paradoxo da reciclagem - ufscar.bruniverci/n_2_a1/chumbo.pdf · dez|2002 22 tecnologia a política...

6
dez|2002 Tecnologia 20 dez|2002 Paradoxo da Reciclagem Equipe de pesquisadores estuda um novo processo para a reciclagem do chumbo que não polua o meio ambiente Valda Rocha Paradoxo da Reciclagem Microscopia de um eletrodepósito de chumbo eletrolítico típico obtido sobre um substrato de aço Elemento fundamental na fabricação de baterias automotivas, o chumbo (Pb) traz com ele uma grave e preocupante contra- indicação: é altamente tóxico ao meio ambiente e, principalmente, aos seres vivos. Atualmente, o elemento é objeto de pesquisas que buscam desenvolver um processo de reciclagem no qual coexistam a recuperação do metal e a preservação ambiental. Isto porque, ao contrário de outros materiais que agridem o ambiente por não serem reciclados, o chumbo pode causar problemas justamente durante o seu reaproveitamento. O processo de reciclagem utilizado há dezenas de anos pelos fabricantes de baterias automotivas no mundo todo é conhecido como pirometalúrgico. No Brasil, é a principal forma de obtenção do chumbo, já que a extração de minérios desse elemento químico é realizada exclusivamente para a exportação. Portanto, restam à indústria automotiva nacional duas opções: a reciclagem do chumbo das baterias exauridas ou a importação do produto.

Upload: lamque

Post on 23-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

dez|2002

Tecnologia20

dez|2002

Parad

oxo

da R

eciclagem

Equipe de pesquisadores estuda um novoprocesso para a reciclagem do chumboque não polua o meio ambiente

Valda Rocha

Paradoxo da Reciclagem

Microscopia de um eletrodepósito de chumboeletrolítico típico obtido sobre um substrato de aço

Elemento fundamental na fabricação de baterias automotivas, ochumbo (Pb) traz com ele uma grave e preocupante contra-indicação: é altamente tóxico ao meio ambiente e, principalmente,aos seres vivos. Atualmente, o elemento é objeto de pesquisas quebuscam desenvolver um processo de reciclagem no qual coexistama recuperação do metal e a preservação ambiental. Isto porque, aocontrário de outros materiais que agridem o ambiente por nãoserem reciclados, o chumbo pode causar problemas justamentedurante o seu reaproveitamento.

O processo de reciclagem utilizado há dezenas de anos pelosfabricantes de baterias automotivas no mundo todo é conhecidocomo pirometalúrgico. No Brasil, é a principal forma de obtençãodo chumbo, já que a extração de minérios desse elemento químicoé realizada exclusivamente para a exportação. Portanto, restam àindústria automotiva nacional duas opções: a reciclagem dochumbo das baterias exauridas ou a importação do produto.

dez|2002

Tecnologia 21

Frente a esse fato e ao pro-cesso controverso de recupe-ração do chumbo, um grupo depesquisadores do Laboratóriode Pesquisas em Eletroquímica(LaPE) do Departamento deQuímica (DQ) da UniversidadeFederal de São Carlos (UFSCar),em parceria com a Global Ele-troquímica Indústria e Comérciode Metais Ltda, microempresainstalada na cidade de Bauru,interior do Estado de São Paulo,vem pesquisando um novo pro-cesso para a reciclagem dochumbo, denominado eletro-hidrometalúrgico.

Segundo o coordenador dapesquisa no LaPE, Nerilso Bocchi,o processo não polui o meioambiente e pode ser usado paraobtenção de chumbo metálico,a partir de diferentes matérias-primas, tais como baterias auto-motivas exauridas, concentra-dos de chumbo produzidos porempresas de mineração, mi-nérios de chumbo (galena), etc.

Reciclagem

Uma bateria automotiva écomposta por duas partes bá-sicas: a caixa plástica que a en-volve e as placas de compostosde chumbo existentes inter-namente. Usualmente, sua com-posição em massa é a seguinte:polipropileno (7%), chumbometálico (30%), massa ativa(35%), solução ácida (21%) edemais materiais (7%). Uma

bateria encaminhada para a re-ciclagem passa inicialmente porum processo de separação deseus componentes por tritu-ração. O polipropileno (plástico)e o chumbo metálico são fa-cilmente separados. O plásticotriturado é encaminhado parauma empresa de reciclagem es-pecífica desse produto.

O material interno da bateria,denominado massa ativa e, infor-malmente, "pastelão", é formadopor uma mistura de compostosde chumbo com os seguintespercentuais em massa: chumbometálico (Pb) - 4%, óxido dechumbo (PbO) - 9%, dióxido dechumbo (PbO2) - 28% e sulfatode chumbo (PbSO4) - 50%. Apósa separação, a massa fica úmidae é seca a temperatura ambiente.Depois de seca, assume umaconsistência semelhante àquelade um achocolatado em pó. Ochumbo metálico existente nes-se material é integralmente recu-perado após a reciclagem.

O pesquisador Nerilso Bocchi (àesquerda) e o engenheiro químico AbelSanhueza examinam equipamento noqual é executado o processoeletrohidrometalúrgico de obtenção dechumbo metálico

Ao contrário demateriais que agridemo ambiente por nãoserem reciclados, ochumbo pode causarproblemas justamentedurante o seureaproveitamento

Div

ulg

ação

dez|2002

Tecnologia22

A Política Nacional do Meio Am-biente prevê, no artigo 54 da lei 9.605,de fevereiro de 1998, que causar po-luição de qualquer natureza em níveistais que resultem em danos à saúdehumana, ou que provoquem a mor-tandade de animais ou a destruiçãosignificativa da flora é crime ambientale, portanto, o causador pode ser en-quadrado em crime culposo com re-clusão prevista de um a quatro anos,além do pagamento de multa.

Com respaldo legal, a Cetesb(Companhia de Tecnologia e Sanea-mento Ambiental do Estado de SãoPaulo) intensificou a fiscalizaçãojunto às indústrias fabricantes debaterias automotivas no Estado einterditou empresas usuárias doprocesso pirometalúrgico.

Uma das empresas interditadas foi aresponsável pela reciclagem do chum-bo do grupo Ajax, em Bauru, no dia 29de janeiro deste ano. A empresa foiautuada, interditada e multada e osfuncionários e moradores das regiõespróximas às instalações, principalmenteas crianças, foram submetidos a examesde sangue periódicos para a avaliaçãodo nível de contaminação por chumbo.Segundo a Diretoria Regional de Saúdede Bauru (DIR), em um primeiro mo-mento, 825 crianças residentes em umraio de mil metros da empresa in-terditada foram submetidas a análisesde presença de chumbo no sangue.Deste total, 296 crianças de 0 a 12 anos,ou seja, 35,9% das analisadas apre-sentaram níveis de plumbemias (con-centração de chumbo no sangue) iguaisou superiores a 10 µg/100 ml (10 mi-

Limites da leiLimites da lei

No processo eletrohidrome-talúrgico, o uso do forno é dis-pensado integralmente. Nele, amassa ativa proveniente dasbaterias automotivas ou os con-centrados de chumbo produ-zidos por empresas de minera-ção são lavados em uma soluçãofortemente ácida contendotetrafluoroborato ferroso e fér-rico, a fim de dissolver aquelescompostos e produzir íonschumbo. A solução contendoesses íons é, então, transferidapara uma célula eletroquímicacom eletrodos de aço inoxidável(cátodo) e grafite (ânodo). Apassagem de uma corrente elé-trica transforma os íons chumboem chumbo metálico na su-

perfície do eletrodo de aço ino-xidável. Ao final desse processo(eletrólise), obtém-se uma ca-mada de 4 mm a 5 mm de es-pessura de chumbo metálicopuro, que é facilmente retiradae enrolada como um tecido. Paraproduzir placas de chumbo me-tálico lisas e uniformes, aditivosespeciais devem ser adiciona-dos na solução contendo os íonschumbo antes da realização daeletrólise.

Segundo o coordenador dapesquisa, o que ocorre é que, emvez da utilização de altas tem-peraturas para a obtenção dochumbo metálico, o processoeletrohidrometalúrgico é rea-lizado a temperatura ambiente

Processo

Atualmente, cerca de 55% dochumbo metálico produzido nomundo é procedente de reci-clagem. No Brasil, quase a tota-lidade das indústrias em que ochumbo metálico é matéria-prima utilizam o processo piro-metalúrgico para a recuperaçãodesse metal. Nele, a massa ativaproveniente das baterias auto-motivas é aquecida, juntamentecom carvão, limalha de ferro eareia (sílica), em fornos queatingem altas temperaturas(1.000 °C a 1.200 °C). Assim sãoobtidos os lingotes de chumbometálico.

Durante o processamento, aschaminés dos fornos emitemgases tóxicos, principalmente odióxido de enxofre (SO2) e par-ticulados de chumbo, que con-taminam a atmosfera local. Alémdisto, Bocchi alerta que o pro-cesso pode contaminar cursosde águas naturais, por meio dalavagem do chão da indústria,onde existe muita poeira con-tendo compostos de chumbo. "Alavagem das instalações é neces-sária; porém, é imprescindívelque as empresas construam tan-ques receptores dessa água,para tratamento adequado an-tes do lançamento em redes deáguas pluviais, rios e afins", diz.

dez|2002

Tecnologia 23

e usa apenas energia elétrica esubstâncias químicas reutili-záveis, viabilizando a obtençãodo metal sem a poluição domeio ambiente.

Início

As investigações sobre o pro-cesso eletrohidrometalúrgicoinstalado em Bauru tiveraminício há três anos a partir de umprojeto apresentado ao progra-ma RHAE (Recursos Humanosem Áreas Estratégicas), do CNPq(Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecno-lógico), que apóia pesquisascom características de inovaçãocientífica e/ou tecnológica, de-

Esquema simplificado do processo eletrohidrometalúrgico

crogramas de chumbo para cada 100mililitros de sangue), concentraçãolimite recomendável pela OrganizaçãoMundial de Saúde (OMS). Em outras 151crianças (18,3%), a plumbemia ficou en-tre 10 e 14 µg/100 ml; em 73 (8,8%) en-tre 15 e 19 µg/ml; em 68 (8,2%) entre 20e 39 µg/100 ml e em 4 crianças (0,5%) aplumbemia atingiu os 40 µg/100 ml oumais.

As autoridades sanitárias afirmamque as crianças mais afetadas residiammais perto da empresa interditada eque, nas amostras retiradas para umsegundo exame, realizado um mês apóso primeiro, foi registrada uma média decontaminação de 17,7 µg/100 ml, o quesignifica um queda após a interdição daempresa.

A alta concentração de chumbo nosangue pode ser a causa de diversosmales à saúde. A presença desse ele-

mento químico emníveis acima do to-lerado interfere naprodução de he-moglobina, causadistúrbios renais,neurológicos e encefálicos. As criançasem idade pré-escolar e os fetos são apopulação mais vulnerável à exposiçãoao chumbo. Isto porque o sistemanervoso em desenvolvimento aumentaa suscetibilidade a problemas neuro-lógicos. A intoxicação crônica por chum-bo, denominada saturnismo, causa emcrianças perda de peso, anemia e de-ficiência no sistema nervoso. Em adultos,pode se manifestar através de pro-blemas gastrointestinais, alteraçõesneurológicas e cólicas. O chumbo,quando absorvido pela corrente san-güínea de maneira crônica, causa lesõesno fígado, baço, rins e, principalmente,nos ossos.

No Brasil, a reciclagemé a principal forma deobtenção do chumbo,pois a extração dominério é feitaexclusivamente paraexportação

dez|2002

Tecnologia24

senvolvidas por equipe cien-tífica com o objetivo de gerarnovos conhecimentos e formarrecursos humanos. "Na época,foram realizados os testes debancada com experimentos ci-entíficos que viabilizaram odesenvolvimento do processo",diz Bocchi.

O chumbo não é o único resíduoliberado pelas indústrias que causaprejuízos ao meio ambiente e aos seresvivos. Outro perigoso poluente liberadopara a atmosfera por refinarias depetróleo ou por indústrias de fabricaçãode vidro, couro e açúcar, entre outras, é odióxido de enxofre (SO2). Nessasindústrias, a queima de combustíveisfósseis ou de carvão ativado quecontenham enxofre é responsável pelaliberação desse gás. As moléculas dedióxido de enxofre liberadas pelaschaminés e as moléculas de oxigênio (O2)do ar são adsorvidas (aderidas nasuperfície) pelo material particulado emsuspensão na atmosfera e reagem entre

si para formar moléculas de SO3 (trióxidode enxofre). A reação do SO3 com a águaforma moléculas de ácido sulfúrico(H2SO4), substância química responsávelpela chuva ácida. Esse fenômenoprovoca prejuízos para os corpos d´água,solo, fauna, flora e, conseqüentemente,para a vida humana em proporçõesprogressivas. Por exemplo, a chuva ácidaé capaz de dissolver metais pesadoscomo o chumbo e o cádmio no solo,altamente tóxicos, que são absorvidospelos vegetais e se difundem pela cadeiaalimentar. Os vegetais atingidos pelachuva ácida também ficam mais sus-cetíveis à infestação de pragas e aoataque de fungos.

AlternativasAlternativas

No processo eletrohidrometalúrgico, solução contendo íons chumbo é transferida para umacélula eletroquímica com eletrodos de aço inoxidável (cátodo - foto 1) e grafite (ânodo - foto 2). Apassagem de uma corrente elétrica transforma os íons chumbo em chumbo metálico nasuperfície do eletrodo de aço (foto 3)

Nesse contexto, indústrias buscamprocessos alternativos capazes dereduzir a liberação do dióxido deenxofre na atmosfera. Os processos detratamento do SO2 dividem-se em trêscategorias: por via seca, semi-seca eúmida. Nos tratamentos por via úmida,pode-se empregar um reator de leitofixo de carvão ativado como filtro,onde se promove a oxidação do SO2de forma controlada, de maneirasemelhante ao que ocorre na atmos-fera. A regeneração do leito é feita como escoamento contínuo ou periódicode água. Algumas empresas já tra-balham com reatores de operaçãocontínua para o tratamento desse e de

Desde o início, o projeto foidesenvolvido em parceria como engenheiro químico Abel E.Chacón Sanhueza, consultor in-dustrial de empresas de bateriasautomotivas, que manifestou ointeresse em desenvolver umprocesso de reciclagem dochumbo que não agredisse o

meio ambiente.

Depois de todos os testes, eranecessário desenvolver um equi-pamento que pudesse colocarefetivamente em prática os ex-perimentos feitos em labora-tório. Com o apoio do Programade Inovação Tecnológica em Pe-quenas Empresas (PIPE) da Fa-

Divulgação1

23

dez|2002

Tecnologia 25

outros gases tóxicos. Um estudo rea-lizado no Laboratório de ControleAmbiental II do Departamento deEngenharia Química da UniversidadeFederal de São Carlos pelo doutorandoSandro Megale Pizzo teve o objetivo detestar a eficiência de um reator de leitogotejante com operação periódica.

Nesse trabalho, financiado pelaFapesp, foi usado o tratamento por viaúmida com descargas periódicas deágua. Quando as descargas de águasão liberadas, o carvão é lavado e oácido sulfúrico (H2SO4) é formado aintervalos regulares preestabelecidos.No caso do tratamento contínuo, a

água lava o leito ininterruptamente. Osexperimentos mediram a eficiência deremoção do poluente no reator e onível de concentração do ácido sul-fúrico obtido na solução líquida desaída, em função da concentraçãoinicial de SO2.

"Se compararmos os resultados deeficiência média de remoção dessesdois modos de operação do reator,verifica-se que a lavagem contínua doleito produziu índices iguais ou me-nores de concentração do poluente nasaída do reator. Porém, as concen-trações de ácido sulfúrico em algumascondições da operação periódica su-

peraram aquelas obtidas no modoconvencional", explica.

O ácido sulfúrico é um compostoimportante na fabricação de polímeros.Na forma de soluções diluídas, ele podeser usado na correção do pH do solo.

Pizzo afirma que a lavagem periódicapoderia ser usada como um pré-tra-tamento dos gases poluentes. "A prin-cípio, o uso de um reator periódicopermite a remoção de uma quantidadeconsiderável do gás e a produção desoluções de ácido sulfúrico um poucomais concentradas que as de um reatorcontínuo", encerra.

Em vez de fornos queoperam a altastemperaturas e emitemgases tóxicos, oprocessoeletrohidrometalúrgicoé realizado àtemperatura ambientee utiliza apenas energiaelétrica e substânciasquímicas reutilizáveis

pesp (Fundação de Amparo àPesquisa do Estado de São Pau-lo), a microempresa Global, soba administração de Chacón ecom assessoria de pesquisa-dores do LaPE, iniciou suas ati-vidades em novembro de 2001,com o objetivo de desenvolvere aperfeiçoar uma miniplantapara a implantação do processoeletrohidrometalúrgico. AFapesp investiu cerca de 100 milreais na primeira fase do projeto,encerrada em abril deste ano.

Segundo Bocchi, a segundafase está em julgamento peloPIPE/Fapesp e deve ter inícioainda 2002, se aprovada. "Aduração dessa etapa é de doisanos, e o objetivo é desenvolvero equipamento para a re-cuperação do chumbo emmaior escala."