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Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical
vox:ia
ENCONTRO SOBRE A EXPRESSÃO VOCAL NA PERFORMANCE MUSICAL
•••••••••••••••••••••••••••• 8 a 10 de junho de 2011 Instituto de Artes da UNESP Barra Funda - São Paulo - SP
conferências • mesas • comunicações • workshops • concertos
Atas do VOX:IA – Encontro sobre a Expressão Vocal na Performance Musical Instituto de Artes da Unesp – Universidade Estadual Paulista – São Paulo -‐ SP
EVPM • Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical
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ATAS DO VOX:IA
Encontro sobre a Expressão Vocal na Performance Musical •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 8 a 10 de junho de 2011 • UNESP -‐ Instituto de Artes • São Paulo • Brasil
Wladimir Mattos e Sheila Minatti, editores
EVPM • UNESP
São Paulo, 2011
Atas do VOX:IA – Encontro sobre a Expressão Vocal na Performance Musical Instituto de Artes da Unesp – Universidade Estadual Paulista – São Paulo -‐ SP
EVPM • Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical
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© EVPM • Unesp / São Paulo, 2011 Publicação eletrônica disponível em: http://www.ia.unesp.br/evpm Atas do VOX:IA -‐ Encontro sobre a Expressão Vocal na Performance Musical EVPM – Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical Unesp – Universidade Estadual Paulista / Instituto de Artes
Atas do VOX:IA – Encontro sobre a Expressão Vocal na Performance Musical Instituto de Artes da Unesp – Universidade Estadual Paulista – São Paulo -‐ SP
EVPM • Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical
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VOX:IA Encontro sobre a Expressão Vocal na Performance Musical
Coordenação Geral • Martha Herr (UNESP, EVPM) • Wladimir Mattos (UNESP, EVPM)
Comissão Científica • Adriana Giarola Kayama (UNICAMP) • Martha Herr (UNESP, EVPM) • Ricardo Ballestero (USP)
Coordenação de produção • Sheila Minatti (UNESP, EVPM) • Josani Keunecke (UNESP, EVPM) • Wladimir Mattos (UNESP, EVPM)
Equipe de produção • Alunos do Bacharelado em Canto da Unesp: Arthur Canguçu, Beatriz Paroni, Jeane Baltar, Marcela Panizza, Maria Isabel Fray, Vicente Sampaio.
Realização • Unesp – Universidade Estadual Paulista • EVPM – Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical Colaboração • Unicamp – Universidade Estadual de Campinas • USP – Universidade de São Paulo
Apoio financeiro • FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo
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ÍNDICE
ATIVIDADES REALIZADAS ........................................................................................... 7
PROGRAMAÇÃO ...................................................................................................... 12
CONCERTOS ............................................................................................................. 16
COMUNICAÇÕES ...................................................................................................... 19 A Canção Brasileira na Aula de Canto – uma análise das propriedades pedagógicas da “Canção da Felicidade”, de Barrozo Netto e Nosor Sanches. ............................ 19
A evocação de sonoridades instrumentais na escrita para piano no ciclo Winterreise de Franz Schubert .............................................................................. 35
Análise Espectral como ferramenta de diferenciação entre o vibrato de caráter triste e o alegre em duas árias de ópera ............................................................... 53
Arthur Iberê de Lemos: Vida e obra de um compositor esquecido ........................ 69
Afinidades Eletivas: As relações pessoais e sua influência na obra vocal de César Guerra-‐Peixe ........................................................................................................ 87
As relações texto-‐música e o procedimento pianístico em seis canções de Ernst Mahle: propostas interpretativas ....................................................................... 103
Em busca de significados perdidos: convenções da ópera veneziana do Seiscentos. ........................................................................................................................... 116
Leitura à primeira-‐vista na colaboração pianística: considerações a partir da experiência de estudantes de graduação em piano ............................................. 136
Leituras intersemióticas: Poesia, Música e Voz no Maracatu de Marlos Nobre e Ascenso Ferreira. ................................................................................................ 154
O Pianismo na Seresta no7, Cantiga do Viúvo, de Heitor Villa Lobos .................... 164
Pedagogia Vocal Moderna e ciências da voz: Interação e conceitos comuns ....... 167
Vibrato vocal e música coral ............................................................................... 178
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APRESENTAÇÃO
É com grata satisfação que apresentamos à comunidade científica, artística e
ao público em geral as Atas do VOX:IA – Encontro sobre a Expressão Vocal na
Performance Musical.
Realizado entre 8 e 10 de Junho de 2011, no Instituto de Artes da UNESP, o
VOX:IA foi o primeiro evento internacional integralmente organizado pelo
UNESP/EVPM -‐ Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical, com a
colaboração dos departamentos de música da USP e da UNICAMP, e com o apoio da
FAPESP (processo nº 2011/06055-‐6).
Este encontro foi também o primeiro evento científico organizado
conjuntamente por professores/pesquisadores das áreas de Canto que desenvolvem
suas atividades de pesquisa junto aos departamentos de graduação e pós-‐graduação
em música destas referidas três universidades estaduais de São Paulo.
Além de integrar a produção das três universidades estaduais, na referida área
de pesquisa, este evento se estende aos âmbitos nacional e internacional por
apresentar a produção de importantes pesquisadores que desenvolvem seus trabalhos
em outros estados (Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina) e países (Portugal,
Alemanha e EUA).
O tema geral do encontro foi proposto com a finalidade de estabelecer um
amplo espaço de discussão e difusão científica no entorno dos temas relacionados à
área do Canto, no contexto dos estudos musicais. Para contribuir com a organização
dos trabalhos apresentados e garantir um mínimo de diversidade às abordagens sobre
o tema geral, cada um dos três dias do evento foi organizado sobre três respectivos
temas específicos: “Performance e Música Contemporânea”, “Performance e
Colaboração Pianística” e “Performance e Musicologia”.
Em cada um dos três dias temáticos, tivemos um aproveitamento intensivo do
tempo e espaços disponíveis, com a realização de conferências, mesas de discussão,
comunicações e concertos .
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A programação foi realizada de maneira satisfatória, cumprindo com a
apresentação de todos as atividades programadas e gerando uma série de
documentos relevantes, sobretudo para os cientistas e artistas que trabalham com a
música vocal.
Entre estes documentos, destacam-‐se as presentes “Atas do VOX:IA 2011” ,
que apresentam a seguir as informações gerais sobre o evento, incluindo-‐se a
programação de atividades, a relação de organizadores e participantes convidados e a
íntegra dos trabalhos apresentados nas sessões de comunicação.
Disponibilizadas publicamente por meio eletrônico, estas atas ficarão
permanentemente disponíveis no sítio do EVPM (atualmente em:
http://www.ia.unesp.br/evpm), onde futuramente poderão ser encontrados outros
documentos relacionados ao evento, tais como registros em vídeo dos concertos
realizados durante a programação.
Sejam bem vindos!
Martha Herr Wladimir Mattos UNESP /EVPM
ATIVIDADES REALIZADAS
Resultado de uma colaboração inédita, entre os programas de Pós Graduação
em Música da UNESP, UNICAMP e USP, o VOX:IA -‐ Encontro sobre a Expressão Vocal
na Performance Musical contribuiu para o desenvolvimento integrado das atividades
de ensino, pesquisa e produção artística na área de canto e suas interfaces.
Com um programa organizado no entorno de três linhas temáticas -‐
“Performance e Música Contemporânea”, “Performance e Colaboração Pianística” e
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“Performance e Musicologia” -‐ o evento contou com a participação de renomados
pesquisadores e performers do Brasil e do exterior, para a realização de conferências,
mesas de discussão, workshops, concertos e apresentação de trabalhos científicos.
Dia 08/06 – Performance e Música Contemporânea
A programação do primeiro dia do evento foi dedicada às questões relativas
aos paradigmas técnicos, estéticos e artísticos da performance vocal na pós-‐
modernidade. Foram discutidos aspectos relacionados ao estudo e performance do
canto, à regência e à composição musical.
Os trabalhos tiveram início com uma dupla conferência: “Sonora palavra: a
relação compositor/intérprete na obra vocal contemporânea”, proferida pela profa.
Dra. Márcia Taborda (UFRJ) e “BBCC: Berio, Berberian, Cage and Crumb”, proferida
pela Profa. Dra. Isabelle Ganz (Lamar University, Texas – USA).
Em seguida, realizou-‐se a mesa redonda “O tradicional versus o desconhecido
na performance da música vocal contemporânea”, com a participação dos cantores
Prof. Me. Marcelo Coutinho (UFRJ) e professora Heloisa Petri, e dos compositores
Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho (UNESP) e Prof. Dr. Aylton Escobar (USP), este
último também regente.
A sessão de comunicações selecionada para este dia teve a apresentação dos
trabalhos: A Canção Brasileira na Aula de Canto – uma análise das propriedades
pedagógicas da “Canção da Felicidade”, de Barrozo Netto e Nosor Sanches, pelo
doutorando Lenine Santos (UNESP), “Análise Espectral como ferramenta de
diferenciação entre o vibrato de caráter triste e o alegre em duas árias de ópera”,
pela mestranda Priscila Oliveira Faria (UFMG), “Arthur Iberê de Lemos: vida e obra de
um compositor hoje esquecido”, pelo Prof. Me. Mauro Chantal (UFMG, doutorando
na UNICAMP) e “A música vocal e suas convenções na Ópera Veneziana do
Seiscentos”, pela Profa. Dra. Silvana Scarinci (UFPR). A Profa. Dra. Isabelle Ganz
(Lamar University, Texas – USA), realizou ainda o workshop “The joy of singing
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(playshop)”, com a participação de participantes ouvintes do evento, previamente
inscritos.
As atividades do dia 08/06 se encerraram com um concerto cujo programa
pode ser considerado eclético para o gênero. Profa. Dra. Márcia Taborda (UFRJ), Prof.
Me. Marcelo Coutinho (UFRJ), Profa. Dra. Martha Herr (UNESP) e Dra. Isabelle Ganz
(Lamar University, Texas – USA) apresentaram, respectivamente obras de Luciano
Berio (ITA), Luiz Carlos Csekö (BRA), Ricardo Tacuchian (BRA), TIM Rescala (BRA) e John
Cage (USA). Ao final do concerto, um grupo de alunos de graduação e pós-‐graduação
do Instituto de Artes da Unesp, coordenados pela Profa. Dra. Martha Herr (UNESP)
apresentou obras de Meredith Monk (USA).
Dia 09/06 – Performance e Colaboração Pianística
O segundo dia do evento foi dedicado ao papel desempenhado pelo piano e
pianistas nos processos de criação e realização de trabalhos científicos e artísticos
relacionados à expressão vocal na performance vocal. Foram discutidos aspectos
relacionados: à formação específica do pianista, ao mercado de trabalho entre outras
implicações socioculturais relacionadas ao tema; às contribuições recebidas pelos
pianistas colaboradores quanto aos conhecimentos sobre a voz humana, as
habilidades do canto e a música vocal; às contribuições prestadas pelos pianistas
colaboradores aos cantores, bem como aos estudantes e professores de canto.
Os trabalhos tiveram início com a conferência: “Texto e música: perspectivas
pedagógicas na formação de um pianista colaborador”, proferida pelo prof. Dr.
Ricardo Ballestero (USP). Em seguida, realizou-‐se a mesa redonda “As habilidades e
atuações dos pianistas junto à música vocal e seus reflexos na performance”, com a
participação dos pianistas, pesquisadores e educadores Prof. Dr. Achille Picchi
(UNESP), Prof. André Rangel (UNESP), Prof. Dr. Marcelo Amaral (Hochschule fùr
Musik, Nürnberg) e Profa. Dra. Rubia Santos (University of Wyoming -‐ EUA).
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A sessão de comunicações selecionadas para este dia teve a apresentação dos
trabalhos: “O pianismo na Seresta n. 7, Cantiga do Viúvo, de Heitor Villa-‐Lobos”, pelo
Prof. Dr. Achille Picchi (UNESP), “A evocação de sonoridades instrumentais na escrita
para piano no ciclo Winterreise de Franz Schubert”, pelo Prof. Me. Ticiano Biancolino
(UEM), “Treinamento em leitura à primeira-‐vista aplicado à atividade do pianista
colaborador”, pelo Prof. Me. José Francisco da Costa (UNICAMP) e “As relações
texto-‐música e o procedimento pianístico em seis canções de Ernst Mahle: propostas
interpretativas”, pela doutoranda Eliana Asano Ramos (UNICAMP). O Prof. Dr.
Marcelo Amaral (Hochschule fùr Musik, Nürnberg) realizou ainda o workshop “A
interpretação do Lied para duos de canto e piano”, com a participação de
participantes ouvintes do evento, previamente inscritos.
As atividades do dia 09/06 se encerraram com um concerto dedicado a duos de
canto e piano cujos integrantes mantém uma colaboração permanente: Prof. Dr.
Achille Picchi (UNESP), ao piano e Lenine Santos (doutorando, UNESP), tenor,
apresentaram canções de Achille Picchi; Prof. Dr. Luciano Simões (UNICAMP),
barítono e Ana Carolina Sacco, ao piano, apresentaram canções de Edmundo Villani-‐
Cortes.
Dia 10/06 – Performance e Musicologia
A programação do terceiro e último dia do evento foi dedicada à questão das
interfaces e interações entre as áreas da pesquisa musicológica e a performance vocal.
Foram discutidos aspectos diversos, tais como: a importância para o musicólogo
histórico dos conhecimentos sobre as técnicas e estéticas do canto, no que diz respeito
ao restauro e edição de partituras antigas; a importância para o cantor dos
conhecimentos musicológicos e historiográficos, no que diz respeito à interpretação
dos repertórios de música antiga; a questão das interações entre pesquisa
musicológica e performance, dentro e fora do ambiente acadêmico.
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Os trabalhos tiveram início com a conferência: “Problemáticas na edição da
música teatral luso-‐brasileira do período colonial ”, proferida pelo Prof. Dr. David
Cranmer (Universidade Nova de Lisboa -‐ Portugal). Em seguida, realizou-‐se a mesa
redonda “Performance vocal e musicologia: integração e cooperação”, com a
participação dos musicólogos: Prof. Dr. David Cranmer (Universidade Nova de Lisboa -‐
Portugal), organista; Prof. Dr. Alberto Pacheco (Universidade Nova de Lisboa), tenor;
Prof. Dr. Flávio de Carvalho (UFU), prof. de canto; Prof. Dr. Marcos Holler (UDESC), e
Prof. Dr. Vitor Gabriel de Araujo (UNESP), regente.
A sessão de comunicações selecionada para este dia teve a apresentação dos
trabalhos: “Afinidades eletivas -‐ as relações pessoais e sua influência na obra vocal
de César Guerra-‐Peixe”, pelo Prof. Me. Inácio de Nonno (UFRJ, doutorando na
UNICAMP), “Vibrato vocal e música coral”, pelo Prof. Dr. Angelo José Fernandes
(UNESP), “Leituras intersemióticas: Poesia, Música e Voz no Maracatu de Marlos
Nobre e Ascenso Ferreira”, pela mestranda Lucia de Fátima Ramos Vasconcelos
(UNICAMP) e “Pedagogia vocal moderna e ciências da voz: interação e conceitos
comuns”, pela doutoranda Joana Mariz (UNESP). O Prof. Dr. Angelo Fernandes
(UNESP), realizou ainda o workshop “Sonoridade vocal na música coral”, com a
participação de participantes ouvintes do evento, previamente inscritos.
As atividades do dia 10/06, e do evento, encerraram-‐se com um concerto
caracterizado por trabalhos autorais, estréias modernas e importantes resgates: Profa.
Dra. Carin Zwilling (Faculdade Carlos Gomes), ao alaúde e Profa. Me. Andrea Kaiser
(USP), apresentaram canções baseadas em textos de William Shakespeare vertidas
para o português; Prof. Dr. Alberto Pacheco (Universidade Nova de Lisboa), tenor,
Profa. Dra. Adriana Kayama (UNICAMP), soprano e Prof. Me. José Francisco da Costa
(UNICAMP), ao piano, apresentaram edições modernas do repertório luso-‐brasileiro
do período imperial; Prof. Me. Inácio de Nonno (UFRJ) e o Prof. Me. José Francisco da
Costa (UNICAMP), ao piano, apresentaram canções de Cesar Guerra-‐Peixe.
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PROGRAMAÇÃO 8 de Junho, quarta-‐feira A Performance Vocal e a Música Contemporânea 09h15 – 10h45 Conferência:
• Sonora palavra: a relação compositor/intérprete na obra vocal contemporânea Conferencista: • Profa. Dra. Márcia Taborda (UFRJ) Apresentação: • Profa. Dra Martha Herr (UNESP)
10h45 – 11h00 Intervalo
11h00 – 12h30 Mesa redonda: • O tradicional versus o desconhecido na performance da música vocal contemporânea Participantes: • Profa. Dra. Martha Herr (UNESP) • Prof. Dr. Marcelo Coutinho (UFRJ) • Prof. Andrea Kaiser (USP) • Prof. Dr. Aylton Escobar (USP) Mediação: • Prof. Me. Wladimir Mattos (UNESP)
12h30 – 13h30 Intervalo
13h30 – 15h15 Comunicações: • Apresentação de trabalhos a serem selecionados Mediação: • Integrantes do Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical (UNESP)
15h15 – 15h30 Intervalo
15h30 – 18h00 Workshop: • The joy of singing (playshop) Realização: • Isabelle Ganz (Lamar University, Texas – USA) Apresentação: • Integrantes do Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical (UNESP)
18h00 – 19h00 Intervalo
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19h00 – 20h30 Concerto: • Performance de músicas contemporâneas Participantes: • Isabelle Ganz (Lamar University, Texas -‐ EUA) • Profa. Dra. Martha Herr (UNESP) • Prof. Me. Marcelo Coutinho (UFRJ) • Profa. Dra. Marcia Taborda (UFRJ) • Prof. Me. Andrea Kaiser (USP) Organização: • Profa. Dra. Martha Herr (UNESP)
9 de Junho, quinta-‐feira O Piano e a Performance Vocal 09h15 – 10h45 Conferência:
• Texto e música: perspectivas pedagógicas na formação de um pianista colaborador Conferencista: • Prof. Dr. Ricardo Ballestero (USP) Apresentação: • Prof. Dr. Angelo Fernandes (UNESP)
10h45 – 11h00 Intervalo
11h00 – 12h30 Mesa redonda: • As habilidades e atuações dos pianistas junto à música vocal e seus reflexos na performance Participantes: • Profa. Dra. Margarida Borghoff (UFMG) • Prof. Dr. André Rangel (UNESP) • Prof. Dr. Achille Picchi (UNESP) • Prof. Dr. Abel Rocha (UNESP) Mediação: • Prof. Dr. Ricardo Ballestero (USP)
12h30 – 13h30 Intervalo
13h30 – 15h15 Comunicações: • Apresentação de trabalhos a serem selecionados Mediação: • Integrantes do Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical (UNESP)
15h15 – 15h30 Intervalo
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• 14 •
15h30 – 18h00 Workshop: • A interpretação do Lied para duos de canto e piano (Masterclasse) Realização: • Marcelo Amaral (Hochschule fùr Musik, Nürnberg -‐ ALE) Apresentação: • Integrantes do Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical (UNESP)
18h00 – 19h00 Intervalo
19h00 – 20h30 Concerto: • O piano e a performance vocal Participantes: • Profa. Dra. Margarida Borghoff (UFMG) • Profa. Dra. Luciana Montecastro (UFMG) • Prof. Dr. André Rangel (UNESP) • Profa. Dra. Martha Herr (UNESP) • Prof. Dr. Achille Picchi (UNESP) • Prof. Me. Lenine Santos (UNESP) Organização: • Prof. Dr. Ricardo Ballestero (USP)
10 de Junho, sexta-‐feira A Performance Vocal e a Musicologia 09h15 – 10h45 Conferência:
• Problemáticas na edição da música teatral luso brasileira do período colonial Conferencista: • Prof. Dr. David Cranmer (Universidade Nova de Lisboa) Apresentação: • Profa. Dra. Adriana Kayama (UNICAMP)
10h45 – 11h00 Intervalo
11h00 – 12h30 Mesa redonda: • Performance vocal e musicologia: integração e cooperação Participantes: • Prof. Dr. Alberto Pacheco (Universidade Nova de Lisboa) • Prof. Dr. Flávio de Carvalho (UFU) • Prof. Dr. Marcos Holler (UDESC) • Prof. Dr. Vitor Gabriel de Araujo (UNESP) Mediação: • Profa. Dra. Adriana Kayama (UNICAMP)
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12h30 – 13h30 Intervalo
13h30 – 15h15 Comunicações: • Apresentação de trabalhos a serem selecionados Mediação: • Integrantes do Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical (UNESP)
15h15 – 15h30 Intervalo
15h30 – 18h00 Workshop: • Sonoridade vocal na música coral Realização: • Prof. Dr. Angelo Fernandes (UNESP) Apresentação: • Integrantes do Grupo de Estudos da Expressão Vocal na Performance Musical (UNESP)
18h00 – 19h00 Intervalo
19h00 – 20h30 Concerto: • Performance de músicas antigas Participantes: • Prof. Dr. Alberto Pacheco (Universidade Nova de Lisboa) • Profa. Dra. Márcia Organização: • Profa. Dra. Adriana Kayama (UNICAMP)
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CONCERTOS 8/06/2011, 19h00 – Concerto: Performance vocal e a música contemporânea
I) Luciano Berio (1925-‐2003) Márcia Taborda,
soprano
• Sequenza III (1965)
II) Luiz Carlos Csekö Marcelo Coutinho,
barítono
• Corda Bamba (1983)
III) Tim Rescala Martha Herr,
soprano
• Cantos (1994)
IV) Ricardo Tacuchian
Marcelo Coutinho, voz Diogo Maia, clarone
• Terra dos Homens (2006), texto: Gerson Valle
V) John Cage (1912-‐1992) Isabelle Ganz,
soprano
• Aria (1958)
VI) Meredith Monk
Grupo formado por professores e alunos do IA Unesp e convidados *
• Other Worlds Revealed, de “A celebration service” (1996) • Panda Chant II (1995)
* Integrantes do grupo: André Estevez, Angélica Menezes, Ângelo Fernandes, Camila Brüder, Camila Titinger, Felipe Moreira, Flávia Tunchel, Glauco Tolentino, Guilherme Prioli, Josani Keunecke, Josy Santos, Larissa Costa, Luciano Simões, Nataniel Bádue e Sheila Minatti.
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09/06/2011, 19h00 – Concerto: Performance vocal e a música contemporânea
I) Edmundo Villani-‐Côrtes Luciano Simões, barítono Ana Carolina Sacco, piano
• Espelhos (texto: Mônica Côrtes) • Rua Aurora (texto: Mário de Andrade) • Sem Nome (texto: Mônica Côrtes) • Alma Minha (texto: Luís Vaz de Camões) • Valsinha de Roda (texto: Edmundo Villani-‐Côrtes)
II) Achille Picchi Lenine Santos. tenor Achille Picchi, piano
O coração (texto: Castro Alves) Comboio de Corda I: • Dor (texto: Castro Alves) • Quando eu morrer (texto:Laurindo Rabelo) • Evocação (texto:Helena Ferraz) • Buquê (texto:José Bandeira) • Chama (texto: de Bastos Tigre) do ciclo Comboio de Corda II: • Autopsicografia (texto: Fernando Pessoa) • A Flor e o Lago (texto: João de Lemos S. Castelo Branco)
10/06/2011, 19h00 – Concerto: Performance vocal e a músicologia
I) Canções e músicas instrumentais do teatro de William Shakespeare
Duo “As You Like It”: Carin Zwilling, Alaúde Andrea Kaiser, Soprano
John Hilton (c.1599–1657) • Some men for sudden joy did weep (King Lear, I.4)
Robert Johnson (c.1583 – c.1633) • Full fathom five (The Tempest, I.2) • Where the bee sucks (The Tempest, V.1) Thomas Morley (1557-‐1602) • O mistress mine (Twelfth Night, II.3)
Robert Johnson (c.1583 – c.1633) • Hark, hark! The lark (Cymbelin, King of Britaine, II.3/20)
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Antiga balada • Tomorrow is Saint Valentine’s Day (Hamlet, IV.5)
Thomas Robinson, The Schoole of Musicke (1603) • The ousel cock (Midsummer Night’s Dream, III.1)
II) Cantata Adriana Giarola Kayama, Soprano Franciso Costa, Piano
• Silenzio, o muse Policarpo José António da Silva (1745-‐1803)
III) Recitativos de salão Alberto Pacheco, Tenor José Franciso Costa, Piano
• Elisa Furtado Coelho (1831-‐1900); texto: Bulhão Pato
• Sempre! António Osternold (?-‐?); texto: Bento da Silva
IV) Fortunato Mazziotti (1782-‐1855 ) Adriana G. Kayama, soprano Alberto Pacheco, tenor José Franciso Costa, piano
• Dueto de amor Composto para o casamento da Princesa Maria Tereza – 13/05/1810
V) Heitor Villa-‐Lobos (1887 -‐ 1959) Márcia Guimarães, soprano Achille Picchi, piano
Serestas: • Abril (texto -‐ Ribeiro Couto) • Realejo (texto -‐ Álvaro Moreyra) • Serenata (texto -‐ David Nasser)
VI) César Guerra-‐Peixe (1914-‐1993) Inácio de Nonno, barítono José Franciso Costa, Piano
• Rapadura (texto -‐ Carlos Drummond de Andrade) • Cânticos Serranos nº 4* (texto -‐ Raul de Leoni): Prudência; Vivendo • Vou-‐me embora pra Pasárgada (texto -‐ Manuel Bandeira)
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COMUNICAÇÕES
A Canção Brasileira na Aula de Canto – uma análise das propriedades pedagógicas da “Canção da Felicidade”, de Barrozo Netto e Nosor Sanches.
Lenine Alves dos Santos
Doutorando no Instituto de Artes da Unesp, sob orientação da Profa. Dra. Martha Herr
Resumo: Este trabalho defende a valorização da canção brasileira como material para o ensino do canto no Brasil, procurando eliminar preconceitos associados a este repertório, que é por vezes considerado inadequado por professores de canto para a abordagem da técnica vocal no canto lírico. A argumentação demonstra que a canção brasileira pode ser, para os falantes de português brasileiro como língua materna, o veículo mais apropriado para o ensino de procedimentos técnicos vocais, seja para alunos de nível básico, intermediário ou avançado. A pesquisa fundamenta-‐se em bibliografia específica da área de fisiologia da voz e pedagogia vocal, bem como em textos relacionados a processos cognitivos e diferentes modelos de emissão vocal. A obra “Canção da Felicidade”, de Barrozo Netto e Nosor Sanches, é analisada com o objetivo de demonstrar seu potencial pedagógico. O texto da canção recebe tradução formal e literal para o inglês, para facilitar o acesso a estas canções por cantores falantes de outros idiomas. Informações complementares e indicações interpretativas acompanham a análise pedagógica da canção. Palavras-‐chave: Português Brasileiro Cantado – Técnica Vocal – Canção Brasileira
Abstract: This research aims to defend the use of Brazilian song as material for the teaching of singing in Brazil, seeking to eliminate biases associated with this repertoire, which is sometimes considered inappropriate for singing teachers to approach the vocal technique. The argument shows that Brazilian song can be, for speakers of Brazilian Portuguese as their mother tongue, the most appropriate vehicle for the teaching of vocal technical procedures for students at basic, intermediate or advanced. The research is based on bibliographic research in the area of voice physiology and the teaching of singing, as well as in texts related to cognitive processes and different models of vocal production. The song “Canção da Felicidade”, by Barrozo Netto e Nosor Sanches, is analyzed in order to demonstrate its pedagogical potential, organized by gradual increasing of technical difficulty, and aiming to address all phases of technical development of the singer. The texts of the song receive formal and literal translations into English, to facilitate access to the songs by singers who speak other languages. Additional information and interpretive guidelines accompanying pedagogical analyzis of the song. Key words: Brazilian Portuguese as Sung -‐ Vocal Technique – Brazilian Song
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Introdução
No Brasil, por motivos relacionados à história de sua colonização e de seu
desenvolvimento como estado nacional, verificou-‐se com freqüência uma tendência a
se valorizar mais a produção cultural vinda do exterior que a realizada no próprio país.
A música brasileira de todos os gêneros se ressentiu durante muito tempo desta
realidade, e dentre elas a música clássica vocal, já que o português não era
considerado idioma apropriado para o canto lírico até épocas bastante recentes. O
estudo do canto sempre se deu por aqui através das escolas de canto tradicionais,
principalmente a italiana, mas em menores proporções também pela escola alemã e
francesa.
No entanto já há várias décadas se evidencia como matéria de discussão, entre
cantores, professores e musicólogos brasileiros, o conflito entre as exigências sonoras
daquelas escolas e repertórios a elas relacionados, e as demandas do cantor brasileiro
para interpretar o repertório nacional, repertório que possui hoje um acervo
importante em número e relevância artística e cultural, e que pode se constituir em
veículo para a maior divulgação dos valores e da cultura brasileiras no mundo.
Em seu Aspectos da Música Brasileira há quase meio século, Mário de Andrade
já chamava atenção para os intérpretes que aplicavam ao repertório nacional os
mesmos parâmetros sonoros do bel canto italiano, resultando num canto, segundo ele,
“encasacado”, rígido e distante da coloquialidade da língua brasileira. (Andrade, 1965,
p. 126). Já no Ensaio Sobre a Música Brasileira, o musicólogo paulistano apontava as
ricas possibilidades que se abririam para o cantor brasileiro pela simples valorização do
repertório nacional no estudo do canto, afirmando que “...se a gente possuísse
professores de canto com interesse pela coisa nacional, podia muito bem sair uma
escola de canto não digo nova, mas apresentando peculiaridades étnicas de valor
incontestável. Nacional e artístico.” (Andrade, 1972, pp. 20-‐21)
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O choque entre os parâmetros vocal das escolas tradicionais de canto e as exigências do canto em português
A formação das escolas nacionais de canto se deram a partir de seus idiomas
respectivos, e obedecendo às demandas e singularidades daqueles idiomas, bem como
aos fatores culturais e estéticos pelos quais passaram as histórias musicais de seus
países. É portanto compreensível que, ao ensinar seus parâmetros e procedimentos
técnicos a um cantor de outra cultura e outro idioma, dentre eles o português
brasileiro, tal absorção não se dará sem choques, e sem a distorção de fonemas,
sonoridades e gestos vocais naturais do idioma materno daquele cantor.
Richard Miller, em sua obra National Schools of Singing, promove detalhada
análise dos princípios fonéticos e fisiológicos em que se baseia cada uma dessas
escolas, demonstrando a íntima dependência que estas têm de sua história lingüística
e dos propósitos estéticos e artísticos a que serviam em seu contexto histórico
cultural. Sua conclusão, baseada em procedimentos científicos, observação de
processos pedagógicos e experimentação com alunos, é de que o processo mais
natural, produtivo e seguro para o ensino do canto, na contemporaneidade, não passa
pela aceitação passiva de procedimentos técnicos adquiridos e perpetuados pelo
conhecimento empírico, mas da análise e revisão destes procedimentos, propiciada
pela investigação científica do instrumento vocal e o entendimento de seu
funcionamento fisiológico, possibilitado hoje por avançados meios tecnológicos de
investigação do funcionamento do corpo humano. (MILLER, 1992)
É interessante observar que Miller reconhece, mesmo na desenvolvida
pedagogia vocal norte-‐americana, a influência das escolas nacionais tradicionais de
canto, e o quanto a perpetuação não crítica dos procedimentos daquelas escolas
dificulta a consolidação de uma escola norte-‐americana de canto. Em suas palavras, a
grande confusão de informações e procedimentos trazidos por profissionais de
diferentes escolas dificulta a unificação de procedimentos do que seria uma escola de
canto puramente norte-‐americana.
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O “caldo cultural”, por outro lado, que popularmente se supõe caracterizar alguns aspectos da cultura norte americana, poderia a princípio ter produzido um ideal vocal norte-‐americano unificado. Tal não é o caso, pois este processo de mistura está bem menos completo nesta área que em outras áreas culturais; diferentes abordagens de pedagogia vocal são claramente vistas co-‐existindo. Não há escola americana nacional de canto porque professores treinados em cada uma das outras escolas nacionais tradicionais de canto, continuaram a ensinar das suas maneiras diversas; dentro da pedagogia americana de canto há menos unidade de abordagem que em qualquer grande país da Europa ocidental1. (MILLER, 1997, p. 200)
Acreditamos válido afirmar que a aplicação não crítica e sistemática dos
procedimentos dessas escolas para o ensino do canto no Brasil, também tende a
produzir distorções na maneira espontânea de cantar em português de um brasileiro,
principalmente se o repertório utilizado durante todo o processo do estudo excluir o
canto em português.
O estudo e tradução prévia do texto, sua interpretação e contextualização à
cultura e estilo de origem, são procedimentos que demoram a se tornar naturais para
o cantor, tomando quase o mesmo tempo que a voz e o músico demoram para se
formar e amadurecer. No texto introdutório de seu célebre método de canto, Nicola
Vaccaj justifica a escolha de exercícios baseados em textos, acreditando que para o
cantor estrangeiro será mais simples aprender sobre palavras que façam sentido:
Como a maior dificuldade para os estrangeiros é falar cantando numa língua que não a sua própria, mesmo que tenham por algum tempo solfejado e vocalizado, imaginei que, ao fim das vocalizações, seria melhor acostumar-‐se a ela que a sílabas vazias de significado2. (VACCAJ, 1971, p. 1)
1 The “melting pot”, on the other hand, which is supposed to characterize some aspects of North American culture, might be assumed to have produced a uniquely American vocal ideal. Such is not the case, for the melting process is even less complete in this area than in other cultural fields; coexistent threads of vocal pedagogy are clearly visible. There is no American national school of singing because teachers trained in each of the national vocal traditions have continued to go their diverse ways; within American pedagogy there is less unity of approach than in any of the major countries of Western Europe. (Tradução nossa) 2 Ma siccome la difficoltà maggiore per gli stranieri si è quella di parlare cantando una lingua che non propria, anchorchè avessero per qualque tempo solfeggiato e vocalizzato, immaginai
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No entanto, em nossa experiência docente temos, inúmeras vezes, percebido
que mesmo idiomas neo-‐latinos, a princípio mais próximos do português, como o
italiano, se configuram como “sílabas vazias de significado”, para o aluno iniciante,
estabelecendo uma barreira lingüística que tende a dificultar o desenvolvimento
técnico do cantor.
Diametralmente opostos à definição do repertório brasileiro como difícil e
inapropriado, acreditamos que a canção brasileira pode ser um facilitador no processo
de ensino do canto no Brasil, podendo ser usado sistematicamente como repertório
para alunos em todos os níveis de desenvolvimento técnico e musical.
O iniciante poderá abordar pela primeira vez conceitos técnicos do canto sem a
necessidade de fazê-‐lo em um idioma e cultura diferentes dos seus. A identificação do
cantor com sua cultura, que tem uma de suas expressões mais básicas e viscerais na
emissão, no timbre e na pronúncia de sua língua materna, simplificam o início da
investigação e discussão técnica, aproveitando os condicionamentos fisiológicos e as
respostas cognitivas naturais do cantor.
Fernando J. C. Duarte desenvolve a idéia de que a fala brasileira tem influência
direta na emissão da voz no canto, defendendo que
(...) o português falado no Brasil, considerando uma norma generalizada, envolve certos padrões de respiração e de articulação fonética que determinam fisiologicamente um tipo específico de emissão vocal. Esta emissão, que envolve as sonoridades básicas do nível silábico e dos níveis da entoação da fala, está naturalmente relacionada a um modelo de canto de prolação livre das sílabas, típica do canto popular. (DUARTE, 1985, p. 160)
A estas determinantes lingüísticas relacionadas à fatores culturais e à estrutura
fisiológica da emissão, somam-‐se outras determinantes psicológicas, que formam uma
cadeia de reações emocionais e físicas à qual o indivíduo estará sempre ligado, por
che fin dalla scalla fosse meglio di accostumarsi a questa piuttosto che a silabbe vuote di senso. (Tradução nossa)
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mais que tenha a capacidade, durante a sua trajetória, de absorver diferentes
contextos e prismas culturais e lingüísticos. Para Richard Miller,
(...) um observador atento pode muito bem perceber tradições culturais e vocais que se prendem a fontes raciais. Em verdade, a história racial (num sentido amplo do termo) permeia qualquer cultura nacional. Qualquer artista prático está cercado de uma rede de nacionalismo; seu vocalismo foi formado pelos sons que o cercam3. (MILLER, 2002, p. 189)
Assim sendo, quando o início dos trabalhos técnico-‐vocais se utiliza do
repertório nacional, se utiliza de todas estas atitudes fisiológicas e psicológicas
espontâneas do aluno, exigindo a atenção deste apenas para aspectos e
procedimentos técnicos a ser desenvolvidos e incrementados, mas sem a inserção de
uma demanda extra de dificuldade, qual seja: o domínio de uma estrutura diferente,
ligada à emissão, à pronúncia e à prosódia características de um outro idioma.
Ainda seguindo a argumentação de Miller, “Tipos específicos de literatura vocal
e tipos específicos de sons vocais que evoluíram correspondem diretamente a
temperamentos nacionais”4. (MILLER, 2002, p. 193)
Assim sendo, pode-‐se afirmar que um cantor iniciante teria, a priori, mais
facilidade para realizar uma obra vocal de sua própria cultura, com seu próprio som, e
usar este mesmo som para desenvolver seu instrumento vocal, que tendo de fazê-‐lo
num idioma e a pertir de uma cultura diferente da sua.
Uma vez que o aluno já tenha dominado e entendido, tornando orgânicos os
procedimentos técnicos em seu próprio ambiente cultural e lingüístico, tornar-‐se-‐ia
mais fácil investigar procedimentos análogos, desenvolvendo outros padrões em
outros idiomas.
3 (...) an objetive observer may very well see cultural and vocal traditions witch stem from racial sources. Indeed, racial history (in a loose sense of the term) underlies all national culture. Any practicing artist is encircled by a psychological web of nacionalism; his vocalism has been formed by the sounds which surround him. (Tradução nossa) 4 Specifc kinds of vocal literature and specific kinds of vocal sounds have evolved which directly correspond to national temperaments. (Tradução nossa)
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Aprendendo com uma canção: Canção da Felicidade (Música: Barrozo Netto / Texto: Nosor Sanches)
Tomemos esta canção como material para a aplicação, para o aluno iniciante,
dos elementos técnicos trabalhados em vocalizações, bem como outros elementos
inerentes ao canto, que só costumam se apresentar em sua totalidade em face de uma
obra vocal completa.
Normalmente, fosse utilizada uma obra italiana, o professor poderia recorrer a
uma ária antiga, como por exemplo “O Cessate di Piagarmi”, de Alessandro Scarlatti
(1660-‐1725), tanto por sua tessitura facilmente abordável por qualquer cantor (menos
de uma oitava), como pela ausência de saltos complexos e pelo seu fraseado estável,
quase inteiro em notas repetidas. A canção de Barrozo Netto apresenta as mesmas
características: tessitura curta (uma sétima menor) – fraseado estável e livre de saltos
complexos – ausência quase total de fonemas nasais em sua primeira estrofe, com
baixa incidência nas posteriores.
O gênero da canção, uma modinha, tem vínculo notório com a canção popular
brasileira moderna, sendo que todo o estudo que permeia a abordagem desta canção
pelo aluno brasileiro, seja de cunho histórico, vocabular, estilístico, formal, melódico
ou harmônico, terá mais probabilidade de estar naturalmente ligado ao seu universo
cultural que uma ária de ópera do século XVI, geralmente utilizada em suas releituras
realizadas no período romântico, e escrita num italiano de frases indiretas e rico em
termos e expressões arcaicas.
Conhecendo o compositor: Joaquim Antônio Barrozo Netto (Rio de Janeiro, 1881 -‐ 1941)
Barrozo Netto iniciou seus estudos musicais em tenra infância e teve, antes de
compor, uma bem sucedida carreira como pianista de concerto. Em 1906, ingressou no
Instituto Nacional de Música como professor de piano, e nas primeiras décadas do
século XX participou de um trio de piano, violino e violoncelo que realizou concertos
divulgando o repertório de música de câmara de compositores brasileiros.
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É o autor dos versos de várias de suas canções, algumas delas assinadas com o
pseudônimo de “William Gordon”. A singeleza de suas melodias, a maior parte das
vezes inspiradas em gêneros populares, fizeram dele uma constante no repertório de
cantores de todos os estilos. (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 1998) (MARIZ,
1980) (HEITOR, 1950)
Catálogo: aproximadamente 32 canções. Publicadas por Bevilacqua & Cia.,
Carlos Wehrs, Mangione, Arthur Napoleão, Castro Lima & Cia. e Sampaio Araújo & Cia.
Edições esgotadas. Algumas em manuscrito. Disponíveis na Biblioteca Nacional, ECA -‐
USP e UFMG Grupo de estudos sobre canção brasileira, ligado à UFMG
(https://www.grude.ufmg.br/musica/cancaobrasileira.nsf/oguia?openform).
Conhecendo o poeta: Nosor de Toledo Sanches (Iguape, 1902 – Rio de Janeiro, 1978)
Nosor Sanches foi para o Rio de Janeiro com apenas 3 meses de idade em 1903.
Em 1915 foi internado no Colégio Marista São José, onde obteve prêmios em literatura
e música. Em 1922, publicou o livro “Sarabanda Musical”. Em 1924, Iguape foi
secretário do jornal “O Iguape”, e de volta à cidade do Rio de Janeiro, formou-‐se em
Ciências Econômicas. Ainda, na década de 20, em Queluz de Minas, fundou o jornal “O
Foguete”.
Em 1926, casou com a professora e pianista, Emilia Lima de Toledo Sanches, e
em 1937, publica Canção da Felicidade. Foi Chefe da Seção de Comunicação no Lloyd
Brasileiro, mas manteve destaque na imprensa carioca como jornalista e poeta. Em
1966, depois de publicar poemas e crônicas na impressa carioca, publicou O Jardim
Sonoro (1966). (MALHANO, 1982)
Traduções
-‐ Canção da Felicidade: Happiness Song
-‐ Lentamente: Slowly
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1) Felicidade, para que vieste?
Happiness, why did you come?
2) Se após partiste, não mais voltaste...
If afterwards you left, no more came back
3) A minha vida tornou-‐se agreste
(The) my life became arid
4) Pois a saudade tu me deixaste.
Because (the) loneliness you me have left
5) Felicidade, tu não conheces
Happiness, you don’t know
6) A dor que mata, de uma saudade
The pain that kills, of (a) loneliness
7) Felicidade, nunca me viesses
Happiness, never (to) me you should have come
8) Porque te foste, felicidade?
Why you have left, happiness?
Literal translation: Happiness, why did you come, if you have left and have not come
back? My life has become arid, because only loneliness have you left me. Happiness,
you don’t know the fatal pain of solitude. Happiness, you should never have come! Why
have you left me, Happiness?
9) Fiquei sozinho pois meu amor
I became alone because my love
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10) Quando partiste, partiu também.
when you left, left too.
11) Fiquei sozinho com a minha dor
I became alone with (the) my pain
12) Que nunca foge para ninguém.
that never hides from anybody.
13) O meu martírio não tem mais fim
(The) my martyrdom doesn ́t have anymore end
14) Quando me lembro que te aspirei,
when I remember that you I have wanted,
15) E que brilhaste no meu jardim
and that you have shone in my garden
16) Como a coroa de luz de um rei.
like the crown of light of a king.
Literal translation: I was alone, because love left when you left me. I am alone
with my pain, which never abandons me. My martyrdom is endless, when I think that I
have wanted you, and that you have shone in my garden, as the shining crown of a
king.
17) Eu te quis tanto porque julgava
I you have wanted so much because I believed
18) Que se chegasses não mais te irias,
that if you would come no more you would go,
19) Que sempre fosses a minha escrava
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that always you would be (the) my slave,
20) Que te alongasses pelos meus dias.
that you would stay for (all) my days.
21) Felicidade, tu não conheces
Happiness, you don’t know
22) A dor que mata, de uma saudade.
The pain that kills, of a loneliness.
23) Felicidade, nunca me viesses.
Happiness, never to me you should have come.
24) Porque te foste, felicidade?
Why you have left, happiness?
Literal translation: I’ve only wanted you so much because I believed, that if you
would come, you wouldn’t leave me. That you would always be my slave, out through
my days. Happiness, you don’t know the fatal pain of solitude... Happiness, you
shouldn’t have come! Why did you leave, Happiness?
Características interpretativas da canção
-‐ A graça particular das modinhas é ter cada uma sua prosódia característica, às
vezes torta e desvirtuada, que sabe aos salões antigos para os quais era composta e
interpretada, em geral por compositores e cantores amadores, com o “primor de
desleixo métrico” a que se referiu Mário de Andrade5. Sua prosódia irregular e acentos
em lugares inapropriados são, portanto, herdados de sua origem familiar e
amadorística, mas tornaram-‐se característica estilística, de modo que tentar consertar
5 ANDRADE, 1964, p. 7
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suas pronúncias e prosódias geralmente incorre em descaracterização e afastamento
de seu estilo próprio.
-‐ O principal norteador de seu discurso musical da modinha é em geral a
melodia, sendo que o texto e a harmonia lhe ficam submetidos, ainda que em
detrimento do entendimento das palavras. Em geral, nas canções estróficas, as
irregularidades métricas e de prosódicas são admitidas a partir das segundas e demais
estrofes, enquanto na modinha tal distorção costuma ser assumida desde a primeira
estrofe.
-‐ O poema “Canção da Felicidade” possui três estrofes de oito versos, sempre
com nove sílabas rítmicas, acentuadas na quarta e nona sílabas. Esta característica
métrica foi aproveitada pelo compositor na construção melódica, resultando num
ostinato rítmico que sugere a atmosfera de lamentação.
-‐ No primeiro verso, a pronúncia das palavras “vieste” e “viesses”, em geral
enunciadas como tri-‐sílaba, com um hiato entre as duas primeiras sílabas [vɪ.ˈɛs.tʃɪ -‐
vɪ.ˈɛ.sɪs], se transforma em di-‐sílaba, com um ditongo crescente na primeira sílaba, o
“i” passando a funcionar como semi-‐vogal [ˈvjɛs.tʃɪ -‐ ˈvjɛ.sɪs]. Este, como outros
desvios da prosódia e pronúncia natural das frases presentes nesta canção são, como
citado acima, heranças históricas incorporadas ao estilo de composição e
interpretação da modinha, criando uma idiossincrasia que, como dito acima, a
distingue prosodicamente dos demais gêneros de canção.
-‐ Sua característica estrófica permite os caminhos interpretativos próprios
deste gênero de canção, como contrastes de dinâmica nas repetições, bem como leves
variações de andamento. O estudo e entendimento do texto poderá facilitar ao cantor
uma realização e interpretação original da obra.
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Informações gerais sobre a obra
-‐ O poema “Canção da Felicidade”, de Nosor Sanches, foi publicado em seu
livro de mesmo nome em 1937.
-‐ Vários cantores populares e líricos têm gravado a Canção da Felicidade;
dentre eles Vicente Celestino (1894-‐1968), Lenita Bruno (1926-‐1987), Inezita Barrozo
(1925) e Bidu Sayão (1902-‐1999), que a divulgou em seus concertos na Europa e nos
Estados Unidos da América.
-‐ A canção integrou a trilha sonora da novela Redenção, exibida pela TV
Excelsior, entre 1966 e 1968.
Possibilidades de exploração pedagógica da canção
-‐ As seqüências de frases com notas repetidas facilita o trabalho com o cantor
iniciante, sendo que a quase inexistência de vogais nasais neste poema favorece a
definição das vogais, permitindo ao professor desenvolver o tônus da musculatura
intrínseca, enquanto acostuma o cantor à manutenção da energia de emissão em
todas as vogais, do início ao fim da frase. O aluno deve se acostumar à diferença entre
a rápida produção dos fonemas, própria da fala, e a emissão estendida
temporalmente, característica do canto, onde a constância da definição da vogal deve
ser alcançada durante o evento silábico, sem demora ou valorização das transições.
(MILLER, 1996, p. 52)
-‐ Num primeiro momento, com o aluno iniciante, a principal preocupação não
deve ser com questões musicais de dinâmica, variações de andamento e interpretação,
e sim com a correta definição das vogais e uma emissão livre e conectada com a
pressão subglótica (appoggio). Os principais elementos da técnica vocal, uma produção
de som consistente e livre, deve ter sido atingida, antes que se exija do aluno níveis
sofisticados de interpretação e expressão artística. (MILLER, 1996, p. 137)
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-‐ Com o aluno intermediário se pode desenvolver uma certa liberdade de
variações no andamento, estabelecendo diferentes pontos de importância dentro das
frases e buscando flexibilidade vocal para mudanças de dinâmica.
-‐ O aluno avançado pode ter nesta canção um laboratório de interpretação de
texto, buscando diferentes estados de espírito, timbres e matizes.
Andamento sugerido6: Semínima = 72
Tonalidade original: Mi Menor (propícia para mezzo-‐sopranos e barítonos)
Transposições sugeridas: Soprano e tenor: Sol Menor; Baixo: Re Menor
Conclusão
Pensar o Brasil, desvendando sua particular riqueza cultural e de que forma ela
contribuirá para a formação e o entendimento do mundo no futuro, é um tema a que,
acreditamos, todo professor brasileiro tem obrigação de se debruçar. A atual projeção
de nosso país no cenário internacional, não apenas na questão do desenvolvimento
econômico, mas com significativos avanços nas áreas tecnológica e científica, deve ser
acompanhado pela valorização e divulgação de nossos valores culturais, ���acumulados
desde nossa heterogênea formação, há mais de 500 anos, e incessantemente
desenvolvidos e afirmados pelas gerações contemporâneas.
Apesar de sua origem humilde e despretensiosa, a música popular brasileira, e
mais especificamente a canção popular brasileira, tem dado sucessivas mostras de
como a arte pode ser o veículo de divulgação do nosso idioma, história, tradições,
diversidade cultural e, em última análise, de nossa identidade idiossincrática dentre as
diversas culturas nacionais. Acreditamos que a canção clássica possui a mesma
potencialidade, até o momento praticamente inexplorada, embora seu valor musical e
poético venha sendo reiteradamente afirmado pelos mais importantes artistas e
estudiosos nacionais e internacionais, através de nossa história.
6 Sugestão nossa. Metrônomo não sugerido pelo compositor.
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Tal divulgação e afirmação devem ser iniciadas aqui mesmo em nosso país,
onde tal repertório é por vezes marginalizado, estando presente em uma ínfima
porcentagem dos programas de concerto, num ambiente já bastante precário de
produção de música clássica. A pesquisa musicológica, com o objetivo de
levantamento, organização, edição e posterior publicação, é de extrema importância
no momento atual, sendo que um dos motivos principais de sua rara performance nos
palcos é o difícil acesso às suas partituras e seu registro fonográfico raro. O principal
campo de valorização deste repertório, portanto, acreditamos ser a sala de aula, onde
o aluno brasileiro poderá aprender a conhecer, respeitar e gostar da música de seu
país, passando a divulgá-‐la em seus recitais e a exigi-‐la nas programações das salas de
concerto.
Assim como a “Canção da Felicidade”, que aqui utilizamos apenas para
demonstrar suas possibilidades pedagógicas quando aplicadas como repertório ao
aluno iniciante, há uma quantidade prodigiosa de canções brasileiras, tanto populares
quanto folclóricas, semi-‐eruditas e eruditas, que podem ser utilizadas para o ensino de
alunos dos mais diversos níveis de desenvolvimento. A busca, exploração e
organização deste repertório é o principal objetivo de nossa pesquisa atual.
Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Belo 1965. ________________ . Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1972. ________________. Modinhas Imperiais. São Paulo: Martins, 1930. DUARTE, Fernando J. C. Aplicação de uma transcrição fonética para o canto no Brasil. ArteUnesp, no. 10, p. 156 a 170. São Paulo: 1985. _____________________. A Fala e o Canto no Brasil: Dois modelos de Emissão Vocal. ArteUnesp, no. 16, p. 87-‐97, São Paulo: UNESP, 1994. KAYAMA, Adriana Giarola; CARVALHO, Flávio; CASTRO, Luciana Monteiro de; HERR, Martha; RUBIM, Mirna; PÁDUA, Mônica Pedrosa de; MATTOS, Wladimir. “PB cantado:
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A evocação de sonoridades instrumentais na escrita para piano no ciclo Winterreise de Franz Schubert7
Ticiano Biancolino
Resumo: Os escritos estéticos dos autores do Frühromantik (Primeiro Romantismo), surgidos a partir das duas últimas décadas do século XVIII, constituíram a base do pensamento do Romantismo musical alemão. De vital importância dentro desta nova concepção estética foi o entendimento da música instrumental como a manifestação mais nobre das artes, algo que ia contra o preceito que vigorara até então, segundo o qual a música sem voz possuía pouco valor, por ser incapaz, apenas por meio de sons, de imitar o mundo físico e despertar sentimentos nos ouvintes. Paralelamente a esse processo, o piano -‐cujos primeiros modelos bem sucedidos surgiram entre 1698 e 1730 -‐ganhou maior repertório no último quarto do século XVIII e, ao mesmo tempo, passou a ser utilizado como substituto de formações instrumentais maiores, em reduções de sinfonias e óperas. Este trabalho trata da importância que os fenômenos de valorização da música instrumental, da formação da linguagem do piano e da utilização deste instrumento enquanto redutor da orquestra exerceram no aparecimento do Lied em princípios do século XIX, um gênero híbrido entre música e poesia e entre música vocal e música instrumental, que se contrapôs à tradição da canção estrófica setecentista. Mais especificamente, esta pesquisa investiga em qual medida a composição da parte do piano do ciclo de canções Winterreise (1827) de Franz Schubert foi realizada sobre a idéia de evocação de sonoridades de outros instrumentos, tomando por base similaridades de escrita entre determinadas passagens da obra de Schubert e aquelas retiradas de obras sinfônicas e de câmara, do próprio Schubert e de outros compositores que representaram grandes influências suas, especialmente Haydn, Mozart e Beethoven. Palavras-‐chave: Franz Schubert; Lied; Winterreise; escrita para piano; música instrumental Abstract: The aesthetic writings by Frühromantik (Early Romantic) authors, which appeared during the last two decades of the eighteenth century, became the basis of German musical conception of Romanticism. Fundamentally important for that new aesthetic idea was the understanding of instrumental music as the noblest manifestation of arts, which was against the old precept that music without singing was worthless, as it was incapable of imitating the physical world and reviving the listener’s sentiments. Simultaneously, the repertoire for piano – which early successful models appeared between 1698 and 1730 – was substantially increased during the last quarter of the eighteenth century and, at the same time, gradually started to be used as a substitute for larger instrumental groups, and reductions of symphonies and operas. The present work discusses how the phenomena of instrumental music valorization, piano idiom formation and its use as a substitute for an orchestra (piano reduction) influenced the advent of Lied at the beginning of the nineteenth century -‐a hybrid genre between music and poetry -‐and between vocal and instrumental music, in opposition to the eighteenth century strophic song tradition. More specifically, this research examines how 7 Este artigo é derivado da dissertação de mestrado homônima defendida no ano de 2008 junto ao Programa de Pós-‐graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP, tendo sido realizada sob orientação do Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira.
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much of the piano accompaniment of Franz Schubert’s song cycle Winterreise (1827) was based on the idea of the evocation of the sonorities of other instruments, using as evidence stylistic similarities between some of the passages from Schubert’s works and those extracted from symphonic and chamber pieces -‐by both Schubert himself and other composers, notably his major influences: Haydn, Mozart and Beethoven. Keywords: Franz Schubert; Lied; Winterreise; piano writing; instrumental music.
Beethoven fez mais pelo desenvolvimento dos Lieder de Schubert com sua música instrumental do que fizeram juntos todos os compositores de canções do século XVIII.
Walter Vetter
Que pretendem os racionalistas timoratos e desconfiados, que exigem a explicação por palavras de cada uma das centenas de obras musicais e não conseguem entender que nem todas têm um significado específico, como acontece na pintura? Pretenderão eles aferir a linguagem mais rica pela mais pobre e reduzi-‐la a palavras, a ela, que despreza
as palavras?
Wilhelm Heinrich Wackenroder
Quando nos propomos a pesquisar qualquer período, estilo ou gênero da
história ocidental da música, é apenas com certo esforço imaginativo, amparados pelo
máximo de informação confiável e disponível, que podemos construir um cenário
mental que sirva de fundo para o melhor entendimento de nosso objeto de estudo. Se
nos propomos a discutir sobre Lied, Schubert e piano precisamos, antes de mais nada,
situar e revisitar nossos conceitos e, antes de tudo, precisamos entender o contexto de
pensamento em vigor entre intelectuais do século XVIII acerca da canção daquele
período, para então nos debruçarmos sobre nosso objeto principal. Johann Wolfgang
von Goethe (17491832), um dos maiores autores literários de todos os tempos, tinha
um gosto particular pela simples canção acompanhada, gosto este, na verdade,
revelador de toda uma época:
Para ele [Goethe], a canção ideal era basicamente silábica e em forma estrófica, para se ajustar à dos poemas. A melodia devia guiar-‐
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se pelos versos, sem aspirar à independência, e não cabia ao acompanhamento chamar a atenção ou sequer ilustrar as palavras, senão de maneira mais geral. [...] Goethe teria considerado excessivamente musicais as canções compostas no século XIX sobre poemas seus, a começar por Schubert e Loewe. (RUSHTON, 1991, p. 146).
Mesmo os grandes compositores setecentistas, Mozart inclusive8, abordavam a
canção como um gênero secundário, destinado mais à utilização em eventos sociais
(saraus, reuniões, festas etc.) do que a propósitos musicais propriamente. Mesmo que
muitas das canções do último quarto de século tenham sido musicalmente melhor
elaboradas do que a simples canção estrófica ao gosto de Goethe, ainda assim a
essência expressiva permanecia na poesia, com a parte instrumental restringindo-‐se
ao acompanhamento e a ilustrações bastante comedidas do texto. Curiosamente, não
foi um processo linear que levou a canção setecentista a desenbocar no Lied9, como
veremos a seguir.
Os primeiros modelos bem sucedidos de pianofortes datam dos anos entre
1698 e 1730, mas foi apenas a partir da segunda metade dos setecentos que o piano
passou a tomar espaço e a ganhar repertório original. Desde cedo em sua história o
instrumento foi utilizado como um funcional substituto aos grupos instrumentais
maiores, e mesmo às orquestras, sempre difíceis de serem organizadas e patrocinadas
pelos excluídos das castas nobres ou das organizações religiosas: obras sinfônicas, por
exemplo, eram divulgadas comumente por meio de reduções para piano, a duas ou
quatro mãos, em reuniões privadas de músicos e apreciadores. Ao longo das últimas
décadas do século XVIII tornaram-‐se cada vez mais comuns, por exemplo, as edições
de óperas em reduções para piano. O controle das dinâmicas, acima de tudo nas 8 Das trinta e três canções com acompanhamento de teclado compostas por W. A. Mozart (1756-‐1791), “vinte e cinco seguem o velho modelo estrófico, onde, a despeito do significado das palavras do poema, o compositor emprega a mesma música, o que, por vezes, acaba resultando em um efeito cômico não intencional.” (WITTHON, 1999, p. 31). 9 A palavra alemã Lied (plural Lieder), em princípio, significa simplesmente “canção” ou “canto”. Entretanto, hoje, quando nos referimos ao Lied romântico, nos referimos ao gênero de música vocal cristalizado nas primeiras décadas do século XIX por compositores de língua alemã, e que tem por principal característica a interação entre a poesia, expressa na linha vocal, e a parte do piano, que deixa de funcionar como mero acompanhador da voz
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gradações de intensidade, e sonoridades em forte mais plenas, especialmente nos
instrumentos construídos a partir do início do século XIX, fizeram do piano um
instrumento . extremamente popular entre profissionais e diletantes da música. Com o
aumento de sua utilização como redutor da orquestra, o piano desenvolveu,
paralelamente à sua linguagem particular e original conseguida sobretudo no
repertório solo, uma linguagem de imitação de outros instrumentos, de efeitos
orquestrais e de intenções musicais extrapianísticas, as quais tornaram-‐se a matéria-‐
prima dos compositores para piano. A literatura para teclas, desde o princípio do
século XVIII, já trazia diversos exemplos de como os compositores referiam-‐se, pela
escrita, a sonoridades de outros instrumentos. Referências a sonoridades de
instrumentos de metal, por exemplo, eram bastante comuns entre os compositores
para cravo nas primeiras décadas do século, como vemos no tema do Prelúdio em re
maior do segundo livro de O Cravo Bem Temperado de J. S. Bach, ou mesmo em toda a
estrutura motívica da Sonata em sol menor K. 450 de D. Scarlatti. Mesmo com o
assentamento do estilo clássico nas últimas décadas dos 1700, esse pensamento de
referencialismo de timbres continua impregnando o imaginário dos compositores para
piano, e definindo muito da sonoridade de suas composições. Referências constantes a
cordas (Haydn, Sonata Hob. XVI:49, 1o
. movimento, c. 13 a 24) e mesmo a
instrumentos percussivos, como no Rondo alla Turca da Sonata K. 331 de Mozart, são
recorrentes em todo o repertório para teclas ao longo do século XVIII. Os compositores
valiam-‐se da escrita idiomática dos instrumentos diversos, reproduzindo-‐os no teclado,
como ritmos e arpejos relacionados às fanfarras e escrita clara a quatro vozes, de
caráter mais homofônico, em referência ao quarteto de cordas, por exemplo. Tais
possibilidades evocativas10
do teclado, potencializadas pelos recursos de dinâmica do
piano, fizeram deste um instrumento central em toda construção do pensamento
composicional clássico-‐romântico, ao mesmo tempo que tornava-‐se mais e mais
10 Da maneira que a utilizamos aqui, a idéia de evocação não foge de um de seus significados originais, qual seja, trazer algo à lembrança. No caso particular do objeto de estudo desta pesquisa, a evocação de sonoridades pelo piano significa a escrita do instrumento trazendo à lembrança do ouvinte sonoridades de outros instrumentos, através de um processo dado sobretudo pelas similaridades de escritas.
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popular a partir da década de 1790. Como conseqüência natural deste processo,
encontramos na produção para piano de Beethoven o ápice do pensamento
instrumental ou mesmo orquestral aplicado à escrita para teclado. O conjunto de suas
trinta e duas sonatas para piano, particularmente, apresenta todo um universo de
referências a sonoridades alheias ao instrumento, embora evocadas a partir dele.
Toques de trompas (início da Sonata Op. 81a.), fanfarras (primeiro tema da Sonata Op.
7), quartetos de cordas (movimento lento da Sonata Op. 13) são algumas das
sonoridades evocadas incessantemente ao longo de suas obras.
No que se referia à canção, os fenômenos de ganhos técnicos na construção e
na escrita do piano, bem como o de sua popularização na medida em que o século
findava, acabaram por gerar uma nova concepção na escrita instrumental:
Apenas muito lentamente, em parte, talvez, como um efeito colateral da ascensão à popularidade dos primeiros pianos, um estilo mais livre de escrita para teclado no acompanhamento de canções tornou-‐se disseminado. Certamente até 1770, o acompanhamento, normalmente executado ao cravo ou clavicórdio, desempenhou um papel secundário: não apenas ele dobrava a linha vocal, como havia comparativamente menos prelúdios, interlúdios e poslúdios. [...] Nas décadas sob discussão [1740-‐80], o cantor e o instrumentista eram, muito freqüentemente, a mesma pessoa; o desenvolvimento histórico, pelo qual a parte do teclado tornou-‐se ao mesmo tempo mais independente da voz e gradualmente mais difícil tecnicamente, foi o principal fator a transformar a canção em um esforço de conjunto. (SMEED, 1987, p. 13)
Mas não eram apenas as conquistas técnicas que guiavam a canção
setecentista rumo a uma profunda transmutação em um gênero que, em essência,
estava prestes a surgir. Para este processo, tão importante quanto elas foram as
mudanças no pensamento artístico como um todo, que também ocorriam cada vez
mais intensamente ao longo do último terço do século XVIII, e que promoveriam uma
das maiores mudanças na história da estética.
A valorização da palavra sobre a música remonta às origens do pensamento
ocidental. De maneira geral, a Grécia clássica já entendia que a harmonia e o ritmo
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deveriam obedecer à palavra, sendo estes os três elementos formadores da melodia
(harmonia, rhythmos e logos). Tal concepção não foi contestada por muitos séculos;
pelo contrário, foi por vezes retomada, servindo de base, por exemplo, para o
surgimento da ópera em princípios do século XVII -‐gênero derivado das
experimentações dramáticas de compositores e literatos fiorentinos do fim do século
anterior, que viam na declamação grega a base da expressão artística. Ironicamente,
entretanto, a ópera, incorporando a tradição das primeiras manifestações puramente
instrumentais do Renascimento, passa a permitir maiores experimentações neste
campo, primeiramente pensadas como ênfases aos poemas cantados, mas que,
gradualmente, tornam-‐se cada vez mais audaciosas, desprendendo-‐se de sua origem e
dando forma aos primeiros gêneros de música instrumental no século XVII, como a
primitiva sinfonia, advinda das aberturas.
A valorização da palavra pelos iluministas vincula-‐se, da mesma forma, ao
pensamento grego, e ao mesmo tempo, ocorre graças à concepção então vigente da
palavra como expressão máxima da razão. Valorizando o racionalismo, a ciência e a
visão objetiva da realidade, o Homem do século XVIII entende a verbalização como
ferramenta de molde e organização do pensamento e como conseqüente meio ideal
de exteriorização das descobertas e conclusões advindas de investigações intelectuais.
Assim, a literatura era entendida como a manifestação artística mais nobre, tendo
como matéria prima justamente a palavra, a essência maior da manifestação
racionalista, e o recurso por cujo intermédio ocorria a imitação e descrição da
Natureza11. Nesse contexto, a música só era entendida como plena manifestação
artística se acompanhada de texto. A música com voz era a única considerada capaz da
expressão direta dos sentimentos e conflitos humanos, uma vez que possuía o vínculo
com a sintaxe da língua. A despeito do ganho de importância da música instrumental
ao longo do século XVII, seria apenas em fins do século seguinte que a música pura
11 O conceito de natureza para o pensamento iluminista deve ser entendido como o conjunto de tudo o que está presente no mundo físico, incluindo o Homem e suas particularidades, e não como a concepção do senso comum da natureza entendida essencialmente como o conjunto dos reinos vegetal, mineral e animal, em certa medida distante da realidade humana cotidiana.
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passaria a causar interesse, em princípio devido ao desenvolvimento da forma-‐sonata
e, logo, principalmente graças aos movimentos literários pré-‐românticos que
rapidamente influenciaram a música com seus ideais de busca pelo inefável, isto é, a
necessidade de expressão pelos sons do que estaria além da capacidade das palavras
traduzir. A música instrumental seria a única realmente capaz de revelar o conteúdo e
a sintaxe puramente musicais. Deixando definitivamente de ser usada como um
simples meio de valorização da palavra, ela se elevaria acima de todos os outros tipos
de música e acima de todas as artes, não como mero espelho de algo ulterior ao
mundo físico, mas como a própria encarnação de tal imaterialidade:
A sugestão de que a música carregava um significado transcendente logo conduziu à visão de que a música instrumental fazia mais do que mostrar tal transcendência. Ela também a incorporava. Tal pretensão fazia sentido precisamente pelas razões que haviam sido usadas anteriormente para rejeitar a música instrumental. A falta de conteúdo intermediário, concreto, literário ou visual tornou possível à música instrumental erguer-‐se acima do status de meio para, de fato, incorporar e tornar-‐se uma verdade maior. (GOEHR, 1994, p. 154).
O disseminar de tal pensamento entre literatos e músicos na virada para o
século XIX, especialmente pelos escritos de Wackenroder, Tieck e Hoffmann, culminou
no processo de valorização da música instrumental, elevando-‐a à categoria de mais
nobre manifestação musical, dotando a música de um status de realce perante as
outras artes, pela primeira vez na História do pensamento ocidental.
Foi neste ambiente estético-‐musical que Franz Schubert (1797-‐1828) cresceu e
deu seus primeiros passos como compositor. Inicialmente educado sob parâmetros da
tradição musical setecentista, tendo sido discípulo de Salieri e Haydn, Schubert tinha
Mozart como exemplo máximo de suas aspirações como músico. Ainda assim, e sendo
apenas momentaneamente influenciado por compositores tradicionais de canções
como Reichardt e Zumsteeg, foi capaz de, aos dezessete anos, escrever uma canção
sem precedentes, desvinculada de qualquer tradição do repertório de canções do
século anterior, que, por assim dizer, inaugura o gênero Lied tal como o entendemos
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hoje: Gretchen am Spinnrade (Margarida à Roca), sobre uma cena do Fausto de
Goethe. Em Gretchen... o piano assume um papel nunca antes imaginado para uma
canção, sendo descritivo em diversas camadas (a roca, o coração, o estado psicológico
de Margarida) e estabelecendo um continuum rítmico-‐condutor que inunda a obra
com uma perturbadora unidade. A partir dali a canção acompanhada tradicional entra
em colapso, e uma nova era da relação piano e voz é iniciada. Por volta de 1820 o
imaginário de Schubert voltase para a música de Beethoven, que passa a ser seu herói
até o fim de seus dias. As sinfonias e sonatas para piano do velho compositor
encontram constante eco na produção do jovem, mas não apenas em seus pares: é
acima de tudo nos Lieder que o piano de Schubert revela seu poder máximo de
evocações de sonoridades, de orquestralidade e de busca pelo inefável. É exatamente
em suas canções, paradoxalmente, que o compositor se apresenta como grande,
talvez o maior, representante dos ideais puramente românticos na música, exprimindo
e realçando as palavras dos poemas, mas indo para além delas. Nessa dualidade
poética, e estética, residem a beleza, a grandeza e a importância do gênero Lied para o
espírito romântico alemão.
Das primeiras canções de Schubert, não muito anteriores a Gretchen..., até suas
últimas, postumamente reunidas sob a alcunha de Schwanengesang (Canto do Cisne),
somam-‐se mais de seis centenas delas, sendo diversas da maior importância para o
período (impossível não citar ao menos Erlkönig e Der Wanderer), e constituintes do
repertório universal de cantores. Foi Beethoven o primeiro compositor de enlevo a
reunir canções em um conjunto, intitulando-‐o de ciclo (An die ferne Geliebte, 1816),
mas foram os dois grandes conjuntos originais de Schubert que tornaram o ciclo de
canções um fenômeno à parte dentro do repertório do gênero. Die schöne Müllerin (A
Bela Moleira) de 1823 foi o primeiro dos ciclos, escritos sobre versos de Wilhelm
Müller (1794-‐1827), um conjunto de vinte canções que falam do sofrimento amoroso
do andarilho feito moleiro, rejeitado pela jovem filha do mestre do moinho. No ciclo,
importantes temáticas românticas são trazidas pelos poemas – como a própria figura
do andarilho, a solidão, o contato com a natureza, o pessimismo e o pressentimento
de morte – e tratadas musicalmente por Schubert com sonoridades ricas, grande
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melodismo, e piano altamente descritivo. Quatro anos mais tarde Schubert retorna a
Müller, musicando vinte e quatro poemas de outra coletânea, trazendo à luz seu
derradeiro ciclo, Winterreise (Viagem de Inverno). Basicamente as mesmas temáticas
do primeiro ciclo são abordadas, mas agora de maneira ainda mais densa, fatalista.
Aqui encontramos o protagonista que foge de suas dores em uma viagem árdua e cada
vez mais gélida, onde suas únicas companhias são cães que ladram à noite, corvos que
o seguem, suas próprias lembranças e temores. O legítimo herói romântico,
atormentado, pessimista, esperançoso pela morte mas ainda assim incapaz de alcançá-‐
la.
Winterreise revela-‐nos o pleno amadurecimento de Schubert enquanto
compositor, mas não apenas isso: revela-‐nos o próprio gênero Lied, então ainda
recente, atingindo um grau de sofisticação e de plenitude de escrita de fato
surpreendentes, especialmente se considerarmos as poucas décadas que separam esta
obra dos primeiros embriões do Lied encontrados em Mozart. Em pouco tempo o Lied
surgiu e estabeleceuse como um dos mais representativos gêneros musicais do
Romantismo. Além dos aspectos mais evidentes que causam interesse no ciclo – como
a seqüência da narrativa, as mudanças dos estados mentais do protagonista, a
intrincada relação entre poesia e música e o caráter quase sempre descritivo da
mesma -‐, existe um outro que não é tão óbvio, mas que, da mesma maneira, é vital
que seja percebido para que se possa fruir por completo da grandeza da composição: a
evocação de sonoridades instrumentais constantemente realizada pela parte do piano.
Observando o ciclo Winterreise a partir deste ângulo, o da evocação de sonoridades,
podemos dividir suas vinte e quatro canções em quatro grandes grupos de timbres
evocados: quarteto de cordas, instrumentos de metais, sonoridades orquestrais e
citações literais de instrumentos.
A essência do ciclo repousa sobre o movimento de caminhada do protagonista,
fazendo com que a maioria das canções seja desta natureza. A figura arquetípica do
andarilho, presente na cultura alemã desde tempos imemoriais, é recorrente nos
textos utilizados por Schubert em diversas canções além de seus ciclos. Uma das
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canções mais representativas de todo o romantismo é justamente Der Wanderer (O
Andarilho), com versos de Lübeck, onde o caminhante vaga em busca de uma terra
idealizada, mas sempre incapaz de encontrar a própria felicidade, tal qual o
protagonista de Winterreise. Em suas canções de caminhada Schubert sempre se valeu
de recursos de constância rítmica para descrever os passos, e não é diferente no ciclo.
Aqui, entretanto, observamos outra semelhança nessas canções: elas tendem à
homofonia quase total, e a disposição das notas dos acordes, as regiões do teclado e
as articulações utilizadas, bem como a repetição insistente de alturas nos remetem
constantemente à sonoridade de quarteto de cordas. É com esta sonoridade que o
ciclo se inicia, em Gute Nacht (Boa Noite):
Tal sonoridade percorre o ciclo por inteiro, retornando sempre que há a
caminhada, seja ela física ou psicológica. A caminhada, ou a própria viagem, é a
representação do presente, da situação atual do protagonista, e sempre que ele segue
em frente, lidando com tal realidade, as sonoridades de cordas são evocadas.
Mas não é o presente o que mais atormenta o protagonista, mas sim suas
memórias, lembranças de tempos felizes que se perderam. A memória, um tema tão
caro aos românticos, é também uma constante no ciclo. Curiosamente, quando a
memória torna-‐se mais presente do que a própria caminhada, outro tipo de
sonoridade é evocada, e não por acaso:
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As chamadas de trompas também são símbolos da memória – ou, mais propriamente, da distância, ausência e arrependimento. [...] ‘Le son du cor au fond des bois’, o som de trompa nas profundezas das florestas, é um dos poucos trechos da iconografia romântica a encontrar um solo firme na música. (ROSEN, 2000, p. 178 -‐179)
A primeira cena contemplativa do ciclo, relacionada à memória, acontece na
quinta canção, Der Lindenbaum (A Tília), e é exatamente nela que as chamadas de
trompa simbolizam as lembranças felizes de momentos junto da amada (compassos 2,
4, 7 e 8):
Mas as sonoridades de metais nem sempre referem-‐se a momentos melhores,
pois quando não se remetem à lembrança o fazem ao futuro, em situações de
pressentimento de morte. Mais à frente no ciclo, quando o cansaço físico já beira o
insuportável, e a situação psicológica do protagonista já não comporta mais qualquer
esperança de um tempo melhor, encontramos em Wasserflut (Torrente) os fatalistas
ritmos pontuados, em referências fúnebres do metais:
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Em termos de evocações de sonoridades, a essência de Winterreise repousa
sobre os contrastes entre referências às cordas e aos metais. Há ainda, entretanto,
mais dois grupos de canções, com duas em cada, que não se enquadram nos dois
grandes grupos, e representam referencialismos à parte.
Há duas canções que descrevem mais claramente a força da natureza, dos
ventos e da tempestade: Die Wetterfahne (A Veleta)12
e Der sturmische Morgen
(Manhã Tempestuosa). Seguindo a tradição de escrita, que remonta até mesmo à
escrita vocal renascentista, Schubert utiliza largamente uníssonos e oitavas em
movimentos claramente circulares para descrever os impulsos dos ventos, e efeitos
mais vinculados a tutti orquestrais em referências à tormenta. São as canções de vento
e tempestade, com sonoridades de grandes conjuntos:
12 Veletas, grimpas ou zingamochos são objetos metálicos em formatos diversos (sendo mais comuns os de galos e navios), colocados nos telhados das casas e movem-‐se de acordo com o vento, apontando sua direção. No ciclo, a veleta aparece como um símbolo de instabilidade, ou de infidelidade por parte da amada do protagonista.
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Finalmente, temos duas canções bastante pitorescas, e pictóricas, que se
referem literalmente a duas sonoridades muito específicas. A primeira delas é Die Post
(O Correio), uma canção na qual o protagonista ouve o toque do Posthorn, a trompa
tradicional do carteiro, e por alguns instantes se ilude, crendo que ele traz alguma
carta da amada. Toda a parte do piano da primeira seção é construída sobre
elementos típicos da escrita de uma trompa natural, com a melodia moldada
essencialmente sobre um arpejo, com figurações rítmicas em compasso composto:
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Já em Der Leiermann (O Tocador de Leier), a referência sonora vai para o
instrumento citado no título da canção. Durante toda ela o piano é trabalhado para
causar a ilusão do que seria a sonoridade de um Leier13, que aparece sendo tocado por
um velho, descalço na neve, cercado por cães, numa simbologia do encontro do
protagonista com a própria morte na última canção do ciclo:
Cordas, metais, tutti orquestrais, Leier: esse é o resumo das sonoridades que
Schubert parece querer evocar ao longo desta viagem de inverno. A maneira como as
temáticas de presente (cordas), passado e futuro (metais) coincidem com suas
13 O Leier é um instrumento cujas origens remontam à Idade Média. Sua sonoridade lembra ao mesmo tempo a de uma sanfona, a de uma gaita de foles e a de um realejo. Seu bojo assemelhase ao de um alaúde. Cordas internas são friccionadas por um mecanismo acionado por uma manivela, girada pela mão direita do executante. A esquerda aciona as teclas de um pequeno mecanismo, como um teclado primitivo, que tocam as outras cordas. Assim, ele produz uma base intervalar imutável, como um pedal ininterrupto, que sustenta a melodia produzida pelo teclado. É justamente isso que Schubert faz o piano reproduzir na canção. Conforme nos diz Youens (1991, p. 297), as apogiaturas nos dois primeiros compassos, provavelmente são uma alusão ao ajuste de afinação que ocorre quando a manivela começa a produzir o som nas cordas. A altura só se torna constante quando o ciclo da manivela se torna regular.
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respectivas sonoridades nos faz crer que o compositor não tenha utilizado tais
referencialismos de maneira casual, muito embora seja impossível afirmar o contrário,
por falta de comprovações objetivas para tanto. Seja como for, o que aqui se
apresentou não passa de uma proposta de abordagem, um guia para uma possível
interpretação mais imaginativa, pelo qual o pianista que venha a estudar o ciclo em
questão, ou mesmo tantas obras do gênero que possuem o mesmo caráter evocativo,
sinta-‐se amparado em seu processo de construção de timbres ao piano. É importante
lembrar que ao falarmos em evocação de sonoridades, argumentando em função
disso, em momento algum propomos que deva ser realizada uma instrumentação da
parte do piano do ciclo. Instrumentações já existem, e outras são possíveis, mas este
trabalho não argumenta em favor desta prática. Pelo contrário, entendemos que o
gênero Lied, tal como ele foi conformado em princípios do século XIX, só pode existir
em sua riqueza essencial, e que o timbre do piano faz parte dela, juntamente com a
voz humana. A evocação sonora é algo subjetivo e quase poético, enquanto que a
instrumentação de fato corresponderia exatamente à supressão de tais sutilezas.
O Lied, sendo um gênero romântico por excelência, encontra-‐se muito mais
próximo, em essência, da música instrumental de sua época do que da típica canção
estrófica do século XVIII, e a diferença entre esses gêneros é tão imensa que o fato de
ambos serem constituídos por voz amparada por piano pode ser considerado como
não mais que um fator secundário. As maneiras como a poesia é trabalhada, como a
voz é utilizada e, especialmente, o modo como o piano coloca-‐se em uma lógica
própria de busca de significação, fazem do Lied uma arte única, um gênero, na
verdade, híbrido entre música vocal e instrumental, com laços muito estreitos com o
que viria a tornar-‐se do drama wagneriano (o qual compartilha do mesmo princípio
estético), e com as origens deste, segundo o próprio Wagner, qual seja, o coro final da
Nona Sinfonia de Beethoven.
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Análise Espectral como ferramenta de diferenciação entre o vibrato de caráter triste e o alegre em duas árias de ópera
Priscila Oliveira Faria-‐ Fonoaudióloga e Mestranda em Música pela Universidade Federal de
Minas Gerais [email protected]
Maurício Freire Garcia-‐ Professor Doutor e Diretor da Escola de Música da Universidade
Federal de Minas Gerais [email protected]
Resumo: Segundo ISHERWOOD (2009), o vibrato vocal é uma flutuação periódica com variação de frequência fundamental, intensidade, ritmo e a sua função é a de expressar sentimento. A amplitude do vibrato no bel canto é de ¼ de tom a ½ tom e seu ritmo é de 5,0 a 7,5 Hz. Estudos relacionando o vibrato à caráteres emotivos no canto precisam de aprofundamento, por isso torna-‐se importante estudar o vibrato em associação à expressividade do cantor, sobretudo no que se refere a óperas de diferentes caráteres. Esse estudo analisou o vibrato através de seleção de trecho com vogal prolongada em duas óperas, sendo uma triste e a outra alegre. A análise espectral realizada através do software Spectra PRO permitiu a análise da forma de onda do vibrato, do ataque e da terminação, da evolução temporal/ regularidade, da taxa e da amplitude, com o objetivo de diferenciar os dois caráteres. Os resultados para o caráter alegre indicaram variação do vibrato de Fá a Sol, mostrando maior valor de profundidade, em relação ao indicado por SUNDBERG (1987) de aproximadamente +-‐ 1 a +-‐ 2 semitons . A taxa variou entre: 5 e 6 Hz e a curva se inicia de forma ascendente, apresentando forma regular/ senoidal. A variação do vibrato no caráter triste foi de Ré a Mí, a taxa está entre 5,5 e 6,0 Hz, valores que não apresentaram diferença significativa em relação ao caráter alegre. A curva se inicia de forma descendente e o traçado do vibrato apresentou forma regular/ senoidal. Palavras chave: vibrato, expressividade, amplitude
Introdução
Segundo ISHERWOOD (2009), o vibrato vocal é uma flutuação periódica que
inclui variação de frequência fundamental (extensão de fundamental-‐F0), intensidade,
ritmo (número de ciclos por segundo) e a sua função primária é a de expressar
sentimento. A extensão do vibrato no bel canto é de ¼ de tom a ½ tom e seu ritmo
(número de ciclos por segundo) é de 5 a 7,5 vibrações por segundo (5,0 a 7,5 Hz) ou 6
vibrações por segundo (6,0 Hz) e extensão de ¼ de tom.
Sabe-‐se que o vibrato é um recurso de suma importância na expressividade
musical e SHOEN (1926), afirma que o vibrato é um atributo fundamental da estética
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do canto, servindo como meio de conduzir emoção na expressão vocal. Para que ele
seja produzido é necessário ter uma condição neuro-‐muscular apropriada para o
canto, podendo ser confundido com um trêmolo se a musculatura estiver sob stress
emocional.
Através de um apanhado na literatura sobre o vibrato, pode-‐se afirmar que
estudos relacionando o vibrato à caratéres emotivos no canto ainda precisam de maior
aprofundamento. Com base nessa necessidade e na relevância do assunto para o
cantor de ópera, torna-‐se importante estudar o vibrato em associação à
expressividade do cantor, sobretudo no que se refere à interpretação das óperas e
seus diferentes caráteres. Para isso, foi realizado um projeto-‐piloto que teve como
objeto de estudo, o vibrato, que foi analisado através de seleção de trechos
(interjeições) em duas óperas, sendo uma de caráter triste e a outra de caráter alegre.
A ferramenta utilizada para este estudo foi a análise espectral, que foi realizada
através do software Spectra PRO que permitiu a análise da forma de onda do vibrato,
assim como o seu ataque e terminação, a sua evolução temporal/ regularidade, a taxa
e a extensão, com a finalidade de diferenciar o caráter “alegre” do “triste”.
O objetivo desse trabalho é apresentar aos cantores, professores de canto e
estudiosos da área, uma ferramenta objetiva de estudo da música, procurando
constatar possíveis diferenças na execução do vibrato em um trecho triste e em outro
alegre, contidos em duas óperas, utilizando para este fim, a análise espectral.
Esta ferramenta fornece a possibilidade de associar estudos de áreas afins,
como Fonoaudiologia, Acústica com suas novas tecnologias e Música, num contexto
musical específico trazendo consigo demandas diferenciadas.
1-‐ VIBRATO-‐ Revisão de Literatura
Para SUNDBERG (1987), o vibrato vocal é uma variação regular na frequência
de uma nota e é muito utilizado na música. A sua qualidade depende de parâmetros
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mensuráveis: a taxa (F= 1/T) é o número de ciclos por segundo; extensão (+-‐ ∆F0) é o
desvio da em torno de seu valor médio e a regularidade, que carece de um parâmetro
para medição, mas deve ter um aspecto senoidal. No estilo Bel canto, a taxa aceitável
varia de 5,5 Hz a 7,5 Hz e a profundidade vai de +-‐ 6% a +-‐ 12%, ou seja, de
aproximadamente +-‐ 1 a +-‐ 2 semitons. Já DINVILLE (1993), o aponta como um recurso
que cria um interesse estético evidente, e que tem um papel primordial, pois dá à voz
sua riqueza expressiva, sua leveza e seu poder emocional e se caracteriza por
modulações de frequência, acompanhadas de vibrações sincrônicas da intensidade e
da altura que tem uma influência sobre o timbre. Estas flutuações são geradas pelo
cantor e têm uma ação musical importante, segundo DINVILLE (1993).
Esse ornamento só é adquirido à medida que o cantor domina sua técnica e
realiza da melhor maneira possível a junção faringo-‐laríngea: seu mecanismo
fisiológico correspondente às finas tremulações do conjunto da musculatura
respiratória e laríngea conforme observa, DINVILLE (1993).
Já segundo ISHERWOOD (2009), o vibrato vocal é uma flutuação periódica, que
inclui variações de / extensão em (Hz), ritmo (variações por segundo), intensidade
(dB), timbre (formantes) e/ou relação entre som e respiração. Pode ser percebido
como uma nota, ao contrário do trinado, que é percebido como uma flutuação entre
duas notas, podendo ser analisados a partir dos sonogramas, que permitem analisar
componentes individuais do vibrato.
Em se falando de características do vibrato, DROMEY, CARTER & HOPKIN (2003)
apontam que um vibrato é considerado lento quando tem menor intensidade e menor
estabilidade vocal. Já o vibrato rápido aparece com aumento na extensão (extent-‐
modulação de ) no registro de peito e aumento de intensidade no registro de cabeça.
Um cantor que tem habilidade de modificar a taxa do vibrato pode ter
benefícios na qualidade artística na performance vocal. Aquele que modula bem a
extensão do vibrato tende a ter mais estabilidade.
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O vibrato raramente ocorre no instante em que a fonação ocorre. Para se ter
uma medida estável do vibrato é preciso escolher um ponto médio na emissão.
De acordo com OLSON (2008), dependendo do estilo musical o cantor tem que
ajustar a taxa (velocidade) do vibrato, de acordo com a vontade do regente e isso pode
não ser tão simples. Porém nem sempre há um regente, o que subtende que o cantor
deve ajustar-‐se de acordo com as exigências interpretativas associadas à acústica do
local, à dinâmica, andamento e estética da música.
A taxa do vibrato varia de acordo com o estilo de música que está sendo
cantada e do nível de dinâmica exigido SUBLETT (2009).
O trabalho de KIRKPATRICK (2008 apud Mason e Zemlin) revelou através da
eletromiografia que o vibrato é causado pela ação do músculo cricotireóideo. O
músculo cricotireóideo interfere na frequência da fonação por meio do alongamento
das pregas vocais (músculo tireoaritenóideo). Por meio da energia bioelétrica que
fortifica nossos músculos, fazendo o músculo tensionar por oscilações, significando
que esse músculo relaxa e flexiona continuamente enquanto é usado.
FERRAMENTAS DE ANÁLISE ESPECTRAL/ VARIÁVEIS DE ESTUDO DO VIBRATO-‐ Revisão de Literatura
Diversos trabalhos sobre análise objetiva relacionados à voz humana têm sido
feitos em diversas áreas de estudo como a Música, Letras, Fonoaudiologia, Engenharia,
entre outras, e a literatura faz referência a várias ferramentas úteis para a realização
desse tipo de análise.
No trabalho “O uso da análise espectral no ensino do canto” GARCIA &
ALMEIDA (2007), afirmam que por meio análise espectrográfica é possível fazer um
estudo objetivo do som, através de uma abordagem conceitualmente clara de
parâmetros físicos e psico-‐acústicos, revelando uma gama de possibilidades e soluções
técnicas objetivas observáveis na interpretação musical através de instrumentos
musicais e da voz.
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Na década de 70 a IBM iniciou o desenvolvimento de protótipos de programas
computacionais para reconhecimento de voz e várias instituições nos EUA foram
contactadas para testar diferentes aplicações dessa nova tecnologia. Estudiosos de
fonoaudiologia, fonética, sonorização e físicos, entre outros, receberam equipamentos
para testes, mas nenhuma das grandes escolas e universidades americanas se
interessou pelo assunto. Nesse contexto, o professor Robert Cogan fez a proposta para
receber um protótipo e testá-‐lo em aplicações musicais.
Observa-‐se ainda uma grande resistência por parte dos músicos em utilizar
novos recursos tecnológicos na música e é interessante notar que apesar do som ser o
principal elemento envolvido na atividade do músico, foram outras áreas, como a
Fonética, a Engenharia e a Medicina, que incorporaram pioneiramente em sua
atividade, tecnologias ligadas à análise espectral.
A análise espectral permite um estudo objetivo do som através de uma
abordagem clara de parâmetros físicos e psico-‐acústicos, sendo possível explorar, de
forma objetiva, possibilidades e técnicas nos instrumentos musicais e na voz.
Conceitos e fenômenos acústicos como série harmônica, timbre, batimentos e
visualização do tempo real podem ser visualizados através dessa análise.
METODOLOGIA
Objetivos
Esta proposta de pesquisa tem por objetivo descrever possíveis padrões de
vibrato atribuíveis a cada um dos dois caráteres escolhidos, o triste e o alegre,
utilizando para isto a análise espectral, vislumbrando o reconhecimento dessa análise
como ferramenta que possibilite a diferenciação dos caráteres emotivos envolvidos no
canto lírico.
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2.1-‐ Critério de escolha da ferramenta a ser testada
Com a finalidade de averiguar as possibilidades da ferramenta de estudo
objetivo da voz, a análise espectral, será utilizado o programa Spectra PRO. O
programa Spectra PRO é um software que realiza análise espectral a partir de um
espectro de dois canais. Ele permite análise espectral em tempo real, bem como tem
capacidades de gravação, playback e post-‐processing (processamento do áudio). O
áudio digitalizado através do programa é passado através de um algoritmo
matemático conhecido como a Fast Fourier Transform (FFT) que converte o sinal do
domínio tempo para o domínio
A análise espectral é um instrumento usado para converter um sinal do
domínio TEMPO (extensão x tempo) para o domínio frequência (extensão x
frequência).
2.2-‐ Critério de escolha do objeto de estudo
O vibrato foi escolhido devido à sua importância na prática profissional dos
cantores líricos e diante do fato de que a sua análise, voltada para a expressividade,
utilizando a análise objetiva da voz, tem sido pouco explorada no campo da Música.
2.3-‐ Critério de escolha do segmento (amostra) para análise espectral
Sabemos que o estudo objetivo da música vocal apresenta diversos fatores e
variáveis invasivas à pesquisa, sobretudo quando se trata de pesquisa sobre
performance vocal envolvendo a expressividade, o que conduz a pesquisa para um
campo bastante empírico em relação ao canto.
A forma de captar a voz isolando-‐a dos instrumentos acompanhadores é um
dos fatores invasivos ao estudo, pois a interferência destes instrumentos pode
mesmos podem interferir sensivelmente nos resultados da análise. Observa-‐se que, no
campo da expressividade, sobretudo no canto lírico, o cantor com a sua voz, é o ator
principal e tem sempre uma orquestra o acompanhando.
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Para se pesquisar a expressividade ou se simula uma situação de fala ou canto
ou tentando ser o mais fidedigno possível, em relação à ópera, procura-‐se captar um
determinado trecho com ausência da orquestra para se preservar apenas o sinal vocal.
Baseado nisso a interjeição foi escolhida devido à sua função emotiva. A interjeição é
um termo da lingüística que significa palavra ou locução com que se exprime um
sentimento de dor, de alegria, de admiração, de aplauso, de irritação, etc.
Não se pode excluir daqui o conceito proposto por Roman Jakobson, lingüista
que propôs as famosas “funções de linguagem”. O autor refere-‐se à função “emotiva”
da linguagem, representada pelas interjeições que, centradas no remetente, visam a
expressão direta da atitude de quem fala, e neste caso, “de quem canta”, em relação
ao conteúdo daquilo que fala ou canta. Tende a suscitar a impressão de certa emoção,
verdadeira ou simulada, por isso o termo “função emotiva”. Esse extrato emotivo da
linguagem é apresentado pelas interjeições, que se diferem dos procedimentos da
“linguagem referencial” pela sua configuração sonora JAKOBSON (2005).
Na ópera, os trechos escolhidos não são acompanhados pelos instrumentos da
orquestra, o que exclui os fatores que podem dificultar a análise da voz do cantor. Via
de regra, são trechos em que os cantores executam o vibrato.
Segundo NIETZSCHE (1948) a interjeição na música corresponde em sua
plenitude a um trecho onde o cantor pode descansar da “palavra” e desfrutar do
elemento puramente musical da obra sem levar em consideração a palavra em si, na
função de discurso, que insinuante e afetuoso, é somente “semi-‐cantado”. O cantor
corresponde então ao ouvinte, que deseja perceber claramente o significado da
palavra sob o canto ao reforçar neste “semi-‐canto” a expressão patética da palavra.
Mediante o reforço do patos, o cantor facilita a compreensão da palavra,
sobrepujando aquela parte da música que ainda restava.
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2.4-‐ Critério de seleção dos trechos musicais para as análises
Baseado nos conceitos acima explicitados foi feita uma pesquisa em sites de
busca de áudio e vídeo na internet (You Tube e Rec Music) procurando intérpretes do
gênero feminino de duas árias óperas: “Pleurez! Pleurez, mes yeux!”, da ópera “Le Cid”
de Jules Massenet e ária “Je veux vivre” da ópera “Romeo Et Juliette”, de C. Gounod.
Estas óperas têm, a princípio, características triste e alegre sendo apontado,
“Pleurez! Pleurez, mes yeux!” para um caráter triste e “Je veux vivre”, para um caráter
alegre.
Foram escolhidas estas óperas, pois objetivamos visualizar através da sua
análise espectral, como o traçado do vibrato ocorre numa interpretação de caráteres
diferentes. No caso deste estudo os caráteres escolhidos para análise das foram o
triste e o alegre, supondo-‐se que as amostras sejam passíveis de possível contraste na
visualização nos espectrogramas.
2.5-‐ Variáveis isoladas para análise do vibrato:
As variáveis isoladas observadas na análise espectral foram:
1-‐ Ataque do vibrato -‐ configuração do traçado do vibrato quando se inicia a
emissão;
2-‐ Terminação -‐ configuração do traçado do vibrato quando termina a emissão;
Nota-‐se que o ataque também é um aspecto muito importante para a definição
do timbre de um instrumento. Esse mesmo conceito pode, supostamente, ser aplicado
à execução do vibrato, na leitura que o presente estudo procura fazer, pois
subtendendo-‐se que se o cantor executa uma obra de caráter triste, o ataque de seu
vibrato virá com impressões e timbres que remetem à construção da expressividade
desse caráter, diferentemente de uma obra de outro caráter. Assim como a
terminação da nota, que é outro aspecto na definição do timbre de um instrumento,
conforme relata GARCIA (2001), em seu estudo sobre a Density 21.5 de Edgard Varèse.
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3-‐ Taxa do vibrato-‐ (F= 1/T) é o número de ciclos por segundo e se relaciona à
velocidade do vibrato SUNDBERG (1987); Será que a taxa varia de acordo com o
caráter do vibrato?
4-‐ Profundidade/ extensão ou extensão do vibrato-‐ (+-‐ ∆ F0) é o desvio da em
torno de seu valor médio. Está relacionado ao número de semitons que varia
SUNDBERG (1987);
5-‐ Forma de onda-‐ como é o desenho de cada ciclo do vibrato, podendo ser
classificado como sinusoidal, triangular ou trapezoidal.
6-‐ Timbre-‐ característica sonora que nos permite distinguir se sons de mesma
foram produzidos por fontes sonoras conhecidas e que nos permite diferenciá-‐las.
7-‐ Evolução Temporal/ Regularidade do traçado-‐ como os ciclos do vibrato vão
acontecendo em sua evolução temporal.
RESULTADOS E CONCLUSÃO
2.6-‐ Análise espectral do vibrato e os caráteres emotivos TRISTE e ALEGRE no canto lírico
Caráter ALEGRE-‐ Ária “Je veux vivre” Romeo e Julieta
As medidas foram realizadas manualmente, avaliando-‐se o 3º harmônico pela
melhor resolução e os resultados encontrados foram: as cantoras variaram o vibrato
na interjeição, trecho escolhido (entre 1 e 4 seg.) de Fá a Sol, mostrando maior valor
de profundidade, em relação ao valor indicado por SUNDBERG (1987), apontando que
a profundidade vai de +-‐ 6% a +-‐ 12%, ou seja, de aproximadamente +-‐ 1 a +-‐ 2
semitons . Valor médio do vibrato está entre 259 e 302 Hz. A taxa variou entre: 5 e 6
Hz, sendo que a taxa do vibrato da cantora Maria Callas é 5,0 Hz, o que justifica termos
uma percepção auditiva de que ele é mais lento em relação aos outros. Os valores para
a taxa estão de acordo com a literatura.
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Pode-‐se notar nos traçados espectrográficos que no caráter ALEGRE a curva se
inicia de forma ascendente (do grave para o agudo).
Todos os traçados parecem ter forma regular/ senoidal.
A intensidade do vibrato é determinada pela cor dos harmônicos no
espectrograma e se compararmos os traçados do caráter triste com os traçados de
caráter alegre, há maior intensidade no espectro do vibrato alegre, mostrando o
primeiro harmônico (a fundamental-‐ F0) mais amarelado, quase vermelho, em relação
aos espectros do caráter triste. E a literatura aponta que na fala há um aumento de
energia (intensidade) no caráter alegre, afirmando que a felicidade também parece
estar caracterizada por um aumento principalmente na intensidade, com algumas
evidências para um aumento da energia nas frequências agudas. Observe os
espectrogramas abaixo:
FIGURA 1 -‐ Espectrograma Angela Gheorghiu-‐ interjeição em glissando
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FIGURA 2 -‐ Espectrograma Anna Moffo – interjeição em glissando
FIGURA. 3-‐ Espectrograma Maria Callas-‐ interjeição em glissando
Caráter – TRISTE-‐ Pleurez Pleurez mes yeux
A variação do vibrato no caráter triste neste trecho foi de D a E em todas as
cantoras, também discordando com a literatura que apresenta a profundidade tendo
valores de +-‐ 6% a +-‐ 12%, ou seja, de aproximadamente +-‐ 1 a +-‐ 2 semitons
SUNDBERG (1987). O valor médio do vibrato entre 215 e 258 Hz e a taxa está entre 5,5
e 6,0 Hz, valores que não apresentaram diferença significativa em relação ao caráter
alegre.
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Pode-‐se notar nos traçados espectrográficos que no caráter TRISTE a curva se
inicia de forma descendente (do agudo para o grave). Todos os traçados parecem ter
forma regular/ senoidal. Observe os espectrogramas abaixo:
FIGURA. 4-‐ Espectrograma Maria Callas
FIGURA. 5-‐ Espectrograma Anghela Gheorghiu
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FIGURA. 6-‐ Espectrograma Ileana Cotrubas
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Currículo Sumário dos autores
Priscila Oliveira Faria é fonoaudióloga, especialista em Voz, atuante na área de canto há vários anos, pesquisando o comportamento de cantores amadores e profissionais, mestranda em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais sob a orientação do Prof. Dr. Maurício Freire Garcia.
Mauricio Freire Garcia é músico, professor adjunto da UFMG, atualmente é diretor da Escola de Música da UFMG. O único flautista a receber o título de doutorado, com honras, no New England Conservatory, EUA. Desde 2003 tem atuado como 1º Flautista Solista convidado da OSESP. Em Boston se destacou como solista junto à Boston Chamber Music Society, o New England Conservatory Bach Ensemble e Contemporary Ensemble.
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Arthur Iberê de Lemos: Vida e obra de um compositor esquecido
Mauro Camilo de Chantal Santos -‐ UFMG
Adriana Giarola Kayama – UNICAMP [email protected]
Resumo: Vida e obra do compositor Arthur Iberê de Lemos são abordados. Tentativa de levantamento de uma primeira biografia do compositor nascido em Belém do Pará, no ano de 1901. Sua trajetória como performer, seus estudos em países da Europa tais como Itália, Inglaterra e Alemanha, sua ligação com Heitor Villa-‐Lobos, sua atividade criadora como autor de óperas, canções e música de câmara e aspectos de sua vida pessoal. A presente comunicação de pesquisa pretende resgatar informações sobre a vida e obra desse compositor. Palavras-‐chave: Arthur Iberê de Lemos, música brasileira, ópera. Abstract: An approach to the life and work of the composer Arthur Iberê de Lemos. An attempt to assemble the first biography of the composer born in Belém do Pará in 1901. His trajectory as a performer, his studies in European countries such as Italy, England and Germany, his friendship and professional bond to Heitor Villa-‐Lobos, his creative activity as an opera, song and chamber music author and aspects of his personal life. This very communication of research intends to rescue information about the life and work of this composer. Keywords: Arthur Iberê de Lemos, opera, brazilian music.
1 – Arthur Iberê de Lemos, compositor brasileiro
1.1 Belém do Pará, Londres e Rio de Janeiro
Arthur Iberê de Lemos (1901 – 1967) viveu 65 anos completos. Filho de mãe
pianista e de pai amante da poesia e também músico amador, Arthur Iberê de Lemos
nasceu em Belém do Pará, no dia 09 de junho de 1901. O contato com o piano se deu
através de aulas que recebeu, aos 10 anos de idade, da própria mãe, a pianista Maria
Guajarina de Lemos14, e desde cedo pareceu predestinado a caminhar com a Música, já
14 Maria Guajarina de Lemos, pianista, filha de Antônio José de Lemos, político brasileiro com base eleitora no estado do Pará. S.D.
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que em seu próprio nome há uma homenagem ao compositor campineiro Carlos
Gomes: Iberê é o personagem herói da ópera Lo Schiavo. Seu pai, Arthur de Souza
Lemos15, chegou a publicar a polca Francisca Gonzaga, editada em 1896, no Rio de
Janeiro, pela Bevilacqua.
Em 1913, então com apenas 12 anos, por força de missões diplomáticas que o
pai desempenhou na Europa, Arthur Iberê de Lemos acabou se transferindo para
Londres. Na capital inglesa, estudou violoncelo com John Barbirolli. Foi aluno regular
na Royal Academy of Music, sendo aluno de Tobias Mathey e David Cooper. As aulas
de teoria e harmonia foram ministradas pelo professor Frederick Corder.
Em 1926, o livro Storia della musica nel Brasile, de Vincenzo Cernicchiaro,
apresenta duas páginas sobre o então jovem compositor. Nos poucos livros onde será
citado futuramente, com exceção do louvável trabalho escrito por Vicente Sales,
Música e músicos do Pará (1970, p. 173-‐177), seu nome e dados aparecem
timidamente entre uma ou outra citação.
Segundo CERNICCHIARO (1926, p.583), é em Londres que o jovem Iberê,
“dotado de uma alma sublimemente poética”, traz à luz seus primeiros trabalhos
juvenis: Suíte e Duas fantasias, ambas as peças para piano solo, e duas canções para
canto e piano, escritas sob poesia de John Keats.
O afastamento do Brasil não impediu Arthur Iberê de se interessar pela
produção poética nacional. Mesmo distante de seu país de origem, suas primeiras
criações para a canção de câmara tiveram como base poetas brasileiros. Em 1918, aos
dezessete anos, compõe a Canção Árabe, para canto e piano, com versos de Olavo
Bilac, considerada um de seus melhores trabalhos. Compõe também a Serenata inútil,
15 Artur de Sousa Lemos (Vila do Riachão, 1 de abril de 1871 — morto em data desconhecida) foi um político brasileiro, professor, advogado, jornalista, senador pelo Pará durante a República Velha (ou Primeira República). Filho de Manuel Caetano de Lemos e Perpétua de Sales Lemos. Sobrinho e genro de Antônio Lemos, foi casado primeiramente com sua prima, Maria Guajarina de Lemos, tendo seis filhos. Após a viuvez, casou-‐se com Cecy Bezerra de Miranda e Lemos, com quem teve mais cinco filhos (Augusto Celso, Fernando, Gabriel, Consuelo Dulce e Paulo).
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para piano solo, e ainda a Balada do pingo d’água, sob poesia de Ribeiro Couto. Para
CERNICHIARO (1926, p. 584), tanto a Balada do pingo d’água como A canção árabe,
ambas compostas para canto e piano, e a Serenata inútil, para piano solo, foram
definidas como repletas de uma “beleza esquisita, nas quais se reflete o sentimento
poético e os intrínsecos valores musicais do jovem compositor.”
Em seu livro A canção brasileira de câmara, VASCO MARIZ (2009, p. 113) afirma
que: “Seu primeiro sucesso no setor foi com a Balada do pingo d’água, de 1918, que
escreveu ainda muito jovem e na qual introduziu timidamente uma pontinha de
dissonância.”
Durante este breve período de volta ao Brasil (1919 – 1920), trava
conhecimento com a poesia de outros brasileiros, dentre eles Ribeiro Couto,
Alphonsus de Guimarães e Ronald de Carvalho. Além disso, data de 1921 a fundação
da Sociedade de Cultura Musical do Rio de Janeiro pelas mãos do jovem compositor
paraense.
O ambiente musical na capital do Rio de Janeiro no início do século XX era
favorável às artes. Arthur Iberê chega à então capital do Brasil menos de uma década
após a inauguração do Teatro Municipal (1909), e também da Biblioteca Nacional
(1910).
Além do piano, Arthur Iberê interessou-‐se também pelo violoncelo, tendo
estudado com Newton Pádua e Heitor Villa-‐Lobos, assim que retornou ao Brasil. Seus
professores ao piano foram Sílvia Faletti, Henrique Oswald e João Octaviano. Sua
formação em harmonia e composição teve início nas mãos de Frederico Nascimento.
Seria uma constante na vida de Arthur Iberê o trabalho sobre poetas brasileiros
para a composição de música vocal, principalmente seus contemporâneos, sendo ele
mesmo autor de 5 poemas para canções para canto e piano, dentre as 51 catalogadas
até o momento por este pesquisador.
Ainda sobre seu interesse pela poesia nacional, registramos que duas
composições para coro, Salve, oh santa luz e Assim cantavam os anjos, escritas sob
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poesia do próprio compositor, foram premiadas no Concurso de Melodias para o
Natal, organizado pela prefeitura do Distrito Federal, em 1957.
1.2 Estudos na Alemanha
Berlim foi a cidade escolhida por Arthur Iberê de Lemos para dar continuidade
aos estudos após passar no Brasil, desde sua estada em Londres. Residiu nesta cidade
entre os anos de 1921 e 1924. Aluno de Wilhelm Fork (discípulo de Max Roger),
estudou as disciplinas de contraponto e instrumentação. O período em que passou na
Alemanha serviu também para que Arthur Iberê iniciasse uma carreira diplomática,
ocupando o cargo de auxiliar do Consulado Brasileiro em Berlim.
CERNICHIARO (1926, p. 584) registrou sua admiração por algumas composições
de Arthur Iberê de Lemos, com ênfase em suas obras vocais, citando as canções com
textos em português: A roca do meu sonho, O Vale, Música brasileira, Canto de
Ophelia, Seio de Deus, Crepúsculos de ouro, Madrigal, Desejo, Sonhando, O amanhecer,
A canção de Romeu e Vento noturno. São citadas ainda no livro Storia della musica nel
Brasile as canções com texto em francês: Pour la Princesse loitaine (Ballade pour la
princesse lointaine -‐ Op.4), Musique sur l’eau e Ma vie.
As informações fornecidas por Cernicchiaro sobre a vida e a obra de Arthur
Iberê são valiosas por terem sido escritas ainda em vida do compositor paraense.
Constituem, até hoje, a base para todos os escritos que encontramos sobre o
compositor. Em linhas cheias de elogios, (CERNICHIARO, 1926, p.584) define algumas
criações de Arhtur Iberê com “Escritas com beleza de estilo, clareza dos pensamentos,
rica lógica das modulações e originalidade dos ritmos.” Ainda, a crítica positiva de
Cernicchiaro, então um nome respeitado no meio musical nacional, incluía as obras:
Mazurka da Orphanzinha, para piano solo; Saudade, para violino e piano; La Vierge au
Crépuscule, para orquestra; Ave, Pátria, poema sinfônico; Quarteto, para
instrumentos de arco, e 3 óperas esboçadas: Polithème, Humarkuti e A Ceia dos
Cardeais, que seria sua única ópera completa.
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1.3 Estudos na Itália
Após os estudos em Berlim, Arthur Iberê de Lemos escolhe a Itália, em 1925,
mais precisamente Milão, como mais um ponto de parada para a continuação de seus
estudos . Esteve sob orientação de Vincenzo Ferroni, também mestre de outros 3
brasileiros (Alexandre Levy, Antônio Carlos dos Reis Rayol e Francisco Mignone). As
aulas com Ferroni se deram no Real Conservatório Giuseppe Verdi.
Em 1926, Arthur Iberê volta ao Brasil e apresenta uma única audição de suas
obras no Instituto Nacional de Música, no dia 14 de janeiro. Após este concerto. Arthur
Iberê retorna à Itália e lá permanece até o ano de 1933. Dando por concluído seus
estudos, retorna ao Brasil, residindo na cidade do Rio de Janeiro. Em 1933 (para alguns
autores, 1934) termina a composição da ópera A ceia dos cardeais, iniciada em
1924/1925.
1.4 Arthur Iberê de Lemos e A ceia dos cardeais, sua única ópera completa
Escrita durante quase uma década, no período entre os anos de 1924/1925 a
1933/1934, a ópera A ceia dos cardeais, sua única ópera completa, foi composta sobre
libreto do próprio compositor, a partir da peça teatral homônima do escritor
português Júlio Dantas.
A Academia Brasileira de Música possui, entre alguns documentos sobre Arthur
Iberê, a autorização do escritor Júlio Dantas para que a ópera A ceia dos cardeais
pudesse ser apresentada ao público. O conteúdo do documento, escrito em 13 de
agosto de 1941 diz:
Com muitos cumprimentos ao Maestro Arthur Iberê de Lemos, comunica que, atendendo ao desejo por V. Excelência manifestado, autorisa a representação da ópera ‘A ceia dos cardeais’ V. Excelência escrita sobre o libreto constituído pela peça original do mesmo título, de que é autor.
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Após o término da composição, Arthur Iberê esperaria ainda 30 anos para ver
sua ópera encenada, o que aconteceu no Teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte,
no ano de 1963. No entanto, a ópera foi apresentada, sem cena, em 1940, em Belém,
no Teatro da Paz, sob regência do próprio compositor. Antes de sua estréia completa,
no Teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte, a obra foi indicada diversas vezes para
ser apresentada ao público, por nomes importantes pessoas como Heitor Villa-‐Lobos e
Oscar Lorenzo Fernândez:
Sendo conhecedor da pretensão do Maestro Arthur Iberê de Lemos no sentido de conseguir amparo oficial à primeira apresentação pública de sua inédita ópera ‘A CEIA DOS CARDEAIS’, tem a satisfação de aqui declarar que acha bem justa tal pretensão, por considerar dignos de todo apoio tanto o autor como a sua referida obra. (Maestro Heitor Villa-‐Lobos, 24 de junho de 1946).
Tenho o prazer de apresentar e recomendar-‐lhe meu distinto colega e amigo Maestro Arthur Iberê de Lemos, membro e secretário da Academia Brasileira de Música. Deseja ele obter seu possível apoio em favor da primeira apresentação pública da sua ópera ‘A CEIA DOS CARDEAIS’, cuja música bem conheço e julgo merecedora da melhor divulgação, mesmo em caráter oficial.
(Maestro Oscar Lorenzo Fernandêz, em 27 de abril de 1946, em carta ao Diretor do Serviço Nacional do Teatro, Dr. Nóbrega da Cunha, do Ministério da Educação).
Também, no Rio de Janeiro, A ceia dos cardeais quase foi levada durante a
Temporada Nacional de Arte.
Em entrevista concedida para a elaboração deste artigo, o musicólogo Vicente
Salles falou sobre um encontro que teve com Arthur Iberê de Lemos, no Rio de Janeiro,
onde o compositor executou ao piano, cantando na íntegra a ópera A ceia dos
cardeais. Segundo Vicente Salles, ““Arthur Iberê de Lemos foi uma figura que não
venceu, assim como tantos outros, dentro do cenário musical brasileiro. Cabe às
pesquisas acadêmicas, agora, a tentativa de resgatar e valorizar sua obra. Acontece de
uma obra só ser valorizada no futuro. Veja, por exemplo, o trabalho de Curt Lange com
o resgate de obras do barroco mineiro e as conseqüências deste trabalho.”
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A ópera A ceia dos cardeais, citada erroneamente como ópera cômica no livro
Who’s who in Latin America, de Ronald Hilton, apresenta 3 personagens masculinos
(tenor, barítono e baixo), cardeais que, durante uma ceia, discutem e dividem suas
experiências ao longo de suas vidas com um tema teoricamente nunca citado entre os
integrantes da igreja: o amor entre um homem e uma mulher.
1.5 A amizade com Villa-‐Lobos
A amizade de Arthur Iberê e Heitor Villa-‐Lobos teve início no Rio de Janeiro,
numa época em que o compositor paraense era conhecido apenas por seus talentos ao
piano. Ela duraria por toda a vida do compositor. Villa-‐Lobos, 14 anos mais velho do
que Arthur Iberê de Lemos, chegou a dedicar a este sua composição para piano solo A
lenda do caboclo, que teve sua estréia no dia 11 de junho de 1921, pelo próprio
homenageado.
Segundo AZEVEDO (1956, p. 362-‐363), “Iberê Lemos era musicalmente maduro,
já estava de posse de todos os seus recursos musicais, quando se aproximou de Villa-‐
Lobos”
Com Villa-‐Lobos, Arthur Iberê participou da criação de dois institutos de suma
importância para a música no Brasil: o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico
(1932) e a Academia Brasileira de Música (1945).
O Governo Federal estabeleceu o funcionamento do Conservatório Nacional de
Canto Orfeônico pelo Decreto-‐Lei nº4.993, no dia 26 de novembro de 1942. No
Conservatório Nacional de Canto Orfeôncio, Arthur Iberê trabalhou como convidado
de Villa-‐Lobos (diretor do Conservatório), na parte organizacional do conservatório. Já
a Academia Brasileira de Música foi fundada no dia 14 de julho de 1945, no Rio de
Janeiro, sendo que o nome de Arthur Iberê de Lemos não ocupou o quadro de
patronos ou acadêmicos da ABM.
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Pouco é conhecido hoje sobre a vida pessoal de Arthur Iberê de Lemos. Não
deixou esposa ou filhos. No entanto, em entrevistas para a realização deste artigo, o
nome de Cherubina Ovalle, prima do compositor e irmã de Jayme Ovalle, foi citado
como sendo seu grande e longo amor. Cherubina Ovalle é autora dos poemas Céu
azul, Noite mansa, Tríptico de amor e Vem comigo, todos musicados por Arthur Iberê
de Lemos.
Quase toda a literatura disponível aponta a cidade de Petrópolis como sendo o
lugar onde Arthur Iberê de Lemos faleceu. No entanto, nenhum registro de
sepultamento foi encontrado até agora nos cemitérios da cidade. Segundo MARIZ
(2002, p.113), o compositor faleceu na capital do Rio de Janeiro. Arthur Iberê de
Lemos, talento brasileiro, faleceu no dia 13 de fevereiro de 1967.
2. Catálogo de obras de Arthur Iberê de Lemos
A elaboração do presente catálogo de obras de Arthur Iberê de Lemos,
contendo composições para diversas formações, tem por objetivo maior a divulgação
desta produção musical que se encontra hoje esquecida em quase toda a sua
totalidade. Acredita-‐se que outras obras do compositor serão resgatadas à medida em
que pesquisas avancem neste sentido.
Vasco Mariz dividiu a obra de Arthur Iberê de Lemos em duas fases: a primeira,
fecunda e reconhecida, da juventude, vai até 1926, quando recém chegado da Europa
realizou no Rio de Janeiro uma audição cheia de êxito no Instituto Nacional de Música
com composições próprias. A segunda, subseqüente àquela data, corresponde ao
período em que “produziu pouco e de qualidade inferior” (1981, p. 95).
Como compositor, Arthur Iberê escreveu para formações tais como piano solo,
canto e piano, formação coral, orquestra, violino solo, violino e piano, violoncelo solo e
vozes e orquestra.
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Sua obra foi doada pela família, quando de seu falecimento, para a Biblioteca
Nacional. Sua indicação no catálogo abaixo será indicada com a sigla BN.
2.1 As canções para canto e piano
Com 51 canções para canto e piano catalogadas até o momento, é
principalmente nesse setor que Arthur Iberê é reconhecido por ter deixado importante
contribuição para a música erudita brasileira. Sua produção para canto e piano abarca
os anos de 1918 a 1958, quarenta anos dedicados à canção brasileira. Escreveu para
todas as classificações vocais, em sua maioria, usando textos de poetas brasileiros.
TÍTULO AUTOR DO POEMA LOCALIZAÇÃO
amanhecer, O -‐ Op.16
Ave Maria A Balada do pingo d'água, Ballade pour la princesse lointaine -‐ Op.4 bois amical, Le (No bosque amigo) Canção árabe -‐ Op.3 Canção de amor canção de Romeu, A -‐ Op.31 Canto à divina mãe bem-‐amada Canto de Ofélia -‐ Op.14 Caritas: versão para canto e piano -‐ Op. 29
Céu azul -‐ Op.54 n.2 Chanson d'autrefois -‐ Op. 48a Confissão -‐ Op.34a
Rogério de Miranda Liturgia católica Ribeiro Couto Leon Denis Paul Valery Olavo Bilac Vicente de Carvalho Olavo Bilac Artur Iberê de Lemos Luiz Andrade Filho
Cherubina Rojas Ovalle de C Beatrix Reynal Yedda Lemos
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Crepúsculo de ouro (Canto do crepúsculo) Desejo -‐ Op.9 Devant la mer -‐ Op.21 Duas elegias místicas Enchantement -‐ Op.48a Fides frauta de bambu, A Ismália -‐ Op.46a Língua Portuguesa Ma vie -‐ Op.15 Madrigal -‐ Op.20 mistério do amor, O Momentos lyricos (Álbum n.1) Musique sur l'eau -‐ Op.7 Música brasileira -‐ Op.18 Noite de encantos -‐ Op.1 Noite mansa -‐ Op.54 n.3 nossa esperança, A Oração pluie sur les roses, La -‐ Op. 41 Poema da saudade -‐ Op.30a Poemas azuis Pour nous, les humbles (Canção dos simples)
Félix Pacheco Antonio Lemos Sobrinho Albert Samain Luiz Andrade Filho Beatrix Reynal G. Pascoli Anônimo Alphonsus de Guimarães Olavo Bilac
Sully Prudhomme Bastos Tigre M. Wesendonk Vários Albert Samain Olavo Bilac Teófilo da Fonseca Cherubina Rojas Ovalle de C Artur Iberê Lemos Luiz Andrade Filho Franz Toussaint Artur Iberê Lemos Sylvio Moreaux Beatrix Reynal
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Quando cruzamos no caminho -‐ Op.39 Reflexões roça do meu sonho, A-‐ Op.13 Seio de Deus Sentença Serenata -‐ Canção de amor de Luizinho Sonhando sonho, Um Tríptico de amor -‐ Op.54 vale, O -‐ Op.17 Valsa-‐canção -‐ Op.35b Vem comigo -‐ Op.54 n.1 Vento noturno -‐ Op.12 vida dessas meninas, A -‐ Op.19
Anônimo Alma Cunha de Miranda Ciro Costa Artur Iberê de Lemos Luiz Andrade Filho Vicente de Carvalho Artur Iberê de Lemos Cherubina Rojas Ovalle de C Olavo Bilac
Cherubina Rojas Ovalle de C Ronald de Carvalho Rogério de Miranda
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2.2. A obra instrumental
TÍTULO FORMAÇÃO LOCALIZAÇÃO
Álbum de música para a juventude
Arioso
Desenhos musicais
Elegia
Fuga
Piano
Quarteto de cordas
Quarteto de cordas
Piano e violino
Violino, viola e violoncelo
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Frauta de bambú
Frauta de bambu
Fughetta
Invenções, ou exercícios de harmonia
Mazurka d’orfãnzinha (Noveletas)
Minueto romântico, da ópera A ceia dos Cardeais
Moreninha, A -‐ Op. 23
Moreninha, A -‐ Op. 23
No bosque amigo
Noite de encantos: valsa -‐ Op. 1
Nostalgia sertaneja: transcrição da canção Desejo
Prelúdio da saudade
Noveletas (Mazurca d’orfãnzinha e Serenata inútil
Rêverie: transcrição da canção Desejo
Rêverie: transcrição da canção Desejo
Serenata inútil (Noveletas)
Valsinha para piano -‐ Op. 52
Valsa da saudade
Violino e piano
Oboé, piano, flauta, clarinete e quinteto de cordas
Violino, viola e violoncelo
Quarteto de cordas
Piano e violino
Piano e violino
Cordas, flauta e clarinete
Piano solo
Piano e violoncelo
Piano solo
Piano, violino e violoncelo
Piano solo
Piano e violino
Piano, violino ou violoncelo
Piano solo
Piano e violino
Piano solo
Piano solo
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2.3 Vozes e instrumentos
2.4 A obra para orquestra
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2.5 Obra coral
TÍTULO FORMAÇÃO LOCALIZAÇÃO
Assim cantavam os anjos
Assim cantavam os anjos
Ergo-‐te meu coração
Ergo-‐te meu coração
Hino dos arcanjos São Miguel e São Rafael
Invenções
Salve, oh santa luz!
Salve, oh santa luz!
Suíte
Ysmalia, -‐ Op. 46/c
Coro a capella
3 vozes femininas
Coro a capella
Coro feminino a capella
Coro a capella
Coro a capella
Coro a capella
3 vozes iguais e piano ad libtum
Quarteto vocal
Coro a 6 vozes mistas
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2.6 Vozes e orquestra
TÍTULO FORMAÇÃO LOCALIZAÇÃO
Assim cantavam os anjos
ceia dos cardeais, A -‐ Op. 22.
Canção árabe
Caritas, cantata
Cecysinha: oratório. Op. 26/A
Confissão
Desejo
Noite de encantos
Serenata: canção de amor de Luizinho
Triptico de amor
Última oração
Poema da saudade
Vozes e orquestra de cordas
Vozes e orquestra
Tenor solista e orquestra
Tenor solista e orquestra
Vozes e orquestra
Canto e pequena orquestra
Canto e orquestra
Canto e pequena orquestra
Canto e pequena orquestra
Canto e orquestra de câmara
Para vozes mistas, orquestra de cordas e piano
Canto e orquestra
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ANEXO 1
Arthur Iberê de Lemos, sem data. 1
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Referências bibliográficas
ACQUARONE, F. História da música brasileira. Belo Horizonte: Editora Paulo de Azevedo LTDA, 1948. AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro:1956. Livraria José Olympio Editora, CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile. Editora, 1926, p.583-‐4. DICIONÁRIO AURÉLIO. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: erudita, folclórica e popular. São Paulo: Art Editora, 1977, 1º vol., p. 409-‐410. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: erudita, folclórica e popular. São Paulo: Art Editora, 1988, p.437. HILTON, Ronald. Who’s who in Latin America – Par VI – Brazil. Stanford, California: Stanford University Press, 1948. LIMA, Souza. Comentários sobre a obra pianística de Villa-‐Lobos. MEC/DAC Museu Villa-‐Lobos 2ª Ed., 1976. MARIZ, Vasco. A canção brasileira de câmara. 4.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves 2002. MARIZ, V. A canção brasileira, 4ª ed., rj: Nova Fronteira, 1981. MARIZ, V. História de Música no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. MAYER-‐SERRA, Otto. Musica e músicos de latinoamerica, 1947, 1º vol., p. 499. MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga. CANTO ORFEÔNICO: VILLA-‐LOBOS E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ERA VARGAS. Petrópolis: Faculdade de Educação da Universidade Católica de Petrópolis, 2009. (Mestrado em Educação). SALLES, V. Música e músicos do Pará, 1970, p. 173-‐177.
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Currículo sumário dos autores
Mauro Chantal, é docente da UFMG. Atualmente é aluno do curso de Doutorado em Música pela UNICAMP, sob orientação da Profa. Dra. Adriana Giarola Kayma.
Adriana Giarola Kayama, doutora em Canto pela University of Washington, EUA. Professora Assistente na UNICAMP atuando nas áreas de canto, dicção, música de câmara, técnica vocal e fisiologia da voz.
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Afinidades Eletivas: As relações pessoais e sua influência na obra vocal de César Guerra-‐Peixe
Inácio De Nonno
[email protected] / [email protected]
Resumo: Este trabalho foi elaborado a partir da observação dos rumos que a produção vocal do compositor César Guerra-‐Peixe tomou em determinados momentos de sua criação musical. A partir de entrevistas concedidas a este autor pela cantora Maria da Glória Capanema, pela pianista Sonia Maria Vieira e pela compositora Cirlei de Hollanda, pessoas que, cada uma em dado momento, privaram de seu ciclo social/profissional, concluímos que essas relações acabaram por influenciar, direta ou indiretamente, a sua composição vocal. A partir de entrevistas realizadas com essas mulheres discutiremos a influência de cada uma delas na maneira de Guerra-‐Peixe compor. Palavras-‐chave: Composição; César Guerra-‐Peixe; Canção brasileira
Abstract: This work was born from the observation of the directions that the vocal production of composer César Guerra-‐Peixe took in certain moments of his musical creation. Based on interviews, conducted by this author, with the singer Maria da Gloria Capanema, the pianist Sonia Maria Vieira and the composer Cirlei de Hollanda, who, one by one, and each on her own time, were part of Guerra-‐Peixe’s social and professional circle, we concluded that these relationships ultimately influenced, directly or indirectly, Guerra-‐Peixe’s vocal composition. Using the interviews of these women as a tool, we discuss the influence of each one in his way of composing. Keywords: Composition; César Guerra-‐Peixe; Brazilian song
Introdução
Guerra-‐Peixe nasceu em Petrópolis-‐ RJ, em 18 de março de 1914. Cresceu
aprendendo violino e piano e, aos 24 anos de idade, enveredou pelos caminhos da
composição. Em 1944 inicia seus estudos com Hans Joachim Koellreuter que, além de
aulas de Análise e História Estética da Música, o apresenta ao mundo do
dodecafonismo. No ano de 1949 viaja para Recife -‐ PE, onde a pesquisa do folclore e
da arte popular causa-‐lhe tal nível de comoção que marca, a partir daí, e de forma
indelével, toda a sua produção musical.
Após questionar os caminhos do dodecafonismo como recurso ideal de
composição, e bastante influenciado por seu intenso contato com o folclorista e
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musicólogo Mozart de Araújo, Guerra-‐Peixe passa a buscar um nacionalismo que não
fosse mera transposição de elementos do folclore, mas uma elaboração requintada,
visando reapresentá-‐los numa síntese que ele próprio definiria como “um
nacionalismo artístico, de fotografia artisticamente feita”.16 Esta era exatamente a
proposta de Mário de Andrade em seu Ensaio sobre a música brasileira, cuja leitura
reconhecidamente deixara Guerra-‐Peixe “animado”17 e certo quanto aos caminhos a
trilhar. Inicia-‐se, assim, a fase que ele mesmo denominaria de tese nacional, que
Guerra-‐Peixe deseja superar rapidamente, para atingir a última etapa, a da
inconsciência, quando os elementos folclóricos aflorariam em sua composição por
estarem absorvidos, enculturados.
Mas para chegar a isso eu tive uma fase de fixação de elementos. Quer dizer, eu fazia uma suíte e procurava manter toda a característica direta dos elementos populares (...). Agora, depois disso estar no subconsciente, então a gente pode se largar e escrever à vontade.18
O período no qual se inclui a produção vocal de que trataremos está localizado
exatamente dentro dessa derradeira fase composicional. Após um intervalo de
aproximadamente sete anos com relação à sua primeira abordagem do canto de
câmera, Guerra-‐Peixe volta a criar canções, estruturadas numa forma estilisticamente
afastada da fase anterior, na qual a manipulação dos temas folclóricos e/ou populares
era tão entusiasmada quanto direta. Essa nova leva de canções, não só refletem sua
“enculturação”, mas apresentam um padrão curioso, onde se nota a influência de um
elemento diferente: a relação, platônica ou de amizade, com determinadas mulheres,
capazes de despertar nele estímulos criativos, como verificaremos, a partir de
entrevistas concedidas, adiante. Trataremos aqui especificamente de sua relação com
a cantora Maria da Glória Capanema, a pianista Sônia Maria Vieira e a compositora
Cirlei de Hollanda. A intenção é demonstrar através desses escritos que essas referidas
16 GUERRA-‐PEIXE, César. Entrevista. 1992. p. 8 17 GUERRA-‐PEIXE, César. Curriculum Vitae. 1971. p.2 18 GUERRA-‐PEIXE, César. Entrevista. 1992. p.8
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mulheres tiveram, cada qual no tempo de sua intensa interação com o compositor,
influência determinante na maneira de Guerra-‐Peixe abordar a sua criação vocal. A
escolha do título da monografia, inspirada pelo romance de J.W. Goethe intitulado
Afinidades Eletivas, busca uma metáfora da relação de Guerra-‐Peixe com suas “musas
inspiradoras”. Também Goethe, a partir da conturbada relação com Charlotte von
Stein, recria o relacionamento homem/mulher, com tintas morais e psicológicas.
Maria da Glória Capanema
A primeira entrevista foi realizada com a cantora Maria da Glória Capanema,
em sua casa, em 25 de novembro de 2007. Ela detalhou sua relação com Guerra-‐Peixe,
a partir do primeiro encontro, por ocasião dos festejos dos 60 anos de idade do
compositor, e até sua morte, em novembro de 1993, quando Guerra-‐Peixe contava 79
anos de idade. Maria da Glória Capanema Guerra é filha do ex-‐ministro da Educação
Gustavo Capanema. Estudou canto com a célebre Vera Janacopoulos, jamais tendo se
interessado, no entanto, pela vida profissional. Conheceu Guerra-‐Peixe através de um
convite feito pela professora e fonoaudióloga Lílian Nunes, para ajudar na organização
dos concertos da Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Ali o conheceu, em 1974, num
espetáculo comemorativo de seus 60 anos de idade. O espetáculo teria um
“verdadeiro sucesso”, na avaliação de Guerra-‐Peixe, e segundo Maria da Glória, o que
teria levado o compositor a ser tomado de “entusiasmo” a ponto de concluir, que
estava diante de um “renascimento” em sua carreira; a hora do Guerra-‐Peixe”.19
Passaram então a conversar muito, especialmente por telefone, onde falavam por
“longas horas”. É importante sublinhar este registro, uma vez que a longa conversa
telefônica será um fato recorrente na maneira como Guerra-‐Peixe inicia seus
relacionamentos. O período que segue corresponde aos anos que vão de 1976 até
1978. É uma época de intensa concentração de composições vocais, todas pautadas
por sua amizade com Maria da Glória Capanema.
19 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 5
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Guerra-‐Peixe lhe confidenciou, então, que não se sentia naturalmente atraído
pela composição para canto.
Então, às vezes ele ligava e conversava muito. E ele começou às vezes a dizer, às vezes ir aos concertos, a gente tinha oportunidade de conversar. Aí falava que nunca tinha se interessado muito pelo canto. Que não era uma área que despertasse interesse nele. Não gostava muito de muitas coisas que ouvia.20
Com a intenção de estimulá-‐lo, Maria da Glória lhe sugere, então, que
componha algo sobre poemas de Raul de Leoni, um autor que tinha algo em comum
com Guerra-‐Peixe: era um poeta petropolitano. Na biblioteca que Maria da Glória
herdara do pai, “com dez mil volumes”, havia, precisamente, um livro de poemas de
Leoni. Assim nasce, em março de 1976, o ciclo de três canções, denominado Cânticos
Serranos nº 2. “É uma peça colorida que exige muita voz, mas não assim, extensões
imensas. Então veio os Cânticos Serranos nº 2. Já fez dedicada a mim.” 21
O que a peça exige, na verdade, é uma interpretação suficientemente
expressiva para cantar os significativos versos de “História antiga”, “Almas
desoladoramente frias” e “Confusão”. Escolhidos por Guerra-‐Peixe, eles falam de
desencontros e de angústias da alma, sublinhados por uma parte de piano dramática e
arrebatada. As relações de Guerra-‐Peixe e Maria da Glória se estreitaram ao ponto do
compositor passar a freqüentar assiduamente o Círculo de Artes Vera Janacopoulos,
uma instituição que, à época, promovia séries de concertos, quase todos envolvendo
canto de câmera. Maria da Glória era uma das diretoras do Círculo. Menos de dois
meses depois, em maio, Guerra-‐Peixe comparece com “Teus Olhos”, sobre texto de
sua própria irmã, Emília Guerra-‐Peixe: “Ele gostava muito dessa irmã que morreu,
Emília. Falava muito dela, gostava muito dela. E ele então escreveu essa peça. Foi
nesse período de 76... Ela é bonita, eu gosto muito.”22 Esta canção tem caráter dolente,
romântico, fala de “olhos sublimes, lânguidos, mimosos.” É importante registrar que
20 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista.2007. p. 5 21 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 6 22 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 7
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essa relação desperta em Guerra-‐Peixe lembranças de sua infância em Petrópolis,
fonte inspiradora recorrente para sua composição vocal. Os laços de amizade se
estreitam e Guerra-‐Peixe propõe um pseudônimo para Maria da Glória: Débora. “Ele
disse que ia me dar um apelido. Um, sei lá o que é que ele chamou. Ele disse assim: eu
vou dar um pseudônimo a você: Débora. Você gosta do nome? Tá bom, tá bom...”23
Mais dois meses se passam e Guerra-‐Peixe toma os versos de Reynaldo Chaves, “que
em Petrópolis, muito me incentivou nos caminhos da música”24, conforme colocou na
dedicatória, e compõe, em julho (1976) seus Cânticos Serranos nº 3. Um ciclo de duas
canções – “Última ilusão” e “Arrependimento”, no qual um piano romanticamente
arpejado na primeira peça, e dramaticamente rítmico na segunda, apóia palavras
como “em ti eu sonhei a vida um sonho, e fiz do amor uma canção divina...” (Última
Ilusão) e “Ah, pudesse arrancar do meu peito esse amor! Pudesse, de joelhos, a teus
pés, rogar a compaixão de teu desprezo” (Arrependimento). O ciclo foi
significativamente dedicado à Débora.
Alguns dias após os Cânticos Serranos nº 3, Guerra-‐Peixe compõe as Canções
de Débora, que, ao serem gravadas em disco, tiveram seu título trocado para Cantigas
do amor existencial: “Ele fez as Canções de Débora, depois ele mudou de nome:
passou a chama-‐las Cantigas do Amor Existencial. Já nesse disco ele mudou o nome. É
porque ele achou que esse título estaria mais adequado ao tipo de poesia. Ao teor das
poesias que ele escolheu...”25 Um ciclo de três canções de caráter extremamente
romântico intituladas: “Juntos amamos” (Pierre Weil), “Tua boca diz que não” (Otacílio
Rainho) e “Nossos olhos” (J.A. Moreno). Mais uma vez versos carregados de fortes
sentimentos como – “Tu em ti, eu em mim, tu em mim, eu em ti” (Juntos amamos);
“Tua boca diz que não, teus olhos... dizem que sim” (Tua boca diz que não); e “Eu
arrancarei os teus olhos e os colocarei no lugar dos meus” (Nossos olhos), vêm
sustentados por uma música de caráter extremamente romântico em andamentos
lentos e centros tonais definidos. Durante o tempo de sua relação com Maria da
23 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 14 24 GUERRA-‐PEIXE, César. Dedicatória no manuscrito da partitura. 1976 25 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 7
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Glória, Guerra-‐Peixe costumava, por ocasião de seu aniversário, dia 15 de agosto,
solenidade de Nossa Senhora da Glória (daí a escolha do seu nome), mandar-‐lhe
bilhetes. Os bilhetes traziam as habituais palavras de felicitação, mas sempre
terminavam com um pentagrama rabiscado pelo próprio Guerra-‐Peixe onde, sob a
melodia do último trecho da canção de aniversário, “Parabéns pra você” (fa-‐fa-‐mi-‐dó-‐
re-‐dó-‐dó), ele “compunha” frases como “nes-‐te-‐di-‐a-‐de-‐gló-‐ria”, ou, “à-‐ma-‐ri-‐a-‐da-‐gló-‐
ria”26, por exemplo. Este registro é importante para justificar a última peça que ele
compõe antes de morrer, conforme veremos adiante. Em dezembro de 1977, Guerra-‐
Peixe abre um parêntese na vertente para onde se encaminha sua criação vocal e
escreve, no mês de dezembro as Toadas de Xangô – “fragmentos de toadas dos
Candomblés do Recife”, e as Linhas de Catimbó, que “são trechos das cantigas
chamadas ‘linhas’ deste culto religioso”, conforme o próprio Guerra-‐Peixe informa no
encarte do disco que contêm tais gravações. As peças não foram oficialmente
dedicadas a Maria da Glória, mas “ele queria que eu cantasse. Então ele fez o piano,
para esse momento. Para essa gravação.”27 A gravação a que ela se refere é, na
verdade, o disco intitulado O Canto simples de Maria da Glória, em que a cantora
apresenta várias composições de Guerra-‐Peixe, entre elas, as citadas acima. O próprio
Guerra-‐Peixe produziu o LP. A influência que Maria da Glória exerce sobre a produção
vocal de Guerra-‐Peixe, a essas alturas é tão evidente que ela mesma se declara: “Então
é por isso que eu digo a você. Eu fui me transformando num amuleto. Não é?”28
Isto é, ela tinha real noção que essa relação espicaçava a inspiração criadora de
Guerra-‐Peixe. E é nesse roldão que ela o conduz até a poesia de Carlos Drummond de
Andrade, padrinho de Maria da Glória:
Aí um dia eu falei com ele por que ele não procurava outros poetas também, por exemplo; falei do Carlos Drummond. Aí ele disse: já li uma vez o Carlos e cheguei à conclusão de que não daria para musicar mesmo. Aí, lá me fui eu. Peguei lá na Biblioteca as obras completas do Drummond.
26 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 19 27 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 2 28 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 9
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-‐ Olha aquí. Fica isso aquí com você. Lê com calma e você vai descobrir alguma coisa. Aí vinha aquela história que eu te contei. Ele me telefonou e já tinha escolhido.
-‐ Olha, você tem razão. Eu já escolhi aquí uma coisa muito boa.29
Assim, em julho de 1978 compõe seu mais consistente ciclo vocal:
Drummondiana sete canções para voz e orquestra sinfônica. Sobre os versos, pinçados
da obra completa de Carlos Drummond da Andrade, Guerra-‐Peixe compõe uma
verdadeira síntese de sua obra vocal. As melodias dolentes, os ritmos marcantes,
modalismo e tonalismo, se alternam em peças que vão da modinha, como em
“Qualquer tempo” e “Canção amiga”, por exemplo, passando pelos grandes recitativos
do “Canto esponjoso”, a música retórica e descritiva da “Cidadezinha qualquer” até
desembarcar na embolada da “Festa no brejo”. Independentemente do impulso
criador e do desejo de criar uma obra de maior vulto, Guerra-‐Peixe nutria verdadeiro
orgulho por essa composição. Em entrevista, ele mesmo declarou:
A Drummondiana me satisfaz completamente. Continua me satisfazendo, uma obra que não me envergonha. As várias pessoas que ouviram acham uma coisa excepcional na música brasileira. Me satisfaz pelo aproveitamento do texto, que me parece que estou sabendo tratar prosodicamente, pelas idéias musicais espontâneas. Não precisei quebrar a cabeça, e, uma coisa que me faz muito bem: eu não tentar ser modernoso.30
Três meses antes da estréia, Maria da Glória pegou uma pneumonia. Apesar de
sua insistência para que Guerra-‐Peixe procurasse outro intérprete, a fim de substituí-‐
la, ele preferiu cancelar a apresentação. Mesmo consciente da dificuldade que seria
voltar a programá-‐la devido à agenda da Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC.
Guerra-‐Peixe tinha tanta noção da influência de Maria sobre essa obra
especificamente, que em carta a ela, declara: “A peça é minha mas o conteúdo é seu.
29 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 9/10 30 GUERRA-‐PEIXE, César. Entrevista. 1992. p. 17
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Então ela não será cantada enquanto você não puder cantar.”31 A obra estreou no ano
seguinte, na Sala Cecília Meireles, sob regência do próprio Guerra-‐Peixe, que escreveu
na partitura de orquestra a reveladora dedicatória: “Para Maria da Glória, artista que
poderia, se quisesse, criar a escola brasileira de canto.”32 Em 1980, Guerra-‐Peixe
compõe “ Tempo de Amor”, estética modinheira para os versos de Julieta de Andrade,
dedicado à Débora e um outro ciclo de fôlego: Sumidouro, que ele chama de “Cantoria
para canto, violino, violoncelo e piano.” Os versos de Olga Savary: “Noite e dia”,
“Itinerante”, “Ciclos” e “Sumidouro” que falam de morte, solidão, Eros e água são os
escolhidos, sublinhados por uma instrumentação que pouco interfere nos estilos
recitativos e parlati, mas que dialoga em passagens de grande tensão dramática. As
harmonias polimodais nos remetem a um Guerra-‐Peixe que retoma as raízes de sua
experiência nordestina, sobretudo na peça “Interlúdio”, onde a voz dá a vez ao diálogo
do grupo instrumental. A obra, ainda uma vez dedicada a Maria da Glória, e
programada para a VI Bienal de Música Brasileira Contemporânea, em novembro de
1985, acabou sendo cancelada. Maria da Glória, depois de ter feito o ensaio geral
naquela tarde, simplesmente não compareceu ao espetáculo à noite na Sala Cecília
Meireles. E, o motivo apresentado, foi igualmente inusitado:
“Olha, tudo programado e tal... fizemos um ensaio lá, de tarde. Aí eu virei pra Laís (Figueiró – pianista) e disse: Laís, eu não venho cantar, não...
Não sei o que deu em mim, não me senti à vontade. Não sei. É porque não era aquele o caminho que eu queria para mim. Não me sentia mais bem, me sentia muito tensa. Não estava feliz fazendo aquilo. Ele insistia muito. Eu ficava numa situação... Aí aconteceu isso. A solista não apareceu... 33
O fato deixou Guerra-‐Peixe tão frustrado quanto ofendido. Por algum tempo as
relações com Maria da Glória ficaram estremecidas. Sumidouro só estreou
integralmente na Bienal seguinte, em 1985, quando a parte vocal foi executada pelo
31 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 11 32 GUERRA-‐PEIXE, César. Dedicatória no manuscrito da partitura. 1978 33 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 15/16
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autor deste trabalho. A reconciliação musical com Maria da Glória, por sua vez, se deu
em 1992, um ano antes de sua morte, e de maneira singular. Maria da Glória decidiu
fazer uma visita a Guerra-‐Peixe com a intenção de selar a reconciliação. Chegando à
sua casa, tocou a campainha, mas ninguém atendeu. Voltou e, da rua, viu uma luz do
apartamento acesa e uma sombra por trás das venezianas. “Quer dizer, aquela fresta
que eu fiquei olhando assim.. eu falei assim: quem sabe se o Guerra está lá, que tem
uma luz acesa... Ele estava lá, inclusive estava me vendo. Escondido atrás da
persiana.”34
Em agosto de 1992, Guerra-‐Peixe já bastante doente, compõe e volta a dedicar-‐
lhe os Dois Poemas de Portinari. O primeiro “Grünewald”, em estilo recitativo inicia
com as significativas palavras: “Morto, mas ainda caminhando quis te ver... Vi-‐te do
buraco da luz. Vi-‐te na asa do sol...” Para Maria da Glória a escolha desse poema está
diretamente relacionada ao ocorrido quando de sua visita frustrada. O ciclo de canções
é a resposta musical de Guerra-‐Peixe ao seu pedido de reconciliação. E a segunda e
última peça do ciclo, “Pedras bicudas”, com alternâncias de melodia pontuada por um
piano rítmico e recitativo, cujo texto, no final diz: “O sono eterno virá, e será a
Glória...”, Guerra-‐Peixe, sutilmente, reproduz na linha do canto a melodia final do
“Parabéns pra você”. Tal como fazia nos cartões de aniversário que lhe enviava. “E ele
ainda me telefonou para perguntar se eu tinha entendido. E eu disse: entendi, Guerra.
E ele ainda me explicou, me falou: ‘Ah, aquele dia, e tal, era muita angústia pra mim...’
ele falou assim.”35 A confidência de Guerra-‐Peixe emociona Maria da Glória às
lágrimas; “isso aqui me tocou profundamente. Eu chorei até muito... porque eu sabia
até que o Guerra estava doente e tal...”36
Sonia Maria Vieira
Sonia Maria Vieira é pianista e professora, atualmente aposentada, da Escola
de Música da UFRJ e nos concedeu uma entrevista em 29 de novembro de 2007. 34 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 18 35 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 19 36 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista. 2007. p. 18
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Guerra-‐Peixe era violinista da Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC quando a
conheceu. Ela foi solista de um concerto com a orquestra e, num dos ensaios Guerra-‐
Peixe se aproximou e “ele falou: Ah, você... gostei do seu toque. Eu gostaria de fazer
um duo com você. Você gosta de fazer música de câmera?” 37 Sonia respondeu então
que música de câmera era tudo o que ela mais amava. Pouco tempo depois Guerra-‐
Peixe comparece à sua casa (na ocasião Sonia era solteira e morava com a mãe)
trazendo suas próprias composições para duo com piano, entre peças de outros
autores.
Aí, a gente ficou amigo. Ele vinha aqui. Ficava noites inteiras aqui. Tinha um negócio que a mamãe fazia que era uma cachaça misturada com passas. Ela deixava curtir. Aquilo ficava mais saboroso que conhaque. O Guerra era louco por aquilo. Ele tomava uma inteira, ele adorava. E aí ficávamos batendo papo, conversando a noite toda, tocando.38
A atividade poética de Sonia iniciou quando ela mudou-‐se para a Alemanha
para um curso de especialização:
Em resumo, minha atividade poética vem dessa época. Eu nem chamo de poética. São umas coisas que me tocam e eu saio escrevendo. Mas é muito ocasional. Eu não escrevo regularmente.39
Certa noite durante as reuniões em sua casa, Guerra-‐Peixe se depara com seus
caderninho de poesias “aí ele achou. Numa das vindas aqui em casa ele viu o
caderninho e começou a abrir e desfolhou e viu uma série de coisas, e falou: olha, eu
vou querer, você me empresta? Empresto. Ele pegou as poesias que mais o tocaram,
as que ele gostou, e musicou. Foi assim que aconteceu.”40
37 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 2 38 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p.2 39 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 1 40 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 2
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Inicia-‐se a partir de então uma profusão de composições “uma por noite”
segundo Sonia, que ele trazia e os dois tocavam: ela a parte do piano e ele, ao violino,
a parte do canto. “Uma coisa! Ele compunha isso numa noite. Era a noite que ele
trabalhava. Então, no dia seguinte, quando chegava aqui, trazia. Era gozadíssimo.
Muitos ele fazia assim, a parte de violino também para tocar, para substituir o canto.”41
Foi assim que, num período de apenas dois meses, Guerra-‐Peixe compõe sete
canções com “palavras” de Sonia Maria Vieira, um ciclo que, embora não assumido
como tal, deveria, ao nosso ver ser enfeixado sob esse título Sete canções de Sonia
Maria Vieira. A primeira, “Utopia”, data de 8 de março de 1979. Depois “Sinto e
provo”, de 18 de março; em “Da fatalidade”, Guerra-‐Peixe compõe uma “modinha à
antiga”, segundo suas próprias palavras, e data de 22 de março; “Amo as
interrogações”, foi escrita em 25 de março; “Suave”, uma miniatura em forma de
recitativo, é de 27 de março; “Quando o amor chegar”, uma “sugestão impressionista”,
segundo rubrica do próprio Guerra-‐Peixe, é composta em 6 de abril, e finalmente, “O
que sou”, a mais elaborada em termos da relação canto/piano, onde o instrumento
pontua nota contra nota as frases da melodia, foi escrita em 10 de abril. À exceção de
“Suave”, em que Sonia faz, na verdade, uma compilação de palavras que ela considera
“boas de se dizer”, nas mais variadas línguas, todos os outros poemas tratam de
questões amorosas e metáforas sentimentais. “O ‘Suave’, eu fui escrevendo assim: um
dia me dei conta que haviam palavras em determinadas línguas que eram deliciosas,
eram saborosas. Que eu gostava, me agradavam. Então eu enumerei essas palavras.” 42
Foi com Sonia Maria Vieira, talvez, que Guerra-‐Peixe tenha tido a maior
intimidade, a ponto de, a certa altura do relacionamento, pedi-‐la em casamento. “Ele
quis até casar comigo, e tudo... Eu disse que não. É que eu era realmente muito amiga
dele. Eu sempre adorei o Guerrito, sempre foi meu ídolo.” 43
41 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 4 42 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 8 43 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 2/3
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Independentemente de ter declinado da proposta, continuaram amigos, saiam
para jantar, para dançar. Sonia fala de sua amizade com Guerra-‐Peixe com a ternura de
uma irmã mais nova: “Olha, a minha amizade com o Guerra não foi nada que
conspurque, porque eu amo demais o Guerra. Foi meu amigo, assim, irmão. Foi uma
coisa de irmão, o que eu tive por ele. Gostar de tudo. Apreciá-‐lo.”44
Cirlei de Hollanda
Cirlei de Hollanda, compositora, ex-‐diretora da Escola Estadual de Música Villa-‐
Lobos – RJ, foi apresentada a Guerra-‐Peixe por Guilherme Bauer – violinista e
compositor, um de seus mais estimados alunos, segundo as informações prestadas
numa entrevista que nos foi dada em 14 de maio de 2008. O encontro se deu após a
apresentação da peça intitulada “Topologia do Medo”, para coral a capella, da autoria
de Cirlei, numa série de concertos realizada na Escola de Música da UFRJ. Guerra-‐Peixe
pediu para ser apresentado,
E eu fiquei morrendo de medo porque o Guerra tinha fama de ser um homem rude, digamos assim. Ma aí o Guilherme disse: ele só é rude com os homens. Com as mulheres ele não vai ser nunca. E eu não queria mesmo. Aí o Guilherme disse, não, vem cá. E eu fui até lá, e ele foi elogiar. Tinha realmente entendido tudo da peça. Falou sobre as harmonizações que eu fiz, falou o que ele tinha achado interessante, o que tinha achado original, o que ele tinha achado criativo e tudo o mais. Aí, claro, fiquei encantada.45
Mais uma vez, Guerra-‐Peixe pediu seu telefone, o que lhe foi oferecido de bom
grado e passaram então a se relacionar “primeiro por telefone”, onde, como era de se
prever, passavam longas horas conversando. A relação se estreitou quando Cirlei de
Hollanda tornou-‐se diretora da Escola de Música Villa-‐Lobos, no Rio de Janeiro, onde,
coincidentemente, Guerra-‐Peixe era professor de composição e orquestração. “Então
foi uma época ótima, porque ele ia duas vezes por semana, no mínimo a Escola de
Música Villa-‐Lobos, quando não, três, quatro. Ou participava de reuniões, então, nós 44 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista. 2007. p. 3 45 HOLLANDA, Cirlei de. Entrevista. 2008. p. 1
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convivemos muito àquela época. Ele ficava no gabinete que eu ocupava. Eu tinha uma
cadeira de balanço e ele ficava lá sentado..”.46 Lanchavam juntos e às sextas-‐feiras
havia os almoços: “era um almoço demorado, de duas horas, três horas”, no qual
Guerra-‐Peixe contava de sua infância, seus familiares, enfim, tornou-‐se “uma amizade
muito pessoal, de muita camaradagem, muita brincadeira”.47 Em 1989, Cirlei de
Hollanda dirigiu um projeto no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de
Janeiro. Pediu então a Guerra-‐Peixe autorização para apresentar sua Drummondiana
numa versão camerística. Sugeriu então a colocação de uma clarineta e a divisão da
melodia em duas vozes. Surpreendentemente, o mesmo Guerra-‐Peixe que
anteriormente havia proibido a apresentação da Drummondiana com o simples
acompanhamento de piano tomou-‐se de entusiasmo e “achou ótimo, porque a
clarineta tem uma extensão longa .Ele disse assim: vem aqui pra minha casa que eu
vou fazer aqui com você. E eu fui, e ficamos uma tarde inteira, e ele acrescentando a
clarineta ao piano e eu pedi para duas vozes também. E ele fez. E eu pude opinar, eu
muito sem graça, e ele: o que você achou disso? Eu acho que ele queria aquele
momento assim, de intimidade musical.”48 Vale registrar a maneira desprendida e
generosa com que Guerra-‐Peixe lidava com sua própria obra. Como anteriormente, no
caso dos Cânticos Serranos nº 2, quando adaptou e incluiu instrumentos à última hora,
apenas para enriquecer sua execução, agora, da mesma forma, ele não só não hesita
em autorizar a versão que antes proibira, como concebe uma verdadeira alteração
naquela que, àquelas alturas, era considerada sua mais importante composição vocal.
Foi no bojo dessa relação que surgiram os Cânticos Serranos nº 4. Sua penúltima
composição para voz. Mais uma vez, e significativamente, Raul de Leoni é o poeta
escolhido. Os sombrios e ameaçadores versos de “Prudência” e “Vivendo” são
colocados por Guerra-‐Peixe numa sucessão de melodias de extremo efeito dramático,
sublinhadas por um piano de harmonia tonal densa, em ritmos sutilmente inspirados
nas fontes populares, mas que, dentro dos andamentos lentos e pesantes, adquirem
um caráter altamente dramático, para corroborar textos como: “não aprofundes
46 HOLLANDA, Cirlei de. Entrevista. 2008. p. 2 47 HOLLANDA, Cirlei de. Entrevista. 2008. p. 2 48 HOLLANDA, Cirlei de. Entrevista. 2008. p.10
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nunca nem pesquises o segredo das almas que procuras. Elas trazem surpresas
infelizes a quem lhes desce às convulsões obscuras”. Ou ainda “Nós, incautos,
efêmeros passantes, vaidosas sombras desorientadas; sem mesmo olhar o rumo das
passadas, vamos andando para fins distantes...” Em síntese, os dois poemas referem-‐
se aos perigos daquele que vislumbra a possibilidade de envolvimento com outrem,
ficando sujeito a toda sorte de riscos que tal envolvimento pode levar. A obra foi
dedicada, previsivelmente, a Cirlei de Hollanda. Os Cânticos Serranos nº 4 foram os
penúltimos escritos para voz em sua carreira. Causa-‐nos curiosidade observar que
Guerra-‐Peixe, então nos últimos anos de sua vida, volta a utilizar os versos de Raul de
Leoni, o poeta petropolitano que tanto remete à sua infância, aos tempos em que sua
irmã Emília colecionava os poemas do autor, que eram publicados num periódico
petropolitano. Cirlei de Hollanda relata, ainda, que o único momento em Guerra-‐Peixe
se aproximou de fato de uma revelação muito íntima, em suas relações, foi por ocasião
de um dos longos almoços. Falou sobre Otilia, sua primeira namorada, para quem ele
fez sua primeira composição, um tango:
Eu sei que ele, aos 16 anos fez esse tango para uma mulher chamada Otília. Foi a primeira peça que ele compôs – por paixão. Compôs um tango... E aí ele se enamorou profundamente por essa moça que era de Petrópolis, e queria casar com ela. E os pais dela não deixaram, por isso que ele veio para o Rio. Porque achavam que ele era um boêmio, que gostava da farra, da bebida... Então ele veio para o Rio pra ver se conseguia ser violinista da orquestra do Teatro [Municipal], mostrar que tinha um trabalho e voltar para pedi-‐la em casamento. Só que ela morreu, novinha. E o que ele me disse, a única coisa que ele me disse foi que eu lembrava demais a Otília. Que o jeito de falar... Às vezes eu estava falando, e ele dizia: como lembra a Otília!...49
Nossa avaliação é que a relação de Guerra-‐Peixe com Cirlei de Hollanda foi um
episódio eminentemente idílico. E, o conteúdo dos Cânticos Serranos nº 4 eclodiram,
por sua vez, das recordações que essa relação inspirou. Recordações de um passado
onde fatores como a semelhança com a primeira paixão, aliados aos versos de um
49 HOLLANDA, Cirlei de. Entrevista. 2008. p. 11
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poeta que, da mesma forma, lhe remete à infância, à irmã, à família, enfim,
desaguaram neste que é um de seus mais significativos ciclos de canções.
Conclusão
Guerra-‐Peixe tinha forte personalidade, mas, sobretudo, consciência suficiente
para traçar sua própria trajetória musical, com absoluta independência. A leitura de
Principais traços evolutivos da produção musical, uma espécie de memorial, em que
ele descreveu, praticamente passo a passo, e defendeu com palavras o que traduziu
em forma de música, comprova essa afirmação.
Seu contato com as mulheres que foram suas amigas, no entanto, deixa
perceber que ele as usou como fonte necessária de inspiração, permitindo que, de
maneiras diversas, influenciassem sua produção vocal. Após sete anos seguidos sem
compor absolutamente nada para voz, Maria da Glória torna-‐se responsável por sua
volta à composição para canto. Mais que isso: torna-‐se verdadeira mentora e
conselheira.
Com Sonia Maria Vieira eclode uma verdadeira erupção de composições, num
curtíssimo espaço de tempo.
Cirlei de Hollanda após uma relação que o remete à sua primeira namorada,
Otilia, não somente o inspira para a composição dos Cânticos Serranos nº 4, como o
influencia na versão camerística de seu “monstro sagrado” – o ciclo Drummondiana.
As relações com essas mulheres, segundo nossa avaliação, em muito
contribuíram para levar Guerra-‐Peixe a concretizar sua tão almejada fase da
inconsciência. Aquela que ele tão bem definiu como o momento em que “a gente pode
se largar e escrever à vontade”.50
50 GUERRA-‐PEIXE, César. Entrevista. 1992. p. 8
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Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora: 1962 DISCOS RGE/FERMATA. O canto simples de Maria da Glória. Rio de Janeiro: 1977 GUERRA-‐PEIXE, César. Drummondiana. Dedicatória no cabeçalho do manuscrito. Rio de Janeiro: 1978 CAPANEMA, Maria da Glória. Entrevista a Inácio De Nonno. Rio de Janeiro: 25 de novembro de 2007 GUERRA-‐PEIXE, César. Curriculum Vitae. Rio de Janeiro. 1971 _________________ Principais traços evolutivos da produção musical. Rio de Janeiro. 1971 _________________ Relação cronológica de composição. Rio de Janeiro. 1974 _________________ Entrevista a Inácio De Nonno. Rio de Janeiro. 6 de janeiro de 1992 HOLLANDA, Cirlei de. Entrevista a Inácio De Nonno. Rio de Janeiro. 14 de maio de 2008 VIEIRA, Sonia Maria. Entrevista a Inácio De Nonno. Rio de Janeiro. 29 de novembro de 2007
Currúculo sumário do autor
Inácio De Nonno, barítono, vem dedicando substancial dedicação de sua carreira profissional à pesquisa e interpretação da canção brasileira. Sua discografia conta hoje com a participação em 25 CDs, todos dedicados ao repertório nacional. Desde restaurações do material colonial até os autores mais vanguardistas. É doutorando em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), orientado pela Profa. Dra. Adriana Kayama, Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é professor de canto.
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As relações texto-‐música e o procedimento pianístico em seis canções de Ernst Mahle: propostas interpretativas
Eliana Asano Ramos
Programa de Pós-‐Graduação em Música/Instituto de Artes/Unicamp [email protected]
Maria José Dias Carrasqueira de Moraes
Programa de Pós-‐Graduação em Música/Instituto de Artes/Unicamp [email protected]
RESUMO: Esta comunicação tem por objetivo apresentar os procedimentos e resultados obtidos com a pesquisa de mestrado intitulada “As relações texto-‐música e o procedimento pianístico em seis canções de Ernst Mahle: propostas interpretativas”, cujo objetivo principal é a proposição de diretrizes interpretativas para a performance de seis canções de Ernst Mahle (1929), com especial enfoque no procedimento pianístico. Foram selecionadas para o estudo: Rosamor (1966), com texto de Guilherme de Almeida; E agora, José? (1971), com texto de Carlos Drummond de Andrade; Leilão de Jardim (1971), com texto de Cecília Meireles; Categiró (1972), com texto de Cassiano Ricardo; Elegia (1980), com texto de Ribeiro Couto; O Pato (1993), com texto de Vinicius de Moraes. O processo analítico empregado para a compreensão dos procedimentos composicionais e para a elaboração da execução musical engloba o exame do texto poético, da estrutura musical, das relações texto-‐música, dos aspectos interpretativos e dos procedimentos pianísticos. Os resultados obtidos com o trabalho contribuíram significativamente para a elaboração da performance das canções que estão gravadas em CD anexo. Apoio FAPESP. Palavras-‐chave: Canção de Câmara Brasileira; Música Brasileira; Ernst Mahle; Performance; Canto e Piano. The text-‐music relationship and the pianist procedure in six songs by Ernst Mahle: interpretative proposals ABSTRACT: The aim of this communication is to present the procedures and results obtained in the master degree research “The text-‐music relationship and the pianist procedure in six songs by Ernst Mahle: interpretative proposals”, whose main aim is to propose interpretative guidelines for the performance of six songs of Brazilian composer Ernst Mahle (1929), with special focus on the pianistic procedure. The songs are: Rosamor (1966), with text by Guilherme de Almeida; E agora, José? (1971), with text by Carlos Drummond de Andrade; Leilão de Jardim (1971), with text by Cecília Meireles; Categiró (1972), with text by Cassiano Ricardo; Elegia (1980), with text by Ribeiro Couto; O Pato (1993), with text by Vinicius de Moraes. To understand the compositional procedures – in particular, to build up a pianistic performance close to what the composer proposed – the following analytical process was undertaken: the study of the lyrics, the musical structure, the inter relationship between lyrics and musical procedures, the interpretation aspects, and the composer´s pianistic approach.
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The results achieved through the work contributed significantly for the performance of the songs that were recorded on the attached CD. Supported by FAPESP. Keywords: Brazilian Song; Brazilian Music; Ernst Mahle; Performance; Voice and Piano.
Introdução
A dissertação de mestrado aqui apresentada tem como objetivo principal a
proposição de diretrizes interpretativas para a performance de seis canções de Ernst
Mahle (1929). Do vasto repertório composto, foram selecionadas para o estudo:
Rosamor (1966), com texto de Guilherme de Almeida (1890 – 1969); E agora, José?
(1971), com texto de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987); Leilão de Jardim
(1971), com texto de Cecília Meireles (1901 – 1964); Categiró (1972), com texto de
Cassiano Ricardo (1895 – 1974); Elegia (1980), com texto de Ribeiro Couto (1898 –
1963); O Pato (1993), com texto de Vinicius de Moraes (1913 – 1980). A escolha das
canções foi baseada na sugestão do próprio compositor em comunicações pessoais à
autora da dissertação. A idéia da presente pesquisa nasceu do desejo pessoal da
autora em conhecer com maior profundidade a obra do compositor Ernst Mahle,
expoente vivo que pertence ao cenário musical brasileiro. Sua vasta obra abrange mais
de duas mil composições, incluindo peças escritas para vários instrumentos de
orquestra, música de câmara para as mais variadas formações, concertinos e concertos
para vários instrumentos solistas e orquestra, obras para canto, coro, orquestra de
câmara, orquestra sinfônica, balés e óperas. No Catálogo de Obras (2010) do
compositor, dentro do gênero canção, são vinte e cinco peças escritas sobre texto
profano para voz solista e piano, sem contar as canções com texto sacro e as várias
versões de uma mesma canção para diferentes vozes e acompanhamento.
Ernst Mahle
Naturalizado brasileiro, Ernst Hans Helmuth Mahle nasceu a 3 de janeiro de
1929 em Stuttgart, na Alemanha, e está no Brasil desde 1951. Assim que chegou,
trabalhava com o pai durante o dia e, à noite, freqüentava concertos e recitais em
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espaços culturais de São Paulo. Foi em uma dessas apresentações que conheceu Hans-‐
Joachim Koellreutter (1915-‐2005), com quem estudou e esteve como assistente de
1952 a 1956, período em que tomou contato com as diferentes linhas de composição
universalistas da época, como o atonalismo, o dodecafonismo, o concretismo e a
música eletrônica.
No início de sua carreira, Mahle manteve intensa atividade como compositor e
professor em festivais de música. Em 1953, Koellreutter, Mahle e Maria Apparecida
Romera Pinto, sua futura esposa, juntamente com outras pessoas representativas de
Piracicaba, coordenaram a criação da Escola Livre de Música Pró-‐Arte em Piracicaba,
fundada a 9 de março de 1953. No período de 1953 a 1955, Mahle retornou à Europa
para se aperfeiçoar, tendo a oportunidade de estudar composição com Ernst Krenek
(1900-‐1991), Olivier Messiaen (1908-‐1992) e Wolfgang Fortner (1907-‐1987), e regência
com L. Matacic (1899-‐1985), H. Müller-‐Kray (1908-‐1969) e R. Kubelik (1914-‐1996).
Compositor premiado em vários concursos, Mahle recebeu o título de “Cidadão
Piracicabano” em 1965, em virtude de seu trabalho em prol da educação musical e
artística de crianças e jovens.
Paralelamente às atividades de professor e regente na Escola de Música de
Piracicaba, foi idealizador e presidente dos Concursos Jovens Instrumentistas
Piracicaba – Brasil, evento de destaque no cenário nacional, ocorrido bienalmente no
período de 1971 a 2002. De acordo com Tokeshi (1999), a falta de um repertório
nacional destinado aos jovens estudantes de música impulsionou o compositor a
escrever obras especialmente para serem executadas nas edições deste concurso. A
partir de então, seu repertório passou a refletir a preocupação pedagógica do
compositor. Em 1998, a Escola de Música de Piracicaba foi incorporada ao Instituto
Educacional Piracicabano (IEP), passando a ser denominada Escola de Música de
Piracicaba Maestro Ernst Mahle (EMPEM) por proposta do conselho do Instituto em
homenagem ao compositor.
Em 1997, ocupou o cargo de vice-‐presidente da Sociedade Brasileira de Música
Contemporânea e, desde 1999, ocupa a cadeira nº 6 da Academia Brasileira de Música,
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cujo patrono é Sigismund Neukomm (1778-‐1858). Entre as homenagens mais recentes,
estão o Prêmio Martius-‐Staden, conferido em 2006, pelo Instituto de mesmo nome,
em reconhecimento ao seu trabalho em prol do intercâmbio cultural entre Brasil e
Alemanha, a Medalha pelo Mérito Legislativo e uma Moção de Aplausos, conferidas
pela Câmara de Vereadores de Piracicaba em 2009, em reconhecimento ao valor de
seu trabalho como professor e compositor, e o Prêmio Especial pelo Conjunto da
Carreira, conferido pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), também em
2009, pelo conjunto de sua obra.
Segundo Garbosa (2002), apesar de ter incorporado vários estilos ao longo do
tempo, Mahle pode ser considerado um compositor com tendências neoclassicistas.
Para o compositor, três fatores foram fundamentais na formação de seu estilo
composicional: os ensinamentos tradicionalistas assimilados em seu estudo de
contraponto e harmonia com Nepomuk David, as técnicas de vanguarda apresentadas
por Koellreuter e o folclore brasileiro, sobretudo o nordestino, com seus ritmos
sincopados e suas escalas em modo mixolídio. Ao longo dos anos, foi utilizando com
menos freqüência as técnicas de vanguarda e se aproximando mais do nacionalismo,
sobretudo o brasileiro. Segundo Arzolla (1996), a utilização de melodias folclóricas e a
adoção de textos de autores brasileiros, além de preservar a cultura nacional,
contribuem para a musicalização de jovens e crianças.
Dentro do repertório da canção de câmara, diz ser apreciador das composições
de Franz Schubert (1797-‐1828), Ludwig van Beethoven (1770-‐1827), Gabriel Fauré
(1845-‐1924) e Claude Debussy (1862-‐1918). Em entrevista à autora, o compositor
declarou que, ao escrever uma canção, toma a poesia como ponto de partida e o piano
como instrumento de ilustração textual. A maior parte das canções está dedicada ao
tenor Eladio Pérez-‐González, antigo professor de canto na Escola de Música de
Piracicaba, principal incentivador e divulgador das composições.
Considerações preliminares acerca da análise
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O processo de análise das canções, de natureza descritiva e qualitativa,
compreende o exame de cinco componentes distintos e complementares: (1) texto
poético, (2) estrutura musical, (3) relações texto-‐música, (4) aspectos interpretativos e
(5) procedimentos pianísticos. A análise da estrutura musical tem fundamento em
Schoenberg (2008) e está apresentada segundo os critérios organizacionais de White
(1994). O exame dos demais aspectos segue os parâmetros e conceitos de Stein e
Spillman (1996). O exame dos textos poéticos apresenta duas abordagens: sintática,
que envolve o estudo dos aspectos formais, e semântica, que investiga o significado
poético. O estudo dos aspectos formais da poesia consiste na determinação da métrica
poética, denominada escansão, por meio da qual são verificados a quantidade de
sílabas poéticas e de pés poéticos, os tipos de terminações, os esquemas de rima,
incluindo assonâncias e aliterações, bem como as substituições. O exame do
significado poético consiste na averiguação das figuras de linguagem empregadas pelo
poeta e na exploração dos conceitos de progressão poética, atmosfera poética,
persona e modo de endereçamento. O objetivo é relacionar os vários aspectos do
texto na busca por uma interpretação da poesia. A análise da estrutura musical tem
por objetivo principal o exame das características composicionais mais marcantes em
cada uma das peças. De acordo com Cook (1987), não existe uma maneira fixa para se
iniciar uma análise – ela depende da música, do analista, bem como da razão pela qual
se está realizando a análise. Considerando que o trabalho aqui apresentado tem por
objetivo final a performance das peças, optamos por uma investigação musical não
restrita a descrições de acordes tomados isoladamente, porém, sujeita à organização
musical como um todo tendo em vista a elaboração da performance. A estrutura
musical é analisada em três níveis – micro, média e macro-‐análise – e tem respaldo em
White (1994), segundo o qual os elementos musicais são classificados em ritmo,
melodia, harmonia e som. Dentro desses aspectos, foram acrescentados diferentes
parâmetros julgados relevantes na análise do repertório selecionado. As relações
texto-‐música são estabelecidas nos níveis sintático e semântico e revelam indícios de
como o texto poético foi convertido em música. A investigação dos aspectos
interpretativos – presentes na escrita pianística ou inferidos pelos intérpretes – tem
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por objetivo buscar elementos pertinentes à performance das canções de modo a
contribuir para o estabelecimento do sentido poético.
Todas as pontuações que nós temos na Literatura devem ser seguidas na Música, pois que Música não deixa de ser, como na frase literária, também uma frase musical. Inúmeras vezes nós interpretamos um diálogo musical, com suas perguntas e respostas, suas interrogações, suas exclamações, suas vírgulas, seus pontos e vírgulas, suas reticências, seus acentos e seus pontos finais. Temos de tocar da mesma maneira como se estivéssemos interpretando uma Poesia ou um Texto Literário. [...] Quando existe a palavra junto com a música, aí se torna mais fácil podermos interpretar, em virtude de que o sentido das palavras nos dá a idéia exata para criarmos uma atmosfera adequada. Nesse caso, a música está em função do texto, como na Ópera, onde a música cria um ambiente propício às palavras cantadas (BIANCHI, 2003, apud LIMA, 2005, p. 37).
Por último, para fins de consulta, foram elencados alguns dos elementos mais
característicos na escrita pianística das canções. Os efeitos pianísticos adotados pelo
compositor enriquecem as imagens pictóricas do texto e são concebidos de forma a
contribuírem para evocar o clima da canção. O objetivo final é a recombinação dos
dados resultantes das análises de modo a embasar uma performance das canções, cujo
resultado sonoro efetivo está registrado em CD anexo ao trabalho.
Análise das canções
Na Figura 1, parte do quadro elaborado na dissertação contendo características
gerais das canções analisadas e suas respectivas frases iniciais.
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Figura 1 – Canções analisadas.
O exame dos textos em seu nível sintático revelou predomínio de versos
regulares e simétricos, com valorização do aspecto fônico, sobretudo através de rimas
internas e externas, como na Figura 2.
Figura 2 – Mahle, Rosamor (1966): peça III – escansão poética
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No nível semântico, os textos são, em geral, claros e objetivos, com temas
extremamente variados. Em Rosamor (1966), uma meditação sublime a respeito da
“rosa”; em E agora, José? (1971), uma reflexão sobre a vida existencial sem sentido;
em Leilão de Jardim (1971), uma brincadeira de criança; em Categiró (1972), uma
oração; em Elegia (1980), a morte; e por último, em O Pato (1993), uma crítica bem
humorada ao mau comportamento. A adoção por parte do compositor de diferentes
formas poéticas, sobretudo contemporâneas à época das composições, e a primazia
por textos de poetas significativos dentro do cenário literário brasileiro contribuíram
para que suas canções ocupassem lugar de destaque dentro do seu conjunto
composicional.
Na análise da estrutura musical, os ritmos são, em geral, vigorosos, fartos de
síncopas e contratempos, com recorrentes mudanças de fórmulas de compasso e
várias indicações de mudança de andamento ao longo da canção, sugerindo
valorização do enunciado poético. A intensidade e a extensão do piano e da linha vocal
são amplas. A linha vocal é predominantemente fragmentada e tonal, com valorização
dos intervalos da tríade. A harmonia é marcada por um campo tonal fundamental,
ainda que por diversos momentos apoiada em escalas cromáticas e modais,
especialmente no modo mixolídio. Na parte do piano, combinações de texturas semi-‐
contrapontísticas e livre utilização de processos imitativos. Há uma quantidade
significativa de movimentos acordais com implicações melódicas e motívicas e
movimentos paralelos de quartas e quintas. As relações tonais são valorizadas,
sobretudo, com o emprego recorrente de acordes de sétima. Os recorrentes pontos
pedais e notas presas indicam valorização da condução melódica e da escrita
contrapontística. Na forma, a repetição rítmico-‐motívica contribui como elemento
unificador importante para a coerência musical, sobretudo nas canções que não
apresentam uma repetição formal consistente. Na Figura 3, um dos quadros
elaborados na dissertação contendo as características mais marcantes na estrutura
musical.
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Figura 3 – Mahle, Leilão de Jardim (1971): estrutura musical
No estabelecimento de relações entre o texto poético e a estrutura musical, foi
constatada a preocupação do compositor em conjugar texto e música. Em geral, a
métrica musical corresponde aos padrões rítmicos da poesia e a ênfase textual é
obtida nos tempos fortes dos compassos, nas variações de dinâmica e de registro, bem
como nos deslocamentos rítmicos e na agógica, como no Ex. 1.
Ex. 1 – Mahle, Rosamor (1966): peça II, c. 7-‐12, melodia vocal
Os elementos de harmonia, ritmo, melodia e som refletem o sentimento que
permeia o texto e contribuem para a intensificação emocional do elemento poético,
como no Ex. 2.
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Ex. 2 – Mahle, Elegia (1980): c. 26-‐33.
Na investigação dos aspectos interpretativos, a exploração das oscilações no
andamento, das variações na dinâmica, bem como a ênfase nos deslocamentos
rítmicos, ajuda no fluir da narrativa e no estabelecimento do sentido poético, como no
Ex. 3.
Ex. 3 – Mahle, Categiró (1972): c. 60-‐62
A linha vocal é predominantemente silábica e parlando, procedimento que
implica uma narrativa clara e objetiva. O piano é um instrumento de ambientação e
ilustração poética, em alguns momentos, de função descritiva, como no Ex. 4.
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Ex. 4 – Mahle, Leilão de Jardim (1971): c. 11-‐15.
A parte do piano se reveste de particular interesse, especialmente na maneira
imaginativa de exprimir as imagens e os sentimentos da poesia. No exame dos
procedimentos pianísticos, foram constatados efeitos instrumentais variados, os quais
foram elencados no quadro a seguir para fins de consulta, Figura 4.
Figura 4 – Características na escrita pianística particulares a cada canção.
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Conclusões
Os dados resultantes das análises praticadas na dissertação ora apresentada
contribuíram significativamente para a elaboração da performance das canções e
permitiram um exame mais aprofundado da obra de Ernst Mahle. Foram verificados
elementos característicos e recorrentes na escrita das canções, especialmente na
escrita pianística, alguns deles peculiares a determinada canção. Os movimentos de
particular dificuldade técnica e a grande variedade de combinações rítmicas e sonoras
são aspectos que exigem do pianista destreza e controle de uma linha musical sob
quaisquer circunstâncias e um extraordinário senso de toque e habilidade na
exploração de uma sonoridade pianística específica. O objetivo da realização do CD em
anexo foi trazer a público uma proposta de performance, tornando-‐se um instrumento
de realização sonora das obras estudadas. A pesquisa oferece contribuição significativa
para a incipiente pesquisa acadêmica na medida em que colabora para a divulgação da
obra do compositor e para o alargamento da bibliografia existente, propondo uma
reflexão sobre a interpretação da canção de câmara brasileira do século XX. Por tratar-‐
se de um compositor vivo e atuante no cenário musical brasileiro, o trabalho torna-‐se
ainda mais expressivo tendo em vista a colaboração pessoal do próprio compositor,
que disponibilizou seu arquivo particular, concedendo entrevistas e aclarando
informações. Os resultados obtidos visam oferecer subsídios para novas pesquisas e
colocam à disposição do público uma parte expressiva dentro da produção musical de
Ernst Mahle.
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Referências Bibliográficas
ARZOLLA, A. R. R. dal P. Uma abordagem analítico-‐interpretativa do Concerto 1990 para contrabaixo e orquestra de Ernst Mahle. 1996. 120 p. Tese (Doutorado em Música) – Centro de Letras e Artes, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996. COOK, N. A guide to musical analysis. Great Britain: Oxford University Press, 1987. GARBOSA, G. S. “Concerto (1988)" para clarineta de Ernst Mahle: um estudo comparativo de interpretações. 2002. 184 p. Tese (Doutorado em Música) -‐ Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002. LIMA, S. A. de. Uma metodologia de interpretação musical. São Paulo: Musica Editora, 2005. MAHLE, E. Catálogo de Obras. Piracicaba: Instituto Educacional Piracicabano, 2010. MAHLE, E. Categiró. Piracicaba: Ms C 65 a, 1972. Voz aguda e piano. MAHLE, E. E agora, José? Piracicaba: Ms C 54, 1971. Voz aguda e piano. MAHLE, E. Elegia. Piracicaba: Ms C 137 a, 1980. Tenor e piano. MAHLE, E. Leilão de Jardim. Piracicaba: Ms C 55, 1971. Voz aguda e piano. MAHLE, E. O Pato. Piracicaba: Ms C 26 d, 1993. Voz aguda e piano. MAHLE, E. Rosamor. Piracicaba: Ms C 26 a, 1966. Voz aguda e piano. SCHOENBERG, A. Fundamentos da Composição Musical. 3. ed. Tradução Eduardo Seincman. São Paulo: EDUSP, 2008. STEIN, D.; SPILLMAN, R. Poetry into Song: Performance and Analysis of Song. New York: Oxford University Press, 1996. TOKESHI, E. Ernst Mahle: violin sonatas and sonatinas (1955-‐80). 1999, 129 p. Tese (Doctor of Music) – Northwestern University, Evanston, Illionois, 1999. WHITE, J. D. Comprehensive music analysis. London: The Scarecrow Press, 1994.
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Em busca de significados perdidos: convenções da ópera veneziana do Seiscentos.
Silvana Scarinci
[email protected]; Laura Rónai
Resumo: Este ensaio pretende expor as principais convenções da música vocal operística da primeira metade do século XVII e algumas das construções poético-‐musicais que as sustentam. Para o cantor (ou intérprete de baixo-‐contínuo) interessado na execução deste repertório, a reflexão sobre estas questões proporcionará performance mais culta e historicamente informada, resgatando um conhecimento comum ao homem letrado da época, perdido para a maior parte dos músicos modernos.
Abstract: This essay seeks to explain the main conventions of vocal operatic music from the first half of the seventeenth century and some of the poetic and musical structures that support them. For the singer (or the figured bass interpreter) interested in the execution of this repertoire, reflection on these issues will provide for a subtler, more historically informed performance, rescuing a knowledge that was common to the educated man of the time, but has since been lost to most modern players.
Apesar de não ter nascido em Veneza, a ópera encontrou na República
Sereníssima solo fecundo para seu florescimento e para a fixação de diversas
convenções que perduraram na história do gênero. Com a abertura dos teatros
públicos de ópera na cidade, o jovem espetáculo ganhava uma audiência regular, que
uma vez acostumada com as extravagâncias do carnaval, passava a sustentar as
novidades e experimentações do novo gênero híbrido. De 1637 a 1678, Veneza assistiu
a mais de 150 óperas em nada menos do que nove teatros diferentes. A proliferação
do gênero exigiu que a produção fosse contínua e plena de novidades. Desta maneira,
criaram-‐se convenções, ou cenas-‐padrão que podiam ser compostas com certa
velocidade, tornando-‐se parte da expectativa do novo público pagante. Nasceu assim a
cena de loucura, o dueto de amor, a cena de lamento – em geral feminino – e a cena
de encantamento mágico.
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Estas convenções se estabelecem pouco a pouco com o desenvolvimento do
gênero dramático-‐musical recém criado à medida que novas obras são produzidas nos
teatros de ópera venezianos e certos experimentos são acolhidos – ou rejeitados –
pelo novo público pagante, estabelecendo assim padrões ou modelos para
compositores subseqüentes. Para que possamos compreender tais convenções,
devemos por um lado nos debruçar sobre a história da literatura e do teatro italianos,
e por outro, sobre os estudos específicos dos libretos e das publicações que
proliferavam na época, possibilitando o acesso a um corpus de parafernália teórica que
revela significados históricos há muito tempo esquecidos por intérpretes mais
modernos. Toda a discussão teórica produzida em Veneza no século XVII foi
reproduzida nos libretos publicados como uma espécie de “lembrança” das óperas
após suas apresentações; além dos libretos, surgia na época uma forma de proto-‐
propaganda dos espetáculos, panfletos divulgados antes da temporada de uma
determinada ópera, conhecidos como Scenario. Estes folhetos – em geral contendo de
20 a 30 páginas – apresentavam uma sinopse do drama, assim como a transcrição de
seu libreto completo. De grande interesse para os estudiosos de ópera e intérpretes
modernos são os prefácios destes Scenari que documentam profusamente as
preocupações estéticas e as ansiedades em relação a um gênero que ainda lutava para
se estabelecer. Um destes panfletos, datado de 1641, de autoria do conhecido poeta
Giulio Strozzi, permite-‐nos entrever um momento marcante na história da recepção
musical: o surgimento das primeiras cantoras virtuoses – as prima donne – que aos
poucos estabeleceram uma relação até então inaudita entre intérpretes e público, em
que o cantor ganhava primazia nas hierarquias do espetáculo, tornando as obras e
seus autores secundários aos olhos de um público ávido por virtuosismo vocal:
Supera a pobreza de minhas idéias o tesouro da Música do Sig. Francesco Sacrati Parmigiano, o qual, maravilhosamente soube com suas harmonias adornar os meus versos e com a mesma maravilha pode ainda conjugar um nobilíssimo coro com tantos sofisticadíssimos Cisnes da Itália; e do Tibre da mais rigorosa e terrível estação, trouxe ao Adriático uma suavíssima Sereia que docemente seqüestra as almas e deleita os olhos e os ouvidos dos
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espectadores. Pela diligência, do Sig. Sacrati, deve reconhecer a Cidade de Veneza os favores da virtuosíssima Signora ANNA. 51
Anna Renzi criou um modelo de cantora que não perduraria por muito tempo.
Se as primeiras cantoras de ópera sobrepunham sua profissão com a das atrizes, a
maioria delas advindas das trupes de Commedia del’Arte, com Anna Renzi se dá a
separação das águas, apesar de a cantora manter a reputação de excelente atriz.
Até meados dos anos 40, imperava o recitativo como recurso musical mais
expressivo e eficaz para imitar a fala em música, o parlare cantando. Os versos
apropriados para o recitativo eram os versi sciolti, de sete e onze sílabas (settenari e
endecassilabi respectivamente), livres de rimas, e propícios à imitação da fala em
função da irregularidade de seus acentos internos. Com a “descoberta” do recitativo,
nasce concomitantemente o baixo-‐contínuo apropriado para sustentar e enfatizar o
caráter livre e mais prosaico de tais versos. Deste modo, o nascimento da ópera se
vincula visceralmente ao gênero dramático, expresso e mantido pela onipresença da
palavra, da qual luta por não se separar, já que poria em risco os princípios de
verossimilhança tão caros aos teóricos, compositores e poetas seiscentistas, criadores
do drama per musica. Anna Renzi, portanto, afiliava-‐se ao estilo florentino, sendo
cantora hábil na elocução retórica da palavra cantada, qualidade que pouco a pouco
perderia espaço com a ascensão da ária em detrimento cada vez maior da força
expressiva do recitativo. Testemunho do gosto que imperava no início do século XVII,
as palavras de um autor anônimo do tratado Il corago (1630) nos expõe mais
claramente as relações íntimas entre o teatro falado e o cantado, o ator e o cantor, as
relações de verossimilhança da fala – recitativo – para personagens “de carne e osso”
e do canto – ária – para personagens mitológicas: 51 ... Supplisce alla povertà de’ miei concetti il tesoro della Musica del Sig. Francesco Sacrati Parmigiano, il quale maravigliosamente hà saputo com le sue armonie adornar i miei versi e con la stessa meraviglia hà potuto ancora metter insieme un nobilíssimo Choro di tanti esquisitissimi Cigni d’Italia; e sin dal Tebro nel maggior rigor d’un’ horrida stagione hà condotta sù l’Adria una suavissima Sirena, che dolcemente rapisce gli animi, & alletta gli occhi, e l’orecchie degli ascoltanti. Dalla diligenza del Sig. Sacrati deve riconoscere la Città di Venetia il favore della virtuosíssima Signora ANNA. Argomento, e scenario della Finta Pazza. (Apud ROSAND, 1991, p.94)
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Sobretudo, para ser um bom orador cantando é necessário ser também um bom orador falando, quando vimos que algumas pessoas que tinham graça particular ao recitar, fizeram maravilhas quando ao mesmo tempo sabiam também cantar. Em relação a isto, alguns questionaram se devemos preferir um músico não ruim que seja um orador perfeito ou um músico excelente, mas com pouco ou nenhum talento para recitar, pelo que se pode perceber, que sim, da mesma forma como para poucos conhecedores de música agradaram mais os excelentes cantores embora frios no recitar, enquanto que, para o público comum do teatro, este obteve maior satisfação com os atores perfeitos com voz e perícia musical medíocres. Devendo, portanto o músico distribuir os papéis de maneira adequada, e se servir de todos à perfeição, tentando na medida do possível, imitar os excelentes cantores, mas atribuindo, àqueles exangues e mais velhos, partes que não exijam muita atuação e colocando muitos elementos [cênicos] a seu redor, pondo-‐os em nuvens e outras máquinas aéreas, onde não se requer tanto movimento, nem expressão de atitudes histriônica.
[...]
Para começar com os personagens ou interlocutores para quem a representação musical parece mais apropriadamemente convir, são muito adequados para as ações profanas, as divindades antigas como Apolo, Teti, Netuno e outros deuses estimados, como também os semideuses e heróis vetustos, entre os quais se pode elencar principalmente os rios, lagos, e em especial os mais célebres entre as musas, como Peneu, o Tibre, o Trasimeno e sobretudo, aqueles personagens que consideramos terem sido músicos perfeitos, como Orfeu, Anfion e similares. A razão de tudo isto é que todos os ouvintes sabem perfeitamente que, ao menos nas partes mais conhecidas da terra, pessoas ordinárias não falam cantando, mas simplesmente falam; é mais facilmente aceito o conceito do falar cantando para personagens sobre-‐humanos do que esta manifestação nos homens comuns, pois sendo o discursar harmônico mais elevado, mais magistral, mais doce e nobre do que o falar ordinário, por uma tendência inata considera-‐se que estes personagens possuem dose maior do sublime e do divino.52
52 Sopra tutto per essere buon recitante cantando bisognerebbe esser anche buono recitante parlando, onde aviamo veduto che alcuni che hanno avuto particolar grazia in recitare hanno fatto meraviglie quando insieme hanno saputo cantare. Intorno a che alcuni muovono questione se si deva ellegere un musico non cattivo che sai perfetto recitante o pure un musico eccelente ma di poco o nessum talento di recitare, nel che si è toccato con mano che sì come ad alcuni pochi molto intendenti di musica sono più piaciuti l’eccelenti cantori quantunque freddi nel recitamento, così al co[um]ne del teatro sodisfazione maggiore hanno dato i perfetti istrioni con medíocre voce e perizia musicale. Pertanto dovendo il musico distribuire a proposito le parti e servisi di tutti a perfezione, procurerà per quanto si mostrerà possibile di imitar le eccelenti cantori ma [mettendo quelli] esangui et in età nel recitare in
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Este último parágrafo é especialmente instigante, pois ao olharmos para trás,
no que tange música e teatro, imaginamos que a platéia de antigamente era feita de
pessoas extremamente diferentes de nossas platéias de hoje. Uma das razões mais
freqüentemente citadas pelos músicos que se recusam a incorporar às suas execuções
os hábitos específicos característicos de outra época é a de que o público mudou, e,
portanto as platéias de hoje simplesmente não poderiam compreender as convenções
do passado. Por isso mesmo, é muito interessante perceber que as questões que nos
preocupam hoje encontravam eco há 400 anos; e que a famosa “suspension of
disbelief”, que se requer hoje de qualquer ouvinte de ópera ou musical, de qualquer
espectador de teatro dramático ou cinema já preocupava nossos antepassados.
“Pessoas não falam cantando”! Assim, o que é necessário para que uma convenção se
torne aceita, é que ela funcione em termos cênicos. E quando ela funciona, é apenas a
constância de seu uso que a transformará em convenção.
Portanto, resgatar essas convenções do passado (e transformá-‐las em
convenções do presente, pelo menos enquanto ligadas à interpretação da música
antiga) é tão importante para a execução do repertório dos séculos idos quanto
resgatar a própria música da época. Sabe-‐se hoje que na música orquestral do barroco
eram freqüentes as evocações de tempestade, em que folhas de flandres eram
sacudidas vigorosamente para imitar o tonitruar dos trovões, e outros recursos
parti che non siano molto attuosi e che abbino molti ornamenti a torno come in nuvole et altre machine per aria dove non si richiede tanto moto né espressione di atteggiamenti istrionici. Per cominciare da personaggi o interloquitori che la rappresentazione armonica pare che più convenevolmente abbracci, sembrano molto a proposito per le azioni profane le deità antiche come Apollo, Teti, Nettuno et altri stimati numi, con anche i semidei et eroi vetusti, massime tra i quali si possono annoverare i fiumi, laghi, massime i più celebri appresso le muse come Peneo, il Tebro, il Trasimeno e sopra tutti quei personaggi che stimiamo essere stati perfetti musici, come Orfeo, Anfionte e simili. La ragione di tutto questo si è perché vedendo troppo bene ciascuno auditore che almeno nelle parti più conosciute della terra non si parla in musica ma pienamente dalli uomini ordinarii, più si conforma con il concetto che si ha dei personaggi sopra umani il parlar in musica che com il concetto e manifesta notizia delli uomini dozzinali, perché essendo il ragionare armonico più alto, più maestrevole, più dolce e nobile dell’ordinario parlare, si attribuisce per un certo connaturale sentimento ai personaggi che hanno più del sublime e divino.... Anonimo: Il corago o vero alcune osservazioni per metter bene in scena le composizioni drammatiche. (APUD. ROSAND, 1991, p.244)
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semelhantes criavam a ilusão de vento e de chuva. No Inverno, das “4 Estações”, por
exemplo, com o uso da madeira do arco atingindo diretamente as cordas, Vivaldi imita
os dentes do protagonista, que batem uns nos outros em reação ao frio extremo, e usa
passagens escalares rapidíssimas nas cordas para criar o efeito do vento –
especificamente do Sirocco, vento quente, desagradável e violento, comum no norte
da Itália. Escorregar no gelo também é reproduzido por meio de música, assim como
as gotas de chuva tamborilando na janela.
O fato é que a platéia já ia para o concerto com uma expectativa em relação a
este fenômeno: “vejamos como o Senhor Fulano irá lidar com a tempestade, desta
vez”. Ignorar essas convenções, olhar com desdém o uso de recursos extra-‐musicais,
como a folha de flandres, nos nossos dias freqüentemente considerada apenas
barulhenta e de mau-‐gosto, é não se dar conta do quanto tais recursos colaboravam
para o resultado final da sonoridade pretendida, e o quanto eram fatores necessários
para o total envolvimento da platéia na “viagem” proposta pelo compositor. Em
relação à ópera, o mesmo era verdade. A platéia ia à apresentação com expectativas
grandes em relação a momentos-‐padrão, para verificar, por exemplo, de que maneira
a habilidade e a arte do autor e de seus intérpretes se refletiriam no tradicional dueto
de amor. Em “O retorno de Ulisses à Pátria”, por exemplo, parte da agudeza de
Monteverdi reside justamente em adiar este momento tão esperado até o ultimíssimo
segundo, e terminar a ópera imediatamente após, não no auge da exuberância, mas
no auge da doçura. Depois de Monteverdi, o próprio conceito de tal “final feliz” passou
a permear a história da ópera, e por sua influência direta, da opereta e do musical.
Muitas das convenções operísticas do século XIX nasceram bem antes, nos
palcos da Itália seiscentista. Assim como na ópera posterior ao século XIX a “cena da
morte”53 se torna quase que obrigatória, e é sempre um dos pontos altos da
53 Em seu site, a Universidade de Princeton oferece mais de 40 fotografias de cenas de morte em ópera que se tornaram famosas! (http://www.cs.princeton.edu/~san/death.html, acessado em 3/6/11)
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representação54, sendo um dos principais meios de que dispõem os ouvintes (e
críticos) para julgarem a qualidade da execução e da composição, nos dois séculos
anteriores é que se firmaram convenções como o travestimento, as cenas de loucura,
o lamento pelo amor perdido, que irão sobreviver mesmo em obras bastante recentes.
Não há alma, por mais empedernida que seja, que consiga deixar de se
enternecer ao presenciar a cena final da Traviata, de Verdi, que reúne, num só golpe
de mestre, momentos de lamento expressivo55, loucura56 e finalmente, a ária de morte
da heroína, talvez o cair de cortinas mais fulminante de toda a história da música. Mas
poucos se dão conta da herança inegável que Verdi recebeu de seus antecessores.
Aliás, é curioso observar o desenvolvimento da cena de morte na ópera
ocidental. Se no período barroco a morte aparece apenas relatada, ou anunciada, e
são os efeitos da morte sobre os personagens principais que nos movem, aos poucos
ela toma a cena e se desenrola diante de nossos olhos. Na ópera Euridice, de Peri e
Rinuccini, encenada em 1600, em Florença, umas das passagens de maior impacto é o
relato da morte de Eurídice, feito por Dafne. Segundo Richard Taruskin:
A primeira coisa a notar é o rigor com que o compositor repele qualquer tentação de sucumbir às imagens do texto, embora este esteja recheado de oportunidades para a pintura de palavras -‐-‐ o fluir da água, o murmúrio da água, luz, escuridão, cantando, dançando, para não falar sobre a picada da serpente. Nenhuma dessas imagens é pintada em tons. Não sobra uma gota de espírito, nada que possa suscitar um sorriso de reconhecimento. Em vez disso, o contraste afetivo brutal é transmitido através dos análogos musicais do discurso e do gestual retóricos. Quando, por exemplo, Dafne descreve o suor frio que salpicava o rosto de Eurídice e emaranhava
54 All of us know that in any Opera worth its salt the heroine at least has to die at the end and it is not uncommon if the hero and perhaps his rival die too. Knowing this irrefutable operistic trait, composers and their librettist have done a tremendous job providing their operas with some really great dead scenes. (Ventura, David em http://hubpages.com/hub/bizarre-‐deaths-‐in-‐the-‐opera, acessado em 3/6/11) 55 Violetta protesta contra o destino, que a faz morrer tão jovem, com tanta vida e amor pela frente. 56 Já em seu leito de morte, a cortesã encontra forças para pedir à sua querida Annina que lhe dê o casaco, para irem à igreja, denotando claramente um estado delirante de percepção da realidade.
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seus cabelos durante a agonia da morte, a música se preocupa, não com o objeto descrito, mas sim com a emoção daquele que descreve, transmitida pela chocante falsa relação entre a voz e o baixo. O momento da morte de Eurídice é descrito com um horror ainda maior, mais frio: as palavras I bei Sembianti ("suas belas feições") são enfatizadas com ironia terrível, utilizando as harmonias mais feias que o compositor poderia conceber: uma tríade aumentada, seguida por uma flagrante contradição harmônica entre a voz (em Si bemol) e o acompanhamento (uma tríade de Mi maior), "resolvida" por um salto “proibido” de quinta diminuta descendente57.
No Orfeo posterior, de Monteverdi (de 1607), a Mensageira, quebrando a
benigna paz pastoral do mundo do protagonista e de seus amigos, traz as terríveis
notícias da morte de Eurídice com dissonâncias de gelar o sangue. Mas em nenhum
dos dois casos, nós presenciamos o momento exato da morte de Eurídice. Em
Monteverdi, é a exposição das emoções cruas em tempo real que é explorada ao
máximo. Em seu desenvolvimento, a ópera do século XIX irá procurar não mais apenas
a crueza das emoções, mas também, ou até principalmente, a crueza dos fatos: a
própria morte, representada em cena com requintes de sofisticação. A representação
do instante em que se esvai a vida, e a riqueza e originalidade de métodos causadores
de morte se tornam um autêntico desafio. As platéias irão testemunhar mortes por
emparedamento, apunhalamento, enforcamento, tuberculose, armas de fogo,
57 The first thing to notice is the rigor with which the composer has spurned every temptation of the text's imagery, jam-‐packed though it is with opportunities for word painting— flowing water, murmuring water, light, dark, singing, dancing, to say nothing the serpent's bite. Not one of these images is painted in tones. There is nothing left of wit, nothing to bring a smile of recognition. Instead, the brutal affective contrast is transmitted through the musical analogues of rhetorical delivery and gesticulation. When, for example, Daphne describes the cold sweat that bespattered Eurydice's face and matted her hair during the death throes, the music is concerned not with the object described but rather with the emotion of the describer, conveyed in shocking false relation between the voice and the bass. The moment of Eurydice's death is described with even greater, colder horror: the words I bei sembianti ("her beautiful features") are set with hideous irony, using the ugliest harmonies the composer could devise— an augmented triad followed by a blatant harmonic contradiction between voice (on B-‐flat) and accompaniment (an E-‐major triad), "resolved" through a descent by a "forbidden " diminished fifth. (TARUSKIN, Richard. Music from the Earliest Notations to the Sixteenth Century . The Oxford History of Western Music). Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 829-‐830)
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flechadas, envenenamentos variados (numa das mortes mais estranhas, Adriana
Lecouvreur, a heroína da ópera de Cilea, falece após cheirar violetas envenenadas!),
até mesmo por derretimento58!
Mas a ópera não vive apenas da morte. Outras convenções comuns no gênero
se estabeleceram nos seus primórdios: cenas de evocação e operações de magia, as
aparições, os oráculos, as preces (preghieri)59, vingança, loucura, erro de identidade,
lamentos, irão se refletir e desenvolver na ópera ocidental de nacionalidades diversas.
Se na sua manifestação cômica predominam as situações de travestimento e erros de
identidade (não há como não pensar nas Bodas de Fígaro, de Mozart, que leva ao
paroxismo tais possibilidades), nas óperas dramáticas predominam as cenas de ciúme,
vingança e desespero, e os Lamentos que refletem a dor da perda do amor ou de uma
vida sem preocupações. Não é de se surpreender que, numa ópera inteiramente em
tom maior (ainda as Bodas de Fígaro), a única ária em tom menor seja o sentido e belo
lamento de Barbarina pela perda do broche (uma litania pela perda da inocência,
talvez?)
Em sua gênese aristocrática, no ambiente florentino e mantovano surge, com a
pungência própria dos solilóquios trágicos, o Lamento. Cena apropriada para
momentos de ápice emocional e oportunidade de acesso à subjetividade da heroína
(os heróis se lamentavam com menor freqüência), os lamentos de cunho trágico eram
ocasião apropriada para provocar reações catárticas no espectador e jamais seriam
excluídos dos palcos de ópera, como vimos acima.
Como marco inicial da criação do subgênero literário-‐musical, conservou-‐se até
hoje o Lamento d’Arianna, único trecho que restou da ópera homônima de Claudio
Monteverdi (1567-‐1643) e Otavio Rinuccini, estreada em 1608 na corte de Mântua. No
frontispício do libreto que sobreviveu em sua íntegra, lê-‐se: L’Arianna: Tragedia
Rappresentata in Musica. Podemos compreender, a partir do título, a intenção do
poeta em afiliar sua obra ao gênero alto e nobre da tragédia. Se as primeiras investidas
58 Em Snegourochka, de Rimsky Korsakov, a heroína é feita de neve, e derrete aos raios do sol. 59 Fabbri, 2003, p.89.
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na criação da ópera alinharam-‐na à tradição pastoril da tragicomédia, buscando em
Guarini e Tasso fonte de inspiração poética, com L’Arianna, Rinuccini e Monteverdi
tentaram contrapor ao ambiente baixo, povoado por pescadores e soldados da ilha de
Naxos, o ambiente sublime da corte de Teseu e Ariadne. As linguagens de cada
personagem traduzem a origem de sua linhagem, grave e altiva dentre os nobres,
graças a sua natureza pública principesca, ou leve e frívola, ambientada no trabalho e
nas recreações populares.60 Vejamos a entrada do coro de Soldados em que louvam
Teseu por sair invicto do labirinto onde acabara de matar o Minotauro:
CORO61
Se d'Ismeno in su la riva, A
per ornar d'Alcide i vanti, B
fa sentir celesti canti B
nobil suon di cetra argiva, A
Non fia già che muta Atene C
del buon Re taccia gli allori: D
canteran cigni canori, D
canteran ninfe e sirene. C
E diran ch'invitto e forte E
lasciò spento il mostro fero, F
e che fuor del rio sentiero F
per uscir trovò le porte. E
CORO
Se de Ismeno sobre a margem,
Para ornar de Alcide as glórias,
Faz ouvir celestes cantos
Nobre som de cítara argiva,
Não será já que muda Atenas
Do bom Rei cala os louros:
Cantarão cisnes canoros,
Cantarão ninfas e sereias.
E dirão que invicto e forte
Deixou extinto o monstro fero,
E que fora da cruel vereda
Para sair encontrou as portas.62
60 Estas classificações soam para o leitor contemporâneo como classistas e preconceituosas. Mas devemos exercitar um pouco o olhar do antropólogo para não impormos preconceitos anacrônicos a categorias já estabelecidas por Aristóteles em sua Poética, com quem, desde então, a história da literatura ocidental entrou em incansável debate. 61 As letras se referem às rimas. 62 Tradução elaborada em conjunto com Ariadne Melchioretto, no Grupo de Pesquisa em Música Antiga (UFPR/CNPq).
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[...]
Dada a perda irreparável da música de Arianna, só nos resta imaginar que tipo
de composição Monteverdi teria utilizado para tais versos. Como muitos outros
experimentos da época, o ambiente da Arcádia silvestre da tragicomédia é aqui
transferido para cenário litorâneo, com seus personagens e mitos típicos. Os soldados
e pescadores que dividem a cena com os nobres príncipes de Naxos correspondem, na
ópera perdida de Monteverdi, aos personagens pastoris representados em Orfeo e nas
principais obras dramático-‐musicais da época. Típicos da poesia mélica do poeta
seiscentista Gabriello Chiabrera (1552-‐1638), os versos ottonari (oito sílabas) em
estrofes rimadas foram muito utilizados para momentos corais encantadores ou em
prazerosas árias de pastores, como nas famosas canções de Striggio/Monteverdi em
Orfeo: Vi ricorda, o Boschi ombrosi ou Ecco pur ch’a voi ritorno. Podemos imaginar que
a ária dos Soldados poderia ter sonoridade bastante semelhante.
A este canto alegre e laudatório, percebemos de imediato o contraste com o
tom intensamente patético do lamento de Ariadne. Seu discurso sublime reproduz
uma série de topoi da retórica da mulher em situação de desamparo e abandono.
Como no mito de Eurídice e na estória de Dido, Ariadne também não poderá consumar
os votos de matrimônio com seu cobiçado amante Teseu, e como a temível Medéia,
será responsável pela morte do irmão e conseqüente negação e expulsão da casa
paterna. Sem lar, sem reino e sem a redenção de um desejado casamento, o lamento
de Ariadne de Rinuccini/Monterverdi desvela o momento de maior intimidade da
personagem. Este é um ponto de suspensão da ação, e através da descomposta
narrativa lírica se revela o destino trágico da heroína: ao despertar sozinha à beira da
praia, percebe que sua cega entrega ao amor de Teseu fora em vão – não lhe resta
outra escolha que o consolo da morte. Grita Ariadne: “Deixai-‐me morrer, deixai-‐me
morrer,”63 e logo a seguir suplica, enternecida, a volta de seu amado: “Retorna, Teseu
meu, retorna, Teseu, ó Deus!”64 Logo, é tomada por perturbada fúria e condena Teseu
à pior das mortes: “Ai, ainda assim não responde! ai, mais que uma serpente, é surdo a 63 Lasciatemi morire! 64 Volgiti, Teseu mio, volgiti, Teseu, O Dio!
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meus lamentos! / Ó nuvens, ó redemoinhos, ó ventos, / afogai-‐o sob aquelas ondas!
correi, monstros e baleias, e seus membros imundos espalhai no abismo profundo!”65
Para a representação do discurso patético e desorientado e a expressão de
sentimentos tão intensos e contraditórios, Monteverdi utilizaria o mais apropriado
recurso de composição, recentemente inventado, o recitativo. A escrita de
Monteverdi, aguda e precisa na imitação retórica do discurso patético de Rinuccini faz
com que cada insinuação sutil de emoções contraditórias seja perfeitamente delineada
pelas figurações rítmicas e melódicas criadas pelo compositor. Nenhum detalhe dos
estados psíquicos extremos da personagem escapa ao “divino Monteverdi,” e o
resultado é um retrato minucioso da alma feminina em momento de profunda dor e
comoção. A seguir podemos observar a escrita meticulosa de Monteverdi para
representar um dos momentos da mais extrema perturbação psíquica de Ariadne: 66
65 Ahi, che non pur rispondi! ahi, che più d’aspe è sordo a’ miei lamenti!O nembri, O turbi, O venti, sommergetelo voi dentr’a quell’onde! correte, orche e balene, e delle membra immonde empiete le voragini profonde! 66Trecho retirado do link: http://www.wwnorton.com/college/music/hill/Scores/W01%20Claudio%20Monteverdi,Lamento%20d%27Arianna.pdf; acessado em 11/06/2011.
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Para discursos com tal conteúdo catártico, em que a importância da fala se
sobrepunha à do canto, uma atriz de grande poder dramático seria contratada para o
papel: a personagem foi interpretada por uma famosa atriz de commedia del arte,
Virginia Andreini, que segundo relatos da época, levou às lágrimas todas as mulheres
da numerosíssima plateia.
L’Arianna, antes de se perder no passado, seria reapresentada em Veneza no
Teatro S. Moisè, em 1640, já em contexto completamente diverso de seu nascimento
em ambiente nobre da corte de Mântova. Trinta e dois anos depois de sua estréia,
L’Arianna conviveria com uma audiência muito diferente da que presenciara a atuação
da jovem e engenhosa atriz de 1608.
Monteverdi, então morando em Veneza, influenciaria diretamente os autores
do dramma per musica, como Francesco Cavalli (1602-‐1676), seu aluno e herdeiro da
refinada capacidade de interpretar musicalmente as nuances da poesia dramática e de
representar as profundezas psíquicas dos personagens. Autor de mais de 40 óperas,
Cavalli obteria pleno reconhecimento com Giasone, obra que atingiu popularidade
extraordinária na época. Baseado em libreto de Andrea Cicognini, o texto se destaca
dos libretos contemporâneos pela variedade e sofisticação poética, assim como pela
mistura de personagens sérios e cômicos em seu enredo.
Dentre as cenas que se tornaram mais famosas está a de Medea, e a tenebrosa
invocação dos espíritos do mundo subterrâneo. Esta cena é um verdadeiro tour de
force poético graças à escolha de diferentes metros, com intenções dramáticas
agudíssimas, fornecendo a Cavalli ocasião para criar uma orquestração eletrizante,
prenunciando a música mais eficaz para cenas de terror do cinema moderno. Medea,
personagem de origens trágicas, nos revela toda sua fúria contra Jasão, o herói traidor,
explodindo em versos sdrucciolli (proparoxítonas): Dell’antro magico, /stridenti cardini,
/il varco apritemi [...]Sull’ara orribile /del lago stigio / i fochi splendino [...] (Do antro
mágico /estridentes aldravas, /abram-‐me passagem. [...]Sobre o horrível altar /do lago
infernal / resplandeçam as chamas [...]).
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A ópera se encerra com uma delicada e sensual cena de amor; Cavalli inclui
mais dois personagens no formato já estabelecido do dueto de amor, numa
antecipação quase clarividente dos finais mozartianos.
Considerada um exemplo perfeito de escrita musical virtuosística, a cena das
Bodas de Figaro (“Riconosci in questo amplesso”) em que o conde, Figaro, Susanna,
Marcellina, D. Bartolo, D. Curzio cantam ao mesmo tempo emoções distintas, sem
perderem sua própria personalidade ou diluírem o sentimento proposto, mantém
ainda assim uma coerência que permite ao ouvinte identificar cada voz
individualmente enquanto ouve a peça como um todo. Depois de Mozart, o recurso
continuou a ser utilizado amplamente na música vocal operística: Verdi no famoso
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quarteto do Rigoletto (1851), Strauss em Die Fledermaus (1874), o sexteto vocal "Chi
mi frena in tal momento" de Donizetti, na já mencionada Lucia de Lammermoor
(1839), o quinteto de Wagner em Die Meistersinger (1868), o quarteto de Puccini em
La Bohème (1896), exemplos não faltam. Reunir várias vozes transmitindo sentimentos
semelhantes, diferentes ou até mesmo conflitantes não é idéia nova, mas é nos palcos
venezianos do Seiscentos que se insinua pela primeira vez em ópera e acabará se
cristalizando como hábito.
A dívida da ópera com os séculos que antecederam sua cristalização é bem
evidente, se nos debruçamos sobre obras bem distintas. A grande ária de loucura (Il
dolce suono) de Lucia di Lammermoor, personagem da ópera homônima de Donizetti,
que acaba por cometer assassinato ainda vestida de noiva, encontra raízes cênicas
óbvias em mestres do passado. Não bastasse o texto eloqüente, as variações de
andamento que denotam a fuga do racional, os melismas desabridos, há ainda o
recurso curioso (e bem calcado nos efeitos teatrais tão populares no barroco) a uma
harmônica de vidro, com seu som fantasmagórico e inconsútil. Esse efeito, que teria
sido recebido com entusiasmo irrefreado nos séculos anteriores, acaba por se perder
nos séculos posteriores. Durante a quase totalidade das apresentações desta ópera no
século XX, a harmônica de vidro, com sua sonoridade tão peculiar, acabou sendo
substituída pela flauta, que tem um timbre que pode ser considerado mais “bonito”,
mas certamente menos apropriado para o clima espectral e delirante da orquestração
original. Não à toa, foi nos últimos anos, em que se busca resgatar a interpretação
histórica da música, que a harmônica de vidro voltou à cena (conferir a bela
interpretação de Natalie Dessay como Lucia, na versão do Metropolitan Opera de
2007).67
Para qualquer um que conheça bem a música do Barroco, ao ouvir a
tresloucada Lucia, é difícil não pensar numa das mais poderosas obras de Purcell,
considerada por vários musicólogos como a melhor das suas canções para teatro: From
Rosy Bowers, composta durante o período de sua doença fatal. Para esta charada
67 http://www.youtube.com/watch?v=NYm7oJXVeks, acessado em 03/06/2011
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musical (uma ária de loucura cantada por uma mulher que não é louca!), Purcell
consegue criar uma engenhosa “cantata de desequilíbrio”, em que um fluxo
ensandecido de emoções é vividamente retratado em suas cinco seções,
admiravelmente conectadas. O mais curioso é que a intenção da música (se a
consideramos inserida em seu contexto) não é séria como parece. Retrata uma loucura
apenas fingida pela protagonista, a fútil Altisidora, numa tentativa de seduzir Don
Quixote e afastá-‐lo de sua Dulcinéia. A loucura fingida, tão bem explorada por Purcell,
tem suas origens justamente na Itália do Seiscentos.
La finta pazza, de Francesco Sacrati, o primeiro grande hit operístico, abriu as
portas do Teatro Novissimo no carnaval de 1641, pondo em cena a soprano Anna
Renzi, “jovem donzela tão talentosa como atriz quanto excelente na música [...].” Esta
ópera reinventa, na maneira livre e iconoclasta dos libretistas venezianos, o mito de
Aquiles e Deidamia, e nesta obra praticamente ignorada68 pelas platéias de hoje,
conhecemos a primeira cena de loucura em ópera. Por ser finta (fingida), a loucura de
Deidamia tem caráter cômico, revelando o parentesco muito próximo entre os
primórdios da ópera e a commedia dell’arte. Deidamia se faz de louca para dissuadir o
amado de partir para a guerra. Como outros personagens que representam a loucura
em ópera, eles tomam emprestado da commedia “falas despropositais, alucinações,
palavreado excessivo, e exuberância nas canções”.69 As convenções herdadas
diretamente da commedia se revelam também nas confusões criadas pelas trocas de
gêneros altos e baixos; ou seja, personagens altos (princesas, como no caso de
Deidamia) tomam emprestada a linguagem baixa pouco apropriada à sua estirpe. A
falsa louca Deidamia atropela o espectador com seu discurso excessivo, sua alucinação
fingida, seu jogo de troca de gênero, súbitas quebras de desenvolvimento lógico e
desvio de raciocínio. No ato II, cena 9, Deidamia tenta se fazer passar por comandante
e ordena que seus (falsos) guerreiros tomem as armas. A música de Sacrati acompanha
68 Neste caso, a ignorância não pode ser imputada às platéias e nem aos músicos. O musicólogo italiano, Lorenzo Bianconi, tem acesso à obra, mas segundo informação recebida informalmente por E. Rosand, a família a qual pertence a partitura proíbe a disponibilização da mesma. 69 FABBRI, 2003, p.109.
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a representação da representação, e se utiliza da convenção teorizada e fixada por
Monteverdi para a imitação da ira, o stile concitato:
Guerreiros, às armas; / às armas, vos digo, às armas. / Para onde, tolos, fugis?
La finta pazza brinca o tempo todo com o jogo da representação, da dita
suspension of desbelief, provocando o espectador com a questão crucial que angustiou
os criadores da ópera e até hoje fundamenta os argumentos dos detratores do gênero.
Seria possível “imitar” – no sentido aristotélico do termo – ações de personagens que
não falam, mas cantam? Deidamia diverte e até zomba do espectador com um vaivém
exuberante de ilusões. O público sabe que Deidamia finge, a própria Deidamia sabe
que sua loucura é fingida, mas os personagens em cena acreditam que a louca princesa
delira e os chama para uma guerra inexistente. Dela fogem, e Deidamia, num falso tom
de decepção, após o trompetear em sol maior, suspende a frase (pausa de semínima) e
conclui, em lá menor, com uma queixa pela fuga de seus soldados. Podemos
facilmente imaginar soluções dramáticas para a pequena cena, na qual os “soldados”
de Deidamia fogem correndo para todos os lados, e deixam-‐na com expressão de
espanto e decepção, sozinha no palco, fingindo sua surpresa. Neste momento, o jogo
de ilusões se multiplica intensificando o caráter cômico da cena, pois naquele exato
momento, a personagem poderia romper a farsa, já que o público sabe que a loucura é
falsa. Continuando, sozinha, a fingir, Deidamia convida o público a jogar com ela e
perder-‐se no labirinto das ilusões, do make-‐belief, um dos ingredientes primordiais de
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qualquer espetáculo, e principalmente, da joveníssima ópera. O texto e música de La
finta pazza nos permitem adivinhar as excelentes qualidades de Anna Renzi como
cantora e atriz, que mais adiante levará seu virtuosismo a um ápice, ao recusar-‐se a
cantar (ou falar?!), optando, já que nela ninguém acredita, pelo mutismo, e passando a
representar (ou fingir?!) sem fala nem canto, mas com gestos:
A stride, quiete, dunque, ad intendersi a cenni, alla muta, alla muta, pronta man, occhio presto, quel che diria la lingua, esprima il gesto.
Fiquemos quietos, então, e entendamo-‐nos através de sinais como mudos, como mudos, prontas mãos, olhos rápidos, o que diria a língua, que diga o gesto.70
La finta pazza pode ser vista como emblema de uma das questões mais caras e
dolorosas do barroco, ou seja, a percepção do mundo como teatro, ou como diria
Calderón, da fugacidade da vida, que não passa de um sonho, e das aparências,
sempre enganadoras. Todas as experimentações na ópera de Strozzi e Sacrati assim
como na de tantos outros autores do período revelam as ansiedades e instabilidade de
uma época em que a profusão do gesto exterior representa a perplexidade do homem
diante de um vazio interior. Típico do teatro barroco é a perda dos limites entre
realidade e aparência, dissimulação e equívoco, máscara e revelação. Um dos poetas
mais influentes do período, Giambatista Marino (1569-‐1625), em seu vasto poema
mitológico, L’Adone explora com o gesto excessivo, tipicamente barroco,
surpreendentes imagens e inumeráveis representações metafóricas do mundo como
teatro: tanto tesor, tanto splendor disserra, / che sembra appunto il ciel calato in
terra71 (que tesouro, que esplendor descerra, / que parece justamente o céu descido à
terra).
70 Tradução elaborada em conjunto com Viviane Kubo, no Grupo de Pesquisa em Música Antiga (UFPR/CNPq). 71 Trecho retirado de http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_6/t330.pdf; acesso em 12/06/2011.
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Revisitar as convenções vocais do Seiscentos italiano, assim como as
complexidades estéticas e filosóficas em que estavam inseridas, não somente nos
esclarece a respeito de gestos musicais que se tornaram praticamente obrigatórios nos
períodos subseqüentes, como nos permite, enquanto músicos, interpretar este
repertório com uma percepção mais límpida de sua complexidade, trazendo à tona
uma miríade de significados dos quais podemos ousar nos apossar.
Referências Bibliográficas
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TARUSKIN, Richard. Music from the Earliest Notations to the Sixteenth Century (The Oxford History of Western Music). Oxford: Oxford University Press, 2010.
Curriculo Sumário dos autores
Silvana Scarinci publicou o livro Safo Novella: uma poética do abandono nos lamentos de Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677) (EDUSP e ALGOL editoras, 2008). É professora da graduação e Pós-‐graduação em Música da Universidade Federal do Paraná.
Laura Rónai publicou o livro: Em busca de um tempo perdido: Métodos de flauta do Barroco ao século XX (Topbooks) em 2009. É crítica da revista norte-‐americana Fanfare e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
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Leitura à primeira-‐vista na colaboração pianística: considerações a partir da experiência de estudantes de graduação em piano
José Francisco da Costa
Resumo: Leitura à primeira-‐vista é considerada por muitos jovens pianistas como um tabu ou algo místico, que se nasce sabendo fazer. O fato é que os estudantes de piano, em sua maioria, não recebem o devido treinamento em leitura ao longo dos anos de sua formação, criando-‐se uma lacuna entre o nível de desempenho motor e o de reconhecimento das informações contidas na partitura. Nesta pesquisa, dividida em duas etapas, procuramos, num primeiro momento, a constatação deste fato através de testes de leitura à primeira-‐vista, aplicados a estudantes de graduação em piano. Em seguida, propusemos a criação de um laboratório experimental de leitura e acompanhamento, com o intuito de amenizar esta falha na formação dos jovens pianistas. Palavras-‐chave: leitura à primeira-‐vista, colaboração pianística, acompanhamento, correpetição. Sight-‐reading in the collaborative piano: considerations from the experience of undergraduate piano students Abstract: Sight-‐reading is considered by many young pianists as a taboo or something mystical, which is born knowing how to do. The fact is that the most of piano students lack the necessary training in reading over the years of its studies, creating a gap between the level of motor skills and the recognition of the information contained in the score. In this research, divided into two steps, we tried, at first, finding this truth by sight-‐reading tests, applied to undergraduate piano students. Then we proposed the creation of an experimental laboratory for reading and accompaniment, in order to alleviate this failure in training young pianists. Keywords: sight-‐reading, collaborative piano, accompaniment, correpetition.
Leitura à primeira-‐vista é ferramenta fundamental para o pianista
desempenhar bem seu trabalho, seja ele o de acompanhador, correpetidor, camerista
ou mesmo solista. THOMPSON & LEHMANN (2007) afirmam que, diferentemente do
preparo para um concerto, em que o pianista tem a oportunidade de repetir os
mesmos movimentos diversas vezes antes de executá-‐los em público, sem surpresas
ou variações, a leitura à primeira-‐vista é uma atividade aberta, na qual ele tem que se
adaptar constantemente. O pianista, neste caso, é confrontado com uma música que
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não conhece e deve tocá-‐la, pela primeira vez, imitando, tão convincentemente
quanto possível, uma música ensaiada no que diz respeito ao andamento e à dinâmica.
Todos sabemos da dificuldade encontrada pelos jovens estudantes de piano na
leitura à primeira-‐vista. Falta de orientação, excessiva preocupação com a performance
e com a técnica pianística estão entre as principais causas desta deficiência. O fato é
que, ao longo dos anos de estudo, cria-‐se um distanciamento entre o nível de
habilidade em leitura e o nível de agilidade motora. Através de processos de repetição
e memorização, os estudantes passam a maior parte do tempo otimizando resultados
de um repertório anteriormente conhecido e deixam de lado o treinamento em leitura
de peças novas ou exercícios para esta finalidade.
Com o intuito de verificar esta problemática e pontuar quais as principais
dificuldades encontradas pelos estudantes de piano, realizamos a aplicação de testes de
leitura à primeira-‐vista. Posteriormente, de posse dos resultados desta primeira etapa,
propusemos a criação de um laboratório experimental em leitura e acompanhamento,
com a finalidade de sanar as deficiências elencadas pelos alunos.
Orientação em leitura à primeira-‐vista: uma necessidade
Na primeira etapa, cinco estudantes de curso superior em piano passaram por
testes de leitura à primeira-‐vista feitos da seguinte maneira: dentro do repertório
camerístico para canto e piano, selecionamos seis peças de nível intermediário, isto é,
com no máximo três acidentes na armadura de clave, em andamento moderado, com
uma textura simples – ou seja, melodia acompanhada, acordes simultâneos,
quebrados ou arpejados – e de estilos diferentes. Alguns trechos apresentavam
mudanças, seja na estrutura rítmica ou harmônica e também algumas dificuldades
técnicas como, por exemplo, terças, sextas ou oitavas na mão direita e saltos na mão
esquerda. Verificou-‐se que nenhum dos entrevistados conhecia essas músicas.
Os testes foram aplicados em duas partes, sendo que a segunda aconteceu
imediatamente após a primeira. Inicialmente, os entrevistados foram estimulados a ler
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trechos pré-‐determinados de três músicas desse repertório, sem nenhuma informação
complementar, exceto pela orientação de que poderiam observar a partitura pelo
tempo que precisassem antes de tocá-‐la. As peças selecionadas para esta etapa foram:
de G. Bizet -‐Ma vie a son secret (compassos 01 a 18), de G. Donizetti -‐La conocchia
(comp. 01 a 16) e de G. Fauré -‐Aurore (comp. 01 a 13). Os pianistas tomaram
conhecimento dos títulos das obras e seus respectivos autores.
Após estas primeiras leituras, foram-‐lhes transmitidas informações relevantes
sobre aspectos envolvidos no processo de leitura à primeira-‐vista, sobre o que
observar na partitura antes de tocar, segundo técnicas específicas para esta atividade.
Essas informações consistem de três pontos principais: 1) a questão da pulsação, que
envolve desde a análise básica do compasso e do andamento, até questões mais
detalhadas sobre a subdivisão e a contagem do tempo, na busca de maior precisão,
quais figuras rítmicas predominam no trecho a fim de encontrar padrões e mudanças;
2) estrutura harmônica: análise da tonalidade, reconhecimento do campo harmônico
e, consequentemente, dos acordes e cadências mais previsíveis, das escalas e seus
dedilhados, e também quais mudanças ocorrem na harmonia, em termos de
dissonâncias, acordes alterados, cromatizações; 3) elementos de textura: como o
trecho selecionado se organiza em termos de construção, se há uma linha de baixo,
uma melodia principal, um preenchimento harmônico e de que forma eles se
apresentam, qual é o material linear predominante, quais as figurações de
acompanhamento, quais as prioridades, na tentativa de enxergar a partitura em
relevo, se há material melódico que o acompanhamento divide com a voz.
Na segunda parte, com base nessas informações recebidas, os participantes
foram solicitados a ler outros trechos de outras três músicas, sendo eles: de G. Bizet -‐
Vieille chanson (comp. 01 a 15), de G. Puccini -‐Morire? (comp. 12 a 27) e de G. Fauré -‐
En prière (comp. 06 a 18).
Todos os testes foram registrados em áudio. Faz-‐se importante ressaltar que,
apesar de todas as peças serem para canto e piano, os testes foram feitos sem a
presença de um cantor, diminuindo-‐se assim o número de variáveis envolvidas na
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leitura à primeira-‐vista, já que não teriam que se preocupar com a linha do canto e
suas inflexões, com a extensão e tessitura vocal, com a respiração do cantor e o
tamanho das frases, com o texto do poema, sua pontuação e articulação. Preferimos,
nestes testes, limitar-‐nos apenas às questões envolvidas com o piano propriamente
dito.
Após as seis leituras, os estudantes passaram por entrevistas de caráter
semiestruturado. Foram feitas as seguintes questões a cada um deles:
a) Quais as principais dificuldades encontradas na leitura à primeira-‐vista,
baseado nos trechos que você realizou nos testes?
b) Como você vê a relação temporal entre o reconhecimento visual dos
elementos da partitura e a realização deles ao piano, ou seja, entre o
“olhar/analisar” e o “tocar”?
c) Você percebeu diferenças no processo de leitura e/ou no resultado entre as três
primeiras peças e as três últimas, após ter recebido informações sobre técnicas de
leitura à primeira-‐vista? Com base no material coletado – a gravação dos testes
de leitura à primeiravista e as entrevistas – passaremos a uma exposição e
posterior reflexão daquilo que pôde ser observado no desempenho dos
estudantes e nos seus depoimentos.
Os entrevistados serão tratados aqui por sujeito, para que se preserve sua
identidade e privacidade e serão apresentados em ordem alfabética: sujeito A (SA),
sujeito B (SB) e assim por diante.
SA toca piano há cinco anos e tem mais experiência em tocar com outros
instrumentistas do que com cantores, faz isso há um ano e meio; SB toca piano há
vinte anos, trabalha com música de câmara há seis anos e, mais especificamente com
cantores, há quatro anos, tendo se apresentado com frequência em recitais, com
repertório variado; SC estuda piano há aproximadamente dez anos e tem experiência
em acompanhar cantores e coro há quatro anos, possui também curta experiência no
estudo de baixo contínuo; SD toca piano há nove anos, tem experiência em
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acompanhamento de coro e outros instrumentos, e nos últimos três anos vem
trabalhando com cantores, apresentando-‐se com frequência em recitais; SE toca piano
há sete anos, tem mais experiência em tocar com outros instrumentistas,
acompanhando regularmente apenas um cantor.
Após os depoimentos terem sido devidamente analisados e organizados pela
semelhança de conteúdo, obtivemos quatro categorias temáticas, cada uma
englobando várias outras subcategorias. Veja o quadro abaixo (Fig. 01):
Observamos, num olhar mais distanciado do quadro acima, a ocorrência de 6
subcategorias na CAT. 01 contra 3 nas CAT. 02 e 03 e apenas uma na CAT. 04, isto
significa que boa parte dos depoimentos versaram sobre as dificuldades e os
problemas envolvidos na leitura à primeira-‐vista. Em termos numéricos, foram 15
citações espontâneas sobre aspectos negativos relacionados à leitura à primeira-‐vista,
contra 9 na CAT. 02 – o que também é bastante significativo.
Fig. 01: Quadro das categorias temáticas dos depoimentos.
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Num olhar mais aprofundado, o destaque fica por conta da subcategoria a
influência dos padrões e das mudanças na leitura (CAT. 02), pois teve a maior
convergência de discurso, seguida por dificuldades relacionadas à harmonia,
problemas relacionados à pulsação e aspectos rítmicos e dificuldade de localização no
teclado, todas da CAT. 01.
De posse de todos os dados coletados – os depoimentos e as gravações das
leituras – e suas análises, podemos estabelecer algumas comparações e inter-‐relações.
Nos depoimentos, os problemas mais citados foram relativos às mudanças de
padrões e da harmonia, o que foi confirmado pelos testes, pois grande número de
falhas na leitura ocorreu em locais onde havia mudanças na harmonia, através de
notas alteradas, cromatizações ou acordes fora do campo harmônico, fazendo com
que a leitura ficasse atrasada e não conseguissem tocar todas as notas do acorde ou
mesmo nenhuma delas.
Encontramos também algumas citações sobre aspectos rítmicos e percebemos
problemas sobre isso especificamente na quarta peça (Vieille Chanson), em que os
sujeitos apresentaram falhas na subdivisão e contagem de tempo, confundindo a
duração das figuras rítmicas. Outro problema que apareceu nas gravações foi a
correção de notas ou acordes errados, o que está diretamente relacionado à
dificuldade de leitura propriamente dita e também de localização no teclado.
Por outro lado, não podemos deixar de ressaltar as saídas criativas encontradas
por alguns sujeitos frente a situações complicadas: mesmo tocando notas erradas,
alguns deles não se importaram em corrigir e simplesmente continuaram tocando
(podem até não ter percebido que tocaram notas erradas); de outra forma, vendo que
poderiam tocar notas erradas por não terem tido tempo de identificá-‐las, preferiram
não tocá-‐las; e um último caso foi a mudança de oitava de um trecho da mão direita
para evitar um grande deslocamento desta mão, evitando assim perder a fluência da
pulsação.
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A proposta inicial dos testes de leitura à primeira-‐vista aplicados neste trabalho
era uma comparação entre o desempenho dos entrevistados antes de receberem as
informações sobre técnicas de leitura e depois delas. Não esperávamos que fossem
apresentar uma significativa melhoria apenas pela consciência das orientações, nosso
intuito era investigar o efeito delas no comportamento dos sujeitos e, a partir daí,
tirarmos nossas conclusões.
Os depoimentos nos trazem algumas revelações importantes a esse respeito.
Para três dos cinco entrevistados, o tema das orientações não era novidade: eles já
pensavam sobre o assunto. SB disse que ajudou a lembrar de coisas importantes, SC e
SD relatam que os assuntos da conversa não eram novidade para eles. A primeira
conclusão que se poderia chegar, então, é de que não houve diferença nenhuma entre
o antes e o depois, de que o fato deles conhecerem algumas técnicas de leitura não
interfere em nada no seu resultado. Entretanto, SA e SE acreditam na necessidade de
treinamento dessas técnicas passadas na conversa entre os testes, não apenas no seu
conhecimento: “eu tenho que estudar, que treinar. Então, ainda não teve diferença as
informações que você deu, preciso de um tempo pra treinar, pra digerir isso” (SE).
Acreditamos, com base neste trabalho que, assim como estudantes de piano
recebem constantemente orientações sobre técnica pianística, sobre questões
relativas a repertório, estilo e interpretação, também deveriam receber um
treinamento orientado sobre leitura à primeira-‐vista, especialmente porque não
sabem exatamente qual será sua área de atuação profissional, necessitando, portanto,
receber uma formação o mais abrangente possível.
Laboratório experimental de leitura e acompanhamento
Com o intuito de auxiliar os jovens estudantes e procurar uma maneira de
preencher esta lacuna em sua formação, elaboramos um projeto experimental: um
laboratório de leitura e acompanhamento. Este laboratório consistiu de uma série de
encontros-‐aula, em que foram trabalhadas algumas das principais técnicas de leitura à
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primeira-‐vista, em situações de música feita em conjunto com um cantor: leitura
antecipada, leitura seletiva, reconhecimento de padrões, manutenção do pulso e não
correção de notas erradas.
Contamos com seis voluntários, estudantes de graduação em piano, que se
dispuseram a um trabalho de longo prazo, feito de forma individual, com a frequência
de um encontro-‐aula por semana. A ordem definida para descrição de cada estudante
foi a cronológica, portanto, SA foi o primeiro a iniciar o trabalho e SF o último. Eles
tiveram de 12 a 18 encontros-‐aula, de acordo com a disponibilidade de agenda de cada
um.
A primeira experiência de SA fazendo música em conjunto foi logo no início da
graduação. Sobre isso ele diz: “minha leitura era muito ruim, bem defasada, eu não
tinha esse hábito de leitura. Tinha que estudar bastante antes do primeiro ensaio. Não
dava nem pra pensar na possibilidade de ler algo à primeira-‐vista com um cantor, a
não ser que fosse uma coisa bem fácil”.
SB começou cedo, pois desde adolescente acompanhava o Coro da igreja em
que frequentava e admite que isso ajudou: “A experiência que tive antes, com o coral,
me ajudou bastante, com certeza. Eu não tinha consciência de que isso ajudaria mas,
quando cheguei aqui, vi que os outros não conseguiam ler nada. Essa experiência
anterior me ajudou muito a resolver problemas do tipo ‘ah tem que fazer a linha do
baixo, tem que fazer a melodia’, essas coisas que eu tinha que fazer de qualquer jeito”.
SC teve algumas experiências antes de entrar na faculdade e lembra da
primeira delas com destaque: “Na primeira vez que eu acompanhei uma pessoa eu
gostei bastante, não sei se chegou a marcar de fato, mas eu me lembro de ter gostado
de ter feito aquilo, foi muito prazeroso”. Isto fez com que se abrisse para o trabalho de
forma mais intensa, pois percebeu que o piano era um instrumento muito requisitado.
Ao longo de seis semestres de curso, já acompanhou diversos cantores, apresentou-‐se
em recitais e participou de um intensivo de férias, em que pode perceber um avanço
significativo em sua leitura e na maneira de acompanhar: “Hoje eu consigo sentir o
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ritmo interno dos cantores muito mais claramente, minha leitura melhorou bastante,
talvez o jeito com que eu lido com os cantores, não necessariamente durante a
música, mas corrigir ritmo, notas, perguntar da poesia, da tradução, auxiliar no
aquecimento, esse tipo de conhecimento mais amplo da área da correpetição
aumentou bastante”.
A primeira experiência de SD em tocar com outra pessoa foi, provavelmente, a
mesma de muitos estudantes: piano a quatro mãos com seu professor. Quando entrou
na graduação e teve sua primeira vez com um cantor, achou a situação conflitante: “A
experiência foi estranha, eu tinha certa facilidade pra acompanhar, eu ouvia bem o que
ele estava cantando. Mas eu tinha dificuldade pra tocar as notas porque, como a
minha metodologia sempre foi de ler e decorar e eu estava estudando meu repertório
solo, não tinha tempo de decorar aquela música”.
SE teve o privilégio de ter alguém com quem tocar a quatro mãos em casa, pois
sua mãe havia estudado piano. Depois, no conservatório, teve a oportunidade de tocar
com a bandinha de musicalização e percebeu a importância do ensaio: “estudando
sozinho em casa não é o suficiente, você precisa do ensaio; mesmo que sua parte esteja
ótima, tocando com o grupo, é completamente diferente”. Lembra com decepção de
suas primeiras experiências na universidade tocando com colegas: “você vê que está
tendo um pouco de dificuldade, não sabe muito bem o que fazer na hora, nem que seja
pra soar mais ou menos bem, só pra fazer a peça... pra não parar no meio da peça. Não
foi satisfatório”.
SF admite que teve pouca experiência em acompanhamento, menos ainda em
leitura à primeira-‐vista: “a parte da leitura, enquanto eu tocava, não aconteceu nunca.
Até agora me recuso. Se alguém chegar e me disser ‘eu tenho uma coisa pra cantar
agora à tarde’, eu digo não. Vou estragar a peça dele e a minha parte também”. Ele
sempre pede a partitura com antecedência de, no mínimo, uma semana, para poder
estudar a peça até praticamente decorá-‐la. Usa a partitura, durante o ensaio, apenas
como guia. E reclama que não tem critérios para ouvir a outra pessoa, que é o
acompanhar de fato.
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O primeiro encontro tratou de uma avaliação do nível de desempenho na
leitura de cada participante. Na etapa de preparação deste projeto, analisamos grande
quantidade de peças do repertório para canto e piano, desde exercícios vocais de
Vacai e Panofka, por exemplo, árias antigas, canções italianas de Bellini e Donizetti, ,
canções francesas de Fauré, Bizet, Berlioz, Duparc, R. Hahn, consideráveis exemplos de
lied de Schubert, Schumann, Brahms, Beethoven, Mozart, canções em língua inglesa
de Britten, Quilter, Vaughan Williams, Ives, sem deixar de lado o repertório brasileiro
de Carlos Gomes, Mignone, Nepomuceno, W. Henrique, Villa-‐Lobos e L. Fernandez.
Utilizamos também do vasto repertório operístico para trabalhar com as reduções de
orquestra e com a questão estilística da ópera italiana, francesa e de Mozart.
O objetivo principal era oferecer aos alunos o maior número possível de
vivências em repertório para canto e piano, para que se tornassem capazes de fazer
comparações, perceber semelhanças, padrões e contrastes entre estilos e/ou autores.
Mais do que decifragem de notas em si, o trabalho almejava o amadurecimento
musical dos estudantes no trabalho de música em conjunto. Para tanto, em todas as
peças, eles eram estimulados a não apenas ler a parte do piano, mas a acompanhar a
linha do canto, pois simulávamos a participação de um cantor em nossos encontros.
No final do projeto, aplicamos um questionário semiestruturado aos seis
participantes, contendo as seguintes questões:
1. Fale, de forma espontânea, sobre o trabalho desenvolvido durante este
projeto.
2. O que significou para você participar deste laboratório de leitura e
acompanhamento? Trouxe mudanças? Em que sentido?
3. Analise o projeto em termos de aspectos positivos e negativos.
4. Avalie o repertório utilizado, em termos de facilidades e dificuldades.
5. Fale sobre suas experiências anteriores em acompanhamento.
As entrevistas foram registradas em áudio e, posteriormente, analisadas,
editadas e organizadas por semelhança temática. Todo o processo dos encontros-‐aula
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foi registrado num diário, que contém a relação de todas as peças aplicadas aos
alunos, como também observações que o pesquisador julgou necessário serem
anotadas.
Alguns exemplos de peças trabalhadas:
Fig. 02: Monteverdi, Lasciatemi morire ( compassos 01 a 04).
Nesta peça (fig. 02), a presença constante de blocos de acordes numa
tonalidade com quatro bemóis e vários acidentes ocorrentes torna a leitura difícil pela
necessidade de identificação de uma série de informações, ainda que o andamento
seja tranquilo. Portanto, SF, deparando com esta obra em seu quarto encontro-‐aula,
foi orientado a guiar-‐se pela linha dos baixos, lendo de baixo para cima e não ao
contrário, como é de costume, e tocando, da mão direita, aquilo que conseguisse
decifrar e coordenar, como ensina BILLIER (1990). O resultado foi positivo e a
observação encontrada no diário é: “está aprendendo a tocar pouco, porém de forma
correta, sem perder o pulso”.
Fig. 03: Durante, Vergin, tutto amor (compassos 03 a 05).
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No exemplo acima (fig. 03), encontramos outro tipo de dificuldade: a variedade
dos acordes na mão direita e sua insistente repetição na subdivisão ternária do pulso.
Sobre isto, SD, no sexto encontro, disse que conseguia reconhecer os acordes,
entretanto não tinha certeza da posição da mão no teclado para fazer as mudanças e
encadeamentos. Por outro lado, admitiu que “o trabalho da leitura aqui no curso tem
me ajudado a desenvolver esta noção de posição”.
Fig. 04: Verdi, La Zingara, compassos 13 a 18.
No excerto acima (fig. 04), encontramos uma dificuldade muito comum no
repertório, que é a parte do acompanhamento dobrando a linha do canto na mão
direita, enquanto a mão esquerda dobra em oitavas a linha do baixo. Como esta obra
tem um andamento mais movido, geralmente no compasso 15 há uma tendência do
pianista puxar o andamento para trás, na tentativa de tocar tudo o que está escrito.
SA, em seu 11º encontro, tentou fazer isso, mas logo percebeu que não conseguiria e,
ao longo da peça, foi encontrando uma saída para tocar o essencial sem perder a
fluência. Há duas possibilidades: simplificar a mão esquerda, tirando as oitavas para
não se perder com os saltos e, se necessário, mudar a inversão dos acordes,
aproximando-‐os da nota do baixo, ou não dobrar a linha do canto e usar a mão direita
para tocar os acordes que estão escritos na mão esquerda.
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Houve uma insistência muito grande de nossa parte para que os alunos
desenvolvessem uma nova mentalidade, a de selecionar as informações da partitura,
num processo quase instantâneo de análise e autopercepção de suas capacidades, ou
seja, olhando pela primeira vez para uma partitura, o pianista deve perceber o que é
capaz de tocar, segundo a agilidade de sua leitura e suas condições motoras, deixando
de fora aquilo que não for capaz. SC, em seu 2º encontro, assumiu que “ler tudo o que
está escrito é mais fácil do que selecionar informações da partitura”. Porém, quando
tentou ler todas as notas da peça abaixo (fig. 05), não obteve resultado satisfatório,
perdendo o pulso e a fluência e, portanto, deixando de acompanhar adequadamente o
cantor.
Fig. 05: Puccini, Quando m’em vo, La Boheme (compassos 16 a 18).
O trecho acima exemplifica o que acontece no restante da ária: oitavas na mão
esquerda, mão direita dobrando a linha do canto praticamente o tempo todo, e
frequentes oscilações no andamento, como a sinalizada do comp. 16 para o 17.
No exemplo abaixo (fig. 06), de andamento movido e numerosos acidentes
ocorrentes, SB soube excluir elementos sobressalentes como, por exemplo, toda linha
superior da mão direita do piano que dobra com o canto, e conseguiu prestar atenção
ao que o cantor faria, mantendo-‐se junto a ele, com fluência e equilíbrio.
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Fig. 06: Charles Ives, The greatest man (compassos 13 a 15).
De posse dos dados coletados e registrados em áudio e no diário de classe,
pudemos proceder a análise temática dos discursos, inicialmente de forma individual.
Para conclusão deste processo, os temas encontrados em cada discurso foram
comparados e organizados por sua semelhança, formando categorias de discurso.
Veja abaixo uma síntese do que encontramos nos depoimentos dos seis
participantes do laboratório de leitura e acompanhamento:
Fig. 07: Quadro das categorias temáticas dos depoimentos.
Com relação aos aspectos positivos, a maior parte deles versa sobre mudanças
ocorridas no comportamento da leitura. A maioria dos participantes possuía o hábito
de levar a peça para casa e estudá-‐la até sua quase memorização antes do primeiro
ensaio. Eles afirmam que a experiência adquirida no laboratório trouxe autoconfiança,
por saberem como se portar numa situação de leitura à primeira-‐vista. O fato de
CAT. 01: Aspectos positivos CAT. 02: Aspectos negativos
CAT. 03: Análise do repertório utilizado
Consciência de algum tipo de mudança relacionada à leitura
Duração insuficiente do laboratório
Tipo de repertório mais fácil
Conhecimento das técnicas de leitura
Necessidade de treinamento em leitura na graduação
Tipo de repertório mais difícil
Quantidade e variedade do repertório utilizado
Dificuldades com aspectos específicos da leitura
Outros aspectos Outros aspectos
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conhecerem e praticarem algumas das principais técnicas utilizadas em leitura
também reforça este quadro de autoconfiança; todos citam a leitura seletiva e/ou a
leitura antecipada em seus discursos como algo que tranquiliza e mostra que há saídas
técnicas e musicais para resolver dificuldades à primeira-‐vista. SE admite algo muito
comum em quem ainda não tem experiência nesse tipo de situação: “a gente se sente
mal por saber que tocamos coisa muito mais difícil do que aquilo que estamos lendo e
queremos tocar tudo; sabemos que, no fundo, é possível, só que nem sempre na
primeira vez. E não devemos ter medo”.
Outro aspecto comentado foi a questão da variedade de repertório oferecida a
eles ao longo dos encontros, justamente com o intuito de ampliar a gama de
experiências e, portanto, propiciar amadurecimento musical. Veja o que SC diz sobre
isso: “o contato, num ambiente mais seguro, com uma quantidade muito grande de
repertório, ter a capacidade de ler isso à primeira-‐vista, acho que foi um dos melhores
aspectos desse curso todo”. Apesar disso, alguns consideraram o tempo insuficiente
para conhecer uma quantidade ainda maior de obras: “eu acho que este trabalho
poderia durar mais sim, não exatamente para explicar coisas, mas para praticar
mesmo. Mais repertório, mais domínio” (SE).
Falaram também sobre a carência de um tipo de curso como este na
graduação. SA resume afirmando que “não faz parte da grade curricular da faculdade
uma coisa voltada para o desenvolvimento da leitura à primeira-‐vista, ou você sabe ler
bem ou não sabe. O que é uma coisa horrível porque, depois que você sai da
universidade, você vai precisar disso para sua vida profissional”. Mas SA vai mais a
fundo na questão da formação, ele percebe um fenômeno que é extremamente
corriqueiro entre os estudantes e que exige uma imediata solução: o distanciamento
entre o nível de desempenho motor e o de leitura. SD, por exemplo, tem em seu
repertório de solista peças como o “Estudo op. 10 n. 12”, de Chopin, “Prelúdios e
Fugas” de J. S. Bach, o “Impromptu op. 90 n. 4”, de Schubert. Entretanto, apresentou
dificuldades para ler “Abendempfindung”, de Mozart, que, tecnicamente, coloca-‐se
muito mais fácil que qualquer estudo de Chopin. Veja a fig. 08 abaixo:
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Fig. 08: Mozart, Abendempfindung K. 523.
De andamento tranquilo, textura simples, figuração rítmica bastante estável e
harmonicamente previsível, SD, SE e SF encontraram dificuldade em lê-‐la à primeira-‐
vista, principalmente na parte harmônica. BILLIER (1990) ensina que, em peças como
esta, deve-‐se identificar o acorde como um todo, em vez de nota por nota.
Por falar em dificuldades na leitura, foram elencadas várias delas, encontradas
pelos participantes ao longo dos encontros: necessidade de mais treinamento de
harmonia no teclado (SE), insegurança com relação à topografia do teclado (SF),
dificuldade no reconhecimento de padrões (SF), ouvido interno deveria auxiliar na
leitura (SA), insegurança com partes solistas do piano (SF), necessidade de criação de
exercícios de leitura (SC) ou de um método, uma sistematização do processo (SF).
Os participantes foram solicitados a avaliar o repertório utilizado no
laboratório, com relação a aspectos estruturais das peças e sua relação com uma
maior ou menor facilidade de leitura e execução. Eles consideraram fáceis peças de
andamento lento e harmonicamente menos densas (SD), de textura simples (SD) e sem
mudanças na figuração rítmica (SE e SF), com predominância de graus conjuntos (SF),
com acordes em posição fechada e com poucas inversões (SF), peças do período
clássico, pela harmonia mais previsível (SA), Mozart e Schubert como autores mais
fáceis (SB e SC).
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Por outro lado, consideraram difíceis peças com variações rítmicas e questões
motoras (SE), peças brasileiras e do período romântico, pela harmonia mais complexa
(SA e SD), árias de ópera, por se tratar de redução de orquestra e pela falta de
experiência com este estilo (SA e SB).
E, como aspectos finais, elogiaram a abordagem realística das situações de
leitura, pela execução da linha do canto simulando a participação de um cantor: “outra
coisa boa que senti foi que você sabia bastante a parte do canto, você sabia o que o
cantor faria. Então, você foi o cantor que a gente teria aqui e isso foi legal” (SB). Ainda
neste aspecto, SB também reforça a necessidade de conhecimento e experiência de
quem ensina: “o que eu acho mais importante, vindo de quem ensina, é a experiência,
de saber direcionar o estudante naquilo que ele vai exercer na correpetição”.
SC ressalta dois aspectos envolvidos com a falta de valorização do profissional
da colaboração pianística: “eu acho muito triste como as pessoas não tratam a
correpetição como uma matéria regular”. E enobrece o contato musical com o
universo do canto, afirmando que “se você toca com um cantor, você entende o
conceito de música como um idioma muito melhor, você absorve isso e se torna um
músico muito melhor”.
Para SF, que se considera um iniciante em leitura à primeira-‐vista (“para não
falar de nível de leitura muito baixo, é melhor falar que não tenho nível ainda”), este
trabalho significou um dos pilares para seu desenvolvimento musical: “eu, como aluno
do curso de piano, considero o que você fez como a segunda aula mais importante do
curso. Música de câmara, por exemplo, é trabalho em conjunto, mas até para aplicar
nisso, para os primeiros ensaios, seria muito bom ter uma boa leitura. Este trabalho
construiu uma ponte para fazer o resto com o piano”.
Concluímos este trabalho cientes de que atingimos nosso objetivo: mostramos
que existe um caminho para se desenvolver a leitura à primeira-‐vista, ao mesmo
tempo em que construímos as bases para a formação de pianistas aptos a fazer música
em conjunto com outros instrumentistas ou cantores com qualidade e eficiência.
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Certamente, esta não é a única maneira. Outros meios poderão existir, criados a partir
da experiência de quem ensina. O importante é que estejam baseados em conceitos e
técnicas reconhecidamente comprovados pelos estudiosos da área e que promovam o
crescimento musical e artístico dos alunos.
Referências bibliográficas
BILLIER, Sylvainne. Le déchiffrage ou l’art de la première interprétation. Paris: Alphonse Leduc & Cie, 1990. THOMPSON, Sam, LEHMANN, Andreas C. Strategies of sight-‐reading and improvising music. In: WILLIAMON, Aaron (ed.) Musical excellence: strategies and techniques to enhance performance. New York: Oxford University Press, 2007. pp 143 159.
Currículo Sumário do autor
José Francisco da Costa é aluno do programa de Doutorado em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tendo como orientador o Prof. Dr. Ricardo Goldemberg e como co-‐orientador o Prof. Dr. Ricardo Ballestero (Usp). Tem atuado como pianista colaborador há mais de quinze anos, especialmente em parceria com cantores líricos, participando de inúmeros recitais, concursos e festivais de música.
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Leituras intersemióticas: Poesia, Música e Voz no Maracatu de Marlos Nobre e Ascenso Ferreira.
Lúcia de Fátima Ramos Vasconcelos – UNICAMP
Adriana Giarola Kayama -‐ UNICAMP
Resumo: O objetivo dessa pesquisa é a partir da perspectiva intersemiótica da melopoética, construir uma análise voltada à performance, investigando as possíveis interações entre a poesia de Ascenso Ferreira e a música de Marlos Nobre na canção Maracatu do ciclo Três Canções op 9. Observar a métrica, o ritmo, o colorido da rima e dos fonemas, e como eles se comunicam com a voz e o discurso musical da canção.
Marlos Nobre e Ascenso Ferreira
Compositor de grande representatividade no cenário brasileiro, Marlos nobre é
parte integrante da denominada segunda geração pós-‐nacionalista, que nas palavras
de Mariz (1985), é caracterizada pela superação do antagonismo entre os grupos
nacionalista e de vanguarda. O contato com a música contemporânea internacional
lhes permite um enfoque mais maduro na questão do aproveitamento do folclore, e
uma maior tolerância estética e menos rigidez partidária.
Segundo Neves (2007), a influência de Mário de Andrade sobre o seu
pensamento é clara e confessa, mas não ultrapassa o desejo de fazer obra que fale
diretamente ao povo, pela utilização de elementos do vocabulário musical popular,
sobretudo estruturas rítmicas.
Para o autor sua obra pode ser dividida em duas grandes fases: inicialmente, na
época dos estudos com Camargo Guarnieri, um nacionalismo enriquecido com
processos composicionais mais modernos; depois uma postura mais experimental,
com adoção de elementos da técnica serial e da aleatoriedade, sem perder, todavia, as
raízes nacionais de sua música.
A obra em análise faz parte do ciclo ‘Três Canções’, com texto de Ascenso
Ferreira, poeta também pernambucano.
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Segundo Variz (1985), com a obra Três Canções (Maracatu, Teu Nome e Boca de Forno) em 1962, com texto de Ascenso Ferreira e Manuel Bandeira, Marlos Nobre ganha seu segundo concurso que no entanto só foram estreadas em 1973. (VARIZ, 1985. p. 290)
Campos e Galindo (2007), à respeito da obra de Ascenso Ferreira descreve:
sua obra era rica pela musicalidade, fortalecida pela liberdade de versificação, sem recuar a rima; rítmica como a linguagem do povo ou, como diria Manuel Bandeira no prefácio do livro Catimbó, do reverenciado poeta: "quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas.
O objetivo dessa pesquisa é fazer uma análise segundo à ótica melopoética,
investigando as possíveis interações entre a poesia de Ascenso Ferreira e a música de
Marlos Nobre. A métrica, o ritmo, o colorido da rima e dos fonemas, e como eles se
comunicam com o discurso musical da canção.
Melopoética
Sobre a origem do estudo da melopoética, Solange Ribeiro de Oliveira elucida:
A melopoética é um ramo dos estudos comparados que, numa abordagem intersemiótica, investiga as possíveis interações entre a literatura e a música, as chamadas homologias. O criador da designação foi o professor e crítico húngaro, radicado nos Estados Unidos, Steven Paul Scher. O termo é formado a partir das palavras melos (= canto) +poética. (OLIVEIRA, 2003, p. 43)
Fala da influência da musica sobre a literatura, discute-‐se o efeito encantatório
e a atração exercida por certas palavras, cuja função no texto e, não raro, puramente
musical. Menciona os valores plásticos e musicais dos fonemas, creditando a efeitos
melódicos, a peculiar sensação de surpresa criada pela boa rima.
Em resumo, Oliveira (2003, p.48) conclui que a melopoética poderia se dividir
em três níveis: o da música e literatura, o da literatura na música e da música verbal.
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Numa primeira instância – a da “música e literatura” investiga criações nas quais texto
e música coexistem, como em uma canção ou ópera.
Maracatu de Marlos Nobre:
Esta é uma peça de caráter rítmico em compasso binário simples, explorando
toda a extensão do piano, mas, de uma maneira especial, a região grave do
instrumento. A estrutura formal do maracatu é: A-‐B-‐C-‐ A-‐B-‐C , e uma coda.
É interessante perceber a intenção do compositor em aproximar o ritmo, os
registros e os intervalos melódicos de sua peça com os ritmos, registros e intervalos
dos instrumentos mais característicos do Maracatu folclórico, o ganzá ou mineiro e o
tarol ou caixa. Entretanto a obra apresenta características dos dois estilos de
maracatus. Ritmicamente, enquanto o piano toca uma seqüencia de semicolcheias
com acentuações que remetem ao maracatu rural, a voz desenha a sonoridade do
maracatu de baque virado.
Para ilustrar o desenho do piano, percebem-‐se as semelhanças entre este e a
instrumentação do maracatu rural no exemplo abaixo:
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• 157 •
O poema é escrito seguindo uma métrica ternária formada por Pés anfíbracos
‘U – U’.
Zabumbas de bombos,
U / U U / U
Estouros de bombas,
U / U U / U
Batuques de_ingonos,
U / U U / U
Cantigas de banzo,
U / U U / U
Rangir de ganzás
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U / U U /(...)
Maracatu, de Ascenso Ferreira, descreve com exatidão o impressionante
espetáculo que é o maracatu rural. Trazido ao Brasil pelos escravos, o maracatu ainda
hoje traz lamentos e saudades de Angola e referências aos animais do continente
africano, como leões e elefantes.
Métrica que foi perfeitamente encaixada por Marlos Nobre no compasso
binário da música com uma estrutura rítmica que faz alusão às batidas de surdo e caixa
do maracatu de baque virado, conforme podemos observar à seguir:
Além do aspecto rítmico, a sonoridade das palavras também possui um caráter
muito particular. Na primeira estrofe, o modo de articulação72 das sílabas longas
72 O modo de articulação se refere a como a língua, os lábios e outros orgãos estão envolvidos durante a pronúncia de algum som.
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coincide com uma consoante plosiva (‘b’, ‘t’ ou ‘g’), na qual, durante sua pronúncia, o
ar expirado é bloqueado por um obstáculo bucal, que interrompe momentaneamente
a sua corrente, e que acaba "explodindo" quando aberto. As vogais que seguem essas
consoantes, em sua maioria são nasais, o que confere uma sonoridade mais
característica ainda, próxima do som da percussão e do sotaque de Pernambuco.
Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás
Essas articulações na música são exploradas através de acentos na linha vocal.
Marlos Nobre explora a sonoridade do poema, destacando uma dinâmica forte e
células rítmicas e intervalos que lembram os instrumentos que a letra se refere.
Quando se refere às cantigas de banzo73, utiliza-‐se da consoante oclusiva ‘b’
para deslocar ritmicamente a palavra e acentuá-‐la. Em seguida, Marlos nobre prepara
o lamento ‘Onde estás Loanda74?’ com um portamento ascendente, repetindo essa
frase diversas vezes, com diferentes intenções dramáticas, bem próximas da fala.
73 O Banzo era um fenômeno que acometia muitos dos escravos africanos, que embora o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de 1875, de Joaquim de Macedo Soares, tenha a seguinte definição: “banzar: estar pensativo sobre qualquer caso; triste sem saber de quê; sofrer do spleen dos ingleses; tristeza e apatia simultânea; sofrer de nostalgia, como os negros da Costa quando vinham para cá, e ainda depois de cá estarem”; sabe-‐se que essa tristeza os levava a cometer muitos suicídios. 74 Derivação de Luanda, capital da Angola.
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Na segunda estrofe, o padrão métrico e rítmico se mantém com poucas
variações. A linha vocal é escrita numa região mais aguda, e a dinâmica ganha uma
atmosfera em mp. Nessa estrofe o poema descreve os objetos que o ‘Eu lírico’ passa a
conhecer aqui no Brasil. Ascenso Ferreira explora aí as virtualidades fônicas da
terminação ‘entes’, que aparecem no final de cada verso, em conjunto com o uso da
aliteração ‘s’ presente internamente na estrofe.
Stein e Spilman (1996) definem aliteração como um recurso poético que
explora o desenho das consoantes formando rimas internas. Seu efeito é de gerar
ligações entre as palavras através da reiteração do som.
No poema, essa sonoridade remete ao som do ganzá, que de uma forma sutil
está presente na poesia inteira.
Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
Loanda, aonde estás
Loanda? ?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
Loanda, aonde estás
Loanda?
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A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
Loanda, aonde estou,
Loanda?
A terceira estrofe, que descreve o caminho das águas e, portanto do ‘Eu Lírico’
que veio da África para o Brasil, é escrita musicalmente da mesma forma que a
primeira. Ascenso explora uma rima final que propicia uma atmosfera sombria à
poesia, em quatro versos seguidos com um colorido que se repete entre os fonemas
‘a’ ‘o’ ‘i’ ‘U’.
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
A música segue-‐se do refrão, onde o ‘Eu lírico’ dessa vez indaga ‘ Quem nunca
sonhou?’ seguida do lamento ‘Onde estou, Loanda?’
A partir dessa análise, podemos verificar a musicalidade inerente ao poema e
como o compositor pode compreendê-‐la e criar o seu discurso musical. Ao intérprete,
a leitura da canção enquanto fenômeno intersemiótico, assim como a percepção da
musicalidade implícita nos versos possibilita uma compreensão global da performance.
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• 162 •
Referências Bibliográficas:
CAMPOS e GALINDO. Panorâmica do conto em Pernambuco. São Paulo: Escrituras editora, 2007. COOPER, G. and MEYER, L. The Rhythmic Structure of Music. Chicago: U of Chicago P, 1960. GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. São Paulo: Ática, 2005 FERREIRA, Ascenso. Poemas de Ascenso Ferreira. Recife: Nordestal, 1981. GIFFONI, Maria Amália Corrêa. Danças folclóricas brasileiras e suas aplicações educativas . 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964. NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1984 OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e música. São Paulo, Perspectiva, 2002. POUND, Ezra. ABC da poesia. São Paulo: Moderna, 1991. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972. STEIN, Deborah. & SPILLMAN, Robert. Poetry into Song: Performance and Analysis of Lieder. Nova Iorque: Oxford University, 1996.
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Currículo sumários dos autores
Lúcia de Fátima Ramos Vasconcelos -‐ Mestranda em Música na área de Práticas Interpretativas em Canto Erudito na UNICAMP sob a orientação da Professora Doutora Adriana Giarola Kayama.
Adriana Giarola Kayama -‐ Doutora em Canto Pela University of Washington, EUA. Professora Assistente na UNICAMP atuando nas áreas de canto, dicção, música de câmara, técnica vocal e fisiologia da voz.
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O Pianismo na Seresta no7, Cantiga do Viúvo, de Heitor Villa Lobos
Prof.Dr. Achille Picchi
Resumo
Este é o resumo de uma comunicação que trata especialmente de uma maneira
original de encarar o pianismo na canção de câmera, com finalidades tanto de analise
quanto interpretativas especificas.
Será dividida em: introdução, fundamentação teórica e contextual, análise e
sugestões interpretativas.Na introdução serão referidos os objetivos do estudo, bem
como sua justificativa, processos de condução em direção aos objetivos e outras
referências contextuais e teóricas pertinentes ao estudo.
Na fundamentação contextual, rapidamente irá se situar uma definição de
canção de câmera como sendo especificamente para canto e piano e suas razões. Em
seguida uma situação das serestas enquanto gênero e seu uso para o ciclo de Villa-‐
Lobos, incluindo a própria visão do compositor. A posição das Serestas na obra vocal
de Villa-‐Lobos deverá ser referida, dando a devida importância do ciclo para sua
colocação, bem como sua situação nas obras vocais brasileiras. Uma breve descrição
da Seresta n.7 será feita.
Na fundamentação teórica, serão referidas as fontes de analise das peças, bem
como de estudo das Serestas e pertinentes ao estudo da canção de câmera,
detalhando-‐se seu uso e decorrência. Em seguida será detalhada a metodologia de
análise em seus passos e tópicos, envolvendo a análise musical, a análise texto-‐música
e o pianismo.
Em seguida o estudo prosseguirá por uma análise detalhada seguindo os
tópicos apresentados na metodologia:
-‐ uma análise musical da Seresta n.7, envolvendo descrição e
amostragem do material, análise da estrutura contendo contorno melódico – com a
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• 165 •
realização do gráfico de vozes condutores baseado em adaptação de Felix Salzer -‐,
condução harmônica e ritmo, e análise da textura;
-‐ uma análise texto-‐música, contendo o poema e sua descrição de
contexto, uma análise dos eixos poéticos, contendo estrutura rítmica, estrutura
métrica, estrutura estrófica e estrutura sônica, tabelas situalizadas e comparativas, e
uma análise relacional eixos poéticos e canção;
-‐ uma análise do pianismo, conceito a ser desenvolvido no corpo da
comunicação, envolvendo um conceito original de escrita e escritura, seminal para a
compreensão do processo interpretativo do papel do piano na canção de câmera.
Nas sugestões de execução interpretativa tratar-‐se-‐á de aplicar o conhecimento
e descobertas analíticas ao conceito do pianismo, efetuado e estudado na
comunicação, de forma a sustentar escolhas interpretativas e instrumentais em
relação ao conjunto voz e piano na Seresta n.7 de Heitor Villa-‐Lobos.
Por fim considerações finais que envolverão questões ainda remanescentes e
outras visadas dos procedimentos e investigações apresentados.
Referências Bibliográficas
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• 166 •
KOSTKA, Stefan. Materials and Techniques of Twentieth Century Music. 2nd ed. Prentice Hall. New Jersey, USA:1999. PIRES, Orlando. Manual de Teoria e Técnica Literária. 2ª edição revista e ampliada. Presença. Rio de Janeiro, RJ: 1985. TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Itatiaia. Belo Horizonte, MG: 2000. SALZER, Felix. Structural Hearing. Tonal Coherence in Music. Dover. New York, NY: 1962.
Currículo sumário do autor
Achille Picchi, pianista, compositor, professor, pesquisador, nascido em São Paulo.
Pianista solista e camerista, de carreira nacional e internacional, detentor de prêmios nacionais e internacionais, grande número de gravações, especialmente música de câmera, tanto vocal como instrumental, incluindo estreias nacionais.
Tem extenso catálogo de obras, com numerosos prêmios no Brasil e no exterior. Dedica-‐se com especial atenção à canção de câmera, obras que já possuem gravações extensas e muitas execuções tanto nacionais como internacionais.
Professor universitário, tendo sido por muitos anos professor da UNICAMP, em teoria e composição, incluindo História da Música Brasileira, de que foi o criador e implantador. Atualmente professor de Composição e Análise Musical no Instituto de Artes da UNESP. Mestrado na USP e Doutorado na UNICAMP.
Como pesquisador foi responsável por vários projetos de pesquisa de música nacional, destacando-‐se a restauração e edição da ópera Joanna de Flandres, de Carlos Gomes e a publicação com revisão musicológica das Canções de Camera de Carlos Gomes. Autor de numerosos artigos e estudos em musicologia e análise da musica nacional.
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Pedagogia Vocal Moderna e ciências da voz: Interação e conceitos comuns
Joana Mariz Resumo: Por meio de revisão e análise da literatura, o presente trabalho pretende estabelecer conexões entre as recentes descobertas científicas no campo da voz cantada e suas possíveis aplicações na prática cotidiana do professor de canto e do cantor. Nos últimos 50 anos, a abordagem multidisciplinar da voz possibilitou uma série de pesquisas integrando a área da fonética, da acústica, da fisiologia e das artes, com a participação de cientistas e cantores. Tais pesquisas deram ensejo ao que se tem denominado como pedagogia vocal moderna, disciplina que tem por objeto a revisão do conhecimento tradicional encontrado em tratados e métodos de canto e a adaptação dos conhecimentos gerados pelas ciências da voz para a prática do professor. No Brasil, a pedagogia vocal ainda encontra muito pouco espaço de discussão, embora se observe um recente crescimento no número de trabalhos acadêmicos dedicados a ela e uma mobilização cada vez maior pela troca de informações entre profissionais de distintas áreas de abordagem da voz cantada. Pretendemos expor de maneira sucinta e acessível alguns dos conceitos da ciência vocal que mais tem influenciado a pedagogia vocal moderna e o campo do treinamento vocal em geral. Os conceitos discutidos são o modelo fonte-‐filtro, tal como elaborado por Gunnar Fant, a ressonância vocal segundo as premissas da física acústica, o papel da musculatura intrínseca da laringe nos registros vocais, a descrição fonética da qualidade vocal, segundo John Laver, a importância do Quociente de Fechamento Glótico (QFG) para a qualidade vocal, segundo o referencial de Johan Sundberg e Donald Miller e o mecanismo de funcionamento dos exercícios de trato vocal semi-‐ocluído, segundo a teoria de produção vocal de Ingo Titze. Abstract: Through reviewing and analysing the scientific and pedagogical literature on singing, here we investigate the influence that the recent findings in the voice science field have exerted over the modern vocal pedagogy of classical singing. Research on the singing voice has grown significantly in the last 50 years, especially boosted by the development of special technology and equipment, and by a multidisciplinary approach, involving the phonetic, acoustic, artistic and physiological areas and their professionals. The active participation of many voice pedagogues in those works either as subjects or as researchers have given rise to a new trend in classical vocal pedagogy, that here we refer to as “modern vocal pedagogy”. This trend has eventually turned into a new discipline, dedicated to the reviewing of traditional teaching concepts and to adapting the scientific facts to the everyday work of teachers and students in the singing studios. Although in Brazil such discipline does not exist yet, we observe that more and more academic works are dedicated to the teaching of singing and that growing efforts towards the multidisciplinary approach to the singing voice are taking place. We intend to contribute to the present context by bringing forward some of the scientific concepts that contributed the most to the change of perspective in the classical vocal pedagogy in particular and in the voice training field in general: we discuss the source-‐filter model, as described by Gunnar Fant, the acoustic perspective of vocal resonance, the role of the intrinsic muscles of the larynx in the definition of vocal registers, the phonetic description of voice quality, as described by John Laver, the role of the glottal closure quocient (GCQ) to the overall voice
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quality, according to the writings of Johan Sundberg and Donald Miller, and the mechanism of the semi-‐occluded vocal tract exercises, according to Ingo Titze’s theory of voice production. Keywords: voice, singing, vocal pedagogy, voice science, proprioception, voice training.
Texto completo
A investigação científica sistemática da voz cantada é muito recente, embora as
preocupações com a estética da voz cantada datem de muitos séculos e,
conseqüentemente, as mais variadas técnicas vocais tenham sido experimentadas de
maneira empírica ao longo da história. Ela surge a partir dos anos 50 e se expande
vigorosamente de 30 anos para cá, alavancada pelo trabalho multidisciplinar entre
profissionais da música, da fonoaudiologia, da medicina, da fonética e da acústica,
entre outros, e pela explosão tecnológica que possibilita o desenvolvimento de
equipamentos e softwares de análise dos mais variados fenômenos vocais.
Desde então, a pedagogia vocal vem se firmando mundialmente como um
campo de conhecimento, cujos objetivos são revisar as práticas pedagógicas
tradicionais e os achados científicos sobre a produção da voz cantada em suas mais
variadas modalidades. Embora ainda seja pouco reconhecida e explorada na América
Latina, esta disciplina já se encontra na terceira geração de pesquisadores nos Estados
Unidos e na Europa, e é a partir dela que os pedagogos modernos têm buscado
desenvolver novas teorias e métodos a respeito do ensino do canto.
Este processo vem sedimentando novas práticas pedagógicas, baseadas na
interação entre a tradição vocal e a fundamentação científica. O objetivo deste
trabalho é expor alguns dos conceitos que se tornaram premissas básicas para a
pesquisa na área de canto e que foram incorporados à pedagogia vocal moderna.
A primeira grande contribuição da ciência vocal à compreensão do mecanismo
de funcionamento da voz cantada é a noção de que o aparelho fonador funciona como
um sistema de fole (a respiração), fonte sonora (as pregas vocais) e filtro ressoador (o
trato vocal, isto é o espaço compreendido entre as pregas vocais e os lábios – e o nariz
nos sons nasais), numa relação de sinergia e interdependência. Alguns tratados
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históricos de canto, como os de GARCÍA (1894) e LAMPERTI (escrito em 1891-‐1893,
mas publicado em 1957), já sugeriam uma relação de interação entre os níveis de
produção vocal, mas é apenas com a teoria acústica da fala, enunciada por FANT
(1970), que a voz passa a ser encarada como produto do sistema fonte-‐filtro, e é
portanto a partir daí que passa a ser investigada segundo as leis da física acústica.
Neste modelo, a fonte sonora corresponde ao sinal gerado pelas pregas vocais,
que na voz cantada é um som periódico, isto é, um som que apresenta uma freqüência
fundamental e uma série de harmônicos. O filtro corresponde às modificações
produzidas no sinal original pelo trato supraglótico, ou trato vocal (CAMARGO et al,
2004). Cada configuração articulatória do trato vocal gera diferentes freqüências
ressonantes, ou formantes. Os formantes aumentam a audibilidade de certos
harmônicos e diminuem a de outros, por causa do fenômeno da ressonância, que se
define pela tendência do sistema de oscilar com maior amplitude nas freqüências
ressonantes (SUNDBERG, 1987). As diferentes configurações de formantes
determinadas pela articulação do trato vocal são responsáveis pela definição das
vogais e pelas diversas variações de timbre possíveis num determinado sujeito.
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Figura 01: (SUNDBERG, 1987) – O fenômeno de transferência de energia acústica e a influÊncia dos formantes do trato vocal.
Tal premissa modifica sobremaneira a compreensão do conceito de
ressonância no canto, pois mostra que diversos efeitos de timbre, colocação e
impostação de voz devem-‐se em grande parte a ajustes articulatórios (abertura de
boca, posicionamento da língua, altura laríngea, etc), e não ao direcionamento da voz
a determinados locais da face (“entre os olhos”, “no nariz”, “atrás dos dentes”, “nos
seios da face” etc). A ciência vocal reconhece, no entanto, que as sensações
proprioceptivas causadas pela pressão acústica no crânio, na boca e no peito podem
continuar a ser boas ferramentas para o complexo aprendizado do canto, por
facilitarem o domínio intuitivo do instrumento (SUNDBERG, 1992; TITZE, 2006).
Por influência de tais conhecimentos, a pedagogia vocal moderna passa a
valorizar manobras articulatórias variadas como ferramenta para a construção da
qualidade vocal ideal, e a compreender termos da pedagogia tradicional, como
“cobertura” e “escurecimento ou clareamento de vogais”, como pertencentes a este
domínio. Surgem alguns métodos de canto erudito e popular especialmente ligados à
articulação, seja por meio da utilização de posições articulatórias pré-‐definidas
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(“fôrmas”) ou pela modificação intencional da formação das vogais (APPELMAN, 1986;
SULLIVAN, 1985; COFFIN, 1980; MILLER, 1996; MILLER, 2008).
No mesmo ano de 1970 em que Gunnar Fant lança sua teoria acústica da
produção da fala, o cientista Minoru Hirano e o professor de canto William Vennard
publicam um estudo em que verificam, por meio da eletromiografia, o papel dos
músculos tireoaritenóideos internos (TA ou Vocalis) e crico-‐tireóideos (CT) na extensão
e nos registros vocais. Os autores observam que os músculos Vocalis aumentam sua
contração no registro de peito, diminuem-‐na no registro de cabeça, e quase cessam-‐na
no registro de falsete, enquanto os CTs contraem-‐se de maneira mais ou menos
constante em toda a extensão vocal. Concluem então que os registros vocais são
produto do mecanismo muscular intrínseco da laringe, e portanto tem pouco a ver
com o fenômeno da ressonância vocal. Por este motivo, pesquisadores e professores
de canto modernos têm preferido eliminar os termos “registro de peito” e “registro de
cabeça”, substituindo-‐os por “mecanismo pesado” e “mecanismo leve”,
respectivamente, ou mesmo por “mecanismo 1” e “mecanismo 2”, a fim de evitar
conotações preconceituosas ou antiquadas.
Figura 02: (HIRANO, VENNARD, OHALA, 1970) – Resultados de EMG da musculatura intrínseca da laringe
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Em 1988, Hirano publica um gráfico que ilustra a alternância entre Vocalis e CT
na extensão vocal, e que proporciona importantes insights à pedagogia vocal moderna.
Os registros vocais deixam de ser encarados como estanques entre si, e os
preconceitos tanto com o uso da voz de peito como do falsete são revistos,
possibilitando novas ferramentas pedagógicas para a melhoria da emissão nas regiões
grave e aguda, em diferentes intensidades.
Figura 03: (HIRANO, 1988) – Gráfico mostrando alternância entre CT e Vocalis.
A possibilidade de explorar as várias combinações de voz intermediárias entre o
registro de peito e o de falsete fomenta principalmente a pedagogia do canto popular,
que passa a utilizar os termos como “head-‐mix” ou “chest-‐mix” para definir diferentes
regiões dentro do registro de voz mista (LOVETRI, SUNDBERG, 1993).
Paralelamente, os cientistas passam a considerar também o impacto do
Quociente de Fechamento Glótico (QFG) sobre a eficiência da voz cantada e a
sonoridade vocal produzida. O gráfico abaixo mostra os glotogramas de fluxo obtidos
de uma seqüência de sons, produzidos pelo mesmo sujeito variando intencionalmente
o nível de adução das pregas vocais, nos ajustes de tensão, normal, “flow” ou
“otimizado”, soprosidade e sussurro. P é a pressão subglótica em cm de H²O; SPL o
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nível de pressão sonora em dB; e EPA o pico estimado de área glótica em mm² (área
máxima da abertura entre as pregas vocais na fase aberta do ciclo glótico).
O estudo, publicado por SUNDBERG (1987), mostra que na voz tensa a pressão
subglótica é bem mais elevada do que nos outros ajustes, e no entanto há menor nível
de pressão sonora, com menor fluxo de ar (em litros por segundo, eixo vertical) e
menor área estimada de abertura, significando um QFG maior (Figura 04). Os
resultados sugerem que há menor economia neste ajuste, pois é necessária a aplicação
de uma grande energia em forma de pressão para a obtenção de um retorno sonoro
pequeno.
Figura 04: (SUNDBERG, 1987) – Modos de fonação
Por outro lado, o estudo mostra que na emissão do tipo “flow”, que aqui
denominamos “otimizada”, há um QFG bem menor (a área de abertura é de 150mm²
contra 4,3mm² na emissão tensa), e há uma economia bem maior de pressão,
combinada ao maior retorno sonoro dos 5 exemplos analisados no gráfico (Figura 04).
Segundo Sundberg (1987), esta seria a emissão típica do canto lírico. Para o autor,
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muito da tarefa do pedagogo de canto erudito seria desenvolver estratégias que levem
os alunos a obter este tipo de emissão em toda a extensão da voz cantada,
proporcionando um sinal sonoro muito mais consistente para os ajustes de
ressonância.
Alguns autores contestam a teoria de SUNDBERG (1987). MILLER (2008)
defende que o alto QFG proporciona melhor ressonância no trato vocal, pois quanto
menor o tempo de abertura em cada ciclo glótico, menos energia acústica é dispersada
do trato vocal. Num estudo de parceria entre Sundberg e a professora de canto Jeanie
Lovetri (LOVETRI, SUNDBERG, 1993), a comparação entre os QFGs do canto lírico e do
canto popular americano mostrou que os QFGs do canto lírico são sistematicamente
menores do que os do canto popular, sendo esta uma das diferenças distintivas entre
os dois estilos de canto.
TITZE (2006) argumenta que o QFG menor da voz “otimizada” é de fato
favorável à economia e à eficiência vocais, mas o gasto de fluxo de ar previsto para a
voz “otimizada” de Sundberg seria enorme (5 litros por segundo contra 2 da voz tensa
– Figura 04), e não pode ser aquele utilizado de fato pelos cantores líricos.
TITZE (2006) estudou uma série de modelos matemáticos e físicos do trato
vocal, e chegou à conclusão de que a estratégia adequada para obter um baixo QFG
com eficiência glótica não seria o uso de uma menor pressão subglótica, conforme a
descrição de Sundberg, e sim o bom uso do que ele chama de modelo de megafone
invertido. No modelo de megafone invertido, o trato vocal encontra-‐se largo na porção
laríngea e estreitado na porção próxima à abertura da boca, provocando pressão
retroflexa ou impedância sobre as pregas vocais. TITZE (2006) postula que a semi-‐
oclusão em maior ou menor nível na saída do trato vocal gera uma pressão intra-‐oral
em sentido contrário ao da pressão subglótica. A interação entre essas duas forças
resulta numa força entre as pregas vocais, que proporciona um nível de adução
mínimo, com baixo nível de colisão e alto nível de eficiência, ideal para a produção da
voz ressonante e projetada.
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Para o autor, muitos dos exercícios tradicionais da pedagogia vocal, como o
Bocca Chiusa ou humming, o uso de consoantes fricativas, de vibração de língua e
lábios e até das vogais que utilizam uma postura lingual alta, como o [i] e o [u], são
exercícios de trato vocal semi-‐ocluído, e funcionam porque são estratégias que contam
com os efeitos da pressão retroflexa sobre a fonação. O objetivo final destes exercícios
seria levar os cantores e falantes a automatizar o ajuste de adução mínima ou
otimizada, de tal maneira que não haja dependência da postura semi-‐ocluída para a
produção do som ressonante. Tal teoria ajuda a explicar como se dá o processo de
aprendizado da chamada impostação vocal.
O referencial teórico de Titze tem sido extremamente importante para a
pedagogia vocal moderna e para a fonoaudiologia. Sua teoria fundamenta a ideia
antiga de que a ressonância pode ser a chave para uma boa produção vocal, pois
mostra que ela pode de fato influenciar positivamente o padrão de fonação. Seu
modelo explica não somente a eficiência de diversos exercícios no tratamento de
disfonias e no treinamento vocal, mas também o conceito de voz ressonante, que
compreende ao mesmo tempo conforto laríngeo, liberdade articulatória e sensações
proprioceptivas localizadas. SAMPAIO, OLIVEIRA, BEHLAU (2008) destacam também
que os exercícios de trato vocal semi-‐ocluído promovem a expansão de todo o espaço
do trato vocal, favorecendo a estabilização da atividade glótica.
Titze e outros pesquisadores ligados à investigação dos efeitos do treinamento
vocal têm desenvolvido novas técnicas, como a fonação em tubos, a constrição labial,
a firmeza glótica e outros tipos de exercícios de trato vocal semi-‐ocluído, que vem
sendo incorporadas à prática cotidiana de fonoaudiólogos e professores de canto.
O conhecimento científico da voz cantada tem contribuído para uma utilização
mais eficiente das estratégias pedagógicas tradicionais do canto e para o
desenvolvimento de novas estratégias. É um conhecimento que enriquece não
somente o referencial teórico do professor de canto, mas também sua linguagem de
comunicação com os alunos e com seus pares. A história recente da pesquisa vocal
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mostra que é justamente a partir de um ambiente de trocas e diálogos cada vez mais
amplo que a arte do canto vem encontrando espaço para continuar a se desenvolver.
Referências Bibliográficas:
APPELMAN, R. The science of vocal pedagogy. Bloomington: Indiana University Press; 1986 CAMARGO Z, VILARIM GS, CUKIER S. Parâmetros Perceptivo-‐auditivos e acústicos de longo termo da qualidade vocal de indivíduos disfônicos. IN: Rev CEFAC: 6(2): 18996, abr-‐jun, 2004 COFFIN B. Overtones of Bel Canto. USA: The Scarecrow Press, 1980. FANT G. Acoustic Theory of Speech Production. Alemanha: Mouton De Gruyter, 1970. GARCIA M. Hints on singing. USA: General Books, 1894. HIRANO M, VENNARD W, OHALA J. Regulation of Register, Pitch and Intensity of Voice. IN: Folia Phoniatrica: 22: 1-‐20, 1970 HIRANO M. Vocal Mechanisms in Singing: Laryngological and Phoniatric Aspects. IN: Journal of Voice,: 2(1): 51-‐69, 1988 LAVER, J. The phonetic description of voice quality. Inglaterra: Cambridge University Press, 1980. LOVETRI, J, SUNDBERG et al. Comparisons of pharynx, source, formant and pressure characteristics in operatic and musical theatre singing. IN: Journal of Voice: 7(4): pp 301-‐310, 1993. MILLER DG. Resonance in singing: voice building through acoustic feedback. USA: Inside the View, 2008. MILLER R. The structure of singing: system and art in vocal technique. Nova Iorque: G. Schirmer; 1986
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SAMPAIO M, OLIVEIRA G, BEHLAU M. Investigação de efeitos imediatos de dois exercícios de trato vocal semi-‐ocluído. IN: Pró-‐Fono Revista de Atualização Científica. 20(4):261-‐6, 2008 SULLIVAN J. The phenomena of the belt/pop voice: the technique for safely producing the sounds of today. USA: 1985. LAMPERTI GB. Vocal wisdom: maxims of Giovanni Battista Lamperti. Transc: William Earl Brown. USA: Taplinger, 1957. SUNDBERG, J. The science of the singing voice. Northern Illinois University Press; 1987 TITZE I. Voice training and therapy with a semi-‐occluded vocal tract: rational and scientific underpinnings. IN: J Speech Lang Rear Res. 49:448-‐59. 2006
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Vibrato vocal e música coral
Angelo José Fernandes (IA/UNESP)
Resumo: Este artigo aborda um dos mais polêmicos assuntos a respeito da sonoridade coral: o vibrato. Inicialmente são apresentadas características da natureza do vibrato. Na sequência, há uma discussão sobre a presença do vibrato na prática coral. Por fim, o vibrato é abordado a partir do ponto de vista histórico-‐estilístico. Palavras-‐chave: música coral, sonoridade coral, regência coral, vibrato, práticas interpretativas. Vocal vibrato and choral music Abstract: This article approaches one of the most controversial subjects about choral tone: the vibrato. Initially, are presented characteristics of the nature of the vibrato. In sequence, there is a discussion about the presence of the vibrato in choral practice. Finally, the vibrato is approached from the historical and stylistic points of view. Keywords: choral music, choral tone, choral conducting, vibrato, performance practices.
A utilização do vibrato vocal é um dos assuntos mais polêmicos no tocante à
sonoridade coral. Ao mesmo tempo em que há regentes que, por acreditarem que o
vibrato é parte integrante do canto saudável, permitem que seus cantores o utilizem
de forma adequada no coro, há outros que trabalham para reduzir, e até mesmo,
abolir seu uso por completo. Geralmente, os regentes que incentivam o uso do vibrato
defendem que ele torna o canto mais expressivo, atribuindo certo “colorido” sonoro às
vozes e uma maior riqueza do timbre vocal. Por sua vez, aqueles que defendem a
sonoridade sem vibrato, afirmam que ele altera a afinação das vozes, comprometendo
a homogeneidade sonora do coro. Certos de que tal discussão é bastante relevante
para a prática coral, acreditamos que, ao se posicionar, o regente deve considerar uma
série de fatores como a natureza fisiológica do vibrato e sua presença na história da
música vocal e nos vários estilos de música coral. Se por um lado o vibrato parece ser
inadequado a alguns estilos, por outro, ele se tornou um recurso fundamental.
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1. A natureza do vibrato
O vibrato é um fenômeno do canto caracterizado por uma variação na altura do
som cantado como resultado de impulsos neurológicos que ocorrem a partir de uma
relação bem coordenada e balanceada entre o mecanismo respiratório e o fonatório.
Trata-‐se de um resultado natural do equilíbrio dinâmico do fluxo de ar e da
aproximação das pregas vocais. Segundo Miller (1986, p.82), este fenômeno contribui
com a percepção da altura, da intensidade e do timbre do som vocal. O autor ressalta
que, embora o termo vibrato esteja associado a diferentes tipos de flutuações
ocorrentes na sustentação de um som, “um bom vibrato é uma pulsação da altura,
normalmente acompanhado de pulsações simultâneas de loudness e timbre de tal
magnitude e frequência a permitir uma flexibilidade agradável, uma delicadeza e
riqueza do som”. O autor explica que, em geral, três parâmetros determinam o
vibrato: 1) a flutuação da altura; 2) a variação da intensidade; e 3) o número de
ondulações por segundo.
A respeito deste número de oscilações por segundo, Miller comenta que muitas
autoridades tendem a concordar que 6 ondulações por segundo parece ser o vibrato
normal no canto, embora estudos realizados com cantores de reputação internacional
apontam que 6,5 é um número mais exato, sendo 7 por segundo não muito raro entre
mulheres. Quando as ondulações passam de 7,5 ou 8 por segundo, o que se percebe é
o fenômeno chamado de trêmulo afetando o timbre vocal. Se a velocidade do vibrato
for menor que 6 flutuações por segundo ocorre a escola italiana de canto chama de “la
voce oscila”75 ou “la voce balla”76, isto é, uma oscilação ou um balanço desfavoráveis. O
autor ainda ressalta que a velocidade do vibrato varia no instrumento dependendo da
coordenação ou da concepção sonora.
Desde as primeiras décadas do século XX, muitas pesquisas têm sido realizadas
no intuito de se descobrir as reais causas físicas do vibrato. Tais pesquisas chegaram a
um grande número de resultados sendo alguns facilmente aceitáveis e outros não. Um
75 Lit.: “a voz oscila” 76 Lit.: “a voz balança”
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importante artigo de 1990 intitulado Physiologic Factors in Vocal Vibrato Production
examinou aspectos temporais e fisiológicos da atividade do músculo cricotireóideo em
relação à onda do vibrato e utilizou o termo “vibrato mediado na laringe” para
descrever o vibrato resultante de uma produção vocal bem coordenada e livre. Entre
outras coisas, Shipp, Doherty e Stig (1990), autores do citado artigo, concluíram que,
embora o vibrato possa ser realizado por outras condições fisiológicas como a
manipulação voluntária da pressão subglótica com os músculos abdominais, o ideal é o
vibrato que ocorre “em seu próprio ritmo quando as condições permitem” como
resultado de um equilíbrio entre as forças de adução e abdução aplicadas às pregas
vocais.
Para Miller (1986, p.184), dos vários resultados encontrados nas pesquisas
sobre as causas físicas do vibrato, é bastante significativa a correlação de impulsos
nervosos com a ação do músculo laríngeo, fato notório na maioria dos resultados. A
esse respeito, ele esclarece que o cérebro do cantor organiza um padrão de impulsos
nervosos para contrair o músculo cricotireóideo e fazer com que as pregas vocais
vibrem numa frequência desejada. Este padrão é enviado do cérebro para os músculos
envolvidos. Em algum ponto ao longo desta transmissão, talvez no nível cerebelar, este
padrão de impulsos relativamente regular se transforma em outro padrão rítmico de
ondulações que faz com que os músculos se contraiam e relaxem fazendo as pregas
vocais vibrarem em frequências um pouco acima e um pouco abaixo da altura
desejada. O tamanho dessa oscilação é monitorado pelo cantor através das vias
auditivas e, voluntariamente ajustado ao tamanho do vibrato que pode variar do
nenhum vibrato ao mais exagerado. O autor ainda afirma que, potencialmente, todos
têm vibrato se permitirem que suas pregas vocais alcancem um lugar no qual elas
possam relaxar o suficiente para que esta onda prioritária de contração de
aproximadamente cinco ou seis ciclos por segundo possa ter efeito, e se conseguirem
inibir outros caminhos neurais para outra estrutura do tracto vocal.
Os autores do citado artigo também levantaram outras suposições que eles
acreditam ser bastante aceitáveis: (1) na maioria das vozes infantis o vibrato não é
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ouvido; (2) o vibrato é bem moderado ou ausente quando se aplica uma força de
adução excessiva às pregas vocais ou quando a voz é “aerada”; e (3) o vibrato tende a
ser inibido na medida em que a laringe atinge uma posição mais alta que sua posição
de repouso e incentivado por um posicionamento da laringe abaixo da sua posição de
repouso. Tais suposições, contudo, precisam ser discutidas uma vez que são baseadas
em observações pouco embasadas cientificamente. A esse respeito, Skelton (2004,
p.48) comenta que “embora seja verdade que a maioria das crianças não possui um
vibrato perceptível, também é verdade que a maioria delas não recebeu um
treinamento vocal significativo, não possuindo assim técnicas vocais muito apuradas”.
Existem crianças que recebem uma boa instrução vocal e, como resultado, cantam
com um vibrato saudável. No tocante à fonação pressionada ou com ar (aerada), o
autor observa que esta é indesejável em qualquer voz e deve ser evitada. Enfim, no
que diz respeito à posição da laringe, Skelton ressalta que este é sempre um problema
para regentes corais e professores de canto. Para ele, questões relativas à laringe
requerem explicações em relação ao vibrato e ao conceito de produção da voz como
um todo. “Na forma mais saudável de produção da voz, a laringe permanece
relativamente estável, nem elevada, nem rebaixada”. Poucos defenderiam que a
laringe alta é desejável no canto artístico, mas algumas escolas de canto, e muitos
regentes corais defendem o rebaixamento da laringe como uma forma de abrir a
garganta. “A sensação de abertura da garganta deve ser similar à sensação da
respiração profunda através do nariz, que, além de permitir a sensação de abertura da
faringe, o faz sem alterar a posição da língua, mandíbula ou da laringe”. Considerando
a posição da laringe e sua relação com o vibrato, deve-‐se ter cuidado para não
confundir a laringe rebaixada com uma que simplesmente não está elevada e
relativamente próxima à laringe em posição de repouso.
2. Vibrato e música coral
Regentes que defendem o som coral sem vibrato se baseiam em razões
estéticas e técnicas. O argumento mais importante usado por esses regentes é que o
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uso do vibrato causa danos à pureza de entonação e destrói a clareza das linhas
contrapontísticas. Tais opiniões têm sido tradicionalmente apoiadas por estudiosos
e/ou músicos que têm um interesse predominante na música do período
renascentista. Por exemplo, o maestro especialista em música antiga Rinaldo
Alessandrini defende que:
O uso indiscriminado ou inconsciente do vibrato deve ser evitado devido ao sistema de entonação usado na Itália no final da Renascença que enfatizava a beleza e a suavidade dos acordes com terças maiores e, no caso do canto a cappella, com quintas absolutamente puras. (Alessandrini, 1999, p.635).
Outro argumento utilizado por regentes contrários ao uso do vibrato é que o
vibrato dificulta a homogeneidade sonora do coro. Miller (1996, p.63), contudo, afirma
que o que garante a homogeneidade é a unificação vocálica e que vozes com vibrato
devem ser equilibradas pelo regente. Ressaltando a diferença entre o vibrato natural e
outras oscilações, o autor expõe sua opinião afirmando que:
Um vibrato uniforme, resultado da função relaxada da laringe, é uma característica inerente do som vocal livremente produzido. Não deveria ser solicitado aos cantores corais retirar a vibração de suas vozes na expectativa de torná-‐las homogêneas com vozes sem vibrato. Preferencialmente, o regente deveria auxiliar os amadores sem vibrato, por meio de exercícios de ataque e agilidade a acrescentar a vibração natural do canto ajustado. Vozes com vibrato produzidas apropriadamente podem ser equilibradas mais facilmente do que vozes sem vibrato. Naturalmente, se as vozes de um grupo sofrem de oscilação (variação de afinação muito ampla e muito lenta), ou de um trêmulo (variação muito estreita e rápida do vibrato), [tais] vozes não equilibrarão. Um trabalho técnico adicional particular com tais cantores pode ser necessário. (Miller, 1996, p. 63)
Em geral, contrários à remoção do vibrato das vozes, os professores de canto
defendem que um bom vibrato é um aspecto fundamental e natural do canto artístico,
contudo, não há consenso sobre o que seria exatamente um “bom vibrato”.
Frequentemente, as dificuldades em descrever o fenômeno e as várias mudanças
estéticas da sonoridade vocal acabam por tornar o conceito de um bom vibrato uma
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questão sensivelmente subjetiva. Conforme abordamos anteriormente, um dos
principais argumentos usados por professores de canto em favor da utilização do
vibrato é o fato do vibrato estar presente na produção vocal saudável e bem
coordenada.
Um estudo de Rothman (1987) analisou julgamentos estéticos individuais sobre
diferentes sons vocais no tocante ao vibrato – straight tone (som sem vibrato), vibrato
bom (natural), tremolo ou wobble. Entre muitas outras conclusões, esse estudo
observou que o som vocal bem sustentado, mas sem vibrato sempre apresentava um
grau muito pequeno de flutuação da frequência. Skelton (2004, p.48-‐9) explica que
este tipo de som sem vibrato é um som no qual componentes vibratórios como
frequência, taxa pulsatória, variações de amplitude e flutuação da frequência são
minimizados ou alterados. O autor esclarece que este som vocal é bem coordenado,
mas percebido auditivamente como um som sem vibrato, diferentemente do
nonvibrato tone, ou seja, o som “branco” sem vibrato resultante da respiração mal
administrada ou da fonação pressionada.
No artigo Physiologic factors in vocal vibrato production, ao considerar o
straight tone, os autores advertem que quando “forças adutoras são utilizadas em
excesso, a qualidade vocal sem vibrato resultante irá se estender do straight tone
artístico a uma voz ‘apertada’ de fonação forçada, dependendo da magnitude da
adução”. Há, pois, uma distinção entre um som sem vibrato esteticamente aceitável e
um som “branco” sem vibrato que é indesejável. Apesar disso, considerando o esforço
que as pregas vocais têm que fazer para produzir um som sem vibrato, todo cuidado
deve ser tomado num trabalho vocal que privilegia este som. Tal questão ainda se
torna mais complexa quando o cantor deve considerar certos estilos de canto que
utilizam muito o som sem vibrato. Em seu trabalho sobre vibrato, Gregg (1994) reflete
sobre como um cantor profissional especialista em música antiga consegue administrar
sua prática de cantar com sem vibrato, mantendo um corpo de voz adequado sem
causar danos às suas pregas vocais, e explica que tais cantores mantêm sua saúde
vocal porque:
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Eles treinaram para usar apenas a força adutora excessiva o suficiente para se obter um straight tone artístico (eliminando assim o vibrato), mas sem permitir que a adução se tornasse forçada e desagradável aos ouvidos; o que pode também causar danos às pregas vocais. (Gregg, 1994, p. 47).
Contudo, no tocante à pratica coral a autora adverte que:
Dados os resultados das últimas pesquisas, seria imprudente se um regente coral pedisse aos seus cantores amadores para cantar sem vibrato, quando o vibrato mais comumente produzido é mediado pela laringe, e para eliminá-‐lo, uma força adutora excessiva precisa ser aplicada às pregas. (Ibid., p. 47).
Acreditamos, entretanto, que um regente cuidadoso e bem preparado
vocalmente pode preparar seus cantores de forma que eles aprendam a controlar o
vibrato para a execução de determinados repertórios. Estamos certos de que a
habilidade de controle do vibrato é parte integral de qualquer boa e saudável escola
de técnica vocal. Assim, pode-‐se dizer que um cantor sem a habilidade de controlar o
vibrato – se excessivo ou inexistente – provavelmente ainda não desenvolveu uma
técnica saudável.
O regente coral comprometido não pode deixar de tratar o vibrato como um
aspecto saudável e natural do canto artístico e, ao mesmo tempo, precisa cuidar para
que o vibrato dos cantores não interfira no discurso musical. O vibrato deve ser
desenvolvido e usado como uma ferramenta de expressão. Na prática coral este uso é
variável, o que força o regente a ter que decidir e orientar seus cantores sobre quando
e quanto o vibrato é apropriado. Como orientação para seu discernimento a respeito
do uso do vibrato o regente pode considerar os seguintes pontos abordados por
Brandvik (1993, p.167):
1. O vibrato deve variar com as dinâmicas: quanto maior o volume, maior o
vibrato; de modo inverso, quando menos volume, menos vibrato;
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2. O vibrato deve variar com a textura da música: quanto mais densa a textura
menos vibrato (para possibilitar que a harmonia seja ouvida mais claramente);
opostamente, quanto menos densa a textura, mais generoso o vibrato;
3. O vibrato deve ser relacionado ao período ou estilo da música que estiver
sendo cantada. A música renascentista com suas linhas claras, texturas esparsas
e harmonias abertas requer um controle criterioso do vibrato. A música
romântica com harmonias vibrantes e expressões sonoras cheias geralmente
permite um vibrato rico e encorpado.
A seguir apresentamos um panorama histórico sobre a utilização do vibrato em
diversos estilos de música coral e sua adequação à prática coral atual.
3. O vibrato e sua presença nos diversos estilos
I. Renascença
O som impessoal, distante, desumanizado e abstrato da Idade Média e do
período pré-‐renascentista foi aos poucos deixando de existir, na medida em que o ser
humano individual se tornava mais importante. Essa mudança do ideal sonoro vocal
aconteceu durante o século XV. Antes do final do século, a aparência forçada das faces
dos cantores que apareciam nas pinturas medievais e pré-‐renascentistas já tinha
perdido tal aspecto. As imagens nas pinturas renascentistas apresentavam um aspecto
mais natural e agradável. “A técnica vocal mudou, tornando o som mais próximo do
que chamamos natural, embora ainda com um mínimo de vibrato e sem o intento de
desenvolver mais potência além da atingida naturalmente” (Newton, 1984, p.16).
De fato, para muitos autores, o canto renascentista era caracterizado por uma
sonoridade leve, brilhante e clara com pouco ou nenhum vibrato. Gaffurius, em uma
das poucas observações explícitas sobre a produção vocal anterior a era barroca, diz
em sua Practica musicae de 1496 que os cantores não deviam deixar suas vozes
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trêmulas porque isto obscurece o contraponto. Ele critica os sons que têm um vibrato
muito amplo uma vez que, para ele, esses sons não mantêm uma verdadeira afinação.
Uberti (1981), contudo, supõe em seu artigo Vocal techniques in Italy in the
second half of the 16th century, que no canto de igreja mais sonoro é possível que o
vibrato fosse um elemento mais constante, porém, não tão notório quanto na música
romântica do séc. XIX. Cabe-‐nos, pois, esclarecer que ao canto de igreja era atribuída a
percepção de uma sonoridade mais potente em volume, enquanto que ao canto de
câmara mais leveza e suavidade. Conforme afirma Zarlino em seu tratado Le istitutioni
harmoniche:
Nas igrejas e nas capelas públicas canta-‐se de um modo, e nas câmaras [ou salas] privadas [canta-‐se] de outro. Nas [primeiras] canta-‐se com a voz potente, mas com discrição [...] enquanto que nas câmaras canta-‐se com uma voz mais delicada e suave, sem nenhuma estridência. (Zarlino, 1965 apud Uberti, 2000, p. 19).
Desde o princípio da década de 90, com o avanço das pesquisas sobre a
performance, especialistas em música antiga tendem a assumir uma posição mais
moderada a respeito da presença do vibrato:
Depois de anos tendo o canto com a sonoridade plana, [ou seja, sem vibrato] como sendo o ideal, agora geralmente se aceita que uma leve vibração da voz seja [algo] natural e expressivo, e [ainda] uma parte intrínseca de uma voz cantada saudável. É realmente o grau de pressão e ofuscação da afinação que são os problemas com o vibrato moderno que tem sido aplicado num determinado contexto musical. Obviamente, o efeito do vibrato ou de sua ausência é [algo] altamente subjetivo e depende inteiramente da execução e do contexto. O único vibrato que realmente é completamente inapropriado à música renascentista é esse com uma grande variação da afinação, ou qualquer vibrato que não pode ser conscientemente alterado pelo cantor. (Hargis, 1994, p. 05)
A partir de uma análise histórica e baseada em estudos modernos, Plank
ressalta que opiniões e comentários sobre vibrato são cronologicamente
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diversificados. O autor confronta uma série de opiniões de comentadores e tratadistas
daquele tempo com opiniões de músicos atuais e conclui que:
Naturalmente, vários tipos de vibrato oferecem atrações diversas e apresentam problemas diferentes. Em repertórios mais antigos, o vibrato [que altera] a afinação, isto é, a variação trinada da afinação, é problemático num estilo que se favorece da clareza do contraponto e da pureza da entonação. Um vibrato intenso, porém, produzido pelo diafragma, pode enriquecer o som e, usado com discrição, ser uma parte criativa do vocabulário expressivo. (Plank, 2004, p. 22)
Para Plank o som renascentista deve ser “estreito” e focado e na performance
regente e cantores devem privilegiar a articulação clara do texto e uma variedade
timbrística alcançada a partir da diferenciação das vogais. Neste contexto, o uso
controlado do vibrato é bem vindo se este uso favorecer tais aspectos.
Fisiologicamente falando, essa clareza do som pode ser conseguida por uma posição
elevada da laringe que, combinada com a diminuição da pressão subglótica, produz um
som leve e uma rica distinção dos sons vocálicos. O resultado não só propicia a
articulação mais clara do texto, como também, uma variedade timbrística expressiva
com a diferenciação das vogais.
II. Barroco
O uso do vibrato no início do Barroco também é um tema bastante polêmico.
Os escritores da época tinham opiniões conflitantes e não utilizavam uma terminologia
concorde a respeito do que era o vibrato e do seu uso. O que hoje podemos afirmar é
que as várias citações dos escritores da época que falam a favor da utilização do
vibrato afirmam que ele deve ser usado com prudência e moderação, provavelmente
como um ornamento e não como algo presente continuamente. Infelizmente, essa
inconsistência na utilização de termos diversos por parte dos escritores da época
acaba por causar discordâncias entre os escritores e intérpretes atuais. De qualquer
forma, se o vibrato estava presente no canto do século XVII, ele era provavelmente
menor e menos perceptível, e certamente não alterava a altura das notas.
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Como se sabe, a produção do vibrato está relacionada à pressão do ar
conduzido através do trato vocal e à necessidade de se obter um volume de som
eficiente para encher o ambiente físico onde se canta. No século XVII, os ambientes
onde aconteciam as performances eram bastante diferentes dos que utilizamos
atualmente. Os cantores do princípio do Barroco cantavam, quase sempre, em
ambientes pequenos e íntimos, com instrumentos que produziam sons leves e gentis.
A extensão vocal e as alturas exigidas eram, em grande parte da música da época,
bastante moderadas. Eles eram sempre prevenidos contra cantar de forma gritada e
contra forçar suas vozes além de seus limites naturais. Igualmente, as grandes igrejas,
nas quais as vozes eram elogiadas por sua habilidade de encher grandes espaços com
seu som, não requeriam o tipo de volume ou esforço que se espera dos cantores de
ópera atuais. Como consequência dessa menor exigência em relação ao volume, a
produção do vibrato era mais sutil.
No Barroco tardio (século XVIII) o vibrato era ainda considerado como um
ornamento a ser utilizado de forma seletiva em situações apropriadas. Entretanto,
neste século o vibrato já é descrito de forma mais positiva que no século anterior.
III. Classicismo
Assim como várias das características barrocas permaneceram no Classicismo,
o vibrato não foi uma exceção. O quadro é basicamente o mesmo: a terminologia
utilizada na época é conflitante e não é concorde. Utilizavam-‐se dois termos que hoje
conhecemos com significados diferentes: vibrato e trêmulo; falava-‐se a favor do
vibrato somente se utilizado com prudência e moderação, provavelmente como um
ornamento. Por fim, ainda que entendamos que somente o trêmulo era condenado e
o vibrato era visto com maior tolerância por ser natural, acreditamos que este era,
provavelmente, menor e bem menos perceptível que o vibrato que passou a ser
utilizado no século XIX. Para ilustrar esta última conclusão, devemos citar uma
passagem de uma carta de Mozart escrita a seu pai em 1778. É importante ressaltar
que em seu discurso Mozart critica o hábito do cantor “tremular” sua voz, mas, ao
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mesmo tempo, o compositor afirma que a voz humana “tremula” ou vibra
naturalmente:
Meis[s]ner, como você sabe, tem o mau-‐hábito de fazer sua voz tremular às vezes, tornando uma nota que deveria ser sustentada em distintos grupos de notas, ou mesmo trinados – e isso eu nunca poderia tolerar nele. E realmente é um hábito detestável e bastante contrário à natureza. A voz humana tremula naturalmente – mas do seu próprio modo – e somente num grau em que o efeito é bonito […]. Mas no momento em que o limite é ultrapassado, deixa de ser belo – porque é contrário ao natural. (Anderson, 1938, p. 552).
IV. Romantismo
Até o período clássico a sonoridade vocal estava intimamente ligada à
sonoridade coral, uma vez que os coros eram, na sua maioria, formados por cantores
profissionais. Desde o princípio do Romantismo essa realidade mudou radicalmente.
De um lado, desabrochou-‐se uma nova cultura coral baseada na inclusão de cantores
amadores nos coros e em sonoridades bem mais amplas, e de outro, formou-‐se um
novo estilo de canto que deixava de lado a escola dos castrati, buscando uma
sonoridade mais robusta e dramática.
Podemos dizer que, comparada ao grande advento da música instrumental, a
prática coral foi bem menos expressiva, porém, ainda assim, o coro ocupou lugares até
então não ocupados. A atividade coral foi marcada por uma grande diversidade que
incluía desde a tradicional prática a cappella da música sacra até a presença de
grandes massas corais no teatro de ópera. Tal diversidade ainda atingiu a sonoridade
coral que, por um lado, se manteve clara e leve nos coros sacros de meninos, mas por
outro, ganhou certa dramaticidade e volume nas performances das “grandes massas
corais”.
A segunda metade do séc. XVIII e a primeira do séc. XIX assistiram ao
desenvolvimento de um novo estilo de canto, baseado numa técnica que escurecia o
timbre vocal com o propósito de proporcionar maior expressividade ao cantor. Na
medida em que o canto se tornava algo bem diferente, mesmo aqueles cantores que
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primavam pela perfeição na execução de coloraturas estavam trabalhando para
ganhar mais potência em suas vozes. Além disso, os italianos passaram a introduzir
algo mais que surgia parcialmente como resultado da busca de intensidade, mas
também, em resposta à necessidade de um maior envolvimento emocional nas
interpretações: o vibrato, até então chamado de tremolo.
Essa nova característica do canto italiano apareceu repentinamente entre 1820
e 1830, pelo menos na Inglaterra, como uma forma exagerada de tratar o trilo,
ornamento comum no Barroco. Segundo Newton o que veio a ser um substituto
ocasional para o trilo se tornou parte importante da expressividade romântica.
Certamente, a natureza do cantor individual, seu nível de preparo técnico-‐vocal
e a consequente qualidade sonora de sua voz também foram fatores determinantes na
diversidade de sonoridades empregadas na música coral romântica. Dentre os vários
membros que integravam os coros do século XIX, provavelmente, havia cantores
profissionais treinados no estilo antigo de canto, cantores profissionais treinados no
novo estilo de canto, cantores amadores vocalmente bem dotados, cantores amadores
de médio ou baixo rendimento vocal e meninos cantores. Essas várias naturezas
possivelmente implicavam em várias qualidades sonoras: vozes claras ricas em
harmônicos agudos, vozes escuras ricas em harmônicos graves, vozes com timbre
chiaroscuro equilibradas quanto à presença de harmônicos graves e agudos, vozes
brancas, vozes potentes, vozes com pouco volume, vozes com vibrato e vozes sem
vibrato. Acreditamos, principalmente pela natureza da música romântica e pela
formação do novo estilo de canto, que o som coral padrão do século XIX não chegou a
ser um som totalmente escuro, porém, era um som muito mais ressonante, “redondo”
e potente que o som dos períodos anteriores. O elemento brilhante do timbre
provavelmente continuava presente, mas de forma mais equilibrada com o que Garcia
chamou de sombré. Os coros sacros, especialmente os de meninos, certamente
mantiveram uma sonoridade clara, brilhante e leve. É também provável que, da
mesma forma como aconteceu com o canto solista, o vibrato se fez gradualmente
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presente na música coral, uma vez que se trata de um elemento integrante e
consequente do canto ressonante e potente.
V. Séculos XX e XXI
A habilidade de manipular indicações de diferentes “cores sonoras”
prevalentes na música dos séculos XX e XXI é crucial para a execução de inúmeras
obras deste repertório. Para se alcançar um alto nível técnico e artístico na execução
de obras desse período, é preciso que o regente analise a partitura juntamente com
seus cantores e treine com eles, separadamente, as pequenas seções que exigem
sonoridades determinadas pelo compositor na partitura, a fim de se conseguir certo
conforto em sua execução antes de realizar a obra na íntegra.
Da mesma forma que a música dos séculos XX e XXI exige que os cantores
desenvolvam diferentes “cores sonoras” para a voz, ela também exige que eles
tenham certa autonomia sobre o vibrato. Embora não possamos dizer que toda a
música desse século é caracterizada por uma sonoridade sem vibrato, ao longo de
todo século muitos compositores expressaram explicitamente, para uma ou mais de
suas obras, alguma preferência pela voz mais branca e sem vibrato. Apesar da
incorporação da sonoridade sem vibrato ser mais prevalente na música do século XX
do que na do século XIX, a finalidade estética dessa sonoridade é similar nas duas eras:
o desejo de separar ou destacar palavras ou seções específicas de um texto.
O resultado é a emergência de contraste vocal que se torna um recurso estético para aperfeiçoar a interpretação. Em ambos os períodos históricos, o som sem vibrato é frequentemente empregado para produzir uma qualidade vocal solene, precisa, menos emocional, definida. Quando aplicada com parcimônia ou continuamente em uma obra, essa qualidade pode ser usada para projeção dramática de ideias textuais ou musicais, dependendo da indicação do compositor ou da realização interpretativa que o cantor faça da partitura. (Mabry, 2002, p. 44).
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Sons sem vibrato ou com um vibrato mais controlado podem ser utilizados pelo
regente e seus cantores mesmo quando o compositor não colocou indicações para tal
na partitura. É importante reconhecer esse controle como uma ferramenta para se
conseguir contrastes sonoros em um texto ou em palavras ou linhas vocais específicas.
Evidentemente, a utilização da voz sem vibrato não deve acontecer de forma casual ou
sem finalidade, nem tampouco se tornar uma afetação da técnica dos cantores. Além
disso, nessa prática, tanto o volume quanto o timbre vocal devem se adequar às
indicações musicais e dramáticas contidas na partitura e no texto.
O som sem vibrato deve ser usado criteriosamente na música sem [devidas] indicações do compositor. Ele deve se relacionar com uma nuance musical ou textual específica, que seria mais efetivamente expressa pelo não uso do vibrato. [...] [Para tal], ensaie todas as notas ou seções da obra que deletem o vibrato, gradualmente alternando essa técnica com um vibrato normal usado em todas as outras alturas. (Ibid., p. 46).
Ao trabalhar essa sonoridade sem vibrato ou com o vibrato controlado, o
regente deve orientar seus cantores a cantar livre e delicadamente, administrando
bem a respiração e tomando o cuidado para que a voz não soe gritada ou áspera. O
relaxamento físico e mental é essencial para tal produção.
4. Considerações finai
Nossa experiência com a regência coral tem mostrado que qualquer decisão a
respeito do vibrato precisa ser tomada com muito cuidado por parte dos regentes. É
preciso se considerar que o vibrato é um fenômeno natural do canto saudável e
ressonante, além de acrescentar às vozes uma sonoridade rica e expressiva. Além
disso, a história do canto nos mostra que o vibrato foi tratado de diversas formas nos
vários estilos e, do período renascentista ao romântico, houve um crescendo o ideal
sonoro incluindo o volume da voz e, consequentemente, o tamanho do vibrato. A
música composta nos séculos XX e XXI, por sua vez, exige do cantor a capacidade de
cantar com e sem vibrato. Isso nos mostra que o cantor de coro precisa desenvolver
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um treinamento que possibilite uma produção vocal saudável incluindo a presença do
vibrato natural e, a partir desta produção, é preciso cultivar a habilidade de diminuir
esse vibrato para execução de obras e estilos que exigem uma sonoridade mais plana.
O motivo principal de o vibrato contínuo ser mais notório no canto atual do que
no canto de outros períodos históricos como a Renascença e o Barroco está no fato de
a pressão de ar que se utiliza hoje ser maior. Quando se muda a pressão de ar ou o
tamanho da corrente do ar, a laringe se comporta diferentemente. Se o cantor coral
for treinado para cantar leve com uma pressão de ar mais baixa, ele será capaz de
diminuir naturalmente o vibrato, evitando assim a necessidade de se controlar o
fenômeno com a supressão mecânica na extensão vocal o que poderia causar tensões
desnecessárias e até mesmo a fadiga.
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