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Quinta da Confusão – O nascimento de um império 1 Quinta da Confusão 1 – O nascimento de um império (Dias 1 – 13)

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Partes I a XX de «O nascimento de um império»

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Page 1: Parte I a XX

Quinta da Confusão – O nascimento de um império

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Quinta da Confusão

1 – O nascimento de um império

(Dias 1 – 13)

Page 2: Parte I a XX

Quinta da Confusão – O nascimento de um império

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Cronologia do volume

Época inicial

Época da fundação do império

I Revolução dos Transportes

III Guerra dos Animais

Dia 1 Dia 2 Dia 3 Dia 5

Os animais de dezenas de quintas em todo o mundo tornam-se racionais

Conclusão do Celeiro-forte

Início da Fuga do Mercado

Inauguração do 1º edifício da Quinta da Confusão

Fim da 2ª Batalha da Quinta da Confusão

Abertura da feira e da Casa da Moeda

Descoberta do fogo

Início da captura animal

Dia 7 Dia 6 Dia 8

Esgotamento do ferro na Quinta da Confusão

Invenção da carruagem

Fundação da indústria da uva

Descoberta da Mina de Ouro da Quinta da Perfeição

Partida de um grupo de 3 cartógrafos numa expedição

Descoberta da Mina de Carvão da Quinta da Perfeição

Início da queda da produção de ouro no império

Descoberta do Rio Douro

Invenção da pólvora

Dia 9 Dia 10 Dia 11

I Guerra dos Animais Despovoamento II Guerra dos Animais

Dia 6

Dia 5 III Guerra dos

Animais

Despovoamento da Quinta da Confusão

Guerra contra a Quinta da Perfeição

Guerra contra a Herdade dos Ovos

Invenção do comboio hipomóvel

Invenção da estrada empedrada

Descoberta da Mina de Carvão da Herdade dos Ovos

Inauguração da Linha Azul

Guerra contra a Quinta do Douro

A Mina de Carvão da Quinta da Perfeição torna-se a única activa do império

Abertura do Porto Além - Cascata

Surgimento do primeiro ladrão do império

Inauguração das Salinas da Foz do Douro

Construção da primeira casa do império

Dia 4

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Quinta da Confusão – O nascimento de um império

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Época do aparecimento da república

Continuação no volume 2, «Uma terrível guerra civil»

Legenda

• Verde - Palavras \ expressões da narrativa que estão inseridas no glossário do final do livro.

• Azul - Textos \ documentos que estão inseridos nos anexos do final do livro.

Dia 12 Dia 13

Fundação da indústria dos ovos

Invenção do carro a vapor

Morte do ladrão pela polícia

Fundação do Jornal da Confusão

Regularização da produção de ouro do império

Implantação da república na Quinta da Confusão

Fundação da indústria automóvel

Fundação da indústria dos morangos

Invenção dos navios de corrida a vapor

11:00

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Quinta da Confusão – O nascimento de um império

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Prólogo

A fundação da Quinta da

Confusão

17 de Fevereiro de 1954

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Quinta da Confusão – O nascimento de um império

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Estava a ser um Inverno especialmente rigoroso em Trás-os-Montes, o de 1954. As temperaturas rondavam os -10 graus Célsius. A neve caía desde o dia anterior, e tinha coberto os campos todos. Por causa disso, quase não se via ninguém nas estradas transmontanas. Os únicos veículos que circulavam pelas vias eram carros de bois carregados de lenha, cujo destino eram as lareiras dos seus proprietários. Poucos eram os carros que andavam pelas estradas cobertas de neve. Um deles andava na estrada que ia do Porto a Freixo de Espada à Cinta, paralela do Rio Douro. A bordo, seguia António Gomes, dono de uma loja com sucesso no Porto até há 5 dias atrás. De origem transmontana e filho de agricultores, abandonara a quinta dos pais quando atingira a maioridade e criara uma loja de produtos agrícolas no Porto, que vendia os produtos da quinta dos pais a baixos preços. Como eram totalmente biológicos, crescendo apenas com adubos naturais, a loja rapidamente conseguira grande reputação na zona. Mas, em 1953, António quis regressar à vida rural, onde vivera em criança. Para isso, vendeu a sua loja ao irmão e comprou um terreno perto de Carrazeda de Ansiães, no sudoeste do distrito de Bragança, e lá fundou a sua quinta, a Quinta da Confusão. Quando a sua nova casa ficou pronta, vendeu a que tinha no Porto e dirigiu-se à Quinta da Confusão, com a mulher e os filhos. Agora, a viagem estava quase a chegar ao fim, pouco faltava para o carro alcançar a quinta ainda em construção. -Pai, falta quanto tempo para chegarmos? – perguntou um dos filhos de António Gomes -Já falta pouco, filho. Daqui a mais alguns km, vamos entrar num caminho de terra e chegaremos à Quinta da Confusão. -Estou ansioso por chegar à quinta. Quero ver como ela é. Deve ser giro viver no meio do campo, acordar com o cantar do galo, tratar dos animais… Vai ser bom – disse o outro filho -Ah, sinto-me tão feliz por voltar à região onde passei a infância. Foram 19 belos anos na quinta dos meus pais, com muito ar puro, comida biológica, carne fresquíssima de vacas e porcos acabados de matar, essas coisas. Ganhámos bastante dinheiro com a loja, mas chegou a hora de voltarmos para o campo – disse António Gomes Poucos minutos depois, o carro saía da estrada principal para seguir por uma estrada de terra batida. Estava coberta de neve, pelo que o carro não ia muito depressa. Por fim, entrou pelo portão da Quinta da Confusão e imobilizou-se, pondo fim à viagem de António Gomes e da família.

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A quinta, naquele momento, estava numa grande azáfama. Vários trabalhadores circulavam de um lado para o outro, carregando tábuas de madeira, sacos de cimento e outros materiais entre os camiões carregados e as construções da quinta: o celeiro, as cavalariças, a pocilga, a vacaria e a casota. A casa para António Gomes e a família era a única a estar pronta. Tinha sido concluída ainda no dia anterior, e ainda cheirara ligeiramente a tinta fresca no seu interior. Um dos homens da quinta, ao ver o carro de António Gomes chegar, aproximou-se, e este reconheceu-o de imediato. Era o engenheiro que tinha projectado todas as construções da Quinta da Confusão, incluindo a casa para ele e a família. António saiu do carro e cumprimentou-o. -Olá, António. Vieste mesmo para ficar, certo? – disse o engenheiro -Exacto – respondeu António Gomes – E trouxe a minha família comigo. A Quinta da Confusão é a nossa nova residência. -Pai, quem é este senhor? – perguntou um dos filhos de António, que entretanto tinha saído do carro -Este, filho, é o engenheiro que projectou todas as construções da Quinta da Confusão. Sem ele, não teríamos aqui nada para além de um terreno descampado – virou-se para o engenheiro – Este é o Afonso, o mais velho, com 12 anos. Dentro do carro está o Aníbal, com 10 anos. -Muito bem, estou a ver – respondeu ele – Bom, a Quinta da Confusão está quase acabada. Os operários deverão acabar as obras antes do pôr-do-sol. A seguir, ficarão com a quinta só para vocês. -Isso é óptimo, pois iremos viver cá a partir de hoje – disse António Gomes – Não nos queres mostrar a quinta, a mim, à minha mulher e aos meus filhos? -Claro. Venham, que eu mostro-vos a Quinta da Confusão. António Gomes e a família seguiram, então, o engenheiro, que os levou até à sua casa nova. Tinha dois andares. No rés-do-chão, ficava a sala, a cozinha e uma despensa, para além de uma casa de banho e uma arrecadação para se guardarem instrumentos agrícolas, lenha e outras coisas. No 1º andar ficavam os quartos: um para António e a mulher, outro para Afonso e Aníbal e ainda um terceiro quarto. António queria fazer dele um escritório, mas a mulher argumentava que ele podia perfeitamente tratar dos seus assuntos na sala, enquanto que o quarto extra seria o quarto dos hóspedes. Também havia uma outra casa de banho, para não ter que se descer as escadas a meio da noite para se ir à casa de banho.

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A casa, por segurança, ficava a 100 metros da ribeira, para no caso de esta transbordar, não a atingir. Ainda assim, era da nascente da ribeira que vinha a água potável da casa. Depois, o engenheiro mostrou à família Gomes as cavalariças. Os operários estavam a montar o tecto, a única parte inacabada do espaço. Tinham espaço para 50 cavalos, pois como a Quinta da Confusão era grande (1.000 metros de comprimento por 500 de largura, estando numa posição este – oeste), teria muitos animais. -Muito interessante. Nem te esqueceste da palha nem nada – observou António Gomes -Temos que dar algum conforto aos animais. Ainda pensei em pôr aquecimento central dentro das suas habitações, mas como eles não o conseguiriam ligar e desligar, acabaria por ser inútil. Mais vale deixá-los só com a palha – disse o engenheiro -E as outras construções? Como são? – perguntou Aníbal -Não são muito diferentes destas cavalariças – respondeu ele – Em conjunto, conseguem comportar 50 vacas, 50 porcos e 50 cães. A contar com os 50 cavalos deste espaço, dá um total de 200 animais. E por falar em animais, os camiões devem estar a chegar.

Ilustração 1 - Mapa da Quinta da Confusão entre 1954 e 2009. Vermelho – Celeiro;

Laranja – Casa da família Gomes; Castanho – Ponte de madeira que cruza a ribeira;

Roxo – Cavalariças; Rosa – Vacaria; Verde-escuro - Casota

-Quais camiões? – perguntou Afonso -Os que irão trazer os animais comprados pelo teu pai, para povoar a Quinta da Confusão. Vamos ao portão, para ajudarmos a desembarcar os animais.

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-Fico bastante feliz por ver tudo isto pronto – disse António Gomes – Até chegar a este ponto, foi uma enorme complicação. De facto, António Gomes vivera momentos complicados para conseguir construir a Quinta da Confusão. Fora em Setembro de 1953, no ano anterior, que decidira mudar-se para o campo. Encontrar e comprar um terreno fora fácil, comprara o local onde agora estava a quinta no próprio mês. O pior fora encontrar quem lhe comprasse a loja e quem lhe construísse a quinta. O engenheiro seu amigo prontificara-se logo a fazer o projecto, mas as empresas de construção civil recusavam-se a construir a Quinta da Confusão segundo esse projecto, alegando que as obras iriam durar para lá do Outono e, em Trás-os-Montes, o Inverno era bastante rigoroso, o que dificultaria bastante as deslocações e o trabalho. Nem mesmo pagando bem António Gomes conseguiu encontrar uma empresa que aceitasse fazer a quinta. Só em Novembro é que as coisas se resolveram. A empresa onde trabalhava o seu amigo engenheiro, como estava bastante ocupada anteriormente, não podia atender o pedido de António, mas em Novembro de 1953 disse-lhe que aceitava construir a Quinta da Confusão sem lhe cobrar mais do que o previsto por se ir trabalhar durante o Inverno. As obras da quinta iniciaram-se nesse mês. Faltava agora vender a sua loja. Quando soube que a Quinta da Confusão começara a ser construída e que ficaria pronta em Fevereiro de 1954, António Gomes tentou vender a sua loja no Porto, convencido de que a sua boa fama lhe traria rapidamente vários compradores. O problema era que a loja, mesmo sendo conhecidíssima no bairro onde ficava, fora dele era totalmente desconhecida. Mesmo fazendo vários anúncios em jornais regionais e nacionais, em 2 meses apenas surgiu um comprador, um empresário de Coimbra, que recusou a proposta. Já desesperado, pois precisava do dinheiro da venda da loja para pagar as obras da Quinta da Confusão, em Janeiro de 1954 António tentou vender a loja a familiares. Dessa vez, teve sucesso. O irmão aceitou a sua proposta e comprou-lhe a loja. Devido às dificuldades que sofreu para poder fundar a quinta, António Gomes decidiu dar-lhe o nome de Quinta da Confusão. Ao passarem pela ponte de madeira que cruzava a ribeira, de 5 metros de largura, o engenheiro viu que os camiões já tinham chegado à quinta. Com a ajuda dos operários, os motoristas estavam a desembarcar os animais. -Venham, filhos. Estão ali mais de 50 animais, temos de os ajudar a desembarcá-los – disse António Gomes

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Com a ajuda da família Gomes, todos os 60 animais foram retirados dos camiões, que se foram embora depois disso. -Pronto. Agora, a Quinta da Confusão está devidamente povoada – disse o engenheiro – Resta esperar que os operários a acabem para ficarem com a quinta só para vocês. Precisamente nesse momento, o chefe da equipa dos operários dirigiu-se ao engenheiro: -Sr. Engenheiro, acabámos a Quinta da Confusão. Conforme está escrito no contrato, queremos receber o pagamento do trabalho. -O pagamento? Certo – disse António Gomes, retirando do casaco um cheque – Muito bem… Aqui está. Todo o dinheiro que tenho de pagar da minha parte. -Sim, de facto está o valor todo – respondeu o chefe da equipa – Bom, vou andando, eu e a minha equipa. Pouco depois, todos os operários tinham abandonado a Quinta da Confusão, juntamente com os seus materiais e equipamentos. -Bom, parece-me que o trabalho está terminado – disse o engenheiro – Despeço-me e até à próxima. -Adeus – respondeu António Gomes – Vemo-nos quando precisar de uma nova construção. -Pai, está a ficar frio cá fora. Vamos para dentro – pediu Afonso -Também acho, filho. Ainda bem que mandámos vir a nossa mobília aos poucos do Porto. Agora, temos uma casa totalmente mobilada. Antes de entrarem em casa, observaram a sua nova quinta. A casa deles, o celeiro, as cavalariças, a vacaria, a pocilga e a casota, tudo dava a sensação de ser novo e moderno. As paredes, acabadas de pintar, reforçavam ainda mais essa sensação. A cerca da quinta e o portão, ambos com 2 metros de altura, delimitavam a quinta, a relva nova demonstrava que aquele espaço estava a ter uso, e a ponte sobre a ribeira, em madeira clara, tinha um aspecto resistente. Era assim a Quinta de Confusão de 1954.

Cinquenta e cinco anos após estes acontecimentos, em 2009, a Quinta da Confusão estava bastante mudada. António Gomes, agora com 90 anos, voltara para o Porto com a mulher, deixando a quinta aos filhos, Afonso e Aníbal Gomes, respectivamente com 67 e 65 anos. Eles

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eram agora dois idosos gordos e preguiçosos, e passavam os dias em casa a ver televisão. Pouco faziam pela Quinta da Confusão, como dar comida aos animais e regar a relva. Uma coisa que faziam frequentemente era capturarem animais da quinta para os irem vender ao Porto, que vendiam a alto preço por serem grandes e saudáveis. Quando regressavam, vinham sempre com novos animais para reporem a população da quinta, que agora tinha 115 animais. O estado da Quinta da Confusão em nada se comparava ao de há 55 anos atrás. A cerca, velha e enferrujada, não era cuidada há anos, e o portão de ferro, igualmente enferrujado, não era fechado há tanto tempo que tinham crescido ervas ao pé dele. A ponte de madeira que cruzava a ribeira tinha desaparecido há vários anos, apodrecida pelos numerosos nevões e chuvadas que enfrentara ao longo da sua existência. O mesmo acontecia às casas dos animais. As paredes de madeira tinham perdido numerosas tábuas deixando entrar correntes de ar, e parte do telhado desabara, pelo que nenhum animal se atrevia a dormir ali, dormindo todos ao relento. O celeiro estava em melhor estado, mas ainda assim era preciso cuidado ao se andar no 1º andar, pois o piso estava velho e enfraquecido. A casa dos donos estava ainda num estado razoável. É nesta situação que os 115 animais da Quinta da Confusão, alguns descendentes dos que foram habitar a quinta em 1954, se vão racionalizar e construir a sua civilização, dentro da quinta. Nesta quinta, velha e abandonada, surgirá o Império da Quinta da Confusão.

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«Querer impedir a marcha da humanidade é como tentar parar uma locomotiva com um palito»

In «O Fantasma da Torre Eiffel», por BLEYS, Olivier

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Dia 1

O início da civilização

Época inicial

1 de Janeiro de 2009

Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom

1 2 3 4

5 6 7 8 9 10 11

12 13 14 15 16 17 18

19 20 21 22 23 24 25

26 27 28 29 30 31

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7:00 Habitantes: 115 Densidade populacional: 230 hab.\km2

Ao som do galo mecânico, os animais da Quinta da Confusão acordaram para o que parecia ser um dia perfeitamente comum. Era o primeiro dia de 2009, mas para os animais isso não significava nada. Apenas sabiam que começara um novo ano porque, no dia anterior, tinha havido uma grande festa na quinta, com churrasco e lançamento de foguetes. Os animais tinham visto, de longe, todos os familiares e amigos de Afonso e Aníbal Gomes, incluindo o fundador da Quinta da Confusão, António Gomes. Tinha 90 anos de idade, mas em tudo parecia ter trinta anos a menos. As festas do Ano Novo eram tristemente célebres entre os animais da quinta, pois sempre que ocorriam, eram abatidos pelo menos dois porcos e uma vaca para alimentarem as cerca de 30 pessoas que compareciam na quinta todos os anos, que depois eram grelhados e servidos com batatas fritas, salada e ketchup.

Deixando de lado essas tristes recordações, os animais foram então fazer a sua vida habitual: andar pela Quinta da Confusão sem nenhum destino em especial e comer umas ervas quando tivessem fome. Uma vez por semana, os donos da quinta capturavam alguns animais para venderem em Bragança ou no Porto, a altos preços porque eram gordos e saudáveis (o que muito admirava os próprios animais, devido à sua fraca alimentação), e habitualmente regressavam com outros mais magros comprados a preços menores. Engordavam na quinta durante meses, ou mesmo anos, e depois eram novamente vendidos. Graças a isso os dois Gomes eram bastante ricos, mesmo não fazendo nada pela quinta. Nem sequer davam carne aos cães, pelo que estes tinham que se alimentar igualmente com ervas. A única coisa que faziam regularmente pelos animais era irem pôr ração ao celeiro, em sacos tão velhos que provavelmente deveriam ter vários anos. Os animais nem tocavam na ração, só indo para o celeiro em dias de tempestade. Robustos e resistentes ao frio, nem se importavam de atravessar a nado a ribeira.

Mas esse dia, 1 de Janeiro de 2009, iria ser o primeiro de uma longa série deles que iria mudar a vida desses animais para sempre. Um dos porcos, sem perceber como, conseguiu pôr-se em duas patas e aguentar-se tão bem como se estivesse apoiado nas quatro. Um cavalo, em vez de relinchar, disse «Mais um dia como todos os outros» em bom português. Uma das vacas conseguiu levantar um pequeno tronco com uma das patas da frente. Rapidamente, os animais da Quinta da Confusão perceberam que se tinham tornado racionais. Conseguiam andar, falar e inclusive ler tão bem como qualquer pessoa. Não sabiam o porquê disso ter acontecido, mas

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de momento também não lhes interessava saber. Um episódio cómico aconteceu quando um cavalo experimentou bater à porta dos donos, para perguntar o que é que havia para se fazer na Quinta da Confusão. Afonso Gomes, quando abriu a porta e se deparou com um cavalo sobre as duas patas a falar português, gritou apavorado «Socorro! Um cavalo falante!» e fugiu pela janela. O cavalo, estranhando a atitude do dono, entrou na casa e sentou-se no sofá, em frente à televisão que estava a dar um jogo de futebol.

Aníbal Gomes, que tinha ido à casa de banho, saiu apressadamente quando ouviu o irmão gritar que estava ali um cavalo falante. Não vendo ninguém, sentou-se no sofá e, sem se aperceber de que ao seu lado estava não o seu irmão mas sim um cavalo, pôs-se a comentar o jogo, o resultado que ele esperava, a forma física dos jogadores e outras coisas. O cavalo, sem perceber nada, lá ia respondendo como calhava: «Sim»; «Não»; «Pois é»; «Concordo» e outras expressões. Quando ia na escolha dos jogadores em jogo pelos treinadores, Aníbal olhou pela primeira vez para a sua esquerda e finalmente, apercebeu-se de que estivera a falar para um cavalo aquele tempo todo. Este, atrapalhado, apontou para a janela e disse «O seu irmão foi por ali». Aníbal olhou com um ar apavorado para a janela, depois para o cavalo, e por fim saltou do sofá e fugiu pela janela a gritar como o seu irmão. Quanto ao cavalo, tão atrapalhado como os donos estavam assustados, preferiu sair da sua casa e pensar nas coisas que havia de fazer noutro sítio.

Esse problema não afectava só o cavalo que estivera na casa dos donos, pois nenhum dos animais fazia ideia do que havia de fazer agora que era racional. Mas um deles teve uma ideia brilhante: organizar-se uma reunião entre todos os 115 animais da quinta para que em conjunto se decidisse o futuro da nova Quinta da Confusão. A ideia foi logo aceite, pois vários animais foram a correr divulgar a notícia pela quinta. Deu-se o nome de Conselho da Quinta da Confusão ao acontecimento que se ia iniciar.

7:30 Eram 7:35, segundo os donos, quando se iniciou oficialmente o

Conselho da Quinta da Confusão. Mas, para esse concelho acontecer, foi preciso uma série de passos. Primeiro, tiveram que chegar todos os animais da Quinta da Confusão ao local escolhido, que era o celeiro. Depois, tiveram que se escolher três animais para serem, respectivamente:

• O presidente do conselho, cuja função seria escolher os animais que iriam falar e dar ideias; decidir os temas a debater e levá-los a votação caso fosse preciso e, por último, declarar aberto e encerrado o conselho

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• O secretário, cuja função seria registar por escrito tudo o que se achasse importante para depois criar o Relatório do Conselho, que conteria todas as conclusões do evento

• O contabilista, cuja função seria, em caso de votação, contar os votos de cada uma das propostas, ditar o seu número ao secretário e declarar a que saíra vencedora

Por último, foi necessário pedir aos donos algo para o secretário poder escrever. Estes, ainda mal refeitos do susto que apanharam com o «cavalo falante», lá entregaram uma caneta e algumas folhas de papel. Como todos os animais da Quinta da Confusão iam estar no conselho, pelo que os donos ouviram, estes, curiosos, acabaram por ir também para o celeiro, onde assistiram à reunião do andar superior, no mesmo local onde estavam o presidente, o secretário e o contabilista. No rés-do-chão, no meio de todas as coisas velhas e cheias de poeira do celeiro, estavam 112 animais distribuídos por 4 filas de 28 cada.

Às 7:35, o presidente do conselho declarou o seu início, com a questão dos nomes dos animais. Segundo ele, os animais tinham que ter nomes para se poderem distinguir uns dos outros. O problema era: que nomes é que deveriam ser atribuídos? O presidente ouviu várias opiniões, até que escolheu duas propostas para votação. Uma sugeria que os animais tivessem os mesmos nomes das pessoas. A outra sugeria que o nome do animal fosse o da sua espécie seguido pela ordem de chegada à Quinta da Confusão. Ou seja, o porco 1, entre todos os porcos da quinta, seria o que lá estava há mais tempo, o porco 2 o segundo e por aí fora. Realizou-se então a votação de uma maneira simples: quem se levantasse quando o presidente repetisse a primeira proposta dar-lhe-ia um voto, quem se levantasse quando o presidente repetisse a segunda dar-lhe-ia um voto, quem não se levantasse em nenhuma daria um voto nulo. A segunda proposta foi a vencedora, com mais de 90 votos. Agora, era altura de atribuir os nomes aos animais de acordo com a sua ordem de chegada à Quinta da Confusão, algo que duraria até às 8:30.

8:30

Habitantes: 85

Terminaram as escolhas dos nomes dos animais, quando o último dos 115 recebeu o seu nome. O secretário, um cavalo que recebera o nome de cavalo 3, apontou tudo nas folhas que recebera dos donos. Aliás, foi graças à ajuda dos registos que os donos forneceram que o estudo foi concluído. O cavalo 3 era um dos animais mais antigos da Quinta da Confusão, apesar de ser novo. Nascera na quinta em 12 de Dezembro de 2005, enquanto que o animal mais antigo da quinta chegara lá em Outubro de 2004 (já lá iam 4

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anos e 3 meses). Ficou também estabelecido que, mesmo que quase todos os animais da quinta fossem mortos ou vendidos, o nome desse animal manter-se-ia.

Todavia, o conselho ainda não estava concluído. Faltava decidir o que os animais iriam fazer agora que eram racionais. Fez-se um levantamento das prioridades e necessidades dos animais: abrigo, comida (com o frio e a neve, as ervas escasseavam, e eram cada vez mais os animais que já tinham passado um dia inteiro sem comer) e aquecimento. O tema foi a votação, e a comida foi eleita a principal prioridade dos animais. Era necessário cultivar ervas para alimentar os 115 animais da Quinta da Confusão, para que a fome fosse erradicada da quinta. E, para espanto dos donos, o último tema do conselho foi o que se fazer com os donos, que nada tinham feito pelos animais: deixá-los estar onde estavam, elegê-los presidentes da Quinta da Confusão (para que fossem eles a comandar os animais e a dirigir o desenvolvimento da quinta) ou expulsá-los permanentemente. A primeira hipótese ganhou por apenas 3 votos contra a última, que os expulsaria para sempre da Quinta da Confusão. Os donos ficaram furiosos por verem o seu destino decidido por «um bando de bichos falantes que pensam que são os donos da quinta só por saberem andar sobre as duas patas», segundo as suas palavras, e abandonaram de imediato o celeiro. Terminava assim o Concelho da Quinta da Confusão, que decidira assim o futuro dos animais ao dar-lhes nomes, ao decidir a sua principal prioridade e ao manter os donos na quinta.

O seu relatório ocupava uma página de frente e de verso e ainda metade da 3ª página, sendo que ficou na posse do cavalo 3 depois de ser escrito (ficou pronto 5 minutos depois do fim do conselho). Muitos dos animais já estavam a pensar em como iam cultivar ervas com a Quinta da Confusão coberta de neve quando entraram no celeiro os donos. Mas, para horror dos animais que estavam no celeiro (alguns já tinham saído), eles não estavam sós. Atrás deles, vieram pelo menos 20 pessoas armadas com laços e espingardas que lançavam dardos tranquilizantes, que adormeciam os animais fugitivos. Os habitantes da Quinta da Confusão conheciam bem os seus efeitos. Bastava um dardo desses atingir um animal e em segundos este adormecia, para só acordar dentro do camião em movimento ou no mercado. E nunca nenhum animal da Quinta da Confusão que entrara nos camiões regressara alguma vez à quinta, portanto os animais sabiam que a viagem era só de ida. Uma vez no mercado, só sairiam dali para outra quinta que não a Quinta da Confusão. Os porcos e as vacas que tinham sido comprados pelos donos diziam que os prendiam dentro de uma cela com palha e um bebedouro, no meio de várias outras celas cheias de animais da mesma espécie. Certos animais das suas espécies eram levados para uma sala a que as pessoas chamavam o matadouro. Não sabiam que sala era essa, só sabiam que, à excepção das pessoas, quem entrasse ali não sairia

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com vida. Quanto aos cães e porcos, eram simplesmente presos no mercado, na zona destinada aos animais vivos.

Os recém-chegados eram funcionários de uma empresa especializada em captura e transporte de animais, cuja função era levarem os animais das quintas para o mercado e vice-versa. Estes empunharam os laços e as espingardas e, em segundos, vários animais caíram anestesiados no chão e outros foram enlaçados pela cintura. Os sobreviventes tentaram fugir pela porta das traseiras, mas as dobradiças estavam tão enferrujadas que a porta não abria de maneira alguma. O próprio presidente do Conselho da Quinta da Confusão, juntamente com o respectivo contabilista, foi anestesiado e levado para os camiões. E seria esse o destino do cavalo 3 se este não se tivesse escondido dentro de um velho armário, juntamente com o relatório do conselho, durante duas horas e meia. Os donos estavam felizes, pois assim não só se estavam a livrar de uma ameaça como iriam ganhar muito dinheiro com a venda dos animais (os animais racionais valiam, pelo menos, o triplo dos irracionais no mercado, porque esse fenómeno surgira em todo o mundo e no mesmo dia). Em apenas 10 minutos, 30 animais foram apanhados e metidos nos camiões. Tinha começado a I Guerra dos Animais, entre os donos (com 20 funcionários temporariamente ao seu serviço) e os animais da Quinta da Confusão (85 animais).

11:00

Habitantes: 55

Duas horas e meia depois do seu início, a I Guerra dos Animais alcançou o seu auge, com a chegada de mais 40 funcionários da empresa que se juntaram aos restantes 20. O reforço fez com que mais 30 animais fossem capturados e metidos nos camiões num espaço de 15 minutos (até aí, eles tinham conseguido escapar aos funcionários, até porque estes não se afastavam mais de 100 metros do celeiro). Quanto aos restantes, perceberam que não havia ninguém na margem direita da ribeira e mesmo perseguidos pelos funcionários, conseguiram alcançar a outra margem. Enquanto nenhum funcionário contornasse a ribeira (eram 500 metros até à nascente, a partir do limite norte da quinta, e mais 500 até ao outro lado da quinta) ou a atravessasse no barco a remos dos donos, estavam a salvo. Agora, já se podia começar a cultivar ervas para erradicar a fome da Quinta da Confusão. Mas rapidamente os animais se aperceberam de que tinham outros problemas:

a) Não tinham sementes de ervas; b) Não tinham instrumentos para lavrar e semear a terra; c) Não tinham maneira de limpar a neve da Quinta da Confusão (30 a

40 cm de altura);

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d) Mesmo que conseguissem limpar a neve, o clima estava tão frio que as ervas nunca cresceriam

No Conselho da Quinta da Confusão, tinha-se decidido cultivar ervas em larga escala, mas não se tinha decidido como o fazer, pensavam os animais. Sabiam que as ervas davam sementes, mas não valia a pena irem procurar ervas crescidas porque não deveria haver uma única naquela zona. A única hipótese era o celeiro, que deveria ter sacos com sementes de erva. Essa opção poderia ser boa, se o celeiro não estivesse rodeado por 60 pessoas prontas a capturarem o primeiro animal que se atrevesse a aproximar. Os funcionários não se afastavam do celeiro porque achavam que os animais, mais tarde ou mais cedo, iriam voltar à margem esquerda da ribeira, pelo que não valia a pena perseguirem-nos pela Quinta da Confusão e gastarem munições (o sonífero era caro). E estavam certos, pois os animais tinham que ir buscar sementes de ervas ao celeiro. Para protegerem os 10 animais que se ofereceram para ir buscar as sementes, cortaram-se grandes pedaços de casca de árvore para fazerem de escudo, com um pau espetado a fazer de pega. Mas ainda assim, os animais estavam desprotegidos nos lados e atrás, pelo que tinham que ser rápidos a alcançar o celeiro, arranjar as sementes e voltar para a margem direita da ribeira, onde estariam seguros.

Os primeiros 100 metros foram feitos com facilidade, porque no fim desse percurso havia a casa dos donos. Os 10 animais puderam, assim, refugiar-se atrás da parede, e espreitando pela esquina, viram o seu alvo: o celeiro. E, no caminho, mais de 20 funcionários armados com laços e espingardas rondavam de um lado para o outro, em busca de animais. E, para azar dos aventureiros, um deles deu com os animais a espreitarem pela esquina e desatou a correr na sua direcção, empunhando o laço. Os animais não tiveram hipótese senão entrarem na sala de jantar dos donos pela janela (que até estava aberta) e fugirem do funcionário por dentro da casa. Mas não tiveram sorte. Assim que os primeiros 2 saíram pela janela no lado oposto da casa, viram-se rodeados por 30 funcionários avisados pelo mesmo que os vira a entrar na casa dos donos (os outros 30 estavam a patrulhar a zona atrás do celeiro). Os animais, ao verem que antes de conseguirem furar o cerco seriam capturados, voltaram para dentro de casa e, com os restantes 8, fugiram para a porta da frente, seguidos pelos 30 funcionários que iam entrando um a um pela janela dentro da casa dos donos. Os animais saíram pela porta da frente e, correndo pela neve, rapidamente galgaram os 100 metros que os separavam do celeiro.

Todavia, assim que cruzaram a entrada da construção, viram Afonso e Aníbal Gomes a barrar-lhes o caminho, armados como os funcionários da empresa que tinham contactado. Estes perguntaram-lhes, com ironia «Vão a algum lado, caros senhores?». Os animais responderam-lhes, um pouco

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atrapalhados «Bem… Viemos buscar sementes de ervas. Por acaso sabem se está aqui algum saco delas?». Estes perceberam o que lhes ia acontecer se não reagissem quando Aníbal Gomes lhes respondeu, com o mesmo tom de ironia: «Oh, sim, estão ali muitos sacos de sementes de ervas, ali no canto. Comprámo-los há mais de 10 anos, quando ainda tínhamos paciência para semear e lavrar a terra. E se foi só por isso que vieram até cá, os meus parabéns. Para premiar esse acto de ousadia, vamos oferecer-vos uma estadia no mercado». Dito isto, puxou da espingarda e tentou acertar com um dardo tranquilizante num dos animais, mas o alvo arrancou-lhe a arma das mãos e bateu-lhe com ela na cabeça, atirando-o ao chão. Todavia, Aníbal era robusto, pois levantou-se de imediato e deu um murro no animal que o fez largar a espingarda. Estalou assim uma luta entre Afonso e Aníbal Gomes e 6 dos animais, porque os restantes 4 fizeram uma descoberta maravilhosa: encontraram um carrinho para transporte de sacos junto às sementes de erva. Assim, puseram-se a carregar o carro com os sacos de sementes, enquanto que os 6 companheiros lutavam contra os donos. Estes tinham 65 e 67 anos, e estavam sozinhos contra 6 animais, mas batiam-se ferozmente contra os adversários. Moviam-se com uma agilidade de pessoas de 30 anos, e apesar de terem levado uma sova, também deram uma tareia aos animais.

Quando o carro ficou carregado (cada saco pesava 50 kg), os 4 animais chamaram os companheiros para os ajudarem a empurrar o carro até à ribeira. E o peso do carro rapidamente fez notar aos animais que estes não tinham pensado num aspecto importante: a maneira de levar os sacos de sementes até à margem direita da ribeira, onde estariam a salvo. Os donos, pensando que eles não iriam a lado nenhum com aquele carro, ficaram a ver a situação sem mexerem um dedo para ajudar os animais. Mas, com a ajuda de todos eles, o carro começou a mover-se e em breve saía do celeiro. Só aí Afonso e Aníbal Gomes perceberam que eles iam fugir e começaram a correr na sua direcção, para os deterem. Mas, antes de saírem do celeiro, do 1º andar do celeiro surgiu um cavalo, com uns papéis enrolados na pata. Este tomou balanço e, saltando do andar, atirou-se para cima de Aníbal Gomes (de uma altura de 5 metros), mandando-o ao chão. Depois, com a sua própria corda, amarrou-lhe os pulsos atrás das costas rapidamente, para não ir atrás dos seus companheiros. Tratava-se do cavalo 3, refugiado num armário do celeiro desde o começo da I Guerra dos Animais, e que vira todo o episódio através das frestas das tábuas do chão. Então, o animal começou a perseguir o carro, seguido por Afonso Gomes, que estava a rolar cada vez mais depressa. Aquele terreno era uma encosta muito pouco inclinada, quase não se percebia que era uma descida, mas chegava para o carro carregado acelerar cada vez mais. Os animais que o empurravam viram-se obrigados a subir para o carro e, apertados, aguardar que este parasse. O cavalo 3 conseguiu alcançar o carro mas, para horror dos

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animais, foi seguido por Afonso, que se agarrou à barra do carro. Os funcionários puseram-se à frente do carro para obrigarem os animais a parar, mas rapidamente perceberam que este não tinha travões e conseguiram pôr-se fora do caminho nos últimos segundos.

O carro prossegui a sua viagem a grande velocidade, sem quaisquer travões, mas ao fim de 200 metros encontrou a ribeira no caminho. Um dos funcionários, ignorando que Afonso Gomes seguia a bordo do carro, pôs a carrinha no caminho do carrinho e encostou-lhe uma série de tábuas a fazer de rampa, na esperança de deter o carro quando este tentasse subir as tábuas. E o plano resultaria se o veículo, nos últimos segundos, não tivesse apanhado uma poça de gelo no caminho. Acelerou tão repentinamente que Afonso, ainda pendurado na barra, quase caía do carro abaixo e, para horror do funcionário e para alegria dos animais, subiu as tábuas e levantou voo. O carro de 1.500 kg (500 kg de carga mais os passageiros) elevou-se a 5 metros de altura e, durante longos segundos, planou sobre a ribeira e depois sobre terra firme. Depois, inclinou-se para a frente e os animais e António Gomes perceberam que ia cair. Mal tiveram tempo para saltarem do veículo, e imediatamente a seguir o carro bater com a dianteira no solo, fazendo soltar bocados de terra e neve. O choque foi tal que o carro voltou a subir, libertando-se da carga, e deu duas cambalhotas no ar até voltar a aterrar, de rodas para o ar. Todos os ocupantes do carro conseguiram escapar ilesos, incluindo António Gomes, que ao ver os sacos de sementes rotos a libertar sementes, percebeu que não conseguiria privar mais os animais de sementes de ervas para semearem, e voltou para casa contornando a ribeira pela nascente. A missão tinha sido um sucesso, pois agora os animais tinham 500 kg de sementes de ervas ao seu dispor.

Mas a situação ainda não tinha acabado. Haviam sementes, mas faltavam instrumentos para lavrar a terra e para extrair a neve. Para a última situação, usaram-se pedaços de casca de árvores para atirar a neve à ribeira à ribeira. Com a ajuda de todos os animais, rapidamente ficaram a descoberto algumas extensões de terreno boas para se cultivar ervas. Mas ainda faltava lavrar o terreno, pois os animais sabiam que, sem isso, não se podia semear um terreno. Acabou por se revolver o problema batendo com uma pedra noutra pedra, para a lascar. Depois, abriu-se uma ranhura num pau grosso, onde se enfiou a pedra lascada. Criava-se assim uma versão primitiva do arado, que resolveu o problema da agricultura na Quinta da Confusão. Assim, os animais puxaram o arado várias vezes pelos terrenos sem neve, e depois lançaram-lhes sementes. Por fim, regaram-se os campos com água da ribeira, sendo que a água foi transportada através de troncos ocos cujo fundo foi tapado com uma pedra grande e plana. Até às 16 horas, seriam lavrados, semeados e regados cerca de 10 hectares de terreno, 40% do território de que os animais dispunham (a metade este da Quinta da

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Confusão, onde os animais estavam, tinha 25 hectares). Restava era saber se, apesar do frio, as ervas cresceriam.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-0 (Aéreos-0) (Marítimos -0) (Terrestres-0) Civil -1 (arado) Construções-0

16:30

Habitantes: 45

Oito horas após o começo da I Guerra dos Animais, os funcionários viram-se forçados a admitir que os animais não precisavam de ir à margem esquerda da ribeira, ao contrário do que esperavam. Chegaram à conclusão de que se eles continuassem ali a rondar o celeiro, os animais nunca seriam capturados. Os donos, assim que foram avisados, ficaram irritados com a sua incompetência (apesar de eles próprios terem passado as últimas 8 horas no celeiro à espera dos animais só saindo para irem almoçar e ir à casa de banho) e ordenaram aos 60 funcionários que levassem os camiões para a margem direita da ribeira, onde sem dúvida poderiam capturar os animais. Para evitar que estes fugissem novamente para a margem esquerda, metade dos funcionários pôs-se junto à ribeira, na margem esquerda, para vigiar os animais e impedir as fugas. E, de facto, a primeira reacção dos animais ao verem os camiões foi fugir para a margem esquerda. Mas, ao verem que estavam 30 funcionários nessa margem a aguardar a sua chegada, mudaram de ideias e decidiram lutar pelo direito a viverem na Quinta da Confusão, pelo direito a não terem que temer todas as semanas o seu despejo para o mercado. Os 55 animais pegaram então nos arados e, usando-os como espadas, avançaram para os funcionários. Começara a Batalha da Quinta da Confusão, por volta das 16:20 segundo os donos.

Os funcionários, ao verem os animais avançarem para eles de arado em riste, ergueram por sua vez as armas e aguardaram que os animais chegassem, certos de que seria fácil capturá-los e levá-los para o mercado. Mas enganavam-se. Os animais manejavam o arado com perícia, usando a pedra lascada como lâmina e o pau a que estava fixada como bastão. Dez funcionários foram feridos, apesar de tudo sem gravidade, e muitos outros foram agredidos com o cabo do arado. Ao fim de dez minutos de combate, os 30 funcionários decidiram desertar. Embarcaram nos camiões e nas

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carrinhas e foram para norte da Quinta da Confusão, onde ficaram à espera dos 30 colegas. A bordo não seguia um só animal, o que representava um momento histórico. Pela primeira vez desde sempre, os animais da Quinta da Confusão tinham conseguido resistir à captura de tal modo que nenhum deles fora levado da quinta. Mas apenas tinham expulsado metade dos funcionários, estando a outra metade na margem esquerda da ribeira distraída, a comentar a inesperada vitória dos animais e a deserção dos colegas. Era necessário expulsar também esses 30 funcionários, mesmo não representando perigo por estarem na outra margem da ribeira.

Importa dizer que os animais, como agora eram os atacantes e não os defensores apanhados de surpresa, não foram desprevenidos. Para evitarem os dardos tranquilizantes, usaram as cascas de árvore utilizadas na remoção da neve dos campos agrícolas como escudos. Então, armados com arados e escudos 100% naturais, os 55 animais atiraram-se à ribeira e nadaram até à outra margem. Quando os funcionários se aperceberam do ataque, já grande parte dos animais estava em terra de arado em riste, pronto para a batalha. O efeito surpresa foi fulminante. Cinco minutos depois, também esses 30 funcionários desertaram após metade deles ter sido ferida pelos arados inimigos, visto não estarem interessados a, para apanharem poucos animais, arriscarem-se a ser feridos com gravidade e acabar no hospital. Os animais, ainda juntos no local da batalha, começaram a pensar que, de facto, a I Guerra dos Animais tinha acabado. Mas, para seu horror, perceberam que não. Da casa dos donos saiu uma carrinha verde de caixa aberta, que parou em frente aos animais. De dentro do veículo saíram os donos da quinta, que para horror dos animais traziam um molho de cordas à cintura. Estes aproximaram-se dos animais, e com um ar solene anunciaram: «Venceram os 60 funcionários, mas não nos vencerão!». Depois, cada um ergueu um laço e pô-lo a rodar sobre a cabeça, numa atitude ameaçadora. Os animais tentaram proteger-se erguendo o escudo e o arado, mas de nada serviu. Os donos desarmavam os animais com o nó grosso da outra ponta da corda, rodando a corda com força e acertando com o nó no arado ou no escudo, arremessando-os para longe. Depois, apenas tinham que recolher a corda e atirar o laço sobre o animal desarmado para o prender. Para evitar fugas, cada vez que prendiam um animal desatavam o nó do fim da corda e voltavam a atá-la a um bloco de cimento com 100 kg, que estava em cima da caixa da carrinha. O animal, por muito que puxasse, não se conseguia soltar pois a corda era forte e o bloco muito pesado.

Os donos prenderam ao todo 20 animais, usando todas as suas cordas e amordaçando-os para não as roerem. Os animais, sabendo que não teriam hipótese de atacar os donos antes de serem desarmados, preferiram fugir. Mas os donos foram atrás deles, e à medida que os iam apanhando, puxavam-nos até a corda chegar aos blocos de cimento que estavam na carrinha. Quando as cordas se esgotaram, os donos foram a casa telefonar

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aos funcionários para dizer que lhes iam entregar 20 animais, que conseguiram capturar usando apenas cordas. Os prisioneiros sentiam-se humilhados, pois após terem combatido e vencido bravamente 60 funcionários bem treinados e armados, foram apanhados por dois idosos armados apenas com cordas, que inclusive os conseguiram desarmar, vencer sem resistência e ainda amordaçá-los. Todavia, um dos animais fez uma fabulosa descoberta: ao pé da carrinha estava caído um arado, que podia ser usado para cortar as cordas e as mordaças. O arado foi passando de patas em patas, cortando cordas atrás de cordas e lenços atrás de lenços, até metade dos animais estar livre. Só que, para horror dos que ainda estavam prisioneiros, os donos viram tudo pela janela e regressaram armados com pistolas. Os animais sabiam que tipo de arma era aquela, pois os donos tinham o costume de caçar aves na Quinta da Confusão, com vários amigos de um clube de caça. Também conheciam os seus efeitos: cada vez que se ouvia um disparo, algures no céu uma ave parava de voar e caía a pique sobre os campos. Aí, o cão mais próximo era forçado a localizar o animal para os donos e os visitantes, que o seguiam nos seus cavalos. Nunca um animal da Quinta da Confusão tinha sido recompensado de forma alguma por fazer esse serviço aos donos. Era por isso que os donos tinham tantos cães e cavalos: quantos mais tivessem, mais aves poderiam localizar e mais amigos do clube de caça poderiam trazer para as suas caçadas. Todos os animais tinham uma função na quinta definida pelos donos: os porcos e as vacas deviam engordar para depois serem vendidos a maiores preços; os cães deveriam encontrar a caça dos donos e os cavalos deveriam levá-los até lá. Todavia, mesmo os cães e cavalos eram substituídos depois de engordarem; quanto mais vezes repetissem esse processo mais os donos enriqueceriam. Por isso mesmo os animais se queriam libertar dos donos, estavam fartos de verem o seu destino decidido unicamente por eles.

Sob a ameaça das pistolas, os donos obrigaram os 10 animais prisioneiros a subirem para a carrinha. Depois, entraram na cabina e conduziram o veículo até norte da Quinta da Confusão, onde estavam os 5 camiões e as 11 carrinhas de caixa fechada dos funcionários. Estes estavam lá parados por ordem dos donos, que lhes tinham garantido que iriam conseguir capturar animais. Cada camião dava para 25 animais, cada carrinha dava para 5 funcionários. Como 5 deles iam a conduzir os camiões, apenas 55 tinham que ir nas carrinhas. Os animais tiveram muito tempo para perceber isso, pois assim que a carrinha dos donos parou, estes tiraram-lhes as cordas e obrigaram-nos a entrar num dos camiões. Subiram a rampa lentamente, saboreando os últimos segundos que iriam passar naquela terra, pois tinham consciência de que poderiam nunca mais lá voltar. Por fim, a rampa ergueu-se e fechou a traseira do camião, com 10 animais melancólicos a bordo. Os donos nem se deram ao trabalho de

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observar a partida dos funcionários, pois assim que os 10 animais foram fechados no camião, partiram com a carrinha para a Quinta da Confusão, certos de terem reduzido o entusiasmo dos animais e de que iriam ganhar bom dinheiro com a venda dos animais no mercado (o dinheiro era entregue ao donos quanto estes fossem vendidos, ficando uma parte para o mercado e outra para a empresa que os apanhara). Mas enganavam-se, em relação à primeira ideia! Os 45 animais que ficaram na Quinta da Confusão tinham recuperado as suas armas, e assim que os donos desembarcaram cercaram-nos. Sob a ameaça dos arados, foram obrigados a desarmar as pistolas e a atirá-las para longe. Depois, tiveram que jurar que não fariam outra captura de animais, e que os deixariam prosseguir com os seus planos. Depois de tudo isto, os animais deixaram os donos regressar a casa. Terminava assim a I Guerra dos Animais, com a vitória dos próprios.

Batalha da Quinta da Confusão

• Data: 16:20 – 16:40 do Dia 1 • Local: Quinta da Confusão • Resultado: Vitória dos animais; fim da I Guerra dos Animais • Combatentes: Donos X Animais • Forças: Donos – 60 funcionários; Animais – 55 animais • Líderes: Donos – Afonso Gomes e Aníbal Gomes; Animais -

Nenhum • Baixas: Donos – 25 feridos, 60 desertores (todos); Animais – 10

capturados

Ilustração 2 - Mapa da Batalha da Quinta da Confusão. Verde – Quinta da Confusão;

Amarelo – Rota dos funcionários; Vermelho – Rota dos animais; Roxo – Rota dos

donos; Azul – Confrontos da batalha. 1º Confronto – À direita; 2º confronto – Ao

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centro; 3º confronto – À esquerda, antes da saída dos donos da quinta; 4º confronto

– Mesmo local, depois do regresso dos donos

I Guerra dos Animais – 8 horas (70 vítimas)

20:00 Para alegria dos animais, algum do terreno semeado horas antes

conseguiu produzir a primeira colheita de ervas da Quinta da Confusão cultivada pelos animais. As ervas não tinham mais de 10 cm de altura (podiam chegar a 50 cm no Verão), o que significava que estavam raquíticas. Além disso, dos 10 hectares de terreno semeados até ao momento, apenas 0,5 é que tinham ervas prontas a colher, ervas já crescidas. Outras áreas cultivadas (3,5 hectares) tinham pequenos rebentos que não passavam de fios verdes, mas a maioria dos espaços não tinha nada a não ser a terra. Resumia-se tudo no seguinte gráfico:

1%6%

15%

78%

Área com ervapronta a colher

Área com ervapouco ou nadadesenvolvida

Área semeadamas semresultados

Área nãosemeada

Ilustração 3 - O fracasso da agricultura da Quinta da Confusão no final do Dia 1

A fraca produção de ervas veio confirmar aquilo que os animais já esperavam: as ervas não conseguiam crescer com o frio, sobretudo de noite. Mas, como apenas havia a luz do luar para iluminar os animais, este decidiram deixar para o dia seguinte a criação de algo para manter as ervas quentes, e aumentar a produção de comida. Em vez disso, dedicaram-se à criação de um instrumento que permitisse cortar as ervas crescidas em vez de as arrancar, o que faria com que tivessem de gastar sementes e trabalho a semear de novo o terreno. Por fim, houve um animal que conseguiu obter o instrumento necessário para a colheita de ervas. Era a foice, constituída por uma pedra lascada até ficar em forma de ponto de interrogação. A parte curva era a cortante, e a do cabo a parte recta. Surgia assim a segunda invenção da Quinta da Confusão, a seguir ao arado.

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Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-0 (Aéreos-0) (Marítimos -0) (Terrestres-0) Civil -2 (arado e foice) Construções-0

Com essa foice, e com outras que entretanto se fizeram, os animais puderam então colher as ervas do meio hectare que já tinha algo para se colher. Cada m2 de terreno forneceu, em média, 10 gramas de ervas, segundo a balança que os animais foram buscar ao celeiro para pesar a colheita. Era preciso agora escolher o local onde os animais se reuniriam para partilharem a sua primeira colheita de ervas cultivadas por eles mesmos. Sem excepção, todos os animais apontaram o celeiro como o local ideal, porque ficariam ao abrigo do vento frio que soprava. Assim, montou-se uma linha de produção. Trinta animais colhiam as ervas dos terrenos que tiveram sucesso, e acumulavam-nas num monte. Os restantes 15 iam buscar sacos ao celeiro, depois seguiam para as plantações enchê-los com ervas e, após serem fechados, voltavam ao celeiro para os deixar lá. Por fim, pegavam noutro saco vazio e repetiam todo o procedimento. Esperava-se que a colheita demorasse ainda algum tempo, mas a esperança de poderem trincar ervas dava esperança aos vários animais da Quinta da Confusão que não tinham comido nada nesse dia, ou mesmo no anterior. Obviamente, atribuíam a culpa disso aos donos.

21:30 Ficou concluída a colheita das ervas cultivadas na Quinta da Confusão.

Esta tinha rendido cerca de 50 kg de comida, o que atribuía aproximadamente 1,1 kg a cada animal. Os 45 animais reuniram-se então no celeiro para comerem as suas ervas. Abriram os sacos e, iluminados pelo luar que vinha das janelas e da porta, comeram com agrado a comida. Mais de metade dos animais da quinta comia agora a sua primeira refeição do dia. Quinze minutos depois, o apetite dos animais estava satisfeito. Os sacos de erva estavam vazios, mas ninguém se importava com isso. Com a barriga cheia, os animais deitaram-se e acabaram por adormecer, cansados de um dia tão longo e cheio. No dia seguinte, logo se cultivariam mais ervas, pois já não restavam muitas para uma nova refeição.

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Saldo do Dia 1

População e densidade populacional

Saldo da população: -70 habitantes

Saldo da densidade populacional: -140 hab.\km2

115

85

5545

020

406080

100120

140

7:00 8:30

11:00

16:30

População

230

170

11090

0

40

80

120

160

200

240

280

7:00 8:30 11:00 16:30

Densidadepopulacional

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Dia 2

Ataque ao celeiro

Época inicial

2 de Janeiro de 2009

Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom

1 2 3 4

5 6 7 8 9 10 11

12 13 14 15 16 17 18

19 20 21 22 23 24 25

26 27 28 29 30 31

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1:00 Habitantes: 45

Um dos animais que dormia no celeiro acordou, sem saber porquê. Este, apercebendo-se de que ainda era madrugada, virou-se no soalho de madeira e tentou voltar a adormecer. Não o fez porque ouviu um barulho estranho, vindo do outro lado da parede da porta, semelhante a vozes. Levantou-se e, com cuidado para não pisar os outros animais que dormiam pelo celeiro, pôs-se atrás da porta e espreitou. Para seu espanto, viu Afonso Gomes a falar ao telemóvel a 2 metros da parede do celeiro, ouvido atentamente pelo irmão. O animal conseguiu ouvir o que Afonso estava a dizer:

-Sem dúvida que um ataque repentino impedirá os animais de se defenderem a tempo. Não acha, senhor director? -… -Pois, eu também penso que sim. Agora, falemos de dinheiro. Habitualmente, a vossa empresa recebe 10% do valor da venda dos animais que capturarem. Nós propomos-vos 20% desse valor, se usarem todos os vossos funcionários neste ataque. São quantos? Cem? -… -Ah, são 150. Melhor ainda, quantos mais forem melhor. Nós aqui só temos 45 animais, vai ser canja. E estão todos no celeiro, só têm que o cercar e apanham-nos todos. Então, amanhã às 8:30, mais ou menos? Contando com o tempo de chegada… -… -Então está combinado. Os 150 funcionários estão cá às 8:30 e a vossa empresa recebe 20% do valor da venda dos animais.

O animal não precisou de pensar muito para perceber que os donos andavam a planear um ataque em massa aos animais da Quinta da Confusão, com um número de funcionários 3 vezes maior do que a população da Quinta da Confusão. Não sabia o nome do instrumento para que Afonso Gomes falara, mas sabia que a sua função era falar com alguém distante, neste caso o director da empresa de captura e transporte de animais que habitualmente servia a Quinta da Confusão. E, para seu horror, percebeu que os donos vinham na direcção da porta do celeiro. Deitou-se rapidamente no soalho e fechou os olhos. A silhueta dos donos apareceu no meio do vão da porta, e o animal ainda os ouviu comentar «Daqui a 8 horas, estes animais que dormem descansados sem temerem o futuro vão estar a caminho do mercado. Ah, ah, pensam que venceram, que nos conseguem tirar a casa e a quinta. Quando for manhã, quem lhes tira a casa somos nós. Não perdem pela demora». Depois, foram-se embora pela neve até casa.

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30

Escusado será dizer que, assim que os donos desapareceram, o animal que ouvira todo o seu plano acordou os companheiros para lhes explicar a situação. Estes rapidamente perceberam que a sua única hipótese de resistirem a 150 funcionários era transformarem o celeiro numa fortaleza. Assim foi. Os animais deitaram patas à obra, e fizeram tudo ao seu alcance pela noite adentro para fortificarem o celeiro. Por sorte, a construção estava cheia de material que os animais identificaram como útil para o seu projecto, como pregos, martelos, réguas de vários tamanhos e tábuas de madeira. Assim, gastaram o resto da noite a fazer o seu forte: fizeram 10 guaritas no telhado do celeiro, com um alçapão para o 1º andar e uma larga abertura virada para fora, de onde os animais poderiam atirar coisas aos funcionários; abasteceram-no com comida colhendo a pouquíssima erva que tinha crescido e a que restava do dia anterior; olearam as dobradiças das portas e janelas, juntamente com as trancas, para serem fáceis de fechar e abrir; repararam cobrindo com madeira os estragos nas paredes; e por último começaram a escavar um túnel, confiando em como andavam sempre em linha recta em direcção às cavalariças. Se os funcionários conseguiram entrar no celeiro, os animais poderiam fugir pelo túnel até à outra margem da ribeira, onde provavelmente estariam a salvo. Baptizaram a sua obra de Celeiro-forte, porque era ao mesmo tempo o celeiro da Quinta da Confusão e a fortificação dos animais.

8:30

Foi dado como concluído o Celeiro-forte, quando a última das guaritas ficou pronta. Os animais, inexperientes na área da construção, tinham levado 7 horas para completar as guaritas, incluindo instalar um alçapão com uma dobradiça para se lá entrar. Essas eram as partes principais da construção, porque permitiam atirar objectos aos funcionários, do alto, em 10 pontos em simultâneo mais as 4 janelas do 1º andar. O problema era: que objectos os animais poderiam usar para bombardear os atacantes? A resposta estava ao mesmo tempo no celeiro e no campo. No celeiro, havia sacos de adubo com 10 kg, tomates, ovos e outros alimentos guardados há tanto tempo que cheiravam bastante mal, acumulados em cantos; e fora do celeiro havia pedras e paus. Foram esses produtos que foram levados para as guaritas e para as 4 janelas do 1º andar, fora do alcance dos funcionários. Mas esses espaços eram apenas uma parte da fortaleza. No rés-do-chão, assim que tudo o que era necessário do exterior foi levado para o celeiro, fecharam-se as portas e janelas com a tranca. As ervas estavam a um canto, prontas a consumir. Quanto ao túnel, segundo as medições dos animais, deveria estar a uns 10 metros das cavalariças. Estava tudo pronto, incluindo o pendão no alto do celeiro a dizer «Celeiro-forte, a oposição dos animais».

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Importa dizer que os animais tinham grande noção do que era a organização. Como cada guarita e janela tinha espaço para dois animais, ficaram 28 ao ataque, mais dois que iam entregando munições aos atacantes à medida que estes as gastavam. Dez dos restantes ficariam a vigiar o estado do celeiro, pois este estava tão velho e desgastado com os anos que, mesmo com as reparações improvisadas dos animais, bastava que alguém se atirasse com força contra a parede para lhe arrancar um pedaço de madeira. Por fim, os últimos 5 prosseguiam com as escavações do túnel, revezando-se entre si. Isso porque, a partir dos 100 metros, o túnel começou a ficar sem oxigénio e, para os trabalhadores não sufocarem, tinham que se revezar entre si para ir ao celeiro respirar ar puro. De manhã, os animais das guaritas viram os donos sair de casa e reparar na sua fortaleza. Estes rapidamente perceberam que, por qualquer motivo, os animais tinham descoberto o seu plano e estavam prontos para, como dizia o pendão a esvoaçar ao vento, se opor aos funcionários. Avisaram os animais das guaritas, com um tom de ironia, de que faltavam 10 minutos para as 8:30, e depois voltaram a casa. Achavam que os animais iriam pensar que se tratava de uma hora normal, mas enganavam-se. Sem o saberem, pois não sabiam que os animais conheciam a hora do ataque, os donos tinham dado aos animais o sinal para que preparassem para atacar a qualquer momento, pois os funcionários vinham aí. Agora, restava-lhes apenas esperar a sua vinda.

De repente, os animais das guaritas e janelas viradas para norte viram, ao longe, vários automóveis a grande velocidade, seguidos por dois camiões. De imediato, deram o alerta aos outros animais. Os que estavam à vista, portanto, nas guaritas e nas janelas do primeiro andar, deitaram-se por debaixo da janela conforme combinado, para que os funcionários não vissem qualquer actividade no celeiro. A táctica resultou, pois quando poucos minutos depois os funcionários chegaram, em 30 carrinhas e dois camiões, ao verem o celeiro pensaram que este estava vazio. Os donos, todavia, insistiram que os animais estavam ali dentro, e que a prova disso estava nas guaritas erguidas no seu telhado. Cada uma tinha um metro de largura por dois de comprimento, com uma abertura a todo o comprimento da guarita virada para fora do celeiro. Como o telhado do celeiro era inclinado, o chão e o tecto das guaritas também o eram, tendo cada uma 1,5 metros de altura. Os funcionários, para verem se o espaço estava mesmo vazio, tentaram abrir a porta da frente do celeiro, virada a norte. Para seu espanto, o que parecia ser fácil de abrir revelou-se impossível, pois os animais tinham posto duas tábuas de madeira a fazer de tranca. Passaram à porta das traseiras, e depois às janelas, mas nada se abria mesmo com 10 funcionários a fazerem força ao mesmo tempo. Estes perceberam então que, para o celeiro estar trancado dessa forma era porque, de facto, os animais estavam barricados lá dentro. O problema era que eles tinham que

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capturar os 45 animais que se escondiam no celeiro para receberem o tão desejado aumento salarial, pois Afonso e Aníbal Gomes iriam pagar o dobro do valor que habitualmente pagavam à empresa que ia buscar os animais.

A única abertura que estavam a ver para entrar no celeiro eram as aberturas das guaritas e as janelas do 1º andar, a 5 metros de altura, pelo que os funcionários começaram a trepar pelas paredes do celeiro. Para sua sorte, a partir dos 2 metros de altura os animais não tinham reparado os buracos nas paredes por não chegarem lá, pelo que os funcionários apenas tiveram que se içar para os buracos. Mas os animais do rés-do-chão estavam atentos, e viram pelas frestas entre as tábuas o que se estava a passar. Os funcionários ouviram berrar «Lancem os objectos!», das guaritas e janelas apareceram vários animais e logo a seguir começaram a cair estranhas coisas à volta do celeiro. Os funcionários que ainda estavam no chão viram que eram tomates, ovos, pedras, paus e terra misturada com neve, que os animais tinham arranjado durante as escavações do seu túnel. Sempre que algum dos trabalhadores do túnel voltava ao celeiro para respirar, vinha com um carrinho de mão cheio de terra para despejar no celeiro, que depois era levada em sacos, misturada com neve, para os animais encarregues de bombardear os funcionários. Os sacos eram descarregados nos locais de ataque e logo levados para baixo, para serem de novo enchidos. Era sobretudo isso que os animais lhes atiravam, pois não tinham dos outros produtos em grandes quantidades. Os sacos de adubo eram a melhor arma dos animais, pois sempre que atingiam algum dos funcionários este, com a pancada, largava a parede e caía. Um deles percebeu isso claramente a 3 metros de altura, quando foi atingido em cheio da cabeça por 10 kg de adubo. Com o choque, largou a parede e caiu como uma pedra, estatelando-se no chão. Para seu azar, os animais tinham levado toda a neve à volta do celeiro para dentro da construção, de modo que se magoou bastante na queda. Mas como não costumava desistir à primeira tentativa, voltou a tentar subir, e poucos minutos depois caía de novo com uma bola de terra e neve na cara, atirada por uma pata certeira. Era esta a única forma que os animais tinham de se defender: atirar coisas com força aos funcionários que subiam as paredes para os fazer cair. E bem tiveram que se esforçar quando um dos funcionários, com 1,90 metros de altura, conseguiu subir mais alto do que os colegas e aproximar-se perigosamente de uma janela do 1º andar. Os dois animais dessa janela bem atiraram bolas de neve ao homem, mas este não vacilou e continuou a subir.

Por fim, quando o funcionário estava a apenas 50 cm da janela, um dos animais teve uma ideia. Fechou uma das persianas da janela, e esperou até o homem estar atrás da persiana, à altura da janela. Antes que este tivesse tempo de se içar para o 1º andar no celeiro, deu um coice na persiana,

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empurrando-a violentamente para trás, e fazendo cair o funcionário. Este, no entanto, era resistente. Conseguiu agarrar-se dois metros mais abaixo, e continuou a subir. Os dois animais dessa janela, ao verem que o homem ainda não desistira de subir, pediram urgentemente aos companheiros que abasteciam os atiradores o objecto mais pesado que conseguissem arranjar. Um deles regressou com uma caixa cheia de latas de conserva velhas, pesando 20 kg. Anunciou alto para o funcionário ouvir «Esta caixa é bem pesada, vamos mandá-la pela janela!» e atirou-a mesmo da janela abaixo. O funcionário, ao ver que ia levar com uma caixa pesada em cima, preferiu atirar-se para o lado e descer a parede por si mesmo., desistindo de tentar chegar às janelas. Quando chegou ao chão, pegou na espingarda e começou a lançar dardos tranquilizantes contra os animais, como vários outros colegas. Os animais usavam, prevendo isso mesmo, o seu escudo feito com a casca das árvores para se defenderem.

Enquanto os funcionários atacavam o Celeiro-forte, a 250 metros dali os trabalhadores do túnel de fuga, iluminados por lanternas potentes encontradas ao pé das pás, chegaram a uma zona de rocha, a apenas 5 metros do local onde se pensava serem as cavalariças. Por mais que os animais tentassem partir a rocha com a pá, pouco mais lhe faziam do que lhe arrancar pedaços. Mas, como não haviam instrumentos mais apropriados para partir rocha no celeiro, tiveram que se desenrascar com as pás. Batendo com força na rocha, sempre lhes conseguiam arrancar pedaços, e os animais tinham noção de que se trabalhassem com esforço conseguiriam escavar os 5 metros que faltavam até ao fim do túnel. Já tinham escavado 245 metros segundo as suas próprias medições, estavam perto da sua meta.

10:00 Habitantes: 8

Hora e meia após o começo do cerco, os animais começaram a dar sinais de fraqueza. Tinham bombardeado os funcionários implacavelmente durante hora e meia, mas à custa de, no fim desse tempo, ficarem quase sem munições. Para as poupar, e para dificultar a vida aos funcionários, fecharam-se as janelas do 1º andar com trancas. Mas as guaritas não tinham persianas para se fecharem, apenas tinham um alçapão que ainda por cima se fechava do lado de dentro. Isso queria dizer que se os funcionários conseguissem alcançar as guaritas, não só apanhariam os animais que lá estivessem como também teriam uma porta de entrada para o celeiro. Atendendo a que haviam 3 funcionários para 1 animal, seria apenas uma questão de tempo até à rendição dos animais barricados no Celeiro-forte. Era precisamente isso que os animais das guaritas queriam evitar, pois

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bombardeavam cada vez mais espaçadamente os funcionários para poupar munições e assim manter o ataque por mais tempo. Em compensação, atiravam-nas com toda a sua força. A altura das guaritas em relação ao chão variava entre os 6 (pontos mais baixos do telhado em forma de triângulo) e os 10 metros de altura (alto do telhado do Celeiro-forte), o que fazia com que os funcionários tentassem cada vez menos subir ao telhado para não caírem de tão alto. Em vez disso, apostavam no uso de dardos tranquilizantes contra os animais. Por isso mesmo estavam a ficar sem munições, tal como eles. Cada lado tinha algo a perder se se rendesse: os funcionários perderiam o tão aguardado aumento salarial; e os animais iriam para o mercado, podendo nunca mais regressar à Quinta da Confusão. Ninguém saberia qual dos lados sairia vencedor… se não fossem os donos. Estes, no começo do cerco ao Celeiro-forte, tinham ido tomar o pequeno-almoço. Voltaram por volta das 10 horas e logo foram informados da situação. Os donos pensaram logo numa solução para o caso. Disseram aos funcionários que o celeiro estava tão velho que, se eles se atirassem contra as paredes, acabariam por conseguir abrir um buraco do tamanho de uma pessoa para entrarem. Ironicamente, acrescentaram que lhe ficava mais barato fazer um celeiro novo do que reparar o antigo, e que por isso os funcionários podiam demoli-lo que até lhes poupariam o dinheiro da demolição. Os funcionários cumpriram as ordens à risca, como os donos poderiam ver mais tarde.

Para horror dos animais que vigiavam o estado das paredes, estes começaram a ouvir fortes pancadas contra elas, e várias exclamações de alegria a dizer que estavam a largar pedaços de madeira. Os animais das guaritas bem tentavam atacar os funcionários do alto, mas de nada adiantava: estes já estavam no chão, pelo que o máximo que lhes acontecia era caírem mas levantarem-se logo a seguir. Os donos viam com alegria as velhas paredes a serem desgastadas, até já haviam várias tábuas reduzidas a metade e que deixavam ver o interior. A única esperança dos animais era o túnel, que estava praticamente no fim. Os animais que trabalhavam nele já tinham escavado os 5 metros de rocha até às cavalariças e mesmo o troço até à superfície. Mas, quando a pá alcançara a superfície, os animais perceberam que a parede das cavalariças estava a meio do buraco, impedindo a passagem de qualquer animal, pelo que tinham agora de escavar ainda mais a rocha junto à superfície para poderem passar pelo buraco. Tinha sido um grande progresso alcançar a superfície, pois o ar estava bastante saturado com o dióxido de carbono expirado pelos animais. Mas faltava ainda alargar o buraco, usando apenas pás tortas de tanto terem esmurrado a rocha. Era nisso que os animais trabalhavam afincadamente, esforçando-se para terminarem o túnel. Como iam frequentemente ao Celeiro-forte, sabiam perfeitamente que os funcionários estavam quase a entrar na fortaleza, e que o túnel era a única rota de fuga dos animais. O

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que eles não sabiam era de outro problema, muito mais grave. Através dos buracos nas paredes, os funcionários tinham visto a entrada do túnel, e calcularam que ele se dirigisse para uma das construções da outra margem da ribeira. Por isso, metade dos funcionários e um dos camiões foi para a outra margem da ribeira, para ao pé dessas construções, aguardar a saída dos animais que com certeza iriam fugir por ali. Os restantes funcionários e veículos permaneceram na margem esquerda, a tentar partir as paredes para entrar no Celeiro-forte. Os animais que vigiavam o seu estado tapavam constantemente os buracos pregando-lhes mais tábuas, o que retardou a entrada dos funcionários.

Todavia, os 10 animais não conseguiam reparar os estragos de 75 funcionários a atirarem-se contra o celeiro em simultâneo. Segundos antes de se abrir um buraco do tamanho de 3 pessoas na parede da frente, a maioria dos animais precipitou-se pelo túnel adentro na tentativa de escapar dos funcionários, ao mesmo tempo que o primeiro animal passava pela abertura do túnel 250 metros para este. Quando se abriu um buraco suficientemente grande na parede para os funcionários passarem, 50 precipitaram-se pelo túnel adentro em perseguição dos fugitivos. Quanto aos restantes funcionários, subiram ao 1º andar do celeiro para verem se não havia mais nenhum animal ali. Logo repararam numa coisa: 6 das guaritas estavam com o alçapão aberto e a balançar, prova de que os animais o tinham aberto à pressa para fugirem. Pelo contrário, as 4 dos lados do telhado estavam fechadas e os funcionários foram incapazes de as abrir. Dos 45 animais, 37 tinham fugido para as cavalariças em direcção à sua captura. Mas os restantes 8 tinham reparado nos veículos na outra margem da ribeira e, prudentes, decidiram fechar-se nas guaritas e esperar que estas fossem, afinal, a sua fortaleza. Rapidamente perceberam que sim. Ao mesmo tempo que todos os seus companheiros eram apanhados e metidos nos camiões, os 8 animais fechados nas guaritas ouviam as pancadas furiosas nos alçapões dadas pelos funcionários, mas sem resultado pois as suas portas tinham sido construídas pelos animais, sendo novas e resistentes. Estes tiveram então uma ideia: golpear a madeira do tecto em volta dos alçapões para lhes abrir um buraco onde coubessem, para subirem às guaritas. Durante 5 minutos, os funcionários esmurraram o tecto e bateram-lhe com o cabo da espingarda, esperando que este cedesse para poderem entrar nas guaritas. Mas, em vez disso, foram as guaritas que vieram ter com eles… De repente, ouviram-se uns ruídos esquisitos e, para horror dos funcionários, estes viram que o tecto à volta das guaritas estava a rachar. Os animais perceberam isso igualmente, pois saltaram para o telhado e correram até ao seu alto mesmo a tempo antes do desabamento. Ouviu-se um ruído, e o ar ficou subitamente coberto de poeira. Sentados no ponto mais alto do Celeiro-forte, os 8 animais esperaram pacientemente que esta se dissipasse para verem os estragos.

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Quando a poeira se dissipou, ficou a descoberto a extensão dos estragos. As partes mais baixas do tecto tinham desabado com os golpes dos funcionários, arrastando todo o resto do tecto à excepção da viga do alto e as telhas que lá estavam apoiadas. O peso dos destroços tinha, por sua vez, feito ruir o piso do 1º andar, arrastando consigo os 25 funcionários na queda. Estes jaziam agora no meio dos destroços, magoados mas sem ferimentos graves, interrogando-se sobre o porquê de terem feito tantos estragos numa coisa aparentemente simples. De facto, tinham conseguido alcançar as guaritas porque estas jaziam no meio deles, mas os animais permaneciam em cima da viga do alto do celeiro, a 10 metros de altura e totalmente fora do seu alcance. Os donos, que assistiram a tudo, ficaram pasmados com a extensão dos estragos, e Aníbal comentou «Ó Afonso, e não é que eles seguiram mesmo as nossas ordens à risca? Esfolaram as paredes todas e mandaram o telhado e o 1º andar abaixo». O Celeiro-forte estava agora inutilizado sem tecto, sem 1º andar e com o rés-do-chão coberto de destroços, mas cumprira a sua função ao defender 8 dos animais da Quinta da Confusão. Os 25 funcionários foram juntar-se aos colegas, e pouco depois os 8 animais presos no alto do celeiro viam os seus 37 companheiros a abandonar a quinta a bordo dos camiões em direcção ao mercado, longe da quinta. Quanto aos donos, começaram a sentir pena pelos animais presos, sem comida nem água, mas sem hipótese de os salvar disseram-lhes «Vão ter que arranjar forma de saírem daí sozinhos, daí ninguém vos consegue tirar», e foram para casa. De facto, os donos tinham razão. Eles estavam suspensos a 10 metros de altura, em cima de uma viga de madeira com algumas telhas. Nos pontos menos destruídos, podia-se andar 2 metros até o telhado acabar (o celeiro era um quadrado de 20 metros de lado). Podiam descer pelas paredes, da mesma forma que os funcionários tinham subido por elas, mas os animais receavam que as bases estivessem tão desgastadas pelos seus golpes que as paredes ruíssem durante a descida, tal como os donos receavam (por isso não aconselharam a descida pelas paredes). Não se via nenhum outro modo de os animais saírem dali a não ser saltarem 10 metros até ao chão. Obviamente, essa hipótese estava fora de questão.

Presos dentro dos 2 camiões, a caminho do Porto, os animais resignavam-se com o seu destino. O Celeiro-forte, mesmo tendo salvado 8 deles, falhara a sua missão: mais de 80% dos animais da Quinta da Confusão tinham sido apanhados pelos funcionários. E porque tinha falhado, uma fortaleza tão bem preparada para resistir ao ataque dos funcionários? Teria sido pela falta de munições ou pela fraca resistência das paredes? Os animais concluíram que tinha sido a segunda hipótese a causar a rendição do Celeiro-forte, agora já totalmente inutilizado. Se tivessem reforçado as paredes e o tecto com novas tábuas, como alguns

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animais tinham proposto, assim como posto persianas de madeira nas guaritas para fechar as suas aberturas, o Celeiro-forte teria resistido até os funcionários desistirem do ataque. Mas agora era tarde para pensar no que falhara, pois os animais possivelmente nunca iriam regressar à Quinta da Confusão. Sabiam que os esperava uma estadia no mercado do Porto, ou mesmo a morte no matadouro no caso das vacas e dos porcos. Tristes, limitaram-se a observar a paisagem transmontana, enquanto os camiões seguiam em direcção ao Porto, no meio das carrinhas dos funcionários.

12:30

Duas horas e meia após a rendição do Celeiro-forte, os donos lembraram-se de uma solução para os animais saírem do alto do celeiro: se os animais se agarrassem à borda da parede da porta principal e rastejassem na zona sem tecto até ao algeroz, na esquina do celeiro, poderiam deslizar pelos canos até ao chão. Foi essa solução que os donos gritaram aos animais, que de imediato a puseram em prática. Havia um menor risco de a parede ruir, pois os animais estariam deitados em cima da parede, e espalhariam o seu peso por uma maior área. Mas, apesar desse factor, mal os animais se concentraram junto à parede, a viga começou a fracturar-se. Até àquela altura, os animais ocupavam toda a viga, equilibrando o peso sobre ela. Mas, agora que estavam todos juntos num dos seus lados, esta começava a não aguentar o peso. Rápidos, os animais foram até ao limite das telhas e agarraram-se fortemente à parede, rastejando como se estivessem a atravessar um vale por uma corda. Havia 1 metro de telhas entre a viga e o algeroz, pelo que os animais tinham ainda 9 metros para percorrerem até chegarem aos canos salvadores. Mas, para os animais seguintes terem espaço para se agarrarem à parede, os que já lá estavam tinham que dar algum avanço. Os primeiros 6 animais conseguiram subir para a parede a tempo, mas os últimos 2 não tiveram espaço para o fazer antes da queda da viga. Com um rangido final, esta partiu-se e caiu, acontecendo o mesmo às poucas telhas do telhado. Para horror dos 6 animais que estavam em cima da parede, os dois que ainda não o tinham feito perderam o chão e caíram. Mas, no último segundo, conseguiram agarrar-se à parede, visto que as telhas tinham desaparecido, e subiram para cima dela. Juntos, de barriga para baixo em cima da borda da parede, os animais continuaram a rastejar em direcção ao algeroz, enquanto que a viga e as telhas se juntavam aos destroços acumulados no chão do celeiro.

Quando o primeiro animal alcançou a esquina do algeroz, reparou logo num pormenor: este estava completamente enferrujado, de todas as chuvadas e nevões que apanhara ao longo dos seus 55 anos de existência. Apesar disso, confiou em como aguentaria com ele, pelo que largou a

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parede e se agarrou ao algeroz. Com esse acto, o animal resolveu o problema dos animais em chegarem ao chão, pois de imediato o algeroz começou a cair para trás, arrancando a madeira onde estava aparafusado atrás de si. Por sorte, os 30 cm de neve ampararam-lhe a queda, não o deixando magoar-se muito. Mas a queda do algeroz arrancara um pedaço de parede com meio metro de largura, arrancando ainda pedaços a outras tábuas, ou seja, fazendo-lhes o mesmo efeito que os funcionários obtiveram ao esmurrarem as paredes do celeiro. Foi o golpe de misericórdia ao Celeiro-forte. A parede onde os 7 animais estavam apoiados rangeu e começou a desmoronar-se a partir de baixo. Estes saltaram da parede imediatamente antes de atingirem o chão, e aterraram com uma cambalhota em cima dos destroços. Estavam já no chão, mas ainda não estavam a salvo porque as paredes laterais do celeiro, agora que não tinham a parede da frente como apoio, oscilaram e começaram a cair para dentro. Os animais conseguiram escapar por pouco à queda das paredes, saindo de cima dos destroços e pondo-se a salvo na neve. Quanto à última parede ainda de pé, a das traseiras, não teve qualquer hipótese. Sem apoios, caiu para dentro e fez-se em pedaços no meio dos destroços do Celeiro-forte. Terminava assim uma construção com 55 anos, que servira de armazém para a Quinta da Confusão e, posteriormente, de fortaleza aos animais, sob o nome de Celeiro-forte. Quatro horas antes, estivera ali uma construção imponente, preparada para resistir a 150 funcionários. Agora, restava apenas uma pilha de destroços sem valor. Os donos disseram aos animais «Damos-vos os parabéns por terem escapado ilesos desta aventura, nem todos o conseguiriam fazer. Só foi pena o celeiro, ele era-vos mais útil a vocês do que a nós. Mas, como são racionais, decerto serão capazes de construir o vosso abrigo sozinhos. Boa sorte», e por fim foram para casa. Os animais tinham noção de que tinham perdido a única construção da Quinta da Confusão que lhes poderia servir de abrigo, visto que as outras estavam muito danificadas para essa função. Então, foram revistar os destroços do celeiro em busca de tudo aquilo que lhes poderia ser útil.

Tinham passado por Carrazeda de Ansiães, a capital do concelho onde ficava a Quinta da Confusão. Tinham passado por Vila Real, por Amarante, e por terras e estradas de que nunca ouviram falar. Agora, estavam numa grande estrada cheia de carros, rodeada por prédios, num sítio completamente diferente da Quinta da Confusão. No lugar do verde do campo, do agradável silêncio, do correr das águas da ribeira, estava agora o barulho de motores, prédios de betão, estradas de alcatrão negro, e sobretudo uma total ausência de campo. A cidade do Porto, tal e qual os animais a conheciam quando a deixaram para virem viver na Quinta da Confusão. Propositadamente, os cães e os cavalos tinham sido metidos num camião e as vacas e os porcos noutro. Pouco depois de entrarem no Porto,

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os dois camiões e as carrinhas separaram-se: as carrinhas foram para a sede da empresa onde os funcionários trabalhavam; o camião com os cavalos e os cães foi para o Mercado do Bolhão; e o camião com as vacas e os porcos foi para um pequeno matadouro que havia algures no Porto, onde exactamente os animais nunca haviam percebido, apenas sabiam que ficava a 2 quarteirões do mercado.

O camião com os cavalos e os cães parou num pequeno estacionamento junto ao edifício do mercado1, especialmente para os camiões com mercadorias. Havia um elevador fora do edifício, que ia dar ao primeiro andar. Foi para esse elevador que os empregados do mercado levaram os animais, aos poucos. Para os animais que haviam nascido na Quinta da Confusão, aquilo era uma novidade completa. Assim que a porta do elevador se abria, no primeiro andar, os animais viam-se numa sala enorme, com a maior concentração de animais que alguma vez tinham visto na vida. O sol, entrando pelas janelas, iluminava o chão de madeira clara, as paredes e o tecto brancas e a mais de uma centena de animais que lá estavam. Estes estavam agrupados por quintas de origem, em espaços rodeados por cercas maciças de madeira com 1 metro de altura encostados às paredes. Havia imensas cancelas, com o nome da quinta de origem dos animais afixado, fechadas por um ferrolho electrónico que se podia abrir manualmente. Os espaços junto às paredes estavam quase totalmente ocupados por espaços para animais, à excepção de duas esquinas. Numa, ficava a entrada do elevador, das escadas e o botão do alarme, que teria grande importância no dia seguinte. Na outra esquina vazia, encontrava-se a entrada para as escadas do rés-do-chão, e a passagem para outra sala do 1º andar do Mercado do Bolhão. Havia um comedouro e um bebedouro para cada dois animais. O que mais lhes desagradava ali era o facto de estarem acorrentados por uma pata 24 horas por dia, para não fugirem (só eram libertados quando eram comprados), e a má qualidade das rações que tinham à sua frente permanentemente, em comedouros, que ao que parecia era fabricada numa fábrica da cidade. Os animais vindos da Quinta da Confusão foram presos em zonas vazias, às quais se acrescentou uma placa com o nome da quinta de origem, ao lado do sítio onde estavam os animais presos durante a I Guerra dos Animais. A zona da Quinta da Confusão era a maior do mercado, tendo 47 animais expostos para venda. Não estavam em condições muito más, porque os 3 empregados da sala até eram compreensivos para com eles. Desculpavam-se dizendo «São ordens que temos, temos que as cumprir senão ficamos sem emprego…». Diferentes eram as condições do matadouro, para onde iam as vacas e os porcos.

1 As informações dadas sobre o Mercado do Bolhão são falsas.

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O matadouro, ao contrário do Mercado do Bolhão, era um edifício rectangular dividido em 5 partes, como se fosse uma linha de montagem:

1. O primeiro edifício era o estacionamento para os camiões que viessem descarregar animais, que eram levados para a segunda sala;

2. O segundo edifício era o espaço onde os animais eram presos até serem examinados por médicos. Se fossem considerados saudáveis iam para o edifício seguinte, senão, permaneciam ali até serem curados;

3. O terceiro edifício destinava-se a abater os animais: primeiro davam-lhes um choque eléctrico para desmaiarem, depois penduravam-nos de cabeça para baixo e cortavam a veia jugular (no pescoço), para sangrarem até à morte2, por fim transferiam o animal morto para a sala seguinte;

4. O quarto edifício era o espaço onde os animais mortos eram transformados em carne para consumo e outros produtos de charcutaria. Depois de pronta, esta era despachada para o último espaço;

5. Por fim, o quinto edifício era o estacionamento para os camiões que vinham buscar a carne e os produtos de charcutaria

A sala onde os animais estavam presos tinha boas condições, pois o chão tinha palha para os animais poderem dormir melhor e a ração era biológica. Havia três grandes troncos de madeira suspensos do tecto no espaço com 20 por 50 metros, aos quais os animais estavam presos por uma corrente igualmente por uma pata. Haviam imensas janelas para a luz entrar que muitas vezes estavam abertas para entrar ar fresco, e o tecto era composto por vidro translúcido reforçado com vigas de aço. As paredes eram brancas para não darem um ar de austeridade e clausura. Encontravam-se lá cerca de 100 animais, e todos eles poderiam dizer que se estava bem no matadouro se não fosse a certeza de que, mais tarde ou mais cedo, viriam os funcionários levá-los para a sala em frente. Desconheciam o que havia no interior dessa sala, pois todos os animais que foram levados para lá nunca mais foram vistos. Os funcionários do matadouro diziam-lhes que ali seriam abatidos, e isso bastava aos animais para temerem aquela sala. Mais tarde, haveria animais que fariam tabelas comparando as condições do Mercado do Bolhão com as do matadouro. As condições do Mercado do Bolhão, embora piores do que as do matadouro, eram no fundo melhores porque ali os animais não eram abatidos, a única coisa que lhes aconteceria era ser levados para uma quinta.

2 Este processo é usado de verdade pelos matadouros, para matarem os animais sem

que estes sintam dor.

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14:00

Os 8 animais da Quinta da Confusão concluíram a procura de coisas úteis no meio dos destroços do celeiro, depois de terem procurado por toda a extensão de terreno afectada pela sua queda. A colheita de erva armazenada fora quase toda perdida, tendo-se achado muita nos destroços mas contaminada com serradura e terra. A pouca que permanecia própria para consumo dava para um único animal comer uma refeição. Não se achara mais nada de importante, à excepção de numerosas folhas plásticas translúcidas e grandes que não tinham sido usadas antes pelos animais da Quinta da Confusão, por desconhecerem qualquer utilidade possível com elas. Assim, os 8 animais foram mostrá-las aos donos, que perceberam que os animais tinham encontrado o material para fazer estufas da Quinta da Confusão. Ou seja, com aquele material os animais poderiam construir estufas, onde as ervas que plantassem (ou qualquer outra planta) poderiam crescer mais facilmente devido a uma maior temperatura. Foi isso que os donos explicaram aos animais, que perceberam que aquele material resolvia o seu último problema no cultivo de ervas na Quinta da Confusão: a temperatura. Para testar as estufas, os animais espetaram 8 paus com 1 metro de altura em cima de um terreno cultivado mas ainda sem ervas, até formar um espaço rectangular. Depois cobriram-no com duas folhas plásticas, que vinham já com pinos para se unirem umas às outras, até não haver nenhuma abertura para o exterior. Se a estufa resultasse, daí por 4 a 6 horas as ervas que nascessem no seu interior estariam desenvolvidas e prontas a comer. Restava apenas regar as ervas (para entrar na estufa, como não haviam portas, era necessário levantar-se uma das folhas de plástico para passar) e, obviamente, esperar. Enquanto esperavam, os animais foram tratar dos outros terrenos cultivados e colher as poucas ervas que ainda teimavam em crescer com o frio.

16:30

Para alegria dos animais, ao fim de apenas 2 horas e meia de espera começaram a surgir rebentos de ervas dentro da estufa improvisada, provando que esta era realmente eficaz para a agricultura em terrenos frios. Assim, estes quiseram logo erguer mais estufas, maiores que a anterior, mas haviam problemas. A estrutura apenas podia ter a altura dos paus, pois eram estes que sustentavam directamente as folhas de plástico, e se os paus estivessem muito afastados as folhas iriam descair no meio por não terem suportes. Ou seja, as estufas não poderiam ser nem muito altas nem muito grandes. A solução não estava muito longe, nas árvores que sobreviviam

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por toda a Quinta da Confusão. Através dos espaços em que a casca fora tirada para fazer escudos, os animais puderam sentir a madeira das árvores, e viram que poderia ser um bom material para se construírem apoios para as estufas se fosse bem estudado. Com foices, derrubaram uma pequena árvore, e cortaram parte da sua madeira em tábuas de acordo com as medições de réguas que estavam no celeiro, e que tinham resistido à queda dos destroços. Estava descoberta uma nova matéria-prima: a madeira. Os animais eram inteligentes, por isso, com o apoio das réguas e contando com a flexibilidade natural das tábuas, os animais conseguiram fazer, perto da margem esquerda da ribeira, uma estufa de 5 metros de comprimento, 2 de largura e 2 de altura, sustentada por 6 arcos interiores. Não havia pregos, pelo que as tábuas eram fixadas umas às outras simplesmente por ranhuras feitas pelos animais, de forma a ser difícil separarem-se umas das outras. Para impedir as folhas de plástico de saírem da estrutura, colocaram-se pedras nas partes que saíam para fora da estrutura e que tocavam no chão. Surgia assim a primeira construção da Quinta da Confusão feita pelos animais: a estufa.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-0 (Aéreos-0) (Marítimos -0) (Terrestres-0) Civil -3 (arado, foice e madeira) Construções-1 (estufas)

Os animais calcularam que a estufa que tinham construído chegava para os alimentar, pelo que decidiram não construir mais nenhuma no momento. Restava agora esperar que a estufa desse ervas em larga escala, aquilo que os animais da Quinta da Confusão procuravam durante o Dia 1 para erradicar a fome da quinta.

20:30

Quatro horas depois da construção da estufa, as suas ervas foram declaradas prontas a colher. O edifício já fora erguido em cima de um terreno com rebentos de ervas, pelo que levara menos tempo a produzir a sua primeira colheita. Soprava um vento gelado quando os 8 animais se encaminharam para a estufa com foices e começaram a colher as ervas. As ervas davam perfeitamente para o seu jantar, mas havia um problema. Começaram-se a ouvir trovões, e os animais sabiam que isso era sinal de tempestade próxima. Tinham que levar as ervas para o túnel rapidamente,

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pois era o seu único abrigo em condições (todas as construções da quinta disponíveis para os animais estavam demasiado danificadas para desempenharem essa função). Mas como iriam fazer isso? Para poderem levar de uma só vez todas as ervas, criaram caixas de madeira, e ainda uma carroça de 2 rodas. Estava criado um invento civil e o primeiro meio de transporte da Quinta da Confusão.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-1 (Aéreos-0) (Marítimos -0) (Terrestres-1) (carroça de 2 rodas) Civil -4 (arado, foice, madeira, caixa de madeira) Construções-1 (estufas)

Rapidamente, a colheita de ervas foi empacotada e metida na carroça. Mas esta, devido ao seu peso, jamais conseguiria atravessar a ribeira. Então, os animais fizeram uma descoberta importante. Encontraram, junto à ribeira e perto da estufa, o escoadouro da Quinta da Confusão. Era um buraco com 50 cm de diâmetro, com uma grade de ferro enferrujada a fechá-lo. Era o escoadouro da Quinta da Confusão, construído para, no caso de a ribeira transbordar, recolher a sua água e impedi-la de chegar à casa dos donos. Os animais desconheciam o seu interior, porque nunca nenhum animal entrara no escoadouro. Então, um deles arrancou a grade e, com uma corda atada à cintura, um metro extensível e uma lanterna, desceu para dentro do buraco, enquanto que os 7 companheiros largavam lentamente a corda para o impedir de cair no fundo do buraco escuro. O animal foi apoiando o metro nas paredes para medir a sua profundidade à medida que descia, e quando ia nos 3 metros sentiu as patas dentro de água. Pensou tratar-se de uma poça, mas quando virou a lanterna para o chão (até ali tivera-a sempre virada para a parede) viu que toda a gruta estava inundada. Soltou-se da corda e nadou nas águas escuras e profundas do espaço, tendo concluindo que a gruta tinha 3 metros de lado e 5 de altura, sendo que a água tinha 2 metros de profundidade. A gruta tinha armazenado 18.000 litros de água das chuvas e neve que entretanto derretera, que caíram ao longo de 55 anos e que apenas a capacidade de absorção da terra ia esvaziando ao longo dos anos. O animal voltou para a superfície com a ajuda dos outros animais, e contou-lhes que aquela gruta deveria estar perto do túnel, pelo que se escavassem a sua parede junto do escoadouro abririam um buraco por onde a água podia sair, e assim arranjariam uma segunda entrada para o túnel na margem esquerda da ribeira para armazenarem a erva colhida sem terem que a atravessar. Não se

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confiava na estufa como abrigo, pois tinha vários buracos por onde a chuva (ou a neve) poderia entrar. Então, 4 dos animais ficaram junto da abertura do escoadouro, ao pé da carroça, a aguardarem o momento em que pudessem descer as caixas com ervas pelo buraco. Os outros 4 foram, com as pás amolgadas que escavaram o túnel horas antes, abrir a passagem entre este e o escoadouro.

Segundo as medições efectuadas, o escoadouro ficava a 100 metros da entrada este do túnel, nas cavalariças. Então, seguindo as marcas deixadas pelos construtores do túnel para saberem a distância até às saídas, os 4 animais chegaram ao local onde supostamente estaria o escoadouro, e começaram a escavar a parede. Após alguns minutos, a luz das lanternas revelou que a terra estava a ficar mais húmida. Não podia ser a ribeira porque o túnel passava por debaixo dela, pelo que só poderia ser o escoadouro. Um metro depois, a parede do novo túnel escavado ficou subitamente mais húmida, e começou a escorrer um fio de água dela. Os animais ficaram ainda mais convencidos de que estavam quase a alcançar o escoadouro e, ignorando que a pressão da água a sair seria mais forte do que o que estava a pensar, continuaram a escavar o túnel. Por fim, a parede não aguentou mais. A terra abriu subitamente, e milhares de litros de água jorraram violentamente para cima dos animais, que foram arrastados na torrente. Só pararam quase 100 metros depois, quando a terra absorveu a água, com apenas uma lanterna sobrevivente. O animal que a transportava conseguira mantê-la acima da água durante a enxurrada, e foi graças a ela que os animais foram capazes de voltar ao escoadouro, agora vazio. Restavam apenas algumas poças de água, mas nada de significativo comparado com os dois metros de água que ali estavam anteriormente. Os 4 animais que tinham ficado ao pé da abertura do escoadouro começaram então a descer as caixas com as ervas, que foram arrumadas pelos companheiros fora das poças de água lamacenta. Ficaram à superfície apenas duas caixas, para os animais poderem jantar. Para não darem a volta pelo túnel, os 4 animais que esvaziaram o escoadouro saíram de lá pelo buraco, com a ajuda das cordas dos outros animais, e logo os 8 começaram a comer. As ervas estavam desenvolvidas como os animais nunca tinham visto no Inverno, o que significava que a sua estufa tinha resultado. Como era bem melhor comer ao ar livre do que debaixo da terra com apenas uma lanterna a iluminar o espaço, os animais decidiram jantar na superfície, indo apenas para o escoadouro quando começasse a tempestade. Como esta nunca mais vinha, os animais permaneceram onde estavam, a banquetear-se com as suas ervas.

22:00

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Uma hora e meia após o esvaziamento do escoadouro, surgiu a tempestade que os 8 animais da Quinta da Confusão aguardavam. De repente, apareceram rajadas de vento de tal maneira fortes que fizeram tremer a estufa, e logo a seguir começou a nevar com violência. Iluminados pela luz dos relâmpagos frequentes, os animais correram para a abertura do escoadouro com as caixas de erva, que só não tinha sido levada pelo vento porque os animais tinham fechado as caixas prevendo isso mesmo. Ataram uma corda a uma árvore próxima, atiraram as caixas para o escoadouro esperando que a lama do fundo amparasse a queda e por fim desceram pela corda. Os animais sabiam que o escoadouro recolhia as águas da ribeira quando esta inundava as margens, mas também sabiam que isso só acontecia quando chovia fortemente. Quando nevava, o mais certo era a ribeira congelar em vez de transbordar, sendo que o gelo por vezes tinha espessura suficiente para aguentar com um animal em cima. Sabendo que não corriam o risco de receberem as águas da ribeira, os animais foram para o túnel escavado nessa manhã, pelos companheiros que agora estavam no Porto, e lá se deitaram. Ignorando os acontecimentos que se sucederiam no dia seguinte, rapidamente os 8 animais adormeceram.

Longe da Quinta da Confusão, mais precisamente na cidade do Porto, também os animais levados da Quinta da Confusão viram a tempestade. Sozinhos no espaço onde estavam presos e sem luz, para dormirem melhor, os animais pensaram no que teria acontecido à Quinta da Confusão depois da sua partida. Sabiam que 8 deles tinham escapado, pois dos 45 animais da quinta apenas 37 foram apanhados. Mas o que fizeram depois da partida dos funcionários? Muitas hipóteses foram postas pelos animais, quer no mercado quer no matadouro, e algumas estavam correctas ao dizerem que os 8 animais que escaparam se tinham refugiado nas guaritas, a parte mais resistente do Celeiro-forte, para fugirem aos perseguidores. Mas ninguém chegou perto da realidade sobre o que se passara a seguir. Naturalmente, ignoravam o desabamento da fortaleza cinquentenária, a construção da estufa que resolvia o último grande problema para a agricultura na Quinta da Confusão e tudo o resto. As conversas continuaram até os funcionários nocturnos aparecerem nos locais onde os animais estavam, quer no mercado quer no matadouro. Com berros enérgicos, mandaram toda a gente calar-se e dormir, e depois foram para outra parte dos edifícios. Os animais pararam então de conversar e tentaram adormecer, pensando em como o dia seguinte seria em tudo semelhante ao actual. Mas estavam errados. No Dia 3, estariam de volta à Quinta da Confusão após várias peripécias. Não por terem sido comprados por Afonso e Aníbal Gomes, mas sim por fugirem das suas prisões. A essa fuga audaciosa dar-lhe-iam o nome de «Fuga do Mercado», possivelmente o acontecimento mais empolgante da Época Inicial.

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Saldo do Dia 2

População e densidade populacional

Saldo da população: -37 habitantes Saldo da densidade populacional: -74 hab.\km2

45

8

0

10

20

30

40

50

1:00

10:00

População

90

16

0

20

40

60

80

100

1:00

10:0

0

Densidadepopulacional

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Dia 3

Uma fuga arrojada

Época inicial

3 de Janeiro de 2009

Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom

1 2 3 4

5 6 7 8 9 10 11

12 13 14 15 16 17 18

19 20 21 22 23 24 25

26 27 28 29 30 31

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8:00 Habitantes: 8

Depois de uma noite de forte tempestade, o sol por fim nasceu em Trás-os-Montes, iluminando os seus extensos campos. Essa luz entrou pelo buraco do escoadouro da Quinta da Confusão, acordando os animais que dormiam ao lado, dentro do túnel. Estes levantaram-se e, quando entraram no escoadouro, viram que a neve que caíra pelo buraco se tinha acumulado num monte por debaixo dele, não chegando às caixas com ervas. Assim, como esta permanecia intacta, puderam levar duas caixas para a superfície, e lá tomaram o pequeno-almoço. A Quinta da Confusão, depois da tempestade, tinha agora cerca de meio metro de neve e a sua ribeira congelada, tal como os animais tinham previsto. Os donos nunca se preocupavam em limpar a neve da quinta, nem mesmo à volta da sua casa (não costumavam sair), esperando que o sol invernal fizesse esse trabalho, e por causa dessa atitude a quinta ficava sempre branca no Inverno, mesmo que nevasse pouco. Depois do pequeno-almoço, os animais foram regar as ervas da estufa. O seu tecto estava coberto de neve, mas a estufa conseguira manter o calor dentro da estrutura. Os animais notaram perfeitamente a diferença da temperatura do exterior em relação à do interior e, por isso mesmo, depois de terem regado a estufa e limpo a neve do tecto para a luz entrar, estes permaneceram dentro da estufa. Uns dormiam, outros conversavam, mas todos preferiam mil vezes estar dentro daquela construção quente e agradável do que no campo gelado, com quase meio metro de neve.

A 150 km de distância dali, no Porto, os animais do Mercado do Bolhão foram igualmente acordados, não pelo Sol mas sim pelos 3 empregados daquela sala do mercado. Anunciaram que iria haver uma simulação de incêndio naquela sala, pelo que quando as cancelas e as correntes se abrissem os animais deveriam agrupar-se numa fila, a dois e dois, e seguir os funcionários até ao rés-do-chão. Deveriam estar agrupados por quintas de origem, para não haver enganos na distribuição dos animais quando estes regressassem aos seus lugares. Eles pensavam que os empregados iriam abrir as cancelas e as correntes manualmente, mas enganavam-se. Um dos empregados dirigiu-se ao grande botão vermelho que se encontrava perto do elevador, cuja função os animais desconheciam, e premiu-o. De imediato, ouviu-se uma sirene e, simultaneamente, todas as cancelas e correntes se abriram. Os animais nem tiveram tempo de reagir, pois os empregados mandaram-nos agrupar-se em filas conforme a quinta de origem, com um espaço entre cada uma. Eles assim fizeram, e pouco depois desciam pelas escadas que iam dar ao rés-do-chão do mercado.

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Nunca nenhum animal tinha lá ido, pois aquela zona não se destinava aos animais, e portanto foi com surpresa que se viram rodeados de bancadas vendendo todo o tipo de alimentos. A esmagadora maioria era desconhecida para os animais, pelo que alguns deles tentaram provar esses alimentos. Apoiaram as patas nas bancadas e começaram a mordiscar os produtos.

Todavia, os 3 funcionários que os acompanhavam estavam atentos e, tirando o seu chicote da cintura, fizeram-no estalar por cima da cabeça dos animais até eles saírem de ao pé das bancadas. Depois, foram-se distraidamente aproximando-se da entrada do mercado, à frente de todos os animais, fingindo que estavam ali por acaso. Mas estes perceberam perfeitamente as suas intenções: os funcionários tinham espingardas tranquilizantes, e se eles estavam à entrada do mercado era para evitarem fugas. Por isso mesmo nenhum animal tentou fugir do mercado durante a simulação de incêndio. E, pouco depois da chegada dos animais ao rés-do-chão, apareceram os bombeiros. Os animais nunca tinham visto bombeiros, portanto foi também com surpresa que viram as suas fardas, os seus capacetes e as mangueiras que traziam. Estes subiram até ao primeiro andar, e mais tarde deram por extinto o incêndio simulado. Então, os funcionários levaram de novo os animais para os seus lugares, fechando uma a uma as cancelas e as correntes que os prendiam no Mercado do Bolhão. Quando os bombeiros abandonaram o mercado, a vida naquela sala voltou ao normal. Os funcionários dormiam ou trabalhavam no computador, enquanto que os animais comiam as suas rações industriais ou dormiam, sem nada mais para fazerem naquele espaço. A simulação de incêndio, algo diferente no meio de toda a rotina do mercado, seria vital para a Fuga do Mercado, que começaria 1 hora depois.

9:00

Em 2 semanas, nem um único cliente aparecera naquela sala do Mercado do Bolhão, nenhum comprador tinha surgido. Pelo contrário, nesse espaço de tempo quatro quintas tinham enviado os seus animais para o mercado. Não tinham vendido os animais ao mercado, mas sim alugado o espaço para os venderem. Deixavam estar os animais gratuitamente na sala, e quando fossem vendidos o mercado recebia uma parte dos lucros para pagar as despesas dos animais. Mas, para haver lucros, era preciso que alguém comprasse algum dos mais de 100 animais à venda, e nas últimas 2 semanas nenhum comprador tinha aparecido. Foi isso que o único empregado acordado da sala constatou, ao ver os ficheiros do Mercado do Bolhão no computador. O negócio da venda de animais estava em crise no mercado, pois ninguém os comprava, e os animais que este tinha estavam a

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ocupar espaço útil, que poderia ser usado para instalar bancadas com produtos rentáveis. O empregado foi então alertar o patrão acerca das suas conclusões, deixando os dois colegas de trabalho a dormir em frente às secretárias, no meio da extensa sala. Enquanto conversava com o patrão, um cavalo da Quinta da Confusão que ignorava as inteligentes conclusões do funcionário começou a falar com o seu vizinho do lado, um cão que trabalhara nas guaritas do antigo Celeiro-forte a atirar objectos aos funcionários, para defender a fortaleza.

Ilustração 4 - Mapa da sala do Mercado do Bolhão destinada aos animais. Laranja –

Espaços onde os animais eram presos; Roxo – Secretárias dos empregados; Castanho

– Entrada do elevador; Vermelho – Botão de alarme; Azul-escuro – Porta para outra

sala do primeiro andar; Verde-claro – Escadas para o rés-do-chão

Os dois animais, que estavam junto ao elevador, no extremo da cerca que encerrava os animais, acabaram por falar na simulação de incêndio e nos espantosos efeitos do botão de alarme. Se o pressionassem, poderiam soltar todos os seus companheiros e fugir para a Quinta da Confusão. Mas como iriam fazer isso, se estavam a 5 metros do botão de alarme? A resposta estava ao seu lado, junto ao elevador. Um extintor de aspecto sólido que, segundo o cavalo, se poderia atirar contra o botão de alarme para o activar. Este ofereceu-se logo para o tirar da parede, mas o projecto era arriscado: bastava que algum dos funcionários acordasse e olhasse naquela direcção para que todo o plano falhasse, pois eles não iriam ficar de braços cruzados à espera da fuga dos animais. Ainda assim, o cavalo decidiu arriscar. Apoiou-se na cerca e, esticando-se ao máximo, conseguiu alcançar o extintor, apesar de ter uma corrente a prender-lhe uma das patas. Tirou-o do suporte e, com a ajuda do cão, que o puxou para trás, voltou ao seu lugar. Foi mesmo a tempo, pois imediatamente a seguir apareceu o terceiro funcionário da sala, que fora falar com o patrão. O cavalo escondeu o extintor debaixo do comedouro e ficou a observar o funcionário. Este acordou os colegas, e anunciou-lhes que caso aquela sala não tivesse clientes até daí a 1 semana o patrão devolveria os animais às quintas, e iria substituí-los por bancadas com produtos rentáveis, à semelhança do rés-do-chão do mercado. Mas os animais não estavam dispostos a esperar 1

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semana pela sua libertação. Assim que o funcionário se sentou, o cavalo arriscou tudo numa única tentativa. Pôs-se de pé, fez pontaria e atirou o extintor com todas as suas forças contra o botão de alarme. O extintor fez um voo em arco, e acertou em cheio no alvo. Ouviu-se uma sirene, e todas as cancelas e correntes da sala se abriram. Assim que se aperceberam de que estavam soltos, o cavalo e o cão desataram a correr pela sala em direcção às escadas para o rés-do-chão, gritando aos outros animais para estes os seguirem rumo à saída do mercado. Escusado será dizer que numa questão de segundos todos os animais abandonaram as suas prisões, e seguiram o cavalo e o cão em direcção à saída do mercado.

Os funcionários tentaram deter os animais, mas rapidamente desistiram por serem apenas três a tentar deter 100 animais, e limitaram-se a ver a sua saída. A fuga até acabou por ser benéfica para o mercado, pois o seu director já tencionava substituir os animais por bancadas com produtos rentáveis, e agora que estes tinham fugido já se podiam fazer contratos com negociantes para virem vender os seus produtos para aquela sala do mercado, o que daria mais lucros3 ao mercado. Mas os animais nada sabiam desses projectos, apenas lhes interessava deixar aquele espaço. Liderados pelo cavalo e pelo cão, atravessaram a rua e seguiram a correr em direcção ao matadouro, para resgatarem os seus companheiros. Ignoravam onde ficava, mas graças às sinalizações rapidamente chegaram à sua entrada. Um muro alto, com um portão de ferro aberto a fazer de entrada, formava o limite dos terrenos do matadouro. Os animais cruzaram então o portão de ferro que dava acesso ao espaço, e viram-se na primeira zona do edifício4: um amplo espaço cimentado ao ar livre, com cerca de 50 por 50 metros, que servia para os camiões descarregarem os animais destinados ao abate. O edifício propriamente dito estava em frente, era uma construção baixa, com janelas equipadas com grades e uma porta em ferro, e que estava no centro do terreno do matadouro. Nos lados, entre o edifício e o muro, havia erva e algumas flores, com um caminho no meio para se passar (era isso que os animais presos no matadouro viam das janelas, pois estas estavam propositadamente apenas nos lados do edifício para verem algo parecido com o campo, e não se sentirem tão fora do seu ambiente). O que espantava os animais era a total ausência de gente, pois não se via nem funcionários do matadouro nem camiões naquele espaço cimentado.

O cavalo e o cão decidiram ir explorar o terreno, para verem se havia meio de tirarem os companheiros dali. Pediram aos outros para não saírem do estacionamento, e avançaram rente ao lado direito do edifício, 3 Recorde-se que todas as informações presentes nas páginas acima sobre o Mercado

do Bolhão são falsas, incluindo a venda de animais no espaço do mercado.

4 A divisão do edifício do matadouro encontra-se na página 40.

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agachados para não serem vistos pelas janelas. Iam espreitando frequentemente, e começaram por ver as vacas e os porcos presos no interior do espaço. Era a 2ª zona do matadouro. Mas rapidamente chegaram às janelas da 3ª zona, aquela que era conhecida como a sala onde qualquer animal que entrasse nunca mais seria visto. E ficaram impressionados com o que viram, com o que acontecia aos animais que entravam naquela sala. Havia animais a andar num caminho da largura de uma escada rolante rodeado de barreiras metálicas, no meio da sala, que ia dar a uma máquina onde o animal metia a cabeça. Depois, um funcionário passava um instrumento em forma de cilindro, preto e cheio de furos (os dois animais desconheciam o que era, mas na verdade tratava-se de um instrumento para dar choques eléctricos ao animal e fazê-lo desmaiar) pelo animal, e por fim a máquina onde este tinha a cabeça era activada, cortando-lhe a veia jugular. Depois este era suspenso de cabeça para baixo, com o sangue a jorrar da ferida, até que morresse. O cavalo e o cão, chocados com o tratamento dado aos seus companheiros, passaram então à 4ª zona do matadouro, onde ficaram ainda mais impressionados. Tratava-se da zona onde os animais mortos eram transformados em produtos para talhos e charcutarias, e portanto os dois animais viram o processo em que os companheiros eram transformados em carne. Entrava na sala um animal morto, e saíam de lá caixas com bifes no seu lugar. Sem palavras depois de tudo o que viram os dois animais continuaram a avançar, até chegarem aos vestiários do matadouro. Estavam inseridos na 4ª zona, e era o local onde os funcionários podiam vestir as suas fardas de trabalho, no início do dia, e tirá-las quando este acabasse. Estava lá um funcionário a vestir a sua farda por cima da roupa, quando entrou um motorista da empresa. Tiveram a seguinte conversa:

FUNCIONÁRIO: Então, foste aonde? MOTORISTA: Fui entregar carne ao Norte Shopping, o maior centro comercial do norte do país. Aquilo é uma coisa enorme: 71.738 m2 de área, 285 lojas e ainda 4.400 lugares de estacionamento5! Tem um consumo de carne tal que tive que ir lá levar três vezes o mesmo camião, e ia cheio em todas as vezes! E sabes o que havia meio de me acontecer? FUNCIONÁRIO: O quê? Passaste pelo quiosque e viste que tinhas ganho o Euromilhões? MOTORISTA: Ah, ah, isso queria eu e muita gente. Não, foi algo pior. Imagina lá tu que fui mandado parar por um polícia, e só porque ia a 55 km\h, levei logo uma multa em cima. Cinquenta euros inteirinhos, só porque passei em 5 km\h o limite.

5 Informações verídicas.

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FUNCIONÁRIO: O quê? Só porque ias 5 km\h acima do limite? Pois, faz-me lembrar aquela que me contaste, há uns dias, sobre o semáforo. Como é que era? Paraste 1 metro à frente do semáforo, não foi? MOTORISTA: Nem chegou, foi menos do que isso. A culpa foi toda daquele semáforo, fartei-me de dizer ao polícia. Eu estive sempre a ver o semáforo, estava verde. E não é que desvio o olhar por um segundo e, quando volto a ver, já a máquina está vermelha? Ainda tentei travar a fundo, mas enfim, aquilo era um camião. Consegui parar a viatura apenas meio metro à frente do semáforo, mas ainda assim o senhor polícia passou-me 50 euros de multa. Garanto-te, tiraram o amarelo ao semáforo, um dia hei-de fazer a experiência. FUNCIONÁRIO: E como vais fazer em relação à tua nova multa? Sabes como o patrão não gosta que os seus motoristas lhe tragam multas para pagar, qualquer dia obriga-nos a pagá-las do nosso próprio bolso. MOTORISTA: Pois, mas o que queres? A GNR tem estado muito vigilante, basta irmos a 51 km\h para nos caírem em cima. Ou cumpres a lei ou… nem sabes. E a sorte é que é a empresa a pagar a multa, eu não tinha nem um cêntimo no bolso quando me apanharam. FUNCIONÁRIO: Pois, tinhas que pagar com trabalho comunitário, ou com a prisão. Bem, eu vou trabalhar, que já estão a abater animais e o patrão não gosta que se chegue atrasado ao serviço. Além disso, como vamos à estreia do filme «Matadouro: a história de um industrial», ele quer que trabalhemos ainda mais para compensar o tempo que vamos perder no cinema. Sabes como é que se vão suceder as coisas? MOTORISTA: Sei. Os protagonistas vêm de Lisboa no comboio, e nós vamos buscá-los. Um colega meu vai guiar a carrinha, que os vai levar à estreia, e nós vamos atrás com os 5 camiões. Temos que chegar a horas, que aquele filme é uma grande produção cinematográfica portuguesa, e vai lá estar muita gente. Vens comigo, certo? FUNCIONÁRIO: Pois claro. Quando chegar a hora, eu vou ter contigo ao estacionamento. Então, até já.

Depois, os dois funcionários abandonaram os vestiários. O cavalo e cão esperaram um pouco para verem se eles não voltavam atrás, mas como eles não apareciam atreveram-se a entrar. Abriram a janela e saltaram para os vestiários. Lá, abriram os armários e tiraram duas fardas para eles: o cavalo envergou uma de funcionário, verde, e o cão pôs uma preta de motorista. As fardas eram compostas por um boné, uma camisa com botões e calças, tudo com a mesma cor, e ocultavam perfeitamente a identidade dos animais. Enquanto envergassem aquelas fardas, toda a gente pensaria que eram funcionários do Matadouro do Porto. Tiraram as chaves do chaveiro, as das correntes para o cavalo e as dos veículos para o cão, e dividiram-se. O cão foi para a última zona do matadouro, onde estavam os seus veículos,

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para os preparar para a fuga. O cavalo iria buscar os outros animais, e resgatar os que estavam presos.

O cavalo avançou sem receio pela 4ª zona do matadouro, pois pensava que ninguém poria em causa o seu disfarce, e chegou à zona dos abates. Com um «Alto!» sonoro, parou os funcionários dessa zona, e mesmo a tempo, pois um deles ia já anestesiar um animal para depois ser abatido. O funcionário pousou o instrumento e perguntou ao cavalo o que se estava a passar. Este, atrapalhado, acabou por responder que o Norte Shopping tinha cancelado as suas encomendas de carne ao matadouro, e que por isso o patrão queria falar com os empregados. Estes ficaram alarmados, pois o Norte Shopping era a maior compradora de carne daquele matadouro, e pensaram que por causa do cancelamento das encomendas os seus postos de trabalho estavam em risco. Então, largaram a correr em direcção ao escritório do patrão, chamando os colegas da zona seguinte pelo caminho. O escritório do director do mercado, assim como os dos contabilistas e o bar do matadouro, estavam num anexo fora do edifício inserido na 5ª zona, o estacionamento dos veículos do matadouro. O cavalo ignorava onde ficava o escritório do patrão, mas sabia que não poderia estar muito longe, e que portanto tinha poucos minutos até se descobrir a sua mentira, até os funcionários regressarem. Revelou aos animais que estavam naquela sala, que iriam ser abatidos se não fosse ele a deter os funcionários, quem era na realidade e o seu plano para escaparem, juntamente com todos os outros animais. Então, conduziu-os de novo à 2ª zona e começou a soltar os companheiros presos na sala, entregando molhos de chaves aos que já estavam livres para juntos soltarem mais animais em menos tempo.

O cão, pelo contrário, tinha outros problemas a resolver. Em primeiro lugar, não sabia o caminho para a Quinta da Confusão, e em segundo lugar não sabia conduzir um carro. Pediu ajuda ao primeiro funcionário que viu, um motorista septuagenário que era o empregado mais velho do matadouro, e que apesar de ter chegado à idade da reforma havia mais de uma década, insistia em continuar a trabalhar. Este ofereceu-se prontamente para mostrar o caminho até à Quinta da Confusão, e pôs a rota no GPS da carrinha para, supostamente, o motorista (que era o próprio cão) seguir depois de ir buscar os protagonistas do filme à estação de Porto-Campanhã. O cão não fazia ideia que instrumento era aquele, mas bastava-lhe que mostrasse o caminho até à quinta de origem. Mas, quando o cão perguntou ao funcionário como se conduzia um carro, ele estranhou bastante. O cão lá conseguiu convencê-lo de que tinha tirado a carta havia pouco tempo, e que ainda não tinha muita prática, mas que com treino iria conseguir conduzir bem. Em poucos minutos, aprendeu quais eram os controlos básicos de um carro, e o que fazer para o conduzir. O funcionário foi-se embora depois do curso acelerado, e o cão ficou à espera dos outros animais para poderem partir. Mas, quando olhou para o anexo, onde ficava o escritório do

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director, viu mais de 10 funcionários com ar zangado a saírem do edifício, e a encaminharem-se para o edifício principal do matadouro. O cão percebeu que deveria haver algum problema, e ligando o motor da carrinha, avançou até à 2ª zona do matadouro, onde o cavalo estava a soltar os companheiros presos. Avisou-lhe de que vinha aí um grupo de funcionários zangados, e o cavalo percebeu de imediato que o seu tempo acabara. Quando todos os animais ficaram soltos, chamou os cavalos e os cães que tinham ficado à espera lá fora e, todos juntos, desataram a correr pelo matadouro adentro.

Os funcionários, zangados por terem sido enganados, mais o patrão que queria averiguar quem era aquele funcionário e porque motivo inventara aquela mentira, estavam a entrar na 3ª zona do matadouro quando se depararam com a multidão de animais a correr em sentido contrário. O cavalo que atirara o extintor ao botão de alarme, no mercado, ia à frente da multidão, e quando passou pela máquina que feria os pescoços dos animais para sangrarem até à morte não resistiu. Pegou nela, ergueu-a e atirou-a com todas as suas forças contra a parede, despedaçando-a. Assim, enquanto não reparassem a máquina, o matadouro não poderia abater mais animais. Os funcionários viram perfeitamente o cavalo a destruir a sua máquina, mas não tiveram tempo de reagir pois a multidão de animais aproximava-se. Atiraram-se para o lado e esperaram que os 250 animais passassem. Estes dirigiram-se para a 5ª zona, onde o cão já os esperava, e acumularam-se numa multidão ao lado dos camiões. O cão, o único animal que sabia conduzir, escolheu dez animais ao acaso (dois para cada camião) e rapidamente ensinou-lhes a conduzir. Entregou-lhes as chaves dos veículos, e depois ajudou ao embarque dos restantes animais. Havia um camião para cada 50, pelo que eles teriam que se apertar dentro do atrelado para caberem todos lá dentro. Mas, de repente, ouviram-se passos e o cão percebeu que os funcionários vinham aí. Rápido, correu para a carrinha, ligou-a e, recuando, conseguiu bloquear a porta com o próprio veículo segundos antes de os funcionários lá chegarem. A porta abria para fora, pelo que apenas se conseguia abrir uma nesga até a madeira bater na traseira da carrinha. Os funcionários viram o que estava a bloquear a porta através do buraco da fechadura, mas apesar disso não desistiram de sair. Foram buscar um machado (que seria usado no caso de haver um incêndio e de a porta estar a impedir a saída dos ocupantes do edifício), e começaram a dar machadadas na porta para a partirem e poderem passar.

Todavia, os funcionários foram incapazes de se soltar antes da partida dos animais. Quando todos estavam a bordo dos camiões, o cavalo entrou dentro da carrinha, ao lado do cão, e juntos arrancaram e seguiram para fora do matadouro. A porta do edifício, gravemente danificada pelas machadadas, abriu-se quando a carrinha arrancou, e os funcionários correram para o exterior na tentativa de deterem os animais. Mas nada mais

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foram capazes de fazer do que chamar a polícia, e assistir à partida dos camiões que, em fila, seguiam a carrinha. Os condutores sabiam quais os limites de velocidade e que tinham a obrigação de parar nos semáforos vermelhos. A pena para as infracções era uma multa, e como os animais não tinham dinheiro para a pagar, sabiam que isso implicaria o seu regresso ao mercado e ao matadouro. Assim, respeitando as regras, circularam tranquilamente pela cidade do Porto, sempre abaixo dos 50 km\h. Havia algumas ruas em obras, pelo que os animais foram forçados a desviarem-se para este. E, enquanto estes prosseguiam com a sua fuga, o casal protagonista do filme «Matadouro: a História de um Industrial» chegava ao fim da Linha do Norte, na estação de Porto-Campanhã, a bordo de um Alfa Pendular. O comboio tivera um atraso de 20 minutos, pelo que o casal receava que o Matadouro do Porto tivesse entretanto desistido de os transportar até à estreia do filme. Portanto, foi com alegria que viram a carrinha azul da empresa parada em frente à estação, seguida por 5 camiões, tal como fora combinado. Na verdade, a carrinha estava parada apenas porque tinha à frente um semáforo vermelho, mas o casal não sabia disso, e muito menos que os condutores eram animais. Os dois aproximaram-se da carrinha, e apresentaram-se como sendo o casal protagonista do filme. O cavalo e o cão, pelas conversas que tinham ouvido, perceberam que estava previsto aquela carrinha ir levar o casal à estreia do filme, e como eles estavam a guiá-la tinham que ser eles a levar o casal. Os dois subiram para a caixa da carrinha, e quando o semáforo ficou verde, o cão arrancou, seguindo as instruções do casal para chegar ao local da estreia.

A rua onde ficava o cinema tinha a maior concentração de gente que os animais alguma vez tinham visto. Havia barreiras a separar os passeios da estrada, e todos os centímetros quadrados de passeio estavam ocupados por gente que queria ver a chegada dos actores do filme. Quando a carrinha chegou à rua do cinema, um altifalante anunciou «E agora: os protagonistas do filme», e todos os espectadores ficaram eufóricos. A carrinha parou em frente ao tapete vermelho que ia da estrada à entrada do cinema, para o casal descer, mas antes de isso acontecer os dois animais mudaram de ideias. Já que os protagonistas iam para o cinema, pois que fossem levados mesmo para o seu interior. Para espanto do casal, a carrinha guinou para o passeio e avançou pelo tapete vermelho em direcção ao cinema. Entrou dentro do edifício, subiu a rampa que dava acesso às salas e só parou em frente à sala onde se iria projectar o filme. Os protagonistas saíram da carrinha e, quando os animais se preparavam para ir embora, disseram-lhes que estava previsto ficarem para ver o filme (assim como todos os empregados do matadouro, que nunca chegariam a ir à estreia por falta de transporte), e perante a recusa dos animais em ficar insistiram em como eles tinham de ir ver a estreia. Enquanto os animais dialogavam com os

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protagonistas, os condutores dos camiões, parados na rua, viram com horror as últimas pessoas que queriam ver: os donos. Afonso e Aníbal Gomes, acompanhados pelo seu idoso pai, que surgiram a correr na esquina da rua, e para horror dos condutores dos camiões, que se abaixaram para não serem vistos, entraram dentro do cinema. Os donos eram amigos de longa data dos protagonistas, e haviam obtido bilhetes para assistirem à estreia do filme devido a essa amizade.

Quando o cão e o cavalo que lideravam a fuga olharam para entrada do cinema, viram com horror aparecer os donos, que sem hesitar se dirigiram a eles. Confiando no seu disfarce, ficaram à espera deles, e de facto os três juntaram-se aos animais e aos protagonistas à entrada da sala. Os animais puderam constatar que os Gomes eram amigos dos protagonistas, Fernando e Margarida Carvalho, pois tratavam-nos por «tu». Juntou-se a eles o vilão do filme, Eduardo Dias, que ao contrário dos Carvalho não conhecia os Gomes. Foi apresentado, e rapidamente os actores e os Gomes estavam envolvidos numa conversa amigável. Os animais mantinham-se à parte, calados, aguardando pela distracção do grupo para poderem entrar na carrinha e sair do cinema. Mas Afonso Gomes reparou nos dois funcionários, e estranhando o seu aspecto começou a fazer-lhes perguntas. Perguntou-lhes a sua terra de origem, e aí os dois animais perceberam logo que iam ser apanhados, que Afonso desconfiava deles e que estava a tentar descobrir a sua verdadeira identidade. Perante a hesitação dos falsos funcionários, os actores foram dando sugestões de lugares, e os animais, não tendo mais nada a que se agarrar, iam dizendo sim a tudo. O cavalo, castanho-escuro, conseguiu fazer-se passar por africano das antigas colónias portuguesas, e o cão de cor castanho-clara fez-se passar por macaense de pais chineses. Como nos seus supostos lugares de origem o português era uma língua oficial, os animais puderam justificar automaticamente como sabiam falar aquela língua, mesmo ignorando essa questão e sem dizer nada a esse respeito. Então, começou-se a ouvir uma voz vinda da sala onde seria transmitido o filme, e aí os presentes pararam de conversar e entraram dentro da sala. Os animais, para não fazerem os donos desconfiar ainda mais deles, seguiram-nos. Acabaram por se sentar no meio da plateia, imediatamente abaixo dos donos e dos actores principais, mas para sua sorte no alto da sala, logo, perto da porta de saída.

Na verdade, o filme «Matadouro: a História de um Industrial» ainda não tinha começado, pois as luzes da sala mantinham-se acesas. Margarida Carvalho gostava de se manter informada, e para agradar à esposa, Fernando fizera questão de mandar transmitir as notícias mais recentes antes do filme. Assim, a voz que se ouvira era a do apresentador do noticiário e não a das personagens do filme. Os animais, informados pelos actores de que antes do filme iam ser transmitidas notícias, começaram a observar a assistência na esperança de que esta estivesse concentrada no

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noticiário, para poderem sair sem darem nas vistas. E, de facto, os espectadores estavam ocupados a observar a tela panorâmica, pois foi transmitida em primeiro lugar uma notícia que envolvia o principal cenário do filme: o Matadouro do Porto. Segundo o apresentador, o Matadouro do Porto fora assaltado cerca de 20 minutos antes por um grupo de 100 animais fugidos do Mercado do Bolhão, que tiraram de lá os animais destinados ao abate, provocaram estragos avaliados em mais de 1.000 euros (a máquina que degolava os animais, despedaçada pelo cavalo presente no cinema, e a porta desfeita à machadada pelos funcionários) e que por fim roubaram todos os 6 veículos da empresa, destinados a transportar os actores principais do filme «Matadouro: a História de um Industrial» da estação de Porto-Campanhã até ao cinema onde seria estreado o filme. O paradeiro dos animais era desconhecido, mas a polícia suponha que os animais se encontravam ainda no Porto. Quando os dois animais perceberam que a notícia se referia à sua fuga do mercado, não esperaram mais. Antes de os espectadores perceberem que eles não eram funcionários do mercado, saíram das bancadas e tentaram alcançar a saída. Mas, antes de lá chegarem, Aníbal Gomes denunciou-os. Apontou para eles e gritou para a plateia «Apanhem-nos! Eles assaltaram o matadouro!». Depois, os dois Gomes abandonaram os seus lugares e, passando pelas cadeiras ao lado, tentaram alcançar os animais. Estes desataram a correr, e quando se viram dentro da carrinha, o cão ligou o motor, pôs a marcha-atrás e saiu do cinema. Depois, pôs a primeira e acelerou pela rua adentro, seguido pelos camiões. Tinha começado a perseguição.

O cavalo e o cão sabiam que tinham boas hipóteses de conseguirem escapar à polícia, cujas sirenes já se ouviam ao longe. A carrinha, segundo o funcionário que ensinara o cão a conduzir, era bastante veloz, atingia os 220 km\h (sabiam que a carrinha dos donos só chegava aos 180 km\h). Os camiões só chegavam aos 160, mas eram tão resistentes que dificilmente seriam parados pelas autoridades. Deixando para trás o cinema, os actores e os Gomes, os últimos só voltariam a ver quando chegassem à Quinta da Confusão, a carrinha acelerou rumo a Norte, cada vez mais depressa. Haviam 5 carros da GNR no encalço do grupo, e na tentativa de escapar os dois animais fizeram uma condução perigosa. Passaram semáforos vermelhos, ultrapassaram carros pelos passeios, fizeram curvas de tal modo que até deixavam borracha na estrada e inclusive passaram dos 120 km\h, tudo em ruas estreitas ladeadas de prédios. Os camiões, para não perderem de vista a carrinha, tiveram também que acelerar, e a certa altura já iam a 100 km\h no meio da cidade. O camião da frente, muito menos ágil do que a carrinha, por pouco não evitou algumas colisões. Por fim, o grupo alcançou a VCI, ou Via da Cintura Interna, equivalente a uma auto-estrada. Mas, infelizmente, o acesso à auto-estrada estava engarrafado, pois era a hora de ponta na cidade. A única hipótese era os animais permanecerem na

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Avenida de Fernão Magalhães, a alternativa do GPS devido ao congestionamento da estrada. Como não queriam ficar presos no engarrafamento, os animais que conduziam a carrinha aceitaram os conselhos do GPS e seguiram em frente. A nova rota dizia para eles virarem para a Estrada da Circunvalação, ou N12, e daí entrarem na A3. Todavia, alguns metros depois de a carrinha ter entrado na N12, surgiu à frente dos animais um bloqueio de estrada, com os carros da polícia tão juntos que nem uma mota poderia passar entre eles.

O cão e o cavalo sabiam que tentar abalroar um carro era sinónimo de correr o risco de a carrinha não andar mais com os danos, para além de poderem ficar seriamente magoados na colisão. Felizmente, a intenção da polícia não era detê-los com aquele bloqueio mas sim cortar-lhes o acesso à Auto-estrada nº3 e forçá-los a manterem-se em estradas nacionais, onde com o trânsito teriam que andar mais devagar e, logo, terem menos hipóteses de escaparem. O bloqueio estava a seguir a um cruzamento, e sem hesitar o cão virou para norte, entrando na N105. Com a mudança de direcção, o GPS marcou uma nova rota, e os animais perceberam que aquele aparelho criava uma nova rota sempre que se saía do percurso original. Assim, já podiam mudar de direcção as vezes que fossem necessárias, que o GPS criava sempre um novo caminho. Da estrada nacional 105 passou-se para a 208, e daí para a A4. Segundo o GPS, pela A4 os animais iriam ter quase à Quinta da Confusão, faltando um último troço até à quinta.

Mas, para entrarem na A4, eles tiveram que passar por um obstáculo imprevisto: as portagens. Quando se aperceberam, tinham uma estrutura branca e verde à sua frente, com alguns espaços pelo meio que, pelo menos pareciam, ter largura para um carro passar. Mas os condutores da carrinha não prestaram atenção à sinalização, que dizia que o limite de velocidade nas portagens era de 60 km\h. Resultado: apanharam um pouco de gelo na estrada (que a 60 km\h pouca importância teria) e não conseguiram passar pelo espaço. O funcionário que cobrava as portagens conseguiu saltar do seu cubículo segundos antes de a carrinha chocar contra ele, a quase 140 km\h. O cubículo desfez-se na colisão, mas a carrinha apenas ficou com uns riscos na pintura. Depois, os 6 veículos entraram na A4, onde supostamente poderiam seguir a alta velocidade quase até à Quinta da Confusão. Todavia, a GNR decidiu intensificar a perseguição, achando que aqueles animais estavam a pôr em perigo os outros condutores. De 5 passaram a haver 20 carros da polícia, que tentaram por várias vezes pôr-se à frente da carrinha para a forçar a parar. Também aumentaram os bloqueios de estrada, mas a carrinha escapava sempre pela berma da auto-estrada. Para escapar aos seus perseguidores, os dois animais eram forçados a acelerar para perto dos 200 km\h, e chegando mesmo à velocidade máxima em certas alturas. Os camiões iam perdendo de vista a carrinha,

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mas na curva seguinte já a voltavam a ver. Havia ainda muito caminho pela frente, e cada vez mais a polícia dificultava a vida dos animais.

12:30 Habitantes: 260

Após mais de 3 horas e de 250 km de perseguição, os animais estavam estoirados. Depois do fim da A4, a polícia montara numerosos bloqueios de estrada, que forçaram os animais a desviarem-se constantemente do caminho, a entrarem em caminhos municipais a km da estrada principal e a atravessarem dezenas de povoações que em circunstâncias normais não teriam sequer visto ao longe. E o pior era que, em cada povoação, haviam carros da GNR à espera, como uma matilha de lobos à espera da presa. Mas a presa, neste caso a carrinha, era ágil e conseguia meter-se nas ruelas mais estreitas, parar por uns minutos até a polícia estar noutro lado e por fim sair da povoação e regressar à estrada principal, sempre com os 5 camiões atrás. Era um jogo do gato e do rato longo e desgastante para os «ratos», que tinham que estar sempre a arranjar novas estratégias para despistar os «gatos» que apareciam em cada esquina e eram cada vez em maior quantidade. Ainda por cima, a estrada principal, que era o IP4, fora abandonada pelos animais em Vila Real devido à polícia, e o GPS levara-os pelo meio dos campos transmontanos para longe de qualquer estrada importante. A estrada principal pouco passava de um simples caminho municipal, onde quase não se via nenhum carro, e cheio de curvas e contracurvas. O cão, que insistia em não tirar a pata do acelerador nem nas mais apertadas curvas, por várias vezes pôs a carrinha à beira do precipício, com uma das rodas traseiras a girar em falso acima do vazio. Houve uma vez em que, quando a carrinha ia a 100 km\h, apareceu-lhe à frente uma curva de 180 graus. Como se guiasse um carro de rali, o cão puxou ao máximo pela direcção sem sequer abrandar, pelo que a carrinha derrapou até deixar borracha na estrada e ficou a cm da borda do precipício, mas conseguiu fazer a curva. Os polícias que viram a manobra tiveram que admitir que os animais sabiam conduzir muito bem, pois davam-se ao luxo de fazer manobras perigosas com frequência. Apesar das manobras perigosas do cavalo e do cão, os condutores dos camiões preferiam fazer as curvas devagar e com cuidado e apenas acelerar mais nas rectas. No entanto, algumas curvas eram tão apertadas que o atrelado raspava a encosta ao lado da curva, e os 5 camiões tinham já bastantes estragos na estrutura de alumínio.

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Numa recta mais longa do que o normal, porque estava num planalto, um GNR tentou efectuar a manobra PIT6 à carrinha. Pôs a dianteira do carro ao lado da traseira da carrinha e tentou, usando essa parte do carro, empurrar a traseira da carrinha para o lado, de modo a que a carrinha ficasse perpendicular à estrada e saísse dela. Quando o veículo saísse da estrada, teria que abrandar, e nessa altura os outros carros da polícia deveriam cercar a carrinha e abrandar até esta parar de vez. O polícia conseguiu efectuar a manobra PIT à carrinha e fazê-la sair da estrada, mas o resto já não correu como planeado. O cão acelerou e voltou à estrada antes de o seu veículo ser cercado pela GNR, e por sua vez efectuou a manobra PIT ao carro da polícia. O condutor não esperava aquilo, mas conseguiu travar e evitar ser posto fora da estrada. Apesar disso, o carro rodou 270 graus e ficou atravessado no meio da estrada. E não sairia dali sozinho: o camião da frente, que se aproximava, tentou desviar-se do carro, mas o condutor não tinha a noção do comprimento do veículo e regressou à estrada cedo demais. As rodas traseiras atingiram o capôt do carro da polícia e arrancaram-no da carroçaria, rente ao habitáculo. Quando os dois GNR do carro se aperceberam, o veículo perdera 1 metro de comprimento e algumas centenas de quilos, para além da sua mobilidade. Dali só sairia, levado pelo reboque, para a sucata. Mas a manobra dos animais convenceu os polícias de que precisavam de algo mais para deter o grupo. Mas o que poderiam usar, se tudo falhara? A resposta estava alguns km mais à frente: a Linha do Tua. Se pusessem um comboio parado na linha e vários carros na berma da estrada a carrinha seria forçada a parar, e com ela todos os camiões (já se tinha percebido que a carrinha era a cabecilha da fuga). De imediato, um dos polícias ligou para a sua esquadra, que por sua vez contactou a CP. Informada do problema, a empresa aceitou parar um comboio naquela passagem de nível, mesmo sendo um troço da linha encerrado. Antes que a carrinha chegasse à passagem de nível, surgiram vários carros da polícia vindos de aldeias vizinhas, que pararam nas bermas para bloquear a estrada e impedir que o veículo saísse dela. Por fim, surgiu o comboio, uma automotora verde, que parou na passagem de nível, fechando a estrada.

Quando a carrinha surgiu ao longe, os dois animais depararam-se com um cenário aparentemente sem escapatória: dezenas de carros da polícia a ladear a estrada e, ao fundo, um veículo verde a cortar a passagem. Dessa vez, os animais não conseguiram arranjar maneiras de escapar. Tiraram a pata do acelerador e deixaram a carrinha ir andando até parar. Quanto aos

6 Precision Immobilization Technique (Técnica de Imobilização de Precisão). Técnica

usada pela polícia em perseguições para fazer o suspeito perder o controlo do veículo

e parar. Por motivos de segurança, faz-se em velocidades abaixo dos 55 km\h.

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camiões, tiveram também que parar pois o veículo que continha a rota para a Quinta da Confusão, a carrinha, também estava a parar. Os polícias, certos de que a perseguição acabava ali, aproximaram-se da carrinha para deterem o cão e o cavalo. Mas o cão, ao observar a estrada à sua frente, teve uma ideia para fugirem. A carrinha estava numa subida moderada, que acabava na ponte sobre o rio Tua (a linha com o mesmo nome ficava ao lado do rio), e 10 metros depois estava o comboio que bloqueava a passagem dos animais. Se a carrinha, usando a subida como rampa, conseguisse passar por cima do comboio, os animais poderiam continuar a sua viagem até à Quinta da Confusão. No último momento, quando os polícias iam já abrir as portas da carrinha para tirarem de lá os animais, o cão pisou no acelerador e arrancou a toda a velocidade. O cavalo, espantado, questionou o cão sobre a sua ideia, e o cão respondeu-lhe que iriam usar a subida como rampa para saltarem por cima do comboio. A carrinha ia a 160 km\h quando atingiu o fim da subida. O veículo levantou voo, subindo até cerca de 5 metros de altura. Depois, começou a perder altura, e para horror dos polícias, acabou por aterrar 1 metro à frente do comboio. Os dois animais festejaram, pois tinham conseguido escapar das autoridades mesmo no último segundo. Quando os camiões perceberam que a carrinha tinha saltado por cima do comboio, não hesitaram. Começaram a acelerar, e o maquinista conseguiu desviar o seu comboio por uma questão de segundos. Quando os 5 camiões passaram a passagem de nível sem guarda, as dezenas de carros da polícia envolvidas na tentativa de detenção começaram a perseguir os fugitivos, recomeçando a perseguição.

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Ilustração 5 – Automotora do Metro de Mirandela, igual à usada para se bloquear a

passagem dos animais junto ao Rio Tua

Agora a escassas dezenas de km da Quinta da Confusão, os dois animais apostaram na velocidade para chegarem à quinta mais depressa. Chegavam a andar a 150 km\h nas rectas, e como as curvas se tinham tornado menos apertadas passaram a fazê-las a 100-120 km\h, às vezes a 140 km\h. Apelidados de «doidos» pelos polícias que os perseguiam, os animais lá chegaram à última povoação antes da quinta: Carrazeda de Ansiães. Mas as coisas não correram muito bem para os dois animais da carrinha. Tinha havido um pequeno acidente à entrada da povoação, em que um camião de transporte de produtos químicos com destino a Bragança sofrera uma falha na estrutura no atrelado, que começara a verter químicos para a estrada. Os bombeiros, protegidos pelos seus fatos, estavam a tentar estancar a fuga quando surgiu a carrinha a 160 km\h. Não houve qualquer hipótese de escapatória. O veículo passou por cima dos químicos derramados, perdeu a aderência à estrada e começou a deslizar de lado, velocíssimo, sem controlo. Andou assim algumas centenas de metros, até entrar no terreno de uma bomba de gasolina. Para horror dos presentes, a carrinha atingiu os postos de abastecimento, arrancando-os do sítio e fazendo jorrar o combustível dos reservatórios a 5 metros de altura, como se fosse uma fonte. A carrinha entretanto recuperou o controlo e continuou a andar. Os camiões seguiram-na, apesar de a estrada ir ficando cada vez mais alagada com o combustível que jorrava da bomba destruída, assim como alguns dos carros da polícia. Mas para a maioria dos GNR, a perseguição terminava em Carrazeda de Ansiães. Quando o combustível da bomba alcançou os químicos derramados do camião, deu-se uma reacção química com consequências catastróficas. De repente, surgiu uma cortina de chamas com 5 metros de altura, no local onde segundos antes estavam combustível e químicos derramados. Os polícias, quando se aperceberam, tinham um tapete de líquido ardente a bloquear-lhes a passagem. A cortina de chamas tinha-se dissipado, mas todo o líquido derramado estava a arder. Dos depósitos de combustível jorravam jactos de fogo, e o camião que transportava os químicos nada mais era agora do que uma estrutura em chamas. Não havia mortos nem feridos, mas o fogo levaria horas a apagar.

Ignorando a catástrofe que provocaram, os dois animais abandonaram Carrazeda de Ansiães. Então, quando o GPS indicou que tinham chegado ao destino, a carrinha virou para sul, saindo da estrada. Segundo o funcionário do matadouro que pusera a rota no GPS, seriam alguns km até à Quinta da Confusão a corta-mato (não havia nenhuma estrada que fosse lá dar). Então, os dois animais começaram a conversar acerca da quinta, dando pouca atenção ao caminho. E isso foi-lhes fatal. Surgiu-lhes à frente uma grande pedra, e o cão apercebeu-se dela tarde demais. A rocha bateu

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violentamente no fundo da carrinha, fazendo-a dar um grande solavanco. E, quando o cão tentou virar um pouco a carrinha, apercebeu-se de que as rodas já não respondiam ao volante. A carrinha partira a direcção ao bater na pedra, o que queria dizer que agora já não podia mudar de direcção. Por isso mesmo, assim que a carrinha entrou na Quinta da Confusão o cão travou a fundo. Todavia, a neve alta retardou bastante a travagem. O veículo andou 200 metros sem parar e, a 50 km\h, embateu numa árvore. Os airbags dispararam de imediato, impedindo os animais de bater com a cabeça no carro. Depois, estes desincharam, permitindo que os animais saíssem da carrinha, depois de deixarem as fardas nos bancos. O veículo ficara com o capôt amolgado na colisão, e do motor saía já um pouco de fumo. Mas os animais tinham conseguido o seu objectivo: fugir do Porto, atravessar Portugal e alcançar a Quinta da Confusão. Os 5 camiões pararam dentro da quinta, e os seus condutores foram abrir as portas dos atrelados para os animais que estavam lá dentro poderem sair. Os 8 animais que já estavam na quinta, ao ouvirem o alarido, saíram da estufa, e ficaram radiantes ao verem tantos animais na quinta, muitos dos quais conhecidos seus. Os animais que não viveram na Quinta da Confusão, que tinham vindo de outras quintas (tinham-se tornado racionais no mercado e no matadouro), ficaram surpreendidos com a estufa erguida pelos 8 animais, e quiseram logo saber mais acerca dessa construção. Mas não houve tempo para se dizer nada, pois de repente ouviram-se sirenes e, de um momento para o outro, apareceram dezenas de carros da polícia na Quinta da Confusão.

O ruído das sirenes atraiu os donos (que regressaram à Quinta da Confusão pelo caminho normal, sem desvios nem atrasos, levando apenas hora e meia a ir do Porto até lá), que saíram de casa e se dirigiram aos polícias. Os polícias estavam mais perto da sua casa do que os animais, pelo que os donos não repararam na multidão de animais. Simplesmente dirigiram-se aos polícias, e perguntaram o que se passava. Os polícias disseram que os seus animais:

1. Tinham roubado 5 camiões e 1 carrinha do Matadouro do Porto; 2. Tinham andado durante dezenas de km em excesso de velocidade; 3. Tinham feito uma condução perigosa e posto em perigo os outros

condutores; 4. Tinham destruído as portagens de uma entrada da A4; 5. Tinham resistido várias vezes à sua detenção; 6. Tinham inutilizado um carro da polícia; 7. Tinham destruído a bomba de gasolina de Carrazeda de Ansiães; 8. Tinham provocado um incêndio nessa mesma povoação; 9. Dois deles tinham-se feito passar ilegalmente por funcionários do

Matadouro do Porto;

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10. Os mesmos tinham participado ilegalmente num evento importante

Os donos começaram por não acreditar que os seus 8 animais tinham feito tudo isso, mas depois pensaram melhor no assunto. Uma suspeita começou a surgir nas suas mentes e, temendo confirmar os seus receios, atreveram-se a olhar para o lado. Viram logo uma multidão de 250 animais juntamente com 5 camiões, e perceberam tudo. Os 250 animais que tinham fugido do Mercado do Bolhão e do Matadouro do Porto estavam ali, na Quinta da Confusão, e no caminho para ali tinham feito todos os crimes e infracções apontados pelos polícias. Ainda por cima, os animais não hesitaram em denunciar os maus-tratos que os Gomes faziam, como fazê-los passar fome e não lhes dar alojamentos adequados. Os dois foram acusados de maus-tratos e negligência para com os animais, para além de serem considerados responsáveis por eles e, logo, pelos seus crimes e infracções. Por isso, foram detidos pela GNR e levados para Carrazeda de Ansiães, onde iriam prestar declarações à polícia. Entraram na sua carrinha verde e abandonaram a quinta, escoltados por todos os carros da GNR. Terminava assim a «Fuga do Mercado», de um modo glorioso pois não só todos os animais tinham chegado à Quinta da Confusão como os donos iam pagar pelo modo como abandonaram os animais durante anos, usando-os apenas para enriquecer.

Ilustração 6 – Percurso da Fuga do Mercado, entre o Porto e Carrazeda de Ansiães.

Não inclui as passagens pelas povoações do interior feitas pelos animais para

evitarem os bloqueios de estrada da polícia

Assim que os animais se viram sozinhos na quinta, só com os camiões e a carrinha danificada, trataram logo de se informar do que se passara na sua ausência (excepto os animais que nunca tinham estado na quinta, esses queriam saber tudo o que acontecera desde o Dia 1). Os 8 animais que tinham escapado à captura no dia anterior contaram tudo detalhadamente, e enquanto as histórias iam circulando pela multidão, alguns dos animais começaram a erguer estufas para haver comida para toda a gente. Em breve, todos os 260 animais da Quinta da Confusão estavam envolvidos no

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cultivo de ervas e na construção de estufas, para que ninguém passasse fome na quinta. À medida que os locais perto da ribeira iam ficando cultivados, os novos terrenos de cultivo tinham que estar cada vez mais longe do curso de água por falta de espaço. Mas isso não importava, o importante era mesmo o alimento. Troncos ocos com o fundo tapado serviam de regador improvisado, que chegavam a transportar água por mais de 100 metros desde a ribeira até à plantação.

14:00 Habitantes: 255

Hora e meia após o fim da Fuga do Mercado, a situação na quinta estava tão normal como se os animais nunca tivessem saído de lá. Tinham sido erguidas mais de 15 estufas, a maior das quais tinha já 10 metros de comprimento por 5 de largura. Outras 3 estavam em construção, e como a madeira das pequenas árvores já não chegava para as construções, iam-se derrubando árvores cada vez maiores para fornecerem madeira para o estaleiro. As duas centenas e meia de animais trabalhavam na construção, lavraram os terrenos ou regavam as ervas, sendo que a maioria das plantações estavam fora das estufas porque as folhas de plástico não chegavam para cobrir todo o espaço. Por isso, faziam-se estufas cada vez maiores para cobrirem mais espaço do que se fizessem muitas estufas pequenas, que consumiriam mais folhas de plástico. A Quinta da Confusão estava perfeitamente em ordem, sem nada que fosse destabilizar a situação… até se ouvir uma série de motores ao longe. Os animais do norte da quinta olharam nessa direcção e viram ao longe a carrinha dos donos. Mas, para seu horror, os donos estavam acompanhados. Doze camiões e 60 carrinhas vermelhas seguiam a carrinha, indicando que os funcionários vinham aí. E, para haverem 60 carrinhas, era porque os funcionários deviam ser 300. Trezentos funcionários vinham a caminho para, de novo, levarem os animais da Quinta da Confusão. Mas como era isso possível, se os donos tinham sido levados pela polícia? Os donos sabiam muito bem a resposta. O polícia que os interrogara na esquadra de Carrazeda de Ansiães considerou que o caso deveria ir a tribunal, pelo que os donos foram levados de helicóptero para Bragança, onde foram julgados. O juiz considerou que os responsáveis pelos animais, na altura em que fugiram, eram o Mercado do Bolhão e o Matadouro do Porto, ilibando os donos de terem que pagar os estragos que provocaram. Mas dos maus-tratos e da negligência aos animais, isso os donos não conseguiram escapar. Foram condenados a 6 meses de prisão cada um, ou a 2.500 euros de fiança. Os donos optaram por pagar a fiança, tirando 5.000 euros da sua conta para pagar a fiança dos dois.

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Mas, assim que saíram em liberdade, eles contactaram as 3 empresas de captura locais. O juiz dissera que eles tinham o direito de vender os animais, desde que não abusassem. E os donos usaram esse direito. Saíram de Bragança num dos camiões, à frente de todos os veículos e funcionários das 3 empresas, e quando chegaram a Carrazeda de Ansiães trocaram o camião pela sua carrinha. Foi essa frota que os animais do norte da Quinta da Confusão viram, e a primeira coisa que fizeram foi dar o alarme. As reacções dos companheiros variaram. Vários optaram por se esconder nas estufas, esperando que o plástico translúcido os escondesse. Outros subiram às árvores e refugiaram-se nas construções da quinta, no escoadouro, no túnel, ou mesmo nos veículos usados na Fuga do Mercado. Dessa forma, nenhum animal estava à vista quando os funcionários chegaram. Através dos seus esconderijos, os animais observaram os 300 invasores a vaguear pela quinta, aparentemente sem saber onde estavam os animais. E, de facto, não sabiam onde eles estavam. Mas calculavam os sítios, e a primeira coisa que fizeram foi irem às estufas. Cinquenta animais foram apanhados nas construções, que afinal não foram esconderijo algum. Mas havia um animal, que se refugiara na cabina de um dos camiões, que estava atento. Quando os 50 animais estavam a ser embarcados em dois camiões inimigos, o animal ligou o motor, pôs a primeira e acelerou rumo aos veículos.

Os funcionários, ao verem aquele veículo colossal a vir na sua direcção, largaram os animais e fugiram. O animal parou o camião ao pé dos outros dois camiões, permitindo que os 50 animais embarcassem dentro dele. Todavia, 5 deles foram anestesiados pelos funcionários antes de chegarem ao atrelado, e por pouco os dardos não entravam no seu interior. Tendo que deixar para trás os 5 companheiros, o condutor do camião arrancou velozmente, levando 45 animais para fora de perigo, e contornando a ribeira pela nascente chegou à margem direita, dentro da Quinta da Confusão. Ainda não havia funcionários naquela margem, mas os animais sabiam que eles não tardariam a chegar. Os motoristas dos outros camiões tirados ao Matadouro do Porto, vendo que os seus companheiros estavam reunidos na outra margem, puseram os veículos em marcha e recolheram todos os animais da margem esquerda, levando-os para a segurança do outro lado da ribeira. A situação estava agora igual à da I Guerra dos Animais, com a margem esquerda dominada pelos funcionários e a direita pelos animais. Com a diferença de que se estava numa nova guerra civil: a II Guerra dos Animais, de novo iniciada pelos donos.

16:00 Habitantes: 250

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Os funcionários, duas horas depois do começo da II Guerra dos Animais, perceberam por fim que os animais não iriam àquela margem da ribeira. Esperavam que eles fossem tentar resgatar os 5 companheiros presos, mas tal não aconteceu. Então, às 16 horas, os funcionários decidiram atacar. Com a carrinha dos donos à frente, os 12 camiões e as 60 carrinhas encaminharam-se para a nascente da ribeira, a única coisa que os separava dos animais. Os 300 funcionários esperavam que os animais oferecessem resistência, tal como os donos tinham avisado, mas ninguém previu a sua verdadeira reacção ao ataque. Eles, quando viram os veículos inimigos em movimento, decidiram detê-los para que os funcionários não chegassem àquela parte da quinta. Dez animais embarcaram nos 5 camiões roubados ao Matadouro do Porto horas antes, e encaminharam-se para a frota dos funcionários. Os dois lados da guerra encontraram-se na nascente da ribeira, frente a frente. Os donos, quando perceberam a situação, puseram-se fora do campo de batalha para comandarem os funcionários, como se fossem verdadeiros oficiais das Forças Armadas. Tanto eles como os funcionários tinham aparelhos de rádio para comunicar entre si, e os Gomes usaram-nos para dar ordens. Quanto aos animais, não vacilaram perante a superioridade numérica do inimigo. Carregaram no acelerador e avançaram para as carrinhas dos funcionários, dando início à Batalha da Nascente da Ribeira, a primeira batalha da II Guerra dos Animais.

Os donos nada sabiam de tácticas militares, mas lá foram comandando os funcionários via rádio (que, no entanto, apenas ali estavam para capturar os animais, não para entrarem em batalhas). Mandavam recuar dois camiões, avançar três, atirar um contra a lateral de um camião inimigo, para o fazer cair de lado, e outras estratégias improvisadas. A mais forte que os Gomes arranjaram era uma estratégia chamada de «cerco» pelos próprios. A estratégia consistia em cercar um camião inimigo com carrinhas, quando este parasse por qualquer motivo. Para evitar que abalroasse o veículo da frente e escapasse, à frente e atrás do camião haveriam várias carrinhas, de tal modo que o camião não tivesse força para as empurrar. Depois, os funcionários só tinham que entrar na cabina do veículo e prender os condutores. Quando a estratégia resultou pela primeira vez, os dois animais que estavam no camião cercado trancaram as portas, e tentaram acelerar ao máximo para fugirem. Todavia, nem levando ao limite as rotações do motor os animais conseguiram empurrar as carrinhas que tinham à frente deles. Resignaram-se com a derrota, e desligaram o motor aguardando pelo inevitável. Um dos funcionários tentou abrir a porta do condutor, mas esta estava trancada e ele não o conseguiu fazer. Então, foi à sua carrinha e voltou com um pé-de-cabra, que enfiou no espaço entre a porta e a cabina. Começou a fazer força com o instrumento, mas antes de conseguir abrir a porta um outro camião animal viu a situação. O condutor dirigiu o veículo para as 5 carrinhas que estavam à frente do camião cercado, e acelerou a

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fundo. Quando os ocupantes dessas carrinhas se aperceberam, era tarde. O camião acertou na traseira de duas delas a 80 km\h, atirando-as 5 metros para a frente e deixando um espaço de alguns metros no seu lugar para o camião aliado poder escapar. Os dois animais que iam a bordo não perderam a oportunidade. Ligaram o motor e arrancaram de tal forma que o funcionário que tentava abrir a porta caiu, deixando o pé-de-cabra preso no camião. O veículo virou para a direita no espaço que o aliado lhes deixara e, apesar de ter atingido 2 carrinhas com o atrelado, conseguiu escapar do cerco ileso, apenas com a porta do condutor danificada pelo pé-de-cabra.

Os donos, furiosos por terem perdido 4 carrinhas naquele ataque, decidiram ajudar os funcionários. Um empunhou uma espingarda, outro uma pistola, e juntos alvejaram o camião inimigo que escapara ao cerco até esgotarem os carregadores. Dispararam 35 balas no total, e todas atingiram o camião, quer furando as rodas, quer acertando no capôt, onde atingiam mecanismos vitais do veículo. Uma das balas, por acidente, acertou mais acima do que os donos queriam: entrou numa das janelas da cabina, atravessou o espaço, quase atingindo os animais que iam a bordo, e saiu perfurando a janela do condutor. Mas as outras 34 cumpriram o objectivo dos donos: atingir os mecanismos do camião para o fazer parar. O veículo parou quando a bateria, atingida por 5 balas, falhou, e dessa vez não houve salvação para os animais. O pé-de-cabra ainda preso à porta do condutor foi usado para a abrir de vez, e os dois animais foram levados para junto dos seus 5 companheiros, presos dentro de um dos 12 camiões dos funcionários. Os animais perderam 1 camião, mas ainda tinham quatro para atacarem os funcionários. Foi isso que fizeram, focando-se sobretudo em atingir os camiões inimigos na lateral para os fazer cair de lado. Os donos também iam atacando os animais, e desistiram da estratégia do cerco para, tal como eles, se focarem em fazê-los cair de lado. Mais dois camiões animais ficaram fora de combate, caídos de lado, e os seus ocupantes foram presos. Todavia, um deles conseguiu saltar do camião onde estava antes de este tombar para o lado, e correu até à ribeira congelada. Os funcionários bem tentaram apanhar o porco fugitivo, mas este saltou para cima do gelo, partindo-o, e entrou nas águas geladas da ribeira. Depois mergulhou e nadou para debaixo do gelo, onde os funcionários não podiam nem alvejá-lo nem vê-lo. Ao princípio, a profundidade era tão pouca que o animal quase nem tinha espaço para nadar, encafuado entre o gelo e o fundo da ribeira. Mas depois, com braçadas vigorosas, o porco alcançou zonas mais fundas onde já se podia mover com mais liberdade. Quando já não aguentava mais estar submerso, partiu o gelo com as patas de trás e voltou à superfície. Assim que olhou para o local da batalha, viu que os camiões e as carrinhas dos funcionários se estavam a retirar. Os donos, devido às baixas nas suas carrinhas, decidiram retirar-se da batalha, dando a vitória da Batalha da Nascente da Ribeira aos animais.

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Batalha da Nascente da Ribeira

• Data: 16:00 – 16:15 do Dia 3 • Local: Nascente da ribeira • Resultado: Vitória dos animais • Combatentes: Donos X Animais • Forças: Donos – 12 camiões, 60 carrinhas, 300 funcionários;

Animais – 5 camiões, 10 animais • Líderes: Donos – Afonso Gomes e Aníbal Gomes; Animais -

Nenhum • Baixas: Donos – 5 camiões, 20 carrinhas; Animais – 3 camiões,

5 animais

Apesar de terem uma esmagadora superioridade numérica face aos animais, os donos decidiram retirar porque um terço das carrinhas dos funcionários tinha sido inutilizado pelos camiões dos animais, ou seja, um terço dos funcionários já só podia ir embora nos atrelados dos camiões. Os donos perceberam na batalha que as carrinhas eram um alvo fácil, pelo que estas não deveriam entrar em futuras batalhas com camiões. Era preciso criar uma estratégia para se vencerem os animais, mas os Gomes preferiram deixar isso para outra altura. Foram descansar para casa, enquanto os funcionários reparavam os danos dos veículos que sobreviveram à batalha.

Os ocupantes dos dois camiões que sobreviveram à Batalha da Nascente da Ribeira, quando chegaram à Quinta da Confusão, foram recebidos com grande alegria pelos companheiros. Graças a eles, ao porco que conseguira fugir e aos 5 animais presos na batalha, os funcionários não conseguiram alcançar a metade direita da quinta, onde os animais estavam. Mas estes também tinham a noção de que, com apenas 2 camiões, não conseguiriam deter uma nova invasão. Era precisa uma fortaleza que defendesse os animais, tal como o Celeiro-forte os defendeu no início do Dia 2. Mas a queda dessa fortaleza, após hora e meia de ataque, ensinara aos animais que as construções da Quinta da Confusão estavam velhas demais para servirem de abrigo, que os animais teriam que construir os seus futuros fortes de raiz. Estes reconheceram que tinham tecnologia suficiente para erguerem uma fortaleza na quinta: tinham madeira para o edifício, foices e arados para a cortarem conforme necessário. Até já tinham erguido mais de 15 estufas, portanto estavam familiarizados com a área da construção. Mas o problema surgiu quando alguém disse «E os pregos? Precisamos de pregos para unir as tábuas». Logo os animais começaram a discutir uns com os outros. Uns garantiam que as ranhuras que se faziam nas tábuas era

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suficientes para as unirem, outros diziam que esse método era demasiado frágil para a fortaleza, que a madeira do forte tinha que ser unida com pregos. Até que alguém se lembrou dos estranhos minerais encontrados no escoadouro, e comentou que esses minérios poderiam ser usados para fabricar pregos.

Logo um grupo de animais entrou no túnel que atravessava a quinta para trazer esses minerais, e estes regressaram com as patas carregadas deles. Foi identificado como sendo minério de ferro, ou seja, o escoadouro tinha jazidas de ferro prontas a explorar, que seriam úteis depois do fim da guerra. E logo se descobriu uma utilidade para esse minério: cortando o mineral com um arado ou uma foice na forma desejada, podiam-se obter pregos. Agora, parecia não haver obstáculos à construção de um forte na Quinta da Confusão. Mas, na verdade, faltava ainda uma coisa importante: o projecto. Os animais não tinham nenhum instrumento para escrever nem nenhum sítio onde o fazer. Todavia, um deles conseguiu resolver esse problema, riscando uma tábua de madeira com a ponta de uma foice. Usando-se as réguas do antigo celeiro, poder-se-iam fazer os desenhos à escala de cada lado da construção. Um grupo de 10 animais ofereceu-se para fazer o projecto. Então, enquanto os companheiros fabricavam pregos e tábuas de madeira, esses 10 animais desenharam em algumas tábuas a nova fortaleza da Quinta da Confusão, que foi baptizada de abrigo nocturno. A construção teria 10 metros de lado e 5 de altura, com 2 andares. Haveriam duas janelas por parede e por andar, sendo que a única porta do abrigo nocturno ficaria no lado norte do edifício. Quanto à capacidade, estava previsto a fortaleza poder abrigar 300 animais, 150 por andar. Não haveriam guaritas, o forte em caso de ataque seria um paralelepípedo fechado com várias dezenas de animais no seu interior, juntamente com comida e água, e duas lanternas penduradas no tecto de cada andar para os iluminar. O objectivo era fazer os funcionários esperarem tanto tempo lá fora que desistissem do ataque. Para evitar que estes conseguissem arrombar as paredes, estas tinham 5 cm de espessura, com trancas da mesma espessura a fechar as janelas e a porta.

Ilustração 7 – Projecto da parede norte do Abrigo Nocturno da Quinta da Confusão,

secção do rés-do-chão.

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Os 10 animais que fizeram o projecto do abrigo nocturno desenharam-no tão bem, de tal forma não deixaram nenhum aspecto de fora, que foram considerados pelos outros animais como os primeiros cientistas da Quinta da Confusão, animais intelectuais que fizessem progredir a tecnologia e projectassem as grandes obras da quinta. Mas os 250 animais sabiam que os funcionários poderiam atacar a qualquer momento, e por isso começaram a construção. Escolheram o ponto central da metade direita da Quinta da Confusão, a 250 metros da ribeira, para construírem o abrigo, limparam a neve e as pedras do espaço e começaram a escavar buracos para porem os alicerces. Estes eram 8 cilindros de madeira com 5 metros de comprimento e 20 cm de espessura, que se meteriam nos buracos. Depois, o chão do abrigo seria montado em cima deles e pregado ao seu topo. Metade dos alicerces já estava pronta. O resto ainda estava a ser feito: cortavam-se grandes árvores, tirava-se-lhe a casca e a copa e por fim raspava-se o interior, até se obter um cilindro liso com 5 metros de comprimento e 20 cm de espessura. Não havia qualquer previsão para o fim da construção da fortaleza, mas os animais sabiam que quanto mais cedo acabassem, melhor.

18:30 Habitantes: 195

Duas horas e meia após o começo da construção do abrigo nocturno, os animais conseguiram acabar o rés-do-chão da fortaleza. Até tinham as escadas para o andar superior, que ainda não passava do tecto do edifício.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-1 (Aéreos-0) (Marítimos -0) (Terrestres-1) (carroça de 2 rodas) Civil -6 (arado, foice, madeira, caixa de madeira, ferro, pregos) Construções-2 (estufas, abrigo nocturno)

A noite caíra durante a construção, mas por sorte havia luar. Os 10 cientistas que projectaram o abrigo nocturno, quando os companheiros deram por terminado o rés-do-chão do edifício, foram então ver se tudo estava em ordem, se a fortaleza estava suficientemente bem construída para abrigar 300 animais no seu interior. Mas, antes de entrarem no edifício, ouviu-se uma série de motores ao longe e, na outra margem da ribeira, acenderam-se vários faróis. Os funcionários tinham acabado as reparações dos seus veículos, e juntamente com os donos estavam agora a caminho da

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outra margem para capturarem os animais. Os camiões e as carrinhas estavam muito longe dos animais para serem vistos por eles, mas quando as luzes que se viam na outra margem começaram a avançar para norte os animais perceberam que os veículos estavam em movimento. Então, quatro deles entraram nos dois camiões ainda à disposição dos animais, e avançaram rumo à frota inimiga. Eles sabiam que, com apenas dois camiões, nada mais podiam fazer do que atrasar a chegada dos funcionários. Por isso mesmo, disseram aos companheiros para fugirem enquanto era tempo. Uns nadaram até à outra margem da ribeira, outros esconderam-se nas árvores, nas construções da quinta ou no túnel. Mas a nova fortaleza, o abrigo nocturno, recebeu 55 animais. Estes fecharam a porta e as janelas e trancaram-nas com trancas de 5 cm de espessura. Depois, acenderam as duas lanternas do tecto e aguardaram que tudo passasse. Quase 1 km para norte, os dois camiões guiados pelos companheiros alcançaram os veículos inimigos, iniciando-se a 2ª Batalha da Nascente da Ribeira. Quatro camiões foram destacados pelos donos para atacarem os inimigos e os manterem longe da restante frota, para que esta pudesse avançar sem problemas e alcançar a metade direita da quinta. Os animais bem tentaram lutar, mas os seus camiões tinham sido danificados na batalha anterior e, ao contrário dos veículos inimigos, não tinham tido quaisquer reparações. Ainda conseguiram atacar a frota que passava pela nascente da ribeira, abalroando e imobilizando 5 carrinhas, e fizeram cair de lado mais 1 camião atacante. Mas os problemas mecânicos ditaram a sorte dos veículos: avariaram junto à ribeira depois das pancadas dos camiões inimigos. Apesar de tudo os seus ocupantes conseguiram escapar, mergulhando na ribeira e desaparecendo na noite. Dessa vez, os donos tinham triunfado.

2ª Batalha da Nascente da Ribeira

• Data: 18:30 – 18:35 do Dia 3 • Local: Nascente da ribeira • Resultado: Vitória dos donos, início da 2ª Batalha da Quinta da

Confusão • Combatentes: Donos X Animais • Forças: Donos – 4 camiões, 8 funcionários; Animais – 2

camiões, 4 animais • Líderes: Donos – Afonso Gomes e Aníbal Gomes; Animais -

Nenhum • Baixas: Donos – 1 camião, 5 carrinhas; Animais – 2 camiões

(todos)

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Mal os funcionários chegaram ao território ocupado pelos animais até poucos minutos atrás, dirigiram-se logo ao abrigo nocturno, porque como este estava fechado era sinal de que havia alguém lá dentro. Os 55 animais barricados no abrigo nocturno perceberam, pelo ruído dos motores, que os funcionários estavam próximos, e não fizeram um único ruído para que se pensasse que o abrigo estava vazio. Mas isso não os salvou da captura. Os funcionários já esperavam que a porta estivesse trancada, portanto usaram uma das suas carrinhas para a forçar a abrir. Quando a tranca cedeu, os animais perceberam que estavam perdidos. Tentaram subir ao primeiro andar, que ainda não passava do tecto do abrigo nocturno, mas a construção estava cercada pelos funcionários. Os 55 animais foram então apanhados, e distribuídos por 3 dos camiões inimigos. Depois, os funcionários tentaram andar pela zona em busca de mais animais, mas não apanharam nenhum. Os que se esconderam na zona tinham visto a invasão do abrigo nocturno, e trataram de fugir para ainda mais longe. Como já era noite, e os animais não se recordavam de ter havido capturas nocturnas na Quinta da Confusão, estes achavam que os funcionários se iriam embora. Infelizmente, estavam errados. Eles tiraram tendas e outros equipamentos das carrinhas, passaram pela nascente da ribeira para recolherem as que estavam nas carrinhas avariadas e, por fim, cada grupo de funcionários acampou, com a permissão dos donos, onde achou melhor. O resultado foi a Quinta da Confusão ficar coberta de acampamentos (eram 16), que tanto podiam ter 6 como 50 funcionários cada. Os animais chamavam-lhes aldeias de perigo, pois de facto ficaram em perigo com a instalação de tantos acampamentos. Para onde quer que olhassem, viam sempre uma ou mais fogueiras, sinal de que ali estavam aldeias de perigo. Nas mais pequenas, havia uma única fogueira e as tendas formavam um círculo à volta dela. Nas maiores haviam várias fogueiras, e as tendas estavam alinhadas como casas numa rua. A maior aldeia de perigo da quinta tinha 50 funcionários e 25 tendas (cada tenda tinha 2 funcionários), e ocupava o abrigo nocturno, que deveria ser a fortaleza dos animais. Era um jogo do gato e do rato, entre os funcionários e os animais, em que ninguém sabia qual seria o vencedor. O jogo tinha nome, era a 2ª Batalha da Quinta da Confusão.

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Ilustração 8 – Mapa da Quinta da Confusão no final do Dia 3, com as suas 16 aldeias

de perigo. Legenda: Castanho – Casa dos donos; Azul claro – 6-8 funcionários (6

aldeias); Azul-escuro – 10-18 funcionários (4 aldeias); Verde – 20-28 funcionários (2

aldeias); Amarelo – 30-38 funcionários (1 aldeia); Laranja – 40-48 funcionários (2

aldeias); Vermelho – 50 funcionários (abrigo nocturno)

Os funcionários estavam em vantagem nessa batalha. Eram mais do que os animais, e tinham melhores armas. Cada aldeia de perigo mantinha funcionários a patrulhar à volta do acampamento, e sempre que estes encontravam animais anestesiavam-nos com dardos tranquilizantes. Depois, era só arrastá-los até às tendas e mantê-los lá até de manhã, quando fossem levados para Bragança. Mas os animais também tinham as suas defesas. Ao contrário dos funcionários, que tinham acampamentos com fogueiras que se viam ao longe, os animais podiam passar incógnitos a escassas dezenas de metros das aldeias de perigo, rastejando pela neve. Andavam pela quinta a pares ou em grupos de 3 a 5 animais, comiam onde encontrassem ervas, dormitavam uns minutos onde quer que fosse (nunca eram todos ao mesmo tempo, alguém ficava a vigiar) e tentavam atacar os funcionários. Tal como as patrulhas tentavam apanhar animais desprevenidos, também estes tentavam atacar funcionários distraídos (ao contrário dos animais, patrulhavam o terreno sozinhos). Tiravam a espingarda do inimigo e anestesiavam-no. Depois, deixavam-no ali e continuavam a andar, com a arma do funcionário atacado. Qualquer um, funcionário ou animal, podia ser atacado sem aviso, e todos eles sabiam bem isso. Aquela noite iria ser longa…

20:00 Habitantes: 185

Um dos grupos de animais que vagueava pela Quinta da Confusão sem destino certo, procurando apenas não ser capturado, chegou a uma aldeia de perigo com 8 funcionários, no sudeste da quinta. Os 3 animais que compunham o grupo deitaram-se no chão e rastejaram para detrás de uma das 4 tendas, observando os funcionários. Estes estavam sentados a jantar, comendo comida enlatada com talheres e tabuleiros de plástico, apoiados nos joelhos. Os animais acharam que, enquanto aqueles funcionários estivessem a comer, não representariam grande perigo, e prepararam-se para ir embora. Um deles, todavia, reparou num pormenor: os funcionários estavam desarmados. Eles, para jantar, tinham cometido a imprudência de deixarem as espingardas tranquilizantes e as cordas dentro das tendas. E os animais aproveitaram-se disso. Bastou-lhes espreitar para dentro das tendas para verem as armas, pelo que cada animal tirou uma espingarda de uma das 4 tendas ao acaso e escolheu o seu alvo. Poucos segundos mais tarde,

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os 8 funcionários jaziam adormecidos no chão, com vários dardos tranquilizantes espetados no corpo. Para terem a certeza de que os funcionários não acordariam senão de manhã, os animais alvejaram repetidamente os inimigos. Sabiam que cada dardo tranquilizante fazia uma pessoa ou animal dormir por 2 horas, portanto não pouparam munições. Depois, largaram as espingardas com os carregadores esvaziados e foram às tendas buscar outras carregadas. Lá dentro, encontraram um pequeno frasco com um rótulo a dizer «Antídoto». Foi o que bastou para o levarem também. Como as espingardas precisavam de ser usadas com as duas patas, deixaram os arados e as cascas de árvore na aldeia de perigo e desapareceram na noite, iluminados pelo luar, carregando a mais poderosa arma inimiga consigo. Era a primeira aldeia de perigo destruída nessa longa noite, haveria outras durante as horas seguintes.

21:30 Habitantes: 180

Como nesse dia os donos tinham acordado cedo, para irem à estreia do filme «Matadouro: a História de um Industrial» protagonizado por um grande amigo deles, os Gomes decidiram ir dormir. Mas os dois queriam vigiar os funcionários, acompanhar a situação na quinta. Então, ligaram o aparelho de rádio que comunicava com os funcionários ao seu computador. Cada funcionário tinha um aparelho, e como este tinha um sinalizador os donos podiam ver, através de um programa especial, onde estava cada um, assinalado no mapa por uma bola vermelha. Afonso deixou o irmão no computador e foi dormir, para daí a 2 horas trocarem de lugar. Aníbal Gomes ficou então a monitorizar a situação. Falava com os funcionários, contabilizava os animais e os funcionários postos fora de combate e ia vendo que aldeias de perigo tinham sido eliminadas. Sempre que um grupo de funcionários, identificado como estando numa aldeia de perigo, não respondia aos chamamentos dos donos após várias tentativas de contacto, estes consideravam a aldeia destruída pelos animais. O mesmo se aplicava aos funcionários solitários que andavam pela quinta para patrulhar o terreno. Quanto aos animais, desconheciam que os donos vigiavam a situação, mas mesmo que soubessem isso não lhes faria grande diferença. Nessa noite, ninguém dormiria como deve ser, quer os donos, quer os funcionários, quer os animais.

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Saldo do Dia 3

População e densidade populacional

Saldo da população: +172 habitantes

Saldo da densidade populacional: +344 hab.\km2

8

180185195

250255260

0

50

100

150

200

250

300

8:0012:3

014

:0016

:0018

:3020

:0021

:30

População

16

360370390

500510520

0

100

200

300

400

500

600

8:00

12:3

0

14:0

0

16:0

0

18:3

0

20:0

0

21:3

0

Densidadepopulacional

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Dia 4

Um novo tipo de economia

Época inicial

4 de Janeiro de 2009

Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom

1 2 3 4

5 6 7 8 9 10 11

12 13 14 15 16 17 18

19 20 21 22 23 24 25

26 27 28 29 30 31

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79

1:30 Habitantes: 140

Quando acabou o seu turno no computador, Afonso Gomes foi acordar Aníbal para o substituir. Este levantou-se e foi para a sala onde o irmão estivera nas últimas duas horas, sentando-se em frente à secretária e pondo os auscultadores para poder falar com os funcionários. Não acontecera nada de significativo nesse tempo, à excepção da destruição de 2 aldeias de perigo (os donos chamavam-lhes simplesmente «acampamentos») pelo que Aníbal achou que ia ser um turno calmo. Enganava-se, porém. De repente, algumas bolas vermelhas do abrigo nocturno tornaram-se verdes, indicando que havia funcionários acampados lá dentro a querer falar com Aníbal. O homem notou que grande parte dos 50 funcionários que ocupavam o edifício queriam contactá-lo, e achou que deveria haver algum problema. Escolheu um para falar, e activou a ligação. Ouviu logo uma voz aflita a gritar «Socorro, estamos a ser atacados!», seguida de vários disparos de espingardas tranquilizantes. Um minuto depois, ouviu uma outra voz a dizer «Viva, conseguimos retomar o abrigo nocturno!». Aníbal percebeu logo tudo. Os animais tinham atacado o maior acampamento da Quinta da Confusão, com sucesso, e os 50 funcionários que estavam lá dentro foram anestesiados por eles. Certo de que os animais estavam a ganhar terreno, o homem terminou a ligação via rádio com o abrigo nocturno, a 350 metros dali, e fez as devidas alterações nos dados do computador referentes àquela noite. Mas restava-lhe uma pergunta: se eles eram vistos sempre em pequenos grupos, como é que tinham conseguido vencer o maior acampamento da quinta? Só saberia a resposta horas mais tarde: alguns desses grupos de animais tinham-se unido para destruir a aldeia de perigo que ocupava o abrigo nocturno, resultando num grupo de 50 animais. Mas havia ainda muitos outros funcionários e aldeias de perigo para lhes fazer frente, não era de todo preocupante a perda do abrigo nocturno.

7:30 Habitantes: 75

Após 13 horas de batalha, os donos acharam que era altura de porem fim àquela situação. Segundo os dados que recolheram, 9 das 16 aldeias de perigo da Quinta da Confusão tinham sido destruídas de noite. Dos 300 funcionários, 210 jaziam adormecidos pela quinta. Quanto aos animais, o número foi considerado satisfatório pelos Gomes, em 260 animais 185 tinham sido capturados desde o começo da II Guerra dos Animais. A maioria dos capturados na batalha fora posta de noite nos camiões para que

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os companheiros não os pudessem resgatar, mas algumas dezenas ainda estavam espalhadas pela Quinta da Confusão. Então, os donos deram ordem aos 90 funcionários ainda acordados para recolherem os animais anestesiados da quinta, acordarem os companheiros com o antídoto e levantarem os acampamentos, quer habitados quer desabitados. Só deveriam atacar os animais se estes os atacassem primeiro. Mas eles, ocupados a tomar o pequeno-almoço, não atacaram ninguém. Terminava assim a 2ª Batalha da Quinta da Confusão, a mais longa da quinta até ao momento, apesar de tudo sem nenhum vencedor propriamente dito.

Ilustração 9 – Aldeias de perigo da Quinta da Confusão no final da 2ª Batalha da

Quinta da Confusão. Legenda: Cruz vermelha – Aldeias de perigo destruídas durante

a batalha; Cores restantes – Ver legenda da Ilustração 8, pág. 75

2ª Batalha da Quinta da Confusão

• Data: 18:45 do Dia 3 – 7:30 do Dia 4 • Local: Quinta da Confusão • Resultado: Saída dos funcionários da Quinta da Confusão • Combatentes: Donos X Animais • Forças: Donos – 300 funcionários, 16 aldeias de perigo; Animais

– 195 animais • Líderes: Donos – Afonso Gomes e Aníbal Gomes; Animais -

Nenhum • Baixas: Donos – 210 funcionários, 9 aldeias de perigo; Animais

– 120 animais

9:00

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Os donos, ainda em casa, foram informados pelos funcionários de que tudo estava pronto a partir da quinta: os animais e os funcionários sem carrinhas embarcados nos camiões, as tendas desmontadas e postas nas carrinhas existentes e os veículos prontos a partirem. Então, entraram na sua carrinha e arrancaram. Os camiões e as carrinhas dos funcionários, vindos de toda a quinta, juntaram-se e, quando isso aconteceu, os 75 animais que ficavam perceberam a verdadeira situação (até ali achavam que os funcionários apenas andavam a recolher colegas anestesiados) e bem tentaram deter a saída dos companheiros, mas era tarde. Os funcionários arrancaram com os veículos, e em segundos abandonaram a Quinta da Confusão. Não havia nada que os animais pudessem fazer, pelo que se limitaram a ver os veículos a desaparecer ao longe. A II Guerra dos Animais terminava ali, com a derrota dos animais… se não fosse a mesma dupla que liderara a Fuga do Mercado. Os animais ainda tinham à sua disposição a carrinha roubada ao Matadouro do Porto 24 horas atrás, apesar de não ter direcção. O cavalo e o cão abriram o capôt amolgado pela colisão com a árvore e observaram os mecanismos na tentativa de verem alguma coisa de errado. Acabaram por descobrir duas peças separadas, que possivelmente se encaixavam. Uniram-nas, e para sua alegria quando entraram no carro e mexeram o volante as rodas da frente já respondiam. Rodaram a chave na ignição, e viram que o motor ainda trabalhava. Já tinham veículo para alcançarem os funcionários, mas o que iriam fazer quando lá chegassem? Três amigos deram a solução. Foram rapidamente a casa dos donos buscar armas de fogo, e trouxeram três espingardas e duas pistolas. Entregaram as pistolas à dupla, dizendo «Podem vir a dar jeito». Os cinco entraram na carrinha e arrancaram, seguindo o caminho dos funcionários. O cavalo, que tal como na Fuga do Mercado ia ao lado do cão, conseguiu a proeza de pôr o GPS a trabalhar e marcar a rota para Bragança (eles sabiam que aqueles funcionários vinham de lá). Eram cerca de 100 km, e como os funcionários tinham partido 10 minutos antes deles deveriam estar mais ou menos 10 km à frente. O cão atravessou Carrazeda de Ansiães, cuja bomba de gasolina já estava a ser reconstruída, e acelerou tanto quanto pôde depois da povoação, para alcançar os funcionários.

Dez minutos depois da partida, com 20 km percorridos, os animais viram ao longe um camião, que só podia ser dos funcionários. Mas, infelizmente, este estava cheio deles, não tinha um só animal a bordo. Quando a frota dos funcionários partira da Quinta da Confusão, os 4 camiões com os animais tinham partido antes dos outros 2. E o problema era que entre cada camião com animais havia 10 carrinhas, que decerto dificultariam a vida dos 5 animais. Estes ultrapassaram os dois camiões com funcionários, e logo se depararam com 10 carrinhas vermelhas à sua frente. Cinquenta funcionários, todos eles armados, estavam entre a carrinha do matadouro e o primeiro camião da frota com animais. Era

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arriscado demais tentar ultrapassar as carrinhas inimigas, pois as rectas eram tão pequenas que pouco se via para além dos 10 veículos. Não se saberia se o próximo carro a surgir na curva o faria daí a 10 segundos ou daí a 2 minutos. Então, um dos animais armados com espingardas decidiu tentar algo potencialmente fatal: subir para o tecto da sua carrinha e saltar de veículo em veículo até conseguir alcançar o camião. Os amigos tentaram dissuadi-lo, mas perceberam que não havia alternativas e deixaram-no ir. Então, o animal abriu a porta, trepou para o tecto da carrinha e, com a espingarda numa das patas, e ficou à espera que o cão encostasse o veículo à carrinha da frente. Quando a distância entre os dois veículos era de apenas 50 cm, o animal saltou para a carrinha inimiga, e com o balanço voltou a saltar de carrinha em carrinha até alcançar o 4º veículo. Seguiu-se uma curva, e ele teve que parar. E rapidamente teve problemas: os funcionários que seguiam na carrinha atrás dessa viram o animal na caixa do veículo, e perceberam que havia qualquer coisa fora do normal. Em segundos o animal viu-se com 4 espingardas tranquilizantes apontadas a ele (só não tinha 5 porque o funcionário que ia atrás, no meio, não chegava às janelas). Mas não vacilou: pegou na sua espingarda e tentou disparar contra o motor da carrinha (os funcionários, pensando que iam ser alvejados, baixaram-se logo). Para seu horror, nada aconteceu. A espingarda estava descarregada, pois os donos só carregavam as armas que iam usar no momento, e esvaziavam-nas quando acabavam de as usar. Antes de os 5 funcionários perceberem que afinal o animal estava desarmado, este saltou para a carrinha seguinte e prosseguiu com os saltos.

Todavia, a mensagem de que havia um animal a tentar alcançar o último dos camiões da frota com animais correu pelos funcionários devido aos seus aparelhos de rádio. Assim que este saltou para a 8ª carrinha, esta distanciou-se da seguinte uns metros, o suficiente para não poder saltar, e do veículo saíram 4 funcionários. Quando o animal se deu conta, estava rodeado por 4 homens no espaço apertado que era o tecto da carrinha. Estes tentaram dominá-lo, mas ele usou a espingarda descarregada como pau e lutou contra os adversários. Quando a carrinha da frente abrandou para fazer a curva seguinte, o animal viu a sua oportunidade. Antes que o veículo começasse a fazer a curva, este aproveitou a redução do espaço entre as duas carrinhas e conseguiu saltar para a seguinte. Aterrou com poucos cm de margem, mas conseguiu alcançar a 9ª carrinha. Antes que os funcionários pudessem reagir, saltou para a carrinha seguinte e daí conseguiu agarrar-se às grades do atrelado que prendia 50 companheiros seus. Subiu pelas grades até ao tecto e correu até à cabina. Mas, de repente, o camião fez uma curva apertada e o animal escorregou para fora do veículo. Só teve tempo de se agarrar à borda do atrelado antes de cair na estrada em andamento. Ergueu-se de novo e deitou-se no tecto do atrelado, observando a estrada à sua frente. O que poderia ele fazer para tomar o

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controlo do camião? Os funcionários acabaram por ajudá-lo, obviamente sem quererem. Estes pediram aos ocupantes do camião para encostarem na recta seguinte, para que as 10 carrinhas atrás dele pudessem cercar o animal que andava a saltar pelos veículos e capturá-lo. Foi a oportunidade que o animal esperava. Assim que os ocupantes do camião encostaram e saíram do veículo, para ajudarem à captura, este saltou para o banco do condutor e arrancou. Ninguém sabia que o animal estava mesmo ao pé da cabina, e isso valeu-lhe o controlo do camião. Pouco depois, passou pelos funcionários espantados a carrinha do Matadouro do Porto a alta velocidade. Os animais tinham um camião na sua posse, mas faltavam ainda 3.

O animal que conduzia o camião encarregou-se de libertar o caminho para a carrinha do matadouro. Começou a acelerar, e tocou na traseira da carrinha à frente até esta sair do caminho. Fez o mesmo às outras carrinhas, e aí ultrapassou o camião seguinte. Pôs-se à frente dele e abrandou até parar, forçando-o a fazer o mesmo. Quando os ocupantes do camião perceberam a armadilha, era tarde. A carrinha do matadouro parou ao lado, saiu outro animal e este expulsou os ocupantes do veículo. Depois entrou lá dentro e arrancou. Seguindo essa técnica, apenas 20 minutos depois de a carrinha ter alcançado a frota dos funcionários todos os 4 camiões com animais estavam na posse dos companheiros. Mas, como fora combinado, era necessário também apanhar os donos e levá-los à Quinta da Confusão. O cão que liderara a Fuga do Mercado, sozinho na carrinha do matadouro, encarregou-se de ir em perseguição dos donos e forçá-los a parar. Não havia nenhuma carrinha dos funcionários para deter o cão, todas elas estavam para trás. Quando os donos olharam pelos espelhos, viram a carrinha no seu encalço, a acelerar, e não tiveram outro remédio senão fazer o mesmo. Puxando pela sua velha carrinha, quase tão velha como a Quinta da Confusão, os donos fizeram curvas a alta velocidade, ultrapassagens perigosas, trajectos em corta-mato, desvios para estradas secundárias, mas nada conseguia despistar o cão que os seguia como uma sombra. Quem venceria, o perseguidor ou os perseguidos?

10:30 Habitantes: 260

Depois da partida dos funcionários, a vida na Quinta da Confusão retomara o seu curso. Os 70 animais que permaneciam na quinta voltaram a tratar das plantações de ervas, regando-as e colhendo as ervas crescidas. Alguns deles fabricavam caixas de madeira, para se armazenar a colheita, e outros exploravam a mina de ferro para que houvesse pregos para as caixas. Nenhum trabalho era pago, tudo era partilhado. As caixas com ervas eram

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armazenadas no abrigo nocturno, e quando chegasse a hora de almoço toda a gente iria para o edifício almoçar, partilhando a colheita da quinta, fosse qual fosse o seu trabalho nessa manhã. Mas havia um mistério no ar, a que ninguém sabia dar resposta: O que acontecera aos 5 companheiros que tinham partido em perseguição dos funcionários? Teriam conseguido resgatar os 180 animais presos nos seus camiões, ou simplesmente foram apanhados e levados com eles para Bragança? A resposta surgiu a norte da Quinta da Confusão, quando se viu ao longe um veículo verde seguido por 4 camiões. Ao verem a carrinha verde, os animais perceberam logo o que se tinha passado: os seus 5 companheiros tinham falhado, estavam presos em Bragança com os outros 180, e agora os donos vinham aí para capturar os 70 animais que tinham permanecido na quinta. Mas eles olharam melhor, e viram que os camiões estavam cheios de animais e eram guiados por uns. Quando a carrinha se aproximou mais, viu-se que quem a guiava era o cão da Fuga do Mercado, com os donos amarrados nos bancos de trás. Afinal, eles tinham conseguido! Mal a carrinha dos donos parou, foi rodeada por dezenas de animais eufóricos. O cão, juntamente com os outros 4 animais que perseguiram os funcionários, foi recebido com entusiasmo pelos companheiros. Todos os animais capturados na II Guerra dos Animais estavam ali, nem um só tinha ido para Bragança. Mas o que se passara? Porque motivo a carrinha do matadouro não estava ali? O cão explicou tudo. Falou da perseguição aos funcionários, e depois disse:

«Quando o último dos camiões com animais foi tomado por nós, comecei a perseguir a carrinha dos donos. Eles perceberam que eu ia atrás deles, e fizeram de tudo para me despistar. Saíram do caminho para Bragança, e depois fizeram exactamente o mesmo que eu e o cavalo durante a Fuga do Mercado, para escaparmos à polícia portuguesa. Admito que eles guiam bem, foram tais as manobras, os desvios, que por pouco não tivemos acidentes. Ora estávamos quase juntos, ora quase os perdia de vista. Os camiões ficaram para trás logo nos primeiros km, mas eu não tinha tempo para abrandar até eles me alcançarem. Bem, ao fim de 35 km, depois de passarmos uma aldeia chamada Valverde, consegui pôr-me ao lado da carrinha dos donos e tentei empurrá-la para a berma da estrada, para os forçar a parar. Mas eles não abrandaram até ao último segundo. Estávamos a chegar a uma curva, e a seguir a essa curva havia uma encosta muito íngreme e pedregosa, uns metros de terreno plano e por fim um rio que soube mais tarde ser o Rio Tua. Partimos as protecções da berma e avançámos pelo monte abaixo. Os donos conseguiram parar mesmo à beira do rio, mas eu não tive tanta sorte. Planei por cerca de 3 metros, e por fim mergulhei nas águas geladas do Tua. Tentei com todas as minhas forças

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abrir a porta, mas esta só se abriu quando o carro alcançou o fundo do rio7. Lembrei-me de que os donos poderiam ver-me quando emergisse, então tive o cuidado de nadar o máximo que pude antes de voltar à superfície. Acertei, pois vi os donos fora da sua carrinha a olhar para o local onde eu tinha mergulhado com a carrinha do matadouro. Subi para a margem e, sem os alertar, abri a porta da sua carrinha e tirei de lá duas cordas. Depois, atirei Afonso Gomes para o chão e tentei amarrar-lhe os pulsos. Com as patas de trás lutava com Aníbal e com as da frente amarrava o irmão. Quando acabei de amarrar Afonso, virei-me para Aníbal. Lutámos durante uns bons minutos, até que eu o empurrei contra a carrinha e ele bateu com a cabeça no veículo. Ficou atordoado, e eu aproveitei e amarrei-lhe os pulsos. Quando se recompôs já era tarde. Não ofereceram resistência quando entraram nos bancos de trás do seu veículo. Agora tínhamos outros problemas. Eu tentei subir a encosta com a carrinha, mas os donos disseram-me que era demasiado inclinada para a subir de carro. Então, tivemos que andar por aquele espaço de terreno entre a encosta e o rio, bastante devagar por causa da neve e das pedras, até encontrarmos uma saída. Depois tivemos que encontrar os camiões. Levámos imenso tempo para os encontrar, e depois ainda tivemos que encontrar o caminho de regresso para a Quinta da Confusão. Por fim, lá chegámos a uma estrada que os donos conheciam, e conseguimos regressar».

Ao todo, o cão tinha percorrido 75 km desde a Quinta da Confusão até ao local da captura dos donos. Desse local até à quinta, pelo caminho mais rápido, era apenas 35 km, ou 30 minutos de viagem. Mas, devido aos atrasos, a viagem levara o dobro do tempo. Terminava o Resgate dos Animais da Quinta da Confusão, o nome dado a esse acontecimento.

Resgate dos Animais da Quinta da Confusão

• Data: 9:10 – 10:40 do Dia 4 • Local: Concelhos de Carrazeda de Ansiães, Vila Flor e

Mirandela, distrito de Bragança • Resultado: Resgate de todos os animais capturados na II Guerra

dos Animais, captura de Afonso e Aníbal Gomes pelos animais, realização do 2º Conselho da Quinta da Confusão

• Combatentes: Donos X Animais

7 Quando um carro cai à água, a pressão da água no exterior é maior do que a do interior do

carro e impede que se abram as portas. Só quando o carro estabiliza no fundo, depois de se

encher de água, é que a pressão no interior e no exterior fica igual e as portas se podem abrir.

O ideal é sair do carro antes sequer de a água no exterior alcançar as janelas.

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• Forças: Donos – 300 funcionários, 35 carrinhas, 6 camiões; Animais – 5 animais, 1 carrinha

• Líderes: Donos – Afonso Gomes e Aníbal Gomes; Animais - Nenhum

• Baixas: Donos – 4 camiões; Animais – Nenhuma

Ilustração 10 – Percurso do Resgate dos Animais da Quinta da Confusão (75 km), não

incluindo o percurso entre a Quinta da Confusão e Carrazeda de Ansiães (10 km).

Legenda: A a B – Perseguição dos animais aos funcionários (início na Quinta da

Confusão, 20 km); B a C – Ocupação dos camiões com animais (20 km); C a D –

Perseguição aos donos (35 km); D – Local da captura dos donos

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Quando o cão acabou a sua história, houve alguém da multidão que perguntou pelos funcionários. Aí, os animais lembraram-se de que os funcionários poderiam muito bem voltar para salvar os donos e os camiões roubados. Gerou-se logo uma agitação entre os animais, que só terminou quando Aníbal disse «Eles não vão voltar». Perante a estranheza dos animais, os Gomes explicaram que os funcionários tinham outros serviços a fazer, que só iriam a Bragança de propósito para deixarem os animais da Quinta da Confusão. Não tinham tempo para os perseguirem e resgatarem os camiões, pelo que o mais certo era terem seguido para os seus clientes seguintes. Como já não havia a ameaça da invasão dos funcionários, houve alguém que propôs fazer-se um novo conselho, para se planear o futuro dos animais depois da guerra e a punição dos donos. A ideia foi aceite por unanimidade: pouco depois eram escolhidos o presidente (o cavalo que ocupara o primeiro camião dos funcionários), o secretário (o cavalo 3, secretário do anterior conselho) e o contabilista (o cão que prendera e trouxera os donos). Os três animais, juntamente com os donos, foram para o telhado do abrigo nocturno, onde podiam ser vistos por todos os outros animais. Estava então tudo a postos para se começar o 2º Conselho da Quinta da Confusão. O cavalo 3, no cargo de secretário, preparou as folhas tiradas da casa dos donos e a caneta para começar a escrever. Então, o presidente do conselho deu início ao acontecimento, com um pequeno discurso:

«Caros animais, penso que a nossa situação actual é obsoleta para o que temos. Temos variedade de mercadorias, como caixas de madeira e pregos. Se eu quiser trocar pregos por uma caixa, ou uma carroça, como sei quantos pregos valem esses produtos? Por isso é que eu proponho introduzirmos o dinheiro na Quinta da Confusão. Para que possamos vender e comprar mais facilmente. Proponho também a criação de um espaço onde possamos comerciar as nossas mercadorias, que no futuro serão mais, e mais, e cada vez mais. O que acham?»

A proposta foi recebida com entusiasmo pelos animais, até os donos comentarem «E onde vão vocês arranjar dinheiro? Mesmo se tirarem todo o que nós temos, não ficam sequer 200 euros por animal. Para uns terem mais, outros terão que ter menos. Assim, vão arranjar desigualdades sociais, que poderão ter consequências graves! Os que têm pouco dinheiro irão revoltar-se contra os que têm muito, exigirão igualdade. E isso vai provocar confrontos». Os animais ficaram estupefactos a ouvir os donos, pois tais factos não lhes passavam pela cabeça. Os dois continuavam a falar: «Já existe desigualdade que chegue neste mundo, mais vale os animais não seguirem o mesmo caminho! Já que querem criar uma nova civilização, pois que criem uma melhor do que a das pessoas». O secretário, tentando apanhar os pontos-chave da conversa, perguntou o que

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se deveria fazer para evitar desigualdades sociais e as suas consequências, ao que os donos disseram que o ideal seria fazer-se uma Casa da Moeda, para que mesmo os animais com menos dinheiro pudessem ter que chegasse para viverem bem. O presidente do conselho acabou por levar a votação a criação do local de comércio (por sugestão dos donos foi chamada de feira) e da Casa da Moeda. Os animais votaram maioritariamente na criação dos dois espaços. Mas quem seriam os directores desses espaços? Quando o presidente pôs essa questão, os animais apontaram logo para ele e para o contabilista, que tanto tinham feito pela Quinta da Confusão. A Fuga do Mercado, no Dia 3, e o Resgate dos Animais, pouco antes. Tanto o cão como o cavalo perceberam que a maioria dos animais da quinta estava do seu lado, portanto não realizaram nenhuma votação. O cavalo tornou-se o director da feira, e o cão tornou-se o da Casa da Moeda. Faltava agora o momento mais aguardado do conselho: o julgamento dos donos. O presidente, ouvindo as propostas dos animais, acabou por decidir quais as hipóteses de escolha: absolvição, expulsão da quinta, trabalho comunitário, pagamento de uma sanção ou as duas últimas punições juntas.

Antes de se proceder à votação, foi dada aos donos a hipótese de se defenderem. Alegaram terem desrespeitado a jura do final da I Guerra dos Animais por não corresponder à sua vontade, por terem jurado não fazer mais capturas sob ameaças. Os animais acreditaram, mas em relação ao resto os donos não foram capazes de se defender. Nada do que disseram foi válido para justificar o facto de durante anos a fio terem maltratado os animais, não lhes dando condições decentes. O presidente, quando calculou que os donos já tinham esgotado todos os seus argumentos, decidiu fazer a votação. O que os donos mais temiam era serem expulsos da Quinta da Confusão, a sua casa desde 1954. Mas, para sua sorte, apesar de tal como no Conselho da Quinta da Confusão essa hipótese ser quase a vencedora (a margem fora de apenas 2 votos), não foi a escolhida. A punição dos donos acabou por ser o pagamento de uma sanção e auxílio na construção de uma das duas futuras construções da quinta à sua escolha. Os donos escolheram ajudar na construção da feira. Mas ainda faltava um pormenor: quanto dinheiro os donos deveriam entregar? Uma terceira votação decidiu: 10.000 euros, que seriam entregues à feira assim que esta estivesse pronta. Não havia mais temas, pelo que o presidente do conselho declarou-o encerrado. O facto de apenas ter durado 20 minutos, das 10:30 às 10:50, espantou alguns animais, pois o anterior conselho durara 1 hora. Mas, de resto, o conselho era semelhante ao seu antecessor: o relatório (terminado pelo cavalo 3 pouco depois do seu fim) tinha 2 páginas e meia, e as votações haviam sido 3. Depois do 2º Conselho, a Quinta da Confusão voltou ao seu normal: os animais voltaram às plantações, e os cientistas começaram a desenhar os projectos das novas obras da quinta. O problema foi quando se

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exigiu que os donos pagassem o dinheiro previsto no conselho. Naturalmente, os donos não tinham 10.000 euros em dinheiro em casa, pelo que o teriam de ir levantar ao banco. Três animais foram então com eles na carrinha para Carrazeda de Ansiães, onde ficava o banco mais próximo. A II Guerra dos Animais estava praticamente no fim, só faltava um acordo de paz para a terminar oficialmente.

12:00

Uma hora depois da partida dos donos, eles e os 3 animais acompanhantes ainda não tinham regressado, e os que tinham ficado na Quinta da Confusão começaram a pensar no pior. O que teria acontecido para demorarem tanto tempo a ir a Carrazeda de Ansiães e voltar? Por fim, surgiu ao longe a carrinha dos donos. Como estava sozinha, os animais calcularam que os donos tinham ido buscar o dinheiro e não haviam chamado os funcionários. E acertaram, pois a carrinha tinha dez mil euros em notas e moedas no chão do veículo. Mas se tudo tinha corrido normalmente, porque é que tinham demorado tanto tempo? Os donos responderam a essa pergunta:

«Nós fomos ao banco a que costumamos ir levantar dinheiro, mas como hoje é Domingo [o calendário dos animais não tinha dias da semana] o banco estava fechado. Tentámos ir a outra caixa multibanco que há em Carrazeda de Ansiães, mas não tinha dinheiro. Fomos à terceira, estava avariada. Como só conhecemos três caixas multibanco na povoação, contando com o banco, tivemos que ir a aldeias vizinhas. Mas nenhuma tinhas caixas multibanco, andámos a vaguear pelo concelho sem nenhum destino concreto. Ainda por cima tivemos um furo no pneu, gastámos uns 20 minutos a trocá-lo. Quando passámos pela aldeia seguinte trocámos o pneu furado por outro novo na oficina para ser o pneu suplente, que andar nestas zonas rurais sem pneus suplentes não dá jeito nenhum, e demorámos ainda mais tempo. Por fim, um dos animais sugeriu que fôssemos a alguma povoação importante como Carrazeda de Ansiães, que até ali só tínhamos ido a pequenas aldeias. Fomos a Vila Flor, que também é uma capital de concelho, e finalmente conseguimos encontrar um banco aberto. O banco deu-nos os 10.000 euros que queríamos, e depois regressámos».

O dinheiro foi então guardado na casa dos donos até a feira ficar pronta. Depois, os animais acharam que deveriam pôr fim à II Guerra dos Animais. Perante 5 testemunhas, os donos escreveram num papel o acordo de paz que poria fim à guerra, que dizia que os donos não fariam capturas durante os 5 dias seguintes e que os animais respeitariam os donos como respeitavam os seus companheiros. Por fim, assinaram-no. Terminava

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assim a II Guerra dos Animais, que chegara a ter 180 animais capturados mas que, incrivelmente, agora não tinha quaisquer vítimas.

II Guerra dos Animais – 22 horas (0 vítimas)

Para não haver só uma cópia do tratado, os donos digitalizaram-no com a sua scanner e imprimiram 3 cópias, que entregaram às testemunhas da sua assinatura. Nessa altura, os cientistas terminaram os projectos das futuras obras da Quinta da Confusão. A Casa da Moeda seria igual ao projecto do abrigo nocturno: 10 metros de lado, 5 de altura e dois andares. No rés-do-chão fabricar-se-ia o dinheiro, e no 1º andar ficaria o dinheiro fabricado e os materiais para o fazer. Era verdade que o tratado de paz assinado pelos donos dizia que não haveriam capturas durante 5 dias (dessa vez os donos não tinham sido obrigados, o tratado reflectia a sua vontade), mas depois desse tempo poderiam haver hordas de funcionários a invadir a quinta. Era preciso evitar que o dinheiro dos animais caísse nas suas mãos, pelo que as paredes, portas e persianas teriam 10 cm de espessura, impossíveis de arrombar. Quanto à feira, seria um edifício de 5 metros de lado, com um só andar. Teria um balcão com gavetas, para o funcionário que fosse atender os clientes meter o dinheiro. Um corredor de 5 metros ligaria a feira ao armazém, maior do que qualquer outra obra feita na Quinta da Confusão. Teria 20 metros de lado e 5 de altura, para se poderem empilhar mais mercadorias numa área menor. A Casa da Moeda ficaria no local do antigo celeiro, para que o túnel escavado no Dia 2 partisse de lá. Isso permitia que o dinheiro fosse evacuado se os inimigos, fossem eles quem fossem, conseguissem entrar na construção. Quanto à feira, ficaria na margem direita da ribeira, junto ao curso de água, para estar mesmo no centro da quinta e ficar mais perto de todos os animais. As construções já existentes, à excepção da casa dos donos, seriam demolidas, ficando a abertura do túnel desprotegida. Como a saída era vertical, a entrada seria modificada para ficar inclinada, para que se pudesse percorrer o túnel de carroça e evacuar mais facilmente o dinheiro.

Conforme planeado, os donos foram levados para o local da construção da feira. Ao contrário dos animais, eles não queriam atravessar a nado a ribeira, pelo que o fizeram usando um barco a remos que tinham. Depois, seguiram as instruções dos animais: escavar a terra para se meterem os alicerces, que eram feitos à parte. As pás eram escassas, pelo que tinham de escavar usando pedras ou mesmo as mãos. Mas os donos, apesar de terem passado os últimos anos em frente à televisão sentados no sofá, ainda praticavam exercício físico e mantinham-se em boa forma. Trabalhavam tão ou mais activamente do que os animais, na obra que lhes iria sugar 10.000 euros do seu saldo bancário.

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14:30

Três cientistas repararam no barco a remos dos donos, um veículo que os animais ainda não tinham visto depois de se tornarem racionais. Os donos, naquele veículo parecido com as carroças que os animais tinham, tinham conseguido atravessar a ribeira sem sequer se molharem, ao contrário deles que tinham de nadar nas águas geladas. Decidiram copiá-lo, e quando completaram o barco lançaram-no à água. O veículo, de 2 metros de comprimento, 1 de largura e 25 cm de calado, funcionava na perfeição, dando assim o primeiro transporte marítimo à Quinta da Confusão: o barco a remos de Modelo 1.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-2 (Aéreos-0) (Marítimos -1) (barco a remos de Modelo 1) (Terrestres-1) (carroça de 2 rodas) Civil -6 (arado, foice, madeira, caixa de madeira, ferro, pregos) Construções-2 (estufas, abrigo nocturno)

O barco era revolucionário, pois permitia não só transportar animais como também mercadorias pela ribeira, sem sequer se molharem (até ali só se podia levar alguns objectos leves através da ribeira, pois a travessia era a nado). Alguns animais viram os cientistas a fazer o barco, e tentaram logo imitá-los para terem em sua pose o novo meio de transporte da quinta. Mas o que não foi imitado foram os testes ao barco de Modelo 1: velocidade, peso e lotação máxima. Chegou-se à conclusão de que:

• Com bons remadores, o barco poderia alcançar os 10 km\h; • A lotação máxima era de 5 animais; • O peso máximo que o barco podia transportar, ocupantes e

mercadoria, era de 500 kg

Os estudos foram divulgados, mas nada diminuiu a popularidade do Modelo 1, como foi chamado, pois os animais queriam poder atravessar a ribeira com mercadorias sem terem que nadar nas águas geladas. Ao fim de pouco tempo já havia mais de 20 barcos a navegar na ribeira, e vários outros animais fabricavam os seus. Os cientistas que projectaram a feira acabaram por decidir alterar o projecto, para que se pudesse aceder à construção de barco. Pegaram em novas tábuas de madeira, em foices e réguas e começaram a desenhar as suas propostas. De todas elas foi

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escolhida uma, que consistia no seguinte: um espaço no armazém, junto à ribeira, com 7 metros de comprimento, 2 de largura e 1 de profundidade. De metro em metro haveria uma plataforma de madeira com o comprimento igual à largura do cais, para o embarque e desembarque. No resto do espaço ficariam os barcos, num total de 5. Para facilitar o atracar, haveria dois postes de madeira à frente de cada espaço destinado a barcos, para se amarrarem as cordas que prendiam o barco a terra.

Ilustração 11 – Planta do armazém da feira da Quinta da Confusão no Dia 4. Legenda:

Verde – Espaço para mercadorias; Azul-escuro – Cais do armazém; Amarelo –

Plataformas de embarque; Vermelho – Postes de madeira para amarrar barcos;

Castanho – Corredor para a feira

Como o armazém estava encostado à ribeira, bastaria escavar o cais para este ter ligação ao curso de água. Assim, alguns dos animais que estavam a fazer o armazém seguiram as orientações dos cientistas para escavar um buraco no lugar do cais, com as suas medidas. Os donos foram também chamados para escavar e, depois de se terem tirado as tábuas do sítio onde ficaria o cais (no projecto original aquele lugar teria só chão), começaram a escavar, tendo como instrumentos apenas as mãos. O esforço que tinham feito naquela obra tinha espantado os animais, que imaginavam os donos como pessoas que nada mais faziam do que ver televisão; ajudar os funcionários a prender os animais quando estes vinham à Quinta da Confusão; ir na carrinha a Carrazeda de Ansiães, ao Porto ou a Bragança; e de vez em quando caçar na quinta com os colegas do clube de caça a que pertenciam. Obviamente que os donos faziam mais do que isso, tinham

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uma vida mais activa. Na verdade, iam duas vezes por semana à sede do clube de caça a que pertenciam, a Sociedade de Caça de Carrazeda de Ansiães8, para fazer diversas actividades, como passeios a pé e de bicicleta pelas montanhas transmontanas; tiro ao alvo; exercício físico no ginásio do clube (tinham inclusive uma pequena piscina, tudo devido à riqueza dos membros do clube, que possuíam terrenos e que enriqueciam de forma semelhante, ou não, à dos donos); e ainda uma actividade com mais risco: montar cavalos selvagens e aguentar o máximo de tempo possível em cima deles. Os membros do clube iam, por vezes, ao campo em busca de cavalos selvagens e, sempre que os viam, apanhavam-nos com cordas. Depois, um dos membros montava o cavalo e aguentava o máximo de tempo em cima dele enquanto o animal se tentava livrar do seu «cavaleiro», até este se cansar ou até a pessoa cair. Os donos eram dos melhores do clube nessa actividade. Foi isso que os donos explicaram aos animais perante o seu espanto devido ao grande trabalho dos dois Gomes no estaleiro, que faziam muito mais do que aquilo que os animais pensavam. Se não tinham ido ao clube nos últimos dias era porque este estava fechado por causa do Natal e do Ano Novo, mas no dia seguinte já lá iriam. Um dos animais comentou: «Ah, então nós estávamos quase certos! Fora as idas ao clube, os senhores continuam a não fazer rigorosamente nada a não ser ver televisão e pouco mais». Os donos não tiveram palavras para responder.

Depois de se escavar o buraco com as dimensões pretendidas, sendo que à medida que se ia escavando a água ia invadindo o espaço, o futuro cais foi selado com uma placa de madeira com o seu comprimento e um pouco mais do que a sua altura, para que pudesse ser esvaziado. O problema surgiu quando os animais começaram a tentar tirar os 14.000 litros de água do cais. Foi retirada uma parte da parede do armazém para que eles pudessem lançar a água para a ribeira com as patas, mas isso revelou-se uma tarefa muito demorada. Era necessário um instrumento para se poder esvaziar o cais mais rapidamente, algo que os animais não possuíam. Como os destroços do celeiro, onde eles encontravam várias coisas úteis, já tinham sido enterrados para se erguer a Casa da Moeda nesse local, os animais tiveram que pensar. Por fim, um cientista inventou o balde.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-2 (Aéreos-0) (Marítimos -1) (barco a remos de Modelo 1) (Terrestres-1) (carroça de 2 rodas)

8 Clube fictício.

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Civil -7 (arado, foice, madeira, caixa de madeira, ferro, pregos, balde) Construções-2 (estufas, abrigo nocturno)

Mal tomaram conhecimento da invenção, os trabalhadores do cais do armazém fizeram também os seus baldes, e rapidamente este ficou a seco. Então, como estava previsto, colocou-se madeira nas paredes e no fundo do cais, em toda a sua extensão. Por fim, retirou-se a placa de madeira que separava o cais da ribeira, e a sua água encheu-o em segundos. O espaço do cais estava acabado, mas faltava o resto. Construíram-se as quatro plataformas no armazém, e depois fixaram-nas à borda do cais. Para evitar que as plataformas cedessem quando alguém estivesse em cima delas, reforçaram-se as junções entre as plataformas e o armazém com madeira e pregos extra. Depois, colocaram-se os postes de madeira, dois para cada lugar, para os barcos que ali atracassem pudessem amarrar as suas cordas. Por último, fez-se uma placa de madeira suficientemente grande para fechar o cais, incluindo a abertura na parede para os barcos passarem, que se colocou por cima dessa mesma abertura. Havia duas cordas que estavam presas ao alto da placa, junto aos seus cantos, e que passavam por duas roldanas fixadas à parede. Quando a feira estava aberta, dois animais puxavam as cordas até se poder entrar no cais de barco, e atavam-nas aos postes mais próximos. Quando a feira encerrava, soltavam as cordas e deixavam a placa descair até bater no fundo do cais, fechando-o. Os donos não puderam deixar de admirar a inteligência dos seus animais, de tal forma que em casa diriam o seguinte sobre eles:

«Estes animais são trabalhadores, inteligentes, e sobretudo amam a liberdade e fazem tudo para a conseguir. O facto de serem animais não os impede de cultivarem largas parcelas da Quinta da Confusão. O facto de não terem formação intelectual não os impede de criarem novos instrumentos, cada vez mais avançados. O facto de não terem apoio de ninguém não os impede de explorarem os recursos da Quinta da Confusão e de erguerem edifícios cada vez maiores. O facto de terem tido a nossa hostilidade não os deteve, pelo contrário, só os fez trabalhar ainda mais. Em resumo: esta gente tem futuro. Sabe-se lá aonde irão ter, mas uma coisa é certa: só provam que o progresso, uma vez posto em marcha, é imparável. Pode-se abrandá-lo, mas detê-lo é impossível».

Ignorando as conclusões dos donos, os animais continuaram a trabalhar. O cais do armazém estava concluído e pronto a trabalhar, mas nenhuma das restantes obras da Quinta da Confusão estava terminada. A nova economia da quinta estava a ter um bom arranque, pois as produções de madeira e de ferro não podiam parar para fazer face ao consumo dos estaleiros. Os agricultores também trabalhavam, pois era preciso alimentar todos os habitantes da quinta. Podia dizer-se que, nessa altura do Dia 4, os estaleiros

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da Quinta da Confusão eram o centro da sua nova economia monetária, pois a maioria da produção industrial da quinta convergia para lá. Ironicamente, ainda não havia dinheiro em circulação. Os estaleiros recebiam os materiais de que precisavam grátis.

Durante as duas Batalhas da Nascente da Ribeira, dezenas de carrinhas e camiões haviam sido abandonados na nascente do curso de água, quer por terem avariado quer por terem caído de lado (no caso dos camiões) e não poderem erguer-se de novo. Quando os funcionários abandonaram a Quinta da Confusão, no final da II Guerra dos Animais, não se tinham dado ao trabalho de tentar rebocar um só veículo, por já estarem atrasados para irem cumprir outros serviços. Sendo assim, aparentemente os veículos iriam continuar onde estavam por algum tempo, até possivelmente os donos repararem neles e mandarem removê-los. Se isso não aconteceu foi porque o Matadouro do Porto, interessado em reaver os seus veículos, mandou uma empresa ir à Quinta da Confusão buscá-los. Os veículos dessa empresa encontraram-nos na nascente da ribeira. Então, endireitaram os que estavam caídos de lado através de correntes e alguns mecânicos fizeram uma revisão aos veículos. Os que não tinham conserto foram levados para a sucata, e os que podiam ser reparados foram levados para a oficina de Carrazeda de Ansiães. O Matadouro do Porto conseguiu reaver todos os seus 5 camiões, mas teve que substituir a carrinha atirada para o fundo do Rio Tua, por uma exactamente igual à anterior. Seriam nesses veículos que, no dia 6 de Janeiro, os protagonistas do filme «Matadouro: a História de um Industrial» seriam levados para a estreia do filme, adiada no dia 3 por falta de segurança. Quanto às empresas de captura e transporte de animais de Bragança, não tiveram tanta sorte. Recuperaram os seus camiões, mas nenhuma das carrinhas sobreviveu. Aliado ao facto de não terem conseguido trazer nenhum animal da Quinta da Confusão (o que por si mesmo já seria um grande prejuízo, por terem gasto combustível e munições à toa); de terem atrasado significativamente outros serviços que tinham que fazer; de terem perdido armas e de alguns dos funcionários terem adoecido devido ao frio nocturno de Trás-os-Montes (as empresas perdiam a sua força de trabalho, mas tinham que lhe continuar a pagar o salário), o saldo do mês de Janeiro de 2009, para essas empresas, foi bastante negativo. «Os animais da Quinta da Confusão são terríveis», disseram os seus directores quando souberam da situação.

16:00

Após 4 horas de trabalho, ficaram concluídas as obras da Quinta da Confusão: a feira e a Casa da Moeda. A feira estava pronta a funcionar, com todas as suas estruturas concluídas, mas sem mercadorias ou dinheiro.

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O mesmo se aplicava à Casa da Moeda, até em relação à evacuação do dinheiro. Um alçapão no chão fazia de entrada para o túnel, através de uns degraus. No fundo das escadas repousavam 5 carroças, que em caso de necessidade podiam ser carregadas e em poucos minutos alcançar a saída do túnel, do outro lado da quinta. Uma pequena construção quadrada com 2,5 metros de lado e com paredes da mesma espessura da Casa da Moeda, que só se podia abrir a partir de dentro, protegia a saída do túnel para caso os inimigos viessem de este e não de oeste. A ligação entre a Mina de Ferro e o túnel foi fechada, construindo-se uma parede de madeira na ligação dos espaços que depois foi coberta com terra. Mas, mesmo tendo tudo isso, a Casa da Moeda não podia trabalhar, não só por não ter dinheiro como também por não ter material. Os donos entregaram os 10.000 euros determinados pelo 2º Conselho da Quinta da Confusão à feira, mas a Casa da Moeda continuava sem poder funcionar. Os animais tiveram de se desenrascar sozinhos, pois os donos disseram «Já cumprimos a nossa parte» e foram para casa preparar as suas férias, já que não precisavam de estar na quinta para nada (desde que os animais se tinham tornado racionais que tinham arranjado confusões com eles diariamente). Por fim, o director da feira entregou um exemplar de cada tipo de nota e moeda de euro à Casa da Moeda, para esta os poder estudar, decidir como os fabricar e comprar materiais para o fazer, no valor total de 888,88 euros. O director da Casa da Moeda observou o material e chegou à conclusão de que precisava de papel e tintas. O metal das moedas seria fornecido pela mina da quinta. Então, levando o dinheiro consigo, tirou uma das carroças do túnel e partiu para Carrazeda de Ansiães, com uma corda atada ao veículo para o rebocar.

A feira, pelo contrário, começou logo a trabalhar. O seu director contratou 10 animais (1 balconista, 1 ajudante e 8 carregadores), definiu-lhes um salário diário e abriu a feira. Os primeiros clientes foram madeireiros e mineiros que tinham produzido madeira e pregos em excesso para as construções da quinta, e que agora não sabiam o que fazer com as mercadorias. Mas rapidamente surgiu todo o tipo de mercadorias e clientes, quer para comprar quer para vender, e o armazém foi-se enchendo. Chegava a haver filas de barcos para entrar no cais, às vezes com 10 barcos à espera de vez para atracar. Os carregadores iam fazendo os negócios, e cada vez mais iam constatando que a nova economia monetária e comercial da Quinta da Confusão viera, de facto, para ficar. Isso confirmou-se quando o director da Casa da Moeda regressou com a carroça cheia de papel, pincéis e latas de tinta, e contratou logo 20 animais (4 cortadores de papel, 10 pintores e 6 carregadores, que levavam o dinheiro até à feira e iam buscar matéria-prima). Os carregadores compraram 3 carroças e 3 barcos com o dinheiro da Casa da Moeda, e pouco depois levaram para a feira o primeiro carregamento de notas para ser posto em circulação. Regressaram com blocos de ferro para serem transformados em moedas. Em ambas as

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construções os directores vigiavam as suas empresas: o da feira monitorizava os lucros da empresa e as suas mercadorias; e o da Casa da Moeda a quantidade de dinheiro produzida. Quando o último achasse que já havia dinheiro suficiente em circulação na Quinta da Confusão abrandaria a sua produção ao mínimo necessário para não ter que despedir os trabalhadores. Era assim a nova Quinta da Confusão, com uma economia monetária e comercial em vez da primitiva economia anterior, em que os todos os bens eram partilhados. Mas os donos estavam demasiado ocupados a ver televisão para repararem nisso.

Índice de Tecnologia:

Militar -1 (escudos de árvore) Transportes-2 (Aéreos-0) (Marítimos -1) (barco a remos de Modelo 1) (Terrestres-1) (carroça de 2 rodas) Civil -7 (arado, foice, madeira, caixa de madeira, ferro, pregos, balde) Construções-4 (estufas, abrigo nocturno, Casa da Moeda, feira)

Ilustração 12 – Mapa da Quinta da Confusão na tarde do Dia 4. Legenda: Vermelho –

Casa da Moeda; Amarelo – Casa dos donos; Castanho – Feira (em baixo) e o seu

armazém (em cima); Verde-escuro – Abrigo nocturno; Verde-claro – Território da

Quinta da Confusão; Azul-claro – Ribeira

20:00

A chegada da noite não deteve a economia monetária da Quinta da Confusão, que continuava em alta. A Casa da Moeda continuava a produzir dinheiro, a enviá-lo à feira de carroça e de barco e a trazer no regresso carregamentos de minério de ferro, tendo por duas vezes enviado alguns dos seus carregadores a Carrazeda de Ansiães para comprarem mais papel e

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tintas. A feira, por seu lado, continuava os seus negócios. Comprava e vendia todos os tipos de mercadorias, recebia dezenas de barcos no seu cais e sobretudo ia engordando as suas reservas de dinheiro. As gavetas destinadas a guardar as notas e as moedas estavam tão cheias que o balconista era obrigado a pô-las no chão, atrás do balcão, e deixar que o seu ajudante as empilhasse por valores. Os carregadores andavam constantemente a transportar mercadorias do armazém para a feira, pois havia clientes a toda a hora, e a atender os que chegavam de barco. Quando esses clientes compravam coisas, os carregadores iam depois levar o dinheiro à feira. Se os clientes fossem vender coisas, os carregadores tinham que ir buscar dinheiro à feira, e por isso passavam o tempo todo a andar de um lado para o outro carregados com mercadorias e dinheiro. O director, tal como o da Casa da Moeda, era o que trabalhava menos na empresa. Limitava-se a andar de um lado para o outro, a vigiar os seus empregados e a ver as remessas de mercadorias e de dinheiro a crescerem rapidamente. A feira abrigava já milhares de euros em dinheiro vivo, e o armazém contava com algumas toneladas de mercadorias. A construção, no entanto, não estava fortificada como no caso da Casa da Moeda: se uma horda de funcionários invadisse a Quinta da Confusão, a feira seria facilmente saqueada, até porque não havia nenhuma maneira preparada para se evacuar o dinheiro. Era este o centro da economia da Quinta da Confusão, tal e qual como planeado quando se começara a construir a estrutura. Mas a feira nada seria sem os seus clientes, os animais da quinta. Dispersos um pouco por todo o território de 50 hectares, os animais trabalhavam sozinhos ou em pequenos grupos no cultivo de ervas, ou na extracção de ferro e de madeira, ou até no fabrico de instrumentos. Um agricultor que colhesse uma colheita da sua plantação vendia o que não precisava à feira, e depois usava algum desse dinheiro para comprar sementes ou para adquirir novos instrumentos agrícolas (a foice e o arado). O dinheiro ia depois para um madeireiro que vendesse a sua produção… E assim circulava o dinheiro pela Quinta da Confusão.

22:00

Até ali, os animais deitavam-se quando lhes apetecia, geralmente por volta da 22, 23 horas da noite. Mas a criação da feira e da Casa da Moeda vinha alterar isso. Com efeito, os directores de ambas as empresas tinham a noção de que tinham de estabelecer um horário de abertura e encerramento fixo, para que os clientes soubessem quando é que a feira estava aberta e para que os trabalhadores das empresas soubessem quando tinham de ir trabalhar e quando podiam sair do emprego. O director da Casa da Moeda decidiu então ir ver que horas eram. Saiu da sua empresa e foi à casa dos

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donos, o único local da Quinta da Confusão onde havia relógios. Pela janela, viu que o relógio da cozinha mostrava 21:55. Depois, foi até à ribeira puxando a sua carroça, com o seu barco a remos em cima, e usou-o para ir até ao armazém. Avisou depois o seu amigo (já o eram antes da Fuga do Mercado e do Resgate dos Animais), o director da feira, de que eram já 22:00. O amigo agradeceu e decidiu encerrar a feira. Quando o barco do director da Casa da Moeda abandonou o armazém da feira, dois dos carregadores da empresa começaram a desatar as cordas que suspendiam a placa de madeira por cima da abertura do cais. Nessa altura, um barco vindo da Mina de Ferro carregado ao máximo, com mais de 400 kg de minério de ferro, entrou no armazém para vender o material. Os carregadores disseram ao único ocupante do veículo que a feira encerrara, e então este começou a recuar para regressar à ribeira. Quando os carregadores acharam que o barco já tinha saído (a fraca luz do luar só lhes permitia ver um vulto escuro no lugar do barco e do ocupante), largaram as cordas que sustinham a placa de madeira e deixaram-na cair livremente. Todavia, o barco ainda não tinha saído completamente do armazém, e a placa acertou-lhe em cheio na proa. A pancada foi tão forte que a popa do barco até se levantou da água, mas à primeira vista o barco não tinha grandes danos. Após uma rápida revisão ao veículo, o animal que o guiava constatou que os únicos danos eram fissuras no local da pancada, mas aparentemente nada de grave. Este pegou nos remos e começou então a remar para sul. Mas, para verificar se as fissuras não aumentavam com o navegar do barco, decidiu primeiro navegar até aos limites da quinta e só depois regressar à mina. Em vez de menos de 50 metros, o animal remaria mais de meio km.

Os primeiros 300 metros correram bem. O mineiro foi ao fundo da quinta e voltou para trás sem problemas. O problema veio depois. As fissuras tinham sido aumentadas pela viagem de 300 metros, e ao fim dessa distância começaram a deixar entrar água. Aí, o mineiro começou a preocupar-se, pois o barco estava no limite da sua capacidade de carga de meia tonelada, e tentou acelerar para chegar perto da Mina de Ferro mais depressa. Mas a pesada carga do barco atrasou-o fatalmente. Cinquenta metros mais tarde, as fissuras cresceram ainda mais, e quando o animal olhou para a proa do barco viu que esta estava rachada em vários sítios, e muitos deles deixavam entrar água. Por fim, aos 400 metros de viagem, a proa cedeu e desmanchou-se em vários pedaços, que ficaram a boiar na ribeira. Quanto ao barco, inclinou-se para a frente e afundou-se em poucos segundos, criando o primeiro naufrágio da Quinta da Confusão. Quando o mineiro se deu conta, estava a boiar na ribeira agarrado aos dois remos, com o que restava do barco e a sua carga de 400 kg de minério de ferro a 2,5 metros de profundidade. Essa quantidade de ferro era bastante valiosa (valia milhares de euros na feira), pelo que não podia ser simplesmente

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abandonada debaixo de água. O animal que a extraíra da Mina de Ferro (ao contrário da feira e da Casa da Moeda, a mina não tinha um proprietário, logo, o salário dos mineiros era aquilo que conseguissem obter com a venda do minério de ferro que obtivessem) tentou logo tirar as pedras de minério uma a uma, mas o facto de serem imensas e de a baixa temperatura da água dificultar o suster da respiração9 fez com que o mineiro acabasse por desistir. Era necessária alguma invenção que ajudasse os animais a aguentar mais tempo por debaixo de água. Mas o mineiro decidiu deixar isso para o dia seguinte. Foi para o abrigo nocturno, deitou-se num canto e adormeceu. Os restantes animais acabaram por fazer o mesmo. À meia-noite, todos os 260 animais da quinta estavam no abrigo nocturno, 150 no rés-do-chão e os restantes no andar de cima por falta de espaço no andar de baixo. Para os que estavam no 1º andar, a única diferença entre a sua nova cama e o chão onde dormiram durante anos era o colchão ser de madeira em vez de neve e terra. De resto, permaneciam ao relento.

Ilustração 13 – Percurso da última viagem (400 metros) do 1º barco a naufragar na

Quinta da Confusão. Legenda: Laranja – Local de partida do barco (armazém da

feira); Roxo – Local de naufrágio do barco (cerca de 100 metros a sudeste da Mina de

Ferro, entre a casa dos donos e a ribeira); Tracejado branco – Percurso do barco;

Cores restantes – Ver legenda da ilustração 12, pág. 97

9 Verídico.