percursos literários da i república portuguesa
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O período de 16 anos que circunscreve a primeira fase da República Portuguesa (1910-1926) é bastante enérgico e diversificado no domínio da produção literária, a qual se divide – de uma forma genérica – entre a vanguarda urbana e a tradição rústica, o umbilicalismo e a consciência social. Três revistas marcam essencialmente esta fase: a Águia, órgão difusor do Saudosismo, de cujos autores destacamos Teixeira de Pascoaes e Augusto Gil; o Orpheu, revista cosmopolita que contém artigos e poemas vanguardistas, dos quais Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro são exemplos incontornáveis; e a Seara Nova, publicação que surge do desejo de maior intervenção social, como crítica ao sebastianismo e ao isolamento da Europa, sendo Aquilino Ribeiro e Raul Brandão dois escritores modelares.TRANSCRIPT
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Percursos literários da I República Portuguesa
António Martins Gomes (Centro de História da Cultura - FCSH)
Óscar Lopes, na sua História da Literatura Portuguesa (Lisboa: Editorial
Estúdios Cor, 1973), divide a análise do período de produção literária da transição
para o século XX com base num critério simultaneamente factual e político: a “geração
de 1890”, com a duração de duas décadas, e a “geração da República”, que lhe
sucede. O autor assinala desta forma o começo de uma fase literária com a mudança
de regime ocorrida a 5 de Outubro de 1910, um episódio da História de Portugal queparece ser ainda mais vinculativo do que a sempre incontornável viragem de século.
Com efeito, a revolução de Outubro materializa, com o advento do novo regime
político, o sonho messiânico e a esperança salvífica numa nova divindade chamada
República, prenunciada há muito pelo patriarca Henriques Nogueira, e os 16 anos que
abrangem a primeira fase literária da República Portuguesa são de uma produção
bastante frutífera e diversificada, a qual se bipolariza essencialmente entre a criação
vanguardista e o apego aos costumes tradicionais, podendo ser dividida em três fases:
a primeira (1910-1914), marejada de saudade e tradição; a segunda (1915-1920),
transbordante de modernidade e inovação; e a terceira (1921-1925), fervilhante de
empenho e militância.
Em 1910, no ano de mudança política e em
que Teófilo Braga se torna Presidente do Governo
Provisório, é publicado Próspero Fortuna , um romance
que denuncia o descalabro de Portugal sob a égide da
dinastia de Bragança e defende a República como
solução nacional. A cem anos de distância da sua
publicação e à luz da sua mensagem apologética, esta
obra de Abel Botelho é o melhor exemplo da literatura
portuguesa de tese republicana, ao transmitir a ideia
de República como uma entidade redentora aos olhos
de uma burguesia desiludida com a incúria reinante
em Portugal no crepúsculo da monarquia.
Na verdade, este romance abeliano apresenta-se como um reflexo históricoda crise existente entre o fim do reinado de D. Luís e o início do de D. Carlos: pugna
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por um Estado laico, apresenta uma estratégia retórica com vista à formação cívica,
nomeia Camões como o maior exemplo patriótico a seguir, incrimina a nefasta conduta
governamental levada a cabo durante a dinastia brigantina, e dá visibilidade ao
jornalismo panfletário, um importante método difusor do pensamento republicano
durante as duas últimas décadas do regime monárquico e incitador à sublevação
portuense de 31 de Janeiro de 1891.
A revista Águia (1910-1932) assinala o início da primeira fase literária da
República Portuguesa na qualidade de
órgão difusor do Saudosismo, por meio
de autores como Teixeira de Pascoaes
(director entre 1912 e 1917), Jaime
Cortesão, António Correia de Oliveira,
Afonso Lopes Vieira ou Augusto Gil (que
tinha composto no ano anterior a sua
neo-romântica “Balada da neve”, incluída
em Luar de Janeiro ), cujas obras evocam
as raízes da alma nacional através de
um misticismo panteísta e procuram
instilar as marcas da saudade na
identidade portuguesa ao longo desses
tempos inaugurais da República. É
também nesta publicação – de
periodicidade quinzenal no ano da
primeira série, e mensal a partir de 1912
– que se estreia Fernando Pessoa como
ensaísta da nova poesia portuguesa.
No número 8 da Águia (1911), Teixeira de Pascoaes, imbuído de populismo
bucólico e historicismo sentimental, entre outras características congéneres, mostra odesejo de renovar (ou, melhor dizendo, ressuscitar) a pátria portuguesa através da
República, época equiparada a uma segunda fundação nacional:
O cinco de Outubro foi já um facto de grande alcance, porque noslivrou da influência de Roma, apagou as lâmpadas de Roma. Agora só resta(e será o mais custoso) apagar os fachos de Paris, e guiarmo-nos pela nossaprópria candeia, alimentada com o azeite das nossas oliveiras… É precisoeducar este Povo dentro da sua personalidade; um vestuário estrangeiro nãolhe fica bem; não foi feito para o seu corpo.
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Em 1911, Manuel
de Arriaga é eleito
Presidente da República,
entra em vigor o primeiro
Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa, com
vista a simplificar a escrita e
combater o analfabetismo, o
Estado separa-se da Igreja,
e a marcha “A Portuguesa” é
adoptada como hino
nacional. Aparentemente, o
conteúdo dos seus versos,
compostos por Henrique
Lopes de Mendonça e
musicados por Alfredo Keil
na sequência do Ultimato
inglês em 1890, não
apresenta uma identificação
imediata com a ideologia
republicana; contudo, a sua orientação positivista, assente nos valores da elevação e
da transcendência épica (Heróis do mar, nobre povo, nação valente , Imortal , Levantai
hoje de novo), ou na simbologia da luz (o esplendor de Portugal), possibilita a sua
conversão espontânea ao republicanismo; por sua vez, o refrão dá o mote inequívoco
para a revolta pela via bélica e, vinte anos antes, antevê a forma de implantação da
República em Portugal.
Ainda no mesmo ano em que são lançadas as
bases ideológicas da Renascença Portuguesa ,Teixeira de Pascoaes, orientador deste movimento
filosófico e cultural que acompanha o voo místico d’A
Águia , publica Marânus . Neste poema extenso em
verso decassilábico, cujos dezassete cantos
congregam elementos da paisagem nortenha no
sentimento de um sujeito contemplativo, a saudade – o
sangue espiritual da raça e o seu estigma divino,
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segundo o próprio autor – chega a adquirir o estatuto de uma deusa simultaneamente
pagã e cristã:
Ó nova Divindade, eu quero erguer-te,No mais alto da Serra, um belo altar,Feito de saibro e rosas matutinas,Alumiado do sol e do luar.Ali, será Belém. Os pastoresSe hão-de ajuntar, em grande romaria,Na adoração do novo Deus menino,Rezado pela nova Profecia.(Marânus , canto VII)
Em 1914, Mário de Sá-Carneiro publica A confissão de Lúcio e Dispersão –
título que indicia desde logo a sua vincada crise de personalidade – e Fernando
Pessoa ortónimo introduz o paulismo na poesia (“Pauis de roçarem ânsias pelaminh'alma em ouro…”). Quanto aos heterónimos pessoanos, começam a desdobrar-se
na sua entidade autónoma e dão aqui os seus primeiros passos líricos: o engenheiro
futurista Álvaro de Campos faz a
orquestração em verso livre da
“Ode Triunfal” numa escala
apoteótica de motores em marcha e
engenhosas onomatopeias a
glorificar o progresso da civilizaçãoindustrial; o estóico Ricardo Reis
compõe versos epicuristas à pobre
ceifeira, desejando outrar-se nela; e
o rústico Alberto Caeiro coloca-se
na pele d’O Guardador de
Rebanhos :
XVIQuem me dera que a minha vida fosse um carro de boisQue vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,E que para de onde veio volta depoisQuase à noitinha pela mesma estrada.Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...Quando eu já não servia, tiravam-me as rodasE eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
[…]
XXO Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
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Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Em 1915, José de Almada Negreiros – “Poeta d’Orpheu, Futurista e Tudo…”
– publica o Manifesto Anti-Dantas e por extenso , uma violenta sátira panfletária contra
Júlio Dantas, um dos principais representantes da instalada literatura tradicionalista:
“O Dantas nu é horroroso! / O Dantas cheira mal da boca! / Morra o Dantas, morra!
Pim! / O Dantas é o escárnio da consciência! / Se o Dantas é português eu quero ser
espanhol!”.
Na sequência de muitas
tertúlias de café, são publicados os dois
únicos números de Orpheu , uma revista
cosmopolita que contém artigos
doutrinários de estética e poemas
vanguardistas de autores como
Fernando Pessoa, Mário de Sá-
Carneiro, Luís de Montalvor (director do
primeiro número e, em 1930, fundador
da mítica Editora Ática) ou Ângelo de
Lima. Perante uma comunhão tão
singular de “ismos” neste projecto luso-
brasileiro – simbolismo, decadentismo,
modernismo, sensacionismo, futurismo
ou interseccionismo, podemos
considerar estar aqui o momento de
transição para a segunda fase literária
da I República Portuguesa,
caracterizada por esta onda prolífica de
géneros estéticos.Segundo Luís Francisco Rebelo, com o Orpheu morre o século XIX e nasce o
século XX nas letras e nas artes nacionais. Com efeito, no mesmo ano em que
Bernardino Machado é eleito Presidente da República e surge o Integralismo Lusitano,
movimento filosófico de tendência monárquica e católica (tendo António Sardinha
como um dos seus principais representantes), esta Revista Trimestral de Literatura –
que contou “apenas” com dois números – destaca-se pelo seu carácter inovador, tanto
ao nível da apresentação estética como do conteúdo, assumindo-se desde logo contra
a tradição academista e o saudosismo; por esta razão, este movimento artístico-
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cultural acaba por ser incompreendido pela generalidade do público e da crítica, que
adjectiva depreciativamente os seus colaboradores de lunáticos e alienados.
A estátua em bronze de Pessoa, da
autoria de Lagoa Henriques, colocada em frente
à Brasileira do Chiado desde 13 de Junho de
1988, assinala simbolicamente o espaço físico
desta geração urbana: o café, lugar privilegiado
para redigir textos e trocar ideias entre cigarros
e bebidas. É uma geração genial mas quase
sempre insatisfeita, ao viver entre o
individualismo e a fragmentação, a evasão pelo
mundo e o aconchego do lar, o alheamento para
além do horizonte físico e a consciência da
realidade, o comprazimento em pensar e o
padecimento de sentir, a perpétua loucura e os
relampejos de lucidez. Já em 1912, Mário de Sá-Carneiro pronuncia-se, numa das
primeiras cartas endereçadas a Fernando Pessoa, a propósito desta geração cerebral
que, salvo raras excepções, exclui do seu programa o idealismo romântico e o sujeito
feminino como objecto de culto ou como motivo central do texto lírico e narrativo: “A
nossa geração é mais complicada, creio, e mais infeliz. A iluminar as suas
complicações, não existe mesmo uma boca de mulher. Porque somos uma geração
superior.” (apud Eugénio Lisboa, Poesia Portuguesa: do “ Orpheu ” ao Neo-Realismo ;
Lisboa, ICLP, 1986, 16)
1916 é o ano em que Portugal
se integra nas forças aliadas (França,
Inglaterra e Rússia) da Primeira Guerra
Mundial e Mário de Sá-Carneiro se
suicida apoteoticamente em Paris com25 anos. “Fim” é o seu último poema,
assim nomeado a título póstumo pelo
seu padrinho Fernando Pessoa para
encerrar simbolicamente o ciclo efémero
da sua produção literária, iniciado em
1912 com o livro de contos Princípio :
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,Façam estalar no ar chicotes,Chamem palhaços e acrobatas!
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Que o meu caixão vá sobre um burroAjaezado à andaluza...A um morto nada se recusa,Eu quero por força ir de burro.
Em 1917, no ano das tão debatidas
aparições marianas, surge o primeiro e único
número de Portugal Futurista , publicação difusora
do futurismo literário português, onde colaboram
Álvaro de Campos (“Ultimatum”) e Almada Negreiros
(“Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do
Século XX”), e Raul
Brandão publica a sua
obra-prima Húmus ,um romance em
formato diarístico
onde se desenvolvem
memórias e cogitações intelectuais que reduzem o
homem ao mais ínfimo da sua existência cósmica em
dois monólogos interiores e metafísicos, num incipiente
estilo precursor do nouveau roman , a ser cultivado mais
tarde por Samuel Beckett, Albert Camus e VergílioFerreira, entre outros.
No ano seguinte, o Presidente Sidónio Pais é morto a tiro no Rossio por um
republicano, assinalando desta forma radical o seu descontentamento em relação aos
caminhos traçados pelo novo regime político. A partir daqui, instala-se uma longa
crise, marcada por uma constituição sucessiva de governos até 1926 (24 ao todo,
sendo formados 15 até 1921). Em memória do seu “Presidente-Rei”, em cuja
personalidade depositava uma enorme esperança política, Fernando Pessoa dedicaum extenso poema. São estas as duas quadras nostálgicas que o iniciam:
LONGE DA FAMA e das espadas,Alheio às turbas ele dorme.Em torno há claustros ou arcadas?Só a noite enorme.
Porque para ele, já viradoPara o lado onde está só Deus,São mais que Sombra e que PassadoA terra e os céus.
(in Acção , Ano II, n.º 4, 27/2/1920)
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Em 1919, António José de
Almeida torna-se o sexto Presidente da
República e, não havendo regra sem
excepção na história desta geração
predominantemente masculina, Florbela
Espanca edita o seu Livro das mágoas ,
um extenso conjunto de 68 sonetos que
procuram espelhar a sua dolorosa
experiência sentimental. O poema
introdutório deste volume é uma
intertextualidade do primeiro soneto do
Parnaso camoniano, que, para além da
ideia de verdade autobiográfica
transmitida no sofrimento amoroso do
sujeito lírico, de natureza petrarquista, apela aos leitores para que com ele se
identifiquem, a fim de melhor poderem entender o seu drama:
Este livro é de mágoas. DesgraçadosQue no mundo passais, chorai ao lê-lo!Somente a vossa dor de TorturadosPode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo…
Este livro é para vós. AbençoadosOs que o sentirem, sem ser bom nem belo!!Bíblia de tristes… Ó Desventurados, Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!
Livro de Mágoas… Dores… Ansiedade Livro de Sombras… Névoas… e Saudades! Vai pelo mundo… (Trouxe-o no meu seio…)
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,Chorai comigo a minha imensa mágoa,Lendo o meu livro só de mágoas cheio!…
A terceira fase literária da I República Portuguesa tem o seu início a 15 deOutubro 1921, sendo assinalada pelo número inaugural da Seara Nova , uma das
revistas mais duradouras do século XX (a sua primeira série será editada até 1979), a
surgir do descontentamento no meio intelectual em relação aos caminhos ínvios da
República e como crítica à influência sebastianista e ao alheamento social na criação
artística e literária. Logo no primeiro número, os membros seareiros declaram-se
“poetas militantes, críticos militantes, economistas e pedagogos militantes”, e as suas
linhas programáticas pugnam pelos princípios elementares da “coisa pública”:
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"- Renovar a mentalidade da elite portuguesatornando-a capaz dum verdadeiro movimentode Salvação;
- criar uma opinião pública nacional que exija eapoie as reformas necessárias;
- defender os interesses supremos da naçãoopondo-se ao espírito de rapina dasoligarquias dominantes e ao egoísmo dosgrupos, classes e partidos;
- protestar contra todos os movimentosrevolucionários e todavia defender e definir agrande causa da verdadeira revolução;
- contribuir para formar acima das Pátrias, aunião de todas as Pátrias – uma consciênciainternacional bastante forte para não permitirnovas lutas fratricidas."
No ano seguinte, o conto pessoano O banqueiro anarquista sai no primeiro
número da revista Contemporânea e Aquilino Ribeiro publica O Malhadinhas , obra
inserida na natureza pagã e nas raízes mais profundas da tradição popular, e que
narra a história picaresca, em forma de monólogo, de um almocreve beirão,
simultaneamente rústico e sentimental.
Em 1923, o ano em que Manuel Teixeira Gomes é eleito Presidente da
República, Raul Brandão imprime em Os Pescadores – um conjunto de dezasseis
histórias dedicadas ao seu avô, também morto no mar – a marca pitoresca dos
costumes piscatórios e a perspectiva trágica da existência humana, numa digressão
de norte a sul de Portugal. Aqui transcrevemos um excerto do capítulo “Mulheres”,
uma crua prosa centrada na tragédia das mulheres de negro, sempre à espera que o
mar trague e leve mais um dos seus na dura faina da pesca, e no tema da miséria
social, que começará a predominar mais para o final da década seguinte com o neo-
realismo:
Foz do Douro. Esta velha, crestada pela desgraça e pelo tempo, comsulcos de velhice e de lágrimas na cara, é que os impele para o mar. E o martem-lhos levado todos. Dobra-se-lhe o corpo exausto, rodilha gasta pela vida.
Mas quando o Inverno chega e a fome aperta, é ela que os injuria: – Má raios partam o mar! Então quereis morrer à fome e osmeninos?
Se os batéis estão em perigo, corre a costa, açoitada pelo vento,bebendo as lágrimas e o cuspo do mar, e contendo o coração em farrapos,com as mãos negras apertadas sobre a tábua rasa do peito.
– Quem lhe falta, tiazinha?
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– O meu filho,o meu neto. Já omaldito me levou o pai,leva-me agora osfilhos!
Andou toda avida de luto. Viu-osdespedaçados naspedras, e deitou toda aternura que tinha paradeitar. Mas incita-os,pragueja, empurra-os,para que não haja fomeem casa.
Só o mar dá osustento e a morte. Hámais de um mês que
dura o Inverno. – Má raiospartam o mar!
E corre com as redes à cabeça, a cesta no braço, e os soluçosrepresados na garganta, levando o neto atrás de si a rasto para o barco.
– Tenho chorado tantas lágrimas como aquele mar salgado!...
Em 1925, Bernardino Machado torna-se o último Presidente da I República
Portuguesa e José Régio publica os Poemas de Deus e do Diabo , cuja consequente
temática da solidão “de marfim” e do
narcisismo social virá a ser condenada
com tamanho entusiasmo por Álvaro
Cunhal no artigo “Encruzilhada dos
homens”, publicado em 1939 na Seara
Nova , em manifesta campanha pelo
programa de acção neo-realista. Apesar de
todo este umbilicalismo exacerbado que
caracteriza a poesia regiana, as célebres
estrofes do poema “Cântico negro”mantêm-se totalmente actuais, na plena
exaltação da liberdade individual e no
combate à sempre perigosa e ameaçadora
unanimidade ideológica, cujas
consequências serão levadas ao extremo
durante a Segunda Guerra Mundial:
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"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos docesEstendendo-me os braços, e segurosDe que seria bom que eu os ouvisseQuando me dizem: "vem por aqui!"Eu olho-os com olhos lassos,(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)E cruzo os braços,E nunca vou por ali...
[…]
Ide! Tendes estradas,Tendes jardins, tendes canteiros,Tendes pátria, tendes tetos,E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...Eu tenho a minha Loucura!Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;Mas eu, que nunca principio nem acabo,Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: "vem por aqui"!A minha vida é um vendaval que se soltou,É uma onda que se alevantou,É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vouSei que não vou por aí!
Ainda neste mesmo ano, ao cair
do pano da I República e a anteceder a
instauração da ditadura militar, sai A morte
do palhaço , de Raul Brandão – um
romance enigmático de cariz filosófico
com a temática da loucura e do sonho,que reformula a História de um Palhaço ,
escrita em 1896 –, e é publicada A
Capital , a obra eciana que mais ironiza o
republicanismo através do seu
protagonista Artur Corvelo e dos membros
do Clube da Rua do Príncipe.
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Neste romance, editado 25 anos após a morte de Eça, podemos presenciar
toda uma série de preconceitos deste autor em relação ao republicanismo e ao
egoísmo dos seus membros, continuamente destacados pelos aspectos negativos – a
sua perfilhação política deve-se apenas a oportunismos, ódios pessoais ou meros
devaneios, e nunca a uma verdadeira consciência ideológica. Os republicanos
representados, ou, dito de outro modo, caricaturados pela sua pena sarcástica, são
burgueses sem escrúpulos, que agem sobretudo em função dos seus interesses
particulares, nunca hesitando em atribuir à monarquia toda as culpas pela situação
débil do país ou pelos seus próprios fracassos.
Assim, em jeito de breve conclusão, a primeira fase literária da I República
Portuguesa prolonga-se ao longo de dezasseis anos, marcados essencialmente por
três revistas artísticas e literárias que se distinguem pelo diferenciado grau de
empenhamento social: os membros da Águia e do Orfeu privilegiam a orientação
estética da arte pela arte e prezam o seu individualismo, estando os primeiros mais
ligados ao saudosismo e à tradição, e os segundos ao modernismo e à inovação;
quanto aos autores da Seara Nova , preferem o combate ideológico, sendo orientados
por uma linha de acção colectiva e por uma militância político-social.
In A Vida Cultural na Lisboa da I República (1910-1926) – Actas do Colóquio Nacional , Lisboa,
Câmara Municipal de Lisboa, 2011.