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PARTE 1 Travessias e Migrações

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Travessias e Migrações

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Não falta no Brasil quem se orgulhe de sua origem flamen-ga, seja pelo nome, seja pela aparência, de cabelos loiros e

olhos azuis. Quem eram estes pretensos antepassados flamengos? Tratava-se mesmo de flamengos de Flandres ou de holandeses? a confusão entre os dois é frequente e banal no Brasil, mas não agrada aos atuais belgas e holandeses. Merece ser esclarecida por um curto histórico das presenças flamengas no Brasil colonial e das linhas de ascendência.

Flamengo tinha, no Brasil colonial como em Portugal, um signi-ficado de nacionalidade diferente e bem mais amplo do que aquele vigente para os nativos da região de Flandres, no atual estado federal da Bélgica. Como flamengos designavam-se não somente os súditos do condado de Flandres como também todas as pessoas vindas dos diferentes condados e ducados dos Países Baixos, reunidos pelos duques de Borgonha e herdados por seus sucessores habsburgos.

em lisboa, a privilegiada e prestigiosa nação flamenga tinha sua capela – Santo andré dos Flamengos – fundada em 1414 por mercadores de Bruges, naquela época a maior praça comercial do Norte da europa. Mais tarde, no século XVI, a nação veio a admitir também holandeses e outros mercadores ou artesãos das regiões setentrionais.

esta ‘Flandres’ lato sensu dos portugueses coincidia com a ‘Bél-gica’ constituída por 17 províncias e representada pelos cartógrafos como um poderoso ‘Leo Belgicus’. Seus habitantes ‘belgas’, um termo apenas corrente entre os letrados latinistas, falavam idiomas diferentes: o flamengo, o holandês, uma variante do baixo-alemão e o francês. Flamengos podiam ser francófonos, já que este idioma predominava em boa parte do condado de Flandres, em cidades como lille e Douai, e circulava também na metrópole poliglota de antuérpia.

a união das 17 províncias desintegrou-se a partir de 1566 com a rebeldia contra seu soberano Felipe II e a reconquista contrar-reformadora, que acabaram criando dois estados separados: no Norte, as Províncias Unidas, com principalmente a Holanda e a Zelândia, protestantes e em guerras quase contínuas, e, no Sul, os Países Baixos meridionais, incluindo o condado de Flandres, católicos e leais dentro da órbita espanhola. aliás, estes últimos

compartilharam com Portugal e o Brasil, de 1580 a 1640, os mes-mos soberanos Felipe II, Felipe III e Felipe IV.

entretanto, no Brasil esta distinção entre obedientes e rebel-des custou a validar-se. Os holandeses, que começaram nos anos de 1590 a piratear os navios de açúcar brasileiro, conquistaram brevemente a Bahia em 1624 e dominaram Pernambuco de 1630 a 1654, ainda eram chamados de flamengos. Na boca do poeta gregório de Matos foram até vituperados como ‘o belga ... ímpio tirano’. ainda hoje a ocupação holandesa de Pernambuco é come-morada, numa veneração bastante ambígua, como o ‘Tempo dos flamengos’ no famoso livro de José antônio gonçalves de Mello. Na realidade, a maioria dos invasores era mesmo de holandeses, se bem que ao seu lado lutaram alguns flamengos emigrados ou trânsfugas das províncias meridionais e muitos mercenários ale-mães. Uns e outros tiveram filhos nos poucos casamentos com portuguesas e sobretudo nas furtivas relações com índias e negras, podendo, assim, figurar como antepassados flamengos de muitos nordestinos.

Oposta a esta amálgama com os belicosos holandeses existe, entretanto, uma outra linha de ascendência flamenga que remonta ao próprio condado de Flandres, através de seus mercadores esta-belecidos em lisboa. estes conseguiram, desde meados do século XV e no contexto dos laços dinásticos entre os duques de Borgo-nha e a Casa de aviz, uma participação generosa nas empresas portuguesas no ultramar, primeiro no povoamento da Madeira e dos açores com gente vinda de Bruges e vizinhança. Destas ilhas seus descendentes seguiram mais tarde para o Brasil, já no século XVI, ou com os colonos açorianos do século XVIII. Naquela época os açores figuravam ainda em alguns mapas como ‘Ilhas flamen-gas’. estes flamengos de segunda ou terceira gerações integraram-se sem maiores problemas na boa sociedade colonial como os leme (lam), Taques (Tacx), Dutra (de Hurtere), da Silveira (van der Hae-ghen), Bulcão (Bulskamp)..., nomes hoje presentes no País inteiro.

Uma via flamenga mais direta para o Brasil preexistia desde os anos de 1540, quando os mercadores de antuérpia, interessados no comércio do açúcar brasileiro e na exploração de engenhos, aproveitaram esta primeira mundialização portuguesa e enviaram

Os ‘flamengos’ do Brasil coloniale d d y S t o l s

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agentes ou filhos para São Vicente, Bahia e Pernambuco. assim, constituiu-se lá até o final do século XVI um pequeno núcleo de flamengos de primeira geração, que tiveram também alguma descendência brasileira, como os Campos. entretanto, sua tran-quilidade foi logo afetada pelos ataques ingleses e holandeses e ficaram suspeitos de agir como uma quinta coluna. alguns, acu-sados de heresias protestantes, foram deportados pelo visitador da Inquisição em 1594.

além disso, em represália às novas investidas holandesas, de-cretou-se em 1608 a expulsão desses flamengos do Brasil, mas vá-rios puderam voltar durante a trégua de 1609-1621. Confrontados outra vez em 1624 e 1630 com as invasões holandesas, tiveram que escolher um ou outro partido. Quem, como gaspar de Mere, ficou com os portugueses, teve seu engenho confiscado. Depois da vitória portuguesa sobre os holandeses em 1654, manteve-se em lisboa e no Porto uma pequena comunidade flamenga, que intermediava o comércio com o Brasil e que enviava, ocasional-mente, um ou outro agente ao Brasil, sem, entretanto, reconstituir um novo núcleo flamengo.

Desde a abertura dos portos em 1808, os registros brasileiros de estrangeiros mencionaram esporadicamente a entrada de belgas como ‘franceses’ ou ‘holandeses’, em função do passaporte que traziam. é que os Países Baixos meridionais foram anexados pe-la república francesa em 1795 e passaram, depois da derrota de Napoleão, em 1814, a fazer parte, junto com a Holanda, de um reino Unido dos Países Baixos, que teve pouca duração. Somen-te depois da revolução de 1830 e da Independência da Bélgica é que a nacionalidade belga definiu-se como tal nos documentos de identidade.

Porém, o equívoco subsistia no Brasil e belgas passavam fre-quentemente por franceses, porque falavam francês ou porque ti-nham residido por um tempo na França. Quanto aos flamengos, estes, já ausentes dos registros oficiais, incorporavam-se doravante no imaginário histórico dos brasileiros.

referênciasSTOlS, eddy. “Convivências e conivências luso-flamengas na rota do açúcar brasileiro”.

In Ler História, lisboa, 1997, 32, p. 119-147.

Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarinae d d y S t o l s

a Bélgica viu-se durante o segundo decênio de sua indepen-dência confrontada com uma dramática crise econômica. a

tecelagem e os outros artesanatos domésticos da zona rural foram substituídos pela produção fabril nas cidades, ao passo que estas novas indústrias perderam seu acesso aos mercados nas colônias holandesas. O êxodo rural e o desemprego urbano provocaram um pauperismo, mais marcado nas duas províncias de Flandres oriental e ocidental, que, a partir de 1844, tornou-se catastrófico com a fome e a alta mortalidade subsequentes aos malogros das safras de batata e às epidemias de tifo e cólera.

Para evitar uma explosão social, os dirigentes políticos, e parti-cularmente o rei leopoldo I, buscaram o remédio na emigração para colônias de povoamento belga no ultramar, que deveriam criar novos mercados para produtos belgas. a primeira colônia foi lan-çada em 1841 em Santo Tomás, na guatemala, onde seu governo aceitou ceder um território a uma companhia de colonização bel-ga. esta focalizou durante um decênio as melhores atenções das autoridades belgas ao mesmo tempo em que suas atribulações com-prometiam as outras tentativas coloniais nos quatro continentes.

Neste contexto, não podia faltar um projeto colonizador no Brasil, país que se firmava naqueles anos no horizonte dos belgas. No porto de antuérpia cresceu o número de partidas de navios para o Brasil. Comerciantes belgas, como os laporte, Saportas e Hanquet, investiram na praça do rio de Janeiro para a venda de armas e tecidos. a compra de café brasileiro começou a substituir o café holandês de Java. a riqueza botânica do Brasil fascinava as

elites belgas e vários naturalistas, como louis van Houtte, auguste ghiesbrecht e Jean linden, que partiram à busca de novas plantas.

além disso, os diplomatas brasileiros na Bélgica mostravam-se atentos à questão da emigração. Se o governo do Brasil incentiva-va a implantação de colonos europeus, procurava diversificá-los além dos suíços e alemães. Dos belgas, reputados por seus tecidos de linho, esperavam a introdução da cultura e de fábricas que uti-lizassem essa planta.

Com este propósito, o presidente da província do rio de Janei-ro, Honório Hermeto Carneiro leão, assinou, em 20 de outubro de 1842, um contrato com ludgero Joseph Nélis, empresário do linho de Zele em Flandres oriental, para trazer 20 agricultores e implantar esta cultura numa concessão na Pedra lisa, perto de Campos.

Pouco depois, em 10 de maio de 1843, o contrato foi amplia-do para 125 colonos com meia légua de terra e um empréstimo para suas passagens e primeiras despesas, a serem reembolsadas em dois anos. O cônsul-geral brasileiro na Bélgica, José augusto rademaker, vistoriou pessoalmente em Zele os candidatos: eram bons agricultores e suas mulheres, especialistas no trabalho com linho e manteiga.

Dos 106 colonos embarcados no porto francês vizinho de Dun-querque, no navio francês Curieux, chegaram ao rio em 28 de dezembro de 1843 somente 99, sendo que seis e um recém-nas-cido morreram durante a travessia de 56 dias. entre eles estavam 56 solteiros, 9 casais, 6 moças e 16 crianças. Transportados para

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Campos por uma escuna de guerra, seguiram em barcas até Pe-dra lisa em 14 de fevereiro de 1844, onde deviam receber casas provisórias e alimentos até as primeiras colheitas.

Desenganados e descontentes com o despreparo, em abril qua-se todos tinham desaparecido. Novas providências para comprar gado a fim de reter os poucos restantes não adiantaram. O único a ficar, Nélis tirou todo o proveito possível das matas, para escân-dalo dos vizinhos, que queriam repartir as terras entre os pobres. alguns fugitivos se colocaram em outras colônias, mas boa parte voltou à Bélgica e relatou na imprensa seus dissabores.

O governo nada recuperou de seus gastos e o próprio Nélis vol-tou para Zele onde, em 1847, figurou como morador e fabricante de velas. Neste contexto de Pedra lisa situou-se a vinda a Campos do casal Charles Muylaert, originário de aalst, cidade próxima a Zele, que deixou numerosa descendência no Brasil, ativa na mú-sica e nas artes. Perto de São Fidelis (rJ), a colônia de Valão dos Veados, montada pelo proprietário eugênio aprígio da Veiga em 1847, contou com 13 belgas.

Outra atividade econômica belga que suscitava particular inte-resse brasileiro era sua já bem avançada exploração das minas de carvão. Para examinar o potencial carbonífero brasileiro e trans-ferir a tecnologia belga, o governo imperial contratou, em 1839, o cientista Jules Parigot. Mal sucedido, este acabaria, mais tarde, nos anos de 1860, como diretor de colônias no Paraná. Um outro belga, Charles Van lede, travou um nexo mais direto entre explo-ração geológica e colonização.

Charles Van lede (1801-1875), nascido em Bruges de uma família de comerciantes e proprietários de terras, conhecia a amé-rica latina por seu trabalho como engenheiro militar no México e no Uruguai nos anos de 1826 a 1828. No Chile teria sido di-retor das obras hidráulicas. Seu irmão, louis auguste Van lede, vice-cônsul do Brasil em Bruges e sócio da Société de Commerce de Bruges, fazia comércio com o Brasil. em abril de 1837 tinha despachado um navio para o rio de Janeiro com farinhas, tecidos e armas. em dezembro de 1841, Charles partiu para prospectar no Brasil, com um capital de 50.000 francos e recomendado pe-lo encarregado de negócios brasileiro em Bruxelas, Visconde de Santo amaro. este apreciava os belgas como “bons trabalhadores e católicos”, mas pretendia eliminar “a escória da sociedade”.

Charles Van lede levou consigo Joseph Philippe Fontaine, como delegado da Société de Commerce de Bruges e seu futuro substituto, e mais um sobrinho, Jules de laveleye, mais tarde vice- -cônsul do Brasil em gand. Percorreu boa parte de Santa Cata-rina, de São José a lages, remontou o rio Itajaí, examinou o po-tencial de mineração de carvão como em Tubarão, levantou um mapa e redigiu a nota Geologia de Santa Catarina. esta foi tradu-zida na Revista do Instituto Histórico, 1845, t. 7, do qual se tornou correspondente estrangeiro. Seu trabalho alimentou boatos de que queria explorar carvão e minérios com mão de obra flamenga.

No rio de Janeiro conseguiu do Império, em 10 de agosto de 1842, uma concessão de terras devolutas de 20 léguas quadradas que sua nova Companhia belgo-brasileira de colonização devia va-lorizar com capital suficiente para obras e construções e promover

a vinda de no mínimo cem colonos por ano. O governo imperial pagaria trinta mil réis por colono maior de 14 anos e dez mil por aqueles com idade entre três e 14 anos. Daria isenções de taxas sobre a importação de móveis, víveres, sementes, equipamentos agrícolas, material de construção, livros e armas. Permitiria a ex-ploração de minérios, salvo diamantes e carvão, que exigiriam um contrato particular. Os colonos seriam submissos às leis do Impé-rio, mas gozariam de liberdade religiosa e seus filhos nasceriam brasileiros. Não poderiam empregar escravos.

De regresso à Bélgica, Van lede sintetizou suas informações gerais sobre o Brasil e Santa Catarina num livro substancial de 435 páginas, De la colonisation au Brésil, Bruxelas, 1843. Mandatado pela Société de Commerce de Bruges, organizou uma sociedade anônima de 6 milhões de francos em 6.000 ações. esperava atrair capital e colonos com a distribuição de seu livro e de folhetos não somente na Bélgica como também na vizinha renânia alemã.

rivalizando com a colonização já mais adiantada em Santo Tomás de guatemala, seu projeto ambicioso pretendia envolver as mais altas instâncias do país. entretanto, o principal banco belga, o Société Générale, recusou-se a promover a subscrição de ações, alegando que não podia depender de um governo estrangeiro.

O próprio governo belga, alertado por seu encarregado de ne-gócios no rio de Janeiro, edouard De Jaegher, sobre a instabili-dade política no Brasil, os riscos financeiros e os problemas em casos de heranças, negou a proteção oficial e concedeu somente o patrocínio do rei e passaportes gratuitos aos colonos. Não cons-ta que a hierarquia católica deu seu apoio como o fazia para a colônia na guatemala. Mesmo assim, negociantes de antuérpia, como Théodore de Cock e Melchior Kramp, participaram e fa-cilitaram a ratificação da nova Companhia em 19 de janeiro de 1844. a imprensa advertiu os eventuais acionistas que ainda fal-tava a aprovação da Câmara brasileira e que as terras eram mais baratas nos estados Unidos. Também na renânia publicou-se um exame crítico do projeto: Die Belgischen Colonien in Guatemala und Brasilien, Colônia, 1844.

De seu lado, o cônsul-geral brasileiro, José augusto rade-maker, que no início era favorável ao projeto, se distanciou. a ausência de brasileiros no conselho de administração, as críticas ventiladas por De Jaegher, as passagens sobre as dívidas do Brasil no livro de Van lede e a pouca consideração deste último cho-caram sua autoestima de brasileiro, ainda mais quando os jornais escreveram que Van lede tinha conquistado para a Bélgica ‘un petit royaume de 400 lieues carrées’ – um pequeno reino de 400 léguas quadradas. rademaker ressentia a resistência dos belgas em ceder ao Império a soberania sobre seus súbditos e sua preferência pela colônia mais dependente de Santo Tomás de guatemala, pa-ra onde embarcavam nesta época mais de 500 belgas.

algo recalcitrante, Van lede não desistiu e partiu novamente em junho de 1844 para efetuar a demarcação de sua concessão. No Brasil lhe esperava a decepção da nova lei, que interditou a doação de terras públicas. Como os primeiros colonos já estavam embarcando, Van lede comprou por conta própria, de Henrique Flores, uma légua quadrada de terras na margem do rio Itajaí, a

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futura Ilhota. No final de agosto, saiu de Ostende o barco Jan Van Eyck, do capitão Minne, com a primeira leva de 114 emigrantes, principalmente da região de Wingene, na província de Flandres ocidental, em maioria agricultores, jovens de 20 a 30 anos, alguns casados e com filhos. Mas vinha também gente de classe média urbana, como o já citado Joseph Philippe Fontaine, gustave le-bon, o agrimensor Henri Devreker, Hypolite Vanderheyden de Ostende e Pieter-Jan Plettinck. este último, que foi médico e far-macêutico em Bruges antes de dedicar-se à agricultura e à destila-ria em Jabbeke, escrevia suas cartas num bom francês (Boutens).

a viagem levou 12 semanas, com paradas de oito dias em San-ta Cruz de Tenerife e no rio. Nem todos os imigrantes seguiram diretamente para a colônia no Itajaí. Plettinck, diante de notícias confusas sobre as terras, ficou no Desterro, pensando em exercer a medicina por lá. Outros 22 imigrantes se retiraram logo no pri-meiro ano e um deles, De gand, ganhou até o processo movido por Van lede. O grupo de Vanderheyden, com cerca de 14 pesso-as, julgou as terras de Van lede de má qualidade e alugou outras. Na própria Ilhota, cada colono recebeu um lote individual de 50 braças (110 metros) de largura, no qual devia uma renda em na-tura e mais um dia por semana de trabalho gratuito para o diretor da colônia. Pagaria a compra em quatro ou oito anos.

Surpreendentemente, em fevereiro de 1845 Van lede já havia deixado a direção da colônia a Fontaine, seu homem de confian-ça. era uma fuga de suas responsabilidades ou um sinal de que julgava sua tarefa terminada? Pelo menos Fontaine informou, em carta de 07 de abril de 1845, publicada no diário oficial belga Le Moniteur, que os colonos estavam com boa saúde, já livres dos borrachudos e da sarna, contentes e trabalhando duro. Já havia 16 casas com um caminho traçado ao longo do rio e até uma área para um jogo de bochas e 25 hectares desmatados, que renderam a primeira safra. Plantaram feijão preto, batatas e, nas linhas divi-sórias, cafeeiros e laranjeiras, e tinham planos para cana, tabaco, linho, índigo, nopal para a cochinilha e até alpiste, e mais estra-das para novos colonos. Também o cônsul belga em Desterro, Charles Sheridan, nomeado em maio de 1844 por causa de sua longa experiência marítima, confirmou que a colonização estava bem encaminhada e oferecia perspectivas para mais emigrantes.

O próprio Sheridan, associado com o armador Telghuys, de antuérpia, desviou emigrantes para suas próprias terras compradas em Tijucas grandes. Foi provavelmente ele quem incitou Pierre Van loo, filho de um respeitado negociante de gandt, a investir sua herança de 10.000 francos num projeto com 16 colonos. Con-tratados em cartório, eram em maioria agricultores da região de Wingene, mas também alguns valões, dois operários, um ferreiro e um aluno de farmácia.

O médico Plettinck, em carta de março de 1845, também pro-pôs a seus conhecidos de Jabbeke a formação de uma companhia de 20.000 francos e a compra de terras para 12 colonos. Cada um entraria com pelo menos mil francos e deveria trazer utensílios agrícolas, tecidos baratos de algodão, sementes de centeio, armas e pólvora para caçar porcos e animais selvagens. Como Plettinck não deu mais sinal de vida, seu projeto provavelmente não vingou.

Paralelamente, esta colonização belga em Santa Catarina se conectou com o desenvolvimento da horticultura tropical na Bél-gica e particularmente na cidade de gand. Um de seus principais horticultores, Verschaffelt, enviou um empregado, François De Vos, para coletar orquídeas em Santa Catarina e recebeu deste a Cattleya Leopoldi e a Cattleya elegans, cuja comercialização exi-tosa rendeu bons lucros.

rijcke foi outro colono belga que também se dedicou à caça de plantas, talvez a serviço de outro horticultor gandense, louis van Houtte. graças às suas cartas, conservadas pela família, co-nhece-se um pouco melhor a trajetória catarinense do naturalista lambert Picard (1827-1891). Jovem, órfão de um metalurgista luxemburguês, partiu em 1846, depois de um curto estágio com um horticultor em Bruxelas, para fazer dinheiro como ‘caçador de plantas’ no Brasil.

antes de coletar pelo interior, Picard passou várias semanas nas terras de Telghuys e Vanderheyden e conheceu depois outras colônias. logo na sua primeira volta à Bélgica, em 1850, publi-cou, no Boletim da academia belga, uma memória crítica sobre colônias. entusiasmado pelas riquezas da província e bom obser-vador, analisava as falhas de Van lede e insistia que futuros colo-nos deveriam receber lotes já demarcados e casas preparadas para não perder tempo nem ânimo diante da selva impenetrável. acon-selhava a adoção das tradicionais culturas locais, como de cana, mandioca, feijão e milho. a exemplo dos agricultores brasileiros já experimentados, não devia proceder-se a um desmatamento tão minucioso e custoso como na europa. Na mesma linha, Pi-card julgava indispensável empregar, como os brasileiros, mão de obra escrava, até que uma lei geral abolisse o tráfico. regressando a Santa Catarina em 1855, voltou a expedir plantas tropicais e peles de jaguatiricas à Bélgica mas, em 1862, passou a exercer a medicina natural em alegrete, no rio grande do Sul. após juntar dinheiro suficiente, foi estudar medicina em Heidelberg, onde se formou em 1872. Homologou seu diploma na Bahia, mas prefe-riu praticar no Uruguai, primeiro em Montevideu e, finalmente, em Nueva Palmira.

referente à Ilhota, a colônia já estava desde o final de 1845 vivendo seus primeiros dramas com inundações, safras destruídas e mortes. Fontaine pagava caboclos para o trabalho mais duro e provocava a ira dos belgas, que se recusavam a prestar doravante seu dia obrigatório de trabalho gratuito. as brigas levaram Fon-taine a fazer queixa às autoridades brasileiras, que condenaram três belgas, Krabeels e os dois irmãos Maes, a dois anos de prisão. em Desterro, suas mulheres com dez crianças vagavam pelas ru-as, pés descalços e pedindo esmolas. O consulado ajudou no seu sustento e colocou as crianças na escola pública. Os presos protes-tavam e teimavam em ser julgados pelas leis belgas. a reputação briguenta dos belgas piorou com um incidente em maio de 1846, quando Jan Van eyck trouxe ao porto de Desterro mais colonos e mercadorias.

Por andar tarde da noite pelas ruas, o capitão Minne e seus marinheiros foram interpelados por guardas da polícia e chega-ram às vias de fato. No dia seguinte o subdelegado de polícia e o

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juiz de direito foram a bordo intimar os belgas a explicar-se e toda a tripulação acabou presa. O cônsul Sheridan não ousou intervir no meio de um populacho que gritava “matão já esta cambada d’estrangeiros, enforcão já todos elles, arrancão a bandeira”. Iden-tificado como belga, Jean eilgner foi insultado na rua e a esposa teve a roupa rasgada. Outro belga foi expulso.

O clima xenófobo piorou com a chegada, em agosto de 1846, do Adèle com Pierre Van loo e seus colonos. estes sofreram maus tratos já na alfândega, que exigiu direitos excessivos sobre objetos de uso pessoal, como instrumentos agrícolas, quadros de família ou uma caixa para preservar plantas do agente do horticultor Van Houtte, de gand. até a casa do cônsul Sheridan foi vasculhada à procura de contrabando. Para maior confusão, Fontaine abando-nou a colônia, vendendo o sino da igreja e a casa como material de construção, e deixou lebon como substituto. ao menos regis-trou, em 17 de julho de 1847, numa planta conservada no Museu de Tervuren, os nomes dos cinco colonos ainda presentes com 19 dependentes, mulheres e filhos, de outros três ausentes e ainda de mais três moradores sem lote. Os outros se dispersaram por outras colônias ou voltaram para a Bélgica

Sheridan informou o novo encarregado belga, auguste van der Straten Ponthoz, e atribuiu estas hostilidades a um partido liderado pelo presidente da província e juiz de direito. Segundo ele, estas elites nacionais estavam acostumadas a obter concessões de terras, que rentabilizavam pelo trabalho de colonos alemães ou que, eventualmente, lhes vendiam. achavam-se agora preju-dicadas pelas empresas belgas de colonização, que não permitiam semelhante exploração de seus imigrantes. alguns, contrários ao desmatamento por mão de obra livre, preferiam a escravidão. Nu-ma interpretação similar, Van loo considerou os incidentes com Jan van eyck como vingança, mas não deixou intimidar-se, ainda mais porque a revolução no rio grande do Sul dava sinais de “de-sintegração deste imenso Império”. em sua opinião – significativa do incipiente estado de espírito colonialista entre alguns colonos –, os belgas, orientados por “chefes inteligentes” e “tão numerosos e com um núcleo de gente capaz, poderiam adquirir influência po-lítica e dirigir o movimento para o proveito da Bélgica”. Se não, Santa Catarina cairia nas mãos dos ingleses, como também temia o cônsul francês.

O cônsul Sheridan, consciente de sua pouca influência e ain-da sem exaquatur (permissão para exercer seu cargo no País), es-perava que van der Straten fosse intervir junto ao governo central. este diplomata profissional adotou uma atitude ambígua, mas de acordo com a reserva do governo belga diante da experiência em Santa Catarina. Criticou Sheridan por não ter intermediado en-tre Fontaine e os colonos e o demitiu por sua condenação por contrabando. ao mesmo tempo, deixou claro que não interviria para proteger os belgas, afirmando que estes deveriam aprender a conformar-se com as leis de seu novo país e que seus problemas eram decorrentes dos contratos. Tendo em vista a suscetibilidade da opinião pública, o melhor era esquecer o episódio com Jan Van eyck. assim, o encarregado achou pouco oportuno que o navio de guerra da marinha belga Duc de Brabant, que devia, em 1847,

ostentar e prestigiar a bandeira belga na costa da américa do Sul, fosse fazer escala em Desterro.

Sheridan liquidou seus negócios, abandonou sua pequena co-lônia e voltou a gand. em 08 de julho de 1846, seu cunhado, Paul Dierxsens, secretário da Câmara de Comércio de antuérpia, interveio em sua defesa, acusando van der Straten e seu cônsul Saportas de ineptos. Suas queixas fizeram o ministro belga das relações exteriores lembrar, em 29 de janeiro de 1847, ao encar-regado no rio seu dever de proteger os nacionais, sem que desse por isso qualquer apoio oficial a esta colonização.

essas desavenças naturalmente repercutiram na imprensa e no parlamento belgas em discussões sobre os rumos da emigração de-pois dos malogros em Santa Catarina e na guatemala. O próprio Van lede, eleito conselheiro provincial de Flandres ocidental, polemizou no final de julho de 1850 em Le Moniteur com o seu antagonista no rio, De Jaegher, nomeado governador de Flan-dres oriental. Boatos de que venderia sua concessão deixaram os diplomatas brasileiros em Bruxelas de sobreaviso, ainda mais por-que, por várias vezes, foi solicitada sua benevolência para deixar deportar ao Brasil presos dos asilos de mendicidade e que novos candidatos à emigração pediam subsídios brasileiros.

em Ilhota, porém, onde por meados de 1847 restavam somen-te 63 pessoas, a colônia se estabilizou e voltou a crescer.

O novo cônsul belga, o suíço Schuttel, nomeado em 1850, autor dos Relatórios do Império de 1854 e 1859, o viajante alemão avé-lallemant em 1858 e o capitão Petit e seu adjunto émile Sinkel, do Duc de Brabant, que em meados de 1855 acabou en-trando em Desterro, citaram números variando de 89 a 200 indi-víduos e atestaram seu bem-estar e boa natalidade. Na margem alta do rio, em pequenas casas cinzentas, mas limpas, viviam bem nutridos e contentes e casavam-se entre si. Tinham muitos filhos, que avé-lallemant viu “chafurdando alegres na lama entre bana-neiras e canas de açúcar”. locatários ou proprietários, plantavam milho, feijão, batatas, algodão e café, tinham gado, engenhos de cana e mandioca ou trabalhavam como profissionais. econômicos, alguns já dispunham de dinheiro para emprestar a outros ou para voltar à Bélgica. Na falta de estradas até a costa, faziam comércio com uma escuna de lebon pelo rio Itajaí até a foz.

ao contrário, bem mais crítico se mostrou o diplomata belga Charles d’Ursel durante sua visita em dezembro de 1873. Chegan-do pelo rio, se deparou com a pobre venda de J. Maes e convocou todos. Das 22 famílias reunidas, a maior parte encontrava-se em situação de quase miséria. Continuavam casando em endogamia e falando ainda o flamengo, mesmo na segunda geração. Sem contratos ou papéis, viviam inseguros e incomodados pelo cônsul Schuttel, que pretendia cobrar dívidas de Van lede. Quando este faleceu em 1889, seu legatário, o Sint-Jans Hospitaal de Bruges, procurou recuperar as terras e enviou um agrimensor, mas os co-lonos belgas resistiram e conservaram as terras.

Nas gerações seguintes quase todos abandonaram a agricul-tura para profissões nas cidades. Hoje encontram-se os numero-sos descendentes, Castellain, Coninck, gevaerd, Hostin, Maes... espalhados por toda Santa Catarina e até nos estados vizinhos.

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Ilhota tornou-se município em 1958 e, confrontado com a forte afirmação cultural e folclórica das outras comunidades étnicas na região, seguiu esta onda e começou ultimamente a comemorar suas raízes belgas. Organizou-se em 2010 uma festa Belga-expo e formou-se uma rede da família Brocveld.

referênciasarquivo Histórico do Itamaraty (aHI), Bruxelas, Ofícios, 1843-1869 e 204/3/10-12; archives

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Jules louis Parigota n a M a r i a r u f i n o g i l l i e s e e d d y S t o l s

a surpreendente trajetória do belga Jules louis Parigot, diretor de colônias no Brasil imperial, redundando entre dois con-

tinentes e três ciências, tão característica do século XIX, merece mais que este esboço biográfico ainda fragmentário. De origem francesa, nascido em Paris em 1806, formou-se em medicina e foi nomeado em novembro de 1835 professor de mineralogia e geologia na Université libre de Bruxelles, recém-fundada em 1834 dentro do espírito do livre pensamento.

No ano seguinte participou da comissão que devia redigir um projeto para organizar a nova Académie Royale de Médecine. Fez-se também membro da Société de Médecine de Gand e da Société des Sciences Naturelles et Médicales de Bruxelles. ao mesmo tempo, redigiu uma Carte du bassin houiller de la Belgique et du nord de la France (Mapa da Jazida Carbonífera da Bélgica e do Norte da França), Bruxelas, 1838. Seu livro Histoire des tribus indiennes de l’Amérique septentrionale, Bruxelas, 1837, demonstrou seu inte-resse pelo novo mundo, que se concretizou na ideia de fazer uma viagem ao Brasil, como fizeram outros belgas na época.

apresentando-se como naturalista em carta de 28 de março de 1839 ao Ministro de relações exteriores belga, pediu subvenção de um ano de salário para uma viagem científica ao Brasil e paí-ses vizinhos, onde coletaria dados estatísticos, estudaria a econo-mia rural e doméstica, examinaria o mercado para as exportações belgas e ofereceria seus serviços para fazer o mapa geológico do Império (amaeb, 2015). recebeu apenas uma carta de recomen-dação e a promessa de indenização no regresso. Mais receptivi-dade encontrou no ministro brasileiro dos Negócios estrangeiros, Caetano Maria lopes gama, que informou o Ministro dos Ne-gócios do Império, Manuel antônio galvão, sobre a possibilidade

de contratar Parigot para pesquisas mineralógicas e a exploração do carvão de pedra no Brasil (aHI). O interesse do governo brasi-leiro pelo carvão de pedra se devia naquele momento menos aos primeiros projetos ferroviários, mas antes à navegação a vapor, que tinha boas perspectivas na costa marítima e nos rios do País.

Parigot recebeu este encargo e com instruções do Ministro do Império de 21 de novembro de 1839 foi primeiro a alagoas e logo à Bahia. lá, desde janeiro de 1840, fez sondagens na Ilha de Itaparica, mas em Ilhéus foi perturbado pelas chuvas. Pelo re-gistro de estrangeiros, em 5 de julho de 1840 embarcou do rio de Janeiro para o Sul. Publicou seus primeiros resultados no rio de Janeiro em Memória sobre o carvão de pedra no Brasil (1841), Minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1841) e Memória terceira sobre as minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1842) (anderson Heleodoro).

No final destas viagens Parigot pode ter cruzado com o com-patriota Charles Van lede. este liderou sua própria exploração em Santa Catarina no início de 1842, com atenção particular pa-ra o carvão, e obteve, em 10 de agosto de 1842, uma concessão imperial para trazer imigrantes belgas através de sua companhia belgo-brasileira de colonização.

ao mesmo tempo, o governo imperial encarregou Parigot de iniciar a exploração do carvão e de buscar capitais, mineiros belgas e instrumentos de mineração na Inglaterra e na França. Segundo o Jornal do Comércio de 10 de setembro de 1842, ele estava de partida no rio de Janeiro. Poucos dias depois, o encarregado de negócios belga, De Jaegher, em aviso ao seu ministro sobre esta missão, exprimiu sua pouca confiança em Parigot e o aconselhou lhe conceder somente ajuda, depois de ter ouvido Van lede.

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em janeiro de 1843, na Bélgica, Parigot tentou convencer a Société Belge de Colonisation a associar-se, com o devido respei-to aos interesses brasileiros, à Compagnie Impériale des Mines de Sainte Catherine (Companhia Imperial de Minas de Santa Ca-tarina) e a todas as indústrias conexas, um projeto em discussão no Parlamento brasileiro. Se o diretor da sociedade belga mani-festou um interesse polido, deu prioridade ao projeto de coloni-zação na guatemala.

ao mesmo tempo, Van lede estava buscando acionistas pa-ra sua companhia e gozava então da maior simpatia do cônsul- -geral, José rademaker, da legação do Brasil na Bélgica. rade-maker tinha recebido ordens para auxiliar Parigot e pagar-lhe a pensão. Como Parigot preferiu comprar na Bélgica – em vez de na França ou na Inglaterra – máquinas de mineração do duque d’arenberg pelo preço de 3.500 francos, rademaker ficou descon-fiado e levou o engenheiro Tarte para examiná-las. este as julgou ultrapassadas, mas Parigot acusou rademaker de cumplicidade com Van lede. No rio de Janeiro também circulavam críticas e boatos contrários. assim, no final de 1843, Parigot foi exonera-do e os pagamentos, suspensos. Pelo menos algum material foi enviado, já que em carta ao Presidente da Província da Bahia Parigot solicitou a liberação de materiais destinados à mineração de Santa Catarina, procedentes da europa, porém levados à al-fândega da Bahia em 1844.

De volta à Bélgica, Parigot dedicou-se mais à medicina e par-ticularmente ao tratamento dos doentes mentais no Hospice de Bruxelas. em 1849 foi nomeado inspetor-médico da colônia de alienados de geel, uma pequena cidade na província de antuér-pia, onde desde a Idade Média se acolhia loucos nas casas de família com bons resultados. entretanto, esta tradição salutar se deteriorou sob o mando tirânico de diretores eclesiásticos. assim, o governo belga resolveu intervir e reorganizar a colônia com um serviço de quatro médicos e um inspetor.

Neste cargo, Parigot restabeleceu e reformou os métodos tra-dicionais. Os alienados tinham seu próprio quarto, bem melhor que a cela dos asilos, não eram acorrentados, mas saiam quan-do queriam e até trabalhavam no campo. Faziam música, com direito a uma “cervejinha”. recebiam-se mesmo estrangeiros e muitos se curavam ou, pelo menos, não pioravam.

Desta experiência resultaram várias publicações como Théra-peutique naturelle de la folie: l’air libre et la vie de famille dans la commune de Gheel (Terapêutica natural da loucura: o ar livre e a vida em família na cidade de geel), Bruxelas, 1852, De l’hygiène des sentiments (Da higiene dos sentimentos), 1856, e De la réfor-me des asiles d’aliénés (Da reforma dos asilos de alienados), 1860.

a visita do jornalista francês Jules Duval em 1856, um entu-siasta e praticante das ideias fourieristas num tipo de falanstério na algéria, resultou num livro badalado, Gheel ou une colonie d’aliénés vivant en famille et en liberté (geel ou uma colônia de alienados vivendo em família e em liberdade), Paris, 1860. Já em 1856 Parigot se deixou voluntariamente substituir em geel, talvez porque a boa repercussão internacional de seus métodos lhe abriu novos horizontes. Por volta de 1861-1864 parece ter

ido a Nova York para dirigir um asilo. entrementes, nos anos de 1850 a 1880, seu pensamento e suas propostas apareciam com destaque na corte imperial brasileira nos debates e discursos mé-dicos sobre neuroses e loucura (gonçalves).

Não se sabe se Parigot voltou ao Brasil por algum convite, por iniciativa própria ou por um casamento. No final da década de 1860 já estava neste país e publicou O futuro dos hospícios de alienados do Brasil: memória offerecida a imperial Academia de Medecina do Rio de Janeiro (rio de Janeiro, 1870, 12 p.). Para este espírito polivalente e algo volátil a problemática das colônias de alienados se aproximava daquela das colônias de imigrantes no Brasil. estas se encontravam, na época, em plena efervescência e as desavenças dos colonos encontravam acirrada repercussão na europa. entrando nas discussões sobre as alternativas, Parigot pro-nunciou um discurso, lançado em folheto, Convirá ao Brasil a im-portação de colonos chins?, em 16 de agosto de 1870, na Sociedade auxiliadora da Indústria Nacional, da qual se tornou membro.

Figurava pelo menos desde 15 de fevereiro de 1868 como di-retor na colônia do assunguy, composta por brasileiros, alemães, ingleses, franceses, suíços e outras nacionalidades, servindo tam-bém como médico e ocasionalmente como intérprete em quatro línguas. Teria aceito a função, segundo seu próprio comentário ouvido por um colono, principalmente para poder escrever sosse-gadamente uma obra sobre loucos (lamb e garcia). Se queixas dos imigrantes, inclusive contra os diretores, eram frequentes, na-da consta nas fontes disponíveis contra Parigot.

Segundo o diplomata belga edouard anspach, era bem consi-derado (Recueil consulaire, 16, 1870, p. 24-28). Mostrava-se muito comprometido a atender às necessidades dos colonos e ver cum-pridas as promessas feitas pelo governo. reclamava da falta de verbas para receber os colonos em casas prontas na sua chegada e prover-lhes ferramentas, panelas e alimentos, para preparar o ca-minho que conduzia às melhores terras, para contratar trabalha-dores. Defendia a ideia de que, com as famílias pobres dez dias de sustento – conforme ditava o regulamento – não eram suficientes e que o provimento deveria estender-se por seis meses. Desaprovava a remessa de imigrantes solteiros por observar que estes não conse-guiam viver sozinhos no mato. além disso, denunciava as mazelas de diretorias anteriores e o não cumprimento das obrigações por outros elementos que faziam parte do pessoal da colônia. assim, mandou demitir o engenheiro da colônia, Chalreo Jr, o que pro-vocou longas discussões e argumentações entre ele, o engenheiro e as autoridades provinciais.

Tantas críticas e sugestões podem ter causado sua transferência para a colônia de Cananeia, por portaria de 6 de abril de 1869. Sobre sua atuação em Cananeia há poucos dados. O relatório da agricultura de 1870 citou um plano seu para abrir um tram-road do porto até Castro, atravessando a Serra Negra e a colônia de assun-guy. Pouco depois, em 31 de março de 1871, suplicou ao Impera-dor para ajuizar sua proposta de ‘ir à europa despertar a emigração espontânea de pequenos proprietários’ (aN, M160D7403). Faria conferências em vários países, mediante pagamento da passagem de ida e volta e de adiantamento de seis meses de seu ordenado.

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Alguns socialistas e anarquistas belgas buscaram refúgio no Brasil, entre eles Augusto Lootens, que partiu para a Argentina em 1889 e se estabeleceu pouco depois no Rio de Janeiro com uma lavanderia.

Casa que pertenceu a Jean-Joseph Vervloet, que imigrou em 1858 para a colônia de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, em um projeto oficial de colonização.

Na mesma carta pediu sua exoneração do cargo de diretor. Não se sabe se foi realmente à europa, mas pelo menos retornou à Co-lônia de assunguy, onde, em 1875, segundo o relatório sanitário, atuava como médico da colônia. Pouco depois pediu ao presidente da província licença de 2 meses, com vencimentos, para tratar da saúde em Curitiba. lá estava sua família, que ele só havia visto uma vez desde que assumira o posto na colônia. além disso, ele referiu-se a conflitos com o então diretor da colônia, Pedro de al-cântara Buarque, em assuntos de natureza médica.

Faleceu em 1877 ou 1878 na colônia Brusque ou Itajaí (Oswal-do Cabral, História de Santa Catarina, rio de Janeiro, 1970, p. 243). Vários de seus descendentes desempenharam importantes funções no estado do Paraná. a partir deles se poderia talvez pre-encher as lacunas de sua biografia.

Ana Maria Rufino Gillies é doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati.

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Jeanne louise Milde, escultora e educadorar e n é l o m m e z g o m e s e Ve r o n a C a m p o s S e g a n t i n i

Uma modernidade claudicante

“Esculturas, retratos, composições, estudos diversos, Mlle. Mil-de não cai nos erros de certas esculturas, ditas modernistas,

que não oferecem mais que desbastes, rascunhos, [...] e acreditam descobrir a arte na expressão informe.”

27 de novembro de 1928. Com essas palavras, um crítico de arte do jornal Les Nouvelles, de la louvière, saudava a produ-ção de um promissor talento da nova geração de artistas belgas: Jeanne louise Milde, que apresentava algumas de suas obras em uma exposição.

25 de abril de 1930. No Brasil, o jornal Estado de Minas no-ticiou a participação da artista na VII exposição-geral de Belas artes de Belo Horizonte, capital do estado de Minas gerais: “Em sua escultura há serenidade e arrojo, [...] dando à sua obra essa alta expressão emotiva que não está disciplinada ao canon clássico e que não tomba na vertigem do modernismo chocante”.

17 de abril de 1960. entrevistada por lúcia Veado, do mesmo jornal, Milde diria: “Fui da escola impressionista e conservo até ho-je alguns exemplares. Considero-a ainda a escola básica dos meus conhecimentos de arte, porém, apreciando muito a arte moderna na sua concepção sólida, sem fantasia e sem exageros”.

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reflexo de suas escolhas, as palavras e a obra de Milde a si-tuam em um “entrelugar”. Havendo abandonado uma carreira promissora na Bélgica, em 1929, a artista mudou-se para Belo Horizonte, como professora contratada para atuar na reforma do ensino público. Fixando-se na cidade, desenvolveu importante carreira de educadora e artista, que lhe rendeu a fama de pioneira do modernismo. Sua obra, contudo, oscilou sempre em torno de um ponto médio entre a renovação radical e o cultivo da tradição, fazendo de sua trajetória um eloquente símbolo do tardio e claudi-cante processo de modernização da cidade em que escolheu viver.

Fundada em 1897, Belo Horizonte foi criada para ser a capital republicana de Minas gerais, em substituição a Ouro Preto, que representava o passado colonial da região. Concebida sob a égide do progresso e da racionalização, a nova capital nasceu de um profundo desejo de modernidade, ali expresso na efemeridade de suas criações e rápida obsolescência do novo.

Tão cedo quanto na década de 1930, a cidade já pensava os caminhos de sua renovação. Na arquitetura local conviviam dife-rentes atitudes frente ao cânone clássico, indo da opção pela ma-nutenção do estilo eclético ao surgimento de duas alternativas de renovação – uma radical, a outra não. eram o decorativismo mo-derno dos edifícios déco e os primeiros exemplares do modernismo de vanguarda, que negava a linguagem clássica e a ornamentação. Tratava-se da emergência de uma modernidade em duplo signo: um processo ambíguo, de alternativas múltiplas e interpenetran-tes, que contrariava a perspectiva de que o moderno só se constrói no embate radical e excludente entre o novo e o antigo.

Simbolizando o modelo de modernização assumido por Be-lo Horizonte, a vida da artista construiu-se em uma série de atos marcados simultaneamente pelo cultivo da tradição – pilar de sua formação – e a negação dessa mesma tradição, como fonte de normatividade.

Uma mulher na academia real de Belas artes

15 de julho de 1900. Jeanne louise Milde nasceu em Bru-xelas, filha do professor Josse Milde e de Mathilde Cammaerts Milde. aos dezoito anos, foi aceita como estudante na academia real de Belas artes. esse teria sido seu primeiro ato de ruptura. Para frequentar o curso, a jovem enfrentou a oposição dos pais e as críticas de professores e colegas, que acreditavam ser o exercí-cio da arte, em especial da escultura, inadequado para mulheres.

Inicialmente, ainda que várias tivessem se destacado como ar-tista, às mulheres era vedado o acesso à academia belga. Só lhes era permitido seguir os cursos complementares, oferecidos nos ateliês dos professores da instituição. Controversa, a abertura do curso a mulheres, em 1892, comportou restrições. Para alguns, a presença feminina era admissível apenas na formação em artes Industriais, e não em artes Maiores, estudando desenho aplicado, bordado e tapeçaria. Quando muito, era considerada uma vocação especial para o colorismo.

Dedicando-se à escultura, uma arte Maior, Milde cursou dis-ciplinas que revelavam a verve do ensino na academia: “Desenho

de cabeça e torso antigos”, “Modelagem de figura antiga” e “Com-posição em art déco”. era uma formação artística tradicional que se iniciava com o desenho, passava pelo estudo de modelos antigos e finalizava com o exercício da composição. Quanto à estética, no século XIX, a academia de Bruxelas preconizou o neoclassicismo. Com o tempo, adotou várias linguagens, indo do romantismo ao naturalismo e ao impressionismo. Quando Milde a frequentou, a escola assumia ares modernos, incorporando o estilo art déco.

a renovação da escola incluiu a abertura de um curso de artes Decorativas. O intuito era incentivar a indústria, permitindo que artesãos e operários desenvolvessem habilidades e conhecimentos artísticos. Milde não frequentou esse curso. Mas, o reconhecimen-to de novas perspectivas para a arte produziu impactos no trabalho que viria a desenvolver no Brasil.

enquanto estudante, Milde respondia com a qualidade dos trabalhos a quem questionava sua vocação. No boletim das disci-plinas cursadas, ficaram registrados seus êxitos. Durante sua for-mação, Milde recebeu 15 prêmios, seis deles com distinção. em seu último ano de estudos, 1925, foi agraciada com o 1º lugar no grande Concurso de escultura.

a artista começava a despontar. em 1923, foi reconhecida pelas obras que apresentou numa mostra coletiva na importante galeria giroux, de Bruxelas. em 1927, figurou nos jornais por criar uma placa de bronze com a estampa de Charles lindbergh, primeiro aviador a voar de Nova York a Paris sem escalas. entre 1926 e 1929, Milde integrou as mostras da seção belga da Société Française des Beaux-Arts, sendo destacada pela crítica.

Os críticos não escondiam o assombro ao verem esculturas fei-tas por uma mulher. Por vezes, buscavam nelas ternura, delicade-za e outros traços de feminilidade. Por outras, se espantavam com o domínio da artista, supostamente frágil, sobre a matéria. em 1928, o jornal Vooruit avaliou as obras expostas na galeria Phe-nix, em ghent: “Sra. Milde tem uma inclinação para agradáveis realizações, cujo personagem principal denuncia a feminilidade da escultora”. Já o Les Nouvelles afirmou sobre o VIII Salão l’essaim:

Jeanne Louise Milde em seu ateliê em Belo Horizonte, cidade para a quala artista plástica se transferiu em 1929.

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“Apesar da insuficiência de sua altura, se revela dotada de uma grandeza de expressão e força artística pouco comuns”.

a consagração de Milde chegou em 1928, quando ganhou o grande Prêmio de roma. O prêmio objetivava o aprimoramen-to dos artistas, concedendo uma viagem à Itália para o estudo da tradição clássica. Mas os impasses políticos surgidos ao fim da Primeira guerra Mundial impediram a ida de Milde para roma. Sua opção foi por uma estadia na França.

a escultora já hesitava entre a tradição e a modernidade. No mesmo ano de 1928, participou do II Salão da Federação Nacional de Pintores e escultores da Bélgica, à qual se associara. a imprensa atacou a Federação, por ser contra a pintura moderna e o estado belga, que favorecia a avant-garde. em meio ao que caracterizaram como a medíocre e conservadora produção da mostra, os jornais destacaram Milde como uma exceção digna de nota.

Naquele tempo, além de participar de exposições e concur-sos, Milde desenhava joias e modelava manequins para uma fá-brica. No atelier que mantinha na academia, recebia a visita constante de admiradores e compradores, que se avolumaram após a aquisição da peça ‘Danse Folle’ pelo Museu real de Belas artes, em Bruxelas. Foi ali que recebeu a visita do Dr. alberto Álvares, enviado do governador de Minas gerais, antônio Car-los ribeiro de andrade. a missão de Álvares era localizar profis-sionais belgas aptos a auxiliar na reforma do ensino em Minas. Milde foi-lhe indicada pelo secretário-diretor da academia, que elogiara a ousadia e a qualidade da artista, fazendo-o crer que o convite não seria recusado.

Fevereiro de 1929. a bordo do vapor alcântara, Jeanne Milde partiu para o Brasil.

Os belgas e a reforma do ensino em Minas gerais

Quando Milde chegou ao Brasil, vários estados implantavam políticas de reforma do ensino, investindo na formação de profes-sores primários, na criação de escolas e no combate ao analfabe-tismo. em Minas gerais, a reforma foi coordenada por Francisco Campos, Secretário dos Negócios do Interior no governo de an-tônio Carlos ribeiro de andrade. Sua reforma do ensino Primá-rio e Normal inspirou-se na reestruturação da instrução pública ocorrida em países estrangeiros, como a Bélgica, e incorporava preceitos do movimento ‘escola Nova’ ou ‘escola ativa’.

À época, uma das principais correntes pedagógicas em voga no Brasil era o método desenvolvido pelo médico belga Ovide Decroly. Baseado em estudos sobre o desenvolvimento biológico e psicológico das crianças, o método enfatizava suas aptidões para a observação, a associação de ideias e a expressão. Para o ensino primário, propunha o emprego dos ‘centros de interesse’, que as-sociavam os conhecimentos ministrados a uma ideia central, tor-nando o ensino “ordenado e lógico”.

em Bruxelas, Decroly atuava na École de l’Ermitage, que fun-dara em 1907. a escola foi um fértil laboratório de experimenta-ção, tornando-se centro de referência para o ensino. Praticado em outras escolas da cidade, o ensino no método Decroly se iniciava

com a observação e o desenho, para só depois introduzir a escrita. Os trabalhos manuais assumiam, assim, grande protagonismo na escola ativa, associando-se à expressão e tornando frequente o uso de técnicas como a modelagem. em Minas gerais, o método foi instituído em alguns grupos escolares, sendo criadas duas ‘classes Decroly’, em Belo Horizonte.

Com a reforma do ensino, em 1929, foi instalada a escola de aperfeiçoamento em Belo Horizonte. a instituição, que oferecia um curso de especialização para professores primários, destinava- -se a preparar, do ponto de vista técnico e científico, os candidatos ao Magistério Normal, à assistência técnica do ensino e às direto-rias dos grupos escolares do estado. O curso tinha duração de dois anos, divididos em dois períodos, que incluíam disciplinas como Pedagogia, Metodologia, Desenho e Modelagem, educação Fí-sica e Psicologia experimental.

O corpo docente da escola de aperfeiçoamento foi composto por professoras que haviam sido enviadas, pelo governo, para o Teacher’s College, da Universidade de Colúmbia (eUa). além de-las, atuaram estrangeiros que compuseram a chamada “Comissão Pedagógica europeia”. Da Universidade de Paris veio Theodore Simon. Do Instituto Jean Jacques rousseau (Suíça) vieram leon Walter, Helena antipoff, edouard Claparède e louise artus-Per-relet. Na Bélgica foram contratados Jeanne Milde e o engenheiro Omer Buyse.

Diretor do ensino Técnico da Bélgica, Buyse foi criador e reitor da Universidade do Trabalho de Charleroi. À convite de Washington Pires, Ministro da educação e Saúde Pública do Bra-sil, veio para o País com a missão de criar três Universidades do Trabalho, em Belo Horizonte, Porto alegre e recife. O projeto logo encontrou a oposição de gustavo Capanema, sucessor de Washington Pires no Ministério. Capanema considerava prioritá-ria a fundação de escolas profissionalizantes especializadas para atender às necessidades da industrialização nas diversas regiões do País. Quando muito, cogitaria ter uma Universidade do Trabalho no rio de Janeiro, onde as indústrias já exigiam um operariado numeroso, variado e competente.

Jeanne Milde, por sua vez, assumiu as disciplinas de Desenho e Modelagem na escola de aperfeiçoamento Pedagógico da capi-tal mineira. relatos de suas ex-alunas revelam como ela conjugava a formação estética com a pedagógica. Suas disciplinas incluíam desenho, modelagem e aquarela, além de marcenaria, tecelagem, cartonagem e a fabricação de objetos utilitários e mobiliário. O processo de ensino elaborado pela artista guardava semelhanças com a formação que recebeu em Bruxelas. Segundo a ex-aluna Maris’Stella Tristão, nas aulas, o mais importante eram os de-senhos, que obrigatoriamente precediam os trabalhos artesanais. anualmente, Milde organizava exposições com o material produ-zido por suas alunas. Nelas, eram apresentadas modelagens em gesso, cimento, terracota, bronze e matérias-primas regionais que poderiam ser encontradas em qualquer escola primária do estado.

Com o fim da escola de aperfeiçoamento, na década de 1940, Milde passou a lecionar no curso de administração escolar do Ins-tituto de educação, instituição em que se aposentaria em 1955.

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Nos anos de 1940, a artista também ministrou aulas de desenho e modelagem na escola da Polícia rafael Magalhães e integrou um projeto de Helena antipoff para a formação e o aperfeiçoamento de professores primários rurais.

Um ambiente propício à expansão da arte

Quando Milde chegou a Belo Horizonte, a capital não passa-va de uma jovem cidade. aos olhos da escultora, tudo estava por fazer: não havia escolas de arte, as exposições eram escassas e os artistas locais não formavam uma comunidade unida e ativa.

ao invés de desanimá-la, esse cenário mostrou-se fértil para sua produção. em 1929, a crise econômica desencadeada pelo fim da Primeira guerra Mundial chegava ao ápice. Na Bélgica, apesar do sucesso de suas exposições, a falta de oportunidades le-vou a artista a pensar em se mudar para antuérpia, onde atuaria como professora de arte da academia local. Talvez o tivesse feito, não fosse a proposta de trabalhar no Brasil.

recém-chegada a Minas gerais, a escultora não dispunha de um local de produção. Percebendo a situação, arcângelo Malet-ta, proprietário do grande Hotel, onde Milde vivia, ofereceu-lhe uma sala nos fundos do estabelecimento. ali foi instalada a oficina em que a escultora recebia quem vinha ver a “loirinha belga” tra-balhando. Como não dominava o idioma, pedia aos amigos para falarem sobre as obras. “No decorrer do parecer de cada um, surgia uma ou outra palavra que tinha uma sonoridade que me agradava, aí então o nome da peça estava escolhido”, lembrou a artista em entrevista a Iolanda Pignataro, em 1980.

Nessa sala, Milde concebeu suas primeiras obras brasileiras. em 1929, moldou o busto do embaixador da Bélgica em Washing-ton e a efígie de várias personalidades de Belo Horizonte. Sob en-comenda do estado de Minas gerais, criou dois baixos-relevos em cobre para decorar o saguão da escola Normal Modelo da Capital, inaugurada em 1930. as peças art déco simbolizavam os valores da escola, intitulando-se Alegoria às Ciências e Alegoria às Artes.

em 1930, Milde enviou várias peças para o Salão de Belas artes do rio de Janeiro, obtendo a medalha de ouro. em Be-lo Horizonte, participou da VII exposição-geral de Belas artes. Organizadas por aníbal Matos, eminente artista que fundara a Sociedade Mineira de Belas artes (1918), as exposições-gerais constituíam o único evento do gênero a ocorrer com regularidade na capital. reunindo artistas de inclinações semelhantes à de seu promotor, as exposições viraram o reduto da tradição acadêmica. Naquela edição, a mostra reuniu 192 trabalhos de 26 artistas. Mil-de se destacou por trazer algo novo: uma obra que não se atinha à tradição clássica, mas nem por isso se rendia aos extremos da vanguarda modernista.

aníbal Matos foi um dos responsáveis pela inserção de Milde no ambiente artístico de Belo Horizonte. Os dois eram colegas de docência no Instituto de educação, atuando na formação de professores. Com frequência, Matos convidava a colega para par-ticipar dos eventos e das exposições que organizava. Convidava-a, inclusive, para integrar o júri do carnaval.

em Belo Horizonte, dizia-se que a arte era desamparada pelo estado. Por isso, o poeta modernista Carlos Drummond de an-drade, entre outros, reconhecia o empenho heroico de Matos para desenvolver o meio artístico local. ainda assim, a cada edição das exposições-gerais, acumulavam-se as críticas ao evento e a seu organizador. alguns recriminavam o amadorismo e mau gosto das obras apresentadas. Outros apontavam o convencionalismo da produção local, relacionando a estagnação da arte à hegemonia dos valores acadêmicos.

a posição de Matos, no entanto, era ambígua. ele defendia o academismo e rejeitava com veemência as vanguardas, os “futu-rismos” e “cubismos”, como se dizia à época. Mas, acolhia artistas que optavam por um modernismo moderado. Para a VIII exposi-ção-geral de Belas artes (1931), convidou vários acadêmicos de verve neoclássica ou impressionista. e chamou ainda Milde, o desenhista Monsã e o arquiteto luiz Signorelli que, clássicos de formação, apostavam na estética art déco.

Signorelli, por exemplo, iniciou-se na arquitetura projetando edifícios ecléticos e art nouveau. Na década de 1930, adotou o es-tilo déco e criou o segundo arranha-céu de Belo Horizonte: a Fei-ra Permanente de amostra, edifício símbolo da modernização da cidade. No mesmo ano, 1935, ganhou o concurso de projetos para a construção de uma nova sede para a Prefeitura da capital. esse projeto expressou a atitude preponderante no período, fundindo elementos e preocupações modernos com uma lógica compositiva tradicional. Junto com Matos e outros professores, em 1930 Signo-relli fundou a escola de arquitetura de Minas gerais. ali, por um bom tempo, o arquiteto sustentou um sintomático conflito com os estudantes de arquitetura que se inclinavam para a vanguarda. em entrevista concedida ao Projeto Memória da arquitetura e da

“As Adolescentes”, moldagem em gesso de Jeanne Louise Milde, Belo Horizonte, 1937.

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Construção Civil em Belo Horizonte (1980), recordou: “Confesso com sinceridade a reserva com que a princípio recebi os primeiros rebates da nova arquitetura, para com um tempo relativamente cur-to aceitá-la sem restrições. Diante de tão palpitante assunto devo dizer que manterei sempre como ponto de vista aplicar no moderno a proporção clássica [...]”.

as mudanças na estética de Milde parecem responder a preo-cupações semelhantes às de Signorelli. “Moderna, mas com uma base clássica” é como ela se classificaria ao fim da vida. em algu-ma extensão, a adoção desse modelo de modernização, ambíguo e relutante, elucida o livre trânsito entre acadêmicos e modernos que a escultora sempre manteve.

em 1936, Belo Horizonte presenciaria seu maior embate en-tre modernos e acadêmicos. Sob a organização do artista Delpino Júnior, caricaturistas, pintores, escultores e arquitetos, modernos em sua maioria, se reuniram numa exposição organizada no bar do Cine Brasil. Tornando-se conhecido como Salão Bar Brasil, o evento expressava o descontentamento do grupo com a ambiência artística e social da capital, que então celebrava a realização do 2º Congresso eucarístico Nacional e a inauguração da nova edição da exposição-geral de Belas artes, montada por Matos no foyer do Teatro Municipal.

acompanhada pela imprensa, a polêmica criada no Salão Bar Brasil tinha dois alvos: contestar a hegemonia de Matos e reivindi-car o apoio do Município, com a criação de uma escola de Belas artes, a organização de exposições periódicas e a instituição de prê-mios de incentivo. Por sua ascendência sobre o meio artístico local, Delpino convidou Milde a integrar a mostra. aceitando, a artista apresentou 22 obras e compôs o júri, ao lado de luiz Signorelli.

ao visitar o Salão Bar Brasil, o prefeito Otacílio Negrão de lima sancionou uma resolução determinando que o Município realizasse exposições de arte anuais. assim, em 1937, Matos foi convidado para coordenar o 1º Salão de Belas artes da Prefeitura de Belo Horizonte. ele, por sua vez, convidou Milde para a comis-são encarregada de assessorá-lo. a escultora serviu, então, como um elo entre acadêmicos e modernos, apaziguando os confrontos entre os grupos.

O 1º Salão de Belas artes, por fim, reuniu tanto artistas liga-dos a Matos quanto ao grupo de Delpino. refletindo a diversidade do panorama artístico da capital, os Salões de arte da Prefeitura consolidaram-se, nos anos 1930, como um espaço de tendências contraditórias, que reunia modernos, acadêmicos, autodidatas e artistas de formação.

No 2º Salão de Belas artes (1938), Milde participou como jurada. Nesse momento, fez valer seu papel aglutinador, reunin-do 14 artistas de uma e outra vertente em um encontro na Fa-zenda Petrópolis, propriedade que mantinha próximo à capital. embora o acontecimento não tenha produzido desdobramentos, o sentimento era que nascia um “movimento que congraçará os artistas de Belo Horizonte”, como testemunhou um cronista da Folha de Minas.

Os anos de 1930 e 40 foram férteis para Milde. Muitas de suas obras mais relevantes foram criadas nesses tempos, como a más-

cara mortuária do governador Olegário Maciel (1932); a Alegoria à Indústria, alto-relevo criado para a Siderúrgica Belgo-Mineira (1933); e a escultura As Adolescentes (1937). em 1940, o Museu Nacional de Belas artes, no rio de Janeiro, adquiriu sua obra Água, sua alegria e sua embriaguez.

em 1945, Milde realizou uma exposição individual no Salão de Festas do grande Hotel. entre os trabalhos expostos, estavam bustos e cabeças das personalidades com quem convivia na cidade, como o maestro belga arthur Bosmans. essa teria sido a primei-ra exposição individual da artista, que até então só participara de mostras coletivas. a arte tumulária surgiria como uma vertente de sua produção, nascida do hábito de representar seus convivas. Im-portante exemplo é o relevo criado para o túmulo do desenhista Monsã, falecido em 1940.

apesar de não ceder às vanguardas, Milde assumiu temáticas caras ao modernismo brasileiro, criando figuras populares, traba-lhadores, indígenas, negros e mulatos. Uma série de esculturas com motivos brasileiros fizeram sucesso na última exposição da artista em sua terra – uma mostra coletiva na galeria Toison d’Or, em Bruxelas (1948). O evento foi divulgado pelos jornais, que brindaram a qualidade das obras, embora frisassem seu exotismo. Na ocasião, o Ministério da Instrução Pública da Bélgica adquiriu a escultura Ma maman.

Milde obteve grande reconhecimento por sua atuação como artista e educadora. em várias ocasiões foi homenageada por suas alunas e pelos governos belga e brasileiro. em 1930, o rei alber-to da Bélgica nomeou a “artista estatuária” Jeanne Milde como cavaleira da Ordem de leopoldo II, uma distinção de alto grau, conferida aos civis que prestaram serviços inestimáveis à Bélgica. Já em 1950, um ano antes de se naturalizar brasileira, ela recebeu do Príncipe-regente Baudouin a comenda de Cavaleiro da Or-dem da Coroa por seu trabalho como “professora de desenho e artes aplicadas no Instituto de Educação de Belo Horizonte”.

No ano de 1955, Milde se aposentou do magistério no Insti-tuto de educação. afastada do ensino, ela foi gradualmente se ausentando do cenário artístico mineiro, que desenvolveu uma preferência pelas vanguardas. a importância de Milde foi resga-tada 30 anos depois, quando ela recebeu uma série de homena-gens. em 1982, recebeu a Comenda da Ordem dos Pioneiros de Belo Horizonte, em reconhecimento a seu pioneirismo na arte e na educação. Também foi lembrada no XIV Salão Nacional de arte (Museu da Pampulha) e em uma exposição no Palácio das artes. em 1984, o governador de Minas gerais, Tancredo Neves, condecorou-a com a mais alta comenda do estado: a Medalha da Inconfidência. No mesmo ano, o sucessor de Tancredo, Hélio garcia, agraciou-a com a Medalha de Mérito educacional. Ce-lebrada por seu impacto na formação cultural da cidade, Milde faleceu em 1997.

Outubro de 1988. em Belo Horizonte, a exposição “escultu-ra Contemporânea em Minas”, organizada no Palácio das artes, consagrou Jeanne Milde como propulsora da renovação das artes plásticas em Minas, identificando-a como uma pioneira do mo-dernismo na cidade.

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Marcel roos: viajante, escritor e cineastaC h r i s D e l a r i v i è r e

Het Geheim van Mato Grosso (O segredo do Mato grosso), Bloedige Diamanten (Diamantes sangrentos), De Sluipende

Dood (a morte furtiva) são alguns dos títulos imaginativos dos li-vros de viagens e documentários cinematográficos com os quais o viajante, cineasta e escritor belga Marcel roos (1919-1996) fazia furor nos anos de 1950 e 1960. Seus contagiantes relatos cheios de aventuras e juvenil entusiasmo caíram depois no esquecimento, mas não deixam de ser uma ilustração marcante do poder atrativo que o Brasil exercia sobre os europeus aventureiros.

a história de Marcel roos começa em gand, pouco depois da Segunda guerra Mundial. a europa ocidental estava ainda se recuperando desta calamidade e já se anunciava a guerra Fria. O futuro parecia pouco promissor e, antes de chegar novos tempos penosos, roos decidiu procurar outros horizontes. Vendeu seu negócio de atacado em perfumes e de cabelereiros, comprou um montão de material cinematográfico e fotográfico e embarcou num vapor com destino à américa do Sul. ele pensava explorar terras na argentina e procurar uma moradia adequada para em seguida trazer sua mulher e filhos. ao menos essa era sua intenção. Os caprichos do destino intervieram e fizeram finalmente Marcel roos parar no Brasil.

a bordo do vapor roos encontra-se com outro passageiro, Pier-re Doriaan, que lhe conta histórias alvissareiras sobre o Brasil. Do-riaan é de antuérpia e fez seu nome como cantor no circuito dos cafés chantants de Paris. Durante a guerra se comprometeu pelo seu bom relacionamento com os ocupantes alemães. Uma razão suficiente para abandonar a europa por algum tempo. assim, par-te para o Brasil, acompanhado pela mulher e seu amigo mais fiel: um automóvel ano de 1930. Chegados ao rio de Janeiro, Doriaan leva Marcel roos a passear neste carro antigo, um Minerva, pelo centro da cidade até as praias de Copacabana e Ipanema. “A vida pode ser boa”, deve ter pensado Marcel.

roos deixa-se fascinar pelo Brasil e parte para São Paulo. lá,

através do cônsul belga entra em contato com alphonse Hoge, um herpetólogo belgo-brasileiro ligado ao Instituto Butantã. Hoge é originário de gand, onde concluiu sua formação universitária e recebe seu concidadão de braços abertos. Mais ainda, convida Marcel a participar como fotógrafo-cineasta de uma expedição. Para roos é uma oportunidade única. O destino da expedição é o Mato grosso, mais precisamente a Serra do roncador. Numa área, ainda em sua maior parte desconhecida, entre o rio das Mortes e o rio Kuluene, o doutor Hoge pretende descobrir répteis vivendo nessa região transitória entre a floresta tropical e o cerrado do Bra-sil central. as serpentes, os escorpiões e as aranhas colhidos pela expedição serão estudados no Instituto Butantã e utilizados para preparar o soro antivenenoso.

Tudo isso parece muito aventureiro para Marcel e seu cora-ção bate ainda mais forte quando fica sabendo que a jornada pas-sará por terras de índios. expedições anteriores malograram pela atitude hostil dos índios xavantes, que não gostavam de intrusos. Circulavam os boatos mais diversos sobre a região para onde se dirige essa ‘expedição suicida’. Fundados, entre outros, sobre o desaparecimento do viajante britânico coronel P. H. Fawcett, que em sua busca do mítico El Dorado em 1925, junto com seu filho e o amigo deste, não deixaram rastro algum. O coronel Fawcett foi um dos últimos lendários exploradores da época vitoriana e seu sumiço misterioso durante a procura de uma civilização misteriosa continua a desafiar a imaginação. O mistério Fawcett não deixa de comover também Marcel roos.

Finalmente, a primeira expedição de roos na região amazô-nica revela-se um acerto em cheio. Não somente encontra uma oportunidade para conhecer como testemunha privilegiada o fa-roeste brasileiro com sua mentalidade de fronteira nos confins da civilização, mas encontra também os xavantes, que, atraídos pelos presentes, procuram contato com a expedição. De toda evidência, roos agrada aos índios e sobretudo sua cabeleira loira

René Lommez Gomes é doutor em História pela Universidade Fede-ral de Minas Gerais. Atuou em diversas instituições nacionais e estran-geiras, entre as quais a Unesco e o Museum Plantin-Moretus (BE). Trabalha com temas como Arte Colonial; História da Arte Flamenga e Holandesa (séc. XVII); História da Arte Brasileira (sécs. XIX-XX); Mestiçagens e Trânsito de Culturas entre Europa, África e América no período moderno.

Verona Campos Segantini é doutoranda em Educação pela Uni-versidade Federal de Minas Gerais (2010). É professora assistente da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e subcoordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura

(UFMG). Coordena o núcleo de expografia do Espaço TIM UFMG do Conhecimento.

Bibliografia sobre Jeanne Milde grande parte das matérias jornalísticas utilizadas neste verbete foi localizada na coleção documentos de Jeanne louise Milde, doada pela escultora para o Museu Mineiro, Belo Horizonte. l. B. Castriota (org.). Arquitetura da Modernidade. Belo Horizonte: ed. UFMg, 1998. rita lages rodrigues. Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultura. Belo

Horizonte: C/arte, 2003.S. Schwartzman, H. B. Bomeny e V. r. Costa. Tempos Capanema. São Paulo: Paz e

Terra, 2000.rodrigo Vivas. Por uma história da arte em Belo Horizonte. Artistas, exposições e salões

de arte. Belo Horizonte: C/arte, 2012.

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a colônia belga de Botucatul u c i a n a P e l a e s M a s c a r o e e d d y S t o l s

Quando em 30 de junho de 1960 o Congo Belga se tornou independente com o nome de república Democrática do

Congo, surgiram graves desordens, que precipitaram o êxodo da maior parte dos belgas. Diante do afluxo dos retornados, o governo belga acreditou poder prevenir tensões sociais com alternativas de colonização no ultramar. Como a austrália foi logo descartada por suas rígidas normas para imigração, o governo belga optou pelo Brasil, aureolado pela recente inauguração de Brasília e mais aco-lhedor à colonização do seu interior.

a princípio, as autoridades belgas apoiaram-se na experiência da Holanda, que já mantinha uma colônia agrícola em Jaguaríuna (SP) – Holambra I. Seu presidente, Charles Hoogenboom, ficou encarregado de ajudar na localização de uma área agrícola para a instalação de uma cooperativa para os belgas que vinham do Congo. as terras escolhidas foram as da Fazenda Monte alegre, antiga produtora de café localizada no município de Botucatu (SP). Seus 4.010 alqueires custaram, na época, o equivalente a 650 mil dólares.

em 22 de setembro de 1961 foi oficialmente fundada a Socie-dade Cooperativa Agropecuária Belgo-Brasileira – SCaBB. entre 1963 e 64 aí se estabeleceram 102 belgas cooperados e seus fami-liares. No seu auge, em 1971, ascenderam pelos casamentos – dos quais, dez com brasileiros – e nascimentos a umas quatrocentas pessoas. a cada cooperado coube no início 50 hectares de terra e, após a redistribuição ocorrida em 1963 com o retorno de par-te dos pioneiros à europa, uma gleba maior, até o limite de 150 hectares. além dos belgas, trabalhavam para a SCaBB e para os próprios cooperados vários antigos colonos brasileiros da Fazenda e, na hora das safras, contratavam-se ainda boias-frias em Pratânia.

Quando os belgas chegaram em 1961, a cidade de Botucatu se engalanou para recebê-los com festa popular, mas rapidamente surgiram problemas. Muitos belgas, ainda imbuídos de sua menta-lidade colonialista, não se davam conta de que a economia, a socie-dade e a população de Botucatu eram diferentes do Congo belga. Criaram conflitos, sobretudo no trato com os empregados. Se entre os cooperados haviam agricultores, grande parte não era ligada à agricultura e não sabia trabalhar a terra. além disso, descobriram que as safras não correspondiam às expectativas e circularam boa-tos que foram logrados pelos holandeses no preço e na qualidade das terras. Os novos colonos já tinham gastado boa parte de seu dinheiro com a construção de 45 casas confortáveis, mas deviam também arcar com os custosos estudos de seus filhos em escolas particulares. Prevaleceu entre eles um forte individualismo, em contraste com a exemplar disciplina entre os colonos de Holambra.

Com o crescente descontentamento e sua repercussão na Bélgica, seu governo, na tentativa de salvar a experiência, provi-denciou ajuda dentro de seu programa de cooperação ao desen-volvimento. enviou supervisores e assistentes técnicos e colocou 4 milhões de dólares à disposição da SCaBB e dos cooperados, respectivamente 44.652.456 e 111.938.985 francos belgas. assim, equipou-se a colônia com um poço artesiano, uma caixa d´água, transformadores de eletricidade, silos e uma beneficiadora de ar-roz. Para promover um melhor espírito comunitário, construíram uma escola, uma creche e uma igreja, para a qual chegou um pa-dre belga para oferecer assistência espiritual.

após a redistribuição das glebas e diante dos poucos resultados com a agricultura, a SCaBB optou finalmente pela pecuária e pe-la produção de derivados de leite. Com novas instalações e uma

suscita muita admiração. Marcel roos filma e fotografa à vontade e fará êxito com suas imagens nas salas paroquiais de Flandres.

Uma vez de volta ao mundo habitado, Marcel roos se põe a escrever, mas desiste de seu sonho de iniciar uma vida nova na américa do Sul. Demasiados problemas práticos na sua opinião. Volta à Bélgica, onde publica em 1953 O segredo do Mato Gros-so. O mistério Fawcett desvendado é o subtítulo e, se não coincide completamente com o conteúdo, o livro encontra muitos leitores.

em 1965 segue ainda um Avonturen Omnibus, uma coletâ-nea de relatos de viagens sobre o Brasil, Paraguai e Bolívia, escri-tos em colaboração com sua mulher Jeannine roos. Nesse meio tempo, roos vai morar em Hasselt, onde trabalha no serviço de publicidade da empresa química Bayer. Com intervalos, roos continua viajando. Financia suas ‘expedições’ pela américa do Sul com os rendimentos de suas conferências, sessões cinemato-gráficas e reportagens escritas para os jornais e revistas flamengos.

Volta várias vezes ao Brasil, onde roda diversos documentá-rios, como O parque nacional do Iguaçu (1953) e A morte insi-diosa (1957), sobre uma ilha das serpentes ou Ilha da Queimada grande, na costa de São Paulo (Cinematek, arquivo real do Fil-me, Bruxelas). Nos anos de 1970 organiza viagens e expedições para jovens cientistas. Seu amor pelo Brasil é uma constante. Numa entrevista ao jornal Het Belang van Limburg, em 27 de julho de 1991, ele declarou ter passado no total 12 anos no Bra-sil. Marcel roos faleceu em 1996 em Hasselt, mas foi sepultado em gand, sua cidade natal, no cemitério do Campo Santo em Sint-amandsberg.

Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re-portagens sobre cultura e música popular brasileira; traduziu para o flamengo História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

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Uma ítalo-belga no BrasilF l o r e n c e C a r b o n i

Desde a primeira série, eu era uma das poucas alunas a fre-quentar a aula de religião. Por um lado, isso me fazia me

sentir privilegiada. Quem nos ensinava essa matéria, duas vezes por semana, não era a nossa professora: ela se ocupava das minhas colegas que assistiam a disciplina de Moral. era uma jovem se-nhora, muito simpática, irmã (assim diziam) do nosso pároco, que dava a máxima atenção às suas três ou quatro alunas. Por outro lado, incomodava-me um pouco o fato de não fazer parte do gru-po majoritário, formado sobretudo por meninas belgas, enquanto minhas duas ou três colegas na religião eram italianas, como eu.

aquela aula de Moral, eu a engrandecia. Parecia-me mais sé-ria. eu ficava sentida por deixar às minhas colegas, que considera-va menos capazes do que eu, o privilégio de ter a nossa professora apenas para elas. Tentava imaginar as coisas interessantes que elas estariam aprendendo enquanto eu desenhava cestas atravessando o Nilo, com bebês chamados Moisés dentro, ou o menino Jesus carregado por uma mula, guiada por um cara que era marido de sua mãe sem ser seu pai. Isso me fazia sentir inferior aos meus próprios olhos. Mas assim tinha que ser porque minha mãe assim queria. e, deduzia eu, ela assim queria porque era italiana. Dois anos mais tarde, na terceira série, a primeira aula de História foi dedicada aos “nossos” antepassados, os gauleses, que tinham tão bravamente combatido os invasores romanos... romanos? Como assim? então os malvados eram italianos? Como eu!

esses dois fatos, a aula de religião e os romanos invasores da Bélgica, me fizeram tomar consciência de que não era total-mente igual às minhas colegas. Depois disso, tudo passou a ter um sentido particular: o nosso modo de viver, alguns gostos dos meus pais, nossa casa, o modo como minha mãe se vestia e me vestia, a ópera – italiana, é claro! – que escutávamos todos os do-mingos de manhã quando meu pai estava em casa. a nossa co-mida também, tão diferente da que faziam as mães das minhas amigas, que eu invejava porque comiam linguiça com batata fervida. Tinha também as cartas da Itália, dos avós, dos tios, das tias, e de amigos italianos como nós, que haviam voltado para a Itália depois da terrível catástrofe ocorrida numa mina de carvão da região, onde muitos dos nossos compatriotas tinham morrido.

essas cartas, que terminavam sempre com as mesmas fórmulas, como ladainhas, minha mãe as lia em voz alta. e ela as respondia com uma religiosa seriedade.

Havia também as orações da noite, que eu e meus irmãos reci-távamos em francês e minha mãe em italiano, à exceção de uma prece, toda em italiano, uma espécie de conversa com Deus na qual se faziam vários pedidos: proteção para os diferentes parentes e ajuda para que, também naquele verão, se pudesse ir à Itália e rever a todos. Na época, nunca mencionava estas coisas com mi-nhas colegas de aula ou com as outras crianças do bairro – já eram tantas as coisas que diferenciavam minha família das delas! Tor-naram-me consciente da dualidade de minha existência também as constantes lamentações de meu pai porque seus filhos se recu-savam a falar com ele na língua dele. e havia ainda o fato de que, no bairro, minha mãe fosse conhecida como Maria l’Italienne.

Vivíamos numa fração de um pequeno município, na provín-cia de Hainaut, no Pays Noir, a região escurecida pelo carvão das minas e pela fumaça dos hauts fourneaux (altos-fornos) da metalur-gia. Meu pai trabalhava numa fábrica, onde era considerado um bom operário. No nosso bairro, ele também tinha certo prestígio: entendido de mecânica, era muito procurado para consertar car-ros. e, de vez em quando, tocava violino nas festas da paróquia, apesar de seu anticlericalismo declarado.

No nosso bairro, no qual viviam quase exclusivamente operá-rios e mineiros belgas e onde, por muito tempo, fomos uma das poucas famílias italianas, minha mãe também se destacava. era uma das poucas mulheres a não trabalhar na grande fábrica de confecção masculina situada em uma cidade vizinha. ela costura-va em casa. Tinha aprendido com dez anos, quando fora enviada como aprendiz à loja de um alfaiate em la Spezia, na Itália. ela vestia todos nós, inclusive meu pai. Mas costurava sobretudo para fora. Não havia noiva dos arredores que não entrasse na igreja com um vestido feito por ela. Ocupava-se também de uma horta, que nos alimentava boa parte do ano, assim como de um lindo jardim na frente da casa, o mais lindo da rua. eu tinha muito orgulho dele, apesar da vergonha que me causava o estado de decadência de nossa velha casa.

máquina importada da França o Laticínio Belco foi o primeiro no Brasil a vender leite embalado em saco plástico. Também o quei-jo e a manteiga da mesma marca alcançaram renome no estado. O laticínio acabou absorvido pelo Leite Paulista. No início dos anos de 1980, foi ainda criada na colônia a Cervejaria Belco. Sua marca desfrutou de prestígio na região por sua qualidade, mas foi adquirida mais tarde pela Destilaria Schincariol e sua fábrica des-locada para São Manoel.

Como estas atividades não conseguiram consolidar a colônia, a antiga SCaBB foi desfeita em 1987, quando quase todos os belgas e seus descendentes já tinham abandonado a colônia. Voltaram para a Bélgica ou se integraram de outra maneira ao Brasil.

referênciasDelmanto, armando Moraes. Memórias de Botucatu, Botucatu: ed. Vanguarda, 1990;

Peabiru Revista Botucatuense de Cultura, nº 02, ano I, março-abril, 1997.

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a única coisa que minha mãe não amava eram os trabalhos domésticos. Nossa casa era uma das menos bem cuidadas do bair-ro, onde a arrumação parecia ser uma verdadeira fixação. Segui-damente, eu, minha irmã e meu irmão tínhamos que arrumá-la e limpá-la porque minha mãe estava terminando um vestido ou trabalhando na horta.

Naquela pequena casa, que meu pai em seguida aumentou, com a ajuda de todos nós – como era comum fazer na época, naquela classe social e em bairros como o nosso, semiurbano e semirrural –, vivíamos em cinco pessoas: eu, meus pais, minha irmã e meu irmão, nascidos na Itália. No ano em que completei oito anos de idade e estava entrando na terceira série, minha irmã iniciava o primeiro ano de faculdade e meu irmão começava a trabalhar na fábrica com meu pai. Contradições de uma socieda-de em transformação! Dez anos mais tarde, eu também entrei na universidade, sem muita convicção e sem muito rumo. Formei-me mais seriamente muitos anos mais tarde, já casada e mãe, em outra universidade e em outro curso, também na Bélgica, onde também me doutorei.

enquanto isso eu havia me apaixonado por um brasileiro, re-fugiado político em Bruxelas, onde conheci também chilenos e chilenas, exilados após o golpe de Pinochet. logo, com ele e nosso bebê, tomei o caminho da emigração, um pouco como meus pais fizeram logo após a Segunda guerra Mundial. Não pelas mesmas razões, nem com os mesmos objetivos. Muito provavelmente, não com as mesmas dificuldades.

Tratou-se, no entanto, de emigração, com seu séquito de des-cobertas, enriquecimentos, encantos, mas também de empobre-cimentos, rupturas, afastamentos e perdas irremediáveis – perda de referências culturais, de cheiros, de gostos, de afetos. Tudo is-so deu-se talvez de maneira menos nítida em relação àquilo que meus pais viveram do final dos anos 40 aos anos 80 na Bélgica. Isso porque, para mim, não estava muito claro a qual cultura pertencia. Sentia falta da Bélgica, é claro, que considerava o meu país, ape-sar de nunca ter tido a nacionalidade belga: lá onde eu nascera e vivera os primeiros 23 anos de minha vida.

Meu conhecimento racional do mundo se dera sobretudo através da língua francesa, que, mesmo não sendo a língua de minha mãe nem, talvez, a primeira que falara, passou a ser a dominante no meu repertório linguístico. Da Bélgica, conhecia quase tudo: interpretava perfeitamente os códigos sociais e sabia como me comportar conforme quisesse passar por estrangeira ou por autóctone; conseguia comunicar-me com os velhos operários e camponeses até mesmo quando me falavam em puro wallon; amava a comida; conhecia e apreciava enormemente a cerveja, com destaque para a trappiste etc. gostava até mesmo do cli-

ma cinzento, chuvoso e frio, assim como da paisagem plana e monótona tão bem cantada por Jacques Brel. Mesmo assim, na convivência familiar, havia assimilado outras práticas, outros va-lores e traços culturais.

Por isso, uma vez, no Brasil, senti também falta da Itália e mais especificamente da ligúria, onde passara cada verão de minha in-fância e juventude. era ali que se encontravam todas as minhas re-ferências familiares – naquela altura até meus pais haviam voltado para a Itália, após 34 anos na Bélgica. Tinha saudade das paisagens do interior daquela região da Itália, mas também do seu litoral ro-choso, das tortas de verdura, do cheiro de manjericão e alecrim, dos vilarejos medievais agarrados ao topo dos morros suaves.

ao chegar ao Brasil, em finais de 1977, senti falta da seguran-ça que me dava a possibilidade de participar de um movimento social, político e cultural em efervescência, naqueles anos 70, na Itália sobretudo. ainda mais porque o Brasil daquela época ainda era governado pelos militares. Uma vez no Brasil, o conhecimen-to, puramente teórico e potencial, que eu tinha de um estado di-tatorial e da difícil situação política na américa latina daqueles anos converteu-se em experiência concreta, imediata, cotidiana: pelos inúmeros obstáculos encontrados por meu companheiro em sua penosa busca por inserção profissional e por uma reinserção social, com todas as dificuldades econômicas que isto nos causou e ao nosso filho. Também pelos repetidos indeferimentos, por se-te anos, aos meus pedidos de visto de permanência, ao qual tinha direito por ser mãe de uma criança constitucionalmente conside-rada brasileira por ter chegado ao País antes dos três meses de vida.

esta recusa que, como ficou demonstrado mais tarde, devia-se ao fato de ser companheira de um opositor do regime ditatorial, prejudicou irremediavelmente minha vida profissional, já que, além de não me permitir trabalhar de outro modo que informal-mente, me impediu até mesmo de inscrever-me numa universida-de para terminar os estudos de psicologia iniciados em Bruxelas.

Os longos sete anos sob a ditadura militar – durante três, ia de Porto alegre e vinha de Montevidéu em ônibus precários, com meu filho pequeno no colo, para manter o visto de turista; durante quatro, vivi como semiclandestina, após receber ordem de expul-são – tornaram também mais difícil uma inserção social serena. Sobretudo, eles prejudicaram a possibilidade de que eu amasse o Brasil incondicionalmente e o considerasse o meu país, o mesmo título que atribuo à Bélgica e à Itália, onde me sentia e sinto cida-dã, apesar de minha condição de filha de trabalhadores, imigrados em um e emigrados do outro.

Florence Carboni, italiana, é professora do Curso de Letras da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul.

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p r e s e n ç a s b e l g a s n o b r a s i l

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a casa é sua a n n e l i e s B e c k

é uma turma alegre que posa caótica para a foto da classe de segundo grau de 1991-1992. Cinquenta rapazes e moças num

emaranhado de braços e pernas, todos com um largo sorriso, sal-vo o beicinho de uma que se imagina uma modelo. Uma moça tem o cabelo curto. Outra, chama a atenção no meio de todas as outras com seu cabelo até a cintura. esta de cabelo curto, sou eu, a gringa, a belga – na época sou ainda uma novata estudante de intercâmbio, mas na minha opinião já totalmente integrada.

O carnaval, o futebol e as novelas Sinha Moça e Escrava Isau-ra, que a televisão pública passava então no fim da tarde, eram as primeiras coisas que as pessoas evocavam quando lhes contava que passaria um ano no Brasil como estudante de intercâmbio. em segundo lugar também: muita pobreza, a selva amazônica e os teólogos da libertação. e mais nada.

O e-mail e a internet ainda não eram muito divulgados. De Fa-cebook ou Twitter não se falava ainda. Tinha eu 18 anos, não falava português e iria morar um ano num país onde nunca tinha estado. Devia ser o Brasil por causa do idioma bonito, de situar-se bem lon-ge e de ser uma terra totalmente desconhecida para mim: outra cul-tura e outra sociedade, com uma extensa gama de cores e de gente do mundo inteiro que, aparentemente, conviviam sem problemas.

1991. Fui parar numa família de classe média em Juiz de Fo-ra, Minas gerais. No ônibus do rio de Janeiro para Juiz de Fora arregalei os olhos. Balbuciava as palavras estranhas dos painéis publicitários, ensaiando os sons certos. Pneu parecia pronunciar- -se como pieneeuw. Tudo era diferente. Ia-se à escola de seis e meia da manhã até o meio dia e não das nove às cinco. Havia, no centro urbano efervescente, mais prédios altos do que estávamos acostumados nas cidades europeias. Por toda parte sempre me deparava com mendigos ou camelôs. Fernando Collor de Mello era presidente e lula da Silva ainda líder sindical em São Paulo. a palavra presidente pronuncia-se em português como fosse ‘pre-sidentje’ (um diminutivo em flamengo), o que então, em plena aprendizagem do idioma, me soava engraçado. este tipo de coisa me impressionava no começo.

O afamado choque cultural não está no multicolorido, nem mesmo na pobreza, tão visível. O choque está nas pequenas coi-sas. a cena de rua, que fica incompleta, até quando se realiza que, durante meses, não se via nem um carrinho de bebê ou buggy. Bebês sempre se carregam. assim um vazio pega mais cor. a per-gunta, sempre repetida, aberta e direta, na presença de qualquer um: “Você tem um namorado?” a reação incompreensiva quando eu não queria responder fazia mistério, ao passo que eu me assus-tava como quanto as pessoas faziam pouco caso, como achavam natural, penetrar desse jeito na privacidade de alguém. Como fi-xavam meus cabelos curtos – Sinéad O’Connor, Jeanne Moreau, annie lennox!, por quem mais me tomavam? Quem sabe se eu era talvez doente?

Minha família hospedeira me recebeu de braços abertos. Mi-nha mãe é psicóloga. ela combinava seu consultório pessoal com aulas. Meu pai trabalhava num restaurante de empresa. Meu ir-mão estudava arquitetura e aprendia alemão num curso noturno. Minha irmã era bastante esportiva e estava na escola secundária. a família com quem estava tinha raízes no líbano, na Itália e, de algum antepassado, sangue africano. Cada membro da família ti-nha uma coloração diferente. Todos os dias chegava a empregada, que arrumava o apartamento e cozinhava o almoço, mas não havia luxo. Trabalhavam duro para poder ter o possível.

Como estudante de intercâmbio, no começo anda-se às cegas. Compromissos fixos tornam-se amparos. No café da manhã havia variedade de frios e queijos, com uma faca em cada qual, e não, como de praxe na Bélgica, uma faca ao lado do prato de cada co-mensal. O mesmo se repetia no almoço, com toda a família. eu estranhava os combinados pouco comuns para mim: carne, legu-mes e arroz com feijão sempre estavam na mesa; além disso, ain-da um prato com mandioca, batata doce ou massa. Muitas vezes me felicitavam por eu não ser “doceira” e recusava facilmente o brigadeiro e outras bombas calóricas. Por outro lado, infelizmen-te, eu resistia bem menos aos salgadinhos vendidos em bares por toda a cidade e até na escola.

Se eu tinha Durex comigo? a pergunta veio na segunda ou terceira semana desde que frequentava a escola. Fiquei um mo-mento sem fala. a menina que parecia a mais inocente da classe me perguntou se eu tinha camisinha. Meu português estava ainda em desenvolvimento, mas eu estava certa de que a tinha compre-endido bem, ainda mais quando repetiu a pergunta. Na escola, gravidez na adolescência não era incomum e muitas meninas da minha classe – tinham geralmente quinze ou dezesseis anos, um a dois anos mais novas do que eu – falavam o tempo todo de pa-querar e namorar, sobre qual rapaz era atraente e de quem estava com quem. Mas quase nunca se falava diretamente de sexo. eu balbuciava qualquer coisa. Minha colega de série me fitou com olhos interrogativos e apontou para o rolinho de fita adesiva no meu estojo. “Durex?” este era o momento em que a classe e a gringa se abraçavam. a confusão prolongou-se por meses e provo-cava cada vez mais risadas.

Fora a comida, também a novela das nove era ponto fixo do meu dia. a pretexto de que me ensinavam português, gostava de ver Vamp e Perigosas Peruas. Narrativas fantasiosas e relações amo-rosas, atuadas em diálogos singelos. O perfeito trampolim para a conquista do português em todas suas nuances. Mas, e as novelas como espelho da evolução da sociedade, como os sociólogos às vezes as apresentam? Dois verões antes especulava-se nos jornais durante semanas se duas personagens homossexuais se beijariam ou não. Com ou sem beijo, a franqueza com que se escrevia sobre o amor ainda não era, infelizmente, corrente na vida cotidiana.

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“Não é sempre tão simples. Às vezes fico apreensiva” me confiava minha mãe. ainda em 2012 não é simples ser GLS no Brasil, ape-sar da garantia legal, do alegre travesti durante o carnaval, das fla-mejantes subculturas e da ocasional Gay Pride Parade nas cidades.

assim, há outras coisas que pedem uma segunda, terceira e quarta leituras. O que à primeira vista é reconhecível, ou com-preensível, parece, numa inspeção aproximada, se situar um grau fora do fio de prumo, pelo menos em comparação com o quadro de referências que se traz de fora. a procura de pontos comuns, em algum lugar nas dobras entre familiaridade e alienação, é o que torna a conexão com o Brasil tão fascinante.

em 2013, de volta a Juiz de Fora, fiquei impressionada: foram construídos um hospital e um shopping ainda maior; por toda par-te erguem-se altos prédios de apartamentos e na colina mais longe vêem-se alinhadas as casas sociais da “Minha casa, minha vida”. O Brasil vai de vento em popa. Não se deve mais passar horas na fila para trocar dinheiro: pode-se em qualquer parte sacar dinheiro do caixa eletrônico.

Vinte anos atrás, no Jornal Nacional, a cada dia William Bon-ner dava o câmbio oficial do dólar e, em seguida, o paralelo no câmbio negro. Naquela época, minha família hospedeira com-prava os dólares que eu, cuidadosamente, economizava e guarda-va num nicho secreto perto da cama. Não era recomendável ter dólares em casa, mas deixar o dinheiro no banco tampouco era a solução por causa da inflação galopante. ainda guardo um arco-í-ris de passagens de ônibus: a cada mês subia o preço e, portanto, mudava também a cor do bilhete.

anos mais tarde, a economia melhorou bastante pela gestão liberal do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas naquela altura meus pais brasileiros já tinham visto boa parte de suas eco-nomias virar fumaça. Mais tarde o horroroso cenário para os brasi-leiros ricaços tornou-se realidade: o torneiro mecânico de outrora, o barulhento sindicalista lula da Silva tornou-se presidente. Mas, ao contrário do que alguns temiam (caos! revolução!), ele fez um governo moderado. Continuou o que seus predecessores tinham começado a construir e o Brasil se deu bem com isso. Hoje, Dilma rousseff é a primeira mulher presidente do Brasil, uma ex-gueri-lheira – quem teria imaginado isso?

O Brasil é um caso interessante não só economicamente. Po-líticamente, 20 anos depois da renúncia do presidente Fernando

Collor, sob a pressão dos “caras pintadas”, desenrola-se um novo processo, que pode seguir-se nos mínimos pormenores na mídia: corrupção no coração do PT, o caso do mensalão. O Brasil rein-venta continuamente o seu porvir.

2013. Minha família hospedeira vai bem – ainda mantemos contato. Meus pais construíram sua própria casa. Minha mãe ain-da trabalha. Meu pai está agora aposentado. Meu irmão e minha irmã puderam estudar e ambos trabalham. Minha irmã é fisiote-rapeuta em Juiz de Fora e decidiu fazer Direito, “para poder fazer alguma coisa pela gente”. Meu irmão projeta cenários para nove-las e vê de seu apartamento como o rio se embeleza para os Jogos Olímpicos. a dinâmica dentro da cidade se transforma: as favelas empetecadas entraram na mira dos promotores da construção e das imobiliárias. Cá e lá oferece-se um bom dinheiro aos morado-res de áreas que eram taxadas de favelas. Mas como a empregada do meu irmão me contou: “Para onde temos que ir, então? Para mais longe, onde é mais barato? Como então podemos chegar em tempo razoável no serviço?”

Quando agora olho a foto da minha turma daquela época, vejo que sempre fui a gringa, mesmo que minhas colegas me dessem o sentimento de ser uma delas e mesmo que eu passasse frequen-temente por uma catarinense ou uma gaúcha, por causa de meu cabelo loiro e meus olhos azuis. Como estudante de intercâmbio, desligada de quem eu era, salvo por uma frágil linha de envelopes do correio aéreo, eu fui muito longe para conquistar, no estrangei-ro, aquele sentimento seguro e familiar de casa.

Como jornalista, 20 anos mais tarde, levo vantagem com es-te olhar duplo: a familiaridade transparece nos gostos, cheiros e olhares, numa maneira de falar, em sensibilidades para tabus ver-sus franqueza e, também, nas minhas mãos que se metem a dan-çar quando falo português. ao mesmo tempo, este país poderoso apresenta-se cada vez numa outra faceta, tanta coisa muda, tão rapidamente, cada vez surgem novas questões e percepções. é como em toda boa relação: nunca se acaba.

Annelies Beck é jornalista na VRT, a televisão pública flamenga. Há 20 anos se dedica ao Brasil, onde fez numerosas reportagens. Residiu neste país entre 1991 e 1992 como estudante de intercâm-bio e obteve, mais tarde, um MA em Brazilian Studies na Univer-sity of London.

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Uma vez independente, a Bélgica atraiu um número considerá-vel de passantes e residentes brasileiros, sem que se constitu-

ísse uma colônia bem visível como a de Paris. Tratava-se de diplo-matas, comerciantes, artistas e principalmente de estudantes. em

Os primeiros brasileiros em Flandrese d d y S t o l s

p r e s e n ç a s b r a s i l e i r a s n a b é l g i c a

Por algum ufanismo a historiografia brasileira relutou muito tempo a pensar o Brasil como um país de emigração. Os úni-

cos casos conhecidos eram os deportados da Inconfidência minei-ra, a família imperial e os monarquistas em 1889, os baderneiros anarquistas principalmente italianos expulsos por volta de 1900, os exilados da revolução de 1930 e do estado Novo e os refugiados e deportados da ditadura militar de 1964 a 1978.

Como um fato novo e quantitativamente inédito surgiu a partir da crise econômica dos anos de 1980 a saída do País de milhares de brasileiros modestos por necessidade econômica. a formação de uma grande diáspora brasileira nos estados Unidos, no Japão e na europa abriu os olhos dos historiadores para os precedentes, como os ‘brasileiros de torna-viagem’ no Norte de Portugal ou no Sul da Itália, ou os escravos alforriados que voltaram para a cos-ta ocidental da África. Dentro deste variegado Brasil extramuros, cabe situar a presença brasileira na Bélgica.

logo depois da chegada dos portugueses e franceses ao Brasil, alguns índios fizeram a viagem em sentido inverso para lisboa ou para a Normandia. a sua vinda para Flandres pode ter demorado até que em 1584 uma primeira notícia assinalou a prisão em an-tuérpia de quatro Brasiliaenen, ou brasileiros, Melchior albares, anthonio ghercy, Pedro Borges e Juan aldres (Bulletin des Archi-ves d’Anvers, 5, 264).

Chegando à cidade tarde da noite, encontraram as portas já fechadas pelo horário de recolher, mas entraram pulando pelos muros. Foram liberados mediante o pagamento de multa de 100 florins pelos cônsules da nação portuguesa. estes os desculparam

como gente simples e ignorante, que nunca estiveram em outro lugar senão no Brasil e no mar. Tudo indica que eram mestiços, mamelucos ou mesmo índios, marinheiros de um navio português procedente do Brasil. Uma tripulação semelhante talvez já tives-se sido encontrada em viagens anteriores de navios portugueses a Flandres.

Um pouco brasileiros podiam ser neste final do século XVI os cristãos-novos portugueses, que, após longa estada em Pernambu-co ou na Bahia ou já nascidos por lá, vieram residir em antuérpia para tratar de seus negócios de açúcar e pau-brasil e eventualmen-te à procura de maior liberdade religiosa.

algumas famílias desta rede comercial transatlântica se fize-ram católicas como os Ximenes ou os rodrigues d’evora. Outras seguiram mais tarde, nos anos de 1640, para amsterdam, onde podiam professar abertamente seu judaismo, se bem que como cidadãos de segunda categoria e com censuras internas na sua comunidade. Um ou outro cristão-novo voltou inclusive para os Países Baixos meridionais, que adotaram progressivamente maior tolerância com os judeus.

em Zandvliet, um povoado perto de antuérpia, uma Brazilia-nenstraat se refere à gente de pele escura que vivia lá em choças como meio selvagens ao deus-dará. Na voz popular atribuía-se sua origem a soldados vindos com o exército espanhol no século XVI. Como mais plausível, tratar-se-ia de emigrantes belgas, que retornaram miseráveis do Brasil no século XIX e se reinstalaram em terras abandonadas (com meus agradecimentos a M. Bollen e J. Possemiers).

Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos XIX e XX e d d y S t o l s

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Bruxelas, o Brasil mantinha desde 1834, e quase continuamente, um encarregado de negócios, um ou mais adidos e um cônsul-ge-ral, alguns com extensas famílias, como testemunham no cemité-rio de laken os jazigos das famílias Souto Maior, Ipanema de Bar-ros e Moreira Barros. Possivelmente recebiam viajantes brasileiros como o pintor Manuel de araújo Porto-alegre e o poeta Domingos gonçalves Magalhães, que excursionaram pela Bélgica por volta de 1837. este último concluiu lá seu drama Antonio José ou o Poeta e a Inquisição e uma belga lhe inspirou talvez um suspiro poético. a belga era Céline, amante do outro grande poeta romântico, an-tônio gonçalves Dias, que passou por cirurgia na Bélgica em 1863, pouco antes de seu naufrágio na costa do Maranhão.

Um salão literário concorrido manteve em Bruxelas no final do Império o plenipotenciário conde de Villeneuve e sua esposa, assistido por Brasílio Itiberê da Cunha, o compositor da Sertaneja. este trouxe em 1880 para estudar no colégio jesuíta Saint-Michel um jovem irmão, João, que se formou depois em Ciências Políticas na Universidade de Bruxelas e se relacionou com figuras de La Jeu-ne Belgique, como Iwan gilkin (andrade Muricy). Nesta linha pu-blicou em 1890 sob o nome de Jean Itiberê e com o mesmo editor de Maurice Maeterlinck, lacomblez, um volume de poemas em francês, Préludes. Voltando em 1892 para a terra natal paranaense com postura de dândi no estilo fin-de-siècle, continuou a publicar poemas em francês nas revistas Cenáculo e Almanaque Paranaense e divulgou nos meios literários de Curitiba o simbolismo belga.

O prestígio deste pode ter influenciado na ida a Bruxelas, pou-co depois, de dois jovens escultores paranaenses, filhos de imigran-tes. Na oficina do polonês Miguel Zak, os trabalhos de madeira do filho João Zaco Paraná (1884-1961) despertaram o interesse de um freguês, o técnico ferroviário belga François gheur. este levou o menino para sua casa em Curitiba para lhe proporcionar ensino com auxílio do governo e de protetores no seminário menor e na escola de Belas artes e Indústria.

Uma vez reconhecido seu talento, seguiu primeiro para a es-cola Nacional de Belas artes no rio de Janeiro e depois, em 1903, com bolsa do governo paranaense, foi aperfeiçoar-se na Académie Royale des Beaux-Arts de Bruxelas. gheur e outro belga interes-sado, alphonse Solheid ou talvez o próprio Itiberê podem ter fa-cilitado o contato. em Bruxelas, Zaco trabalhou com o escultor expoente do art nouveau, Charles Van der Stappen. recebeu em 1905 em sua casa o conterrâneo João Turin (1878-1949), filho de imigrante italiano, aprendiz de ferreiro, escultor e também auxi-liado com bolsa de governo. Turin exprimiu o seu sofrimento pelo clima belga na escultura Exílio.

Com certeza, conheceram Constantin Meunier, cujo Semea-dor (1896) inspirou semelhante estátua de Zaco Paraná. ambos fo-ram diplomados e premiados em 1909, recebendo um ateliê para trabalhar, carvão para aquecimento e direito a modelo vivo. Com a morte de Van der Stappen, voltaram ao Brasil em 1910, mas logo regressaram à europa e viveram um longo período em Paris em contato com os artistas modernos. após seu regresso definitivo em 1922 ao Brasil, encontraram mais reconhecimento e encomendas.

ainda em Bruxelas, seus caminhos se cruzaram com um ou-tro artista brasileiro. Henrique alvim Corrêa (1876-1910) foi le-vado com 16 anos pelo padrasto a Paris, onde aprendeu a gravu-ra e se especializou em pintura militar com edouard Detaille. Contrariado pela família em seu romance com Blanche Barbant, fugiu em 1898 para Bruxelas, onde montou um ateliê no subúr-bio de Watermael-Boisfort. Mas o pintor não conseguia vender seus quadros de temas militares e se sustentou com decoração mural e ilustrações eróticas no estilo de Félicien rops. Somen-te em 1905 conseguiu realizar na galeria Boute de Bruxelas sua primeira exposição individual. Numa abundância de pinturas, desenhos e esboços, um crítico (La Chronique, 12 e 15.03.1905) descobriu um artista solitário e original, sem filiação com algu-ma escola e desenraizado.

Suas obras revelavam ‘uma mistura singular de fantasia e serie-dade, de sonhos bizarros, caprichosos e de impressionismo natural, de simbolismo e realidade’. Tudo lhe inspirava, desde figuras do cotidiano, recantos e paisagens de Boisfort até cenas da atualida-de internacional, como a guerra russo-japonesa de 1904, que ele dramatizava ou parodiava. Sua imaginação fantástica excedeu em cerca de 50 desenhos de monstruosos e terríveis extraterrestres para ilustrar a obra de grande êxito The War of the Worlds (1898) de H. g. Wells. O próprio autor, solicitado por alvim Corrêa em viagens a londres, os aprovou para uma edição belga, La guerre des mondes, Bruxelas, l. Vandamme, 1906, com 500 exemplares (reeditado no rio de Janeiro, 1981).

Doente dos pulmões, alvim Corrêa foi tratar-se num sanató-rio suíço, mas acabou morrendo de tuberculose em Bruxelas em 1910. Seu necrológio (La Chronique, 15.06.1910) o reconheceu como um modernizador de Breughel e Bosch. Também devia- -se relacioná-lo com o contemporâneo belga James ensor. Seu ateliê foi destruido na invasão alemã em 1914 e as matrizes de suas gravuras desapareceram no torpedeamento de um navio em 1942, mas seus dois filhos, eduardo e roberto, salvaram o que

Ilustração de Henrique Alvim Corrêa para o livro la guerre des mondes, de H. G. Wells.

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puderam. Sua obra foi finalmente redescoberta por José roberto Teixeira leite, que lhe consagrou a primeira exposição em 1973, parcialmente reapresentada por Pietro Maria Bardi em Bruxelas na galeria Studio 44 no mesmo ano da Brasil-export.

Nestes anos de 1910 a presença brasileira atingiu maior vi-sibilidade pelas iniciativas do embaixador Oliveira lima. Junto com a participação do Brasil na exposição de Bruxelas, organizou um concerto de música brasileira no Théâtre de la Monnaie. Os comissários do estado de São Paulo editaram em Bruxelas várias publicações de propaganda como um álbum de 102 fotografias de guilherme gaensly, Vues de São Paulo. Um exemplar – ho-je conservado na Biblioteca Municipal da cidade – foi oferecido ao poeta Vicente de Carvalho, residente em Bruxelas em 1912.

Vários jovens talentos literários brasileiros, adeptos do simbo-lismo, vieram peregrinar na terra de émile Verhaeren, georges rodenbach e Maurice Maeterlinck, ainda mais que lá havia edito-res bons e baratos e onde Victor Orban compôs uma das primeiras antologias de literatura brasileira em francês (Quataert). a visita aos canais de Bruges em 1913 de rodrigo Otávio Filho, junto com ronald de Carvalho, Filipe d’Oliveira e Álvaro Moreyra, rendeu seu Alma de Rodenbach, 1921.

Foi nesta época que Manuel Bandeira veio da Suíça conhecer ‘a Bélgica perseverante dos velhos paços municipais e beguines’, evocados mais tarde em O Ritmo Dissoluto (1924). ao contrário, lá também, na casa de um patrício, o poeta mineiro Belmiro Braga saboreou sua comida da terra. Um editor de Bruxelas lançou os primeiros estudos de alberto lamego, historiador da Terra Goy-tacá. Brasileiros vinham até veranear, como os almeida Prado em la Panne. Num restaurante de Ostende, gilberto amado se surpreendeu em 1912 com uma dezena de seringueiros da ama-zônia, vestidos de branco, festejando com bonitas mulheres nos joelhos (amado). No mesmo balneário o casal asseloos anuncia-va o ensino da ‘maxixe brésilienne’ (le Carillon, 28.02.1914). a

festa acabou com a invasão das tropas alemãs em agosto de 1914, quando os diplomatas redigiram listas com os nomes de uns 400 brasileiros que deviam deixar a Bélgica.

Boa parte destes eram estudantes e seus familiares. Já por me-ados do século XIX se encontravam em Bruxelas em instituições de educação como do Senhor lavallée jovens brasileiros, ao lado de russos ou de uma Charlotte Brontë (Stols, 1974). Mais tarde, secundaristas frequentaram colégios como o Saint-Michel dos je-suítas em Bruxelas ou pensionatos, como das Ursulinas em On-ze-lieve-Vrouw-Waver.

Bem mais numerosos foram os universitários. Vários motivos levaram os pais brasileiros a preferir a Bélgica: um país monár-quico, mas constitucionalista e liberal, de idioma francês, mais seguro e também mais barato do que a França. Desde Bruxelas, em carta de 7 de julho de 1863, antônio Prado recomendou ao irmão Caio estudos na Bélgica por não ter costumes tão diversos como a alemanha nem tão perigos como Paris (Darrell, p. 147).

entre 1835 e 1914 matricularam-se cerca de 700 brasileiros, dos quais 237 na Universidade livre de Bruxelas, 217 na Universi-dade de gand, 100 na Universidade de liège, 68 na Universidade de lovaina, 37 na Faculdade de agronomia de gembloux, 5 na Université Nouvelle de Bruxelles – uma dissidência temporária da Universidade Bruxelas –, e 2 no Instituto Superior de Comércio de antuérpia.

Se os primeiros apareceram em 1835, somente a partir de 1857 contava-se mais de dez, alcançando 41 em 1871 com um pico de 72 em 1882, baixando depois para 12 em 1912 e subindo no-vamente até 48 em 1913. O mais surpreendente – e contrário à reputação de bacharelismo dos brasileiros –, é o alto número de inscritos e diplomados em engenharia (318), medicina (236) e agronomia (45).

Notável também é a diversidade de origem dos estudantes bra-sileiros, a maior parte vinda das províncias do rio de Janeiro (231) e de São Paulo (149), seguidas por Minas gerais (41), Pará (31), rio grande do Sul (29), Maranhão (28), Bahia (27) e Pernambu-co (24). em algumas famílias brasileiras, como os Ottoni, Teixeira leite, roque de Pinho, Toledo Piza, Villares, Viana e Chermont, os estudos na Bélgica se tornaram quase uma tradição.

No início viviam bastante isolados. a. S. de abreu se queixou num folheto, Souvenir de la province de Minas Gerais au Brésil, Bruxelas, 1845, como em três anos fez poucos amigos. Defendia frente aos abolicionistas a reputação de sua pátria, argumentando que o escravo trabalhava somente oito horas e não se despedia na rua, faminto, como se fazia com o operário belga.

Nos anos de 1860 e 1870 alguns frequentavam salões e ade-riam ao positivismo como luiz Pereira Barreto ou Joaquim alberto ribeiro de Mendonça. Um deles, Francisco antônio Brandão Jú-nior, publicou em Bruxelas um dos primeiros livros abolicionistas, A Escravatura no Brasil, 1865. Participavam das associações estu-dantis, envolvendo-se às vezes nas disputas entre liberais e católi-cos. em gand houve até um clube brasileiro entre 1875 e 1880.

alguns se radicaram na Bélgica como ladislau Furquim de almeida, que publicou sobre o café e a borracha e deixou descen-

Ilustração de Henrique Alvim Corrêa para o livro la guerre des mondes, de H. G. Wells.

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dência. Outros levaram na volta ao Brasil uma esposa belga. Uma destas relatou, em carta aos parentes belgas, a vida na fazenda em Minas gerais com os escravos reunidos à noite para a reza e benção.

Depois da Primeira guerra Mundial estudantes brasileiros ins-creveram-se de novo nas universidades belgas, se bem que o Brasil criava entrementes suas próprias instituições. a Bélgica voltou a fazer parte da rota de literatos, artistas, diplomatas e empresários brasileiros no seu périplo europeu. em viagem de 1922 junto com Vicente do rêgo Monteiro, gilberto Freyre conheceu uma belga ‘a mais lírica das namoradas... demônio de morena de olhos verdes tão criança e ao mesmo tempo já tão mulher’, que lhe escrevia car-tas com um pouco de seu cabelo (Tempo morto e outros tempos).

Outros vieram para visitar as exposições de antuérpia em 1930 e de Bruxelas em 1935, como o pintor Décio Villares, do qual o Museu de Belas artes de antuérpia conserva uma tela. Foi no ateliê do escultor Oscar Jespers que Maria Martins aprendeu, por volta de 1938, a trabalhar em bronze. a segunda invasão alemã em maio de 1940 provocou um novo êxodo dos brasileiros.

No pós-guerra a presença brasileira se reativou primeiro na área cultural, promovida por uma Union Brasilo-Belge, fundada em 1950. Nesse ano estreou o maestro eleazar de Carvalho no Palais des Beaux-Arts de Bruxelas. Magda Tagliaferro fez em 1952 uma turnê belga e participou do júri do Concours Reine Elisabeth. a construção da nova capital em Brasília colocava o País no diapa-são da modernidade, que precisamente a exposição Mundial de Bruxelas em 1958 pretendia celebrar. esta coincidência suscitou mais intercâmbios.

assim Heitor Villa-lobos dirigiu em 1958 a orquestra belga na inauguração do Pavilhão do Brasil. Se a expo 58 fez descobrir Cândido Portinari e Cícero Dias, o Palais des Beaux-Arts mostrou em 1957 Burle Marx e em 1960 lasar Segall, em parte como res-postas às participações belgas na Bienal de São Paulo. este maior apreço cultural mútuo levou em 1960 à assinatura de um acordo cultural. ao mesmo tempo os belgas descobriram o futebol bra-sileiro nos encontros do Botafogo e do Santos com o anderlecht e o Beerschot.

a partir dos anos 1960 o número de estudantes cresceu bas-tante à procura de formações inexistentes ou pouco desenvolvidas no Brasil, como engenheiro de cervejaria, psicólogo, psicanalista, demógrafo, ou de especializações e de doutorados. Vários tipos de bolsas, do supracitado acordo cultural, do Ministério Belga da Cooperação, ou das próprias universidades facilitaram sua vinda.

Paralelamente, escolas de artes plásticas, cinema ou dança e conservatórios de música atraíram mais jovens de vocação artís-tica. Clubes de futebol belgas começaram a contratar jogadores brasileiros, ao passo que mestres capoeiristas faziam facilmente adeptos na juventude belga. esta apreciou cada vez mais as ban-das de música brasileira ativas no país.

empresas brasileiras se instalaram na Bélgica ou enviaram es-tagiários, enquanto a representação diplomática se expandiu na União europeia e na Otan. Os casamentos mistos trouxeram mais brasileiras à Bélgica, inclusive princesas da família imperial. Com a crise econômica milhares de brasileiros buscaram trabalho na Bélgica. Muitos não conseguiram carteira de trabalho, arriscan-do-se como clandestinos à deportação. Para assisti-los, surgiu em 2006 a associação Abraço.

assim, formou-se uma verdadeira colônia brasileira com pon-tos de encontro, bares e restaurantes, associações culturais, gale-rias de arte, exposições, publicações, igrejas, carnaval e festas ju-ninas, mais concentrada em Bruxelas, mas também presente em antuérpia, liège, gand e lovaina. estimativas calcularam o total de brasileiros na Bélgica em torno de 40.000 por volta de 2010, um número bastante alto em comparação com a emigração brasi-leira nos outros países europeus. O tema merece certamente uma pesquisa mais ampla e sistemática. em 2011 surgiu o projeto Me Brasil dentro da Oca, sob o impulso de regina Barbosa, para re-gistrar esta presença brasileira em interação com belgas ou outros lusófonos. Não falta matéria interessante como Pixote em Bruges, a revista Para ti Para todos em antuérpia desde 1995, a galeria Zacco Canchi em aalst, La Maison du Brésil em Bruxelas, Alegria em lo-vaina ou os numerosos grupos de capoeira, como o Porto de Minas.

João Turin esculpindo “Exílio”.

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Fundado em 1841, o Instituto das Ursulinas em Onze-lieve- -Vrouw-Waver se impôs em poucos decênios como uma ins-

tituição de fama internacional (Baeck, 2011). No final do século XIX oferecia fácil acesso pelo porto de antuérpia e pela estrada de ferro até a cidade vizinha de Malines.

Suas belas construções em diversos estilos históricos forma-vam um amálgama esplêndido bem ao gosto da alta burguesia. Prestavam muita importância à higiene e às técnicas modernas como calefação central, água corrente e iluminação elétrica. a propriedade rural de dez hectares dispunha de um parque de passeio de estilo inglês, de um bosque com vistosas estruturas de cimento rústico, entre as quais uma sala de piquenique e uma gruta de lourdes, e vastos campos lavrados a partir de sua pró-pria granja modelo.

a sua maior atração consistia na sua oferta de um ensino de qualidade e progressista, não somente nas matérias de humanida-des e nas formações de professoras, como também de economia doméstica e de ensino agrícola e hortícola. graças às suas múlti-plas inovações pedagógicas, inspiradas num feminismo moderado, tinha o instituto excelente reputação junto à burguesia afortuna-da e de cunho cosmopolita, bem além das fronteiras da Bélgica.

Por volta de 1900 quase uma quarta parte das alunas vinha do exterior. as irmãs recrutavam não somente nos países vizinhos, como também na rússia, Áustria-Hungria, Itália, espanha e até na África, austrália, nos estados Unidos e na américa latina, com numerosas moças do Panamá e da Colômbia e ainda da Nicará-gua, argentina e do Brasil.

Por causa de diversas circunstâncias, como as destruições du-rante a Primeira guerra Mundial, as listas das matrículas conserva-das são fragmentárias. Nos palmarés (listas) dos anos de 1920-1930 figuram como alunas brasileiras Flora e gina d’Oliveira Castro, Juliette e lucy Braz Pereira gomes e Jandyra gomes de Men-donça, todas de Brazópolis, cidade do estado de Minas gerais. Foi provavelmente este o pensionato belga onde o jornalista José eduardo de Macedo Soares, exilado na França por volta de 1923, colocou suas duas filhas. Uma delas, Maria Carlota [ou lota] de Macedo Soares parece ter inventado uma marchinha de samba quando, numa festa, todas as moças deviam cantar o hino nacio-nal (Oliveira). ela se tornou mais tarde, no começo dos anos de 1960, a paisagista executiva do parque no aterro do Flamengo. Sua sensibilidade particular aos encantos da natureza talvez tenha se despertado e crescido no ambiente floral do pensionato.

Para oferecer às centenas de internas estrangeiras e a seus pa-rentes de visita uma condigna sala de recepção e de encontro, as Ursulinas enriqueceram o pensionato em 1900 com um magní-fico jardim de inverno de estilo art nouveau, com vitrais numa

construção metálica. é uma realização artística única de prestígio mundial, ainda mais como uma rara e grandiosa construção art nouveau em zona rural e num contexto católico (Baeck, 1993). Pela cúpula de vidro entram raios dourados que criam uma atmos-fera primaveril mesmo em dias escuros. O vitral multicolorido da cúpula desenha a Manhã, o Dia e a Noite. a flora se faz também proeminente na decoração. além disso, a natureza ao vivo tam-bém está presente no jardim de inverno com palmeiras exóticas, samambaias, plantas e flores. Nisto as irmãs aderiram a um tipo de natureza civilizada e estilizada, cultivada pelo homem, inerente aos seus conceitos pedagógicos.

O caráter único do complexo se encontra ainda nos interiores primorosamente ecléticos e bem conservados. a sua decoração carrega um significado fortemente simbólico como também serve às finalidades estéticas e sempre didáticas. assim, o conjunto dos

Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas em Onze-lieve-Vrouw-Waver

M a r i o B a e c k

Vista do interior da estufa art nouveau do Instituto das Ursulinas.

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Instituto das Religiosas Ursulinas em Wavre Notre-Dame, fundado em 1841.

edifícios vale sem dúvida como um dos exemplos mais marcantes do pensionato belga do período 1840-1960 e pode ter inspirado nesta procura de classe os seus congêneres estabelecidos por con-gregações belgas no Brasil, como o Des Oiseaux em São Paulo ou as Damas em recife.

Mario Baeck é licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Gand, prepara um doutorado em História da Arte, publicou sobre literatura flamenga e neerlandesa, história da arte, conservação do patrimônio e particularmente sobre o Jardim de Inverno do Instituto das Ursulinas, do qual é secretário.

Os estudantes brasileiros na Universidade de liège (1870-1914)C h r i s t i n e Fe l l i n

a chegada de estudantes brasileiros na Universidade de liège ocorreu mais tarde do que nas outras universidades belgas

com os primeiros quatro inscritos em 1863-1864 (Fellin; Stols, 1875). esse número estagnou neste patamar por muito tempo. aliás, ao passo que os estudantes dos outros países da américa latina se tornaram cada vez mais numerosos, se produziu des-de 1887 em todas as universidades belgas uma diminuição ní-tida das inscrições brasileiras. em comparação com os 15 anos anteriores, esta forte queda se relacionava não somente com as

dificuldades políticas do fim do Império e dos primeiros passos da república, mas também com a crise do café e a situação fi-nanceira instável do País.

Quando a situação interna do Brasil melhorou e a industriali-zação do País deslanchou de verdade nos anos de 1900, o número de estudantes brasileiros aumentou novamente. Neste momento a tendência se inverteu: não eram mais a Universidade livre de Bruxelas e a Universidade de gand as mais procuradas, mas a Universidade de liège, e principalmente seu Instituto Montefiore.

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este predomínio de liège durou até a Primeira guerra Mun-dial e pelo menos 132 brasileiros frequentaram os bancos da Uni-versidade de liège, ou seja três vezes mais do que o segundo país latino-americano, a argentina, com 39 inscritos entre 1870 e 1914. entre estes 132 estudantes brasileiros, originários essencialmen-te das províncias do rio de Janeiro e de São Paulo, 109 optaram por estudos técnicos, 66 pelas escolas especiais ou, em seguida, a Faculdade Técnica em 1893, e 43 para o Instituto Montefiore, sete pelos estudos de Medicina, quatro pelas Ciências Políticas e administrativas, dois pela licenciatura Comercial, dois pelas Ciências Notariais, um por Química e um por Direito. Somente 24 obtiveram diploma.

Como explicar o interesse marcante dos brasileiros para os es-tudos universitários em liège? Já antes a cidade gozava no Brasil de boa reputação por causa de sua metalurgia e particularmente de suas armas. Comissões militares brasileiras vinham visitar os ateliês e faziam boas encomendas. em agosto de 1871 o próprio Imperador Pedro II visitou Seraing com o industrial georges Mon-tefiore-levi, almoçou na casa do sucessor de Cockerill, Sadoine, e recebeu revólveres de presente (Condessa do Barral, 736-379). Mais interessado nos métodos de ensino, se informou sobre a Uni-versidade de liège e entrou em contato com os professores eu-gène Catalan e edouard Van Beneden, respectivamente titulares de Matemáticas e de Biologia e Zoologia.

No ano seguinte Van Beneden liderou uma expedição cientí-fica ao rio de Janeiro, onde descobriu um tipo de boto, e visitou Pedro II. Numa outra passagem por liège, em 1876 ou 1877, o Im-perador se reencontrou com o zoólogo. Foi por sua apresentação que o Imperador se tornou em 22 de dezembro de 1885 membro correspondente da Société des Sciences de Liège.

O que entretanto diferenciou a Universidade de liège das outras instituições do país foi seu ‘Institut Montefiore’ (legros e Pirotte; Tomsin). Fundado em outubro de 1883 por Montefio-re-levi, senador de liège, foi a primeira escola eletrotécnica de nível universitário no mundo a coordenar todas as aplicações da eletricidade num único programa e a formar engenheiros eletricis-tas numa sequência de estudos teóricos e práticos. Por situar-se na ponta do desenvolvimento da eletrotécnica, o Instituto Montefiore ganhou rapidamente reputação nos quatro cantos do mundo e os estudantes estrangeiros se apresentaram cada ano mais numerosos.

assim, apenas dois anos depois de sua abertura, um estudan-te brasileiro, Colin Freitas Broad, se inscreveu e mais 42 outros brasileiros o seguiram até a Primeira guerra Mundial. entre estes alunos brasileiros da Universidade de liège, e particularmente do Instituto Montefiore, alguns fizeram uma bela carreira. Foi o caso de edgard de Souza (nascido em 12.3.1876, Campinas), en-viado com 16 anos à Bélgica para seguir uma formação técnica, diplomado como engenheiro de Minas com distinção em 1898 e como engenheiro eletricista com satisfação no ano seguinte. De volta ao Brasil, tornou-se engenheiro eletricista-chefe e de-pois, a partir de 1914, vice-presidente da The São Paulo Tramway, Light and Power, e ainda diretor da Companhia Telefônica do estado de São Paulo. Mas, edgard de Souza é sobretudo conhe-cido como o fundador e primeiro professor da seção de eletro-técnica na escola Politécnica de São Paulo. Seu irmão, Durval de Souza, também estudou engenharia em liège, mas levou quase dez anos para obter, em 1902, seu diploma de engenheiro eletricista pelo Instituto Montefiore e exerceu sua profissão na cidade de São Paulo.

Vale seguir outras carreiras: Herculano de almeida Correa,

Alunos trabalhando no Instituto Montefiore. O Instituto Montefiore da Universidade de Liège.

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formado engenheiro de artes e Manufaturas em 1897 e engenhei-ro eletricista em 1899, diretor da Companhia Melhoramentos de São Paulo; Colin Freitas Broad, engenheiro eletricista em 1890, atuou na Compagnie Internationale d’Electricité em liège (1891), em Santos (1892-1893), na Companhia Mogyana de estradas de Ferro (1894-1895), na Comissão de estudos da estrada de Ferro Catalão-Cuiabá (1896-1900), em São Paulo (1901-1902) e, por fim, no London and Brazilian Bank no rio de Janeiro (1905-1908); Carlos de Figueiredo, engenheiro eletricista em 1900, foi professor no rio de Janeiro; J. N. de lemos Basto, engenheiro eletricista em 1890, atuou como diretor dos Correios e Telégrafos do Brasil no rio de Janeiro; edouardo de aguiar d’andrade, enge-nheiro eletricista em 1894, serviu, depois de três anos na General Electric Company em Nova York (1895-1898), como engenheiro

na São Paulo Railway Company e diretor da Companhia Telefô-nica, da Companhia Melhoramentos e da empresa luz e Força de Jundiahy. alguns estudantes do Instituto Montefiore receberam bolsas da Marinha brasileira, sem dúvida com relação à sua com-pra de navios de guerra mais modernos.

Foi portanto nas companhias de estradas de ferro e de eletrici-dade, no serviço público e no ensino superior que quase todos se beneficiaram com a formação recebida no Instituto Montefiore. este contribuiu de maneira modesta, mas evidente, ao desenvol-vimento e à modernização do Brasil.

Christine Fellin obteve a licenciatura em História na Universidade de Liège com uma monografia sobre “Os estudantes latinoamerica-nos na Universidade de Liège antes da Primeira Guerra Mundial”.

Como fui parar na Bélgica e me tornei cineastaS u s a n a r o s s b e r g

em 1964, quando ocorreu no Brasil um golpe de estado e o estabelecimento da ditadura militar que duraria 21 anos, eu

estava nos estados Unidos, pois tinha me tornado órfã aos 15 anos e fora enviada para viver com minha tia americana. Mas não gos-tava dos estados Unidos e, em 1965, antes de completar 20 anos, voltei para o Brasil. Comecei a cursar Psicologia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciei estudos de Crítica Teatral na escola de arte Dramática (eaD), precursora da escola de Comunicações e artes (eCa) da USP. Passei a viver com um colega da escola de arte Dramática. Um dia, em 1967, participamos de uma passeata contra a ditadura, e a nossa foto, na primeira fila da passeata, foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo.

Sabíamos que as fotos feitas durante passeatas eram utilizadas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para iden-tificar as pessoas que se opunham à ditadura. Compreendemos, assim, que deveríamos sair do País.

Meu companheiro, luis Otavio Barata, então cenógrafo de teatro, havia encontrado, na Bienal de São Paulo, um cenógrafo tcheco famoso, Josef Svoboda, e lhe propusera aperfeiçoar seus estudos com ele. Svoboda respondeu: ‘Venha’, de maneira que o lugar lógico para irmos, quando saíssemos do Brasil, era a en-tão Tchecoslováquia. esperávamos sermos acolhidos de braços abertos. No entanto, quando chegamos, nos sinalizaram que de-veríamos aprender o tcheco durante dois anos e que as escolas de tcheco estavam lotadas, devido ao esforço de guerra, para ajudar o Vietnã do Norte. as escolas estavam cheias de vietnamitas e nos aconselharam a fazer o pedido de admissão em março do ano se-guinte, isto é, 1968.

Nos lembramos, então, de uma conferência que Heleny gua-riba tinha dado na eaD. ela tinha falado de seu estágio com o diretor francês de teatro roger Planchon e de um outro estagiá-

rio, belga, diplomado em uma boa escola de teatro em Bruxelas, o INSaS (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle). Foi assim que resolvemos ir para Bruxelas. Chegamos na véspera do vestibular e, não sei por que milagre, fomos ambos aceitos. O nosso francês, sobretudo o meu, não era extraordinário.

após um ano no INSaS, luis Otavio, hoje falecido, voltou para Belém do Pará, de onde era oriundo, e onde se tornou um profissional de teatro conhecido. eu, tendo descoberto a edição de cinema, pedi transferência para a seção de continuidade e edição de filmes do INSaS.

Naquela época, o Consulado do Brasil ficava em antuérpia. eu viajava para lá unicamente para renovar o passaporte e não coloca-va jamais os pés na embaixada. Os dois funcionários na antuérpia, um deles Silvio Moreira, que continua na embaixada, eram sim-páticos, mas, como todos os brasileiros na Bélgica, eu morria de medo de aparecer por lá. aliás, conhecia pouquíssimos brasileiros aqui. era muito paranoica, morria de medo dos delatores da dita-dura. Por isso, não voltei ao Brasil até o fim da ditadura e a anistia.

Bruxelas mudou muito desde 1967. Na época, parecia um vila-rejo de província. a mentalidade era bastante racista. até eu apren-der o francês corretamente, era um pouco maltratada ou ignorada nas lojas. Tínhamos problemas para alugar um apartamento – em todo lugar estava anotado ‘étrangers s’abstenir’, isto é, ‘estrangeiros, abstenham-se’. O fato de Bruxelas tornar-se a capital da europa, assim como a chegada de milhares de estrangeiros, modificou a mentalidade e aumentou a diversidade cultural da cidade.

Tive muita sorte na vida profissional. Minha mãe me falava sempre da importância de um trabalho bem feito. Dediquei-me ao trabalho o quanto pude, chegando a negligenciar um pouco a minha vida privada. graças ao conhecimento da língua alemã (meus pais tinham emigrado da alemanha para o Brasil), aprendi

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o flamengo com certa facilidade. atuei, em francês e flamengo, como continuista, editora, assistente de direção e diretora de fil-mes. Pude trabalhar com diretores belgas conhecidos, tais como Benoit lamy, Harry Kümel, Marion Hänsel, Stijn Coninx, Jaco Van Dormael, Hugo Claus. Pratiquei meu ofício também em outros países europeus e fui responsável pela continuidade de dois filmes nos estados Unidos.

Tive a honra de receber a distinção honorífica de Cavalheiro

(não Dama) da Ordem de leopoldo II, por minha contribuição ao cinema belga. No entanto, o trabalho pelo qual me sinto mais realizada, que me toca mais profundamente, é o meu documen-tário Brasileiros como eu.

Susana Rossberg foi, igualmente, professora em duas escolas de cine-ma belgas, tendo, assim, a oportunidade e o prazer de contribuir ao desenvolvimento de novas gerações de cineastas.

algumas figuras brasileiras em lovaina durante os anos 70Pa u l D u l i e u

“Il belge”, dizia Miranda quando o céu se mostrava chuvoso

Nos anos 70, na Universidade de lovaina, aconteceu-me en-contrar inúmeros brasileiros. era o tempo da ditadura mi-

litar, dissidentes de várias correntes chegavam à Bélgica. em Bruxelas, Yolanda Bettencourt, que trabalhava na Entraide et Fraternité, era a mãe universal dos exilados. O brasileiro que desembarcava, se nada conhecia do país, tinha pelo menos no fundo do bolso uma papeleta com o endereço de Yolanda, e procurava, no emaranhado urbano de anderlecht, a rua Doc-teur Huet. Bate à porta. longas explicações são desnecessárias. Providencia-se um pouso e alguns expedientes para sobreviver. Dom Hélder Câmara que declarava: ‘Quando dou pão a um po-bre, dizem que sou um santo. Quando pergunto por que ele é pobre, dizem que sou comunista’, hospedou-se mais de uma vez em sua casa. O marido de Yolanda, luc Thomé, pito no canto da boca à moda de Jacques Prévert, mostrava boa acolhida – às vezes resmungando um pouco – a todos os que, como se diz no Brasil, ‘não tinham onde cair morto’.

em lovaina, havia um cabaret de estudantes com a placa l’Œil Nu (Olho nu). À noite, ouvia-se música brasileira. O guitar-rista Marcelo de Mello, que fundou o Quinteto Violado, tocava ali música erudita e popular. revejo geraldo Vandré arranhando sua guitarra. Cantava “somos todos iguais braços dados ou não”, uma canção que não havia tido a sorte de agradar aos generais, e o pobre trovador, devido a certas estrofes impertinentes, vira-se forçado a exilar-se num país chuvoso.

a época era efervescente. O grande caldeirão da universidade fumegava ainda do fogo de 68. Contra o ministro Vrancks, que queria, por meio de medidas julgadas iníquas, limitar o acesso de estrangeiros à universidade, os estudantes fizeram greve de fome em dezembro de 1971. No Œil Nu, um ateliê de serigrafia im-primia cartazes onde se lia: Non au décret; Les frontières on s’en fout; Nous sommes tous des étrangers. Tais cartazes eram um ape-lo à manifestação. Havia uma fraternidade na recusa à injustiça internacional, e era preciso lutar contra a palmatória dos regimes militares em que se apoiava o capitalismo.

Os jovens que haviam deixado o Brasil dos generais temiam ser perseguidos. eram muito desconfiados, a tal ponto que alguns os julgavam paranoicos. Um tipo bigodudo poderia ser um espião, e postiço seu bigode! Às vezes o rumor se espalhava. Pois não se falava em sequestrar Fleury, um policial torturador, que diziam ir à França para colher informações? Mas esses receios e projetos fantasiosos logo se dissipavam ao ritmo do carnaval no Stuc, Van evenstraat; os passos endiabrados do samba espalhavam no inver-no flamengo o calor vibrante dos Trópicos. Mas, deve-se confessar, experimentava-se às vezes um fundo de amargura, uma espécie de alegria melancólica. Seria o que nossos amigos do Brasil cha-mam de saudade?

Os estudantes que não seguiam o rastro de Marx deixavam-se apanhar por Freud, ou por Marcuse ou lacan. Os brasileiros de-gustavam as teorias psicanalíticas. Walter evangelista, estudante de Filosofia, alardeava o evangelho segundo Sigmund; o tipo que não se deitava no divã era lastimável; recusava a aventura interior; tinha medo de embarcar no conhecimento do seu eu profundo.

antonio Marques (chamavam-no Antonio das Mortes por cau-sa do filme de glauber rocha sobre os cangaceiros) ficou dez anos na Bélgica; durante essa longa permanência – e era preciso driblar incríveis dificuldades – apaixonou-se por antiguidades e obras de arte. Depois de escrever uma tese sobre a literatura de cordel, tor-nou-se no Brasil especialista reconhecido em cultura popular e hoje possui em seu Solar das Artes, em Natal, vasta coleção de te-las, esculturas, marionetes, comprovando a brilhante imaginação dos artistas brasileiros.

alto, magro, óculos de intelectual, sorriso irônico no canto da boca. Osmar ramos Filho era inigualável na interpretação dos sonhos da noite. Parecia ter a chave de todos os enigmas. atraído pelo esoterismo, tornou-se, por paixão, um conhecedor único da obra de Balzac. No Brasil, pretendeu ter descoberto um romance psicografado: Waldo Vieira, escritor brasileiro, teria sido tomado pelo espírito do grande romancista francês para escrever sob seu ditado Cristo espera por ti. a fim de provar esse fenômeno espírita, Osmar conduziu com persistência infatigável pesquisas de estilísti-ca e de lexicografia comparando o romance de Waldo Vieira com

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Cartaz de 1971 conclamando a uma manifestação em Lovaina com os dizeres “Nós somos todos estrangeiros”.

os escritos de Balzac. Consequentemente a esse trabalho minucio-so, Osmar redigiu uma obra notável que tem por título O avesso de um Balzac contemporâneo.

Vindo de Ferreiras, uma cidadezinha que por gracejo ele cha-ma de centro do mundo, José Maria Tavares de andrade reunia uma quantidade de dados sobre a religiosidade popular do Nor-deste e sobre a farmacopeia tradicional. após completar sua for-mação de sociólogo junto com Bastide e edgar Morin em Paris, tornou-se um brilhante especialista do fenômeno religioso e do que chama de ‘etnomedicina’.

rachel da Costa Cunha permaneceu na Bélgica após ter re-cebido sua licenciatura em Filosofia. Participara, antes de seus estudos, do rio Ballet guanabara e apresentou-se no Tea tro Mu-nicipal do rio. após seus estudos fundou, em Wavre, o Centro de Balé Mimésis, que acolheu por mais de 30 anos centenas de alunos.

José Miranda falava português, mas não vinha nem do Brasil nem de Portugal. era originário de goa. em lovaina, estudava Sociologia. Que faria no final de seus estudos? retornar a goa?

Ilustração de Géraldine Servais denominada “Aparecida Ventre Livre”.

Mas esse velho enclave português acabava de ser recuperado pe-la Índia. aceitar um passaporte que Portugal lhe propunha? Seria correr o risco de se ver envolvido na guerra colonial de Moçam-bique. apegado à sua língua, José Miranda escolheu partir para ensinar no Brasil. Foi, pois, passando pela universidade de lovai-na que um goense encontrou brasileiros que o determinaram a atravessar o atlântico.

esses exemplos que pinço na paisagem movimentada dos anos 70 falam do papel prioritário que a Bélgica desempenhou no des-tino de certos jovens em relação ao Brasil. a partir de 1984 os intelectuais e os artistas exilados retornaram ao seu país e hoje são substituídos por emigrados sem formação particular, vindos principalmente de goiás, e que esperam melhorar sua situação econômica instalando-se em Bruxelas.

Segurando a mão de aparecida

Depois de ter-me casado com uma carioca, mergulhei na história desse país gigantesco, tão diferente da pequena Bélgi-ca pelo tamanho e pelo céu. Devo minha primeira leitura em língua portuguesa à minha sogra, que ofereceu-me o livro fun-dador da identidade brasileira, Casa Grande e Senzala, de gil-berto Freyre.

em 1999, a Comunidade francesa da Bélgica propunha para seu concurso anual de novelas o tema do nascimento. Voltou-me à memória que o Brasil procedeu por etapas para chegar à abo-lição total da escravidão em 1888. Uma dessas etapas foi a Lei do Ventre Livre. lembrei-me da imagem de uma jovem mulher

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negra. Chama-se aparecida. Fiz dela a heroína de uma história que se passa em um engenho. aparecida é uma escrava, mas pela lei de 1871 o filho que espera já é livre. Jamais conhecerá, como seus pais, o trabalho servil. No tenso contexto social e político da época, Aparecida Ventre Livre ilustra o nascimento em um plano duplo: nascimento de um filho chamado Solto, mas esse Solto re-presenta, sobretudo, um nascimento para a liberdade. Aparecida Ventre Livre recebeu o primeiro prêmio da novela e foi publicado em La Libre Belgique antes de ser traduzido para o português em um jornal de Curitiba.

Para um belga que atravessa seu país de ponta a ponta em al-gumas horas, é presunçoso falar do imenso Brasil. Colocando-me a pergunta: ‘Como se pode ser brasileiro?’, tentei respondê-la por meio de um subterfúgio narrativo. Fico em Copacabana e faço uma espécie de caderno de rascunhos. em meu carnê de notas, anoto as coisas vistas, evocações históricas, faço comparações en-tre essa terra nova e o que Jean de léry chamava les pays d’en

deçà. resulta um livro que tem por título Carta de Copacabana a Christophe que ficou em Courtelande; Courtelande sendo, na ocorrência, meu país de origem, a Bélgica. essa carta sublinha muitas vezes de modo um tanto irônico o que nos une e nos se-para, em toda fraternidade.

Quando o céu se mostra baixo e qu’il belge, como dizia Mi-randa, lembro-me de aparecida, pego a mão dessa mãe-coragem que soube, em meio ao pior dos abandonos, dar vida à liberdade. (Tradução Virginia gomes ribeiro)

Paul G. Dulieu é diplomado em Sociologia e Linguística, trabalhou para a Universidade Católica de Lovaina, para o Instituto de Artes de Difusão e para o Fundo das Nações Unidas para a População an-tes de exercer atividade de jornalista. Tem sólidos laços com o Brasil e escreveu canções, peças de teatro e novelas, estas últimas editadas por revistas belgas e brasileiras. Sua novela aparecida Ventre livre recebeu o Grand Prix de la Libre Belgique em 1999.

a inserção dos trabalhadores brasileiros migrantes no mercado de trabalho belga

M a r t i n r o s e n f e l d e B e a t r i z C a m a r g o

O Brasil, tradicionalmente um país de emigração, combina atualmente essa tendência migratória com uma imigração

significativa, formando fluxos migratórios complexos (Padilla & Póvoa Neto, 2012). este artigo descreve e discute as características do último momento migratório brasileiro. está organizado para enfocar as migrações brasileiras e as oportunidades no mercado de trabalho na Bélgica.

De fato, o Brasil foi uma terra de destino para os europeus até o início da ditadura civil-militar, nos anos 1960. Todavia, a partir de 1964, intelectuais e sindicalistas expulsos pelo regime ditato-rial foram em grande parte à europa. eram, em geral, pessoas altamente qualificadas, que se inseriram facilmente no mercado de trabalho europeu (Padilla et Peixoto, 2007). Uma parte dessa leva migrante retornou ao Brasil com a lei de anistia em 1979, trazendo consigo uma imagem positiva dos países de acolhimento, inclusive da Bélgica, como nações receptivas e com um mercado de trabalho atrativo.

No final dos anos 1970, teve início uma imigração econô-mica de profissionais altamente qualificados. esse movimento cresceu no início dos anos 1980 com a crise brasileira motivada, principalmente, pela dívida externa e a estagnação do projeto de desenvolvimento industrial, que havia sido, desde os anos 1930, a base do crescimento econômico brasileiro (Pochmann, 2009). a balança migratória se invertia, progressivamente, e o Brasil se tornava, nessa segunda vaga migratória, um país de imigração (assis, 1999).

Padilla (2007) aponta que a chegada do século XXI trouxe uma massificação e uma ‘proletarização’ das migrações brasileiras ru-mo à europa. Isto é, essa terceira vaga migratória é caracterizada por pessoas pertencentes à classe média baixa, cuja inserção no mercado de trabalho se dá principalmente em setores menos qua-lificados e, consequentemente, menos valorizados. Os principais países receptores dessa migração são estados Unidos e Inglaterra. Os atentados de 11 de Setembro nos estados Unidos e ao metrô de londres, e a consequente restrição do controle migratório, como revelam Padilla e Peixoto (2007), contribuíram para o desvio dessas migrações principalmente para países como a Bélgica.

Migrações brasileiras e oportunidades de trabalho

O fluxo expressivo de migrantes de classe média baixa é favo-recido na europa por uma estrutura de oportunidade específica: a possibilidade de entrar no espaço Schengen como turista, sem necessidade de pedido de visto de entrada no país. O acordo de Schengen é uma convenção entre países europeus (União eu-ropeia exceto Irlanda e reino Unido, mais Islândia, Noruega e Suíça) sobre a circulação de pessoas entre os países signatários e uma fronteira comum. Brasileiros entram sem visto, mas devem responder a uma série de condições, como provar a estadia e re-cursos suficientes para o período da viagem.

a autorização funciona como porta de entrada, mas não dá acesso ao mercado de trabalho. Há, no entanto, uma relevante

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demanda por mão de obra de baixo custo para os chamados 3-D jobs (Dirty, Demanding and Dangerous) (Castles, 2002). assim, as oportunidades de trabalho no mercado informal, ou ‘negro’, são muitas, sobretudo em setores pouco regulados pelo controle governamental: agricultura, restauração, construção e limpeza.

Nessa direção, rosenfeld et al. (2009) salientam que a migra-ção brasileira tem uma dimensão transnacional por sua mobili-dade entre países europeus e, muitas vezes, também entre Brasil e europa. Para esses pesquisadores, essa mobilidade geográfica está a serviço de um projeto migratório que, na maioria dos casos, é de uma curta estadia na europa, o suficiente para economizar dinheiro e retornar ao Brasil. O percurso migratório na europa se revela, assim, um jogo estratégico entre oportunidades econô-micas e migratórias.

Num continuum migratório, de um lado extremo está o reino Unido, cuja diferença salarial com o Brasil é das mais relevantes, mas cujas leis migratórias são extremamente severas. No outro extremo desse continuum está Portugal, que oferece uma série de vantagens em termos migratórios, principalmente a facilidade da língua e da organização de frequentes campanhas de regulariza-ção, mas com um mercado de trabalho em crise. entre os extre-mos, a Bélgica parece ocupar uma posição intermediária, por sua proximidade de Paris – porta de entrada privilegiada dos turistas brasileiros – e a relativa facilidade de integração no mercado de trabalho informal local.

Nichos étnicos e mercado de trabalho belga

a repartição de trabalhadores brasileiros entre setores pouco regulados da economia belga é marcada: 72% dos homens estão empregados no setor da construção, enquanto 68% das mulheres trabalham no setor da limpeza (OIM, 2009). a grande concen-tração de brasileiros nesses dois setores revela a existência de ni-chos étnicos (Waldinger, 1994) que estruturam esses empregos. embora somente 15% dos brasileiros trabalhassem nesses setores antes de sair do Brasil, a diferença salarial é um importante ponto de decisão. Isto é, apesar do desnível entre a profissão exercida no Brasil e a atividade profissional na europa, metade dos brasileiros empregados nesses setores na Bélgica ganhavam menos de 300 euros por mês no Brasil (OIM, 2009).

a Bélgica oferece, assim, numa lógica de divisão de gênero do mercado de trabalho, um nicho de emprego para as mulheres brasileiras, no setor da limpeza, e, para os homens brasileiros, na construção. é importante ressaltar que, antes de sua integração na União europeia, trabalhadores portugueses, e em seguida polone-ses, ocuparam, por sua vez, esses mesmos setores, movimentando o que Waldinger (1994) denomina ‘o jogo étnico da dança das ca-deiras’ entre as nacionalidades (game of the ethnic musical chairs).

Os homens brasileiros na construção

O mercado belga da construção depende, de maneira estru-tural, de uma mão de obra barata, flexível e sem proteção social

ou legal. esse setor pouco regulado da economia nacional atrai, assim, principalmente trabalhadores migrantes, como brasileiros que entraram como turistas e se encontram em situação irregular de estadia, sem acesso legal ao mercado de trabalho. eles entram no setor da construção – com ou sem experiência – e principal-mente no subsetor das finalizações: pintura, forro e, sobretudo, como colocadores de placas de gesso (gyproc) para o forro. a es-pecialização no subsetor de forro com placas de gyproc apresenta duas vantagens. em primeiro lugar, é uma tarefa bem definida, que pode facilmente ser terceirizada pela empresa responsável pela obra. em segundo lugar, é uma atividade indoor, isto é, rea-lizada no interior da obra e por isso menos visível – mais segura –, ideal para um trabalhador em situação irregular.

No setor de construção, há uma complexa rede de relações que se estabelece entre grandes empresas e pequenas ou micro empresas terceirizadas. Com frequência, há um mestre de obras português, um ‘patrão’ brasileiro, que não é senão o encarregado pela obtenção e controle da mão de obra e, enfim, o trabalha-dor brasileiro. Nessas articulações, não é raro que o intermediário guarde a metade do salário, e o trabalhador que o realizou recebe, apenas, entre dez a cinco euros a hora trabalhada, dependendo se o trabalho é especializado ou não.

O setor do care: limpeza e cuidado

O chamado global care chain, ou redes globais de cuidado (Hochschild, 2000), contribuem para o aumento da demanda por serviços no setor do care (cuidado). Na Bélgica, a demanda se traduz em oportunidades de trabalho na limpeza e no cuidado de crianças e de pessoas idosas em domicílio. é comum que as trabalhadoras brasileiras se insiram nesse setor, começando por um trabalho de serviço doméstico que exige que a trabalhadora durma no emprego, o que lhes permite economizar uma parte do salário, acelerar o aprendizado da língua e minimizar os riscos de fiscalização nas idas e vindas de/para o trabalho. No entanto, a si-tuação exige forte implicação emocional, pela proximidade com o empregador, o isolamento e a falta de controle sobre o tempo trabalhado, uma vez que a linha entre o trabalho e o repouso é por vezes mal definida.

embora essa modalidade de trabalho seja preferida por algu-mas brasileiras recém-chegadas, a maioria procura uma posição como trabalhadora doméstica em uma família sem exigência de dormir no emprego, ou como faxineira, em que trabalham por hora. essa modalidade de trabalhar por hora oferece mais ma-leabilidade na gestão dos horários, necessária quando crianças acompanham o projeto migratório, mas implica, também, uma constante busca de um número suficiente de empregadores para completar a grade horária semanal, o que pode ser um motivo de estresse.

além da limpeza em domicílio, outras oportunidades de tra-balho para os brasileiros com ou sem estadia regular são ofereci-das por empresas de limpeza profissional. O setor é, todavia, bem distinto do mencionado acima, sendo fisicamente mais pesado e

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mais sujeito à fiscalização do trabalho. essas características, soma-das a horários de trabalho nem sempre fáceis (jornadas noturnas e frequentemente irregulares), fazem com que ele seja ocupado, em sua maioria, por homens. em 2010, dois terços das infrações constatadas pela fiscalização do trabalho na Bélgica nesse setor envolviam brasileiros, com 575 casos (SIrS, 2011).

Conclusão

O século XXI trouxe ao Brasil um desenvolvimento econômi-co significativo que, como aponta Pochmann (2009), favoreceu simultaneamente as classes socioeconômicas mais pobres e mais ricas da sociedade, e na qual a classe média foi a menos beneficia-da com a mobilidade social. O foco deste texto foi, especialmente, a classe média inferior, que representa a maior parte do fluxo de trabalhadores brasileiros vivendo hoje na Bélgica. Para essa popu-lação, a migração para o exterior é uma forma de desbloquear a mobilidade social que eles não conseguem no Brasil, principal-mente por falta de especialização profissional.

Na Bélgica, a migração é, com frequência, familiar e parece se organizar de maneira complementar em cada casal, em nichos étnicos específicos e marcados pelo gênero. assim, as mulheres en-contram principalmente trabalhos regulares e seguros, que permi-tem uma renda estável. Os homens, por sua vez, costumam traba-lhar em setores mais expostos, mas cuja remuneração é mais alta.

a falta de regulação do mercado de trabalho, que atinge os dois setores, entretanto, faz com que as dificuldades vividas pelos traba-

lhadores e trabalhadoras sejam semelhantes. Consequentemente, o projeto migratório inicial, de poupar dinheiro a curto prazo, é raramente concretizado no tempo previsto.

À medida que o retorno ao Brasil é adiado, a integração à Bélgica se acentua. as vantagens sociais, em termos de acesso à educação e à saúde, mesmo para migrantes em situação irregular de estadia, contribuem para a evolução do projeto migratório no sentido da perenização, sobretudo se há crianças. as possibilida-des de regularização da estadia e de inserção legal no mercado de trabalho, todavia, continuam raras, e a situação de irregulari-dade pode gerar relevantes tensões no seio da comunidade bra-sileira na Bélgica.

Beatriz Camargo é doutoranda em Sociologia na Universidade Livre de Bruxelas (ULB) e pesquisadora no GERME (Group of Re-search on Ethnical Relations, Migration and Equality). Faz parte da Associação de Migrantes Brasileiros Abraço (www.abraco-asbl.be) e trabalha com temas de pesquisa sobre migração, trabalho e gênero; sua tese de doutorado investiga a formalização do trabalho doméstico em Bruxelas.

Martin Rosenfeld é doutor em Antropologia pela Universidade Livre de Bruxelas (ULB) e pela École des Hautes Études en Sciences Socia-les-EHESS (França). Atualmente é pesquisador no GERME. Seus trabalhos estão apoiados na antropologia econômica e na sociologia urbana e se concentram, principalmente, no fenômeno dos movimen-tos migratórios transnacionais.

a associação arte N’ativa: um pouco da nossa história...I s a b e l D e l a n n o y

Podemos dizer que a associação arte N’ativa, bastante dinâmica atualmente na promoção da arte e da cultura popular brasilei-

ras em Bruxelas, “brotou” das sementes nativas da flora brasileira trazidas para a Bélgica por meio das bio-bijoux produzidas pelas artesãs Flávia e Patrícia Duarte, ambas irmãs de Isabel Duarte De lannoy, coordenadora e presidente da associação.

Com um histórico de militância e envolvimento com temas sociais, ambientais e migratórios, Isabel criou em 2007 o atelier arte Nativa Brasil com o objetivo de difundir na europa o uso das bio-bijoux fabricadas com materiais naturais, como sementes, ma-deira, coco, conchas etc., muito populares no Brasil.

a iniciativa foi, em princípio, uma tímida ação de fomento à prática de consumo sustentável e promoção da economia popular praticada majoritariamente por mulheres à margem do mercado formal de trabalho: esta era a realidade das irmãs Duarte (Flávia e Patrícia) entre outras artesãs do estado da Paraíba, que foram as primeiras protagonistas envolvidas no projeto que se pretendia solidário e transformador. Evento promovido pela associação Art N’Ativa.

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Com o passar do tempo, outras pessoas, sonhos e ideias se juntaram à iniciativa. Nesse período, Isabel encontra alessandra, jovem empreendedora e com aguerrida motivação artística, ingre-dientes fundamentais para o avanço das ações. as duas buscaram conhecer melhor o mundo associativo belga e se lançaram no de-safio de criar algo mais amplo e mobilizador. Com a oficialização da associação em 2011, juntaram-se a elas outros membros que trouxeram boa dose de dinamismo à equipe, como Myriam Mar-ques, animadora cultural, e Cleverson de Oliveira, artista plástico.

Nesse mesmo ano a associação foi selecionada para participar do festival europalia – tradicional bienal de artes, que acontece há 30 anos em Bruxelas e outros países da europa, cuja edição 2011-12 teve o Brasil como tema. Coube à associação a respon-sabilidade de propor, organizar e gerir os eventos culturais do Club Brasil, café musical e ponto de encontro do evento.

a realização de cerca de 50 manifestações artísticas com ar-tistas brasileiros residentes na europa (música, dança, artesana-

to, festa popular), no Club Brasil, trouxe à equipe arte N’ativa a maturidade para se estabelecer como uma importante associação sem fins lucrativos (asbl) de promoção cultural na comunidade.

a partir disso...

após o sucesso da europalia, conquistamos outro espaço lo-calizado no coração de Bruxelas, o Micro Marché, onde foi pos-sível manter o projeto de difusão da arte e da cultura brasileiras, com a realização de concertos, mostras, saraus poéticos, vernis-sages, exposições, workshops, ateliers de reciclagem etc.

além dos eventos, a equipe investiu ainda no capital social, realizando o primeiro encontro informativo com ênfase na ade-são de novos membros a fim de fortalecer o trabalho associativo e a inclusão de novas ideias e projetos. a iniciativa foi de grande sucesso e resultou na adesão de vários atores sociais munidos de bons projetos e interesse na participação ativa, como, por exemplo,

Curso promovido pela associação Arte N’Ativa.

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Camélia Prado, educadora da área de Saúde Pública, Thierry Van Schuylenbergh, terapeuta bioenergético, Philippe Quevauviller, professor/músico, grazielle Furtado e ricardo ambrósio, bailari-nos contemporâneos, Paola Depienne, educadora/coaching, José Álvaro e Matheus groove, músicos, Dudu e Christiane, voluntá-rios, entre vários outros.

atualmente, a organização conta com mais de 20 associados e continua na promoção da arte e da cultura popular brasileiras, realizando projetos como “Samba dos amigos”, Via MPB, I roda de Choro de Bruxelas, Forrobodó, além da promoção de artistas brasileiros que estão ou que estiveram apenas de passagem pela europa, como a cantora/compositora Déa Trancoso, o maestro percussionista Caíto Marcondes e o músico pesquisador alfredo Belo DJ Tudo.

assim, há mais de três anos atuando de forma ativa e gregária, a associação arte N’ativa – cuja “semente nativa” traz em seu cerne os ideais de inclusão e participação – vem crescendo e se desenvolvendo a cada dia, e funcionando como uma incubadora de sonhos, que identifica e valoriza o potencial criativo da comu-nidade através de seus membros, que são profissionais de diversas áreas e cujos sonhos, ideias e projetos são acolhidos, compartilha-dos e realizados.

a associação aglutina experiências possibilitando aos artistas, trabalhadores sociais e profissionais liberais novas oportunidades de ações inter e multiculturais. a título de ilustração temos alguns

projetos concretos como a Ciranda de Palavras, Rede Eco-Mix e “Pérolas do Mundo”, que têm como objetivo comum fortalecer o senso de solidariedade e cooperação da comunidade, que expressa seus valores e saberes, mantendo viva a identidade e diversidade cultural brasileiras.

Concluindo, a associação arte N’ativa está envolvida na luta pela construção de uma cidadania criativa e planetária, tendo a arte como instrumento de integração e transformação social.

Construção de redes e parcerias

é importante dizer que a Fundação roi Baudouin (FrB) foi uma parceira fundamental em nossa trajetória associativa, pois ti-vemos dois projetos aprovados pelo edital da fundação “Migran-tes: atores da solidariedade”. Outros parceiros são o IC Brussel (Comitê Internacional de Bruxelas); Wervel (grupo de Trabalho por uma agricultura justa e sustentável); o Citizens Vorming Plus (ONg que trabalha com fomação para uma cidadania intercul-tural em Bruxelas); o centro cultural Piano Fabriek; a associação Terra Brasil, e a associação abraço.

Isabel Duarte De Lannoy é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e possui pós-graduação em Cooperação ao Desenvolvimento pela Universidade Livre de Bruxe-las – ULB; é fundadora e atual presidente da ASBL Arte N’Ativa.

Bibliografia sobre emigração brasileiraOs Brasileiros de Torna-Viagem no Noroeste de Portugal. Catálogo exposição Comis-são Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. lisboa, 2000; Maxine Margolis. Goodbye, Brazil: Emigres from the Land of Soccer and Samba. Madi-son, 2013.

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Sobre os estudantes brasileiros

Darrell e. levi. A família Prado. São Paulo, 1977; Mario Baeck. Eenkostschool met klasse. Het Instituut van de Ursulinen in Onze-Lieve-Vrouw-Waver centrum van katholiekemo-derniteit, antuérpia/gand, 2011; Mario Baeck. Le jardin d’hiver de L’Institut des Ur-sulines à Wavre-Notre-Dame, O.-L.-V.-Waver, 1993; Carmen lúcia Oliveira. Flores raras e banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop. rio de Janeiro, 1995. Filme de Bruno Barreto, 2013; anaïs Willmar. Souvenirs de Bruxelles. Bruxelas, 1862; eddy Stols. ‘les étudiants brésiliens en Belgique (1817-1914)’. Revista de Histó-

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Sobre os trabalhadores brasileiros na Bélgica

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