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PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO

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  • PELA JUSTIA NA EDUCAO

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  • Fernando Henrique CardosoPRESIDENTE DA REPBLICA

    Paulo Renato SouzaMINISTRO DE ESTADO DA EDUCAO

    Iara Glria Areias PradoSECRETRIA DE EDUCAO FUNDAMENTAL/MEC

    Antnio Emlio Sendim MarquesDIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA/MEC

    Maristela Marques RodriguesCOORDENADORA DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DO

    FUNDESCOLA/MEC

  • COORDENAO GERAL

    Antonio Emlio Sendim MarquesLeoberto Narciso Brancher

    PELA JUSTIA NA EDUCAO

    FUNDESCOLA/MECBraslia, 2000

    COORDENAO

    Afonso Armando KonzenAlessandra Vieira

    Marisa SariMaristela Marques Rodrigues

    Munir Cury

    (ordem alfabtica)

  • 2000 Fundo de Fortalecimento da Escola FUNDESCOLA/MECAssociao Brasileira de Magistrados e Promotores de Justia da Infncia e da Juventude ABMP

    Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida desdeque citada a fonte e obtida autorizao do FUNDESCOLA/MEC

    PELA JUSTIA NA EDUCAO

    COORDENAO TCNICAAfonso Armando Konzen

    Alessandra VieiraLeoberto Narciso Brancher

    Marisa Timm SariMaristela Marques Rodrigues

    Munir CuryCOLABORAO

    Cndido GomesRui Rodrigues Aguiar

    Wilson Donizeti Liberati

    IMPRESSO NO BRASIL

    Pela Justia na Educao/coordenao geral AfonsoArmando Konzen ...[et al.]. Braslia: MEC. FUNDESCOLA,2000.

    735 p.

    1. Educao. 2. Aspectos jurdicos. 3. Aspectos Sociais.I. Konzen, Afonso Armando. II. Brasil. Ministrio daEducao. Fundo de Fortalecimento da Escola.

    E56 370.19

  • APRESENTAO

    Constituio Federal de 1988, o Estatuto da Criana e do Adolescente, a Lei de Diretrizese Bases da Educao e a regulamentao do Fundo de Manuteno e Desenvolvimentodo Ensino e de Valorizao do Magistrio FUNDEF abriram as portas da transformaoscio-jurdica na rea dos direitos da criana e do adolescente e, especialmente, daeducao. Esses instrumentos legais materializam, com a fora imperativa da vontadeestatal, os anseios da sociedade brasileira por justia na educao.

    Justia na educao significa alunos matriculados em escolas equipadas, com professoresqualificados, com materiais didtico-pedaggicos suficientes, com currculo escolarapropriado realidade do aluno, com recursos disponveis e mecanismos de controlesocial institudos, com a participao dos pais e da comunidade na gesto escolar, emambiente construdo para o sucesso do aluno. Em outras palavras, justia na educaosignifica igualdade de oportunidades, que possibilitam transformaes sociais, concretizadasna adoo de novos comportamentos e valores, na reorganizao da sociedade, no plenodesenvolvimento humano e na perspectiva de mudana do presente e do futuro.

    Nessa tica as oportunidades propiciadas pela educao de qualidade abre novoshorizontes no campo da justia social, justificando-se assim o engajamento de juzes epromotores de Justia que, mais do que representam, operam a eficcia legal e a exigibilidadedo direito educao.

    Com o objetivo de fortalecer a aliana entre o Sistema de Justia e os Sistemas deEnsino, o Ministrio da Educao, por meio do Fundo de Fortalecimento da Escola FUNDESCOLA, e a Associao Brasileira de Magistrados e Promotores de Justia da Infncia eda Adolescncia ABMP vm desenvolvendo o Programa pela Justia na Educao.Abordando o direito educao a partir da tica do Sistema de Garantias dos Direitos daCriana e do Adolescente, o Programa visa ao aperfeioamento tcnico-profissional dosmagistrados e promotores de Justia das Varas da Infncia e da Juventude para atuaoem defesa e promoo desses direitos como estratgia jurdica e poltica de preveno epromoo social.

    Estruturado em trs eixos de implementao articulao poltica, qualificao tcnica emobilizao social , o Programa sugere o engajamento funcional e comunitrio dosprofissionais do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico para que, de forma integrada com asmais diversas instituies e movimentos sociais, selem compromissos e promovam iniciativasvoltadas efetivao dos mecanismos legais de proteo criana e ao adolescente, comfoco na famlia e na escola.

    A

  • O Programa conta com o imprescindvel apoio institucional de parceiros estratgicosque integram as instituies do Sistema de Justia, Poder Executivo e outros segmentosinstitucionais. Esses parceiros vm colaborando para a construo de uma rede articuladade servios e competncias, para a mobilizao dos operadores de Justia e para aotimizao de iniciativas existentes e a deflagrao de novas aes que garantam acontinuidade e a sustentabilidade do Programa.

    Com o lanamento desta publicao, o FUNDESCOLA/MEC e a ABMP iniciam um nova etapado Programa, que operacionaliza o eixo da qualificao tcnica por meio da realizaodos Encontros pela Justia na Educao em todo o territrio nacional. Para se chegar aessa nova etapa, o Programa contou com a importante contribuio dos operadores doDireito no Estado do Maranho, onde se realizou, em junho deste ano, um encontro-piloto objetivando a validao da proposta tcnico-pedaggica.

    Esta publicao, organizada em nove mdulos que correspondem aos eixos temticosconstantes do contedo programtico dos Encontros pela Justia na Educao, constituiuma coletnea de textos utilizados como material de suporte para esses encontros, epreparados a partir da orientao tcnica de equipe especializada nas reas do Direito eda Educao. Os textos e informaes aqui contidos representam valiosa contribuiopara maior compreenso do Sistema de Garantias dos Direitos da Criana e do Adolescente,e especialmente do direito educao, que fundamenta o engajamento dos operadoresdo Direito e de todos ns no Movimento pela Justia na Educao.

    Na oportunidade da publicao deste documento, o FUNDESCOLA, em nome do Ministrioda Educao, e a ABMP agradecem a todos que, movidos pela busca de justia na educao,contriburam para a produo dos textos aqui inseridos. Ficam registradas a nossa estima eagradecimento aos parceiros estratgicos cujas iniciativas j representam importantecontribuio para o sucesso do Programa. Nossos agradecimentos especiais para a equipede coordenao tcnica, que no mediu esforos para a realizao deste trabalho.

    Leoberto Narciso Brancher Antnio Emlio Sendim MarquesPRESIDENTE DA ABMP DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA

  • PELA JUSTIA NA EDUCAO

    sumrio geral

    MDULO IJUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 14CAP. 1 TICA, VALORES HUMANOS E PROTEO INFNCIA E JUVENTUDE ..... 17

    Luis Henrique BeustCAP. 2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIA UMA VISO CONTEMPORNEA ..... 71

    Jos Luis Bolzan de Morais

    MDULO IIORGANIZAO E GESTO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFNCIA E DA JUVENTUDE

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 114CAP. 3 ORGANIZAO E GESTO DO SISTEMA DE

    GARANTIA DE DIREITOS DA INFNCIA E DA JUVENTUDE ..... 121Leoberto Narciso Brancher

    CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO EDUCAO .... 159

    Afonso Armando KonzenCAP. 5 O MINISTRIO PBLICO ..... 193

    Paulo Afonso Garrido de PaulaCAP. 6 PODER JUDICIRIO E REDE DE ATENDIMENTO ..... 209

    Antnio Fernando do Amaral e SilvaCAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS

    DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAO ..... 255Pblio Caio Bessa Cyrino

    MDULO IIIA EDUCAO COMO POLTICA SOCIAL BSICA

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 286CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO EDUCAO ..... 289

    Antonio Carlos Gomes da CostaIsabel Maria Sampaio Oliveira Lima

  • MDULO IVA GESTO PBLICA DA EDUCAO

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 314CAP. 9 A ORGANIZAO DA EDUCAO

    QUAL EDUCAO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM? ..... 321Marisa Timm Sari

    Maria Beatriz LuceCAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO:

    GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAO ESCOLAR ..... 349Adlia Luiza PortelaEsmeralda Moura

    Eni Santana Barretto BastosCAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAO PBLICA BSICA NO BRASIL ..... 397

    Maria Eudes Bezerra VerasRicardo Chaves de Rezende Martins

    CAP. 12 O ORAMENTO PBLICO E A EDUCAO ..... 441Jos Carlos Polo

    MDULO VINTERFACES DA EDUCAO COM O SISTEMA DE PROTEO ESPECIAL

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 476CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAO COM O SISTEMA DE PROTEO ESPECIAL ..... 477

    Mrio VolpiCAP. 14 FICAI UM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENO PELA INCLUSO ESCOLAR ..... 495

    Simone Mariano da Rocha

    MDULO VI INTERFACES DA EDUCAO COM O SISTEMA SCIO-EDUCATIVO

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 508CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SCIO-EDUCATIVAS

    E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIA NA DISCIPLINA ESCOLAR ..... 511 Olympio de S Sotto Maior Neto

    CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGGICA, O PAPEL INTERDITRIODA FUNO NORMATIVA E SEU EXERCCIO EFETIVO E SIMBLICO ..... 531

    Mrio Fleig

    PELA JUSTIA NA EDUCAO

  • CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NOAMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SCIO-EDUCATIVAS ..... 557

    Paulo Srgio Frota e SilvaCAP. 18 CMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIA COMO

    INSTRUMENTO DE TRANSFORMAO DE CONFLITOS ..... 601Pedro Scuro Neto

    MDULO VIIDISCIPLINA JURDICA DO DIREITO EDUCAO

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 640CAP. 19 DISCIPLINA JURDICA DO DIREITO EDUCAO ..... 643

    Paulo Afonso Garrido de PaulaCAP. 20 O DIREITO EDUCAO ..... 659

    Afonso Armando Konzen

    MDULO VIIIGARANTIA JURDICA DO DIREITO EDUCAO

    SUMRIO EXECUTIVO ..... 670CAP. 21 A EDUCAO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E

    SEUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE ..... 673Munir Cury

    CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS SUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL ..... 683

    Hugo Nigro Mazzilli

    MDULO IXMOBILIZAO SOCIAL

    CAP. 23 TECENDO O AMANH PELA JUSTIA NA EDUCAO ..... 715Nisia Werneck

    PELA JUSTIA NA EDUCAO

  • NOTA DA COORDENAO GERAL

    At imprimir-se a presente edio, alm de parcerias em negociao como com o Supremo TribunalFederal e o Superior Tribunal de Justia, o Programa pela Justia na Educao j conta formalmente com oapoio institucional dos seguintes parceiros:

    Ministrio da JustiaProcuradoria-Geral da Repblica Procuradoria Federal dos Direitos do Cidado

    Colgio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justia do BrasilConselho Nacional de Procuradores Gerais de Justia do Brasil

    Associao de Magistrados Brasileiros AMBConfederao Nacional da Associao Nacional dos Membros do Ministrio Pblico CONAMP

    Colgio Nacional de Corregedores-Gerais do Ministrio Pblico dos Estados e da UnioColgio de Diretores das Escolas Superiores dos Ministrios Pblicos

    Fundo da Naes Unidas para a Infncia UNICEFInstituto Ayrton SennaFundao Banco do Brasil

  • MDULO I

    JUSTIA, EDUCAO EVALORES FUNDAMENTAIS

  • MDULO I JUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    1 4

    SUMRIO EXECUTIVO

    DESDE O INCIO DA CIVILIZAO, os estudiosos e pesquisadores estiveram preocupados coma educao, ao ponto de concluir que sem educao no haveria humanidade.A educao vital para o homem como o prprio ato de sobreviver, no sentido de preservarsua frgil existncia e assegurar sua evoluo. Com a educao, o homem adapta-se ao meioem que vive, a ponto de ser ela to importante e fundamental quanto o ato de procriar ou dedesenvolver-se na vida social. Neste sentido, a educao a prpria humanidade.

    O homem, integrado com o meio-ambiente, constitui uma unidade biolgica que buscapermanente equilbrio entre o prprio organismo (o ser humano) e o meio. Dessa adaptao,surge a aprendizagem, atividade fundamental da vida, tambm conhecida por educao,expresso da prpria condio humana.A sade surge, tambm, como fruto da educao. Suadefinio, conferida pela Organizao Mundial de Sade OMS, o estado dinmico de bem-estar fsico, psquico, social e espiritual.

    Para o homem viver bem necessrio suprir as necessidades fsicas, emocionais, psicolgicase espirituais, que do equilbrio existncia humana. A educao interage com a sade do serhumano quando ele precisa aprender a melhorar a vida, por meio de cuidados com o corpo(adequada alimentao, repouso, higiene etc.), do atendimento s suas necessidades emocionais(pelo amor, simpatia etc.); necessidades psicolgicas (de realizao, de autonomia, expresso,lazer e comunicao etc.), e espirituais (virtudes, propsito de vida, transcendncia etc.).

    Enfim, a educao no necessria somente para a sobrevivncia do ser humano, mas,tambm, para dar-lhe qualidade de vida, com plenitude e felicidade.

    A educao, percebida como um dos maiores dons e deveres da humanidade, j foiconsiderada propriedade exclusiva dos deuses. Pelo conhecimento, o homem imaginou quepodia ser independente da divindade, mas afinal descobriu que isso no o libertou de suacondio humana.

    Ao longo da histria, a educao emerge como modelo e arqutipo da redeno humanade sua prpria condio humana que est num constante devir. A educao, alm de garantira sobrevivncia e a sade da espcie humana, permitiu construir um padro de existncia,conhecido por civilizao. A educao sempre foi o elemento catalizador da garantia dacontinuidade das conquistas humanas.

  • MDULO I JUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    1 5

    A educao muito mais antiga e ampla do que as instituies chamadas escolas. A maiorparte da educao humana d-se de maneira no formal, por meio da convivncia, da orientaoe da imitao. Hoje em dia, outros meios de comunicao, como a televiso, o computador e aInternet, alimentam o contedo educacional de maneira informal.

    A escola pblica, como estrutura formalizada da educao, a criao do sculo passado,que objetivava socializar o conhecimento, num exerccio de justia e igualdade na distribuiode seus beneficirios, independentemente da condio social dos educandos.

    Durante a Idade Mdia, as regras bsicas de existncia do ser humano eram baseadas nareligio e a sociedade dominava o homem; sua obrigao era crer e obedecer.Com a evoluo do conhecimento, a modernidade props a tarefa fundamental do ser humanocomo a de raciocinar e criar.

    Aps um processo progressivo de materializao, racionalizao e mecanizao do universodo homem e da sociedade, a cultura moderna retirou a importncia do ser humano e de seusideais. Esses paradigmas levaram desumanizao do ser humano.Pode-se dizer que os paradigmas do Iluminismo, do Racionalismo e da Revoluo Industrialainda contribuem para a inrcia da resoluo dos problemas humanos, baseados que estavamem aes desprovidas de sentimentos.

    Os princpios orientadores dos valores humanos valorizam uma redescoberta dos princpioseternos e universais proclamados pelas grandes tradies espirituais e sapienciais dahumanidade.

    O sculo XX foi profcuo em produzir leis que garantissem os direitos da criana e doadolescente, tanto no mbito interno quanto no internacional.

    Esse ordenamento jurdico exemplificado pela Declarao Universal dos Direitos doHomem (1948), a Declarao Universal dos Direitos da Criana (1959), a Conveno sobre osDireitos da Criana (1989), o Estatuto da Criana e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizese Bases da Educao Nacional (1996), alm dos princpios constitucionais gravados na CartaPoltica de 1988.

    A abordagem sobre direitos humanos induz todos os operadores do direito a pensar napossibilidade de abrir novos horizontes e de dar condies queles que se preocupam com ofuturo das liberdades pblicas, de atuar buscando respostas eficientes aos anseios da cidadania,concretizadas na vida do Direito.

    Os direitos de liberdade, de igualdade e solidariedade entraram no rol de garantiasconstitucionais dos cidados aps herclea batalha contra o absolutismo de governos e degovernantes. Somente a incluso desses direitos na ordem jurdica no basta para a garantia

  • MDULO I JUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    1 6

    da cidadania; preciso dar-lhes efetividade prtica, ou seja, instigar os agentes polticos jurdicos sociais para que assumam a tarefa de garantir que todos possam usufru-los embenefcio prprio e comum ao mesmo tempo.

    Na anlise dos direitos humanos, aparece, em destaque, a transformao dos interessesem individuais (direito subjetivo), coletivos (quando um interesse comum afetar uma coletividadeinteira de individuais reunidos em torno de vnculos jurdicos) e difusos (indeterminaosubjetiva de sua titularidade).

    Esses direitos no poderiam ficar desconectados da vontade popular; portanto, assumiramo carter formal das normas constitucionais carregando, em si mesmas, a hierarquia e aestabilidade das normas superiores. A constitucionalidade dos direitos humanos fundamentaisteve garantia, entre ns, desde a Constituio Imperial (1824), renovada nas demais Cartas, ata atual, que referenda todas as geraes supostas de direitos humanos.

    Aliados aos direitos humanos fundamentais, tambm conhecidos por liberdades pblicasde primeira gerao, surgem, a partir do final da primeira guerra mundial, os direitos sociaisconsiderados de segunda gerao, que enfatizaram os direitos relacionados s relaes dotrabalho, previdncia, sade, e, particularmente, educao.

    Essa nova ordem social, tambm garantida no texto constitucional, traz com um perfildiferenciado uma tambm nova maneira de garantir um direito: o da prioridade absoluta. Somenteos direitos infanto-juvenis receberam esse plus constitucional, ou seja, os direitos das crianas edos adolescentes devero ser garantidos com prioridade sobre todos os demais direitos.

    E o direito constitucionalizado da educao apareceu no rol daqueles que devem ser erigidoscomo prioritrios, pois hodiernamente esse direito representa importante relevncia social namedida em que a deteno do conhecimento importa na apropriao de poder e de votar.

    Para a garantia desses direitos, a Constituio Federal instrumentaliza a sociedade,atribuindo-se-lhe legitimidade para demandar, com os instrumentos jurdicos prprios, geis eeficazes na satisfao de suas pretenses. Esses instrumentos, no seu contexto operacionalprprio, so de inconstitucionalidade por omisso e o mandado de injuno.

    Por fim, no existiria ambiente ideal para consolidao das pretenses democrticas decidadania, incluindo aqui, especialmente, direito constitucional educao, que o locus privilegiadoda Constituio. Aqui, os operadores do Direito podero buscar a fonte garantista dos direitoshumanos fundamentais das crianas e a adolescentes como sujeitos de direitos que so.

  • MDULO I JUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    1 7

    1CAPTULOTICA, VALORES HUMANOS E PROTEO INFNCIA E JUVENTUDE

    Luis Henrique Beust*

    SUMRIO

    1 PRESSUPOSTOS FILOSFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOSDA CRIANA E DO ADOLESCENTE EDUCAO ESCOLAR ..... 18

    1.1 EDUCAO E HUMANIDADE ..... 181.2 EDUCAO E SADE ..... 20

    1.3 EDUCAO E ARQUTIPOS ..... 211.4 EDUCAO E AUTO-REALIZAO ..... 24

    1.5 EDUCAO E ESCOLARIDADE ..... 262 VALORES HUMANOS E MOTIVAO PARA A AO TRANSFORMADORA ..... 30

    2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAO ..... 302.2 A PERMANNCIA DOS VALORES DESUMANOS ..... 34

    2.3 A INRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AO TRANSFORMADORA ..... 372.4 RECONSTRUIR MODELOS MENTAIS E PARADIGMAS EM PROL DA HUMANIZAO ..... 40

    2.5 A ORIGEM E FONTE DOS VALORES HUMANOS ..... 413 A FORMAO DO INDIVDUO TICO ..... 44

    3.1 AS TRS FORMAS DE EDUCAO E A EDUCAO MORAL ..... 443.2 A NATUREZA HUMANA, AS INTELIGNCIAS MLTIPLAS E A MORAL ..... 49

    3.3 UNIVERSAIS MORAIS E JANELAS DE OPORTUNIDADE PARA A FORMAO TICA ..... 503.4 A EDUCAO DA VONTADE E A SOCIEDADE TICA ..... 53

    3.5 OS PRINCPIOS ESPIRITUAIS UNIVERSAIS ..... 584 A FUNDAMENTAO DO SISTEMA DE GARANTIAS LEGAIS DA INFNCIA E DA JUVENTUDE ..... 61

    4.1 UM SCULO DE LEIS ..... 614.2 DECLARAO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH) ..... 624.3 DECLARAO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANA (DUDC) ..... 62

    4.4 CONVENO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANA (CIDC) ..... 634.5 ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE (ECA) ..... 644.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAO (LDB) ..... 64

    5 COMPROMISSO HISTRICO E POLTICO ..... 64NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..... 65

    * Diretor do Centro Educacional Bah Soltanieh. Coordenador do Conselho de Educao Global na AmricaLatina. Consultor internacional em Educao para a Paz.

  • ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    MDULO I JUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    1 8

    O texto ressalta a importncia da educao para a vida e o progresso humanos,apresentando-a como elemento fundamental para a sobrevivncia da espcie, odesenvolvimento da civilizao e a plenitude de vida individual. Mostra como, durante aModernidade (sculo XVI at o presente), os paradigmas de cientificismo, racionalidade,objetividade e materialismo destruram o equilbrio dos valores humanos e princpios espirituaisque sempre deram sustento civilizao e realizao humanas. Tal radicalismo deu-se emanttese ao teocentrismo dogmtico e obscurantista dos mil anos da Idade Mdia da cristandadeeuropia (sculo V ao XV), e acabou por minar os fundamentos da eticidade e da moral, queso fundamentalmente espirituais por natureza. Argumenta-se que o perodo ps-modernoem que vivemos oferece a necessidade e a possibilidade de uma sntese entre a razo e osvalores humanos, entre a cincia e a espiritualidade, apresentando os postulados de grandespensadores clssicos, modernos e contemporneos. Estabelece-se a necessidade dos grandesprincpios e valores morais universais, dentro de um contexto pluralista e transecumnico,para que se possa fundamentar uma educao libertadora e garantir a formao do indivduoe da sociedade ticos, em que valores como o Amor e a Justia conduzam o fazer social.

    1 PRESSUPOSTOS FILOSFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOSDA CRIANA E DO ADOLESCENTE EDUCAO ESCOLAR

    1.1 EDUCAO E HUMANIDADESem educao no haveria humanidade. A frase pode soar como um exagero, mas, no

    tocante educao, esse o grande tema e a justa concluso apresentados nos escritos dosgrandes pensadores, religiosos ou laicos, homens da cincia ou das humanidades, em todas asculturas, ao longo dos cinco ou seis mil anos de civilizao.

    E no para menos: ao contrrio dos animais, os seres humanos dependem da educaopara sobreviver. Com um arsenal de instintos menos elaborado e menor repertrio de respostasautomticas para a vida, homens e mulheres dependem do aprendizado para assegurar quesuas existncias transcorrero de forma segura e satisfatria. Diferentemente dos animais, avida humana inicia-se de maneira extremamente frgil. Um recm-nascido incapaz de proverseu prprio sustento ou sobreviver sem o amparo constante de adultos, seno depois depassados longos anos de amadurecimento.

    A educao, passada pelos adultos s novas geraes, sempre foi, assim, no apenas aferramenta essencial da construo da cultura e da civilizao, mas o instrumento supremo da

  • ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    1 9

    CAP.1 TICA, VALORES HUMANOS E PROTEO INFNCIA E JUVENTUDELuis Henrique Beust

    prpria sobrevivncia humana e de sua evoluo. A educao, como instrumento que permitiuaos homens uma cada vez mais elaborada adaptao ao meio ambiente, ao longo de incontveiseras, foi o grande diferencial na histria evolutiva da humanidade.

    As pesquisas cientficas realizadas durante o sculo XX, em reas como a Psicologia, aAntropologia e a Sociologia, consolidaram uma enorme gama de dados sobre a necessidadeda educao, a ponto de se poder afirmar que o ato de aprender e de ensinar to fundamentalpara a raa humana quanto a procriao ou a vida social. A educao, mais do que qualqueroutro elemento tomado em separado, garantiu a sobrevivncia e a evoluo da humanidade.Nesse sentido, educao humanidade.

    Jean Piaget, Noam Chomsky e outros descreveram estruturas (de pensamento e delinguagem, entre outras) relacionadas mente humana, as quais exigem um desenvolvimentoto natural e vital quanto o crescimento do corpo ou a associao grupal.1 A aprendizagem,nesse contexto, vista como uma funo vital, por meio da qual cada aprendiz (todos os sereshumanos) est ativa e permanentemente formando estruturas mentais novas na sua interaocom o meio ambiente; ou seja, est permanentemente aprendendo.

    O enfoque biolgico, adotado por Piaget para entender e explicar a apendizagem/educao,ressalta que cada ser humano, como ser vivo, um organismo em constante interao com o meioambiente. Na verdade, o organismo (o ser humano), o meio e a interao entre eles constituemuma unidade biolgica na qual os trs elementos esto inseparavelmente conectados. O processode aprendizagem, nesse contexto, desencadeado por uma perturbao do equilbrioexperimentado entre o organismo e o meio. O organismo procura superar essa perturbao, e osentimento subjetivo de tenso ou necessidade que emerge dela, por meio de uma adaptao.Quando essa mudana no ambiente enfrentada por adaptao do organismo, houve aprendizagem.

    Nesse sentido, pois, poder-se-ia dizer no apenas que a educao (ensino/aprendizagem) uma atividade fundamental da vida, mas sim que a prpria vida aprendizagem, ou educao.A vida, individual ou social, nada mais do que uma cadeia nica de processos de aprendizagem.Piaget chega a falar de uma epistemologia gentica e da organizao biolgica como umaestrutura cognitiva que interage com o meio ambiente.

    Essa base biolgica do processo de aprendizagem demonstra, pois, o quanto a educao vital para o prprio processo de existir. claro, porm, que a vida especificamente humanano se esgota no nvel biolgico; antes, desenvolve-se num plano sociocultural. A educaohumana, portanto, no ocorre apenas ao nvel de uma ao recproca biolgica, mas, bem

    1 Ver notas e referncias bibliogrficas a partir da pgina 65.

  • ENCONTROS PELA JUSTIA NA EDUCAO

    MDULO I JUSTIA, EDUCAO E VALORES FUNDAMENTAIS

    2 0

    mais do que isso, numa ao sociocultural recproca do sujeito e seu meio, entre o indivduoe aqueles que o rodeiam.

    Esse enfoque sociocultural ressalta o fato de que o processo de educao de cada serhumano no se d no vazio, nem de forma isolada, mas sempre no seio de um grupo humano,no qual cada pessoa deve viver e aprender. fcil perceber, nessa situao, que o aprendizadose d no apenas pela necessidade intelectual ou cognitiva que o indivduo tem daquilo queest aprendendo, mas de uma pliade de fatores emocionais, sociais e existenciais. Ou seja,como seres humanos, aprendemos no apenas porque temos necessidade de aprender numsentido intelectual, mas porque temos necessidades de amar e ser amados, de ser aceitos,respeitados e benquistos; necessitamos encontrar um propsito para nossas vidas e respostasadequadas para questes como o sofrimento e a morte.

    Embora seja bastante comum falar de educao para referir-se simplesmente aodesenvolvimento cognitivo, ou to somente transmisso de instruo, o fato que, comovimos, educao bem mais do que isso. Howard Gardner, da Universidade de Harvard, odestacado descobridor das inteligncias mltiplas, afirma que a educao precisa ser vistacomo um empreendimento muito mais amplo, envolvendo motivao, emoes, prticas evalores sociais e morais.2 A educao, assim vista, a prpria expresso da condio humana.

    1.2 EDUCAO E SADEA Organizao Mundial da Sade, OMS, define sade como o estado dinmico de bem-

    estar fsico, psquico, social e espiritual. Nessa concepo contempornea de sade, identificam-se tambm as quatro reas nas quais uma pessoa pode estar enferma. Podemos sofrer deenfermidades fsicas (bursite, alergia, cncer), enfermidades psquicas (neuroses, psicoses),enfermidades sociais (violncia, misria, desemprego), ou enfermidades espirituais (anomia,dio, falta de sentido na vida, desesperana).

    Essas reas de sade/doena definem tambm aqueles campos da existncia humana queprecisam ser adequadamente atendidos para podermos viver bem. Ou seja, nossa vida dependede que sejam supridas as necessidades fsicas, emocionais, psicolgicas e espirituais (tambmchamadas existenciais) que nos constituem como seres. O suprimento dessas necessidadesvitais se d por meio do processo de ensino/aprendizagem, de forma que podemos, agora,associar a educao no apenas com nossa sobrevivncia (o que no seria pouco!), mas tambmcom nossa sade plena.

    No campo fsico, necessitamos aprender como sustentar e melhorar nossa vida com adequadaalimentao, repouso, atividade, higiene e proteo.

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    No campo emocional, nossas necessidades so supridas pelo aprendizado do amor, dasimpatia, da ateno, da estima, do aconchego, da auto-estima e da auto-aceitao, sem osquais no podemos nos desenvolver de forma plena e feliz. Na verdade, a prpria sobrevivnciafsica fica comprometida quando tais necessidades emocionais so desatendidas.

    Nossas necessidades psicolgicas de realizao, autonomia, lazer, expresso e comunicao,entre outras, tambm so supridas por meio do aprendizado adequado de capacidades pessoaise sociais que as viabilizam e desenvolvem.

    Da mesma forma, a educao o instrumento supremo que permite a cada nova geraode homens desenvolver aqueles conhecimentos, habilidades, atitudes e qualidades de naturezaespiritual ou existencial que lhe permitem satisfazer suas necessidades de transcendncia,beleza, virtude e propsito para a vida.

    Educao, portanto, tem a ver no apenas com sobrevivncia, mas com qualidade de vida,com plenitude, com felicidade.

    1.3 EDUCAO E ARQUTIPOSOs homens sempre perceberam, ainda que inconscientemente, que o conhecimento, e sua

    transmisso, tinha algo de supremo, de vital, de divino que estava relacionado com suaprpria sobrevivncia e plenitude de vida.

    A educao, assim, sempre foi percebida como um dos maiores dons e deveres dahumanidade, quer ante Deus (ou deuses) quer ante os prprios homens. Para as percepesmais aguadas, ao longo dos sculos, to relevante tem sido a educao e seu fruto, oconhecimento que sua natureza e processo chegou a ser descrita como limitada ao domniocelestial, sem acesso aos homens, ou como algo sobrenatural, ou como uma porta para aeternidade. Os vrios mitos relacionados Criao e os textos sagrados dos primrdios daHistria refletem essa importncia vital atribuda ao conhecimento.

    Na mitologia grega, Prometeu, que era um dos Tits e, portanto, primo de Zeus, representado como um especial amigo da humanidade. Segundo as mais antigas tradies domito, Prometeu quem cria o homem, a partir do barro. Depois disso, desejando dar novacriatura acesso ao que somente pertencia aos deuses, Prometeu rouba de Zeus o conhecimentodo fogo (ele prprio smbolo do conhecimento) e o entrega humanidade.

    Zeus, enfurecido por no mais deter a exclusividade do conhecimento, castiga a humanidadecom toda espcie da pragas e sofrimentos. Tal castigo chega atravs de uma bela mulher,Pandora, que fra criada pelos deuses e dada de companheira ao irmo de Prometeu, Epimeteu.Apesar de bela, Pandora tinha o engano e a trapaa no corao, e por meio de suas mos que

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    se abre a caixa ou jarra de onde saem todos os males que afligem a humanidade. Mas, apesarde agora sofridos, os homens detinham o conhecimento que antes era somente dos deuses. E,assim, resta a esperana...

    No Antigo Testamento, o Gnesis faz um relato similar do cime divino quanto aoconhecimento, e do castigo imposto humanidade como preo por ter comido da rvore doconhecimento do bem e do mal.3 Ao comer o fruto proibido, Ado e Eva se apropriam de algoque era restrito aos cus, e se tornam como deuses,4 com seus olhos abertos pelo conhecimento.O prprio Deus exclama: Eis que o homem como um de ns, sabendo o bem e o mal.5 Paraque essa usurpao de posies no prossiga, e o homem se torne, alm de conhecedor,imortal, Deus expulsa Ado e Eva do jardim do den, para que no estenda sua mo e tometambm da rvore da vida e coma e viva eternamente.6

    Uma vez expulsos do Paraso por causa do conhecimento, Ado e Eva concebem doisfilhos, mas Caim mata Abel, dando continuidade aos sofrimentos humanos. Porm, tambmda descendncia deles, atravs do terceiro filho, chamado Sete, que nascem Abrao e Isaque eJac, e todos os profetas de Israel, inclusive Jesus, dando ao final do relato tambm uma sobrade esperana para a redeno humana, como na caixa de Pandora.

    Claro que tais relatos so smbolos antigos e riqussimos que explicam a condio humana.Tanto Pandora como Eva podem ser entendidas como representaes da mente humana primitiva,em seu estado bruto e selvagem, cheia de curiosidade e beleza, mas tambm de todos os vciosque apenas a educao pode remediar. Essa mente pressente que conhecimento poder, quepode inclusive aproxim-la do divino.

    Ambos os relatos podem ser tomados, assim, com o seguinte sentido: o conhecimento luz, sustento (fogo) e to elevado que propriedade exclusiva da divindade. Por meio doconhecimento o homem cr tornar-se independente da divindade. Porm, ele s se apossa doconhecimento pelo sofrimento; por meio dele percebe a complexidade da vida, assim perdendoa inocncia do paraso (infantil). O simples conhecimento do mundo, portanto, no liberta ohomem de sua condio humana. Ele precisa de um conhecimento ainda mais elevado paraisso, um conhecimento das coisas transcendentes, divinas: precisa conhecer a esperana, aobedincia, o arrependimento, a perseverana, a honestidade, o amor...

    Tais mitos e relatos indicam, nessa formulao primitiva, um dos grandes temas relacionados educao: o conhecimento, por si s, pode ser perigoso. Se for imperfeito, ou incompleto,ser causa de sofrimento, e melhor seria no t-lo. Mas isso ser tratado mais adiante, quandoabordarmos a formao do indivduo tico.

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    V-se, pois, como a simbologia completa: apesar dessa associao entre o conhecimentoe o sofrimento, que pode ser encontrada em praticamente todos os mitos e textos primevos, osrelatos indicam que o conhecimento, se aprimorado pelas coisas da alma, aproxima realmenteos homens da condio divina; no mais pela competio, mas pela humildade, no pelausurpao, mas pelo descobrimento de sua verdadeira condio.

    Seja por meio da esperana, como em Pandora, ou do arrependimento e da misericrdiade Deus, como na Bblia, a idia que o mal do conhecimento imperfeito pode ser superadopela educao verdadeira, que incorpora ao conhecimento das coisas visveis tambm oconhecimento das invisveis, ou seja, o domnio da moral, do bem e do mal, das virtudes.

    A origem dessa educao suprema, completa, segundo as grandes tradies espirituais domundo, divina, concedida humanidade como um ato de graa dos cus. Como diz SoPaulo a Timteo:

    Toda a Escritura divinamente inspirada proveitosa para ensinar, para redargir, para corrigir,para instruir em justia. Para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instrudo paratoda a boa obra.7

    Seguramente, entre as escrituras divinamente inspiradas apontadas por So Paulo comoproveitosas para que o homem seja perfeito esto aquelas provindas de outros horizontes eclimas, nascidas tanto antes quanto depois do cristianismo. Nelas, o conhecimento tambm apresentado como algo sagrado, redentor, e a educao, como um ato divino.

    Buda, por exemplo, exortando seus discpulos h mais de 2500 anos, apresenta a educaoverdadeira, que edifica o carter, como o nico remdio contra o sofrimento:

    No vos desconcerteis com a universalidade do sofrimento. Segui os meus ensinamentos,mesmo depois de minha morte, e estareis livres do sofrimento. Fazei isso e sereis verdadeiramentemeus discpulos... Se seguirdes estes ensinamentos, sereis sempre felizes.8

    Para que os homens possam desfrutar dessa felicidade, porm, Buda diz que eles devemestar ansiosos por aprender.9

    Os Upanishades, parte da antiqssima tradio sagrada hindu, nascida h mais de 5000anos, nos primrdios da vida sedentria da humanidade, tambm associam esse valor sagrado educao, afirmando que pelo conhecimento obtemos imortalidade.10

    No Alcoro, revelado aos rabes no sculo VII, o conhecimento outra vez apresentadocomo de origem divina, concedido ao homem pela Revelao de Deus no Alcoro e nos demaisescritos sagrados, como o Evangelho cristo e a Tora judaica. Falando atravs de Maom, oprprio Deus quem explica:

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    Revelamos a Tora, que encerra Direo e Luz ... e depois dos outros profetas enviamos Jesus,filho de Maria, corroborando a Tora que O precedeu; e Lhe concedemos o Evangelho que encerraDireo e Luz, o qual confirma a Tora, e guia e exortao para os tementes.11

    Maom afirma que Deus o Mais Bondoso porque ensinou ao homem o uso da pena [aescrita] e aquilo que ele desconhecia.12

    Na mesma linha de argumentao, Bahullh, no sculo XIX, renova essa mensagem dasgrandes tradies espirituais, outra vez exaltando o papel do conhecimento na vida humana:

    O conhecimento como asas para a vida do homem e uma escada para sua ascenso. Atodos incumbe sua aquisio... Em verdade, o conhecimento um autntico tesouro para o homeme uma fonte de glria e bno, de contentamento, de exaltao, de alegria e de felicidade. Feliz o homem que a ele se apega, e desafortunado o desatento.13

    Mas ele tambm observa que Deve ser adquirido, contudo, o conhecimento de tais cinciasque possam beneficiar aos povos da terra, e no daquelas que comeam e terminam com palavras.14

    Todos esses textos, reverenciados pela humanidade h milnios, no apenas refletem orespeito e fascnio antigo e elevado que os homens nutrem pelo conhecimento e por suaferramenta, a educao, mas tambm tm servido, ao longo de incontveis eras e geraes,para dar a ela o carter de processo arquetpico para a salvao dos homens.

    a educao que emerge, ao longo da Histria, como o arqutipo da redeno humana desua prpria condio humana. Uma educao que um constante devir, pois que nunca estacabada. Como coloca Paulo Freire:

    [Os homens] descobrem que pouco sabem de si, de seu posto no cosmos, e se inquietam porsaber mais. Estar, alis, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razes desta procura.... Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.15

    1.4 EDUCAO E AUTO-REALIZAOAlm de a educao garantir a sobrevivncia e a sade da espcie, ela nos permitiu construir

    um padro de existncia nico sobre o planeta: aquilo que chamamos de civilizao. Cincia,arte, auto-realizao, f, ordem, desenvolvimento, prosperidade e cultura tm sido alguns dostemas e conquistas desenvolvidos e aprimorados ao longo dos milnios. E a educao semprefoi o elemento que, sozinho, serviu de veculo e garantia para a continuidade das conquistashumanas.

    Como j vimos, profetas, filsofos e pensadores sempre atriburam educao o mais altovalor social e moral, acima de tudo pelo fato de a considerarem o nico instrumento capaz deelevar o homem acima do nvel dos animais, colocando-o numa esfera especial da natureza,num patamar todo seu.

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    Entretanto, ao longo dos sculos, a educao no tem sido vista apenas como a fonte detodo bem social e coletivo dos homens, mas tambm como a ferramenta que permite a cadaindivduo elevar-se ao seu verdadeiro destino e cumprir seu potencial inato.

    A direo na qual a educao encaminha um homem determina sua vida futura, aafirmao de Plato em A Repblica.16 Dois grandes poetas ingleses tambm expressaram issode forma belssima. William Wordsworth afirma:

    A criana pai do homem. (The child is father of the man.) 17

    E John Milton reflete:A infncia revela o homem, (The childhood shows the man,)Como a manh revela o dia. (As morning shows the day.)18

    Isso significa que, mais do que o destino da espcie, o destino pessoal de cada ser humanoest na dependncia da educao. Ela determina o grau no qual os potenciais inatos de cadaum sero explorados e utilizados para o seu prprio proveito e para o benefcio da sociedade.Ou seja, a medida da auto-realizao de cada indivduo est ligada indissoluvelmente educaoque lhe concedida.

    Abraham Maslow, um dos maiores nomes da Psicologia neste sculo, afirma a respeitodesse potencial individual inexplorado:

    Freud supunha que o nosso superego ou a nossa conscincia era, primordialmente, ainternalizao dos desejos, exigncias e ideais do pai e da me, quem quer que eles fossem.... Essaconscincia existe Freud estava certo. Mas existe tambm outro elemento na conscincia, quetodos ns possumos, seja ela dbil ou vigorosa. Trata-se da conscincia intrnseca. Esta baseia-se napercepo inconsciente ou pr-consciente da nossa prpria natureza, do nosso prprio destino oudas nossas prprias capacidades, da nossa prpria vocao na vida. Ela insiste em que devemos serfiis nossa natureza ntima e em que no a neguemos, por fraqueza, por vantagem ou qualqueroutra razo...19

    Alm disso, Maslow afirma que Se esse ncleo essencial da pessoa for negado ou suprimido,ela adoece, por vezes de maneira bvia, outras vezes de uma forma sutil, s vezes imediatamente,algumas vezes mais tarde.20

    claro que este adoecer deve ser entendido naquele sentido amplo da definio da OMSapresentado acima. O fato que a vida plenamente realizada, com um sentimento de dinmicobem-estar, depende da auto-realizao.

    Por essa razo, a educao humana precisa despertar em cada indivduo no apenas aquelescomportamentos e caractersticas que sejam necessrios e adequados sociedade em que vive,mas tambm expresso daqueles imponderveis potenciais inatos que lhe permitam sentir-se

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    em paz com sua conscincia intrnseca. Isso no pode ser alcanado seno por meio de umaeducao que encoraje a criatividade e a auto-expresso, mais do que a imitao e o conformismo.Nas palavras de Jean Piaget:

    A meta principal da educao criar homens capazes de fazer coisas novas e no apenasrepetir o que outras geraes fizeram homens criativos, inventivos, e descobridores. A segundameta da educao formar mentes que possam ser crticas, que possam verificar e que noaceitem tudo o que lhes oferecido.21

    Tais observaes encaixam-se na tradio dos grandes pensadores do passado,independentemente dos enfoques especficos que adotaram em outros aspectos, na medidaem que foram unnimes ao relacionar a educao com a vocao de cada homem, preparando-o em pensamento e ao para cumprir seu propsito e posio na vida.

    O contrrio dessa educao que liberta e realiza seria a educao dos animais domesticadosou dos escravos, que aprendem para o benefcio dos outros, no do seu prprio.

    Tal educao liberal, um termo cunhado por Aristteles para definir a educao de homenslivres ao contrrio da educao iliberal, fornecida aos animais domesticados e aos escravos, destina-se a redimir e viabilizar a expresso do potencial inato de cada pessoa. seu objetivogarantir que cada ser humano viva bem, e no que to-somente seja capaz de ganhar a vida,para si ou para os demais.

    Aristteles afirma que a educao de um homem s liberal se ele faz ou aprende algopor causa dele mesmo ou de seus amigos, ou com vistas excelncia.22 Em outras palavras,ela deve tratar o homem como seu fim, e no como um meio a ser usado por outros homens,ou pelo Estado.

    Concepo bancria da educao como Paulo Freire denomina o processo de ensino/aprendizagem que no objetiva o homem livre para pensar e repensar o mundo, para entend-lo e recri-lo. Tal educao, denunciada por Aristteles como baixa e servil,23 , segundoFreire, a prpria anttese do saber:

    Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida viso da educao,no h criatividade, no h transformao, no h saber. S existe saber na inveno, na reinveno,na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e comos outros. Busca esperanosa tambm.24

    1.5 EDUCAO E ESCOLARIDADEObviamente, at aqui se falou de educao num sentido bem mais amplo do que

    simplesmente escolaridade. A maior parte da educao humana ocorre de maneira no formal,por intermdio da convivncia, da orientao, da imitao, da diferenciao. A educao,

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    portanto, muito mais antiga e ampla do que essas instituies formais chamadas escolas. Naverdade, como vimos acima, a educao to antiga quanto a prpria humanidade. Mesmo emnossos dias, muitos outros veculos educacionais, alm das escolas (a mdia, por exemplo),atuam permanentemente sobre todos os seres humanos.

    Ao longo da Histria humana, com exceo do sculo XX, a educao se deu peloaprendizado contextualizado, ou seja, as lies eram transmitidas no mbito do contexto emque deveriam ser aplicadas. Em outras palavras, aprendia-se fazendo. Por meio da observaoinformal e da prtica orientada no lar, nos campos, nos templos ou nos artesanatos, as crianase os jovens aprendiam, no apenas a fazer coisas e a entender as coisas, mas a ser.

    Toda a cosmoviso, os valores, os modelos de papis adultos, as possibilidades e aslimitaes que uma cultura possui foram transmitidos, ao longo de milhes de anos, dessaforma pouco sistematizada e espontnea. Mesmo na vida contempornea, esta ainda a principalforma de educao, mas, em todo o mundo, as crianas passam hoje grande parte do seutempo dentro de salas de aula.

    A escola pblica elementar, como a conhecemos atualmente, foi concebida somente nosculo passado, pela primeira vez nos Estados Unidos da Amrica. Como observa HowardGardner, A instruo pblica em massa distintamente um fenmeno do sculo XX.25

    H uma grande diferena entre a educao tradicional e a escolar, tanto no que diz respeitoaos objetivos educacionais, quanto ao processo educativo. Gardner, novamente, quem comenta:

    Pois enquanto a educao no mundo inteiro se caracteriza desde longa data pela transmissode papis e valores em ambientes apropriados, as escolas descontextualizadas foram criadas,primordialmente, com dois objetivos especficos : a aquisio de instruo com notaes e o domniode disciplinas.26

    Por que, ento, deveramos nos preocupar tanto com o acesso das crianas s escolas, ebuscar, de todos os meios, que elas possam desfrutar de tal conhecimento descontextualizadoe com nfase mais na instruo e nas disciplinas do que nos valores e nos papis adultos? Hvrias razes.

    At a Revoluo Industrial, no sculo XIX, a maioria dos seres humanos dependia daeducao informal (proveniente do convvio com os pais, a famlia e a sociedade) ou contextual(aprendizado in loco, como numa carpintaria, num mosteiro ou no campo) para construiraquele conhecimento que lhe seria necessrio para a vida em sociedade. Esse conhecimento,em geral, privilegiava a estagnao e o imobilismo sociais: nobres aprendiam coisas de nobres,camponeses aprendiam coisas de camponeses, artesos, de artesos, etc. Ou seja, o panoramaeducacional e social era Filho de peixe, peixinho .

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    Na sociedade contempornea, porm, as profisses e ocupaes humanas esto cada vezmais voltadas e abertas para as capacidades inatas de cada ser humano, independentementede sua origem. Nesse contexto, a educao escolar tornou-se o melhor instrumento educacionalque permite acesso ao mundo para alm da famlia. As escolas, no mundo inteiro, passaram arepresentar, em seu estado ideal, claro, um belo exerccio de justia e igualdade humanas, namedida em que oferecem a todas as crianas os benefcios do conhecimento, independentementede sua condio social.

    Obviamente, ainda h uma enorme e injusta diferenciao na qualidade de ensino oferecidoa diferentes classes sociais, mas o fato que, se compararmos a educao de hoje, em termosde possibilidade de crescimento e realizao pessoal, com aquela que dominou a Histriahumana, impossvel negar os grandes avanos ocorridos. Hoje as escolas so, em todo omundo, talvez o principal instrumento de socializao, de integrao comunitria, depossibilidade de auto-realizao. Assim, no contexto da civilizao contempornea, negar acesso escola negar acesso auto-realizao. cidadania, vida.

    Alm disso, com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e com as transformaesocorridas na estrutura do dia-a-dia de indivduos e famlias, especialmente no que diz respeitoao tempo e qualidade do convvio dirio, muito daquilo que antes era aprendido no laragora precisa ser aprendido na escola. Regras bsicas de convivncia, noes de certo e errado,entendimento do mundo e de si mesmo esto entre aqueles aprendizados fundamentais que,de maneira crescente, ocorrem, numa medida cada vez maior, fora dos lares.

    Em muitssimos casos at, as escolas oferecem o melhor ambiente possvel para odesenvolvimento das crianas, quer no sentido mais elementar de uma refeio adequada,quer nas dimenses mais sutis e determinantes de um ambiente emocional e socialmentesaudvel. Para os filhos de tantos lares desfeitos ou sujeitos ao lcool, violncia, misria e degradao, muitos professores so, hoje, os mais importantes adultos e os melhores modelos.Muitas dessas crianas contam com eles como os mais saudveis exemplos pelos quais iromodelar suas possibilidades de crescimento e sucesso, sua auto-estima e respeito, seus padresde paternidade e felicidade... Para outros tantos, as melhores lembranas de carinho, amor eternura estaro para sempre relacionadas aos bancos escolares.

    Alm disso, no contexto de um mundo sujeito aos impulsos preconceituosos, fanticos eetnocntricos relacionados a religio, raa, ideologia, origem e classe, as escolas oferecem,idealmente, e tambm, em geral, na prtica, um ambiente neutro e democrtico para a convivnciae a aprendizagem da convivncia pacfica e respeitosa. Enquanto no se tornarem quintais dasigrejas e partidos, oxal isso nunca ocorra, as escolas representam um baluarte fundamental

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    da sociedade pluralista, livre e democrtica. Bastaria isso para fazer delas um elemento essencialno processo de educao do qual estivemos falando.

    Barbara Freitag, um dos grandes nomes na rea do pensamento da eticidade, realizou em1981 e 1984 um estudo piagetiano em escolas e favelas da Grande So Paulo, concentrando-seem crianas e adolescentes entre 6 e 16 anos provindos de diferentes origens socioeconmicas,com o fim de identificar o perfil de desenvolvimento moral nesta populao. No estudo foramempregados os testes de moralidade sugeridos por Piaget e por Lowrence Kohlberg. Como emoutros estudos realizados em outras partes do mundo, a pesquisa confirmou a existncia deestgios de desenvolvimento moral, conforme postulados tanto por Piaget quanto por Kohlberg(algo de que trataremos mais adiante, quando falarmos da construo do indivduo tico).Mais importante para nossa considerao, aqui, foi outra concluso da pesquisa, no que dizrespeito ao desenvolvimento moral diferenciado para adolescentes escolarizados e noescolarizados. Segundo Freitag:

    Essa segunda hiptese foi inteiramente confirmada, favorecendo os adolescentes escolarizados.Entre estes, registraram-se os estgios mais elevados de moralidade. A decalagem [diferenciao]vertical constatada entre jovens favelados (sem experincia escolar) com relao aos jovensescolarizados de diferentes origens socioeconmicas mas de mesma faixa etria (de 12 a 16 anosde idade) era enorme.27

    Essas experincias, como outras em diferentes contextos socioculturais, demonstram, comoressalta Freitag, que a educao geral e a educao moral tornam-se necessrias para evitar oatraso (cumulativo) no alcance dos estgios adequados do desenvolvimento [moral].28

    Na base de teoria da moralidade de Kohlberg est o postulado de que a genunacompreenso moral depende de o indivduo ter alcanado o estgio cognitivo do pensamentooperacional formal, como descrito por Piaget, o que teria relao estreita com a escolaridade.Embora a comprovao de tal relao direta ainda permanea inconclusiva, e a distino daquiloque puramente lgico daquilo que puramente moral ainda no tenha sido definida pelaspesquisas contemporneas,29 permanece a clara indicao de que a educao ampliada, sejaformal ou informal, oferece maiores condies de desenvolvimento moral ao indivduo, se asdemais variveis forem idnticas.

    A escola, nos dias atuais, e a escola pblica em particular, apesar de todas as grandes eurgentes necessidades de aprimoramento e transformao, representa, assim, uma tbua desalvao para milhes de crianas que, de outra maneira, estariam fadadas ignorncia e marginalidade. O acesso escola representa, portanto, o acesso prpria vida, possibilidadede vida. uma promessa, humilde que seja, de um mundo melhor para cada criana, e a

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    promessa da construo de um ser que possa mesmo transcender suas origens, e que se construaconforme seus mais elevados potenciais.

    2 VALORES HUMANOS E MOTIVAO PARA A AO TRANSFORMADORANo se pode pensar em objetividade sem subjetividade. No h uma sem a outra, que no

    podem ser dicotomizadas.30

    2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAODurante a maior parte da Histria humana, em todas as culturas, era relativamente fcil

    entender o universo e o papel do homem dentro dele. Deus era o Criador supremo e oshomens, suas criaturas supremas. Os governantes o eram por direito divino e a misso detodos os homens era obedecer a Deus, ao rei, e tratar de salvar suas almas pela f. As regrasbsicas da existncia eram de natureza religiosa e a sociedade dominava sobre o indivduo. Atarefa humana fundamental era crer e obedecer.

    Essa viso teocntrica do mundo e de seu funcionamento foi questionada crescentemente,a partir da Europa do sculo XVII, dando lugar a um paradigma antittico: Deus existia, verdade, mas distante. O homem passou a ser o centro do universo, e a cincia era sua criaturasuprema. Os governantes derivavam sua autoridade do poder concedido a eles pelo povo. Asregras da vida eram de natureza cientfica e o indivduo estava acima do todo da sociedade. Atarefa fundamental dos homens passou a ser raciocinar e criar.

    claro que esse paradigma, nascido com a Revoluo Cientfica, o Iluminismo e oRacionalismo dos sculos XVI ao XVIII, representou uma anttese aos milnios de domniocultural e social da religio sobre os homens.

    Ao longo dos ltimos dois ou trs sculos, o antropocentrismo substituiu o teocentrismocomo paradigma dominante. A razo substituiu a f. O objetivo substituiu o subjetivo. A certezasubstituiu o mistrio. Essa mudana de Weltanschauung da civilizao ocidental difundiu-separa o mundo inteiro, atravs do processo de industrializao e globalizao que se lhe seguiu.Desde ento, a cincia e a razo so dotadas de fora de lei, de forma to categrica quantohaviam sido, no passado, a doutrina e a f.

    Fritjof Capra, da Universidade da Califrnia, em Berkeley, um dos mais destacados fsicose pensadores contemporneos, comenta:

    A crena na certeza do conhecimento cientfico jaz na prpria base da filosofia cartesiana e nacosmoviso que dela nasceu; e foi aqui, nas prprias origens, que Descartes se equivocou. A Fsicado sculo XX nos convenceu, de maneira forosa, que no h verdade absoluta na Cincia, quetodos os nossos conceitos e teorias so limitados e aproximados. A crena cartesiana na verdade

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    cientfica ainda muito disseminada hoje em dia e se reflete no cientificismo que se tornou tpicode nossa cultura Ocidental.31

    Porm, como anttese que , o paradigma cientfico-racional contemporneo ainda noest completo. Na verdade, nenhum paradigma jamais poder ser considerado completo. Dar-se conta dessa limitao fundamental para se poder ir alm dos limites criados por ele. Capraobserva:

    O mtodo de pensamento de Descartes e sua viso da natureza influenciaram todos os ramosda Cincia moderna e podem ainda ser muito teis hoje em dia. Mas sero teis somente se suaslimitaes forem reconhecidas. A aceitao da viso cartesiana como verdade absoluta, e do mtodode Descartes como a nica forma de conhecimento vlida desempenharam um papel importantena gerao de nosso desequilbrio cultural contemporneo.32

    O grande sucessor de Descartes na busca do conhecimento objetivo da natureza foi IsaacNewton. Seu xito em desenvolver todo um modelo matemtico para a viso mecanicista danatureza levou o paradigma do universo-mquina ainda mais longe. Alm da certeza noconhecimento cientfico e no primado da razo, Newton difundiu o paradigma da realidadecomposta de partes isoladas e independentes, os tomos, e da possibilidade de compreendero todo a partir apenas do estudo das partes. Essa viso atomista e reducionista agiriasinergicamente com os postulados cartesianos para criar todo um paradigma cada vez maisobjetivo e realista, em que as sutilezas das percepes desenvolvidas por pocas anterioresse perderam. Capra segue sua anlise:

    O extraordinrio sucesso da fsica newtoniana e da crena cartesiana na certeza do conhecimentocientfico conduziram diretamente nfase que nossa cultura atribuiu cincia pura e tecnologiapura. Somente em meados do sculo XX que se tornou claro que a idia de uma cincia pura eraparte de um paradigma cartesiano-newtoniano, um paradigma que seria ento superado.33

    Embora no tenha sido esta a inteno de Descartes, ou de seu grande sucessor, o fato que os pensadores que os sucederam, quer nas cincias da natureza, quer nas humanidades,estenderam a outros domnios do conhecimento um viso crescentemente materialista emecanicista, buscando tratar a natureza, o homem e a sociedade como mquinas. Houve, numsentido cada vez mais intenso e geral, um processo de dessacralizao da vida e de suas metas.

    Os pensadores do sculo XVIII continua Capra levaram este programa mais longe, aoaplicarem os princpios da mecnica newtoniana s cincias que estudavam a natureza humana e asociedade. As cincias sociais recentemente criadas geraram grande entusiasmo, e alguns de seusexpositores chegaram mesmo a reivindicar a descoberta de uma Fsica social.34

    Eventualmente, nessa caminhada obsessiva pela realidade objetiva, todos os fenmenos

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    subjetivos e todos os valores espirituais foram descartados como inteis. A famosa postulaode Marx em A Ideologia Alem cria escola e se impe no mundo:

    O modo de produo da vida material condiciona o processo em geral de vida social, polticoe espiritual. No a conscincia dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrrio, o seu sersocial que determina suas conscincias.35

    Apesar de tal interpretao da realidade ter deixado de ser verdade absoluta ao sercabalmente desmentida por Max Weber, em seu A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo,o fato que o contedo revolucionrio e poltico da prxis marxista dominou o cenrio culturalde grande parte do mundo, sendo fora incontestvel na difuso de uma postura e interpretaopuramente materialista da realidade. Como se no bastasse, em 1882, Nietzsche, proclama queDeus est morto!36

    Esse paradigma atomista, materialista, reducionista e mecanicista est nas razes da crescentedesumanizao do ser humano ao longo dos ltimos 300 anos. Eric Fromm descreve vivamenteo que se passa na conscincia e no comportamento das pessoas quando passam a tratar ouniverso como se fosse uma grande mquina, pessoas que ele denomina de necrfilos, ouseja, amantes das coisas mortas.

    ... o indivduo necrfilo ama tudo o que no cresce, tudo o que mecnico. A pessoa necrfila movida por um desejo de converter o orgnico em inorgnico, de observar a vida mecanicamente,como se todas as pessoas viventes fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentosde vida se transformam em coisas. A memria e no a experincia; ter, no ser, o que conta. Oindivduo necrfilo somente pode se realizar com um objeto seja uma flor ou uma pessoa se opossuir. Em conseqncia, a ameaa posse uma ameaa a ele mesmo. Se perde a posse, perdecontato com o mundo.37

    Outro grande nome da Psiquiatria do ps-guerra, Victor Frankl, criador da terceira escolade Psiquiatria de Viena (depois de Sigmund Freud e Alfred Adler), e uma das maisextraordinrias vidas e mentes do sculo, descreve as conseqncias nefastas do materialismoe do tecnicismo na sociedade contempornea:

    ... a evidncia clnica sugere que a atrofia do sentido religioso na pessoa humana resulta numadistoro de seus conceitos religiosos. Ou, falando em termos menos clnicos: uma vez reprimido oanjo dentro de ns, ele vira um demnio. Existe um paralelo inclusive em nvel sociocultural, poisrepetidas vezes observamos e somos testemunhas de como a religio reprimida acaba degenerandoem superstio. Em nosso sculo, o endeusamento da razo e uma tecnologia megalomanacaconstituem as estruturas repressivas em prol das quais sacrificado o sentimento religioso. Este fato

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    explica grande parte da atual condio humana, a qual realmente parece uma neurose compulsivauniversal da humanidade, para citar Freud.38

    Ken Wilber, um dos maiores filsofos da atualidade, comenta sobre a ruptura da culturacontempornea a partir da dissociao ocorrida entre os Trs Grandes, como ele chama oBelo, o Bom e o Verdadeiro. Essas trs dimenses de valores, identificadas por Plato, seguiramsendo os referenciais de grandes pensadores ao longo dos sculos, como Toms de Aquino,Kant, Popper e Habermas.

    Wilber, numa anlise fascinante, identifica como esses trs domnios se relacionaram aofazer humano de formas bem distintas, mas complementares, at interdependentes, ao longoda maior parte da Histria de todas as culturas e civilizaes, com exceo da Modernidade39

    na cultura ocidental. Ele tambm identifica os Trs Grandes com outras dimensesepistemolgicas e ontolgicas. Seno, vejamos:

    O Belo tem a ver com a conscincia, a subjetividade, a identidade pessoal, a auto-expresso(inclusive arte e esttica), a veracidade, a sinceridade, a conscincia vivida irredutvel e imediata,os relatos na primeira pessoa. O Belo o domnio da arte e do eu.

    O Bom diz respeito tica e moral, s vises de mundo, ao contexto compartilhado, cultura, aos significados intersubjetivos, compreenso mtua, ao apropriado, justeza, aosrelatos em segunda pessoa (tu, voc; vs, vocs). O Bom o domnio da moral e do ns.

    O Verdadeiro se relaciona com o domnio da cincia e da tecnologia, com a naturezaobjetiva, com as formas empricas, com a verdade propositiva, com as exterioridades objetivastanto de indivduos quanto de sistemas, e aos relatos na terceira pessoa (ele, ela, eles, elas).O Verdadeiro fundamentalmente o domnio da cincia e das coisas.

    Wilber descreve como o projeto da Modernidade tratou de separar essas trs grandesesferas que sempre haviam andado mescladas ao longo da Histria. Isso, de certa forma, foibom, pois permitiu que cada uma delas pudesse se desenvolver sem os freios que as demaispoderiam inadequadamente impor-se mutuamente. Mas ele tambm mostra como, mais do quediferenciao, a cultura moderna ocidental dissociou uma esfera da outra, criando barreiras(aparentemente) intransponveis entre o eu e o ns e o eles, entre a razo e a emoo e aintuio, entre a cincia e a arte e a religio... Comenta Wilber:

    [...] a diferenciao entre os Trs Grandes [o Belo, o Bom e o Verdadeiro] (e essa foi a dignidadeda modernidade) degenerou em dissociao dos Trs Grandes (o que representou o desastre damodernidade). Essa dissociao permitiu que uma cincia emprica explosiva, associada a formasflorescentes de produo industrial sendo que ambas enfatizavam somente o conhecimento das

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    coisas e a tecnologia das coisas dominasse e colonizasse as outras esferas de valor [o Belo e oBom] efetivamente destruindo-as em seus termos prprios.

    Assim, as [...] dimenses interiores foram reduzidas s suas [...] correspondentes exteriores, oque significou o colapso do Grande Encadeamento do Ser,40 e com ele, dos postulados centrais dasgrandes tradies sapienciais.

    [...] A est, precisamente, o desastre da modernidade, o desastre que foi o desencantamentodo mundo (Weber),41 a colonizao da esfera dos valores pela cincia (Habermas), o surgimentoda terra desolada42 (T.S.Eliot), o nascimento do homem unidimensional (Marcuse), a dessacralizaodo mundo (Schuon), o universo desqualificado (Mumford).

    Por qualquer outro nome que seja, trata-se do desastre conhecido como terra plana.43

    Assim, o fato que, via um processo progressivo de materializao, racionalizao emecanizao do universo, do indivduo e da sociedade, a cultura moderna acabou por coisificaro mundo, o ser humano e seus ideais. Os paradigmas dominantes da Modernidade levaram desumanizao do ser humano e de seu mundo.

    2.2 A PERMANNCIA DOS VALORES DESUMANOSH, ainda hoje, em todo o mundo, uma inrcia herana tardia da Renascena, do

    Iluminismo, do Racionalismo e da Revoluo Industrial de se conceber as solues dosproblemas humanos, inclusive sociais, em termos meramente tcnicos e materialistas. Talabordagem d nfase aos recursos, especialmente econmicos, no s pessoas; transfernciade conhecimento e tecnologia, no educao e capacitao; s normas e regulamentos, noao dilogo; s exigncias tcnicas e financeiras, no s espirituais.

    Arnold Toynbee, para muitos o maior historiador do sculo, comentava, j nos anos 50,sobre esta falcia das solues tcnicas, ao discorrer sobre a integrao mundial que viemos achamar de globalizao:

    Desde o comeo a humanidade tem estado dividida hoje nos unimos finalmente. ... Masnosso andaime, armado no Ocidente, constitudo por materiais menos durveis. Seu elementomais notrio a tcnica e o homem no pode viver somente da tcnica.44

    Toynbee ressaltava a necessidade urgente de a interdependncia mundial passar tambmpelo enriquecimento cultural mtuo, pelos valores humanos, por aqueles princpios espirituais,universais e atemporais como a Justia, a Liberdade e o Amor. Para que a aldeia global que seestava formando no se transformasse numa aldeia de dominadores e dominados, depossuidores e excludos.

    Paulo Freire, da mesma forma, no se sentia tolhido de falar em Amor quando falava de

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    transformao social. Para no parecer piegas, entretanto, (devemos lembrar que corriam osanos 60!) sentiu ser necessrio apoiar-se em Che Guevara que afirmava que o verdadeirorevolucionrio est guiado por grandes sentimentos de amor. impossvel pensar em umrevolucionrio autntico sem esta qualidade.45

    A ideologia da desumanizao, da racionalidade crua e mecnica e das aes isentas desentimentos, baseadas apenas em dados cientficos, dominou grande parte do ltimo sculo,ao ponto de muitos no conseguirem perceber outra alternativa para a realidade. Essa miopiade viso social caracterizou aquilo que viemos a reconhecer como Modernidade. Sua difusopelo mundo, e as conseqncias disso, descrita por Ervin Laszlo, um dos cientistas fundadoresdo Clube de Roma e consultor cientfico da UNESCO:

    A reunio do conhecimento cientfico e dos ofcios prticos sinalizou o nascimento da cinciaaplicada, ou tecnologia. Seu surgimento na Europa, em estados-naes que dominavam os setemares e se consideravam plenamente soberanos, pavimentou o caminho para a industrializao etodas as suas bem conhecidas conseqncias. Os valores da civilizao industrial foram difundidospara o resto do mundo atravs do mercantilismo e da busca por novas matrias-primas, assim como(num estgio posterior) por novos mercados. (...)

    Os valores e aspiraes associados com o modernismo espalharam-se de forma pouco sbia, namedida em que povos dominados pela tradio buscavam os confortos e o poder concedidos pelatecnologia, mas se achavam tambm expostos sua mentalidade subjacente. Assim se espalharampelos quatro cantos do mundo o materialismo, o egosmo, o chauvinismo, o atesmo e a intolernciaao subdesenvolvimento. Se para algumas pessoas tais atitudes parecem hoje ser expresses da prprianatureza humana, isso porque adotaram-nas de modo to completo que nada mais parece concebvel.46

    Laszlo ento denuncia a falcia de se imaginar que os valores e padres da sociedademoderna contempornea sejam finais ou ideais:

    Ao contrrio do que muitos crem piamente, o modernismo no a expresso final danatureza humana, mas apenas uma fase da evoluo humana e sociocultural. ... Muitos grandespensadores hoje vem nossa civilizao a trilhar o caminho errado, tanto material quantoespiritualmente. Eles buscam uma mudana espiritual atravs da educao e da religio, que conduzaa um redespertar de nosso senso de compaixo por toda a humanidade. importante ter em considerao que tais palavras sobre a premncia de nosso redespertar

    espiritual tm sido, cada vez mais, pronunciadas por cientistas, como Toynbee e Laszlo, e noapenas por telogos ou espiritualistas. A necessidade de se redimir a verdadeira naturezahumana no tem escapado s mentes mais perspicazes, qualquer que seja o domnio doconhecimento ao qual se dedicam.

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    Paulo Freire tambm refora essa viso de que os ideais desumanizados do materialismono podem ser tidos como vocao ou necessidade, como finais ou como nica alternativahumana. dele a seguinte expresso lcida, comovente e inspiradora:

    Humanizao e desumanizao, dentro da histria, num contexto real, concreto, objetivo, sopossibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconcluso.

    Mas, se ambas so possibilidades, s a primeira nos parece ser o que chamamos de vocao doshomens. Vocao negada, mas tambm afirmada na prpria negao. Vocao negada na injustia, naexplorao, na opresso, na violncia dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justia,de luta dos oprimidos, pela recuperao de sua humanidade roubada.

    A desumanizao ... distoro possvel na histria, mas no vocao histrica. Na verdade, seadmitssemos que a desumanizao vocao histrica dos homens, nada mais teramos de fazer,a no ser adotar uma atitude cnica ou de total desespero. A luta pela humanizao, pelo trabalholivre, pela desalienao, pela afirmao dos homens como pessoas, como seres para si, no teriasignificao. Esta somente possvel porque a desumanizao, mesmo que um fato concreto nahistria, no porm, destino dado...47

    No que toca especificamente educao e sua potencial ao libertria e humanizadora,Paulo Freire ressalta que esta precisa ser dialgica, pois, se no houver dilogo, o que h dominao. E aponta para o fato de que tais meta, postura e mtodo humanizadores s podemexistir se fundados nos valores espirituais humanos:

    No h dilogo, porm, se no h um profundo amor ao mundo e aos homens. No possvela pronncia do mundo, que um ato de criao e recriao, se no h amor que a infunda.

    Sendo fundamento do dilogo, o amor , tambm, dilogo. Da que seja essencialmentetarefa de sujeitos e que no possa verificar-se na relao de dominao. Nesta, o que h patologiade amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, no. Porque um ato decoragem, nunca de medo, o amor compromisso com os homens.48

    Esta percepo de que os valores humanos, ou espirituais, esto na base da motivao eda mobilizao para a ao transformadora uma grande redescoberta da segunda metade dosculo XX. As teorias contemporneas sobre motivao humana apontam para o fato de que asconscincias dos homens no podem ser mobilizadas se seu corao no for tocado. Os grandesvalores espirituais da Verdade, do Belo, do Bem, da Justia, do Amor etc. so elementosindelveis da natureza humana, e sua negao ou menosprezo esto na raiz da maior parte dosproblemas globais contemporneos.

    Por que, ento, tais princpios espirituais so negados ou menosprezados?

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    2.3 A INRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AO TRANSFORMADORA Ervin Laszlo, novamente, como uma das vozes mais notveis do sculo em prol da

    humanizao das aes governamentais e sociais, quem nos pode ajudar a comear a entenderas razes pelas quais, apesar de os valores humanos existirem e serem conhecidos, no soutilizados como instrumento de mudana social.

    Laszlo aponta para o que chama de limites internos da humanidade, que identifica coma inrcia em revermos criticamente a Weltanschauung, a cosmoviso da qual derivamos algica (ou a falta dela) para nossa interveno no mundo. Ele comenta:

    Esquece-se que no nosso mundo, mas ns seres humanos que somos a causa de nossosproblemas, e que apenas redesenhando nosso pensamento e ao, e no o mundo ao nosso redor, que os poderemos solucionar. ...

    No h praticamente nenhum problema mundial cuja causa no possa ser vinculada aohumana e que no possa ser superado por mudanas adequadas no comportamento humano. Ascausas que esto na raiz mesmo dos problemas fsicos e ecolgicos so as limitaes internas denossa viso e nossos valores. 49

    O fato que a razo, a emoo e as aes concretas humanas so reflexo da viso, dascrenas e valores que so nutridos subjetivamente, aquilo que pesquisadores como HowardGardner e Peter Senge, ambos da Universidade de Harvard, chamam de modelos mentais, ourepresentaes mentais, e que Thomas Kuhn batizou de paradigmas.

    Os modelos ou representaes mentais, os paradigmas, so imagens mentais arraigadasdentro de nosso ser, que usamos (individual e coletivamente) para compreender como funcionao mundo. Como a mente humana no pode lidar muito bem com dados detalhados relacionados complexidade do mundo, ela tende a construir modelos mentais compostos de generalizaes.Essas generalizaes se baseiam em imagens, idias, suposies, relatos, esteretipos e vriaslinguagens nutridas dentro da mente-crebro. Como coloca Gardner, essas representaesso reais e importantes.50

    Mas o mais importante que os paradigmas-modelos-representaes mentais determinamnosso comportamento, seja individual, seja coletivo. Gardner aponta para o fato de que oscomportamentos humanos objetivos podem melhor ser entendidos como epifenmenos, isto, as sombras de nossas representaes mentais determinantes.51 Ou seja, agimos conformecremos e sentimos, sejam tais crenas ou sentimentos justificados ou no. Vemos e agimos deacordo com nossos paradigmas pessoais e coletivos, sejam eles vlidos ou no.

    Segundo Senge:... o mais importante saber que os modelos mentais so ativos eles modelam nosso modo

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    de agir. Se achamos que as pessoas no so dignas de confiana, agimos de maneira diferente daque agiramos se achssemos que elas eram confiveis. ...

    Por que os modelos mentais tm esse poder de influenciar o que fazemos? Em parte, porqueeles influenciam o que vemos. Duas pessoas com diferentes modelos mentais podem observar omesmo acontecimento e descrev-lo de maneira diferente, porque olharam para detalhesdiferentes.52

    Thomas Kuhn, da Universidade de Chicago, o brilhante fundador da epistemologiacontempornea, j ressaltava em sua obra seminal A Estrutura das Revolues Cientficas:

    [...] algo como um paradigma um pr-requisito para a prpria percepo das coisas. Aquiloque um homem v depende tanto daquilo para o qual ele olha quanto do que sua experinciavisual-conceitual anterior ensinou-lhe a ver.53

    Podemos comparar os paradigmas e modelos mentais dominantes de uma civilizao oucultura a um navio transatlntico que cruza o oceano. Dentro dele, milhares de pessoas sedeslocam para cima e para baixo, entram e saem, de acordo com suas vontades: vo ao cinema, piscina, ao jantar, ao baile, sauna, ao camarote... Entretanto, todo esse movimento se ddentro de um movimento maior, que o deslocamento do navio de um continente ao outro.Esse macromovimento, dentro do qual se do todos os infinitos micromovimentos, quase queno percebido, j que todos se preocupam no com o deslocamento do navio, mas com suasvontades e necessidades dentro do navio. Todos se consideram livres para tudo fazer dentrodo navio. Mas exatamente a est a grande priso: tudo fazer dentro do navio. No haverianenhuma dimenso de liberdade (ou quase nenhuma, com exceo de se afogar ou ser comidopelos peixes) se algum quisesse fazer algo fora do navio.

    Da mesma forma, os paradigmas de uma civilizao estabelecem os limites invisveis dentrodos quais as pessoas pensam, sentem e agem. Os paradigmas estabelecem as barreirasimperceptveis dentro das quais tudo parece lgico e coerente e vivel. O grande problema justamente esse: assim como certamente existe muito mais vida e realidade fora do navio, damesma forma, existe muito mais verdade e realidade fora do(s) paradigma(s) dominante(s) deuma determinada civilizao, poca ou cultura.

    Transcender os paradigmas uma tarefa evolucionria fundamental, e a humanidade temsempre sido capaz de faz-lo, mas no sem dor e medo, no sem contradies e resistncia.Como Thomas Kuhn salientou, nenhum paradigma abandonado sem que outro seja assumidoem seu lugar. O ser humano no pode viver sem um sentido das coisas, e exatamente isso queos paradigmas oferecem. Quando um paradigma comea a se mostrar deficiente, outro comea a

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    ser formado, por meio dos esforos no orquestrados, mas sinrgicos, de pioneiros do novoparadigma. Inicialmente, tais pessoas so ridicularizadas e perseguidas, como os seguidores dasnovas religies, ou os defensores de novas teorias (veja-se os cristos nos circos romanos,Giordano Bruno, Galileu, Einstein, Max Plank, os protestantes na Europa da Contra-Reformaetc.), mas eventualmente o novo paradigma se estabelece, at o processo se repetir, no avanoirrefrevel do desenvolvimento do conhecimento e da conscincia humanos.

    Pois bem, tais consideraes sobre modelos e representaes mentais indicam que, semuma reviso de nossos postulados bsicos, sem um exerccio crtico de nossa viso de como ascoisas so e funcionam no tocante ao desenvolvimento humano, individual ou social, impossvel que ultrapassemos os limites interiores que, como aponta Laszlo, nos impedemhoje de criar realidades novas e melhores.

    O problema dos modelos mentais destaca Senge no est no fato de eles serem certosou errados por definio, todos os modelos so simplificaes. O problema surge quando elesso tcitos quando esto abaixo de nosso nvel de consciente.54Em relao aos valores humanos, espirituais por natureza, h ainda muita resistncia

    inconsciente, pautada em modelos mentais inconsistentes com a realidade, que impede queeles se manifestem ou sejam considerados seriamente quando se trata de resolver problemasreais e objetivos. Laszlo, entretanto, nos recorda que os valores e a motivao impregnamtodas as atividades humanas, mesmo as investigaes cientficas, e desconsider-los ou depreci-los no ir resolver nossos problemas, mas apenas varr-los para debaixo do tapete.55

    A viso desumanizada da vida, se no bastasse, no foi a nica conseqncia do paradigmamaterialista. A negligncia e o desprezo em relao ao poder do ideal, da viso positiva defuturo e da utopia, em favor de um pragmatismo ctico, foram outro legado da Modernidade.Em muitos ambientes, especialmente acadmicos, era considerado de bom tom e modernodepreciar todos os ideais da sociedade, mesmo aqueles dos grandes pensadores liberais dossculos anteriores. Isso era ser cientfico.

    Ervin Laszlo comenta quepraticamente esquecemos a importncia e o valor das idias e imagens positivas de futuro.

    Olhamos para os poucos visionrios remanescentes, que ainda acreditam num mundo melhor,como sendo otimistas ingnuos ou tolos inofensivos. Nossas sociedades sofrem de uma overdosede pragmatismo combinada com um pessimismo generalizado mas indefinido.56

    Somos ainda herdeiros, em muitos sentidos, dessa postura cnica e ctica, mas, ao mesmotempo, sentimos, como nunca, a falta das utopias.

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    2.4 RECONSTRUIR MODELOS MENTAIS E PARADIGMAS EM PROL DA HUMANIZAOReconhecer essa tendncia ao menosprezo do poder transformador dos valores humanos

    e dos grandes ideais humanistas fundamental para que se quebre o encanto do tecnicismo edas solues mecnicas e racionais. Sem tal reviso de posturas e pontos de vista, de modoa se colocarem os valores humanos, ou princpios espirituais, nas bases das decises morais,econmicas e polticas, o que ocorre a criatividade no erro.

    Nesse sentido, Laszlo denuncia:Sondamos maneiras inovadoras de satisfazer valores obsoletos. Administramos crises individuais

    enquanto marchamos direto para catstrofes coletivas. Pensamos em mudar quase tudo, menos nsmesmos.57

    E aponta a alternativa:Os apuros contemporneos da humanidade exigem mudanas interiores, uma revoluo

    humana e humanstica que mobilize novos valores e aspiraes, apoiados em novos nveis decomprometimento pessoal e de vontade poltica.58

    Durante o Ano Internacional da Paz, 1986, um documento distribudo pela ComunidadeBah aos lderes mundiais, intitulado A Promessa da Paz Mundial, alertava-os sobre aimportncia dos valores humanos para a transformao social. O documento salienta o fato deque os valores humanos, ao contrrio do que muitos ainda acreditam hoje, no so merosinstrumentos para as decises pessoais de indivduos mais refinados ou desenvolvidosespiritualmente, mas sim princpios-guia que devem nortear as decises de entidades e governosna busca do desenvolvimento social e econmico. Diz o texto:

    Existem princpios espirituais, ou aquilo que algumas pessoas chamam valores humanos, pormeio dos quais se podem encontrar solues para todos os problemas sociais. Qualquer grupobem-intencionado pode, num sentido geral, formular solues prticas para seus problemas, mas asboas intenes e os conhecimentos prticos geralmente so insuficientes. O mrito essencial deum princpio espiritual reside no fato de no somente apresentar uma perspectiva que se harmonizacom aquilo que imanente natureza humana, mas tambm de incutir uma atitude, uma dinmica,uma vontade e uma aspirao que facilitam e identificao e a implementao de medidas prticas.Os dirigentes governamentais e todos os que ocupam postos de autoridade fariam bem se, emseus esforos para resolver problemas, procurassem primeiro identificar os princpios envolvidos e,depois, se deixassem guiar por eles.59

    O texto aponta tambm para aquilo que poderia ser considerado o principal valor dosprincpios espirituais: o de serem capazes de incutir uma atitude, uma dinmica, uma vontadee uma aspirao que conduzem ao transformadora. Estudos na rea da motivao apontam

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    os grandes ideais e valores humanos como os mais poderosos motivadores da humanidade.Todo homem, um dia, cansa ou desiste de lutar por um melhor salrio, ou maior status, seesses forem fins em si mesmos. Mas pela Justia, pelo Respeito, pela Dignidade ningum secansa de lutar. So lutas perenes da humanidade.

    Abraham Maslow, entre tantos outros pensadores humanistas e ps-modernos,60 identificaessa mudana gradual em direo a uma percepo mais equilibrada do mundo, uma snteseentre a tese teocntrica e espiritualista medieval e a anttese antropocntrica e materialista dosltimos cem anos. Essa sntese paradigmtica conduz na direo de uma percepo da realidadeque harmoniza tanto os elementos sensoriais quanto os supra-sensoriais, que respeita tanto ascoisas do mundo quanto as do cu. Ele comenta:

    Quando a filosofia do homem (sua natureza, seus fins, suas potencialidades, sua realizao)muda, ento tudo muda, no s a filosofia poltica, a econmica, a tica e a axiolgica, a dasrelaes interpessoais e a da prpria Histria, mas tambm a filosofia da educao, da psicoterapiae do crescimento pessoal, a teoria de como ajudar os homens a tornarem-se no que podem eprofundamente necessitam vir a ser.

    Estamos atualmente no meio de uma tal mudana na concepo das capacidades,potencialidades e metas humanas. Est surgindo uma nova viso das possibilidades do homem e doseu destino, e as suas implicaes so numerosas, no s para as nossas concepes de educao,mas tambm para a cincia, a poltica, a literatura, a economia, a religio e at para as nossasconcepes sobre o mundo no-humano.61

    Alm dessa reviso fundamental dos valores que baseiam nossa cosmovisocontempornea, h outro elemento fundamental para a transformao da realidade humanaem direo da humanizao e da ressacralizao da vida, que j foi adiantada acima. Trata-seda construo de vises positivas de futuro.

    Imagens utpicas so arquetpicas. Ou seja, os seres humanos possuem uma capacidadeinata, como espcie, de responder entusiasticamente a propostas de futuro que sejam promissorase desejveis, e de agir para torn-las realidade. Nos primrdios da civilizao, h uns bons3000 anos, essa verdade j havia sido expressada quando um sbio disse que onde no hviso, o povo perece.62

    Isso era to verdade ento quanto o hoje.

    2.5 A ORIGEM E FONTE DOS VALORES HUMANOSMas onde buscar esses princpios espirituais norteadores, esses valores humanos

    orientadores, essas vises positivas de futuro?

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    Kant queria que todo o agir moral se sustentasse na razo, e no via necessidade de nadamais do que seu imperativo categrico para que cada um e todos os seres humanos agissem deforma tica. A Moral, nessa viso, seria basicamente autnoma (partindo do prprio indivduo) eracional, e no heternoma (partindo de uma autoridade externa) e cultural (religiosa ou poltica).Kant acreditava que bastaria a compreenso dessa formulao racional, belssima, por sinal, parafazer que os homens agissem moralmente uns para com os outros. Diz o imperativo categrico:

    Age tu de tal maneira que a mxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempocomo princpio de uma legislao universal.63

    Ou, em outra formulao:Age tu segundo a mxima que possa transformar-se em lei geral.

    No entanto, a Histria e as cincias contemporneas (Sociologia, Antropologia, Psicologia)demonstram que o agir moral exige bem mais do que a simples razo. A moralidade nasce de umatessitura complexa na qual inextrincveis elementos autnomos e heternomos (para usar Kant),ou internos e externos, atuam sobre o indivduo de forma categrica na sua complexidade e no-linearidade. A realidade moral bem diferente da pura razo prtica. As emoes, tanto ou maisdo que a razo, as estruturas psico-cerebrais congnitas, os condicionamentos familiares e scio-econmicos, os valores religiosos, polticos e ideolgicos, as tradies sociais, as circunstncias,a educao, o nvel de desenvolvimento moral, os paradigmas dominantes da civilizao, culturaou subcultura, tudo isso atua sobre o indivduo para constituir seu ser e fazer moral.

    Na realidade, apesar do que desejava Kant, hoje evidente que no existe desenvolvimentomoral sem uma fonte externa ao indivduo que sobre ele exera influncia inequvoca e qualele, preferencialmente, entregue sua lealdade, mas, em qualquer caso, sua obedincia. Um serhumano no age moralmente no vcuo da razo, mas impulsionado por crenas, sentimentos,lealdades, dios, amores, valores e princpios (ou pela falta deles).

    Assim, parece haver bastante consenso entre os pensadores ps-modernos quando tendema valorizar uma redescoberta dos princpios eternos e universais proclamados, no pela simplesrazo, mas pelas grandes tradies espirituais da humanidade. Sem necessariamente postularemum retorno s religies, pelo menos enquanto elas, ou naquelas que, se configuram conformeo que Wilberg chama de formato pr-moderno, tais pensadores e cientistas identificam nelasa origem e a fonte dos princpios universais de humanizao cuja falta tanto denunciam.

    Max Horkheimer, o fundador da Teoria Crtica e um dos pais da (Primeira) Escola deFrankfurt, junto com Adorno, Marcuse e Benjamin, deu desenvolvimento ao pensamentofilosfico contemporneo a partir de uma perspectiva marxista. dele, e de um quadrante toinsuspeito para tal posicionamento, a seguinte afirmao:

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    No existe nenhuma razo lgica e imperativa pela qual eu no deva odiar, se isso no meprejudicar na vida social. Todas as tentativas de basear a moralidade na inteligncia mundana, emvez de v-la em relao ao