performance e identidade: o estado das artes populares no

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Performance e Identidade: O Estado das Artes Populares no Planalto Central do Brasil João Gabriel L. C. Teixeira 1 Resumo: Apresenta resultados de projeto de investigação sobre manifestações artísticas populares localizadas no Planalto Central brasileiro que visa compreender as nuances da articulação entre os conceitos e as práticas das performances e das identidades que ali estão sendo construídas, considerando o desenvolvimento recente do conhecimento a respeito das artes populares no Brasil, notadamente sobre as folias de reis e outras festas religiosas e profanas dessa região que ainda se encontram fora do foco das discussões ora em curso no país. Analisa o estado dessas manifestações em dois municípios do noroeste de Minas Gerais (Paracatu e João Pinheiro) e em dois municípios do estado de Goiás (Formosa e Cavalcanti no território denominado Kalunga), todos dentro da área de influência de Brasília, capital federal do Brasil. No primeiro e no último, focalizam-se as manifestações religiosas e danças profanas de dois povoados de remanescentes de quilombos. Palavras Chave: Performance, Identidade, Artes Populares, Patrimônio Imaterial, Planalto Central, Brasil Introdução O objetivo desta comunicação é relatar os resultados preliminares de pesquisa 2 em curso no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) sobre o estado das artes populares no planalto central do Brasil. Inicialmente, circunscreve-se essa região geopolítica brasileira, com o intuito de ressaltar as múltiplas influências que a Capital Federal do Brasil, Brasília, perto de completar 50 anos de fundação, exerce sobre essa macro-região. Segundo, caracterizam-se as artes populares que estão sendo desvendadas e publicizadas pelo projeto de pesquisa, num contexto de modernização e urbanização na região enfocada e como tem sido preservadas e cultivadas pelos habitantes dessa macro-região. Terceiro, relatam-se os principais aspectos performáticos das manifestações culturais envolvidas pela investigação, acentuando como os conceitos sócio-antropológicos de performance, identidade cultural e patrimônio imaterial podem ser aplicados para iluminar e esclarecer aspectos do mundo empírico selecionado pelos pesquisadores. Metrópole de Fato – Brasília Expandida O Correio Braziliense de 19 de outubro de 2008 publicou artigo sob esse titulo 3 , visando demonstrar que a área de influencia de Brasília transcende as 29 regiões administrativas do Distrito Federal em que divulgou uma pesquisa do IBGE 4 que a indica como já sendo referência para quase 10 milhões de pessoas em 298 municípios, dos estados de Goiás, Minas Gerais, Bahia e Tocantins. Esses dados informam, primeiramente, que Brasília, já assumiu de fato o status de verdadeira capital do país e, segundo, que atualmente sua influência regional é ultrapassada apenas, em termos nacionais, pela área de influência da antiga capital, Rio de Janeiro e pela cidade de São Paulo 5 . Coincidentemente, as localidades em estudo, encontram-se todas inseridas nessa região, em grande parte implantada no Planalto Central brasileiro. Esclareça-se que três fatores foram levados em conta pelo IBGE nesse levantamento de 2007: a subordinação das cidades à gestão federal, o impacto empresarial e econômico de Brasília na localidade e a oferta de produtos e serviços. 1 Professor Associado e Coordenador, Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance – TRANSE,Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) 2 Intitulado exatamente como esta comunicação, o projeto é desenvolvido no Transe. Aqui se utiliza do relato de 4 dos seus sub-projetos, conforme se verá no texto. Os demais subprojetos, em numero de 3, não foram enfocados ou por serem muito recentes (Ver Silva, G. e Malty, L. ) ou por escapar aos limites deste trabalho (Ver Peçanha, J.). 3 Caderno Cidades, Página 33. Artigo assinado por Diego Amorim da Equipe do Correio Braziliense. 4 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 5 A reportagem apresenta os seguintes dados: População total: 9.680.582; Área: 1.760.734 km2; Numero de municípios: 298; Participação no PIB Nacional: 6,91%. 1

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Performance e Identidade: O Estado das Artes Populares no Planalto Central do BrasilJoão Gabriel L. C. Teixeira1

Resumo:

Apresenta resultados de projeto de investigação sobre manifestações artísticas populares localizadas no Planalto Central brasileiro que visa compreender as nuances da articulação entre os conceitos e as práticas das performances e das identidades que ali estão sendo construídas, considerando o desenvolvimento recente do conhecimento a respeito das artes populares no Brasil, notadamente sobre as folias de reis e outras festas religiosas e profanas dessa região que ainda se encontram fora do foco das discussões ora em curso no país. Analisa o estado dessas manifestações em dois municípios do noroeste de Minas Gerais (Paracatu e João Pinheiro) e em dois municípios do estado de Goiás (Formosa e Cavalcanti no território denominado Kalunga), todos dentro da área de influência de Brasília, capital federal do Brasil. No primeiro e no último, focalizam-se as manifestações religiosas e danças profanas de dois povoados de remanescentes de quilombos.Palavras Chave: Performance, Identidade, Artes Populares, Patrimônio Imaterial, Planalto Central, Brasil

Introdução

O objetivo desta comunicação é relatar os resultados preliminares de pesquisa2 em curso no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) sobre o estado das artes populares no planalto central do Brasil. Inicialmente, circunscreve-se essa região geopolítica brasileira, com o intuito de ressaltar as múltiplas influências que a Capital Federal do Brasil, Brasília, perto de completar 50 anos de fundação, exerce sobre essa macro-região.

Segundo, caracterizam-se as artes populares que estão sendo desvendadas e publicizadas pelo projeto de pesquisa, num contexto de modernização e urbanização na região enfocada e como tem sido preservadas e cultivadas pelos habitantes dessa macro-região. Terceiro, relatam-se os principais aspectos performáticos das manifestações culturais envolvidas pela investigação, acentuando como os conceitos sócio-antropológicos de performance, identidade cultural e patrimônio imaterial podem ser aplicados para iluminar e esclarecer aspectos do mundo empírico selecionado pelos pesquisadores.

Metrópole de Fato – Brasília Expandida

O Correio Braziliense de 19 de outubro de 2008 publicou artigo sob esse titulo3, visando demonstrar que a área de influencia de Brasília transcende as 29 regiões administrativas do Distrito Federal em que divulgou uma pesquisa do IBGE4 que a indica como já sendo referência para quase 10 milhões de pessoas em 298 municípios, dos estados de Goiás, Minas Gerais, Bahia e Tocantins.

Esses dados informam, primeiramente, que Brasília, já assumiu de fato o status de verdadeira capital do país e, segundo, que atualmente sua influência regional é ultrapassada apenas, em termos nacionais, pela área de influência da antiga capital, Rio de Janeiro e pela cidade de São Paulo5. Coincidentemente, as localidades em estudo, encontram-se todas inseridas nessa região, em grande parte implantada no Planalto Central brasileiro. Esclareça-se que três fatores foram levados em conta pelo IBGE nesse levantamento de 2007: a subordinação das cidades à gestão federal, o impacto empresarial e econômico de Brasília na localidade e a oferta de produtos e serviços.

1 Professor Associado e Coordenador, Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance – TRANSE,Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB)2 Intitulado exatamente como esta comunicação, o projeto é desenvolvido no Transe. Aqui se utiliza do relato de 4 dos seus sub-projetos, conforme se verá no texto. Os demais subprojetos, em numero de 3, não foram enfocados ou por serem muito recentes (Ver Silva, G. e Malty, L. ) ou por escapar aos limites deste trabalho (Ver Peçanha, J.).3 Caderno Cidades, Página 33. Artigo assinado por Diego Amorim da Equipe do Correio Braziliense.4 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.5 A reportagem apresenta os seguintes dados: População total: 9.680.582; Área: 1.760.734 km2; Numero de municípios: 298; Participação no PIB Nacional: 6,91%.

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O mapa em anexo, extraído da citada reportagem, esclarece visual e demograficamente essa área de influência, o que corrobora os argumentos de que a aventura juscelinista de construir a capital federal em local tão longínquo (em relação ao litoral) foi e é um projeto geopolítico bem sucedido. Ou seja, no sentido da ocupação do território brasileiro e da criação e exploração de fontes de riqueza de valor inestimável, além da expansão da fronteira agrícola e da redistribuição das características demográficas do país.

Dessa forma, o desvelamento das artes populares que sobrevivem em tal contexto de modernização e urbanização crescentes, ganha relevância e legitimidade, tendo em vista o desconhecimento que ainda persiste sobre as mesmas e a recorrente presunção de que Brasília teria sido construída no meio de um imenso vazio, demográfico e cultural, pelos estudiosos que diagnosticam sua efetividade e arrojo.

Performance e Identidade

Antes de identificar e descrever as localidades que tiveram suas manifestações culturais investigadas é necessário esclarecer, de modo breve, como esses conceitos estão sendo utilizados na condução da pesquisa.

O conceito de performance que está sendo utilizado tem como matriz os estudos da performance tais como foram instituídos por Richard Schechner em inúmeros trabalhos (1988, 1997 e 2002, entre outros) e que ganharam mundo, na tentativa de trazer à tona manifestações artísticas seculares e atuais, dos pontos de vista estético e sócio-antropológico. A remissão do desenvolvimento desse corpo de conceitos, já foi realizada em outras oportunidades (Teixeira, 1998 e 2008), de maneira que se efetua aqui apenas um resumo de como está sendo articulado pelo TRANSE, neste momento.

Em sendo um conceito elástico, o termo performance tem sido colocado pelo Transe no seu sentido relativo ao acontecimento cultural, ao ato deliberado de vivenciar e comunicar, ao aqui e agora dessas ações humanas, com toda a sua carga expressiva e singular de identidades, e que é, em última instância, o lócus por excelência das políticas preservacionistas do patrimônio cultural: o acontecimento do fato cultural (Vianna e Teixeira, 2008).

Schechner (2003) num dos seus pouco textos publicados no Brasil admite a formulação de 7 funções para as performances. Uma delas é o reforço da identidade social de um determinado grupo social ou sociedade específica. No sentido dessa afirmação, é importantíssima a compreensão da expressividade como componente primordial dos conceitos de performatividade e de materialização performática, no que referem à realização das performances culturais expressas nas manifestações constitutivas do patrimônio intangível ou imaterial de uma determinada cultura local.

Após relembrar que uma das mais inclusivas proposições sobre essas funções é a do sábio indiano Bahara Muci (século II AC) que “sentiu que a performance é um importante repositório de conhecimentos e um veículo poderoso para expressão das emoções”, Schechner (2003: 45) as nomeia da seguinte forma: entreter; fazer alguma coisa que é bela; marcar ou mudar a identidade; fazer ou estimular uma comunidade; curar; ensinar, persuadir ou convencer; lidar com o sagrado e com o demoníaco”.

Para efeito da pesquisa, a função precípua é a de marcar ou mudar a identidade, considerando as peculiaridades das performances culturais do Planalto Central brasileiro, tendo em vista o elenco de possibilidades que proporcionam aos seus habitantes em termos de construção de sua auto-estima e do enfrentamento aos processos de mudança que estão ocorrendo na região.

O Noroeste Mineiro

É uma das sub-regiões enfocadas e onde duas performances culturais são investigadas: as Folias de Reis6 do município de João Pinheiro e a Festa da Caretagem no espaço remanescente de quilombo de São Domingos, em Paracatu, ambas no estado de Minas Gerais. As primeiras constituem-se numa revivência de uma festa religiosa inscrita no catolicismo rústico brasileiro (Pereira de Queiroz, 1976), de origem medieval e européia. A segunda, de caráter carnavalesco, inusitadamente, é praticada como comemoração junina, em região de antiga mineração do ouro, próxima a um núcleo urbano oitocentista, em homenagem ao São João.

6 Equivalentes ao que em Portugal são denominadas de Janeiras.

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O território do Noroeste Mineiro7 é uma região constituída por 19 municípios, ocupando uma área de 63.176 km2, quase 11% da área total de Minas Gerais. Esse vasto território, constituído na sua maioria por pequenas cidades e vilas, guardam manifestações culturais significativas que ainda foram pouco pesquisadas.

As Folias de Reis em João Pinheiro, estado de Minas Gerais8

Segundo relata a pesquisadora Maria Célia da Silva Gonçalves (Enecult, 2008), conforme dados do IBGE (2007), João Pinheiro, fundado oficialmente em 1911, é o maior município em extensão territorial do Estado de Minas Gerais, abrangendo 10.717 km2, onde habitam pouco mais de 43 mil habitantes e está situado a 330 quilômetros de Brasília e 400 quilômetros de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais. João Pinheiro tem sua economia concentrada na agricultura, sendo conhecida por constituir-se em importante centro dos agronegócios. De acordo com a pesquisadora: A cidade guarda, até os dias atuais, inicio do século XXI, características do mundo rural no tocante

aos seus costumes e tradições. Nascida numa região de transição dos bandeirantes que, em suas viagens interioranas, buscavam ouro nos estados de Goiás e de Mato Grosso. Durante muito tempo o município serviu de hospedagem a esses transeuntes antes que estes seguissem caminho em direção às novas minas.

João Pinheiro começou a se modernizar com a construção da rodovia BR040, quando passou a ter um contato mais continuado com a capital mineira e o Distrito Federal, o que veio ao ocorrer apenas no inicio da década de 1970. Contudo, João Pinheiro conservou as suas tradições. No que se refere às Folias de Reis, nota-se que já foram registrados pela pesquisa 47 grupos, alguns deles com mais de 40 anos de existência, formados principalmente por homens agricultores que deixaram a zona rural após a instalação de empresas multinacionais de reflorestamento e se localizaram em bairros periféricos da pequena cidade. Esses bairros se tornariam o lócus das Folias de Reis, que funcionam como “espaço de re-elaboração da identidade abalada pelas mudanças”. (Silva Gonçalves, op. cit).

Segundo a autora, a influência religiosa e cultural das Folias em João Pinheiro é preponderante:

Essas práticas são as responsáveis pelo importante papel de guardião de um saber muito especial. A invocação dos Santos para as curas e a solução de problemas materiais e espirituais. Não raras vezes ouvi de alguém que “Santos Reis curou a filha, retirou o filho do mundo dos jogos, da cachaça”.

Os grupos realizam um Encontro Anual de Folias de Reis na cidade. Em fevereiro de 2008 apresentaram-se 28 ternos9, sendo 26 locais e 2 visitantes. Esse encontro acontece há 28 anos e neste ano foi marcado pela inauguração da sede da Associação dos Foliões de Reis. Dos grupos locais, um possui CD gravado e participa do Encontro Anual de Folias de Reis de Brasília. Os demais se encontram fora da mídia constituindo-se, por isso mesmo, numa fonte inesgotável de pesquisa.

De acordo com a pesquisadora (ABRACE, 2008) a Folia de Reis é um folguedo natalino que chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses. Existem indicadores de que as Janeiras portuguesas foram o ponto de partida para a criação das folias no Brasil. No início da colonização brasileira o culto aos Reis Magos se fez presente como forma de catequização dos índios pelos jesuítas. Por ser um auto,

7 O Noroeste de Minas é composto por 19 municípios que se dividem em 2 micro regiões. Micro-Região Paracatu: Paracatu, Brasilândia de Minas, Guarda-Mor, João Pinheiro, Lagamar, Lagoa Grande, São Gonçalo do Abaeté, Varjão de Minas, Vazante e Riachinho; Micro-Região Unaí , Unaí, Arinos, Bonfinópolis de Minas, Buritis, Cabeceira Grande, Dom Bosco, Formoso, Natalândia e Uruana de Minas.

8 Ver Gonçalves, Maria Célia da Silva. “Folias de Reis: O Eco da Memória na (Re)construção da Performance e Identidade dos Foliões de Reis em João Pinheiro, Estado de Minas Gerais” apresentado na Mesa Coordenada sobre Estudos e Reflexões Contemporâneas sobre Identidade Cultural, realizada no IV Encontro de Estudos Multidisciplinares da Cultura (ENECULT), 28 a 20 de maio de 2008, Faculdade de Comunicação/Universidade Federal da Bahia, Salvador e, da mesma autora, “Arte e Tradição: A Performance da Folia de Reis da Comunidade das Almas, Município de João Pinheiro (MG)”, apresentado ao Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, 28 a 31 de outubro de 2008.9 Nome alternativo atribuído às Folias.

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cuja encenação centra-se no nascimento do Menino Deus, tornou-se ponto de fácil demonstração e conseqüentemente assimilação da fé em uma história muito importante para os fundamentos do cristianismo. Silva Gonçalves (ABRACE, op. cit.) assim a descreve:

Noite gelada de 12 de Julho de 2008. Uma pequena comunidade, distante 50 km da cidade de João Pinheiro (MG), faz uma pausa em seus afazeres na agricultura para festejar Santos Reis, através de sua performance musical em que conta o nascimento de Jesus. Na frente da pequena capela foi erguida uma majestosa fogueira. A comunidade é formada por agricultores que vivem na zona rural do município, possui em média 200 casas, em sua maioria construídas de palha e pau-a-pique, não fosse a presença da BR 040 um visitante mais desavisado se sentiria no século XIX.

Após a celebração da missa, tem início a performance da Folia de Reis das Almas. Tudo foi cuidadosamente preparado para a encenação da viagem dos Três Reis Magos em sua busca do Menino Deus. O Sr. Luiz Paulo, 65 anos, agricultor aposentado e capitão do grupo explica que foi construída uma pequena casa, onde será colocado Herodes, que lutará com o palhaço do grupo. Dona Tininha, 76 anos, cabelos brancos é quem segura uma lâmpada para conduzir os foliões, essa lâmpada simboliza a estrela que guiou os Três Reis. O grupo é composto por 12 foliões, quando eles dão início a cantoria que representa a viagem, toda a comunidade acompanha. O tempo é outro, não existe a pressa da vida em grandes centros. São cantados inúmeros versos, várias voltas na praça de frente à Igreja são realizadas e finalmente o grupo para de frente ao palácio de Herodes. O palhaço pede informação sobre o local do nascimento do Menino Jesus. Trava-se uma conversação entre eles. E finamente estabelece-se uma luta entre os dois personagens que se estende por mais de 10 minutos, só sendo finalizada com a vitória do palhaço que captura Herodes apresentando-o à comunidade, que o aplaude vigorosamente (Silva Gonçalves, ABRACE).

A Folia segue a sua cantoria, dirigindo-se para a Igreja, onde existe um rei e uma rainha à sua espera. Na Igreja é rezado (cantado) um terço pelos homens e as mulheres observam atentamente. Na cozinha acontece outra performance, não menos importante que as dos foliões. A das cozinheiras sabedoras de uma arte tão importante quanto as músicas das folias. Dona Tininha também se orgulha de ser a florista oficial, responsável pela decoração das festas de reis da comunidade. Ela afirma estar no ofício desde criança e reafirma a intenção de continuar praticando a sua arte enquanto estiver viva. Ás 20h00min horas é servida uma mesa muito farta como é tradição das Folias de Reis mineiras. Os foliões se dirigem em cortejo da Igreja para o galpão da comunidade. São guiados pelo palhaço e sucedidos pelo “rei e a rainha velhos” (os festeiros responsáveis pela organização da festa de 2008) e o “rei e a rainha novos”, que deverão organizar a festa em 2009 (idem).

A autora (ibidem) finaliza afirmando que depois de cantados os versos, é realizada a entrega da coroa para os novos festeiros que recebem dos anteriores um ramalhete de flores de papel crepom, que imediatamente se põem a distribuir aos participantes da festa. Receber uma flor significa ser convidado para a festa do próximo ano e assim a tradição vai se mantendo na comunidade através do ritual. Dessa forma, a comunidade segue a sua trajetória, mantendo-se unida por uma arte popular que os identifica enquanto atores sociais participantes.

Os remanescentes e a caretagem10

De fato, publicações sobre os atores sociais anônimos do Noroeste Mineiro são quase inexistentes. Em decorrência, a pesquisa de Vandeir José da Silva (2008) se pautou na exposição das performatividades desses homens, mulheres e crianças através do estudo da “festa da caretagem”: uma cena brincante/dançante que acontece todos os anos no dia 23 para 24 de junho homenageando São João Batista, na comunidade remanescente de quilombo de São Domingos, localizada a 3 km da cidade de Paracatu (MG).

A cidade de Paracatu tem se ocupado historicamente da mineração. O município situa-se a 220 km de Brasília e a 502 km de Belo Horizonte. A cidade de Paracatu foi fundada em 1798 e no ano 2000 sua população atingiu 73.059 habitantes. (IBGE, 2007). A atividade de mineração consiste atualmente na exploração efetuada pela multinacional Rio Paracatu Mineração (RPM), subsidiada com capital estrangeiro, canadense e norte americano. É justamente no “sopé” do “Morro do Ouro” explorado pela mineradora que moram os remanescentes quilombolas (Vandeir da Silva, op. cit.).

A comunidade se denomina povoado ou arraial de São Domingos. Os moradores remanescentes de São Domingos vêm preservando a sua identidade, através de suas manifestações culturais e, especialmente, por intermédio da dança ou festa da “caretagem”. Argumenta-se que essa ação

10 Ver Silva, Vandeir José da “Musica e Dança: A Performance como Construção da Identidade dos Remanescentes Quilombolas em São Domingos, Paracatu (MG)” apresentado ao Congresso da ABRACE, Belo Horizonte, 2008.

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performática atua como um vetor que possibilita a manutenção da estrutura familiar e dos laços consangüíneos, pelo partilhamento da cultura local, de sua linguagem e do auto-reconhecimento.

A festa dos “caretas” culmina com uma dança composta somente de homens em que a metade dos componentes veste-se de mulher para compor os pares. Os dançantes masculinos vestem-se com calças e camisas devidamente enfeitadas e as “damas” vestem-se com vestidos de chitão bem coloridos e usam cabeleiras postiças.

Tanto os cavaleiros, quanto as damas, devem usar máscaras feitas especialmente para a festividade. Os homens usam chapéus e máscaras pintadas com bigodes. As “mulheres” recebem maquiagenm na face e nos lábios tinta vermelha. Algumas damas usam chapéus enfeitados com fitas, rosas e rendas. Como informa Vandeir da Silva (op.cit.):

Todos os adereços utilizados para a festa fazem parte da ritualização em homenagem a São João Batista. Na noite de 23 para 24 de junho, os caretas dançam mascarados das 19:00 do dia 23 às 12:00 do dia 24. O início do cortejo é feito às 18:00 com a celebração da missa em louvor a São João Batista. Logo após a celebração, um membro da comunidade dispara foguetes para avisar aos caretas que a missa terminou; é chegado o momento de se reunirem para dar início a cena brincante. Ao término da brincadeira é feito o “arremate” 11, ou seja, a comida é servida para todos os presentes.

A festa tem continuidade devido ao repasse dos mais velhos, artesãos da construção do conhecimento. Eles educam os jovens levando-os a (re) conhecerem nos momentos de ensaios a pertinência da manifestação da sua cultura dançante, fazendo fluir nessa dinâmica social o ato de pertencimento dos membros da comunidade de São Domingos. “Ao narrarem suas lembranças, os velhos voltam ao passado, como se quisessem transportá-lo para o presente. Como guardiões, esses são os semeadores da cultura local e os grandes responsáveis pela construção da identidade dos remanescentes.”, informa Vandeir da Silva (op. cit.)

Para alguns desses narradores, dançar mascarado significa esconder o rosto, pelo fato de ser negro escravo, ou descendente de escravo, porque o uso das máscaras propicia condições para, nesses momentos lúdicos, fugirem da condição de cativos. Outra forma de refletir sobre a máscara é a condição da extrapolação da sexualidade dos membros pois, com seu uso, eles podem brincar sem serem reconhecidos, aparentemente, pela sociedade local. Os homens, ao vestirem-se de mulheres dramatizam os papeis femininos, não encontram repressões para vivenciarem essa inversão de gênero, buscando, na fantasia, extravasarem desejos inconscientes na brincadeira dançante, mantendo-se imunes dos preconceitos sexuais e sociais.

No imaginário dos remanescentes, ao celebrarem o dia do santo, sentem nos festejos a ligação entre terra e céu, a dança. Esta, ao se estender por toda a noite e parte do dia, passa a representar não só uma atividade de prazer festivo, mas tem também a função de reafirmar a fé religiosa, comemorando-se a vida mesmo diante da morte do santo. “Nos auspícios da fé religiosa comemorada pela comunidade de São Domingos, dançar significa louvar São João Batista, santo poderoso que irá interceder pelos brincantes e pela comunidade local ao chegarem ao reino do céu” (idem).

Nos dias de ensaio da dança, o “comandante da caretagem”12 ensina os passos, evoluções na dança, as músicas cantadas, preparando os integrantes para, no final do festejo, recitar versos rimados espontâneos. O ritual é perpetuado através de ensaios quando os aprendizes absorvem as instruções repassadas pelos mais velhos. A brincadeira dançante realizada pelos “caretas” explora movimentos diversos, construindo e reconstruindo a sensação de alegria, prazer e de auto-reconhecimento, mesclando momentos situados entre o sagrado e profano.

A cena brincante em São Domingos é assumida por seus atores sociais que ao serem interrogados dizem: “ninguém gosta da festa como nós, está no sangue, sempre foi assim”. Ainda que o poder dessas brincadeiras seja invisível, ele pode ser percebido nos diversos processos sociais. Atribui-se esse sentido para os remanescentes porque, mesmo diante da pressão exercida pela presença da multinacional (RPM), a dança de caretagem constitui a sua manifestação cultural mais significativa e imemorial segundo relatos dos moradores de São Domingos (idem).

O Nordeste de Goiás

11 Expressão utilizada pelos quilombolas para designar o término da festa e socialização dos dançarinos com os participantes.12 Espécie de mestre de cerimônias e maestro.

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1 - Os Kalunga e a Sussa13

A Comunidade Kalunga conta com quase cinco mil remanescentes e situa-se na região nordeste de Goiás. Proveniente de quilombos formados no ciclo do ouro (século XVIII), hoje reconhecidos legalmente, localiza-se geograficamente entre os Municípios de Terezina de Goiás, Cavalcante e Monte Alegre. Uma superfície de 237.000 ha. compõe o “Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga”, que abriga cinco núcleos principais: Vão de Almas; Vão do Muleque; Kalunga; Contenda e Ribeirão dos Bois. Esses cinco “municípios” (nome dado por eles) abrigam quase uma centena de “ajuntamentos” pelos vãos, vaus14, montes e veredas do cerrado.

As atividades festivas religiosas dos Kalunga são cíclicas, demarcam a passagem do tempo, o cultivo da terra, as respectivas colheitas, e se tornam, também, uma oportunidade para que as pessoas de toda a comunidade congreguem fé, alegria, política e “matem a saudade”. Durante vários dias, enquanto comungam os preceitos católicos e discutem o futuro, os cantos, os rituais avivam o novo ciclo. Como toda festa popular, elas são demoradas e marcadas por uma grandiosa comilança, proclamando a abundância e a perspectiva de um tempo melhor.

Desde a divisão de Goiás e a criação do estado do Tocantins (1988), seu espaço e localização foram alterados. É possível mapear, no novo Estado, grupos quilombolas com uma cultura muito semelhante. Vale ressaltar que nessa região, as tradições do candomblé15 permaneceram, ao passo que nos Kalunga16, ela praticamente desapareceu, ou se transformou em danças e folguedos performáticos. “Na sussa, as marcas do candomblé são evidentes: as mulheres dançam girando, com vestidos coloridos, ora aproximando os corpos, ora afastando. Muitas vezes bebem enquanto dançam e o ritmo é marcado pelos cantadores e pelos instrumentos. As letras, normalmente têm duplo sentido (mencionando o baixo-corporal) e as mulheres gargalham, gritam e se movimentam em uma espécie de transe” (Rodrigues da Silva Junior, op. cit.).

A sussa é cantada e tocada pelos músicos foliões. Aparentemente é o único gênero musical que permite a presença da mulher como instrumentista – elas tocam a bruaca (espécie de mala rústica de madeira para guardar artefatos durante os deslocamentos em burros). Ela apresenta variações. Tantos os homens, quanto as mulheres podem cantar. Ela pode ser dançada entre casais, com os corpos se aproximando e se afastando, dando “umbigadas”. Em outros momentos, somente os homens cantam e somente as mulheres dançam. Nesse caso, os volteios são mais constantes, lembrando o candomblé.

Além da fé, as reuniões para a reza são motivo para uma aproximação e servem de mote para o reencontro festivo. Uma vez que os vãos são distantes entre eles, e que há muitas famílias, ou grupos de famílias, espalhados por todo o Território Kalunga, essa época é vivida como um elo simbólico que reafirma a união. Parafraseando Brandão (2004) sobre os festejos populares do Estado de Goiás, Rodrigues da Silva Jr. (op. cit.) afirma que “nessa comunidade, o mesmo devaneio de amor ocorre nessa “festa sem fim”. As alegorias das danças, nas efusões dos cantos e nos versos infindáveis todos se unem em uma infindável beleza e uma ânsia de “eterno retorno”.

A Festa do Vão de Almas reúne inúmeras pessoas e demarca o encerramento de um longo ciclo de colheitas, iniciado em junho, quando acontecem reuniões mais resguardadas, com a presença menor de pessoas. De forma consciente, os festejos de agosto e setembro promovem, tradicionalmente, o encontro com “os povo de fora”: religiosos, políticos, comerciantes etc. das cidades vizinhas e até de outros quilombos (hoje pertencentes ao estado do Tocantins). E, desde a década de 70, a presença de fotógrafos, redes de TV, antropólogos, etnólogos etc. compõe esse carnaval da fé. Comenta o pesquisador do Transe (op. cit.):

13 RODRIGUES DA SILVA JR., Augusto, “O Festejo Quilombola: o Kalunga, o Divino, o Verso” apresentado ao IV ENECULT.14 No “dialeto” sertanejo da região se utiliza vão e vau como sinônimos.15 Festa dos orixás na religião dos negros iorubás da Bahia.16 Quanto ao termo Kalunga, palavra de origem africana, refere-se a um determinado local à margem do Rio Paranã. Os moradores da Região indicam uma planta do mesmo nome, muito parecida com a lobeira do cerrado, como denominadora do local. Existe outra variante que diz que a palavra teria advindo da África (língua Bantu) e estaria ligada à divindade Bantu que se refere ao mar. Há também uma relação com a idéia de morte. Nesse sentido, percebe-se uma relação semântica com a impressão que os antepassados queriam dar aos Senhores das Minas ao desaparecerem nas serras e vãos. O termo Calungueiro passou a ser utilizado desde 1962 para designar os moradores da região do Calunga (também grafado com c).

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Um dos momentos mais belos e emocionantes é aquele que antecede a colocação do mastro. A fogueira alimentada, a reza terminada e foguetes contínuos. Com velas acesas nas mãos, todos cantam e circulam três vezes ao redor do lugarejo, tendo a capela como marco. A procissão chama atenção pelo terço, o latim macarrônico, benditos e outros cânticos oferecendo graças e evocando os pecados.

Depois disso, o levantamento do mastro, por mais de quinze homens, finaliza a parte litúrgica. Alguns cavam com as próprias mãos, até a aparição de uma enxada. O transe e a catarse são constantes. Jovens e adultos sobem no mastro tentando alcançar a Bandeira, as mulheres gritam eufóricas, os chamam de volta e todos cantam. Logo depois os tocadores entram com suas caixas e as mulheres começam a dançar a sussa. O sagrado, ainda presente nos versos, dá lugar à alegria da dança e à ligação com a cultura afro. Mesclada de instrumentos sertanejos, como os pandeiros de couro, o triângulo e, em alguns momentos, a palma das mãos. A alegria da festa continua nos movimentos sensuais, nos contínuos giros à roda de si mesmas. “As mulheres, sorrindo continuamente, se movimentam como se estivessem em um terreiro (de candomblé). Essa dança tem um papel primordial na construção da identidade quilombola e, nesse momento, ela decreta, definitivamente, a ruptura com a parte sagrada do festejo. Depois dos versos, que funcionam como fronteira entre o sagrado e o profano, a dança encaminha a alegria – sem ligar para o ritual sério, ou a tensão de uma contenda verbal” (idem).

O movimento, agregado ao próprio nome da dança sussa, significando festejo e pagode, é acompanhado pela música de mesmo nome. No giro dos corpos em transe, no canto das vozes incansáveis, no infinito da madrugada adentro, a imagem do Divino, no alto de seu mastro, observa a alegria da festa. Uma festa contínua que nunca quer chegar ao seu fim... (idem).

2 - A Festa da Moagem em Formosa17

Cidade histórica de grande importância, Formosa tem a sua herança cultural encravada nos casarões coloniais e nas construções religiosas. Sabe-se que as primeiras casas foram erguidas por negros às margens do Ribeirão Itiquira com o Rio Paranã.18 Esses negros pioneiros foram obrigados a transferir-se para o atual lugar, por conta de uma mortífera febre que assolava o lugar anterior. Em quatro de outubro de 1767, o padre Antônio Francisco de Melo celebrou a primeira missa na Casa de Oração de Couros, relata Lorena Gonçalves (2008).

Um marco histórico foi a instalação da Estação Fiscal de Registro da Lagoa Feia, em fevereiro de 1736, por ordem do rei de Portugal, temendo a evasão do ouro e o não pagamento dos tributos. Somente em 1º de agosto de 1843, o arraial foi elevado à categoria de vila, e pela primeira vez apareceu o nome Formosa: Vila Formosa da Imperatriz. O município de Formosa só foi instalado no dia 22 de fevereiro de 1844 e seu primeiro prefeito foi o Senhor Lázaro de Melo Álvares. A Cidade está localizada na região sudeste de Goiás, situada a 280 km da capital do estado, Goiânia, e a 75 km de Brasília, embora a divisa do estado de Goiás com o Distrito Federal fique a 5km do centro de Formosa. Hoje, Formosa é parte da Região de Desenvolvimento Integrado do Distrito Federal e Entorno (RIDE), região de interesse das Políticas de Salvaguarda do Patrimônio Histórico e Imaterial Brasileiro. É uma cidade de médio porte, com população de 90.247 habitantes.

Os habitantes de Formosa trabalham na tentativa de não deixar apenas para a memória a tarefa de guardar as reminiscências históricas de origem e identidade da cidade. Buscam maneiras de materializar seu patrimônio imaterial ou seus modos de fazer, evitando e superando a possibilidade de desenraizamento simbólico. Suas festas são uma maneira de transmitir para as novas gerações práticas tradicionais e históricas, no que se refere a determinados processos de trabalho.

Devido sua pouca idade, a Festa da Moagem pode ser considerada não tradicional e até ilegítima por uma parte da comunidade. Por outro lado, pode ser pensada como uma tradição inventada19, que se refere a saberes inquestionavelmente tradicionais em novos contextos históricos e sociais.

Formosa é uma cidade com alto potencial turístico. Já foi o mais importante ponto de comércio da região desde o início do século XVIII, enfraquecida com o aparecimento de Brasília. No entanto, conseguiu sobreviver às novas condições de concorrência. Atualmente conta com uma estrutura hoteleira relativamente boa, muitos restaurantes de comida típica, pizzarias, lanchonetes, comércio variado, casas

17 Ver Lorena Ferraz C. Gonçalves, “A Festa da Moagem em Formosa e a Reivindicação de uma Tradição no Estado de Goiás”, apresentado ao IV ENECULT.18 Rio brasileiro que banha os estados de Goiás e Tocantins, sua nascente fica na região suburbana do atual município de Formosa – GO.19 Hobsbawm e Ranger (2002 ).

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noturnas e alguns motéis. Tem também um grande parque de exposição agropecuária, onde acontece anualmente a Festa da Pecuária (Gonçalves, op. cit.).

Um belo conjunto formado por altas quedas d'água, como a Itiquira, grutas, lagoas, buracos (Buraco das Araras) e abismos compõem as maiores atrações de Formosa. Há um museu municipal: Museu Couros, que, assim como a Festa/Feira da Moagem, foi fundado por Leônidas da Silva Pires (Léo da Moagem). O museu foi criado antes da festa e seu acervo está repleto de objetos que recontam a história de Formosa, os costumes de gerações anteriores e das pessoas da roça. A história da Feira da Moagem está ligada à história do Museu Couros.

A primeira edição da Feira da Moagem data do ano de mil novecentos e noventa e oito (1998). O objetivo era, e ainda é, (re) significar o processo tradicional de moagem da cana-de-açúcar, para a produção de rapadura, de aguardente e de caldo de cana, no sentido de criar valor para a comunidade. Incluiu-se também a moagem de mandioca, para produção de farinha e beiju, e a tecelagem. Ao sentido cultural foram agregados valores mais utilitários como o comércio, o consumo, o dispêndio e a diversão. Na Festa da Moagem tanto o valor da cultura, como o do mercado parecem não ser mutuamente excludentes.

Mas, para além da preservação da tradição rural, a Festa/Feira da Moagem tem um papel social e econômico importante para a vida cultural de Formosa. Além de despertar na população o interesse pela cultura local, o lucro resultante do evento é, em grande medida, o que permite a manutenção da Fundação Museu Couros. Na narrativa da referida pesquisadora:

A Feira da Moagem é presidida pela lógica do excesso, do dispêndio, da exacerbação, do mercado... É um ato coletivo extra-ordinário, extra-temporal e extra-lógico. Durante sua realização, as pessoas saem do cotidiano para se inserir no contexto lúdico que todas aquelas representações simbolizam, especialmente aqueles que estão engajados na organização e produção da festa. Processos que, em outros tempos, eram encarados através da lógica da utilidade e do cálculo, trabalho se opondo ao lazer, na Festa/Feira da Moagem se transformam em peças de teatro ao ar livre e na materialização da memória histórica (estetização do passado).

A representação da memória histórica é apresentada como se fosse um museu sem paredes nem teto. Primeiro se seleciona um espaço destinado à execução do teatro, como um parque de exposições. Depois se monta uma estrutura de forma a dividir o lugar: um espaço para a mostra de um engenho de cana-de-açúcar tradicional, puxado por bois. Nele, a cana é moída, produzindo o seu caldo. Ao lado, uma casinha onde se estoca o caldo de cana para consumo dos participantes. Outra fração do caldo resultante da moagem destina-se a fabricação de rapadura, doces e açúcar mascavo, que são vendidos. O engenho utilizado na Festa tem mais de 100 anos e foi doado por um fazendeiro da região. Ou seja:

Tudo para efeito de observação, como num laboratório. As pessoas podem consumir tudo o que é produzido. Adjacente ao moinho de cana está forno de barro artesanal para a fermentação do que eles chamam de “isca”, ou seja, uma quantidade de caldo de cana azedo, misturado com o bagaço do milho, que é para azedar mais rápido. Á medida que o forno esquenta a isca, por um processo de condensação, a aguardente começa a jorrar de um pequeno cano. Fabrica-se assim a pinga de alambique. (Gonçalves, op. cit.)

Também é separado um espaço para demonstração da trituração da mandioca20, da qual resulta a farinha, de que se faz o beiju. Este é uma espécie de crepe de farinha de mandioca, que pode ser doce ou salgado. Um terceiro pedaço do parque é ordenado para representação da tecelagem, com produção do fio a partir do algodão cru e se utilizando de máquinas manuais da idade média e tecelãs rurais. Enquanto trabalham as tecelãs cantarolam sem parar, canções muito antigas (idem). Embora o foco esteja no tradicional, há lugar para os modernismos, os diacronismos e a coexistência de temporalidades. Encontram-se stands de agências de fomento do estado de Goiás, que simbolizam as políticas de desenvolvimento rural familiar, microcrédito e agronegócio. Nesse mesmo espaço de demonstração, ficam expostas caixas teatrais onde bonecos em miniaturas reproduziam todo o processo de produção a que o evento se refere, desde a colheita do algodão para tecelagem ou da mandioca no campo, até a fabricação do produto final nas rústicas máquinas.

Prossegue a jovem pesquisadora (idem):

20 Um arbusto, que teria sua origem mais remota no oeste do Brasil. Possui muitos sinônimos, usados em diferentes regiões do território, candinga, castelinha, macamba, maniva, moogo, pão-da-américa, uaipi, xagala e pau-farinha.

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Ao lado do palco de apresentações artísticas, levanta-se uma enorme tenda branca, onde as pessoas podem comer nas muitas mesinhas ali disponíveis enquanto assistem às atrações da noite. Tem tapioca (beiju), milho cozido, curau, canjica, engrossado de frango, vaca atolada (caldo de carne, engrossado com mandioca), crepes, pastéis e paçoca de carne seca moída no pilão de madeira. Tudo a preços baixos.

Todas as noites acontecem shows, com bandas de forró, duplas de música sertaneja, apresentações de catira, concertos de viola e apresentações de dança country? Uma festa completa, adequada para uma cidade híbrida como Formosa. Híbrida porque nela o remoto e moderno coexistem: o tradicional, como as folias, os velhos casarões e igrejas, os cavalos e as carroças, bem como o moderno, hotéis, prédios, lan-houses e uma boate, convivem, formando sua paisagem (idem).

Gonçalves (idem) comenta a esse respeito:

É uma Festa/Feira porque se subdivide em duas lógicas de operacionalização, uma que é a de celebração, rememoração de um passado histórico e outra que é utilitarista, na medida em que muitas pessoas aproveitam a concentração de outras dispostas à pândega para ganharem algum dinheiro. Várias coisas são vendidas no espaço-ritual. Como numa feira livre, pode-se comprar artesanato, produtos agrícolas, rapadura, bebidas e comida, desde hot dogs a beijus.

Depois de criado o Museu Couros, percebeu-se uma dinamização dos acontecimentos culturais, também uma maior circulação de pessoas, capital e idéias em Formosa. Há apresentações regulares de catira21 no espaço do Museu, que conta com uma sala de apresentações, galerias e um pequeno teatro. Muitos outros eventos para a promoção da cultura local são realizados lá, como a “Orchida Brasil”, uma mostra de orquídeas de Formosa. A mostra ocorreu entre os dias 04, 05 e 06 de abril de 2008 e reuniu produtores de vários lugares do Brasil, oferecendo oficina de cultivo de orquídeas.

A perspectiva de futuro da Festa/Feira da Moagem é algo que preocupa os coordenadores. Para que a festa se repita a cada ano é necessário que esta geração aprenda todos os processos nela representados. Praticamente ninguém hoje em Formosa sabe fazer um fio de algodão cru, nem manejar uma máquina de tecelagem ou fazer cachaça. Esse “saber fazer” está na memória da geração passada, que já tem certa idade. Há apenas a intenção de se criar oficinas para passar esse “saber fazer” aos mais novos.

A Festa da Moagem, claramente, é uma experiência de estetização do passado, é uma tentativa de reconstrução cultural através da teatralização. As instalações da festa sem a sua significação cultural seriam apenas inutilidades obsoletas. Sua proposta é revitalizar o espaço, o bairro onde se instalou e a cidade, enriquecendo a vida cultural, seu acervo patrimonial e de memória. (idem)

Conclusões Preliminares

Primeiramente, apresentam-se aqui algumas recomendações metodológicas e conceituais que permitirão aprofundar a compreensão dessas tradições. Para isso, torna-se necessário retornar aos antigos ensinamentos de Pereira de Queiroz (op.cit.) referentes à constituição e continuidade do catolicismo rústico brasileiro.

Antes de tudo, há que se considerar, como queria a referida autora, que essa forma de catolicismo persiste porque proporciona diversas utilidades, nascidas dos seus princípios de moralidade e espiritualidade, que asseguram aos seus praticantes a boa vontade dos seus santos e divindades e uma retribuição pelo zelo dos mesmos. Assim, essa moralidade e espiritualidade, ao serem exercidas de forma rudimentar (porque rústica) e fluida (porque cambiante), geram sentimentos de reciprocidade e de gratidão que perpetuam as crenças e suas respectivas práticas. Ou seja, residem numa fidelidade utilitarista que permanece com a passagem do tempo e permite aos fiéis o enfrentamento das mudanças e inserção na modernidade. Ela proporciona também a capacidade de se adaptar aos tempos e de manter a hierarquia e dinâmica dos seus cultos e ritos. Dessa forma, a sua persistência pode ser entendida também enquanto estratégia de sobrevivência e de adaptação aos novos tempos.

21 Catira ou Cateretê é uma dança típica do interior do Brasil, que tem suas origens em Goiás, no norte de Minas Gerais e interior de São Paulo. Da coreografia participam de seis a dez dançarinos e mais uma dupla de violeiros. O ritmo musical é marcado pelas batidas dos pés e mãos dos dançarinos.

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A perseverança na prática dessas crenças e das performances culturais que elas cultivam demonstra que no Brasil a urbanização e modernização não acompanham necessariamente e/ou simultaneamente o processo de secularização da sociedade. Ao contrário, a pesquisa deixa transparecer elementos de fluidez e indeterminação na continuidade da sua rusticidade, mesmo quando, aparentemente, ocorra um enfraquecimento desse mesmo catolicismo, seja pelo desenvolvimento do catolicismo oficial, seja pelo crescimento das diversas formas de adesão ao protestantismo e espiritismo.

Outras questões dizem respeito à permanência e proteção às diversas formas de patrimônio imaterial ou intangível que essas práticas culturais representam. Taylor (2008) ao chamar a atenção para a falta de conhecimento e discussão sobre o esse conceito e as suas implicações para o estabelecimento de políticas de patrimonialização, assinala o papel de “estética vital” que essas performances culturais assumem, para além das suas enunciadas funções sociais. Dessa forma, as mesmas constituem um repertório que somente pode ser transmitido através dos corpos dos seus praticantes, se encaradas sob o ponto de vista do comportamento expressivo.

Em decorrência, pode-se considerar que as políticas de salvaguarda dessas práticas, ambiguamente, ao tentarem protegê-las, através da sua gravação e documentação, podem, na verdade, fortalecer o ímpeto “etnográfico selvagem”, prevalecente no século passado (Taylor, op.cit.: 100) pois as comunidades sempre encontraram formas de proteger as suas práticas tradicionais, historicizando-as e adaptando-as diante das mudanças, como aparentam ser as performances estudadas pelo projeto do Transe. Assim, se o turismo étnico, místico ou etnográfico conseguir transformá-las, sua característica fundamental de acontecimento que se realiza no aqui e agora estará preservada, apesar do interesse dessas políticas pela busca de sua autenticidade e espontaneidade, embaçando o passado com nostalgia e relegando o presente ao descartável.

Uma ilação generalizante a ser extraída dos casos apresentados aponta no sentido de que as manifestações culturais estudadas atuam como mecanismos de ligação entre a tradição e a modernidade, ou seja, entre o sertão mineiro e goiano e as transformações ensejadas pela implantação e desenvolvimento da capital modernista brasileira nesses rincões longínquos.

No caso de Formosa e a sua Festa da Moagem, essa ligação encontra-se mais nítida, tendo em vista que se trata de uma tradição inventada, relativamente recente e implantada numa cidade oitocentista localizada bem próxima a Brasília. O intercâmbio da cidade enfocada, tanto do ponto de vista econômico, como cultural e educacional, apesar de pouco estudada é mais do que evidente. O incremento da participação da população brasiliense nos festejos locais e no usufruto de suas atrações turísticas é inquestionável. Mesmo antes da construção da Festa, o turismo ecológico local já fazia parte das opções de lazer dos habitantes da capital federal. A quantidade de formosenses que a buscam para estudar e trabalhar continua a embasar o intercâmbio entre uma localidade culturalmente híbrida e as facilidades modernas oferecidas por Brasília. Pesquisas futuras deverão esclarecer mais detalhadamente os limites e desdobramentos desse intercâmbio.

Nos casos de João Pinheiro e de Paracatu, o tempo de existência de Brasília ainda não foi longo suficientemente para sedimentar evidências mais contundentes desse intercâmbio. Ao que se sabe, porém, o intercâmbio educacional e cultural, além do econômico, tem se desenvolvido de forma surpreendente. O número de habitantes das duas cidades que estudam em Brasília ou que recorrem a fontes de abastecimento sediadas na capital tem sido crescente. Por outro lado, é reveladora a quantidade de migrantes das duas cidades que habitam e trabalham em Brasília e que retornam sistematicamente às mesmas para participarem dos seus festejos tradicionais. É digno de nota o fato de que foliões de João Pinheiro e brincantes de São Domingos, mesmo quando residindo ou trabalhando em Brasília, continuem a participar de suas performances, assegurando a sua continuidade e a manutenção de seus vínculos identitários.

No caso de São Domingos (Paracatu) o fato de que remanescentes de um quilombo estejam sob a tutela de uma empresa multinacional extrativista de ouro, transforma o processo de preservação da festa da “caretagem” em fonte inefável de resistência a um processo de eliminação que assume características paradigmáticas para a população afrodescendente na região e mesmo no Brasil. Os desdobramentos desse conflito latente são imprevisíveis, oferecendo às ações afirmativas ora em curso no país um manancial não só para estudo como para o estabelecimento de precauções para as políticas culturais de preservação do patrimônio imaterial representado pela festa. Essas questões, ainda intocadas pela pesquisa desenvolvida, apresentam-se como desafios tanto para estudiosos dos processos de resistência cultural prevalecentes numa região que se moderniza, inserida no hinterland de um país que se democratiza. O mesmo pode ser afirmado, em linhas gerais, no que diz respeito às festas quilombolas do território Kalunga. O fato de as mesmas terem se transformado em objeto de divulgação pela mídia e do interesse de pesquisadores em escala nacional exige a atenção e a preocupação de todos que visam a preservação desses festejos tradicionais. Sobretudo no que se refere à sussa, tendo em vista a sua antiguidade e do auto-reconhecimento que enseja em seus praticantes, é necessária uma redobrada atenção no sentido de

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evitar a sua excessiva espetacularização e deturpação por um número de consumidores, turistas ou não, também crescente. O que se preconiza aqui é que a sua descoberta e divulgação, principalmente pelos brasilienses, não a levem a um paulatino abandono e vulgarização. Em outras palavras, espera-se que a revelação e prática dessa verdadeira relíquia do patrimônio imaterial do Planalto Central brasileiro não redundem na sua aniquilação.

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