patrimônio, saúde e doença: o acervo da sociedade e ... · 2007, o museu de história da...
TRANSCRIPT
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
Patrimônio, saúde e doença: O ACERVO DA SOCIEDADE E HOSPITAL
BENEFICÊNCIA PORTUGUESA DE PORTO ALEGRE
DANIEL OLIVEIRA1
CRISTIANO ENRIQUE DE BRUM2
PAULO ROBERTO STAUDT MOREIRA3
1 – Histórico da Sociedade e Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre
No intuito de manter unida a colônia portuguesa no Brasil pós-independência, os
portugueses residentes deste país tomaram a iniciativa de criar hospitais em qualquer
local onde houvesse uma comunidade de seus patrícios, amigos ou descendentes. As
origens da ideia de se fundar em Porto Alegre uma entidade filantrópica portuguesa nos
remete ao ano de 1845. No entanto, apesar da ideia ter sido bem recebida pelo Vice-
Presidente em exercício da Província, o projeto foi temporariamente abandonado, pois
recém havia sido encerrada a guerra civil Farroupilha (que por sua vez havia hostilizado
o Partido Restaurador, composto em grande parte por portugueses) e tal ensejo
associativista seria potencialmente suspeito.
Já em 1854, com a morte da Rainha de Portugal D. Maria II, irmã de D. Pedro II,
a cidade de Porto Alegre (principalmente a comunidade portuguesa) foi tomada por
grande comoção, sendo organizadas diversas homenagens à falecida soberana. Neste
clima favorável à comunidade portuguesa, com o auxílio da imprensa, ressurge a ideia
de se criar na capital uma entidade assistencialista formada por portugueses, como já
ocorria em outros locais do Brasil. Desta forma, em 26 de fevereiro de 1854, em uma
sala do hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o vice-cônsul honorário de
Portugal, juntamente com outros membros da elite portuguesa da época residentes no
Rio Grande do Sul, instituiram a Sociedade de Beneficência Portuguesa, colocada sob a
proteção do El-Rei D. Fernando de Portugal.
No fim do primeiro ano de existência já estavam associadas 557 pessoas. De
início a Sociedade não dispunha de sede própria, e estabeleceu-se um contrato com a
Santa Casa para atendimento de seus doentes. Com o crescimento do fundo dos
1 Mestrando em História/Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
2 Mestrando em História/Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
3 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Coordenador do PPGH da
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 2
associados em 1858 foi comprada uma casa na antiga Rua da Figueira, onde foi
montado um pequeno hospital. Em fevereiro de 1859 foram mudados os sócios doentes
que estavam em tratamento na enfermaria particular da Santa Casa para o novo hospital,
sendo o fato comemorado com sessão e missa solenes. Com o surto de cólera na cidade,
em 1867, verificou-se a necessidade de construção de um espaço maior, que suportasse
a demanda de atendimentos. Desta forma foi obtido, por meio de doação, um terreno no
antigo Caminho da Aldeia, ou seja, na atual Avenida Independência. A pedra
fundamental do novo edifício, que até hoje é um dos marcos arquitetônicos da capital,
foi lançada em 29 de junho de 1867. Em 29 de junho de 1870 foi inaugurado o novo
edifício que abrigaria o hospital. Este prédio contava com duas grandes enfermarias e
todas as demais dependências necessárias, naquele período, para o bom funcionamento
da instituição. No início de 1871 foi finalizada a construção da primeira capela da
Sociedade, situada no interior do prédio do hospital. Alguns meses depois foi
entronizado, naquela capela, o padroeiro da instituição e da província: São Pedro. A
estátua do santo, que ainda hoje se faz presente no altar do templo, foi fruto de uma das
tantas doações realizadas pelos associados, sendo esta conseguida por José Fernandes
Granja, trazida da cidade do Porto, em Portugal.
No ano de 1873 deu-se uma das maiores enchentes já ocorridas na cidade de
Porto Alegre, ocasião esta em que a Sociedade de Beneficência Portuguesa cedeu
espaço em seu prédio para abrigar várias famílias vítimas da cheia do Guaíba. Nesse
período que lá ficaram, receberam todo auxilio médico e alimentação de que
necessitavam. Em 1882 foi construída uma nova enfermaria na parte baixa do edifício4,
com a finalidade de que ali fossem tratados os enfermos acometidos por doenças
contagiosas, evitando assim o contato com os demais doentes. Mesmo depois de muitos
avanços e já instalada na nova sede, a Beneficência Portuguesa não cessou de ampliar
sua presença na sociedade gaúcha. Em 1884 participou do movimento local de
emancipação de escravos doando muitas cartas de alforria. Cresceu o número de
atendimentos, de associados, e também, do volume de seu patrimônio, aumentado com
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS [email protected]
4 O hospital fica localizado sobre uma colina, sendo a frente do prédio localizada na parte mais alta
(voltada para o leste). Desta forma, as dependências localizadas mais ao fundo (oeste), estando
situadas na encosta do morro, foram construídas sobre uma acentuada queda geográfica, o que
possibilitou a instalação da nova enfermaria em um local situado abaixo do nível do prédio frontal.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 3
diversas doações em forma de imóveis, heranças, loterias especiais e outras fontes. Em
1892 foram feitas melhorias nas instalações, sendo criadas salas para consultórios e uma
farmácia, o que possibilitou acentuada queda de custos para a aquisição dos
medicamentos utilizados nas enfermarias. Por volta de 1900 a Sociedade estava em
ótimas condições e com um considerável patrimônio, muito bem avaliado e sem ter
nenhuma dívida. Nos primeiros cinquenta anos da Sociedade entraram enfermos no
hospital 6.727 pessoas.
Em 1907 foi adquirido um terreno para a criação de um cemitério destinado aos
associados, localizado junto ao Cemitério São Miguel e Almas, que foi consagrado em
1909. Neste mesmo ano foram reformadas as salas de cirurgias, os encanamentos de
água e gás, e instalada a lavanderia. Em 1911 foi criada a enfermaria feminina (até então
eram internados somente pacientes do sexo masculino) e instalada a luz elétrica. Uma
nova fase no funcionamento da entidade iniciou em 1923: a administração interna do
Hospital foi entregue às irmãs da Divina Providência. Em 1951 a Beneficência
Portuguesa teve os seus serviços na área neurológica reconhecidos como exemplo de
excelência no Brasil e no exterior. Em 1952 foram adquiridos novos terrenos e
inaugurado o Instituto de Radioterapia. Desde então o complexo tornou-se um dos
hospitais mais importantes da cidade, tendo sido na década de 1950 a maternidade mais
procurada de Porto Alegre. Passou também a receber pacientes encaminhados dos
hospitais Conceição e Clínicas, desafogando estes grandes centros de saúde. Porém, a
situação da Sociedade e do Hospital se inverteu drasticamente durante as últimas
décadas do século XX. Ao alvorecer do século XX, a situação de penúria chegou ao
extremo: em 2007 teve sua execução decretada pelo INSS, devendo ser leiloado, mas o
processo foi revertido judicialmente. Sua condição é delicada, com uma dívida de cerca
de 18 milhões de reais. Mas, apesar das dificuldades imensas, em 2003 o Hospital foi
destacado como o segundo lugar em bom atendimento no Rio Grande do Sul. A
Sociedade de Beneficência Portuguesa de Porto Alegre é uma instituição filantrópica e
se organiza por meio de uma assembléia geral que é soberana, sendo composta também
por um conselho deliberativo, um conselho fiscal e uma diretoria, além de um corpo de
associados de aproximadamente três mil contribuintes.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4
2 – Condições do acervo da Sociedade: o estabelecimento do Convênio
Durante o processo de instalação do Museu de História da Medicina do Rio
Grande do Sul (MUHM/SIMMERS) no prédio histórico do Hospital da Beneficência
Portuguesa de Porto Alegre, foi localizada no porão desta instituição, em péssimo
estado de conservação, a documentação que constitui o acervo da Sociedade e Hospital
Beneficência Portuguesa. Documentação que remonta a história da instituição desde a
metade do século XIX até o final do século XX. Neste contexto, no dia 25 de outubro de
2007, o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM) assinou um
convênio com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), juntamente com
o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS)5, tendo como finalidade a
recuperação da documentação histórica da Sociedade e Hospital Beneficência
Portuguesa. Este ajuste de esforços seria realizado, na prática, da seguinte forma: o
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, sendo uma instituição com larga tradição na
área de arranjo documental, disponibilizaria um profissional com as condições
necessárias para supervisionar em termos técnicos o andamento do projeto, papel este
que seria desempenhado pelo Prof. Paulo Roberto Staudt Moreira, profissional de larga
experiência na área de arquivos e manutenção de acervos.
A UNISINOS supriria a demanda de capital humano por meio de voluntariado,
através do seu corpo discente6, talvez uma das interfaces de maior relevo nesta ação de
salvamento patrimonial7. O MUHM ficaria como responsável pelo fornecimento de
todo o material, manutenção das salas onde seria realizado o trabalho e cobertura dos
gastos de deslocamento dos alunos voluntários participantes. Este convênio
também possibilitou aos alunos não só o importante contato com fontes primárias e com
5 Na ocasião dirigia o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul o professor Luiz Carlos Carneiro da
Cunha.
6 Os autores deste artigo, enquanto alunos de graduação em História pela UNISINOS, participaram do
início ao fim das atividades de recuperação do referido Acervo. Trabalharam, também, como
divulgadores das atividades realizadas no Projeto, bem como, do material contido em tal Acervo, em
eventos científicos, por meio de apresentações e de artigos. A síntese das realizações deste Projeto de
recuperação do Acervo da Sociedade de Beneficência Portuguesa pode ser consultada em:
MOREIRA; Paulo R. S.; OLIVEIRA, Daniel; BRUM; Cristiano E.; FALEIRO, Lenon D. R.. Saúde,
Cura e Associativismo - O Acervo da Sociedade e Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre
In: SERRES, Juliane; QUEVEDO, Éverton Reis; REICHARDT, João Carlos (Orgs.). Beneficência
Portuguesa: a primeira Sociedade de Socorros Mútuos do Rio Grande do Sul. 1 ed.Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2010, p. 45-82.
7 Era então coordenador do Programa de Pós-graduação em História da UNISINOS o professor Doutor
Flávio Madureira Heinz.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 5
as técnicas de preservação de documentos, mas também, o aprendizado de noções
básicas de arquivística e museologia. Não são raras as vezes que observamos
acadêmicos de História concluir seus cursos sem ao menos visitar um arquivo histórico,
sem ter contato prático com alguma documentação histórica, mesmo sendo esse o
principal material de trabalho do historiador. Muito mais raras são as chances de
graduandos participarem do processo de implantação e organização de um acervo em
sua totalidade, e mais ainda, constituído de documentação primária inédita para
pesquisa.
3 – Preservação dos documentos: etapas de recuperação do acervo
A preservação e a vida útil de documentos dependem de uma séria de fatores,
tais como armazenamento adequado e o reparo de possíveis danos. Mas antes de
qualquer ação, é necessária a realização da higienização destes documentos. A
higienização deve ser feita periodicamente e de acordo com a necessidade de cada
documento, levando em consideração a composição do material que é constituído, e
também, o estado de preservação em que se encontram.
No trabalho realizado com a documentação da Sociedade e Hospital
Beneficência Portuguesa, o tipo de higienização desenvolvida foi a mecânica à seco,
com a utilização de trinchas, panos macios, e eventualmente, estiletes e bisturis, para a
retirada de sujidades que não saem tão facilmente. Foi adotada esta técnica por ser a
mais eficiente e a mais indicada pelos profissionais da área de preservação documental,
conforme literatura consultada, para as pretensões do trabalho que foi realizado. Os
corpos estranhos aos documentos como grampos metálicos, insetos, entre outros,
também foram removidos nesta etapa. Felizmente, apesar do mau acondicionamento em
que se encontrava o acervo, foi constatado que o estado de preservação dos documentos
é favorável para que, após o processo de higienização e organização, sejam
disponibilizados para futuras pesquisas. Os aspectos teóricos e metodológicos deste
projeto foram buscados junto à Arquivística, Museologia e História, disciplinas
responsáveis pela preservação do patrimônio cultural em seus diversos suportes.
Diversos autores destacam a importância desta etapa como parte integrante da
conservação preventiva em acervos e arquivos8. Segundo Seripierri e Luccas: “a
8 Conforme Drumond, descrevendo com detalhes o procedimento: “[...] deve ser passada uma trincha ou
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 6
higienização é sem dúvida a tarefa de maior importância dentro da biblioteca, pois nos
permite entrar em contato direto com o acervo, verificando sua integridade física”
(LUCCAS; SERIPIERRI, 1995. p. 35). Todo o processo de higienização e organização
do Acervo foi efetuado com a utilização de luvas de proteção, avental e máscaras, como
forma de proteção contra a poeira, fungos e demais sujidades, e também, como meio de
preservar a vida útil dos documentos, evitando o contato do papel com sais contidos na
superfície da pele.
Visando uma maior vida útil e a organização do acervo da Sociedade e Hospital
Beneficência Portuguesa, foram cumpridas as seguintes etapas, previstas no
estabelecimento do convênio:
Limpeza: é realizada a avaliação do estado em que se encontram cada
um dos documentos. De acordo com o estado de preservação em que se
encontra o documento e o tipo do material de que ele é constituído, é
realizado o trabalho de higienização, de acordo com as necessidades e
possibilidades verificadas;
Transcrição paleográfica: no decorrer do processo de higienização, foi
realizada a transcrição paleográfica de alguns códices, escolhidos por
ordem de sua importância na história da instituição, privilegiando assim os
mais antigos e em pior estado de conservação;
Arranjo: trata-se da organização do acervo, com a catalogação dos
códices e dos demais documentos, sendo confeccionado pelo coordenador
do projeto - Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira - um meticuloso
instrumento de pesquisa/catálogo9, constando, além dos números
identificadores dos documentos/códices, a descrição do mesmo (nome), o
período e número de páginas (constando também a data inicial e final das
pincel bem macio sobre o documento e, em caso de um livro, em todas as folhas, observando sempre a
presença de traças, cupins e fungos. A limpeza de ser iniciada sempre do centro para as bordas. No
caso de livros, deve-se limpar bem a união entre as folhas, porque larvas vivas geralmente se alojam
nas costuras. Recomenda-se portanto, maior cuidado na limpeza destas áreas” (DRUMOND, 2006. p.
130-131).
9 Entende-se por catálogo - Instrumento de pesquisa elaborado segundo um critério temático, cronológico,
onomástico ou geográfico, incluindo todos os documentos pertencentes a um ou mais fundos,
descritos de forma sumária ou pormenorizada. Fonte: RELATÓRIO DO CONVÊNIO FIRMADO
PARA HIGIENIZAÇÃO E ARRANJO DA DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA SOCIEDADE DE
BENEFICÊNCIA PORTUGUESA DE PORTO ALEGRE. Museu de História da Medicina, 2009.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 7
anotações do mesmo). Infelizmente, devido às delimitações de tamanho
deste artigo, não poderemos disponibilizá-lo aqui.
Dentro desta última etapa de arranjo, cabe destacar os procedimentos adotados
na etiquetagem dos códices para identificação em catálogo. Com a finalidade de não
criar mais danos aos documentos, procedemos da seguinte forma: primeiramente, com a
utilização de cola CMC (Carboxi Metil Celulose)10
, foi anexado ao códice um pequeno
pedaço de papel japonês (papel utilizado na restauração de documentos), e sobre este
foi colada uma etiqueta adesiva, onde consta, de forma impressa, a identificação do
códice de acordo com o catálogo. Por fim, para proteger a etiqueta, foi colado, sobre
ela, um outro pedaço de papel contact (vide fotografia n.1).
Fotografia11 1: Detalhe etiquetas
4 – A recuperação na prática: a difícil missão de conservar um patrimônio
documental
No mês de novembro de 2007, com o trabalho do grupo de alunos voluntários,
sob a orientação do Professor e Historiador Paulo Roberto Staudt Moreira, foram
iniciados os trabalhos de higienização e organização do acervo da Sociedade e Hospital
Beneficência Portuguesa que foram realizados no interior deste hospital. De início, até
10 Polímero semi-sintético, em que grupos CH2COONa substituem o OH na cadeia celulósica, formando-
se éteres. Tanto mais solúvel em água quanto maior o grau de substituição, é sobretudo utilizado pela
viscosidade conferida às soluções aquosas, que aumenta com o comprimento da cadeia de celulose.A
CMC dissolve rapidamente em água e é usada para controlar a viscosidade sem se transformar em gel.
Usado como um espessante de soluções e estabilizante de emulsões, também actua como um agente
suspensório. É incolor, inodoro, não-tóxico e solúvel na forma de pós ou grânulos.
11 Fotografias utilizadas: coleção da equipe do Projeto de Recuperação do Acervo da Sociedade de
Beneficência Portuguesa de Porto Alegre.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 8
maio do ano de 2008, o local em que se realizaram os trabalhos foi a histórica Capela
São Pedro, construída em 1871. Mesmo não sendo o espaço físico mais adequado para
tais atividades - como pode ser observado na imagem abaixo, mesas para higienização
foram improvisadas, bem como o local de alocação dos livros (ao fundo, sobre os
bancos da capela), sem falar do excesso de luminosidade – pois se tratava de um local
amplo e arejado, o que facilitou a realização dos primeiros trabalhos.
Fotografia 2: Capela São Pedro - Interior do Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre
Porém, devido aos interesses da administração do Hospital em reativar a Capela
para cerimônias religiosas, o projeto de higienização e organização do acervo foi
alocado, no mês de junho daquele ano, em salas de um corredor abandonado, na ala sul
do prédio, próximo ao antigo e também histórico Salão Nobre da Sociedade. Estas salas,
no início da ocupação, não contavam com energia elétrica, as paredes possuíam
infiltrações de água causadas pelas chuvas – o que tornava o local extremamente úmido.
Devido a isso, torna-se evidente que o novo local estavam muito longe de ser o cenário
ideal para os fins que se propunha o projeto: recuperar e salvaguardar a antiga
documentação da Sociedade. Isto sem falar na falta de motivação, devido às
circunstâncias impostas, para que os colaboradores voluntários dessem continuidade às
atividades.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 9
Fotografia 3: corredor abandonado no Hospital Beneficência Portuguesa - Segundo local onde se
processou a higienização do acervo da sociedade
Em alguns meses, após algumas solicitações de melhorias realizadas junto à
administração do hospital por intermédio do MUHM, foi instalada energia elétrica em
duas das salas, sendo concedida, também, uma terceira sala fora deste corredor, situada
no segundo piso do prédio histórico do hospital, com a finalidade de alocar e organizar
os livros já higienizados. Esta sala, apesar de suas reduzidas dimensões físicas, mostrou-
se, diante dos outros locais em que foi desenvolvido o projeto, como o espaço mais
adequado e seguro para a guarda da documentação, ao menos até ser encaminhada para
local específico para tal fim. Com a disponibilização desta nova sala foi possível evitar
o excesso de umidade e a permanência da documentação higienizada com a que ainda
não havia passado por este processo, além de, também, oferecer a possibilidade de
maior controle da luminosidade, por meio da instalação de cortinas pretas.
Fotografia 4: sala de organização e catalogação do acervo
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 10
Em um período de dois anos, após trabalhosas e cansativas etapas, com
diversas/inesperadas modificações de espaço físico, juntamente com a falta de recursos
(fatores que colocaram em dúvida as reais possibilidades de concretização do projeto),
que dificultaram ainda mais a complexa e muitas vezes inglória tarefa de preservar
acervos em nossa realidade local (dificuldades estas que certamente se estendem por
todo este país, incluindo ainda muitos outros), foi dado por finalizado o projeto, com a
higienização, organização e catalogação de mais de trezentos códices, salvaguardados
de forma adequada e em local seguro (foto nº. 5). Dentro disto, salientamos ainda que,
desde o início do projeto, foi idéia compartilhada pelas instituições e profissionais
envolvidos, que esta documentação não poderia ficar inacessível aos pesquisadores e
público em geral. Assim, esperamos que em breve este acervo esteja disponível,
passando a fazer parte definitivamente da reserva técnica do Museu de História da
Medicina.
Fotografia 5: códices higienizados e catalogados
4 - Possibilidades de Pesquisa
O acervo é constituído por uma grande quantidade de códices, livretos de
balanços anuais, diplomas de sócios, correspondências, além de uma série de
documentos avulsos das mais variadas espécies. Esta vasta documentação pode, por
meio de suas informações, remontar minuciosamente a história da Sociedade
Beneficência Portuguesa: sua criação, administração, seu quadro social, participação
dos sócios etc. Isto tudo, desde a sua fundação, ocorrida no ano de 1854, até as últimas
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 11
décadas do século XX. E é claro, muito além disso, também por meio desta
documentação, se torna possível a análise não só desta instituição e de seus membros,
mas também de várias nuances da sociedade porto-alegrense entre os séculos XIX e
XX12
.
Basicamente, o Acervo da Sociedade e Hospital de Beneficência Portuguesa de
Porto Alegre se constitui na seguinte forma (séries) por natureza da documentação:
Natureza da documentação
Série 1 Financeiro
Série 2 Patrimônio (levantamentos)
Série 3 Entrada de pacientes
Série 4 Registros de associados
Série 5 Cemitério
Série 6 Diversos
Série 7 Relatórios, regulamentos, estatutos
Série 8 Atas
Quadro13 1: natureza da documentação por séries
Entre os documentos da série 1, se encontram códices que relatam a
movimentação financeira: livros caixa, registros de contas, registros de compras,
pagamentos de sócios, finanças do hospital, da sociedade e do retiro da velhice (lar de
idosos da sociedade). Esta série cobre praticamente todo o período de existência da
Sociedade e do hospital, de maneira que ficam poucas lacunas.
A série 2 apresenta documentação referente ao patrimônio e bens da Sociedade,
bem como plantas baixas dos imóveis e prédios pertencentes, tornando-se assim essa
documentação importante referência para estudos, inclusive de arquitetura histórica.
Apresenta também dados sobre o mobiliário e materiais presentes no hospital nos
séculos XIX e XX, o que pode possibilitar diversos estudos sobre as condições
materiais do hospital em diferentes épocas.
12 O historiador Daniel Oliveira, que atuou como voluntário ao longo de todo o projeto, apresentou como
trabalho de conclusão no curso de História, na UNISINOS, a pesquisa intitulada: “Porto dos
degenerados - Os enfermos acometidos por doenças venéreas internados nos hospitais Santa Casa de
Misericórdia e Beneficência Portuguesa de Porto Alegre entre os anos de 1881 e 1892”. Como indica
o título foram usados como fonte primária alguns livros de entrada de pacientes, analisando, desta
forma, diversos aspectos da sociedade porto-alegrense de fins do século XIX.
13 Quadro elaborado pelos autores do artigo.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 12
É possível também, a partir deste acervo, colher informações sobre quais eram
as doenças mais comuns que atingiam a população rio-grandense (série 3); quem eram
os internados (sua nacionalidade [nos registros são encontrados imigrantes de vários
países do mundo, tais como franceses, alemães, italianos, entre outras nacionalidades],
sexo, idade, entre outros dados); quais os tratamentos e alimentos oferecidos aos
doentes; qual o tempo de reabilitação dos internados, e também, sendo possível analisar
a própria evolução da medicina e de suas técnicas, entre outras informações referentes à
história da medicina, do cotidiano hospitalar, da saúde e das doenças.
Ainda na série 3, são apresentados dados sobre enfermos particulares e enfermos
sócios, que se trabalhados juntamente com documentos da série 4 (Registro de Sócios),
podem gerar importantes estudos sobre história das elites ou associativismo. Nestes
registros é possível verificar a nacionalidade e cidade de residência do associado, os
valores para obter o título de sócio, bem como das mensalidades. Torna-se possível
observar, também, quais eram os benefícios que o associado poderia usufruir fazendo
parte da Sociedade.
Na série 5 são encontradas informações referentes ao arrendamento e compra de
lotes do cemitério, registros de sepulturas, contratação de carros e de terceiros para
transporte do caixão até o cemitério etc. Fontes estas que podem ser utilizadas para
estudos de população, morte, entre outros.
A série 6 é dedicada aos documentos de naturezas diversas. Fazem parte desta
série desde jornais e outros impressos até correspondências expedidas e recebidas. Aqui
podemos estender as temáticas de pesquisa para além da história da saúde, da medicina
e do associativismo, alcançando também outros diferentes aspectos sociais.
Regulamentos internos do Hospital da Sociedade de Beneficência Portuguesa de
Porto Alegre, estatutos da mesma sociedade, relatórios anuais e diversos desta e de
outras sociedades de beneficência do estado e do país podem ser encontrados na série 7.
Na série 8, são encontradas diversas atas de reuniões e assembléias, inclusive, a de
fundação da Sociedade. Por meio destes documentos é possível colher as mais diversas
informações relativas ao funcionamento do hospital, suas aquisições materiais, situação
financeira, processos internos investigativos referentes a acontecimentos (das mais
diversas naturezas) ocorridos no interior do hospital14
, sobre a posição dos altos
14 Dentre estes casos, destaca-se o inquérito sobre uma discussão ocorrida, em 1884, entre um associado
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 13
membros da Sociedade frente às mudanças na sociedade brasileira e porto-alegrense no
decorrer dos anos, entre outras. Enfim, nestes documentos é possível encontrar de forma
pormenorizada diversas informações que possibilitam remontar a história e histórias do
Hospital e da Sociedade de Beneficência Portuguesa de Porto Alegre.
Dentro destas séries documentais (e considerando a impossibilidade de descrever
o acervo por completo neste artigo), eis alguns exemplos de códices e documentos
encontrados:
Livros atas: nestes livros ficaram registradas as reuniões dos principais
membros do quadro administrativo do Hospital e da Sociedade;
Livros caixa: nestes códices é possível encontrar informações referentes às
movimentações financeiras da Sociedade e Hospital;
Livros dos sócios: contém a listagem das pessoas que integravam a
Sociedade Beneficência Portuguesa, bem como dados de suas respectivas
funções junto à Sociedade, local de residência, idade, nacionalidade, entre
outras informações;
Tratamento aos doentes: constam os medicamentos comprados e utilizados,
a alimentação administrada aos enfermos, bem como as formas de higiene
utilizadas;
Relação dos entrados na enfermaria: nele encontramos a identificação dos
pacientes - estado civil, idade, doença, tratamento e evolução do seu quadro
clínico;
Livros das Sepulturas/Cemitério: constam as listagens das sepulturas e dos
arredamentos (lotes do cemitério da Sociedade Beneficência Portuguesa).
Outra fonte que merece destaque para quem investiga saúde e cura são os
levantamentos patrimoniais realizados em períodos diversos. Em 1902, por exemplo, foi
elaborado um Inventário dos móveis, utensílios e todos os mais objetos da Sociedade
Portuguesa de Beneficência (SBP-336 / CX 09). Nele, as salas do hospital são descritas
individualmente, mencionando os móveis e instrumentos médicos disponíveis em cada
enfermo e o tesoureiro da Sociedade, onde foram ouvidas cinco testemunhas que narraram os
acontecimentos e que acabou resultando no afastamento da Sociedade, por seis meses, de Joaquim da
Costa Lessa (sócio enfermo).
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 14
uma. Usando a imaginação (histórica) podemos circular pela instituição, passear pelos
corredores e enfermarias, visualizar práticas médicas.
Em todos estes documentos temos incluídos em suas informações diversos
aspectos da vida social rio-grandense. Essas informações nos trazem a organização
administrativa da instituição, a sua finalidade, aspectos da relação estabelecida entre
Brasil e Portugal após a independência, e é claro, o associativismo da comunidade
portuguesa em Porto Alegre e também no Rio Grande do Sul.. Observando alguns
documentos do acervo, constatamos que no início de sua história, em seu primeiro livro
de sócios, a Sociedade de Beneficência de Porto Alegre contava com uma grande
quantidade de sócios residentes em Pelotas e Rio Grande, cidades estas que
posteriormente, por iniciativa dos portugueses lá residentes, criaram suas próprias
sociedades de beneficência. O acervo da Beneficência Portuguesa configura-se,
portanto, num observatório privilegiado para o entendimento das redes associativas que
cruzavam a vida social do Brasil Meridional. Lembremos que esta agremiação foi a
primeira sociedade de socorros mútuos do Rio Grande do Sul.
Além disso, encontrar-se-ão, também neste acervo, dados sobre a história social
do trabalho livre e escravo (funcionários do Hospital, serviços de terceiros, e também,
escravos que eram utilizados para prestar serviços à Sociedade/Hospital); dos salários;
dos custos com alimentação, remédios, roupas; das práticas funerárias; da organização
das elites, entre outros. Desta forma, o trabalho de recuperação e organização do acervo
da Sociedade de Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, que foi arduamente realizado
entre os anos de 2007-2009, e por hora aqui apresentado, possibilitou o acesso a uma
infinidade de informações potenciais para diversas pesquisas, que podem ser realizadas
por meio de consulta e análise sobre este acervo.
REFERÊNCIAS
ALVES, Ivone (e outros). Dicionário de Terminologia Arquivística. Lisboa, Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro, 1993.
ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS HOLANDESES. Manual de arranjo e descrição
de arquivos. 2a ed. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1973.
BECK, I. Manual de preservação de documentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1991.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 15
BECKER, Howard S. Falando sobre a sociedade. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1991.
BLOCH, Marc. Introdução à História. Portugal, Publicações Europa-América, 1997.
BOJANOSKI, Silvana. Estudo Sobre as Condições de Preservação dos Acervos
Documentais Brasileiros. In: Arquivos & Administração.1999: 35.
BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Passados Recompostos - campos e canteiros da
História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ : Editora FGV, 1998.
BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli; CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Dicionário de
terminologia arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros - Núcleo
Regional de São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1996.
CANADÁ. Arquivo Público. Departamento de Administração de Arquivos Correntes.
Arquivos correntes: organização e funcionamento. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1975 (1a ed. original 1969) (Publicações técnicas, 35).
COSTA, M. F. Noções básicas de conservação preventiva de documentos. Disponível
em: http://www.bibmanguinhos.cict.fiocruz.br/normasconservacao.pdf Acesso em: 25
de abril de 2008.
CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil).
Procedimentos técnicos adotados para a organização de arquivos privados. Rio de
Janeiro: CPDOC/FGV, 1994.
CPDOC. Metodologia de Organização de Arquivos s adotados para a organização de
arquivos privados. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1994.Pessoais - A Experiência do
CPDOC. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1998.
DAVIS, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
DRUMOND, Maria Cecília de Paula. Preservação e Conservação em Museus. In.:
CADERNO DE DIRETRIZES MUSEOLÓGICAS. Brasília: Ministério da Cultura /
IPHAN / Departamento de Museus e Centros Culturais, 2006. p. 107 – 133.
FARGE, Arlette. Lugares para a História. Lisboa, Editorial Teorema, 1999.
GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL; Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 16
GOMES, S. C.; MOTTA, R. T. Técnicas alternativas de conservação: recuperação de
livros, revistas, folhetos e mapas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
JARDIM, José Maria. Sistemas e políticas públicas de arquivos no Brasil. Niterói:
EDUFF, 1995.
LOPES, Luís Carlos. A informação e os arquivos. Niterói: EDUFF; São Carlos:
EDUFSCAR, 1996.
LUCCAS, L; SERIPIERRI, D. Conservar para não restaurar. Brasília : Thesaurus,
1995.
MOREIRA; Paulo R. S.; OLIVEIRA, Daniel; BRUM; Cristiano E.; FALEIRO, Lenon
D. R.. Saúde, Cura e Associativismo - O Acervo da Sociedade e Hospital Beneficência
Portuguesa de Porto Alegre In: SERRES, Juliane; QUEVEDO, Éverton Reis;
REICHARDT, João Carlos (Orgs.). Beneficência Portuguesa: a primeira Sociedade de
Socorros Mútuos do Rio Grande do Sul. 1 ed.Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010, p. 45-
82.
PAES, Marilena. Arquivo: teoria e prática. 2a. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1991.
PALETTA, F. A. C.; YAMASHITA, M. M. Manual de higienização de livros e
documentos encadernados. São Paulo: Hucitec, 2004.
PEREIRA, Miriam Halpern. Por uma Articulação entre a Política Arquivística e a
Investigação Histórica. In: LEAL, Maria José da Silva; PEREIRA, Miriam Halpern.
Arquivo e Historiografia. Colóquio sobre as Fontes de História Contemporânea
Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1988.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte/São Paulo:
Autêntica Editora, 2005. 130p.
ROUSSEAU, Jean-Yver; COUTURE, Carol. Os Fundamentos da Disciplina
Arquivística. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998.
SCHELLENBERG, T.R. Documentos públicos e privados: arranjo e descrição. 2a ed.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1980.