém, nem mesmo à professora que me causava tanta admiração em silêncio.
Pouco tempo depois mudamo-nos para a cidade, logo após o último incidente com “ele”. Ainda apareceu no meu quarto uma ou outra vez, mas terminou por sumir definitivamente. Pelo menos na minha mocidade e anos seguintes deixou-me em paz.
Assim, desiludido como contador de histórias, decidi tornar-me contador de débitos e créditos, influenciado então por meu irmão que há anos já exercia a profissão, malgrado minhas posses financeiras suficientes apenas para um reles diploma de técnico em contabilidade, atividade que exerço a quase toda uma metade de século.
D’Ori Vergalhão
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Sempre fui um sujeito sem graça e sem predicados corporais, muito menos intelectuais.
Para matar, a timidez me fez tropeçar a cada tentativa de aproximar-me das mocinhas ou mulheres dos meus tempos melhores, conseqüência que me deixou solteiro pela vida afora.
Pior! Quando menino, fui considerado mentalmente capenga pela opinião de amigos, conhecidos e professores e isso repercutiu por toda a minha adolescência e juventude. Foi assim que, numa tentativa desesperada de reverter tal situação, resolvi deixar a minha querida cidade; ingressei nas fileiras do P.I.M.E. e fui encaminhado ao Seminário do Igapó, formar-me padre.
Mas quê!... Vi todos os meus projetos fracassarem, incluso o sacerdócio. Deixado o seminário tornei-me professor primário de escolinhas rurais, porém não tinha aptidão para ensinar as letras aos insubordinados e piolhentos pirralhos daquelas plagas roceiras.
Continuei morando e trabalhando em Londrina por outros quatro anos.
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Só então, com economias amealhadas no transcorrer de anos semelhantes aos de guerra, quando a fome é farta e o único naco de pão sobre a mesa, mesmo que já endurecido, é precioso como Ovo Fabergé, anos estes eu enfurnado meio a máquinas de escrever e montanhas de papéis no departamento contábil de uma empresa fornecedora de defensivos agrícolas, rumei para os fundões de Mato Grosso, anseio que me embalou a alma de voltar às raízes, fazer-me agricultor.
Adquiri dez alqueires de terras a preço de tomate amassado, em Analândia, bem além de Sinop, vilarejo encravado meio a selva forte em solo fraco. Quase nada se produzia naqueles quinhões arenosos do vero lugar onde o traidor perdeu as botas. Mesmo assim, vingou-me a idiotice de contratar a derrubada de dois alqueires da mata virgem, no intuito de formar um cafezal. Foi quando os caboclos da região me alertaram que a cafeicultura, naquelas terras mendigas de fertilidade, era cultura de produzir, no máximo, duas ou três safras que ora transcorridas levavam o cafeeiro a definhar irreversivelmente. Milho e feijão já era eu sabedor da improdutividade naquele solo ingrato.
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Novamente desiludido e com as pernas tomadas de úlceras, vendi as terras. Mas não voltei a pisar o meu chão sertanejense tão querido. Fascinou-me região orgulhosa por concentrar o grosso da riqueza e do progresso pátrio. Instalei-me então, junto com uma irmã, nove sobrinhos mais um cunhado descabeçado, no noroeste paulista. E aqui estou eu desde novembro do ano de 1986.
Agora, já sexagenário, acreditava-me definitivamente liberto do “medonho”. Quase o apagara por completo da memória ante tantos anos que não o via. Mas numa noite pasmada por raios e trovões aconteceu de faltar força elétrica e, ao entrar com uma vela acesa no meu quarto de dormir nos fundos de casa, êi-lo sentado na minha cama a minha espera. A mesma figura da minha meninice e adoles-cência, maltrapilha, feia e vagabunda. Sorriu desdenhosamente e ao cismar que eu tornaria à tentativa de fuga daquele primeiro encontro,
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segurou-me novamente pelo braço, falou semi-fechando os olhos e cerrando os dentes:
- Tu ficas!...
Olhei-o perplexo e resignado.
- E vais voltar a escrever! Agora eu ditarei o que irás redigir. Não que hás de se tornar um Vladimir Nabokov ou Marcel Proust!...
Novamente riu com escárnio, olhando-me fixamente nos olhos.
- Nem mesmo hás de ser um Osman da Costa Lins!
E continuou agora com voz sussurrada de quem dita um segredo:
- Serás somente um “Zé Ninguém”!...
Naquela mesma noite principiou a ditar-me suas lembranças... E eu, sem alternativa plausível, passei a escrevê-las, como o caro leitor acompanhará nas próximas páginas.
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I
PÓSTUMAS Não enxergava a mim próprio, sequer me
sentia... Mas tinha plena consciência de mim e
de todas as coisas que me circundavam. Era algo
assim indefinido e quimérico, a existência sem
existir, o tudo ser sem nada ser, o certo e o
incerto coexistindo numa realidade completa-
mente irreal. Eu era... E ao mesmo tempo já não
era...
Descobri estar o meu futuro a se infiltrar
no meu presente, ambos se anulando. E que se
eu me projetasse ao meu passado, escapava do
abstrato inócuo do meu estado atual e unia o
concreto do meu passado ao etéreo do meu
presente num novo e diferente existir: a morte
híbrida da vida, o corpo passado e o espírito
presente.
Então me percebi, menino ainda, sentado
sobre a pontiaguda lança de ferro cromado, na
grade do muro fronteiriço a casa da minha
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infância. As lindas flores que mamãe tanto
amava já não existiam; os jardins foram
suprimidos por tosco e frio chão de cimento sem
vida e sem encanto.
Agora eu desdenhava das ameaças fúteis
do meu pai... Peladinho, como ele gostava,
estava eu sentado sobre a haste pontiaguda,
objeto das minhas angústias e pavor na infância,
a me calar sobre os seus abusos nas negras e
apavorantes noites do meu passado longínquo.
Nem por isso me estava espetando. Nem por
isso os passantes da rua gargalhavam, de mim
debochando.
Externamente a casa pouco mudara
embora os anos transcorridos. As paredes
tinham o mesmo rosa que mamãe escolhera,
agora desgastado e sujo pelo transcorrer dos
anos.
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Estranho que, mesmo eu estando fora da
casa, via o seu interior bastante diferenciado
desde que nele morei com mamãe e minha
irmãzinha. Ali sim, mudara-se a cor das paredes
e o chão assoalhado da sala e dos quartos fora
suprimido por piso cerâmico verde com estrias
amarelas, o teto antes de gesso agora de tábuas
de cedro pintadas a óleo.
Pequenas rachaduras nas paredes davam
ao local certo ar de desleixo e abandono.
No quarto de mamãe, o banheiro de
então fora suprimido para aumentar a área do
dormitório, porém no cantinho da parede agora
ocupada por uma penteadeira, conservara-se o
lavatório azul celeste onde mamãe fazia seu
toalete pelas manhãs.
Ansiosamente procurei ver o quarto ao
lado que Mara e eu ocupáramos. Na cama de
solteiro, existente agora, uma criança dormia.
Havia bonequinhas entre roupas espalhadas
pelo chão e uma bicicleta vermelha encostada
numa parede. Sobre uma cadeira, cadernos e
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livros estudantis ao abandono. Era princípio de
férias escolares.
Fiquei a olhar a criança estirada sobre a
cama. Não! Não era Mara, embora eu sentisse o
meigo espírito da minha irmãzinha a impregnar
cada milímetro daquele ingrato quarto.
A menina ali adormecida era linda. Os
cabelos muito negros caiam sobre o seu
rostinho em cachos mirabolantes; trajava um
vestidinho branco salpicado de mimosas
florezinhas azuis.
Mas não era Mara!
Fui postado sobre a grade maldita,
possuído da esperança de rever minha
irmãzinha. Dormíamos na mesma cama, neste
mesmo quarto onde agora a linda menina
sossegadamente dormia. As noites de então
eram escuras e tenebrosas e eu tinha medo,
pois envolto naquele negror apavorante vinha
ele. Sorrateiramente... Na calada da madrugada
pisando algodão para mamãe não perceber.
Lado a lado dividindo a cama, eu e Mara, mas a
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minha irmãzinha ele não queria. Buscava a mim,
o menino, para saciar sua morbidez.
E a única testemunha do seu torpe ato se
fizera a grade do jardim:
- Se contares para a mamãe eu te espeto
na haste mais alta, a do centro do portão; e
todos que passarem pela rua rirão de ti,
caçoarão por ver-te ali espetado na ponta da
lança.
- E, medrosamente, eu calei-me! Por
todos esses anos... Calei-me.
Novamente olhei com atenção a criança
que agora ocupava o quarto que fora nosso.
Acordara e sentara-se sobre a cama; esfregou os
olhos e bocejou alegrinha com a vida.
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- Não, realmente não é Mara, embora
sinta sua presença ocupando cada espaço desde
local... Mas não é Mara.
Ansiei tanto em lhe pedir perdão!...
Porque, imerso naquela angústia e revolta que
me assolava a alma, era Mara que eu via e
desejava sobre esta haste de metal que
assombrou minha infância, numa terrível troca
mental que chegava ao desespero de causa. A
Mara que papai não queria... Queria a mim,
somente! E mamãe inocentemente dormia no
quarto ao lado... Veio a morrer tempos após,
sem tomar conhecimento algum, numa manhã
ensolarada, enquanto as flores choravam. As
suas flores tão queridas... Choravam.
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Tentei sair da ponta daquele ferro
angustiante... Constatei que não conseguia.
Estava fadado a permanecer naquilo que me
fora idealizado pelo bruto... Por meu pai!
Ouvia sussurros ao meu redor, vozes
oriundas de longe, talvez dos infernos... Ou
quem sabe dos céus?
“Não conseguirás jamais! Não lhe está
autorizado! Não lhe está autorizado!”...
Malditas vozes sussurrantes, ecoando ao
meu redor, tirando-me a serenidade.
As mesmas que me tornaram um louco e
desgraçado por quase todo o transcorrer da
minha vida. Que explodiam nos meus ouvidos
tomando formas e dimensões demoníacas.
Elas, as vozes, que me expulsavam nas
noites sem lua para os fundões das matas, a
procura da paz que eu não conseguia encontrar.
E eu, pela maldita incapacidade de
expulsá-las da minha vida, perdi minha filhinha
Ana Clara juntamente com a mulher que eu
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tanto amei. Não suportaram minha demência,
assim como vovó que me repudiou do seu
convívio por ocasião da morte de mamãe.
Ainda tive a felicidade do apoio e carinho
da minha tia Roberta que suportou por anos
minhas crises de insensatez. Eram as vozes
malditas ao meu redor, sussurradas às vezes,
outras tantas vezes gritadas junto ao meu
ouvido, que me levavam à loucura.
Também foi por elas que seqüestrei
Aline, num momento assim de demência,
julgando ser Ana Clara... Mas era Ana Clara! Era
sim, a minha querida Ana Clara...
QUEM?
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II
Perdoe-me amigo leitor, se termino por
ser enfadonho. Também é pretencioso o fato de
que, ao tornar-se velho e já se deparando com
momentos de meia caduquice, voltar a uma
atividade abandonada aos quatorze ou quinze
anos. Não que esteja assim tão velho, pelo
menos não quanto à idade. Mas, passados os
sessenta, percebo que a cabeça muitas vezes
deixa-me a ver navios. Também sinto que entrei
naquela fase em que coisas simples, como enfiar
um sapato no pé, se fazem assas complicadas e
dores começam a nos molestar nos mais
incríveis locais do corpo. Mas não me lamento.
A velhice proporcionou-me voltar aos eixos,
reconsiderar os meus anseios, assumir antigos
propósitos, pedir perdão... Também me fez
perceber que, quando me julgava a caminhar os
passos de Deus, agarrava-me sôfrego ao rabo do
diabo e, tantas coisas consideradas sérias, só me
iludiram. Assim como a bíblia, idolatrada pelos
religiosos, se analisada com a justa consciência
dá-nos a conclusão de que os judeus, seus
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escritores, deixaram de anotar a prescrição
divina mais sagrada, talvez por achá-la não
conveniente aos seus propósitos nem lhes trazer
o visado lucro: que é maldito aquele que faz a
guerra. Mas deixemos de lado que não é o que
aqui, realmente, nos interessa agora, malgrado
tanto sofrimento imposto ao povo palestino.
Vamos lá!...
É, pois, também aí, após os sessenta
anos, que assola a saudade dos tempos idos,
quando o principal brinquedo do dia era trepar
nas arvores e chupar mangas, tempos estes
sempre considerados melhores que os atuais
mesmo com escassez de pão à mesa e, no frio
cortante das geadas paranaenses, pouco
agasalho para o corpo emagrecido, nenhum
calçado para os pés gelados torturados por
espinheira de juá. O remédio era empoleirar na
taipa do fogão a lenha, tiritando todo
encorujado, mas feliz com a bênção do calor
aconchegante do fogo do borralho, enquanto a
mãe cozinhava o feijão para o almoço.
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Mas, tenho que dizer, era um rol de
meninos e meninas folgando juntos sem malicia
nem maldade, correndo pelo caminho da escola
ou da roça meio a algazarra da alegria pueril e
santificada. Muitos bons tempos aqueles.
Porém se cresce como tudo que é vivo
neste mundo... E se envelhece. Ai, então, ao se
olhar para traz, pinta a desconfiança de que o
que fizemos nem sempre foi o melhor, que
tantas coisas feitas ou deixadas de fazer ao
longo da vida nos trariam mais prazer lá e, cá
agora, mais serenidade e menor monta de
arrependimento.
E entramos em conflito a todo instante.
Dizemos então que não nos acertamos com a
vida, que só levamos pancadas e, para disfarçar
nossos enganos e frustações, pomos a culpa no
destino.
- Está escrito no livro da vida, tinha que
assim ser!... - Mero engano!
Certo é que as dificuldades, a pobreza
principalmente, nos dão lambadas terríveis.
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Costumo dizer que a pobreza nos é o
maior tropeço... Quase sempre poda nossas
iniciativas, frustra-nos as ilusões sem piedade.
Mas outras circunstâncias da vida, embora com
menor importância, também nos levam a
indecisões e tombos em nossa caminhada.
Lembro que, em criança, visitava uma
marcenaria de Sertaneja e me encantava com a
confecção de móveis levada ao bom termo
pelos oficiais que nela trabalhavam. Numa ida
dessas, vi um marceneiro fazendo uma guitarra,
a pedido de um músico da cidade.
Então queria ser eu um marceneiro, mas
acabei contador, vejam só!
Isto porque também me encantava olhos
e alma assistir ao meu irmão batucar a máquina
de escrever, sua lidança obstinada com todas
aquelas contas, livros de capas pretas e
papelada. Coisa de maluquice sem remédio!...
Calculadoras não existiam. Num canto de
cada escrivaninha, imponentemente se instalava
uma somadora mecânica munida de alavanca
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manual ao lado, excelente nas operações
simples de adição e subtração. Para os cálculos
de multiplicação e divisão, era imprescindível o
uso de papel e lápis e, conseqüentemente,
espremer os miolos dentro da cabeça.
O uso de canetas tinteiro se fazia
obrigatório. As esferográficas, ainda nas fraldas,
eram inexoravelmente abolidas no uso da
escrituração fisco-contábil.
E não faltavam, em cada mesa de
trabalho, o frasco de goma arábica e a
esponjinha umedecida para as estampilhas;
além do velho e bom apontador de lápis à
manivela preso, a uma prateleira do arquivo,
nos fundos do escritório.
Também o telefone, via telefonista,
funcionava mediante manivelinha ao lado.
Lembro-me que José Milton, muitas vezes
pretendendo falar com algum cliente do
escritório, punha-se nervosamente a virá-la
como se pretendesse arrancá-la do aparelho.
Frustrava-se, pois a telefonista não o atendia.
Pedia para eu correr até a central telefônica, na
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mesma rua duas quadras acima do escritório,
instalada numa casa misto comercial e
residencial. Encontrava-se Dona Alcina na sua
cozinha, preparando o almoço. Intimada por
mim a completar a ligação, vinha calmamente
enxugando as mãos no avental e punha-se a
mexer naquela confusão de cabos e pinos do
grande aparelho preso à parede. Eu me
maravilhava com tamanha tecnologia. Como
podiam tais fiozinhos levar a voz de um canto ao
outro da cidade e até para outras cidades?
Bárbaros tempos aqueles.
Tai!...
Depois de tais devaneios vamos ao que
importa, pois agora “ele” impacientemente me
convoca. Assim como eu, quer continuar com
suas memórias, mas precisa das minhas mãos
para escrevê-las. E, como tantas vezes durante
minha infância, incapaz de fugir de tal situação,
me curvo ante seus caprichos e pior, ao seu
desprezo justamente àquilo que “ele” aspira.
Sou mesmo um banana!...
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III
Preso àquela maldita e metálica haste do
meu passado as lembranças fluíam de uma
forma nebulosa e irreal, mas nítidas à minha
memória e existência de então.
Vi-me no tosco barraco de madeira
lavrada a machado, nos ermos para onde eu
levara Ana Clara numa ação deliberada e
perversa de demência. Isaura não me saia da
cabeça. Ela, velha gananciosa, nos bosques da
fazenda entregara-me a menina, indiferente à
sua sorte e sina, pouco a se importar com o
destino da criança ou à dor materna pela perca
da filha.
Certo que eu não tinha intenções
perniciosas em relação à pequena. Eu era um
louco querendo ser um pai, o pai que para mim
não existira embora o avistasse, todas as
manhãs, sentado na poltrona da sala lendo os
jornais, enquanto mamãe preparava-lhe o café.
E eu era um pai, sim senhor! O pai de Ana
Clara, surrupiada dos meus rudes braços pela
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mãe mulher que me acalentara os malgrados e
dementes sonhos. Sequestrei Aline julgando ser
Ana Clara. Mas era sim, a minha Ana Clara. A
minha menina Ana Clara!
Olhei com carinho a criança dormindo
entre os trapos imundos que forravam a tarimba
e sai em seguida ao quintal. Os primeiros raios
de sol douravam as paredes do casebre,
projetavam, no solo ressequido ao redor, as
sombras dos brinco de princesa repletos de
abelhinhas a buscarem matéria para o doce mel.
Atravessei o quintal em direção ao paiol a
menos de dez metros, próximo a biquinha
d’agua. Urgia tratar dos animaizinhos.
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Trouxe para fora do paiol o jacá com as
espigas, as debulhei espalhando o milho
amarelo e graúdo no quintal, entre os limoeiros.
Sem precisar chamá-las, as galinhas irromperam
em curtos vôos de todas as direções entorno ao
casebre. Cuspi no chão ressequido por entre os
pés de guaxuma e picão branco.
- Maldita Isaura!...
Da porta do casebre, agora, Ana Clara me
chamava timidamente, esfregando os olhos. Fui
buscá-la, a levei no colo até a bica d’água para
lavar-lhe o rostinho.
Depois a deixei brincar à sombra dum
limoeiro, ao passo que cuidava eu das
obrigações da manhã; terminou por encantar-se
com a ninhada de pintinhos ao redor da galinha
carijó ciscando o terreiro. Quis pegar um dos
bichinhos, mas sentiu medo da galinha e se
afastou correndo em minha direção. Absorto na
tarefa de cortar as abóboras em pedaços para
os porcos, não lhe dei atenção.
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Ao retornar com o balde d’água, vi que a
pequena voltara a aproximar-se da galinha dos
pintinhos amarelos que arrepiou as penas
ameaçando investir raivosa, coragem que a
natureza dá as mães na urgência de defesa de
sua cria. Fosse outra circunstância, fugiria assus-
tada com certeza.
Antecipei-me e agachando peguei um dos
pintainhos, o coloquei nas mãozinhas da
menina.
Por um momento o acariciou e o apertou
contra o peito, mas este se pôs a espernear e
piar desesperadamente. Percebendo que a
galinha vinha em socorro do filhote, o atirou no
chão e assustada agarrou-se a uma das minhas
pernas.
- Não tenha medo! Um dia você enten-
derá o motivo da ave fazer isso. Venha! Vejamos
se há frutas maduras.
Não tinha nem mesmo goiabas temporãs.
Fomos olhar as melancias.
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- Estão todas verdes. Você voltará
novamente aqui, quando amadurecerem.
Tomei a criança pela mãozinha, a guiei
pela trilha que descia ao ribeirão nesta época do
ano rasinho devido à seca prolongada. As
grandes rochas que na cheia quase submergiam
nas águas turvas e corredias, agora estavam
completamente expostas, reluzentes ao sol
daquela manhã, livres do limo da enchente. Nas
margens o capim viçoso abraçava os troncos dos
narcisos a se espelharem inchados da mais fútil
e tola vaidade vegetal.
Envolvi a criança num abraço e pisei
gostosamente os cascalhos amarelos sob a água
morninha, adentrando o ribeirão. Sobre a pedra
maior e mais branquinha sentei Ana Clara para
tomar sol.
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Sol!
Queimava-me a pele, resplandecia na
minha cara me impedindo abrir os olhos.
- Horas do remédio!
Senti que me sacudiam. Forcei os olhos
numa tentativa desesperada de enxergar ante o
clarão na minha cara. No teto as pequenas
aranhas negras teciam com maestria sua teia.
Com dificuldade vislumbrei os vultos à minha
volta.
- Sente-se na cama afim que lhe aplique a
injeção, vamos logo seu folgado!
Ouvi a voz distante da pessoa que me
sacudia violentamente. Somente então percebi
que me encontrava na minha cela e os três
brutamontes que ali estavam, eram o médico de
plantão e dois carcereiros. Sentei-me lentamen-
te na cama, os olhos lacrimejantes magoados
pela forte lâmpada que do teto pendia,
sensação de imenso bloco de concreto a pesar
sobre a minha cabeça. Senti a agulhada na veia,
estremeci de dor e aflição.
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- Agora pode retornar ao seu sono,
vagabundo! – Falou-me com desprezo um dos
carcereiros.
Já se dirigiam rumo à porta, mas ainda
consegui segurar o médico pela roupa. Falei com
ansiedade, sacudindo-lhe o jaleco:
- Preciso voltar doutor! Deixei a
pobrezinha sentada sobre a pedra do ribeirão!...
Pode escorregar para água e se afogar.
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D’Ori Vergalhão
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IV
Morávamos pertinho da Igreja; viéramos
de Assis, onde nasci. Eu acabara de completar
dois anos de idade e mamãe começava a
gestação da minha irmãzinha caçula.
Era o ano de 1953. Lembro-me bem
desse tempo, embora fosse tão pequeno. Nem
falava direito e lavava a cama todas as noites.
A rua sem movimento e bastante larga,
ainda de terra, permitia brincarmos à vontade,
não existia o menor vestígio de perigo. Em
alguns trechos a laje de pedra-ferro brotava do
chão, como enormes manchas amareladas. A
igreja está construída sobre esse lajeado que se
estende por toda a região e que originou a
magnífica terra rubra como sangue. Visto no
grande pátio da frente do templo durante os
anos da minha meninice, se oculta agora sob o
asfalto que o cobriu e bem poucos dos que hoje
vivem lembram-se dele, como eu me lembro.
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Quando chovia, a água cristalina brotava
por todos os lados e corria pela rua formando
verdadeiros e deslumbrantes riachos.
Minha irmãzinha Maria Ângela nasceu ali,
aos 20 de março de 1954. Até poucos anos, a
casa de madeira em que morávamos resistia em
pé feita heroína, embora já transcorrida metade
de um século.
Sertaneja! Grande cidade pequenina.
Surgimos para este mundo sadomasoquista
quase simultaneamente, minha princesa.
Meu coração ficou perdido por aí, em
suas ruas queridas por onde pisei nos meus anos
de infância e juventude.
Deixou marcas e saudades. Como deixou!
Nessa época a igreja era uma construção
modesta, paredes ainda sem reboco, chão de
tijolos nus. No topo da escadaria que leva à
porta principal havia um buraco grande e
profundo, coberto por um gradil de ferro para
os fiéis limparem os pés que, quando chovia,
eram verdadeiras bolotas de barro vermelho e
D’Ori Vergalhão
41
grudento. Mas, diga-se com plena justiça, santo
barro aquele. Meu pai, chofer de praça em
Sertaneja, contava que ao viajar para Assis a
mulher da casa vizinha a que morávamos então
naquela cidade pedia-lhe licença e, numa bacia,
recolhia o barro que ia grudado no interior do
para-lamas do veículo, levando-o à sua horta
para adubá-la. Terra boa a valer, diziam antigos
moradores que nela milho e feijão cresciam “até
sobre tocos”.
Mas, voltando a falar da igreja, ficava
praticamente fora da cidade, pois logo atrás das
suas paredes iniciavam as lavouras de café novo,
vigoroso e pleno de vida exuberante. Hoje a
cidade cresceu além, se estendeu até o alto da
colina.
Brincávamos, minhas irmãzinhas Zulmira
Flora, Maria Helena e eu, com Catarina, Lazinha
e Chiquinho, na mina d’água que havia no sitio
onde moravam, do lado esquerdo do que é hoje
o salão paroquial. Lá rebentava entre as pedras
um arroio que permeava as lavouras e,
adentrando a cidade, acompanhava trecho da
Póstumas
42
Avenida Sete de Setembro, próximo a serraria
do Gerson Gerdulli. Moradores antigos devem
se recordar ainda desse, e de outro regato cuja
nascente era em terras do Nagano, próximo ao
estádio municipal e vinha cruzar a Avenida Sete
de Setembro no outro seu extremo, correndo a
céu aberto pelo pátio da Prefeitura Velha. Na
sua travessia pela Avenida Sete de Setembro
existia uma ponte de madeira sustentada por
grossos toros. Lembro-me que meu irmão, na
época um meninote de seus treze anos, me
levava a brincar na água limpinha e fresca, sob
essa ponte. E que, num ano em que Paulo
Fabiano, seu patrão e proprietário do Escritório
Contábil São Carlos, foi candidato a um cargo
político na cidade, o incumbiu de colar pelas
cercanias os seus panfletos de propaganda. Mas
Antonio Umberto os colou quase todos nos
mourões da ponte, como se alguém, além de
nós crianças que lá brincávamos, os fosse ver
sob as grossas pranchas de peroba que então
proporcionavam travessia. Lembranças gostosas
essas que passam pela minha velha mente de
vez em quando. São tantas e tão saudosas.
D’Ori Vergalhão
43
Também eu, trabalhei longos anos nesse
escritório contábil, posteriormente, quando
pertenceu a outros contadores e já mudara o
nome para Escritório São José. Contou José
Milton Federich que no inicio fora um
estabelecimento bancário regional, com um
nome pomposo, alguma coisa com Vale do
Tibagi, ou algo semelhante. Somente depois
virou escritório contábil, ao ganhar a cidade
uma Agência do Banco Itaú e seus correntistas
migrarem em sua maioria para o banco recém
inaugurado. Nesta época ficava, esse escritório,
num dos salões da Dona Maria Portuguesa, ao
lado das Casas Pernambucanas. Mudou-se
posteriormente para a Av. Nossa Senhora do
Rocio, no salão ao lado do consultório do Dito
Dentista.
Mas agora já se fez noite. Creio que “ele”
esteja no meu quarto, impaciente à minha
Póstumas
44
espera. Não deve ter percebido que, além das
suas memórias, paralelamente escrevo as
minhas. Porém, ainda não sei se é legal mesclá-
las assim como estou fazendo. É provável que
sejamos mesmo dois doidos varridos sem eira
nem beira.
D’Ori Vergalhão
45
V
A grade de ferro prendia-me à desventura
do meu passado, à sandice da minha ingrata e
maldita infância. Dela não consegui me libertar
um momento sequer dos meus dias, força
sinistra que se impôs como doença perversa e
contagiosa a cancerizar cada fração do meu
íntimo, cada partícula do meu cérebro aluci-
nado. Assim, fui incapaz de me desvencilhar, no
transcorrer de meus longos anos de vida, da vil
ameaça paterna, da dor e ansiedade nas noites
escuras e tenebrosas de então, quando apavo-
rado e trêmulo percebia os passos de plumas
sorrateiramente se abeirando do meu leito. De
nada me adiantava encolher sob os lençóis,
ocultar a cabeça sob o travesseiro. Vãos todos
os anseios de livrar-me daquelas mãos trêmulas
e nervosas a me agarrar sem pudor e sem
piedade. Sufocavam-me o grito na garganta,
tiravam-me à força o pijama de bolinhas
coloridas que, ao término de cada dia, mamãe
me vestia sempre com um boa noite e um
beijinho carinhoso na testa. Só então, depois de
Póstumas
46
saciada a vil morbidez, o monstro afastava-se pé
ante pé, deixando-me a soluçar baixinho até o
abater do cansaço me fazer dormir. De manhã
vinha procurar-me novamente, tirar-me da
cama para o jardim. Dedo ameaçador e sinistro
a apontar a pontiaguda lança de ferro da grade
maldita.
- Se falares para a mamãe...
Não!... Por favor! Não!
Não é o que quero eu para Ana Clara.
Sentadinha sobre a pedra no riacho, pedra essa
que não a fere, não a põe ao escárnio dos
transeuntes da rua, não a faz uma transtornada
como eu. Não há, com ela, minha troca mental e
angustiante que com Mara havia, naqueles anos
de infância que não me deixam saudades.
D’Ori Vergalhão
47
Vejo-me agora parado em pé próximo ao
salgueiro, oculto pelos seus ramos chorosos que
se debruçam sobre as águas serenas plenas de
igarapés floridos. Meio ao ribeirão, Ana Clara
sentada sobre a rocha branca onde a água se
quebra ruidosa em natural alegria espumante.
Está brincando tranquilinha, sob o sol quente do
final da manhã repleta de luz e esvoaçantes
borboletas.
Com olhos derramando carinho aceno-lhe
da barranca do rio antes de entrar apressada-
mente naquelas águas limpas pela estiagem.
Breve há de chegar a primavera com torrenciais
chuvas e trovoadas, e essas mesmas águas se
farão agitadas, corredias e turvas. Então as
pedras se cobrirão de verde limo lustroso e
escorregadiço, prenúncio de enchentes sinistras
e de riscos à pobreza ribeirinha. Mas as lavouras
hão de vicejar enfim, os arrozais se fartarão de
belas pencas de sementes douradas e preciosas,
o milharal se embonecará graciosamente.
Póstumas
48
- Venha! Voltemos para casa, são quase
horas do almoço.
Agarrada à bonequinha verde que lhe
presentearam os seus amigos peixinhos, tomo-a
nos meus braços rudes, a aconchego no meu
peito de pai...
Meu pai, doutor. Que me tornou maldito
e louco para o mundo. Meu Pai!...
Toca-me impassível o ombro, me adverte.
- Pois está aí e quer vê-lo. Não há de fazer
o importante industrial perder seu tempo.
Não arredo um palmo da minha cama de
enfermo aprisionado. A forte lâmpada fere
meus olhos, mas permite-me ver, no teto, as
teias de aranha a se penderem, balouçantes ao
leve e fresco vento que penetra a telha-vã.
D’Ori Vergalhão
49
Um dos carcereiros agarra meu braço,
sacode-me com impaciência. Percebendo que
me encolho sobre a cama, numa demonstração
rebelde em não atendê-los, arrasta-me fora do
colchão e termina por derrubar-me no chão
imundo da cela carcerária. Ditando palavrões,
põe-se a chutar minha perna com arrogância e
prepotência, enquanto o outro auxiliar grita:
- Seu pai quer vê-lo! Venha logo!
Levanto-me com dificuldade e então os
sigo com passadas relutantes e tontas de um
morto vivo. Sentado à poltrona lendo os jornais,
tal qual nos anos da minha infância, está ele.
Não se digna a levantar os olhos para o seu filho
maldito. Apenas se limita a ordenar impassível
de qualquer vestígio de amor ou carinho.
- Levem-no!
Rapidamente envolto numa camisa de
força pelos enfermeiros, ainda grito angustiado
ao doutor que bonachão me acompanha até a
ambulância a cata desse inútil louco.
Póstumas
50
- Preciso ir buscá-la! Ana Clara está
sozinha e em perigo sobre a pedra do ribeirão!...
Tenho que salvá-la doutor!
Aplicam mais uma injeção para que me
acalme. Em minutos sinto a cabeça girar, aquela
vertigem alucinante que me leva em rodopios
ao ermo do meu ser estropiado onde ocultei a
criança da visão dos passantes e do escárnio
desta vida.
No fogão a lenha o fogo estala, levanta
fagulhas que deslumbram os olhos serenos de
Ana Clara. O balde de latão, sobre a chapa,
morna a água para o seu banho.
- Faz frio, não quero que fique doentinha!
D’Ori Vergalhão
51
VI
Na baixada da Avenida Presidente Vargas
ficava a velha serraria. Diziam assombrada
assustados moradores das cercanias. Madru-
gada alta, luzes flutuantes eram visíveis em
torno das ruínas meio ao matagal que tomara
conta do local, a apavorar quem se aventurasse
por ali a transitar.
Coisas de cidades rurais, onde a escassez
de luz das vias públicas cria às fantasias e os
medos que dão sabor especial a vida quotidiana.
Assim como a escolha de um cidadão que, por
excentricidades no seu modo de vida e
costumes, torna-se o lobisomem da região. Pois,
Sertaneja também teve o seu, morador numa
casinha de tábuas no meio de bananeiras, num
dos quarteirões quase vazio de casas que por ali
na época havia.
Acreditava-se sim em tanta coisa ruim,
mas também se acreditava em quanta coisa boa,
como os benzimentos que hoje são tidos como
mera ignorância dos tempos de antão.
Póstumas
52
Por certo que a cultura e os conheci-
mentos atuais tornam as pessoas mais “sangue
frio” em relação a acontecimentos estranhos
que ocorram nos seus dias.
Quanto a mim, prefiro ainda ficar com o
velho e bom salamanquino: “Yo no creo em
fantasmas, pero estan ahí!”
Contavam que Eloir, operador de
debulhadeira de milho (aquelas geringonças
barulhentas cheias de engrenagens e correias,
montadas sobre caminhões muito velhos por
isso passiveis de enguiçar em qualquer tempo e
lugar), atrasou-se no seu serviço numa roça da
região de Ribeirão Bonito. Ao retornar para
Sertaneja, já altas horas da noite, eis que o
danado do caminhão “afogou” defronte o por-
tão do cemitério municipal e, embora uma
dezena de frustradas tentativas de “fazer o
motor pegar”, não houve acordo com o seu
velho companheiro de labuta. Cheio de
imaginação e pavor conseqüente delas, Eloir
abandonou seu caminhão e correu para a
cidade, só voltando com o sol alto da manhã
D’Ori Vergalhão
53
seguinte, na companhia dum mecânico, para
resgatá-lo. Coisas de mera “paúra”.
Parece-me que, salvo engano, os misté-
rios e o medo eram mais difundidos na alma da
gente humilde daquela época. De forma que os
sacis-pererês se esbaldavam com suas traves-
suras noite adentro, a sujar roupas nos varais ou
dar nós na crina e rabo dos cavalos, enquanto
mulas soltavam terríveis labaredas pelo pescoço
sem cabeça, em galopes infernais pelas inver-
nadas, ateando fogo nos matagais e galpões das
redondezas. Também eu, nisso tudo acreditava!
Assim, concluí ser obra das medonhas, no
final da década de cinquenta, o incêndio que
dizimou a máquina de beneficio de café que se
localizava no alto da Rua Rocha Pombo, por ali
onde é hoje a Praça Vereador Álvaro Silvestre
Lanza.
Certamente foi esse o acontecimento de
maior repercussão na cidade, depois dum outro
incêndio, alguns anos antes, que veio a destruir
o gerador de força a diesel que gerava luz
elétrica, somente à noite e até as vinte e duas
Póstumas
54
horas, isso antes da chegada da COPEL. Três
piscadinhas na lâmpada para avisar que o
morador incauto ainda acordado (se dormia
com as galinhas nessa época), carecia acender
incontinenti a lamparina a querosene.
Era, pois, José Gonçalves o encarregado
da operação e manutenção de tal equipamento
quando foi inutilizado pelo fogo, porém a perícia
comprovou sua inocência ante a ocorrência do
fatídico acidente. Com justiça.
Convenhamos seja mesmo uma péssima
combinação a desses geradores de energia, e tu-
do pode acontecer se uma faísca elétrica maro-
tinha pular, num abraço afetuoso, ao pescoço
do galã combustível fóssil, como aconteceu na-
quela noite.
Mas o desastre culminou por trazer orgu-
lho à cidade. O sinistro teve repercussão
nacional na voz do locutor Heron Domingues do
Repórter Esso.
Bons tempos.
D’Ori Vergalhão
55
Como não havia força elétrica durante o
período diurno e grande parte da noite, bares
“chiques”, como o Cine-Bar, exibiam suas
geladeiras também a querosene, coisa que hoje
em dia nem se cogita que possa ter tido a
ousadia de existir. Já os bares mais pobres
mantinham as garrafas de guaranás e cervejas
sob o assoalho, em porões cheios de pó de serra
ou palha de arroz, de modo a conservar seu
líquido fresquinho e agradável ao paladar pouco
exigente dos fregueses de então.
Por falar no Cine-Bar, ganhou esse nome
por ter sido cinema também, anos antes de abrir
portas o glorioso Cine Sertaneja com sessões
cinematográficas praticamente todas as noites
e, aos domingos, a matinê as quatorze horas e
logo mais a sessão noturna, quando então se
dividia a mocidade, um naco dela se dirigindo ao
cinema e o outro, bem maior, preferindo
permanecer na praça em prazeroso “foot”,
como se dizia na linguagem popular da época,
que consistia em rapazes e mocinhas passearem
pelas calçadas aos flertes e piscadelas ingênuos.
Póstumas
56
As quermesses também eram esperadas
ansiosamente pela população, com tantas
moças bonitas a desfilar no pátio da Igreja,
distribuindo correios elegantes aos rapazes.
Havia queima de fogos de artifício, leilões de
frango assado, bingos e o interessante torneio
geográfico, esse uma tradição local, imitando o
tradicional bingo, mas com nomes de cidades no
lugar dos números.
Abrilhantadas por um locutor magnífico,
Eli Corrêa, hoje renomado radialista na capital
paulista, as quermesses eram algo especial por
unirem festividade e religião, sempre precedidas
pela procissão em louvor a alguma santidade. Eli
Corrêa morou naquela época com sua avó, a
querida Dona Marta, proprietária de uma
pensão na Avenida Presidente Vargas. Também
trabalhou por muitos anos na loja das Casas
Pernambucanas, instalada no prédio da esquina
da Rua 15 de Novembro com Praça Municipal,
começando, ainda rapazote, como empacotador
e vindo depois a tornar-se um dos seus mais
eficientes vendedores.
D’Ori Vergalhão
57
Além dessas opções de lazer, o campo de
futebol promovia, com time oficial onde
atuaram jogadores profissionais como os
saudosos Maurinho, Toninho Franjinha e Simão,
a alegria das tardes quentes dos domingos. Já
nas noites de gala e nos carnavais, o Clube
Japonês foi o badalo da juventude sertanejense
dessa época de ouro que deixou saudades.
Tempo esse sim, de profunda paz e
harmonia, que marcou uma época garbosa.
Não tenho lembranças de malandragens
ou crimes. Ah!... Sim! Recordo-me de quatro,
apenas quatro crimes em mais de vinte e cinco
anos que morei na minha pequena e adorável
cidade. Em 1961 ou meados de 1962 policiais,
não sem uma ajuda de outros moradores,
mataram a tiros um ladrão que tentara assaltar,
em plena luz do dia, a sorveteria do Ogo,
localizada no prédio do Posto Atlantic. Mas o
sujeito não era cidadão local, estava de
passagem pela cidade. Acabou sendo enterrado
como indigente no cemitério municipal, pois
nenhum parente apareceu para resgatar o corpo
Póstumas
58
do facínora. Anos antes, quando a estação
rodoviária, dois pavilhões de alvenaria bastante
feios, ainda ocupava parte do terreno da praça
central, um viajante matou com um tiro o
cobrador de ônibus da pioneira Empresa de
ônibus Fioravante, que o agredira com um soco,
por um mal entendido troco de passagem. E
duas mulheres mortas pelos seus homens e
carrascos. A primeira a chicotadas, num barraco
próximo ao rio Congonhas. Esse sim, embora
somente sabendo por relato dos meus pais, pois
aconteceu quando Sertaneja ainda era um
arraial, assombrou meus anos de infância pela
crueldade com a mulher, coisa que nunca aceitei
desde que me entendo por gente. O segundo,
não de menor monta de maldade, foi na casa
defronte a que morei com meus pais por alguns
anos, no finzinho da Avenida Presidente Vargas.
Um ferreiro baleou a esposa, não se importando
com os filhos todos ali presentes, a caçulinha
sendo alimentada no colo da mãe barbaramente
assassinada.
No entanto, sempre se pôde considerar
Sertaneja uma cidade devotada à paz e
D’Ori Vergalhão
59
harmonia entre seus moradores, diferente-
mente de outras localidades próximas que,
principalmente em épocas de eleições, homi-
cídios eram corriqueiros.
Porém a índole pacífica e a cordialidade
da gente sertanejense não a impediu de
também ir à luta por seus direitos, quando foi
preciso. O episódio do Quinhão 11 mostrou sua
têmpera de pegar as armas, se necessário, em
defesa da propriedade. Melhor que tenha
prevalecido o bom senso da autoridade estadual
de então para garantir a paz e a posse das terras
a quem a cultivava já por tantos anos. Bem dita
a oração feita para marcar a época, que guardei
na memória:
O bom lavrador trabalha terras sertane-
jenses, retira delas com primor e garra nunca
vistos, os alimentos que vão às mesas brasi-
leiras. A eles, pois a terra! A eles honra e gloria
merecidas! A eles o eterno agradecimento!
Póstumas
60
Mais uma vez tenho que parar, pois o
“amigo” chama-me novamente.
Peço que tenha paciência comigo, caro
leitor, já que não consigo furtar-me ao “seu”
apelo. Não tenho mesmo uma saída.
D’Ori Vergalhão
61
VII
Acordei zambeiro e confuso no interior
dum quarto estranho, lugar nunca dantes visto.
Olhei ao redor. As paredes pintadas num tom
branco perola e adornadas por alguns quadros
com pinturas graciosas, contrastavam com as
imundas da minha cela no cárcere onde passara
alguns meses trancafiado.
No teto, agora, eu já não via as pequenas
e laboriosas aranhas negras no afã incansável de
tecerem suas teias.
Desci da cama limpa e confortável onde
estava deitado, fui cambaleante até a janela
reforçada com grades, mas contendo vidros a
impedir a entrada do vento ou da chuva.
Lá em baixo, na rua que passava próximo
ao edifício, se fazia intenso movimento de
carros. O rumor da cidade grande feria meus
ouvidos, dava-me ímpetos de fugir dali para os
matos distantes e solitários a procura de paz e
serenidade.
Póstumas
62
Ouvi a porta abrir-se dando passagem aos
enfermeiros nas suas roupas alvas, imitando
anjos.
- Bom dia! Sente-se melhor agora?
Abaixei a cabeça, não respondi. Vinham,
com certeza, dar-me remédios, aplicar aquelas
malditas injeções dolorosas.
- O senhor precisa voltar à sua cama.
Vamos lhe fazer alguns exames, mas antes é
importante ministrar-lhe alguns medicamentos.
Resignado, voltei ao meu leito. Um dos
enfermeiros percebendo o meu nervosismo
sorriu e tratou de acalmar-me.
- Fique tranqüilo! Esta é a melhor clinica
do país. Agradeça à bondade do seu pai que
aqui o internou.
Senti meu corpo todo estremecer.
- Meu pai?...
D’Ori Vergalhão
63
O tempo transcorria sem pressa na minha
nova prisão. Mas ali era diferente, pois eu tinha
a liberdade de caminhar pelos jardins do pátio
ou trabalhar na horta comunitária. Conforme a
equipe médica, meu quadro clinico era satisfa-
tório, curava-me enfim da paranóia que me
acompanhava desde menino. Fiz amizade com
vários internos, aprendi com eles tantas coisas.
João de Barro foi um deles. Seu nome real
era João de Menezes Neto, mas todos o
chamavam pelo nome passarinhesco, pois
passava quase a totalidade de seu tempo
sentado sob as laranjeiras, brincando de fazer
bichinhos de barro que depois levava ao sol para
secar.
Muitas vezes sentava-me ao seu lado e o
ajudava no seu afã, mas sempre procurando
fazer bonequinhos imperfeitos para em seguida
elogiar os seus como melhores que os meus.
Isso o tornava feliz, ria contente da vida e
me presenteava com algumas de suas obras
primas, que eu guardava no meu quarto,
reservando-as para minha querida Ana Clara.
Póstumas
64
- Ana Clara. Quero vê-la. Deixei-a sentada
sobre a pedra do ribeirão. Preciso Buscá-la!
Preciso! É-me importante buscá-la, doutor.
Implorei ao atendente, as lágrimas a me
escorrer pela face sinistra numa de minhas
crises raras agora, mas não menos terríveis e
angustiantes.
Ouvi cantigas natalinas que, com certeza
provinham de algum carro publicitário, na rua.
Fui à janela espiar por entre as grades.
Chovia e, embora os primeiros dias de
dezembro esfriara e ventava forte.
D’Ori Vergalhão
65
Voltei à minha cama, deitei-me e fiquei a
olhar o teto, vã esperança de rever as aranhas
negras em suas teias balouçantes.
Um enfermeiro entrou trazendo a
bandeja contendo os frascos de comprimidos.
Enchiam-me de medicamentos fortes que me
deixavam pinéu por horas a fio. As dolorosas
sessões de choque a que me submetera no
início do tratamento, eram substituídas agora
pelas injeções malditas que faziam de mim
verdadeiro trapo humano, levando-me a
delírios, sensação de rodopiar feito pião de
corda.
Vislumbrei a criança, de princípio ofusca-
da como se cortina de fumaça a envolvesse; mas
sem demora a enxerguei nitidamente.
Ana clara brincava com sua bonequinha
verde, sentada no chão de tijolos da cozinha.
Chamei-a.
- Venha até aqui! Vou contar-lhe uma
história!...
Póstumas
66
Correu ao quarto onde eu estava, ale-
grinha sentou-se na tarimba, ao meu lado.
D’Ori Vergalhão
67
VIII
UM PEQUENO CONTO DE NATAL
Tendo então transcorrido cerca de dois
mil anos do maior acontecimento da história da
humanidade, quis Jesus nascer novamente entre
nós. Ordenou assim ao Arcanjo Gabriel que
anunciasse ao mundo a sua nova vinda.
Profetas, de todas as grandes religiões do
mundo, foram agraciados com a boa nova
anunciada e puseram-se fervorosos a cumprir os
preparativos para receber o Messias.
Construíram incontinenti grandiosos e
caríssimos templos com paredes revestidas do
mais nobre mármore e adornadas por belíssi-
mos vitrais e, dentro deles, adequaram berço
confeccionado de ouro e cravejado de deslum-
brantes pedras preciosas, para ali aconche-
garem o Menino-Deus que renasceria entre os
homens.
Todas as igrejas do mundo disputavam
entre si nos preparativos para receber Jesus,
Póstumas
68
cada qual querendo ser melhor que as demais,
procurando fazer seus templos mais ricos e
vistosos, todas se julgando assim a merecedora
de ser escolhida para acolher ao Messias no seu
novo nascimento.
E eis que Jesus, em seu poder e sabedoria
divinos, quis nascer, não uma única, mas na
forma de várias crianças, cada qual em
determinada região do mundo.
Igrejas e catedrais repicavam sinos,
entoavam hinos de louvor Àquele que sabiam
retornar em breve.
À semelhança dos sagrados magos,
trouxeram incenso e mirra depondo-os sobre os
valorosos berços de ouro, para presentear ao
Menino-Deus na sua tão esperada chegada.
Também cuidaram dos preparativos para
uma grande festa, escolheram os melhores
novilhos para o sacrifício e encomendaram os
mais finos e caros vinhos, fazendo desta forma o
melhor possível para homenagear ao pequeno
Deus que estava prestes a voltar ao mundo.
D’Ori Vergalhão
69
Foi então que, naquela madrugada de
vinte e cinco de dezembro, brilhou novamente,
em sete lugares longínquos da terra, a estrela
guia prenunciando o tão esperado retorno do
Salvador.
Assim Jesus veio a nascer pobrezinho
entre os famintos da Somália.
Também nasceu num barraco de palha,
junto aos infectados pelo Ebola na Serra Leoa.
Na Faixa de Gaza, meio aos palestinos
massacrados pela força bélica israelense e pela
crueldade do terrorismo do Hamas, Jesus
também nasceu.
Outros três casebres em locais distantes e
miseráveis do planeta receberam a vinda do
Menino-Deus e os pobrezinhos que o acolheram
não tiveram além de trapos para agasalhá-lo.
E, contrariando todas as tradições religi-
osas e bíblicas do passado, eis que veio a nascer
uma menina-deus naquela noite natalina. Numa
região também paupérrima onde impera a pior
e mais perversa atitude humana que se tem
Póstumas
70
conhecimento. Lá, entre as meninas do Nepal
predestinadas a serem vendidas, como escravas,
para os povos prósperos da vizinhança, aos seis,
dez, doze anos de idade...
D’Ori Vergalhão
71
IX
Como era bom pescar no Rio Congonhas!
Não fica próximo da cidade, mas não
longe o suficiente a impedir que, aos sábados e
domingos, juntássemos nossas tralhas de pesca
e caminhássemos os poucos quilômetros, até a
ponte.
Foi, pois, dessa ponte que, nos anos
sessenta, um caminhão desenfreado caiu nas
águas do rio matando um dos colegas que ali
nadava.
A caminhada era tumultuada pela alegria
juvenil a que tínhamos todo direito. No trajeto
passávamos pela Fazenda Moinho. Já não havia
moinho algum, com certeza o nome da
propriedade se originara dalgum velho moinho
que ali existira no passado. Mas o seu nome me
fascinava pela grandiosidade que o mesmo
representava. O relacionava aos moinhos de
vento de Dom Quixote, a castelos medievais
ostentando fidalgos ricamente vestidos, a cava-
leiros andantes socados nas suas reluzentes
Póstumas
72
armaduras e munidos de lanças pontiagudas,
possuídos da valentia heróica no combate aos
gigantes assassinos que assolavam os aldeões
daquelas longínquas províncias feudais. Grande
Miguel de Cervantes.
A tragédia do amigo massacrado sobre as
pedras do leito do rio Congonhas foi um
desalento. Mas não deixamos de ir fazer nossas
pescarias e nadar nas águas turvas daquele rio
tão querido.
Ante essa recordação, me vêm à mente
os muitos companheiros de infância que
morreram. Esse, talvez, foi o de forma mais
dolorosa, mas tantos outros também deixaram
saudades, como a pequena Elizabete vítima de
uma desastrosa cirurgia das amígdalas, no
pequeno hospital da esquina da Avenida Sete de
Setembro com a Rua Vicente Machado, ali onde
posteriormente foi casa das Irmãs Dominicanas.
Também Ivani, vitimada por um raio quando,
juntamente com sua mãe, procurou proteção da
chuva sob algumas bananeiras na roça e Dair,
intoxicado por defensivo agrícola aplicado na
D’Ori Vergalhão
73
lavoura de soja. Poderia falar de todos, mas
talvez deixasse o leitor entediado. Preferi citar
apenas esses quatro, pois me atingiram de
maneira singular pela amizade que lhes tinha,
pelo meu convívio com seus familiares.
Passa-se a impressão de que a morte,
naqueles tempos, assolava com mais assidui-
dade as famílias, talvez pela vulnerabilidade
científica da época, os poucos recursos hospi-
talares e farmacêuticos de então.
Mas tínhamos sim um senhor médico que
dedicou longos anos à comunidade sertanejense
e uma infinidade de vidas salvou. Meu pai, em
tantas ocasiões, chamado para levá-lo com seu
carro de praça em socorro dos doentes,
lembrava as dificuldades de se chegar as suas
moradias, principalmente em noites chuvosas,
naqueles grotões de outrora. Para trazer o
enfermo até o seu consultório, em Sertaneja, às
vezes era necessário amarrá-lo sentado numa
cadeira, assim carregada por dois homens até o
carro deixado na estrada, quase sempre distante
Póstumas
74
centenas de metros dos ranchos daquela brava
gente.
Dr. Waldemar Scardazzi. Seu nome a uma
rua ou praça é apenas uma migalha da afeição
que todos nós lhe temos, a gratidão nunca
suficiente pelos anos dedicados a curar-nos as
feridas. Nunca serão esquecidos seu esforço e
bravura para com nossa boa gente. Deus o
tenha, heróico amigo.
D’Ori Vergalhão
75
X
Os laudos médicos eram-me favoráveis.
Comprovavam rápida e progressiva recupe-
ração da minha saúde mental; tanto que já
cogitava o chefe clínico dar-me alta.
Realmente sentia-me melhor, sem as
crises de loucura que me perseguiam desde a
meninice.
Creio que muito me serviu o convívio com
os outros doentes. A minha deliberação em
ajudá-los nos seus infortúnios, meus esforços
em entender seus desatinos, foram para os
meus o melhor e mais eficiente remédio. Assim,
os compreendendo e participando dos seus
recalques e delírios, foi-me compensador e
benéfico; vivenciar suas demências culminou em
superação das minhas.
No entanto, nas noites escuras quando
se desligava a luz do quarto, tinha minhas
recaídas. Mas, apesar do medo ainda, da aflição,
dos temores que me envolviam corpo e espírito,
já não ouvia os passos de plumas se abeirando
Póstumas
76
do meu leito e então eu dormia razoavelmente
bem.
João Pessoa foi meu companheiro de
quarto. Faltava-lhe um braço o que não o
impedia de trabalhar sol a sol nos jardins e na
horta da clinica. Pouco falava, mas diante da
sensatez das suas palavras, eu me punha a
indagar dos motivos que levaram o bom homem
ser internado num hospício.
- Aleijado é quem se faz!...
Disse-me um dia ao encontrá-lo a capi-
nar, prendendo o cabo da enxada com a mão
sadia e o cotó do braço decepado, nos fundos
do pomar onde fizera sua rocinha.
Raramente, a única demonstração de
insanidade mental se fazia quando, violenta-
mente, dispunha-se a bater no próprio rosto
com a mão saudável ou a morder, a ponto de
sangrar, o toco do braço esquerdo que lhe
restara.
Confidenciou-me um enfermeiro, um
belo dia, que o erro seu fora transferir todos
D’Ori Vergalhão
77
seus bens para os filhos, ao sofrer um acidente
automobilístico, por julgar certa a sua morte.
Pois não morreu e a prole, já de posse dos bens
paternos, dele se livrou internando-o naquela
clínica. Coisas da vida quotidiana passíveis de
acontecer, mas não deveriam.
Outro interno interessante foi Manoel da
Cruz Filho. Brincalhão, acompanhava-me pelo
pátio da clinica aos pulinhos em torno da minha
pessoa, enquanto eu fazia caminhada.
Isso me irritava sobremaneira e tanta vez
encurtou-me a paciência ao ponto de aplicar-lhe
um safanão.
Mas Manoel não desistia. Minutos após,
êi-lo novamente alegre e saltitante ao meu
redor.
Dizia-se poeta e, embora o seu vício
irritante de canguru maluco me aprazia em tê-lo
a recitar seus versos. Intitulava-se autor e dava a
todos os seus poemas o mesmo nome.
Póstumas
78
Dos tantos versos declamados por
Manoel, os mais interessantes foram esses que
ainda hoje se conservam na minha memória:
D’Ori Vergalhão
79
XI
VERSOS LOUCOS
É domingo... Ou segunda?... Ou sexta?
No rodar da vida acho-me perdido!
Talvez esteja eu completamente bêbado...
Sem ter uma gota sequer bebido?
Somente sei que ainda é muito cedo...
Meio a rua eu paro, sinto a cabeça tonta,
Olho ao redor não vejo uma saída...
Quem na pele não há sofrido algum suplício?
O mundo é um grande hospício
E ninguém disso ainda deu-se conta.
Póstumas
80
Trago um nó terrível na garganta,
O mais cruel que aperta e lentamente mata...
De que me vale crispar meus dedos no pescoço?
Olhar ao céu e recorrer à Santa?
Se este nem Nossa Senhora dos Nós desata!...
Lágrimas teimam a me correr dos olhos
E eis que ao invés de chorar, quero cantar...
Mas o meu canto extingue-se em abrolhos...
Então volto a querer chorar... E adianta?
Sim! Faz bem cantar... Faz bem chorar...
Porém finda o canto... O choro não perdura...
E retorno por ai a trambecar.
Vale a pena querer bem a uma pessoa?
Se o amor nos trai, nos dana e nos tortura...
De tanta dor mais dói a dor de amar!
D’Ori Vergalhão
81
Então amar não aspiro mais na vida...
E embora isso aos quatro ventos brade,
Volto a amar querer, sem rumo nem
guarida...
É alfinetada que sem dó perfura...
É como estar sob o jugo cruel de Sade...
Em cada esquina eu chego assim sem norte,
Vislumbro o sol que galga o céu sem pressa...
Ilumina a vida!... Iluminará também a morte?
Trará calor ao corpo enrijecido?
Não creio... A morte é tudo o que não faz
sentido.
Póstumas
82
Quero correr... Mas canso-me na partida...
Como hei de chegar se já não tenho ido?
Assim como querer voltar quem nunca
veio...
Dançar na insanidade duma vida
Basta bater os pés nas pedras do passeio.
Aí me cercam os cães vadios... E rosnam... E
ladram...
Vêm fazer-me filósofo nestas horas ingratas.
Vivemos, pois num mundo de cachorros...
Não sei quais são piores:
Os de quatro? Ou os de duas patas?
D’Ori Vergalhão
83
Os quadrúpedes, por vezes, só nos mostram
os dentes,
Quando muito nossas carnes estraçalham.
Já os bípedes têm muito mais maldade...
Além de o coração sangrar-nos sem piedade,
Dilaceram-nos também a alma, inclementes.
Póstumas
84
D’Ori Vergalhão
85
XII
Mais uma vez eu peço que me perdoe o
amigo leitor. Seria-me mais agradável e grato
narrar aqui somente as minhas lembranças, eu
sei. Mas, se não o faço, é pela forte imposição
“dele” que me força a narrar também e,
principalmente as suas, embora tantas vezes
isso venha tornar-me aborrecido. Mas, afinal de
contas, se na minha velhice voltei a redigir foi
tão somente por essa esta sua imposição. Não
fosse “ele”, talvez nunca mais me passasse
tamanha doidice pela cabeça.
Também, as saudades me levaram a
escrever a parte que me coube, embora tantas
vezes criticado por meu amor sem medida a
esse pedaço de chão paranaense. Correto, já
que ao retornar de Mato Grosso não quis
permanecer no meu rincão querido. Tantas
coisas me levaram a essa decisão e julgo não
valer a pena aqui agora mencioná-las. Talvez
tenha sido melhor assim, que pela minha cabeça
fluem as imagens daquela Sertaneja alegre e
cordial da minha infância e juventude.
Póstumas
86
Batem-me saudades que alhures julgam
sem procedimentos, quem sabe até mesmo
idiotas.
Coisas assim como dos velhos e bonitos
soalhos encerados e polidos com esfregão e
flanela ou das paredes de tábuas da casa dos
meus pais, pintadas a cal tingido com “xadrez”
azul celeste. Ao lado da escadinha, também de
tabuas, que dava acesso à sala de estar, nunca
faltaram os pés de manjericão cheiroso, das
onze horas floridas ao sol escaldante do meio
dia e das mimosas damas da noite.
Os porões formados entre os tocos de
arvores que sustentavam as casas, além de
proporcionar abrigo para os animaizinhos
domésticos, se faziam o paraíso dos nossos
brinquedos infantis.
Também nos eram prazerosas as apostas
de corridas com carrinhos de rodas de rolimãs
no baixadão da Avenida Presidente Vargas,
embora os protestos de alguns velhos mora-
dores ante a poeira levantada e a algazarra que
fazíamos. Mas, acima de não levarmos suas
D’Ori Vergalhão
87
broncas a sério, aquelas boas pessoas ainda nos
traziam a água que lhes pedíamos junto ao
portão de balaustres de suas casas e, tantas
vezes, até uma limonada fresquinha acompa-
nhada com bolacha maria.
Corações de ouro.
Um deles, sem dúvida, o do Sr Luiz
Valério, primeiro prefeito da cidade. O conheci
já passados os anos, possuía um pequeno
empório na Avenida Barão do Cerro Azul.
Repassava as latas de leite em pó às mães
consumidoras ao preço de custo, pois não
aceitava obter lucro na venda do alimento para
as criancinhas. Alma generosa digna do nosso
respeito e consideração.
Tantas outras eu conheci!
Temístocles Mendes Vilella da Escola
Isolada da Fazenda Figueira, meu professor nos
primeiros anos de aprendizagem das letras. A
ele devo o dom da escrita, o gosto pela leitura, a
facilidade de fazer contas aritméticas tão úteis
ao meu trabalho. Na realidade, iniciei meus
Póstumas
88
estudos numa escola de apenas duas classes
que ficava na Rua Parigot de Souza, na época
uma rua de apenas um quarteirão que se
iniciava na Rua Marechal Floriano e já terminava
na Rua Machado de Assis. Na primeira esquina,
à direita, ficava a escolinha a que me refiro e na
outra a Delegacia de Policia Civil. Já os lotes
restantes, entre as duas citadas construções de
madeira e os do lado oposto da rua, com
exceção de uma pequena casa onde morou
Ivani, quase em frente à Delegacia, eram vagos e
nalguns deles se armavam os circos e parques
de diversão que visitavam a cidade. No entanto,
nesta pequena escola fui aluno por apenas
alguns meses, pois acabamos por mudar para
um sítio da região. E foi lá, com o querido
“Professor Temista”, que realmente aprendi a
ler e escrever.
Mas, voltando aos nossos folguedos
infantis, também adorávamos brincar na Rua
Boiadeira. A Fazenda Santo Antonio delimitava-
se com essa rua saudosa e cheia de magia, suas
cercas de arame farpado a se estenderem à
D’Ori Vergalhão
89
sombra das paineiras colossais plenas de cachos
de marimbondos e ninhos de bem-te-vis.
Certo que, muitas vezes, éramos atraídos
a essa rua pela curiosidade, pois nela é que
ficava a zona de meretrício. E, por isso, quase
sempre éramos acolhidos, por mãe, ou pai, ou
ambos, a doídas chineladas, no nosso retorno a
casa sempre de noitinha.
Mas, de certa forma, éramos livres para
brincarmos por toda a cidade. E Sertaneja
possuía o tamanho ideal para se caber num
coração menino. Tanto que no meu se enraizou
de tal maneira, com tamanho vigor e impe-
tuosidade, que suas raízes, fortes como as duma
espetacular e frondosa aroeira, ocupam nele
ainda hoje um grande espaço.
Mistérios insondáveis que vão pela nossa
alma, quem há de decifrá-los?
Grande cidade pequenina.
Póstumas
90
Mas eis que “ele” grita-me novamente. O
vejo perambulando, impaciente e sem sossego
como um louco, dentro do meu quarto, exigindo
minha presença com ironia e zombeteiro como
sempre; faz questão de deixar-me na lona
vencido e humilhado:
- Onde está você, velho caduco?!
Sou incapaz de escapar do seu assédio
literário. Não há remédio, pois.
D’Ori Vergalhão
91
XIII
Naquela manhã, lembro-me uma quinta
feira de muita luz, fui chamado ao gabinete do
médico diretor. Entrei relutante e tímido;
conhecia o assunto a que me chamara desde
que um enfermeiro havia adiantado, na tarde
anterior, num de nossos diálogos amigos e
cordiais a que eu me acostumara.
Postado em sua mesa de trabalho, o
homem sorria, afetuoso e feliz. Levantou-se e
veio ao meu encontro na entrada da sala, onde
eu parara, abraçou-me com efusão enquanto
dizia com voz embargada pela emoção:
- Parabéns! Você está totalmente curado.
Vai voltar, hoje ainda, para sua casa!
Senti novamente a cabeça girar, aquela
vertigem estranha que me perseguira desde
criança, o medo dos passos de plumas.
Certamente, a casa por ele referida, era a casa
do meu pai. Falei-lhe timidamente:
- Para casa, doutor?
Póstumas
92
Agora, já com as mãos sobre os meus
ombros e me encarando com um franco sorriso
de abóbora:
- Sim, meu amigo. Você está curado! Já
pode deixar a Clínica e voltar para seu pai!
Olhei-o sério, tomado da sensação de que
o mundo ao meu redor se desmoronava, já não
senhor de mim naquele momento. Senti as
pernas tremerem, o coração aos saltos dentro
do peito. Misturadas à voz do doutor as vozes
malditas voltaram a sussurrar nos meus ouvidos:
- Não conseguirás! Não lhe está
autorizado! Não lhe está autorizado!
O doutor percebeu meu estado de ânimo,
mas diante da euforia que naquele momento o
dominava, julgou se tratar meramente de
emoção pela notícia recebida.
- Ânimo rapaz. – Falou batendo-me nas
costas. – Agora é vida nova, o recomeço. Você
tem todo um futuro por sua frente! Seu pai o
quer trabalhando numa de suas indústrias, lhe
garantiu um cargo na gerência.
D’Ori Vergalhão
93
Abaixei a cabeça e chorei.
- Meu pai...
Voltei ao meu quarto a fim de juntar
minhas coisas. João Pessoa não estava como de
costume, certamente fora lidar com as plantas
da sua rocinha atrás do pomar. Não fui procurá-
lo para me despedir, nem mesmo ao poeta que
no jardim recitava, aos pulinhos.
Seguido pelo doutor mais um enfermeiro,
cheguei ao portão de saída da Clinica. O abracei,
dele me despedindo, agradeci seus cuidados.
Também apertei a mão do auxiliar que nos
acompanhara.
Póstumas
94
Sob as árvores da rua, o chofer de meu
pai aguardava ao lado do luxuoso sedan preto.
Desesperado, como se fugisse do demo-
nio, corri em direção oposta e misturei-me aos
fregueses duma feira, a dois quarteirões da
Clinica, dali tomando um rumo a esmo.
Nunca soube se se deram ao trabalho de
me procurar ou me abandonaram à própria
sorte. Nos dias seguintes perambulei pelo
centro da cidade. Sem recursos e incapaz de
esmolar, buscava restos de comida nos lixos de
mercados e restaurantes, dormia ao relento
escondido nos becos. A desnutrição, o cansaço e
a falta de perspectiva me abatiam, senti que
morreria as mínguas.
Novamente a vozes medonhas explodiam
nos meus ouvidos. Num esforço supremo me
levantei da calçada e, pela primeira vez na vida,
me debelei contra elas. Pus-me aos berros feito
louco e senti que se esvaiam com os meus
gritos, como se o som rouco e cansado que
minha garganta emitia as rechaçava para longe
de mim. Achara, finalmente, uma forma de lidar
D’Ori Vergalhão
95
com as vozes malditas, depois de tantos anos
por elas maltratado.
Minha pequena Ana Clara não mais a vi.
Quem sabe algum peixinho a retirou da pedra,
levando-a para sua moradia nas profundezas do
riacho?
Eram fortes os meus anseios de voltar. A
cidade me angustiava, punia-me cruelmente por
crimes não cometidos, tratava-me como um
pária em relação a sua grandeza e imponência,
estrangeiro em terras de ninguém. O mato, em
mim enraizado, me aprazia, vertia paz ao
coração, dava-me o sustento do corpo e
serenidade ao meu espírito. Nele eu me sentia
gente, tinha o meu valor.
Então resolvi iniciar a longa caminhada do
retorno e, só Deus sabe como, consegui voltar.
Póstumas
96
Deparei-me com minha roça tomada pela
selva, meu barraco desabado e o que mais me
maltratava, a falta de Ana Clara.
- Não! Não foi nenhum peixinho do
ribeirão que a levou... Foram os índios!
Ergui então minha cabeça ao céu tinto de azul tão fascinante, mas a baixei a seguir para entornar meu olhar sobre o verdor selvagem das matas que me circundavam. Tomado de um sorriso estranho, estirei meu dedo e mostrei a mim próprio um ponto distante naquelas selvas quase não pisadas pelo homem.
- Vou buscá-la! Eu sei onde ela se encontra! Somente eu sei como chegar lá.
D’Ori Vergalhão
97
XIV
Não fazíamos estripulias pela cidade, com
exceção de um ou outro amigo mais levado a
breca. Limitávamos a brincar pelas ruas, sem
nada quebrar ou prejuízos dar aos proprietários
de imóveis e estabelecimentos de comercio.
Não quebrávamos vidraças das casas ou
lâmpadas dos postes da rua, como hoje tão
comumente vemos por aqui. Tanto que quando
me mudei da cidade, já moço feito, na praça
eram os mesmos bancos que nos tiveram
sentados em criança a jogar “bafo”, ou
simplesmente a trocar figurinhas de jogadores
de futebol, que todos nós colecionávamos.
Havia sim, igual falei, algumas exceções,
como Boris que, nas férias escolares de 1965,
quebrou a estilingadas as vidraças do Ginásio
onde estudávamos. Esse Ginásio, uma grande
construção de madeira, existiu no terreno da
Escola Cecília Meirelles. Fosse hoje, facearia
com a Rua Castelo Branco, aberta posterior-
mente pela Prefeitura. Mas Boris não foi um
mau rapaz. Era sim, “um pouco por demais
Póstumas
98
atirado”, como dizíamos. Atirado e atirador.
Passava horas, com estilingues ou sua espin-
garda de pressão, nos cafezais próximos ao
ginásio, tirando o sossego das pobres rolinhas.
Até que certo dia, numa brincadeira de mau
gosto, atirou no Nilo, que passava ao largo num
trator. Os chumbinhos feriram o moço super-
ficialmente, mas este, para dar uma lição no
amigo, foi ao consultório do Dr. Waldemar que
aceitou o jogo e o enfaixou com esmero feito
múmia. E Nilo foi desfilar pelo centro da cidade
mostrando as faixas, se dizendo muito ferido. O
resultado teve bom efeito, pois Boris deu fim
imediato na sua espingardinha facínora e
acabou por dar também sumiço a si próprio,
tirando férias forçadas na casa dum tio, fora da
cidade. Mas era boa praça o nosso querido Boris
e seu pai um respeitado comerciante da Rua 15
de Novembro.
Quanto ao Nilo, esse sim foi um
contumaz gozador. Proprietário de uma oficina
mecânica estabelecida à Rua Governador Bento
Munhoz da Rocha Neto, lidava com ferramentas
como ninguém. Ele e o “Balanga” foram os
D’Ori Vergalhão
99
inventores malucos da cidade. Nilo carregava
consigo um binóculo feito de cano, contendo no
seu interior uma imagem de ponta cabeça. A
aposta consistia em colocar a figura de pé o que,
por mais que se tentasse, nunca acontecia. Na
realidade, o resultado do artifício era simples-
mente deixar um circulo de carvão ao redor do
olho do “pato” que virara o binóculo na cara, e
fazê-lo boquiaberto por não entender o motivo
de todos ao seu redor se escangalhar de rir.
Entre suas invenções malucas mais
geniais e apreciadas por mim, o suporte de ferro
sanfonado que trazia o telefone em direção ao
seu usuário, esta instalada no armazém do
cerealista Paulo Rett, foi uma delas. Outra, o
foguete a propulsão feito de lata que cruzou
certa manhã o céu da cidade e tomou rumo
ignorado. O acompanhamos com o olhar
comprido até se perder nos confins do espaço e,
fantasiosamente, o julgamos em pouso lunar
feito Apolo 11 sertanejense.
Das traquinagens que me lembro ter
feito, além de “furar” a lona dos circos para ver
Póstumas
100
o espetáculo de graça, nadar na lagoa próxima
ao terreno aonde posteriormente veio a se
instalar a Sogenalda foi talvez a maior, isso
porque, como o sitiante não nos permitia, íamos
ao escurão da noite, correndo o risco de sermos
picados por algum bicho peçonhento.
Mas tenho a certeza de que valeu a pena.
Prova disso é a saudade que deixou e faz assim
esse chão querido tão especial e grato a este
cansado coração. Como valeu!
Também aconteceram coisas nunca
entendidas. Uma delas na metade dos anos
sessenta, o fenômeno das borboletas amarelas.
Milhões delas voando numa única direção,
acompanhando a Av. Presidente Vargas por dias
a fio. De onde vinham e o seu destino até hoje
me encucam. E a grande mancha negra em
D’Ori Vergalhão
101
forma de bota que vimos no céu, eu e minha
irmã Zulmira Flora, quando brincávamos no
quintal da casa em que morávamos, na Rua
Marechal Deodoro. Apareceu repentinamente e
sumiu segundos após sem deixar rastros, mas
deixando indagações que perduram até os dias
de hoje.
Lembro-me bem da Rua Marechal
Deodoro. Como meu pai não tinha casa própria,
era corriqueiro mudarmos de domicilio.
Moramos nela em 1956, na terceira casa após o
templo da Congregação Cristã do Brasil para
quem vem do centro da cidade. A enxurrada
cavava valetas enormes e profundas deixando-a
intransitável até para as carroças. Mas, no
tocante a nós pequenos, se fazia verdadeiro
paraíso. Passávamos horas brincando dentro
daquelas valetas, enlameados feito porquinhos.
Gosto tanto de relembrar esses fatos,
mas são tão pessoais que não sei se possam
interessar a quem não tenha vivido pelo menos
um pouco dessa época e de forma semelhante à
deste humilde escritor. Peço então, mais uma
Póstumas
102
vez ao leitor, que tenha um mínimo de paciência
para comigo.
Também as lembranças “dele” me
deixam apreensivo e triste e, escrevendo
conjuntamente minhas recordações, procuro
suavizar, à maneira do possível, a amargura das
“suas” com a alegria das minhas.
Disse anteriormente que talvez sejamos
dois malucos sem eira nem beira. Tenho certeza
absoluta agora que o somos, de fato.
D’Ori Vergalhão
103
XV
Mais uma vez sentado na borda da minha
cama, estava ele. Queria terminar de dizer suas
lembranças.
- A selva, sempre minha verdadeira
amiga, testemunhou-me a vida e a morte.
Premiou meus últimos momentos com o delírio
da malária... Proporcionou-me a alegria de jul-
gar que morria com a cabeça reclinada no colo
de minha Ana Clara, quando o que a apoiava
não passava de uma moita de capim. Mas era
sim a minha Ana Clara. A minha querida Ana
Clara que a esse pobre velho acolheu e
acalentou meus derradeiros instantes.
Porém a morte não foi suficiente para me
libertar da maldição paterna: a angústia dos
passos de plumas, o terror daquelas mãos
lúbricas a devastar meu pequeno corpo no
negror da noite, a ameaça da lança de ferro da
grade defronte ao jardim, que me prendia aos
seus desígnios malditos, continuou no meu
espírito conturbado mesmo quando se desfez
Póstumas
104
do meu corpo estropiado. Julguei, de fato, que
não me era autorizada a libertação.
Assim, ainda prisioneiro àquela haste que
me amordaçou no transcorrer dos meus anos de
vida e na morte perdurava, resignava-me ao
fatídico.
No entanto, algo excepcional acabou por
reter minha atenção e me trazer consolo: Num
encanto inteligível, mas grato, percebi que ao
redor da casa as flores de mamãe tornavam a
renascer, colorindo a manhã como nos meus
tempos de menino. E, dentre aquelas flores que
a vida alegravam e perfumavam, ela surgiu.
Vestida de azul celeste, ornada de pequenas
estrelas prateadas, como um anjo. Chegou
sorridente e feliz até a grade do jardim que me
aprisionava, estendeu-me a mãozinha tímida-
mente. Senti que, além do milagre das flores
que ressurgiam, outro e mais poderoso me
desprendia enfim da perversão imposta por
meu pai, desde menino: O milagre daquelas
mãozinhas frágeis e inocentes que a mim se
D’Ori Vergalhão
105
elevavam trazendo libertação das angustias e
dos medos que me fizeram um louco.
Nesse momento parou de falar e ficou a
me olhar com olhos brilhantes. E eu, tomado de
emoção, quis abraça-lo, num lance de carinho
até então inexistente. Mas não cheguei a fazê-
lo. Ainda sentado à minha cama, inexplicável-
mente uma criança veio a surgir no seu colo.
Mantinha os olhos fechados, como se dormisse
serenamente.
Com seus braços rudes agora enlaçados
ao corpo daquela mimosa criança, piscou um
olho ao me dizer com voz marota:
- Não importa ser apenas um Zé
Ninguém; importa ser autêntico em tudo o que
o que se faz, jamais tornar-se uma extensão de
outrem! O que você escreveu é seu, faz parte de
Póstumas
106
você, fruto do seu espírito. Mesmo no tocante
as minhas memórias, é seu acervo pessoal, pois
você as escreveu seguindo uma característica
própria.
Importa... – Piscou-me outra vez um olho
e completou. - Apenas, ser você!
Sorriu novamente ao fazer-me um sinal
com os dedos.
- Agora é preciso que me vá. Foi grato lhe
conhecer, agradáveis os momentos e os diálo-
gos que sua presença proporcionou a esse velho
coração. Adeus, Zé! Haveremos de nos ver num
novo amanhã... Até!
Foi então que a criança ergueu a cabeça e
esboçou um sorriso, abriu os olhos e me fitou.
Deslumbrado, percebi o azul daqueles inocentes
olhos descortinar-se num infinito de luz que os
envolveu e arrebatou a um universo além, num
enlace de harmonia e esperança único, nunca
testemunhado por outros olhos humanos. Os vi
assim desaparecer num último aceno, enquanto
os sentidos me faltavam e eu desfalecia.
D’Ori Vergalhão
107
Quem?
Póstumas
108
D’Ori Vergalhão
109
FINAL
Ao recobrar os sentidos, me achava sobre
a minha cama. Incapaz de entender o que se
passara, olhei ao redor já nada conseguindo ver,
senão o negror da madrugada que a muito
avançava e fazia dos parcos móveis do meu
quarto meros espectros. Chegando de algum
lugar razoavelmente perto, o piar agourento de
uma corujinha trouxe-me estranhos arrepios.
Apertei com ambas as mãos a cabeça
numa tentativa ingrata de afastar a confusão
mental que naquele momento me possuía.
Não!... Não era plausível tudo aquilo que
eu vivenciara!... Não podia ser real o que eu
ouvira e escrevera, sob “sua” imposição, nas
vastas horas passadas com “ele”.
Senti ímpetos de gritar... Quem sabe se
também me valeria, afastando assim para longe
a voz “dele” a martelar o meu cérebro,
persistindo a zunir nos meus tímpanos como
mosca estridente?
Póstumas
110
Então gritei.
Meus berros, também roucos e cansados,
ecoaram nos meus ouvidos de forma estranha e
distante, como se viessem da boca de alguém
duma outra dimensão, não da minha boca.
Sai do meu quarto e, trôpego, consegui
chegar ao quintal dos fundos de casa. Embora o
desejo antigo, eu já não tinha pernas para
escalar árvores e trepar no telhado, como
dantes; dei-me então por contente em fitar, do
pátio onde eu me encontrava, o infinito vaga-
mente avermelhado pela manhã que não tarda-
va vir.
Sobre a minha cabeça, naquele céu min-
guado de estrelas e de sonhos, a lua sorria.
Ainda atordoado, incapaz de desgrudar
meus olhos daquele astro debochante e per-
verso que me perseguira os passos pela vida, só
restou-me a indagação:
- Meu Deus! Além de um Zé ninguém...
Serei também um louco?
D’Ori Vergalhão
111