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Foto: Alexandre Belém / Concepção: Jaíne Cintra

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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Viva la revolución! - Os grevistas não são mais aqueles de antigamente

03 Na edição em que comemora o primeiro ano do Pernambuco, este jornal decidiu por uma pauta renovadora: a importância das colunas sociais. Recorreu a uma equipe que examinou o assunto em diversos ângulos com a colaboração, inclusive, dos colunis-tas, durante entrevistas, e-mails e conversas telefônicas.

Durante muito tempo, as colunas sociais foram vistas com algum preconceito, é verdade, como um espaço jornalístico dedicado apenas à vaidade das pessoas endinhei-radas ou, senão, de pura fofoca. Embora não tenha sido sempre assim, pouco a pouco passaram por mudanças e foram se impondo como um “jornal dentro do outro”, con-forme a expressão de João Alberto.

Em artigo publicado nas sexta e sétima páginas, a antropóloga Geórgia Quintas faz uma análise minuciosa da importância dessa área jornalística e revela que não é apenas por vaidade que aparecem nas colunas. “Na verdade – diz– é inexorável o propósito de tais imagens em tornar algo público e visível. A aparência é tangível, agrega símbolos de status, muitas vezes indicados na maneira de vestir-se, ao usar jóias ou mesmo ao estar em um ambiente que denote o seu prestígio ou sua capacidade de transitar em lugares seletos, refinados, enfim, distintos dos ’lugares-comuns’”.

A antropóloga faz, ainda, uma conexão entre as fotos das colunas e os álbuns de família, ao considerar que ali “representamos o objetivo daqueles mesmos álbuns de família, somos o alvo”, para concluir que “tal contexto nos remete à fotografia do século XIX, especialmente aos retratos de família”.

Para continuar o debate, o Pernambuco, no caderno Saber +, editado por Marilene Mendes, procurou ouvir os atuais colunistas sociais, analisando as transformações que realizaram ao longo dos tempos. Mas antes, na segunda página do caderno, o jornalista Nelson Cunha faz uma breve história do colunismo social no Brasil.

Alex, do “Jornal do Comércio”, e João Alberto, do “Diário de Pernambuco”, decanos e ícones desta área da informação jornalística, testemunharam e promoveram as refor-mas, ao mesmo tempo. O primeiro possibilitou inovações através da linguagem literária, com influência de escritores e filósofos, enquanto o segundo, que tem parceria com Da-niela Gusmão, tornou a coluna algo pessoal, de imensa responsabilidade, ao substituir o título pelo seu próprio nome, realizando a grave tarefa de realizar um “jornal dentro do outro”.

Mas as transformações não foram somente até aí. Roberta Jugmann, também do JC, por exemplo, seguindo a linhagem de Orismar Rodrigues, na coluna “Dia-a-Dia”, optou por uma linguagem mais leve, com a finalidade clara de chegar ao público mais jovem, usando inclusive a gíria. Isso não podia acontecer noutros tempos, quando se criticava o colunista pela simples divulgação de uma nota sobre desquitadas, por exemplo, teste-munha Alex. Paula Imperiano, da “Folha de Pernambuco”, entretanto, procura tornar a coluna a mais noticiosa e eclética possível, envolvendo, inclusive, eventos religiosos, e os não convencionais, com espaço somente para artes plásticas.

Em Pernambuco, ainda, o jornalista Fernando Machado, que já experimentou setores de redação de jornal, promoveu também um avanço na história das transformações: faz uma coluna pela internet, num blog que também tem o seu nome. Para ele, é preciso estar atento às mudanças do tempo, usando o computador, de forma objetiva, com a vantagem de que pode fazer alterações nas notas durante todo dia, ou até mesmo inse-rir notícias mais novas e privilegiadas.

O Pernambuco, entretanto, não é só isso. Na terceira página, por exemplo, o leitor encontrará matéria de Rodrigo Carreiro, abordando a greve dos roteiristas norte-ame-ricanos. Nas quarta e quinta páginas, Adelaide Ivanova e Allan Luna interpretam o car-naval recifense, a primeira sob a ótica de uma não-foliã, e o segundo analisando os oito anos do carnaval multicultural da Prefeitura do Recife. Além disso, o escritor Fernando Monteiro faz, na oitava página, uma avaliação da trajetória do romancista inglês Ian MacEwan, enquanto Slobodan Stojanovic examina a estrutura interna do seu desafiador “Édipo”, sem esquecer o estudo das bibliotecas de Anco Márcio, nas décima e décima-primeira páginas. A escritora Gerusa Leal, premiada este ano pela Academia Pernambu-cana de Letras, fecha a edição com um poema inédito.

Boa Leitura.Raimundo [email protected]

SUMÁRIO EDITORIAL

Carnaval numa rua vazia - Adelaide Ivanova revela sua atípica folia de Momo

04

EXPEDIENTEGOVERNADOR DO ESTADO

Eduardo CamposVICE-GOVERNADOR

João Lyra NetoSECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Ricardo Leitão

PRESIDENTE

Flávio Chaves DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO

Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO

Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernam-buco - CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

EDITOR

Raimundo CarreroEDITOR EXECUTIVO

Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE

Jaíne Cintra

TRATAMENTO DE IMAGEM

Sebastião Corrêa SECRETÁRIO GRÁFICO

Militão Marques

REVISÃO

Gilson Oliveira

CONSELHO EDITORIAL

Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

Inéditos - A estreante poeta Gerusa Leal12

Ô, quarta-feira ingrata... - Qual será o fu-turo do carnaval multicultural?

05

Realidade: cuidado, frágil - Fernando Montei-ro analisa a obra de Ian McEwan

08

O que não é espelho - Um passeio pelas imagens das colunas sociais

06

De volta à cena do crime - Um novo olhar lança luzes na clássica tragédia de Édipo

09

A falta que você faz - O que o Brasil perde por não ter uma política para as bibliotecas públicas

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reve é coisa de comunista e operário filiado ao Partido dos Trabalhadores, certo? Errado. Uma das maiores demonstrações de união de uma categoria profissional dos últimos tempos veio

exatamente de onde se menos esperava: o seio da indústria do entretenimento dos Estados Unidos, segundo mais lucrativo segmento da economia daquele país e principal propagador da cultura con-servadora norte-americana ao redor do planeta. Pois é, nem mesmo Hollywood está imune à greve, esse instrumento de pressão política que trabalhadores do mundo inteiro associam à antiga União Soviética, ou às barbas cerradas dos “companheiros” metalúrgicos do ABC paulista.

A greve em questão, que desde o começo de novembro passado interfere radicalmente nos dois braços mais fortes da indústria do entretenimento – a televisão e o cinema –, foi deflagrada por um dos setores menos reconhecidos, e ao mesmo tempo mais importantes, para a manutenção da linha de produção de filmes, seriados e talk-shows da televisão dos EUA: os roteiristas. Nem todo mundo percebe, mas por trás das piadinhas (algumas infames) de apresentadores como David Letterman e Jay Leno, das cenas de perseguição de automóvel do blockbuster da semana e das complicações amorosas das moças e das donas-de-casa desesperadas, existe sempre uma ou mais pessoas digitan-do palavras incansavelmente, atrás de um monitor de computador.

Já houve um tempo em que os roteiristas eram grandes atrações da fauna hollywoodiana. Na década de 1930, durante a transição da fase do cinema mudo para o que se convencionou chamar de “Golden age” (a “Era dourada”) de Hollywood, os produtores e executivos dos grandes estúdios se viram subitamente com a obrigação de arrumar trabalhadores com capacidade para criar diálogos rapidamente e com qualidade. Recorreram ao teatro e à literatura, importando grandes nomes das duas áreas (William Faulkner, Raymond Chandler, Ernest Hemingway, Tennessee Williams), transfor-mando-os em roteiristas.

Com o tempo, porém, o poder e o reconhecimento público dos roteiristas foram reduzidos, em detrimento dos diretores. De repente, os verdadeiros artistas do filme passaram a ser estes últimos. Para os roteiristas, sobrou a pecha de operários das letras. Há uma ironia fina nesta última expressão, já que foram justamente esses “operários” que utilizaram a greve para chamar a atenção das pessoas para uma distorção no mecanismo de funcionamento da indústria cinematográfica. Esta distorção foi trazida pelas inovações tecnológicas, na forma de novas mídias de distribuição dos produtos au-diovisuais: DVD, internet, telefones celulares.

A grande questão por trás da greve é o aumento exponencial dos ganhos dos grandes estúdios, através da distribuição de conteúdo nestas novas mídias. Ocorre que os contratos-padrões dos ro-teiristas, redigidos e controlados pelo sindicato da categoria (chamado Writers Guild of America, ou simplesmente WGA) só costumam incluir percentual de lucro, para estes profissionais, sobre exibições em cinemas ou na televisão. Nos últimos meses, quando tentaram incluir nestes contratos cláusulas que previam o ganho percentual sobre DVDs vendidos, filmes e seriados baixados ou vistos pelos celulares e iPods mundo afora, os roteiristas tiveram a intenção barrada pelos estúdios. Restou a eles a greve.

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O que acontece quando a greve mais polêmica do momento vem do cére-bro do entrete-nimento

Rodrigo Carreiro

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Iniciada em novembro, a paralisação acabou se revelando o equivalente a uma hecatombe nucle-ar em Hollywood. Seriados de TV tiveram temporadas canceladas ou reduzidas pelos estúdios, porque de repente não havia mais quem escrevesse os textos que seriam lidos por atores ou apresentadores. Filmes de orçamentos milionários tiveram a produção atrasada em semanas ou meses. O prejuízo chegou à casa de US$ 160 milhões por semana.

Enquanto isso, os roteiristas caprichavam nos velhos e eficientes piquetes. Reunidos às centenas nos portões imponentes e glamourosos de estúdios como Warner, Universal e Paramount (os pique-tes neste último, extensamente conhecido por ter aparecido em filmes clássicos como “Crepúsculo dos deuses”, ganharam cobertura ampla de jornais e noticiários de TV), desfilavam com cartazes nas mãos e vestindo camisas com frases que denunciavam a “ganância corporativa” dos executivos – um cenário não exatamente novo para nós, brasileiros.

Aliados importantes para a causa dos roteiristas foram os atores. Não foram poucas as celebrida-des que arregaçaram as mangas e se juntaram aos piquetes. Tom Hanks, Ben Stiller, Jack Black, Keira Knightley e apresentadores famosos, como os já citados David Letterman e Jay Leno (os dois mais populares dos EUA), não hesitaram em apoiar os roteiristas. Obviamente, não se tratava de mero apoio retórico. É que o sindicato dos atores está próximo de iniciar as negociações para a renovação de um contrato coletivo de trabalho semelhante ao dos roteiristas, o que ocorre em junho próximo. O que isso quer dizer? Que tudo aquilo que os roteiristas conseguirem, ao final da greve, poderá ser incorporado de imediato aos ganhos dos atores, sem que seja preciso passar por cabo-de-guerra público e desgastante.

Curiosamente, o impasse nas negociações, que empacaram durante semanas a fio, foi afrouxado no final de janeiro, quando o sindicado dos diretores (talvez você não saiba, mas cada uma dessas categorias profissionais tem, sim, um organismo de classe, igualzinho aos que reúnem previdenciários ou bancários no Brasil) conquistou um acordo que, por tabela, teria que ser repassado automatica-mente aos roteiristas. Acontece que o estrago já estava feito, culminando com o cancelamento da glamourosa festa de entrega do Globo de Ouro, o segundo mais importante prêmio do cinema e da TV norte-americanos.

O ocorrido levantou as sobrancelhas do mundo inteiro para uma das contradições históricas mais curiosas de Hollywood. Afinal de contas, naquele pedaço de alguns quilômetros quadrados repleto de mansões em Los Angeles, existe uma indústria cultural que perpetua valores de extremo conserva-dorismo. Mas é lá, também, que estão empregados alguns dos profissionais mais lúcidos e engajados do mundo globalizado. Esta contradição potencial não chega a ser novidade para os cinéfilos que conhecem o histórico das perseguições ideológicas ocorridas lá, durante a Guerra Fria. A greve dos roteiristas não só mostra que Hollywood continua a mesma, mas ainda encerra uma lição importante para as gerações mais jovens.

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eu homem mora no Recife e eu moro aqui, e eu não gosto de falar sobre isso – nem com ele, nem com ninguém. Prefiro, inexisten-

cialista como bem definiu Antonio Bivar na revista de Joyce Pascowitch, fazer de conta que a realidade não é comigo.

Agora avalie comigo o dano causado à minha obcecada psique, quando meu lindo namoradinho revelou: “Carnaval chegando, vou sair de escocês, vai ser massa!”. E eu, que vou passar a época momesca numa São Paulo abençoadamente vazia (e trabalhando na minha pró-xima exposição), só quis saber: “COM OU SEM CUECA?”.

Para meu alívio, meu marinheiro falou que sem cueca já era incor-porar o personagem por demais (“ufa”, do lado de cá da linha). Mas pô, com quê mais eu me preocuparia? Com o tecido apropriado do kilt do meu bem? Com o tamanho da gaita de fole? Eu mermo não. Eu quero é esquecer que o Carnaval tá chegando. Na verdade eu só me lembro dele por causa das propagandas da Brilux, que me deixam tão nostalgicamente incomodada.

Eu nem gosto nem desgosto de Carnaval. Nunca aconteceu nada de bom nem nada de ruim. Acho lindo quem espera o ano inteiro fevereiro chegar e sai descendo a ladeira. Eu já tentei me divertir nas Olindas, mas nunca dá certo, e olhe que eu nem chego a ficar de mau humor. Não sinto nada. Mesmo que tenha bebido (e eu sempre bebo, todos sabemos), nada me emociona. Eu olho aquele sol, aqueles pa-ralelepípedos, o sol de rachar, aquela frevaiada toda... É que me dou melhor no aconchego de uma pista de dança refrigerada e plana, com um bar que venda uísque em copo de vidro, gelo de água potável e que toque músicas de rebolar, e não de ficar dando pinote.

E isso é só o que eu prefiro, não tô dizendo que uma coisa é melhor que a outra, tá?

A verdade é que nem é por isso que eu não me dou bem com Car-naval. O buraco é mais em cima. Talvez tenha um lado Camille Paglia em mim que eu desconheça. Ai credo, será?

Tomara que alguém que leia essa balelada abaixo se identifique co-migo, para que eu não me sinta a sociopata do paetê.

É que eu, do jeito que sou, sempre pulando de macho em macho, barulhenta e chegada num bar, me sinto oprimida, o ano inteiro, com obrigação de ser feliz para que o mundo fique em paz. Aí no Carnaval eu tenho que ficar ainda mais feliz e entrar em catarse? Comigo, não, violão. É a merma coisa daquela felicidade sintética do Playcenter: você vai nos brinquedos, fica saracoteando de cabeça para baixo, de cabeça para cima e no fim te sobra o quê?

Uma overdose de endorfina, serotonina e adrenalina, somadas a uma dor de cabeça dos infernos e, com azar, um torcicolo – e, com pouco azar, herpes. Eu prefiro Réveillon, que é supercatártico, dura menos e é de noite – aí você não fica com o bigode todo suado, coisa inevitável sob aquele sol olindense de rachar.

Carnaval para mim é que nem ficar a fim de um menino de Gêmeos: eu sempre tenho fé que vai dar certo, mas nunca é bom. Então cansei de me iludir. Aquela suposta vibe de jogação fevereirense nunca é me-lhor pra mim do que as doidices que eu faço sem precisar de subterfú-gio carnavalesco, entende?

Acho que tem gente reprimida que precisa da desculpa do Carnaval para poder fazer as coisas, e como a maioria das pessoas é reprimida (eu sou também, não vou mentir, mas é minha timidez que é reprimida e não minha pouca-vergonha) aí o Carnaval é um sucesso. Não tem nada que o povo faz no Carnaval que eu não faça numa quinta à noite qualquer (que frase patética, mas é assim, vou fazer o quê?).

Mas, still, todo ano eu fico: ah, ano que vem eu tento.Não tenho histórias clássicas de carnaval pra contar, tipo “fiz xixi

andando na multidão”, “beijei 2.365 meninos”, “desci a ladeira num carrinho de mão”. Minhas amigas, que amam carnaval e que eu res-peito muito apesar disso (hahahaha), tentam me convencer que quem curte Carnaval assim são os abestalhados, que bonito é tomar umas cervejas e descer a ladeira seguindo os bloquinhos.

Ora essa, qual a graça? Se fosse para eu gostar de Carnaval eu pre-feriria mil vezes mijar no pé de alguém e sair me estourando de rir do que gastar sola de sapato no calor ouvindo “Vassourinhas” duzentas vezes.

Bom, sei lá. No Recife tem o RecBeat (à noite, ufa), que era muito massa antes, quando era na Rua da Moeda. Lembro que o primeiro ano que não curti foi o que teve Black Alien (que adoro), porque foi quando começou a ficar mais perigoso, gente demais, ladrão demais. Aí fui no ano seguinte e depois não fui mais. Meus anseios carnava-lescos, portanto, murcharam de vez quando morguei de ir pro Recife Antigo à noite, depois das sessões masoquistas em Olinda. Comigo Carnaval é como a vida para Vinícius: é a arte do encontro, mas tem um bocado de desencontros também.

E este ano (olhe só que desencontro) a banda do meu funny valenti-ne vai tocar no RecBeat, e seria muito bom se eu pudesse ir (mas eu não vou poder). É a lei de Murphy: se eu estivesse aí, provavelmente não rolaria esse show; já que eu não posso ir, configura-se a circunstância ideal (pelo menos para mim, groupie dos infernos).

Então fica combinado assim: enquanto eu fico aqui curtindo meu feriadão numa São Paulo lindamente vazia, vocês ficam aí se jogando – e todas saímos satisfeitas. Se por acaso cruzarem com um menino fantasiado de escocês, lembrem de mim. E se der, tirem uma foto dele, mandem pra mim. Eu vou adorar!

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Carna-val numa rua vazia

Adelaide Ivanova

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a quarta-feira, seis de fevereiro, quando a melancolia das cinzas puser a última pá de terra sobre o Carnaval 2008, chega ao fim uma experiência que, nos úl-

timos oito anos, redimensionou a folia na capital pernambucana. Estamos falando do Carnaval Multicultural, implantado pela Prefeitura do Recife a partir de 2001, quando a festa esteve pela primeira vez sob a gestão do prefeito João Paulo (PT) e do secretário de Cultura João Roberto Peixe.

Em termos práticos, “multicultural”, aí, significa descentralização dos focos de animação (este ano serão 58, no total) e ecletismo na grade de atrações (o famoso “para todos os gostos”). Do ponto de vista ideológico, porém, há um emaranhado de conceitos que advém da própria idéia de “multiculturalismo”, termo que ga-nhou força após o boom do processo de globalização econômica e trouxe consigo questões como a oposição entre centro e periferia ou as novas identidades culturais surgidas nesse contexto.

Analisada para além do slogan, portanto, a definição se torna fugidia. “O con-ceito é muito aberto, extremamente polêmico, baseado em premissas de ordem muito diferentes — inclusive, às vezes, conflitantes na teoria e nas práticas que estão em operação aí pelo mundo”, explica o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Paulo Cunha. A pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Rita de Cássia vai além: “Dentro dessa idéia, eu distinguiria duas coisas: uma é o dado real, a realidade, e um outro dado que seria mais discursivo, mais a nível da representação, de como você está tendo uma percepção desse conceito, vai atrás de um discurso e intitula carnaval multicultural. É preciso levar em conta que o carnaval no Recife sempre foi muito múltiplo. A prefeitura observou de forma diferente uma realidade que já existia e tentou implantar uma política pública de acordo com isso”.

Quem faz leitura semelhante é o produtor Antonio Gutierrez, o Gutie, organiza-dor do Rec Beat, festival acontecido pela primeira vez em 1995 e que é uma espécie de embrião do atual modelo. “A gente vive num campo cultural muito diversifica-do. Desde o inicio, eu já tinha essa percepção. Eu acho que o Recife vive um dos melhores momentos nessa área porque incorporou uma coisa natural, ninguém inventou isso. O que nós fizemos foi jogar uma luz em cima desse conceito, que dá certo porque é uma verdade”, avalia.

Desse modo, ao tomar para si a causa multicultural, a atual gestão manteve-se no timing do que acontecia ao redor do mundo. Peixe reforça essa tese ao citar a Agenda 21 das Cidades para a Cultura, “documento aprovado em 2004, em Barcelona, e de que o Recife foi um dos signatários”. Tal sintonia leva o professor Paulo Cunha a fazer a seguinte leitura: “A própria discussão de um projeto de po-lítica cultural está muito atrelada a esta gestão. Nas anteriores — sem querer fazer uma crítica muito precisa, porque eu não tenho muito mais que a memória dessas informações —, eu creio que, simplesmente, havia a implementação de algo que era decidido de maneira meio tecnocrática, meio burocrática. Aqui, a gente já tem um outro patamar; a gente já tem, pelo menos, essa idéia de que a cidade precisa de um projeto cultural, e a gestão o propôs em torno dessa etiqueta multicultural. Desse ponto de vista, é um avanço”.

Estabelecida a política, porém, ela foi se moldando de acordo com ajustes da própria gestão e a partir de críticas externas. O atual coordenador-geral da Arti-culação Musical Pernambucana (AMP), Flávio Mamoha, divide o projeto em dois tempos: “Eu costumo dizer que a AMP é um instrumento jurídico de ação política. A gente tem esse instrumento que facilita o diálogo entre a sociedade civil (no caso,

organizada) e o poder público e utiliza isso para acompanhar e propor políticas na nossa área de cultura — de música, principalmente. A gente participou desde a primeira conferência municipal de cultura, em 2003, e, a partir daí, surgiram propostas que foram aprovadas e hoje são postas em prática. O pré-AMP [festival organizado pela entidade com apoio da prefeitura na semana pré-carnavalesca] foi o pontapé inicial, onde a gente conseguiu abrir espaço na programação, e esse era o questionamento principal: a falta de espaço para os artistas e grupos que par-ticipam da cena pernambucana. Essa cena alternativa, independente, não estava tendo espaço na programação do carnaval, o pessoal estava insatisfeito, e aí veio a reclamação. Você vê que, hoje, as bandas daqui tocam no Marco Zero, bandas, às vezes, que não têm nem tanta dimensão”, diz Mamoha, ressaltando que, no momento de apuração desta reportagem, o Pré-AMP era motivo de polêmica no site RecifeRock!, sobre a qual ele preferiu não falar (e que, de resto, não era o foco desta matéria).

Mas, voltando ao carnaval, a pesquisadora da Rita de Cássia levanta uma ques-tão interessante: “Uma coisa que eu sempre me questiono muito é esse formato de shows, que está cada vez mais se consolidando. Eu questiono porque acho que carnaval é movimento, é feito pelo movimento das pessoas participando, indo atrás dos blocos. No momento em que você estabelece palcos e fixa a população para observar, você vai mudando a dinâmica do carnaval. Eu não estou dizendo que o show não seja importante, mas aquilo ali é um show, como qualquer outro, em qualquer época do ano. E o carnaval, para muitos jovens, sobretudo, é isso. Eles não têm, de forma alguma, o hábito, a cultura de sair perseguindo os blocos”, avalia. A pesquisadora Sylvia Couceiro, também da Fundaj, completa: “Esse público é diferente, inclusive, na forma de vestir. E, aí, eu não falo do movimento mangue, que tem o seu espaço lá; eu falo de um público que chega no carnaval a partir da meia-noite e vai com uma roupa completamente diferenciada, como se fosse para uma festa. Eles não vão pra participar, pra ir atrás do bloco, pra brincar. É um pú-blico específico para show”.

O tema é polêmico e rende uma infinidade de discussões. O próximo gestor — independentemente de sua coloração ideológica — terá de lidar com essa falta de consenso (no fim das contas, saudável) e posicionar-se diante desse novo carnaval. “A questão do multiculturalismo, da maneira como foi implementada, ainda não gerou bases firmes o suficiente para ter que ser continuada. Eu acho que um pró-ximo gestor pode simplesmente encerrar ou mudar o rumo dela”, especula Paulo Cunha. Rita de Cássia segue na mesma linha, mas acrescenta um novo ator político: “Tudo é passível de mudança, e aí vai depender muito da população também: se a população vai aceitar uma modificação ou não”. Para Mamoha, o projeto “envolve de tal forma a sociedade e o poder público que fica difícil de, depois, você dizer: ‘ó, acabou isso aqui. Não vai ter mais’”. O secretário Peixe também está otimista: “A gestão consolidou um modelo de carnaval que tem plena aprovação da população. Para você ter uma idéia, as primeiras pesquisas, feitas quando João Paulo ganhou, e a cidade estava literalmente dividida ao meio, qualquer ação da prefeitura reve-lava essa divisão. A primeira ação que quebrou essa divisão foi o carnaval, que teve aprovação de mais de 90% e hoje é quase uma unanimidade. Então, eu acho muito difícil haver um retrocesso”.

Até fevereiro de 2009, é impossível saber ao certo. Garantido, mesmo, para o carnaval do próximo ano, só mesmo os versos da marchinha de Zé Keti e a certeza de que ele “não vai ser igual àquele que passou”.

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Um balanço da folia multicultural no último ano

da gestão João Paulo

Alan Luna

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A pedido do Pernambuco, antropóloga passa uma semana analisando as principais colunas sociais do Estado e dá o seu veredito

Georgia Quintas

o que não é espelho

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Saber+yy

em sempre o que acreditamos ser uma simples questão de aparência e vaidade, é algo tão superficial ou frívolo. É certo que, atualmente, com este mundo acachapante das celebridades,

não é difícil considerar que o registro fotográfico tornou a individualização da pessoa retratada tão banal que vemos, gradativamente, a construção da imagem de um indivíduo-objeto. E o que vem à mente é apenas vaidade, vaidade, pura vaidade. Estabelece-se, assim, a necessidade da aparência de alguns que alimentam a curiosidade de outros. E nada preenche nada. A imagem passa a ter um silêncio, um vazio, apenas a performance rasa de um “eu” sem nenhum significado. E tudo se torna descartável através de um apelo efêmero, através de instantes (consentidos ou não) de fragmentos da vida plasmada como espetáculo.

Entretanto, a percepção sobre o outro é uma troca social, um mundo simbólico que remete a valores culturais entre quem é retratado e quem o observa. Paralelamente aos novos caminhos que a fotografia contemporânea traça esteticamente e conceitualmente, a natureza primária de identidade inerente à fotografia ainda sobrevive em seu status de registro social de determinada sociedade e época. Podemos dizer que a fotografia é um suporte hegemônico, desde seu advento no século XIX, no qual as pessoas se tornam atores sociais, legitimam sua estratificação econômica, demonstram suas relações de poder e delimitam seu espaço de representatividade na sociedade.

Durante uma semana, me detive em analisar as fotografias das colunas sociais dos jornais locais. E o que poderia ser apenas uma percepção de retratos corriqueiros em eventos sociais, não se esgo-tou no conceito de que muitos inevitavelmente com certo ranço e algum preconceito, consideram de autopromoção ou exibicionismo. Na verdade, é inexorável o propósito de tais imagens em tornar algo público e visível. A aparência é tangível, agrega símbolos de status, muitas vezes indicados na maneira de vestir-se, ao usar jóias ou mesmo ao estar em um ambiente que denote o seu prestígio e sua capacidade de transitar em lugares seletos, refinados, enfim distintos dos “lugares-comuns”.

No entanto, a coluna social representa um segmento jornalístico que efetivamente tem um papel importante e catalisador das convenções e pautas sociais. Nesse sentido, o registro fotográfico nos leva ao passado, revela caminhos já explorados que só nos afirmam a certeza de quem somos. E as-sim, ao observar imagens de mulheres elegantes, sofisticadas e de homens, por sua vez, sublinhando algum contexto econômico ou de negócios, encontrei sobrenomes que se repetiam nas respectivas colunas. Sobrenomes, neste caso, têm uma carga simbólica representativa sobre o que a fotografia pode nos oferecer enquanto palco de representação da vida social.

O que ocorre no colunismo social é apenas um reflexo (e aqui, não discuto a importância e o mérito deste segmento jornalístico) da relação intrincada entre fotografia e sociedade. Temos que partir do princípio que nada é tão superficial que margeia o sentido da ingenuidade. A história da fotografia atesta que a sociedade utiliza o registro fotográfico como um mecanismo efetivo de comunicação, de modo que os indivíduos se apropriam da imagem e criam seu repertório estético para transmitir suas “intenções” e seus “desejos” ante os outros. Tudo é um palco, uma encenação da realidade, uma metalinguagem da vida pela perspectiva da idealização. Parece um pouco confuso e dúbio, mas assim é a imagem. Não tão real, não tão sincera. Um pouco manipulada, passível de várias leituras e algumas relativizações.

Sobre a fotografia como documento social, a autora e fotógrafa alemã Gisèle Freund enfatiza que a imagem fotográfica possui a amplitude de expressar as necessidades das classes sociais domi-nantes e de interpretar à sua maneira os acontecimentos da vida social. Mas ela, sobretudo, expõe o ponto nevrálgico da ontologia seja de que tipo for o retrato , da imagem fotográfica, e nos pilha: a imagem responde à necessidade cada vez mais urgente no homem de dar uma expressão a sua individualidade.

Diria que o fluxo das imagens traz os resquícios da sociedade aristocrática da cana-de-açúcar de Pernambuco. Numa espécie de sopro, sentimos a atmosfera das elites... Nas legendas, se constata a procissão de nomes de famílias tradicionais de uma época que nos remonta facilmente à formação de nossa identidade agrária tão cheia de contrastes sociais e de relações interétnicas. Tal contexto nos remete à fotografia do século XIX, especialmente aos retratos de família. A reunião de imagens fotográficas, produzidas naquela época e ordenadas em preciosos álbuns, era o “livro” consentido da história de cada núcleo familiar. Neles, povoavam personagens que nasciam, cresciam, casavam-se, viajavam, iam à guerra, tornavam-se republicanos, abolicionistas ou conservadores. Ainda através dos retratos, cultuavam-se seus mortos, celebravam grandes datas (casamentos, batismos, primeira comunhão), enfim coisas da vida, ritos de todos nós. Nestas imagens antigas, se compreende que a técnica fotográfica estava a serviço da elite agrária. A fotografia, não tão popular por fatores eco-nômicos ao consumo de classes sociais mais pobres, se converteu na vitrine desejada de legitimação da posição social daquele grupo cujo poder, riqueza e prestígio tinham sua própria ideologia. Desse modo, o visitante ao entrar na sala de uma casa-grande ou de um sobrado encontrava o tal álbum de fotografias para “casualmente” conhecer quem eram os retratados e, claro, de acordo, como queriam ser reconhecidos em todo seu esplendor e riqueza.

Através do jornal, ainda somos personagens desta realidade imagética da vida social que se descortina diariamente. Representamos o objetivo final daqueles mesmos álbuns de família, somos o alvo. Acompanhamos aniversários, casamentos, fatos marcantes da vida de pessoas que não co-nhecemos, mas que pelo hábito da leitura e do olhar, já as reconhecemos devido à freqüência com que vemos seus retratos. Ainda somos os receptores, os observadores tão desejados para que tais fotos tenham algum sentido. O certo é que se trata de um espaço no qual uma parte da sociedade é documentada, o que coloca a fotografia como instrumento de percepção e interpretação para o leitor. Desta maneira, dependendo de como você encare o colunismo social ele poderá ter duas pers-pectivas. Uma primeira, espécie de vitrine, da qual muitos alimentam a pueril curiosidade de quem é visto e de quem vê. Ou então, tentar transcender o banal das aparências, buscar razões e refletir sobre os significados sociais que produz o que vemos. E vale repensar no que disse na primeira frase deste texto; agora, ela poderá fazer algum sentido. Ou seja, resta escolher qual das imagens pode nos “alimentar”: a de dentro ou a de fora... E assim, perceber um pouco de nossa alma, nossa histó-ria e nossa identidade.

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inglês Ian McEwan é, provavelmente, a única real novidade no âmbito da ficção anglo-saxônica dos últimos vinte anos. Diante de pelo menos meia dúzia de tí-

tulos por ele lançados em pouco mais de três décadas, não há como evitar uma frase assim, quase redonda de certeza – pelo convencimento que tais obras impõem por si mesmas e não porque o ainda jovem autor britânico (sessenta anos) use os truques dos quais os novos escritores “midiáticos” costumam lançar mão, nestes tempos de marketing triunfante sobre a qualidade e o talento (que ainda é necessário, para ser escritor).

No momento atual, mais-do-que-nunca (como diria o “sábio” domingueiro Faus-tão) merecem desconfianças aqueles autores que escrevem para fora e não para dentro, os que buscam conexão com os chamados “temas da moda” e desprezam a voz interior que lhes recomenda: escreve, ó infiel, sobre aquilo que faz parte do teu mundo interior, e depois te senta em algum banco de igreja carcomido à beira do mar, à espera de nada exatamente (e muito menos o reconhecimento vulgar que pretende transformar autores em ídolos “pop” etc).

Para McEwan, o que veio desde logo foi mais do que essa areia deslizante por entre os dedos – até porque a solidez das suas primeiras narrativas colocou outra certeza, mesmo no campo minado da crítica “pós-moderna”: a literatura de língua herdeira estava diante de uma espécie de herdeiro de Thomas Hardy que houvesse tomados aulas (de um Henry James?) de como duvidar do vidro polido da realidade que nos cerca, para mostrar os cacos de um vitral partido ao pé da escada do ro-mance do contemporâneo subindo para o nada, nas mãos menos hábeis dos con-fortavelmente sentados em poltronas de clubes, à espera do elogio engordado com a graxa especial dos editores (e outros poluentes).

McEwan nasceu mestre, ficcionalmente. Sua primeira novela – em que todas as foscas transparências de um “Reparação” já estavam presentes – revelou um jovem ficcionista com capacidade de invenção e qualidades narrativas bem acima da média das melhores estréias na língua de Shakespeare. O livro (“Jardim de cimento”) foi lançado em tradução portuguesa e brasileira, mas ninguém – aqui e em Portugal –, prestou a devida atenção, ainda, a esse McEwan da melhor água primacial naquela pequena garrafa de vidro contendo, em germe, mais ou menos tudo que ele iria desenvolver numa sucessão de obras romanescas das quais somente “Sábado” (sua penúltima novela) destoa um pouco, por ser, aparentemente, um tour-de-force no sentido da atualidade ou de um cenário “imediato” que o escritor quis refletir, talvez para mostrar que também tem habilidade para ser banal como a maioria dos seus colegas mais festejados. Ian McEwan, então, não tem esses “carinhos” da imprensa especializada?

Não é bem isso. O ficcionista nascido em Aldershot (cidadezinha do condado de Hampshire conhecida pelo curioso epíteto de “home of the British Army”) é bastante

respeitado na Inglaterra, onde já obteve os mais importantes prêmios de literatura, porém a novidade que ele representa aponta para trás – no melhor sentido –, porque o seu trabalho é o de um artista do vitral refratado da realidade ou do passado re-visto pelo olhar de quem ficciona o tempo inteiro. E quem ficciona assim, “o tempo inteiro”?

Nós todos. O autor de “Reparação” (acrescentado de um inócuo “e Desejo”, na titulação brasileira da versão cinematográfica que entrou em cartaz, em janeiro) vê o mundo como uma grande ficção, na qual vivemos a ficção-da-ficção das nossas vidas atapetadas pela incompreensão das coisas enquanto elas estão acontecendo e, principalmente, depois que já aconteceram – quando “um mero ato de arrependi-mento” não pode ser “capaz de alterar o passado” (conforme o último Oscar Wilde queria acreditar, com as unhas arruinadas pelos trabalhos forçados no cárcere de Reading).

A vida não é uma balada, uma canção ou “um campo para se atravessar”, como diz o verso final do poema “Hamlet”, de Boris Pasternark.

Romancista apoiado na tradição, inventor de ficções secretas e estranhas como um dia num parque num verão debaixo de um guarda-sol vermelho molhado da mais inesperada das chuvas, o mag(r)o McEwan aperta os olhos para não ver direito na superfície das coisas e das pessoas, enquanto penetra no coração da treva de dentro – onde um casal é capaz de se destruir, na suíte da noite de núpcias, apenas porque...

“Apenas porque”? Não há nenhum “apenas porque” no campo de visão desse escritor de escadas descendo para os porões internos – como aquele onde as solitá-rias crianças de “Jardim de cimento” mantêm o corpo da mãe morta mal escondido do mundo lá fora, assim como o casal da curta novela “Na praia” sucumbe ao mun-do que vem com eles para dentro dos lençóis da intimidade dinamitada pelo medo.

Mestre dos subentendidos (em “Reparação”, principalmente), tapeceiro dos nós difíceis do tear de fios de aranha dos “acontecimentos” grudados nos nossos dedos, Ian McEwan é um escritor – restaria dizer – que tem sido levado para o cinema mais pelo que ele não quis dizer do que pela delicadíssima rede daquilo que seus livros acabam nos dizendo (o que eu só aproximo, nos últimos trinta anos, do curtíssimo “Maybe” de Lillian Hellman), dois pontos: naquela tarde, talvez alguém amou ou matou alguém que, quem sabe, estava para sair para postar uma carta de perdão ou uma sentença de morte contida numa mensagem de três linhas incompletas que, afinal, ficaram boiando como a garrafa no mar da praia que vai expulsar os jovens recém-casados da “felicidade” (com e sem aspas), para sempre.

Isso é McEwan autêntico: ou seja, a capacidade – entre outras coisas – de nos colocar de face para um segredo que não é para se contar: “o que quer que faça, você se arrependerá”.

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A ficção que questiona a si própria de Ian McEwan

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Fernando Monteiro

Realidade: cuidado, frágil

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ais de vinte e três séculos separam-nos da morte do maior poeta trágico dos gregos, e é difícil imaginar que ainda haja algo novo a ser dito a res-

peito de “Rei Édipo” (Oidípous Tyrannos), obra-prima de Sófocles. Coisas difíceis de imaginar, entretanto, acontecem necessariamente – este é um dos princípios encantadores da literatura –, e elas acontecem não apenas com personagens, dentro da obra: podem sobrevir, do mesmo modo, diante de um leitor atento. Não obstante o tempo que passou, os pontos “obscuros” rendem-se às repetidas leituras, e levantam novas questões.

Alguns anos antes da desgraça que assolou Tebas, Édipo havia aniquilado um pequeno grupo de viajantes armados. Quando a calamidade chegou, um oráculo de Delfos revelou as causas do sofrimento dos tebanos: o assassino do rei anterior habitava a cidade. A façanha do herói, de repente, transformou-se num crime, e – conforme o ditado délfico “Conhece-te a ti mesmo” – começou o autoconhe-cimento de Édipo. Ele nunca chegou a se reconhecer como assassino pela força interna da consciência ou do entendimento: será uma força externa, o infortúnio de Tebas, que o obrigará a iniciar as investigações.

De fato, as “forças ocultas” haviam elaborado a acusação de parricídio antes mesmo do nascimento do herói. Jocasta contou a seu segundo marido (Édipo) que antes do nascimento de um filho dela (o próprio Édipo) um orá-culo fora revelado a seu marido, prevendo que ele seria morto por um de seus filhos com Jocasta. Uns vinte anos mais tarde, outro oráculo (revelado a Édipo) confirmou o primeiro, e o completou: o herói estava destinado a unir-se a sua mãe. Em seguida ele supostamente matou seu pai e, 5 ou 6 anos mais tarde, enquanto reinava em Tebas, o terceiro oráculo (revelado a Creonte) denunciou a existência do “miasma” que habitava Tebas – o assassino do rei anterior – e exigiu sua punição.

Se aceitarmos as previsões dos três oráculos como provas, então não há dú-vida quanto ao assassino: o único filho de Laio e Jocasta que morava em Tebas era Édipo. A respeito dessas provas oraculares a “Poética” de Aristóteles diz: “Ao recurso de deus ex machina não se deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou no passado”. Um ponto mal resolvido, no entanto, surge dentro da estrutura da obra: a investigação iniciada por Édipo não foi con-cluída. A interrogação da testemunha chave – o único sobrevivente da chacina – nunca se concretizou. Portanto, dos três oráculos, a única previsão coerente com a verdade interna da obra foi aquela que revelou o destino do herói de “unir-se” a sua mãe. E esta foi confirmada duplamente: não apenas pela estrutura do mito (que inspirou a peça), como também pela estrutura interna da peça – pri-meiro no episódio III, quando Jocasta reconhece seu marido, Édipo, como filho e, no episódio IV, quando Édipo se reconhece como filho de Jocasta.

Voltemos, agora, à investigação do crime iniciada por Édipo. A primeira versão do assassinato de Laio, contada pelo único sobrevivente, mencionou vários assas-sinos, não um só. Mais tarde, no final do segundo episódio, Édipo se reconhece como assassino, mas tenta “evitar a vergonha” explorando a possibilidade da existência de dois crimes simultâneos, separados no espaço: um contra a comitiva do rei, executado por um grupo de assaltantes, e o outro contra pessoas desco-nhecidas, executado por ele mesmo. A solução do problema sobre o número de

assassinos responderia à questão se Édipo foi o assassino de Laio ou não. Por isso ele pediu a Jocasta que fizesse vir ao palácio o único sobrevivente.

O mensageiro de Corinto, no entanto, chega primeiro, e a partir daí a questão da identidade de Édipo ocupa o lugar central. Com a identidade confirmada sur-ge um crime maior – o crime do incesto –, e sua confirmação foi o reconhecimen-to chave no Rei Édipo. O resto - quem foi o assassino de Laio e da sua comitiva – não era mais interessante. Sófocles se deu por satisfeito com as provas “deus ex machina” dos oráculos. Vejamos de novo como tudo isso aconteceu.

Segundo a primeira versão sobre o assassinato de Laio, contada pelo único sobrevivente, houve vários assassinos. Édipo tenta esclarecer essa dúvida, e diante de uma série de coincidências chega a se reconhecer como assassino; mas a ques-tão chave “Houve um ou vários assassinos?” não foi respondida. A resposta seria importante para a lógica interna da obra: ela removeria a última possibilidade que restou – pouco provável, mas teoricamente possível – de terem acontecido, de fato, dois crimes, muito semelhantes, mais ou menos ao mesmo tempo, e mais ou menos na mesma região, com as vítimas muito parecidas.

Outro ponto mal resolvido é expresso pela pergunta: “Por que Sófocles criou a versão inicial com vários assassinos se o crime foi cometido por um só?”

A estrutura interna da obra devia ter fornecido alguma resposta. Sem ela o leitor fica à mercê das especulações: será que se trata de um erro na concepção da peça, (“o excelente Homero acaso cochila?” – Horácio), ou será que Sófocles usou um recurso deselegante e artificial com o único objetivo de criar o máximo de suspense em torno da investigação?

Seja como for, o detalhe não esclarecido surtiu efeito: contribuiu para aumen-tar o suspense quanto ao assassinato de Laio. Não podemos deixar de notar, no entanto, que, dentro da estrutura interna da obra, essa solução não aconteceu de maneira espontânea e natural. Ela foi forçada. E definiu-se como tal porque o desenlace da tragédia não a justificou.

A falta da resposta à questão “Houve um ou vários assassinos?” também le-vanta uma questão antropológica e cultural. A obra sugere que o assassinato de um rei por um príncipe não era suficiente, por si só, para compor uma tragédia. Era necessário algo mais, algo que envolvesse uma causa maior, algo que pudesse dar a dimensão trágica ao crime que, em si mesmo, não reunia forças suficientes para tal: o incesto cometido pelo herói. Este fato nos remete aos primórdios da cultura grega e à teoria de Lévi-Strauss, segundo a qual a cultura surgiu quando o homem convencionou a primeira regra social: a proibição do incesto, padrão de comportamento comum a todas as sociedades humanas.

Por que, então, Rei Édipo não respondeu a pergunta sobre o número de assas-sinos? Porque, nos tempos de Sófocles, a pergunta sobre a identidade do assas-sino não era a mais importante. A que realmente importava era: “Quem cometeu o incesto?”. E esta foi respondida.

Não obstante essas pequenas imperfeições, parafraseamos Horácio: é muito melhor apreciar uma obra de arte, apesar de alguns detalhes imperfeitos, do que um conjunto desajeitado de partes perfeitas. Horácio também diria: “Não basta serem belos os poemas; têm de ser emocionantes; tem de conduzir os sentimen-tos do ouvinte aonde quiserem”. E é justamente esta a arte de Sófocles.

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Uma nova interpretação para o famigerado crime de ÉdipoSlobodan Stojanovic

De voltaà cena do crime

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que mais chama atenção ao brasileiro que pesquisa, estuda ou simplesmente visita uma universidade européia ou americana, são as suas bibliotecas. Poderia-

se afirmar que a grande diferença — aquilo que se costuma chamar de padrão de excelência — entre as nossas instituições de ensino superior e as suas citadas con-gêneres se dá no quesito acervo bibliográfico. Sabemos que por mais competente e brilhante que seja um professor, sua aula só alcançará o objetivo desejado quando o aluno sai em campo em busca de mais informações e de leituras adequadas. É por meio desta pesquisa bibliográfica que ele — o aluno — alarga seus conhecimentos sobre o tema que fora tratado em sala de aula. Afinal, o professor é antes a pessoa que sistematiza idéias e, por sua vez, coloca-as em suspensão (uma forma de insti-gar o aluno a pensar o conhecimento que vem sendo adquirido) do que um mero repassador de informações.

No entanto, as bibliotecas universitárias européias e americanas só possuem um vasto e atualizado acervo de livros, revistas e jornais porque praticam uma política diária de atualização bibliográfica. A primeira edição de qualquer obra nos Estados Unidos é de dez mil exemplares, sendo que só três mil vão para as livrarias. As sete mil restantes são compradas pelas instituições acadêmicas e culturais. Mas esta polí-tica de acervo não se restringe somente em comprar continuamente os lançamentos editoriais ou em manter em dia as assinaturas de revistas e jornais. Há, por parte dessas bibliotecas, uma busca permanente (e aqui está o segundo grande diferencial com as nossas instituições universitárias) de patrimônios bibliográficos que perten-ceram (ou pertencem) aos seus quadros de professores, ou até mesmo de docentes de outras instituições, sejam elas pátrias ou estrangeiras. É por meio desses acervos que as bibliotecas públicas suprem suas deficiências bibliográficas, constituindo, as-sim, seções especializadas deste ou daquele tema do seu maior interesse.

Lembro-me do meu amigo Bert Jude Barickman, professor de História Brasileira da Universidade do Arizona (Tucson), falando-me, em meados dos Anos 90, de como a sua instituição de ensino adquiriu, através de compra, a erudita biblioteca que até então pertencia ao historiador britânico Charles Ralph Boxer.

A biblioteca de Boxer — especializada em Brasil e no “mundo que o português criou” — era a segunda mais importante biblioteca particular referente ao período de dominação holandesa no Nordeste do Brasil. A primeira e mais importante biblio-teca sobre este tema continuava pertencendo ao professor José Antônio Gonsalves de Mello. Pois bem, enquanto a Universidade do Arizona — que tem o Departamen-to de História do Brasil como uma área secundária dentro do seu campo de estudo

— se preocupava em conseguir, por alguns milhões de dólares, o acervo de Boxer, transportá-lo da Inglaterra para os E.U.A. e, por sua vez, ampliar o setor de história colonial brasileira (o patrimônio adquirido não só enriqueceu e muito o acervo já existente de história brasileira daquela Universidade, como ganhou uma sala par-ticular, organizada tal como era constituída na casa do professor Boxer), a nossa Universidade Federal de Pernambuco, referência nacional de instituição acadêmica, jamais manifestou interesse em obter (ou por doação ou por compra) a biblioteca do seu ex-professor de História José Antônio Gonsalves de Mello.

Felizmente, como é sabido, a biblioteca do nosso historiador foi vendida ao Ins-tituto Ricardo Brennand, e lá permanece, para alívio de todos nós, em ótimo esta-do de preservação. No entanto, poderíamos ter perdido mais esse acervo cultural, como tantos outros que se evadiram de Pernambuco nos últimos cinqüenta anos. Lembraria que junto com a biblioteca do professor Gonsalves de Mello, o referido Instituto comprou também a não menos erudita biblioteca do professor Edson Nery da Fonseca, especializada em literatura e crítica literária, e que encerra uma das mais completas coleções bandeiriana e muriliana do País. Neste caso, também, desconhe-cemos o interesse das instituições acadêmicas e culturais do Estado em adquirir tão importante acervo.

Para os que não sabem, a Fundação Joaquim Nabuco, entre os anos de 2000 e 2001, foi a única instituição de governo que manifestou interesse em adquirir a valiosa biblioteca do professor Gonsalves de Mello. Por sugestão que fizemos ao historiador Frederico Pernambucano de Mello — ao tempo superintendente do seu Instituto de Documentação — a Fundação elaborou projeto para constituir um cen-tro internacional de História Colonial do Nordeste, o que deixaria em posição secun-dária o da Biblioteca da Universidade do Arizona. Apesar de todas as tentativas que a presidência da Fundação realizou junto à Vice-Presidência da República e à direção da Caixa Econômica Federal (duas Instituições que, à época, tinham pernambucanos à frente), não conseguiu sensibilizar seus titulares para que mobilizassem parcos trezentos mil reais para a compra da referida biblioteca de mais de dez mil volumes (cada livro sairia em média por trinta reais). Soma irrisória ante o valor real daquele acervo (existiam exemplares únicos que valiam no mínimo quinze mil reais, além de obras inexistentes em bibliotecas brasileiras ou portuguesas). Ainda tentamos insti-tuições privadas, que declinaram alegando que os seus orçamentos eram destinados aos eventos que davam visibilidade imediata, a exemplo do Carnaval, dos shows e das vaquejadas.

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O fato é que não apenas não temos, dentro da nossa Biblioteca Central da UFPE, uma secção especial — que seja referência nacional ou internacional — so-bre a História Social, Econômica, Política e Cultural do Nordeste Brasileiro, como os poucos livros que possuímos (alguns em condições lastimáveis) sobre o tema encontram-se espalhados nas tantas bibliotecas setoriais do Campus. Digo poucos livros, pois quando comparamos — no campo historiográfico — os títulos exis-tentes na biblioteca do professor Gonsalves de Mello com os que possuímos na UFPE, é gritante o tamanho da nossa miséria. Miséria que se estende às demais bibliotecas públicas do Estado.

O fato é que não só não temos política de acervo — pois não podemos consti-tuir tal política quando estamos sempre à mercê de escassas verbas orçamentárias destinadas à compra de livros — como não raras vezes pouco interesse demonstra-mos em incorporar bibliotecas particulares — de professores da Casa ou não — que são doadas à instituição (e aqui todas as bibliotecas do Estado incorrem no mesmo erro). Tenho conhecimento de bibliotecas que foram oferecidas gratuitamente à UFPE e a resposta dos responsáveis por cuidar do acervo era que a instituição não tinha nem transporte, muito menos mão-de-obra, para encaixotar e transportar os livros da casa do doador para o campus. E estamos falando de bibliotecas que estão localizadas no Recife, e não em acervos adquiridos na Inglaterra.

Assim, quando ouvia o meu amigo Barickman falar da compra e transcurso por navio do acervo de Boxer, só me restava calar e, por conseqüência, lamentar o país em que vivemos, e da permanente dificuldade que encontramos na hora de ministrar aulas ou pesquisar.

É preciso criar uma consciência permanente de que livro é mais do que conhe-cimento, é também poder e fonte de lucro. Recentemente a Capes (num gesto dig-no de aplauso) adquiriu por alguns milhões de dólares o direito de disponibilizar para os seus usuários os mais de cem mil títulos que foram publicados em língua inglesa até o final do século XVIII. É que a Inglaterra, zelosa do seu acervo, resolveu digitalizar sua memória de celulose. Com esse gesto, os ingleses não só aumentam o tempo útil desses livros, como permitem que o seu pesquisador (acadêmico ou não), em qualquer região do Reino Unido, possa acessá-lo via web. Mas como conhecimento é também fonte de lucro, os súditos de Sua Majestade ofereceram aos países e instituições interessados, seu acervo digitalizado. Resultado: somando cada país ou instituição que comprou ou ainda vai adquirir os seus livros digitaliza-dos, a Inglaterra não apenas cobriu seus custos de “produção”, como transformou

sua empreitada em um grande negócio cultural e — o mais importante — conti-nuou firmando a cultura de língua inglesa como uma referência mundial.

Logo, a pergunta que se pode fazer aos órgãos financiadores de cultura e de pesquisa neste país (Capes, Petrobrás, Eletrobrás) é: por que não fazemos o mes-mo com a produção bibliográfica produzida em língua portuguesa? Isto é: por que não pensamos — Brasil e Portugal — um acordo para digitalizar os livros e periódicos dos séculos XV-XIX, guardados nesses dois países, disponibilizando, via web, esse acervo de mútuo interesse para os falantes da língua de Camões. E assim como fizeram os ingleses, também venderíamos os resultados desse projeto às Instituições universitárias ou culturais dos cinco continentes. Em parte resolvería-mos nossa carência bibliográfica, em parte ganharíamos dinheiro que serviria para empreender outros projetos de tal magnitude. Eis uma questão para se pensar.

Enquanto tal solução não for pensada e aplicada, continuaremos, enquanto professores universitários, gastando mensalmente uma parte razoável do nosso salário para a compra de livros e, em seguida, destruindo-os em xerox. Pois sem xe-rox não existe o ensino público nem o ensino privado, muito menos a pesquisa no Brasil. Mais: continuaremos viajando para o exterior para pesquisar nas suas biblio-tecas e arquivos. Pesquisar obras que deveriam ter ficado em nosso País, mas que por ausência de política de acervo, fomos perdendo, ao longo das décadas, para as bibliotecas universitárias da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos.

Por fim, lembro que a USP se destaca, entre as instituições acadêmicas, por es-tar, há décadas, constituindo um acervo exemplar. Acervo formado não só de livros comprados ou doados por seus professores (como a biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda), mas também de escritores (a exemplo de Graciliano Ramos e Mário de Andrade) e particulares. A mais recente aquisição foi a erudita biblioteca de José Mindlin. Biblioteca que não irá se fragmentar nas demais bibliotecas setoriais da USP, e sim ser conservada em sua integridade em um prédio que vem sendo construído por esta instituição dentro das normas internacionais de conservação. Poderíamos seguir este exemplo. E o pontapé inicial poderia ser dado pela aqui-sição de bibliotecas como a que pertencera ao escritor paraibano Odilon Ribeiro Coutinho, ou de ex-professores da UFPE, a exemplo de Aluísio Bezerra Coutinho e Armando Souto Maior e, principalmente, do recém-falecido Manuel Corrêa de Andrade, dono da maior biblioteca particular de Pernambuco. Com estas biblio-tecas começamos a formar as bases de um centro de excelência sobre o Nordeste do Brasil.

As dificuldades da ausência de um programa para as bibliotecas públicas

Anco Márcio Tenório Vieira

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falo de flores

falo de romãs

falo de cálices, de sinos

e de torres

falo de calores e de convulsões

falo e a noite se vai

e eu não durmo

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