paisagens de ruína e memória coletiva - manoel rocha

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  • 7/24/2019 Paisagens de Runa e Memria Coletiva - Manoel Rocha

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    MANOEL CLUDIO MENDES GONALVES DA ROCHA

    PAISAGENS DE RUNA E MEMRIA COLETIVA:O FENMENO DAS RUNAS E AS MEMRIAS DE MESTRES DE OFCIO E

    ANTIGOS MORADORES DA CIDADE DE BELM

    BELM2011

    Trabalho de concluso de curso apresentado Faculdade de Cincias Sociais, da Universidade Federaldo Par, como parte das atividades para obteno dottulo de Licenciatura e Bacharelado em CinciasSociais, com nfase em Antropologia.Orientador: Prof. Dr. Flvio Leonel Abreu da Silveira.rea de concentrao: Antropologia Urbana.

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    MANOEL CLUDIO MENDES GONALVES DA ROCHA

    PAISAGENS DE RUNA E MEMRIA COLETIVA:O FENMENO DAS RUNAS E AS MEMRIAS DE MESTRES DE OFCIO E ANTIGOS

    MORADORES DA CIDADE DE BELM

    Trabalho de concluso de curso apresentado Faculdade de Cincias Sociais, da Universidade

    Federal do Par, como parte das atividades para obteno do ttulo de Licenciatura eBacharelado em Cincias Sociais, com nfase em Antropologia.Orientador: Prof. Dr. Flvio Leonel Abreu da Silveira

    Banca Examinadora:

    _____________________________________Prof. Dr. FLVIO LEONEL ABREU DA SILVEIRA

    Orientador

    _____________________________________Prof. Msc. MAURO VIANNA BARRETO / Universidade Federal do Par UFPA

    Examinador

    Aprovado em: ______/______/______

    Conceito: _______________________

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo imensamente a todos que me ajudaram na elaborao deste trabalho.

    Primeiramente a Deus, que me concedeu tranqilidade de esprito e sabedoria suficientes para

    lidar com esta tarefa. minha famlia, por todo apoio e afeto, como tambm a rigidez de uma

    educao que me possibilitou vir a ser o homem que hoje sou. A meu orientador, Flvio

    Leonel, por ser mais que um orientador, por me reservar ateno e pacincia nestes quase dois

    anos em que trabalhamos juntos e por contribuir imensamente para meu crescimento

    acadmico. Aos interlocutores que contriburam para a realizao desta pesquisa, os senhores

    Henrique, Z Lus, e principalmente Seu Carlos e sua famlia, pessoas pelas quais guardo um

    afeto muito grande. Aos demais professores da Graduao que me conduziram ao longo deminha trajetria nas Cincias Sociais. E claro, aquelas pessoas que me agraciaram com sua

    amizade, amigos de infncia, de ensino mdio, da graduao, do acaso, enfim, amigos que

    levarei comigo por toda a vida.

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    RESUMO

    Este trabalho tem por objetivo analisar o fenmeno das runas na cidade de Belm e a

    construo de narrativas por aqueles que ocupam ou habitam as runas, tais como antigosmoradores e mestres de ofcio, de modo a revelar a dinmica de construo das memrias queenvolvem as transformaes das paisagens da cidade. Deste modo, a pesquisa centrou-se emtrs bairros de Belm onde foi encontrada grande concentrao de runas os bairrosCampina, Batista Campos e Comrcio. O estudo foi realizado atravs de pesquisabibliogrfica e pesquisa de campo, a qual se deu atravs de observao participante versadaem caminhadas sistemticas inspiradas na figura do flneur, personagem baudeleiriano emanuteno de dirio de campo. Foram realizadas entrevistas com mestres de ofcio e antigosmoradores dos bairros citados, registradas com auxlio de gravador digital e dirio de campo.Utilizou-se tambm o recurso fotogrfico, a fim de compor narrativas etnogrficas atravs daimagem. Atravs do contato com os mestres de ofcio Seu Henrique e Z Lus o primeiro

    barbeiro na Rua Gaspar Viana h 25 anos, o segundo trabalha como sapateiro desde os 10anos de idade (hoje tem 45) e com Seu Carlos, morador de Batista Campos h 60 anos, foipossvel analisar a forma como estes percebem as transformaes no mundo urbanobelenense, bem como as suas trajetrias e a relao com o ofcio.

    Palavras-chave: Runa, Memria, Paisagem, Narrativa, Belm.

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    ABSTRACT

    The objective of the present study is to analyze the phenomenon of ruins in Belm and the

    construction of narratives by people that occupy or inhabit the ruins, such as ancient dwellersand craft masters, revealing the dynamics of construction of memoirs that involve thetransformations of towns landscapes. By this way, the research focused in three Belmsdistricts where was found a large concentration of ruins the districts Campina, BatistaCampos and Comrcio. The search was accomplished by bibliographic research and fieldresearch, by participant observation versed in systematic walking inspired on flneur,baudeleirian character and field diary keeping. Interviews was realized with craft mastersand old dwellers of cited districts, registered with digital recorder and at field diary. It wasalso utilized photographic resource, to compose ethnographic narratives by image. Throughthe contact with craft masters sir Henrique and Z Lus the first works as barber in GasparViana Street at 25 years, the second works as shoemaker since he was 10 years old (today

    hes 45) and sir Carlos, Batista Camposs dweller at 60 years, was possible to analyze theway this people realize the transformations in Belms urban world, as well as theirtrajectories and the relation with the craft.

    Key-words: Ruin, Memory, Landscape, Narrative, Belm.

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    NDICE DE ILUSTRAES

    1.

    Panormica da rua Frutuoso Guimares.......................................................................11

    2. Casa antiga localizada na rua Frutuoso Guimares......................................................12

    3. Bar localizado em uma casa antiga na rua Frutuoso Guimares.................................12

    4. Prdios antigos de uma ruela prxima Frutuoso Guimares....................................12

    5. Mapa referencial .............................................................................................................15

    6. Mapa do bairro de Batista Campos. ...............................................................................16

    7. Mapa dos bairros Campina e Comrcio.........................................................................16

    8.

    Barbeiro Negro. Fotografia de Christiano Junior.........................................................219.

    Barbeiros Ambulantes. Obra de Jean-Baptist Debret...................................................22

    10.Panormica da rua Gaspar Viana...................................................................................25

    11.Prdio arruinado localizado na rua Gaspar Viana. ......................................................25

    12.Prdios antigos e arruinados localizados prximo barbearia. ..................................25

    13.Natureza e obra humana conformando a runa. ...........................................................25

    14.Prdio da Cooperativa SOCIPE..................................................................................26

    15.

    Prdio da Cooperativa SOCIPE..................................................................................2616.Seu Henrique e um amigo conversando na entrada da barbearia...............................26

    17.Prdio da Cooperativa SOCIPE..................................................................................26

    18.Prdio do jornal O liberal ...............................................................................................28

    19.Prdio do jornal O liberal ...............................................................................................28

    20.Entrada da barbearia de Seu Henrique .........................................................................36

    21.Interior da barbearia. ......................................................................................................36

    22.

    Interior da barbearia. ................................................... ..................................................3623.Poltrona onde o barbeiro atende seus clientes. ..............................................................37

    24.Cartazes colados parede da barbearia. .......................................................................37

    25.Cartazes colados parede da barbearia. .......................................................................37

    26.Lojas situadas em prdios antigos nas proximidades do Shopping Ptio Belm........39

    27.A Praa Batista Campos de Antnio Lemos. Fotografia de Clich Girard.................42

    28.A Praa Batista Campos de Antnio Lemos. Fotografia de Clich Girard.................42

    29.Casa da famlia Sampaio..................................................................................................46

    30.Oficina Ponto a Ponto.......................................................................................................46

    31.Entrada da Oficina Ponto a Ponto. .................................................................................46

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    32.Casa da famlia Sampaio..................................................................................................48

    33.Casa da famlia Sampaio. .................................................... ...........................................48

    34.Casa da famlia Sampaio. ................................................................................................48

    35.

    Interior da oficina de conserto de sapatos. ....................................................................58

    36.Interior da oficina de conserto de sapatos. ....................................................................58

    37.Interior da oficina de conserto de sapatos. ....................................................................58

    38.Interior da oficina de conserto de sapatos. ....................................................................59

    39.O sapateiro manuseando seu instrumental de trabalho. ..............................................59

    40.O sapateiro manuseando seu instrumental de trabalho. ..............................................59

    41.O sapateiro manuseando seu instrumental de trabalho. ..............................................59

    42.

    Natureza e obra humana conformando a runa. ...........................................................6643.

    Runa na rua Frutuoso Guimares. .................................................. .............................67

    44.Runa na rua Frutuoso Guimares. ................................................................................67

    45.Runa na rua Frutuoso Guimares. ................................................................................67

    46.Runa de prdio na rua Gaspar Viana. Natureza e obra humana conformando a

    runa .................................................................................................................................68

    47.Runa de prdio na rua Gaspar Viana. Natureza e obra humana conformando a

    runa .................................................................................................................................6848.Runa de prdio na rua Gaspar Viana. Natureza e obra humana conformando a

    runa .................................................................................................................................68

    49.Poro da casa da famlia Sampaio. .................................................................................70

    50.Bicicleta estacionada no poro. .................................................... ..................................70

    51.Estacionamento de bicicletas no poro. .........................................................................71

    52.Aviso junto porta do poro. .........................................................................................71

    53.

    Carlinhos, filho mais velho de Seu Carlos e Dona Janira, e um amigo........................7454.A mesa onde so servidos os clientes. .............................................................................74

    55.Seu Carlos fazendo anotaes. .................................................... ...................................74

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    SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................................... 91. COMO VAI SER O CORTE? ...................................................................................... 19

    1.1. As narrativas de seu Henrique ...................................................................................... 19

    1.2. A gnese da profisso de barbeiro .................................................................................20

    1.3. A rua Gaspar Viana a partir da tica de um barbeiro ................................................24

    1.4. De tesoura e pente na mo ..................................................................................... ........30

    1.5. Os processos de sociao e a (re)construo das memrias ........................................33

    2. NARRANDO O PRESENTE E O PASSADO ................................................................. 392.1. As memrias do bairro Batista Campos contadas por antigos moradores e

    profissionais da Rua Veiga Cabral ....................................................................................... 39

    2.2. O bairro de Batista Campos de ontem e de hoje .........................................................40

    2.3. Um olhar panormico sobre o bairro Batista Campos ......................................... .......43

    2.4. Os prdios antigos da Rua Veiga Cabral ..................................................................... 45

    2.5. As transformaes nas paisagens do bairro Batista Campos a partir da perspectiva

    de Seu Carlos ........................................................................................................................502.6. A Oficina Ponto a Ponto ..............................................................................................54

    3. BELM E O FENMENO DAS RUNAS ...................................................................... 60

    3.1. Consideraes acerca da conformao de paisagens de runas ..................................60

    3.2. A paisagem enquanto fenmeno da cultura .................................................................61

    3.3. As trajetrias sociais e o fenmeno das paisagens em Belm ................................... ...64

    3.4. As paisagens de runas no mundo urbano belenense ...................................................65

    4. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................75

    BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................78

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    INTRODUO

    O estudo em questo decorre da pesquisa realizada entre os anos de 2010 e 2011,

    ocasio na qual fui bolsista de iniciao cientfica (PIBIC/CNPq), vinculado ao Projeto de

    Pesquisa Paisagens culturais, memria coletiva e trajetrias sociais. Estudo antropolgico de

    fronteiras culturais no mundo urbano contemporneo na cidade de Belm Par,

    coordenado pelo Prof. Dr. Flvio Leonel Abreu da Silveira, orientador deste trabalho. Neste

    perodo, desenvolvi o Plano de Trabalho Prdios antigos e paisagens arruinadas na cidade de

    Belm. Estudo das narrativas fantsticas entre os trabalhadores e as transformaes do

    mundo urbano.

    Este trabalho consiste no estudo do processo de arruinamento de casas e prdios

    antigos na cidade de Belm e a construo das narrativas fantstica por aqueles que ocupam

    ou habitam tais runas, como os antigos moradores e os profissionais que exercem seus ofcios

    h bastante tempo no local. Assim sendo, um estudo acerca do fenmeno das runas e a

    (re)configurao de paisagens no mundo urbano belenense entre elas as fantsticas , a

    relao destas com os indivduos que praticam o lugar, os valores, os sentimentos, os

    smbolos e o pertencimento cidade, frutos da interao entre as pessoas e o meio praticado

    (DE CERTEAU, 1994), bem como as percepes, sensibilidades e afetividades destes atoressociais com relao s transformaes das paisagens, a dinmica das prticas sociais e os

    processos de (re)construo da memria coletiva. Nestes termos, as paisagens fantsticas

    estariam relacionadas a essa dimenso sutil das memrias dos habitantes de Belm,

    considerando, ainda, o assombroso sob a forma das visagens que persistem como imagens do

    terror e do medo.

    As reflexes propostas por este estudo inspiram-se na noo de runa discutida por

    Georg Simmel (1998), que considera esta como uma obra reivindicada pela natureza, onde oselementos elevados a partir das aspiraes e do esprito humano se perdem e desaparecem, e

    novos so incorporados pelas foras da natureza. Assim, conforma-se um conjunto novo e

    diverso, uma totalidade distinta da obra humana, que acaba por conferir novos sentidos ao

    meio praticado (DE CERTEAU, 1994). Sendo assim, este estudo busca encontrar nas

    narrativas de profissionais e moradores que ocupam/habitam casas e prdios arruinados ou em

    processo de arruinamento, as memrias, os valores e os sentimentos que envolvem tais

    paisagens ruiniformes e sua dimenso fantstica, no sentindo de refletir sobre a relao entreos indivduos e o meio praticado, bem como o fenmeno das runas em Belm e as narrativas

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    sobre experincias sutis e assombrosas envolvendo a memria dos lugares (SILVEIRA,

    2004).

    A importncia desta pesquisa reside na necessidade de refletir sobre o mundo urbano

    belenense a partir de uma abordagem da experincia de vida de antigos moradores e

    profissionais que exercem ofcios considerados tradicionais (tais como barbeiros, sapateiros,

    alfaiates, costureiras, entre outros), tendo em vista a carncia de pesquisas que explorem as

    trajetrias sociais de sujeitos que vivenciaram as paisagens de uma Belm de outrora e que

    para o senso comum, j estariam perdidos no tempo ou caminhando rumo poeira do

    esquecimento. Tais reflexes abordam mais especificamente o que diz respeito s

    perspectivas de velhos moradores e mestres de ofcio dos bairros que vem sendo pesquisados,

    bem como s narrativas ligadas transformao das paisagens urbanas e o processo dearruinamento de antigas edificaes e as suas vivncias no mundo urbano belenense. O que

    fica em questo, a possibilidade de dar espao fala dos narradores urbanos, ou seja,

    aqueles atores sociais que narram a cidade e que esto longe de desaparecer, na medida em

    que so guardies da memria da cidade e atravs de suas profisses exercem papel de

    destaque dentre as prticas cotidianas da capital paraense.

    O ato de narrar, esta forma artesanal de comunicao, se constitui atravs da troca de

    experincias: o narrador constri as narrativas a partir de suas prprias memrias, do vivido edo praticado ou do que relatado por outros, e ao rememorar atravs do que conta, incorpora

    as coisas narradas experincia de seus ouvintes (BENJAMIN, 1996). A narrativa, diferente

    da mera difuso de informaes, no est interessada em transmitir o puro em si da coisa

    narrada. Aquele que narra evita explicaes, renunciando as sutilezas psicolgicas e

    transmitindo com a maior naturalidade e exatido o extraordinrio e o miraculoso

    (BENJAMIN, 1996). A arte de narrar se faz quando uma histria contada outra vez,

    mantendo vivo o curso das trocas das experincias entre a figura do narrador e a do ouvinte,intercmbio atravs do qual, por vezes, um se faz na figura do outro e vice-versa.

    A figura do narrador e o ato de narrar perdem, segundo Benjamin (1996), cada vez

    mais espao no mundo moderno. A experincia que anda de boca em boca cada vez

    menos valorizada no seio de uma sociedade que privilegia a novidade da informao, a

    transmisso dos fatos explicados e descritos em sua brevidade, desprovida da natureza

    criadorada narrativa (BENJAMIN, 1996). exatamente no intercmbio de experincias que

    reside na arte de narrar que a pesquisa busca encontrar a construo de memrias, a disperso

    de histrias na vida citadina, a formao de valores, sentidos e de sentimentos de pertena que

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    envolvam no somente a runa, mas todo o meio praticado que lhe cerca, constituindo a aura

    das paisagens belenenses.

    Este estudo tem por objetivo analisar as formas sociais e seus arranjos, presentes nas

    runas das edificaes antigas existentes em trs bairros da cidade de Belm (PA)

    predominantemente o bairro da Campina, passando pelo bairro da Batista Campos e se

    estendendo ao bairro do Comrcio mediante as narrativas dos velhos moradores desses

    locais e aquelas dos mestres de ofcio que ali trabalham, para conhecer os processos de

    transformao das paisagens presentes no mundo urbano belenense e, conseqentemente, do

    imaginrio relativo s narrativas sobre o universo simblico-afetivo, presentes em tais

    construes e em seus arredores.

    1. Imagem Panormica da rua Frutuoso Guimares.

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    Imagens da rua Frutuoso Guimares.1

    4. Prdios antigos de uma ruela prxima Frutuoso Guimares.

    1Imagens 2 e 3 do ndice de Ilustraes.

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    Alm disso, interessa pesquisa compreender as relaes que antigos profissionais

    tais como barbeiros, sapateiros, alfaiates, costureiras, etc. mantm com os espaos

    arruinados. Para isso, levam-se em conta as anlises e reflexes de Georg Simmel sobre a

    runa, que segundo as consideraes do autor, constitui-se enquanto obra reivindicada pela

    natureza, por suas foras e formas que crescem e conformam uma nova totalidade, onde as

    partes desaparecidas e destrudas da obra do homem constituem um conjunto diverso. A

    equao entre natureza e esprito se deslocando em favor da primeira (SIMMEL, 1998), daria

    novo sentido ao lugar praticado (CERTEAU, 1994).

    Para isso, este estudo buscou construir um mapa referencial que ser apresentado

    mais a frente dos espaos que constituem o contexto estudado, a fim de identificar os meios

    praticados e vivenciados pelos mestres de ofcio e antigos moradores, bem como as ruas commaior concentrao de antigas construes e runas existentes nos trs bairros referidos. Alm

    de coletar as narrativas dos antigos profissionais (barbeiro e sapateiro) e uma famlia de

    moradores de Batista Campos sobre as paisagens urbanas relacionadas s runas dos casares

    existentes nos locais, com o intuito de compreender os processos de arruinamento das

    edificaes ao longo do tempo, a partir das histrias contadas por estes interlocutores.

    A metodologia desta pesquisa segue a linha de reflexo sobre as narrativas acerca das

    paisagens existentes no mundo urbano belenense, tendo por inspirao a reflexo dostrabalhos realizados anteriormente dentro do Projeto de Pesquisa coordenado por meu

    orientador. Quanto aos mtodos de pesquisa antropolgica na cidade, busca-se compreender a

    dinmica do mundo urbano contemporneo, seguindo as orientaes de Gilberto Velho (1994,

    2004) e dos trabalhos de Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert, no que tange seus

    estudos sobre memria e a sobre a etnografia de rua.

    Foram estudadas as edificaes antigas arruinadas e em processo de arruinamento

    existentes em trs bairros da cidade de Belm Campina, Comrcio e Batista Campos ,atravs de mtodo antropolgico de pesquisa de campo com visitas sistemticas aos bairros,

    observao participante e manuteno de dirio de campo fundamentado nas obras de

    Bronislaw Malinowski e Willian Foote-Whyte (MALINOWSKI, 1980; FOOTE-WHYTE,

    1980). Alm disso, este estudo compreende as memrias presentes nas narrativas de velhos

    moradores desses locais e antigos profissionais (sapateiros, costureiras, barbeiros, alfaiates,

    etc.), por meio de entrevistas abertas, utilizando gravador digital. Por fim, utiliza o registro

    fotogrfico como ferramenta metodolgica, de maneira a compor narrativas etnogrficas de

    carter imagtico (ROCHA, ECKERT, 2003), pois:

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    Imagens, tais como os textos, so artefatos culturais. nesse sentido que a produo e anlisede registros fotogrficos () podem permitir a reconstituio da histria cultural de grupossociais, bem como um melhor entendimento de processos de mudana social, do impacto dasfrentes econmicas e da dinmica das relaes intertnicas. (NOVAES, 2005)

    Aliando a linguagem imagtica textual possvel, portanto, no apenas enriquecer,

    mas tambm fundamentar as reflexes e questionamentos aqui propostos. O uso da imagem

    enquanto recurso etnogrfico no apenas figurativo, pelo contrrio, constitui um importante

    meio de anlise e compreenso do que est em questo, na medida em que as fotografias no

    so meros recortes estticos da realidade em voga. A produo das imagens visa

    composio de narrativas etnogrficas que possibilitem uma linguagem imagtica que

    transmita as percepes, as sensibilidades e as afetividades que envolvem a dinmica urbana.

    As atividades de campo foram realizadas predominantemente no bairro da Campina,

    transitando tambm pela Batista Campos, e estendendo-se ao bairro do Comrcio.

    Inicialmente, samos a campo eu e Flvio2 meu orientador para mapear casares

    antigos, prdios arruinados e procurar estabelecer contato com alguns moradores antigos e

    profissionais que exercem o ofcio h bastante tempo no local.A partir de ento, delineamos o

    percurso etnogrfico que orientaria as prximas idas a campo. Inicivamos nossa trajetria em

    frente ao Shopping Ptio Belm e seguamos at a Rua Frutuoso Guimares, no bairro da

    Campina, rua onde encontramos um considervel nmero de casas antigas, algumas emprocesso de arruinamento. Continuvamos por esta at o Largo das Mercs, no Comrcio, e a

    partir de ento seguamos pela Rua Gaspar Viana.

    Nesta ltima se localiza uma srie de prdios antigos, alguns conservados outros

    arruinados, dentre eles a barbearia de Seu Henrique. neste contexto que a Rua Frutuoso

    Guimares e a Rua Gaspar Viana surgem como o locusda pesquisa, por apresentarem um rico

    cenrio de prdios e casas arruinados, conformando as paisagens materiais nas quais adere a

    dimenso sutil da paisagem fantstica da memria evocadas a partir da construo denarrativas pelos indivduos que praticam tais lugares de pertencimento.

    Caminhando ao longo da Rua Gaspar Viana, o percurso prossegue at a Avenida

    Presidente Vargas, por onde retornamos Campina, por vezes retomando a Rua General

    Gurjo, ou a Rua Gama Abreu. Na pgina seguinte est esboado um mapa do percurso

    principal, incluindo alguns caminhos alternativos que surgiam mais ou menos

    espontaneamente durante as caminhadas, e posteriormente dois mapas indicando os espaos

    2Prof. Dr. Flvio Leonel Abreu da Silveira, Programa de Ps Graduao em Antropologia (PPGA); Laboratriode Antropologia Arthur Napoleo Figueiredo (LAANF); Universidade Federal do Par (UFPA).

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    ocupados/habitados pelos interlocutores da pesquisa, um deles referente ao bairro de Batista

    Campos e o outro envolvendo os bairros Campina e Comrcio.

    5. Mapa Referencial

    1.

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    6. Mapa do bairro de Batista Campos

    7. Mapa dos bairros Campina e Comrcio

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    Os percursos foram trilhados, adotando-se a perspectiva do flneur, personagem

    presente na obra de Charles Baudelaire (BENJAMIN, 1989), to caracterstico da

    modernidade. Sobre esta efgie baudelairiana, segue a reflexo:

    O personagem baudelairiano, o flneur, caminha na cidade: um percurso sem compromissos,sem destino fixo. O estado de alma deste personagem-tipo de indiferena, mas seus passostraam uma trajetria, um itinerrio que concebe a cidade, o movimento urbano, a massaefmera, o processo de civilizao. Logo, esta no uma caminhada inocente. A cidade estrutura e relaes sociais, economia e mercado; poltica, esttica e poesia. A cidade igualmente tenso, anonimato, indiferena, desprezo, agonia, crise e violncia. (ROCHA,ECKERT, 2003).

    O etngrafo de rua (ROCHA, ECKERT, 2003), inspirado na figura do flneur,

    caminha na cidade, deixando-se levar por seus passos, peregrinando aleatoriamente por ruas,ruelas e avenidas. Um caminhar deriva, descompromissado, mas que no desprovido de

    intencionalidade. Ele caminha por ela de forma aparentemente ingnua, porm seus passos

    estabelecem percursos, enunciam espaos. Assim como o flneur, o antroplogo no apenas

    observa: ele busca absorver e assimilar o mundo urbano, em seus espaos, sentidos, relaes;

    ele sente a cidade na afluncia de pessoas, no clima, em suas imagens, em sua sonoridade, nos

    itinerrios do cotidiano e nos espaos praticados por seus sujeitos, na tenso entre as

    continuidades e descontinuidades, na dinmica do tempo da cidade. E foi deste modo,inspirado no flneur que realizei as caminhadas sistemticas, a fim de lanar o olhar

    antropolgico sobre o mundo urbano belenense, enquanto meio praticado pelos interlocutores

    da pesquisa.

    A caminhada afirma, lana suspeita, arrisca, transgride, respeita etc., as trajetrias que fala.Todas as modalidades entram a em jogo, mudando a cada passo, e repartidas em propores,em sucesses, e com intensidades que variam conforme os momentos, os percursos, oscaminhantes. (DE CERTEAU, 1994, p. 179).

    As caminhadas foram registradas em dirios de campo e por meio da utilizao de

    cmera fotogrfica. Somada as tcnicas de pesquisa de observao e conversao, estas

    formas de registro tornam possvel descrever as prticas e saberes de sujeitos e grupos sociais

    que se engendram no mundo urbano contemporneo (ROCHA, ECKERT, 2003). Seguindo a

    proposta de experincia etnogrfica na rua (ROCHA, ECKERT, 2003), busca-se

    compreender, atravs do registro das caminhadas, a dinmica das interaes cotidianas e

    representaes sociais na e da cidade.

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    Durante as caminhadas foram realizadas visitas a edifcios antigos, tais como os

    espaos de trabalho de mestres de ofcio a barbearia do Seu Henrique na Rua Gaspar Viana

    e a Oficina de costura e conserto de sapatos, onde trabalham o alfaiate Seu Gilmar e o

    sapateiro Z Lus e a casa de antigos moradores, como a casa da famlia de Seu Carlos, ao

    lado do Shopping Ptio Belm na rua Veiga Cabral. Ao longo das visitaes foi possvel

    realizar entrevistas e conversas informais, registradas algumas vezes em gravador digital e

    outras em dirio de campo, bem como tirar fotos da fachada e do interior dos prdios, a fim de

    registrar as prticas sociais que envolvem tais lugares.

    Compreender as narrativas daqueles que ocupam ou habitam os prdios arruinados e

    casas antigas do bairro da Campina, Comrcio e Batista Campos tais como moradores de

    longa data ou profissionais que exercem seu ofcio em tais lugares h bastante tempo fundamental para compreendermos as memrias, individuais e aquelas compartilhadas pelo

    grupo social acerca dos processos de transformao no mundo urbano belenense, de

    conformao de paisagens de runas e as prticas sociais que envolvem tais espaos. Para isto,

    este estudo leva em conta as memrias dos senhores Henrique, Z Lus e Carlos, referentes s

    suas trajetrias de vida e o modo como percebem, vivem e interpretam as paisagens urbanas

    do mundo urbano belenense, bem como sua relao com as runas. Nos prximos captulos,

    proponho aos leitores uma caminhada por entre as histrias e trajetrias de vida destaspessoas, uma caminhada que percorrer tambm as paisagens urbanas e o fenmeno da runa,

    alm de evocar lembranas de uma Belm de outrora e mesmo apresent-la a quem ainda no

    a conhecia.

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    CAPTULO I

    1. COMO VAI SER O CORTE?

    1.1. As narrativas de seu Henrique: as memrias de um barbeiro e as transformaes

    nas paisagens urbanas de Belm

    Ao longo dos bairros da Campina e do Comrcio possvel encontrar um cenrio que

    remonta lembranas de uma Belm outra. Ao caminhar pelas ruas Frutuoso Guimares,

    Campos Sales, Gaspar Viana (isto para no enumerar uma lista maior de outras ruelas,

    travessas e avenidas que possuem caractersticas similares) deparamo-nos com uma srie de

    casas e prdios antigos3, alguns destes abandonados e/ou arruinados, outros conservados ou

    mesmo restaurados. Lugares que evocam imagens de distintas pocas, outras pessoas e, por

    certo, outras prticas sociais. A Belm de hoje que vemos nestes espaos combina aspectos do

    presente com memrias de um passado que a todo o momento se faz atual nos prdios

    antigos, nas runas, nas antigas profisses a de barbeiro, por exemplo - que ocupam espao

    no seio das prticas cotidianas e nas narrativas das pessoas que vivem o fenmeno urbano.

    Neste captulo, busca-se compreender os processos de transformao das paisagens

    urbanas de Belm e o surgimento do fenmeno das runas, mais especificamente no conjunto

    de casares e prdios antigos localizados na Rua Gaspar Viana e em algumas ruas do entorno,

    a partir da tica de um barbeiro, no caso, Seu Henrique. Este trabalhador exerce o ofcio a

    mais de vinte anos naquele permetro do bairro, e atravs de sua trajetria de vida e

    experincia profissional vivenciou as modificaes ocorridas naqueles espaos, bem como as

    mudanas nos sujeitos e nas relaes estabelecidas em tal meio praticado (CERTEAU, 1994).

    Nos pargrafos que se seguem, sero abordados alguns aspectos histricos a respeito do

    surgimento da profisso no Brasil, para em seguida adentrarmos a discusso referente s

    memrias contidas nas narrativas de Seu Henrique.

    3Algumas destas construes so oriundas do incio do sculo XX, durante o apogeu da economia da borracha,perodo no qual Belm passa por um intenso processo de transformao, assumindo ares modernos imagemda capital francesa, Paris. (ROCQUE, 1996)

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    1.2. A gnese da profisso de barbeiro

    As origens do ofcio de barbeiro no Brasil remontam ao incio do perodo colonial,

    quando esta profisso, dentre outras, veio de Portugal trazida pelos jesutas, passando a ser

    ensinada aos que aqui viviam, com o objetivo de instaurar a civilizao na nova terra (S;

    TELES, 2008, p. 115). Esta atividade foi, durante longo tempo, relegada aos escravos, que se

    destacavam como barbeiros ambulantes (S; TELES, 2008, p. 116). Nos sculos XVIII e

    XIX, alm de cortar cabelo e fazer barba, os barbeiros acumulavam muitas das vezes as

    funes de cirurgio, de mdico e de dentista, realizando as sangrias, as sarjas, a aplicao de

    ventosas e de sanguessugas, bem como a extrao de dentes (GROSSI, 2004, p. 256-257). Emmeados do sculo XX, o exerccio da profisso de barbeiro foi se restringindo apenas aos

    cortes de cabelo e barba (S; TELES, 2008, p. 117).

    Ao longo do sculo XVIII, as prticas mdicas e de cura, eram exercidas

    indistintamente por mdicos, cirurgies, boticrios e barbeiros (GROSSI, 2004). Foi neste

    perodo que a Coroa portuguesa passou a incentivar a formao de profissionais nas

    atividades de mdico e cirurgio, alm de exigir que os demais profissionais (barbeiros,

    boticrios, curandeiros, etc.) apresentassem a carta de examinao4

    , comprovando queestavam aptos a exercer o ofcio (ALMEIDA, 1989).Contudo, a falta da referida carta no

    chegava a impedir, de fato, a atuao dos barbeiros em suas funes de cura.

    No mesmo perodo, as prticas mdicas comumente exercidas pelos barbeiros eram as

    sangrias e a aplicao de sanguessugas nos enfermos. O sangue era associado causa da

    maioria das doenas na poca. Sendo assim, o tratamento de qualquer enfermidade era

    realizado atravs de tais tcnicas: se o paciente acusasse problemas com a viso lhe eram

    sangrados os cantos dos olhos; se fossem dores na garganta tiravam-lhe o sangue abaixo dalngua (FIGUEIREDO, 1999). A tarefa do barbeiro consistia em efetuar pequenos cortes com

    bisturi nos locais prximos enfermidade. Caso o enfermo no suportasse a dor dos cortes,

    aplicavam-se as sanguessugas (FIGUEIREDO, 1999).

    Os barbeiros eram homens prticos, em geral pardos e negros, que aprendiam o ofcio

    com os mais velhos, mediante a prtica e a oralidade, pois no havia formao institucional

    para o exerccio de tal atividade (FUKELMAN; LIMA. 2008). At fins do sculo XIX, era

    4Para exercer legalmente o seu ofcio, o profissional deveria exibir a carta de examinao como prova de quefora examinado por cirurgies e julgado apto a exercer a funo. Contudo, a falta da referida carta no impediarealmente a atuao dos barbeiros (dos fsicos aos barbeiros).

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    grande o nmero de escravos negros trabalhando como barbeiros. Por conta de sua destreza e

    habilidade ao desempenhar o ofcio, seus servios eram requisitados por grande parte da

    populao, inclusive personalidades ilustres da sociedade brasileira, sendo muitas vezes

    preferidos em relao aos barbeiros livres (ALMEIDA, 1989). Conta-se que at mesmo D.

    Joo VI dispunha dos servios particulares de um barbeiro negro (ALMEIDA, 1989).

    8. Barbeiro Negro. Fotografia de Christiano Junior5.

    5Imagem Disponvel em http://bndigital.bn.br/redememoria/galerias/Christianojr/pages/Dsc06120.htm.

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    9.

    Barbeiros Ambulantes. Obra de Jean-Baptist Debret6.

    A profisso de barbeiro era bastante discriminada, detendo pouco prestgio na

    sociedade da poca, o que se explica por trs fatores: um deles traduz-se no fato de que o

    ofcio era usualmente exercido por escravos negros e cristos-novos, dois atores sociais alvos

    de grande preconceito no referido perodo; outro aspecto diz respeito condio de trabalho

    manualem que se definiam as atividades do barbeiro, sendo comum a associao entre estas e

    o trabalho escravo; por fim, a formao para exercer a profisso, que dispensava um modelode instruo formal, institucional ou acadmica7, na medida em que o conhecimento

    necessrio para ser barbeiro era transmitido pelos mais velhos aos mais novos atravs do

    prprio fazer da profisso e dos ensinamentos comunicados verbalmente (FUKELMAN;

    LIMA. 2008).

    No pode ser deixado de lado o fato de que a barbearia foi assumindo destaque ao

    longo dos sculos XVIII e XIX, constituindo-se como espao onde se desenrolavam uma srie

    de prticas sociais. Este lugar, onde prevalece o pblico masculino, deixa de ser apenas olocal de trabalho de barbeiros a partir do momento em que passa a reunir sujeitos de diversos

    grupos sociais, sendo palco de processos de sociao e sociabilidade (SIMMEL, 1983), onde

    se encenava a vida vivida (CERTEAU, 1994):

    6Imagem disponvel em http://oolhodahistoria.org/artigos/IMAGENS-escravos-libertos-homens-secxix-cristiane-magalhaes.pdf.7As profisses de mdico e cirurgio detinham pouco prestgio social nas sociedades portuguesa e brasileira dosculo XIX, pelo fato de serem associadas ao trabalho manual. Contudo, mdico e cirurgio distinguiam-se dosbarbeiros, pois contavam com formao acadmica, o que agregava um valor intelectual s suas atividades.(FUKELMAN; LIMA. 2008).

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    A prpria barbearia, ambiente predominantemente masculino, ganha um papel social relevante:ponto de encontro de novidades, onde se trocam informaes sobre o acontecido, vida alheia,notcias locais. (FUKELMAN; LIMA. 2008).

    A respeito da atual situao em que se encontra o ofcio de barbeiro, um estudorealizado com um das mais velhas geraes de barbeiros de Aracaju, capital do Estado de

    Sergipe (S; TELES, 2008), aponta para o fato de que estes senhores tm como

    caracterstica comum, em suas narrativas, a idealizao do passado, acompanhada por uma

    idia de decadncia da profisso, quando no da afirmao de que o oficio est em vias de

    extino (S; TELES, 2008, p.118). Nota-se que estes profissionais se fazem presentes no

    mundo urbano belenense, pois ao contrrio do que comumente se pensa o ofcio de barbeiro

    ainda persiste no elenco das prticas sociais caractersticas da cidade de Belm, fatoobservado ao longo desta pesquisa, e que tambm apontado pelos recentes estudos de

    Silveira e Soares (2007) a respeito do ofcio de barbeiro no distrito de Icoaraci8:

    [] os conhecimentos e tcnicas relativos ao ofcio de barbeiro esto ligados a diferentesaspectos do mundo urbano em Icoaraci, uma vez que aproximam prticas laborais a processosde sociabilidade em consonncia aos modos de vida dos freqentadores da barbearia(SILVEIRA; SOARES, 2007).

    O que fica evidente que atravs de sua profisso, os barbeiros assumem papel socialde destaque no contexto do bairro onde o seu estabelecimento se localiza, tendo em vista que

    ao longo de suas trajetrias de vida acabam por acumular experincias e lembranas acerca

    dos processos de transformao e modificao das paisagens citadinas, resultando em uma

    srie de memrias, sejam as individuais ou coletivas, frutos de processos de interao com os

    sujeitos que freqentam/freqentaram a barbearia indivduos dos mais diversos grupos

    sociais, intercambiando as mais diferentes experincias de vida.

    A barbearia , ento, o espao onde tais fenmenos emergem como elementos importantes nasinteraes do senhor com o pblico que busca seus servios. Isso porque, diante do jogointersubjetivo vivido na relao proximidade-distncia entre o barbeiro e seus clientes queacontecem as manifestaes formais do processo de sociao (Simmel, 1983) no meio urbanobelenense. (SILVEIRA; SOARES, 2007).

    Guardies da memria (BENJAMIN, 1985), os barbeiros revelam sua verdadeira

    importncia ao contriburem para a (re)construo da histria das transformaes do mundo

    urbano belenense, para alm daquela que consta nos documentos oficiais, mas aquela que

    8Distrito que faz parte da Regio Metropolitana de Belm.

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    anda de boca em boca (BENJAMIN, 1985), por meio do intercmbio de experincias

    caracterstico das artes de narrar (BENJAMIN, 1985).

    1.3. A rua Gaspar Viana a partir da tica de um barbeiro

    Trilhando caminhos errantes pelo bairro da Campina e do Comrcio, lanando passos

    pelas caladas tortuosas da Rua Gaspar Viana com suas falhas e seus buracos, com o cheiro

    forte de amnia aos ps dos postes de luz e o lixo que se acumula em algumas de suas

    esquinas, impedindo a passagem dos pedestres naquele passeio estreito , nos deparamos comum renque de construes arruinadas, bem como os sujeitos e as relaes que as cercam e que

    com elas convivem cotidianamente. Ao longo desta experincia foi possvel manter contato

    com Seu Henrique, que trabalha como barbeiro na rua Gaspar Viana desde o ano de 1975

    exercendo por volta de vinte anos o seu ofcio na barbearia, onde at hoje est localizado o

    seu negcio.

    A barbearia fica em uma pequena sala de um prdio em processo de arruinamento, que

    faz parte de um conjunto de casares e edifcios derrudos que ficam nas proximidades doestabelecimento. Ao longo de seis meses, foram realizadas visitas continuadas ao espao de

    trabalho de Seu Henrique, atravs das quais foi possvel conhecer uma parte da histria

    daquele senhor e a partir desta a prpria histria do lugar. Em suas narrativas, o senhor contou

    sobre como havia se tornado barbeiro e como conseguiu aquele espao para sua barbearia:

    Eu sou maracanaense [oriundo da cidade de Maracan, situada na regio do salgado paraense].E l em Maracan eu aprendi a cortar cabelo, e l mesmo eu trabalhei, tinha umabarbeariazinha... E cortava cabelo l. Depois, tive que vir pra c pra Belm me apresentar na

    Aeronutica. E da aeronutica, quando sai, vim trabalhar em um salo bem aqui... E fiquei poraqui na Gaspar Viana. Quando o salo fechou, vim trabalhar sozinho, mais ali pra frente pertodO Liberal9, e dO Liberal eu vim pra c. Que aqui eu tinha os meus clientes da Cooperativa.A diretoria toda cortava cabelo comigo, e me trouxeram pra c, ficar aqui perto. Inclusive tinhaat uma brincadeira do presidente que disse: fica aqui, porque se tiver chovendo, pelo menos agente no se molha pra cortar o cabelo. A, foi assim que eu vim pra c. E aqui eu j t hmuito tempo... 20 anos, 22, parece, nem sei!

    9Ali funcionava a fbrica do Jornal O Liberal, um dos principais veculos de informao em Belm e no estado.Sobre este prdio falarei mais adiante.

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    Imagens de prdios arruinados na rua Gaspar Viana.10

    10Imagens 10, 11, 12 e 13 no ndice de Ilustraes.

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    Imagens da Barbearia de Seu Henrique.11

    11Imagens 14, 15, 16 e 17 no ndice de Ilustraes.

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    A barbearia se localiza no prdio onde antes fora a sede da Cooperativa mencionada

    por Seu Henrique, a SOCIPE(Cooperativa da Indstria Pecuria do Par Ltda). Hoje em dia,

    o prdio no mais utilizado pela Cooperativa, pois esta mudou de endereo, funcionando no

    bairro do Tapan. Segundo o barbeiro, por conta desta mudana o prdio ficou, de certo

    modo, abandonado e em vias de arruinamento. Esto em uso duas salas do prdio, uma

    delas onde fica a barbearia de Seu Henrique, e uma segunda que alugada como depsito

    para carrinhos de venda de camels e ambulantes. Desde ento, o barbeiro , de certo modo, o

    responsvel pelo prdio, encaminhando as correspondncias e coisas do tipo para a nova sede

    da Cooperativa.

    O prdio, mesmo que em processo de arruinamento, no deixa de ser o espao onde se

    estabelece uma srie de prticas sociais. Na barbearia, alm do corte de cabelo e barba, asrelaes entre barbeiro e cliente e entre aqueles que, de modo geral, freqentam o lugar,

    engendram processos de sociabilidade (SIMMEL, 1983) conversas sobre temas variados;

    contao de histrias risveis; leitura de jornal e comentrios acerca das notcias, por exemplo

    e o intercmbio de experincias entre tais sujeitos (BENJAMIN, 1985), levando em conta

    que esta troca inerente s narrativas contadas fundamental para o processo de (re)construo

    das memrias.

    Alm disso, o prdio em questo utilizado por alguns trabalhadores que exercem asatividades de camel e de vendedores ambulantes nas proximidades, dando uma dinmica

    outra ao lugar. Como mencionado anteriormente, uma das salas do prdio da Cooperativa

    atualmente alugada como depsito. Esta atividade no exclusiva deste prdio, pois como

    consta na matria do jornalDirio do Pardo dia 27 de fevereiro de 2010:

    Um prdio histrico localizado na travessa 15 de Novembro esquina com a rua Campos Sales,no Comrcio, [] funcionava como depsito de carros de ambulantes e ainda servia de

    moradia para duas famlias, totalizando oito pessoas (TAVARES, 2010).

    Portanto, nos bairros da Campina e do Comrcio, so vrios os prdios e casares

    antigos que assim como o prdio da Cooperativa, so habitados e/ou ocupados por pessoas

    que desempenham as mais diversas atividades. Ao longo da rua Frutuoso Guimares,

    possvel encontrar uma variedade de estabelecimentos comerciais funcionando em casas

    antigas em visvel processo de arruinamento, tais como oficinas de conserto de

    eletrodomsticos, pequenas lojas, bares e lanchonetes, ou simplesmente, figurando na

    paisagem urbana como residncias familiares. O arruinamento de tais lugares no implica no

    cessar das atividades humanas, pois a runa no se constitui como o fim do que antes se erguia

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    imponente como obra humana, pois se revela, neste caso, como a conformao de um novo

    sentido ao lugar que agora assume ares de arruinado (SIMMEL,1998).

    Prximo barbearia fica o prdio de um dos principais jornais de Belm, onde anos

    antes eram impressos de segunda a segunda os exemplares dirios de O Liberal. Alguns

    metros depois, encontra-se o Sindicato dos Estivadores situado nas proximidades da regio

    porturia de Belm. Segundo Seu Henrique:

    Ah, mas a Cooperativa, quando tinha aqui, isso aqui era muito movimentado. Tinha O Liberalali, trabalhavam ali. Tinham os estivadores, era um forte sindicato de estivadores, eram 400estivadores titulares e 400 suplentes. Eram 800 homens trabalhando nesse porto. E o pessoal daCooperativa, da Receita Federal... e cortava muito cabelo, era muito freqentado, no tinhaquase nem tempo pra almoar.

    Imagens do prdio do Jornal O liberal12

    Certa vez, ao falar a respeito da vizinhana, Seu Henrique comentou que a Gaspar

    Viana antes era uma rua comercial, que j teve muitos comrcios ali, citando uma srie de

    estabelecimentos que funcionaram no local em outros tempos (o jornal O Liberal, o Sindicato

    dos Estivadores, o escritrio de advocacia, hotis que hospedaram pessoas importantes,

    dentre outros). Seu Henrique dava nfase ao Mundo Eltrico, que teria sido um

    12Imagens 18 e 19 no ndice de Ilustraes.

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    estabelecimento muito procurado na Gaspar Viana. Agora, os comrcios estariam mais

    prximos s ruas como a Joo Alfredo e a Santo Antnio, e as pessoas que iam a Gaspar

    Viana, agora s passavam por ali a caminho das ruas de maior movimento. Na mesma

    ocasio, havia um senhor que nos fazia companhia, e estava sentado lendo seu jornal. Um

    idoso de idade considervel, ele mora nas proximidades da barbearia, e acrescentou que a

    Gaspar Viana era mais movimentada e mais arquitetada.

    Na opinio de Seu Henrique, a Gaspar Viana estava ficando pior, mencionando o

    arruinamento e o abandono dos prdios; as pessoas que foram embora, e o surgimento de um

    novo elemento naquele trecho da Gaspar Viana: a prostituio. Aquele permetro que antes

    era predominantemente comercial contando com algumas poucas famlias que ali residiam

    agora seria uma zona de meretrcio, onde esto localizadas duas boates, sendo uma delas bemao lado da barbearia. Segundo seu Henrique, as atividades das mulheres comeam pelo fim

    da tarde e seguem durante a noite toda, o que na opinio dele estaria associado ao fato de que

    atualmente a Gaspar Viana ter ficado muito perigosa pela parte da noite.

    Observando melhor, possvel perceber que nas narrativas de Seu Henrique est

    contida certa idealizao do passado, em detrimento do contexto atual na Gaspar Viana.

    Contudo, no podemos associar o fenmeno das runas de forma negativa perspectiva

    atravs da qual este senhor compreende o momento presente naquela rua, tendo em vista queso justamente os prdios arruinados que suscitam as lembranas e reminiscncias de outras

    pocas, pessoas e prticas sociais, nutrindo os processos de (re)construo das memrias.

    A concentrao de estacionamentos de automveis, em lugares onde existiam prdios

    antigos, hoje demolidos onde, segundo Seu Henrique, funcionavam escritrios, reparties

    pblicas, estabelecimentos comerciais, etc., um destes localizado bem em frente barbearia,

    prdio antes conhecido pelo nome Cordeiro da Paz e que fora um escritrio de advocacia

    contribuiu para o crescimento do nmero de flanelinhas naquele permetro, uma nova prticasocial que surge naquele meio e que bem vista pela tica de Seu Henrique. Na verdade, a

    mudana que de fato compreendida de forma negativa por este senhor a presena da

    prostituio como uma nova prtica social naquele espao.

    Deste modo, procurei saber o que o Seu Henrique pensa a respeito da interveno

    poltica do Estado que tem por base o discurso urbanstico, voltado para a

    higienizao/embelezamento da cidade por meio da restaurao e revitalizao dos bairros

    antigos. O barbeiro comentou algumas vezes sobre a atuao do IPHAN, revelando que um

    bocado de gente j havia entrado em contato com ele h muito tempo, algo em torno de 10

    anos atrs, e que de vez em quando aparece algum pra fazer uma entrevista, falando a

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    respeito de possveis restauraes no prdio. Contudo, nada do tipo foi realizado at o

    momento. Ele calculou que j fazia dois ou trs anos desde a ltima vez que algum do

    IPHAN entrou em contato, concluindo: aparecer, aparece... mas nunca mais ningum se

    manifesta.

    Ao question-lo se achava necessrio que o prdio fosse restaurado, Seu Henrique me

    respondeu que no cairia mal uma reforma aqui, outra ali, porm estava satisfeito com o

    prdio da forma como se encontra. Por mais que esteja arruinado, o prdio no perde seu

    valor para o barbeiro. O edifcio no tem o seu significado diminudo pelo sujeito que

    preferencialmente o pratica, ou ainda, o senhor atribui sentidos runa que, diante da

    perspectiva simmeliana, revela-se obra reivindicada pela natureza, indicando a conformao

    de um conjunto novo e diverso, uma totalidade distinta da obra humana (SIMMEL, 1983),que confere sentidos novos ao lugar e as prticas sociais que lhe cercam, refletindo nos

    sujeitos e nas relaes que atribuem significado aquele meio praticado (CERTEAU, 1994).

    1.4. De tesoura e pente na mo: ofazerdo barbeiro

    Desde seu surgimento, o ofcio de barbeiro passou por uma srie de mudanas no

    corpo de atividades que compunham a profisso. Ao longo dos sculos XVIII e XIX estes

    trabalhadores no apenas barbeavam e cortavam cabelos, como tambm exerciam as funes

    de mdico, cirurgio e, at mesmo, de dentista, realizando pequenas sangrias e a aplicao de

    sanguessugas nos enfermos. Foi apenas no sculo XX que a profisso foi aos poucos se

    restringindo aos cortes de cabelo e barba.

    Para compreendermos a presena do ofcio de barbeiro no mundo urbanocontemporneo, mais especificamente o papel que esta atividade representa na cidade de

    Belm, fundamental considerar alguns aspectos: as transformaes no mundo do trabalho,

    tendo em vista a inovao tecnolgica, a introduo de um instrumental novo na profisso e

    as novas ferramentas de trabalho, bem como o crescimento da profisso de cabeleireiro e o

    destaque cada vez maior que estes assumem em relao aos barbeiros neste setor especfico

    no mercado de trabalho (S; TELES, 2008). Tais fatores implicam diretamente na profisso,

    alm de alterar o significado do que serbarbeiro (S; TELES, 2008).

    A inovao tecnolgica acelerada e a conseqente introduo continuada de novas

    ferramentas de trabalho tende a fomentar mudanas significativas no ofcio de barbeiro. Como

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    descrito por Seu Henrique, h poucas dcadas atrs, quando iniciou sua trajetria na profisso

    os instrumentos de trabalho utilizados por um barbeiro eram todos manuais: usava-se

    apenas a tesoura e o pente para o corte de cabelo; para fazer a barba, usava-se a navalha,

    devidamente amolada. Contudo, a incorporao das novas ferramentas inevitvel ao

    exerccio da profisso, fato visto com naturalidade pelo barbeiro, pois este acredita que a

    incluso deste instrumental contribuiu positivamente para o fazer da profisso. As novas

    tesouras - cada uma com uma funo diferenciada - e a introduo de aparelhos eltricos so

    bem vindas na perspectiva de Seu Henrique:

    [] essas mquina eltricas, hoje... que antigamente era manual, a gente cortava com aquelamaquina manual, e as tesouras tambm, umas tesouras hoje so bem afiadas pra cortar o

    cabelo, tesoura de desfiar, so coisas que realmente... t a na [apontando para a estante ondeficam seus instrumentos] a gente tem que usar.

    Isso indica as possveis vicissitudes s quais esto sujeitos os saberes e fazeres do

    ofcio de barbeiro, esta profisso tradicional que se encontra imersa nos processos de

    transformao das prticas sociais encerradas no mundo urbano, este fenmeno que se faz nas

    tenses entre os impulsos de mudana e os anseios de permanncia no devir do tempo

    (SILVEIRA, 2008). H, dessa forma, uma tenso entre o moderno e o tradicional. Todavia,

    essa resolvida pelo barbeiro medida que desenvolve a sua prpria maneira de fazer.(SILVEIRA; SOARES, 2007).

    Fazendo referncia etnografia realizada por Silveira e Soares, possvel observar

    que o barbeiro Seu Jorge senhor que exerce o ofcio no distrito de Icoaraci pensa de forma

    similar a questo dos instrumentos e ferramentas de trabalho:

    Seu Jorge deixa claro em sua narrativa a importncia de adquirir as ferramentas para aexecuo das artes de seu ofcio. H uma dimenso operatria vinculada a uma funo esttica

    (Leroi-Gourhan, 105:1987), que esto intimamente relacionadas adequao da forma de suasferramentas rtmica das mos suscitadas pela ao sobre a matria, no caso os cabelos e abarba. Tais dimenses da ao sobre a matria visam a produo de formas novas e estetizadas,a partir do processo de liberao da memria pela via do gesto tcnico associado dimensocriativa, dada na elaborao de imagens do Outro. (SILVEIRA; SOARES, 2007).

    H alguns estudos que apontam, contudo, uma perspectiva diferente (S; TELES,

    2008), no qual o grupo de barbeiros estudos no v com bons olhos a incorporao de novas

    ferramentas. Tal pesquisa aponta para o fato de que estes velhos barbeiros acreditam que o

    instrumental tradicional um dos elementos que os identifica enquanto categoria

    profissional, isto , as ferramentas manuais (tesoura, navalha e pente) so a assinatura do

    ofcio de barbeiros. A insero de ferramentas eltricas, o uso das giletes descartveis

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    tomando o lugar da habitual navalha, dentre outras inovaes, para esses senhores o mesmo

    que destituir a profisso do(s) fazer(es) que a definem como profisso de carter tradicional

    (S; TELES, 2008).

    Outro fator que tem influncia direta na atividade profissional do barbeiro o

    crescimento cada vez maior da profisso de cabeleireiro (S; TELES, 2008). Na tica de Seu

    Henrique, a atividade dos cabeleireiros diferencia-se em muitos aspectos da dos barbeiros: a

    formao no ofcio de barbeiro transmitida dos mais velhos aos mais novos atravs da

    oralidade e da prtica, onde o aprendiz necessita de um determinado perodo de tempo para

    apreender e acumular tais saberes, aprimorando-se atravs do fazer prprio da profisso,

    enquanto que, para ser cabeleireiro, basta instruir-se em curso tcnico que dura poucos meses

    para logo em seguida exercer a profisso em sales de beleza.

    uma coisa ai que... Faz um curso de cabeleireiro ai que, um ms p! Ai passa um ms ai jsai cortando cabelo, e vai aprendendo depois. E se ele for um cara inteligente ele aprende porele mesmo. No que ele aprende um ms, o cara vai cortar cabelo. A gente, no [referindo-seaos barbeiros], passou muito tempo [para aprender o ofcio]. Passava l olhando, passando atesoura assim com o pente.

    Outro aspecto diz respeito forma como os cabeleireiros exercem o ofcio, que

    segundo Seu Henrique, distingue-se do trabalho feito pelos barbeiros. Na barbearia se cortacabelo moda antiga, com um cuidado e ateno especial com cada cliente, pois o corte

    no se resume relao entre o barbeiro e o cliente, traduzindo-se em vnculos de amizade

    que permanecem ao longo do tempo: o cliente procura a barbearia no apenas para cortar os

    cabelos, mas para reencontrar velhos amigos o prprio barbeiro e as outras amizades

    construdas ao longo dos anos, freqentando aquele lugar e, assim, desfrutar de momentos

    de sociabilidade entre os conhecidos.

    A mo, pela via complexa do gesto, engendra estticas que evocam imagens ligadas a umasimblica singular relacionada ao lugar de pertena dos sujeitos. Nestes termos, a mo criaimagens e smbolos compartilhados pelos grupos no espao vivido que expressam, atravs dasformas, certas vises de mundo. (SILVEIRA; SOARES, 2007).

    Na perspectiva de Seu Henrique no salo de beleza ocorre o contrrio, pois ali se

    priorizaria a dimenso comercial, a prestao de servio e a relao de clientela. Conforme o

    senhor:

    Eu pelo menos, eu aprendi uma profisso que gosto da profisso, trabalho. Corto cabeloporque eu gosto de cortar, e fao com todo carinho e todo cuidado e tal, pra ficar um cabelobem feito. Hoje nesse salo ai o cara faz rpido, senta l cara mete a mquina e tal. como por,

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    ... eles trabalham assim pra, quanto mais eles fizerem mais, trabalhar mais rpido sabe, pra;ganha pelo que faz, tem que fazer mesmo, trabalhar com rapidez. [] O barbeiro, a gente cortao cabelo de uma maneira diferente. Agora eles [os cabeleireiros] cortam o cabelo colocando odedo. Pegam o cabelo assim, vo aparando. Ns s cortamo o cabelo moda antiga, realmente,com o pente e a tesoura, cortando... depois passa a navalha com o pente em cima, pra tirar as

    pontas, acertando tudo direitinho, diferente. Os cara [cabeleireiros] no fazem isso! Eles nemsabe fazer isso! Chegar l num salo desse, depois penteia ai pra mim, como fosse pra tirar asponta...no sei. No aprenderam isso, c t entendendo?

    Alm disso, o fazer a barba uma das atividades exercidas apenas pelos barbeiros

    no fazendo parte dos servios prestados pelo cabeleireiro e que para Seu Henrique, o que

    os identifica como tal:

    Ah, a barba. Por isso que a gente chama barbeiro. Porque a gente faz a barba. Esses salo ai,

    cabeleireiro, eles no faz barba, s cortam cabelo. Aqui no, o cara vem faz a barba. Se quisertalhar a barba, fazer, fazer aquelas barba tcnica... Fazer um desenho, como se chama, gentefaz, p!

    Quanto transmisso dos saberes e fazeres de barbeiro, Seu Henrique revelou em suas

    narrativas o seu interesse em ensinar o ofcio, para que as prximas geraes dem

    continuidade profisso. Ele acredita que comum pensar que os barbeiros esto sumindo

    ou ficando esquecidos, porm, isto no decorrente de premissas que dizem que os

    barbeiros esto em vias de extino pelo desinteresse das pessoas por seu trabalho. Pelo

    contrrio, os servios destes profissionais so bastante requisitados e eles continuam

    exercendo suas atividades normalmente, como o caso de Seu Henrique, que de segunda a

    sbado tem a barbearia cheia de clientes. Na opinio deste senhor, a dificuldade se revela,

    portanto, em encontrar pessoas dispostas a aprender o ofcio de barbeiro e seguir esta

    profisso.

    1.5. Os processos de sociao e a (re)construo das memrias

    Atravs de seu ofcio, Seu Henrique construiu vrios laos no s de clientela, mas

    tambm de amizade, durante os anos em que vem trabalhando na Gaspar Viana. Muitas

    dessas amizades resistem ao tempo e persistem at hoje. Entre algumas destas amizades, Seu

    Henrique comentou sobre figuras importantes que j freqentaram a barbearia, tais como

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    Jorge Hage que j teria sido presidente do Clube do Remo13 Doutor Frederico Lobato,

    alm de promotores, mdicos, procuradores, entre outros. A permanncia destes laos

    fundamental para a perenidade das lembranas, pois a durao de uma memria est ligada a

    durao do grupo social em que esta compartilhada, isto , as circunstncias que nos fazem

    recordar e reconstruir ou reconstituir as memrias (HALBWACHS, 2006).

    Segundo o barbeiro, esse tipo de relao possvel de se construir na barbearia, pelo

    fato de que ali diferente, por exemplo, dos inmeros sales de beleza e seus cabeleireiros

    o clientese sente mais confortvel, no vai apenas para cortar o cabelo ou fazer a barba, pois

    tambm l o jornal; bate um papo. Alm do fato de que o trabalho do barbeiro junto ao

    cliente diverso ao do cabeleireiro: geralmente se desenvolve um hbito entre os primeiros;

    com o tempo o barbeiro j conhece o tipo de corte que o cliente deseja; da a preferncia pelabarbearia. Deste modo, a barbearia acaba por se constituir enquanto verdadeiro espao de

    sociabilidade (SIMMEL, 1983), na medida em que engendra a ntima relao entre a prtica

    profissional e as interaes entre o barbeiro e seus clientes muitas das vezes grandes amigos

    bem como o meio praticado (CERTEAU, 1994) que cerca a barbearia.

    Eu aqui trabalho, meus clientes, eles j sabem como , eles espero, eles fico esperando, lendojornal, revista. Batendo papo, ai eles se conhecem tambm, que eles ficam muito tempo, n.

    Muitos se conheceram aqui mesmo sentado na cadeira, ou quando v se encontram. Umasamizades que realmente fizeram-se aqui na cadeira, aqui, esperando.

    A barbearia se constitui, portanto, como o espao onde se manifestam processos de

    sociao (SIMMEL, 1983). Foram vrias as vezes em que encontrei o lugar cheio de clientes,

    sentados aguardando enquanto Seu Henrique cortava o cabelo ou fazia a barba de algum,

    alguns lendo o jornal do dia, comentando as principais manchetes do exemplar, batendo

    papo e jogando conversa fora, falando sobre suas rotinas familiares ou de trabalho, ou

    apenas ouvindo e apreciando a conversa. Eu, como estava ali como pesquisador, pouco falava,mais preocupado em ouvir atentamente as histrias contadas por aquelas pessoas, porm era

    inevitvel interagir e participar daqueles momentos, das conversas sobre futebol, poltica e

    sobre que mais me interessava: a vida naquela rua, no bairro e na prpria cidade de Belm.

    A barbearia assumiu com o tempo um papel social de destaque, tendo em vista que

    acabou por ser o espao onde se encontram pessoas dos mais diferentes grupos sociais e que

    transitam pelas mais diversas provncias de significado (VELHO, 1994), compartilhando ali

    na barbearia, momentos de interao e sociabilidade (SIMMEL, 1983). Ali, diversas13Clube que ocupa lugar de importncia no cenrio esportivo paraense, tendo um dos times de futebol de maiorhistria do estado do Par.

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    trajetrias de vida se entrecruzam, nutrindo um rico intercmbio de experincias entre sujeitos

    de diferentes idades, classes sociais, religio ou cor14. A barbearia e o ofcio exercido por Seu

    Henrique contribuem de forma singular para a manuteno de vnculos sociais, portanto para

    os processos de (re)construo da memria coletiva (HALBWACHS, 2006).

    O barbeiro Henrique, como dito antes, veio de uma cidade do interior, a cidade de

    Maracan. Ao vir para Belm, por conta do servio militar obrigatrio trouxe consigo as suas

    experincias de vida da cidade natal dentre estas os saberes e fazeres do ofcio de barbeiro

    e os anseios de uma vida nova na capital. Atravs de sua trajetria profissional, o barbeiro

    pode negociar a realidade frente s exigncias e imposies do mundo urbano belenense,

    vivenciando as modificaes nas paisagens da cidade ao longo do tempo, experincia por

    meio da qual pde entrar em contato com o fenmeno da runa.As narrativas do barbeiro revelam que o lugar possuidor de uma dimenso onrica

    (BACHELARD, 1978). Aqui se compreenda este carter onrico, tomando de emprstimo a

    noo de casa onrica de Gaston Bachelard (BACHELARD, 1978). Retomando o

    pensamento do autor: a casa o nosso canto do mundo (BACHELARD, 1978, p. 200). A

    partir do momento em que deixamos de viver naquela que foi a nossa primeira residncia, no

    importa o nmero de lugares em que iremos morar dali para frente, em todos eles a idia que

    construmos de lar sempre recorrer s lembranas que remontam primeira casa. Na casanova sobrepem-se imagens de uma casa dos sonhos, que evoca memrias e afetividades que

    nos ligam primeira morada, mas ao mesmo tempo estabelecem laos de pertena com o

    novo lugar. Foi no Salo Oliveira que Seu Henrique fez as primeiras barbas e os primeiros

    cortes de cabelo. Quando Seu Oliveira fechou a barbearia para viajar para Manaus, ele dividiu

    ferramentas, acessrios, poltronas e penteadeiras entre seus aprendizes, incentivando-os

    prosseguir na profisso: : Foi ficando isso e aquilo, pra um, pra outro, n. Ou seja, o lugar

    onde Seu Henrique trabalha hoje, guarda elementos que fazem referncia ao primeiro saloonde o barbeiro exerceu a profisso. Sem esquecer as memrias presentes em sua fala, quando

    menciona a importncia de Oliveira na sua trajetria de vida.

    14No inclu aqui a diversidade de gnero, tendo em vista que a barbearia constituiu-se historicamente como umespao freqentado predominantemente por homens, tratando-se de um local marcadamente heterossexua l.

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    Imagens da barbearia de Seu Henrique.15

    15Imagens 20, 21 e 22 do ndice de Ilustraes.

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    Imagens da barbearia de Seu Henrique.16

    16Imagens 23, 24 e 25 do ndice de Ilustraes.

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    A experincia de Seu Henrique como barbeiro na capital paraense teve incio no de

    ano de 1975 no Salo Oliveira. Ao deparar-se com as opes que o mundo urbano lhe

    apresentou e com as condies adaptativas que lhe foram impostas ao mundo urbano, o

    barbeiro teve que por em prtica estratgias para lidar com o campo de possibilidades

    (VELHO, 1994) que a cidade lhe ofereceu. As suas aes se orientam por um projeto que

    corresponde no apenas s escolhas individuais, mas tambm as exigncias da vida na urbe.

    As contribuies de Seu Oliveira foram significativas para o barbeiro Henrique, na medida

    em que somaram novas possibilidades de negociar o real (VELHO, 1994).

    Seu Henrique trabalha a mais de vinte anos no prdio da Cooperativa, lugar onde se

    manifestaram processos de sociao ao longo dos anos, atravs dos quais ele constituiu laos

    de amizades profundos, que ultrapassam as relaes entre barbeiro e clientes no sentido damera prestao de servio do primeiro, vnculos sociais que so fundamentais para a

    construo da memria coletiva (HALBWACHS, 2006). E apesar do fato de o prdio estar

    em visvel processo de abandono e arruinamento, a barbearia continua cheia de clientes e

    tambm de grandes amigos.

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    CAPTULO II

    2. NARRANDO O PRESENTE E O PASSADO

    2.1. As memrias do bairro Batista Campos contadas por antigos moradores e

    profissionais da Rua Veiga Cabral

    As paisagens de runas presentes nos bairros da Campina e do Comrcio figuramtambm nas ruas do bairro vizinho de Batista Campos, localizado no centro da cidade de

    Belm. Caminhando ao longo da Travessa Padre Eutquio, deambulando pelas ruas que

    envolvem o Shopping Ptio Belm e a Galeria Portuense17, deparo-me com um interessante

    emaranhado comercial, uma profuso de lojas de roupas e calados, de eletrodomsticos e

    utenslios para o lar, produtos de informtica, bares e restaurantes, sem esquecer, claro, o

    vazio nas caladas onde antes trabalhavam incontveis vendedores ambulantes e camels,

    at fins do ano de 2010, quando a Secretaria Municipal de Economia (SECON) passou aproibir o comrcio informal naquele lugar.

    26. Lojas situadas em prdios antigos nas proximidades do Shopping Ptio Belm.

    17Galeria de lojas localizada em frente ao Shopping Ptio Belm.

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    Estas vrias atividades so exercidas em um espao dividido entre prdios novos e

    construes mais antigas. Algumas destas contam com mais de meio sculo de existncia, fato

    que se revela, de um lado, nas reformas e restauraes pelas quais parte desses prdios passou

    ao longo do tempo, e de outro, nas casas antigas restantes que demonstram o desgaste

    temporal na pintura, em sua estrutura e na vegetao que aos poucos vai tomando as paredes e

    muros, conformando um visvel processo de arruinamento.

    A partir das narrativas de antigos moradores e de um mestre sapateiro a famlia

    Sampaio e o senhor Z Lus que vivem/trabalham em um contguo de casas antigas na rua

    Veiga Cabral, bem ao lado do Shopping Ptio Belm, pretendo identificar a forma como

    percebem, interpretam e vivem as modificaes ocorridas ao longo do tempo na paisagem do

    lugar e a presena dos prdios antigos naquele espao. Para compreender a tica de taissujeitos, parto da experincia profissional destes e a forma como suas atividades esto

    inseridas no cotidiano do bairro Batista Campos.

    2.2. O bairro de Batista Campos de ontem e de hoje: notas sobre as transformaes

    ocorridas ao longo do tempo

    Os arrabaldes da Batista Campos conformam hoje, espaos disputados entre o

    comrcio e a paulatina verticalizao da cidade de Belm. O bairro marcado pelo grande

    nmero de edifcios residenciais elevados (com mais de dez pisos) e diversos

    estabelecimentos comerciais (o que inclui os mais variados gneros: de lojas de roupas e

    calados a bares e restaurantes), destacando-se, inclusive, o Shopping Ptio Belm, um dos

    principais shoppings da Regio Metropolitana (MADALENO, 2002). Alm disso, o bairroconta com cemitrios de grande importncia na histria da cidade: o Cemitrio de Nossa

    Senhora da Soledade, o Cemitrio Israelita, primeiro cemitrio judeu construdo no Brasil,

    inaugurado no ano de 1842, e o Cemitrio dos Ingleses (BELTRO, 2000)18; a belssima

    praa de mesmo nome do bairro, a Praa Batista Campos; o Colgio Santa Rosa, escola

    fundada h oitenta anos pela Congregao das Filhas de SantAna, sendo uma das mais

    tradicionais do bairro.

    18 Neste perodo, os enterramentos eram realizados nas Igrejas, existindo apenas cemitrios onde eramsepultados os escravos (BELTRO, 2000).

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    Fundado em 1850 sob propriedade concedida Santa Casa de Misericrdia, o

    Cemitrio da Soledade assume destaque em meio s paisagens da cidade de Belm. Isolado

    pelas quatro faces, o Soledade, incluindo pequenos campos santos de Ordens Terceiras,

    rea urbansticamente significativa, na capital paraense (BARATA, 1963 apud BARATA,

    2011), realando de forma singular o cenrio formado pelas construes que o envolvem, com

    suas pedras e pilares oitocentistas e os suntuosos gradis ingleses (BARATA, 1963 apud

    BARATA 2011). A necrpole assume hoje ares de espao arruinado e se mostra trgida de

    uma mstica que envolve a esttica arquitetnica do lugar, as foras da natureza que lhe

    confere novos elementos caracterizando-o como runa e as afetividades e memrias dos

    sujeitos que praticam aquele meio ao rememorarem os mortos e cultuar terreno santo.

    Trata-se de um local onde repousam distintos paraenses que ajudaram noengrandecimento da histria do Par (BARATA, 2011), o velho campo santo funcionou

    at o ano de 1880, quando foram suspensos os enterramentos, por ordem do gegrafo e

    historiador Dr. Jos Coelho da Gama e Abreu. Segundo Barata (BARATA, 1963 apud

    BARATA, 2011):

    O fato do cemitrio haver funcionado somente durante crca de 30 anos lhe confere especialunidade de concepo e de realizao de valores arquitetnicos e escultricos que ampliam o

    seu sentido espiritual e histrico.(BARATA, 1963).

    O espao foi tombado pelo IPHAN no ano de 1964, perodo no qual estava ameaado

    de ser destrudo, para em seu lugar serem construdos, em nome do progresso, alguns

    edifcios residenciais (BARATA, 1963 apud BARATA, 2011).

    A uma quadra de distncia do Cemitrio da Soledade, possvel encontrar a elegante

    e charmosa Praa Batista Campos. A sua beleza remonta ao incio do sculo XX, mais

    precisamente no ano de 1900, quando o ento Intendente Antnio Lemos decidiu transformar

    em bosque o que antes era apenas um ajardinamento, que seguia na antiga Travessa So

    Mateus, hoje Travessa Padre Eutquio (ROCQUE, 1996). O plano escolhido era o de um

    grande parque com rvores plantadas em linhas convergentes, qualquer que fosse o ponto de

    onde se olhasse (ROCQUE, 1996, p. 455)

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    27. A Praa Batista Campos de Antnio Lemos. Fotografia de Clich Girard.19

    28. A Praa Batista Campos de Antnio Lemos. Fotografia de Clich Girard.20

    19Fonte: BELM. O municpio de Belm 1906. Relatrio apresentado ao Conselho Municipal de Belm.

    Belm: Archivo da Intendencia Municipal, 1906.2020Fonte: BELM. O municpio de Belm 1906. Relatrio apresentado ao Conselho Municipal de Belm.Belm: Archivo da Intendencia Municipal, 1906.

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    Deste modo, por volta de um sculo atrs a Praa Batista Campos formava um

    conjunto encantador, como descrito abaixo nas palavras do prprio Intendente Lemos:

    [] regatos serpeiam por entre tufos de verdura, onde flores coloridas e perfumosasdesabrocham ao vivificante sol equatorial; cascatas, onde a gua lmpida saltita sonoramente,surgem debaixo aspectos deliciosos; aqui um canteiro originalmente talhado, ali uma pequenaponte, adiante uma cabana. E tudo forma um conjunto agradvel, que prende durante horas ovisitante, encantado nesse ambiente, que a arte vai transformando num recandoverdadeiramente sedutor. (LEMOS apud ROCQUE, 1996, p. 456).

    Um sculo se passou desde que Antonio Lemos presenteou a cidade de Belm com

    formosssimas praas [] encanto de seus visitantes, refrigerio de quem as busca, mesmo s

    horas mais clidas do dia (BELM, 1906, p. 194). Cerca de cem anos depois, a Praa Batista

    Campos encontra-se to formosa quanto aquela dos tempos do Intendente, e sobre esta

    discorrerei um pouco mais nas prximas linhas.

    2.3. Um olhar panormico sobre o bairro Batista Campos

    O simples fato de pensar em descrever os contornos de Batista Campos me faz

    reconstruir uma srie de imagens que conformam o sentido de paisagem que concebo a

    respeito do bairro: imensas mangueiras formando majestosos corredores naturais ao longo das

    ruas Padre Eutquio, Conselheiro Furtado e Gentil Bittencourt, dentre outras mais 21; o

    Cemitrio da Soledade, que adorna o bairro com sua a presena e a dimenso fantstica das

    memrias que lhe cercam; e a belssima Praa Batista Campos, com seus calades ataviados

    com traos marajoaras em mosaico portugus, onde pessoas de todas as idades fazem

    exerccios fsicos, corridas e caminhadas, tendo ao fundo um cenrio formado por lagos,pontes e coretos, colorido pelas incontveis garas que voam em meio ao verde vivo das

    rvores, alm, claro, das pessoas poderem saciar a sede com uma saborosa gua de coco,

    encontrada ali nas vrias bancas de venda que seguem em uma das ruas que circundam a

    praa, a Rua dos Tamoios. Sobre esta potica da vida na cidade de Belm, Silveira (2008)

    descreve:

    21Estes corredores naturais estendem-se a outros bairros, sendo possvel encontr-los ao longo de ruas como aBraz de Aguiar e as avenidas Nazar e Jos Malcher, compondo uma das imagens caracterstica de Belm e queacaba por lhe conferir o ttulo de cidade das mangueiras.

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    Parece-me que tal fantstica vibra nas asas das garas brancas que vislumbro aos bandos noentardecer, singrarem o espao areo da cidade para pousar nas enormes samaumeiras da PraaBatista Campos, aquela que penso ser uma das mais belas que conheo. (SILVEIRA, 2008, p.110).

    Um olhar mais panormico (CERTEAU, 1994) sobre a cidade e o bairro Batista

    Campos pode ser identificado na experincia descrita por Silveira (2008):

    Da janela do nono andar de um edifcio do bairro Batista Campos, meu olhar vaga pela cidadee se lana sobre o labirinto das ruas, percorre seus meandros at se perder em meio sfrondosas copas de rvores, cujos matizes de verde inundam minha viso do contexto urbano.Segue e percorre logo adiante o desenho complicado dos telhados de tantas casas, umas antigase outras mais recentes que, com os edifcios arrojados de uma Belm que paulatinamente severticaliza, revelam uma paisagem em processo constante de transformao ao longo do tempo.(SILVEIRA, 2008, p. 110).

    Estas impresses no so exclusivas de um olhar particular. Pelo contrrio, so

    socialmente construdas e compartilhadas por aqueles que vivenciam tal cotidiano e tm ou

    j tiveram a oportunidade de se encontrar em meio s paisagens conformadas na Batista

    Campos. Estas imagens compem uma dinmica complexa, que vai alm do que poderia ser

    uma simples coleo de cartes postais, pois se revelam na dinmica das prticas sociais e

    das transformaes no mundo urbano contemporneo, tendo em vista que:

    [] a cidade sempre uma paisagem aberta e em devir, porque experienciada na tenso entre avontade de permanncia e o desejo de mudana prprios dos anseios, conflitos e necessidadesde sua populao no ato mesmo de viv-la. (SILVEIRA, 2008, p. 110).

    Em meio a um bairro que revela seu encanto na potica de suas paisagens e da vida

    vivida, h no apenas beleza e o qu de fantstico, como tambm h economia, produo,

    violncia e, por certo, transformao. Alguns habitantes da cidade almejam gradativamente as

    alturas em cada novo arranha-cu que se eleva; cresce em economia, no apenas aquela que

    segue as regras, economia capitalista, formal e padronizada, mas tambm aquela catica,

    que segue os caminhos tortuosos da informalidade, da gambiarra e da pirataria, uma

    economia bandida (NAPOLEONI, 2010); o assombro da criminalidade, um medo que se

    faz constante no apenas nas periferias, mas que percorre as ruas do centro sem distino;

    uma Belm que se apresenta nova a cada dia divide espao com aquela que vive na lembrana

    dos que ali moram h mais tempo. As paisagens que conformam a Batista Campos esto,

    portanto, para alm das experincias e impresses atuais e individuais, tendo em vista que

    resultam da dinmica que h entre o que vivido e o que perdura na memria daqueles que

    praticam tal meio.

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    2.4. Os prdios antigos da Rua Veiga Cabral

    Precisamente nesta Batista Campos, complexa em sua dinmica, envolta em uma

    potica que escorre por seus espaos atravs da tenso entre o que dado como coevo em

    experincia vivida e o que se faz presente no exerccio de rememorar, que foi possvel

    conhecer as memrias da famlia Sampaio e os profissionais que trabalham na oficina Ponto a

    Ponto. Nas proximidades do Shopping Ptio Belm, h um conjunto de casas antigas

    algumas arruinadas, outras bem conservadas e foi mais especificamente na Rua Veiga

    Cabral, que pude encontrar um contguo de quatro casares semelhantes, entre as quais est a

    casa onde vivem Seu Carlos Sampaio e sua famlia; bem ao lado desta, est a casa na qualfunciona a oficina. Nela trabalham o alfaiate Gilmar e suas costureiras, e o sapateiro Z Lus.

    preciso destacar que as quatro edificaes compartilham semelhanas em sua

    estrutura e fachada. Segundo Seu Carlos, os prdios foram construdos mesma poca,

    seguindo a mesma planta, de modo que foram construdos apenas dois forros para as quatro

    estruturas, onde cada um era dividido por um par de casas. Os forros s foram separados

    definitivamente h pouco mais de cinco anos, por conta da mudana dos donos destas

    propriedades.Seu Carlos morou na Rua Veiga Cabral a vida inteira, inclusive nasceu em um dos

    quartos da casa em que mora h pouco mais de 60 anos. Ele no sabe precisar em nmeros o

    perodo exato, mas conta que seus pais e irmos j viviam ali anos antes de seu nascimento,

    sendo ele o filho caula de uma prognie de quatorze filhos. Ele acredita, porm sem muita

    certeza, que seu pai veio morar naquela residncia entre os anos de 1928 e 1930. Alm de Seu

    Carlos, vivem com ele a sua esposa, Dona Janira, seus dois filhos, Carlinhos e Camila, alm

    de alguns familiares vindos de cidades do interior, que de tempos em tempos se hospedamdurante o perodo que permanecem na cidade.

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    29. Casa da famlia Sampaio . 30. Oficina Ponto a Ponto.

    31. Entrada da Oficina Ponto a Ponto.

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    Nota-se que a experincia da famlia Sampaio um exemplo interessante daquilo que

    no mbito do projeto de pesquisa coordenado por meu orientador mencionado no incio

    deste trabalho, intitulado Paisagens culturais, memria coletiva e trajetrias sociais. Estudo

    antropolgico de fronteiras culturais no mundo urbano contemporneo na cidade se Belm-

    Par tem-se percebido, desde o ano de 2006, como um fenmeno importante da dinmica

    urbana belenense. Ao considerarmos a mobilidade de pessoas provenientes de outras partes do

    Estado, nos diversos espaos e bairros da metrpole, encontramos elementos importantes para

    pensarmos as fronteiras culturais no mundo urbano.

    Sendo os parentes da famlia, na maioria, oriundos de cidades da Ilha do Maraj, como

    Ponta de Pedras, Cachoeira do Arari, Souri, Salvaterra, dentre outras, quando

    circulam/permanecem/co-habitam com a famlia Sampaio, alm de nutrirem o mundo urbanocom experincias e imaginrios diversos, indicam fronteiras na pertena s paisagens

    paraenses ao mesmo tempo em que participam da vida metropolitana, enriquecendo as suas

    caractersticas multiculturais de carter amaznida. O exemplo da sobrinha do casal, Carol (de

    Cachoeira do Arari), que est passando um perodo na capital para estudar elucidativo.

    Carol est fazendo o Ensino Mdio e se prepara para prestar os exames de vestibular. Alm

    dos sobrinhos Gleissom, Igor e Jemine (oriundos da cidade de Ponta de Pedras), que moraram

    durante um perodo na casa da famlia Sampaio e hoje, tendo residncia fixa em Belm,visitam com freqncia seus parentes. Bem como Josimar (tambm de Ponta de Pedras),

    primo de Carlinho