pensar a amÉrica latina contemporÂnea introdução
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PENSAR A AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEA
Jorge José Barros de Souza
SEEDUC
Introdução
Pensar a América Latina contemporânea é um grande desafio para nós,
historiadores, tendo vista as mudanças, rupturas, fluxos e refluxos que tivemos desde a
sua longa e dificultosa formação dos estados nacionais, no século XIX, aos dias atuais.
A América Latina vivenciou uma epopeia de dar inveja a Ulisses, quando
enfrentou os enormes obstáculos durante seu retorno da Guerra de Troia.
As pelejas e os enfrentamentos derivados dos tempos da colonização são
refletidos até os tempos atuais, o tempo presente da América Latina.
O passado, como ponto de partida para entender as raízes dos problemas atuais
desta região, definida por sua natureza cultural e colonial, de América latina, é o acicate
para a elaboração desta análise que requer um debate, por ter especificidades que as
diferem de outras lutas e movimentos, em outros continentes e suas histórias.
Os efeitos da colonização são sentidos até hoje. A Ocidentalização,
acompanhada da miscigenação transformou estas bandas daqui num outro espaço que,
na atualidade, me parece ignorar traumas e contradições que foram o motor de várias
contestações e lutas, presentes ao longo dos séculos passados, e que reverberam até
hoje. As civilizações anteriores ao domínio ibérico foram destruídas:
Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a
um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente
em termos relativos (uma destruição da ordem de 90 % e mais),
mas também absolutos, já que estamos falando de uma
diminuição da população estimada em 70 milhões de seres
humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode
comparar-se a esta hecatombe. (TODOROV, 1999, p.185)
Outra grande questão: a América latina não é homogênea. Por mais que achem,
devidos as matrizes coloniais ibéricas, hegemônicas até o século XIX, a América Latina
é plural.
O longo e dificultoso processo das formações dos estados nacionais
na América Latina
Seria correto afirmar que a América Latina criou os personalismos? De que
maneira, os efeitos da colonização, e dos problemas ocorridos na etapa seguinte às
Independências - as guerras e o longo processo da formação dos estados nacionais –
reverberam até os dias de hoje?
Os personalismos na América Latina começaram com o caudilhismo. Da
impositiva figura dos caudilhos, em vários territórios da América Latina, o poder e a
coerção que exerceram possibilitaram a presença dessa cultura política que, a meu ver,
mesmo pertencendo a um tempo histórico, do século XIX, deixou um legado:
Os caudilhos eram tipicamente grandes proprietários de terras
que podiam aplicar seus recursos pessoais no clientelismo ou na
manutenção de exércitos privados. Os primeiros caudilhos
tornaram-se proeminentes nas guerras de independência; depois
estenderam a fama de líderes de homens dos tempos de guerra
para a política dos tempos de paz, que não era especialmente
pacífica. (CHASTEEN, 2001, p.106)
O legado cultural dos caudilhos se mostrou, no século passado, e neste que ainda
ocorre, nos populismos e neopopulismos que, em alguns países se apresentam como um
líder messiânico, um “salvador pátria” cuja imagem se perpetua num modelo de cultura
política. Como um cadáver que no longo processo de decomposição deixa marcar
indeléveis. E perpetua um personalismo:
Contudo, o interessante é o fato de que esta “encarnação” do
corpo político em um rei de carne não somente desfaz as
imperfeições humanas do corpo natural, mas transmite
“imortalidade” para o rei individual como Rei, isto é, em relação
ao seu supercorpo. (KANTOROWICZ, 1998, P.25)
No século XIX, os caudilhos deixaram suas marcas onde foram proeminentes.
No México, com Benito Juárez e Porfírio Diaz. Na Argentina, com Rosas. Países que
tiveram longas lutas na composição dos seus respectivos estados nacionais.
Simon Bolívar, o El libertador, uma liderança que podemos caracterizar como
pré-caudilho, apresenta-se no contexto do tempo presente da América Latina, como um
corpo que transmite uma imortalidade, conforme apontou Kantorowicz, que é
apropriada tanto pela esquerda, como pela direita.
Em seu tempo, Bolívar foi um liberal, porque se inspirou nos movimentos e lutas
herdados do século XVIII,
o Iluminismo, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Mas, por outro lado, foi
uma liderança oriunda das elites criollas e que conservou o tecido social dos tempos da
colonização.
O que quero ilustrar, e desejo ressaltar, foi a difícil construção do processo
democrático que, a meu ver, sobretudo na América latina, tem uma história à parte, e
que passa pela formação dos estados nacionais.
A etapa seguinte às independências nas Américas foi marcada por guerras que,
por conseguinte, favoreceram a balcanização da antiga América hispânica, na
fragmentação em vários países, para atender às demandas de líderes locais.
Liberais e conservadores disputaram a hegemonia pelo poder. Mesmo com
propostas distintas, não se deve deixar de mencionar o fato de serem os herdeiros
remanescentes dos tempos coloniais.
Essas disputas se arrastaram por anos e, levando em consideração a identidade
de cada país, ratifica o porquê a América Latina não ser homogênea.
Mesmo em áreas que tiveram a mesma matriz colonial, por exemplo, a
espanhola, a consolidação das repúblicas foi um longo e dificultoso processo.
O mesmo se diz em relação ao processo democrático, sistema de governo tão
valioso, raro no século XIX, construído ao longo do XX e ameaçado no século que
estamos vivenciando, o XXI.
Queria deixar registrado que na América Latina, os acontecimentos de século
passados, sobretudo o XIX, que salientei para cotejar com o processo de formação dos
estados nacionais, não estão distantes, remotos e perdidos no tempo. Muito pelo
contrário! Estão conectados para entendermos que as contradições são resultados deste
longo e dificultoso processo, em que as elites locais se perpetuaram no poder,
dificultando o acesso à república e à democracia.
A formação dos estados nacionais é um processo incompleto, por não encarar as
raízes de seus problemas, que remontam há tempos, desde os tempos da conquista e
colonização. O projeto mercantilista imposto pelos europeus ao longo de séculos
promoveu a pilhagem e a destruição de padrões culturais erguidos por ricas civilizações.
O legado cultural não promoveu a inclusão. Continuamos a servir, a sermos
enclaves, a termos nossa soberania solapada, nossa democracia sendo disputada e
manipulada pelos países centrais. Continuamos subservientes:
Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos de América
Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos
tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram
pelo mar e ficaram os dentes em sua garganta. Passaram os
séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já
não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula
e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as
jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua
trabalhando como serviçal. Continua existindo a serviço de
necessidades alheias, como fonte e reservas de petróleo e ferro,
cobre e carne, frutas e café m matérias-primas e alimentos,
destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito
mais do que a América Latina ganha produzindo-os.
(GALEANO, 1991, p.13)
As etapas da História da América Latina, que analisaremos em seguida, que vêm
após a formação dos estados nacionais, apresentaram singularidades e complexidades,
mesmo numa mesma conjuntura histórica. Conforme exposto anteriormente, a
construção dos estados nacionais na América Latina, após a fragmentação e
balcanização em diversos países, pesadelo de Simón Bolívar; e fato comemorado pelas
potências imperialistas do século XIX, Inglaterra e Estados Unidos, seguiu-se as lutas
de seus países, que se formaram após as independências.
Logo, portanto, enfatizo que o histórico de lutas vem a ratificar a
heterogeneidade e complexidade do continente latino-americano. As democracias que se
ergueram devido a consolidação do sistema republicano revelaram os problemas que se
arrastam até hoje para sua inteira efetivação, que devem introduzir, incondicionalmente,
a igualdade radical e a soberania popular. É perspícuo que tal igualdade e soberania
ficaram de fora da história da América Latina.
As lições de Rousseau para a América Latina
Para o filósofo Rousseau a soberania é inalienável. Como construtor teórico de
um novo pacto que ressalta o protagonismo da comunidade via vontade geral do povo,
Rousseau inaugura a democracia direta e participativa, onde o povo é o soberano:
A primeira e mais importante consequência dos princípios até
aqui estabelecidos é que somente a vontade geral pode dirigir as
forças do Estado de acordo com a finalidade da sua instituição,
que é o bem comum, porque, se a oposição dos interesses
particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades,
foi a concordância desses mesmos interesses que o tornou
possível. O que forma o vínculo social é o que há de comum
nesses diferentes interesses, e, se não houvesse um ponto no
qual todos os interesses se põem de acordo, nenhuma sociedade
poderia existir. Ora, é unicamente com base nesse interesse
comum que a sociedade deve ser governada. Digo, portanto, que
a soberania, que é o exercício da vontade geral, nunca pode ser
alienada e que o soberano, que é um ser coletivo, só pode ser
representado por si mesmo. O poder pode ser transmitido, não a
vontade. De fato, se não é impossível que uma vontade
particular concorde em algum ponto com a vontade geral, é
impossível pelo menos que essa concordância seja duradoura e
constante, porque a vontade particular tende por natureza às
preferências, e a vontade geral à igualdade. É ainda mais
impossível ter uma garantia dessa concordância, mesmo que
essa concordância perseverasse, o que não seria um efeito da
arte mas do acaso. O soberano pode muito bem dizer: “Quero
agora o que quer certo homem ou pelo menos o que ele quis
dizer”. Mas ele não pode dizer: “O que esse homem quiser
amanhã, eu também quererei”, porque é absurdo a vontade se dê
grilhões para o futuro e porque não depende de nenhuma
vontade consentir em nada que seja contrário ao bem do ser que
quer. Portanto, se o povo promete simplesmente obedecer, ele se
dissolve por esse ato, perde sua qualidade de povo. A partir do
instante em que tem um amo, não há mais um soberano, e o
corpo político é por conseguinte destruído. Isso não quer dizer
que as ordens dos chefes não possam ser tidas como vontades
gerais, enquanto o soberano, que é livre para se opor a elas, não
o fizer. Num caso assim, do silêncio universal deve-se deduzir o
consentimento do povo. (ROUSSEAU, 2011, p.77-78)
O legado Rousseaureano é assaz importante para compreendermos os dilemas da
História da América Latina, sobretudo a partir do período discutido anteriormente,
acerca da formação dos estados nacionais, que reverbera até hoje.
Tomarei como ponto de partida a questão da democracia. No século XIX as
fundações das repúblicas na América Latina tiveram a tutela das elites remanescentes
dos tempos coloniais – a criolla. No Brasil, as elites fundiárias foram as bases políticas
e sociais da monarquia.
Todavia, onde estava o povo na formação destes países? Os indígenas, negros,
mestiços, pobres e marginalizados não usufruíam das questões e desafios das repúblicas
e monarquia que vigoravam.
No México, em tempos de liberalismo que se consolidou com o porfiriato, os
indígenas, em grande maioria, foram alijados e encampados pela modernização, em fins
do século XIX.
Na Argentina, Rosas contribuiu para o extermínio indígena. Sarmiento estimulou
o projeto de branqueamento da população, em fins do século XIX. O liberalismo na
Argentina, no século XIX, mirava-se nos padrões europeus de cultura e “civilização”.
Em grande parte dos países da América latina, a escravidão continuava a ser a
força motriz mais importante da produtividade destes países, de natureza
agroexportadora.
A inserção da população negra pós-abolição foi marcada por muita
marginalização e violência. Sempre desassistida pelas autoridades de seus países:
O fato lamentável de que, em todas elas, as pessoas de origem
africana “mais pura” ou “sem mistura” ocupam,
desproporcionalmente, a parte mais baixa da escala econômica.
Em outras palavras, as pessoas de pele mais escura, de cabelo
mais encarapinhado e de lábios mais grossos formaram em geral
o grupo mais pobre da sociedade. Ou seja, nesses países, a
pobreza foi construída socialmente em torno de graus de origem
africana óbvia (...) esse fato econômico é um legado da
escravidão, de histórias longas e específicas de racismo, mesmo
em sociedades que se vangloriam de ser ‘democracias raciais”,
“livres de racismo” ou “pós-raciais”.(GATES JR, 2014, p.27)
Outro grande problema, que reverbera até os dias de hoje, é o problema
indígena. Quero frisar também que, numa perspectiva Braudeliana de longa duração,
tanto as questões do negro, como a indígena, além de interligadas por conta da herança
cultural, perpassaram pela marginalização e falta de reconhecimento histórico até os
dias de hoje.
O discurso hegemônico é o do preconceito e ação violenta a essas comunidades.
Em vários países suas descendências continuam a ser as primeiras a serem exterminadas
e aniquiladas, como foi no passado colonial. Pesa-se sobre estas populações uma
enorme dívida que em muitos países da América Latina não se têm a menor vontade de
pedir desculpas pelas mazelas históricas.
As populações indígenas são cada vez mais aviltadas na América Latina. Se
observarmos os países de população majoritariamente indígena, como a Bolívia, por
exemplo, somente em 2006 elegeu um presidente de origem indígena. Ao assumir o
poder, Evo Morales, através de uma reforma constitucional, reconheceu a Bolívia um
Estado Plurinacional. Foi o reconhecimento às populações indígenas:
A Bolívia constitui um Estado social Unitário Plurinacional de
Direito Comunitário, livre, independente, soberano,
democrático, intercultural, descentralizado e autônomo. [O
Estado da] Bolívia é baseado na pluralidade e no pluralismo
político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico dentro de um
processo de integração do país. (Artigo da Constituição da
Bolívia de 2009)
Seus enfrentamentos mostraram-se desafiadores. Em 2008, diante dos problemas
das autonomias, Evo se projetou como o arauto do projeto antineoliberal e separatista.
As comunidades indígenas foram submetidas durante anos ao neoliberalismo que
vendera até a água.
No Brasil, recentemente, o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, vem
promovendo o discurso de ódio aos povos indígenas. O número de assassinatos vem
aumentando e as ameaças estão na ordem do dia. Suas terras são invadidas por grileiros
e seus direitos, previsto na Constituição de 1988, ameaçados.
É necessário retomar o contratualismo rousseauniano. A efetivação de uma
soberania popular e de igualdade radical tem que se levar em consideração os direitos
dos negros e indígenas, e suas descendências.
É inevitável retomar o espaço sócio-cultural e territorial da América dita pré-
colombiana. Todavia, promover o debate que leve em consideração as suas
preservações, das várias etnias, tem que ser um projeto para a América Latina
Contemporânea.
O mesmo vale para os afrodescendentes. O tráfico de escravos mudou a natureza
dessas etnias. As colônias impuseram a escravidão. Vidas foram solapadas. E, as
abolições, muitas tardias, não exerceram o papel de inclusão social, arrastando o
problema do negro até hoje.
No Brasil, são os negros que mais sofrem com as faltas de políticas públicas. As
ações afirmativas, baseadas na experiência estadunidense de sistema de cotas,
contribuíram muito para a inclusão. Mas, não é tudo!
Recentemente, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, cometeu mais um de tantos
atos inconsequentes: ofendeu as comunidades quilombolas. São essas incorreções
históricas que, no atual governo, não se tem interesses em corrigir,
O neoliberalismo está de novo como projeto em curso na América Latina. As
políticas implementadas nos anos 90 por Fujimori, no Peru, Menem, na Argentina,
Fernando Henrique no Brasil e outros mandatários na Bolívia e no Equador levaram ao
caos e a situações desastrosas. No Brasil a aposta no projeto neoliberal aumentou o
fosso, a desigualdade e violência:
Os setores populares, particularmente aqueles que mais crescem,
os das populações pobres da periferia das grandes cidades - em
sete regiões metropolitanas se situa 40% da população brasileira
-, protagonizam os episódios mais cruéis da crise social
brasileira – desemprego, miséria, exclusão social, violência,
narcotráfico, ausência do Estado de direito e do Estado de bem-
estar social. (SADER, 2003, p.157)
Na Bolívia e no Equador a situação ficou tão caótica que as populações
resolveram ir às ruas derrubar seus mandatários. Na Argentina, em 2001, a queda de
Fernando de La Rúa, que mantivera a cartilha de Menem, deixou o país na bancarrota.
O Brasil quase quebrou em 1998, com a crise da Rússia. Mantiveram os
problemas econômicos escondidos para evitar a derrota eleitoral do partido – O PSDB –
que aprofundou o projeto neoliberal iniciado por Collor, em 1990. Mas, sem dúvida, foi
Fernando Henrique Cardoso, através das suas composições eleitorais, em aliança com o
antigo PFL (Partido da Frente Liberal), atual DEM, que se tornou o timoneiro do
neoliberalismo. Com um programa que previa privatizações e abertura ao capital
estrangeiro, inseria o País na conjuntura da nova globalização que se iniciava.
No México, a composição com o NAFTA, Tratado Norte-americano de Livre
Comércio, de 1994, trazia para o cenário político os novos herdeiros da luta dos povos
indígenas: o exército zapatista. Marcos Zapata aparecia num momento em que os
tempos neoliberais se aprofundavam, revelando, ao mesmo tempo, um desgaste do PRI
(Partido Revolucionário Institucional), que surgiu da Revolução Mexicana.
As urnas ratificaram essas profecias. Novos atores sociais e políticos surgiram
da conjuntura de crise do neoliberalismo, promovendo mudanças e inclusão social. A
atmosfera do caos socioeconômico atomizou novas demandas e reivindicações.
Presidentes foram derrubados dos cargos. Outros derrotados nas urnas.
As populações latino-americanas urgiam por soberania e igualdade. Um novo
contrato permitiu uma nova condução: uma democracia participativa trazia uma fagulha
de esperança. A América Latina mira-se nas lições deixadas por Rousseau.
As lições que devemos aprender de Rousseau é que o clamor popular, as
manifestações e revoltas populares, nos anos 2000, reacenderam a esperança de
mudanças. O protagonismo assumido pelos levantes populares tirou de cena os partidos.
O povo foi às ruas e gritavam: “Que se vayan todos”! Presidentes que se submeteram à
cartilha neoliberal, destruindo futuros, entregando riquezas minerais e ecossistemas,
deixando vulneráveis etnias e culturas às ameaças dos interesses do grande sujeito, o
mercado, foram retirados de cena política.
A lição que devemos aprender é que não se pode negligenciar ou subestimar as
lutas populares. Os mandatários que ocuparam a presidência no Peru, na Bolívia, no
Equador, na Venezuela e na Argentina, no início dos anos 2000, foram retirados do
cargo por insistir numa política econômica que promoveu ações terríveis: da fome ao
desemprego.
O que aconteceu às massas populares quando o perigo do neoliberalismo foi
afastado e o pós-neoliberalismo, uma etapa em construção, ainda era muito obscuro? As
esquerdas foram vitoriosas pela via eleitoral. Com as vitórias nos pleitos vieram as
reformas constitucionais. O poder constituinte foi assaz enriquecedor para o
estabelecimento das democracias participativas. Mas, qual foi o legado de Hugo
Chávez, importante no seu contexto histórico de resistência ao poder imperial dos
Estados Unidos na América Latina? Maduro, perdido numa órbita de caos político, não
pode ser considerado uma continuidade do chavismo.
Mas, voltando ao ponto central da discussão, podemos afirmar que as massas
perderam força? Podemos afirmar que as massas são a multidão, conforme apontam
Hardt e Negri? Ao concordarmos com esta definição estaríamos caminhando para uma
luta desterritorializada? Num universalismo que desprezaria as contradições regionais?
Poderíamos afirmar que as lutas que derrubaram presidentes corruptos e adeptos
do neoliberalismo surtiram os efeitos desejados, mas que sofreram refluxos? Ou estão
adormecidas? As massas perderam as esperanças na política, no sentido de
estabelecimento de poder? Na democracia? Ficou para trás os valores da democracia?
O fato é que o cenário atual é revelador: os tempos autoritários estão com muita
força e me parecem que a tolerância com a democracia é sintomática. No Brasil,
podemos afirmar que um plutocrata, assumiu o poder e vem, constantemente,
ameaçando os princípios democráticos. E pior: conta com um grupo de militantes e
convertidos ao chamado bolsonarismo.
Os dilemas e desafios da América Latina contemporãnea
Os desafios são ingentes. Anteriormente, mencionei alguns aspectos históricos
que reverberam até os dias de hoje. Repito e talvez seja alvo de críticas por isso: a
formação dos estados nacionais é algo incompleto.
Não quero ser redundante e repetitivo, mas ao sairmos da esfera da colonização
de matriz ibérica, assistimos as elites coloniais a servirem aos interesses ingleses e
estadunidenses que disputavam os mercados consumidores das recém nações
independentes.
A Doutrina Monroe não era um recado somente às antigas metrópoles europeias.
Mas, mais do que isso: Os Estados Unidos influenciaram as decisões do futuro destes
novos países. Viramos novos enclaves. As velhas contradições dos tempos coloniais
transformariam essa mão de obra livre num enorme continente do labor:
A diversificação das atividades produtivas e a constituição do
mercado interno criaram as condições para a implantação do
trabalho assalariado na América Latina. Tal modalidade de
trabalho foi estabelecida apenas ao longo do século XIX, em um
momento caracterizado pela expansão do capitalismo industrial
(especialmente inglês), que passou a exigir a ampliação do
mercado consumidor e a introdução do trabalho assalariado no
mundo colonial. (ANTUNES, 2011, p.18)
O maior desafio da atualidade dos países da América Latina é a instabilidade
democrática. O continente vivenciou ditaduras longevas, antes e durante a Guerra Fria.
Por mais que o legado dos países após as independências, com exceção do
Brasil, foi o sistema republicano inspirado na Constituição dos Estados Unidos, de
1787, a democracia não acompanhou a implantação das repúblicas.
As independências foram promovidas pelas elites coloniais. E as mesmas elites
promoveram a organização política sob sua tutela. Muitos países latino-americanos
foram criados por imposições, o que gerou tensões locais, disputa entre liberais e
conservadores, federalismo e unitarismo:
Padrões recorrentes de violência política e corrupção alienaram
a maioria do poço dos governos que supostamente o
representavam. A política tornou-se, acima de tudo, uma busca
dos benefícios pessoais dos cargos públicos. Em suma, a
primeira geração pós-colonial (1825-1850) não viu a América
latina progredir em nenhuma direção. (CHASTEEN, 2001,
p.102 )
A construção das democracias na América Latina foi de longa duração. Os
caudilhos saíram de cena. As revoluções, como a Mexicana, longa e com altos e baixos,
iniciada em 1910, e estabilizada com Lázaro Cárdenas, nos anos 30, possibilitou a
institucionalização do PRI, partido que tutelava a democracia, e que ficou muito tempo
no cenário político mexicano.
Na Argentina e no Uruguai, os reformismos ditos, radicais, efetivaram a
ampliação do sufrágio. Foram importantes para a ampliação de direitos considerados
significativos e inclusivos.
Os populismos, fenômeno datado na América Latina, cumpriram sua missão, de
industrializar e incluir as massas no processo de modernização em curso à época.
Contudo, para onde caminha e como caminha a América Latina? Não nos cabe
como historiadores profetizar. O máximo que fazemos é olhar o passado, conforme
falou Heinrich Heine: “O historiador é o profeta que olha para trás”. Tentar dar um
sentido ao passado, entender que este passado reverbera no presente e pode dar
respostas para o futuro.
Segundo, Gino Germani, a América Latina passou pelos estágios ou etapas:
1) Das Independências e das guerras de emancipação; 2) Das guerras civis, caudilhismo
e anarquia; 3) Das autocracias unificantes; 4) Das democracias representativas de
participação limitada ou oligarquias; 5) Das democracias representativas de maior
participação; 6) Das democracias representativas de participação total, marcada pelas
revoluções nacional-populares.
Em relação aos três primeiros pontos, foram fatos ocorridos no século XIX. E,
em relação aos três últimos estágios, no século passado.
Emir Sader, chama de ciclos, baseado num recorte mais recente:
1)De 1959, da Revolução Cubana a 1967 com a morte de Che Guevara; 2) de 1967 a
1973, com os golpes militares na Bolívia, no Chile e no Uruguai; 3) de 1973, com a
consolidação das ditaduras militares no Cone Sul a 1979, um período de grande refluxo;
4) de 1979, com o triunfo sandinista a 1990, com a derrota desta revolução; 5) de 1990
com a expansão do neoliberalismo, no Brasil, no México, na Argentina e no Peru;
O que veio em seguida ao fracasso do neoliberalismo, no final dos anos 90 e
início do terceiro milênio para alguns países? Uma ressaca que buscou uma ruptura com
a hegemonia estadunidense, construída no Consenso de Washington.
Na Venezuela, com a eleição de Hugo Chávez e, em seguida, na Bolívia e no
Equador, com as eleições de Evo Morales e Rafael Correa, respectivamente, novos
mandatários que propuseram rupturas, refundação de seus estados nacionais e novas
Constituições.
No final dos anos 90 e início do terceiro milênio, além de uma nova esquerda,
anunciava-se o que foi chamado de Revolução Bolivariana e Socialismo do século XXI,
num continente que mergulhou no que Fukuyama vociferara: o fim da história. Não
estamos mais nos tempos da Guerra Fria, mas o objetivo de se chegar ao socialismo não
estava enterrado. Chávez, Evo e Correa buscaram viabilizá-lo em tempos pós-
neoliberais.
Os tempos pós-neoliberais acordaram países da América Latina para as mais
variadas matizes de esquerda: da moderada à radical/revolucionária. O que vejo como
uma esquerda positiva, no que ela poderia carregar de transformadora.
Chávez deixou um legado na Venezuela. Todavia, devemos repensar a
Venezuela, para além de Maduro, dos interesses do capital estrangeiro no petróleo e da
polarização e radicalização política. Naquele país, as massas populares, sem as
manipulações de ambos os lados, devem encontrar o caminho para que o país volte a
pensar em si mesmo.
Na Argentina, o presidente Macri, até o momento que escrevo este artigo,
malogrou na sua proposta de retomada do projeto neoliberal. As pesquisas apontam para
o retorno de Cristina Kirchner e, possivelmente, a suspensão da política neoliberal.
Bolsonaro, em seus discursos, que parece estar em eterna campanha, vem
apostando no caos para governar. Ao criar a ideia do espantalho, de que tudo foi culpa
do PT, ele ativa a sua militância, cega em entender que o país está sem projeto. Ou deve
ser esse mesmo: a da aposta no caos. Estamos nos impontuais da fascistização da
sociedade brasileira?
Noriega, na Nicarágua, fracassou como uma liderança significativa de uma
revolução, a sandinista. O país vem atravessando momentos críticos. 2018 foi muito
tenso. O que sinaliza para uma algo preocupante, desalento e decepcionante.
No México, Obrador, depois de duas eleições derrotadas, consegue levar a
esquerda ao poder nacional. Seus desafios são muitos. Os mais graves são o narcotráfico
e o muro que separa os Estados Unidos.
Quais os caminhos da América Latina quando se questiona a ordem democrática
no mundo inteiro? Teremos uma multidão que arregimentará uma nova força de
mobilização de luta, que trará as reivindicações dos povos indígenas, negros, mulheres e
outros sujeitos históricos?
É necessário refletir sobre este momento histórico, a luz do passado e do que
pode ocorrer no futuro. A América latina é um laboratório de acontecimentos e
inúmeras incertezas.
Conclusão
A América Latina vem passando por rápidas mudanças sociais e políticas nos
últimos tempos. Para onde ela caminha? As revoluções falharam na construção de uma
nova sociedade? Ou cumpriram o seu papel? Continuaremos na dialética esquerda x
direita? Caminhamos para um processo de fascistização? Os golpes poderão ser dados
de outra maneira que não mais aqueles tradicionais, que levaram construção de
ditaduras terríveis?
E Cuba, com quem Obama acenou com uma aproximação, para onde irá? E a
Venezuela de Maduro que, desde a morte de Chávez perdeu aquela tão sonhada
esperança de uma nova sociedade?!
Durante anos da era Chávez pude concluir que mesmo com a polarização, a
Venezuela não poderia cair no personalismo, outra incorreção da América Latina. A
Venezuela não é Chávez. O país está sem novos sucessores. Chávez teve seus méritos.
Mas, não pode ser somente essa expressão política.
A Nicarágua que passou por uma revolução no final dos anos 70, que derrubou
uma ditadura longeva, de Somoza, vem vivenciando uma enorme decepção com um dos
seus principais herdeiros da Revolução Sandinista: Manuel Noriega. Quais os caminhos
que se vislumbram quando o herdeiro da revolução sandinista se transforma naquilo que
combateu?
E o fenômeno do ressurgimento do neoliberalismo, muito forte e devastador, nos
anos 90, e que voltou com toda a força, nos recentes mandatários da Argentina, Macri; e
do Brasil, com Temer, e agora, com Bolsonaro persistirá com sua política excludente?
Ou sucumbirá em algum novo ciclo que virá?
Nossas indagações partem do princípio de como está a democracia e para onde
caminha a mesma? Comportamentos e discursos autoritários podem ameaçar a
democracia na América Latina. A região passa por mudanças em seu sistema? Como
ficarão as relações internacionais entre os países? São essas questões que nos fomenta a
pensar e refletir sobre os acontecimentos políticos e sociais da América Latina.
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