pedro valdez cardoso - o peso da história

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Pedro Valdez Cardosos > O Peso da História@MNSR A estátua equestre viajou dos jardins da Presidência da Republica até às entranhas do Museu Nacional Soares dos Reis. Um périplo, entrecortado por um saudável restauro, que revigorou a sua impositividade e saúde artística. O autor, gentilmente, garantiu-lhe subsistência e autonomia, prometendo-lhe uma viagem a território desconhecido. Facilitou- lhe condições para reencontrar certos antepassados e reservou-lhe estadia entre tão dignos exemplares por algumas semanas. As digníssimas personalidades que povoam a galeria e corredores dedicados às obras de escultura e estatuária de Soares dos Reis e de Augusto dos Santos, seu contemporâneo, olharam com espanto a travessia fluida de uma estátua equestre colocada em cima de um plinto singelo, comentando em surdina. Eu pensei no assombro (talvez alguma inveja…) provocado, adivinhando estes afazeres de pensamento das estátuas, elas quase sempre mudas, hieráticas e sem espanto. Tantas deliberações e argumentos a comentarem quanto ao Peso da História… A bem da verdade, a Lady inglesa, Brotero, Santos e todos os demais dignatários, estavam satisfeitos com a sua residência. Mesmo O Desterrado vive complacente (será que feliz?) no Museu. Olham, em perspetiva aérea ou inclinando-se, os rostos do público que deambula, os fixa e também aqueles estudantes que ensaiam desenhá-los. Nestes casos, as estátuas e esculturas esforçam-se até ao sorriso e asseguram uma postura celebratória requintada. Suas definições identitárias foram potencializadas pela carga mítico-simbólica que a historiografia da arte e as políticas culturais, ao longo do séc. XX lhes haviam outorgado. Efetivamente, a jovem estátua equestre (embora marcada, já configurada pelos

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Pedro Valdez Cardoso - O peso da História Folha de Sala da Estátua no Museu Nacional de Soares dos Reis . Porto

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Page 1: Pedro Valdez Cardoso - O peso da História

Pedro Valdez Cardosos > O Peso da História@MNSR

A estátua equestre viajou dos jardins da Presidência da Republica até às entranhas

do Museu Nacional Soares dos Reis. Um périplo, entrecortado por um saudável restauro,

que revigorou a sua impositividade e saúde artística. O autor, gentilmente, garantiu-lhe

subsistência e autonomia, prometendo-lhe uma viagem a território desconhecido. Facilitou-

lhe condições para reencontrar certos antepassados e reservou-lhe estadia entre tão dignos

exemplares por algumas semanas.

As digníssimas personalidades que povoam a galeria e corredores dedicados às

obras de escultura e estatuária de Soares dos Reis e de Augusto dos Santos, seu

contemporâneo, olharam com espanto a travessia fluida de uma estátua equestre colocada

em cima de um plinto singelo, comentando em surdina. Eu pensei no assombro (talvez

alguma inveja…) provocado, adivinhando estes afazeres de pensamento das estátuas, elas

quase sempre mudas, hieráticas e sem espanto. Tantas deliberações e argumentos a

comentarem quanto ao Peso da História…

A bem da verdade, a Lady inglesa, Brotero, Santos e todos os demais dignatários,

estavam satisfeitos com a sua residência. Mesmo O Desterrado vive complacente (será que

feliz?) no Museu. Olham, em perspetiva aérea ou inclinando-se, os rostos do público que

deambula, os fixa e também aqueles estudantes que ensaiam desenhá-los. Nestes casos, as

estátuas e esculturas esforçam-se até ao sorriso e asseguram uma postura celebratória

requintada. Suas definições identitárias foram potencializadas pela carga mítico-simbólica

que a historiografia da arte e as políticas culturais, ao longo do séc. XX lhes haviam

outorgado.

Efetivamente, a jovem estátua equestre (embora marcada, já configurada pelos

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tempos mítico e histórico, seguindo George Kubler), portadora de nome próprio – que cedo

haviam confirmado - trazia um apelido de família inesperado e que carecia decifrar-

lhe: Peso da História…Que responsabilidade, que intensa força emanava desse património e

memória...

A subversão, desmontagem conceitual das obras designadas por: estátua,

monumento e escultura, possui tradição e peso também na história da arte e da estética,

desde finais do séc. XIX. Com Rodin, Medardo Rosso e Camille Claudel iniciou-se uma

caminhada de encontro à tridimensionalidade em sua densidade mais pura e autónoma.

Na atualidade, a ironia e o humor servem propósitos percorridos por categorias estéticas

que introduziram a modernidade e, depois, a so called contemporaneidade. Mas,

retrocedendo até ao séc. XVIII, relembre-se a produção de William Hogarth caricatural

(p.ex.) ou toda a vertente humorista que em Portugal, à semelhança de outros países, serviu

como catalizador para a assunção de linguagens inovadoras e “radicais”.

A subtileza e lucidez da ironia são pensamento e substância da obra de Pedro

Valdez Cardoso, estendo-se nas séries, instalações e projetos específicos que tem vindo a

desenvolver desde os anos 90. A afinidade à fundamentação filosófica que ecoa de Jean

Baudrillard, trabalhando as dicotomizações entre simulacro, simulação e realidade, é

substância operativa, gerando peças incontornáveis no cenário português atual. O presente

convívio com a História da Arte, susbsumado em casos paradigmáticos da escultura e

estatuária portuguesa, bem como no contexto de uma Colecção do MNSR que é, por

demais, notável no período que privilegia, sublinha a sua pertinência e intrínseca

relevância.

As mais palavras sobre O Peso da História ficam para Pedro Valdez Cardoso cumprir

em novas revelações que sempre se aguardam com expetativa…

Maria de Fátima Lambert

15 setembro 2011