perrusi, artur. tiranias da identidade: profissão e crise de identidade entre psiquiatras

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS Artur Fragoso de Albuquerque Perruci João Pessoa 2003

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Page 1: Perrusi, Artur. Tiranias da identidade: profissão e crise de identidade entre psiquiatras

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS

Artur Fragoso de Albuquerque Perruci

João Pessoa 2003

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Artur Fragoso de Albuquerque Perruci

TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação do Prof. Dr. Jacob Carlos Lima, como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia.

João Pessoa 2003

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Artur Fragoso de Albuquerque Perruci

TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS

BANCA EXAMINADORA

__________________________________

Dr. Jacob Carlos Lima (Orientador / UFPB)

_______________________________

Dra. Maria da Glória Bonelli (UFSCar)

______________________________

Dra. Silke Weber (UFPE)

______________________________

Dr. Leôncio Camino (UFPB)

_______________________________ Dr. Terry Mulhall (UFPB)

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A Vininha, minha avó querida (in memoriam ) A Enaide, que tem o toque de Midas da sensibilidade.

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Agradecimentos

Inicialmente, quero agradecer ao professor Jacob Carlos Lima pela orientação e pela

paciência infinita em relação ao meu peculiar ritmo de trabalho. Na verdade, isso seria pouco ?

um agradecimento não vale uma dívida eterna ? , pois o que valeu realmente foi sua interlocução

e, sobretudo, sua amizade. Através de atitudes absolutamente racionais, o que pode parecer um

tanto paradoxal, libertou-me de um... Carma.

Ao corpo de professores do Curso de Doutorado em Sociologia.

Aos colegas do Departamento de Ciências Sociais.

Ao CNPq, que me adjudicou uma bolsa de estudos, na França, durante quatro anos e

meio.

Aos médicos entrevistados que, amavelmente, colocaram-se à minha disposição, bem

como aos diretores dos hospitais e dos serviços psiquiátricos que, gentilmente, permitiram-me

fazer as observações necessárias ao meu trabalho.

A Enaide, que demonstrou, com Jó, amor e piedade, que um doutorado não é uma ferida

mortal a uma relação amorosa. Nos momentos mais instigantes, ela ficava olhando... "les nuages

qui passent... là -bas... là-bas... les merveilleux nuages!"

Aos meus pais, que são como a Lua ? caprichosa e sempre olhando pela janela. Não

apenas me apoiaram, mas preencheram a minha morada com uma atmosfera carinhosa e cheia de

afeto.

A Marta, flor incomparável, tulipa re-encontrada, se não existisse, teria de ser re-

inventada. Com um olhar, ela transforma alguém em mármore; mas jamais me olhou dessa

maneira...

À amiga e colega de trabalho Maria de Fátima Araújo, pelo carinho e pelo apoio.

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A Lucinha, sonhadora, sempre sonhadora, mais sua alma ambiciosa e delicada, mais seus

sonhos fogem da realidade. Sou grato por isso mesmo...

Ao meu amigo e colega Adriano de León, pelo apoio e pelo incentivo. Se não tivesse feito

meu mapa astral e, talvez mentido, não teria terminado o doutorado.

Ao meu amigo e colega Aécio Amaral, pelo apoio e por me fazer descobrir que a

cervejinha produz conhecimento, e que, por causa disso mesmo, quase me faz não terminar a

tese...

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I. Resumo

O objeto deste trabalho é a identidade profissional, examinada a partir de um estudo

qualitativo entre psiquiatras da Cidade do Recife. Como o objeto do estudo está inscrito na

atividade ocupacional da psiquiatria, utilizou-se as contribuições da área da sociologia das

profissões, justamente no intuito de alargar o aporte teórico, isto é, empregou-se o conceito de

profissão para embasar o exame da identidade profissional. Ao se examinar processos de

identificação no campo profissional, houve a necessidade de se entender a relação entre

identidade e prática, no caso a prática profissional. Por isso, a exigência de se utilizar um

conceito mediador que esclarecesse a natureza da relação entre identidade e prática: o conceito de

representação social, utilizado tanto no estudo da representação da doença mental entre os

psiquiatras, como no sentido de representações profissionais.

Dividiu-se a análise empírica em duas partes fundamentais: o campo representativo da

doença mental e o campo profissional. A primeira parte diz respeito às representações da doença

mental entre os entrevistados. O propósito de examiná- las vem do fato de que a doença mental é

o objeto profissional da psiquiatria, tendo assim um papel relevante na construção identitária do

psiquiatra. A segunda parte teve como objetivo o estudo de representações e práticas

profissionais relacionados ao contexto profissional (condições de trabalho, interações

profissionais, regras, normas e dinâmicas institucionais...). O estudo das lógicas de ação que estão

inscritas na prática são importantes porque participam da construção da identidade profissional

dos psiquiatras. As representações, por sua vez, são contextualizadas, isto é, adaptadas ao

contexto onde são elaboradas e formadas. Como estão contextualizadas, as representações são

produzidas por sujeitos implicados nas relações de trabalho profissional, o que acarreta uma

situação criadora de formações identitárias.

A população estudada constituiu-se de 50 psiquiatras, e a metodologia de coleta de dados

envolveu uma combinação de técnicas: entrevistas abertas e entrevistas que seguiram um roteiro

semi-estruturado, além de observação sis temática, através de um protocolo de observações, das

práticas profissionais. Os dados da observação e das entrevistados foram analisados utilizando-se

um método calcado, basicamente, na compreensão e na interpretação.

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II. Abstract

The focus of this thesis is the professional identity, studied from a qualitative research

among psychiatrists of Recife. As this object is settled at occupational activity of psychiatry,

some of the main theories of sociology of profession were applied. This choice leaded to a larger

theoretical support; it means that the concept of profession was used to support the thesis of

professional identity. The observation of identity processes conducted to a comprehension of the

relation between identity and practices, the professional practices. The concept of social

representation was taken as mediation between identity and practices, such as the social

representation of mental illness among psychiatrists as social representation of profession.

There were two empirical procedures: the representations of mental illness and the

representation of profession. The first pointed to the social representations of mental illness

among interviewees. As the mental illness is the focus of psychiatry, the study of those

representations revealed a central role on the psychiatrists’ identity. The second procedure

pointed to the representations of professional practices (work conditions, professional

interactions, rules, patterns and institutional dynamics). The investigation of the action logics

enclosed in the practices had a direct relation to the psychiatrics professional identity. Those

social representations are contextualized to their elaboration and formation. As those

representations are connected to the professional context, it means that such representations are

produced by individuals linked to job relations that involve the formation of those identities.

Fifty psychiatrics were analyzed from different methodological paths: open interviews,

elaborated script interviews, guided systematic observation of professional practices. These data

were analyzed by comprehension and interpretation.

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III. Résumé

Cette recherche porte sur l’identité professionnelle examinée à

partir d’une étude qualitative chez les psychiatres de la ville de Recife.

Ainsi formulé, l’objet d’étude s’inscrit dans l’activité occupationnelle

de la psychiatrie ; aussi avons-nous eu recours au domaine de la

sociologie des professions, dans le souci d’élargir apport théorique

de cette recherche. Autrement dit, c’est à partir du concept de

profession que nous avons envisagé l’examen de l’identité

professionnelle. Lors de l’analyse de processus d’identification dans

le champ professionnel, le besoin de comprendre le rapport entre

identité et pratique, plus précisément pratique professionnelle, s’est

imposé. C’est pourquoi nous avons eu recours à un concept

médiateur permettant de rendre compte de la nature de ce rapport

entre identité et pratique : le concept de représentation sociale, utilisé

aussi bien dans l’étude de la représentation, chez les psychiatres, de

la maladie mentale que dans le sens de représentations

professionnelles.

Nous avons divisé l’analyse empirique en deux parties principales : le champ représentatif

de la maladie et le champ professionnel. La première partie porte sur les représentations de la

maladie mentale chez les interviewés. Le propos de les étudier résulte du constat que la maladie

mentale constitue l’objet professionnel de la psychiatrie, ayant de ce fait un rôle non négligeable

dans la construction identitaire du psychiatre. La seconde partie concerne l’étude de

représentations et de pratiques professionnelles liées au contexte professionnel (conditions de

travail, interactions professionnelles, règles, normes et dynamiques institutionnelles...).

L’importance de cette étude des logiques de l’action inscrites dans la pratique se doit au fait

qu’elles prennent part à la construction de l’identité professionnelle des psychiatres. Les

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représentations, à leur tour, sont mises en contexte, c’est-à-dire, sont adaptées au contexte dans

lequel elles ont été élaborées et formées. Du fait qu’elles sont liées au contexte professionnel, les

représentations sont produites par des sujets impliqués dans les rapports de travail professionnel,

ce qui favorise une situatio n créatrice de formations identitaires.

La population étudiée est formée de 50 psychiatres, et la méthodologie employée pour la

collecte de données relève d’une technique mixte : des entretiens ouverts et des entretiens ayant

suivi un canevas semi-structuré, outre l’observation systématique des pratiques professionnelles à

travers un protocole d’observations. Les données de l’observation et des entretiens ont été

analysées selon une méthode fondée, pour l’essentiel, sur la compréhension et l’interprétation.

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IV. Sumário

AGRADECIMENTOS ------------------------------------------------------------------------------------5 RESUMO------------------------------------------------------------------------------------------------------7 ABSTRACT --------------------------------------------------------------------------------------------------8 RÉSUMÉ------------------------------------------------------------------------------------------------------9 SUMÁRIO --------------------------------------------------------------------------------------------------11 APRESENTAÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------14 I. INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------17

A. A identidade do psiquiatria como objeto --------------------------------------------17 1. Objeto da identidade e identidade do objeto --------------------------------------19

B. Metodologia -------------------------------------------------------------------------23 1. Entrevistas e "campo representacional" -------------------------------- ----------23 2. Observação e "campo profissional" ----------------------------------------------25 3. Campo de Pesquisa -------------------------------- -------------------------------26

a) Entrevistas----------------------------------------------------------------------27 b) Observações empíricas ---------------------------------------------------------28

C. Análise Conceitual ------------------------------------------------------------------29 II. CAPÍTULO I----------------------------------------------------------------------------------33

A. Introdução à problemática da identidade: uma análise. -----------------------------33 1. O conceito de identidade ---------------------------------------------------------33 2. Psicaná lise, psicologia social e intersubjetividade -------------------------------37 3. Transformações da Identidade -------------------------------- --------------------51 4. A identidade profissional ---------------------------------------------------------56 5. A questão da Vocação ------------------------------------------------------------64

a) Vocação e individualismo------------------------------------------------------64 b) Vocação e profissão ------------------------------------------------------------75

III. CAPÍTULO II ------------------------------------------------------------------------------------83 A. Profissão -----------------------------------------------------------------------------83

1. Discussão sobre o conceito de Profissão -----------------------------------------83 IV. CAPÍTULO III ------------------------------------------------------------------------------------ 123

A. Representação e Psiquiatria --------------------------------------------------------123 1. Representação social e saber médico --------------------------------------------123 2. A estase do modelo psiquiátrico no Brasil: um esboço. -------------------------132

V. CAPÍTULO IV--------------------------------------------------------------------------------- 152 A. Campo representativo da doença mental (DM) entre os psiquiatras ---------------152

1. Introdução ao campo representativo ---------------------------------------------152 2. Representação analítica da psicose e da DM ------------------------------------155

a) Introdução. --------------------------------------------------------------------155 b) A representação e diferenciação profissional. --------------------------------157 c) Representação e formação analítica-------------------------------------------160 d) Representação da DM x noção de neurose x classificações nosológicas -----161 e) Representação e dualismo nosológico ----------------------------------------163 f) Representação e etiologia -----------------------------------------------------165 g) Representação e tratamento -------------------------------- -------------------166 h) Representação e Psiquiatria -------------------------------- -------------------168

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i) Representação e Neurologia --------------------------------------------------171 3. Representação biológica da psicose e da DM -------------------------------- ---172

a) Representação e neurose ------------------------------------------------------174 b) Representação e Monismo nosológico ----------------------------------------175 c) Representação e Tratamento --------------------------------------------------177 d) A "volta à medicina"----------------------------------------------------------179

4. Representação clínica da psicose e da DM --------------------------------------181 a) Representação x etiologia -----------------------------------------------------182 b) Representação x neurose ------------------------------------------------------183 c) A bricolagem------------------------------------------------------------------185

VI. CAPÍTULO V ---------------------------------------------------------------------------------- 190 A. O campo representativo profissional-----------------------------------------------190

1. Identidade profissional-----------------------------------------------------------192 a) Representações e senso comum-----------------------------------------------193 b) O papel da psiquiatria na sociedade-------------------------------------------205

(1) Verdade da loucura ------------------------------------------------------206 (2) Despreconceito, esclarecimento e prevenção ----------------------------209 (3) Papel médico-------------------------------------------------------------213

c) O papel da psiquiatria na medicina -------------------------------------------215 (1) Preconceito e "medo da loucura" ----------------------------------------216 (2) Falta de cientificidade -------------------------------- -------------------217 (3) Separação entre a psiquiatria e a medicina ------------------------------218 (4) Especialidade médica ----------------------------------------------------220 (5) Humanização da medicina-----------------------------------------------222

VII. CAPÍTULO VI ------------------------------------------------------------------------------ 227 A. Relações profissionais no trabalho -------------------------------------------------227

1. Interação e prática ---------------------------------------------------------------227 a) Prática, consenso e equipe multiprofissional ---------------------------------237 b) As condições empíricas do trabalho em equipe-------------------------------240

VIII. CAPÍTULO VII ---------------------------------------------------------------------------- 262 A. Trajetória e Vocação ---------------------------------------------------------------262

1. Consultório e Autonomia --------------------------------------------------------275 2. A questão do hospital e da Reforma Psiquiátrica--------------------------------279

IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS (À GUISA DE CONCLUS ÃO) -------------------- 286 X. BIBLIOGRAFIA --------------------------------------------------------------------------- 291 XI. ANEXO I ------------------------------------------------------------------------------------- 304 XII. ANEXO II ------------------------------------------------------------------------------------ 306

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A663u Perruci, Artur Fragoso de Albuquerque.

Tiranias da identidade: profissão e crise identitária entre psiquiatras/ Artur Fragoso de Albuquerque Perruci. – João Pessoa, 2003. 330 p. : il. Orientador: Jacob Carlos Lima. Tese (doutorado) UFPB / CCHLA / PPGS. 1. Sociologia da saúde. 2. Sociologia das profissões

UFPB/BC CDU 316 (043)

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Apresentação

A psiquiatria vive uma crise de identidade. Depois do boom farmacológico, da

"hospitalização" do antigo asilo alienista e da revolução na terapia das doenças mentais

iniciados na década de 60 do século passado, as reformas no campo da saúde mental

sofreram um refluxo a partir da década de 80 e, principalmente, uma longa estagnação no

último decênio do século XX. O refluxo não atingiu apenas a esfera institucional e

organizativa da psiquiatria, mas também o próprio saber psiquiátrico, afetando e colocando

em xeque a identidade profissional do psiquiatra. O otimismo terapêutico, base de

legitimação de toda disciplina médica, tão comum nos anos 70, tornou-se um moderado

ceticismo, quase um lamento de impotência, independentemente dos avanços institucionais

no campo psiquiátrico e no tratamento das doenças mentais.

Os sistemas psiquiátricos de cada país são específicos na sua origem e no seu

desenvolvimento; contudo, embora suas singularidades sejam irredutíveis a outros

contextos históricos, a tendência atual seria a reprodução e a implantação de um modelo na

psiquiatria: a psiquiatria clínica de base biomédica. Seria um modelo baseado num

determinado saber, mas que tem conseqüências práticas e organizativas evidentes. Ora, o

saber médico e, mais ainda, o saber psiquiátrico nunca vêm separados de práticas e métodos

organizativos ? o asilo que o diga... Não se pode separar o saber psiquiátrico das lógicas e

das práticas sociais — de controle social e de atividade médica — que são responsáveis

pelas formas de reprodução e socialização do conhecimento médico, de qualificação e

reprodução de práticas profissionais e, enfim, de organização e de institucionalização do

sistema de saúde mental. Um modelo de nosologia e prática médica, como a psiquiatria

clínica de base biomédica, envolve representações e práticas profissionais que condicionam

o sistema psiquiátrico como um todo. Sua dominância condiciona não apenas o campo das

“representações psiquiátricas” (doença mental, principalmente), mas também sua

implementação prática e institucional numa sociedade determinada.

Mesmo que a psiquiatria clínica de base biomédica se reproduza através de várias

formas de organização e práticas profissionais, a variedade não impede a uniformização dos

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métodos e das práticas psiquiátricas ? na verdade, a variedade de organizações e de

práticas seria uma expressão de uma mesma estrutura normativa. De fato, a psiquiatria

realizar-se-ia através de várias “psiquiatrias”, mas todas tendo como alicerce o mesmo

paradigma: a psiquiatria clínica de base biomédica. Assim, a uniformização dos contextos

profissionais, no mundo da psiquiatria, permite que o seguinte fenômeno seja, atualmente,

um tanto banal: um psiquiatra brasileiro, por exemplo, não tem dificuldade alguma em se

adaptar ao mundo psiquiátrico profissional de outro país, e vice-versa.

Tal situação, descrita acima, seria explicável pela homogeneização planetária do

saber médico-científico, cuja direção geral acompanhou a padronização do conhecimento

científico, influenciando todas as disciplinas relacionadas à medicina, em particular a

psiquiatria. Um saber que condiciona representações, terapias, deontologias, condutas

profissionais e, no caso específico de nosso objeto, identidades... Um saber inscrito nas

práticas profissionais da medicina. Nesse sentido, as práticas profissionais da medicina

produzem um sistema de representações profissionais dotado de um grau tão elevado de

universalização normativa e axiológica e de um tal poder estrutural que podemos perceber,

nas sociedades modernas, semelhanças estruturais entre os sistemas de representações

profissionais provenientes de organizações profissionais médicas diferentes. A "ordem

médica" teria, por isso, seus "invariantes" menos na sua forma de organização institucional

do que no seu sistema de representação.

Uma crise do saber psiquiátrico, assim, significaria pari passu uma crise no mundo

psiquiátrico como um todo, principalmente, uma "crise" de identidade profissional. Os

sintomas dessa "crise" de identidade seriam visíveis no campo representacional do

psiquiatra: a insegurança do psiquiatra quanto ao futuro da sua profissão e à eficácia do seu

saber; o medo de perder o antigo prestígio que a psiquiatria tinha no seio da medicina; o

pânico diante da ascensão de novas profissões e qualificações no campo da saúde mental, e

a conseqüente sensação de "despossessão" de seu conhecimento especializado, antes

inquestionável, agora "sugado" por outras profissões da saúde mental (psicologia,

enfermagem, terapia ocupacional, serviço social...). Não causa surpresa assim, o

surgimento de discursos exigindo a "volta" da psiquiatria à medicina, a delimitação das

tarefas e das competências nas equipes de saúde mental, o monopólio do diagnóstico e da

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terapêutica das doenças mentais pelo psiquiatra ou, ainda, o medo de trabalhar num hospital

geral, o complexo de inferioridade diante da neurologia...

Embora esteja dividida em sete capítulos, a tese tem basicamente duas partes. A

primeira parte, que vai da Introdução até o terceiro capítulo, é essencialmente um conjunto

de questões relacionadas ao objeto de pesquisa e aos conceitos utilizados na análise

empírica. A partir do questionamento do objeto, no caso a identidade profissional do

psiquiatra, produzimos uma discussão sobre as escolhas metodológicas (como realizamos a

pesquisa e as técnicas utilizadas) e sobre nossas "escolhas" conceituais — uma análise

teórica dos conceitos utilizados no trabalho. Evidentemente, os diferentes momentos da

discussão são interdependentes, tendo como foco a delimitação do objeto e como

metodologia, a entrevista e a observação. A entrevista, como técnica para extrair

representações e vivências; a observação, para examinar o comportamento dos psiquiatras

em situações de trabalho, bem como para enquadrar as práticas dentro do contexto

profissional no qual estão inseridas. Ao mesmo tempo, a própria construção do objeto

exigiu um trabalho conceitual, utilizando diversas teorizações e conceitos articulados entre

si, que faz parte da própria construção do objeto de estudo.

A segunda parte, que vai do quarto até o sétimo capítulo, é voltada à interpretação

do material empírico, e tem dois momentos: o campo representacional e o campo

profissional. O primeiro discute basicamente a representação do objeto profissional, a

doença mental, e suas articulações com a identidade profissional do psiquiatra; a segunda

discute a identidade profissional propriamente dita: o papel do psiquiatra e da psiquiatria na

medicina e na sociedade, as relações profissionais no trabalho, a trajetória profissional e a

questão da vocação.

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V. Introdução

A. A identidade do psiquiatria como objeto

Nosso objeto de trabalho, stricto sensu, é a identidade profissional do psiquiatra,

examinada a partir de um estudo qualitativo entre psiquiatras da cidade do Recife. Como

identificamos o conceito de identidade profissional ao conjunto das representações profissionais

— identidade é um processo de identificação baseada em representações assumidas pelo sujeito

—, o contexto conceitual do objeto precisou ser alargado o suficiente para torná-lo inteligível.

Como consideramos que a noção de ide ntidade constrói-se empiricamente a partir de processos

de identificações encontrados nos sistemas de representações dos sujeitos analisados, o caminho

não seria da identidade ao sistema de representações do sujeito, e sim o contrário: do sistema de

representações do sujeito, inscrito nas práticas sociais, à identidade. Para entendermos como se

constrói o processo identitário, precisamos não só de um estudo das representações, mas também

de um exame da forma pela qual elas são conformadas na situação de trabalho, isto é, uma análise

do modo em que se inscrevem nas práticas profissionais.

O conceito regulador da pesquisa, talvez por ser o mais abrangente, é o de profissão,

aplicado à medicina, entendida como uma atividade profissional por excelência (Freidson, 1984).

Para analisarmos a profissão médica, em particular a psiquiatria, postulamos que este conceito

articula-se a dois campos de análise (Dubar, 1987): o "campo representacional" (representações

do médico-psiquiatra, responsabilidade profissional, status profissional e seus valores, a

construção profissional da DM, trajetória biográfica) e o "campo profissional" propriamente dito

(condições de trabalho cotidiano, modelos de prática profissional, modelos de solidariedade e de

competição, autodeterminação e autonomia profissionais — formação, organização e modos de

negociação). Contudo, para fins de simplificação, reduzimos o alcance de cada campo, até

mesmo para não sairmos da delimitação do objeto: a identidade profissional. Por isso, no "campo

representacional", fizemos apenas a análise da representação do objeto profissional dos

psiquiatras, a DM. Tal análise foi importante porque nos permitiu construir uma série de

articulações entre o objeto profissional e a construção identitária do psiquiatra e, assim, atingir,

sempre em função da identidade, as outras determinações do campo, tais como as representações

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do psiquiatra, o papel do saber psiquiátrico, a valorização do profissional (status), as relações

com as outras disciplinas médicas. Já em relação ao "campo profissional", examinamos

basicamente a identidade profissional propriamente dita, via uma articulação entre representações

profissionais e práticas profissionais, gerando uma discussão sobre as relações profissionais no

trabalho, equipe profissional, trajetória profissional e vocação.

Acreditamos que as reduções dos campos não prejudicaram a análise, já que tornou

explícita uma intuição, antes um tanto tácita, de que o tema da identidade é vital para os

psiquiatras e a psiquiatria enquanto disciplina médica, justamente por causa das querelas em

torno da DM no seio da medicina e da forma como se organiza a psiquiatria enquanto instituição

médica. Pois a psiquiatria sempre foi problemática na medicina e sempre teve uma dificuldade

em achar seu lugar, seu papel, em suma, sua identidade entre as disciplinas e as instituições

médicas. Por isso, as reduções efetivadas nos dois campos, além das explicações já arroladas,

possuem como pano de fundo um conjunto de hipóteses que tenta explicar a importância do

objeto profissional e das articulações entre representações e práticas profissionais na construção

identitária do psiquiatra:

- a doença mental é um fenômeno sui generis na medicina. Ela jamais conseguiu ser

enquadrada pelo paradigma biomédico da medicina. Sendo o objeto profissional da

psiquiatria, sua instabilidade, enquanto representação médica de doença, condiciona

diversas dificuldades no campo do saber psiquiátrico: falta de consenso, confronto de

diversos paradigmas de doença, desvalorização do conhecimento psiquiátrico. A

psiquiatria, por causa da sua incapacidade de enquadrar cientificamente a DM, possui

uma fragilidade disciplinar no campo da formação profissional da medicina. Tais

problemas estabelecem diversas tensões na identidade profissional do psiquiatra;

- a psiquiatria possui um aparato institucional (hospital psiquiátrico) diferente e

separado do campo organizativo da medicina. Provavelmente, tal diferença e

separação possui uma relação com a percepção social da DM. Independentemente

disso, o fato é que a organização institucional da psiquiatria condiciona o modo como

se realiza o trabalho profissional do psiquiatra ? a psiquiatria é praticamente uma

profissão dentro da profissão médica, tendo uma grande importância institucional no

campo da medicina

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19

- por causa da condição sui generis da DM e do singular aparato institucional da

psiquiatria, a prática profissional do psiquiatra possui características diferentes das

práticas profissionais dos outros profissionais da medicina. Tais características

condicionam uma estruturação problemática da identidade profissional do psiquiatra;

Teoricamente, os dois campos de análise são complementares e suas relações estruturais

são fundamentais para atingirmos de forma concreta e profunda o problema da identidade

profissional. Uma análise centrada sobre o sistema de representações não poderá deixar de lado o

"campo profissional", e vice-versa. Um estudo superficial que perceba um dos campos de forma

unilateral fará o sociólogo navegar à deriva por entre as análises pontuais- individuais e globais-

organizativas, perdendo de vista o que é fundamental: a procura das articulações entre os dois

campos, permitindo que o problema da identidade profissional não seja por demais subjetivo, ao

se enfatizar o "campo representacional", nem seja demasiadamente estrutural e objetivo, caso a

análise fique reduzida ao "campo profissional". O estudo da identidade profissional foi, assim,

esclarecido pela análise das representações profissionais do psiquiatra, englobando e tendo como

tema central as representações sobre o objeto profissional, a DM; contudo, tal análise não pôde

reduzir-se aos elementos determinantes do campo representacional (elementos expressivos e

cognitivos + mecanismos internos de elaboração e de funcionamento), incorporando também

alguns elementos determinantes do "campo profissional".

1. Objeto da identidade e identidade do objeto

Ao discutirmos a identidade profissional entre os psiquiatras, situamo- la em relação a um

dos fundamentos centrais da profissão médica e, em particular, da psiquiatria, o seu saber. A

produção do saber faz parte da estrutura geral que amalgama a organização profissional médica e,

por isso, pode ser considerada a variável que se mantém constante e que demarca a sua história,

sendo a luta pela sua legitimidade social, pelo seu controle e pelo seu monopólio o fulcro da sua

formação profissional. Evidentemente, inferir o saber como fazendo parte da estrutura geral da

profissão médica não significa desprezar os estudos de natureza "organizativa" e econômica" da

medicina, os quais centram, geralmente, a sua atenção na gestão do mercado de trabalho, nas

condições cotidianas do trabalho, nos modelos de prática profissional, de solidariedade e

competição, na auto -regulação e na autonomia profissional (formação, organização e modos de

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negociação). Não subestimamos a "infraestrutura" da profissão médica, pois consideramos o

saber e suas "encarnações" em técnicas, formas de organização, condutas e práticas de expertise

como uma das "base materiais", por excelência, da profissão. O saber, assim, atua tanto no campo

profissional, propriamente dito, como no "campo representacional" da profissão (identidade,

mentalidade, objeto profissional, responsabilidade, vocação, etc.). Acreditamos que a conexão

desses dois campos analíticos seja, também, realizado pelo saber, estando na base da prática e das

representações profissionais, seja direta ou indiretamente.

Na verdade, nossa ênfase no saber tem a seguinte preocupação: o saber médico seria uma

fonte constituinte, seja no modo de crise ou de conformidade, da identidade profissional. O

reconhecimento científico do saber médico teve um papel capital na legitimação social da

medicina, abjurando outras formas de conhecimento de tratamento e cura do campo profissional e

se tornando o único detentor de uma competência reconhecida para o tratamento das doenças

(Freidson, 1984; Foucault, 1987). Tal processo de legitimação social, através de uma forma de

organização profissional, baseou-se evidentemente numa luta e no uso de poder, mas estava

conectado aos imperativos da reprodução e manutenção de um saber. Ora, dissemos acima que o

saber é "base material" e que suas encarnações são objetivamente identificáveis, mas não é só

isso: o saber profissional é o principal meio de produção de serviço utilizado pelo profissional

médico e, provavelmente, por todo profissional, cujo domínio permite- lhe inclusive a

manutenção de sua autonomia e o controle da produção de seu trabalho.

Além de meio de produção do serviço, pode-se aventar que, na medicina, exista uma

relação entre os projetos nosológicos / terapêuticos (base do saber médico) e a evolução das suas

instituições. Na psiquiatria, o caso torna-se ainda mais palpável quando examinamos, por

exemplo, o caminho lógico que vai do tratamento moral ao isolamento do paciente e,

conseqüentemente, da sua contenção ao sistema asilar. Caminho que pode igualmente ser

percebido quando das dificuldades de implantação de certos modelos psiquiátricos: a experiência

italiana, por exemplo, baseou-se numa crítica política do asilo, através de uma concepção

sociocêntrica da doença mental, trazendo embutido no seu próprio projeto terapêutico a abolição,

pura e simples, da hospitalização. Ou ainda: a corrente reformista da psiquiatria francesa, cuja

mistura vai da fenomenologia, passando pela psicanálise, até ao marxismo, propiciou a criação de

uma estrutura institucional, digamos assim, eclética e multiforme como a psiquiatria de setor.

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21

Uma psiquiatria, para oferecer outro exemplo, que se baseia num dualismo nosológico, isto é,

num discurso que separa e declara a DM como uma patologia especial e diferente de todas as

outras, geralmente defende um aparato terapêutico correspondente: uma organização terapêutica

e assistencial especial, normalmente separada das outras instituições de tratamento médico —

vide o caso da separação sempiterna entre o hospital geral e o psiquiátrico.

A psiquiatria é uma das poucas disciplinas médicas, senão a única, que nunca teve um

consenso etiológico e nosológico1 estável, sempre sofrendo uma inadequação permanente com a

representação biomédica de doença. Num certo sentido, ela sempre foi "fraca" no aparato de

formação médica e na luta pelo seu reconhecimento disciplinar dentro da própria medicina,

conseguindo tardiamente e de forma mitigada diferenciar-se da neurologia, e "forte" no campo

institucional, com seus aparelhos de tratamento especiais, separados do campo médico em geral.

O dualismo nosológico (separação entre doença orgânica e doença mental), assim, tem uma

relação, em situações históricas determinadas, de reciprocidade com o dualismo institucional

(separação entre instituição médica e instituição psiquiátrica). Tal situação sempre foi fonte de

conflito, seja ideológico, seja institucional, trazendo conseqüências na identidade do profissional,

principalmente na sua imagem atribuída e de referência: "que tipo de médico eu sou?" e "que tipo

de médico eu quero ser?" (Lipiansky, 1990).

Contudo, devemos reconhecer que tal conjunto de problemas não é do campo de

interesses tradicionais da sociologia das profissões. Geralmente, analisa-se menos o saber

profissional, enquanto tal, do que o modo como é controlado, a sua relação com o sistema de

formação profissional e, principalmente, a forma pela qual se organiza a aquisição e o

reconhecimento de uma competência em vastos campos funcionais, a partir de títulos e diplomas

oficiais obtidos pelos indivíduos (Larson, 1988). A profissão seria basicamente formas

historicamente específicas que estabelecem conexões estruturais entre um nível de instrução

formal relativamente elevado e postos ou recompensas relativamente desejadas na divisão social

do trabalho. A instrução formal, isto é, a aquisição de um saber específico, normalmente

adquirida via formação universitária, tem uma relação estrutural com o mercado de trabalho,

1 Etiológico, porque a psiquiatria nunca teve um consenso a respeito das causas da doença mental; nosológico, porque nunca teve um consenso a respeito de quais doenças trata a psiquiatria.

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permitindo ao profissional não só um monopólio de um determinado saber, como também um

lugar potencial no mercado de trabalho. Nossa preocupação, com efeito, não passou por essa

abordagem: estamos muito mais interessados em entender a estruturação do saber profissional e

suas conseqüências na identidade profissional, bem como, ampliando mais ainda a questão, em

saber por exemplo o motivo da adesão de um profissional a essa ou àquela idéia de doença ou de

vocação profissio nal. Assim, dando um exemplo concreto: por que determinado psiquiatra,

geralmente, apropria-se da doença mental a partir dessa ou daquela teoria e por que tem uma

representação "x" e não "y" de doença? Quais as conseqüências da adesão a essa ou aquela idéia

de doença ou de tratamento na sua identidade profissional? Ou, ainda, da mesma forma: por que

um outro profissional pensa a doença como uma integração de fatores bio-psico-sociais e por que

ele é tão pragmático no tratamento?

Nossa proposta, aqui, foi a de utilizar estudos sobre o saber profissional e sobre as

profissões para tentar entender a adesão social dos psiquiatras a determinadas idéias ou noções,

seja de doença e de tratamento, seja de vocação profissional, e como tais representações estão

inseridas nos processos identitários. Na verdade, a nossa pesquisa está situada nas intersecções da

sociologia das profissões com a sociologia do conhecimento e dos processos de identificações,

embora com uma maior ênfase nestas últimas, ou melhor, subordinaremo s algumas teorizações

da sociologia da profissão à discussão sobre a identidade profissional.

Enfim, ao analisarmos processos de identificação e, portanto, não apenas representações,

mas também ações intersubjetivas, tivemos a necessidade de examinarmos as interações sociais,

percebidas aqui como interações profissionais. Ora, as interações sociais no contexto profissional

produzem e reproduzem, ao mesmo tempo, práticas e representações profissionais; assim, discutir

identidade é também problematizar as relações entre prática e representação profissionais (Dubar,

1991). Tais relações, inclusive, podem ser instáveis e sofrer inadequações ? na verdade, no

nosso estudo, raramente encontramos uma relação adequada e passiva entre as representações e

as práticas profissionais dos psiquiatras. Tal resultado vai de encontro a uma posição que não

deve nada ao culturalismo, na qual a representação é vista quase como um imperativo categórico:

infere-se da representação do indivíduo sua possível conduta ou suas expectativas e antecipações.

Ou, ainda, à posição contrária: da prática do indivíduo ou da sua lógica de ação, infere-se a

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representação correspondente. Tanto a trajetória do indivíduo pode explicar a inadequação entre

representação e prática, como as circunstâncias em que está submetido 2.

B. Metodologia

1. Entrevistas e "campo representacional"

Inicialmente, nosso objetivo foi interpretar o material empírico (entrevistas e observações

de campo) a partir do sistema de representações e de práticas profissionais dos psiquiatras.

Contudo, "sistema de representações e de práticas profissionais" é excessivamente geral.

Abreviamos este largo espectro de acordo com as limitações metodológicas de nossa pesquisa.

A análise temática dos discursos dos psiquiatras permitiu suas integrações como agentes

coletivos. Com efeito, o discurso pode ser visto como uma construção social, o que permite a

elaboração de "tipologias" nas quais os diversos discursos individuais serão apreendidos como

variações de um "tipo". A concepção de doença mental de um determinado psiquiatra, por

exemplo, pode ser associada a outras esferas de ação, tais como sua formação universitária ou,

ainda, num outro exemplo, ter afinidades ideológicas ou "contra-culturais" com a "anti-

psiquiatria", na qual a doença mental é vista como um produto do meio social. Entretanto, a

integração dos psiquiatras como agentes coletivos, via discurso e representação, somente teve um

sentido a partir do momento em que suas concepções e suas identidades profissionais foram

"esclarecidas" por suas trajetórias. Formação universitária, experiência política da loucura,

concepção neurobiológica da doença mental, tudo isso são lugares, posições e disposições

percorridas por um agente que se move ao longo de seu trajeto existencial e de sua história.

Assim, da trajetória do psiquiatra entrevistado surgiu o contexto no qual sua representação de

doença mental e sua identidade profissional foram formadas e construídas. A análise de trajetória

nos permitiu esclarecer, também, as determinações da representação e da identidade, bem como

2 A adequação da prática e da representação geralmente acontece quando a representação, por exemplo, faz parte de uma cosmovisão ou de uma "ideologia" (vide a psicanálise que funciona, muitas vezes, como tal) ou quando a prática é mediada por normas institucionais que enquadram a ação; nesse sentido, o indivíduo seria "enquadrado" pela "instituição" — tal enquadramento seria, sobretudo, cognitivo.

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de “situar” — posição + disposição (Boudon, 1986) — o psiquiatra num determinado “campo”,

médico ou da saúde, onde ele “fez” sua história (Bourdieu, 1980).

Na verdade, contextualizar o discurso do entrevistado, vinculando-o à sua trajetória e ao

campo das práticas profissionais, possui como pano de fundo a percepção de que os entrevistados

e os psiquiatras que observamos podem ser percebidos de duas formas: como sujeito que é

acionado pela estrutura e como sujeito que é co-produtor de sentido. Para a análise, é preciso, na

verdade, analisar o sujeito nas três formas de ação: agente, ator, autor. Agente é o sujeito que age,

independentemente do fato de ter consciência ou não sobre o sentido e as motivações da sua

ação; ator, aquele que executa, joga o jogo, interpreta o roteiro de seu papel social, chegando a

influenciar o sentido da ação e deixando algum rastro de originalidade, mas não é, de fato, a

origem da ação; autor, o que cria e produz, aquele que se situa em relação ao contexto e o

influencia através de sua ação. O tríptico agente/ ator/ autor esclarece o nível da implicação do

sujeito no contexto ? explicita a implicação. Dependendo do caso e do contexto, podemos

definir até que ponto o sujeito age segundo alguma modalidade de ação. Desta maneira, a análise

das representações da doença mental e da identidade profissional dos psiquiatras precisou de dois

momentos de enquadramento: o primeiro baseado na trajetória do psiquiatra; o segundo, na

situação do psiquiatra no campo da saúde ou da medicina. Este segundo enquadramento permitiu

compreender a inscrição da estrutura subjetiva do psiquiatra (suas representações e identidades)

na estrutura social objetiva na qual ele está inserido.

Assim, aplicamos um guia de entrevistas bastante flexível, tanto para o entrevistador

quanto para o entrevistado, organizado em temas que foram aprofundados conforme o desenrolar

da entrevista (ver Anexo I). Empregamos o método de entrevista de tipo “focalizada, pois seu

emprego apresentou as seguintes vantagens:

• é uma técnica apropriada para superar a ausência de uma amostra

representativa, permitindo uma apreensão qualitativa do material empírico;

• oferece uma liberdade e uma abertura ao entrevistador, permitindo o

aprofundamento do tema proposto;

• o material colhido por esta técnica facilita e é adequada à interpretação;

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• a entrevista focalizada facilita a reconstituição de modelos culturais e

simbólicos interiorizados pelo entrevistado;

• o material colhido compreende não apenas proposições e afirmações, mas

também conteúdos normativos e expressivos

2. Observação e "campo profissional"

As representações da doença mental e a identidade profissional foram enquadrados pela

trajetória do psiquiatra e pela sua situação no campo da saúde ou da medicina. Tais

enquadramentos permitem a criação de tipologias ou modelos, possibilitando entender como

ocorre a construção de atores coletivos; entretanto, nós julgamos inadequado deduzir de tais

tipologias ou modelos as práticas dos psiquiatras. Ora, nós podemos recusar a assimilação das

lógicas de ação às lógicas de representação. Um raciocínio similar pode ser feito em relação à

trajetória, menos assimilada a uma "posição objetiva" do que a um "recurso subjetivo" em que o

sujeito pode utilizá- lo como uma capacidade para enfrentar desafios e obstáculos. Se ele, o

sujeito, ganha ou perde, se o balanço de sua trajetória é positivo ou negativo, tudo isso é uma

outra história. O resultado de sua trajetória só pode ser determinado a posteriori. A trajetória

(sistema de ação cristalizado) pode consolidar um processo de identidade e, desta maneira,

reproduzir uma prática social determinada; entretanto, tal situação é apenas uma hipótese, entre

outras, tão pertinente quanto, apesar de sua maior probabilidade. As visões sobre o seu futuro não

reproduzem, necessariamente, a trajetória passada do psiquiatra, sendo assim, tal hipótese precisa

ser verificada de maneira empírica e a posteriori.

A análise de nosso material empírico revelou um papel importante das lógicas

organizacionais; por isso, se ficássemos restringidos às entrevistas, provavelmente não

poderíamos estabelecer, com precisão, a sua importância, daí o apelo às observações, método útil

para discernir as práticas concretas dos psiquiatras. Em tese, as lógicas de ação dos psiquiatras

poderiam ter sido inferidas de uma análise de seu sistema de ação concreto (hospital, consultório,

etc). Nós poderíamos ter deduzido a prática dos psiquiatras estabelecendo as ligações de

causalidade entre saber psiquiátrico, textos legis lativos e disposições regulamentais e, assim,

explicar o que faz a psiquiatria, mas este procedimento poderia ter-nos impedido de ver o que se

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passa durante a prática cotidiana dos psiquiatras e, ao mesmo tempo, induzir-nos a assimilar as

lógicas de ação aos sistemas de representação cristalizados (documentos, regras normativas, etc).

Preferimos, ao contrário, partir de um processo indutivo, seguindo o psiquiatra através de

suas passagens por mundos ou lógicas de ação diferentes e, depois, confrontar os resultados da

análise indutiva com os resultados do processo dedutivo que foram apreendidos do exame do

saber psiquiátrico, dos textos legislativos e das disposições regulamentais. Assim, seguimos o

psiquiatra nas suas diversas lógicas de ação no tempo presente, tomando notas, observando-o e,

sobretudo, interrogando-o. Nós não o "seguimos" apenas para percebê- lo como um agente

racional, consciente e intencional, mas também com o intuito de analisar as condições de

realização da sua racionalidade e da sua intencionalidade na ação. A atividade conceitual do ator

não será percebida como alguma coisa de imanente à sua consciência e ao seu cérebro, mas como

um raciocínio que pode ser apreendido na exterioridade da ação, enquanto um fenômeno social,

passível assim de ser apreendido empiricamente (Ogien, 1989). A partir da análise da prática

cotidiana do psiquiatra, construímos inferências sobre as lógicas de ação que foram colocadas

num contexto e relacionados a processos identitários.

Em suma, todos as inferências, inclusive aquelas sobre as lógicas de ação, foram

confrontadas entre si, com o objetivo de encontrar seus mecanismos de integração. As entrevistas

foram realizadas nos lugares onde nós fizemos as observações empíricas. Dessa forma,

elaboramos e utilizamos um protocolo de observações empíricas (ver Anexo II).

3. Campo de Pesquisa

A pesquisa centrou-se no Recife por questões operacionais. Embora a psiquiatria exercida

no Recife não seja propriamente paradigmática em relação ao restante do país, pode-se afirmar

que a situação da psiquiatria recifense é bem semelhante ao resto do país, mesmo quando

comparamos com outras cidades brasileiras, como São Paulo, Rio, etc. O problema seria muito

mais a falta de dados em relação à psiquiatria brasileira como um todo, principalmente no que se

refere a uma epidemiologia psiquiátrica e a dados a respeito do sistema organizativo brasileiro de

saúde mental, do que a diferenças regionais e culturais na profissão médica, em particular a

respeito da psiquiatria. Assim, fizemos generalizações nas análises de dados, utilizando a

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prudência e salientando as lacunas que, necessariamente, existem no exame da psiquiatria

brasileira.

a) Entrevistas

Ao todo, realizamos 50 entrevistas de tipo “focalizada” com psiquiatras, de 60 (sessenta)

minutos de duração média, e uso de gravador, utilizando o Guia de Entrevista apresentado no

Anexo I. Inicialmente, pensamos em fragmentar a população de entrevistados de acordo com o

serviço de atendimento existente: hospital público, universitário, privado, ambulatório,

consultório; contudo, como praticamente todos os entrevistados têm duas ou mais atividades em

serviços diferentes, achamos desnecessário tal procedimento. A escolha dos entrevistados partiu

do seguinte método: cada entrevistado, ao final da entrevista, oferecia-nos o contato de três

colegas e, assim, sucessivamente. Isso nos permitiu construir uma rede de entrevistados mais ou

menos heterogênea que abarcasse diversas formas de discurso, de percepção e de processos de

identificação. Fizemos ainda diversas entrevistas de consulta, principalmente com alguns

profissionais que estão atuando na secretária municipal de saúde, a procura de dados sobre a

psiquiatria pernambucana e recifense.

Fizemos as transcrições de todas as entrevistas. Sistematizamos cada entrevista seguindo a

ordem temática do guia de entrevista. Classificamos as entrevistas, colocando-as em grupos

temáticos, seguindo a ordem do guia de entrevista. A partir desse ponto, pudemos produzir

generalizações baseadas nos cruzamentos entre os grupos temáticos e as interpretações (hipóteses

explicativas) que tentaram explicar as diversas questões surgidas a partir dos cruzamentos e dos

grupos temáticos. Paralelamente à análise interpretativa do material colhido nas entrevistas,

achamos conveniente analisar tematicamente o conteúdo do material empírico. Foi dessa forma

que realizamos uma redução do discurso do entrevistado em unidades de significação, utilizando

um sistema de classificação estabelecido a partir de categorias circunscritas e definidas. Depois

dessa etapa, reunimos tais unidades de uma forma que não fosse nem ambígua, nem contraditória.

Tal método permitiu -nos quantificar e realizar agrupamentos e recortes no conteúdo encontrado

nas entrevistas. Assim, pudemos controlar a presença de certas noções e temas, obtendo desse

modo uma primeira imagem mais unificada do material colhido, bem como das principais linhas

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de diferenciação de seu conteúdo. Conseguimos também estabelecer relações entre as

significações e organizá- las em unidades temá ticas.

Apesar disso, no nosso trabalho, a análise temática possui apenas um valor indicativo e

secundário em relação ao papel da interpretação. A análise temática, na verdade, possui alguma

limitações que restringe o processo interpretativo:

Ø a composição de temas em unidades de significação isola-os e dificulta a

passagem do conteúdo manifesto ao latente;

Ø os resultados encontrados na análise temática não indicam que o mais

freqüente seja o mais determinante, já que os diversos conteúdos latentes e determinantes de um

material simbólicos, como o encontrado numa entrevista focalizada, podem aparecer mitigados,

mascarados e com uma freqüência pouco significativa;

Ø a análise temática pode significar no máximo uma representação

sistematizada e organizada do material colhido nas entrevistas; assim, sua superestimação pode

significar uma identificação entre a linguagem interpretativa e a interpretada ou, em outras

palavras, entre as noções do entrevistador e as dos entrevistados (Michelat, 1980: 201)

A análise interpretativa e temática contribuiu para a construção de modelos e

interpretações baseados no discurso concreto dos entrevistados. Tais modelos e interpretações

não revelam de forma alguma a "verdade" dos discursos analisados e nem alguma "estrutura"

oculta; na realidade, sua validade depende de seu valor estratégico em esclarecer o dado, facilitar

a comparação e levar a novos conhecimentos. A construção de modelos depende, também, do

"interesse" do pesquisador em enfatizar essa ou aquela área de conhecimento, revelando facetas

diferentes da realidade estudada segundo o modo pelo qual o material foi colhido e ao tipo de

entendimento que o pesquisador está procurando — o modelo, para nós, seria um auxiliar

transitório, um momento "técnico", uma "figuração ideal".

b) Observações empíricas

Passamos quatro meses fazendo observações e anotações empíricas nos seguintes

hospitais: Hospital Ulisses Pernambucano (HUP ? p úblico) e Clínica de Saúde São José

(hospital privado). Participamos do dia-a-dia dos médicos psiquiatras, bem como acompanhamos

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dois médicos do HUP e um da Clínica São José. Fizemos várias visitas ao Ambulatório Albert

Sabin e ao Hospital das Clínicas (hospital universitário que possui um importante setor

psiquiátrico), bem como a um hospital-dia, ligado ao HUP.

Para efetuar a coleta de dados utilizamos a seguinte técnica: a observação etnográfica

participante, que pressupõe uma imersão total no terreno estudado (Caiafa, 1985). Desse modo,

pude observar os comportamentos individuais, interindividuais e coletivos, inscritos num sistema

de ação concreto. A observação voltou-se para a elucidação da relação entre o discurso e a

prática, bem como para a construção de modelos de “prática”. Tal técnica exigiu-nos uma maior

proximidade empática com os indivíduos do serviço em questão. Nesse sentido, o trabalho

empírico foi dividido em duas etapas fundamentais: 1) uma “rápida” e inserida na segunda,

baseada na familiarização e conhecimento do serviço; 2) a outra “lenta”, baseada no seguimento

dos psiquiatras do serviço em questão, utilizando um protocolo de observação.

Tivemos a necessidade de inserir a primeira etapa na feitura do trabalho empírico, porque

a nossa familiarização, mesmo sendo também um psiquiatra, num serviço psiquiátrico, como

observador vindo das ciências sociais, não é e nunca foi evidente. No fundo, nunca deixamos de

ser um psiquiatra que, por algum modo curioso e bizarro tinha se tornado pesquisador social,

acolhido com polidez, é certo, mas nunca aceito de forma completa. Além do mais, ficar

observando e anotando as ações dos psiquiatras, isto é, atuar como um espectador, pode ser

considerado como um obstáculo, por exemplo, ao andamento do trabalho numa enfermaria e

causar para o observador e observado um certo constrangimento. De todo modo, observamos e

registramos, na medida do possível, todas as situações sugeridas pelo nosso “protocolo de

observação”. Cada período de observação, em média, durava uma hora, dependendo da situação e

da importância do contexto. As anotações e os registros eram feitos depois da observação, de

forma cursiva e contínua, numa espécie de “diário de bordo”.

C. Análise Conceitual

Apesar de termos utilizado neste trabalho diversas categorias analíticas, baseamo-lo num

tripé formado por três conceituações: identidade (profissional), profissão e representação. A partir

desse núcleo, utilizamos diversos conceitos que achamos pertinente no esclarecimento de nosso

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objeto. Cada conceituação do tripé funciona como um atrator para as outras categorias utilizadas

na pesquisa. Por isso, podemos dividir em três partes a discussão conceitual, segundo cada

conceituação do tripé:

Ø identidade profissional: ao conceituarmos identidade profissional,

utilizamo- la conectada à noção de socialização profissional — na verdade, a identidade

profissional seria resultado da socialização. Assim, utilizamos diversos autores que abordam a

socialização, de Durkheim (1977) a Claude Dubar (1991), por exemplo. Da mesma forma, a

identidade profissional foi melhor compreendida a partir da apreensão da articulação dos dois

campos já examinados, o campo profissional e o campo representacional. Uma articulação que

poderia também ser traduzida em termos de práticas profissionais e representação do objeto

profissional. A identidade profissional seria construída enquanto um processo de identificação no

qual o sujeito implementaria "estratégias de identificação" (Lipiansky, 1990) num determinado

contexto profissional e de vida. A identidade profissional estaria relacionada à vivência e à

trajetória do sujeito num determinado contexto e à sua apropriação de uma determinada

experiência social. Tal visão enfatiza a identidade como um produto de um processo que integra

as diversas experiências pelas quais o indivíduo passou ao longo de sua biografia. Como

corolário da identidade vista como um processo, valorizamos a noção de interação, cujo papel

fundamental seria esclarecer a gênese e a dinâmica dos processos de identificação: interação entre

o sujeito e o mundo, isto é, interação com outras pessoas, grupos sociais e estruturas soc iais. O

profissional vive num mundo profissional, determinado por normas, valores e práticas, onde

existe um cotidiano. Ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de utilizar a noção de trajetória

biográfica, examinada do ponto de vista do conceito de trajetória social (Bourdieu, 1980).

Utilizamo- lo a partir do conceito de habitus, embora este tenha sofrido algumas modificações,

pois o achamos muito centrado nos mecanismos de reprodução social. Os profissionais estão

"situados" e inscritos em determinados espaços sociais que adquiriram uma autonomia relativa,

transformando-se em "instâncias" especializadas dotadas de suas próprias regras de

funcionamento. Acreditamos, inclusive, que o "campo" da saúde mental, no Brasil, está sendo

ainda construído, embora o campo da saúde em geral tenha um nível de institucionalização até

certo ponto acentuado. Contudo, através dos aportes interacionistas, tentamos diminuir a

"dependência" do conceito de "campo" com a esfera da economia, dando ênfase, digamos assim,

às lógicas de interação, isto é, às lógicas de ação que não são necessariamente assimiláveis às

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lógicas econômicas das estratégias de optimização das condutas (Dubar, 1991). Com isso, o

habitus foi entendido como um processo aberto, no qual a trajetória não é reduzida a uma posição

objetiva, e sim entendida, fundamentalmente, como um "recurso subjetivo" — as competências

do sujeito serão "instrumentos" utilizáveis ou não dentro de um sistema dado de escolhas. Assim,

numa situação dada, o sujeito "retirará" do habitus recursos que lhe darão uma oportunidade

estratégica de realizar seus objetivos;

Ø profissão: tal teorização é o pano de fundo conceitual de todo o conjunto

de questões relativas à pesquisa, principalmente quando da discussão sobre o saber profissional,

em particular o da psiquiatria, e suas relações com a identidade, a representação profissional, o

objeto profissional e a prática profissional. Fundamentalmente, utilizamos os aportes da

sociologia da profissão, desde Parsons (1968) até Freidson (1984) e Anselm Strauss (1992). A

discussão sobre a profissão deu-nos subsídios para a utilização da noção de prática profissional.

Noção necessária para problematizar a relação entre representação e prática, como também para

demonstrar algumas especificidades do trabalho profissional na psiquiatria. Aqui, aplicamos o

conceito de ação comunicativa, de Habermas (1987), para tentar definir a prática profissional na

psiquiatria. Tal conceito foi útil para a análise do trabalho em equipe profissional, juntamente

com a teorização de Willem Doise e Serge Moscovici (1992) e seus estudos sobre trabalho em

grupo (teoria da decisão e da implicação). Mas, na própria análise da profissão e da prática

profissional, sentimos a necessidade de uma categoria que fizesse a ponte entre profissão e

identidade, donde a justificativa do uso do conceito de vocação. Percebemo- la como o alicerce da

identidade profissional. É o seu núcleo ideativo e simbólico. Um dos nossos objetivos foi mostrar

que o surgimento da profissão e do individualismo moderno possui uma afinidade eletiva.

Através dessa análise, demonstramos que a vocação pode ser vinculada a dois tipos de

individualismo, um relacionado à autonomia (defesa da autonomia profissional) e o outro à

independência (defesa da independência profissional), cuja repercussão pode ser verificada nas

diversas posições críticas ou de apoio ao profissionalismo (Freidson, 1998). Além disso, no bojo

da discussão sobre profissão, acoplamos uma análise sócio-histórica da profissão médica

brasileira, em particular da psiquiatria nacional;

Ø representação: a hipótese de que o objeto profissional, a doença mental,

possui um papel importante na construção identitária do psiquiatra levou-nos a examinar a

representação social, enquanto representação profissional, da doença mental entre os psiquiatras.

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Contudo, o conceito de representação profissional não se reduz a uma representação social da

doença mental, apresentando outros condicionantes como o papel da psiquiatria e do psiquiatra, a

relação com outras disciplinas médicas e com o senso comum, a concepção de tratamento e de

trabalho, a ética profissional. A discussão geral sobre a representação profissional, portanto,

condiciona e complementa a análise da identidade profissional. Nesse sentido, utilizamos como

referência a teoria da representação social de Moscovici (1978; 1986) para construir o conceito

de representação profissional;

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VI. Capítulo I

A. Introdução à problemática da identidade: uma análise.

1. O conceito de identidade

Pode-se especular que, talvez, a história do problema da noção de identidade seja o

problema de sua história. Ela é uma típica questão moderna — inclusive, muitas aporias do

pensamento moderno, cartesianas ou não, são suas diletas devedoras. Foi problematizada desde o

início pela filosofia moderna quando as questões da subjetividade e da individualidade tornaram-

se cruciais para o pensamento ocidental. A identidade tornou-se uma questão porque surgiu no

cerne de uma nova forma histórica de subjetividade (defesa da autonomia do sujeito), cujo

alicerce é a valorização da individualidade (defesa da independência do indivíduo) e cujo etos

não é mais dado pela Tradição, e sim percebido como "construído" por um sujeito. O surgimento

da identidade, enquanto problema, teria uma inscrição fundamental na própria base da

Modernidade, no seu tesouro mais caro: o indivíduo autônomo. Se a identidade pode ser vista

como uma "construção" e se implica a performance individual de um sujeito, pensá-la é uma

reflexão moderna, pois está inscrita num modelo cultural que confo rma práticas de auto-avaliação

—supõe a existência, ilusória ou não, de uma intimidade e de uma privacidade interior, isoladas

como uma mônada e, supostamente, alcançadas pela reflexão. Seriam práticas de auto-avaliação

calcadas num indivíduo — ou, pelo me nos, em uma representação histórica e determinada de

indivíduo — auto-suficiente e "proprietário de si mesmo".

É improvável que, em sociedades nas quais os pensamentos e as emoções pessoais não

são valorizados enquanto tais, desenvolvam-se "instrumentos" lingüísticos que favoreçam o

pensamento reflexivo e auto-avaliativo3. Não se nega que numa sociedade onde a individualidade

não é vista como um valor importante não ocorra auto-avaliação ou pensamento reflexivo.

Afirma-se apenas que numa formação social onde a "pessoa", independentemente do fato de ser

publicamente identificável e individualizada, é responsabilizada moralmente apenas na qualidade

3 Seguimos, aqui, o estudo de Harré (1993: 116 a 131).

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de membro de uma comunidade, isto é, onde sua responsabilidade moral somente é percebida de

forma comunitária, neste caso, provavelmente, haveria um domínio do "eu digo" em detrimento

do "eu penso" (Harré, 1993: 138).... Já numa sociedade na qual as práticas morais tradicionais

foram substituídas por etos seculares, sendo o individualismo um dos valores balizadores, não é

surpreendente surgir uma noção de si portadora de uma "unidade interior", isto é, uma noção de

si que problematiza uma identidade — uma cultura onde há o sentimento de uma inconcebível

solitude interior, para utilizar a fórmula de Weber (1987) a respeito do homem protestante. Em tal

cultura, a "sensibilidade" e a personalidade foram afetadas radicalmente, ocorrendo a substituição

de uma "sensibilidade hierárquica", baseada numa visão "holista" e "vertical" da sociedade, por

uma "sensibilidade igualitária", baseada numa visão "individualista" e "horizontal" da sociedade

(Dumont, 1983). Enfim, e concluindo: a identidade, como problema, requer historicamente o

surgimento de um indivíduo socializado através de um modelo cultural, no qual a subjetividade é

construída socialmente, tendo como referência axiológica o individualismo.

Provavelmente, por causa de tal derivação — o isolamento da noção de indivíduo em

relação a toda determinação externa, inclusive social —, a consciência moderna de si estrutura e é

estruturada por uma das aporias do pensamento moderno: a dicotomia entre indivíduo e

sociedade. Tal dicotomia vai refletir-se na sociologia, criando duas tendências gerais: a primeira

colocará a ênfase nas condições gerais, nos hábitos coletivos, nas leis e na causalidade; a segunda

insistirá na ação social, nas significações, nas motivações, na interação social e na compreensão.

Uma imaginará a sociedade sem os indivíduos, o discurso sem o sujeito, acentuando a

exterioridade e a coerção dos fatos sociais; a outra explicitará a ação conjunta dos indivíduos, a

compreensão da ação social e o reconhecimento do sentido subjetivo dos atos. Por um lado,

corre-se o perigo de se produzir uma metafísica do social; por outro, pode-se cair numa ontologia

do indivíduo.

Já no plano da formação social da personalidade, a deriva individualista produzirá a

dominação de uma noção de "pessoa" separada e oposta a outras, as quais são percebidas como

objetos isolados. A representação dominante de indivíduo na Modernidade, assim, aparece no

imaginário social segundo uma forma individualista. Tal situação condiciona, provavelmente, a

percepção generalizada de que a "sociedade" possui uma exterioridade em relação à

individualidade — uma percepção social que está inscrita em práticas lingüísticas e modos de

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pensar bem particulares: tudo que está fora do indivíduo parece adquirir um caráter de objeto

(Elias, 1991: 07). Nossos modos lingüísticos e de pensamento induzem-nos a reificar tudo aquilo

que está "externo" ao indivíduo — por exe mplo: noções como família, sociedade, estado são

percebidas, geralmente, como objetos separados do indivíduo e não como uma rede articulada de

"pessoas" (1991: 08).

A formação da identidade moderna não poderia escapar a essa situação descrita acima,

apresentando assim uma dualidade constituída de dois momentos: 1) um momento individual

geralmente apreendido pela noção de ego, cujas características são individuais e baseadas numa

auto-atribuição de valor e sentido; 2) um momento social comumente definido pelo sistema de

papéis que conformam as expectativas do indivíduo em relação a outros, a um grupo ou a uma

situação determinada. Os dois momentos são reaproveitados e problematizados pela ciência

social, e a identidade é percebida do ponto de vista de dois eixos centrais:

• aquele relacionado aos aspectos psicológicos e psicossociais da identidade,

em que a constituição do "eu" é entendida como uma interiorização (trazer o mundo para si) e

uma internalização (incorporar o mundo a si) do social pelo indivíduo — a utilização de

conceitos como o de superego seria um exemplo desse tipo de entendimento. A identidade, assim,

seria fruto da socialização experimentada pelo indivíduo no meio social (família, escola...) e,

geralmente, apreendida de forma positiva, cumpr indo uma função de integração psicológica na

personalidade do indivíduo;

• o eixo que enfatiza os aspectos coletivos e propriamente "sociológicos" da

identidade. O que importa aqui são as modalidades de "pertença" do indivíduo a um grupo,

categoria social, etnia, classe e os processos de identificações estruturados pelas interações

sociais. A identidade é vista como "coletiva", "social", "cultural", de "classe", sendo formada por

um processo de incorporação — geralmente de valores dominantes ou consensuais —, cumprindo

um papel, muitas vezes funcional, de integração social ou de resistência coletiva ao sistema

social.

Os dois momentos ou os dois eixos criam, no processo de formação

histórica da identidade moderna, um paradoxo — um confronto perpétuo entre a

similitude e a diferença: o "eu" não se vincula inteiramente ao "nós", como se

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existisse uma clivagem entre uma determinação singular, representada pelo

"eu", e uma determinação geral da identidade, representada pelo nós. Nesse

sentido, na identidade moderna haveria uma relativa assimetria entre a

constituição do sujeito e sua socialização no meio social ou cultural. O indivíduo

estaria inserido nas formas de socialização, mas sem nunca ser por elas

completamente determinado. O ego não se reconhece completamente nos

papéis sociais, tornando a dinâmica identitária ora um processo no qual a

identidade é percebida pelo seu sentido, ora pela sua funcionalidade.

Acreditamos que tais contradições sejam típicas da identidade moderna,

ocasionadas pela infindável marcha da individuação e exacerbadas pela sua

expressão dominante na Modernidade — o individualismo. Durkheim, inclusive,

percebeu de forma aguda o problema quando notou que a individuação foi

impulsionada pela diferenciação social, agora não mais hierárquica e sim

funcional, criando e misturando, sem jamais se fundir, uma diversidade de papéis

sociais e uma pluralidade de identidades individuais. Apesar da apologia do

indivíduo soberano, seu constante descentramento, via solidariedade orgânica,

foi deteriorando sua substância. Formou-se, desse modo, um mundo desprovido

de um sentido unívoco, agora coisa do passado, bem como desenvolveu-se um

universo movediço onde pululam crises de identidade e se "esvazia" de sentido o

indivíduo. Se, no início, a individualidade era a essência da subjetividade,

posteriormente, através de um processo contraditório e paradoxal, a

subjetividade começou, com a radicalização do individualismo, seu lento

distanciamento do indivíduo. Desencantamento do sujeito que alguns escritores

perceberão de uma maneira intensa: Musil (1989), por exemplo, interpretará o

enfraquecimento subjetivo da individualidade como uma perda de qualidade.

Enfim, a consciência dos dois eixos será importante quando analisarmos a forma pela qual

algumas linhas teóricas abordam a identidade. Mais útil ainda será essa conscientização quando

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tentarmos discutir a possibilidade de um conceito de identidade que amenize a polarização entre

indivíduo e sociedade.

2. Psicanálise, psicologia social e intersubjetividade

A partir desse ponto, faremos un petit tour na psicologia, em particular na psicanálise e na

psicologia social. A crítica à psicanálise e a discussão sobre a psicologia social servirão para

resgatar uma visão de subjetividade cujo fundamento encontre-se na intersubjetividade, isto é,

uma identidade fundada na intersubjetividade poderá escapar às diversas aporias nas quais se

meteu quando de sua identificação com uma concepção de sujeito soberano.

Em relação à psicanálise, consideramos que Freud tentou introduzir na cultura moderna

uma nova forma de relação humana, fundada na abertura e na comunicação, isto é, na

intersubjetividade — se a tentativa obteve ou não sucesso é outra discussão. Curiosamente,

apesar disso, a psicanálise não utiliza a noção de identidade e sim o conceito de identificação,

talvez por uma desconfiança de uma assimilação da noção de identidade a uma essência fixa e

imutável. Embora a identidade possa ser vista como o resultado do processo de identificação,

sem que tenha um caráter definitivo ou alguma transcendência, a desconfiança permaneceu ao

ponto de no famoso dicionário de psicanálise de Laplanche e Pontalis (1980) não aparecer o

verbete identidade. Assim, a identificação é um processo que constitui:

primeiro, a forma mais original do vínculo afetivo a um objeto; segundo, pela

via regressiva, ela torna-se o substituto de um vínculo objetal libidinal, por

alguma forma de introjeção do objeto no ego; terceiro, ela pode nascer cada

vez que se percebe novamente uma certa comunidade com uma pessoa que não

é objeto de pulsões sexuais (tradução nossa.- Freud, 1987: 170).

Dessa definição, podemos retirar algumas interpretações:

• a identificação seria um processo que envolveria a possibilidade de uma

pluralidade de identidades. As identidades vão-se sucedendo de acordo com a evolução de

algumas fases, é certo, mas o processo não garante uma estabilidade ou uma finalidade última.

Em Freud, acreditamos que haja alguma unidade no processo de identificação; contudo, não há

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realmente certeza disso, e, se radicalizamos o processo e retiramos qualquer tipo de unidade,

mesmo diacrônica, a identidade torna-se um vazio eternamente a ser preenchido. Um processo

que não é processo, mas pura diferença e sucessão. A "dessubstanciação" da identidade seria

total, transformando-a em puro acidente de uma trajetória aleatória;

• o componente afetivo e objetal joga um papel fundamental na formação da

identificação; em suma, a racionalidade tem um papel limitado, inversamente proporcional ao

papel do inconsciente. A psicanálise pode oferecer alguns subsídios interessantes à análise do

aporte emocional e afetivo na formatação da identidade e, mesmo, da ação social;

• Freud, ao falar de "uma certa comunidade com uma pessoa ", admite a

possibilidade do papel do outro no processo de id entificação. O outro não apareceria apenas

numa situação de interação com a "pessoa", mas também, e principalmente, fazendo parte da

própria formação da identificação. Tal abertura ao outro libera a possibilidade de transformar

uma psicologia individual numa psicologia social. Apesar de a teoria psicanalítica não ter

conseguido, no todo, levar adiante essa abertura, Freud já tinha alertado para essa possibilidade,

quando enfatizou o papel do outro na vida psíquica do indivíduo: o outro teria um

papel de um modelo, de um objeto, de um associado ou de um adversário... de

tal forma que a psicologia individual apresenta-se, desde o início, como sendo

ao mesmo tempo, de uma certa forma, uma psicologia social no sentido largo e

plenamente justificado da palavra (tradução nossa.- 1987: 83).

A psicanálise fundando uma psicologia social? Nem tanto, nem tão pouco. As elaborações

psicanalíticas percebem o psiquismo do indivíduo como uma mônada isolada, embora em

constante relação com o "ambiente". Por causa do isolamento da psique, a identidade faria parte

de um "eu" estruturado em torno de elementos invariáveis e a-históricos. Contudo, tal "eu"

praticamente não existe, pois a consciência possui um papel um tanto secundário na dinâmica da

psique. Provavelmente, isso acontece devido ao peso de uma visão sui generis de inconsciente na

teoria psicanalítica. Ele também é isolado e impermeável ao ambiente — o ego nasce e é uma

projeção do id. É um sistema. O "social" ou a "cultura" só entrariam, embora só cheguem

realmente ao inconsciente de uma forma eufemística ou "traduzida", através de estruturas

mediadoras, tipo o superego, conceito da segunda tópica freudiana. O inconsciente é a única

transcendência da individualidade; afinal, embora determinante da consciência individual, pelo

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que entendemos, ele "está" além do indivíduo. Na realidade, o inconsciente freudiano é quase um

anti-consciente: determina, engana, manipula, ilude, frustra, em suma, faz gato-sapato da

consciência. Não tem uma intenção, mas parece ser fundado no modelo da intencionalidade.

Parece um sujeito dentro do sujeito — um homunculus habitando e guiando nossa alma

(Edelman, 1992). Assemelha-se à camara obscura da famosa metáfora marxiana para explicar a

falsa consciência.

Criticando justamente o uso do inconsciente como panacéia de toda explicação, Boudon

alerta para o perigo de se fazer do inconsciente uma

caixa de Pandora e um pivô lógico que permite deduzir não importa qual

conclusão de toda e qualquer premissa. Pois, quando admitimos, sem maiores

explicações, que um indivíduo pode não perceber o que percebe e perceber o

que não percebe, não acreditar no que acredita e acreditar no que não

acredita, a relação entre o comportamento do agente e sua interpretação

torna-se necessariamente arbitrária. Tudo permanece, então, como uma

questão de retórica. E a porta fica escancarada ao egocentrismo e ao

sociocentrismo do observador (tradução nossa.- Boudon, 1986: 304).

A visão sui generis de inconsciente vai levar Freud a uma verdadeira batalha contra a

consciência e o ego. A consciência será vista como um sintoma, uma simples qualidade do

psiquismo, uma ilha rodeada pelo oceano do inconsciente.O indivíduo não dispõe de si mesmo,

agindo sob o impulso de forças obscuras e impessoais. Nas suas análises do instinto e do

princípio do prazer, Freud prescindiu completamente do uso de categorias subjetivas e

intencionais. O "eu" é um outro, dividido e nunca unitário. Surge a partir do Id, com o qual tem

uma relação neurótica de submissão. Ocorre uma radical desvalorização de nossa experiência

psicológica que, no entanto, talvez seja a única fonte de conhecimento de nossos estados mentais

interiores — nossa verdade residiria bem longe de qualquer contato com nós mesmos. Nesse

sentido, a psicanálise pode ser entendida como uma concepção que afirma a dissolução do ego.

Freud, aqui, não segue apenas os aportes filosóficos, principalmente de Schoppenhauer e

Nietzsche, para realizar a dissolução do ego; na verdade, nutre-se também do desenvolvimento da

teoria da evolução e, principalmente, da neurofisiologia (Gauchet, 1992). Desde 1830, quando foi

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descoberta a atividade reflexa da medula espinhal, o seu modelo de funcionamento foi estendido

ao conjunto do cérebro. A partir dos estudos sobre o sistema nervoso, vai-se contestar a

supremacia da consciência e o caráter central do ego. Pois, com efeito, caso se admita a

existência de condutas reflexas, o consciente pode ser considerado uma qualidade secundária,

eventualmente acessória, de mecanismos independentes e involuntários que prescindem da

presença ou da ausência da consciência. Em 1870, a mudança já está dada, e o final do século

XIX será dominado por uma psicofisiologia embebida de neurologia. O tema da consciência

como um "satélite do espírito", a percepção de múltiplas consciências locais espalhadas no nosso

corpo e a inferência do caráter impessoal da vida psíquica terão uma influência duradoura em

Freud e mesmo em Nietzsche; inclusive, inspirará a ciência cognitiva atual. Freud, assim, retoma

e radicaliza, através da construção de uma metapsicologia, o tema do inconsciente cerebral.

De todo modo, se o inconsciente sui generis freudiano tivesse apenas uma existência

independente da consciência, sendo capaz de produzir estados psíquicos conscientes, isso não

seria tão grave. Pode-se, no limite, imaginar que as representações conscientes possuem causas

clandestinas provenientes do inconsciente. Mas acreditamos que Freud vai mais longe: sua teoria

considera que os fenômenos do nosso cotidiano cognitivo — boa parte daquilo que consideramos

como expressão de motivações conscientes, justamente aquelas razões habituais e conscientes

que nos fazem agir, que definem nossos objetivos e nossos projetos de vida — tais fatos, em

suma, são epifenômenos de uma realidade escondida ou, ainda, conteúdos manifestos de

determinações latentes. Enquanto tais, não têm importância ou mesmo são ilusões, porque sua

verdade reside numa outra realidade que os determina e os torna presentes. Assim, se há

identidade, ela existe somente enquanto manifestação de um processo de identificação

inconsciente, completamente independente da vontade do sujeito.

A denegação do ego continuará sendo um tema essencial da psicanálise, principalmente a

partir dos estudos de Lacan. Agora, via as influências da lingüística, é a separação entre o sujeito

do enunciado e o sujeito da enunciação que é postulada. O que se produz, aqui, é uma cisão entre

o sujeito que se representa no discurso e o sujeito do desejo ou, em outras palavras, do

inconsciente. Nessa obscura concepção, a subjetividade é deslocada para o campo da

inconsciência. Assim, o único sujeito autêntico é o do inconsciente, enquanto o ego, ou o que

sobrou dele, é visto como um objeto — o ego estaria eternamente dependente das identificações

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com o outro (contexto, situação...). A subjetividade é dissociada completamente das

manifestações concretas do sujeito do enunciado. Ela é, na realidade, um nada. Mas o sujeito, em

Lacan, não é um efeito da linguagem e, portanto, determinado de alguma forma? Sim, todavia

esse rasgo de esperança é esfacelado, pois o sujeito aparece no discurso apenas enquanto

significante; logo, enquanto ausência — para se representar, a subjetividade deve desaparecer. A

linguagem, assim, assinala ao mesmo tempo o nascimento e a morte do sujeito. Colocado dessa

forma, o sujeito não sabe o que diz, até porque não sabe o que é (Lacan, 1978: 286) 4. Sim, como

saber, se é inconsciente? É um nada.

Com todos os riscos que uma transposição comporta, acreditamos que tal cisão seja

comparável a uma separação, por exemplo, entre o ego e o "eu-aqui-agora"5. O problema está na

condição intransponível da cisão, pois, se a ênfase permanece na separação e não na integração,

ficamos impossibilitados de conceber uma noção tão trivial quanto a de pessoa. Talvez o ego e o

"eu-aqui-agora" sejam produtos de mecanismos cerebrais diferentes e separados, mas esquecer

que são integrados pode levar a uma completa fragmentação da personalidade. Assim, muitas

vezes, o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação podem ser o mesmo — não há dois

sujeitos, mas apenas um —, ainda que lingüisticamente os momentos estejam separados. Sem o

ego, o "eu-aqui-agora" seria pura sucessão, pura diferença; sem o "eu-aqui-agora", o ego não teria

estória nem estaria situado, encontrando-se dissolvido nas determinações do Id. Logo, sem a

integração, não há pessoa, não há identidade alguma.

A separação entre o ego e o "eu-aqui-agora" pode ser ilustrada pelo famoso personagem

sartriano da Náusea (2002), Roquentin, o qual, para alguns (MacIntyre, 1997), seria o protótipo

do indivíduo moderno. Para Roquentin, a existência reduziu-se a uma série de episódios sem

saída e sem unidade perceptível. Só tem o seu corpo, não podendo reter as lembranças, sendo

apenas um destroço sem memória. Existe na contingência, na gratuidade perfeita, em que nada

parece mais verdadeiro. É pura sucessão e pura efemeridade. Pode-se traduzir a separação

psíquica que acomete o protagonista numa linguagem psicossocial: Roquentin sofre porque nele

4 A frase, na verdade, é esta: "le sujet ne sait pas ce qu' il dit, et pour les meilleures raisons, parce qu' il ne sait pas ce qu' il est". 5 Como o ato individual de utilização da língua envolve a ação e o contexto comunicativo em que o falante está inserido, o "eu" que está envolvido no ato encontra-se fincado no espaço e no tempo do contexto, no aqui e no agora.

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se instaurou uma separação entre o ego e os papéis sociais. Não consegue situar-se ou fixar-se na

ordem estável de um mundo ordenado e normativo. Seu destino é ser tratado por um lacaniano.

Enfim, se a psicanálise deu passos importantes no estudo dos processos de identificação,

por outro lado brecou o seu entendimento quando patrocinou a dissolução do ego. Contudo,

acreditamos que psicanalistas, como Erikson (1966), deram uma contribuição ao estudo da

identidade quando abrandaram o peso analítico do conceito freudiano de inconsciente. Tal fato

ocorreu, por exemplo, quando construiu a noção de "crise de identidade cultural" a partir do

exame das peripécias identitárias de Jim, um jovem Sioux, cujos problemas de identificação eram

produto de uma socialização secundária num meio cultural diferente do seu de origem. Erikson

elabora uma noção de identificação com um mínimo de continuidade e unidade, bem como

ameniza o papel do inconsciente do tipo freudiano. Assim, a identificação

surge da rejeição seletiva e da assimilação mútua das identificações da

infância, assim como de sua absorção numa nova configuração que, por sua

vez, depende do processo graças ao qual uma sociedade (freqüentemente por

intermédio de segmentos sociais) identifica o jovem indivíduo, reconhecendo-o

como alguém que se tornou o que ele é e que, sendo o que é, seria considerado

como aceito (tradução nossa.- Erikson, 1966: 167).

Haveria, pelo que interpretamos, uma consciência do indivíduo de sua singularidade

enquanto pessoa, mesmo entrando em diversos processos de identificação. O papel do

inconsciente seria inscrito, principalmente, na necessidade do indivíduo de estabelecer uma

unidade na sua trajetória de vida, apesar dos diversos papéis sociais assumidos e da

descontinuidade temporal. Haveria, também, um movimento consciente e inconsciente, por parte

do indivíduo, de aceitar os valores culturais e, conseqüentemente, os modelos de conduta do

grupo ou da sociedade. Assim, permanece uma continuidade no processo de identificação que

conecta o indivíduo ao grupo na formação da identidade.

Parece-nos que a identidade é percebida como um produto do processo de identificação.

Porém, Erikson aparenta defender uma identidade ideal ajustada aos valores do grupo ou da

sociedade, já que se refere a processos de identificação negativos e pos itivos: os negativos seriam

do tipo que o jovem Sioux sofreu, e geram uma "crise de identidade cultural"; já os positivos

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ocorreriam quando a assimilação do indivíduo pela sociedade ou pelo grupo acontecesse de

forma plena. O resultado saudável da assimilação seria uma identidade sem crise. Ora, parece

que, depois da aceitação do indivíduo pelo grupo, o processo de identificação ter-se- ia, enfim,

consolidado. No fundo, a identidade sem crise seria uma identificação baseada na aceitação e na

assimilação dos valores consensuais do grupo ou da sociedade. Seria uma identidade baseada no

conformismo cultural — não havendo conformismo... crise!

Embora respeitemos o aporte psicanalítico, acreditamos que a psicologia social de

tendência interacionista avança mais na discussão sobre a identidade. Estamos convencidos de

que a passagem de uma psicologia individual para uma psicologia social, na questão da

identidade, necessita do conceito de socialização. Seria através desse conceito que o abismo entre

a esfera individual e a social poderia ser diminuído. Um conceito-ponte, então? Sim, mas que

pode ir mais além: o conceito de socialização pode implicar que não há indivíduo isolado na

sociedade, existindo apenas indivíduos socializados — toda identidade seria "social", embora o

sujeito não se esgotasse no contexto. Neste caso, não haveria uma separação, apenas uma

distinção entre a esfera individual e a social, entre o "interno" e o "externo". A socialização

implicaria, assim, dois momentos: 1) uma interiorização nem sempre estável, contínua e pacífica

de valores e representações dados pela cultura; 2) uma exteriorização produzida pelo indivíduo,

muitas vezes idiossincrática, da interiorização durante sua trajetória de vida. Tais momentos, que

implicam necessariamente uma teoria das interações sociais e do aprendizado, resguardariam

numa mesma unidade tanto o "indivíduo" como a "sociedade". Socialização implicaria, enfim,

intersubjetividade.

Teria sido George Herbert Mead (1963) o primeiro a afirmar teoricamente o papel da

socialização na construção da identidade. De certa forma, Mead seria um dos responsáveis pela

reviravolta pragmática do pensamento sobre a identidade. Podemos deduzir de suas posições as

seguintes premissas:

Ø a linguagem precede o pensamento 6 e implica interação;

6 Discussão ainda controversa se levarmos em conta alguns aportes teóricos de Piaget, quando do seu estudo, por exemplo, sobre o pensamento e a linguagem do ponto de vista genético, a saber: "a linguagem só é uma forma particular da função simbólica, e como o símbolo individual é, certamente,

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Ø logo, a relação com o outro precede a relação a si mesmo e a relação entre

o sujeito e o objeto;

Ø assim, intersubjetividade, mediada pela linguagem, precede a

subjetividade, isto é, a consciência de si e a consciência objetal;

Ø a dimensão interativa é mais fundamental do que a cognitiva.

Dessa forma, a identidade seria necessariamente social e "construída". Apesar de

"construída", a formação da identidade não é calcada num modelo intencional, embora exista um

papel para a escolha na teoria de Mead. E, existindo escolha, há alguma margem para a liberdade

da pessoa. A identidade é "construída" no sentido de que o processo de identificação não é apenas

um desdobramento mecânico da gênese da identidade. Há fases, mas que não são garantidas a

priori, e a cons trução depende das vicissitudes da trajetória do indivíduo durante sua existência

socializada numa determinada sociedade. Tal construção seria balizada pela interação e pela

comunicação sociais — Mead, desse ponto de vista, é o pai do interacionismo simbólico.

Para entender-se melhor a posição de Mead, sugerimos fazer uma aproximação deste com

Weber7. Todos os dois, por exemplo, consideram a ação social como fundamental para entender

os sistemas de interação e comunicação sociais. E todos os dois consideram a ação social uma

ação que "orienta-se pelo comportamento de outros" (Weber, 2000: 13). Além disso, podemos

perceber ainda outros elementos "weberianos" em Mead. Expliquemos: pode-se deduzir do

aporte weberiano duas formas de socialização, a societária e a comunitária. A societária,

predominante no capitalismo e característica da formação de classes sociais, implica uma

interação social baseada numa ação racional, normalmente do tipo instrumental, que envolve a

defesa de "interesses", principalmente econômicos, na esfera do trabalho ou do mercado. Tal

socialização é de base voluntária, abrangendo um sistema de escolhas dentro do qual pode

movimentar-se o agente racional. A socialização comunitária ou estatutária, predominante nas

sociedades tradicionais e característica da formação dos grupos de status, seria muito mais

impositiva e "inconsciente", exigindo a mobilização de "modelos culturais". O agente não

mais simples que o signo coletivo, conclui-se que o pensamento precede a linguagem e que esta se limita a transformá-lo, profundamente, ajudando-o a atingir suas formas de equilíbrio através de uma esquematização mais desenvolvida e de uma abstração mais móvel" (1982: 86). 7 Seguimos, aqui, o estudo de Dubar (1991).

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"escolhe" o modelo cultural, mesmo que, na sua ação com outros agentes, estruture e reproduza o

modelo — a ênfase recai na construção da identidade do agente via a socialização comunitária.

Mead coloca a "ação comunicativa", para usar uma expressão de Habermas, como

fundamento da socialização, isto é, coloca a socialização comunitária como leitmotiv da sua

teoria da socialização. Estamos, aqui, na esfera do sentido, logo da identidade (Castells. 2000: 23)

Como o resultado do processo de identificação, para Mead, depende de formas institucionais e

funções sociais, estamos diante de papéis sociais; portanto, de uma socialização societária.

Segundo Castells:

papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista,

jogador de basquete, freqüentador de uma determinada igreja e fumante, ao

mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e

organizações da sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de

influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos

entre os indivíduos e essas instituições e organizações(2000: 23).

Ora, os papéis sociais implicam uma racionalidade, negociações entre atores individuais e

coletivos, um sistema de escolhas e, por fim, "interesses".

Não é à toa que o processo de identificação em Mead enfatiza "fases" sucessivas de

individuação, da criança ao adulto, em que cada vez mais a socialização societária é importante,

isto é, no final do processo o indivíduo estará apto a cumprir ou "representar" um ou vários

papéis sociais na sociedade. Contudo, mesmo havendo um momento societário na socialização,

seria a socialização comunitária que dominaria todo o processo. Haveria os dois momentos, sem

dúvida, mas o agir comunicativo teria a última palavra. O sentido sobredeterminaria a função,

mesmo que esta, numa determinada sociedade, fosse mais valorizada. Podemos aplicar, assim,

esse modelo de socialização para os processos de identificação na Modernidade, afirmando que,

mesmo se a socialização comunitária continua fundamental, o caminho da identidade moderna

iria do sentido à função, da predominância comunitária à societária, da "cultura" à razão

instrumental, do inconsciente ao consciente, do desejo ao interesse. Daí, provavelmente, a reação

identitária à crise de sentido no mundo moderno, onde o societário predomina e a identidade está

subsumida nos papéis sociais.

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Mead, ao pensar a ação social em relação ao outro, enfatizando na formação da

identificação uma socialização baseada em processos de interação social, implementa uma

reconciliação

da sociologia weberiana com a psicologia comportamentalista na condição de

definir o comportamento (social) como uma reação significativa ao gesto de

um outro. Ela permite a Mead de desenvolver uma análise minuciosa da

socialização como construção progressiva da comunicação de Si enquanto

membro de uma comunidade, participando ativamente na sua existência e,

portanto, na sua mudança (Dubar, 1991: 96, tradução nossa).

Ou ainda, utilizando um paradigma que se funda na dualidade entre sociedade e

comunidade: a sociedade não pode formar-se sem respeitar as fontes de sentido enraizadas na

comunidade. Tais sentidos são utilizados na ação coordenada de indivíduos racionais e

socializados na produção de suas vidas. No processo de socialização, os indivíduos reproduzem a

comunidade criando a sociedade (1991: 98).

Contudo, Mead não percebe completamente que a socialização societária, através do

processo de individuação, criou uma assimetria entre o ego e os papéis sociais. Ele parece

perceber apenas o momento de correspondência e não o de separação. O movimento de

socialização, principalmente na Contemp oraneidade, não esgota o processo de identificação, pois

o sujeito não se exaure na sua identidade. No limite, poder-se-ia imaginar comunidades de forte

solidariedade mecânica onde a socialização se confundisse com os processos de identificação.

Não haveria, nesse caso, uma assimetria entre identidade e papel social ou entre sentido e função.

Bem diferente, no entanto, seria imaginar a mesma situação na sociedade moderna. A

solidariedade orgânica e a individuação levaram a uma relativa separação entre os dois momentos

da constituição do indivíduo: a pessoa e o self, o ser social e o "eu" que toma consciência de sua

existência enquanto indivíduo, o ego e o super-ego e, enfim, entre o I e o Me da divisão clássica

de Mead.

Novamente, repetimos: há assimetria, mas também integração. Há correspondência, sem

dúvida, entre a formação do self — esta unidade interior, entendida como nossa individualidade,

e com a qual nos identificamos — e a pessoa — subjetividade concreta e social, publicamente

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visível e atuante. Mas deve-se alertar que, na estruturação moderna da personalidade, a

correspondência sempre é problemática e nunca evidente. Os psicanalistas, assim, têm razão ao

ressaltar a separação entre a socialização e a formação do ego; mas Mead e Ron Harré (1993)

também têm razão quando afirmam o contrário, isto é, a integração entre os dois momentos. É

provável que a constituição da personalidade moderna seja um processo que aproxima o ego da

socialização sem jamais integrá-los completamente, produzindo uma assimetria que é a base

objetiva ora para a dissociação entre a individualidade e a subjetividade, ora para a relativa

autonomia do sujeito. Por isso, a formação da personalidade moderna é frágil e sujeita, mais do

nunca, a processos dissociativos, podendo apresentar como resultado tanto um Roquentin — um

ente fragmentado diante do fluxo ininterrupto das coisas —, como um indivíduo socializado, um

ser com um mínimo de autonomia diante do contexto em que está situado.

Pode-se especular que, no indivíduo moderno, a interiorização não seja mais sinônimo de

internalização. O indivíduo interioriza os papéis sociais, mas, muitas vezes, não os internaliza,

isto é, não os torna parte integrante de seu mundo interior. Através da interiorização, a pessoa

incorpora seus papéis no mundo, mas seria apenas por intermédio da internalização que haveria a

transformação do papel em vivência ou sentido — as relações inter-subjetivas que caracterizam o

papel social não se tornariam completamente relações intra-subjetivas. Quando se diz "eu sou

médico", o papel social torna -se vocação; a função, sentido. O papel profissional integra-se,

assim, ao núcleo identitário da pessoa. Contudo, quando o fato de ser médico não representa uma

propensão e sim, apenas, uma habilitação para exercer uma at ividade, o papel social é

interiorizado, mas a internalização não se realiza integralmente. Neste caso, o papel é confundido

com mise-en-scène e representação, e a função domina o sentido8.

Não é de estranhar, desse modo, que diversos autores tenham colocado todo o peso da

formação dos papéis sociais na construção de identidades. A inspiração é americana, e não causa

surpresa; afinal, a sociedade ianque seria a cultura mais "societária" do planeta. O papel social foi

apropriado, via funcionalismo, pelo seu aspecto funcional, gerando inclusive uma sociologia das

profissões. Já Goffman (1973), por exemplo, tentou "des- funcionalizar" o papel social. O

8 A crise vocacional no mundo profissional e no do trabalho possui alguma relação com o problema descrito acima.

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48

funcionalismo fez do papel social uma camisa-de-força para o indivíduo. A capacidade de ação

do sujeito estava subsumida à função e à formação do consenso social. A ênfase recaiu

totalmente no aspecto normativo e institucional do papel. A identidade seria uma derivação

funcional do papel social. Goffman, ao contrário, recuperou a agência do sujeito, mostrando que

há uma negociação entre o indivíduo e o papel social. Tal negociação expressa-se numa clivagem

entre uma identidade real e uma virtual — novamente, percebemos a repetição do velho tema,

apenas apropriado de forma diferente, da separação entre o ego e a socialização. O papel social é

dado, mas estaria inscrito, principalmente numa sociedade democrática e pluralista como a

americana, numa estrutura social de escolhas e preferências, permitindo uma margem de

liberdade ao indivíduo. Há, desse modo, várias modalidades de adesão a um papel, desde aquela

na qual o agente define-se pelo papel ("eu sou médico", por exemplo) até aquela situação em que

o agente percebe o papel social como uma atividade ou um status entre outros.

Nesse sentido, Goffman produziu uma espécie de fenomenologia da adesão, realçando a

sua visibilidade social, o que chamou de "face". O indivíduo adere a um papel social e evita,

mantendo a "face", desviar-se da conduta esperada pela sociedade. Tais expectativas tendem,

caso haja um consenso social a respeito, a se institucionalizar, normatizando o papel social em

termos de conduta ideal. Aderir a normas adequando o comportamento às expectativas públicas

implica uma conduta parecida com a de um ator de teatro: conformar-se a um roteiro exige uma

representação, isto é, uma mise-en-scène respeitando a liturgia e os rituais da performance teatral.

O mundo seria, assim, um teatro. Como um ator, o indivíduo tem a capacidade de se ver atuando

quando assume um papel social, o que acarreta uma clivagem ent re a identidade real do indivíduo

— ponto de partida pelo qual o ator percebe-se atuando — e sua identidade virtual — conjunto de

comportamentos que moldam o papel do ator. Mas, aqui, cria -se um problema curioso: se a

identidade virtual foi estudada com profundidade por Goffman, o que dizer da identidade real? O

que é ela, afinal? Um núcleo profundo ocultado pela conduta teatral do indivíduo? A parte

autêntica da personalidade? Postular uma identidade virtual implica logicamente uma realidade

essencial guardada nas entranhas da alma do sujeito? Embora não aprofunde a natureza da

identidade real, talvez Goffman defenda uma dualidade estrutural nos processos de identificação

proveniente da própria disposição das interações sociais.

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Pode-se criticar Goffman por ter concebido atores sem sistema, enquanto a posição

funcionalista, qual um espelho invertido, teria imaginado um sistema sem atores. Um pensador

que talvez supere esse problema seja Simmel (1999). Seu conceito de "forma" é muito parecido

com o de "esquema" ou de "modelo" de Goffman. Para entender uma forma de socialização, por

exemplo, é necessário compreendê- la como um forma enquadrada, submetida a determinados

padrões, normativos ou não, de comportamento, colocando em movimento orientações recíprocas

particulares. Simmel vai enfatizar tanto o papel das competências ou das capacidades cognitivas

dos indivíduos, quanto a função de disposições e de sentimentos psicossociais na viabilização da

vida social. Vai insistir muito, inclusive, justamente nessas últimas categorias (vistas como

categorias afetivas) e na forma pela qual a afetividade e as emoções tornam as relações sociais

possíveis.

Podemos inferir que, nas formas de socialização, os momentos do pensar, do agir e do

sentir devem ser abordados de uma maneira processual e unificada, rompendo com um tipo de

pensamento que os separa. Os três momentos não seriam, no caso, instâncias separadas e

independentes correlacionadas apenas do ponto de vista de suas articulações — a relação entre

esferas separadas ocorre apenas através das articulações entre suas fronteiras. Haveria, assim, a

possibilidade de compreender melhor as relações entre ação-emoção-cognição e os processos de

identificação. A socialização não seria mais baseada na separação e na articulação de instâncias

(pensar, agir e sentir), e sim no postulado de que tais instâncias estão intimamente imbricadas.

Estaria implícita aqui uma relação de consubstancialidade entre o pensar, o agir e o sentir, isto é,

os três fenômenos seriam vistos como momentos de uma unidade: a identidade (Barbier e

Galatanu: 1998).

Contudo, ao contrário de Goffman, Simmel pôde perceber mais nitidamente, através da

teoria das formas, a atuação dos agentes na formação do sistema social. As formas de

socialização são o resultado das ações entre indivíduos, mas têm a característica de poderem

desenvolver-se independentemente dos objetivos dos indivíduos; há, portanto, uma autonomia da

forma, resultado da atividade socializante das pessoas, sendo assim uma espécie de unidade

objetiva de subjetividades que está a meio caminho entre as individualidades e as formas mais

objetivas do tecido social.

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50

Assim, como podemos perceber ao longo da análise, a identidade parece sofrer de uma

dualidade justamente porque o processo de identificação ocorre num mundo onde a individuação

possui uma dissimetria em relação à subjetivação. Se o indivíduo constrói sua identidade a partir

da socialização, o processo de identificação que formata sua "consciência de si" teria

necessariamente dois momentos: a primeira em relação a si mesmo e segunda em relação ao

outro. Os dois momentos seriam inseparáveis, mas seriam diacrônicos e... problemáticos: só

posso saber quem sou a partir do olhar e do reconhecimento do Outro, mas como obter seu

reconhecimento, fundamental para a consciência de mim mesmo, se sua experiência do mundo e

de mim mesmo não pode ser vivida por mim, e sim apenas a mim comunicada numa interação

social? Como garantir de vez a coincidência dos dois momentos? A resposta mais plausível seria

que jamais será garantida a coincidência entre a identidade atribuída ou real (para si) e a

identidade recebida ou virtual (para o outro). Se a identidade é socializada, isso significa que o

mundo interior de uma pessoa ou sua intimidade é também social; mas, o inverso também pode

ser verdadeiro: o valor mais social e público pode tornar-se parte ou um fantasma do mundo

interior de uma pessoa. O privado torna-se público, e o público, privado; o subjetivo torna -se

objetivo, o objetivo, subjetivo ou ainda, numa outra linguagem:

"essa inversão fazendo o ' mais íntimo' o 'mais social' não suprime a divisão de

si como realidade originária da identidade: ela o instala no próprio social,

abordando-o através da expressão individual dos "mundos subjetivos" que são

ao mesmo tempo "mundos vividos" e "mundos expressados", logo passível de

serem apreendidos empiricamente" (Dubar, 1991: 112, tradução nossa).

A dualidade, principalmente aquela fundada na distinção entre indivíduo e sociedade,

pode ser um bom ponto de partida; mas, se a identidade é socializada, parte-se do princípio de

que a dualidade é fundada numa semelhança de origem e estrutura — uma homologia — entre o

indivíduo e a sociedade. A homologia pode até ser um fato indiscutível, mas não impede o risco

de se transformar a dualidade em dualismo, isto é, numa separação intransponível entre

indivíduo e sociedade. O esforço de uma visão interdisciplinar da identidade seria no sentido de

impedir justamente a transformação da dualidade num dualismo — a eterna tentativa de se fundar

uma Psicologia Social é também uma forma de se resolver o mal-estar causado pela separação

entre indivíduo e sociedade.

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Podemos, enfim, chegar a uma definição sociológica da identidade: seria uma articulação

que engloba uma transação interna ao indivíduo ele mesmo e uma transação externa entre o

indivíduo, os agregados sociais (grupo, classe, grupos de status, profissões...) e o meio cultural

(valores, representações sociais, ideologia, imaginário...). A identidade, sendo socializada,

organiza componentes sociais e psicológicos no "interior" de uma estrutura afetiva e cognitiva

("pessoa") que permite ao indivíduo interpelar a si próprio e o mundo. Assim,

a identidade é o resultado ao mesmo tempo estável e provisório, individual e

coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural dos diversos processos de

socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as

instituições (Dubar, 1991: 111, tradução nossa).

A identidade possui, assim, o seu fundamento na intersubjetividade. Seria o resultado de

um processo dinâmico, cujo leitmotiv são as interações sociais, sendo multidimensional, mas

estruturada, e possuindo uma unidade diacrônica, justamente porque se baseia numa dualidade

constitutiva.

3. Transformações da Identidade

Mas por que então nós continuamos a sentir, apesar de a identidade ser uma "construção

social", uma unidade interior, irredutível ao Outro?

A resposta não é fácil. Numa hipótese "forte", a dualidade da identidade perpassaria toda

a história da humanidade, fazendo parte de nossa ontologia; contudo, iremos apostar, aqui, numa

hipótese "fraca", cuja defesa inclusive já esboçamos durante a argumentação, a saber: a dualidade

seria característica de nosso mundo, isto é, da Modernidade, em particular da

Contemporaneidade. Seria nossa ontologia de homens e mulheres modernos e contemporâneos. A

identidade seria socializada em qualquer época da história humana, é certo, mas sua expressão

dual seria histórica. A sensação de termos uma unidade interior ou algo transcendental anterior à

experiência — do tipo proposto por Kant ou mesmo uma essência que poderíamos chamar de

"Eu" — e de sermos, ao mesmo tempo, indivíduos separados da sociedade, isto é, de sermos

indivíduos-mônadas seria uma modalidade histórica de identidade.

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Ora, se toda a discussão acima está correta, vale a pena insistir ainda em algumas

conseqüências para o nosso fórum íntimo. Assim, se a identidade é baseada na intersubjetividade,

a "pessoa" é necessariamente "pública", até porque uma suposta essência interior, irredutível ao

mundo "externo", não poderia ser apreendida empiricamente. Nós aparecemos, em toda e

qualquer época, sempre de forma pública. Não há "substância mental", "unidade interior" ou do

"espírito", o que existe definitivamente são "pessoas". Nossa unidade não ocorre porque existe

alguma entidade interna, cujos conteúdos seriam suas únicas propriedades. O que temos "dentro"

de nós seria uma síntese de fragmentos de pensamentos, de sensações e percepções. Se existe

alguma unidade, ela seria menos uma coisa do que uma narrativa, isto é, uma história. Somos

uma estória na qual somos nós mesmos o sujeito. O pronome "eu" é a marca da trajetória do

indivíduo, o martelar constante das suas narrações de sujeito comunicativo e falante. O

pensamento reflexivo parece ser o aprofundamento de uma necessidade adaptativa primordial de

contar e recontar histórias. A identidade estaria, aqui, completamente dessubstanciada,

socializada e historizada.

O self — ou esse tipo de autoconsciência que é, ao mesmo tempo, uma intuição de que

nós temos uma unidade interior irredutível às interações sociais — foi um produto histórico que

surgiu em determinadas condições e não em outras. A individuação, amálgama de todos esses

eventos que conduziram ao self, surgiu a partir de condições bem determinadas, não sendo um

fato natural da antropologia humana. O eu puro

constitui a expressão de uma singular conformação histórica do indivíduo pela

rede de relações, por uma forma de convívio dotada de uma estrutura muito

específica (Elias, 1994: 32).

O eu puro é uma fabricação do individualismo, enquanto expressão histórica do processo

de individuação9. Nesse sentido, o tipo de autoconsciência sentida pelo homem moderno

9 Não se deve confundir o processo de individuação, explicado parcialmente pela divisão do trabalho social, com o surgimento do individualismo, que seria uma expressão histórica e particular do processo de individuação característico das sociedade ocidentais e européias. Individuação é a condição necessária, mas não suficiente, do individualismo. Pode-se imaginar sociedades nas quais o processo de individuação — influenciado, inclusive, pelo aprofundamento da divisão social do trabalho — seja bastante acentuado, mas que não ocasionou o surgimento de um individualismo moral, como o existente nas sociedades ocidentais (pensamos na China, na Índia e, de uma certa maneira, no Japão).

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"corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo

civilizador" (32). O self surgiu no bojo de privatizações de determinadas interações sociais, antes

públicas, agora reservadas ao fórum íntimo — a confissão seria um bom exemplo de privatização

de uma esfera agora tornada íntima. Tal privatização significou a necessidade histórica de se

organizar e de se valorizar a privacidade, gerando um modo singular de se organizar a

afetividade. Tal situação criou a condição moderna por excelência: a sensação de que temos uma

unidade interior apartada da "sociedade" e de que somos indivíduos isolados e independentes,

refletindo a radicalização de um processo de individuação.

A separação entre o indivíduo e a sociedade seria uma projeção histórica dessa especial

conformação psíquica. A necessidade funcional dos termos "indivíduo" e "sociedade" provém de

tal estruturação psicológica. E tal terminologia, digamos assim, está inscrita nas práticas

lingüísticas da sociedade moderna. Tanto "indivíduo" como "sociedade" são noções que surgem

historicamente e, portanto, não existiam enquanto tal em outras épocas e sociedades. Seu

surgimento possui uma afinidade eletiva com um determinado modo de vida, uma determinada

forma de socialização, uma determinada forma de produzir identificação... Estão relacionadas a

práticas que possuem uma história "gramatical" e que se materializam no uso dos pronomes

pessoais; práticas que incorporam sistemas de identidade. Tais práticas, juntas com outras,

conformam um "habitus":

esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de

que brotam as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere

dos outros membros de sua sociedade (150).

Tal habitus varia, para Elias, segundo o balanço histórico entre a identidade-nós e a

identidade-eu.

A identidade-nós seria, do ponto de vista ontogenético, mais primeva e baseada numa

socialização que acontece em um meio social onde predominam a família, a aldeia e a tribo

(147). A identidade-eu, e seu crescente predomínio, estaria relacionada ao desenvolvimento e à

modernização social das sociedades modernas. Ao nosso ver, o domínio da identidade-eu seria

um evento histórico de grandes proporções e completamente singular do ponto de vista da

história da humanidade. Seria uma série de privatizações de ordem lingüística, afetiva e

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axiológica ocorridas na identidade-nós, cujo processo esteve umbilicalmente relacionado ao

surgimento da noção de individualidade, isto é, do demiurgo das representações modernas: o

indivíduo autônomo.

Assim, na nossa civilização secular, o conceito de "pessoa" é identificado a um conceito

de si que seria portador de uma "unidade interior" ou "alma". Funcionamos por dentro de práticas

lingüísticas em que os outros nos situam e nós os situamos. Aprendemos a utilizar o pronome

"eu" dessa forma. Aprendemos a apreender a "pessoa" pública de forma privada. Aprendemos a

interiorizar e a internalizar uma representação da "pessoa" enquanto "unidade interior". A

dualidade de si, desse ponto de vista, seria um "reflexo" de uma exigência gramatical inscrita

historicamente em práticas lingüísticas e morais. O que aprendemos é uma representação

histórica de uma representação de si. Através da memória guardamos traços mnemônicos,

crenças, valores, sentimentos, etc., e tal memorização seria a base para exprimirmos e criarmos

uma unidade pessoal, colocando em prática uma representação de si.

Ora, tal representação não é algo que está oculto nas nossas entranhas, e sim uma

representação social. Ela é parte constitutiva da identidade moderna, isto é, da forma particular

e histórica pela qual os processos de identificação ocorrem na nossa civilização. Ela está inscrita

na linguagem, na história e na moralidade. O campo moral seria fundamental na formação da

identidade, em particular da representação moderna de si, pois as práticas morais, através das

representações sociais que as veiculam, estão inscritas em práticas lingüísticas que são

fundamentais para a formação da identidade. Os valores morais são traduzidos e internalizados

enquanto noções encharcadas de afeto, por isso são facilmente memorizáveis, aprendidos,

reproduzidos e tão impregnantes. Seria no campo moral, principalmente através da linguagem e

da comunicação social, que aconteceria a formatação de nosso particular e histórico “conceito de

si”. Tal representação (social) de si é o modo pelo qual percebemos este ser real: a pessoa

pública. Seria, assim, absolutamente moderno percebermos essa pessoa de forma privada, isto é,

como um indivíduo portador de uma "alma" irredutível ao mundo.

A representação (social) moderna de si é real, porque existe e tem uma eficácia na

formação de nossa realidade social, embora embace justamente a percepção da realidade da

pessoa pública. Mas, por causa disso, ela é produtora de uma gigantesca ilusão, isto é, da crença

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de uma essência individual? Sinceramente, não sabemos. O que sabemos, isto sim, é que tal

representação (social) de si é o produto histórico de um novo tipo de subjetividade, calcada na

individualidade. Ela é a base de nossa autonomia enquanto sujeitos e de nossa independência

enquanto indivíduos. Talvez ela seja uma ficção realista, uma crença mobilizadora essencial à

nossa identidade, isto é, à nossa busca compulsiva de sentido — busca que "inventa" e "constrói"

as próprias premissas da... busca. Sendo uma ilusão ou não, boa parte do esforço do pensamento

moderno foi o de desconstruir e desmistificar a idéia de uma essência individual, descentrando a

identidade e o sujeito na modernidade.

O universo moral dos (pós) modernos e seus processos de identificação difer em

significativamente daqueles das civilizações anteriores. Talvez, a diferença maior resida nesse

conflito instransponível entre o indivíduo e a sociedade. O conflito existe pelo fato de a sociedade

"morar" no indivíduo; mas não apenas por isso: o problema é que, na Modernidade e,

principalmente, na Contemporaneidade, a moradia não é bem quista, principalmente quando entra

em contradição com o desejo individual de unidade e totalidade; um desejo que leva a perceber a

identidade não mais como dada e sim como "construída"; um desejo que implica uma rotina

menos traçada por um destino pré-determinado do que condicionada pelo sucesso.

A identidade tornou-se, na verdade, um artefato e implica uma completa humanização da

natureza humana. O que era dado pela vida, agora se está exigindo que seja construído —

situação muito mais estressante e produtora de psicopatologias. Uma construção sem tradição e

sem pontos de referência, na qual quem oferece sentido à vida seria o indivíduo solitário, sempre

em busca do sentid o perdido, para parodiar uma fórmula famosa. Contexto, sem dúvida, de

intensa liberdade, mas uma liberdade perigosa, como percebeu Nietzsche, até mesmo liberticida...

O indivíduo pós-moderno libertou-se do "nós", parecendo ter uma capacidade ilimitada de

escolhas e possuindo um imenso poder; contudo, apesar disso, vive num eterno pêndulo entre a

embriaguez e o terror. Ele parece estar "condenado à liberdade", bem mais do que pensava Sartre.

Tal condenação é, ao mesmo tempo, seu privilégio e seu exílio (Guillebaud, 1995). Sua política é

a da ambivalência: de liberdade em liberdade, de fundamentalismo em fundamentalismo. Não há

política de identidade que dê jeito. A base do sofrimento pós-moderno (sofrimento

essencialmente baseado no fracasso e na depressão) está na sua liberdade. Sofrimento e liberdade

são provenientes da mesma condição, e isso é o grande paradoxo. Parece que Marx estava sendo

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intensamente pós-moderno quando diagnosticou: "o apelo para que abandonem as ilusões a

respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões"

(Marx: 46, 2001).

4. A identidade profissional

Reconhecer a pertinência da noção de identidade profissional significa admitir que o

campo profissional é capaz de produzir processos de identificação específicos de grupo durante a

socialização, principalmente aquela relacionada à formação profissional e à experiência

profissional (entrada no mercado de trabalho). Enquanto tal, a identidade profissional seria o

resultado das interações entre os indivíduos, os grupos e os contextos profissionais, realizando os

dois movimentos que percebemos na discussão geral sobre o conceito de identidade: uma

necessidade de se fazer reconhecer e outra de se reconhecer. A primeira necessidade tem um peso

todo especial, pois a identidade profissional não é pessoal e sim coletiva, inscrevendo-se em

representações e práticas que dependem, por sua vez, do contexto no qual estão inseridas e do

modo pelo qual são exercidas. Como toda identidade, teria cinco dimensões:

Ø é subjetivamente vivida e percebida pelos membros do grupo;

Ø é resultado da consciência de pertença ao grupo ? como tal, é a interiorização da

atribuição do grupo;

Ø define-se, inicialmente, através de um movimento em que a oposição e a diferença

em relação ao outro delimita o processo de identificação;

Ø pode ser apreendida via um conjunto de representações no qual se opõem traços

negativos e positivos;

Ø as atitudes e imagens exprimem-se de forma discursiva, revelando implícita ou

explicitamente um sistema de idéias ou visões de mundo.

A partir do que foi dito acima, acreditamos que todo processo de identificação possui uma

estrutura cognitiva vinculada ao pensamento representacional. Seria através deste último que o

indivíduo designa as modalidades de organização das representações que tem de si mesmo e das

que tem do grupo ao qual pertence. No caso da identidade profissional, o peso da representação é

considerável, pois todo processo de identificação exige um conhecimento, nem que seja um de si

mesmo; nesse sentido, o processo de identificação profissional é um ato cognitivo por excelência,

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utilizando o saber prático e o saber formalizado, adquirido na formação profissional, para a sua

consolidação. Para que isso aconteça, é necessário que os indivíduos sintam-se reconhe cidos e

valorizados. O reconhecimento identitário é um processo cuja formação estrutura-se num espaço

de identificação, o qual está inseparável de outros espaços, incluindo os de legitimação dos

saberes e das competências associadas às identidades profissionais. Portanto, o espaço da

atividade profissional é o espaço de reconhecimento das identidades profissionais.

Diferentemente de outros espaços identitários, o profissional não pode impor um habitus

permanente, nem mesmo uma homogeneização das identidades. O que ocorre é o surgimento de

uma pluralidade de identidades, condicionada pelo pluralismo de papéis sociais (aqui, papéis

ocupacionais). A vinculação da identidade ao papel social é um imperativo categórico no espaço

identitário profissional. Diante de cada contexto e das mudanças constantes na situação de

trabalho, o indivíduo pode fazer uma escolha identitária, mudando de registro, adaptando o perfil,

configurando atitudes e motivações, segundo as transformações do campo profissional. Claro, a

velocidade de modificação dos processos de identificação é lenta, se compararmos à rapidez na

qual se processa as mudanças de papéis sociais, mas, o que queremos enfatizar aqui, seria

justamente que, no espaços identitário profissional, o papel social sobredetermina a identidade.

Para entender melhor essa questão, precisamos trazer à tona o pano de fundo de todo esse

debate: o crescimento exponencial da individuação na modernidade. Como já tocamos no assunto

anteriormente, podemos resumir o raciocínio:

Ø a divisão social do trabalho é a "base material" da individuação. Quanto mais

desenvolvida, mais singularizada será a individualidade. A singularidade do

sujeito vem acompanhada da explosão na quantidade de papéis sociais;

Ø com o desenvolvimento da individuação, ocorre um descentramento do sujeito em

relação às suas objetivações materiais e simbólicas;

Ø a identidade sofre um desmembramento na sua constituição: não há mais uma

homologia entre o campo do sentido ? a identidade propriamente dita ? e o

campo funcional ? a identidade enquanto papel social. O que eu sou não é mais

necessariamente o que eu faço;

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Ø surge uma assimetria entre a socialização comunitária (campo da pertença) e entre

a socialização societária (campo da técnica, da racionalidade instrumental e dos

papéis sociais);

Ø o processo de constituição do ego não está mais conectado diretamente ao

processo de socialização;

Ø a identidade para si desconecta-se da identidade para o outro ? donde a profusão

de dualidades, dualismos e antinomias do pensamento moderno a respeito:

identidade virtual x identidade real (Goffman), sociedade x comunidade (Tönnies),

socialização comunitária x socialização societária (Weber), o I x o Me (Mead),

pessoa x identidade cultural (Erikson), mundo vivido x mundo sistêmico

(Habermas)...

numa sociedade baseada na solidariedade mecânica, o que existe é uma fusão (ou

pelo menos algo que se aproxima disso) entre comunidade e sociedade, entre

identidade e papel social, entre sentido e função, entre destino pessoal e trajetória

social ? a solidariedade orgânica desconecta o que antes era unificado: se antes

existia uma dualidade constitutiva na identidade humana, agora, o que existe é um

dualismo;

Ø a conexão entre o sentido e a função, entre a identidade para si e para o outro,

entre o íntimo e o manifesto, entre o privado e o público, entre a identidade

propriamente dita e o papel social torna -se menos um atributo dado pela

socialização do que uma "construção" socialmente encampada pelo sujeito. A

construção é um risco, pois pode acontecer ou não. A função pode ficar sem

sentido, e o sentido sem função. Pode acontecer o fracasso.

Num ambiente especializado como o espaço identitário profissional, é o papel social

(função) que subordina as interpelações simbólicas e de significação. Há um grande esforço de se

re-encantar a função, tornando-a significativa, ou seja, identitária. No mundo profissional, quem

garante o sentido do papel social da profissão é justamente a vocação. Ela faz a mediação entre a

identidade e o papel social no mundo profissional ? mediação de significação, principalmente.

Por isso, crise vocacional significa crise de sentido na profissão. No mundo moderno, há de

existir, entre o que sou e o que faço, uma solda, algo que amalgame tais esferas cada vez mais

dissimétricas. Contudo, aparentemente, as interpelações axiológicas do mundo vivido, para

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utilizar uma linguagem habermasiana, não conseguem acompanhar a profusão de papéis sociais

do mundo sistêmico ? a comunidade não acompanha a sociedade. As interpelações societárias

não só esvaziam de sentido a socialização comunitária, mas também, e isso talvez seja o

fundamental, fazem transbordar a produção axiológica do mundo social. O pluralismo de valor

não dá conta da exuberância do pluralismo de funções sociais. A oferta de significânc ia não

corresponde à demanda funcional do sistema. Há pouco sentido para muita função.

Claro, tudo isso não se resume a uma diferença de quantidade entre o sentido e a função

? tal fato é apenas um dos seus aspectos, além disso pode-se questionar o porque desse

desnivelamento na modernidade capitalista. Provavelmente, o problema tenha uma relação com a

forma pela qual o trabalho é organizado pela economia no capitalismo: perda do controle da

produção por parte dos produtores; fragmentação ocupacional no mundo do trabalho;

relativização do poder de alocação do mercado, principalmente do mercado de trabalho, e outros

fatores estudados principalmente pela sociologia neomarxista. Ou ainda: talvez o problema não

tenha uma determinação tão direta da "infra-estrutura"; pode ser que o modo como se constitui o

sentido do trabalho ? no nosso caso, a vocação ? na modernidade tardia tenha se esgotado;

talvez a deriva individualista da vocação tenha criado contradições que a impedem de suprir de

sentido a esfera do trabalho 10.

De todo modo, o fato é que o espaço identitário profissional possui uma decalagem entre

identidade e papel social. Diante do pluralismo das funções, temos o pluralismo das formas

identitárias (Dubar, 1992), cujo desenvolvimento é transitório e relacionado ao contexto do

trabalho profissional. A permanência da forma identitária vai depender da estabilidade normativa

e funcional do espaço de identificação profissional ? vai depender também da vocação, que

"prende" e "segura" a forma identitária. Mas, mudando o contexto, mudam os papéis sociais e as

formas identitárias (ou o modo pelo qual o profissional interioriza ou representa o que faz com o

que julga ser). Dependendo das mudanças que porventura ocorram no espaço identitário

profissional, logo, no contexto no qual as formas estão inseridas, é inevitável que a estabilidade

das formas identitárias dependa também das dimensões significativas da atividade profissional,

10 Podemos notar em Freidson (1998) uma preocupação em revitalizar o profissionalismo não só em relação às críticas produzidas por uma sociologia desconstrucionista da profissão, mas também em relação a um fato bem real: a crise vocacional das profissões.

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pois todo contexto profissional é um contexto de ação. Nesse sentido, podemos discriminar, ao

menos, três dimensões:

Ø a relação do profissional com a organização, as interações de trabalho, o sistema

de poder (normas e regras de conduta profissional ditadas pelo controle gerencial);

Ø a relação com o devir: balanço entre a situação concreta e atual vivenciadas no

presente pelo profissional e o seu projeto profissional ? entre a carreira real e a

carreira virtual ou desejada;

Ø a relação com as representações que o profissional utiliza para descrever seu

mundo na situação de trabalho, implicando a articulação entre os limites e os

desejos, obrigações e projetos pessoais.

Tais dimensões são sociais, logo, partilhadas pelo grupo. E, se o contexto de trabalho e as

dimensões da atividade profissional influenciam o espaço identitário, o mesmo podemos dizer da

conformação do grupo, pois este pode apresentar uma diferenciação sub stancial em vários níveis:

Ø nível institucional: as finalidades políticas que subentendem as práticas e as

representações profissionais;

Ø nível posicional: status, papéis e hierarquia funcional;

Ø nível interativo: os efeitos de grupo, as interações e os processos de comunicação e

de decisão;

Ø nível individual: os interesses, as motivações, as estratégias e as interpretações do

contexto.

Dada a transitoriedade das formas identitárias, além da sua dependência em relação à

estabilidade do espaço identitário profissional, consideramos que o conceito de habitus de

Bourdieu (1980) apresenta uma dificuldade em apreender as formas identitárias, embora seja

extremamente fecundo quando aplicado na discussão sobre identidade. Nesse sentido, para que

sua fecundidade permaneça e seja operacional, achamos necessário fazer algumas modificações,

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61

seja no seu alcance conceitual, seja na sua relação com outro importante conceito de Bourdieu, o

de trajetória social11.

Bourdieu define habitus como

sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas

predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, enquanto

princípios geradores e organizadores de práticas e de representações (tradução

nossa - 1980: 88).

Embora possa-se perceber alguma dialética numa estrutura que estrutura, mas que pode

ser também estruturada, o peso todo recai no sistema de disposições, logo, nas estruturas

herdadas do passado. Pois as práticas são comandadas "pelas condições passadas de produção e

adaptadas de forma antecipada a suas exigências objetivas", assegurando com isso "a

correspondência entre a probabilidade a priori e a probabilidade ex post" (105). Mas não

devemos nos iludir com a "abertura" trazida pelas noções de correspondência (mais "leve", por

exemplo, do que a de determinação) e de probabilidade (logo, com alguma possibilidade

randômica), pois isso não impede que ocorra uma "correlação muito estreita entre as

probabilidades objetivas (por exemplo, as chances de acesso a esse ou aquele bem ou serviço) e

as esperanças subjetivas (as 'motivações' e as 'necessidades')" (90). De certa maneira, "correlação

muito estreita" é quase um eufemismo de uma "determinação de última instância". Não que essa

correspondência entre destino e esperança não exista; ao contrário, ela pode ser aplicada a

diversas situações sociais ? o que criticamos, na verdade, é o seu alcance heurístico,

principalmente em campos sociais com um mínimo de espaço de manobra como o profissional.

Sem dúvida, o habitus assegura "essa espécie de submissão imediata à ordem que leva a fazer da

necessidade uma virtude" (90)... ma non troppo. Por isso, acreditamos que o conceito de habitus

pode e deve ser aplicado em situações de alto enquadramento normativo, em situações sociais e

sociedades que envolvam algum tipo de solidariedade mecânica (comunidades não-modernas) ou

baseadas na tradição (fundamentalismo); pode e deve ser aplicado na procura de invariantes

culturais ou de modelos cognitivos de longo alcance (analisar o racismo, o anti-semitismo, as

11 Seguiremos aqui as posições de Dubar (1991).

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relações de gênero...); contudo, em situações sociais onde há alguma liberdade de ação, onde a

estrutura de escolha é ampla, onde o enquadramento normativo é flexível, enfim, em diversas

condições sociais encontradas nas modernas democracias liberais, a aplicação do conceito de

habitus pode tornar-se uma camisa-de-força conceitual.

A noção de habitus tem uma história antiga (desde Aristóteles, passando por Santo

Agostinho), mas a base da conceituação de Bourdieu procede da tradição sociológica francesa,

em particular a inaugurada por Durkheim. O fundador da sociologia, ao falar de habitus, já dizia

que

há em cada um de nós um estado profundo no qual os outros derivam e

encontram sua unidade: é nele que o educador deve exercer uma ação

duradoura... é uma disposição geral do espírito e da vontade que faz perceber

as coisas sob uma luz determinada... em que o cristianismo consiste numa certa

atitude da alma, num certo habitus de nosso ser moral (In: Dubar, 1991: 65)12.

Entendemos que, nessa conceituação, a noção confunde-se a um processo de transmissão

cultural e de costumes. Apesar do conceito de Bourdieu ser herdeiro dessa visão, possui uma

vantagem: o habitus é uma interiorização ativa, redefinindo as relações entre formas sociais e

predisposições individuais. É o que Bourdieu vai chamar de "ativação do passivo". É uma

teorização mais dialética, embora fique ainda excessivamente presa à reprodução social. Mas há

ainda um espaço para um jogo entre vontade e determinação, afinal o habitus é o produto de uma

trajetória, e não de uma condição social. E, por causa disso, pode-se encontrar dois lados na sua

constituição: um objetivo, produto das condições objetivas (filho de camponês terá um habitus

camponês); um subjetivo, impregnação de outras interpelações (filho de camponês que foi pra

cidade grande virou operário e, depois, adquiriu habitus de classe média).

Embora o conceito de habitus tenha essa flexibilidade, integra num mesmo movimento

homogêneo duas lógicas que são diferentes e, como vimos na nossa discussão anterior,

assimétricas: não há uma integração dada e pacífica entre a identidade para si e a para o outro. O

habitus produz uma articulação problemática entre uma orientação estratégica (papel social e

12 Ver Durkheim (1969: 37)

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mundo sistêmico) e uma posição relacional (situação num mundo de interações sociais),

resultante da conexão entre uma trajetória social e um sistema de ação. No espaço identitário

moderno há duas lógicas que discriminam a identidade social: a lógica estratégica e a relacional.

Posição e disposição não são homólogas. Isso significa que a trajetória social possui uma dupla

articulação: a primeira aparece na relação entre trajetória e sistema, pois o encontro entre uma

trajetória social e um dado sistema não significa necessariamente que o resultado será o

prolongamento da primeira (consolidação da identidade) e a reprodução do segundo ? o

resultado estará no campo da probabilidade e dependerá fundamentalmente do contexto. Nesse

esquema, trajetória não se subsume a uma posição objetiva, podendo ser considerada como um

recurso subjetivo ? o indivíduo, ao acionar sua trajetória para resolver um problema, faz um

balanço subjetivo de suas capacidades para enfrentar os desafios de um dado sistema de relações

sociais. A segunda articulação surge quando examinamos trajetória e estratégia de ação do

sujeito. Não há necessariamente uma harmonia entre o projeto (futuro da trajetória) e a trajetória

(passado cristalizado). O passado não determina mecanicamente o futuro. Mesmo o passado não

pode ser percebido objetivamente, dada as condições subjetivas do presente. Assim, uma

trajetória passada não corresponde necessariamente a uma estratégia presente (ou projeto13), cuja

direção aponta para um futuro ou para uma expectativa subjetivamente construída. Nesse sentido,

a identidade pode ser entendida como o encontro entre trajetórias socialmente condicionadas e

sistemas de ação socialmente estruturados ? ou numa linguagem menos estrutural: a identidade

social é o produto da história do sujeito e produtora de sua história futura.

O que criticamos, portanto, no conceito de habitus é a possibilidade de articular, na

modernidade, trajetória x sistema e trajetória x estratégia num mecanismo único e homogêneo.

Na verdade, criticamos a possibilidade de articular função e sentido, papel social e identidade,

sem que tal articulação não revele uma dissimetria no processo de identificação. Primeiro, não

podemos pensar a identidade sem imaginar o indivíduo inserido em algum sistema de ação. A

identidade social, nesse caso, sofre interpelações das instituições e das interações entre os

indivíduos. Tais interpelações criam o que Goffman (1975) chamou de etiquetagem. Segundo, há

o momento da interiorização ativa, por parte do indivíduo, dos valores e das normas. Não há

como pensar esse processo sem conhecer a trajetória social utilizada pelo indivíduo como recurso

13 Ver outra abordagem sobre projeto: Velho (1999: 13-39).

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para construir sua identidade para si. Em suma, acreditamos que a interiorização dos modelos

normativos e a exteriorização das práticas não podem ser colocados num mecanismo único; ou

ainda: a dimensão biográfica, temporal e subjetiva (continuidade do sentimento de pertença e os

sentidos das trajetórias individuais) possui uma relação assimétrica e contraditória com a

dimensão interativa, espacial e objetiva (reconhecimento das posições estruturantes)14.

Assim, o habitus, re-configurado através do reconhecimento da dupla articulação da

trajetória social, pode ser aplicado no estudo da vocação, cujo núcleo identitário é mais estável e

permanente do que o das formas identitárias. Por exemplo: a vocação moderna, alicerçada no

individualismo democrático e liberal, é de fato um habitus. A vocação necessita de um conceito

que privilegie o eixo temporal, por isso a utilidade da noção de habitus ? como tal, envolve

representações que são independentes do contexto. Já as formas identitárias priorizam o eixo

espacial, estando sempre situadas, e envolvem representações dependentes do contexto. São

formas transitórias de identificação. Não são identidades estabelecidas; são produtos instáveis.

5. A questão da Vocação

a) Vocação e individualismo

No tópico anterior, já abordamos, ainda de forma inicial, a noção de vocação.

Argumentamos que a vocação faz uma mediação entre a identidade e o papel social no mundo

profissional. Aceitamos a hipótese de que sentido e função separam-se no desenvolvimento da

divisão social do trabalho e no processo de individuação e que, assim, a vocação teria a função de

recompor a unidade perdida. Recomposição esta que significaria a reconstituição constante do

sentido do trabalho, daí a sua importância identitária. Mas, essa argumentação ainda privilegia

demasiadamente o aspecto, digamos assim, funcional da vocação ? será que o exame de sua

história mostrará outras características que não sua suposta função no âmbito da esfera do

trabalho? Achamos que sim, principalmente ao analisarmos a conexão, pelo menos na

modernidade, entre vocação, igualitarismo e individualismo. Seria justamente a estruturação

histórica desse trio que está em crise no mundo contemporâneo, tornando a escolha vocacional

14 Giddens (1987) propõe, na sua teoria da estruturação, que esses dois momentos constituem uma dualidade fundadora do campo social.

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um problema. Estruturação esta que possui uma raiz religiosa que definiu inicialmente o alcance

da vocação. Nesse sentido, a vocação estava relacionada, na origem, à ordem do sagrado, sendo

um apelo (beruf, em alemão; calling, em inglês) de uma transcendência. Aqui, o apelo divino é

igualitário e individual; igualitário, porque é uma inspiração que não respeita hierarquia social ?

o eleito pode ser qualquer um; individual, já que o apelo interpela a pessoa, sua singularidade e

seu fórum íntimo. Não é socialmente elitista, sendo uma espécie de eleição espiritual.

Randômica, pois não se sabe bem quais foram os desígnios divinos para a eleição ?

simplesmente cai, feito um relâmpago em dias de chuva. A eleição, todavia, não é lotérica, pois o

eleito não é um feliz sorteado, e sim um escolhido. A escolha vem do alto e de longe. É

transcendente e heteronômica, afinal, quando surge o apelo, chega sem avisar, impondo

mensagem e conduta. Não é uma escolha livre, muito pelo contrário, pois o apelo aporta de fora

pra dentro, transformando a pessoa à sua revelia, que muda sem desejar, sem mesmo saber...

(Schlanger, 1997: 18)

Mas, como ocorre a conexão entre vocação, igualitarismo e individualismo? O amalgama

do trio é a própria lógica religiosa, o cristianismo. A igualdade funda-se na relação igualitária que

todos têm diante de Deus ? embora extra-mundana, visto que a igualdade só será realmente

garantida no além, já se sinaliza a sua valorização. A valorização da individualidade funda-se na

crença de uma alma individual, trazendo inevitavelmente uma va lorização do indivíduo, já que

este possui no seu âmago o sagrado, a epifania do sopro divino. Por isso, a salvação não

acontecerá mais através da mediação de um "povo eleito", e sim de forma individual, por

intermédio da relação entre o indivíduo e Deus 15. As Confissões de Santo Agostinho seria a

síntese e a conseqüência dessa concepção. O Cristianismo seria, em tese, a raiz ? ou, pelo

menos, uma das raízes ? do igualitarismo e do individualismo hodiernos. Seria, assim, um tanto

inevitável que a vocação moderna bebesse desse manancial, embora a economia vocacional tenha

mudado bastante a partir do momento em que a vocação tornou-se laica e intra-mundana. Então,

a autonomia substituiu a heteronomia, fundando-se agora numa escolha livre, e o que se tornou

vital foi a própria vida, encarnada no trabalho e no papel social. Pode-se dizer que, a partir desse

momento, ocorreu uma democratização geral da vocação. Agora, não há mais propriamente

eleição, pois a vocação é uma questão de todos e para todos. É, literalmente, uma afirmação

15 Ver essa discussão de uma forma mais aprofundada em Dumont (1985).

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individual: ? para me afirmar de maneira ativa, escolherei uma ocupação produtiva, uma

atividade pela qual nela me reconheço; escolherei por afinidade, por gosto, por vontade, por

conveniência íntima. Ora, em comparação com a vocação cristã, estamos diante de outra vocação,

de outro etos vocacional, não mais baseado numa eleição divina e sim numa realização de si.

A realização de si, isto é, a afirmação de um ego no mundo, impõe a questão da

felicidade. Não que o tema da felicidade não existisse; ao contrário, a felicidade existia, mas não

aqui, e sim lá na terra de Deus. A felicidade está agora aqui e ao alcance de todos ? essa é a

maior promessa do sujeito iluminista. A vocação é um caminho para a felicidade terrena, única

que verdadeiramente importa, já que o mundo não é mais perpassado pelo sagrado ? o mundo é

do próprio mundo, é laico. Ser feliz é, assim, um sintoma da realização egóica. A vocação torna-

se a busca pela felicidade, já que é o reencontro do indivíduo consigo mesmo. O que se

reencontra? A atividade e a potência que existem em todo sujeito. Ao realizá-las, o sujeito torna

concreta suas disposições inatas, exercitando suas aptidões. Garante-se a autenticidade, um valor

que será doravante procurado com obsessão. Realizando sua potência, o indivíduo patrocina a

realização dos possíveis através da suprema liberdade do sujeito: a escolha. Escolhendo, doma-se

o destino ? a vocação moderna é a vontade de controle do destino. Seria uma das respostas

possíveis para uma questão tipicamente identitária: o que fazer de mim e como viver? A resposta

é individual, embora não seja, pelo menos por enquanto, completamente intimista e privada ? o

romantismo tentará esse movimento de privatização da vocação, causando uma explosão de

angústia diante de tal responsabilidade e do medo do fracasso.

O ego torna-se o grande valor ? seu fundamento é a igualdade. A lógica igualitária

apenas se realiza completamente se e somente se o indivíduo é tomado como fundamento. Pode-

se imaginar a igualdade entre grupos (etnia, classe...), mas nada garante que, dentro do grupo,

exista igualdade. Se o ponto de partida é o indivíduo e se todos são iguais, garante-se não só a

igualdade entre grupos, mas também entre os indivíduos do grupo. Igualdade, assim, só pode ser

igualdade entre indivíduos. Sua garantia é a independência individual16. O desejo de se realizar,

desse modo, inscreve-se num novo sistema de permissões e de exigências, afirmado

16 Por isso, pensar absolutamente a igualdade torna-se logicamente um pensamento monadológico. Num regime de absoluta igualdade, a absoluta independência do indivíduo corresponde à absoluta independência das mônadas, como pensou Leibniz.

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politicamente pelo individualismo liberal, que eclode no final do século XVIII. A projeção moral

dessas transformações aparece na idéia de que cada um tem o direito de levar sua vida como bem

lhe aprouver; o direito de cada um em ter uma existência que não seja estranha ao seu desejo e ao

seu gosto. Ora, para isso, a realização de si não pode fundar-se apenas na igualdade, mas precisa

também de valor caro para a modernidade, a liberdade. Na interpretação liberal (Schlanger,

1997), a vocação torna-se a liberdade de ser tudo o que podemos ser, desenvolvendo nossa

potencialidade. Volta-se o tema grego e aristotélico da enteléquia ? vocação torna-se a forma

que determina a transformação de um sujeito: realização de si, perfeição de si. A partir desse

momento, vocação toma o sentido de papel e projeto de vida: a necessidade de desenvolver uma

essência, guardada enquanto potência no coração da individualidade, que se realizará na trajetória

do sujeito ? a prova do sucesso dessa missão não será a eleição do indivíduo e sim a

manifestação concreta de sua felicidade.

A realização de si não pode ser consumada passivamente, por isso seu lugar por

excelência é a atividade. A vocação realiza-se no trabalho ? na atividade produtiva. Assim,

ocorre o seguinte fato moral: conecta-se, através da vocação, a ética ao trabalho ? a felicidade,

enquanto realização de si, conquista-se na atividade do trabalho. A produção de bens é conectada

à intimidade do indivíduo ? a vocação tem uma dupla face, relacionando o privado, esfera do

sentimento e do ego, à esfera pública do trabalho. Contudo, esse tipo de conexão moral dada pela

vocação não é monopólio da modernidade, possuindo sua origem no cristianismo (Weber, 1987),

pois quem a relacionou ao trabalho foi justamente Lutero e a Reforma Protestante. A noção de

vocação permite a Lutero transpor os valores ascéticos religiosos da esfera monástica à vida

mundana, passando-se da vida contemplativa à produtiva. Assim,

ao contrário da ascese monástica medieval, que significa uma fuga do mundo,

temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda a força psicológica

dos prêmios religiosos para o estímulo do trabalho, segundo critérios de maior

desempenho e eficiência possíveis. O elemento ascético age como inibidor do

gozo dos frutos do trabalho, sendo o desempenho compreendido como atributo

da graça divina e um fim em si (Souza, 1999: 28)

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Mas a visão luterana ainda é estática, pois vocação não significa transformação, e sim

conformação ao apelo, à situação determinada. Foi o calvinismo que dinamizou a vocação,

através da doutrina da predestinação, fixando no imaginário do protestante o imperativo de

realização, de sucesso, de procurar compulsivamente de algum sinal de eleição. Por causa do

ascetismo transposto ao mundo mundano, a procura do sucesso é distanciada ? não há bazófia

? e ditada pela responsabilidade. O risco é calculado, gerenciado e controlado. Sendo o êxito um

sinal divino, não há por que gozar e consumir o que foi realizado, muito menos transformar o

sucesso em fruição simbólica. A vocação não relaciona, aqui, o trabalho ao desejo pelo trabalho,

entre o que se é e o que se faz. Não é importante gostar da atividade, pois o investimento pessoal

no trabalho é um imperativo categórico que vem de cima, de uma conformação religiosa, e não

de dentro, de uma determinação egóica. Quando, enfim, soltou-se as amarras religiosas, não

havendo mais a necessidade de se separar o espiritual do psicológico, o investimento pessoal do

desejo, a procura pelo sucesso ficará incontida, sem o encanto do religioso. A partir de agora o

espiritual é a psique e as interpelações morais/religiosas têm conotações psicológicas. Mas essa

vocação que surge do desencantamento do mundo é uma degradação da vocação calvinista? Ao

contrário de Weber, pensamos que a vocação moderna não seja um empobrecimento da

calvinista, e sim uma re-configuração, uma renovação laica. A novidade estaria inscrita na junção

estabelecida entre pólos antes inconciliáveis: escolha e desejo, vontade e projeto, consciência e

natureza. Embora tenha sua origem na religião, a vocação moderna, enquanto longo processo

histórico de desenvolvimento, não se reduz à sua gênese. Ela é, de fato, uma inovação. A vocação

tornou-se, enfim, uma questão de identidade.

Na ética calvinista, o que importava era a aceitação do traba lho e não a transformação

deste em objeto de desejo. A vida era uma tarefa e não um empreendimento. Era o trabalho pelo

trabalho; agora, o conteúdo do labor é fundamental. A responsabilidade colocava o indivíduo

diante do Criador; agora, a pessoa é responsável de si mesma. Ela comanda seu destino, sendo

assim juiz de si própria. Agir, fazer, criar tornar-se-ão fundamentais. Não é mais o equilíbrio ?

fruir a experiência de um estado de ser ? e sim a dinâmica que conta e vale a pena. Se a raiz da

vocação moderna está inscrita na religião, seu modelo é a virtú renascentista. Modelo,

convenhamos, exigente e que produz o seguinte paradoxo: se a vocação moderna é democrática e

universal, ao mesmo tempo ela singulariza, pois, se o leitmotiv é a criação, pode-se imaginar que

muita gente não terá condições e mesmo aptidão a criar. Uma vocação baseada no modelo

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renascentista, isto é, na atividade artística ou do cientista não contrariaria a sua pretensão

democrática? Afinal, seria apenas uma minoria que teria condições de realizar esse objetivo.

Parece que, curiosamente, a idéia igualitária e universalista da realização de si possui como

determinação uma vocação singular e restritiva, pelo menos no caso da ciência e da arte.

Tal paradoxo levará diversos autores a criticarem a vocação moderna, entre os quais,

Rousseau que será um dos críticos mais ferinos da escolha vocacional (Schlanger, 1997: 42).

Denunciará, assim, a ilusão de uma vocação universalista e democrática e, ao mesmo tempo,

excludente e elitista. Mostrará que o pano de fundo da escolha vocacional não é tão nobre como

alardeiam ? não é o talento, o dom que determina a escolha, e sim o desejo de ascensão social.

Rousseau possui simpatias pronunciadas pela tradição ética do estoicismo; por isso, pensa a

felicidade como um equilíbrio e um estado de ser, uma plenitude desconectada da ação e do

desejo. Ora, o imaginário da vocação vai de encontro a essa moral pela qual a anulação de si ou a

abolição do ser é que leva à felicidade. Como, dessa forma, não ser contra a vocação moderna? O

mito vocacional está alicerçado no desejo, cujo estatuto mudou consideravelmente na

modernidade. A realização plena de si é uma realização plural e constante de si ? mais

felicidade, mais gozo, mais tudo. No cerne da vocação moderna está embutida o desdobramento

"pós-moderno" do hedonismo. Rousseau desmistifica a ilusão de que a vocação consegue, através

da realização do talento ou do dom, resolver a contradição entre o sujeito e sua biografia, entre

sentido e função, entre identidade e papel, para utilizar nossa terminologia. Seguir um suposto

dom, geralmente, leva ao fracasso. Como evitar de se enganar a si mesmo? Como saber

realmente que esse suposto talento não é uma coisa passageira? Pensar que é possível escolher

livremente suas disposições e aptidões é um mito que pode levar à infelicidade e à desgraça, dirá

Rousseau.

Se Rousseau foi um crítico mordaz da vocação, existiram autores que fizeram dela uma

verdadeira apologia, a tal ponto, que a defesa radical da vocação moderna produziu uma crítica

da profissão. Para Fourier (Schlanger, 1997: 64), por exemplo, a profissão interrompe o contínuo

desabrochar das potencialidades humanas. Não há uma vocação, mas vocações, pois o espírito

humano é plural e diverso. A profissão fixa o que é flexível e rotativo, estabilizando justamente o

desejo e a realização de si. A partir da fixação profissional, não se pode mais experimentar tudo,

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mudar tudo, pular de uma atividade para a outra17. O que está implícita nessa posição é a

passagem da defesa da igualdade social à igualdade cognitiva. Todos são iguais socialmente, mas

também cognitivamente ? todos podem contribuir para o desenvolvimento do conhecimento

humano. A sociedade precisa realizar esse dado natural da espécie humana. Por isso, Fourier será

contra a especialização e a divisão social do trabalho, pois limitadores da potencialidade humana.

De todo modo, a crítica ou a apologia da vocação são sintomas da consciência de um fato:

a questão de ser e a de fazer estavam, desde então, separadas e dissimétricas. A vocação seria

uma resposta eficaz a esse problema? Talvez não seja a única, mas foi e é a predominante. Ela

tenta juntar identidade (aqui, entendido como conjunto psicológico de traços, aptidão, gosto e

talento) e papel social (conjunto de interpelações sócio -econômicas); natureza e cultura: dom +

aprendizado; escolha e disposição: escolhi a medicina ou isso não podia ser de outra forma, já

que sou o que sou? A vocação junta duas formas de liberdade: a de escolha e da decisão

voluntária, e a de ser um ser e de realizar sua ontologia. Tenta respeitar, ao mesmo tempo, a

autonomia do sujeito e a independência do indivíduo. Enfim, amalgama preferência e talento,

envolvendo num equilíbrio geralmente frágil, democracia e elitismo. Tais junções, pelo menos

atualmente, são problemáticas. Pode-se argumentar, via economia política liberal, que a junção

entre preferência e talento será assegurada pelo mercado e não necessariamente pela vocação. Ou

ainda se fazer uma crítica dos sintomas: a vocação moderna fracassou, não oferecendo mais

sentido ao trabalho. A alienação do trabalho dos de baixo continua e se perpetua; o enfado dos de

cima aumenta e continua. A vocação não evitaria a reificação do talento: aptidão sem desejo,

competência sem prazer ? o mundo moderno descobriu estarrecido que satisfação pessoal pode

estar desvinculada do sucesso profissional (1997: 86). Nesse sentido, pode-se dizer que a

representação histórica moderna da vocação está virtualmente desaparecida. Desemprego,

miséria, flexibilidade no trabalho, reestruturação produtiva, tudo isso coloca em questão o sentido

vocacional. Contudo, a referência imaginária da vocação continua e sobrevive e, pelo menos

enquanto representação, guia as condutas das pessoas. Talvez, a profissão seja o único

depositário da vocação, embora o tema da crise vocacional na profissão seja recorrente, inclusive

com grande repercussão na mídia.

17 Vemos esse tema da polivalência humana, isto é, da capacidade de se "pular de uma atividade para a outroa" na utopia comunista do jovem Marx (2001).

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Mas, vivenciamos realmente uma crise geral da vocação moderna? Como isso aconteceu?

Sem esgotar a questão, tentaremos discutir alguns lados do problema, principalmente esboçando

uma hipótese de que a vocação está em crise porque não consegue dar conta dos desafios que um

novo tipo de individualismo vem impondo ao mundo contemporâneo. O sistema vocacional

moderno esteve sempre imbricada a um tipo de individualismo que chamamos de "moderno" ?

o novo tipo de individualismo, referido acima, chamamos de "contemporâneo". Há um valor,

também formador do individualismo, que ilumina a formação da vocação moderna: a disciplina.

O seu nascimento representou o nascimento de um mundo onde o controle do corpo passa pelo

controle da "alma". Um mundo onde a tradição vai aos poucos perdendo sua força normativa,

dissolvendo-se no "desencanto do mundo". Um mundo comandado pela expansão de uma ética

baseada no individualismo. A Reforma trará o paradigma emocional da disciplina : conflito e

culpabilidade; o Espírito do Capitalismo, o indivíduo-empreendedor, a busca da felicidade na

competição e nos mercados. A moralidade vai afastando-se da emoção. A luta pela acumulação

de riquezas não entra mais em contradição com a ascese e o comportamento repressivo. A

economia liberta-se da moral. A rotina, ao perder de vista a tradição, torna-se vazia – o

hedonismo, aos poucos, vem preenchê- la. Mas a disciplina ainda guarda uma relação de

dependência com o mundo tradicional, pois ainda impõe limites à plena soberania do sujeito. A

repressão sexual e a obediência disciplinar respeitam a tradição ? como a tradição, a disciplina

vem de fora. A culpabilidade lembra sempre o vínculo com o passado, mesmo que já seja cada

vez mais por um processo neurótico; o conflito reflete um sintoma de ruptura com o passado, mas

apenas para reafirmá- lo de forma repe titiva. E, apesar do crescente hedonismo, o indivíduo-

soberano possui claros limites, navegando apenas entre o permitido e o proibido. A vocação

moderna, através da disciplina, ainda tem um pé na tradição...

Contudo, o crepúsculo da tradição vai-se anunciando ao longo da história da

modernidade. Já no final do séc. XIX, Nietzsche, com estardalhaço e algum desespero, anuncia a

vitória do indivíduo-soberano. Anuncia o individualismo contemporâneo. Um ser sem guia, cada

vez mais sem referências externas, julgando o mundo por si e de si mesmo. Um indivíduo , avant

la lettre, que não tem destino, faz o seu destino; que não percebe sentido no mundo, projeta seu

sentido. Uma pessoa sem Deus e sem Absoluto guiando sua vida; nada de Fora para lhe dizer o

que se deve ser e como deve se conduzir. Sua forma de estar-no-mundo passa pela exteriorização

da sua interioridade. Ele não é mais um ser, é um ente. O indivíduo-soberano encontra seu

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momento de realização histórica na dita "Revolução de 68". A partir dessa explosão, a

individualidade transformar-se-á continuamente. A interioridade do indivíduo será menos regrada

pelo duo permissão-proibição do que pelo abismo entre o possível e o impossível ("é proibido

proibir" – lembrar sempre dessa palavra-chave da radicalização do individualismo). Os

comportamentos passam a ser balizados menos por uma obediência disciplinar do que pela

decisão e pela iniciativa pessoais. Tal radicalização da liberdade individual corre pari passu com

a instauração da sociedade de consumo. A pessoa não acumula tanto, não mais se reprime; ela

consome, exterioriza-se. Não age mais conformada a uma ordem externa; age utilizando seus

próprios recursos, suas competências e aptidões cognitivas. Ela está só, mas está "livre". Fabrica

projetos, procura motivações, pede comunicação. Não vai ter mais medo da culpa, pois ficará

apavorada com o fracasso. "68" significará o deslocamento normativo da culpa para a

responsabilidade. O indivíduo começará a sentir o peso da liberdade e da soberania da

individualidade. Estamos em plena radicalização da modernidade; estamos na "pós-

modernidade".

Pode-se resumir, enfatizando apenas alguns aspectos, tais transformações no imaginário

ocidental da seguinte forma:

Ø boa parte do imaginário identitário "pós-moderno" formou-se na educação de

massas. Educação voltada para o mercado de trabalho, a competição, a

qualificação profissional. A profissão é a aspiração de mobilidade social. Seria,

também, uma aspiração à autonomia e à independência individual. Encarna uma

sensibilidade igualitária baseada no mérito individual ? mas não existe aqui

contenção ética, pois estamos diante de uma vocação sem deontologia;

Ø a pedagogia formatou a radicalização do individualismo através principalmente da

valorização da concorrência.. Houve no imaginário social uma supervalorização

da competição. Um culto à performance (Ehrenberg, 1991). Torna-se uma

"obrigação" a visibilidade da subjetividade. Produz-se uma ode à visibilidade:

desde o acting-out até a visibilidade dos excluídos através da violência (torcidas

organizadas, gangues de bairro, tribos urbanas...). Num sistema competitivo

democrático, o indivíduo precisa mostrar-se, pois somente tornando transparente a

sua performance pode ser julgado. Na competição, o indivíduo encontra a justa

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73

avaliação. Assim, a pedagogia da concorrência reverteu um antigo tabu: a

concorrência não é mais vista como antagônica à justiça. Os "velhos" sistemas de

solidariedade precisavam proteger o indivíduo dos efeitos perversos da

concorrência, pois pensava-se que era fonte de desigualdade; agora, a justiça é

produto da concorrência. Ocorre então um deslocamento da sensibilidade

igualitária: da solidariedade social para o egoísmo da justa concorrência, da

preocupação com o acesso dos mais fracos a uma vida digna para o modelo

esportivo do "vença o melhor". Paradoxalmente, mesmo num mundo cheio de

incertezas, o risco é valorizado e colocado como o preço da liberdade;

Ø o pano de fundo de toda essa nova situação: a fragmentação da existência. O

indivíduo depende apenas de si mesmo para vencer na vida. Sozinho, produz a

construção solitária de sua performance. Tenta a todo momento construir a si

mesmo. Agora, a identidade é uma construção individual, isto é, uma

responsabilidade do indivíduo. O destino é uma construção idiossincrát ica: não

tem raiz no passado, nem aponta para o futuro, firma-se no presente, no aqui e

agora. Estranha situação: a identidade é social, mas sua expressão histórica

aparece firmemente ancorada na crença de que sua formação depende apenas do

desdobrar da individualidade. Ocorre, assim, a desvalorização dos atores coletivos.

A busca da felicidade e de uma vida digna é uma tarefa que prescinde de ações

coletivas;

Ø valorização do sucesso. Novamente, outra quebra de tabu: o sucesso não é mais

visto com desconfiança. Não é mais percebido como uma ilusão, virou norma de

conduta. O sucesso é individual e prova de reconhecimento não mais de Deus,

como na Reforma Protestante, mas da sociedade. Seria o sinal mais evidente de

que a competição produziu justiça. Cria-se a ideologia do empreendedor, base

volitiva do sucesso. A busca da felicidade é um empreendimento. O acesso ao

empreendimento é universal. Só é preciso vontade. O "empreendedorismo" é a

mais nova forma de voluntarismo na contemporaneidade. Seria a filosofia de vida

de uma determinada classe média. A ênfase recai completamente na defesa da

independência do indivíduo;

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74

Ø O indivíduo é responsável. Antigamente, admitia-se a responsabilidade, agora

exige-se. Todos devem-se comportar como indivíduos responsáveis. A

responsabilidade é um componente essencial da vocação profissional. Crise de

responsabilidade equivale a crise de sentido vocacional. Mas o fracasso, também,

é individual. Aos poucos, vai tornando-se um handicap, principalmente o fracasso

escolar e o profissional. De handicap a neurose, um pulo: a pedagogia transforma-

se também numa terapêutica do fracasso. A doença do fracasso é a doença da

responsabilidade. Ocorre o declínio do conflito no espaço da identidade

(Ehrenberg, 1998). A histeria, doença do conflito, desaparece de cena e quem

domina é a depressão, doença do fracasso;

Ø o consumismo torna-se uma moral da felicidade. Seria também uma forma de

exercitar a liberdade individual. A poupança deixa seu trono e o Espírito do

Capitalismo passa por uma reforma hedonista. Consumir significa também

exteriorizar-se, valorizar-se e tornar-se visível. O hedonismo é o novo princípio de

realidade. Vai modelar principalmente as expressões artísticas e de vanguarda. As

identidades não serão mais construídas obrigatoriamente via a repressão sexual. A

liberalidade sexual e as descobertas de novas formas identitárias sexuais estão

cada vez mais condicionando os processos de identificação. O que está havendo é

uma transformação da intimidade (Giddens, 1992);

Se a vocação moderna possui uma relação intrínseca com o individualismo moderno, qual

tipo de vocação corresponderá ao individualismo contemporâneo? Ou, simplesmente, estamos

assistindo ao fim da vocação tout court? Estaríamos, por outro lado, imersos numa fase de

transição na qual a vocação vem sofrendo transformações ainda um tanto imperceptíveis? Se a

disciplina esclarecia vários aspectos do individualismo e da vocação modernas, o hedonismo,

como um dos valores constituintes da "pós-modernidade", teria uma afinidade com que tipo de

vocação? O movimento de sentido na vocação é de dentro pra fora, da identidade para o papel

social, mas, se o que existe agora é o domínio cada vez maior do papel social, seja na sua

pluralidade, seja na sua funcionalidade, qual seria a repercussão disso tudo na vocação?

Esboçaremos algumas hipóteses, admitindo que seu lado especulativo não responde, de fato, as

questões formuladas:

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75

• a vocação moderna está desaparecendo, inclusive enquanto representação

dominante da escolha profissional. Rousseau venceu: a escolha vocacional

é baseada menos numa ética do trabalho do que num desejo de ascensão

social;

• por enquanto, não há substituto concreto, daí a sensação de crise

vocacional, de crise de sentido;

• enquanto não estiver clara a redefinição dos sentidos do trabalho, não

haverá re-configuração dos sentidos da vocação;

não há ainda na conjuntura mediações entre individualismo contemporâneo, redefinição

dos sentidos do trabalho e a vocação. Nossa impressão, é a de que, independentemente de

qualquer juízo de valor, o novo individualismo prescinde de mecanismos vocacionais. Com isso,

a mediação entre identidade e papel social, na esfera do trabalho, precisa de outra modalidade

identitária, diferente daquela embutida na vocação moderna (o mercado?);

sem vocação, vemos se esvaziar, na profissão, a importância da deontologia. O bom

profissional será aquele que obteve algum sucesso que, enquanto tal, terá como critério o acesso

ao mercado de serviços ? não escolho, por exemplo, oftalmologia por algum critério vocacional,

mas sim porque esta disciplina tem uma resposta de mercado;

b) Vocação e profissão

Neste tópico, continuaremos a discussão sobre a vocação, tentando abordar as

características da vocação e suas relações com a profissão. Diversos autores enfatizaram o

aspecto vocacional da profissão. Desde Durkheim a Parsons, passando por Weber, a vocação

profissional tem uma importância capital. Diante de um mundo "desencantado", no qual a esfera

do sacro se subsome cada vez mais ao cálculo (Weber, 1959), a profissão é percebida como uma

fonte de valores moralizantes, civilizadores e restauradores de uma ética perdida. Dessa forma,

para Durkheim, "a profissão seria justamente um melhor cimento que a religião" (Paicheler,

1992:42). A vocação profissional absorve e integra os melhores elementos do "compromisso

religioso", entre os quais um aspecto fundamental: o seu caráter de missão. Tal palavra aparece,

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76

inclusive, várias vezes nos escritos de Durkheim sobre a pedagogia, como quando, por exemplo,

refere-se ao poder de convicção do professor acadêmico:

o que reveste a autoridade da palavra do sacerdote é a alta idéia que ele possui

de sua missão; pois ele fala em nome de um deus no qual ele crê, em relação

ao qual ele se sente mais próximo do que a multidão dos profanos. O mestre

leigo pode e deve ter alguma coisa deste sentimento. Da mesma forma que o

sacerdote é o intérprete do seu deus, ele é o intérprete das grandes idéias

morais de seu tempo e de seu país (Durkheim, 1977: 68).

Parsons irá mais longe, tornando-se um verdadeiro advogado da profissão; assim,

afirmará a "ênfase sobre o caráter desinteressado e ético das profissões, e seu fundamento sobre

um saber técnico que lhes confere autoridade e responsabilidade sociais" (Paicheler, 1992:43).

Se bem que "desinteressado", o profissional não se furta a ter um relacionamento estreito com a

estrutura de poder. Consciente deste fato, Parsons utilizará, no verbete "profissões", escrito como

artigo para a "International Encyclopedia of the Social Sciences" (1968), a metáfora do

casamento para explicar as origens da profissão: "a origem básica do sistema profissional

moderno está no casamento do profissional acadêmico com certas categorias de homens

práticos". Ora, os "homens práticos" sofrem, nas suas "funções operacionais" — políticas e

econômicas, fundamentalmente —, a falta crônica de uma legitimidade ideológica difusa, do tipo

que assegurava a religião. A vocação profissional poderia, neste caso, fornecer legitimidade às

suas ações a partir de valores, inclusive mais eficientes do que aqueles representados pela

ideologia religiosa. Eliminando esse lado apologético, a vocação profissional pode ser vista como

um dos elementos mais gerais de um sistema ideológico que sustenta, principalmente, o

imaginário das classes médias no capitalismo desenvolvido. A vocação profissional poderia ser

entendida como um tipo novo de vocação — sem a antiga carga "sacra" — alicerçado na

necessidade do saber especializado na divisão social do trabalho, e legitimado por sua relação

com o conhecimento científico.

Desse modo, para os setores médios da sociedade e, principalmente, para a classe média

americana:

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77

a cultura profissional serviu como contexto ao aparecimento de certos valores

que, depois, impregnaram a sociedade inteira: sucesso, determinação, auto-

estima, ambição. Enquanto atitude profissional, o apoio na ciência se fundaria

no controle de si, no respeito à universalidade das regras, na prova pela

experiência e na tradução de preceitos morais em verdades estabelecidas

(Paicheler, 1992:39)

Pode-se considerar a vocação como uma série de predisposições básicas, construídas

socialmente, relacionadas a uma profissão determinada, representando um conjunto de valores

que interpelariam e legitimariam a finalidade e a ação de tipo profissional. A vocação constitui,

via socialização profissional, um medium pelo qual o indivíduo interioriza os valores, as regras e

as normas da profissão, incorporando-os ao seu mundo interior e tornando-os "pessoais".

Mas, o que isso realmente significa para o indivíduo?

Ora, o modelo vocacional de matriz religiosa, ao ter como base a eleição, possuía uma

natureza carismática. Um indivíduo eleito, inspirado pela mensagem e pela missão divina, precisa

basear sua eleição no carisma. A vocação moderna já significa uma racionalização da matriz

religiosa, deslocando o encanto carismático para a função ou o cargo profissional. O profissional

perde, durante a formação histórica do modelo vocacional moderno, o carisma. O eleito é o herói

carismático weberiano que, aos poucos, vai sendo substituído pelo herói cultural (Myertoff

&Larson, 1965) ? conceito interessante, pois está relacionado à transferência do carisma do

indivíduo para a posição ou função. O herói cultural significa a completa racionalização do herói

carismático. Implica um comportamento já padronizado, em que o papel social do indivíduo tem

um peso relevante ? há uma forte modelação social do sentido da atividade do profissional. O

herói cultural, nesse sentido, seria um agente de integração social por excelência. O eleito é um

indivíduo idiossincrático, pois é excepcional, e participa, através do seu carisma, da mudança

social. Tem uma missão, geralmente transformadora. O herói cultural possui também uma

missão, embora esta seja fortemente padronizada pela profissão. Weber (2000: 161-162) chama

essa transformação do carisma de rotinização do carisma.

Com o desencantamento do mundo, a religião perde a sua referência para a ciência ? por

isso, pode-se dizer que o poder do carisma é deslocado para o mundo científico, e o modelo

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vocacional predominante passa a se basear no personagem do cientista. No caso da medicina, por

exemplo, o dom da graça é transferido para a ciência. Essa erosão do carisma médico, que tem

um evidente fundo religioso, pode ser um dos motivos, entre outros, da decadência do médico de

família. Talvez, uma das expectativas de algumas políticas públicas na área de saúde seja a de

recuperar a aura do médico, a aura sagrada da medicina, através de uma política de aproximação

e de restabelecimento do contato direto do cliente com o médico (medicina de bairro, médico de

família...). Se o carisma deslocou-se para a posição e para a ciência, pode-se inferir que a

formação universitária, baseada na medicina científica, é um dos fatores de desencantamento do

carisma do médico e, conseqüentemente, da própria vocação médica (Jamous, 1969). A formação

científica do médico retiraria a singularidade da experiência idiossincrática de cada médico,

tornando-a banalizada e comum. Haveria uma produção "fordista" de médicos, através do

credenciamento e do diploma, que homogeneizaria a experiência médica. Tal fato pode retirar do

imaginário médico a representação da medicina enquanto arte, embora isso não seja ainda

dominante nas representações profissionais dos médicos.

Mas, a vocação médica possui ainda muitos resíduos da sua antiga aura de herói

carismático. Assim como os políticos, por exemplo, os médicos têm uma tendência ou mania de

justificar a escolha da sua profissão. São narrativas muitas vezes sacras ou mesmo solenes,

baseada em eventos catárticos e, invariavelmente, racionalizadas. Provavelmente, toda profissão,

que tenha um caráter social ou relacionada à saúde, possua tal necessidade de justificação

carismática. O mito do sacerdócio médico é, por exemplo, um mito baseado ainda na vocação do

eleito, daí inclusive a importância da noção de missão na vocação médica. Contudo, a formação

médica impõe um modelo de prática que faz uma delimitação precisa entre o doente e a doença,

exigindo dos médicos a neutralidade afetiva diante dos sofrimentos dos pacientes. Ora, tal

exigência entra em flagrante contradição com as narrativas vocacionais, quando os médicos

rememoram o evento catártico que ocasionou sua escolha profissional. Muitas vezes, a relação

com a doença ou o fato de ter estado doente ou mesmo o contato com doentes são interpretados

como fatores de caráter "afetivo" que teriam induzido a escolha profissional

Embora tenha seus resíduos mágicos, a vocação profissional, médica ou não, é

identificada geralmente à noção de profissionalismo. No senso comum, inclusive, vocação e

profissionalismo são algumas vezes colocados como termos não cambiáveis e, até mesmo,

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antagônicos. O profissionalismo teria destruído o aspecto vocacional dos métiers, impondo um

conjunto de valores tais como competência técnica, universalismo, especificidade funcional e

neutralidade afetiva18, que teriam esvaziado o conteúdo "existencial" de uma atividade como, por

exemplo, a medicina. A vocação seria uma "escolha de vida", um projeto pessoal, um

engajamento subjetivo que levaria o médico adiante na sua carreira, apesar dos percalços vividos

ao longo do exercício de sua atividade. Ela realizaria o vínculo entre a motivação para a carreira e

a realização pessoal que esperamos da vida profissional19. O profissionalismo, ao contrário,

significaria o trabalho desocupado de valores existenciais e de engajamento pessoal, no qual a

utilização de um saber, visto somente a partir de sua finalidade funcional, depauperaria o

conteúdo axiológico do métier. Tal visão de profissionalismo o relaciona estreitamente ao

trabalho burocrático e, de fato:

administração burocrática significa: dominação em virtude de conhecimento;

este é seu caráter fundamental especificamente racional. Além da posição de

formidável poder devida ao conhecimento profissional... (Weber, 2000:147).

A burocracia está, nesse sentido, impregnada de profissionalismo, e a profissão,

impregnada de burocratismo, estando ambas subsumidas ao inexorável processo de

racionalização social; um processo cujo ranço instrumental aprisiona a ação social, seja

burocrática ou profissional, nos ditames da coerência da relação entre meios e fins20. Contudo, se

identificarmos a atividade profissional à atividade burocrática, provavelmente teremos

dificuldade em encontrar um aspecto vocacional nas profissões. O saber burocrático não

necessita, por princípio, de um sistema de valores como a vocação. Num ambiente

completamente burocratizado, o funcionário efetua o seu trabalho sem que nele precise investir

ou realizar a sua identidade pessoal ? não há efetivamente realização de si. Toda a ação é

coordenada por normas rígidas e fixas, externas à sua vontade ou à sua autonomia de trabalho.

Ele não tem controle sobre a produção do seu serviço e nem "tem" propriamente um saber; na

18 Ver discussão de Herzlich (1970:158) sobre os valores do profissionalismo, na qual critica Parsons por tê-los identificado apenas à prática médica e não às profissões em geral. 19 Assim, "uma das funções da vocação é orientar a conduta atual no interesse de um objetivo a ser atingido" (Hall, 1970:210). 20 Contudo, a racionalização social e a burocracia moderna não se esgotam na racionalidade em relação a fins. Ver crítica a Weber e sua concepção de racionalização em Habermas (1987). Ver discussão sobre as diversas "lógicas de ação" possíveis numa empresa capitalista em Karpik (1972).

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verdade, ele "utiliza" um, que não é dele, nem feito por ele, e sim "usado" por ele para realizar o

seu trabalho21. Nesse sentido, o despotismo burocrático se identifica com o de fábrica 22.

A "posse" do saber e a respectiva autonomia profissional permitem a cada profissiona l um

autocontrole do seu trabalho e engendram, na nossa opinião, uma responsabilidade prática que

aparece, quando normatizada e institucionalizada, como um dos fundamentos dos códigos de

deontologia profissional. O indivíduo responde assim não somente pelo s resultados da sua ação,

mas também pela sua atuação no processo de trabalho, configurando toda uma série de

comportamentos e posturas individuais. A responsabilidade profissional é reforçada mais ainda

quando a sociedade outorga à profissão um "mandato social", principalmente nas atividades,

como a medicina, cuja intervenção no seio de uma população é evidente. A responsabilidade

vincula o profissional ao objeto de seu trabalho, mesmo se o produto final de sua atividade não

lhe pertence. Ela gera uma disposição na qual a vocação pode se sedimentar e crescer em valor,

ocorrendo entre as duas uma retroalimentação que impulsiona a fusão ou união da identidade

com o papel social Desse modo, quanto mais vocação e responsabilidade o indivíduo atribuir ao

seu trabalho, mais a sua identidade e a seu papel profissional estarão isentas de contradições,

unindo-se na sua prática individual, e mais ele se aproximará da "fusão ideal" citada acima.

A responsabilidade pode ser considerada uma interseção entre os esquemas de

interpretação dos agentes e as normas estabelecidas. Não queremos afirmar, com isso, uma

simetria entre os códigos formais de conduta e as ações dos agentes. Um agente responsável tem

o poder de explicar as razões de sua conduta e de assinalar os fundamentos normativos que

justificam a sua ação. Ele possui uma "competência" e uma capacidade reflexiva para ajustar ou

não sua conduta de acordo com os códigos formalizados existentes. No entanto, quando os

códigos formalizados são interpelações de um sistema burocratizado, vemos a responsabilidade

do médico diluir-se. Aparentemente, a burocratização diminui a responsabilidade do profissional

de medicina. Seria como se ocorresse uma transferência da aura carismática do médico —

21 Evidentemente, se nós subirmos na hierarquia burocrática ou se examinarmos algumas áreas onde a divisão técnica do trabalho necessite de um saber especializado, encontraremos um saber do tipo profissional. Vale dizer que um administrador, atualmente, é um profissional, possuindo um saber que produz regras de gestão e de consecução de serviços que são "utilizadas" e não "apropriadas" pelo funcionário na realização de suas tarefas. 22 Ver discussão geral sobre o processo de trabalho na fábrica em Marglin (1989) e Gorz (1989).

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vinculada à responsabilidade profissional e à vocação do profissional — à sua posição no sistema

burocrático e à técnica utilizada na gestão administrativa de doenças e doentes. Se a

responsabilidade do médico não está diretamente dirigida ao paciente, se diversas mediações

começam a surgir entre o profissional e seu cliente, a começar pela mediação técnico-

administrativa, as decisões passam ao largo dos interesses dos pacientes, tomando como

referência principal os interesses da organização — participar e ser agente de um sistema

burocratizado dilui a responsabilidade médica e, ao mesmo tempo, sacrifica os interesses do

indivíduo doente às necessidades e exigências do sistema. No caso de uma estrutura burocrática,

como um hospital, por exemplo, a responsabilidade do médico vai-se diluindo a partir do

momento em que o paciente vai atravessando os segmentos burocráticos da divisão do trabalho

especializado da medicina, passando de especialista em especialista, até que uma tomografia

computadorizada defina enfim o diagnóstico.

De todo modo, independentemente da reificação burocrática, existe um relativo consenso

de que o aspecto vocacional na medicina é bastante acentuado. Ele, no entanto, sofreu grandes

transformações nos últimos 40 a 50 anos, e sua identificação a uma "missão" ou a um

"sacerdócio" — termos impregnados de simbologia religiosa — não seria tão presente no

imaginário profissional ou, pelo menos, passou por um filtro mundano, mantendo-se com uma

significação, digamos assim, mais "técnica". Apesar disso, pode-se encontrar, por exemplo, o

sentido de missão ? mesmo que já laicizado ? nas reivindicações de especialidades médicas

que estão barganhando reconhecimento institucional. Assim, a reivindicação de uma missão está

inscrita no processo de legitimação de uma profissão:

desde o início de seu desenvolvimento, as especialidades definem e proclamam

suas missões específicas. Tais missões atestam a contribuição que a

especialidade, e somente esta, pode trazer num contexto referente a um

conjunto de valores, e freqüentemente desenvolvem uma argumentação

determinando por qual forma são particularmente apropriadas para essa

tarefa. A reivindicação de uma missão tende a tomar uma forma retórica,

provavelmente porque a missão ocupa um papel no contexto de uma luta pelo

reconhecimento e pela obtenção de um status institucional (Strauss, 1992:70)

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O interessante do exposto acima é a idéia de que o sentido de missão pode corresponder à

segmentação da medicina em especialidades e disciplinas, desmistificando um campo médico

homogêneo e sem contradições. Dessa forma:

as identidades, como também os valores e os interesses, são múltiplas, e não se

reduzem a uma simples diferenciação ou variação. Elas tendem a ser

estruturadas e partilhadas; coalizões desenvolvem-se e prosperam em oposição

a outras. (1992:68)

A segmentação da medicina "fixaria" o médico numa determinada posição no campo da

medicina, influenciando a formação da sua identidade profissional. Num sentido amplo, ela teria

várias "direções", seja no sentido de um campo médico com várias disciplinas (psiquiatria e

medicina interna, por exemplo) e, dentro delas, diversas especialidades (psiquiatra infantil e de

adulto), seja no sentido ocupacional (medicina privada e pública). Os "efeitos de segmentação",

porém, não seriam exclusivos na determinação da identidade profiss ional, estando combinados

aos chamados "efeitos de disposição", principalmente do saber médico (concepção terapêutica e

nosológica, por exemplo). A combinação dos "efeitos de segmentação" com os "efeitos de

disposição" situaria o médico no campo geral da medicina23, condicionando sua identidade

profissional. A vocação e a responsabilidade profissional, assim, seriam vistas de maneiras

diferentes segundo o segmento ao qual pertence o médico, e conforme a sua disposição em

relação ao saber médico. A responsabilidade profissional, por exemplo, é percebida pelo médico

geralmente como uma construção individual surgida da sua interação com o paciente. Tal

percepção é facilitada nas situações onde domina uma concepção liberal da profissão ou uma

concepção nosológica centrada na interação médico/paciente, como as de cunho psicanalítico.

Nas situações nas quais a medicina faz parte de uma política pública e onde predomina uma

concepção nosológica de cunho sociológico, a responsabilidade tem uma índole social.

23 Ver discussão geral sobre posição, disposição e situação no capítulo 6 do livro de Boudon (1986).

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VII. Capítulo II

A. Profissão

1. Discussão sobre o conceito de Profissão

Pode-se dizer que a noção de profissão já possui uma legitimidade acadêmica enquanto

área de conhecimento, sendo inclusive a categoria central de todo um campo da sociologia, a

chamada sociologia das profissões. Contudo, o seu espaço conceitual não é uniforme, nem

mesmo coerente, e, muitas vezes, fica difícil até conceber que exista, realmente, uma sociologia

das profissões, dada a variedade extrema de definições, produzida pelos mais diversos autores,

cuja série de posições diferentes impossibilita mais ainda a unificação de sentido do termo

"profissão". Abbott (1988), por exemplo, vai afirmar que a dificuldade ou mesmo a

impossibilidade de se definir profissão tem como causa o fato de que as fronteiras entre as

competências são flutuantes e estão em eterno questionamento. Se as delimitações das

competências flutuam e dependem da época e da sociedade em questão, as definições de

profissão tornam-se relativas, podendo sofrer mudanças consideráveis no tempo e no espaço. Na

realidade, talvez fosse mais interessante afirmar que há uma multiplicidade de abordagens

sociológicas dos grupos profissionais, em relação às quais não seria complicado perceber

coerências teóricas e políticas entre certos modelos, certas teorizações e programas de pesquisa.

Não haveria, dessa forma, uma definição universal de profissão, mas sim determinadas

teorizações que examinariam o fenômeno profissional, a partir de um dado ponto de partida, por

esse ou aquele ângulo, por essa ou aquela determinação. Não acreditamos que isso seja

verdadeiramente um problema, afinal, a sociologia não é popperiana, procedendo por invalidação

de proposições que foram demonstradas como falsas, e sim um conhecimento parecido com o

histórico, isto é, apresenta eternos conflitos de interpretação e permanentes confrontações de

pontos de vistas.

Por isso, em relação às teorizações sobre a profissão, não há uma posição superior ou

alguma visão ultrapassada que resida apenas datada no passado. As proposições do

funcionalismo, por exemplo, não estão completamente enterradas, pois volta e meia reaparecem,

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algumas vezes até um tanto dissimuladas ou não assumidas24; ou ainda: as posições do

interacionismo simbólico sobre as profissões não foram superadas pelas análises neoweberianas e

nem estas pelas críticas neomarxistas ? não, na verdade, o que ocorre na dita sociologia das

profissões é menos a partilha de um paradigma comum do que vários em choque ou em

complementaridade. A polissemia das noções impera no meio, sendo uma fonte de riqueza

inesgotável (ou mesmo de confusão eterna!) para a interpretação — mas, é um fato inevitável:

estamos obrigados a conviver, permanentemente, com modelos teóricos convergentes e

divergentes entre si, cujo trato diário pode representar, dependendo do humor de cada um, o

inferno ou o paraíso. O próprio Freidson, um dos expoentes da área, reconheceu que a noção de

profissão é um folk concept, isto é, uma categoria social inscrita nas práticas e atividades do

cotidiano de comunidades diferentes, não adiantando muito defini- la rigorosamente, pois, sendo

de intenso uso social, os problemas de polissemia e de constantes mudanças de sentido ainda

continuariam25. Assim, é preferível analisar como as pessoas de cada sociedade diferente definem

o que é ou não um "profissional", como os profissionais 'fazem' ou 'realizam'

sua profissão através de atividades particulares e quais as conseqüências disso

sobre a forma em que vêem a si mesmos e sobre o seu desempenho (Diniz,

2001: 18).

Em suma, isso requer uma postura fenomenológica, mantendo um controlado relativismo

de fundo e definindo a posição a ser utilizada mais pelas necessidades do objeto e pela escolha do

ângulo de abordagem do que por um pré-julgamento epistemológico.

Embora reconheçamos a polissemia do termo, isso não significa que não se possa

reagrupar algumas inferências, resultado da história e dos diversos estudos sobre as profissões ?

inclusive, tais inferências teriam sido necessárias pela própria prudência diante dos vários

sentidos da noção de profissão 26:

24 Quando Freidson (1998: 213-229), por exemplo, vai defender o profissionalismo, ou seja, um modelo normativo de profissão, acreditamos que ocorra uma re-apropriação de algumas proposições sustentadas por Parsons, caracterizando nesse sentido uma posição, digamos assim, neo-funcionalista. 25 Um outro exemplo evidente de categoria social é a noção de doença. 26 Seguimos aqui as posições de Dubar e Tripier (1998).

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Ø não há como estudar uma profissão isolada do contexto em que está inserida. Ou

ainda: uma profissão geralmente faz parte de um sistema profissional e analisá-la é

perceber suas conexões com outras profissões num determinado contexto histórico

? logo, o estudo comparativo é imprescindível à análise sociológica das

profissões;

Ø dificilmente encontramos uma profissão unificada e homogênea. O sistema

profissional é multifacetado e, no seio mesmo do mundo profissional, há vários

segmentos profissionais muitas vezes competindo entre si, objetos profissionais

diferentes, interações profissionais apresentando polarizações antagônicas,

processos identitários diversos. Uma profissão é um mundo formado de mundos;

Ø não há profissão estabelecida definitivamente. Se existe uma lição proveniente da

história das profissões, seria a de que os grupos profissionais sofrem processos de

estruturação e desestruturação constantes ? as delimitações de competências são

flutuantes, a base cognitiva pode mudar, a modalidade de regulação pode sofrer

modificações...

Ø não há profissões "objetivas". Existe, isto sim, relações dinâmicas entre estruturas

e lógicas de ação, entre instituições e trajetórias, entre formação profissional e

vocações, entre saber e poder, entre papel profissional e formas identitárias. O fato

profissional é abarrotado de sentido, pois constitui e é constituído por processos

identitários. O determinismo das estruturas27 não pode sobreviver sem as

subjetividades socialmente construídas28... e vice-versa.

Tais inferências não são comuns a todas as teorizações sobre as profissões, pois cada uma,

de certa maneira, vai priorizar esse ou aquele aspecto, tudo dependendo do modelo proposto para

analisar as formações profissionais. Inclusive, acreditamos que seja importante investigar os

modelos de profissão, pois assim seria possível remontar historicamente as origens comuns das

teorizações sobre as profissões. Podemos assim começar pela etimologia do termo "profissão",

inferindo algumas pistas para posterior desenvolvimento. Ora, profissão era, na cristandade

medieval, a ação de declarar abertamente suas opiniões e crenças. São os votos que são

27 A análise estrutural é característica das abordagens funcionalistas e neomarxistas. 28 A análise das interações e subjetividades é característica das abordagens interacionistas e neoweberianas.

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declarados, logo, tornados público. Não é propriamente uma confissão pública, e sim uma

declaração de sua relação com Deus. Seria da ordem da linguagem e do discurso, mas que traduz

algo que vem de dentro pra fora, exterioriza-se na direção do transcendente. Profissão, aqui,

confunde-se com vocação ? calling, em inglês, e beruf, em alemão. Depois, o termo evoluiu

para o sentido de um conjunto de pessoas que trabalham na mesma ocupação, embora profissão,

no mundo anglo-saxão, seja usado como oposto à ocupação (professions x occupations). Na

França, o termo aproxima-se da noção de corporação ou de grupo profissional; inclusive, não se

opõe ao de sindicato. Na verdade, dependendo do lugar e da época, a noção de profissão pode

apresentar quatro sentidos (Dubar e Tripier, 1998: 12):

• como declaração, a profissão é um processo identitário (vocação);

• como ocupação, é uma atividade especializada;

• como função, é uma posição na divisão social do trabalho;

• como emprego, é uma classificação ocupacional.

Pode-se a partir desses sentidos inferir que a noção de profissão apresenta uma tripla

partição: a cognitiva, quando pensada do ponto de vista do saber e da sua aplicação na divisão

social do trabalho; a axiológica/afetiva, quando envolve valores e processos identitários; a

conativa, quando apresenta ações e estratégias balizadas por interesses. As três partições podem

ser relacionadas, de uma forma geral, a três abordagens teóricas sobre as profissões:

Ø profissão como forma histórica de organização social e, ao mesmo

tempo, de categorização das atividades no trabalho, em que o

monopólio de um saber joga um papel fundamental na relação entre

o Estado e os profissionais. A base cognitiva da profissão serve

como recurso estratégico para a legitimação das atividades

profissionais ? perfaz uma luta pelo reconhecimento da expertise.

O objeto dessa abordagem sociológica seria a organização social

das atividades do trabalho;

Ø profissão como forma de realização de si, realizando modelos de

identidade na atividade ocupacional. O fato profissional teria uma

relação profunda com os processos de identificação, sendo um

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campo privilegiado, na modernidade, de expressão de valores éticos

e de significações culturais. A raiz axiológica da cultura

profissional seria religiosa, sendo a vocação a palavra-chave. A

profissão produziria uma série de significações que dariam sentido

ao trabalho. Por ser um processo de identificação, a esfera

profissional pode ser interpretada como produtora de modos e

estilos de vida. A profissão seria entendida como "mundo

profissional", no qual se inscreveriam várias lógicas culturais,

especificamente a do individualismo liberal ? o objeto aqui teria

como foco a significação social do trabalho;

Ø profissão como formas históricas de ações e estratégias para a

defesa de interesses ocupacionais, procurando estabelecer mercados

fechados e, ao mesmo tempo, conectando o monopólio à aquisição

de status. Tais estratégias seriam fundamentalmente de natureza

política e teriam como objetivo a conquista, seja através do Estado,

seja por intermédio de associações profissionais, da autonomia e do

monopólio ocupacional. Tal abordagem teria como objeto as

modalidades de estruturação dos mercados de trabalho e de

serviços.

Porém, apesar de termos reduzido o leque de temas sobre a profissão, ainda sobrou a

questão de se saber a respeito da existência ou não de modelos que baseariam historicamente as

abordagens referidas acima. E qual seria a natureza de tais modelos? Segundo Dubar e Tripier

(1998), a premissa que subjaz os modelos seria a hipótese de que existem configurações de

crenças e instituições, de categorias e formas sociais, de valores e organizações que persistem

durante um longo período de tempo e que estão nas raízes de fenômenos posteriores, no caso

específico daqui, as profissões. São, no fundo, modelos cognitivos de longo alcance ou

orientações culturais de longo prazo29 (Goldhagen, 1997) que, evidentemente, têm efeitos

práticos, estruturando as condutas e as atividades das pessoas, isto é, formatando a ordem moral e

29 Pode-se, na nossa opinião, fazer uma aproximação do conceito de habitus com o de "modelo cognitivo de longo alcance".

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prática da sociedade. Os modelos de profissão, por estruturarem práticas e atividades, produzem

categorias orientadoras de valor que tem uma validade consensual no cotidiano, isto é, estão

subjacentes à diferenciação e à estratificação social, daí sua permanência ao longo do tempo e a

invariância relativa de seus elementos constituintes. Não causa surpresa, assim, que os dois

modelos de profissão propostos tenham raízes religiosas e mesmo teológicas: o modelo católico

ou corporativista e o da reforma protestante ou colegial. O primeiro enraizou-se na França e em

alguns países latinos (o Brasil seria um caso com diversas particularidades); o segundo, na

Alemanha, embora tenha sido uma versão particular desse modelo que, através do calvinismo,

influenciou a história das profissões no mundo anglo -saxão.

O primeiro modelo 30 é proveniente de uma noção profundamente cristã: o corpo místico

de Cristo. A partir do século XII, a significação mística do corpo de Cristo passou a ser

eminentemente política. O corpo místico assimilo u o corpo político da igreja, e este tornou-se o

"corpo estruturado da sociedade cristã" (Kantorowicz, 1989: 147-8). O próximo passo foi

transferir ao Estado o modelo da Igreja, tornando-o sagrado ? os magistrados foram

considerados "padres" e a Lei tão santa quanto o texto da Bíblia. São Tomás de Aquino fecha o

ciclo, produzindo uma união entre a teologia cristã e a filosofia política de Aristóteles. Resultado:

há a legitimação da eqüidistância entre o corpo místico da Igreja, definindo a natureza da

comunidade religiosa, e corpo natural do Estado, definindo a comunidade temporal dos homens.

A realeza torna-se sagrada, com um mandato divino, justamente porque o Estado é sacro. A

corporação católica torna-se, aos poucos, uma entidade legal e jurídica que congrega indivíduos

em torno de um mesmo corpo ? comunidades eclesiásticas, municipalidades, tribunais e guildas.

Assim, formam-se os corpos de Estado 31, cuja constituição implica uma divisão religiosa, no

sentido de Durkheim (1994), isto é, uma divisão entre o sagrado e o profano, entre o de dentro e o

de fora. Inclusive, a própria identidade do corpo é sagrada, apresentando toda a liturgia ligada ao

sacro: ritos, símbolos, festas, santo padroeiro, dia de comemoração.

Pode-se perceber, por exemplo, o efeito profundo desse modelo no pensamento de

Durkheim (1998), cujo interesse pelos corpos de Estado foi pronunciado, principalmente na sua

30 Seguimos livremente as posições de Dubar e Tripier (1998: 21-37). 31 Ver o importante estudo de Bourdieu (1989) sobre a "nobreza" de Estado e seu espírito de corpo.

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análise sobre os grupos profissionais. Assim, tais grupos são vistos como verdadeiras

comunidades, apresentando características parecidas com os corpos de Estado, principalmente

num ponto central: são corpos intermediários entre o Estado e os indivíduos. Durkheim,

inclusive, vai deplorar o fim dos corpos de Estado e vai perceber no surgimento dos grupos

profissionais uma renovação das corporações. Renovação diferencial, na realidade, pois não é

uma reedição das antigas corporações, e sim o surgimento de um fenômeno novo que tem raízes

antigas. O pensador francês enaltece os novos "corpos profissionais", apresentando praticamente

uma defesa moral e normativa da profissão, que irá influenciar bastante as teorias funcionalistas

americanas. As profissões são ordens morais que asseguram aos indivíduos uma socialização,

uma educação moral e uma interiorização de um corpo de crenças e de sentimentos comuns,

cumprindo assim um papel que o corpo social deixou de realizar ou que está simplesmente

incapacitado de objetivar.

De tal problemática, podemos intuir três temas que se tornaram vitais para algumas

teorizações sobre as profissões (Dubar e Tripier, 1998: 68): 1) o desenvolvimento, a restauração e

a organização das profissões são fundamentais para se entender a sociedade moderna; 2) as

profissões estão encarregadas de um função social essencial: a coesão social e moral do sistema

social; 3) as profissões representam uma alternativa ao mundo dos negócios, ao trabalho

burocrático e, podemos dizer assim, à luta de classes. Tais temas foram abordados por Durkheim

e são, digamos ass im, seu legado; entretanto, sua transposição em solo anglo -saxão sofreu

modificações aparentemente em resposta ao incômodo causado pelo modelo corporativista. Da

visão de Durkheim, sobrou o funcionalismo e a concepção normativa da profissão, ocorrendo a

censura do corporativismo e da presença estatal na regulação profissional. Um novo olhar

funcionalista e normativo surgia, agora adaptado às necessidades ideológicas do segundo modelo

de profissão: o modelo profissão-confraria ou colegial.

O modelo colegial ou da profissão-confraria é filho da Reforma Protestante e, portanto, de

procedência alemã. Combina um ideal aristocrático ou elitista enquadrado numa forma religiosa

igualitária (monástica ou comunitária). Remete, de uma certa maneira, às análise históricas de

Weber do modelo colegial como modo específico de dominação, embora tal modelo tenha

apresentado uma forma intermitente e instável na história. A confraria é uma comunidade de

iguais e auto-regulada, completamente contrária a qualquer tipo de intervenção estatal. Sua raiz

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religiosa é evidente: o modelo é a ordem monástica. As ordens eram fraternidades cristãs, mas, ao

contrário do modelo católico e romano, não faziam parte do corpo político centralizado da igreja.

Tinham o reconhecimento da Igreja, mas sua regulação era autônoma. Cada membro,

individualmente, buscava o contato com Deus através da leitura da Bíblia, embora diversos

procedimentos fossem comuns a todos, havendo o respeito às regras coletivas. A entrada na

ordem era voluntária e baseada na vocação, isto é, no sentimento profundo de que o contato com

o divino fazia parte de uma missão ou de um chamamento. De certo modo, Lutero, na Reforma,

transferiu esse modelo da ordem monástica para o campo inteiro da cristandade. Com isso, a

vocação deslocou-se do extra-mundano, enclausurado nos muros da ordem, para o intra-

mundano32, democratizando-se e se tornando acessível a qualquer um, onde a implicação pessoal

no trabalho torna-se fundamental, inclusive como sinal e meio da eleição divina.

A conexão entre auto-regulação coletiva e autonomia individual é o principal atributo que

o modelo colegial ou da profissão-confraria herda das suas raízes religiosas. Pode-se resumi- lo da

seguinte forma33:

• auto-regulação profissional, excluindo o apelo à interferênc ia externa,

principalmente do Estado;

• comunidade de iguais trabalhando na mesma ocupação;

• acesso voluntário e aceitação livre de regras coletivas, reconhecidas juridicamente;

• existência de um código de ética (deontologia);

• concepção da profissão como vocação individual.

Uma versão calvinista do modelo colegial tomará conta do mundo anglo -saxão, viajando

para os EUA nos corações e mentes dos colonos puritanos. Esse igualitarismo de base individual,

esse individualismo de base igualitária, essa desconfiança com qualquer poder externo, esse

nivelamento horizontal da hierarquia, essa vocação ao trabalho inspirada por Deus, tudo isso

servirá de modelo à constituição das profissões na América. Não causa surpresa que, na

32 Ver essa discussão, dessa vez relacionada ao surgimento do individualismo, em Louis Dumont (1991) 33 Partimos aqui do estudo de Karpik (1995) sobre a formação histórica da advocacia francesa que, curiosamente, por diversos motivos políticos e históricos, seguiu o modelo colegial e não o dos "corpos profissionais", como foi habitual entre as profissões na França.

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sociedade americana, os magistrados, os chefes de polícia, os juízes, os mestres-escolas sejam

eleitos e responsáveis perante sua comunidade. Porém, haverá uma diferença no sentido da

vocação entre o modelo original e o calvinista: neste último, a vocação direcionada ao bem

público, logo, desinteressada, será considerada diferente de um investimento pessoal apenas

reservado ou para si mesmo ou para os membros da confraria. É essa diferença de implicação e

de valor na vocação que distinguirá no imaginário profissional americano a profissão da simples

ocupação34.

Em suma, julgamos que, desses dois modelos, pode-se inferir diferenças históricas

discretas entre os diferentes modos de organização profissional que se desenvolveram em vários

países. Principalmente, esclarece um pouco as diferenças profissiona is entre os países anglo -

saxões e alguns países do continente europeu, em particular a França. E, partindo do fato de que o

Brasil foi colonizado por Portugal, país da Contra-Reforma e do Estado Patrimonial, podemos

deduzir que o modelo católico teve, antes de mais nada, uma influência bem maior do que o

colegial nas organizações profissionais nacionais, ainda mais que, historicamente, o Estado

brasileiro permaneceu, na maioria das vezes, como o demiurgo da regulação profissional.

No fundo, a diferença básica configura-se entre um modelo em que a autonomia política

da profissão é regulada direta ou indiretamente pelo Estado e um no qual a autonomia política

alicerça-se na independência associativa dos profissionais. Por isso, não causa surpresa que a

autonomia da profissão perante o Estado seja o ponto central da análise histórico- funcionalista de

Carr-Saunders e Wilson35 ? um dos primeiros trabalhos sobre profissão ? sobre a formação

histórica das profissões na Inglaterra. Inclusive, a defesa da autonomia das profissões segue

paralela à reivindicação da independência do indivíduo ? esta seria resguardada justamente pela

autonomia profissional, preservada coletivamente. Ao separar profissão e Estado, julga-se apartar

saber e poder; por intermédio dessa separação, esvazia-se politicamente o saber e, ao mesmo

tempo, concilia-o com valores que têm como base o desinteresse. O profissional precisa atuar em

função do bem público e de sua comunidade ? sua ação precisa ser desinteressada ou neutra.

34 Portanto, a ênfase de Parsons (1970) na vocação profissional como desinteressada e relacionada ao bem público, isto é, à prosperidade da comunidade, provavelmente, não é à toa... 35 Ver discussão a respeito das teses de Carr-Saunders e Wilson em Chapoulie (1970), Dubar e Tripier (1998) e em Freidson (1998).

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Não pode deixar que sua vocação seja carcomida pelo seu interesse próprio ou por interpelações

externas, como o poder político. A defesa da autonomia, assim, tem um fundamento ético, pois

seria a única forma de preservar a união entre saber e desinteresse. Em vista disso, a justificação

do profissionalismo, como modelo normativo para as profissões e, inclusive, para o campo

ocupacional em geral, é a legitimação de valores profissionais baseados no desinteresse

(neutralidade axiológica). Nesse sentido, haveria uma diferença moral entre o profissional e o

simples assalariado, reduzido ao campo estreito da ocupação: a autonomia, perfazendo a

diferença entre liberdade e opressão patronal; a responsabilidade, instituindo a diferença entre

dignidade e subordinação e, enfim, a liberdade no mercado de trabalho e de serviços, consolidada

pela diferença entre a independência econômica e a dependência salarial.

Boa parte dessas questões, se não todas, está presente nos estudos do mais importante

teórico funcionalista: Talcott Parsons. Autores, inclusive, afirmaram que Parsons radicalizou a

defesa do profissionalismo, tornando-o um modelo "angelical"36, além de afirmá-lo como uma

defesa profissional da própria profissão de sociólogo. A profissionalização da sociologia faria

parte, num jogo de espelhos um tanto enviesado e irônico, da própria "sociologia das profissões",

e a defesa da sociologia, enquanto profissão, envolveria, além da legitimação de um saber

científico, o recurso a uma prática corriqueira de poder no mundo moderno: o poder profissional.

Seria essa, também, a crítica de Hughes (1996) ao funcionalismo em geral: acreditar piamente no

que os profissionais dizem de si mesmo, tomando o discurso profissional como um dado

inquestionável, até porque os sociólogos são igualmente, afinal de contas, profissionais.

Relevando os exageros de um certo sectarismo político e teórico, realmente Parsons foi um

apologético da profissão; mas é impossível não deixar de reconhecer suas contribuições para a

"sociologia das profissões" e para a sociologia em geral. Sua dissecação dos valores da profissão,

mesmo que num estudo concreto sobre a medicina (Parsons, 1970: 169-191), continua pertinente,

principalmente se fizermos, a partir de suas análises sobre a profissão, analogias com o saber

burocrático e com a ideologia tecnocrática37. Contudo, seu funcionalismo e sua preocupação

36 Ver discussão sobre essa questão, principalmente na relação crítica entre o interacionismo e o funcionalismo, Paicheler (1992). 37 Ao mesmo tempo, Parsons constatou uma dupla competência no saber profissional, em particular no do médico: um saber prático aliado a um saber teórico proveniente da formação médico-universitária e de uma socialização "secundária".

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unilateral com a ordem social foram bastante criticados, como o seu modelo de profissão, ao

mesmo tempo, adaptou-se mal às situações não liberais do exercício profissional (Dubar,

1991:138).

De todo modo, o caminho tomado por Parsons foi o de demonstrar a importância crucial

da ciência e da educação liberal na legitimação e na definição das profissões. Nesse sentido,

aceitou como dado incontornável a expertise (monopólio cognitivo de uma determinada área de

conhecimento) e o credenciamento (monopólio de acesso a determinado posto ocupacional), pois

a profissão, no modelo parsoniano, não se legitima pela tradição e sim por intermédio da ciência,

vista como o mais poderoso instrumento de legitimação do mundo moderno. A ciência é tão

relevante que pode ser considerada como o equivalente funcional da religião, e o profissional, do

padre. Inclusive, as separações que Parsons patrocina entre médicos e não médicos, racional e

irracional, normal e patológico parecem mutatis mutandis uma retomada da separação entre o

sagrado e o profano de Durkheim (1994)38. Assim, a profissão faria as pontes necessárias entre os

indivíduos e os papéis socais, garantindo a coesão social ? o profissional colocaria em contato,

na sociedade moderna, o profano com o sagrado39.

Por isso, do papel fundamental da ciência na sociedade moderna, Parsons defenderá que a

medicina, por exemplo, somente adquiriu uma legitimidade superior, que não fosse apenas

baseada no prestígio e no poder, a partir dos avanços científicos na biologia ? as descobertas de

Pasteur seriam um exemplo. Desse momento em diante, a medicina adquiriu uma base cognitiva

insuperável, deslegitimando as outras formas de medicina, principalmente as populares e as

alternativas40. A medicina como profissão tem, para Parsons, uma importância tão considerável

que o seu modelo terapêutico é o paradigma da profissão41. Da atividade médica e terapêutica,

ele retira o quadro geral que vai aplicar dedutivamente a todas as outras profissões. A relação

38 Ver a defesa completa dessa aproximação entre Parsons e Durkheim em Dubar e Tripier (1998: 85-86). 39 Afirmação forte, sem dúvida, mas implicaria dizer, se correta, que tal contato é bem menos orgânico e bem mais sujeito a crises de sentido do que o patrocinado antigamente pelo padre e pela religião. 40 Tal posição é retomada por Freidson (1984) quando argumenta que a última revolução na biologia (principalmente o surgimento da bacteriologia) foi um divisor de águas entre duas medicinas: a primeira mais antiga e com parcos recursos cognitivos, conceituada como uma profissão de saber, e a segunda, mais recente, de base científica, vista como uma profissão de consulta (expertise). 41 No famoso texto em que Parsons (1970) analisa a medicina, ele vai além do funcionalismo, pois, tudo indica que, pelo menos aqui, há uma forte influência da psicoterapia e da psicanálise no desenvolvimento da posição teórica assumida.

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médico-paciente revelaria a estrutura relacional das profissões, fundada na institucionalização dos

papéis sociais e, com isso, garantindo as funções primordiais dos profissionais: o controle social e

a reprodução da estruturação social. Dissecando o papel do médico e do paciente, Parsons deduz

a estruturação funcional das profissões, ressaltando mais ainda a medicina, pois esta condensa

uma estrutura de mediação que conecta todos os campos da ação: biológico, psíquico, campo

social das normas e cultural dos valores.

Mas qual seria a função social da medicina que a torna tão importante entre as profissões?

Seria o controle do desvio social. A medicina estrutura esquemas de orientação (patterns of

value-orientation) tanto para o médico como para o paciente. Neste último caso, o controle do

desvio é fundamental, pois "orienta" o paciente a adotar o papel social do doente, ao invés do

problemático papel do desviante. É um enquadramento que sublima a subversão do desvio. Mas o

que estimula o profissional a ser o equivalente funcional do padre? É a vocação, no sentido de um

investimento pessoal na esfera ocupacional? Sim e... não. Ao que parece, é uma vocação

diferente e bem... profana. O que estimularia o profissional seria o sucesso e o reconhecimento de

si. Ora, se o motor do profissionalismo é o sucesso e o reconhecimento, temos assim a homologia

entre o profissional e o homem de negócios. Tudo indicava, aparentemente, que o mundo

profissional estaria numa posição diametralmente oposta ao mundo do business. O businessman

não é a personificação do interesse por excelência e a atividade profissional não seria calcada no

desinteresse? Parsons, pelo que interpretamos, faz uma disjunção entre o interesse,

estruturalmente igual ao do homem de negócios, e a atividade desinteressada. O profissional é tão

interessado quanto o businessman, porque todos os dois estão situados numa estrutura social na

qual a procura do sucesso é o valor fundamental. O sucesso traz reconhecimento, essa motivação

tão moderna, constituída por diversos elementos, tais como: o respeito de si mesmo, o

reconhecimento social, o dinheiro, o prazer no trabalho, o prestígio... (Dubar e Tripier, 1998: 87).

Se a fonte do sucesso é a aquisição do prestígio para o profissional e a riqueza, para o homem de

negócios, a diferença não importa, pois o mais importante é que o mesmo valor condiciona as

duas condutas. Parsons, aqui, aproxima-se das posições liberais de Adam Smith, justamente

aquela em que o escocês defende o self-love como motor do empreendimento capitalista. Mais

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ainda: ao separar interesse e atividade desinteressada, Parsons retoma a velha tese liberal42 de que

o interesse individual ou egoísta leva necessariamente ao bem comum. Assim, Parsons e,

provavelmente, boa parte do funcionalismo americano, vão defender uma vertente liberal do

modelo colegial de profissão. Uma vertente moderada, pois o liberalismo radical, inclusive o

smithiano, foi sempre contra as profissões, instituição vista como necessariamente corporativa,

independentemente de ser regulada pelo Estado ou não, e que impede a livre circulação das

pessoas no mercado de trabalho e de serviços.

O aporte do funcionalismo americano, na nossa opinião, foi fecundo, apesar de todas as

limitações e das críticas. Porém, embora tenha sido dominante na sociologia das profissões,

nunca foi consensual. Há muito, já se tinha formado uma corrente multiforme, originária da

Escola de Chicago, chamada posteriormente de interacionismo simbólico, que criticava

explicitamente as posições funcionalistas, em particular as suas posições sobre as profissões.

Embora muitos neguem que o interacionismo tenha sido uma corrente teórica43, pode-se pelo

menos afirmar que a origem da sua perspectiva tem como fonte Simmel ? trazido da Europa por

William Thomas e traduzido por Robert Park, o primeiro, fundador e o segundo, continuador da

Escola de Chicago ? e a filosofia pragmática americana 44. De Simmel (1999), pode-se derivar

várias noções do interacionismo do conceito de formas de socialização (vergesellschaftung).

Inclusive, para o próprio Simmel, as profissões representavam novas formas de socialização em

que a interação, o acesso voluntário, baseado na vocação, e a autonomia são suas características

principais. A ordem profissional surge das interações dos indivíduos e não de uma imposição

externa ? a influência do modelo colegial não pode ser desprezada nessa visão de profissão. Da

filosofia pragmática, pode-se perceber a influência de uma postura metodológica que priorizava

fenômenos como a experiência, as práticas, o cotidiano, as interações entre indivíduos, as

representações inseridas nos contextos de ação...

42 Para uma discussão aprofundada sobre o tema, ver Giannetti (2003). 43 Ver a apresentação de Bonelli do livro de Freidson (1998), na qual há vários comentários do autor americano retirados de uma série de entrevistas realizadas pela própria apresentadora. Nesse texto, Freidson comenta suas relações com o interacionismo e questiona sua validade enquanto uma corrente homogênea e discreta. Pelo que interpretamos das intervenções de Freidson, o interacionismo foi muito mais uma questão de postura diante dos fenômenos sociais do que um paradigma ou uma corrente epistemológica. 44 Ver a apresentação de Isabelle Baszanger ao livro de Anselm Strauss (1992) em que faz uma discussão sobre a formação do interacionismo, em particular sua relação com o autor do livro.

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A crítica ao funcionalismo e a postura principalmente metodológica do interacionismo

propiciou a cr iação de conceitos extremamente originais, tais como: licença (autorização de

exercer a profissão), mandato (missão), carreira (ciclo de vida profissional) 45, segmentos

profissionais, ordem negociada 46, mundos sociais 47... A base desses conceitos deriva da intuição

fundamental de que é preciso, para entender as profissões, conectar interação e biografia ? por

isso, uma problemática que enfatiza tanto os valores e sua interiorização, a socialização, a

identidade e a vocação como realização egóica, e a trajetória do profissional. São questões que o

funcionalismo tinha abordado apenas en passant.

Enfim, pode-se resumir a crítica ao funcionalismo da seguinte maneira:

Ø o funcionalismo analisa a profissão em si, sem perceber que, internamente, a

profissão é formada de segmentos profissionais, muitas vezes em conflito entre si,

e que, externamente, só pode ser apreendida através de uma perspectiva

comparativa, pois forma sistema com outras profissões;

Ø os atributos pelos quais o funcionalismo define as profissões são construções ad

hoc participante do próprio trabalho de legitimação produzido pelos profissionais.

A lista de atributos constitutivos do ideal-tipo funcionalista confundia-se, de fato,

com aquela 48 dos juízes encarregados, nos EUA, de autenticar juridicamente a

transformação de uma ocupação em uma profissão;

Ø o funcionalismo transforma um modelo particular de profissão, existente no

mundo anglo-saxão, num modelo universal. Os atributos desse modelo são

concebidos como um dado de realidade, e não como um objeto de análise, cujas

fundações históricas e sociais precisam ser reveladas e investigadas;

Ø a posição funcionalista concede um valor demasiado às qualidades inerentes do

conhecimento técnico. Na verdade, o que ocorre é uma apologia da técnica, a qual

45 Hughes (1992). 46 Anselm Strauss (1992). 47 Strauss (1992) e Becker (1988; 1985). 48 Em linhas gerais, os atributos seriam os seguintes: competência técnica e científica comprovada, formação educacional longa, atividade profissional exclusiva, controle dos profissionais e de suas atividades pelos pares, aquisição e uso de um saber esotérico que respeite um código de ética, serviço desinteressado voltado ao bem público, status social elevado justificado pelo nível de competência e importância social do serviço prestado (Paradeise, 1988: 11).

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condicionaria as formas institucionais de controle, de organização e da prática da

profissão. A apologia da técnica oculta os fatos de poder e o prestígio profissional

torna-se merecido e não um favorecimento baseado no status, pois a técnica é

neutra e adquirida através da competência;

Ø o profissionalismo não é um dado funcional e sim um conjunto de crenças

construído socialmente, não sendo neutro nem desinteressado.

A partir dessa crítica, a profissão foi percebida pelo interacionismo da seguinte forma:

Ø a formação dos grupos profissionais acontece por intermédio das interações entre

os indivíduos, conduzindo os membros de uma mesma atividade ou ocupação a se

organizarem e buscarem uma autonomia, logo, um controle do processo de

trabalho;

Ø a vida profissional é um processo biográfico no qual a identidade é construída ao

longo de um ciclo de vida, perfazendo uma trajetória profissional;

Ø interação e biografia estão numa relação de interdependência. A biografia vai, ao

longo da trajetória do indivíduo, qualificando as interações com outros indivíduos

e com os contextos de ação, enquanto as interações vão reformulando os processos

de identificação. O conjunto de conexões entre interação e biografia perfaz uma

carreira. Tais conexões são estáveis e relativamente permanentes nas profissões ?

a profissão garante a carreira, enquanto a ocupação, não;

Ø os profissionais procuram o reconhecimento social, seja através da persuasão

pública da necessidade de seu trabalho, seja por intermédio da proteção legal. A

luta pelo reconhecimento é pari passu uma luta pela valorização moral da

profissão. Existiria uma divisão moral do trabalho e uma espécie de hierarquia

moral entre as profissões. Tal valorização é construída, isto é, processa-se através

de uma luta política de reconhecimento social junto ao público e ao Estado; em

suma, a diferença moral entre profissão e ocupação não é dada, como pensavam os

funcionalistas, e sim arbitrária.

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98

Do ponto de vista do nosso objeto de estudo, tal problemática é de suma importância, pois

é necessária uma verdadeira conversão identitária para adentrar o mundo profissional e aderir aos

valores que a profissão exige para a conduta profissional (Hughes, 1996). O indivíduo precisa

interiorizar o sentido do seu trabalho, exteriorizar seu papel ocupacional, planejar uma estratégia

de carreira e se definir enquanto profissional. Muda-se o mundo, pelo menos o pequeno mundo

embutido nas redes de interações que envolvem a atividade profissional; muda-se o olhar que se

tinha em relação ao outro e também o olhar do outro em relação a si mesmo 49; muda-se, enfim, a

identidade. A mudança, no fundo, é originada da separação entre o mundo profissional e o

profano 50. As representações profissionais criam-se em virtude de sua diferença com as

representações profanas. Numa bela imagem, Hughes afirma que, após a conversão identitária, o

médico olha o mundo profano através do espelho da profissão ? a profissão seria uma espécie de

caverna de Platão. Entretanto, coexiste na personalidade do profissional uma tensão interior

produzida pela co-habitação na mesma pessoa de duas culturas, a profissional e a profana. Por

isso, a formação profissional é um aprendizado identitário que, comumente, gera crises, pois a

construção da identidade profissional implica construir uma nova que irá substituir ou sublimar a

antiga 51. Além do mais, segundo Hughes, algumas profissões, como a medicina, possui um

"saber culpado" (guilty know-ledge), exigindo um alto grau de responsabilidade por parte do

profissional, já que este lida com a doença, a saúde, a morte, o nascimento, a sexualidade, a

sanidade, em suma, categorias sociais altamente impregnantes e de difícil manejo ético e afetivo.

Na modernidade, a sociedade transfere as funções sociais responsáveis pela resolução e manejo

de tais problemas para os profissionais. O preço cobrado ao profissional é a conversão identitária,

como condição sine qua non para exercer o papel social exigido pela profissão e pelo público; em

troca, o profissional garante prestígio e reconhecimento.

Contudo, a conversão identitária é problemática, a começar que o ambiente profissional

não é homogêneo, possuindo diversos segmentos profissionais (Strauss, 1992). Tudo depende da

49 Esse "acontecimento" é catártico na medicina. O olhar médico distingue-se e separa -se do olhar empático dos "profanos". 50 Novamente, aparece o tema durkheimiano da separação entre o sagrado e o profano. 51 Retomando nossa discussão anterior sobre identidade, a tensão interior sentida pelo indivíduo é causada também pela incapacidade de se conectar total e pacificamente o processo de identificação com o papel social exigido pela socialização profissional. Com a crise do sentido do trabalho, acreditamos que a relação entre uma cultura profissional e uma profana, interiorizada pelo profissional, está bem mais problemática e complexa do que pensou Hughes.

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capacidade do profissional em definir a situação na qual se encontra: qual é a situação objetiva de

trabalho, qual é o sentido do trabalho, qual é o papel a ser exercido. Tal definição é produzida em

função da trajetória do profissional e da sua carreira, isto é, do conjunto de experiências

acumuladas durante a vida profissional. Por isso, tanto Strauss, como Becker (1988) perceberam

as profissões como mundos sociais em eterna mudança e conflito. Os profissionais constroem

coletivamente o mundo social da profissão, definindo individualmente a todo momento a sua

situação. O conjunto de definições, que são também processos de identificação, perfaria um

mundo social. Esse encontro de definições de situação não é sem conflito e, assim, necessita de

uma negociação constante, em que se procura a equilibração52, regulando os conflitos e

compensando os possíveis desgastes. Por esse motivo, todo mundo social deve ser estudado

enquanto uma ordem negociada ? Strauss vai estudar, por exemplo, um caso de ordem

negociada justamente num hospital psiquiátrico, visto como um mundo social, no qual se negocia

o tempo, o espaço das competências, o modo de interação entre cada especialidade, a relação com

os pacientes, as representações de prática profissional e as concepções relativas ao diagnóstico,

prognóstico e tratamento (Strauss, 1992: 87-113). E, para se entender o mundo social como

ordem negociada, necessita-se analisar os nexos existentes entre representações sociais ou

crenças partilhadas (concepção de medicina, visão de doença mental ou de saúde, por exemplo),

práticas profissionais (lógicas de ação dos profissionais) e instituições (lugares, normas e regras,

a coordenação de indivíduos numa ocupação).

A ordem é negociada porque as regras gerais da instituição não conseguem regular toda e

qualquer conduta. O campo de ação coberto pelas normas do serviço é restrito e várias situações

ficam a descoberto. O espaço relacional continua, por isso, razoavelmente aberto, já que a

generalidade das normas assim o permite, e propicia uma série de comportamentos ambíguos por

parte do profissional, o qual procura a equilibração e, portanto, adaptar-se às ações dos outros

membros da ordem, sejam profissionais ou não. Há, através do processo de negociação, uma

permanente produção de regras informais ou, no caso em que a equilibração fracasse, a provável

imposição de uma liderança. Nesse sentido, o conceito de ordem negociada permite conectar as

52 Inspiramo-nos aqui do conceito de equilibração de Piaget (1982: 93-107). Assim, inferimos que o equilíbrio dos processos cognitivos e identitários pode ser entendido como uma compensação realizada por intermédio das ações do sujeito, o qual procura adequar-se às perturbações trazidas pela situação.

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lógicas de ação profissionais aos mecanismos da divisão social do trabalho e às dinâmicas

gerenciais da instituição (no caso estudado, um hospital psiquiátrico).

Seguindo o mesmo procedimento, Strauss analisou alguns valores que, por exemplo, não

seriam consensuais na profissão médica, sendo apropriados de forma diferente em cada segmento

profissional53 e causadores de conflitos, tais como: a missão, as diferentes atividades de trabalho

e os interesses e associações de cada segmento; a clientela diferenciada, e outros. Criou, assim,

uma teoria importante sobre a segmentação profissional, na qual demonstra que, no caso da

"medicina organizada", diversos interesses, valores e modos de organização existem segundo a

forma de estruturação do segmento analisado. Tal teorização tem uma importância evidente no

nosso trabalho, pois a psiquiatria, como toda disciplina médica, possui diversas segmentações

profissionais, seja do ponto de vista institucional, tipo hospital x ambulatório, por exemplo, seja

do ponto de vista da formação profissional, tipo psicanalista x neuropsiquiatra.

Mas a heterogeneidade da profissão médica não aparece apenas na profusão de segmentos

profissionais. Na história de sua formação e de sua legitimação, vemos ainda uma flutuação na

delimitação das fronteiras entre as competências e mudanças nos seus respectivos objetos. Abbott

(1988), por exemplo, vai mostrar que houve historicamente uma competição pela jurisdição dos

problemas pessoais, ocorrendo diversas formas de apropriação e maneiras de abordá-los.

Inicialmente, houve um monopólio da religião sobre os problemas ditos pessoais, visto então

como basicamente produtos de desordens morais. A medicina entrou em cena e começou a

ocupar o espaço antes reservado à religião. As desordens morais passaram do espaço da confissão

para o terapêutico, ocorrendo assim não apenas uma nova delimitação nas competências, mas

também um deslocamento no próprio conteúdo do objeto: os problemas pessoais tornaram-se

"perturbações nervosas", sendo então tratadas e não mais abluídas, principalmente pelos

neurologistas ? estamos no final do século XIX, começando o reino da histeria. A partir desse

momento, os problemas pessoais deixaram de ser "pessoais", tornando-se questões relacionadas

ao campo da saúde e, portanto, transformando-se em objetos médicos. As mudanças não pararam

53 Vale dizer que Merton, numa abordagem bem diferente, ao estudar a importância da universidade na formação profissional médica, sustentou que a mesma possui uma função manifesta, que seria a de selecionar os indivíduos aptos a exercer a medicina, e uma função latente, que seria a condução tácita dos futuros médicos à escolha da especialidade ? orientação na carreira. Nesse sentido, a função latente seria produtora de segmentos profissionais.

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por aí, sucedendo deslocamentos e lutas por jurisdição no próprio campo médico; assim, várias

perturbações nervosas foram percebidas como doenças mentais, sendo apropriadas por outra

competência, a psiquiátrica. Mais recentemente, houve um novo deslocamento e várias doenças

mentais tornaram-se perturbações da personalidade, entrando em cena então a competência dos

psicanalistas. Atualmente, padecemos de um novo deslocamento, uma espécie de volta

diferenciada ao início do século XX, após as diversas descobertas nas neurociências, e as

perturbações da personalidade estão sendo entendidas como disfunções nos neurotransmissores,

sendo agora, cada vez mais, de competência dos neuropsiquiatras. Em suma, o que vemos em tais

deslocamentos, além de um conflito de jurisdição, seria uma "competição pela propriedade do

problema e pela responsabilidade por sua solução " (Coelho, 1999: 65).

O que explica tais deslocamentos, em particular toda essa flutuação de competências na

própria medicina? O que permite a um grupo conquistar o reconhecimento social em detrimento

de outro? Seria uma mera questão de poder ou envolveria também uma base cognitiva? Segundo

Abbott (1988), muitos grupos profissionais, na competição pelo reconhecimento, tentam

desqualificar tecnicamente os competidores. Como ocorre a desqualificação? Tentando mostrar

basicamente que o outro grupo não realiza eficazmente a sua função, ou melhor, que o grupo

concorrente apenas realiza parcialmente o que se deveria fazer e o que o grupo, pretendente ao

monopólio, faz normalmente. Contudo, o reconhecimento nunca é definitivo, justamente porque a

base cognitiva do trabalho está sempre mudando. Por isso, Abbott prega que, no estudos das

profissões, precisa-se analisar os procedimentos sociais e cognitivos de cada trabalho. Embora

não ocorra um desprezo pelas questões de poder e de status, o interessante nessa posição é o

papel atribuído às operações cognitivas no trabalho profissional. Desse modo, na base cognitiva

da prática profissional, haveria três operações básicas que facilitariam a compreensão da

dinâmica das competências: o diagnóstico, a inferência e o tratamento. A segunda operação seria

essencial, pois é o espaço de luta e de controvérsias, já que não pode ser monopolizada

definitivamente por alguma competência, apresentando uma vulnerabilidade jurídica e, por isso,

podendo ser contestada constantemente. A inferência é a caixa preta do expert. É o espaço de

resolução de problemas, sendo o lugar de articulação entre o saber formal e a eficácia prática,

entre o conhecimento abstrato e os procedimentos concretos, entre as classificações legítimas e as

ações profissionais. Quem conquistá- la adquire a jurisdição sobre o objeto das competências.

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Pode-se perceber pelo que foi examinado acima que os estudos interacionistas sobre as

profissões, a partir da crítica ao funcionalismo, não foram uma desconstrução radical da

profissão, como a que foi realizada pelas análises neomarxistas e, de certa forma, pelas posições

neoweberianas. As análises interacionistas ainda revelam uma visão que tem como pano de fundo

o modelo colegial de profissão ? lembrar a biografia do próprio Hughes: um filho de pastor que

sempre apresentou um penchant pelo igualitarismo de base cognitiva e moral, não sendo

inconcebível, portanto, perceber uma influência indireta do modelo colegial na sua análise das

profissões. No entanto, tomando como ponto de partida a crítica ao funcionalismo, surgiram

outras teorizações do fenômeno profissional que deram um novo alento à sociologia das

profissões. O enfoque fugiu do minimalismo do interacionismo, deslocando-se para dois aspectos

mais amplos que foram cada vez mais ressaltados: a autonomia profissional no mercado de

trabalho e a utilização do saber. Nesse campo, estariam autores como Freidson (1984) e Larson

(1988) que relacionaram o controle e o monopólio do saber profissional ao poder de tipo

profissional. A profissão conectaria de forma orgânica, seja através das condutas e dos valores

profissionais, seja de forma institucional, o saber com o poder. Ao mesmo tempo, com a

ampliação do interesse pelas profissões, surgiram outras teorizações parecidas e complementares

às analisadas acima, vindas das sociologias da organização e do trabalho. A primeira,

influenciada pelos trabalho de Weber sobre a burocracia e o processo de racionalização social,

apreendeu a profissão como uma forma de organização especial, paralela à organização

burocrática. A segunda deu ênfase ao problema da qualificação nas sociedades modernas e à

inserção no mercado de trabalho, numa posição mais inspirada pela economia política marxista

(Braverman, 1976; Derber, Shwartz, 1988).

O que mais transparece na maioria dessas teorizações sobre a profissão seria que o poder

profissional estaria relacionado ao monopólio de um saber especializado e à posição particular do

profissional no mercado de trabalho, seja numa escala individual ou coletiva. Acreditamos que

um tal "enquadramento" da profissão permita uma melhor apreensão histórica do surgimento do

fenômeno profissional, já que, apesar de suas origens remontarem às antigas corporações da

Idade Média, ele se constituiu como um fato moderno nascido do processo de racionalização

social — da posição historicamente determinante da ciência nas sociedades modernas— e da

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solução institucional ao problema essencial da alocação de recursos e de mão-de-obra: o mercado

de trabalho 54 — ou, pelo menos, historicamente a profissão desenvolveu-se enquanto tal, a partir

desses dois pólos constituintes da modernidade. De um lado, a revolução liberal, pela qual passou

a Europa no século XIX55, inaugurou um novo regime jurídico que conectava a livre disposição

da mão-de-obra às "forças naturais do mercado". A tradução jurídica dessa conexão expressava

um mercado de trabalho regido fundamentalmente pelo preço dos produtos (bens e serviços) e/ou

dos salários ? preço surgido justamente do encontro, garantido por uma liberdade formal e pelo

direito, entre compradores e vendedores de força de trabalho, vistos como empreendedores

(assalariados e donos de capital) supostamente independentes e racionais. De outro, a

racionalização social, inclusive a burocrática estatal, inaugurou um processo simultâneo de

padronização e especialização, de uniformização e expertise nos campos do conhecimento

aplicado que foi a base do esforço dos grupos profiss ionais ? a luta pela organização

profissional perpassa todo o século XIX e XX ? para criar um mercado de trabalho fechado ou

protegido e, também, para tentar estabilizar institucionalmente uma mão-de-obra rara e

qualificada, mantendo ou aumentando a sua posição social e seu prestígio. São duas lógicas que,

se não são incompatíveis por princípio, apresentarão dificuldades de harmonização entre si

durante todo o processo histórico de formação e desenvolvimento da democracia liberal. Não

causa surpresa, assim, que o paradigma liberal perceberá as organizações do mercado de trabalho

(quaisquer que sejam, inclusive e em particular as profissões) ou como exceções ? por isso,

necessitando de uma justificação funcional no campo macro-social ou macro-econômico ? ou

como produtos de monopolizações de fatias de mercado, incompatíveis com a livre circulação do

trabalho ? por isso, tendo a necessidade de serem criticadas ou abolidas.

As novas teorizações sobre as profissões, portanto, priorizam as análises sobre a

institucionalização do poder (status e privilégio) e a organização da economia (mercado de

54 Todas as sociedades devem encontrar uma solução ao problema da alocação de recursos e de mão-de-obra: "de um lado, o sistema de produção deve ser alimentado com os inputs de trabalho por ele requeridos; por outro lado, a força de trabalho deve ser abastecida com meios de subsistência monetários (renda) e sociais (status). O mercado de trabalho resolve os dois problemas de alocação simultaneamente, enquanto nas sociedades não-capitalistas ou pré-capitalistas encontramos predominantemente formas institucionais em que o tipo e o nível dos meios de subsistência fornecidos aos indivíduos dependem de outros fatores, e não das contribuições dos indivíduos para a produção social". (Offe, 1989:24). 55 Ver discussão sobre as transformações econômicas ocorridas na Europa do século XIX em Polanyi (1983).

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trabalho e de serviços), colocando os grupos profissionais como entidades econômicas e

estatutárias. Desse ponto de vista, o profissionalismo seria visto mais como uma estratégia

política do que como uma exigência funcional do sistema ou o resultado de configurações

relacionais. Weber é o ponto de convergência de todas essas teorizações, mesmo para aquelas de

cunho neomarxistas, provavelmente porque a teorização weberiana abordou direta ou

indiretamente questões relacionadas às profissões, além de ter criado categorias analíticas

extremamente úteis ao exame do fenômeno profissional. Um autor como Freidson, por exemplo,

embora seu trabalho sobre a profissão médica (1984) tenha um quê interacionista, produziu textos

sobre as profissões que têm um sentido weberiano.

Ilustrando melhor essa questão, acreditamos que, em relação à medicina, Freidson tentou

mostrar que, após as revoluções científicas na biologia, a profissão médica incorporou uma base

cognitiva apreciável que foi utilizada para deslegitimar outros conhecimentos concorrentes. Na

competição pelo reconhecimento social e pela legitimação, principalmente aquela auferida

através do Estado, a medicina moderna levou uma grande vantagem, a tal ponto que essa nova

competência médica tornou-se perigosamente invasiva, ocupando e dominando todo o campo

institucional da saúde ? inclusive, subordinando as outras profissões da saúde ao ditame médico

e conseguindo até impor políticas públicas56. Com isso, deixou de existir, segundo Freidson, a

distinção entre o conhecimento científico sobre a doença e a terapia ? elementos completamente

restritos à base cognitiva do saber médico ? e as modalidades sociais de sua aplicação, o que

significa dizer que o saber transformou-se em poder. Em termo weberianos, a medicina tornou-se

uma expertise ao anexar o político (controle das formas sociais de aplicação do saber),

amalgamando saber e poder. O monopólio da racionalidade científica aplicada ao campo

profissional criou peritos que fundam seu poder na aplicação de um dado saber numa área

importante do campo social.

56 Atualmente, estamos presenciando, no Brasil, toda uma série de controvérsias em torno do Ato Médico (Projeto de Lei 025/2002), que define que todo procedimento técnico-profissional de promoção, prevenção, diagnóstico e de tratamento de enfermidades são atos privativos do profissional médico. Ele é acusado, por outras profissões da saúde, em particular pelos psicólogos, de monopolizar as atribuições profissionais sanitárias na medida em que centraliza a organização das atividades de saúde na figura do profissional médico. Temos aqui um belíssimo exemplo de conflito interprofissional e de luta por espaços de saber e de competência.

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Na nossa opinião, toda essa seqüência de estados e mudanças possui como base o

processo de racionalização social, embora vários autores57 tenham colocado justamente o

contrário: o sintoma da racionalização social é a desprofissionalização, isto é, a padronização e a

rotinização das tarefas, dissolvendo a especialização, logo, a expertise. Embora concordemos que

a racionalização padronize a especialidade e torne rotina o que antes era um saber esotérico,

acreditamos que isso é apenas um lado do processo, pois acontece também e ao mesmo tempo o

inverso: a crescente especialização e complexidade das tarefas burocráticas e do serviço público,

necessitando da expertise e de formas aplicadas de conhecimento especializado. Inclusive,

examinando o desenvolvimento histórico do Estado Contemporâneo, percebe-se que o aparato

estatal e público tornou-se cada mais complexo e especializado, causando até mesmo um grande

problema de representatividade e de legitimidade democráticas. Talvez o processo de

racionalização não tenha como destino inquestionável o fim das profissões e sim aconteça o

contrário, isto é, a formação da expertise seja justamente sua conseqüência, ou seja, a

racionalidade legal-racional envolve também a criação de espaços cognitivos nos quais se exige a

aplicação de conhecimentos especializados impossíveis de serem padronizados. Se a

padronização determina a banalização de um campo de aplicação de conhecimento, logo, a perda

da autonomia técnica e do saber, seria fundamental, em tais espaços cognitivos, justamente por

razões práticas e de eficiência, o controle individual, por parte do especialista, da aplicação do

conhecimento no processo de trabalho.

Subtende-se aqui que nem sempre é possível reduzir um trabalho profissional a um

trabalho burocrático. Certo, a decomposição de trabalhos complexos em simples, permitindo a

padronização e rotinização das tarefas, é um dos fundamentos da burocratização, mas é preciso

que existam "disposições" técnicas e sociais para a "desprofissionalização". Assim, podem

ocorrer, por exemplo:

• situações nas quais um trabalho complexo tem a possibilidade técnica de ser

decomposto, mas é monopolizado por um grupo social que pode impedir a sua

decomposição;

57 Ver tal discussão em Diniz (2001: 39-42), quando analisa diversas posições sobre a desprofissionalização, conseqüência justamente da racionalização social. O tema da desprofissionalização é a contrapartida neoweberiana ao tema da proletarização dos neomarxistas.

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• situações em que o trabalho complexo não é formalmente monopolizado, mas não

existem condições técnicas para reduzi-lo;

• situações em que o trabalho complexo não é monopolizado e existem condições

técnicas para reduzi- lo;

• e, enfim, situações nas quais o trabalho complexo é monopolizado e não existem

condições técnicas para o decompor 58.

Acreditamos que o trabalho médico encarne esta última situação: um trabalho complexo

monopolizado por um grupo social específico e valorizado socialmente e que é, pelo menos por

enquanto, irreduzível tecnicamente 59. Por isso, a administração burocrática consegue menos se

apropriar do que impor limites de competências e um controle externo sobre o resultado do

trabalho profissional médico. A burocratização completa da atividade médica, abstraindo as

questões relacionadas ao poder e à legitimidade social, exigiria a red ução de um trabalho

complexo em vários trabalhos simples, o que reclamaria uma transformação qualitativa na

divisão social e técnica do trabalho60 ? esta situação hipotética eliminaria, a nosso ver, a

natureza profissional do saber médico enquanto tal. Contudo, essa hipótese não é a mais

provável, pois o que geralmente acontece é o desenvolvimento tecnológico criando a necessidade

de outras especializações médicas e, com isso, surgindo outros segmentos profissionais. Ainda

que novas técnicas possam substituir trabalho médico, geralmente os novos procedimentos não se

desenvolvem sem o trabalho de outros médicos. Provavelmente, o que se desqualifica é a tarefa

que a tecnologia e/ou a burocratização simplificaram e banalizaram, e não o profissional

propriamente dito. O profissional não perderia necessariamente a autonomia técnica por causa da

58 Evidentemente, não falamos, aqui, daquelas situações onde uma atividade perde o seu status profissional diante de uma inovação tecnológica. Nesse caso, o problema não é a decomposição do trabalho em trabalho simples, nem a perda do controle do saber, mas sim a substituição, pura e simples, de um saber por outro. 59 Contudo, em tese, a psiquiatria pode ser enquadrada na primeira situação. O trabalho em equipe na saúde mental pode decompor o trabalho psiquiátrico, retirando o monopólio do psiquiatra. Em algumas equipes, o psiquiatra só possui uma exclusividade: o tratamento medicamentoso. Daí a sensação de alguns entrevistados de estarem sendo "despossuídos"... 60 A transição histórica do artesão independente para o operário necessitou, é certo, de uma transformação na organização econômica e social, em suma, na divisão social do trabalho, mas também de uma série de invenções tecnológicas concomitantes, inclusive de natureza administrativa e de controle produtivo, como a manufatura. As mudanças na relação tecnologia/divisão social do trabalho permitiram paulatinamente a redução de um trabalho complexo, como o de um artesão, em vários trabalhos simples, como o de um operário. Ver posição contrária a esta acima defendida em Marglin (1989) e, para uma discussão mais geral sobre tecnologia e desenvolvimento capitalista, ver Elster (1989).

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desqualificação da tarefa ? geralmente, migra para outra área ou atualiza sua competência para

novos procedimentos.

A racionalização social, assim, não seria um processo unívoco de padronização e de

burocratização, bem como envolveria mais de um tipo de controle do trabalho. Freid son (1986),

ao analisar o mecanismo que conecta a institucionalização do saber e a monopolização do

mercado de trabalho, defende que exista, pelo menos idealmente, três tipos de controle do

trabalho: a) controle dos empresários, via a burocracia, principalmente da empresa privada; b)

controle dos consumidores, através do mercado ? visão liberal do mercado; c) controle dos

trabalhadores, correspondendo ao profissionalismo. Na nossa opinião, Freidson (1998: 191-263)

confere um lugar privilegiado, para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do profissionalismo, ao

modelo colegial – vocacional, ao mesmo tempo em que põe um peso importante, no estudo dos

grupos profissionais, no papel da ética e dos valores ? assim, para bloquear a razão instrumental

(racionalização legal-racional), nada como a razão substantiva; ou seja, uma operação que,

certamente, nutre-se do aporte weberiano. E, ao valorizar a racionalidade axiológica, Freidson

compartilha, nesse sentido, uma posição semelhante com a defendida pelo paradigma

funcionalista.

No fundo, há toda uma preocupação, não só de Freidson, mas também das novas

teorizações sobre as profissões, em criticar a crescente aproximação ou mistura entre o saber e o

poder ? o funcionalismo parece não perceber o problema, como se o profissionalismo fosse, por

definição, vacinado contra as interpelações do poder. Inclusive, podemos inferir que a análise

deveria ultrapassar a mera percepção de que o saber está fundindo-se ao poder no campo

profissional, pois, talvez, o pano de fundo da questão seja a crescente inscrição do conhecimento

científico no próprio mundo econômico. A ciência, desse ponto de vista, não pode ser mais

examinada como um processo exterior ao mundo produtivo, mas sim como um elemento

constituinte da própria produção econômica, a tal ponto de ser um fator incontornável da criação

do setor de produção de bens e de serviços no capitalismo. Marx (1980) faz, até mesmo,

referência a uma situação na qual a produção de valor através do trabalho seria substituída pela

produção de valor por intermédio do conhecimento ou da ciência. Numa sociedade onde a

produção dependeria cada vez mais do conhecimento científico, na produção do valor, a ciência

(conhecimento e informação) e o trabalho teriam papéis complementares.

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Os grupos profissionais, nesse sentido, manteriam uma relação particular com o setor de

serviços e com o saber em geral, a tal ponto que alguns autores colocaram essa relação especial

como fazendo parte fundamental da constituição de uma "nova classe média"61. Desse ponto de

vista, pode-se dizer que a profissão representaria, historicamente, uma forma de organização

privilegiada dessa "nova classe média". Um profissional assalariado, assim, não faria parte da

"classe dos trabalhadores", pois não estaria completamente "despossuído" ou "livre" no mercado

de trabalho, isto é, ele teria o controle coletivo, através da profissão, da formação e da utilização

de seu principal meio de produção: o saber profissional ? sendo este considerado como um meio

de produção, pois na sua ausência não há produção de serviço. Seria o monopólio de tal meio de

produção que produziria uma "reserva de mercado" — um dos fundamentos de uma profissão —,

e não o contrário: a "reserva de mercado" produzindo o monopólio. A profissão assalariada, dessa

forma, distinguir-se- ia da profissão liberal pelo fato de esta última deter, ao mesmo tempo, o

saber e os outros meios de produção necessários para exercer sua atividade.

Um médico liberal, por exemplo, possui uma "reserva de mercado" no setor de serviços e

não no mercado de trabalho, porque sua condição de profissional independente, detentor de todos

seus meios de produção e de sua força de trabalho, libera-o da necessidade de vender esta última,

oferecendo justamente o resultado de tal combinação (força de trabalho + meios de produção) no

mercado de bens e serviços. No entanto, a profissão liberal ainda é uma modalidade da

organização profissional, pois a diferença entre o liberal e o assalariado estaria no fato de que

possuem uma relação diferente com os dois tipos de mercados complementares ao capitalismo: o

mercado de bens e serviço e o mercado de trabalho. A unidade conceitual das duas modalidades

de exercício da profissão residiria no controle do processo de trabalho ? a autonomia técnica ?

e numa "possessão" coletiva de seu principal meio de produção, o saber, via organização

profissional. De todo modo, torna-se cada vez mais raro o exercício liberal na medicina,

principalmente o tipo "puro", que possui todos os meios para a produção do serviço médico, já

que o desenvolvimento tecnológico na profissão médica está impossibilitando o manuseio e a

posse individuais da alta tecnologia empregada.

61 As análises de Poulantzas (1978; 1985) seriam um exemplo de conceituação dos grupos profissionais como constituintes dessa "nova classe média". Para uma problematização do problema da noção de "classe média" no marxismo, Wright (1978;1985). Para uma crítica de matiz weberiana a essa conceituação, Diniz (2001).

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Já um médico assalariado, trabalhando num hospital privado, não dispõe dos meios de

produção necessários ao exercício de sua profissão, pois tais meios pertenceriam ao(s)

proprietário(s) do estabelecimento (sala de consulta, aparelhos de exames complementares, etc.)

— o médico assalariado estaria assim, de certa forma, "despossuído" de seus instrumentos de

trabalho. No entanto, visto que "possui" o controle coletivo da produção e da utilização do saber

médico por intermédio da organização profissional, ele estaria um "degrau" acima do que se

chama comumente de "trabalhador". Nesse sentido, a profissão assalariada representaria um caso

limite de desenvolvimento da forma profissional de trabalho, não implicando, mesmo que o

profissional fique sujeito à racionalização formal da burocracia e ao controle gerencial, a perda da

sua autonomia, isto é, o médico continua podendo propor solução, sem qualquer interferência

externa, a problemas no âmbito de sua exclusiva competência técnica.

Pelo que entendemos, a proletarização do profissional significaria a perda da autonomia

técnica, último reduto da independência do profissional. Pode acontecer até mesmo que o

profissional assalariado, pelas circunstâncias já arroladas, perca de vista a finalidade ou o sentido

do trabalho, mas, enquanto mantiver a sua autonomia técnica, conservará a sua condição de

profissional. A garantia coletiva do monopólio do saber faz com que as estruturas colegiadas,

típicas da profissão, protejam-na das estruturas burocráticas. Ora, quem julga o trabalho de um

profissional é outro profissional, mesmo que o primeiro esteja submetido a uma hierarquia típica

do modelo gerencial. Haveria, para o profissional, uma dupla proteção: de um lado, a autonomia

propriamente dita, propriedade de grupos ocupacionais organizados coletivamente, apresentando

uma mínima capacidade de regular, independentemente do fato de que a regulação seja delegada

pelo Estado, a formação profissional, a aplicação do saber e a delimitação das competências; de

outro, a autonomia enquanto expertise, ou seja, a ação técnica e cognitiva individualizada que

permite o mínimo controle sobre o processo de trabalho 62.

Indubitavelmente, o assalariamento implica alguma perda para o profissional, embora não

implique uma proletarização. Inclusive, muitas profissões recentes já surgiram assalariadas ? a

62 De todo modo, essa dupla proteção deve ser relativizada, pois existem profissões que não têm necessariamente auto-regulação, nem exclusividade cognitiva (enfermagem, serviço social e turismo), mas, apesar disso, mantêm um status profissional. Ver a propósito disso a discussão sobre o conceito de emulação de status ? profissões que copiam outros modelos profissionais para adquirirem status profissionais ? em Diniz (2001: 89-90).

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110

engenharia é um caso exemplar no Brasil: surgiu e continua predominantemente sendo

assalariada (Diniz: 2001). Mas qual seria a perda para a profissão no assalariamento?

Possivelmente, a condição assalariada implicaria a ausência de controle sobre os termos e as

condições do trabalho, cuja determinação passaria pelo âmbito da hierarquia gerencial. Como já

dissemos, o profissional assalariado não mais dominaria as circunstâncias de sua atividade,

principalmente no que concerne os fins e sentido do seu trabalho. Resgatando uma noção do

interacionismo, a carreira profissional não é eliminada sob a condição assalariada. A tarefa e a

posição no processo produtivo podem até ser desqualificados; contudo, enquanto a autonomia

técnica for preservada, enquanto existir um monopólio de mercado, a estrutura de oportunidades

criada por essas duas condições permite ao profissional a preservação de uma carreira normal ?

um dos benefícios do fechamento é uma estabilidade ocupacional que torna possível a construção

de uma carreira.

Os problemas analisados acima, justamente o crescimento do assalariamento e o declínio

da modalidade liberal da profissão, são interpretados, por alguns neomarxistas, em particular

Johnson (1972), como a transição de uma forma profissiona l baseada na auto-regulação para uma

nova forma fundamentada na "proteção corporativa" (corporate patronage). O ator principal

dessa passagem é o Estado, quando passa a implementar mecanismos de controle nos setores de

serviço. A exigência de controle acontece quando o capitalismo torna -se monopolista, e o Estado

assume de vez a responsabilidade de assegurar a reprodução da força de trabalho necessária ao

funcionamento e à valorização do capital. Sendo a profissão uma produção de serviços, a relação

entre profissão e Estado torna -se uma articulação, muitas vezes problemática, entre a regulação

do mercado, realizada por várias organizações econômicas, e o controle estatal dos setores de

serviço. O Estado passa a delegar, principalmente no capitalismo monopolista, autonomia a

alguns grupos profissionais para gerir uma fatia do mercado de serviços. Por causa dessa

delegação, o Estado e as profissões partilham, digamos assim, o controle e a reprodução ampliada

da força de trabalho. Como toda regulação de interesses tem sua contrapartida, a partilha obriga

as profissões a prescindir da auto-regulação, trocando-a pela "proteção corporativa", ao mesmo

tempo que força o Estado a renunciar ao controle e à gestão de setores do mercado de serviço.

Seria justamente o fechamento de um mercado, para uma autora como Larson (1977), o

objetivo supremo das profissões. Ela chama esse objetivo de "projeto profissional", cuja natureza

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111

não é subjetiva ou construída individualmente, sendo sim um processo histórico e objetivo no

qual um grupo profissional adquire o monopólio do mercado. O "projeto profissional" é, assim,

uma estratégia histórica e coletiva de constituição de um mercado profissional. E, como a

constituição de um mercado profissional não significa apenas um processo puramente

econômico, pois necessita de legitimação e reconhecimento sociais, o fechamento ou a clausura

social (social closure) representa o resultado da junção entre o monopólio de um mercado e o

reconhecimento social de um saber. Nesse sentido, o fechamento é um processo ao mesmo tempo

econômico e cultural, envolvendo a gestão de uma fatia do mercado, um saber reconhecido e

transformado em expertise e, conseqüentemente, produtor de poder. É um saber operacional e

capaz de ser transposto para o mercado. Sua operacionalização é adquirida através da formação

profissional e, por isso, a universidade ocupa um papel central, inclusive como fomentadora de

valores e crenças. E seria na universidade que se realizaria de forma concreta uma das

conseqüências do igualitarismo moderno: a diferenciação individual baseada no mérito. Larson,

aqui, faz uma crítica à ideologia meritocrática, justamente à crença numa desigualdade natural

das inteligências individuais, cuja legitimação permite a seleção entre indivíduos com os mesmos

direitos e as mesmas chances. Seria o Estado quem garantiria e, até mesmo, reproduziria a crença

meritocrática ao manter um sistema de educação nacional, validando a idéia da igualdade de

chances entre indivíduos competindo por posições e disposições sociais ? são sujeitos

juridicamente individualizados, pois a igualdade de chances é um direito individual e não

coletivo. Assim, através do mérito, potencializado pela formação educacional, legitima-se o

monopólio da competência ou das habilidades (Diniz: 2001). O mérito é o sinal do sucesso do

indivíduo no sistema e sua visibilidade mais fidedigna passa pela aquisição de um diploma ?

adquiri- lo passa a ser um sinal de competência e, em torno de sua posse, acontece uma

competição acirrada.

Desse ponto de vista, a igualdade de chances é uma ilusão, já que não pode realmente

existir numa sociedade ainda baseada na desigualdade social. O mérito não se constitui pela

aquisição de uma competência, consumada a partir de uma condição igualitária, e sim por

disposições sociais alicerçadas na exclusão social. O diploma seria menos um sinal de sucesso do

que um instrumento de exclusão, tornando ideológica a ficção da igualdade de chances. Sendo

assim, o profissionalismo torna-se naturalmente o principal suporte da ideologia meritocrática,

identificada à ou mesmo afirmada como suporte importante da ideologia dominante. Estamos

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112

aqui diante de teses weberianas prontas para se transformarem em proposições neomarxistas?

Ora, colocar o profissionalismo como fazendo parte da ideologia dominante é um passo para

julgar o profissionalismo como instrumento ideológico do capital. O profissionalismo, assim,

deixaria de ser apenas um processo social de conquista de uma legitimidade, tornando-se uma

ideologia funcional à dominação no capitalismo. O próximo passo é considerar, tal qual Wrigth

(1980), o controle sobre as competências ou as habilidades como uma exploração de classe. A

partir do momento em que se impede o acesso ao mercado de trabalho através de

credenciamentos educacionais, criando uma escassez artificial de pessoas habilitadas e

impossibilitando indivíduos não qualificados a exercer o trabalho, estaríamos diante de uma

exploração de classe. Mas por que exploração? Ora, os profissionais receberiam uma

remuneração maior do que o custo da produção de suas habilidades, justamente por causa do

fechamento que cria uma escassez de oferta de profissionais no mercado de trabalho. A diferença

entre remuneração e custo de produção perfaria uma espécie de mais-valia, a renda credencial!

Entretanto, essa renda não seria suficiente para equiparar os profissionais a novos burgueses ?

afinal, a mais-valia tradicional ainda é o mote supremo da exploração de classe ? , mas sim de

situá- los numa posição contraditória de classe.

Mas, para se produzir uma desconstrução radical da profissão, não há necessidade de se

passar para uma posição neomarxista. Ficar em Weber, basta. Inclusive, como afirmou Parkin

(1979: 25), "dentro de cada neomarxista parece haver um weberiano lutando para sair" e ?

acrescentaríamos ? vice-versa. A própria concepção da profissão como fechamento de um

mercado pode levar à percepção dos grupos profissionais como grupos de status, logo, enquanto

tais, legalmente privilegiados. O fechamento, objetivo do projeto profissional, já seria a

realização de uma estratégia de exclusão. Como escreve Diniz (2001: 128), baseando-se em

Weber, fechamento social é

o processo pelo qual coletividades sociais restringem, ou procuram restringir,

o acesso a recursos e oportunidades, geralmente de natureza material, a um

estrito círculo de elegíveis como forma de eliminar a competição; forma-se,

assim, um grupo de interesse que, persistindo o interesse monopolístico, pode

conseguir apoio legal para estabelecer um monopólio formal transformando-se

num grupo legalmente privilegiado.

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113

Fechamento significa, em suma, exclusão e monopólio. Ele se realizaria através do

credenciamento, base de uma estratégia legalista de exclusão. As credenciais acadêmicas seriam

vistas como critérios excludentes de qualificação no mercado de trabalho. Pode-se indagar,

todavia, se até que ponto o critério meritocrático relativizaria a noção de grupo profissional como

grupo de status. Mas, como já vimos, a indagação sequer consegue se esboçar, já que, por

definição, o critério meritocrático é ideológico, sendo uma crença que mascara justamente a

exclusão perpetrada pelo credenciamento. Neutralizando assim o argumento meritocrático,

afirma-se o da exclusão e a definição dos grupos profissionais como grupos de status. O

monopólio profissional torna-se um fenômeno de poder, uma luta política pela realização de

interesses e privilégios. O projeto profissional, mesmo no sentido de Larson (1977), é assim um

projeto ideológico e de poder.

Porém, mesmo sendo de poder, o projeto profissional seria também um de saber? Sim,

embora seja um saber completamente acoplado aos ditames do poder, a ponto de se questionar a

própria base cognitiva da expertise profissional. O questionamento é amplo e, de uma forma

geral, critica a expertise de duas formas: a) a expertise ou a base cognitiva de uma profissão é

irrelevante do ponto de vista de sua gênese histórica; b) a expertise não é fundamental para se

definir a natureza de uma profissão. Na primeira forma, os estudos históricos prevalecem,

mostrando que a medicina, por exemplo, tornou-se uma profissão antes que qualquer forma de

superioridade técnica pudesse fazer alguma diferença, isto é, a expertise médica só aparece

depois da consolidação política da profissão e do fechamento de mercado63. Na competição com

outras terapias alternativas, a base cognitiva da medicina foi irrelevante e, o que pesou de fato, foi

uma luta política baseada numa construção ideológica cujo ideário era a defesa da medicina como

a única forma possível de se tratar as doenças. Através dessa estratégia político-ideológica, a

medicina conquistou o mandato exclusivo de tratamento das patologias, "descredenciando" todas

as outras terapias concorrentes. Não sendo mais eficaz do que outra terapia alternativa, o seu

mandato exclusivo foi construído através de uma estratégia que não passaria necessariamente

pela legitimidade cognitiva do saber ? a capacidade de um saber de produzir conhecimentos e

63 Essa tese é defendida por um amplo leque de autores: Larson (1977), Collins (1990), Campos (1999), Goldstein (1997), Sournia (1992), Foucault (1987).

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intervenções práticas em relação ao objeto de disputa (no caso da medicina, a produção de

conhecimento e tratamento eficaz das doenças).

A radicalização dessa tese acontece quando o papel diminuto da expertise na gênese da

profissão é transferido à totalidade da história profissional. Todavia, uma coisa é afirmar que a

expertise teve um papel secundário no surgimento da profissão, uma outra é, a partir desse fato

histórico, extrapolar a irrelevância da base cognitiva profissional para todas as fases do

desenvolvimento da profissão. O processo (diga-se: o desdobramento histórico da profissão) não

se esgota na gênese (leia-se: o surgimento histórico da profissão). O papel secundário atribuído à

expertise na formação histórica da profissão não é "carregado", como um destino, pela história

profissional ou, para utilizar outros termos, não há uma imanência na história profissional que

relegue eternamente a expertise a um papel secundário. A medicina, por exemplo, até as últimas

revoluções científicas da biologia, em particular a patrocinada por Pasteur, possuía uma relativa

legitimidade social, sofrendo a concorrência de terapias alternativas, simplesmente porque sua

base cognitiva ? leia-se: seu difuso e confuso conhecimento patológico e sua ineficácia

terapêutica ? era frágil e tão ineficiente quanto à dos seus concorrentes. Entre um médico e um

curandeiro, a diferença era, do ponto de vista da eficácia do tratamento, muito relativa. O que as

ciências biológicas trouxeram à medicina foi, primeiro, a legitimidade científica de sua base

cognitiva ? a etiologia científica das doenças ? e, segundo e mais posteriormente, uma eficácia

inigualável. Das diversas práticas e saberes terapêuticos existentes, a medicina foi a única que

conseguiu legitimar-se através da ciência. Sendo o conhecimento científico a base de legitimação

da maioria dos discursos e das práticas profissionais na atualidade, fica fácil perceber o imenso

aporte simbólico que acarretou a transformação da medicina numa medicina científica. Sua

relação com a ciência trouxe ainda mais um adendo ao tornar-se tecnológica e compulsiva pelo

resultado, essa obsessão proveniente de um mundo dominado pela técnica. Em suma, embora a

expertise possa ter tido um papel irrelevante na gênese da profissão médica, a partir das

revoluções biológicas, a base cognitiva da medicina ampliou-se e se tornou fundamental para a

sua legitimação e para sua realização enquanto prática profissional.

A segunda crítica à expertise procura mostrar que a base cognitiva de uma profissão não é

fundamental para a sua definição. Com exceção das posições funcionalistas e neofuncionalistas,

praticamente todas as outras posições colocam a expertise profissional numa posição secundária a

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115

outros atributos, os quais são vistos como fundamentais para a caracterização da profissão. Como

já vimos acima vários exemplos dessas posições, o que analisaremos agora é a radicalização da

crítica à expertise, quando não só sua importância é negada, mas também sua existência enquanto

tal. Collins (1990)64, por exemplo, identifica expertise com educação formal, especificamente

aquela que é adquirida em uma formação universitária. Como para este autor as habilidades

técnicas do médico são adquiridas na prática, portanto, depois da formação profissional, e como,

por definição, a aquisição da expertise somente ocorre através da educação formal, logo, não

haveria expertise na medicina. O conhecimento médico seria adquirido in job65, isto é, no

trabalho, já que a formação universitária transmite habilidades que não são requeridas na

atividade profissional. Há aqui uma clara desqualificação do ensino médico na transmissão do

conhecimento técnico e profissional, porque, para Collins, o ensino médico é constituído por

materiais secundários que não terão influência na prática profissional, esta sim formadora da

experiência e do conhecimento médico. A importância da formação universitária teria menos

relação com a formação da base cognitiva da profissão do que com a interiorização de valores e

condutas da profissão ? o ensino médico enquadra o estudante para se adequar à vida

profissional. A formação universitária seria, assim, uma formação mais axiológica e normativa do

que técnica e profissional. A educação formal seria funcionalmente relacionada à criação de

vocação ou, digamos assim, de honra ocupacional, produzindo recursos simbólicos que serão

traduzidos em status e posições ocupacionais privilegiadas66.

Quando alguns médicos afirmam que sua profissão é uma "arte" e não uma ciência

(Freidson: 1984; Strauss: 1992; Perrusi: 1995), querem dizer muitas vezes com isso que a

formação universitária não é tão fundamental quanto a experiência profissional. Assim,

concordariam com a observação de Collins de que o saber médico é adquirid o in job, embora

talvez não admitissem que esse conhecimento adquirido na prática não seja, de fato, uma

expertise. Além do mais, Collins define a expertise como uma competência técnica efetiva que

produz resultados demonstráveis e que pode ser transmitida através do ensino; ora, é bem

64 Seguimos aqui a discussão de Diniz (2001) sobre Collins. 65 Sem necessariamente criticar a educação formal e a expertise, Freidson (1984) faz a mesma observação. 66 Pode-se fazer, aqui, uma aproximação com as posições de Bourdieu (1970;1980), quando da sua discussão sobre o capital social e o simbólico e sua transformação em posições e disposições sociais privilegiadas.

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provável que os médicos julguem seu conhecimento como efetivo, eficaz e perfeitamente

transmissível por intermédio da educação, discordando, portanto, da afirmação de que o saber

médico não é uma expertise. Nesse sentido, pode-se intuir que, se a medicina não é uma

expertise, a crença de que seja uma de fato é um produto ideológico derivado principalmente da

formação universitária ? ocorre nela a reprodução de uma ficção (a medicina como expertise)

que tem efeitos reais, principalmente no imaginário social e nas representações sociais, já que são

as próprias instituições profissionais da medicina, incluindo os médicos, que legitimam a ilusão.

E, se a expertise médica não tem importância ou é uma ilusão, a psiquiatria, então, cujos

resultados são tão controvertidos, passaria longe de um conhecimento que produz resultados

demonstráveis e efetivos. Nesse caso, considerar o saber psiquiátrico como uma expertise seria

uma completa fantasia, a começar que os benefícios do tratamento psiquiátrico ainda concorrem,

segundo essa posição, com os acasos e os efeitos placebos de outras terapias alternativas. Por

causa disso, inclusive, a psiquiatria seria considerada uma pseudoprofissão ou, na melhor das

hipóteses, uma ocupação com status profissional problemático.

Tais posições contra a expertise são, geralmente, acompanhadas por uma subestimação do

papel da ciência na formação do saber profissional. Inclusive, é isso o que faz Diniz (2001: 170)

quando afirma: "a prática cotidiana dos médicos apóia-se muito pouco nas ciências

biológicas...". O raciocínio, nos desdobramentos produzidos pela autora, não inclui apenas a

prática médica, mas também todas as profissões: o conhecimento posto em prática pela

engenharia teria, igualmente, uma relação um tanto distanciada das ciências físicas, assim como,

oferecendo outro exemplo, o direito não teria, segundo Diniz, uma base científica. Examinando

melhor a argumentação, percebe-se que, ao se atacar a base científica das profissões, fica

logicamente mais fácil a crítica ao credenciamento enquanto tal:

as credenciais acadêmicas dos profissionais, antes de serem a expressão de

algum critério meritocrático para acesso a vantagens e privilégios

ocupacionais constituem, independentemente do conteúdo do conhecimento

que elas possam atestar, uma regra de exclusão social e de monopolização de

posições privilegiadas no mercado de trabalho e de status na hierarquia

ocupacional (171 – no texto original, o negrito aparece em itálico).

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O argumento, como se percebe, é enfático: ainda que houvesse uma demonstração de que

o saber profissional tem uma base científica, o credenciamento não teria sua legitimidade

auferida da ciência, nem do mérito, já que as credenciais acadêmicas são, por definição, uma

regra de exclusão social e de monopólio de status. Como a expertise e a base científica da

profissão são desconsideradas, o que resta é uma definição de profissão totalmente identificada às

injunções do poder e da busca de privilégio. Por isso, a legitimação do fechamento profissional

pelo mérito (credenciais acadêmicas) e pela expertise (base cognitiva) é vista como uma

construção ideológica, ou melhor, como um efeito do exercício do poder profissional, o qual

mascararia, através de uma prática discursiva baseada no merecimento e na ciência, a verdadeira

natureza excludente e monopolista da profissão. Todo o discurso meritocrático e

(conseqüentemente) igualitário sobre a profissão é desconstruído e posto em questão; inclusive, o

suposto igualitarismo profissional, baseado na meritocracia, é uma construção aparente, pois o

que o profissionalismo perpetua realmente no meio social é um tipo de hierarquização social: a

hierarquia ocupacional.

Posto isto e finalizando a discussão, podemos fazer agora algumas observações críticas às

posições descritas acima:

Ø ao identificar educação formal e expertise, mas deduzindo que o conhecimento

profissional é adquirido in job, Collins diminui a importância cognitiva da

expertise. Com essa estratégia, vai-se além da inferência de que conhecimento

profissional e organização social do trabalho não podem ser analisados

separadamente, pois se deduz também que a organização social do trabalho produz

o conhecimento profissional. As conseqüências desse raciocínio são várias: a) o

conhecimento profissional, subsumido na experiência de trabalho, não tem

verdadeiramente uma base científica; b) a base cognitiva da profissão não é

universalizável, pois local e restrita à multiplicidade das situações de trabalho ? o

saber é artesanal; c) o conhecimento produzido possui uma dependência relevante

dos processos de negociação entre os diversos atores envolvidos na situação de

trabalho. O saber fica dependente da posição social do profissional, de sua

experiência e formação acadêmica, da hierarquia profissional e da instituição onde

os profissionais trabalham e foram treinados ? em suma, o resultado é produto do

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118

encontro de diferentes "mundos sociais" institucionalmente fixados,

personificados por cada profissional; d) tal base cognitiva não é alicerçada em

proposições objetivas, advindas da ciência, e sim em interpretações subjetivas

condicionadas pelas circunstâncias nas quais se encontram os atores envolvidos;

Ø como o conhecimento profissional adquire-se in job, a ciência, que seria, em tese,

a base da educação formal universitária, ficaria preterida do processo de aquisição

do saber profissional. A educação formal é, praticamente, identificada ao

enquadramento normativo do futuro profissional ? a base cognitiva seria somente

adquirida durante a experiência de trabalho. Há, aqui, uma clara subestimação do

papel atual da ciência na formação profissional, mais ainda em se tratando da

formação médica. Embora possamos concordar com a crítica do papel normativo

da educação universitária, achamos um claro exagero, por exemplo, a afirmação

de que "a prática cotidiana dos médicos apóia -se muito pouco nas ciências

biológicas...". ? talvez não se apóie de forma exclusiva, mas certamente há

alguma base científica. O médico não é um cientista, mas aplica, como

profissional, diversos conhecimentos e saberes advindos, sem dúvida, de sua

prática, mas também de sua formação profissional, a qual não pode ser reduzida a

um mero papel normativo ou, em outros termos, a um aprendizado de como se

exerce uma forma de poder que cria status e posição social. Reduzir ou eliminar o

papel da ciência na formação profissional faz com que a análise perca de vista

justamente o que, de fato, legitima atualmente, para o bem ou para o mal, a base

cognitiva da medicina: a ciência;

Ø geralmente, expertise é identificada a um conhecimento adquirido na prática ?

um saber facilmente operacional. Como parece que, nessa posição, a expertise

confunde-se com o exercício do poder profissional e a educação formal com o

enquadramento normativo, ela findou sofrendo um deslocamento conceitual,

tomando o caráter de um conhecimento adquirido formalmente e distante da

experiência de trabalho; com isso, provavelmente, preserva -se melhor uma

posição teórica que a considera como um meio de transmissão e afirmação do

poder profissional ? a base cognitiva, assim, é nitidamente desconsiderada.

Discordando dessa abordagem, consideramos que a expertise médica, por

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119

exemplo, possui uma inegável base cognitiva, tanto proveniente da medicina

científica, como da experiência no trabalho, ao mesmo em que é uma forma de

exercício de poder. Do nosso ponto de vista, reconhecer a expertise implica em

percebê- la como uma atividade cognitiva que envolve desdobramentos práticos no

qual estão inscritos, de um modo um tanto indissociável, saber e poder;

Ø temos a impressão de que o pano de fundo ou a priori da discussão sobre a

expertise, nunca verdadeiramente explicitado ou problematizado, repousa na

crença da igualdade cognitiva, cujo alicerce provável encontra-se num dos valores

principais da modernidade: a igualdade. Podemos resumir tal crença da seguinte

forma: "... todas as pessoas têm a mesma capacidade potencial e (...) são todas

capazes, portanto, de aprender todas as habilidades especiais que constituem o

universo do trabalho em nossa sociedade" (Freidson: 1998, 200). Algo semelhante

a essa visão já se encontrava no jovem Marx (2001) quando de suas invectivas

contra a especialização trazida pela divisão social do trabalho; assim, a

especialização é percebida como redutora do potencial humano, justame nte por

impedir o indivíduo de realizar a sua polivalência intrínseca, já que estaria

limitado a apenas uma tarefa (especialização) no trabalho. Mesmo assumindo

como verdadeira a hipótese da igualdade cognitiva, um mundo sem especialização

é possível? Certamente, porém seria um mundo onde a divisão social do trabalho

fosse bastante simples, permitindo ao indivíduo assumir, ao mesmo tempo,

diversos papéis e funções no trabalho, ou ainda, seria um mundo onde a escassez,

relativa ou absoluta, tivesse desaparecido e onde não existisse mais a necessidade

do trabalho, como na utopia comunista. Contudo, na sociedade atual, é impossível

que uma pessoa consiga abarcar todo o leque de atividades e saberes ?

simplesmente, não há tempo e recurso para isso. A especialização é uma

necessidade objetiva que preenche a lacuna deixada pelas nossas limitações de

tempo, espaço e cognição na divisão social do trabalho de uma sociedade

complexa;

Ø a crítica total à expertise pode levar ao seguinte paradoxo, caso se admita que um

cientista social, por exemplo, é um profissional: se a ciência tem pouca

importância na constituição do saber profissional, logo, a inferência do cientista

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social de que a profissão possui uma diminuta ou mesmo nenhuma base científica

torna-se contraditória. Continuando o raciocínio, digamos que essa paródia da

afirmação de Diniz, "a prática cotidiana dos cientistas sociais apóia-se muito

pouco nas ciências sociais...", tenha alguma validade, já que, por definição, o

saber profissional fundamenta-se muito pouco no conhecimento científico; ora,

estamos aqui diante de uma contradição performativa ? como um cientista social

pode afirmar cientificamente que a expertise não tem uma base científica, se seu

saber profissional, justamente a sua expertise, na prática cotidiana, apóia-se muito

pouco nas ciências sociais? Pode-se argumentar contra esse raciocínio que o

cientista social não é um profissional e sim um cientista, ainda que na aparência

sua atividade tenha as características de uma ocupação profissional; assim, o

conhecimento sociológico produzido sobre as profissões, que nega ou diminui sua

fundamentação científica, seria científico. Pode-se argumentar ainda que cientista

social é uma profissão que garantiria, por algum motivo especial, intrínseco à sua

prática profissional, a cientificidade da sua expertise. Nesse caso, a expertise dos

cientistas sociais estaria imune às injunções do poder profissional, como acontece

nas outras profissões. A profissão de cientista social seria, assim, uma profissão

habilitada a dizer que as outras profissões têm uma base científica nula ou pouco

pronunciada;

Ø se a crítica à expertise possui uma relação com a defesa do igualitarismo

cognitivo, a condenação do credenciamento tem uma vinculação com a defesa do

igualitarismo tout court. 67 Há uma conexão entre as duas críticas e os dois tipos

de igualitarismo ? a defesa da igualdade cognitiva pode ser considerada como

uma conseqüência da defesa da igualdade social e econômica. Até mesmo porque

o credenciamento é o resultado da institucionalização da expertise. A sua

necessidade surge a partir do momento em que é preciso "...haver algum modo

convencional pelo qual as pessoas possam identificar um especialista sem

67 No século XIX, nos EUA, tivemos um exemplo eloqüente de defesa de igualitarismo radical: "uma advocacia sem advogados e uma medicina sem médicos, a prática de uma e outra aberta a todo e qualquer cidadão, tal era o princípio do igualitarismo radical que os republicanos jacksonianos opunham tanto ao monopólio da 'arte de curar' quanto aos privilégios de status reivindicados por médicos e advogados " (Coelho, 1999: 37).

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121

depender de testemunhos verbais, de experiência pessoal anterior ou do emprego

de teste, arriscado e consumidor de tempo e de recursos" (Freidson: 1998, 202). O

credenciamento é uma forma de controle social da expertise que tenta garantir a

qualidade do serviço, ao impor critérios meritocráticos na produção social da

expertise. É um controle da formação de competências. Claro, como já vimos,

pode ser visto também como uma forma de fechamento de mercado e, por isso, de

exclusão social. É por isso que, do ponto de vista de uma economia política

liberal, o credenciamento é percebido como uma cartelização do mercado de

trabalho. Uma posição que defende o mercado de trabalho livre de restrições à

competição pensará o credenciamento como um "cercado social". Sem

credenciamento, o mercado seria encarregado do controle social da expertise na

sociedade. Controlaria a qualidade dos serviços simplesmente através da demanda

e da oferta de serviços. Todos, em tese, poderiam oferecer serviços médicos, por

exemplo, mas a demanda, através do movimento de consumidores, selecionaria a

qualidade dos produtos oferecidos e a competência dos prestadores de serviço.

Aqui, não se coloca propriamente em questão a necessidade da especialização ou

da expertise, e sim a forma de controle que impõe o credenciamento. Pode-se

imaginar que o mercado poderia, em princípio, controlar a distribuição das

competências e a qualidade dos serviços ? mas, e a produção da expertise? O

controle da distribuição implica o controle da produção? O controle da produção

da expertise não implicaria outra forma de controle diferente daquele do mercado?

Uma forma mínima de credenciamento? De todo modo, um controle

mercadológico das competências, para ser eficaz e justo, implicaria uma situação

um tanto utópica na qual as informações sobre competências ? logo, também

sobre seus produtos ? fossem acessíveis a todos. Como isso não parece fac tível, a

conseqüência mais plausível seria vermos os consumidores ficarem aprisionados

numa lógica interminável de escolha na base da tentativa e erro. Num certo

sentido, seria transpor a lógica do supermercado, onde o consumidor pode

escolher livremente os produtos, para o campo da oferta de serviços ? um

supermercado ocupacional?!

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122

Ø por selecionar, ainda que seja através de critérios meritocráticos, o credenciamento

é excludente ? mas, toda seleção, quer queira quer não, é excludente, inclusive,

por exemplo, a lógica do mercado. O problema, na verdade, é saber se as bases

dessa seleção são justas ou não. Numa sociedade na qual um dos valores

fundamentais é a igualdade, o critério meritocrático permite, não só a realização

desse valor, mas também o acesso a um sistema de oportunidades. Contudo, ainda

que o credenciamento tenha como base o critério meritocrático, em várias

situações pode não ser justo (1998: 204). Talvez a solução seja a construção de um

consenso em torno de quais ocupações necessitam ou não de credenciamento, ao

invés de se negar completamente o credenciamento ou, ao contrário, de

simplesmente absolutizá- lo;

Ø um argumento positivo a respeito do credenciamento procura demonstrar que este

cria um "abrigo", isto é, uma proteção para o profissional. Sem essa proteção, o

profissional não teria estímulo suficiente para investir numa carreira ocupacional,

num treinamento longo para adquirir uma expertise. Nesse sentido, "o

credencialismo é um artifício institucional fundamental para motivar as pessoas a

investir tempo, esforço e a perder ganhos no período de treinamento necessário

para a aquisição de tipos específicos de expertise" (1998: 204). O credenciamento

cria uma relação de compromisso com o trabalho que alicerça a identidade

profissional e, conseqüentemente, reproduz a vocação. Nessa argumentação, a

ausência do credenciamento dificultaria o compromisso e o investimento de si no

trabalho profissional;

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123

VIII. Capítulo III

A. Representação e Psiquiatria

1. Representação social e saber médico

Não fizemos aqui uma análise aprofundada 68 do conceito de representação social, pois, na

verdade, nosso interesse foi apenas o de situar o campo de aplicação do conceito em relação aos

objetivos de nossa pesquisa. Fizemos, assim, um uso pragmático do mesmo, adaptando-o à nossa

problemática. Claro, isso tem um preço, começando pelo fato de que não fomos fidedignos ao

uso canônico do conceito. Podemos até justificar isso, já que a noção de representação social é

um tanto polissêmica, apresentando vários tipos de apreensão teórica. Nesse sentido, depe ndendo

do contexto, flexionamos o conceito a ponto de, muitas vezes, identificá- lo a noções como visões

de mundo, ideologia, imagens, opiniões... Freqüentemente, usamos o conceito no sentido geral de

representação ou de idéia, como um conteúdo concreto apreendido pelos sentidos, pela

imaginação, pela memória ou pelo pensamento. De todo modo, sua utilidade vem da premissa de

que, para o estudo de processos identitários, há de se inferir elaborações representacionais. A

identidade envolve algum tipo de representação, seja de si mesmo, seja de grupo. Como a

identidade profissional é uma "construção social", pode-se perfeitamente imaginar que se

constitui através de representações partilhadas por várias pessoas que fazem parte de um

determinado grupo e, sendo partilhadas, são coletivas ou sociais ? mas, essa premissa não é

propriamente definidora do conceito de representação social... embora tivesse bastado aos nossos

intentos. Outra razão para o uso do conceito foi a sua importância na elaboração da noção de

representação profissional, se bem que, para isso, a premissa referida acima tivesse sido

suficiente. Porém, o trabalho de Blin (1997) convenceu-nos da necessidade e da utilidade de se

partir da noção de representação social para construir a de representação profissional. Enquanto

tal, mesmo tendo algumas especificidades, teria as características típicas que os diversos teóricos

afirmam ter a representação social. Enfim, como para nós a discussão sobre representações

profissionais tinha um valor empírico pronunciado, por comodidade espalhamos sua análise

conceitual na parte empírica de nosso trabalho.

68 Para isso, remetemos ao nosso próprio trabalho (Perrusi, 1995).

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124

O conceito de representação social possui um parentesco pronunciado com o de

representação coletiva, elaborado por Durkheim. Pode-se dizer que o primeiro é o segundo... sem

holismo. Além do que, com o uso e a operacionalização, o conceito de representação social teve

um aprofundamento teórico sistemático. A noção durkheimiana implica, por causa de sua

natureza holística, postular que a sociedade é um sujeito sui generis que produz pensamentos

coletivos, cuja substância não é redutível ao pensamento individual. Exceto numa forma

estenográfica, não é plausível imaginar uma sociedade que pensa ? definitivamente, quem pensa

são os indivíduos, o que não impede que os conteúdos do seu pensamento sejam sociais.

Portanto, irredutível ao individual seria a representação coletiva, justamente por ser social. Por

que social? Ora, porque a representação significa um tipo de conhecimento do real partilhado por

uma comunidade de indivíduos ? conhecimento que se constrói, assim, de forma coletiva.

Contudo, parece-nos que o conceito de representação coletiva procura apreender formas sociais

de representação semelhantes ao mito, isto é, procura discernir a formação de um imaginário, de

formações ideativas mais estruturais, mais inseridas na constituição simbólica de uma sociedade.

Não que a representação social não possa ser concebida desse modo69, mas geralmente

encontram-se, no seu estudo, conteúdos mais superficiais e transitórios, muitas vezes esgotados

no próprio contexto de sua formação e existência. O objetivo de Durkheim (1994) parece ter sido

o de estudar modelos cognitivos de longo alcance (Goldhagen, 1997), enquanto o de Moscovici

(1978), ao menos inicialmente, foi o de apreender determinadas formações ideativas, muito

parecidas com a noção de "universo de opiniões" (Moliner, 1996), num determinado contexto

social. Por isso, talvez, a preocupação deste último na formação de consenso em torno de

determinados objetos sociais (psicanálise, doença...).

Ao extirpar o holismo da noção durkheimiana, a teoria da representação social permitiu a

entrada em cena dos indivíduos socializados, portadores de experiências baseadas nas interações

sociais. O foco passa a ser o indivíduo em interação com outros indivíduos a partir da rede de

significações construída em torno de objetos sociais relevantes. Constrói-se, assim, um

conhecimento que é eminentemente social, pois construído e partilhado através das interações

sociais entre indivíduos. Através da representação, o indivíduo toma posição em relação a um

objeto social. A tomada de posição regula, de alguma maneira, as interações que o objeto suscita

69 O estudo de Shurmans (1990) parece seguir essa direção.

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125

? por isso, a representação pode ser considerada como um princípio gerador de tomada de

posição e, conseqüentemente, como reguladora e organizadora de interações sociais. Percebemos,

aqui, que o controle do objeto por parte dos indivíduos é essencial à constituição da representação

? controlar a representação do objeto tem como conseqüência o controle do próprio objeto.

Sendo relevante, o objeto faz parte do dia-a-dia dos indivíduos (experiência comum) e, por isso,

fator importante para a formação do grupo. Ele é, desse modo, um problema identitário que

precisa ser resolvido para o bem da comunidade. Daí a necessidade do controle, pois há sempre o

perigo de que a inadequação do objeto em relação às crenças dos indivíduos torne-se uma querela

identitária e uma causa de desestabilização do grupo.

Controlar o objeto significa classificá- lo, ordenando-o num sistema de categorias

cognitivas estável e seguro. Os psicólogos sociais chamam essa ordenação simbólica de processo

de categorização. A categorização não é processo fácil, pois os objetos sociais são polimorfos,

podendo ser apreendidos por várias maneiras diferentes. Há a necessidade para a comunicação

social de um controle da indeterminação inerente aos sentidos do objeto. Assim, re-conhece-se o

objeto, dando-lhe um valor que o torne pertinente à comunidade de indivíduos. Categorizar tem o

sentido, com efeito, de valorizar. O objeto é uma categoria de valor e, enquanto tal, precisa ser re-

conhecido, através da representação, pelo grupo.. Com isso, reduz-se e se controla a

complexidade do objeto, permitindo o seu re-conhecimento. E, como reconhecer produz

conhecimento, ocorre uma integração do aprendizado no qual o objeto é inserido numa cadeia

associativa com outros objetos. O conhecimento pode assim ser estendido a todos os outros

objetos sociais que são manipulados pelos indivíduos do grupo, tornando-se uma orientação de

conduta. Conseqüentemente, seguindo o fio da meada, pode-se argumentar que a representação

induz a criação de regras e normas de comportamento social ? ela ordena o mundo.

Mas, sendo social o objeto, ele pode ser partilhado por vários grupos diferentes, tomando

sentidos diferentes e mesmo antagônicos. A formação de representações sociais tornar-se-ia,

dessa forma, um conflito simbólico entre vários grupos sociais, seja na luta pelo monopólio

representacional do objeto, seja na procura de uma legitimidade social para a apropriação

simbólica do mesmo. Em vista disso, no estudo das representações sociais, é importante a

percepção do que está em jogo na emergência da representação ou, deslocando a discussão para o

nosso tema, é necessário sempre revelar os problemas identitários que estão embutidos na

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126

formação representacional. Subentende-se aqui que o grupo organiza-se em função de objetivos

individuais ? afinal, o grupo é formado por indivíduos ? diretamente relacionados ao objeto da

representação, justamente por possuir com este uma relação umbilical. Ao relacionar objetivos

individuais com objetos sociais, a representação social faz a ponte psicossocial entre a esfera

individual e a social. A centralidade do objeto em relação à formação da representação social é

estrutural a tal ponto que, se um determinado grupo possui uma relação apenas conjuntural com

um determinado objeto, provavelmente não será capaz de produzir representações sociais a

respeito do mesmo. Não tendo importância identitária, o objeto não sofrerá interpelações

simbólicas por parte dos indivíduos que possam estruturar representações sociais. Por isso, a

representação social cumpre uma função na construção identitária e na reprodução da coesão

social ? fato este, inclusive, bastante enfatizado por Durkheim, quando pensava a representação

coletiva como uma espécie de "cimento social". Cada indivíduo, portanto, define sua identidade

em função das representações do grupo, reforçando a afirmação desse grupo enquanto entidade

social. Contribuindo na formação de identidades individuais, as representações sociais

contribuem para a coesão dos grupos sociais.

Por tudo isso, a representação social recobre três campos: a) campo do conhecimento,

pois produz um saber prático que tem, lembrando Durkheim, um caráter necessário, portanto,

nessa acepção, "verdadeiro"; b) campo do valor, pois as representações ordenam moralmente o

mundo, estando seu lado moral indissociável do seu lado cognitivo; c) campo da ação, pois a

representação orienta a conduta, podendo ser percebida como um instrumento de ação.

Recobrindo assim a cognição, a valoração e a ação, até por causa do caráter amplo que possui

esse recobrimento, a representação social apresenta cinco características principais: a) objetal,

porque sempre representação de um objeto; b) imagética e ideativa, possuindo a propriedade de

tornar permutável o sensível e a idéia, a percepção e o conceito; c) um caráter simbólico e

significante; d) um caráter construtivo; e) um caráter autônomo e criativo e, enfim, f) um caráter

social (Jodelet, 1986: 478). Pode-se deduzir dessas cinco características uma dupla articulação

lógica: uma lógica cognitiva (as três primeiras características) e uma social (as três últimas). Nem

sempre há simetria entre as duas lógicas, pois isso requereria uma estabilidade permanente entre

o indivíduo e o grupo, entre a identidade individual e as crenças partilhadas pelo grupo, o que

muitas vezes não acontece.

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127

Diante dessa complexidade, geralmente o pesquisador toma dois caminhos: ou analisa o

processo de formação das representações ou estuda o resultado desse mesmo processo: as

representações já estabelecidas. Inclusive, essas duas posturas levam a duas atitudes de pesquisa:

ou se tenta apreender os processos pelos quais as representações foram produzidas ou se faz uma

cartografia de representações já estabelecidas num determinado grupo. Tais posturas e atitudes

precisam, outrossim, respeitar a seguinte intuição: existe uma pluralidade de processos e de

mecanismos que aparecem na tomada de posição de um indivíduo. Inclusive, sua inserção num

determinado campo social pode determinar a natureza da sua tomada de posição, isto é, seus

princíp ios organizadores diferem segundo o contexto social ? nesse sentido, percebemos a

afinidade conceitual entre representação social e formas identitárias.

Resumindo:

haverá formação de representações quando, por razões estruturais ou

conjunturais, um grupo de indivíduos confrontar-se com um objeto polimorfo,

cuja necessidade de controlá-lo torna-se uma questão de identidade e de

coesão social. Quando o controle desse objeto constitui um desafio para

diversos grupos sociais ou segmentos de um grupo mais amplo. Quando um

grupo não está submetido a uma instância de regulação e de controle definindo

um sistema ortodoxo em relação ao objeto (Moliner, 1996: 48) .

Contudo, a última condição ("quando um grupo não está submetido a uma instância de

regulação e de controle definindo um sistema ortodoxo em relação ao objeto" ) é um problema.

Pois, como estudar representações de doença mental, por exemplo, entre psiquiatras, já que estes,

aparentemente, têm instâncias de regulação e controle definindo um sistema ortodoxo? Pensamos

em responder essa questão através das seguintes hipóteses:

Ø não há consenso etiológico na psiquiatria. A doença mental é apropriada de várias

formas, dependendo da corrente nosológica do psiquiatra. Portanto, não há um

sistema ortodoxo que dite qual é a definição verdadeira do objeto da psiquiatria,

embora ocorra uma luta pela transformação da corrente nosológica ora

predominante numa ortodoxia;

Ø a doença mental é um típico objeto social polimorfo;

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128

Ø a psiquiatria procura controlar as representações a respeito da doença mental e

esse controle é uma questão de identidade e de coesão social;

Ø o saber profissional psiquiátrico possui duas ancoragens: uma na ciência, nutrindo-

se da medicina científica e outra no senso comum, alimentando-se da percepção

social da doença mental. No cotidiano, o saber profissional é um conhecimento

prático que soluciona problemas concretos e funciona através de vários registros

diferentes. É um saber baseado na bricolagem;

Ø há um cotidiano profissional, acumulando uma série de experiências intuitivas e

tácitas que "formatam" uma série de representações construídas e partilhadas pelos

profissionais; existe uma vivência e, assim, uma produção de representações

relacionadas com o mundo vivido do psiquiatra — tais representações formariam

uma espécie de senso comum;

Ø os psiquiatras, diante de uma pergunta cortante como "o que é doença mental?",

responderiam menos de acordo com a sua formação universitária do que com a sua

experiência profissional, adquirida na aplicação cotidiana do seu saber. O

psiquiatra não "recitaria" a resposta, trazida pelo seu aprendizado universitário,

mas, sim, elaborá- la- ia, também, a partir do imediatismo de seu cotidiano

profissional, ou seja, produzir-se-ia uma construção profissional da doença

mental, que seria nada mais nada menos do que uma representação social

específica que inscreveria, no seu âmago, determinações provenientes seja do

"senso comum" (contato com as diversas representações existentes na sociedade),

seja do contexto profissional (Perrusi, 1995);

Ø seria menos importante, na qualificação da representação social, definir o seu

agente ou a sua fonte do que a sua função (Moscovici, 1978: 76-77). A

representação social teria como função específica a contribuição "para os

processos de formação de condutas e de orientação das comunicações sociais"

(1978: 77). A representação da doença, assim, inscrever-se-ia profundamente no

processo de formação da identidade profissional do médico. Ela estaria ancorada,

enquanto conduta básica, no tratamento, o qual não deixa de ser a representação da

doença em ação. Logo, não existe motivo para procurar a representação social

num "locus" externo à profissão, desde que o próprio cotidiano profissional do

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129

médico produz as suas representações sociais sobre o objeto de sua prática: a

doença.

Olhando mais de perto as hipóteses, percebemos uma ênfase pronunciada na percepção do

saber psiquiátrico como um saber prático ou, como pano de fundo, a vontade de mostrar que o

dito saber é não só, mas também, um senso comum. Assim, vale a pena fazer algumas ressalvas,

espécies de "alertas" para o pesquisador no intuito de impedi- lo de ser seduzido por alguns

perigos:

Ø ao defender que as visões de doença mental dos psiquiatras são representações

sociais, o pesquisador cai, geralmente, na tentação de contestar a reivindicação de

objetividade dos psiquiatras em relação à doença mental, mostrando que o

discurso psiquiátrico não se depurou das interpelações do senso comum. Mas é o

pesquisador que subentende, na verdade, que a psiquiatria produz um julgamento

autônomo e depurado sobre a doença mental! Seria o pesquisador que está

procurando os elementos alienígenas, isto é, as determinações sociais da doença

mental no discurso psiquiátrico, subentendendo que exista um a priori: um

julgamento autônomo psiquiátrico. Seria justamente o cientista social que está se

colocando do ponto de vista de um discurso especializado e purificado das

interpelações do senso comum. Por isso, essa preocupação — principalmente entre

as teorizações que privilegiam o cotidiano (uma sociologia de matiz

fenomenológica, por exemplo) — em procurar determinações externas ao discurso

psiquiátrico; determinações provenientes do "senso comum". Ao subentender que

existe um discurso autônomo depurado das significações sociais e ao tentar

encontrar os parasitas de tal discurso, o pesquisador produz uma apreensão

dualista do discurso psiquiátrico — no discurso existiriam dois componentes: o

puramente médico, que precisa ser desmistificado, e o determinado socialmente,

que precisa ser justificado sociologicamente. Assim, os atos médicos são vistos

como práticas de etiquetagem — os psiquiatras julgam, de forma ilusória, que suas

ações têm como objeto realidades biológicas, embora sejam, na verdade,

realidades sociais. Assim, tais objetos são produtos de uma "construção social",

cujos procedimentos são encontrados ou na maneira de etiquetar "desvios sociais"

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(os loucos) ou na própria decisão médica, determinada mais por interesses

profissionais ou mesmo de classe do que unicamente médicos. Porém, fica difícil

saber o que é "social" e o que é "biológico" na doença; tudo porque há a

compulsão de se provar que a atividade médica é guiada por determinações sociais

(classe social, etnia, profissão, interesses institucionais); tudo para mostrar que o

julgamento do médico não é autônomo, e sim "construído socialmente". Mas, se o

pesquisador pretende saber o que é "construído socialmente", o que seria afinal o

julgamento propriamente médico? Mesmo que se prove que a visão de doença do

médico é uma representação social, em que isso invalidaria o julgamento médico

enquanto tal? Não haveria, nesse caso, um a priori comandando o raciocínio: um

dualismo entre fatores sociais versus saber especializado? A compulsão em

encontrar "referências sociais" ou fatores sociais no discurso do psiquiatra não

implica que o pesquisador percebe, como premissa não discutida, o discurso

psiquiátrico como uma expertise? Afinal, os fatores sociais traíram que tipo de

discurso médico? O pesquisador não estaria, enfim, dominado justamente pelo que

deseja ardentemente desmascarar, isto é, pelo discurso do especialista? O cientista

social parece supor que o psiquiatra pense dessa maneira: "olha, eu tenho um saber

especializado; logo, tenho uma autonomia de julgamento sobre o objeto da minha

prática profissional, porque posso me apropriar dele de forma eficiente, sem

impurezas, sem parasitas e, graças a essa purificação, posso aceder a uma

objetividade". Assim, o pesquisador fica tentado a examinar, por diversas

maneiras, se essa reivindicação de autonomia de julgamento é legítima, se os

parasitas estão ocultos deliberadamente ou de forma inconsciente;

Ø o pesquisador pode cair, além do dualismo sociológico comentado acima (fatores

sociais x saber especializado), num dualismo cognitivo — raciocínio ordinário

versus saber formalizado. Desta vez, o pesquisador vai achar que os psiquiatras

pensam ter um discurso científico e formalizado e que, por isso, rompeu com o

senso comum. A análise, assim, será a demonstração de que o julgamento médico

ou psiquiátrico é permeado de representações sociais e que os médicos e os

psiquiatras recorrem a operações cognitivas completamente ordinárias, típicas do

senso comum. Logo, o raciocínio médico é ordinário e não calcado num saber

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formalizado e guiado por regras estritas — qual é a natureza, então, do raciocínio

clínico? Ora, esse também é ordinário e não se distingue do senso comum. O

pesquisador, sem muitos questionamentos, procurará competências ordinárias no

uso da linguagem médica. Os médicos dizem-se livres da linguagem do senso

comum!, mostra-se então que, na verdade, confeccionam seus julgamentos através

de competências que não se distinguem das competências ordinárias, relacionadas

ao uso da linguagem em situações de interação social. O saber especializado do

médico é desmistificado em relação a sua imagem usual: a aplicação de regras de

um saber formal. Cria-se um abismo entre as regras e os julgamentos reais. O

veredicto, de novo, é negativo: nada distingue os julgamentos de especialistas de

julgamentos profanos. Desse modo, o cientista social vai provar que o raciocínio

médico não é puramente médico! Nada distingue um julgamento de um

especialista de um julgamento profano, pois são formados pelo mesmo tipo de

competência ordinária, alicerçada nas representações sociais! Ou seja, parte-se da

premissa tácita de que o discurso médico é baseado num saber formal e em regras

estritas, e finda-se encontrando o contrário, isto é, um saber ordinário como

qualquer outro, perdendo de vista justamente o seu ponto de partida: o saber

formal médico. E ficamos sem saber, afinal, qual é a especificidade do saber

médico... qual é a especificidade da representação médica da doença mental! Na

verdade, nada nos permite dizer que, necessariamente, o saber de um médico, o

saber de uma expertise é a aplicação de regras formais. A prática de aplicação de

um saber, numa determinada situação institucional, é bem mais complexa do que

sonha um vão dualismo entre uma competência ordinária e uma especializada;

Ø enfim, a tentação torna-se dualista, a partir do momento em que o pesquisador

tenta separar ou fazer uma triagem entre o que é autônomo e o que é parasita. O

observador dualista tenta, também, só que de outra maneira, "purificar" o discurso

especializado. Os fatores "internos" ou imanentes do julgamento são aqueles que

correspondem à imagem de expertise pura intuída pelo observador. Os fatores

"externos" ou transcendentes do discurso especializado seria tudo aquilo que não é

englobado pelo modelo de expertise do observador.

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2. A estase do modelo psiquiátrico no Brasil: um

esboço.

Nosso intuito, neste tópico, não é fazer uma análise histórica da psiquiatria brasileira ?

inclusive não a fizemos em relação à profissão médica no Brasil. O ideal, com efeito, teria sido a

produção de uma ampla contextualização histórica; contudo, por comodidade prescindimos do

exame histórico, preferindo uma discussão sincrônica e conceitua l, tentando perceber quais são

os fatores estruturantes da formação psiquiátrica brasileira. Nesse sentido, o asilo é o alfa e o

ômega da psiquiatria no Brasil. História secular e contínua, apresentando apenas alguns

sobressaltos humanistas, os quais não mudaram muito a situação. As primeiras estruturas asilares

foram criadas em 1852 no Rio e em São Paulo. A realidade do país mudava de forma acelerada,

porém a saúde mental padecia de uma imobilidade absoluta. Se, antes dessa data, os "loucos" ou

circulavam livremente ou viviam trancafiados, agora são excluídos através da tutela ao mesmo

tempo pública, caridosa e, posteriormente, médica. Portanto, no apogeu do Segundo Império e

em plena escravidão, os asilos psiquiátricos começaram a ocupar o cenário instituc ional, antes

completamente vazio, da "loucura", tornando-se logo imediatamente em verdadeiros depósitos de

"dejetos sociais".

Um século depois, a situação continuou no mesmo estado, reproduzindo-se a mesma

forma asilar de exclusão do "louco". Como ilustração, nos meados dos anos 50, o inferno insistia

na sua eternidade: somente o célebre Hospício Juqueri de São Paulo enclausurava entre 14 e 15

mil pacientes; o Hospital São Pedro de Porto Alegre, três mil, numa estrutura que tinha a

capacidade para apenas 1700 leitos. Até 1964, outra data simbólica, os serviços psiquiátricos

atendiam essencialmente aos pacientes indigentes, mas, com a instauração da ditadura militar,

pode-se dizer que a psiquiatria conseguiu enfim adquirir um status de serviço público ou

assistência de massa (Medeiros, 1977). Serviço público mitigado, vale dizer, pois dirigido apenas

às pessoas economicamente ativas, já que perto de 80% do resto da população não tinha o

benefício de nenhuma assistência médica. Assim, as pessoas que não estava m cobertas pelo

sistema ficavam ao deus-dará e, caso isso não fosse suficiente, recorriam a algum hospital

público, muito raramente a um privado, e muitas vezes a instituições de beneficência ou de

caridade (Ribeiro, 1993).

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Em 1966, foi criada uma instituição previdenciária única e centralizada, o INPS (instituto

nacional de previdência social). Tal unificação teve como resultado, para a psiquiatria, a

associação catastrófica entre uma rede pública precária e uma ideologia de privatização do

hospital psiquiátrico que perdura até hoje. Apesar disso, até 1975, os serviços psiquiátricos

tiveram alguma melhora, quando comparados à assistência médica em geral, embora a crise

econômica dos finais dos anos 70 voltasse a agravar novamente a situação. Em 1984, ano que

marca o fim da ditadura, um certo número de questões afloraram, tornando-se objeto de um

debate coletivo sobre a saúde e a cidadania, cujo desdobramento foi a organização, em 1986, da

VIII° Conferência Nacional de Saúde em Brasília sob a direção do Ministério da Saúde. Foi

proposto, assim, a criação de um Sistema Unificado de Saúde (SUS), cuja ratificação aconteceu

na constituição de 1988. O SUS, inegavelmente, representou um avanço considerável em relação

ao passado, pois foi reconhecido o direito universal à saúde, pondo abaixo a velha distinção entre

segurados e não segurados e entre população rural e urbana, além de confirmar a competência

dos poderes públicos nas ações e nos serviços de saúde, confiando à iniciativa pública a

regulamentação, a supervisão e o controle do sistema.

Os serviços do SUS são descentralizados, mas constituídos por uma rede hierarquizada

que os integra por região. O setor privado, assim como toda e qualquer coletividade, pode e deve

participar de forma complementar através de um contrato de direito público. Apesar disso, foi e

ainda está sendo extremamente difícil colocar em prática o SUS, principalmente na área da saúde

mental, pois a predominância do setor privado — no caso de Pernambuco, podemos falar de

monopólio — inverte a lógica proposta: o privado complementando o público. A saúde mental

brasileira é estruturada economicamente de tal forma que o setor privado, inclusive como modo

de sobreviver financeiramente, precisa sufocar o desenvolvimento do setor público. A

manutenção arraigada do hospitalocentrismo, além das controvérsias ideológicas, possui um

fundamento econômico e privado: dado o desenvolvimento das instituições psiquiátricas,

calcadas no setor privado, o hospital psiquiátrico (em muitos casos, asilos disfarçados de

hospital) é a melhor forma de sustentação econômica, já que a rentabilidade privada é

proveniente da exploração da internação, logo, do leito ocupado. O investimento privado em

estruturas extra-hospitalares não tem contrapartidas financeiras, isto é, não é rentável. Juntando

isso ao fato de que o serviço público em saúde mental jamais abandonou a lógica

hospitalocêntrica, até mesmo por causa da falta de recurso em investir em estruturas extra-

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hospitalares, pode-se entender por que o hospitalocentrismo pode reinar de forma absoluta na

psiquiatria brasileira.

Atualmente, a estrutura do sistema psiquiátrico brasileiro organiza-se da seguinte forma:

ü hospital psiquiátrico público;

ü clínica psiquiátrica privada (sua atividade está regida por contrato com o SUS e,

ao todo, as clínicas exploram perto de 85% dos leitos psiquiátricos do sistema);

ü hospital universitário (mais de um terço dispõe de um serviço psiquiátrico geral. A

formação do psiquiatra brasileiro é realizada nessas instituições, onde domina o

paradigma biomédico, inclusive no ensino da psiquiatria;

ü serviço público extra-hospitalar (ambulatório, hospital-dia, centro de

acolhimento...)

Saindo do campo meramente descritivo, o que está em jogo, atualmente, é a própria

definição do hospital psiquiátrico. Seria saber se, apesar da lentidão da reforma psiquiátrica, o

hospital psiquiátrico superou o asilo. Ele é ainda asilar ou já se pode dizer que é uma estrutura

hospitalar? Talvez, o problema não possa ser colocado dessa maneira, principalmente diante de

posições que afirmam que o norte do sistema psiquiátrico é a tutela, o controle social e a exclusão

social do paciente. A contraposição entre hospital e asilo, assim, seria uma falsa questão,

simplesmente porque tais instituições envolvem a mesma modalidade de intervenção. O velho

asilo pode, de fato, ter acabado, mas o paradigma (tutela, controle e exclusão) que sempre

norteou a intervenção psiquiátrica continua a ser reproduzido pelo hospital. O asilo, enquanto

entidade empiricamente detectável, desapareceu, porém a estrutura asilar, enquanto lógica que

baliza a intervenção psiquiátrica, continua determinando as atividades do hospital. Em suma, o

hospital reproduz a lógica asilar ? tutela, controle e exclusão70. Contudo, para o discurso

profissional da psiquiatria, o hospital psiquiátrico começa a superar, assim que inserido na

reforma psiquiátrica, o asilo e sua lógica institucional. O hospital torna-se uma estrutura médico-

hospitalar, uma organização especializada no tratamento das doenças mentais. A determinação

terapêutica abole ou subsome a tutela, o controle e a exclusão. Pelo visto, portanto, percebe-se

70 Chamamos essa posição, que possui várias teorizações diferentes entre si, de teoria crítica da psiquiatria.

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acima dois discursos antagônicos que re-configuram o debate sobre a passagem do asilo ao

hospital psiquiátrico. Para examinar melhor esse problema, analisaremos primeiro o asilo e,

depois, discutiremos tanto a pertinência de perceber o hospital psiquiátrico como reprodutor da

lógica asilar, como o de entendê- lo como uma organização médica tout court.

Analisar o asilo é perfazer um caminho teórico que revele o núcleo causal formador da

exclusão do paciente psiquiátrico, a sua determinação última: a função repressiva institucional.

Se o lado dominante da estrutura asilar é a sua ação repressiva institucionalizada,

conseqüentemente, para realizar a repressão, é necessário, inclusive como forma de legitimá- la,

de um conjunto articulado de normas que realize uma determinada ordem, acoplada a uma

disciplina e a uma hierarquia. Por isso, a prática repressiva sempre está sobre-determinada por

algum fundamento ideológico, principalmente o reconhecimento social da necessidade de recluir

o paciente. O efeito de legitimação da reclusão, por sua vez, está ancorado e organizado por um

tipo de tutela ? entendida aqui, especificamente, como uma estratégia de poder. Inserido no

processo de legitimação da reclusão, estaria o saber psiquiátrico que produz uma ação normativa

legitimadora da internação de determinados indivíduos cujas manifestações não podem ser

toleradas socialmente. Cada internação de paciente nessas condições de clausura,

independentemente do fato de o psiquiatra, autor da ação tutelar, ser contra a situação existente,

reproduz à sua revelia o processo de enclausuramento. O asilo, nesse enfoque, seria uma

instituição que, na sua ação repressiva, articularia representações e práticas (intervenções

normativas). Assim, a sua análise não ficaria reduzida a um estudo de um conjunto de normas

controladas por um sistema de valores, bem como não se resumiria a uma análise dos papéis

institucionais, isto é, de suas práticas. Nesse sentido, segundo sugestão de Luz, deve-se no estudo

das instituições em geral perceber

o aspecto estrutural (conjunto de normas de conduta, de regras de organização

dos comportamentos) e o aspecto da prática institucional (conjunto de relações

sociais institucionais) como dois aspectos de um mesmo núcleo de poder,

mediados por um discurso institucional (1986: 33).

As representações não se esgotariam, assim, nas normas (do asilo, por exemplo); elas

seriam, isto sim, "(...) o elo entre relações institucionais de poder e os regulamentos que

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136

asseguram a continuidade da dominação institucionalizada " (1986: 33). Por isso, as

representações suportariam as normas. A necessidade de articular o campo repressivo ao das

representações serve para se captar a conexão de duas formas de institucionalização que

estruturam o asilo. Na primeira forma, enquanto espaço que organiza comportamentos

individuais e sociais, portanto, enquanto mundo social, a estrutura asilar demarca, reconhece e

sanciona o que lhe é de direito, ou seja, em relação a tudo que remete à sua competência ? o

falso, o bem e o mal, o justo e o injusto. Na segunda forma de institucionalização, o asilo

estrutura-se em torno de relações sociais que ali ocorrem, e, por conseguinte, as definições entre

o certo e o errado são baseadas nessas relações socais; logo, deve dotar-se de uma instância

burocrático-administrativa para impor a soberania, isto é, deve existir um aparelho repressivo não

autônomo (Guilhon Albuquerque, 1986).

No asilo, o seu reconhecimento enquanto ordem não é assegurado pela parte fundamental

de seus membros: os pacientes. O reconhecimento vem do exterior. Mas, ao mesmo tempo, ele

está "separado" da sociedade e é um lugar de soberania, inclusive com todo o seu aparato

cerimonial e ritualístico. Na verdade, para existir como ordem soberana, o asilo precisa ser

reconhecido pelos sujeitos cuja soberania é, por sua vez, reconhecida por sua filiação à ordem;

mas, no caso, isso não ocorre porque o efeito de reconhecimento não é produzido pelos pacientes.

Portanto, é necessário um aparato repressivo, inscrito na organização terapêutico-administrativo

do asilo, para regular e controlar a coletividade dos pacientes.

Porém, como garantir o "cimento" dessa repressão institucionalizada?

Segundo Guilhon de Albuquerque, baseado nos estudos de Goffman, a reprodução

ideológica da ação repressiva passa pela constituição da imagem cindida do Outro (1986: 142).

Assim, a auto- image m que o paciente tem de si mesmo é fragmentada feito um espelho que cai

no chão e se estilhaça. Qualquer unificação dessa imagem, num ou noutro sentido, revolveria

irreversivelmente a dominação institucional. Mas esse tipo de efeito ideológico não é original do

asilo e das chamadas "instituições totalitárias" (E. Goffman, 1984) — na realidade, a

originalidade do asilo e seus congêneres não é a ocultação da fragmentação da imagem, e sim

justamente a transparência e a legitimação dessa clivagem. Dessa forma, o paciente é submetido a

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137

uma despersonalização que nunca retira, entretanto, a sua capacidade de sujeito — é necessário

que ele

seja absolutamente Outro para que possa submetê-lo a certas práticas e

esquivar-se às suas demandas, mas é preciso que ele seja o mesmo para que se

possa até conceber certas exigências a que deve curvar-se, e ao mesmo tempo

justificá-las e esperar que tais exigências sejam satisfeitas (Guilhon

Albuquerque, 1986: 142)

O asilo, então, possui o seu ponto nodal na repressão institucionalizada, sobre-

determinada por uma pratica ideológica que legitima a reclusão dos pacientes psiquiátricos ?

seja no asilo (imagem cindida), seja socialmente ? através do poder de um saber psiquiátrico

sancionado por um mandato social.

A ênfase no aspecto repressivo do asilo induz a análise, de certa forma, a esquecer que ele

é uma organização terapêutica. Talvez um dos maiores paradoxos do asilo psiquiátrico seja a

combinação de uma "instituição totalitária" com uma organização terapêutica. O asilo, de fato,

surgiu primeiramente como uma instituição de reclusão e de repressão, e depois foi apropriado

pelo saber psiquiátrico como um espaço terapêutico por excelência da psiquiatria. Combinar

repressão com terapia seria uma forma institucional de se tratar uma rejeição social ? os loucos

? considerada como uma patologia mental, passível de ser, portanto, apropriada pelo discurso

psiquiátrico. Mas como uma concepção de terapia pode ser acoplada à repressão sem que não

ocorra uma evidente contradição? Ora, muitas terapias modernas e antigas conjugaram esse duo.

O tratamento moral, por exemplo, seria um exemplo no qual repressão e pretensão terapêutica

andaram juntas. Se a "loucura" é um desvio moral, seu tratamento passa necessariamente pelo

enquadramento moral do comportamento desviante do "louco" — enquadramento este impossível

de não ser repressivo. Se a "loucura" passa a ser vista, porém, como uma patologia, seu

tratamento passa necessariamente por um enquadramento médico do comportamento doente do

"louco". Assim, olhar um paciente como uma objetividade natural ? uma doença orgânica ?

evita o contato comunicativo com o paciente; evita tomar consciência de que, apesar da doença,

ele é um sujeito comunicativo. A neutralidade do psiquiatra, causada pela naturalização do

paciente, evita seu envolvimento com o intenso sofrimento psíquico do paciente, seja pela sua

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doença, seja pela sua reclusão numa instituição asilar. A função desse tipo de discurso seria

silenciadora, estabilizando a instabilidade estrutural da relação psiquiatra – paciente, mas

estabilizando em detrimento do segundo. Qualquer outra visão de doença mental que considere o

doente como um sujeito pode implodir em mil pedaços a relação psiquiatra-paciente e a estrutura

que a sustenta: o asilo.

Não acreditamos que se possa negar a validade de tal análise sobre o asilo. O problema,

talvez, seja torná- la um modelo geral de exame das instituições, em particular das psiquiátricas,

independentemente do período histórico. Novamente, estamos diante da pergunta: o hospital

psiquiátrico reproduz a lógica asilar? A resposta, caso se aceite as premissas dessa análise

institucional, é francamente positiva. Pois a psiquiatria combina necessariamente, no seu modo de

intervenção, uma medicina mental a uma forma de exclusão. Seria ilusão pensar que a

hospitalização do asilo tenha gerado uma exclusividade da prática terapêutica, pois continua-se a

se fazer o que sempre se fez na psiquiatria: controle social do comportamento desviante ? a ação

terapêutica está inscrita nessa lógica de controle. Lógica de poder, portanto, que se realiza desde

que o psiquiatra aciona o fundamento do seu mandato social: o seu saber.

Todavia, tal posição vai totalmente de encontro à percepção médica - profissional (Ogien,

1989) do hospital psiquiátrico: a hospitalização do asilo significa sua normalização institucional

no sentido da prática médica. O modelo aqui para se analisar o hospital psiquiátrico é o do

discurso oficial da medicina: a estrutura hospitalar psiquiátrica reproduz o modelo médico:

diagnóstico / hospitalização / tratamento / remissão ? modelo claramente baseado na atividade

terapêutica. Ora, esse modelo é justamente o oposto daquele construído pela teoria crítica da

psiquiatria: o diagnóstico vira designação (etiquetagem); a hospit alização, internamento ou

reclusão; tratamento, repressão; remissão, ressocialização. Inclusive, no modelo profissional, a

hospitalização psiquiátrica seria uma típica hospitalização médica: faz-se o possível para evitá- la,

logo, implementá-la somente no caso necessário; recusar seu prolongamento; proibir sua

eternização ou sua cronicidade ? em suma, a hospitalização é um programa de normalização.

Assim sendo, a hospitalização do asilo significa sua desalienação ? a transformação do alienado

em paciente psiquiátrico ? e sua desinstitucionalização ? transformação do asilo num hospital.

Tudo isso resume um modelo de prática profissional ? um tipo- ideal. As disfunções e as

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distâncias que a realidade efetiva apresentará em relação ao modelo serão entendidas como erros

práticos e não questionarão a veracidade das normas profissionais.

Curiosamente, do ponto de vista analítico, estamos diante de duas visões que têm a

mesma démarche: a prática realiza o modelo teórico que, por sua vez, a idealizou. O modelo

profissional diz que a atividade psiquiátrica aplica diretamente as normas, as regras e as condutas

da medicina. Em relação ao antigo asilo, o progresso médico induziu modificações no modo de

intervenção e na organização institucional, transformando-o numa instituição que realiza o

modelo médico. A teoria crítica, além de colocar que o discurso profissional é ideológico e,

portanto, oculta o que se passa verdadeiramente na realidade, afirma que a atividade psiquiátrica

realiza seu mandato de controle social. A prática não seria, no caso das duas posições, a soma das

atividades manifestadas na intervenção psiquiátrica, e sim a realização de um modelo proposto.

Nos dois casos, o saber psiquiátrico tem um papel central: no modelo profissional, a efetuação da

conduta profissional adequada ao ambiente hospitalar é guiada pelo saber profissional que fixa

referenciais claros: diagnóstico, prognóstico, nosografia, medicação...; na teoria crítica, o

mandato social é assumido somente através do domínio de um saber legitimado socialmente. É a

utilização do saber que confirma as duas posições e que permite pensar a prática. Contudo, ela é

pensada de forma negativa, pois a verdade da atividade psiquiátrica encontra-se além do seu

âmbito, em outro lugar que não ela mesma, ou no modelo profissional ou no mandato social

(Ogien, 1989: 13).

Chegando nesse ponto da discussão, achamos mais interessante focarmos a análise na

teoria crítica da psiquiatria, e isso por dois motivos: primeiro, a própria teoria crítica desconstrói

o discurso profissional de forma pertinente71; segundo, é bem mais difícil descons trui- la do que o

discurso profissional, posição normativa por excelência, já que a teoria crítica é calcada em

modelos acadêmicos e científicos de teorização. De certo modo, o modelo profissional é explícito

e transparente, até mesmo porque serve também na orientação das condutas; a teoria crítica é

mais sinuosa, envolvendo argumentos bem mais complexos ? evidentemente, estamos

criticando-as desde um denominador comum, ou seja, reduzindo de forma significativa sua

71 Ver, assim, Foucault (1978; 1984; 1987), Castel (1976; 1983), Swain (1994), Szasz (1979), Machado (1978), Costa (1976; 1979), Basaglia (1985), Cooper (1971; 1976), Laing (1971), entre outros...

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complexidade e sua variedade. Estamos analisando-as do ponto de vista de uma teoria crítica da

psiquiatria...

Para a teoria crítica, a razão da psiquiatria não estaria nela mesma, e sim situada em outro

lugar, apresentando uma função latente ocultada pela sua função manifesta. E qual seria essa

função latente? Dependendo do autor, a verdadeira função da psiquiatria pode ser expressada,

entre outros exemplos, por vários procedimentos: exclusão social do louco (Foucault), tutela do

desviante (Castel), socialização do doente mental (Gauchet e Swain)... Nesse tipo de análise, o

essencial não é os agentes e sim a instituição, pois a determinação desta prescinde da ação e da

consciência daqueles. A abordagem, assim, terá como objetivo revelar, por detrás da legitimidade

social da psiquiatria e de seu saber, sua verdadeira essência, geralmente entendida sob um único

aspecto: a instituição psiquiátrica é um aparelho de poder.

Por isso, metodologicamente, tais análises centraram seu foco nos discursos oficiais,

vistos como de poder, de determinados agentes, psiquiatras e legisladores, sobretudo. Procura-se

através dos discursos uma função social realizada pela instituição. O mecanismo é conhecido e,

independentemente das diferenças entre os autores, a procura é praticamente a mesma: busca-se o

momento originário e fundador donde surgiu a função institucional e se demonstra que, mais do

que uma função, o que surgiu foi uma lógica imanente ao processo de constituição da instituição,

mas que a vem acompanhando, feito um grude, por toda a sua história. O processo é marcado

pela lógica... para sempre. Portanto, se na origem da instituição a função primordial era a

exclusão dos loucos ou a tutela do desviante ou o poder de um saber, a lógica revelada

permanecerá determinando a função institucional ad eternum .

O exemplo mais explícito dessa abordagem é o método genealógico que, na nossa

opinião, não escapa de uma ilusão retrospectiva ao dotar a psiquiatria de uma razão objetiva, cuja

imanência sempre é a mesma (exclusão dos loucos, controle social do desviante, aparelho de

poder...), embora sua manifestação concreta mude no decorrer da história. Dá-se um peso

fenomenal aos discursos oficiais, produzindo uma causalidade direta entre os discursos e suas

representações públicas e a atividade prática que acontece no cotidiano da psiquiatria. O discurso

oficial torna-se a realidade. Como afirma Coelho (1999: 66), ao criticar Roberto Machado

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141

(1978), um foucaultiano inconteste, e suas interpretações sobre a medicina e a psiquiatria no

Brasil:

... é suficiente que um grupo enuncie com estridência um determinado projeto

de poder para que o poder se faça tão real a ponto de dispensar o pesquisador

de qualquer posterior averiguação. É o que chamo de Efeito Foucault

Não exageremos. É importante analisar os diversos projetos de poder, inclusive os

embutidos nos discursos oficiais. Na verdade, nossa crítica não passa apenas pelo "efeito

Foucault", mas também pela tese, implícita na teoria crítica, de que a gênese esgota o processo ?

a postulação de uma lógica ou de uma razão objetiva que permanece determinante até os confins

da história. Produzir essa relação necessária entre poder, saber e instituição possui, como pano de

fundo, algumas premissas ou, na verdade, algumas desconfianças profundas. Toda intervenção

prática sobre o outro é, por definição, uma relação de poder. Assim, toda forma de reabilitação

social, moral ou física institui por definição uma relação de poder em que o profissional impõe ao

seu cliente uma condição de inferioridade. As chamadas práticas de controle social (psiquiatria,

assistência social, justiça, polícia, medicina) sempre são vistas do ponto de vista de relações de

dominação. Em conseqüência, temos sempre a reprodução dessa eterna tipologia: paciente,

delinqüente e assistido. A tutela é a conclusão lógica dos processos de controle social. É o efeito

mecânico da manifestação antecipada do controle social ? efeito mecânico da razão objetiva,

manifestada por vários modos: mandato social, relações de dominação, saber profissional, poder

legítimo.

Toda intervenção prática sobre o outro implica um saber que possui uma relação

necessária com o poder. Há um trio nefasto na psiquiatria: saber - (poder) - intervenção. Por isso,

as críticas à psiquiatria e ao seu saber são críticas ao poder do psiquiatra. É também crítica

institucional, pois a instituição possibilita e viabiliza a intervenção prática sobre o outro. Com

efeito,

"todos os grandes abalos que sacudiram a Psiquiatria desde o fim do século

XIX, essencialmente colocaram em questão o poder do médico. Seu poder e o

efeito que produzia sobre o doente, mais ainda que seu saber e a verdade

daquilo que dizia sobre a doença" (Foucault, 1979: 123).

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É esse poder e o posicionamento perante ele que discriminam as diversas teorizações

existentes sobre a instituição psiquiátrica. Assim,

(...) o que foi questionado é a maneira pela qual o poder médico estava

implicado na verdade daquilo que dizia, e inversamente, a maneira pela qual a

verdade podia ser fabricada e comprometida pelo seu poder (1979: 124).

Dessa forma, pode-se dizer que existem várias antipsiquiatrias atravessando a história da

psiquiatria moderna. Temos um Szasz (1979) que transforma o psiquiatra num verdadeiro agente

manipulador, afirmando a doença mental como um mito da modernidade. Ou David Cooper

(1971) e Ronald Laing (1971) que, além de denunciarem o asilo como um absurdo terapêutico,

centraram as suas análises no questionamento da sociedade e da família, vistas como lugar da

gênese da loucura ? a doença, para Laing, seria uma "viagem" introspectiva para escapar da

ação alienante da sociedade. Por fim, desembocamos em Basaglia (1985) que, na nossa opinião,

não seria exatamente um "antipsiquiatra", como os citados acima, justamente por não negar a

existência de doenças mentais. A crítica basagliana centrou-se num questionamento político-

institucional da psiquiatria, mostrando as vinculações necessárias entre saber, poder e instituição.

Como pode-se notar, a antipsiquiatria é a versão radical da teoria crítica da psiquiatria. É

contundente e produz um impasse: não há possibilidade de se construir qualquer alternativa

institucional ao tratamento das doenças mentais. A hospitalização do asilo, por exemplo, é vista

apenas como a fundação de uma nova forma asilar de reclusão do paciente. Nega-se a doença

mental e se repudia qualquer tipo de estabelecimento de normas, percebido como imposição de

um poder despótico sobre o outro. Há, com efeito, uma coerência nesse niilismo: se não existe

doença mental, pode-se descartar logicamente a necessidade de instituições terapêuticas, pois

enquadrar, mesmo terapeuticamente, algo que não está no campo da patologia é uma intervenção

totalitária. Igualmente, a partir do momento em que se relaciona toda no rma a um poder, tomando

este último como alienado em si mesmo, pode-se logicamente afirmar que toda instituição

envolve intervenções "normativas" — logo, produzindo e reproduzindo estratégias de poder.

Assim, pode-se dizer que todo processo de instituciona lização é alienado. Sendo uma instituição

— portanto, envolvendo normas e poderes —, o hospital psiquiátrico seria tão alienado quanto o

asilo.

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Aparentemente, a última proposição é também patrimônio dos basaglianos ? no mínimo,

são ambíguos quanto ao tema. Agostino Pirela (1985: 181), por exemplo, chega a afirmar, em

relação ao asilo, que é necessária "a negação global da instituição ", mas escreve, ao mesmo

tempo, que "a negação não pode tornar-se uma norma". Ora, negar uma instituição sem que se

constitua outra (do asilo ao hospital, por exemplo), já que se quer negar também toda norma,

implica ou negar toda e qualquer forma de organização, pois todas possuem normas, ou implica,

como defendem os basaglianos, um processo ininterrupto de mudanças institucionais num eterno

movimento de auto-negação. A primeira opção seria paralisante e completamente niilista, e a

segunda, digamos assim, asfixiante por falta absoluta de fôlego. No fundo, as duas implicações

envolvem o mesmo postulado ? a primeira de forma direta e a segunda de modo velado: existe

uma alienação imanente a qualquer processo de objetivação institucional. Em suma, infere-se

dessas posições ou que toda objetivação institucional é alienada ontologicamente ou, de forma

mais sutil, que as objetivações em geral no capitalismo são alienadas; logo, a alienação é histórica

? entre um imanentismo ontológico e um histórico, a diferença política é apenas de grau. No

primeiro caso, o essencialismo é tão óbvio que pode ser descartado rapidamente; no segundo

caso, o termo "histórico" elimina o erro de identificar toda objetivação institucional como

alienada por natureza. Mas, se no capitalismo o processo institucional é alienado em si, mesmo

que o capitalismo seja uma etapa histórica de desenvolvimento da humanidade e, portanto, por

ser histórico, passível de ser superado, o resultado político dessa visão seria o niilismo completo

contra qualquer instituição "burguesa", isto é, qualquer alternativa institucional ao asilo, por

exemplo, inclusive o hospital, está fadada ao fracasso ou, pelo menos, adiada para o futuro.

O imanentismo absoluto de Laing gerou o fracasso da experiência em Kingsley Hall

(instituição onde trabalhava). Já a experiência basagliana teve resultados bem mais complexos e

interessantes. Primeiro, porque os basaglianos nunca negaram a doença mental enquanto tal;

segundo, eles têm razão em criticar a redução da desinstitucionalização a apenas uma

desospitalização. Pois assim

"os hospitais psiquiátricos permanecem como centro e paradigma; a criação

de novos serviços psiquiátricos na comunidade, de estruturas extra-

hospitalares, médicas e sociais, não se constituem como alternativa eficaz à

internação" (Nicácio, 1989: 97)

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Na verdade, a desospitalização não interrompe a lógica asilar, isto é, não interrompe o

processo de reificação do doente na internação. Manter, mesmo sob o tratamento psiquiátrico, a

cidadania e a autonomia do doente liquida o cerne da lógica asilar: o internamento. Embora

concordemos com esta última questão, não achamos, porém, que isso signifique uma

"desinstitucionalização", mas sim a institucionalização de uma organização terapêutica que não

implica internamento. Inclusive, a transformação do asilo em hospital psiquiátrico condiciona a

transformação do internamento em hospitalização. Uma rede de serviços, incluindo hospital e

estruturas extra-hospitalares, já implica um desmantelamento de uma estrutura de internação

compulsória. O internamento psiquiátrico — reclusão de um paciente numa estrutura asilar —

precisa ser diferenciado da hospitalização psiquiátrica — tratamento médico de um paciente

numa estrutura hospitalar. O primeiro procedimento exclui e tutela o paciente, ignorando seus

direitos de cidadania; o segundo implementa um tratamento, resguardando seus direitos enquanto

cidadão. Logo, a passagem de um modo ao outro é também política. O problema da palavra de

ordem de "desinstitucionalização" é atropelar os avanços da hospitalização em relação à situação

asilar e não perceber que combater o hospitalocentrismo é diferente politicamente da luta contra a

estrutura manicomial.

Talvez, esse ranço contra os processos de institucionalização dos autores acima citado

seja produto de sua conceituação de poder. De forma geral, ele é visto de um modo anistórico e

imanente. O que existe, assim, é um "senhor-poder" anterior à própria história e alienado por

natureza — sua alienação é imanente à sua própria ontologia. Por isso, provavelmente, o poder

seja praticamente identificado à violência e, como as regras e as normas são por ele garantidas,

podemos chegar à conclusão de que a violência funda e condiciona a ordem sócio -cultural. Tais

posições, no fundo, parecem ser uma espécie de atualização do jusnaturalismo, aplicado às

instituições no capitalismo. A alienação que é denunciada em toda instituição no capitalismo é a

alienação do poder, ou seja, é a imposição de uma violência que retira do sujeito sua autonomia e

soberania. A alienação das instituições é a alienação do poder enquanto violência institucional. O

poder funda, na realidade, a alienação da instituição.

Já em Foucault (1979), o poder não é imanente e sim relacional. Contudo, para o filósofo

francês,

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"a relação de poder não tem outro fundamento que não ela mesma, tornando-se

simples 'situação' na qual o poder é sempre imanente e a questão qual poder e

para que lhe é absolutamente perfunctória " (Poulantzas, 1985: 170)

No entanto, não podemos de maneira simples identificar o conceito foucaultiano de poder

ao de violência. Na verdade, Foucault critica uma visão negativa de poder que o identifica à

repressão e à violência; portanto, tal conceito não possui apenas um lado negativo, mas também

um positivo, transformador e produtor do real. O poder interpelaria o indivíduo como sujeito,

para usar uma linguagem althusseriana (Althusser, 2001). Mas não devemos iludir-nos com isso,

já que o poder continua "negativo", pois ainda alienado. Ele é uma correlação de forças, em

Foucault, completamente pífia, porque as resistências só existem como afirmação de princípio.

Assim, como escreveu Poulantzas (1985: 172) sobre a visão foucaultiana de poder:

"(...) esse termo designa ora uma relação, a relação de poder, ora, e muitas

vezes simultaneamente, um dos pólos da relação poder-resistências. É que, na

ausência de fundamento das resistências, o poder acaba por tornar -se

essencializado e absolutizado, transformando-se num pólo "frente" às

resistências, uma substância que contamina-as por propagação, um pólo

principal e determinante frente às resistências".

Em suma, o poder, em Foucault, é positivo em relação à negatividade da repressão, mas

negativo porquanto alienado. Não negamos a pertinência da conceituação foucaultiana, mas sim o

seu alcance. Para muitas situações, provavelmente, será necessário — nos estudos sobre a relação

poder e democracia, por exemplo — distinguir conceitualmente poder de violência, bem como

poder de alienação. Nesse sentido, concordamos com Basaglia (1985: 99) quando afirma que o

asilo é uma "instituição da violência". Mas não concordamos com a ampliação do conceito para

praticamente todas as instituições da sociedade, bem como com o caráter a priori do poder como

negativo e alienado.

Por fim, há uma crítica, em algumas passagens da "antipsiquiatria" (Laing, 1971; Cooper,

1976), da relação saber-poder no capitalismo, como se esta fosse eterna e absoluta, e tivesse

sempre existido, isto é, critica-se uma particularidade histórica pensando-se que é universal.

Certo, pode-se concordar com a afirmação de que o saber sempre sofreu uma interpelação

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político- ideológica do poder, não existindo, portanto, um saber, qualquer que seja, desvinculado

do poder. Sim, tal asserção acarretou uma profícua desconstrução de uma visão inocente do

saber, visto como desvinculado das estratégias de dominação. Mas o problema, nessa posição, é

que, se o poder é por definição violento ou alienado, o saber, por sempre ter existido

umbilicalmente conectado ao poder, é visto da mesma forma que o seu par: violento e alienado.

Em determinadas situações empíricas, isso lá tem a sua lógica, mas a questão é se isso possui

uma aplicação universal, em todas as situações. O saber ? em Foucault e na maioria dos

"antipsiquiatras" ? já é em si uma estratégia de poder. É uma estratégia de dominação, por

definição. Desse modo, o saber psiquiátrico, enquanto estratégia de poder, produziu o famigerado

asilo; nesse sentido, faz parte dessa estratégia de dominação universal, personificado pela Razão

Ocidental ou Iluminista — o saber psiquiátrico seria um filho dileto desse grande Poder.

Sendo o saber psiquiátrico uma forma de poder, seu objeto, a doença mental, é um

produto de uma estratégia de dominação. A transformação da loucura em doença mental foi o

resultado dessa estratégia. Em outras palavras, a doença mental não teria relação alguma com

determinações patológicas, sejam biológicas ou psíquicas — a doença mental não teria uma

objetividade que perpassaria a história com conteúdos culturais diferentes, mas com uma forma

patológica invariante. Cada sociedade teria a doença que merece: sociedade x, logo, doença y. Ou

seja, o conceito de doença mental ficaria esfumaçado pelo relativismo e sem efeito, pois seria,

digamos assim, um "produto cultural". Em suma, Foucault destrói todo e qualquer alicerce do

saber psiquiátrico, principalmente aquele que possui um alicerce na clínica médica. Por um lado,

esvazia o conceito de doença mental; por outro, afirma o saber psiquiátrico enquanto estratégia de

poder (produtor positivo de alienação), colocando em xeque toda a possibilidade de organização

terapêutica que envolva uma clínica psiquiátrica.

Do ponto de vista empírico, tais análises em geral perdem de vista as transformações

institucionais ocorridas concretamente, pois são sempre vistas como manifestação de uma

estrutura latente de dominação. Assim, por exemplo, algumas transformações que vêm ocorrendo

na psiquiatria foram menosprezadas, embora sejam mencionadas, pela teoria crítica, já que

estariam enquadradas pela lógica asilar (Ogien, 1989: 21-24):

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147

Ø a diferenciação da clientela fora e dentro do hospital. A população psiquiátrica

diversificou-se de maneira extraordinária a partir da década de 50. Houve, e

continua acontecendo, uma explosão de novas enfermidades mentais e,

conseqüentemente, novos tratamentos e acessos diferentes às terapias, novos tipos

de intervenção, novos papéis sociais assumidos pelos pacientes. Tal diferenciação

é conseqüência de novos controles sociais? São produtos patológicos da vida pós-

moderna?

Ø a diversidade profissional no campo profissional. O campo profissional da saúde

mental tornou-se campo, isto é, possui lógicas de ação relativamente autônoma

que lhe permitiram, inclusive, um consistente reconhecimento social enquanto

organização especializada de intervenção. Um dos resultados mais óbvios é a

proliferação e a necessidade de novas especializações e, conseqüentemente, de

novos profissionais na cada vez mais desenvolvida divisão de trabalho da saúde

mental. Colocar tudo isso no vale comum do controle social não é negar a

importância dessas novas formas sociais de intervenção e desses novos atores

sociais que as reproduzem? Será que internar perturbadores da ordem estabelecida

precisaria de toda essa estrutura material, de todo esse aparato profissional e de

toda essa produção simbólica, em suma, de toda essa maciça ilusão de que tudo

isso é apenas atividade terapêutica e qualificação profissional em saúde mental?

Ø heterogeneidade das intervenções de controle e de re-inserção social: medicina,

psiquiatria, profissionais da saúde mental, polícia, justiça, assistência social e

instituições... Será que é possível que ocorra uma coincidência entre as regras e as

normas postuladas pelos agentes formadores de políticas públicas e o que

realmente acontece na atividade psiquiátrica? Não seria ingenuidade pensar que a

gestão do dispositivo de controle da loucura acontece sem múltiplos conflitos de

competência entre os diversos agentes sociais envolvidos? Não seria mais

interessante reconhecer as diversas lógicas de ação que perpassam a prática

psiquiátrica? Os diversos registros acionados pelos diversos atores envolvidos?

Registros ad hoc, in loco, espontâneos e formais, proveniente do senso comum ou

do saber especializado?

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148

Ø boa parte da população utiliza o serviço psiq uiátrico como um serviço público e

não como um aparato de repressão. Como isso acontece, já que o campo

psiquiátrico é um espaço de reclusão, um aparelho de poder, um aparato de

controle social ou uma estrutura de acolhimento dos renegados sociais? Que tip o

de ilusão espetacular faz com que milhares de pessoas utilizem a psiquiatria sem

se dar conta que estão sendo alienadas? Qual é o mecanismo ideológico que

produz tudo isso? O que vemos são diversas interpretações a respeito da

psiquiatria que vão desde a percepção de que é um controle social até sua

consideração como lugar da clínica psiquiátrica ou uma instância de cuidados

especializados. Talvez seja interessante tomar essa polissemia como ponto de

partida e estudá-la concretamente, isto é, produzir uma análise concreta da

situação concreta, examinado os diversos interesses, os diverso atores sociais

envolvidos, os vários registros cognitivos que guiam a ação ? em suma, tomar

como ponto de partida a própria prática psiquiátrica.

Tais transformações acima, na nossa opinião, questionam ou, pelo menos, diminuem o

peso analítico da psiquiatria vista como aparato de repressão. Além do mais, houve mais uma

mudança importante, embora a reforma psiquiátrica seja lenta e não tenha trazido as

transformações esperadas, justamente na representação pública da psiquiatria 72. Existe

atualmente, de forma difusa, uma representação da curabilidade da doença mental, bem como

uma "desestigmatização" ou, no mínimo, uma diminuição da carga de preconceitos contra o

paciente psiquiátrico. Como afirma Ogien (1989: 21):

da mesma maneira que seria raro, atualmente, alguém ter preconceito contra aquele que consulta um médico ou freqüenta um hospital, pode-se estimar que, cada vez mais, o atendimento psiquiátrico é um procedimento usual, ao ponto de se poder questionar se ele

72 Pode-se dizer que, em países como a França e a Itália, houve de fato uma transformação qualitativa na representação pública da psiquiatria.

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causa realmente um transtorno na identidade social do paciente

Acreditamos que a mudança na representação pública da psiquiatria tenha sido um dos

resultados da transformação na carreira moral do paciente psiquiátrico (Goffman, 1974). O

resultado da carreira moral é a cronicidade do paciente. Ocorre uma degradação do status e uma

mudança de identidade e de destino. Há uma transformação na linha biográfica do interno. Isso

tudo ocorre porque o paciente não assume o papel de doente, prescindindo dos recursos sociais à

disposição. A subversão do paciente possui um preço altíssimo: a despersonalização na máquina

de moer almas do asilo. Contudo, com a banalização do tratamento psiquiátrico, o acesso à

terapia, a criação de instituições extra-hospitalares, a duração limitada da hospitalização, enfim,

com todas essas mudanças, o paciente psiquiátrico não precisa mais ser identificado com o

recluso do asilo. E tal transformação pode ser creditada aos efeitos conjuntos da reforma

institucional (hospitalização do asilo + instituições extra-hospitalares) da psiquiatria e do uso dos

psicotrópicos no tratamento da doença mental (Ogien, 1989). O paciente pôde deixar de ocupar a

linha biográfica, renunciando a uma carreira moral, e se transformar num... cliente.

O uso dos neurolépticos engendrou um processo de diferenciação na clientela psiquiátrica,

produzindo internamentos intermitentes e levando boa parte dos pacientes, devido a uma

compensação clínica, a se servirem do aparelho extra-hospitalar. Atualmente, boa parte dos

pacientes utiliza o serviço psiquiátrico voluntariamente no papel de doentes, isto é, num papel

reconhecido e sancionado socialmente, como qualquer outro serviço de saúde pública ou

privada73. Tal ação terapêutica aliada a uma normalização e a uma otimização do internamento

hospitalar, patrocinada a duras penas pela reforma, contribuiu para desestigmatizar a intervenção

psiquiátrica. Assim, os estados psicóticos cronificados estão deixando de povoar os hospitais

psiquiátricos e um bom número de pacientes reencontrou o meio social, embora muitos sejam

dependentes de uma assistência extra-hospitalar e sofram de uma socialização precária. Talvez, a

dependência dos serviços extra-hospitalares e da ajuda social seja a grande contrapartida da

reforma psiquiátrica. Uma "clínica socializada" socializa também suas dificuldades: a difícil re-

inserção social dos pacientes psiquiátricos, principalmente em tempo de crise econômica. O

73 Evidentemente, ainda existe o internamento psiquiátrico que se caracteriza como uma carreira moral, no sentido de Goffman, isto é, como um ato de exclusão e isolamento social.

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doente mental, ao sair da hospitalização, encontra-se diante de um caminho bifurcado: de um

lado, a reintegração social, fundamentalmente profissional74; de outro, o risco de perseverar num

estado de invalidez permanente75. Ao mesmo tempo, se a reclusão no asilo era e ainda é, em

vários casos, uma forma de exclusão social, o paciente psiquiátrico, mesmo escapando de uma

hospitalização de longa duração, pode sucumbir a uma forma de exclusão social "aberta" ou a

outras formas de reclusão (familiar, notadamente) e até sofrer um processo de mendigação.

74 As formas variam: o indivíduo pode permanecer ou não usando uma medicação e se submetendo a consultas de avaliação, ou mesmo utilizar um aparelho extra-hospitalar. O que importa, aqui, é a sua reintegração profissional e afetiva. 75 Que, também, pode variar, segundo uma quantificação percentual.

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IX. Capítulo IV

A. Campo representativo da doença mental (DM) entre os psiquiatras

1. Introdução ao campo representativo

Nosso objetivo, aqui, é apreender o papel da representação da doença mental entre os psiquiatras, isto é, se a representação guia a conduta do psiquiatra e se participa na construção de sua identidade profissional. Acontecendo tal fato, pudemos averiguar sua coerência interna e deduzir logicamente o comportamento diretamente derivado da adesão do entrevistado à representação. Para deixar mais claro essa proposição, examinemos o seguinte exemplo: de um entrevistado que assume uma representação psicanalítica de DM, pode-se inferir logicamente diversas conseqüências:

• o entrevistado é, provavelmente, um psicanalista;

• defende um dualismo nosológico (separação ontológica entre a DM e a doença

enquanto tal — como é paradigmático na teoria psicanalista);

• critica o paradigma biomédico da medicina e, conseqüentemente, defende uma

separação nítida entre a neurologia e a psiquiatria;

• defende uma independência profissional da psicanálise em relação à psiquiatria;

Como discutido na problemática, mostramos empiricamente que, embora muitas vezes encontrássemos uma adequação entre representação e prática, a conformidade é muito mais nuançada do que sonham as nossas vãs premissas. E, quando tal ajustamento não ocorre na prática, temos que não só oferecer uma explicação plausível para o fenômeno, bem como inferir que a hipótese de partida — a representação guia a conduta do sujeito — possui uma validade heurística restrita. Tal ressalva é polêmica, pois vai de encontro a algumas teorizações sobre o conceito de representação social, principalmente análise provenientes de correntes mais cognitivistas (Doise, Clemence, Lorenzi-Cioldi, 1992; Moliner, 1996) que percebem, muitas vezes, da relação entre representação e prática uma adequação já dada, sem necessitar de questionamentos — a conduta do sujeito parecendo, nesse caso, um vetor da representação. Por isso, diante do material empírico, tivemos que restringir o aporte explicativo da representação em relação à conduta do entrevistado e, assim, conectar a discussão da representação a uma elaboração sobre as práticas profissionais, principalmente na segunda parte da "Empiria" ("o campo profissional do psiquiatra").

Na interpretação do material empírico, tomamos como premissa que a DM é o objeto

profissional da psiquiatria. Enquanto tal, seria fonte de produção de representações profissionais.

Com efeito, para agir e se comunicar, quando num contexto profissional, os indivíduos precisam

de "objetos" ou de "referentes". Os objetos profissionais, no fundo, são responsáveis pela trama

de relações, práticas e representações que determina a finalidade da atividade profissional. Sendo

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referentes do mundo profissional, os objetos possuem uma relação genética com as condições

específicas do contexto, no caso o contexto profissional. Por isso, sofrem um processo de seleção

no qual algumas características são marcadas e adaptadas aos imperativos da atividade

profissional. Os objetos, assim, tornam-se específicos, e sua especificidade depende das

significações que os indivíduos lhes imputam. Portanto, são específicos porque são marcados

pelo grupo profissional. E seria através dessa especificidade, enquanto objetos profissionais, que

são valorizados socialmente.

Embora a DM seja um objeto profissional, não se esgota no contexto profissional. Sua

relação com o contexto seria menos genética do que baseada numa adequação, já que sofre fortes

interpelações do imaginário social, do qual os entrevistados retiram, inclusive, vários elementos

para a construção de sua representação de doença mental. Assim, como objeto profissional, a DM

é de difícil conformação. Seria fonte de representações exatamente por ser polimorfa e de difícil

apreensão. Como tal, está numa situação diferente da doença somática, cuja "normalização" é

muito mais profunda e antiga, sendo um objeto profissional de muito mais fácil apreensão e

controle. Devido ao seu caráter um tanto inapreensível, a necessidade de controle do seu objeto

profissional, para os psiquiatras, tornou-se uma questão de identidade e de coesão social (coesão

de grupo). Sua apreensão, enquanto objeto, constitui um desafio que coloca em xeque a

legitimidade profissional da psiquiatria. Ao contrário dos objetos profissionais da profissão

médica, a DM não possui um consenso etiológico, isto é, uma representação única e estável

guiando a conduta dos psiquiatras, permitindo assim a concorrência de diversas representações

psiquiátricas (formas de apreensão) do objeto profissional, criando uma confusão de nosologias e

práticas terapêuticas. Sem consenso, os psiquiatras não estariam, como os neurologistas, por

exemplo, submetidos a uma instância de regulação que definiria um sistema ortodoxo (conjunto

de regras e práticas relacionadas, no caso da medicina, ao diagnóstico e, principalmente, ao

tratamento) de controle do objeto profissional. Talvez, por isso, a psiquiatra tenha compensado a

falta de um sistema ortodoxo de controle do objeto profissional por um espetacular sistema, não

menos ortodoxo, de controle organizacional e administrativo da prática profissional, cujo corpo

normativo está fundamentado no hospital psiquiátrico.

Em vista disso, a forma de apreensão do objeto profissional foi mudando segundo a

representação de cada entrevistado, ocorrendo uma dispersão de informações — aliás, uma das

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característica fundamentais da representação social segundo Moscovici (1978). A DM é, por

definição, um objeto polimorfo, assumindo diferentes formas no mundo profissional. Para cada

grupo de entrevistados, a apreensão diferenciada do objeto profissional revestiu-se de uma

importância identitária. Inclusive, para alguns grupos, cuja representação do objeto possui uma

função ideológica de combate a outras representações, o objeto participa da própria gênese do

grupo profissional, isto é, do que chamamos de formatação genética do grupo; portanto, não teria

uma participação apenas eventual ou pragmática na dinâmica identitária do grupo (formatação

conjuntural do grupo). Assim, na maioria dos casos examinados, o objeto profissional é uma

fonte de criação identitária, logo, de representações que facilitam a coesão social e mantêm a

identidade do grupo, mais ainda na situação dos entrevistados, desde que estão o tempo todo

confrontados a um objeto difícil e problemático. Talvez pela falta de uma instância reguladora

que fixe o conteúdo da representação de DM e, muito provavelmente, pela profusão de

representações de DM que perpassam o campo psiquiátrico, vários entrevistados adotaram uma

conduta pragmática em relação ao objeto profissional: sua representação de DM tem menos uma

relação com a verdade do que com a utilidade; portanto, ao contrário daqueles entrevistados, já

citados, para os quais a representação, sendo usada no combate a outras representações, teria uma

função de veracidade. De qualquer forma, independente do papel atribuído à representação, a

apreensão do objeto profissional precisa relacionar cognições úteis ao trabalho profissional; em

suma, estar de acordo com a razão prática do sujeito e adequado aos limites normativos do

contexto profissional.

Enfim, foi-nos impossível evitar o uso do jargão médico. Impossibilidade dada por um

fato absolutamente banal: tivemos que discutir a respeito das representações do objeto

profissional da psiquiatria. E não foi possível evitar tal discussão, já que partimos da premissa de

que sem a análise do objeto profissional, dificilmente conseguiríamos apreender a identidade

profissional. Além do mais, analisamos entrevistas de profissionais que utilizam uma linguagem

específica, pois lidam com o objeto específico de sua área profissional. Tal linguagem faz parte,

inclusive, do aporte identitário dos entrevistados. Embora não discutamos o conteúdo

propriamente médico das representações, visto que estamos interessados no papel que tais

conteúdos têm na construção identitária — em suma, nosso foco seria na função (forma de

utilização) das representações na construção da identidade profissional —, seria incômodo não

reconhecer que esse mesmo conteúdo faz parte constitutiva da identidade profissional.

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2. Representação analítica da psicose e da DM a) Introdução.

Para não abusar do jargão médico, utilizaremos uma conceituação ordinária de psicose e

de neurose — em suma, utilizaremos o dicionário. Acreditamos que o recurso a definições

ordinárias de psicose e neurose facilitará o nosso entendimento da discussão.Tais definições estão

perfeitamente adaptadas aos nossos propósitos e, convenhamos, não se distanciaram tanto das

próprias definições dos entrevistados. As definições encontradas no dicionário aproximam-nos,

nesse sentido, das representações dos entrevistados, as quais, vale dizer, não são nem científicas,

nem senso comum, fazendo parte, isto sim, de um saber especializado e profissional.

Assim, psicose, segundo o Houaiss, é definida como um "transtorno mental caracterizado

por desintegração da personalidade, conflito com a realidade, alucinações, ilusões etc". Tal

definição é geral, um tanto vaga e de cunho psicológico. Diferencia-se, sem entrar em muitas

delongas, da definição psicanalítica de psicose pelo fato de se centrar na sintomatologia e não na

etiologia, como é o caso da teoria psicanalítica. Uma é descritiva, centrando a noção nos

sintomas, e a outra, etiológica, colocando a psicose como uma perturbação de uma fase primária

da formação da personalidade humana. Ainda no Houaiss, a neurose é definida do seguinte

modo: "conjunto de problemas de origem psíquica que, diferentemente da psicose, conservam a

referência à realidade, ligam-se a situações circunscritas e geram perturbações sensoriais,

motoras, emocionais e/ou vegetativas". Novamente, tal definição é geral e de cunho psicológico.

E não precisamos ir muito longe para encontrarmos uma definição analítica de neurose — basta o

Houaiss: "afecção de origem psíquica em que os sintomas expressam simbolicamente um conflito

originado na infância do indivíduo, e que cria soluções de compromisso entre o desejo e as

defesas". Vemos, de novo, as diferenças de ênfase na descrição sintomatológica e na procura de

uma causalidade.

Ao mesmo tempo, para fins de classificação, criamos duas noções básicas: dualismo e

monismo. São noções que reduzem de forma draconiana a complexidade da discussão, embora tal

redução, na nossa opinião, não tenha prejudicado nossa análise. São formais, já que não

interpelam os conteúdos médicos das representações de DM. Elas produzem um corte

paradigmático, pois dividem em dois modelos extremamente gerais todas as diferenças entre as

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representações de DM. Seriam navalhas de Ockham com pontas um tanto grossas, mas que

permitem uma simplificação da discussão.

Assim, definimos como dualista toda representação de DM, independentemente de seu

conteúdo, que separa o espírito da matéria, a mente do corpo, o psicológico do somático. De

forma abstrata, o dualismo contrapõe dois princípios em pólos opostos, irreconciliáveis; de forma

concreta, aplicando ao nosso contexto, a posição dualista impõe uma separação entre a DM e a

doença orgânica ou clínica. Uma representação dualista, conseqüentemente, torna a DM uma

doença especial (ou, até mesmo, torna possível a negação do fato psiquiátrico como um fato

patológico), divergente de todas as outras, instituindo-lhe uma diferença ontológica. A

psicanálise é um exemplo de teoria dualista, pelo menos nas versões que se distanciam de uma

rigorosa exegese freudiana, pois institui uma separação entre o psiquismo e o corpo.

Já monista é toda representação de DM, independentemente de seu conteúdo, que une o

espírito e o corpo, a mente e o soma, o psicológico e o somático. No monismo, os princípios

aparentemente separados são atributos de uma mesma substância. Espírito e matéria são, por

assim dizer, faces da mesma moeda. A DM perde sua especialidade, tornando-se apenas

específica, como qualquer outra doença na medicina. Não prefigura uma diferença absoluta,

apenas uma diferenciação. Torna-se uma doença como outra qualquer — torna-se banal. Entre

uma pneumonia e uma esquizofrenia não há mais uma diferença de natureza. A teoria biológica

da DM é um exemplo de teoria monista, afirmando que, embora a DM tenha efeitos ditos

psicológicos, seu fundamento é neuroquímico; logo, a sintomatologia de cunho psicológico é

apenas uma expressão direta e indireta de princípios neurobiológicos.

Enfim, a utilidade das duas noções seria basicamente esta: formam dois modelos que,

aplicado às representações dos entrevistados, permitem-nos visualizar "p osições", dualistas ou

monistas, cuja dedução leva-nos a inferir diferenciações profissionais que implicam condutas e

procedimentos diferentes em relação ao objeto profissional — no caso, a DM. Ora, analisar

diferenciação profissional, condutas e procedimentos é, de fato, analisar identidade profissional.

As duas noções ainda permitem variações e extrapolações, como por exemplo: dualismo ou

monismo institucionais (quanto à separação ou não entre serviço psiquiátrico e serviço clínico;

Hospital Geral x Hospital Psiquiátrico...); dualismo e monismo vocacionais (quanto à separação

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ou não entre vocação médica e vocação psiquiátrica). Pudemos fazer isso por causa da condição

heurística da representação de DM. Um exemplo mais concreto: defender uma separação

ontológica entre a DM e as outras doenças pode levar o entrevistado a afirmar a necessidade de

uma aparato institucional especial para o tratamento de uma doença diferente, perfazendo assim a

defesa de um dualismo institucional (defesa da necessidade do hospital psiquiátrico em

detrimento do hospital geral). Ou ainda: o dualismo pode levar o entrevistado a defender uma

separação entre a vocação médica e a psiquiátrica, já que a DM, sendo ontologicamente diferente

das outras patologias, necessita de um profissional que utiliza deontologias e procedimentos

diferentes dos que existem na medicina; assim, defende-se a partir do dualismo um dualismo

vocacional. Haveria, assim, o seguinte caminho lógico que não necessariamente acontece na

realidade:

? dualismo institucional (hospital psiquiátrico)

Dualismo nosológico

? dualismo vocacional (vocação psiquiátrica)

? monismo institucional (hospital geral)

Monismo nosológico

? monismo vocacional (vocação médica)

b) A representação e diferenciação profissional.

Dos 50 entrevistados, 11 assumiram uma representação psicanalítica da psicose e da DM.

Nomeamos a representação de psicose de "analítica" pela clara referência à teoria psicanalítica.

Os entrevistados utilizaram todo o jargão psicanalítico para definiram o termo "psicose", sempre

fazendo referências à psicanálise, a Freud e a Lacan. Não vamos discutir até que ponto tais

definições são realmente psicanalíticas, pois não é o nosso objetivo. Notamos apenas que as

respostas foram homogêneas do ponto de vista da representação e com claras referências à

psicanálise, o que nos permitiu de classificá-las num mesmo grupo, chamado de "representação

analítica". Contudo, a representação foi utilizada para fins diferentes de identificação. Além da

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resposta propriamente dita, alguns entrevistados utilizaram a representação para se definirem

"profissionalmente". Tal definição, vale dizer, sempre teve como contraponto a medicina.

Dos onze entrevistados, cinco utilizaram a representação de psicose para se diferenciarem

dos médicos, do discurso médico e da medicina — todos os entrevistados que fizeram tal

diferenciação, a partir da representação da psicose, são lacanianos76. Podemos citar,

exemplificando, uma resposta típica de um entrevistado lacaniano: "psicose é uma falha que

produziu a interdição do Nome-do-Pai. A psicose seria uma estrutura de personalidade"

Os outros entrevistados não fizeram tal diferenciação a partir da sua representação

analítica de psicose. Além disso, os cinco entrevistados tiveram a preocupação de demonstrar que

sua representação de psicose não faz parte do "campo da medicina", concatenando tal afirmação

com o seguinte postulado: o psicanalista é diferente do psiquiatra. Tal diferenciação profissional,

realizada através da representação de psicose, reivindica uma diferença no próprio "trabalho

terapêutico"; isto é, uma representação analítica da psicose (ou de toda DM) implica uma postura

profissional diferente da psiquiátrica, seja na visão de psicose (ou de DM), seja na concepção de

tratamento. Em suma, as duas esferas profissionais (psicanálise e psiquiatria) não se misturariam:

não se pode ser psiquiatra e psicanalista ao mesmo tempo — inclusive alguns lacanianos

afirmaram que, se não houvesse problemas de ordem financeira, trabalhariam apenas como

psicanalistas.

Tal raciocínio é alicerçado numa visão da psicanálise enquanto um paradigma oposto ou

antagônico ao da medicina — para a maioria dos lacanianos, a DM não seria propriamente uma

doença, mas fundamentalmente um "sofrimento". Assim, no caso desses entrevistados, assumir

uma representação analítica da DM significa também assumir uma identidade de psicanalista,

mas não de psiquiatra. A representação analítica, para os entrevistados, entraria num conflito

irremediável com a representação dita "médica" da psicose e da DM, fazendo parte fundamental

na diferenciação profissional entre a psicanálise e o psiquiatria.

76 Lacan, psicanalista francês, re-fundou, digamos assim, a psicanálise. Embora considerem-se continuadores da obra psicanalítica, os lacanianos formam uma escola separada da ortodoxia freudiana. Lacanianos, nesse sentido, são psicanalista que possuem como referência profissional, e mesmo ideológica, Lacan e sua obra. Por uma especificidade histórica, que nã o iremos discutir aqui, Recife possui uma presença marcante de psicanalistas de orientação lacaniana.

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Mas como se "equilibra" tal clivagem entre psiquiatria e psicanálise?

Através da construção de uma "dupla personalidade". Assim, a dualidade entre a

psiquiatria e a psicanálise é construída de dois modos: primeiro, trabalhando em espaços

profissionais e organizativos diferentes — no Hospital Psiquiátrico (HP), os entrevistados são

psiquiatras; no consultório, psicanalistas. Segundo, a psiquiatria é identificada ao tratamento

medicamentoso: no espaço analítico, os entrevistados recusam-se a administrar medicamentos,

principalmente psicotrópicos — a medicação somente seria administrada enquanto "psiquiatras".

Pode-se dizer que a psicanálise é colocada como o objeto da vocação, enquanto a psiquiatria é

quase um mal necessário, justificado discursivamente pela necessidade econômica. Tal solução é

nitidamente pragmática, e vários entrevistados reconheceram a contradição. Como afirmou um

entrevistado:

não posso fazer nada. Se pudesse ficaria apenas trabalhando no consultório.

No hospital, a lógica é de lascar. É impossível não passar medicação.

Por outro lado, os entrevistados que são psicanalistas77, mas evitaram a "dupla

personalidade", são justamente aqueles que não utilizaram sua representação de psicose e de DM

para uma diferenciação profissional. Possuem uma representação analítica da DM e a consideram

como uma doença, ao contrário dos lacanianos. Nesse sentido, ao considerarem a psicose como

uma patologia, aproximam a psicanálise da medicina, concebendo aquela como uma

"psicoterapia", isto é, como um "tratamento". A psicanálise desencantar-se- ia ao perder sua aura

de "profissão", tornando-se uma psicoterapia, embora hierarquicamente superior a todas as

outras. Há a defesa de um vínculo entre a psicanálise e a psiquiatria — na verdade, para estes

entrevistados, a psiquiatria seria uma "profissão da saúde mental" na qual várias correntes de

pensamento e de prática conviveriam no mesmo "espaço\tempo" profissional, incluindo o aporte

lacaniano; em suma, existiria uma psiquiatria de base analítica convivendo, não sem

antagonismos, com uma psiquiatria clínica, entre outras.

Como disse um entrevistado:

77 A maioria desses entrevistados não repudia o aporte lacaniano, tendo até alguma simpatia por algumas posições lacanianas; contudo, não se consideram lacanianos e sim psicanalistas, colocando o psicanalista francês no panteão analítico, mas ao lado de outros "deuses" da teoria psicanalítica.

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sou psicanalista, mas não sou fundamentalista. Acho que a minha formação

analítica é complementar à minha formação psiquiátrica. A psiquiatria me deu

todo um referencial do ponto de vista do diagnóstico e de prognóstico... E a

questão dos limites: um psicanalista que não tem essa experiência com a

psiquiatria, ele pode se encontrar em determinadas situações em que não

consegue reconhecer determinados limites. O limite da depressão, o limite de

um sofrimento que exigiria uma medicação. Seria extremamente sádico, o

profissional de não desse a medicação a um paciente que com esse nível de

sofrimento...

Por isso, ao contrário dos lacanianos, não causa surpresa que tais psicanalistas defendam

uma complementaridade hierárquica entre o tratamento medicamentoso e a psicoterapia, sendo

esta última a prioritária e colocada no topo da hierarquia terapêutica. Ao mesmo tempo, tais

psicanalistas são profissionais que trabalham no serviço público, boa parte em coordenações de

saúde pública, geralmente com cargos de chefia. Estão, desse modo, acostumados a trabalharem

no HP e não privilegiam o trabalho em consultório; inclusive, mesmo que no espaço privado do

consultório a abordagem seja fundamentalmente de cunho analítico, não se consideram menos

psiquiatras por causa disso.

Pode-se resumir essa discussão acima com o seguinte quadro:

Representação analítica

Unidade profissional Tratamento

Defesa da separação "Dupla personalidade" Psicoterapia x medicação

Defesa do vínculo "Unidade" Complementaridade

c) Representação e formação analítica

Como vemos, a relação entre representação e prática não é direta nem unívoca. A

tradução lógica da representação em conduta ou comportamento nem sempre se verifica na

prática. Pode-se construir logicamente uma conduta adequada à representação, mas apenas como

indicativo para se examinar a relação entre a prática e a representação. O que pode ocorrer na

realidade é uma inadequação ou se perceber uma série de mediações entre a representação e a

prática — a relação não é direta e imediata, e sim indireta e mediada. Assim, como mais um

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exemplo dessa discussão, embora onze entrevistados tenham assumido uma representação

analítica de psicose, a maioria dos entrevistados que teve uma formação analítica (20

entrevistados) não avocou tal representação. Dos que a tiveram, 09 entrevistados assumiram uma

representação analítica da DM. Ao mesmo tempo, apenas 02, dos que assumiram essa

representação, não têm uma formação analítica.

O que explicaria isso?

Podemos inferir que a formação analítica condiciona, de forma apenas parcial, a

representação da DM. Parece-nos que o resultado maior (e um tanto evidente) da formação

analítica foi o de tornar o psiquiatra capaz de realizar uma psicoterapia de base analítica. Assim,

todos os entrevistados que têm uma formação analítica reconhecem que utilizam o método

psicoterápico, principalmente no ambiente privado do consultório. Para o entrevistado, possuir a

competência de realizar um tratamento psicoterápico não implica, necessariamente, possuir uma

representação analítica da DM. Como disse um entrevistado: "a formação analítica me deu um

conhecimento que posso aplicar na minha prática". Pelo que pudemos entender, a maior parte

dos entrevistados considera a formação analítica uma formação "técnica" ou uma

"especialização" como outra qualquer. Os únicos entrevistados, para os quais a formação

analítica foi bem mais do que uma "especialização, foram os entrevistados que fizeram uma

diferenciação profissional entre a psicanálise e a psiquiatria. A formação analítica, nesse caso, foi

do tipo "lacaniana", reconhecida pelos entrevistados como mais "formativa", isto é, modelando

práticas e representações do profissional.

d) Representação da DM x noção de neurose x

classificações nosológicas

Indagar sobre a importância da noção de "neurose" entre os entrevistados foi fundamental,

pois tal noção sempre jogou um papel importante na representação da DM. Além do mais, seria

atualmente uma noção polêmica, cuja antiga hegemonia está sendo desafiada pelas novas

classificações nosológicas, principalmente as americanas, que prescindem do uso do termo. A

"neurose", além de implicar uma concepção de DM, implica também, na atual conjuntura, uma

diferenciação na identidade profissional. Para julgarmos o verdadeiro papel da noção de neurose,

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fizemos uma diferenciação entre a representação (no caso, "analítica") de psicose e a de neurose,

cuja utilidade, inclusive, será vista daqui por diante.

Todos os entrevistados que possuem uma representação analítica da psicose utilizam o

conceito de neurose na prática terapêutica. Consideram tal conceito importante e o definem do

ponto de vista da teoria psicanalítica. Ao definirem a neurose analiticamente, os entrevistados

colocaram, no mesmo campo representativo, as representações de neurose e psicose. Os

entrevistados são "coerentes", utilizando a mesma teoria para ambas as representações.

Mas nem todos os entrevistados que possuem uma representação analítica da neurose têm,

por sua vez, uma representação analítica da psicose. Se o movimento é coerente da representação

de psicose para a de neurose, o inverso não é verdadeiro: há entrevistados que possuem uma

representação analítica da neurose, mas que não repetem o mesmo raciocínio para a psicose. Sem

examinar, por enquanto, outras variáveis, podemos inferir que a representação analítica de

psicose condiciona a de neurose, mas não o contrário — não haveria entre as duas representações

um feedback.

Podemos considerar que é "adequado" a utilização do conceito de neurose pelos

entrevistados do grupo analítico, já que tal conceito tem uma tradição importante na história da

psicanálise. Sua definição rigorosa em termos psicanalíticos seria também uma maneira de se

contrapor às novas tendências, principalmente da psiquiatria clínica, em que o conceito de

neurose praticamente desapareceu do diagnóstico. Assim, pode-se postular um investimento de

"identificação" no conceito de neurose, diferente da sua utilização "pragmática" feita por outros

entrevistados, principalmente psiquiatras clínicos, em que "neurose" foi apenas utilizada para o

diagnóstico diferencial da psicose. Acreditamos que essa defesa enfática do conceito de neurose é

uma demarcação de campo "profissional"; portanto, não causa surpresa que a maioria dos

psicanalistas recusam e criticam duramente o uso das classificações nosológicas, principalmente

as novas classificações que omitem ou desnaturam o conceito de neurose — tais classificações

repousam em visões de doença diferentes e, algumas vezes, antagônicas à psicanálise. Como as

classificações são sintomáticas, necessariamente omitem qualquer visão "qualitativa" ou causal

de uma DM. Podemos concluir que a defesa do conceito de neurose e a recusa de utilizar as

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163

classificações fazem parte do mesmo movimento de defesa de uma identidade disciplinar e, por

que não, profissional.

Como disse um entrevistado:

Acho importante. É útil do ponto de vista operacional. Mas prefiro as classificações antigas. As novas só se preocupam com os sintomas ? pra quem gosta de medicação, as novas classificações são úteis. Faz perder de vista a totalidade do paciente. Neurose é bem mais do que transtorno, do que sintoma

Ou ainda:

A neurose deveria ser abordada por outra forma que não a psiquiátrica... A neurose desapareceu dessas novas classificações. Agora tudo é disfunção...

Não foi por mera coincidência, assim, o fato de que todos os entrevistados do grupo da

representação analítica de psicose, exceto um, não utilizam as novas classificações nosológicas.

A exceção confirma a regra, pois tal entrevistado justifica a utilização das classificações de uma

forma pragmática: utiliza esse procedimento apenas para a "comunicação científica". A utilização

não o impede de fazer críticas às classificações, consideradas como de base "comportamental" e

apenas sintomatológicas. As novas classificações não fazem uso do conceito de neurose e,

praticamente, prescindem do emprego de noções psicanalíticas; talvez por isso a resistência à

utilização de tais procedimentos por parte de entrevistados que possuem representações analíticas

tanto da psicose como da neurose. Nesse sentido, as novas classificações são comumente vistas

de forma negativa e, algumas vezes, francamente antipsicanalíticas.

e) Representação e dualismo nosológico

Todos os entrevistados do grupo da representação analítica de DM são dualistas

nosológicos, isto é, admitem que a doença mental é essencialmente diferente da doença tout

court. Como disse um entrevistado:

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164

O problema da doença mental é a linguagem e o simbólico. Há diferença entre corpo e psiquismo. Há uma diferença de objeto entre a medicina e a psiquiatria...

Nem todo dualista possui, contudo, uma representação analítica da DM; assim, o

movimento vai da representação ao dualismo nosológico, e não o contrário. Stricto sensu não

podemos considerar os entrevistados que não concebem a psicose como uma doença ,

principalmente os lacanianos mais radicais, como dualistas. São, na verdade, dualistas bem mais

radicais, ultrapassando o próprio alcance do dualismo. São defensores de um de tipo ontológico

que separa corpo e psiquismo, de forma rígida, e que considera a DM completamente fora do

paradigma médico. O dualismo de tipo nosológico ainda se enquadraria no paradigma médico,

pois considera a psicose como uma doença, mesmo que substancialmente diferente da doença

propriamente dita; além do mais, ele pode ser amenizado ou mesmo reduzido a uma mera

dualidade através de um visão psicossomática da doença. Para o dualismo radical a DM não seria

propriamente uma doença e sim, como disse vários entrevistados, um "sofrimento". O fenômeno

"psicose" estaria completamente fora do âmbito psiquiátrico, sendo incompatível com sua

apropriação pelo saber psiquiátrico — incompatível, mais especificamente, com uma apropriação

biomédica de doença.

Um resumo dessa discussão pode ser visualizado da seguinte maneira:

Dualismo nosológico DM x Doença orgânica Paradigma médico Dualismo ontológico "Sofrimento" x Doença Fora do paradigma médico

A psicose ou a DM em geral — já que os entrevistados defenderam a neurose da mesma

forma — seria uma doença especial dentro da medicina, envolvendo justamente uma

representação especial de doença: a representação analítica. O dualismo seria a reafirmação dessa

diferença. Há as doenças tout court e as doenças de qualidade diversa que quase escapam da

medicina: são as doenças psiquiátricas. Com o dualismo, ocorre uma demarcação de território

disciplinar e mesmo profissional de grandes conseqüências. Ele é uma característica marcante da

representação analítica da psicose, fazendo parte do seu núcleo de formação. Para os

entrevistados, possuir uma tal representação significa ser dualista; significa defender uma

especialidade para a psicose e a DM; uma especialidade que as fazem diferentes na nosologia

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165

médica. O dualismo nosológico sintetiza a diferença protagonizada pela representação analítica

da psicose.

f) Representação e etiologia

Em relação à etiologia da psicose e da DM, todos os entrevistados que possuem uma

representação analítica da psicose sustentaram uma determinação psíquica para a patologia

mental. Para tal, demonstraram a coerência entre a defesa de uma etiologia psíquica da psicose e

uma representação analítica da mesma — a comprovação da dita coerência se verifica quando

confirmamos que somente tais entrevistados defenderam uma etiologia psíquica da psicose e da

DM. A causalidade psíquica da psicose foi defendida também a partir de críticas às visões

"organicistas" da psicose e da DM, consideradas redutoras e contraditórias com a clínica.

Assim, temos algumas afirmações bem características, inclusive provenientes do jargão

psicanalítico:

Seria uma questão de herança, mas não genética. Uma herança simbólica e de constituição das relações. Pai e mãe...

Ou ainda:

Existe uma questão orgânica, mas do po nto de vista constitutivo: algo que aconteceu durante a constituição do indivíduo. Principalmente nas relações primárias. E pode explodir quando de situações estressante .

Podemos inferir de tal necessidade de "coerência" uma pregnância da representação

analítica da psicose; isto é, da representação deriva algumas conseqüências: umas doutrinárias,

ligadas à teoria psicanalítica, como a etiologia psíquica e a representação de neurose; outras mais

amplas, como a defesa do dualismo. Ora, nem todos os entrevistados que possuem uma

representação analítica de neurose ou que defendem o dualismo nosológico assumem uma

representação analítica da psicose. Nesse sentido, o caminho só tem uma direção: da

representação para tais variáveis. Visão analítica da neurose, dualismo e etiologia psíquica estão

juntos a partir da representação analítica de psicose. Ela seria o determinante da "família"; o

ponto pelo qual convergiria elementos dispersos para formar o campo representativo do

entrevistado — este utiliza a representação para colocar sob sua órbita argumentativa outros

elementos que não estão umbilicalmente ligados à representação.

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Evidentemente, o "cimento", o "amálgama" dessa "família" é a teoria psicanalítica. Como

tal, pode ser utilizada de várias maneiras, seja como doutrina, como parece ser o caso desse grupo

de entrevistados, seja como um "instrumento", como parece ser o caso dos outros entrevistados

que têm uma relação pragmática com as teorias do campo psiquiátrico. No caso agora

examinado, seria a teoria psicanalítica que subsidiaria a representação da psicose, conectando-a

aos outros elementos, como a neurose e a causalidade psíquica. A teoria psicanalítica seria o pano

de fundo pelo qual os entrevistados fazem a conexão de vários elementos com a representação de

psicose.

g) Representação e tratamento

Podemos afirmar que os entrevistados examinados foram "coerentes": seguiram um

caminho lógico que vai da representação analítica até à causalidade psíquica da psicose e da DM.

Podemos dizer o mesmo quanto ao tratamento da psicose: 08 dos entrevistados indicaram que o

tratamento é "fundamentalmente psicoterápico"; o restante defendeu a complementaridade entre

medicação e psicoterapia. "Fundamentalmente psicoterápico" não significa que não ocorra o

emprego de medicação por parte dos entrevistados. Significa, na verdade, uma defesa de

princípios, pois todos os entrevistados desse grupo trabalham no serviço público, onde é

extremamente difícil — por motivos que, por enquanto, não discutiremos aqui —, senão

impossível, a aplicação de psicoterapias; assim, são obrigados pelas circunstâncias a administrar

corriqueiramente a medicação, principalmente aquela à base de psicotrópicos. Deste modo,

"fundamentalmente psicoterápico" reflete o trabalho no consultório, onde o tratamento é baseado

na psicoterapia. Tal fato se repete mesmo para aqueles entrevistados que fazem uma

diferenciação profissional entre a psiquiatria e a psicanálise, embora possamos fazer aqui uma

nuança: "fundamentalmente" seria trocado pelo "exclusivamente".

Como afirmou, paradigmaticamente, um entrevistado:

na prática analítica, não utilizo medicação. No serviço público, infelizmente,

sou obrigada...

Ou ainda:

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167

sou contra a utilização de medicação na psicanálise. Não vejo pra quê.

Sinceramente, não gosto de medicar...

O restante dos entrevistados defende uma complementaridade entre a medicação e a

psicoterapia no tratamento da psicose e da DM. De novo, precisamos fazer uma nuança: os

entrevistados reconhecem que, no consultório, o tratamento é "fundamentalmente psicoterápico",

aceitando o fato de que, no serviço público, o tratamento é inteiramente medicamentoso. A defesa

da complementaridade não é apenas um fato de consciência — os entrevistados acham,

realmente, que o melhor tratamento para o paciente psiquiátrico é a complementaridade entre a

medicação e a psicoterapia —, mas também o reconhecimento de outro fato: há uma "divisão"

entre o serviço público (principalmente o hospital psiquiátrico — HP) e o consultório privado, e

tal divisão é "terapêutica".

A complementaridade entre medicação e psicoterapia também serve aos entrevistados

para reconhecer uma outra divisão terapêutica, dessa vez entre a neurose e a psicose: o tratamento

da neurose é baseado na psicoterapia, sendo a utilização dos medicamentos intermitente; ao

contrário da psicose, para a qual os medicamentos são imprescindíveis. Tal divisão, por

coincidência, corresponde à divisão assinalada entre consultório e serviço público

(principalmente o HP). Ora, como no HP, geralmente, estão internados pacientes psicóticos, o

tratamento é medicamentoso; como no consultório, os clientes, comumente, são aqueles que

sofrem de distúrbios neuróticos ou que já estão compensados do surto psicótico, o tratamento é

psicoterápico. Talvez, por isso, os entrevistados assinalam que o trabalho no consultório favorece

o tratamento "fundamentalmente psicoterápico", pois a maioria da clientela é composta de

pacientes não psicóticos que procuram o profissional explicitamente para uma psicoterapia. Ao

mesmo tempo, os clientes que sofrem de psicose procuram o profissional já "compensados"; ou

seja, clientes que já passaram por outros psiquiatras, seja no HP, seja num outro consultório, não

estando em "crise" e podendo ser submetidos imediatamente a uma psicoterapia. Assim, o

discurso da complementaridade não se realiza totalmente na prática, pois o consultório representa

para tais entrevistados um tratamento "fundamentalmente psicoterápico".

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h) Representação e Psiquiatria

A posição do grupo de entrevistados sobre a natureza do conhecimento psiquiátrico foi

bastante nuançada. Mesmo assim, podemos dizer que ocorreu uma homogeneidade nas respostas.

Todos os entrevistados consideraram a psiquiatria como um conhecimento científico; contudo, tal

consideração não significou necessariamente uma va lorização da mesma. Por exemplo: os

entrevistados que fizeram uma diferenciação profissional entre psicanálise e psiquiatria

colocaram a primeira fora da medicina ? inclusive, no dizer de um entrevistado, "a psicanálise

não é uma ciência ". Tal fato se justificaria da seguinte maneira: a medicina é baseada na biologia

que, uma vez projetada para o campo psiquiátrico, dificultaria a compreensão do psiquismo

humano; assim, a psiquiatria seria fundamentalmente biológica e organicista. Como os

entrevistados afirmaram que a etiologia da DM é essencialmente psíquica, e sendo a psiquiatria

considerada como organicista, podemos compreender por que a psiquiatria não teria condições de

"entender" a patologia mental.

Assim, ao retirar a psicanálise do campo médico, os entrevistados utilizaram as seguintes

premissas: todo conhecimento médico tem como fundamento científico a biologia; como a

psiquiatria faz parte da medicina, possui um fundamento biológico ou orgânico; como a

psicanálise não é biológica, nem organicista, logo está fora do campo médico. No entanto, apesar

de os entrevistados terem-na retirado do campo médico, não a colocaram fora da ciência: a

psicanálise seria uma ciência que teria um parentesco com as ciências sociais ou com uma

psicologia "especial" — uma "ciência do inconsciente", no dizer de um dos entrevistados. A

psicanálise seria vista como um conhecimento tão rigoroso quanto o conhecimento médico,

porém diferente na natureza e nos objetivos ? "a psicanálise trabalha com o inconsciente e a

psiquiatria com a sintomatologia e a psicopatologia. São diferentes", disse de forma peremptória

um entrevistado. Reafirma-se, portanto, a diferenciação profissional entre a psicanálise e a

psiquiatria — diferença profissional, logo diferença de saber.

Mas os entrevistados não se contentaram apenas em detectar uma diferença

epistemológica entre a psicanálise e a psiquiatria; na verdade, a crítica foi mais longe: a medicina

científica implementou um uso abusivo da tecnologia na prática médica. Tal crítica, vale adiantar,

não foi monopólio desse grupo de entrevistados, sendo usada por outros entrevistados para

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169

defender o papel humanista da psiquiatria na medicina. No caso examinado, a crítica ao

tecnicismo médico foi, ao contrário, utilizado justamente para realçar a diferença da psicanálise e

denunciar a psiquiatria; pois, segundo os entrevistados, o abuso da técnica na atividade médica

tornou o paciente um mero "objeto" e degradou, com isso, a relação médico-paciente. Dessa

forma, por ser médica e, conseqüentemente, abusar da técnica — no caso aqui, o uso da

medicação —, a psiquiatria reificaria o paciente, ao contrário da psicanálise que o reintegraria

enquanto sujeito.

Ao se diferenciarem profissionalmente, os entrevistados levaram a psicanálise para fora

do campo médico. Tal postura, evidentemente, também se enraíza numa velha polêmica interna à

psicanálise: qual é a relação da psicanálise com a medicina? Os entrevistados foram categóricos

na resposta: a psicanálise é um saber diferente do psiquiátrico e da medicina em geral. Mais

ainda: é um "trabalho" (o termo "profissão", vale assinalar, nunca foi empregado pelos

entrevistados) diferente do da psiquiatria. Podemos aventar que tal postura provém do lacanismo

dos entrevistados — pelo que pesquisamos, as correntes lacanianas do Recife defendem, de

forma velada, uma separação entre a prática médica e a psicanalítica. Podemos então inferir que a

defesa da diferenciação profissional entre a psicanálise e a psiquiatria tem origem nessa visão

particular, o lacanismo? Inferimos que o lacanismo, quando este é assumido enquanto uma

"ideologia", seria justamente um dos fatores que alicerçam tal diferenciação profissional. Ora,

pelo que sabemos, confirmado inclusive por um entrevistado, para os lacanianos qualquer pessoa

pode tornar-se psicanalista independentemente de sua formação profissional de origem

(engenharia, direito, etc.), traduzindo uma posição não partilhada por outras correntes analíticas,

principalmente as mais ortodoxas, que colocam como condição para o exercício da psicanálise a

obtenção do diploma médico ou de psicologia. Assim, a única condição sine qua non para se

tornar um psicanalista é a formação analítica obrigatória, a qual seria uma formação profissional

tout court , normatizando a profissão de psicanalista e oferecendo o conhecimento especializado

para o profissional da psicanálise.

Por trás da polarização entre psicanálise e psiquiatria, podemos notar uma outra

polarização, dessa vez entre humanismo e cientificismo. Tal polarização aconteceu várias vezes

na história da medicina moderna, sendo aguda atualmente; porém, tal polarização acontecia e

acontece por dentro da medicina, isto é, o humanismo e o cientificismo eram e são considerados

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como tendências internas à medicina. No caso examinado, a medicina representa apenas uma face

da polarização, o cientificismo, enquanto a psicanálise a outra, o humanismo; ou seja, um dos

pólos deslocou-se para fora do campo médico. A medicina não teria outra opção senão continuar

sendo cientificista, e o psiquiatra, para ser humanista, teria de ser psicanalista, afastando-se

progressivamente da medicina. Os entrevistados que não fizeram a supracitada diferenciação

profissional entre a psicanálise e a psiquiatria retomaram a polarização humanismo x

cientificismo por dentro da medicina, embora com algumas especificidades. A psiquiatria é vista

como uma disciplina científica, fazendo parte das "ciências médicas". Porém, ao se tornar ciência

e, por isso, cada vez mais "medicina", a psiquiatria vem se tornando demasiadamente "técnica" e,

com isso, desumanizando-se79. Para esse grupo de entrevistados, a psicanálise seria uma espécie

de "deontologia" da psiquiatria, sendo uma referência contra a sua desumanização. Faria parte do

espaço do saber psiquiátrico, embora tenha um status especial — alguns entrevistados a

definiram como um "saber específico". E, ao se aproximar do humanismo ou se afirmando como

humanista, a psicanálise se tornaria também ética. Segundo um entrevistado, a psicanálise

oferece ao psiquiatra uma postura diante do paciente, ao mesmo tempo que faz deste um sujeito,

e não um "objeto de técnicas". Tal valorização da psicanálise vem acompanhada sempre de um

recuo: apesar de todo o seu valor, a psicanálise seria apenas uma psicoterapia entre tantas outras

que fazem parte do arsenal psiquiátrico, embora seja, na opinião dos entrevistados, a mais

importante. Na verdade, sua importância viria do fato de que a psicanálise não se reduz a uma

psicoterapia, sendo também um "saber" que concorre, inclusive, com o saber psiquiátrico em

geral — ao contrário de outras psicoterapias que estão alicerçadas em teorias apenas locais,

diretamente relacionadas ao tratamento psicoterápico.

A psicanálise, nesse sentido, teria a capacidade de assumir a função de um

weltanschauung profissional para o psiquiatra, isto é, um sistema de valores e idéias que

modelam a identidade e a prática de um sujeito. No caso dos entrevistados que fazem uma

diferenciação profissional entre a psicanálise e a psiquiatria podemos dizer que a psicanálise

parece realmente assumir a função de uma "cosmovisão" profissional; mas, no que se refere aos

outros entrevistados, a questão é mais matizada: a psicanálise possui um papel de amálgama da

79 A acusação de que a medicina está se tornando cada vez mais desumanizada não foi monopólio desse grupo de entrevistados, pois a maioria dos entrevistados brasileiros da pesquisa fizeram tal observação, embora a maioria tenha colocado a psiquiatria como um fator de humanização da medicina.

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vocação ou da identidade profissional, embora tenha apenas um efeito "local", estando restrita

aos embates no campo psiquiátrico. Se ela reforça a identidade de um tipo de psiquiatra na

psiquiatria, tal identidade não deixa de estar subordinada a uma hierarquia axiológica mais

ampla: ser médico.

i) Representação e Neurologia

A neurologia é a "madrasta" da psiquiatria. E a relação da psiquiatria com essa disciplina

médica sempre foi recheada de ambigüidades. A história da psiquiatria parece um pênd ulo em

relação à neurologia, seja através de um movimento de adesão, seja através de um afastamento

declarado do "paradigma" neurológico. Por isso, julgamos fundamental "testar" a representação a

partir de sua relação com a neurologia. Assim, a posição do grupo de entrevistados foi consensual

a respeito da relação entre a psiquiatria e a neurologia: todos defenderam a separação entre estas

duas disciplinas. Para os entrevistados, seria lógico a manutenção da separação entre a psiquiatria

e a neurologia, vis to que a etiologia da DM é psíquica, diferenciando-a completamente da

patologia neurológica. Apesar do consenso, ocorreram diferenças significativas na defesa da

separação; diferenças de ênfase, principalmente.

Os entrevistados que fizeram uma diferenciação profissional entre a psicanálise e a

psiquiatria, embora defendam a separação disciplinar, acham que, atualmente, com o domínio da

psiquiatria biológica, a tendência é o retorno da psiquiatria à neurologia. Segundo um

entrevistado, a psiquiatria "se quiser entender alguma coisa sobre a psique humana vai ter que se

distanciar da medicina e da biologia ". Nesse sentido, ainda que desejável a separação disciplinar,

os entrevistados encaram tal discussão com certa distância, pois consideram que a psiquiatria está

inserida numa insolúvel ambigüidade: se assume a "complexidade da psique", torna-se menos

"médica"; se assume suas bases biológicas, retorna à neurologia e se elimina enquanto disciplina

autônoma.

Já os entrevistados que não fazem a diferenciação profissional entre a psicanálise e a

psiquiatria concebem a separação disciplinar entre a neurologia e a psiquiatria como uma questão

fundamental: segundo um entrevistado, "o retorno da psiquiatria à neurologia seria uma

tragédia para o tratamento da DM ". A neurologização da psiquiatria é vista como um perigo

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mortal para a identidade do psiquiatra: "um neuropsiquiatra é apenas um neurologista

especializado", diz um entrevistado. A psiquiatria, portanto, precisa manter-se autônoma,

enquanto disciplina, para justamente dar conta da especificidade da DM na medicina. Sendo

específica, a DM necessita de um profissional especial: o psiquiatra.

Para os entrevistados da diferenciação profissional, o problema da separação entre a

psiquiatria e a neurologia não é fundamental para sua identidade profissional, pois tal questão

passa fundamentalmente pelo reconhecimento da autonomia profissional da psicanálise. Já para

os outros entrevistados, o reconhecimento da autonomia disciplinar da psiquiatria é fundamental

para o seu reconhecimento profissional. Seria a autonomia disciplinar da psiquiatria que

permitiria a manutenção de um espaço no campo psiquiátrico de profissionais que fazem da

psicanálise uma referência de prática profissional.

3. Representação biológica da psicose e da DM

Esse grupo foi formado para dar conta de uma representação clínica enfaticamente

biológica, baseada numa etiologia precisa. Ele representa um grupo de 12 entrevistados — maior

até que o grupo da representação analítica da DM. Apresenta uma coerência e uma

homogeneidade parecida com as do grupo da representação analítica, envolvendo também

"princípios de pensamento e de conduta". São entrevistados que têm em alto valor a ciência,

afirmando que sua representação da DM é, antes de tudo, "científica", sendo refratários a todo e

qualquer "ecletismo". O domínio dessa representação tem como causa, segundo Laplantine:

o pensamento médico oficial de nossa sociedade, aquele que possui a maior

legitimidade social, não seria compreensível sem seu modelo epistemoló gico de

referência que é proveniente das ciências exatas. Mais precisamente, ele se

constitui como um intermediário da biologia. Seu discurso, coextensivo ao seu

objeto, é biomédico, não conhecendo e não reconhecendo nenhum outro. E

tudo aquilo que não entra no seu campo de saber ou é abandonado às

elucubrações do pensamento não científico ou é solicitado a se submeter (1992:

266)

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173

Acreditamos que a representação biomédica da doença tenha as seguintes características gerais (1992):

• etiologização da doença;

• etiologia de forma predominante exógena;

• monismo nosológico;

• medicalização da doença (alopatia);

• quantificação da saúde e da doença;

• conceito de normalidade proveniente da fisiologia (média comportamental).

A passagem, na ciência médica, do modelo biomédico de doença ao de doença mental não

é realizado de maneira passiva e sem algumas transformações. Inferimos que a maioria dos

psiquiatras do aparelho formador médico tenham, como representação dominante, o modelo

biomédico de doença; contudo, ele sofreria algumas modificações que, acreditamos, não

ultrapassam as fronteiras do paradigma. Assim, a representação biomédica de doença mental teria

as seguintes características gerais:

• etiologização da doença mental;

• etiologia endógena (orgânica, genética ou funciona l) e relacionada à singularidade

do indivíduo;

• isomorfismo entre doença mental e doença (monismo médico);

• medicalização básica da doença mental + hierarquia terapêutica (primeiro, o

tratamento medicamentoso; depois, a psicoterapia);

• classificação nosográfica e sintomatológica da doença mental;

• redução dos sintomas como objetivo da terapia;

• ambivalência do conceito de normalidade entre um pólo qualitativo e quantitativo.

Na verdade, a representação biomédica da doença mental sofre de uma instabilidade

crônica, principalmente porque ela não tem um consenso etiológico. Ela não pode se adequar

completamente ao modelo biomédico de doença, enquanto não existir tal consenso. A "volta" da

psiquiatria, desse modo, ao monismo nosológico sempre estancará no meio do caminho. A

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174

psiquiatria, com isso, não pode assumir, em última instância, uma "clínica causal" e substitui a

ausência de um fundamento etiológico por um recurso velho e conhecido: a compulsão

taxionômica.

a) Representação e neurose

A maioria dos entrevistados (07) do grupo utilizam o conceito de neurose, enquanto o

restante não o utiliza. No entanto, a utilização do conceito de neurose seria "pragmática", pois

totalmente desligada do seu contexto teórico. "Neurose" é um instrumento para o diagnóstico

diferencial da psicose. Na verdade, os entrevistados não "acreditam" no conceito de neurose: o

conceito estaria superado ou seria demasiadamente psicanalítico, segundo os mesmos.

Como disse um entrevistado:

Eu concordo com as novas classificações. Neurose é um conceito basicamente

psicanalítico. Mas, a cada dia que se passa, a psicanálise vai sendo

destronada, o que é muito bom, convenhamos

"Neurose" seria um termo amplo em demasia e difícil de manipulação, além de

incompatível com as novas classificações nosológicas. Mesmo assim, não consideram

contraditório utilizá- lo para a discriminação da psicose. Seria como se empregassem dois

registros diferentes para o conceito de neurose: um, para criticá-lo; o outro, para utilizá- lo,

mesmo que de forma "pragmática". Contudo, tal contradição seria ressentida de alguma forma,

pois vários entrevistados "justificaram" o uso de um conceito que criticam: utilizam-no por força

do hábito ou, então, porque no serviço no qual trabalham ainda se utiliza antigas classificações

nosológicas. De qualquer forma, a "utilidade" do conceito é reconhecida, embora de maneira

mitigada: "neurose" não seria empregado para o diagnóstico da "neurose", e sim indiretamente

para o de psicose. Os entrevistados prescindem do confronto dos dois antigos mundos da

psiquiatria, o da neurose e o da psicose, embora mantenham o segundo e um resquício do

primeiro.

Já os cinco entrevistados que não utilizam o conceito de neurose foram peremptórios: o

conceito de neurose está caduco e não tem utilidade alguma na psiquia tria. O alvo é velado: a

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175

psicanálise. Pois o conceito de neurose, segundo os entrevistados, se não é originariamente

psicanalítico, foi "reinventado" pela psicanálise — praticamente todos os entrevistados desse

grupo possuem uma visão um tanto negativa do papel da psicanálise na psiquiatria.

Vale ressaltar que todos os entrevistados desse grupo, sem exceção, defenderam o uso das

novas classificações nosológicas, embora uma minoria não as utilize porque em vários serviços

predominam ainda outras classificações mais antigas que, inclusive, utilizam a noção de neurose.

Por isso, defenderam com ardor a rápida disseminação das novas classificações, pois o seu uso

eliminará o hábito de utilizar conceitos desatualizados como o de neurose, unificará a psiquiatria

e todos poderão falar a mesma "língua". As novas classificações, assim, reaproximariam a

psiquiatria da medicina e da "ciência".

b) Representação e Monismo nosológico

Todos os entrevistados desse grupo, seguindo a coerência da sua representação, são

monistas convictos. A frase chave, repetida em uníssono, é a seguinte: "a DM é uma doença

como qualquer outra " — tal afirmação será, inclusive, repetida por vários entrevistados do grupo

da representação clínica. Ou seja: não há diferenças ontológicas entre as doenças, mas sim

especificidades, embora possa existir hiperbolismo: "doença mental? Tem o mesmo valor que um

cálculo biliar" – disse um entrevistado . Ao colocar a DM como uma "doença como outra

qualquer", os entrevistados fazem um movimento fundamental: banalizam a DM e, ao banalizá-

la, diminuem a carga de preconceitos que existe em relação à patologia mental. Portanto, segundo

os entrevistados, banalizar significa também lutar contra os preconceitos.

O movimento vai da definição da doença, sempre procurando o substrato biológico, passa

pela necessária identidade da DM com as outras doenças, implementa uma banalização da

patologia mental, conectada a uma prevenção dos preconceitos contra a DM, e termina numa...

política de saúde mental, pois prevenir, em psiquiatria, significa fazer política. O monismo não

teria apenas uma importância epistemológica, relativa à conceituação da doença, mas também

política, pois a banalização só pode acontecer, como disse um entrevistado, "a partir do

esclarecimento público de que a DM é um doença como outra qualquer", ou seja, a partir de uma

política de saúde mental.

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176

Mas, provavelmente, a defesa do monismo é menos uma questão epistemológica ou

política do que de identidade profissional. A afirmação "a DM é uma doença como outra

qualquer" parece significar, no fundo, "eu sou médico". Recolocar a DM como uma doença,

tornando-a ontologicamente igual a qualquer tipo de patologia na medicina, equivale a afirmar a

vocação médica da psiquiatria. Tal grupo de entrevistados possuem, realmente, uma preocupação

quase compulsiva com o tema "a volta da psiquiatria à medicina". Por isso, consideram que,

quanto mais biológica a visão psiquiátrica da DM, mais médica seria a psiquiatria, mais médicos

os psiquiatras. Acreditamos, assim, que a representação biológica possui uma função parecida

com a da representação analítica da psicose, em particular a dos lacanianos, embora o conteúdo

seja inversamente oposto: serve fundamentalmente, além da afirmação de uma visão de DM, para

aglutinar uma defesa da psiquiatria enquanto disciplina médica. Os "psiquiatras de orientação

biológica" utilizam sua visão de DM também para valorizar profissionalmente a sua atividade,

identificando tal valorização à autenticação médica da psiquiatria. Por isso uma leitura negativa

da psicanálise, concebida como um conhecimento que não se enquadra no paradigma biomédico;

curiosamente, neste caso específico, os entrevistados teriam a mesma visão dos lacanianos a

respeito da psicanálise: uma prática terapêutica diferente e separada da psiquiatria.

Assim como os lacanianos advogam um dualismo radical, os "psiquiatras de orientação

biológica" defendem um monismo radical. A DM é, de fato e de direito, uma doença como

qualquer outra. A clínica que aborda uma pneumonia é a mesma que trata uma esquizofrenia, no

dizer de um entrevistado. A segmentação profissional, distinguindo o trabalho de um

pneumologista de um psiquiatra, seria proveniente de uma divisão de trabalho entre os

profissionais médicos, e não de uma diferença ontológica entre a patologia mental e a orgânica,

pois não há mais condições de um médico individualmente abarcar profissionalmente todo o

reino da medicina. Dessa forma, o monismo radical abraça o dualismo radical quando infere a

mesma conclusão: a psicanálise não é uma prática médica, distinguindo-se radicalmente da

psiquiatria. O ponto de partida das duas posições são indubitavelmente diferentes, afinal a

representação analítica e a biológica são, com efeito, diametralmente opostas; contudo, enquanto

extremos, tocam-se, quando apresentam a mesma conclusão a respeito da psicanálise.

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177

c) Representação e Tratamento

Apenas três entrevistados do grupo dos "psiquiatras de orientação biológica" defenderam

que o tratamento da psicose e da DM em geral é "fundamentalmente medicamentoso", incluindo

os casos de neurose. Em algumas situações clínicas, principalmente nos quadros agudos de

psicose, o tratamento deveria ser "exclusivamente medicamentoso". Segundo um entrevistado:

"basta a medicação para termos um resultado positivo". Em tom jocoso, alguns entrevistados

disseram que fazem psicoterapia, chamada ironicamente de "papoterapia" (sic). A psicoterapia,

nesta visão ultra-biologista, seria completamente acessória e restrita a determinadas situações,

principalmente para os casos de neurose. Aparentemente, repete-se aqui uma velha divisão na

história da psiquiatria: o mundo da neurose x o mundo da psicose. Como a psicoterapia é bem

menos valorizada do que o tratamento medicamentoso e como é indicada comumente para a

neurose — uma indicação bem mais aceita do que uma puramente medicamentosa —, faz-se uma

conexão entre psicoterapia e neurose, ao mesmo tempo em que se produz uma dupla

desvalorização que afeta tanto a primeira como a segunda. Um entrevistado chegou a afirmar que

"trato de doença, doença grave. Só trato de disfunções neuróticas graves" — vale a pena reparar

no termo disfunção, cujo uso aparece em classificações que não apresentam a noção psicanalítica

de neurose. Fica-nos a impressão de que, no fundo, para os psiquiatras de orientação (ultra)

biológica, além de ser descartável, enquanto nosologia psiquiátrica, a neurose não teria uma

autenticidade enquanto morbidade na prática médica. Tal impressão pode ser resumida de forma

exemplar na frase de um entrevistado: "neurose é para psicólogo". Frase que implica, além de

uma conexão entre neurose e psicologia, uma desvalorização de ambas em relação à psiquiatria e

à terapêutica psiquiátrica. Inclusive, a psicanálise é confundida como o apanágio da psicologia,

reforçando a desvalorização — como disse um psiquiatra biológico: "a psicanálise é um fracasso

no tratamento da psicose!"

Contudo, nove dos "psiquiatras de orientação biológica" defenderam explicitamente, para

o tratamento, uma complementaridade entre medicação e psicoterapia. Seguem, aqui, a posição

amplamente majoritária do grupo dos entrevistados que defendem uma "representação clínica da

psicose". No geral, a defesa da complementaridade é a mesma do grupo citado, não havendo uma

diferença significativa; no detalhe, porém, apresenta algumas nuances interessantes. Haveria, por

exemplo, uma hierarquia nítida entre a medicação e a psicoterapia, com a prioridade focalizada

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no tratamento medicamentoso. A psicoterapia não seria propriamente acessória, é certo,

apresentando alguma valorização, embora seja secundária à medicação, considerada como

prioritária. Na verdade, pelo que interpretamos das afirmações dos entrevistados, o tratamento

medicamentoso seria a condição necessária para a psicoterapia. Usando um jargão psiquiátrico,

primeiro deve-se "compensar" o paciente (retirá- lo do surto) para depois implementar uma

psicoterapia. E, geralmente, a psicoterapia não é realizada pelo próprio psiquiatra, sendo o

paciente encaminhado a um outro profissional (seja um psiquiatra ou um psicólogo) para o

tratamento psicoterápico. Tal démarche acontece normalmente, é verdade, nos hospitais

psiquiátricos, independentemente da visão de doença do psiquiatra, já que isso ocorre por causa

da peculiar divisão de trabalho existente nos hospitais psiquiátricos entre a psiquiatria e a

psicologia — o paciente, após sua "compensação" induzida pelos medicamentos, é enviado ao

setor de psicologia, responsável pela psicoterapia. Contudo, tal procedimento é realizado

regularmente pelos psiquiatras de orientação biológica nos seus consultórios privados.

Novamente, pode-se perceber um paralelismo inverso ao posicionamento dos lacanianos: nesse

caso, não se administra medicação e, geralmente, o paciente aparece no consultório já

"compensado" ou, quando o psicanalista acha necessária a medicação, o paciente é encaminhado

a um outro profissional para ser medicado.

Vale frisar ainda que a psicoterapia assinalada pelos entrevistados é de base cognitiva ou

comportamentalista, nunca em tempo algum de base analítica. Embora alguns entrevistados

reconheçam que a psicanálise é uma forma legítima de psicoterapia, normalmente preferem

outros tipos de tratamento psicoterápico. Na verdade, algumas abordagens psicoterápicas não são

incompatíveis com uma representação biológica da DM, nem mesmo com as ultra-biológicas. A

psicologia moderna, por exemplo, reciclou o comportamentalismo, e este pode substituir a

psicanálise, enquanto psicoterapia preferencial dos psiquiatras. Inclusive, talvez a psicologia

comportamental seja a "nova dinâmica" da psiquiatria de base biológica e mesmo da clínica —

lembrar que a psiquiatria clínica é o paradigma dominante no âmbito psiquiátrico. Ela é objetiva,

com uma metodologia de mensuração apreciável; empirista, afirmando como postulado que "o

que é real é observável"; alopática, pois o seu objetivo não é propriamente a origem do sintoma

ou o seu sentido, e sim a eliminação do mesmo; em suma, completamente adequada ao

paradigma da psiquiatria biológica, e mesmo da clínica — aqui, haveria uma afinidade eletiva

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entre a psiquiatria clínica e a de base biológica com as psicoterapias de base cognitiva e

comportamental.

d) A "volta à medicina"

Como assinalado mais acima, o tema da "volta da psiquiatria à medicina" é unânime entre

os psiquiatras de orientação biológica. Parece claro aos entrevistados que, atualmente, a

psiquiatria está afastada da medicina, embora muitos reconheçam que a "volta" esteja iminente

ou ao ponto de se completar. Independentemente do fato de o discurso ser, provavelmente,

baseado numa ficção — não é provável que a psiquiatria esteja afastada da medicina —,

interpretamos o "discurso da volta" como uma afirmação explícita de identidade profissional.

Grupo pequeno mais coeso, sempre presente em congressos e encontros psiquiátricos,

embora não tão presente no ensino universitário, os psiquiatras de orientação biológica, com o

declínio relativo da psicanálise, as conquistas medicamentosas e as descobertas das

"neurociências", estão em pleno processo de legitimação. Querem ocupar um espaço profissional

ainda ocupado pelos psicanalistas e pelos psiquiatras clínicos. Os primeiros seriam seus mais

diletos inimigos "ideológicos"; logo, a tática é a do confronto e "da guerra de movimento", até

porque a psicanálise vivencia um eclipse histórico; os segundos têm a possibilidade concreta de

serem seus aliados ou, simplesmente, podem ser facilmente "convertidos"; logo, a tática é a da

cooptação, até porque a psiquiatria clínica possuiu sempre uma afinidade com o paradigma

biomédico. Assim, a volta à medicina significa, no fundo, a naturalização da psiquiatria (a

biologia como referência única para o conhecimento psiquiátrico) ou, mutatis mutandis, a

hegemonia progressiva da psiquiatria biológica no mundo psiquiátrico. A "volta" implica, enfim,

a valorização profissional dos psiquiatras de orientação biológica. Não causa surpresa, assim, a

defesa explícita e enfática da psiquiatria enquanto disciplina médica.

Contudo, no exame das relações da psiquiatria com a neurologia e a medicina, ocorreu

uma divisão até certo ponto esperada no grupo. O tema da "volta da psiquiatria à medicina" é

dominante, embora tenha algumas nuances. Os ultra-biológicos afirmaram, por exemplo, a

necessidade de uma volta da psiquiatria à medicina, mas condicionada a uma união com a

neurologia. Além do "discurso da volta", houve o "discurso da junção": a volta à medicina

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significa a transformação da psiquiatria numa neuropsiquiatria. Haveria assim dois tipos de

"volta", uma moderada e outra radical, uma mantendo a especificidade da psiquiatria enquanto

disciplina médica e a outra, subsumindo a psiquiatria na neurologia.

Vale lembrar que a neurologia sempre fascinou os psiquiatras, seja negativamente ou

positivamente. Já foi inimiga ou aliada, tudo dependendo da conjuntura pela qual atravessava a

psiquiatria. Na época da "anti-psiquiatria", a neurologia era vista como uma madrasta, uma mãe

ilegítima que tolhia a liberdade da prática psiquiátrica, impondo um saber e um poder que

castravam a diferença e a loucura ; atualmente, quando há um domínio relativo do paradigma

biomédico, a neurologia volta ser bajulada, recuperando alguma legitimidade ou, pelo menos, não

sendo alvo de tanta rejeição. A relação da psiquiatria com a neurologia faz parte de um jogo de

claro-escuro e de verdade-engano que tanto pode participar de uma estratégia de valorização da

psiquiatria, como gerar uma crise de identidade profissional. Admitir ou rejeitar a neurologia, por

exemplo, pode ser o ponto de partida para uma afirmação profissional da psiquiatria. No caso da

psiquiatria (ultra) biológica, a admissão é identificada a uma unificação com a neurologia — a

volta à medicina só pode acontecer com a volta à neurologia! Uma psiquiatria distante da

medicina, segundo o discurso da junção, significou sempre uma psiquiatria distante da

neurologia.

No entanto, a maioria dos psiquiatras de orientação biológica não aderiram ao discurso da

junção; certo, defenderam a volta à medicina, mas mantendo a separação da psiquiatria com a

neurologia. Nesse sentido, não se distinguem da maioria dos entrevistados (41) que afirmaram

também a separação entre as duas respectivas disciplinas médicas. Distinguem-se por causa do

discurso da volta, uma necessidade discursiva não encontrada nos outros entrevistados, embora

não façam da volta à medicina uma volta à neurologia.

O monismo nosológico dos psiquiatras de orientação biológica casa-se perfeitamente com

o discurso da volta à medicina e o da separação disciplinar com a neurologia80. O conhecimento

psiquiátrico seria visto como um saber médico especializado distinto do neurológico. A DM seria

uma doença como qualquer outra, embora precise de uma aparato especializado para sua cura e

80 O discurso da separação não foi monopólio do monismo, pois todos os entrevistados, exceto os ultra-biológicos, defenderam a separação disciplinar com a neurologia.

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tratamento: a psiquiatria — já os ultra-biológicos defendem a psiquiatria enquanto

neuropsiquiatria, isto é, como uma especialização da neurologia. Na verdade, tal discurso não se

diferencia daquele habitual na medicina: seria simplesmente o discurso da especialização que

toda disciplina, incluindo a neurologia, defende e pratica. A medicina é constituída por um

"campo" repleto de "doenças" ontologicamente iguais, porém precisando de abordagens

diferenciadas. A banalização da DM não impede, no campo disciplinar da medicina, a

reivindicação do saber psiquiátrico como saber especializado; justamente o contrário: a

banalização aparece conectada de forma indissociável à defesa da especialização por dentro da

medicina.

4. Representação clínica da psicose e da DM

Dos 50 entrevistados, 27 assumiram o que chamamos de "representação clínica da

psicose". Tal representação apresenta as seguintes características: ênfase no aspecto patológico da

psicose; visão sintomatológica da morbidade; definição da psicose como perda da percepção da

realidade. Ela possui uma peculiaridade: não demonstrou a mesma força de coesão lógica e de

indução de condutas que manifestaram a representação analítica e a biológica. Não parece ser um

ponto de referência no qual se aglutinam atitudes e opiniões dos entrevistados. Sendo assim, não

seria um ponto de partida pela qual se afirmam valorizações profissio nais; ao contrário: parece

ser justamente um ponto de chegada.

Mas ponto de chegada de quê?

Provavelmente, de uma postura que poderíamos denominar de "pragmática". A

representação não teria, digamos assim, uma função ideológica do tipo "visão de mundo", um

papel aglutinador de crenças e condutas; parece mais o "resultado" de uma postura eclética dos

entrevistados, na qual se combinam diversos registros etiológicos; parece mais uma

"bricolagem": diante da pluralidade de aspectos da DM (etiologia, diagnóstico e tratamento),

diante de um fenômeno tão multifacetado, prefere-se uma representação de DM multifacetada e

plural do que uma unívoca, juntando-se numa mesma representação vários registros diferentes.

Se a representação não aglutina, devemos procurar alhures outros fatores que consolidam

a identidade profissional. O fato é que a maioria dos entrevistados do grupo examinado acima são

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"pragmáticos", misturando diversas representações e práticas segundo as circunstâncias e de

acordo com seus interesses. De antemão, excluímos a hipótese de que tal questão seja explicada

pela geração dos entrevistados, pois o "pragmatismo" aparece em todas as gerações de

entrevistados. A "mistura" faz com que a adequação entre prática e representação seja

problemática — nesse caso específico, entre representação de doença e outras representações e

práticas. Devemos confessar que a adequação é "problemática" para nós, enquanto pesquisador,

pois os entrevistados não vivenciam essa "inadequação" como tal. Talvez a "situação" dos

entrevistados permita a convivência de várias lógicas de ação e representações aparentemente

contraditórias — quer dizer: contraditória do ponto de vista de uma construção lógica das

relações entre representações e práticas. A descrição da "situação" (a articulação entre as

condições trabalho e suas representações) do entrevistado permitiu compreender melhor a

possibilidade do "pragmatismo" — de novo, excluímos a hipótese da "geração", embora a

geração mais nova de psiquiatras seja bem mais "pragmática" do que as mais antigas.

a) Representação x etiologia

Um exemplo do pragmatismo examinado acima: do ponto de vista da etiologia, todos os

entrevistados foram unânimes em afirmar a DM como multifatorial ? "uma doença grave.

Multifatorial", como disse um entrevistado. Ou ainda, outro: "tem várias causas, psíquica e

orgânica, até social...". Os fatores que "causam" a DM são fatores biopsicossociais, isto é, cabe

praticamente tudo na etiologia da DM. Porém, o ecletismo assinalado seria muito mais fruto de

um "realismo" do que de uma ausência de posicionamento, pois a resposta dos entrevistados

segue pari passu um problema clássico de sua profissão: não há consenso etiológico na

psiquiatria. O que há, na verdade, é um verdadeiro dissenso, no qual coexiste uma profusão de

teorias etiológicas antagônicas entre si. Os entrevistados admitem o dissenso e, diante dele,

assumem uma posição que "junta" todas as "causalidades" da DM, evitando, de certa forma, o

confronto com alguma posição etiológica na psiquiatria.

Nesse sentido, essa representação da DM pode abarcar todo tipo de psiquiatra e de

psiquiatria: do psicanalista à psiquiatria de orientação biológica. A nuance recai na

predominância dos "fatores" na etiologia. A representação seria um "múltiplo com

predominante"; assim, os psiquiatras mais próximos da psicanálise afirmam a predominância do

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fator psíquico em relação aos outros fatores (biológico e social); os psiquiatras mais próximo da

biologia defendem a predominância do fator biológico e, enfim, os psiquiatras mais

"epidemiologistas" ou "comunitários" enfatizam o fator social ou familiar. A representação é

vaga o suficiente para permitir tais predominâncias sem causar transtornos, sendo centrada em

noções como "sofrimento" e "perda de contato com a realidade", isto é, noções que podem

coexistir com predominâncias do tipo "psíquico" ou "biológico", sem maiores contradições.

b) Representação x neurose

A utilização da noção de neurose pode ser um exemplo demonstrativo de como a

representação clínica de psicose e de DM é eclética. Dezoito dos entrevistados utilizam a noção

contra nove daqueles que não a utilizam. Do contingente que utiliza a noção, nove a usam como

um instrumento para o diagnóstico diferencial da psicose. Assim como os entrevistados de

orientação biológica, embora menos radicais, tais entrevistados utilizam a noção de forma

indireta, tendo em vista apenas o diagnóstico da psicose. Além do uso instrumental para o

diagnóstico diferencial da psicose, o uso da noção de neurose estaria menos relacionado a um

diagnóstico direto de algum distúrbio neurótico do que a uma adaptação às classificações

empregadas nos serviços psiquiátricos, sejam privados ou públicos. Provavelmente, caso tais

classificações não utilizassem a noção de neurose— como as novas classificações de influência

americana —, os entrevistados continuariam a utilizar a noção apenas como um guia útil para o

diagnóstico da psicose.

Juntando os entrevistados que não utilizam a noção de neurose com aqueles que a utilizam

apenas de forma instrumental, teremos uma maioria que tem, digamos assim, uma relação

"negativa" com a noção. Podemos repetir o mesmo raciocínio ao se examinar a aceitação das

classificações nosológicas: 23 dos entrevistados desse grupo defendem a utilização das

classificações81 contra 04 apenas dos que não as utilizam ou discordam do seu uso na clínica 82;

81 Lembrar que o uso das classificações é mal-vista pelos psicanalistas e por todos os psiquiatras que são contra o uso de medições e estatísticas em psiquiatria. 82 Alguns entrevistados, embora não tenham sustentado o uso das classificações, fizeram a seguinte distinção: as classificações podem ser úteis na pesquisa, mas não o são na prática clínica. Curiosamente, tais entrevistados são professores universitários, têm formação analítica, embora não se considerem psicanalistas, e sim... médicos.

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ora, as novas classificações, como já foi dito, não empregam mais a noção de neurose, nem os

critérios de diagnóstico provenientes da psicanálise.

Podemos avaliar melhor essa questão examinando os subgrupos de entrevistados. Do

contingente que utiliza a noção de neurose, 14 advogam uma visão psicopatológica da neurose.

Tal visão possui as seguintes características: a neurose é uma psicopatologia, precisa ser tratada e

diferencia-se da psicose quanto à sintomatologia. Desse contingente, 04 defenderam uma visão

psicanalítica da neurose e dez, uma visão "clássica" (mais centrada na sintomatologia da

repetição, da ansiedade e da angústia). Ora, do contingente da visão psicanalítica da neurose,

todos são contra a utilização de classificações, coincidindo com as posições declaradas pelo

grupo de entrevistados da representação analítica de psicose e DM — já todos da visão "clássica"

afirmaram, ao contrário, a necessidade do uso de classificações nosológicas na clínica

psiquiátrica.

Aparentemente, há uma tendência entre os entrevistados do grupo da representação clínica

da psicose e da DM em reproduzir a velha separação da psiquiatria entre o mundo da neurose e o

da psicose. Tal separação pode ocorrer em vários níveis: o primeiro, o mundo da psicose estaria

relacionado umbilicalmente ao tratamento medicamentoso, e o mundo da neurose, ao campo da

psicoterapia — esse nível seria o mais representativo dos entrevistados agora examinados; o

segundo nível, mais radical, a separação estaria relacionada à separação entre a psiquiatria e a

psicologia e/ou a psicanálise: psicose = psiquiatria, neurose = psicologia (psicanálise) — esse

seria o nível mais representativo dos psiquiatras de orientação biológica. De todo modo, parece

existir um consenso difuso de que o tratamento mais eficaz para a neurose é a psicoterapia —

nesse caso, psicoterapia é identificada à psicologia e à psicanálise — e que o mais eficiente para a

psicose é o medicamentoso.

Inferimos também que esse grupo de entrevistados possui uma afinidade mais acentuada

para o lado da representação biológica do que para o da representação analítica. Seria uma

afinidade que o puxa em direção ao paradigma biomédico. Embora os entrevistados não tenham o

discurso da "volta à medicina", como os entrevistados de orientação biológica, a tendência das

suas posições seria uma reafirmação da psiquiatria enquanto disciplina médica. A começar por

uma defesa enfática do monismo nosológico, isto é, do velho mote de que "a DM é uma doença

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como outra qualquer", um dos passaportes do psiquiatra para sua identidade de médico. Nesse

sentido, a defesa do monismo foi eloqüente: 22 entrevistados contra apenas cinco que foram a

favor do dualismo. Contudo, ainda um reforço: três entrevistados do contingente do dualismo

sustentou uma concepção psicossomática da DM, ou seja, um dualismo mitigado que pode muito

bem ser entendido como uma defesa de uma dualidade nosológica83, bem como todos os cinco

têm formação analítica, embora não se considerem psicanalistas e sim médicos-psiquiatras — os

entrevistados identificam a formação analítica a uma especialização como outra qualquer.

c) A bricolagem

Não causa surpresa que 25 entrevistados do grupo ratifiquem um tratamento baseado na

complementaridade entre a psicoterapia e a medicação. Ao contrário dos entrevistados de

orientação biológica, os entrevistados de orientação clínica colocam no mesmo plano os dois

tipos de tratamento. Talvez seja no tratamento que percebemos melhor a conduta pragmática

desse grupo de paciente — justamente no tratamento, fulcro central da vida do médico, o alfa

ômega da carreira médica. Como disse um entrevistado, de forma paradigmática: "qualquer

forma de tratamento vale a pena, até mesmo umbanda, contanto que funcione...". Mesmo que o

dito seja espirituoso, reflete bem o espírito dos entrevistados. Aqui, a prática clínica vira

bricolagem. O psiquiatra, dependendo do caso, utiliza várias lógicas de ação e vários registros no

tratamento, seja na mistura medicamentosa, na dosagem ou nos tipos de tratamento. Mas a

bricolagem possui um referencial empírico, pois depende umbilicalmente de sua eficácia.

Funcionou, continua o tratamento; do contrário, muda e se tenta outra coisa. Evidentemente, a

bricolagem possui seu limite, princ ipalmente um limite institucional. O psiquiatra segue as

normas do serviço, normas que enquadram os tipos de tratamento, e a liberdade do consultório

não permite todo e qualquer experimento. Contudo, o psiquiatra possui uma relativa margem de

manobra, principalmente se o serviço lhe permite alguma autonomia profissional. Assim, no

serviço público o psiquiatra possui uma maior autonomia profissional, embora sua liberdade seja

bastante coagida pelas péssimas condições de trabalho, do que nas instituições privadas.

83 Isto é, haveria a defesa de que as doenças do corpo e da mente são faces diferentes da mesma moeda. A ênfase recai, assim, na distinção entre as doenças clínicas e as psiquiátricas, e não na sua separação.

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A bricolagem possui um discurso que a legitima: o discurso da "experiência". Os

entrevistados, várias vezes, assinalaram a importância da "experiência clínica" que é, na verdade,

uma experiência pessoal conquistada durante a sua trajetória profissional. "Sigo minha

experiência", repete um entrevistado. O que isso significa? Fundamentalmente que a experiência

clínica não se esgota na formação universitária — "universidade é só teoria; a prática a gente

aprende na vida". O discurso da "experiência" seria menos alicerçado na profissão do que no

métier: uma experiência adquirida menos numa aprendizagem formal, como a formação

universitária, por exemplo, do que numa série de aprendizados práticos, obtidos via tentativa e

erro através da vivência individual de cada um; vivência geralmente adquirida, ainda estudante

mesmo, nos estágios hospitalares, comumente "seguindo" o cotidiano profissional de um médico

mais experiente.

Parece existir, aqui, uma crítica implícita à formação universitária, cujo defeito maior

seria a homogeneização da prática médica, não respeitando a complexidade e a pluralidade da

clínica. Uma complexidade que, para ser verdadeiramente respeitada, precisa da improvisação, da

bricolagem e da "experiência". Não se nega a necessidade da formação universitária, mas se

afirma, isto sim, que o momento principal da formação do profissional ocorre fora da

universidade, isto é, a partir da experiência profissional. No fundo, faz-se uma diferença entre o

mundo da formação, entendido também como o espaço da ciência, e o mundo da profissão, lugar

da experiência profissional. Seria no cotidiano profissional, e não apenas na formação

universitária e no ensino científico da medicina, o lugar pelo qual o médico aprenderia sua

profissão. Por isso, talvez, a preocupação de um entrevistado em atestar, numa frase típica: "eu

não sou cientista, eu sou médico", criticando a aplicação de fórmulas clínicas aprendidas na

universidade que na prática profissional do dia-a-dia, segundo o entrevistado, não funcionam de

forma alguma. Vemos aqui a divisão entre a medicina científica, lugar da formação universitária,

e a medicina profissional, espaço de atuação do médico. Curiosamente, tal visão crítica da falta

de praticidade do ensino universitário é proveniente de um grupo em que onze entrevistados são...

professores universitários.

O que vemos, provavelmente, e isso não seria contraditório mesmo entre professores

universitários, seja uma resistência a uma medicina ultra-tecnológica e cientificista. O apoio ao

velho empirismo tenha talvez uma relação com um tipo de prática que não pode, segundo os

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entrevistados, ser esgotada pela tecnologia e mesmo pela "ciência". "O psiquiatra se vira", diz

um entrevistado. E "se virar" significa um trabalho cujas condições exigem necessariamente

muita improvisação. O médico precisa lidar com situações que não foram "simuladas" ou

"testadas" na formação universitária; precisa enfrentar diversas situações que não foram previstas

de antemão. A valorização da improvisação faz parte importante da "bricolagem". A

improvisação torna -se, no discurso dos entrevistados, uma capacidade, a capacidade de

improvisar, vital para o aprendizado. A bricolagem, a improvisação e a experiência constituem a

concepção da medicina enquanto arte.

A medicina enquanto arte é uma concepção relativamente comum entre os médicos,

portanto, não seria de estranhar encontrá- la entre os psiquiatras. Mas as características da

psiquiatria e de sua clínica, talvez, reforcem-na. A clínica psiquiátrica caracteriza-se por ser um

processo relacional que exige muito da intuição e da subjetividade do profissional. "Não podemos

ser objetivos — como um neurologista — diante dos sintomas de DM", diz um entrevistado. A

pouca objetividade, o grande espaço dado à intuição e a importância do aspecto relacional

propiciam uma prática clínica que utiliza diversas lógicas de ação diferentes, isto é, propiciam a

arte. Além do mais, a psiquiatria não possui uma etiologia já consensual, como a neurologia, por

exemplo. A falta de um consenso etiológico permite também a mistura de várias explicações a

respeito da DM. Diante de um paciente, o psiquiatra pode manejar diversos registros, inclusive

alguns antagônicos entre si, provenientes das várias correntes existentes no mundo psiquiátrico.

A arte seria também a arte de misturar diversos registros teóricos e práticos sem perder de vista a

eficiência do tratamento. De uma forma exemplar, um entrevistado resumiu o ecletismo da

psiquiatria da seguinte forma: "a psiquiatria é uma feijoada, pode misturar tudo, contanto que

fique gostoso".

A falta de um consenso etiológico é ressentindo como um "déficit científico", o que

dificultaria, segundo alguns entrevistados, o reconhecimento pleno da psiquiatria no meio

médico. Aqui, tocamos num ponto sensível da identidade, não só desse grupo de entrevistados,

mas também do psiquiatra como um todo; ponto que volta e meia reaparece no discurso dos

entrevistados, justamente aquele a respeito da relação entre a psiquiatria e a medicina. Não é o

discurso da "volta" dos psiquiatras de orientação biológica, mas aproxima-se do seu conteúdo.

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Podemos chamá- lo de "discurso do reconhecimento"84, isto é, um discurso que reclama o

reconhecimento da psiquiatria enquanto disciplina médica. Seria um discurso interno ao campo

psiquiátrico, sendo uma forma dos psiquiatras combaterem a suposta desvalorização da

psiquiatria no meio médico. Uma desvalorização que é ressentida principalmente em relação à

neurologia. Ilusória ou não, a sensação de desvalorização é real, calcada fundamentalmente num

sentimento de que a psiquiatria não conseguiu adequar-se ao paradigma médico. Tal sentimento

pode expressar-se de duas formas básicas:

a responsabilidade da desvalorização é dos próprios médicos que não aceitam a

especificidade da psiquiatria. Não entendem que essa especificidade significa apenas que a

psiquiatria é uma especialidade como outra qualquer da medicina. Muitos entrevistados afirmam

que a desvalorização da psiquiatria é fruto do preconceito do médico em relação à DM, vista

como "loucura";

a responsabilidade da desvalorização é dos próprios psiquiatras, quando se isolam da

medicina, insistindo que a psiquiatria precisa de um aparato institucional independente (vide o

hospital psiquiátrico) das instituições médicas. Ou quando insistem que o conhec imento

psiquiátrico diferencia-se do conhecimento médico, isolando-se do ponto de vista do saber.

Assim, seria bastante evidente a preocupação dos entrevistados em referendar a

psiquiatria enquanto disciplina médica, considerando o conhecimento psiquiátrico tão científico

quanto o médico, simplesmente porque a psiquiatria é uma forma de medicina. Inclusive, vários

entrevistados afirmaram que a conjuntura está melhorando, pois o preconceito contra a psiquiatria

está diminuindo e os psiquiatras estão adquirindo cada vez mais respeito profissional. O discurso

é esperançoso, revertendo até as expectativas:

"a psiquiatria pode ajudar muito a medicina, pois a maioria das doenças

necessita de uma abordagem relacional que somente a psiquiatria, na

medicina, pode oferecer" — como disse um entrevistado.

84 Na verdade, o discurso da volta parece ser a radicalização do discurso do reconhecimento.

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189

O psiquiatra precisa acabar com seu complexo de inferioridade. Precisa demonstrar sua

legitimidade; afinal, como disse um entrevistado, "a psiquiatria, atualmente, é bem mais eficiente

do que a neurologia, essa medicin a dos sequelados". No fim das contas, a mensagem é clara e

pode ser resumida de forma sucinta: "sou psiquiatra, sou médico".

Não causa surpresa, assim, que todos os entrevistados do grupo tenham defendido a

separação entre a psiquiatria e a neurologia. Nesse sentido, são radicalmente contra a

transformação da psiquiatria numa neuropsiquiatria, como foi defendido pelos entrevistados de

orientação biológica. Não chegam, repetimos, a radicalizar o discurso do reconhecimento,

transformando-o numa defesa da volta à medicina, pois já consideram a psiquiatria uma

disciplina que atua normalmente no campo médico. Em suma, a psiquiatria e, conseqüentemente,

o psiquiatra necessitam de um maior reconhecimento.

Enfim, fazendo um pequeno resumo de toda discussão, em relação aos três grupos de entrevistados pode-se perceber que há três tipos de vínculo entre a representação e o interesse do psiquiatra:

• a representação vinculada ao campo do conhecimento — a representação traduz

um saber que se diz verdadeiro. Os analistas e os biomédicos fariam tal

vinculação;

• a representação vinculada ao campo do valor — saber que se diz útil. Os clínicos

fariam tal vinculação;

• a representação vinculada ao campo da ação — saber como meio de conhecimento

e instrumento de ação. Acreditamos que todos os entrevistados façam essa

vinculação.

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190

X. Capítulo V

A. O campo representativo profissional

A discussão acima teve uma utilidade específica: demonstrar a importância do "objeto

profissional", no caso aqui examinado: a DM, na construção identitária profissional. Sendo a

identidade profissional uma identidade coletiva, portanto, construída a partir de referências

sociais, sejam representacionais e/ou axiológicas, achamos necessário analisar o objeto

profissional enquanto representação social85. Sendo sociais, as representações são vivenciadas a

partir de sua socialização num grupo — logo, não são idiossincráticas, vividas única e

exclusivamente do ponto de vista individual — e, desse modo, compartilhadas pelos psiquiatras.

Inclusive, são representações que, embora circulem preferencialmente no meio médico-

psiquiátrico, possuem provavelmente raízes que ultrapassam o mundo profissional dos

entrevistados. São, nesse sentido, formadas também por elementos provenientes do senso comum

e de outros mundos vividos e, enquanto tais, não se esgotam nas vivências e nas interações

sociais do universo profissional dos psiquiatras. Tudo parece indicar que a psiquiatria, por

diversos motivos (Perrusi, 1995), precisa integrar as representações profanas da DM na sua

prática86.

Desse modo, como as representações ultrapassam a mera esfera profissional, não seriam

propriamente profissionais — pelo menos, convencionalmente, não precisariam ser chamadas

assim. Se o fossem, seriam formadas somente a partir do mundo e do contexto profissional dos

entrevistados. O objeto profissional da psiquiatria, sendo um objeto societário por excelência,

possui determinações exteriores ao próprio contexto profissional. Certo, as representações são

"clínicas", "analíticas" e "biológicas", tendo por isso um vínculo expressivo com a formação

profissional dos psiquiatras; no entanto, elas apenas perpassariam o universo profissional dos

entrevistados, possuindo um alcance bem mais amplo que vai desde o mundo científico até o

85 A começar que nosso interesse sempre centrou-se nos discursos definidores do "objeto profissional", e não no objeto propriamente dito. 86 O saber psiquiátrico não possui um consenso etiológico em torno da DM que lhe permita combater, neutralizar ou se proteger das interpelações do senso comum. As representações psiquiátricas da DM nunca são produzidas totalmente pelo conhecimento psiquiátrico; na verdade, elas são formadas também a partir das representações profanas da DM.

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191

senso comum — do ponto de vista genealógico, tais representações retêm apenas um momento

profissional, sem dúvida importante, mas que não explica sua socialização entre mundos

diferentes do profissional.

A partir desse momento, contudo, diferentemente do que foi feito até então, analisaremos

representações que podem ser conceituadas de "profissionais", porque são formadas no contexto

profissional (ex: condições de trabalho, interações profissionais, regras, normas e dinâmicas

institucionais...), além de participarem na construção da identidade profissional dos psiquiatras.

São representações contextualizadas, isto é, adaptadas ao contexto onde são elaboradas e

formadas. Estando relacionadas ao contexto profissional, isso significa que tais representações

são produzidas por sujeitos implicados nas relações de trabalho profissional. Por isso, o contexto

profissional é fundamental para a compreensão das representações profissionais, visto que a

profissão é uma modalidade de trabalho bastante padronizada, geralmente condicionada por

dinâmicas institucionais específicas. Ainda mais que, no caso da psiquiatria, as lógicas

institucionais ou organizacionais são impregnantes ao ponto de delimitarem de forma

pronunciada a identidade profissional — talvez porque a evolução da psiquiatria tenha tido

menos relação com as transformações na clínica e no conteúdo das representações de DM do que

com as transformações das condições técnicas e organizacionais no meio psiquiátrico.

O contexto profissional é perpassado por atividades coletivas que necessitam de

representações e de saberes partilhados, constituindo um referencial comum. Precisa de uma

linguagem específica, concreta e prática, que ultrapasse as normas gerais da situação de trabalho.

O referencial comum — conjunto de lógicas de ação inseridas na prática — tem uma relação com

representações funcionais, representações de como é feito a atividade, fundamentalmente

diferentes das representações valorativas, representações de porque é feito o trabalho,

relacionadas aos sistemas vocacionais. As representações valorativas, no entanto, não podem ser

completamente subsumidas na sua contextualização. Embora o contexto profissional seja

fundamental na produção das representações profissionais, as diversas representações dos

entrevistados a respeito, por exemplo, da vocação não podem ser reduzidas ao contexto

profissional.

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192

A vocação pode ser apreendida, é certo, enquanto representação profissional, podendo

inclusive ser considerada como um dos fatores fundamentais na formação da identidade

profissional, porém seu alcance ultrapassa o mero contexto profissional, incluindo a origem da

escolha da profissão, a trajetória profissional e as projeções futuras sobe o devir profissional do

entrevistado. A vocação possui menos uma relação com o contexto do que com o mundo

profissional (ou cultura profissional). Interpelando o mundo profissional do entrevistado, a

vocação estrutura, enquanto representação profissional, as conexões entre a memória (passado) e

o futuro no contexto atual. Conecta rememoração — re-elaboração da origem da escolha — com

projeção — desejo de realização pessoal que, enquanto projeção, permanece como objetivo

presente, mas apontando o tempo todo para o futuro.

1. Identidade profissional

Considerando que nosso objeto é, afinal de contas, a identidade profissional, julgamos

pertinente colocar o tópico "identidade profissional" do guia de entrevistas como o norteador de

todos os outros do "campo profissional". Ele funcionará tal qual um critério de comparação ou de

cruzamento e, por isso, de referência para o trabalho de classificação, juntando questões,

formando grupos e ajudando a interpretação. Assim como produzimos três classificações

(analíticas, biológicas e clínicas) a partir das representações de DM, dividindo os entrevistados

em três grupos e, igualmente, utilizando-os como critério de comparação e de referência para o

trabalho de interpretação do "campo representativo da DM", faremos o mesmo com o tópico de

"identidade profissional", isto é, as classificações geradas a partir da análise servirão como

mediações para o exame dos outros tópicos, ajudando o trabalho interpretativo.

Por razões operacionais e, mesmo, por comodidade, achamos conveniente utilizar um

esquema simplificado de perguntas, priorizando questões que envolvessem o duplo movimento

da identidade: basicamente, polarizações em torno da diferença da psiquiatria em relação às

outras disciplinas médicas e às outras profissões da saúde mental. As questões em torno da

diferença criam, na verdade, o duplo movimento, pois a construção de uma identidade envolve

uma delimitação de valor com um Outro (ou outros), principalmente um outro próximo (ou

outros), seja realçando os aspectos distintivos, seja reafirmando o que tem de específico na

psiquiatria. O movimento, assim, possui uma direção e dois sentidos: do interno para o externo,

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de dentro para fora, e vice-versa. Uma direção e dois sentidos, justamente porque o movimento

envolve, ao mesmo tempo, tanto o que é comum, como o que é diferente (no caso aqui, em

relação à psiquiatria) 87.

O jogo de polarizações inscreve-se na própria resposta do entrevistado, pois há uma

necessidade de delimitar a identidade: ser psiquiatra (ou mesmo o que é a psiquiatria) e a

espinhosa questão da fronteira entre o que é e o que não é ser psiquiatra. Mesmo que seja possível

encontrar delimitações identitárias claras e nítidas, no caso de entrevistados implicados no campo

profissional da psiquiatria, cuja inserção no mundo médico é problemática e, para dizer o

mínimo, ambígua, definir fronteiras é cair numa zona de transição onde se movem elementos

opostos e mesmo antagônicos, contendo o ser e o não ser da psiquiatria 88. Por isso, interrogar os

entrevistados a respeito da relação entre o saber psiquiátrico e o senso comum, do papel da

psiquiatria na sociedade e na medicina, sobre vocação e o trabalho em equipe, entre outras

questões, produziu tantos, digamos assim, questionamentos, tantas respostas que nos dificultou

sobremaneira as classificações e o enquadramento dos entrevistados em grupos.

a) Representações e senso comum

Nesse tópico, analisaremos as relações, assinaladas nas entrevistas, entre o saber

profissional e o "saber profano" da DM. Julgamos tal ponto relativamente importante porque

permite vislumbrar, pelo menos indiretamente, a autonomia do saber psiquiátrico e profissional

em relação a outras formas de saber, principalmente os que se formam fora do ambiente

profissional e universitário. A delimitação de fronteiras é fundamental na construção identitária,

daí a importância deste tópico; afinal, a delimitação será feita em relação ao supremo "outro", o

senso comum. A questão é essencial, pois a psiquiatria lutou sempre pela transformação da

loucura em doença mental, portanto, pela ratificação da DM como seu objeto de conhecimento e

profissional. A luta foi e é também por um monopólio discursivo — a logorréia da psiquiatria

sobre o seu objeto corresponde ao silêncio das outras produções ideativas sobre a DM. Por isso,

tal questão é sensível para os entrevistados, até porque o seu objeto profissional não está

87 O comum pode ser visualizado como o interno, o de dentro, e o diferente como o de fora, o externo. 88 Por exemplo: refletir sobre o papel da psiquiatria na medicina levou os entrevistados à necessidade de distingui-la da neurologia, produzindo uma distinção não tão nítida, principalmente no caso dos psiquiatras que defenderam a exigência de uma neuropsiquiatria.

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estabilizado por um consenso no meio psiquiátrico, sofrendo interpelações de várias fontes

provenientes do imaginário social. A psiquiatria, enfim, ainda não teve uma completa sanção

social sobre o objeto de seu discurso, a DM — falta honoris saber na psiquiatria.

Dessa forma, pudemos observar que todos os entrevistados delimitaram nitidamente o

saber profissional, separando-o do "saber profano", embora 20 entrevistados sustentaram a

possibilidade de um "diálogo" entre as visões profissionais e as profanas sobre a DM. Os

entrevistados delimitaram, assim, seu saber profissional, seja em relação a outras representações

no campo médico-psiquiátrico, seja em relação aos saberes profanos existentes no meio social. A

delimitação da representação parece ser fundamental na busca de alguma identidade profissional.

Muitas vezes, nas entrevistas, percebemos uma defesa do saber psiquiátrico em geral e não,

propriamente, da representação de DM em particular (a representação do entrevistado), como se o

seguinte raciocínio estivesse subjacente: contra uma outra representação proveniente da

psiquiatria, enfatiza-se uma representação em particular, justamente aquela defendida pelo

entrevistado; em relação às representações profanas, sublinha-se o saber psiquiátrico em geral,

isto é, as diversas representações psiquiátricas da DM. Aparentemente, os entrevistados

consideram sua representação e as outras representações do campo psiquiátrico, pois todas são

provenientes da psiquiatria e defendidas, em última instância, por psiquiatras como...

psiquiátricas. Ao delimitá-las como psiquiátricas, independentemente das divergências,

delimitam-na em relação às representações profanas da DM.

Embora 20 entrevistados defendessem o "diálogo", pode-se afirmar que adotaram uma

postura paternalista, misturada a um certo pragmatismo. O "diálogo", aqui, é funcional à

construção do vínculo terapêutico. Deve-se adotar, assim, uma conduta compreensiva para

convencer o paciente do seu tratamento. Se, para obter o apoio do paciente à terapia, por

exemplo, necessita-se do "reconhecimento" das suas concepções de DM, "respeita-se" as visões

do dito-cujo sem muita delonga. O que acontece, então, seria uma adaptação pragmática ao

contexto cultural do paciente (pragmatismo paternalista), não existindo, na verdade, uma defesa

da continuidade entre os dois tipos de saberes. O "diálogo" não seria baseado no reconhecimento

da veracidade do outro saber, e sim na "tolerância" a uma visão diferente da DM. A função da

"tolerância" não seria a de permitir uma troca de conhecimentos a respeito do objeto comum, a

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DM, e sim a de ajudar o paciente a aceitar o tratamento 89. Como disse um entrevistado: "pouco

me importa se o paciente é espírita e acredita que está possuído, contanto que tome a medicação.

O importante é que ele aceite o tratamento". Outro entrevistado lembrou de um caso no qual teve

que "dividir" a terapia com um terreiro de umbanda: "o paciente fez o seguinte acordo comigo:

vai no terreiro e tira o encosto, mas toma haldol"90.

Vale ressaltar que as afirmações acima dos entrevistados possuem uma peculiaridade: são

provenientes de profissionais que trabalham no SUS, isto é, estão em contato direto com

pacientes originados dos setores populares da população do Recife. Tais pacientes, pelo menos

uma boa parte, possuem representações que, aparentemente, são diferentes das concepções de

DM dominantes na psiquiatria — embora diferentes, são representações que se misturam, muitas

vezes de forma contraditória, com as representações psiquiátricas da DM. Tal diferença não

impede que o paciente (ou sua família), mesmo aquele que acredita que seu estado mental seja

efeito de uma possessão, procure a umbanda ou uma sessão espírita e, concomitantemente ou

depois, principalmente no caso de não ocorrer melhora alguma, a psiquiatria.

Na verdade, a argumentação acima é baseada na seguinte hipótese: as representações de

DM da psiquiatria não são hegemônicas (ou não são ainda) nas classes ditas "populares" do

Recife. Não haveria ainda, desse modo, uma difusão91 suficiente das representações psiquiátricas

no meio popular que substituísse ou determinasse as representações "populares" da DM; não

haveria ainda, por exemplo, uma crença bem estabelecida de que a loucura possui uma

causalidade tipicamente psiquiátrica (psicanalítica, biológica ou clínica). O psiquiatra trava,

assim, um "combate" cotidiano contra representações de DM bem diferentes daquelas que julga

serem as mais "verdadeiras" (sic). O "diálogo", nesse caso, torna-se necessário, pois, do

contrário, há o risco de se "perder" o paciente. A manutenção do "diálogo" teria um papel

importante, convencendo e persuadindo o paciente, enfim, de que a psiquiatria possui a

legitimidade e a verdade sobre a DM.

89 Lembrar que, na psiquiatria, a aceitação do tratamento pelos pacientes é, muitas vezes, mais difícil do que em outras áreas da medicina. 90 Medicação utilizada principalmente para tratamento de surtos psicóticos 91 Talvez o termo correto seja o de "vulgarização". Geralmente, quando as representações médicas das doenças tornam-se dominante na sociedade, ocorre um processo de amálgama entre as diversas representações de doença, mas que mantém como núcleo irradiador justamente as representações dominantes, no caso as provenientes da medicina.

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196

Pelas entrevistas, pode-se deduzir que a maioria das representações dos pacientes sobre a

DM— especificamente daqueles oriundos dos meios populares —, encontradas pelos

entrevistados, possui um forte componente religioso ou místico. Invariavelmente, a DM é vista

como um "encosto" ou possessão. Representações, portanto, bem distintas das psiquiátric as que

seriam, digamos assim, "desencantadas", já que exorcizadas de qualquer vestígio, pelo menos

explicitamente, de explicações sobrenaturais ou mágicas. Pode-se, desse modo, deduzir que o

"diálogo" proposto pelos entrevistados envolve um processo de negociação bastante complexo.

Como o ambiente institucional, no caso desses entrevistados, ou é um ambulatório do SUS ou um

hospital psiquiátrico, ambiente onde a psicoterapia é realizada pelos psicólogos ou simplesmente

nunca acontece, o ponto fundamental de negociação para os psiquiatras, principalmente os

clínicos e os biológicos, recai na medicação. Pelo que entendemos, o importante seria o

tratamento, no caso o tratamento medicamentoso — "tenho que garantir o mínimo necessário ",

disse um entrevistado. Como já foi comentado anteriormente, o paciente pode até fazer uma

"psicoterapia espírita", no dizer de um entrevistado, mas contanto que tome a medicação. O

"mínimo necessário" é a tomada do remédio, a justa compensação do "diálogo". Seria como se a

medicação garantisse o controle do tratamento, mesmo com o paciente continuando a freqüentar

sessões espíritas ou terreiros de umbanda92. O paciente e a família, por exemplo, não precisam

estar convencidos de que o quadro delirante não é, decididamente, produzido por um "encosto"

— no caso, podem continuar com suas crenças sem problema algum —; o fundamental seria

estarem convencidos, isto sim, da necessidade do tratamento medicamentoso.

A negociação gira assim muito mais em torno do tratamento; em suma, das técnicas, das

práticas e não propriamente em torno das crenças e das representações. Parece que defender a

necessidade da medicação seria uma imposição "neutra" que respeitaria as representações

diferentes do paciente. A neutralidade da medicação não seria vista como uma injunção de uma

representação; ao contrário, o paciente pode tomar a medicação, manter sua representação de DM

e, ainda, participar de rituais exorcistas. O tratamento medicamentoso é visto como uma "técnica"

e, como tal, "neutra" em relação às crenças dos pacientes. Ele não competiria com a crença da

possessão, por exemplo. O uso da medicação não seria contraditório com as representações, estas

92 Esse raciocínio parece ser mais comum nos casos de psicose do que nos de neurose, pelo simples fato de que a medicação tem uma importância fundamental no tratamento do surto psicótico.

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sim contraditórias com as representações psiquiátricas. A demonstração explícita ou implícita da

"neutralidade" da medicação seria essencial para a manutenção do "diálogo". Como não há um

veto nas crenças dos paciente em relação à tomada da medicação, a administração

medicamentosa pode acontecer sem muita resistência93.

Pode-se aqui ventilar a hipótese de que uma psicoterapia sofreria mais resistências por

parte dos pacientes, já que, por analogia, competiria com os rituais de "exorcismos". A

"psicoterapia selvagem" de tais rituais competiria, de alguma forma, com a "psicoterapia

civilizada" e padronizada do "setting" psicoterápico. De algum modo, a medicação pode ser vista

como neutra, desde que interpela o corpo do paciente, enquanto o que realmente está em jogo é a

sua alma — a psicoterapia, por analogia, interpelando o psiquismo do paciente, interpelaria sua

"alma". Para um paciente convicto de sua possessão, talvez a psicoterapia pareça-lhe não muito

eficiente94 — para aplacar seus demônios, haveria a necessidade de processos de transferências e

de sugestão "selvagens". No fundo, o ato de tomar um medicamento passa ao largo de uma

questão provavelmente importante: o reconhecimento da veracidade da possessão do paciente. A

psicoterapia só pode reconhecer a verdade da possessão de uma maneira, no máximo, metafórica,

o que não é o bastante95. Abordando apenas o "corpo", a medicação simplesmente não

problematiza a possessão, tornando-se "neutra" em relação às crenças do paciente96.

A medicação é representada como técnica e, num segundo movimento, como sendo

"neutra". Pode, evidentemente, ter outra significação e, nesse sentido, mudar conforme o grupo

de entrevistados. Os entrevistados "biomédicos", por exemplo, possuem a convicção de que a

93 Totalmente diferente, por exemplo, da situação de uma crença, como a advogada pelos adeptos da seita "Testemunha de Jeová", que veta explicitamente a técnica de transfusão sanguínea. 94 Um entrevistado clínico chegou a afirmar de forma irônica: "não tem psicanálise que suplante um ritual de exorcismo, ela (a psicanálise) é delicada demais, demorada demais" 95 Na França, a fusão da psicanálise com a antropologia, gerando um etnopsicanálise (base da etnopsiquiatria), parece ter superado esse problema (Devereaux, 1970). 96 A situação torna-se ainda mais complexa quando o entrevistado é espírita, como aconteceu com quatro entrevistados, três clínicos e um psicanalista, todos psiquiatras do SUS. Diante de um paciente e de uma família que acreditam na possessão, o entrevistado utiliza a seguinte estratégia: primeiro, procura diferenciar se o caso é psiquiátrico ou "espírita". Tal diferenciação, um verdadeiro "diagnóstico diferencial", se interpretamos bem, seria baseado completamente na "experiência" do profissional, apresentando um forte componente intuitivo. O entrevistado utilizaria dois "registros" diferentes, o espírita e o psiquiátrico, e, diante do quadro apresentado pelo paciente, decidiria pelo mais conveniente. Segundo, assim que comprovada a natureza psiquiátrica do caso, começaria a negociação em torno da medicação, repetindo os procedimentos já discutidos.

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medicação é uma técnica, mas não a percebem, por outro lado, como "neutra"; na verdade, neste

caso, a medicação possui uma importância fundamental: seria a prova da verdade da

representação biomédica de DM. E a verdade da representação estaria relacionada ao sucesso da

terapia medicamentosa. E verdade, aqui, confunde-se com sucesso, eficiência e resultado do

tratamento. A medicação, assim, não é "neutra"... Seria "técnica", sem dúvida, mas possuindo um

valor e, enquanto tal, relacionado a uma prática ou a procedimentos terapêuticos que são um

sucesso. Ela é a prova da verdade.

Já para os analistas, a medicação não seria "neutra" e sim um símbolo de uma

representação de DM. O diagnóstico é o mesmo dos entrevistados " biomédicos", só que num

sentido inverso: a valoração seria, aqui, negativa. O sucesso do tratamento medicamentoso

esconderia a face oculta da psiquiatria biológica, isto é, dissimularia a vitória de uma prática que

desumaniza o paciente e elimina a relação médico-paciente. Aparentemente, a técnica seria vista

como uma prática de poder e de exclusão do paciente, e o exclusivismo medicamentoso como sua

expressão na psiquiatria. Ela seria a prova da realidade de um poder. Decerto, diferente da

psicoterapia, vista menos como uma técnica do que como um processo relacional. Parece-nos —

pelo que interpretamos das respostas dos entrevistados — que a técnica envolveria um conjunto

de procedimentos "materiais", enquanto a psicoterapia, sendo relacional e, digamos assim,

"espiritual", não poderia ser enquadrada como um procedimento técnico97.

Pode-se fazer a hipótese de que, ao contrapor a psicoterapia à técnica, os entrevistados

afastam-se da espinhosa questão de relacionar a psicoterapia a uma prática de poder. A

psicoterapia, desse modo, ao contrário da medicação, é que seria... "neutra". Mas neutra em

relação ao poder — a neutralidade de uma prática terapêutica seria definida, aqui, a partir da sua

relação com o poder98. Quanto mais afastada do poder, mais neutra — talvez assim mais

terapêutica; quanto mais próxima, mais imbricada com técnicas de dominação. Os entrevistados

têm nitidamente a preocupação de grudar a crítica tradicional de que a psiquiatria é uma prática

de poder sobre o paciente à psiquiatria biológica. Nesse sentido, a crítica à estratégia

97 Lembrar que muitos entrevistados clínicos, principalmente os mais "pragmáticos", colocaram a psicoterapia como uma técnica entre outras. 98 Os entrevistados não empregaram o termo "neutro", sendo, portanto, de nossa inteira responsabilidade. E repetimos, novamente, que "neutralidade" aqui está contraposta ao poder.

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medicamentosa dos entrevistados biomédicos seria bem mais contundente do que a realizada

contra a psicoterapia, colocada no máximo como inútil 99.

Assim, de um lado, a técnica — a medicação como técnica — é vista como comprovação

do sucesso do tratamento. O valor da medicação é sua utilidade, e sua utilidade é o seu sucesso. E

o resultado garante a verdade da representação da DM. De outro lado, a terapia exclusivamente

medicamentosa é percebida como a face visível de uma prática de poder. E a técnica é vista com

reservas, pois o fundamental no tratamento, segundo tais entrevistados, é o relacional e não os

procedimentos "materiais" ou tecnológicos. Seria o "relacional", e não a técnica (ou a

medicação), que diminuiria ou eliminaria o poder que o psiquiatra possui sobre o paciente.

Acreditamos que essas duas posições são coerentes com as representações de DM defendidas

pelos entrevistados. Os biomédicos, como vimos, assumem a defesa de uma neuropsiquiatria, das

conquistas das neurociências e do uso intensivo da tecnologia — não causa surpresa a valoração

da técnica e, claro, do tratamento medicamentoso, último reduto da cura psiquiátrica. Já os

analistas, principalmente os lacanianos, assumem, no discurso, uma crítica dura à tecnologização

da psiquiatria, à primazia da medicação no tratamento psiquiátrico, ao poder do psiquiatra sobre o

paciente, contrapondo a tudo isso uma apologia da psicoterapia, na qual está embutida uma

crítica política à psiquiatria tradicional.

Contudo, mesmo que tais posições sejam antagônicas entre si, há algo em comum: a

delimitação nítida entre o saber psiquiátrico e o saber profano da DM. Mesma coisa em relação

aos "clínicos": a maioria separa e distingue o saber psiquiátrico do saber profano, embora,

diferentemente dos biomédicos e analistas, representem a medicação como uma técnica "neutra".

A posição dos "clínicos" aproxima-se da dos biomédicos, seja por uma afinidade entre as

representações de DM (já examinada anteriormente), seja porque a identificação entre técnica e

utilidade (no fundo, a verdade da técnica vem da sua utilidade) pode ser percebida como

neutralidade. O útil pode ser "neutro", se o útil, a priori, não interfere diretamente na crença de

um paciente. A medicação é útil, porque funciona, traz resultado e não questiona as visões de DM

do paciente, em suma: mantém-se "neutra" em relação a essa questão.

99 Alguns entrevistados biomédicos colocaram ironicamente a psicoterapia como "papoterapia".

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Podemos tentar explicar e resumir essa diferença dos "clínicos" pelas seguintes

inferências:

• como vimos, nas discussões anteriores, os clínicos são "pragmáticos, e o seu

pragmatismo não possui uma relação direta com sua representação de DM, e sim,

provavelmente, com um conjunto de fatores mais amplo, incluindo sua inserção

num dado serviço psiquiátrico;

• ora, dos entrevistados, são os clínicos os que trabalham, na sua maioria absoluta,

nos hospitais psiquiátricos e nos ambulatórios do SUS, ambiente institucional que

induz, praticamente "empurra", o psiquiatra à improvisação e a ações suscetíveis

de aplicações práticas que envolvem diversos registros ou lógicas de ação

diferentes, isto é, que prescindem de uma articulação necessária com uma

representação de DM ou com normas profissionais;

• seria no SUS onde se encontram os pacientes que possuem uma representação de

possessão da DM — logo, seria nesse local onde se colocaria o imperativo do

diálogo;

• dadas as condições de trabalho nos hospitais psiquiátricos e nos ambulatórios do

SUS, o ato médico restringe-se praticamente à administração de medicação;

• a administração da medicação não interfere nas crenças do paciente;

• a medicação é vista, assim, como uma técnica neutra.

Já os entrevistados do "sem diálogo" admitem que, caso a concepção psiquiátrica torne-se

hegemônica na população, o diálogo será possível — mas assim, convenhamos, não existirá

propriamente diálogo, pois não haveria representações diferentes das psiquiátricas com que

dialogar. Os entrevistados julgam as representações profanas da DM falsas e, sobretudo,

preconceituosas. Por serem falsas, são preconceituosas, e vice-versa. Nas respostas dos

entrevistados, o falso parece possuir uma relação necessária com o preconceituoso. Como disse

um entrevistado: "pensar que a loucura é uma possessão é um preconceito muito sério. Os

psiquiatras precisam combater esse preconceito com muito zelo ". Está implícito nessa frase a

necessidade de que o psiquiatra assuma um papel de conscientização. Uma das suas funções

profissionais seria o esclarecimento público sobre a natureza da DM. Um esclarecimento que

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significaria projetar uma luz sobre a loucura, sobre a sua verdade. E seria a psiquiatria que teria a

legitimidade de cumprir esse papel.

A estratégia não é mais da persuasão, como a dos "com diálogo", e sim a do combate. E

envolve um processo de conscientização do paciente; logo um papel pedagógico assumido pelo

psiquiatra. Um papel pedagógico que implica também um forte componente político, pois o

"combate" exige a ocupação do imaginário profano da DM pela representação psiquiátrica.

Político porque implica a utilização de recursos, principalmente o uso de "políticas públicas", em

suma do Estado, na difusão da representação psiquiátrica da DM. Político porque implica

modificar uma correlação de forças, de natureza simbólica, favorecendo a representação

psiquiátrica em detrimento das representações profanas da DM. Enfim, político porque envolve

poder, isto é, o poder inscrito e engendrado por um confronto entre saberes ou representações

diferentes — político, ainda, pois implica o poder de inscrever, num determinado saber , o

monopólio da verdade; em suma, implica a luta pela verdade.

A luta pela verdade seria igualmente um combate semântico. Com efeito, boa parte dos

entrevistados, para enfatizar a distância existente entre o saber psiquiátrico e o do senso comum,

fizeram uma interessante discriminação entre o termo "loucura" e o de DM. O primeiro foi usado

como a contrapartida pejorativa do segundo. A "loucura" condensa a carga de preconceitos que

sofre a DM. É uma noção do senso comum, logo falsa e preconceituosa. Incontrolável, extrapola

o campo médico, misturando-se com outros sentidos, outros registros, outros significados. O

combate, assim, atravessa também as palavras, exigindo a vitória de uma noção médica, única

realmente verdadeira e neutra de implicações estigmatizantes.

Evidentemente, a vantagem da psiquiatria em relação às representações profanas da DM é

imensa. Mesmo que essa vantagem não garanta a eliminação completa das representações

profanas, com certeza assegura a sua total "neutralização". Como ocorre fundamentalmente isso?

O exemplo mais banal seria o do paciente que acredita na possessão e aceita passivamente as

abordagens e os tratamentos da psiquiatria. Sua representação de DM não mais seria uma crença

mobilizadora que induz comportamentos e condutas. O paciente pode até interpelar um outro

delirante como uma possessão, por exemplo, mas não mais a si mesmo. Não tem mais convicção

na sua crença. Apenas desconfia de que esteja possuído. Submete-se ao tratamento psiquiátrico,

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202

até mesmo porque a família assim o deseja, porque afinal todo mundo faz isso... Um belo dia, a

maioria absoluta dos pacientes, senão a totalidade, acreditará nas representações psiquiátricas.

Seria esse consenso em torno da terapia psiquiátrica que aspira a psiquiatria — consenso,

enquanto tal, produto da conscientização, cujos protagonistas são os próprios psiquiatras.

Os "sem diálogo" perfazem 60% dos entrevistados (30); logo, são a maioria absoluta. Dos

clínicos, apenas nove são a favor do "diálogo"; dos biomédicos, cinco e dos analistas, seis (os

"sem diálogo" são todos lacanianos). Percentualmente (33%, 43%, 50%, respectivamente), há

mais analistas e biomédicos que defendem o "diálogo" do que clínicos. Em relação aos analistas,

não causa surpresa a percentagem alta dos que defenderam o "diálogo", já que tais entrevistados

colocaram como fundamental para o tratamento psiquiátrico a interação entre o psiquiatra e o

paciente — o "relacional", como dizem os entrevistados. Enfatizar a interação significa, no

mínimo, uma conversação e mesmo um reconhecimento da palavra do paciente. Significa, no

mínimo, uma situação de entendimento entre o psiquiatra e o paciente — tal entendimento pode

representar o reconhecimento de alguma veracidade no discurso do paciente. O entendimento

seria uma das bases para a interação — o dito "contrato terapêutico" (sic). Estariam, em tese,

propensos ao diálogo.

Por que então 50% dos analistas são contra o diálogo?

Podemos fazer algumas hipóteses: os "sem diálogo" são todos lacanianos; assim, talvez

tenham alguma especificidade que explique essa diferença. Como 100% dos analistas trabalham

no serviço público (além dos consultórios), a organização do trabalho no SUS não seria um fator

explicativo. Pode ser que a explicação resida na própria condição de ser lacaniano, isto é, na sua

maneira específica de perceber a interação do paciente com o analista. Infelizmente, estamos em

terreno movediço pela falta de dados e, deste modo, só poderemos especular. Uma entrevistada

lacaniana, por exemplo, colocou que não existe diálogo propriamente dito entre o analista e o

paciente, porque um diálogo implicaria o colóquio entre duas consciências e, segundo a

entrevistada, o setting analítico baseia-se num "diálogo entre dois inconscientes" (sic). Pelo que

compreendemos, existe sim uma conversação entre o analista e o paciente; mas, no que se refere

ao tratamento, sendo este baseado numa interação conformada pelo setting analítico, haveria

apenas um diálogo entre dois inconscientes, baseado no processo de transferência, este também

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203

inconsciente. Se tal percepção corresponde ao que pensam os outros entrevistados lacanianos, o

impedimento do diálogo não seria por uma questão, digamos assim, epistemológica — um

conhecimento verdadeiro versus um falso, por exemplo —, e sim por um obstáculo imanente à

própria relação terapêutica entre o analista e o paciente. Mesmo que baseada numa entrevista, tal

interpretação não nos parece verossímil. Na falta de outra, colocaremos mais uma ainda que, pelo

menos, possui a vantagem de ser prosaica: ora o lacanismo já foi acusado várias vezes de ser

hermético, um sistema fechado compreensível apenas para os neófitos. Caso isso tenha alguma

pertinência, pode-se supor que seja extremamente difícil a compreensão da teoria lacaniana por

parte dos não-iniciados, incluindo os pacientes e os outros profissionais em saúde mental. Como

então entabular um diálogo, uma troca de perspectivas entre saberes diferentes? O diálogo não

seria vetado porque o lacanismo seria uma forma de positivismo defendendo uma ruptura

epistemológica entre o senso comum e a ciência, e sim em razão de ser um sistema hermético,

logo avesso a qualquer tipo de diálogo com outras posições diferentes. Os entrevistados

seguiriam, assim, a lógica de sua dogmática.

Quanto aos entrevistados biomédicos, não causa surpresa que doze (57%) tenham sido

contra o diálogo. Dos entrevistados, foram os que afirmaram mais o caráter científico da

psiquiatria. O saber psiquiátrico, enquanto conhecimento científico, seria uma ruptura com o

senso comum; logo, com as representações profanas da DM. O senso comum seria falso e

perigoso, pois fonte de preconceitos — a única forma de combatê- lo seria através do

esclarecimento público via política pública de saúde mental. Embora tenham sido cinco

entrevistados defendendo o diálogo, quando examinamos mais atentamente o conteúdo das

entrevistas, percebemos que foi bastante tímida a defesa. Inclusive, o diálogo serviria

primordialmente para entabular uma conscientização do papel do psiquiatra e da natureza da DM.

Curiosamente, os clínicos foram os que menos defenderam o diálogo, mas, se atentarmos

bem para o conteúdo das entrevistas, notaremos que sua defesa foi muito mais enfática do que a

dos biomédicos e, até mesmo, do que a dos analistas. De qualquer forma, dezoito clínicos foram

contra o diálogo; em suma, uma maioria absoluta e contundente. Os clínicos não enfatizaram

tanto a cientificidade do saber psiquiátrico como fizeram os biomédicos; no entanto, deram

extrema importância a conscientização da população a respeito da DM. O discurso do

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"esclarecimento público" sobre a DM seria consenso entre os clínicos, não importando aqui a

defesa ou a oposição ao diálogo.

De qualquer forma, queremos lembrar novamente que a diferença, no plano discursivo,

entre os do "diálogo" e os "sem diálogo" não foi substancial; ao contrário, muitas vezes os

discursos misturaram-se e não foram necessariamente incompatíveis entre si, principalmente

entre aqueles entrevistados que trabalham no serviço público (86% dos entrevistados: 100% dos

analistas, 86% dos biomédicos e dos clínicos). E, se no plano do discurso a diferença não é de

monta, na prática a situação é ainda mais confusa. Nas nossas observações, pareceu-nos que o

ambiente do SUS prescinde de consenso ou dissenso entre psiquiatra e paciente, já que as

precárias condições de trabalho inibem o estabelecimento do diálogo. O entrevistado pode até de

bom grado ter uma concepção favorável e buscar o diálogo, mas a forma como se organiza, na

prática, as interações entre os psiquiatras e os pacientes inibe a comunicação. Expliquemo-nos:

Ø a base do diálogo é uma comunicação coordenada pela linguagem e voltada

para o entendimento; porém, para o paciente psiquiátrico, a comunicação

está comprometida, pois distorcida patologicamente. Por causa da sua

enfermidade, o paciente não consegue fazer-se compreender pelo outro;

isola-se e seus laços de sociabilidade são fragmentados, ocorrendo um

processo de deterioração na sua identidade, tanto em relação a si mesmo

como em relação à sua vida intersubjetiva. As grandes psicoses, nesse

sentido aqui discutido, seriam doenças da comunicação; logo, as

organizações psiquiátricas deveriam, em tese, resgatar a palavra e a

capacidade de comunicação (a ação comunicativa) dos pacientes;

Ø ora, pode-se imaginar a dificuldade de diálogo num contexto asilar, ainda

típico dos hospitais psiquiátricos públicos (e os privados conveniados com o

SUS) no Brasil. Nossas observações levaram-nos a crer que a ação

comunicativa é incompatível ou francamente vã num ambiente tipicamente

asilo-hospitalar. A forma de organização do hospital psiquiátrico configura

um sistema anti-comunicativo por excelência. Ao invés de tentar restaurar a

competência comunicativa de sujeitos que a perderam, o hospital produz o

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efeito contrário de diminuir ao máximo a ação comunicativa no ambiente

hospitalar, principalmente entre os pacientes;

Ø o problema não muda muito, mesmo no ambulatório. Filas imensas,

anamneses rapidíssimas e precárias condições de trabalho estruturam uma

situação de parca comunicação entre o psiquiatra e o paciente — uma

situação na qual o paciente queixa-se, o psiquiatra anota a sintomatologia e

administra a medicação, o paciente vai embora, tudo isso durando poucos

minutos, e o diálogo passa a ser uma questão esotérica. Em suma, na

prática, a posição e a representação de DM do paciente dificilmente pode

ser levada em conta.

b) O papel da psiquiatria na sociedade

Se, no tópico anterior, o que estava em questão era a posição do psiquiatra em relação às

representações de doença provenientes do senso comum e a repercussão disso na sua identidade,

agora, o problema está mais diretamente relacionado à própria atribuição do psiquiatra a respeito

de si mesmo, ou seja, ao papel de sua profissão na sociedade. Discussão identitária por excelência

entre os entrevistados, pois, de fato, ao analisarmos as entrevistas, ficou-nos a impressão de que

definir papel seria, no fundo, definir uma identidade. Nada de muito original, é certo, pois papel e

identidade podem ser noções intercambiáveis 100. Mas a noção de papel, na nossa opinião, pode

ser inferida como o aspecto funcional da identidade. Quando se discute, por exemplo, sobre o

papel da psiquiatria, no fundo analisa-se a função de uma profissão — a identidade enquanto

função101. Refletindo sobre a função de sua profissão, o entrevistado insere-a no mundo,

sublinhando sua imprescindibilidade. Inserindo a profissão, o entrevistado situa-se

profissionalmente a si mesmo no mundo. Tendo a profissão uma determinada função, o

profissional assume-a como guia de sua conduta. E, ao se definir o papel da psiquiatria na

100 Goffman, em suas obras (1973; 1974; 1974b;1975), faz isso... 101 Ver a discussão de Castels (2000) sobre o conceito de identidade, quando a noção de identidade é relacionada ao sentido, e a de papel à função. Inspiramo-nos dessa discussão, sem dúvida, embora com uma diferença: compreendemos o papel como o aspecto funcional da identidade, aspecto este criado e fomentado pela divisão social do trabalho na Modernidade. Acreditamos que, sem o conceito de papel social, o conceito de identidade profissional perde em heurística.

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sociedade, determina-se uma função coletiva que é realizada individualmente por cada

profissional. Seria justamente por isso, isto é, pelo fato de se rea lizar individualmente uma

atividade que cumpre uma função coletiva, conectando à esfera social a experiência individual,

que podemos afirmar que a reflexão sobre a função da profissão problematiza a identidade 102.

O entrevistado, desse modo, projeta sentido à função. Um sentido que tem, ao mesmo

tempo, um caráter pessoal e coletivo, pois, ao explicitar o lugar de sua profissão, o entrevistado,

com isso, igualmente se determina103. No caso aqui examinado, a palavra chave seria justamente

"projeção". Boa parte do movimento identitário é projetivo, envolvendo mecanismos que

procuram normalizar o objeto identitário (aqui, a psiquiatria) a partir de sua inserção no meio

social. O movimento é de dentro pra fora, e sua finalização, o caminho inverso. O entrevistado,

por exemplo, ao refletir sobre o papel da psiquiatria na sociedade, projeta o sentido da função da

sua profissão a partir do seu próprio julgamento, embora considere sua avaliação como um fato

proveniente do mundo exterior, isto é, da sociedade.

Vamos, agora, examinar os diversos papéis que os entrevistados imputaram à psiquiatria.

Mas, antes, seria proveitoso um esclarecimento: encontramos, a partir da análise empírica, três

definições básicas sobre o papel da psiquiatria: a) busca da verdade da loucura, b) papel de

despreconceito, esclarecimento e prevenção e c) atribuição médica. As definições possuem a

função de distinguir diferenças no universo das respostas dos entrevistados; contudo, isso não

impediu que onze respostas encaixassem-se em mais de uma definição — em suma, as definições

não são excludentes entre si.

(1) Verdade da loucura

102 Problematizar a identidade tem como pano de fundo a questão de se perceber no mundo. Ora, se tomarmos o individualismo, no qual ocorre a distinção ou mesmo a separação entre a individualidade e a sociedade, como um fato ontológico da modernidade, ter uma identidade (ou a busca de, já que toda identidade é uma construção) significa (tentar) resolver a tensão, constitutiva do individualismo, entre a esfera individual e a social. 103 A atribuição do papel de sua profissão é dada pela vocação. Seria justamente a vocação que conseguiria realizar a junção entre a esfera da individualidade, produto da independência do indivíduo, e a subjetividade, produto da autonomia do sujeito. Entre a identidade, enquanto sentido, e o papel social, enquanto função.

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207

Para quatro entrevistados, todos psicanalistas, o papel da psiquiatria na sociedade seria a

busca da verdade da loucura. Embora o tema da "verdade da loucura" (em alguns casos, a

"verdade da DM") tenha perpassado muitas outras entrevistas, a argumentação completa apareceu

apenas para esse pequeno contingente — por isso, como as respostas foram "completas" e

paradigmáticas, condensando o significado que estava espalhado difusamente nas outras

entrevistas, centramos nossa atenção nesses quatro entrevistados. Todavia, mesmo entre eles, a

argumentação foi mais nuançada, não esgotando o papel da psiquiatria na "busca da verdade da

loucura". Na verdade, a ênfase na busca foi colocada por dois entrevistados; já os outros dois,

pelo que interpretamos, insinuaram que o conhecimento psiquiátrico, em particular a abordagem

psicanalítica, tinha já descoberto a "verdade da loucura". No primeiro argumento, assim, a dita

verdade ainda não foi encontrada, embora estejamos, de certa forma, perto disso; já no segundo

argumento, a descoberta já teria ocorrido, e seu demiurgo teria sido a "revolução psicanalítica",

segundo um dos entrevistados. Mesmo se, em princípio, o argumento da busca e da descoberta

sejam relativamente diferentes, podemos encontrar algumas premissas em comum, tais como:

Ø aparentemente, tanto o argumento da busca como o da descoberta apresentam o

mesmo princípio: a responsabilidade da busca e/ou da descoberta seria monopólio

da psiq uiatria (ou da psicanálise, enquanto conhecimento psiquiátrico) ou, em

outros termos, a "licença" (Hughes, 1996) para a busca ou a "patente" da

descoberta da verdade da loucura teriam um único protagonista: a psiquiatria.

Todavia, os entrevistados não tomaram o mandato social da psiquiatria, concedido

pela sociedade, como ponto de partida para a argumentação sobre o papel da

psiquiatria na sociedade. Não seria a "licença" que autorizaria a busca pela

verdade da loucura ou que teria dado as condições necessárias para sua descoberta;

na verdade, a legitimidade da busca e/ou da descoberta viriam menos do mandato

social do que do... saber. Seria este que legitimaria a busca ou que legitimou a

descoberta da verdade da loucura; seria este que legitimaria o mandato social da

profissão e não o contrário, isto é, a "licença" legitimando o exercício do saber.

Enfim, seria o saber psiquiátrico — no caso, aqui, a teoria psicanalítica enquanto

saber psiquiátrico — que seria o único em condições de buscar ou de descobrir a

verdade da loucura. Desse modo, se nossa interpretação está correta, os

entrevistados repetem o argumento que fundamenta boa parte da legitimidade

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social das profissões: a possessão de um conhecimento especializado, único capaz

de apreender de forma eficaz o objeto profissional, no caso aqui examinado, a

loucura;

Ø as expressões "busca", "descoberta" e mesmo "verdade da loucura" possuem

implicitamente a premissa de que a loucura contem uma essência a ser revelada ou

desvendada. A aparência da loucura (ou sua manifestação na realidade) não

poderia ser apreendia enquanto verdade; ao contrário, muitas vezes pode ocultar a

sua real natureza. Pelo que interpretamos, os entrevistados ficam num frouxo

movimento pendular entre duas versões básicas sobre a essência da loucura: a

primeira, apenas introduzida de maneira especulativa, talvez pelo seu radicalismo

(como reconheceu um dos entrevistados), admite que a verdade da loucura,

enquanto tal, exista apenas como um impossível mistério. A verdade da loucura

existe e é sua essência, mas seria incognoscível, estando além do conhecimento

humano. A irracionalidade da loucura que habita a sua superfície ocultaria uma

outra bem mais radical, uma irracionalidade intransponível. Situando-se aquém e

além do humano, a loucura personificaria o limite da linguagem e do

conhecimento da humanidade. Indizível e incognoscível, a loucura delimitaria o

confim da razão e o abismo do inconsciente104. A verdade da loucura é o seu

mistério, e tal mistério seria, no fundo, o mistério do próprio devir humano. A

segunda versão, que poderíamos chamar de "platônica"105, admitiria que a

essência da loucura é a sua verdade, mas uma cognoscível. A irracionalidade da

loucura, sua realidade enquanto um desarrazoado impossível de apreensão,

ocultaria uma racionalidade que seria a própria dinâmica de sua incongruência. Se

tal racionalidade revela uma possessão demoníaca, um distúrbio neuroquímico ou,

ainda, uma perturbação primária da relação libidinal, não importa, pois o que

interessa é que a essência da loucura pode ser conhecida, por isso apreendida e,

muitas vezes, como conseqüência, controlada;

104 Uma última versão da loucura enquanto fenômeno indizível e incognoscível encontra-se na importante obra de Foucault (1972): "História da Loucura". Há, nessa obra, notórios rasgos provenientes do romantismo, quando aborda a natureza inenarrável da Loucura. 105 Alguns autores colocam a psicanálise como uma teoria psicológica sofisticada e assombrada de platonismo (Raikovic, 1994; Webster, 1999). O inconsciente seria a caverna de Platão pela qual os psicanalistas desvendariam indiretamente os mistérios da superfície e da aparência da consciência.

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Ø vale a pena assinalar que o termo "loucura" é posto e problematizado somente

agora pelos entrevistados. Revisando suas entrevistas, principalmente no momento

da discussão sobre a representação de DM, justamente no instante aparentemente

mais propício para ser colocada a questão da loucura, não encontramos referência

alguma ao termo. Por que um termo tão polêmico e tão polissêmico somente

aparece nas entrevistas quando da discussão sobre o papel da psiquiatria?

Infelizmente, podemos apenas especular. A resposta, talvez mais óbvia, embora

um tanto banal, seria que identificar o papel da psiquiatria à busca da verdade da

loucura valoriza-a muito mais do que meramente reservá-la, por exemplo, à busca

da verdade da doença mental. Em tese, "loucura" é uma noção que ultrapassa, e

muito, a de doença mental. Ultrapassa os limites da psiquiatria e da medicina.

Requer uma disciplina eleita, possuidora de um conhecimento extraordinário — a

valorização que isso implica e o reconhecimento que isso traz são gigantescos.

Pode envolver a apreensão e, dependendo da perspectiva, o controle de

comportamentos que tangenciam a moral e que não são necessariamente

patológicos. Representa, no fundo, a expansão do campo psiquiátrico a esferas que

não são, pelo menos em princípio, de sua alçada. A busca da verdade da loucura,

quando monopolizada pela psiquiatria, pode traduzir a vontade de poder de uma

disciplina que transbordou o patológico, tomou conta da anormalidade e, quem

sabe, já está sitiando a normalidade.

(2) Despreconceito, esclarecimento e prevenção

Para 30 entrevistados, a psiquiatria teria três funções básicas, todas correlacionadas:

• combate ao preconceito contra a DM;

• necessidade de esclarecer a sociedade a respeito da natureza das doenças mentais;

• prevenção contra o surgimento e o desenvolvimento das patologias psiquiátricas.

No discurso dos entrevistados, os três termos vêem normalmente juntos, como se um

implicasse o outro, numa espécie de cadeia associativa. O peso maior, sem dúvida, pelos menos

na quase totalidade das entrevistas, recai no papel da psiquiatria em lutar pelo despreconceito da

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DM, sendo esse o ponto de partida para justificar o esclarecimento e a prevenção — estes últimos

aparecem acoplados à luta pelo despreconceito da DM, embora a necessidade da prevenção tenha

uma relação mais independente e indireta com tal combate. Pode-se perceber a conexão lógica,

quase imediata, entre despreconceito e esclarecimento; no entanto, a prevenção é justificada de

um modo mais sinuoso. Como ocorre concretamente, nesse caso, a justificação?

Para responder a essa questão, será mais interessante, primeiro, continuar a interpretação

das entrevistas e, depois, compreender melhor a significação da prevenção psiquiátrica entre os

entrevistados. Assim sendo, basicamente o raciocínio que amalgama os três termos seria o

seguinte: os entrevistados enfatizaram que a DM sofre um grande preconceito social — a maioria

absoluta considerou que tal fato, talvez, seja o maior problema da psiquiatria. A psiquiatria deve,

inclusive no sentido de uma obrigação moral, combater esse preconceito. Segundo os

entrevistados, a melhor forma de combate seria o esclarecimento da população, seja através da

atuação individual do psiquiatra, seja via campanhas patrocinadas pelas associações profissionais

médicas e psiquiátricas ou, ainda e principalmente, através de políticas públicas em saúde mental.

Ora, onde entraria a prevenção no combate contra o preconceito?

Os entrevistados reconhecem, praticamente de forma unânime, que a prevenção é

extremamente problemática na psiquiatria. Reconhecem inclusive duas dificuldades típicas do

campo psiquiátrico:

• prevenir o que, na verdade, se não há consenso sobre a etiologia da DM? Sabendo

a causa, pode-se implementar práticas que impeçam o surgimento e o

desenvolvimento da doença. Ora, cada posição na psiquiatria vai defender, pelo

menos em princípio, uma forma de prevenção segundo o modo pelo qual é

definida a DM. Se não há consenso sobre a causa, provavelmente não haverá sobre

a prevenção;

• a sintomatologia da DM expressa-se pelo comportamento. Seria através dele que

se percebe a patologia. Mas, como tal, não pode ser evitado, pois ele é apenas

expressão e não causa da doença. Além de não ser causa, não pode ser considerado

um risco para o desencadear ou o desenvolvimento da enfermidade. Não sendo

uma causa nem um risco e, por isso, não podendo ser evitado, o comportamento

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pode ser, todavia, detectado de forma precoce. A prevenção psiq uiátrica, assim,

passaria por uma vigilância, logo uma catalogação de comportamentos ditos

patológicos?

Os entrevistados admitem a dificuldade dessa última posição, principalmente na definição

de um comportamento patológico, já que não há consenso a respeito. Admitem ainda que uma

prevenção dessa natureza pode levar a um controle social perigoso, podendo descambar para um

autoritarismo e um imperialismo moral da psiquiatria106. A detecção de comportamentos que

expressam uma sintomatologia psiquiátrica ordenaria a função de uma higiene mental — seu

papel e seu limite. Além dessa fronteira, estaríamos no campo da política e do abuso de poder.

Contudo, se existissem controle e fiscalização da prevenção, se as regras fossem claras, se

houvesse a participação de todos os setores da saúde mental, poder-se-ia pensar a prevenção.

Vários entrevistados afirmaram que isso seria factível, principalmente, por exemplo, no

acompanhamento psicológico e escolar da criança e do adolescente. O ambiente escolar pode ser

esquadrinhado de tal forma que os abusos podem ser evitados, favorecendo a detecção de

problemas mentais e comportamentais entre as crianças e os adolescentes. A prevenção

psiquiátrica teria, nesse sentido, dois alvos específicos: a escola e, através desta, a família.

Segundo os entrevistados, seria impossível a prevenção sem que o próprio ato de prevenir

não envolvessem o esclarecimento e, conseqüentemente, a luta pelo despreconceito da DM.

Como prevenir sem esclarecer? Esclarecer, por exemplo, que determinados comportamentos, no

caso do ambiente escolar, principalmente aqueles que envolvam alguma inadaptação, podem

significar o início de uma patologia passível de ser tratada pela psiquiatria. Tal aclaração, assim,

representaria já uma prevenção. E, implicando esta também uma ação de esclarecimento,

significaria igualmente um ato de despreconceito.

Além de relacionada ao despreconceito e ao esclarecimento, a prevenção, para alguns

entrevistados, possui um colorido político-social evidente: prevenir em psiquiatria seria também

combater a exclusão. Embora não fique claro de qual exclusão está-se referindo, parece razoável

supor que o alvo da questão seja as condições de vida da população brasileira. Aparentemente,

106 Segundo expressão de um dos entrevistados.

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faz-se uma relação causal entre miséria e doença mental; assim, combatendo-se a exclusão social,

previne-se também o surgimento e o desenvolvimento de enfermidades psiquiátricas — o

combate à exclusão social teria assim efeitos terapêuticos. Uma política de higiene mental ou de

saúde mental, nesse caso, tornar-se- ia ipsis litteris uma política lato sensu, pois se confundiria

com um registro político que ultrapassa, e muito, o campo restrito da saúde pública107.

Pode-se propor também outra interpretação dessa relação entre prevenção e exclusão,

sendo inclusive complementar à descrita acima, embora mais restrita, tomando como referência

as condições de vida dos pacientes psiquiátricos. Aparentemente, a DM seria vista aqui como

excludente por natureza, independentemente da situação social da pessoa — as condições sociais

apenas agravariam uma exclusão já dada. A prevenção, assim, estaria relacionada, pelo que

interpretamos, à melhoria substancial da assistência social ao paciente. O ato de reinserção social

seria compreendido como uma ação preventiva, e também terapêutica, diminuindo o efeito

patogênico da exclusão. A prevenção, como combate à exclusão, evitaria assim o agravamento da

DM.

Enfim, a prevenção, por um lado, implicaria uma terapia social, quando conectada ao

combate da exclusão social; por outro, transformaria a reintegração social num ato preventivo e

terapêutico por excelência.

Outrossim, boa parte dos entrevistados colocou que, para se conseguir uma prevenção

eficiente, seria necessário um esclarecimento anterior mesmo ao próprio ato de prevenir; em

suma, seria preciso uma elucidação fundamental: a DM é uma doença como qualquer outra! Isso

não seria apenas um ato de esclarecimento, pois implicaria uma transformação nas representações

do senso comum sobre o papel da psiquiatria. Implicaria uma verdadeira reforma cultural, no

dizer de um dos entrevistados. Igualar a DM às outras doenças da medicina representa banalizá-

la, isto é, significa desencantá- la de significados preconceituosos do senso comum. Ela torna-se

trivial, igual a todas as outras, logo liberada do seu eterno estigma. A sua banalização significaria

um passo gigantesco para o despreconceito, pois, nivelando-a e recolocando-a no campo da

107 Tal posição nada mais é do que a velha posição higienista do século XIX, reciclada via uma pronunciada sensibilidade social, mas sem os componentes étnicos e de discriminação racial. Combatendo-se a pobreza ou a degeneração racial, o resultado é o mesmo: evita-se o surgimento de doenças psiquiátricas.

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normalidade médica, retirar-se- ia, conseqüentemente, a carga de supertições que orbita em torno

da DM. Segundo a fórmula feliz de um dos entrevistados, "a loucura viraria DM". Ora, como o

mesmo reitera, seria "muito mais fácil prevenir uma doença do que uma loucura ", pois, sem

preconceitos, a prevenção ficaria, evidentemente, mais fácil. Curiosamente, aparece aqui,

novamente, a distinção entre loucura e DM, entre falso e verdadeiro, entre estigma e neutralidade.

A banalização, desse modo, passaria pelo ostracismo da loucura e pela ocupação do imaginário

social das noções da psiquiatria, em particular da de doença mental.

A prevenção implica, em suma, esclarecimento, luta contra o preconceito e, pari passu,

um combate por significados e por representações. Embora a prevenção seja um tanto polêmica

na psiquiatria, tal fato não impede a sua defesa. Mas, assim que é posta como necessidade,

mesmo que exista uma consciência de seus perigos, parece ser inevitável que suas contradições

faça-a extrapolar, pelo menos potencialmente, do campo da saúde pública e a torne um problema

social, pois é impossível liberar a detecção de comportamentos patológicos de uma ambigüidade

intrínseca. Talvez porque toda tentativa de enquadrar o comportamento humano, qualquer que

seja sua natureza, implique um sacrifício moral. Pode-se diminuir o preço a pagar, sem dúvida,

mas não se pode eliminá- lo.

(3) Papel médico

Em várias entrevistas estava implícito, como um dos papéis da psiquiatria, sua função

estritamente médica. O papel médico da psiquiatria aparecia de forma apenas tácita, talvez

porque o entrevistado inferisse-o como óbvio, priorizando e realçando outras funções, quem sabe,

julgadas mais importantes ou menos evidentes. Em contrapartida, nove entrevistados, enfatizaram

explicitamente tanto a prática médica da psiquiatria como o papel discutido no tópico anterior,

embora o discurso do despreconceito, do esclarecimento e da prevenção tenha tido um peso

relativamente maior.

Todavia, várias outras entrevistas (17 entrevistados) restringiram completamente o papel

da psiquiatria à sua função médica e, mesmo assim, a uma função bem restrita: tratamento e cura.

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214

Há por parte desses entrevistados uma desconfiança visceral com qualquer papel preventivo 108 da

psiquiatria. O discurso higiênico ou de saúde pública é visto como uma politização extremamente

indesejável da prática psiquiátrica. Por isso, circunscrever a função da psiquiatria, limitando-a ao

ato médico, protegê- la-ia de derrapagens. Assim, a ênfase no tratamento e na cura é tão

importante que, de certa forma, a prevenção e o esclarecimento esgotar-se- iam na prática

psiquiátrica. O ato de tratar por si só já combateria o preconceito, além de diminui- lo com o

gradativo reconhecimento social da eficiência do tratamento psiquiátrico. Curiosamente, o

estigma da DM teria uma relação inversamente proporcional à valorização da psiquiatria.

Aumentando a importância da psiquiatria, reconhecendo seu papel médico, o preconceito tende

ao desaparecimento. Alguns entrevistados, inclusive, separaram a saúde mental, enquanto saúde

pública, de qualquer relação imediata com a psiquiatria109. Tal gesto afastaria, pelo menos em

princípio, toda e qualquer política de saúde do campo psiquiátrico, sendo este, digamos assim,

considerado como "privado" e estando restrito à área médica e ao mundo profissional do

psiquiatra. Pelo que verificamos, essa posição não significa necessariamente uma defesa de uma

prática profissional privada ou alguma coisa do gênero, mas sim uma redução e uma limitação

das funções da psiquiatria. No fundo, a função não ultrapassaria o campo profissional. O papel

médico da psiquiatria confundir-se-ia, na verdade, com o próprio papel profissional, o que

repetiria; portanto, uma velha preocupação dos entrevistados: a defesa da psiquiatria enquanto

profissão médica e a sua valorização profissional. O que se parece defender aqui, em suma, é a

universalização do papel médico da psiquiatria.

Mas o papel de despreconceito, prevenção e de esclarecimento público sobre a DM

representa também uma função especial: a do especialista. Para os entrevistados, o psiquiatra é

um profissional especializado, detentor de um conhecimento singular sobre a DM. A sua

especialização implica inevitavelmente um monopólio discursivo sobre o seu objeto profissional.

Qualquer discurso, atividade ou intervenção a respeito necessita do especialista na matéria.

Esclarecer, combater o preconceito e prevenir são atividades que necessitam do psiquiatra,

enquanto profissional médico, pois são especializadas, relacionadas ao mundo profissional do

especialista. Assim, a defesa do papel médico da psiquiatria é a defesa da sua expertise.

108 "Prevenção é medicina preventiva, e não psiquiatria", como disse um entrevistado. 109 "Uma coisa é o papel da psiquiatria; outra coisa é o papel do Estado na saúde", no dizer de um entrevistado.

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215

c) O papel da psiquiatria na medicina

Se a discussão sobre o papel da psiquiatria na sociedade gerou algum debate e, com

certeza, alguns problemas para a interpretação, podemos afirmar igualmente que o tópico

discutido agora foi muito mais problemático. Talvez porque te nha ocorrido um curioso

fenômeno: para os entrevistados, a pergunta motivou a necessidade de se questionar outro

problema, aparentemente implícito e correlacionado: a suposta desvalorização da psiquiatria na

medicina. Provavelmente, diante do assunto, houve a necessidade de se produzir uma avaliação,

como premissa à própria questão, acerca do valor da psiquiatria na medicina.

Percebemos, no tópico anterior, que a discussão sobre o papel ou a função trazia implícita

uma atribuição quanto ao valor da psiquiatria na sociedade. Definir seu papel implicava, no caso,

determinar tacitamente também sua importância. No caso agora examinado, porém, ocorreu uma

dupla atribuição de valor: na primeira, a psiquiatria é julgada desvalorizada; na segunda, o seu

papel é valorizado na medicina. Por que isso? Ou ainda: como posso afirmar positivamente a

função da psiquiatria no meio médico, se admito que, antes de tudo, ela é desvalorizada? Na

verdade, haveria dois registros diferentes ou duas situações desiguais para os entrevistados: uma

ressentida enquanto desvalorização, e uma desejada enquanto valorização. A dupla atribuição de

valor produz uma modificação importante no sentido da função: a primeira atribuição, enquanto

desvalorização, é condição real e presente da psiquiatria, tornando seu papel, enquanto

valorização, uma condição ideal, projetada para o futuro. Ao atribuir-se um valor negativo (uma

desvalorização) à psiquiatria, e considerando tal atribuição um fato, a função torna-se um devir,

um valor ainda a ser conquistado. Outrossim, cabe enfatizar que a desvalorização ocorreu em

relação à medicina e não à sociedade. Aparentemente, a psiquiatria não sofreria, pelo menos não

sofreria de uma forma tão importante, uma desvalorização social, e sim uma disciplinar, isto é, no

próprio seio da medicina. Tudo isso indica que exista um desconforto dos psiquiatras no meio

profissional médico, confirmado pelo fato importante e um tanto problemático de que todos os

entrevistados, sem exceção, afirmaram incontinenti que a psiquiatria é desvalorizada na

medicina!

Por que essa unanimidade? Aparentemente, estamos diante de uma percepção de crise.

Mas, de qual crise? Certamente, não é o caso de uma crise econômica — os entrevistados, em

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216

tempo algum, referiram-se, por exemplo, a dificuldades financeiras; na realidade, foi justamente

o contrário: pelo que averiguamos, os entrevistados avaliam que ganham bem, afirmando

inclusive que a sua renda média está acima da maioria dos profissionais médicos. A

desvalorização da psiquiatria na medicina, assim, não passaria pela renda ou pelo salário,

apresentando outras razões muito mais relacionadas, na verdade, à percepção do lugar da

psiquiatria na medicina do que a fatores meramente econômicos.

(1) Preconceito e "medo da loucura"

Senão vejamos: a maioria dos entrevistados (30) afirmou que a desvalorização da

psiquiatria era causada pelo preconceito, existente no meio médico, contra a loucura e,

conseqüentemente, contra o paciente psiquiátrico. No limite, o argumento sustenta a interessante

tese de que os psiquiatras pagam um preço pelo preconceito. São vítimas indiretas, digamos

assim, mas que sofrem um efeito imediato: a desvalorização da disciplina psiquiátrica, logo de

sua atividade profissional. Os maiores vilões dessa discriminação são os clínicos e os

neurologistas. Aqueles têm "medo da loucura" (sic) e, com isso, medo da psiquiatria; os outros

negam o "fato psicopatológico", no dizer de um entrevistado, e acham que a psiquiatria é inútil,

porque trata de uma doença inexistente. Neste último caso, segundo alguns entrevistados

analistas, a negação da loucura pode ser aproximada do "medo", sendo vista como o seu recalque

— negar esconderia o medo da loucura.

Acreditamos que estamos, até mesmo pela exuberância das expressões argumentativas,

diante de um ponto sensível: o preconceito, na maioria das vezes, é explicado como medo.

Assim, um disseminado "medo da loucura" empurra a psiquiatria para um ostracismo disciplinar.

O psiquiatra seria vítima desse processo, tornando-o um estranho na família médica. Estranho, no

sentido de não se conseguir enturmar, na curiosa imagem de um entrevistado, mas também na

acepção de bizarro e esquisito. E, aqui, dá-se um pulo na argumentação, passando-se do tema da

estranheza psiquiátrica ao medo do próprio psiquiatra110. O famoso clichê que diz que "todo

psiquiatra é louco" corrobora mais ainda o argumento. Decididamente, o medo da loucura

contamina todo o ambiente psiquiátrico, das instituições aos profissionais.

110 Segundo vários entrevistados, os clínicos, principalmente, têm medo dos psiquiatras...

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217

Curiosamente, o psiquiatra é vítima do seu próprio objeto profissional, a DM. Mesmo que

a culpa não seja propriamente da DM, mas sim do fato de a mesma ser alvo de preconceitos, fica-

nos a impressão, em algumas entrevistas, que o medo da loucura é inevitável. E o destino do

psiquiatra seria escolher entre ser uma vítima ou um dos protagonistas que tentarão amenizar a

situação. Para os psiquiatras que têm uma visão dualista da DM, principalmente os analistas, o

medo subsistirá no meio médico enquanto não for reconhecida a ineludível diferença da

psiquiatria em relação às outras disciplinas médicas — reconhecimento que significa pari passu o

reconhecimento da diferença nosológica da DM em relação às demais. Contudo, fica a dúvida se

o reconhecimento da diferença psiquiátrica, por si só, evitaria necessariamente o medo da loucura

por parte dos médicos. Parece, pelo visto, que o discurso do reconhecimento da diferença

enfrentaria menos o preconceito do que a desvalorização da psiquiatria.

De todo modo, a maioria dos entrevistados pensa que a maneira mais fácil de enfrentar o

preconceito ou o "medo da loucura" no meio médico é a conscientização dos profissionais,

principalmente durante a formação universitária. O esclarecimento, quase uma política

pedagógica preventiva, permitirá aos futuros profissionais uma visão mais simpática da

psiquiatria e uma menor dificuldade no trato com os pacientes psiquiátricos. Com isso, a

psiquiatria seria inevitavelmente valorizada.

(2) Falta de cientificidade

Mas nem tudo é culpa do "medo da loucura", pois alguns entrevistados afirmaram que a

desvalorização tinha como causa a pouca cientificidade da psiquiatria. Admite-se até que,

realmente, existe um preconceito, mas não aquele devido à DM, e sim o produzido pelas

insuficiências científicas da psiquiatria. Na verdade, para alguns, a única forma de a psiquiatria

inserir-se no meio médico seria tornar-se científica. Tornando-se científica, adviria naturalmente

o reconhecimento disciplinar e profissional. No entanto, há dúvidas a respeito do que significa

"cientificidade". Inicialmente, poder-se- ia pensar que o termo refere-se, por exemplo, a uma

cientificidade como a da neurologia, isto é, a defesa de uma psiquiatria biológica 111. Na

realidade, os entrevistados parecem referir-se a uma cientificidade ainda a ser encontrada, própria

111 Nesse grupo de entrevistados, apenas um afirmou a necessidade de uma psiquiatria biológica para suprir a falta de cientificidade da psiquiatria.

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ao campo psiquiátrico. O que seria isso realmente, eis a questão. "Cientificidade", aqui, é um

termo vago e um tanto normativo — encontrá- la seria descobrir o lugar da psiquiatria na

medicina. Descobrir a cientificidade da psiquiatria implicaria descobrir o seu devido lugar na

medicina. Como muitos dos entrevistados consideram que as disciplinas médicas são científicas,

a descoberta da cientificidade da psiquiatria iria recolocá- la no campo disciplinar médico.

Situação um tanto angustiante, pois estamos falando de uma cientificidade que não existe, que

deveria existir, que deve ser encontrada ou descoberta, sendo absolutamente necessária para

"encaixar" a psiquiatria na medicina. Situação estranha, porque os entrevistados consideram a

psiquiatria como uma disciplina científica, mas reconhecem, paradoxalmente, que sua

desvalorização no meio médico seria justamente ocasionada pela falta de... cientificidade.

Estamos, de novo, diante da contradição entre o que é ressentido e o que é desejado, entre o que

acontece na realidade e o que deveria acontecer.

Com efeito, o psiquiatra parece o tempo todo esperar alguma coisa. Nas entrevistas passa-

se sempre uma impressão de incômodo em relação à situação presente da psiquiatria. Os

entrevistados perseveram num discurso que, podemos assim dizer, baseia-se na esperança. Ora, a

esperança, pelo menos no sentido que estamos definindo a partir do discurso dos entrevistados,

parece ser um desejo que se reporta ao que não se tem (a psiquiatria valorizada na medicina) —

por isso, um discurso carente de reconhecimento —, ao que não se sabe se será realizado, ao que

se ignora (afinal, qual seria a cientificidade da psiquiatria?!), e, enfim, a um momento ou

contexto que não depende da vontade dos psiquiatras (a transformação da psiquiatria numa

disciplina científica). Em suma, é um discurso baseado num desejo sem satisfação (carência),

sem saber e sem poder (Comte-Sponville, 1999: 312).

(3) Separação entre a psiquiatria e a medicina

Já em relação ao terceiro motivo arrolado pelos entrevistados para explicar a

desvalorização da psiquiatria, o discurso tornou-se menos emotivo e mais propositivo. Agora, o

problema não seria o preconceito ou a falta de cientificidade, e sim a separação entre a psiquiatria

e a medicina. Tema já visto e discutido na análise do campo representacional, porém que retorna

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219

de forma natural, já que o tema da separação possui uma relação umbilical com a questão da

desvalorização da psiquiatria112.

Assim, a culpa da desvalorização recai na própria instituição psiquiátrica, com seu aparato

terapêutico (hospitais, clínicas...) completamente à parte das instituições médicas, bem como na

visão dualista da DM que a separa das outras doenças — a psicanálise foi bastante criticada e

responsabilizada pela separação entre psiquiatria e medicina. Culpa, então, de um modelo

institucional e de uma concepção de doença. O tom, aqui, torna-se político, pois a volta da

psiquiatria à medicina necessitaria de uma grande reforma: mudança institucional, com a

hospitalização dos asilos psiquiátricos e a complementaridade com os serviços médicos; mudança

pedagógica e profissional, com a formação psiquiátrica universitária sendo dominada pela clínica

e pela neurologia, e, enfim, mudança profissional, com a profissionalização médica do psiquiatra,

usando uma expressão dita por um entrevistado. Assim, há uma defesa arraigada de uma ampla

reforma psiquiátrica, mas de uma forma específica, cuja palavra-de-ordem é a "volta à medicina".

O discurso da volta é holístico, explicando tudo, inclusive o preconceito contra a DM: o

isolacionismo do campo psiquiátrico é que condiciona e estimula o "medo da loucura". O asilo

seria uma aberração institucional que seria tudo menos uma instituição médica. Como não ter

medo da loucura, se o asilo é um ambiente de terror? Mas, destruindo o asilo (ou transformando-

o num hospital) e eliminando a separação entre a psiquiatria e a medicina, banaliza-se a DM,

tornando-a uma doença como qualquer outra, et pour cause convertendo o psiquiatra num

verdadeiro médico. E, colocada no mesmo plano de uma gripe ou de uma pneumonia, destrói-se

o preconceito. Pois como não identificar o psiquiatra com outra coisa, senão com o louco, se ele

recusa em ser médico e a própria DM é considerada loucura? E como tornar a psiquiatria uma

disciplina científica, como encontrar sua cientificidade, se ela resiste em ser uma disciplina

médica?

O discurso agora é propositivo, tendo um alvo concreto. Não se baseia no medo, nem na

esperança, embora a argumentação da volta tenha, em alguns momentos, um tom nostálgico. De

qualq uer forma, o resultado da volta é taxativa: assim que a psiquiatria tornar-se, de fato e de

112 Inclusive, todos os entrevistados desse grupo ou são "clínicos" ou "biomédico".

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direito, uma disciplina médica, será reconhecida no seu devido valor. O psiquiatra quer ser

médico, quer ser reconhecido como tal, e não o pode por causa do modo como se organiza sua

profissão e do modo como se percebe a DM. Novamente, vemos aqui o psiquiatra como vítima

da psiquiatria — antes era o "medo da loucura", agora é o modo como se estrutura a psiquiatria.

O psiquiatra não se sente bem no seu lugar, pois seu lugar é outro, que ainda não existe, não é de

fato, mas um dia virá a sê- lo. A sombra da esperança continua presente, embora amenizada, e o

ressentido persiste, entrando em contradição com o desejado. Pois a profecia promete: um dia a

psiquiatria acabará com o medo da loucura, encontrará sua cientificidade e voltará, enfim, à

medicina.

Enquadrando mais adequadamente as três razões arroladas pelos entrevistados

(preconceito, cientificidade e separação), enquanto discurso sobre uma possível crise de

valorização ou de reconhecimento disciplinar da psiquiatria, poderíamos perguntar-nos o quanto

elas seriam estruturais na construção da identidade profissional do psiquiatra. Como forma de

esquematizarmos melhor a análise, discutiremos três hipóteses gerais:

Ø o discurso dos entrevistados seria expressão, muitas vezes manifestado na forma

de um queixume exagerado, de um incômodo fundamental que periodicamente

surge e ressurge na história da psiquiatria. O conteúdo do discurso mudaria

segundo as circunstâncias e a época, mas manteria a mesma forma ou a mesma

necessidade: a exigência de valorização ou de reconhecimento da psiquiatria —

sendo assim, o discurso dos entrevistados poderia ser relativizado através de uma

contextualização que percebesse a evolução e a repetição recorrente desse

fenômeno ao longo da história da psiquiatria;

Ø o discurso teria uma relação com diversas especificidades do campo psiquiátrico,

sendo assim analisado a partir de algumas transformações que vêm ocorrendo na

psiquiatria;

Ø o discurso seria um sintoma de mudanças mais profundas acontecendo na

sociedade, necessitando de uma análise sociológica mais global.

(4) Especialidade médica

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Sim, talvez um dia isso tudo venha a acontecer, mas, enquanto não acontece, qual seria

afinal o papel da psiquiatria na medicina?

A maioria absoluta dos entrevistados (32), seguindo aparentemente a lógica do discurso

da volta, afirmou que a psiquiatria tem um papel estritamente médico na medicina, isto é, seu

papel não sairia dos limites de uma especialidade médica. E qual seria o papel da psiquiatria,

enquanto especialidade médica? Ora, o tratamento e a cura de uma doença específica: a DM. A

psiquiatria seria, nesse sentido, uma "especialidade como qualquer outra", reproduzindo num

outro nível o velho modelo do "uma doença como qualquer outra". Existe aqui coerência e

reciprocidade, haja visto que, se a DM é uma doença banal, conseqüentemente, a psiquiatria é

também uma especialidade médica como qualquer outra na medicina. A natureza do objeto

profissional, a DM, pressupõe o conteúdo da atividade profissional da psiquiatria. Sendo o objeto

estritamente médico, logo a atividade sê- lo- ia igualmente. Banalizando-se a DM, banaliza-se,

num mesmo movimento, a psiquiatria. E, tal banalização, para os entrevistados, possui uma

importância fundamental, visto que valoriza profissionalmente a atividade psiquiátrica. Pois,

banalizada, realizaria um velho sonho: tornar-se uma medicina como qualquer outra.

Para a metade dos entrevistados desse grupo, o papel da psiquiatria na medicina co incidiu

com o da na sociedade. Internamente como externamente, a psiquiatria teria um papel

estritamente médico. A outra metade fez uma distinção de papéis: papel médico na medicina;

papel de despreconceito, esclarecimento e prevenção na sociedade. A distinção não é

contraditória, e sim complementar. Em relação à primeira metade dos entrevistados, a distinção

refletiria apenas um papel mais ambicioso. Tal ambição realçaria, inclusive, outra grande

conseqüência, comum aos dois grupos de entrevistados, da noção de psiquiatria enquanto

especialidade médica: o papel de especialista do psiquiatra. O argumento já foi destacado no

tópico anterior, sendo que, agora, ele é aplicado ao campo profissional médico. Sendo a

psiquiatria uma especialidade médica, o psiquiatra torna-se, conseqüentemente, um especialista.

E, sendo um especialista, monopoliza um determinado saber no próprio campo médico.

Fundamentalmente, os entrevistados querem que seu saber seja reconhecido pelos seus pares, isto

é, pelos médicos, concedendo um peso estratégico bem maior ao reconhecimento disciplinar da

sua atividade profissional do que a uma valorização social, cujo reconhecimento seria conferido

pela sociedade.

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Assim, no seio da medicina, o psiquiatra teria a prerrogativa de assumir toda e qualquer

intervenção que diga respeito ao seu objeto profissional, a DM. Os entrevistados reivindicam, por

exemplo, o mesmo status profissional dos neurologistas: diagnosticado a doença como

neurológica, encaminha-se o paciente ao especialista da matéria, o neurologista. Os entrevistados

lamentam que, na maioria das vezes, essa situação não é respeitada, queixando-se dos clínicos e

dos neurologistas que continuam tratando um paciente com problemas psiquiátricos mesmo após

o devido diagnóstico. O paciente psiquiátrico, nesse sentido, requer um médico especial, o

psiquiatra. O discurso parece ambíguo, pois os entrevistados, no mesmo registro, desejam que o

saber psiquiátrico seja mais disseminado entre os médicos, permitindo- lhes inclusive a sua

manipulação no atendimento de casos simples, principalmente no serviço público. Ou seja:

desejam ao mesmo tempo o seu monopólio, enquanto especialistas, e sua socialização. Além do

que, raramente, um clínico ou um neurologista tratam, por exemplo, uma psicose; na realidade, os

casos tratados, principalmente pelos clínicos, são pequenos distúrbios, fundamentalmente

psicossomáticos — assim, a queixa é um tanto exagerada. De todo modo, monopolizado ou

socializado, o que importa aqui é a valorização e o reconhecimento do saber psiquiátrico.

Valorizado, quando utilizado por todos; reconhecido, quando monopolizado. No fundo, a

ambigüidade termina justamente neste ponto, quando começa a valorização e o reconhecimento

da psiquiatria.

(5) Humanização da medicina

Ocorreu uma concentração importante de entrevistados analistas na defesa da psiquiatria

como humanização da medicina. Como vimos anteriormente, no tópico "Representação e

Psiquiatria", a afirmação da psiquiatria como uma forma de humanismo na medicina foi,

basicamente, um argume nto em prol da valorização da psicanálise no campo psiquiátrico.

Contudo, no tópico que examinaremos agora, a discussão ficou mais nuançada, inclusive porque

entrevistados não-analistas concordaram com a necessidade de uma humanização da medicina.

A argumentação dos entrevistados apresentou as seguintes considerações:

• a relação psiquiatra e cliente é necessariamente relacional;

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• o psiquiatra precisa, por isso, levar em conta a interação, a comunicação, a relação

com o paciente, percebendo-o como uma pessoa;

• a psiquiatria, com isso, realça a dimensão humana do paciente;

• realçando a dimensão humana, a psiquiatria percebe globalmente o paciente;

• a percepção global leva a um conhecimento e um modelo de atendimento

interdisciplinar e multidisciplinar.

O argumento repousa na consideração e no respeito da condição psicológica do paciente.

A palavra-chave aqui seria o termo "relacional". E seria a própria natureza da DM que

determinaria o componente relacional na psiquiatria. Sendo uma doença que compromete a

interação e a comunicação, seu tratamento passa necessariamente pelo resgate da capacidade de

interagir e de se comunicar do paciente. Como os entrevistados consideram que a medicina está

cada vez mais tecnológica e "fria", a psiquiatria poderia recuperar o lado "humano" da atividade

médica. A frieza da medicina estaria relacionada à sua incapacidade atual de levar em conta a

dimensão humana do paciente, justamente porque a medicina vem esquecendo dos fundamentos

da relação médico-paciente.

Tal esquecimento, pelo que interpretamos do discurso dos entrevistados, tem duas causas

fundamentais: o domínio da tecnologia e a formação universitária centrada no uso, justamente,

dessa mesma tecnologia. "O paciente é visto como um carro, uma máquina que precisa de novas

peças. Não se fala com um carro..." — alega um entrevistado. Apenas se olha o corpo, e este

como uma máquina, esquecendo-se do psicológico, do paciente como pessoa. O que importa para

a medicina é o avanço tecnológico, confundido completamente com o avanço científico. O uso

abusivo da tecnologia faz com que se priorize a doença e não o doente. Seria como se a utilização

maciça da tecnologia fizesse o médico esquecer-se do paciente. A tecnologia substituiria o doente

pela doença, a pessoa pelo corpo, o contato pelo exame, a relação pela frieza.

Toda essa situação, claro, prejudica a psiquiatria, desvalorizando-a de sobremaneira. Qual

é a tecnologia da psiquiatria, além das novas medicações?! Insuficiente, segundo os

entrevistados. Além do mais, seus resultados não são uma panacéia. A única "tecnologia" eficaz

da psiquiatria é o uso terapêutico da palavra e da interação com o paciente. Procedimentos que

não são usualmente vistos como técnicos e que são subordinados à improvisação e à intuição do

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profissional. A psiquiatria, para os entrevistados, não pode ser tecnológica, fato este

intrinsecamente relacionado à sua natureza relacional. Não podendo ser assim, a psiquiatria

torna-se uma estranha no ninho num ambiente onde se valoriza a tecnologia.

Para os entrevistados, a priorização da tecnologia separa e divide a medicina. Não só

separa e divide, mas também ocorre uma especialização da prática médica. Sendo assim, pode-se

entender a crítica à tecnologia como também um juízo negativo sobre a especialização.

Tecnologia e especialização vêm juntos, inseparáveis. O papel da psiquiatria, através da sua

natureza relacional, seria a de re-integrar a medicina, re-dimensionando a função da tecnologia,

agora a serviço de uma visão humana da prática médica. Com isso, contorna-se a especialização,

tornando-a "multidisciplinar" — as especialidades não se tornariam áreas de práticas e saberes

isolados e sem comunicação entre si.

Os entrevistados fazem um contraponto entre integração e fragmentação. A psiquiatria

integraria o Homem Doente, fragmentado pela Doença, e a medicina tecnológica e especializada

intensificaria sua divisão. A reintegração do Homem seria sinônimo de saúde, enquanto a

fragmentação, sinal de enfermidade. A prática médica especializada falaria, assim, a mesma

linguagem da doença113. Já a linguagem da psiquiatria, ao contrapor o Homem integrado ao

Homem fragmentado, assumiria realmente uma concepção humanista do ser humano: inteiro,

autônomo e soberano. No entanto, a concepção humanista clássica não possui esse ranço contra a

tecnologia, afirmando-a, ao contrário, de forma apologética. O dito "humanismo" dos

entrevistados, na verdade, parece nutrir-se da suspeita contemporânea114 a respeito da tecnologia,

cujos efeitos podem ser pode ser menos libertários do que alienantes. Entretanto, como a

psiquiatria e sua natureza "relacional" evitariam, na prática profissional, a especialização médica

e a fragmentação do doente, eis uma questão em aberto. Parece-nos que a noção de "relacional"

guarda um pronunciado sentido moral. Desde que "relacional" envolve um tipo de relação

médico-paciente, caracterizada como mais humana, logo mais compreensiva e interativa, seria

preciso uma prática médica que afirmasse o paciente como pessoa. Para tal, haveria a exigência

113 Crítica simbólica que, embora não sendo compartilhada pela maioria dos psiquiatras, possui um alto valor de mobilização na dita medicina alternativa e, inclusive, na mídia. 114 Não que na Contemporaneidade não exista uma apologia da tecnologia — justamente ao contrário, pois a glorificação até aumentou —, mas sim que, na atualidade, já se encontram vários discursos críticos, relativamente organizados, sobre a tecnologia, alguns inclusive explicitamente anti-tecnológicos.

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de mudanças prementes; nesse sentido, os entrevistados insistiram na necessidade de uma

transformação na cultura profissional e na mentalidade dos médicos, e que, a partir daí, poder-se-

iam obter modificações práticas. Tais transformações seriam dependentes de uma nova

deonto logia profissional que afirmasse o predomínio de uma medicina humanística; em suma, de

uma nova moral no meio médico profissional.

Talvez, por isso, os entrevistados insistissem tanto na (transformação) formação

universitária. Seria nela que se jogaria o futuro de uma concepção humanista da medicina, bem

como onde o "relacional" poderia afirmar-se como ética profissional. O exemplo da prática

psiquiátrica poderia oferecer ao médico um complemento fundamental para a sua formação

profissional, ao trazer a necessidade de se perceber o paciente a partir de sua condição de pessoa

— um complemento que daria ao médico uma visão global do paciente e uma conduta mais

apropriada do ponto de vista da relação. "Tudo que é 'psicológico' é desprezado no ensino

médico" — diz um entrevistado. A formação universitária despreza a deontologia e a abordagem

psicológica do paciente, fazendo a apologia da especialização e da tecnologia. A vocação do

médico torna-se técnica e sem paixão. Pior: torna -se fragmentada, caindo nas rédeas da

especialização. Médico integrado é médico síntese que aglutina saberes e vocação. Encontramos

aqui ecos do modelo de médico de família, inserido na comunidade, compreensivo e respeitoso

com o paciente e, acima de tudo, possuindo um saber médico geral e eficiente.

O ensino universitário precisa, além da ética profissional humanista, incutir nos

estudantes uma visão de doença que necessite, justamente, de um saber geral: uma visão holista

de doença e de medicina. O termo "holismo", sem dúvida, está na moda, repetido

incansavelmente pelas medicinas alternativas. Vários entrevistados, inclusive, mostraram-se

simpáticos às visões de doença da homeopatia e outras visões ditas alternativas. Afirmaram que a

medicina precisa de uma renovação conceitual e que as práticas alternativas poderiam trazer

algum frescor no ensino médico. O que seria exatamente essa visão holista? Os entrevistados

apresentaram várias sinonímias, tipo visão cibernética, visão global, integrada, total...

Aparentemente, holismo implicaria uma visão na qual a doença, qualquer doença, seria vista de

uma forma articulada, sendo um fenômeno que aglutinaria fatores psicossomáticos — alguns

colocaram também a necessidade de se perceber, na doença, fatores sociais e mesmo...

espirituais. Doenças somáticas seriam também psicológicas, e vice-versa. Tendo uma visão

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global ou holista da doença, o médico teria a capacidade de perceber o doente como pessoa, já

que, ao incorporar os fatores psicológicos na etiologia, haveria a exigência de examiná-los,

acarretando uma interação com o paciente.

Curiosamente, a visão holista entra em contradição com a visão dualista de boa parte dos

entrevistados, em particular os analistas. Ora, o dualismo separa as doenças físicas ou somáticas

das funcionais ou psicogênicas; o holismo une-as, num todo articulado. O holismo é, na

realidade, um monismo ampliado. Por isso, talvez, os entrevistados dualistas aplicassem o termo

holismo muito mais na formação médica do que na visão de doença. A ênfase recai, assim, na

necessidade de o ensino universitário formar médicos com uma nova visão da doença. Vaga

visão, na verdade, que teria como único objetivo visível o reconhecimento do próprio dualismo,

isto é, a admissão de que existem doenças... psiquiátricas! Assim, entre os entrevis tados dualistas,

o holismo na visão de doença é desconsiderado em relação ao holismo na medicina. O que seria

uma visão holista da medicina? Ora, basicamente uma medicina que superasse o problema da

especialização. O médico teria uma formação integrada e multidisciplinar, independentemente do

fato de existirem doenças especiais e diferentes. Não só isso: a medicina precisaria de uma

organização institucional que realizasse a interdisciplinaridade entre as várias especialidades.

Como a psiquiatria induziria todas essas transformações? Pelo exemplo do seu modelo de

relação médico-paciente, no qual o relacional é, novamente, realçado. A interação, a

comunicação, a compreensão, a visão integrada doença-doente fazem parte desse modelo,

segundo os entrevistados. O utrossim, a psiquiatria, enquanto disciplina, é necessariamente

interdisciplinar, precisando de uma abordagem global, psíquica e somática, do processo

patológico. Ou ainda: o sistema psiquiátrico de atendimento deveria, em tese, ser constituído em

forma de rede — alguns entrevistados defenderam a setorização — juntando várias abordagens

clínicas e tendo uma relação de complementaridade com o resto do sistema médico.

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227

XI. Capítulo VI

A. Relações profissionais no trabalho

1. Interação e prática

A partir deste capítulo, a discussão ficará menos restrita ao campo representacional

propriamente dito, deslocando seu foco de análise para o campo das interações profissionais.

Evidentemente, o exame das representações profissionais permanecerá como uma preocupação

constante, até porque interações e representações estão correlacionadas. Mas, nos tópicos

anteriores, as relações profissionais eram tangenciadas pela análise das representações e, quando

muito, diziam respeito predominantemente às interações entre os próprios psiquiatras. Agora,

focaremos a atenção nas relações entre os psiquiatras e os outros profissionais do campo de saúde

mental, o que levantou a necessidade de uma análise mais detalhada das, aqui chamadas, práticas

profissionais. Tal necessidade adveio igualmente do próprio momento da pesquisa, pois, ao

examinarmos as relações profissionais, a metodologia exigiu uma complementação entre as

entrevistas e as observações no terreno empírico — a observação propiciou um instrumento de

investigação mais adequado à perscrutação do modo pelo qual ocorrem e se estruturam as

interações profissionais no local de trabalho. Ora, observar as interações entre profissionais

implicou ainda compreendê- las enquanto práticas. E, chegando a tal ponto, tornou-se

indispensável perceber as inserções das práticas no seu contexto de ação, o que significou

analisar também a sua delimitação pelas normas e regras do espaço profissional.

Não tivemos, contudo, interesse em examinar todo o espectro de práticas e interações

profissionais, até mesmo porque isso seria impossível; por isso, focamos nossa atenção no

trabalho envolvido nas equipes multiprofissionais, cuja concepção e modo de funcionamento

produziram exacerbadas polêmicas entre os entrevistados, denotando provavelmente desafios

identitários. Ora, o trabalho em equipe necessita de interações multiprofissionais e práticas

específicas que, para produzir algum resultado, exigem competências cognitivas singulares e todo

um jogo de negociação em torno do status e da pertinência de cada saber profissional. Além do

mais, as discussões e as decisões realizadas em grupo geram disputas e conflitos, de cuja

observação pode-se trazer à tona os diversos momentos de afirmação e de insegurança dos

entrevistados quanto à legitimidade do saber psiquiátrico.

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228

Mas como tais interações podem ser compreendidas enquanto práticas? Ora, não

queremos examinar apenas o tipo convencional de prática que visa sobretudo objetos materiais,

correspondendo a um modelo de atividade que podemos chamar de ação material — não

queremos examinar o que alguns marxismos chamam de práxis (Vasquez, 1977). Na verdade,

temos em vista um exemplo de prática que possui como alvo a comunicação social115. Não seria

uma atividade que produziria um objeto alheio aos agentes da ação ou à própria atividade, mas

sim que teria seu fim em si mesma — a ação moral seria um exemplo desse tipo de prática. Seria

uma atividade criadora e reprodutora, mas produtora e reprodutora de símbolos, de significados e,

no caso que nos interessa, de interação social. Certo, ela não cria nem reproduz toda forma de

interação social, mas sim uma específica, embora bem abrangente no mundo social, relacionada à

comunicação — seria o que Habermas (1987) denomina de ação comunicativa, um tipo de ação

que produz mediações criativas a partir das interações sociais.

O leitmotiv dessa prática é a linguagem, sendo uma atividade, portanto, relacionada ao

uso da palavra — o uso prático da linguagem visa a comunicação no meio social. E, dependendo

tão intrinsecamente da comunicação, pode-se dizer que é uma ação bem mais imprevisível do que

a atividade material, pois dependeria das vicissitudes das interações sociais. Como está inscrita

nas interações sociais, não é dominada pelo modelo da prática material ou instrumental, baseada

na relação sujeito/objeto (tipo agente/paciente ou meios/fins), e sim fundada na relação

sujeito/sujeito. Seria, assim, fundamentalmente intersubjetiva, envolvendo necessariamente a

intencionalidade. E, sendo intencional, podemos deduzir que o sujeito da ação, inclusive por

apresentar uma capacidade reflexiva, pensa sobre a sua prática, possuindo uma reflexividade

pragmática (Habermas, 1987; Giddens, 1987).

Na realidade, toda prática é uma ação mais ou menos intencional. A ação comunicativa,

contudo, centra seu foco na interação, razão de sua intensa intersubjetividade, enquanto a ação

material fixa sua atuação nas relações entre o sujeito e o objeto, através de meios que perseguem

a maximização do resultado. Todas as duas modalidades de ação depende do contexto da ação e

da situação do sujeito. E, dependendo de um sujeito socialmente situado, toda prática estrutura-se

115 Afinal, vamos focar o trabalho em equipe, caracterizado pela discussão e tomada de decisões em grupo.

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229

a partir de papéis sociais, produzindo assim limites para a ação, principalmente em situações

institucionalizadas. Tais limites também impõem restrições no alcance da racionalidade do

sujeito e variações nos graus de intencionalidade. O desenvolvimento da ação possui uma relação

imediata com o modo pelo qual se vincula as capacidades de escolha e de decisão das pessoas às

condições estruturais do contexto, principalmente no que diz respeito a recursos e a relações de

poder que podem favorecer ou não a ativação das competências dos indivíduos.

Interessa-nos particularmente esse jogo entre a estruturação do contexto e a liberdade do

sujeito, pois acreditamos que isso seja fundamental para entender as práticas profissionais, em

particular numa situação de trabalho em equipe. A começar que, dependendo da

institucionalização do espaço de trabalho, as práticas profissionais diferenciam-se de

sobremaneira, seja numa situação em que exista uma forte pressão normativa (prática fechada ou

normativa), enquadrando os indivíduos no seguimento e no respeito às regras, seja numa situação

onde há uma maior flexibilidade nas normas (prática aberta ou significativa), permitindo aos

indivíduos uma maior espontaneidade e uma negociação mais livre com as "regras do jogo". O

que queremos dizer é que a iniciativa cognitiva do indivíduo, num determinado contexto de ação,

é reduzida quando o sistema, no qual está inserido, é fortemente normatizado e quando os

recursos116 são escassos. Por isso, dependendo das pressões do contexto, a prática profissional

pode variar sua configuração de várias maneiras:

• as interações entre os indivíduos, já incertas por definição, podem tornar-se mais

ou menos previsíveis — quanto mais funcionais, mais normatizadas, mais

previsíveis;

• a comunicação social pode fluir mais ou menos simetricamente;

• as tomadas de decisão podem ser mais ou menos negociadas.

Pode-se inferir que tais mudanças na configuração vão interferir nas relações entre as

práticas e as representações profissionais. Geralmente, as representações são instrumentalizadas

pelas práticas ou podem surgir como expressões do exercício profissional e de sua inserção no

116 Estamos usando a noção de recurso num sentido bem largo: pode ser desde uma relação de poder, passando pelas condições de trabalho, até um quadro de referências sociais (pertença a um grupo, por exemplo) que pode fornecer um apoio afetivo -cognitivo ao indivíduo.

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230

contexto do trabalho. As representações, embora não interpelem imediatamente as ações, são

referências que, muitas vezes, podem estruturar as ações e guiar a prática. Como contrapartida, as

representações podem ser transformadas pelo resultado das ações, principalmente no caso em que

tais atividades mudam ou relativizam as normas ordenadoras do contexto profissional. Além

disso, as representações são também sensíveis às transformações ocorridas nas interações entre os

indivíduos, a começar se tais mudanças re-arranjarem as posições de valor (concepção do objeto

profissional, deontologia, campo do saber...) inscritas no espaço profissional.

Concomitantemente, as representações profissionais seguem os condicionamentos

discutidos acima, a saber: quando as práticas são fechadas, isso significa que há uma forte

pressão normativa e, conseqüentemente, as influências das regras básicas do contexto profissional

predominam em relação às representações do indivíduo — uma prática fechada vem

acompanhada de um sistema de influência poderoso. Quando as práticas são abertas, o contrário

acontece, e as interações sofrem uma influência das representações; logo, as influências são mais

flexíveis, não se esgotando nas normas do contexto profissional, deixando um maior espaço para

a ação das representações.

Embora possamos logicamente examinar as duas modalidades de práticas de modo

separado, as práticas profissionais, na verdade, nunca são completamente fechadas ou abertas,

apresentando ao contrário uma combinação — onde pode predominar um dos pólos — ou uma

complementaridade entre as duas formas. Podemos explicar melhor essa afirmação utilizando os

aportes teóricos de Habermas (1987). Segundo esta posição, não se pode dissociar o mundo

sistêmico (reino da razão instrumental, do trabalho e da relação homem / natureza) do mundo

vivido (reino da razão comunicativa e da interação social) — o agir comunicativo faria a ponte

entre os dois mundos. Sendo assim, toda prática inscreveria no seu movimento tanto sistemas de

ação racional visando a um fim, como processos interativos e comunicativos, relacionados a

sistemas de poder e de legitimidade, como também de liberdade e reciprocidade. A base da

socialização estaria, pelo que se infere, localizada na dinâmica perpétua entre a esfera do trabalho

e os processos de interação social. Assim, voltando à nossa discussão, quanto mais fechada a

prática, mais semelhante à ação instrumental, isto é, mais os meios técnicos e organizativos são

fundamentais no contexto profissional; quanto mais aberta a prática, mais parecida com a ação

comunicativa, isto é, mais as interações entre os indivíduos e as representações são importantes.

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231

As práticas profissionais, dessa forma, devem ser consideradas a partir dessa dupla

modalidade de ação. No entanto, pode-se ainda nuançar tal afirmação: muitas profissões se

alicerçam na interação com o cliente e/ou necessitam, na realização do serviço, de uma forte

integração com outros profissionais — ora, pode-se inferir desses casos que a prática

comunicativa é a ação predominante ou que, pelo menos, deveria ter logicamente a

predominância. E, em relação ao produto do trabalho, já que a prática instrumental diz respeito ao

mundo dos objetos, indagamos até que ponto a realização de alguns serviços profissionais

significa a criação de um objeto alheio ao sujeito ou a sua atividade. Tais serviços, muitas vezes,

dependem de mediações técnicas que utilizam objetos, mas empregam fundamentalmente a

interação e a comunicação sociais como forma de realização da ação. Um serviço como o

médico, por exemplo, utiliza um saber especializado que produz, durante a interação com o

cliente, um conhecimento que, além de poder ser utilizado para produzir novas ações e novas

interações, possui a finalidade de resolver problemas. Aplica-se, nesse caso, um saber a partir da

disposição de uma interação social específica (médico/paciente), com o resultado do serviço

dependendo da manutenção da interação. O resultado não significa a criação de um objeto, e sim

a mudança na disposição da interação e a solução ou não de um problema.

Contudo, se estamos corretos em dizer que a psiquiatria, por exemplo, envolve uma

prática profissional que não produz um objeto como tal, até que ponto, então, pode-se inferir que

possa ser modulada pela ação instrumental, já que esta é, por definição, objetal? Obtém-se a

resposta para esta pergunta discriminando as práticas baseadas na interação. Além da

comunicativa, consideramos a ação regulada por normas — os membros de um grupo social, por

exemplo, agindo conforme a orientação de normas e regras — como uma prática baseada na

interação, embora também tenha uma relação pronunciada com o mundo dos objetos. Nesse caso,

o que determinaria a ação seria a obediência à norma estabelecida. A norma, aqui, seria o

equivalente da linguagem na ação comunicativa, sendo assim uma mediação entre dois pólos de

uma relação. Mas não seria o medium, como no caso do agir comunicativo, entre um sujeito e um

outro respectivo, e sim, mais exatamente, entre o indivíduo e o mundo social. Não seria

propriamente a mediação de uma relação intersubjetiva, orientada apenas para a compreensão, e

sim, mais exatamente, a de uma relação objetiva, orientada para fins. Sendo assim, a relação entre

o indivíduo e o mundo social, mediada por normas, teria um caráter objetivo. Tal relação possui

um caráter instrumental porque é finalizada por um plano de ação, além de supor uma

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232

racionalidade que pode ser objetivada pelo julgamento de um terceiro através de critérios

normativos. Enfim, por comodidade, chamaremos a ação regulada por normas, daqui por diante,

de ação estratégica.

A ação estratégica é uma prática baseada na interação que possui um caráter instrumental.

Entretanto, a ação propriamente instrumental é fundada na relação entre o sujeito e o mundo da

natureza, em que a criação de objetos seria evidente. O mundo da ação estratégica, porém, não é

o da Natureza e sim o Social. Ora, o mundo social é composto de objetos sociais, que não são

naturais nem técnicos, mas também por indivíduos socializados. Na ação estratégica, tais objetos,

através das normas, podem ser fundamentais nas interações entre os indivíduos; entretanto, ao

contrário da ação comunicativa, a ação estratégica visa a maximização do resultado, através do

agenciamento dos sujeitos enquanto objetos. O agenciamento dos sujeitos seria realizado através

do controle normativo da ação. Ao visar um objetivo, ao maximizar o resultado, a ação

estratégica precisa direcionar e controlar a atividade do sujeito, tornando-o um meio para a

realização de um fim.

Se nosso raciocínio tem pertinê ncia, as atividades profissionais baseadas na interação

podem ser definidas pelo jogo entre a ação estratégica e a comunicativa. A instrumentalidade e a

intercompreensibilidade da ação vão depender do contexto profissional e de que modo a atividade

profissional articula suas práticas, seus objetos e seus objetivos. Assim, tanto a ação estratégica e

a comunicativa podem interpelar fortemente o trabalho em equipe como influenciar a atividade

propriamente técnica ou organizativa dos profissionais. Para explicitar melhor tais afirmações,

iremos discutir duas situações concretas, utilizando-as como forma de ilustração do problema.

Nas nossas observações, reparamos que o trabalho em equipe, numa situação com forte pressão

normativa, seguia uma rotina na qual as regras do serviço estavam automatizadas, como se o

objetivo fosse uma economia de esforço. O fundamental da rotina era o respeito às regras e a

conformidade a determinados preceitos técnicos, do tipo observar totalmente as ordens médicas e

administrativas. Acreditamos que as interações aqui são dirigidas prioritariamente por ações

estratégicas visando a disciplina e a obediência às normas do serviço. Em outras situações, por

exemplo, numa instituição em que o trabalho em equipe não era tão normatizado e o poder não

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233

estava tão concentrado117, a rotina era menos uniformizadora, pululava improvisações,

bricolagens e havia espaço para jogos de afirmação identitária entre os diversos profissionais.

Aqui, julgamos que as interações são guiadas preferencialmente por ações cujo foco são a

comunicação, as representações e a identidade — enfim, estamos diante de ações comunicativas,

baseadas na interação e em jogos de identidade.

Em suma, percebe-se que o trabalho em equipe pode apresentar, dependendo do contexto

profissio nal, várias situações nas quais as duas modalidades de práticas aparecem misturadas,

ainda que, seguindo nosso raciocínio, o contexto profissional e a forma de articulação das

práticas delimitam a predominância de um tipo de ação em relação a outro, sendo pontos de

partida para se entender como, em diversas circunstâncias, acontece o domínio das ações

estratégicas nas práticas profissionais. Tal fato pode ocorrer em diversas situações, pois, embora

a interação comunicativa seja dominante, pode estar a tal ponto pautada por preceitos técnicos e

administrativos que as referências às representações e o jogo identitário estariam suplantados

pelas ações estratégicas.

Neste momento, podemos perceber melhor as correspondências que fizemos entre as

práticas fechadas e abertas. Como vimos, focamos o tempo todo nossa atenção nas interações e

suas vicissitudes. Dependendo do contexto, podem ser mais ou menos normatizadas. Tal

afirmação é banal, pois geralmente as interações são regidas por normas e regras; na realidade,

quando dizemos que são "normatizadas", significa que são interações dirigidas para a

maximização do resultado do serviço. Daí o peso das interpelações de ordem técnica e

administrativa na condução da ação — digamos que as interações são enquadradas pela

instituição ou pela organização do trabalho. Já na outra situação, quando estamos diante de

práticas abertas e há uma flexibilidade normativa, as interações são mais independentes da

coerção institucional ou organizativa, estando mais enquadradas pelas representações

profissionais dos indivíduos e pelos jogos identitários.

117 Invariavelmente, pelo que observamos, quando existe concentração de poder numa equipe, a centralização e a coordenação das ações estão sob o domínio do médico.

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Pode-se tentar resumir a discussão no seguinte quadro118:

Práticas Normas institucionais ou organizativas

Tipo de Ação Inserção do profissional

Tipo de Interpelação

Práticas fechadas (normativas)

Pressão normativa (+) ação estratégica

(-) ação comunicacional

heteronomia técnica e administrativa

Práticas abertas (significativas)

Flexibilidade normativa

(+) ação comunicacional

(-) ação estratégica

autonomia Representações e jogos identitários

Se estamos corretos, a autonomia do profissional vai depender das normas que organizam

seu serviço, dos recursos à disposição (condições de trabalho), das regras que regem a sua prática

e do poder heurístico de referências simbólicas tais como representações, valores de grupo e

posições identitárias. Assim, quando as práticas profissionais não entram em contradição com as

normas, e no momento em que as atividades são estabelecidas em comum acordo no grupo,

correspondendo a crenças mais ou menos partilhadas, a prática profissional sofre um forte

condicionamento afetivo-cognitivo e uma marcante orientação das representações profissionais.

Contudo, pode existir uma situação em que a interpelação institucional é fraca e as

orientações do grupo de trabalho não são consensuais ou não apresentam uma influência muito

forte. Geralmente, tal condição manifesta-se, entre outras situações, da seguinte forma:

• em instituições onde a característica do trabalho não implica uma forte

institucionalização das ações, nem uma necessária mobilização do grupo;

• em instituições nas quais não há controle de parte a parte (anomia institucional) e

há poucos recursos materiais e simbólicos, inclusive os que poderiam impor

normas e crenças.

118 Seguimos, aqui, o trabalho de Blin (1997).

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Em tese, o leque de escolhas não é diretamente predeterminado pela organização do

trabalho ou pelo consenso do grupo, deixando o indivíduo com uma maior liberdade de escolha.

Mas, no segundo exemplo, a situação é mais complicada, pois, embora o indivíduo não sofra

injunções para determinar sua ação, sua margem de liberdade é limitada pela falta de recursos e

pela ausência de regras que otimizem a atividade. O que sobra, realmente, são comportamentos

individualizados nos quais as referências às representações profissionais são onipresentes,

embora não sejam partilhadas. O lema é "vire-se como puder"119...

Mas, se discutimos acima situações onde as representações têm algum papel na prática,

como elas ficariam num contexto onde as normas são imperativas, isto é, onde a ação estratégica

domina e estrutura todo o espaço profissional? Evidentemente, já respondemos em parte a essa

questão, mas podemos repetir a argumentação, examinando-a do ponto de vista do profissional.

Para tal, imaginamos os seguintes cenários:

Ø quando o profissional considera o sistema normativo reversível, mesmo quando há

uma clara incompatibilidade entre as representações e as normas, ele adotaria

condutas de resistência ou de luta aberta contra as regras do serviço. A prática

sofreria grandes mudanças ou transformações circunstanciadas. No caso em que as

normas permaneçam intactas, provavelmente o profissional protegerá suas

representações (posição identitária), adaptando-as perifericamente e produzindo

mudanças pontuais — as proteções, contudo, serão possivelmente carcomidas pelo

tempo, havendo uma produção de representações intermediárias mais afinadas

com as condições de exercício do trabalho, e as representação antigas sofrerão um

processo de idealização ou simplesmente se extinguirão;

Ø quando o profissional não pode deixar de aceitar de alguma maneira as normas da

organização do trabalho, considerando-as irreversíveis, o discurso (sobre a

vocação e o objeto profissional, por exemplo) seria racionalizado, e as

representações seriam conformadas à situação, podendo apresentar adaptações

notáveis ou mesmo mudanças marcantes120. É provável que o profissional defenda

119 Percebemos essa conduta nas condições de trabalho que imperam no hospital público... 120 Pensamos no caso de um psicanalista trabalhando num serviço alopático e hospitalar...

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236

suas representações através de mecanismos de defesa (justificação, racionalização,

substituição...), cujas produções ideativas acoplar-se-ão nas representações,

causando mudanças periféricas ou substanciais no seu conteúdo. Caso não haja a

possibilidade até mesmo de se utilizar mecanismos de defesa, a probabilidade é

forte de as representações sofrerem mudanças brutais;

Ø existiria, é claro, situações nas quais ocorreria, apesar da pressão normativa, uma

compatibilidade entre as normas e as representações profissionais. Neste caso,

normas e representações confundir-se- iam, reforçando a significação global da

representação. A interação seria determinada por normas e representações

diretamente instrumentais. Tal situação seria ideal no caso da cirurgia, por

exemplo, um tipo de medicina que exige uma base técnica acentuada e interações

que visem expressamente a otimização do resultado. Já quanto às medicinas que

exigem a interação, inclus ive como garantia do resultado, a completa

determinação (representação + norma) instrumental da interação traria

provavelmente efeitos contraproducentes.

De qualquer forma, mesmo que a prática seja completamente imposta, ela precisa, pelo

menos hipoteticamente, ser de alguma forma apropriada e integrada ao sistema de representações

do profissional, senão estaremos diante de uma crise vocacional ou de identidade completamente

paralisante. A integração é o resultado, muitas vezes apenas transitório, de um processo que

envolve diversas transações entre as representações do profissional, as normas do serviço e os

valores do grupo. Tais transações podem ser consideradas um jogo identitário, no qual o

profissional projeta sentido sobre sua ação a partir das suas interações com o meio institucional e

com os outros profissionais. Percebe-se com nitidez tal fato na análise concreta do trabalho das

equipes, no qual a interação entre os profissionais é fundamental e, por isso mesmo, a

necessidade de adaptação e de confo rmidade entre os indivíduos de diversas profissões torna-se

tão importante. Apesar das diferenças e dos possíveis conflitos entre as normas do serviço, as

identidades e as representações profissionais, haveria uma busca de consenso — a procura de um

campo mínimo de ação — com o intuito de levar adiante o trabalho.

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237

a) Prática, consenso e equipe multiprofissional

Neste tópico, nosso ponto de partida será justamente a questão do consenso apenas

assinalada acima. Tentaremos mostrar a sua importância na análise das relações entre a prática e

o modo de organização das equipes multiprofissionais. Pois, enquanto tal, a busca do consenso é

uma característica marcante de determinadas formas de organização do trabalho. Sua necessidade

surge, fundamentalmente, nas instituições onde o trabalho em equipe é valorizado. Buscá-lo é

desejável, pois o campo institucional médico, em particular o psiquiátrico, envolve competências

profissionais diferentes, cuja interdependência é objetivamente necessária para a realização das

ativid ades do serviço. Há uma imperiosa necessidade de entendimento e do estabelecimento de

um mínimo campo comum de ação.

Claro, a divisão de trabalho e a interdependência profissional, por si só, não tornam

inevitável a procura do consenso. O serviço pode funcionar simplesmente utilizando uma

hierarquia e uma centralização de poderes, dispensando a necessidade da construção de um

consenso, pois as decisões não seriam propriamente consensuais e sim impostas de cima para

baixo. O consenso é desejável e necessário, na verdade, quando a organização do serviço é

organizado por valores que exigem a participação dos profissionais. No campo psiquiátrico, tais

valores entraram em cena historicamente com a hospitalização do antigo asilo, império da

hierarquia e do monopó lio de poder do psiquiatra. A hospitalização correspondeu a uma

democratização na organização do trabalho, bem como à valorização crescente das outras

profissões do campo da saúde mental (enfermagem, psicologia...). A concentração do poder nas

mãos dos psiquiatras diminuiu consideravelmente e a hierarquia foi se tornando cada vez mais

funcional e horizontal.

Em tal modelo organizativo, pelo menos enquanto ideário, a participação dos

profissionais nas tomadas de decisão é estimulada e colocada como condição sine qua non do

consenso. Logo, para haver consenso é preciso participação121. Não é o acordo que o

caracterizaria, e sim a associação entre os indivíduos. Somente desse modo as atitudes e as

decisões individuais tornam-se atitudes e decisões sociais, isto é, partilhadas e construídas

121 A partir daqui seguimos as posições de Serge Moscovici & W. Doise (1992).

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238

socialmente num grupo de profissionais. Mas, se o consenso depende da participação, infere-se

que o tipo de participação é fundamental para a qualidade do acordo entre os profissionais.

Moscovici e Doise (1992) defendem que, num grupo no qual é possível uma participação livre de

pressões, o indivíduo tende a polarizar o seu discurso. Ocorreria uma polarização de grupo em

que o consenso é estabelecido a partir dos extremos, isto é, a partir das posições que polarizam as

discussões no grupo. Tal tese é interessante, porque vai de encontro a posições que afirmam que,

nas discussões coletivas, os indivíduos procuram o meio-termo ou o compromisso. Contudo,

oferece uma certa limitação, pois a construção do consenso geralmente acontece em situações nas

quais a participação ocorre sob uma pressão normativa. Tendo consciência dessa limitação,

podemos inferir algumas hipóteses sobre a relação entre consenso e participação (1992):

Ø há uma relação de reciprocidade entre a participação e as interações. A qualidade

das interações seria fundamental na estruturação da participação do indivíduo,

sendo mais importante, na tomada racional das decisões, do que a competência dos

indivíduos

Ø o consenso estabelece-se a partir dos extremos preferidos (polar ização no grupo)

quando a participação não é coagida por normas e regras que constranjam a

liberdade de opinião do indivíduo;

Ø quanto mais intensa e mais livre a participação, maior a implicação do indivíduo

nas tomadas de decisão do grupo. A implicação significa que o indivíduo está

engajado nas discussões e nas decisões, e que tomou partido e posição nas

deliberações coletivas. Ao se engajar e ao tomar partido, o indivíduo inscreve suas

posições de valor (representações, cultura profissional...) nas discus sões e nas

decisões do grupo. Num grupo estruturado para o trabalho em equipe, a

implicação do indivíduo leva-o na direção de suas posições e valores; assim, caso

a implicação torne-se coletiva, os indivíduos são levados na direção das crenças e

valores do grupo;

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239

Se tais hipóteses têm alguma pertinência e, ao mesmo tempo, remetermo-nos ao debate

anterior sobre as práticas fechadas e abertas, pode-se inferir duas formas gerais de

participação122:

Ø consensual: envolvem grupos onde as práticas abertas imperam e, portanto, há

participação e implicação dos profissionais — cada indivíduo pode ter acesso às

decisões coletivas. Há engajamento e a performance dos indivíduos é a medida de

sua participação. Havendo discussão, ocorrem as polarizações de grupo,

produzindo tensões e, ao mesmo tempo, movimentos de reconciliação no sentido

de uma ação conjunta. O consenso é construído, assim, a partir do dissenso e da

recomposição das posições em torno de valores e representações partilhadas pelo

grupo. O acordo é fundado, segundo Moscovici e Doise, a partir dos conflitos

sócio-cognitivos (choque entre posturas afetivas, representações e posições de

valor) que precederiam as tomadas de decisão (1992);

Ø normativa: envolvem grupos onde o peso da hierarquia e a pressão normativa

influem na tomada de decisões. Há uma regulação das possibilidades das decisões.

Estamos no reino das práticas fechadas. Há um baixo grau de implicação e a

participação, embora muitas vezes obrigatória, é passiva, levando os indivíduos a

buscarem um compromisso nas decisões e a procurarem o meio-termo entre as

diversas posições existentes no grupo. As ações são enquadradas pelas regras e

pela obediência à hierarquia;

Podemos resumir a discussão acima através do seguinte quadro:

Participação Interação Prática Implicação Consenso Ação Consensual Conflitos

sócio-cognitivos

Prática aberta

Engajada Baseado na Polarização

Performativa

Normativa Conformismo Prática fechada

Desengajada Baseado no compromisso

Enquadrada

122 Seguimos, aqui, o trabalho de Blin (1997).

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240

Pode-se acrescentar ainda que cada tipo de participação vai produzir um efeito diferente

nas representações profissionais. Na participação consensual, o profissional, por causa do

engajamento, implica sua representação na sua ação performativa; assim, a representação pode

sofrer transformações e mutações consideráveis, principalmente quando é partilhada pelo grupo.

Já na participação normativa, como não há engajamento, a representação não é ativada na ação.

Cada um mantém a sua representação e procura o compromisso e o meio -termo no processo

decisório, geralmente regulado pela hierarquia e pelas normas do serviço. Conclui-se, dessa

forma, que a transformação das representações profissionais pré-existentes, numa determinada

organização de trabalho, é dependente dos modos de participação e da forma como é estabelecido

o consenso.

b) As condições empíricas do trabalho em equipe

Vamos agora aplicar concretamente todas essas inferências discutidas acima no nosso

material empírico. Antes será importante caracterizar as organizações de trabalho. Para fins de

comparação, dividimos as observações segundo as instituições. A primeira e mais geral divisão

seria ente o público e o privado. Assim, na esfera pública, examinamos o trabalho em equipe e as

reuniões num hospital fechado e num hospital aberto (hospital-dia); na esfera privada,

examinamos o trabalho numa clínica privada.

No hospital fechado, observamos a mecânica do trabalho, as discussões e as tomadas de

decisões em todas as enfermarias. No hospital-dia, observamos de forma geral os procedimentos

de trabalho e as reuniões no serviço, aberta a todos os profissionais. Já na clínica privada,

observamos as atividades profissionais no local de trabalho.

No hospital psiquiátrico público (HPP), estamos diante de uma situação na qual a

interpelação institucional é fraca e, em tese, o psiquiatra tem uma autonomia profissional

relativamente grande. Contudo, os recursos humanos, organizativos e materiais são tão escassos

(incluindo os baixos salários) que relativizam a margem de manobra do profissional. Na verdade,

o psiquiatra é mais independente do que autônomo, isto é, suas ações não sofrem tanta

interferência externa (normas e regras do serviço), mas são limitadas pelas condições de trabalho,

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241

impedindo-o de formular de forma autônoma as normas de sua atividade. As regras e as normas

do serviço existem, evidentemente, mas têm pouca eficácia no enquadramento da conduta

profissional. Na forma, até que poderiam, caso fossem completamente aplicadas, produzir uma

pressão normativa que enquadraria as atividades profissionais. Não é o que ocorre. Talvez, para

isso acontecer, fosse necessária uma articulação entre uma melhoria geral dos recursos e uma

pressão administrativa da hierarquia no serviço.

O que existe, no fundo, não é uma flexibilidade normativa, e sim um relaxamento ge ral

das regras do serviço (o que chamamos de anomia institucional) devido à falta de recursos,

incluindo os recursos de poder que poderiam ser utilizados pela administração para impor a

ordem. Nossa impressão foi a de que não existe legitimidade para a cobrança, por parte da

hierarquia funcional e administrativa, de ações profissionais condizentes com as normas

existentes. Não existe legitimidade na exigência de compatibilidade entre normas e atividade

profissional, pois os baixos recursos não são funcionais a uma articulação ideal entre o

desempenho profissional e o trabalho no serviço. A maioria das regras torna-se pro forma,

sofrendo na prática uma adaptação geral às condições dos recursos disponíveis. Exigir que se

respeitassem as normas do serviço poderia paralisá-lo, pois não haveria recurso para tanto. O

jeito é respeitar as regras quando puder, adaptá-las quando necessário e ignorá- las de quando a

quando. Os profissionais têm mais ou menos consciência do "jeitinho"123, e muitos justificaram

que são obrigados a adotá- lo para garantir um mínimo funcionamento do serviço.

No hospital-dia, os recursos são, proporcionalmente, um pouco maiores do que no

hospital fechado, até porque a quantidade de paciente, de profissionais, principalmente de

psiquiatras, e a própria estrutura do serviço são menores. Não encontramos propriamente uma

anomia institucional e sim uma tentativa permanente de combatê- la. O "jeitinho" existe, mas não

é realizado de maneira individualizada ou isolada, e sim coletivamente, tentando adaptar ao

máximo as condições de trabalho do serviço às normas vigentes. Aparentemente, há uma

predisposição dos profissionais em trabalhar de forma coletiva, incentivado talvez pelo lema

maior, dito informalmente por uma psicóloga, "todos estão mesmo no mesmo barco...".

123 Ou adaptação. A noção de "jeitinho" foi empregada por alguns entrevistados, bem como por membros da enfermagem e da administração do HPP.

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242

Provavelmente, essa situação seja condicionada pelas próprias características da população de

pacientes. São pacientes relativamente estáveis ("compensados", no jargão) que necessitam de

mais atenção psicoterápica do que clínica, bem como uma preocupação com a sua re-inserção

social — um ambiente de trabalho onde, em tese, o papel do psicólogo e do serviço social seria

relevante; enfim, um ambiente "relacional", necessitando de interações e um certo grau de

cooperação coletiva. Acreditamos, desse modo, que não foi uma mera coincidência encontrarmos

psiquiatras que ou eram psicanalistas ou profissionais que fizeram uma formação analítica, sendo

assim predispostos a um trabalho "relacional".

Já na clínica privada, o que há é um enquadramento dos profissionais pelas normas do

serviço, e os psiquiatras, apesar de manterem uma certa independência profissional (controlam as

regras da intervenção clínica), não têm tanta autonomia profissional (não controlam as regras do

serviço). O "jeitinho" existe, mas é mitigado e, geralmente, apenas no sentido de garantir uma

outra jornada de trabalho. Não há anomia institucional, mas sim o esforço de se seguir as regras e

de se instituir práticas fechadas. Nas entrevistas, foi-nos revelado que o controle era maior, com o

profissional sentindo-se mais fiscalizado na realização do seu trabalho. Outra questão importante

encontrada nos discursos, foi a relação entre conformismo com as regras do serviço e a falta de

estabilidade no emprego. De fato, tal situação cria objetivamente uma relação de forças ingrata da

qual o profissional não pode tirar proveito, deixando-o numa posição de subordinação.

Aparentemente, no HPP, o "jeitinho" não se reduz ao problema da articulação entre as

normas do serviço e a atividade profissional, pois repercute, inclusive, na questão da

contribuição-retribuição, isto é, na relação entre a carga horária a ser cumprida pelo profissional e

o salário recebido. Todos os profissionais do HPP afirmam de forma enfática que recebem um

péssimo salário, argumentando que o valor da contribuição (tempo de trabalho) não corresponde

ao valor da retribuição (salário recebido)124. Por isso, em particular os psiquiatras, como não há

dedicação exclusiva, muitos têm uma dupla ou mesmo uma tripla jornada de trabalho, exercendo

a profissão em outras instituições, geralmente clínicas privadas ou consultórios. Ora,

principalmente entre os psiquiatras, observamos um comportamento que, nitidamente, redefine a

124 "Esse trabalho aqui é uma exploração, pois eu ganho uma porcaria" — como disse um entrevistado; afirmação que foi dita de várias formas, inclusive de maneira eufemística.

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relação entre a contribuição e a retribuição: os psiquiatras, com exceção de um, não assumem

toda a carga horária do serviço, seja chegando atrasado, seja saindo mais cedo125. A redefinição

da relação contribuição-retribuição, assim, seria a seguinte: diminui-se o tempo de trabalho,

compensando aparentemente o baixo valor da retribuição. Porém, na verdade, diminui-se a carga

horária, ao mesmo tempo em que se aumenta a intensidade do trabalho. Todo o trabalho, de fato,

é realizado com rapidez126, permitindo que o profissional possa sair mais cedo, sem prejudicar,

em princípio, a realização do serviço. Os psiquiatras são pagos pelo tempo de trabalho (seis

horas, por exemplo), contudo, como precisam trabalhar em outro local, justamente para

compensar o baixo salário, saem do HPP antes de se completar toda a carga horária. Para is so,

compensam a inobservância da carga horária completando todo o trabalho necessário com o

máximo de rapidez. Pode-se argumentar evidentemente que, elas por elas, a intensidade do

trabalho compensa a redução do tempo de trabalho — o que não evita, sem dúvida, a perda da

qualidade do serviço, mas tudo isso permite ao profissional que mantenha mais de uma jornada

de trabalho, ao mesmo tempo que gera a ilusão de que, diminuindo o tempo de trabalho, diminui

o valor da contribuição, nivelando-o ao valor da retribuição127.

Observamos, também, esse tipo de comportamento no hospital-dia e nas clínicas privadas,

embora com maior parcimônia. Aparentemente, a conduta é mais velada e sujeita a adaptações.

Mas o objetivo é o mesmo: permitir ao psiquiatra a manutenção de várias jornadas de trabalho,

redefinindo a relação contribuição-retribuição. Um comportamento, vale frisar, que não é

explicitado pelos profissionais, embora seja assumido diante de um questionamento direto. O

discurso é velado, com toda uma série de racionalizações justificando a postura, ainda que, no

limite, reconheça-se a contradição evidente dessa conduta com as normas e regras do serviço.

Portanto, o "jeitinho" tem várias conseqüências, inclusive em relação às práticas. Certo, o

"jeitinho" vai oferecer uma certa liberdade ao psiquiatra e, portanto, um certo poder de decisão,

principalmente no hospital-dia. Assim, a abertura ou não das práticas no local de trabalho vai

depender essencialmente da postura do profissional ou, em outras palavras, de sua "cultura

125 Exemplo: um psiquiatra que tem uma carga horária de seis horas, trabalhará assim apenas quatro, pra mais ou pra menos. 126 Consultas, reuniões e atendimentos aos pacientes, por exemplo. 127 Contudo, existiram várias situações onde o profissional, inclusive o psiquiatra, não intensificavam o trabalho, deixando várias tarefas por fazer.

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profissional", principalmente numa situação como a encontrada na organização de trabalho do

HPP, onde o modus faciendi segue a tradição de "todo poder ao médico"128 — tudo indica que,

em tal ambiente, a autonomia dos outros profissionais da saúde mental é bem mais restrita do que

a dos médicos. No hospital-dia, ao contrário, o "relacional" condiciona as práticas com um peso

semelhante ao das normas institucionais — na realidade, o "relacional" funciona como uma

norma do serviço. Nessa situação, o poder do psiquiatra encontra-se relativamente diminuído em

detrimento da enfermagem e, principalmente, da psicologia. O ambiente parece ser mais

favorável ao trabalho em equipe alicerçado em práticas consensuais. Já na clínica privada, o

psiquiatra tem pouca margem de manobra, logo, pouca iniciativa. Ele está no topo da hierarquia

profissional, mas ainda subordinado às regras do serviço ou, em outras palavras, ao (s) dono (s)

da clínica. Há trabalho em equipe, mas sob uma estrita coordenação médica e com uma nítida

pressão normativa.

No HPP, percebemos melhor a iniciativa dos profissionais, observando os procedimentos

de dois psiquiatras que eram os responsáveis pelas enfermarias nas quais estávamos alocados.

Havia uma diferença na postura dos dois profissionais que provinha fundamentalmente de suas

representações profissionais. Por exemplo: um dos psiquiatras era mais tradicional, admitindo o

trabalho em equipe, mas sob estrita coordenação médica: todo o procedimento era controlado

pelo psiquiatra — diagnóstico, tratamento, prognóstico e alta. Não só possuía a última palavra,

mas a iniciativa na tomada de decisões. Nessa enfermaria, as práticas podem ser consideradas

como um meio -termo entre fechadas e abertas, justamente por combinar o trabalho em equipe

com uma alta centralização das decisões nas mãos do psiquiatra — no caso, a prática torna -se

fechada menos pela pressão normativa proveniente das regras do serviço do que pela imposição

de uma hierarquia profissional. Contudo, quanto ao tipo de participação, perc ebemos que, por

causa do quase monopólio das decisões, assemelha-se mais ao tipo descrito como "normativo",

em que os membros adotam sem muita discussão as decisões do psiquiatra, evitam atos

problemáticos, assumindo um nítido conformismo com as condições de trabalho. Na outra

enfermaria, o profissional tinha como posição de valor o trabalho em equipe, não encarnando

uma posição normativa e decisória no ambiente de trabalho. As decisões eram produzidas pela

128 O hospital psiquiátrico ainda é o herdeiro do asilo psiquiátrico e, como tal, reproduz seus condicionamentos: exclusão do paciente e poder do alienista, agora substituído pelo psiquiatra.

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dinâmica das discussões em grupo. Pode-se dizer que, nessa enfermaria, as práticas eram abertas,

já que a participação dos profissionais era consensual, permitindo que os procedimentos do

serviço fossem controlados, de fato, pelo grupo e não pelo psiquiatra.

Apesar das diferenças, as duas situações têm muito em comum, a começar que a iniciativa

das mudanças, principalmente a instauração de fato do trabalho em equipe, nos dois casos, partiu

dos psiquiatras. Ao mesmo tempo, as duas situações possuem, no fundo, um caráter

experimental, preenchendo inclusive um vazio normativo, já que, do ponto de vista formal, as

normas do serviço não previam nem validavam o trabalho em equipe. Por isso, talvez, a dinâmica

de grupo fosse construída cautelosamente, com vários recuos e muitos impasses, embora as

atividades, na primeira situação, fossem mais previsíveis, até porque a hierarquia e a

centralização das decisões preestabeleciam rapidamente as condutas "adequadas" ao serviço;

enquanto que, na segunda situação, ocorria a necessidade de, a todo momento, restabelecer o

consenso diante de cada novo acontecimento. De todo modo, as experiências estavam, nas duas

enfermarias, completamente particularizadas e restritas ao local de trabalho — não encontramos

outras experiências do mesmo tipo no restante das enfermarias do HPP129.

Na verdade, nas outras enfermarias, encontramos o que poderíamos chamar de situação

anômica: as atividades de trabalho eram de praxe e, praticamente, não existiam reuniões, havendo

um reduzido engajamento por parte dos profissionais seja nas interações profissionais, seja na

melhoria do serviço. Os problemas eram resolvidos caso a caso, na maioria das vezes

individualmente, somente ocorrendo a consulta ao psiquiatra quando havia algum impasse. Como

disse informalmente uma enfermeira: "nosso método de trabalho é 'empurrar com a barriga" —

o que talvez signifique, se nossa interpretação é válida, uma espécie de repetição mecânica de

procedimentos baseados na mera manutenção do cotidiano do serviço. Tal método conferia até

algum poder e responsabilidade ao psiq uiatra, já que, em tese, a tomada de decisões ficava sob

sua alçada; contudo, na prática, o alcance de seu poder e de sua influência não ultrapassava a

129 Contando com as duas examinadas, o HPP possuía seis enfermarias ao todo.

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simples reprodução do dia-a-dia do serviço, isto é, o poder de se continuar, como já foi dito,

empurrando tudo com a barriga...130.

Mas a descrição acima não responde a uma questão: por que em tais enfermarias não

havia, por menor que seja, um trabalho em equipe? Dissemos há pouco que a abertura ou não das

práticas dependeria fundamentalmente da iniciativa do psiquiatra. Por que, nesse caso, os

psiquiatras não tiveram a iniciativa, como no caso das duas enfermarias examinadas, de

implementar o trabalho em equipe? Eles seriam contra esse tipo de organização da atividade

profissional? Tudo indica que não. Na verdade, o problema complica-se mais ainda quando

sabemos, através das entrevistas, que todos os psiquiatras compartilham a crença de que o

trabalho em equipe é necessário e benéfico ao hospital psiquiátrico. Portanto, a resposta não se

encontra nas representações dos psiquiatras. Talvez, encontre-se nas diferentes condições de

trabalho apresentadas nas enfermarias. Contudo, salvo engano, exceto a enfermaria dos

"agitados", todas as enfermarias eram iguais, apresentando as mesmas condições de trabalho e os

mesmos tipos de profissionais. Logo, aparentemente a resposta não se encontra nas condições de

trabalho das enfermarias.

Na falta de dados suficientes para uma explicação do problema, podemos postular, pelo

menos, algumas hipóteses ou argumentações, tomando como base inclusive os depoimentos

prestados pelos psiquiatras:

Ø a iniciativa dos psiquiatras exige uma mínima implicação no trabalho. Caso a

implicação do profissional seja significativa, ocorre um engajamento e uma maior

participação nas tomadas de decisão no local de trabalho. Assim, dois psiquiatras

colocaram que não se sentiam implicados no trabalho do HPP. "Eu faço o que

tenho que fazer, mas não tenho tempo para mais nada...", afirmou um deles,

concluindo que construir um espaço onde se possa trabalhar em equipe exige

esforço e tempo — a questão do tempo, aqui, é fundamental, pois a implicação

envolve um mínimo de investimento profissional no trabalho, e isso demanda

tempo. Ora, tais psiquiatras tinham três jornadas de trabalho: hospital público,

130 Como disse um psiquiatra, numa entrevista informal: "você me pergunta se tenho algum poder... Mas que poder é esse se não consigo fazer nada do que quero?!"

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hospital privado e consultório — nesse sentido, tinham que escolher qual o

trabalho mais adequado aos seus interesses; logo, escolher qual o serviço que

poderia produzir- lhes a maior implicação. A contabilidade do tempo e o interesse

dos entrevistados, assim, esclarece o raciocínio: é preferível aplicar o escasso

tempo de investimento profissional, base da implicação, no serviço que melhor

valoriza, segundo os entrevistados, a qualificação profissional: o consultório! A

prioridade, assim, recai completamente no trabalho liberal em detrimento do

serviço público 131 — por isso, inclusive, os entrevistados faziam o possível para

que a maior jornada de trabalho fosse realizada no consultório;

Ø pelo que interpretamos do discurso dos entrevistados, a questão tem, inicialmente,

um caráter pragmático, tipo custo-benefício: qual o serviço que posso mais me

implicar, isto é, em qual investir o maior tempo de investimento profissional?

Depois, o argumento toma outra direção: qual o serviço que valoriza mais minha

qualificação profissional? Ao colocarem o problema da valorização profissional,

os entrevistados querem, pelo que interpretamos, enfatizar principalmente a

valorização salarial: dedicar-me-ei ao serviço onde obtenho a maior renda.

Contudo, se no primeiro momento a renda é um critério importante, no segundo

momento a valorização profissional possui uma relação direta com a questão da

autonomia profissional: dedicar-me-ei ao serviço que me oferecer a maior

autonomia profissional. Inclusive, um dos entrevistados enfatizou de sobremaneira

a autonomia profissional, argumentando que é impossível trabalhar, nas atuais

condições de trabalho, de forma autônoma no HPP. Valorização salarial e

autonomia profissional, assim, definiriam a escolha dos entrevistados,

determinando o seu grau de implicação no serviço;

Ø vale sublinhar que a defesa da autonomia profissional não significa pari passu a

defesa da profissão liberal, aqui representado pelo consultório, pois os

entrevistados colocaram explicitamente que, se fosse mais valorizado o salário e a

autonomia no serviço público, priorizá- lo-iam enquanto tal — os entrevistados

foram unânimes em defender uma compatibilidade entre melhores salários,

131 Os dois psiquiatras que implementaram o trabalho em equipe nas suas enfermarias tinham duas jornadas de trabalho: o serviço público e o consultório.

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autonomia profissional e dedicação exclusiva. A escolha seria pragmática, na

realidade, pela seguinte razão: o serviço é escolhido segundo a valorização da

renda e da autonomia, sem que, aparentemente, representações sobre o modo de

trabalho profissional, liberal ou assalariado, possuam algum peso. Não que tais

representações não tenham importância — justamente ao contrário!132 Contudo,

no caso da maioria dos entrevistados, a defesa da autonomia não implica

necessariamente a defesa de uma modalidade de trabalho profissional;

Ø enfim, o último argumento refere-se às interações profissionais. O psiquiatra

responsável pelo "pavilhão dos agitados" afirmou que o maior obstáculo eram os

próprios profissionais, incluindo ele mesmo, pois não estavam "qualificados" para

a implementação do trabalho em equipe. Argumentava ainda que se referia

especificamente ao trabalho na sua enfermaria, cujas características exigiam uma

qualificação diferente das demais. Pelo que interpretamos, no seu discurso existe o

indício de que a atividade em equipe necessita de uma "mentalidade" adaptada à

constante interação entre os profissionais. Seu maior exemplo é a enfermagem,

cujo quadro profissional é composto, na maioria absoluta, de auxiliares de

enfermagem sem qualificação superior e, por isso, incapazes de realizarem um

trabalho com um mínimo de autonomia, base de uma mentalidade, segundo o

entrevistado, adaptada ao trabalho em equipe. Sem autonomia, os auxiliares de

enfermagem precisam, para a realização de suas tarefas, de uma pressão normativa

alicerçada na hierarquia profissional — em outras palavras, precisam obedecer

estritamente as ordens de seus superiores, os médicos. A última colocação vai de

encontro ao fato de que, nas enfermarias onde funciona o trabalho em equipe,

existiam auxiliares de enfermagem sem qualificação superior. O que os faria,

assim, trabalharem equipe? O que achamos interessante, ao contrário, pois

explicaria melhor o fenômeno, seria a percepção de que existe uma relação entre

um tipo de mentalidade e o trabalho em equipe — determinadas representações

sobre o modo de trabalho favoreceriam o trabalho em equipe, bem como,

132 Os dois psiquiatras — responsáveis pelas enfermarias onde há trabalho em equipe — possuem um discurso de valorização do serviço público. Em tal situação, a valorização ocorre independentemente do papel dado à renda e à autonomia.

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acrescentaríamos, determinadas práticas que envolvessem, por exemplo, uma

participação consensual beneficiariam também essa forma de atividade;

Os argumentos acima podem ser utilizados para explicar por que os psiquiatras daquelas

duas enfermarias tiveram a iniciativa de implementar o trabalho em equipe. Primeiro, eles "só"

têm duas jornadas de trabalho: HPP e consultório, tendo assim mais tempo de investimento

profissional, logo, de implicação no serviço; segundo, defendem o trabalho em equipe, possuindo

a "mentalidade" adequada; terceiro, e talvez tão importante quanto, todos os dois priorizam o

serviço público em detrimento do privado e do liberal. Significativamente, todos os dois, além de

psiquiatras, fizeram a residência médica em medicina social, cuja ênfase no serviço público é

bastante acentuada. Embora aufiram mais recurso financeiro no consultório, a renda não possui

uma significação suficiente para valorizar o trabalho liberal ao ponto de priorizá- lo em prejuízo

do trabalho no serviço público. Certo, o consultório é utilizado para a complementação da renda,

representando inclusive a maior contribuição financeira, mas não pode concorrer com a

valorização vocacional dada ao trabalho no serviço público133. Enquanto nos exemplos anteriores

a escolha do serviço era determinada por critérios de renda e de autonomia, aqui é a

representação do serviço, se público ou liberal (ou, ainda, privado), que é fundamental.

Não foi apenas em relação ao serviço público que encontramos alguma valorização

vocacional, já que o mesmo aconteceu em relação ao trabalho no consultório. Muitos

entrevistados afirmaram que o consultório é o melhor serviço para a realização da vocação

médica, pois é justamente aquele que garante a autonomia profissional. Contudo, não

encontramos numa vocação, digamos assim, para o trabalho no serviço privado. Seria como se o

trabalho numa clínica privada fosse esvaziado de vocação ou missão; como se a questão de

trabalhar em tal serviço fosse meramente pragmática, isto é, empregatícia. De fato, segundo

alguns entrevistados, no serviço privado, eles são meros empregados seguindo as regras do

serviço, sem que ocorra nenhum investimento pessoal no trabalho, exceto o compromisso

profissional de realizar as tarefas de forma eficiente. Enfim, não se sentem "implicados" — pode-

se indagar, evidentemente, até onde vai essa não implicação no serviço privado. Certamente, essa

133 Muitos entrevistados colocaram o trabalho no serviço público como um "ideal", portanto investido de missão e vocação.

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situação não tem relação com toda e qualquer clínica privada em psiquiatria, mas sim com as

concretas, justamente as observadas na pesquisa, e sua forma de organização de trabalho; logo,

pode-se deduzir que, oferecendo uma maior autonomia profissional ao psiquiatra, haveria uma

maior implicação no serviço. De qualquer forma, fica a questão: por que o serviço privado é

desvalorizado? Pelo que interpretamos das entrevistas, o serviço privado é sumamente

desvalorizado na formação universitária, enquanto que o setor público e liberal são colocados

como verdadeiras escolhas vocacionais. As clínicas privadas são, inclusive, identificadas ao lucro

e à falta de autonomia profissional — apesar da precariedade das condições de trabalho no

serviço público, em particular no hospital fechado, muitos entrevistados relataram que se sentem

"explorados" no serviço privado, a despeito do fato de que ali muitas vezes ganhassem mais.

Se tais inferências tentam explicar a implicação do profissional nos serviços psiquiátricos,

prestaremos a atenção agora a um problema correlacionado: o modo de participação dos

profissionais. Como tal, está relacionada às questões discutidas acima, pois o modo de

participação pode elucidar alguns problemas concretos da implicação. Observamo- lo em todos os

serviços; no caso do hospital fechado, examinamos todas as enfermarias, inclusive definindo a

participação nas enfermarias, onde não há trabalho em equipe, como "anômica", fazendo assim

contraponto às duas outras formas de participação já assinaladas, a consensual e a normativa. De

nossas observações, retiramos seis itens que podem ser definidos como "indicadores de

participação". Para cada item, fizemos a descrição do modo de participação.

Função das reuniões: as reuniões são situações privilegiadas para denotar o modo de

participação, pois podemos, através da observação, perceber o tipo de enquadramento que sofre o

participante. Nas duas enfermarias onde havia trabalho em equipe, as reuniões aconteciam

diariamente, enquanto nas outras, semanalmente; no hospital-dia, as reuniões eram diárias; na

clínica privada, semanais. Assim, percebemos as seguintes características e diferenças:

Consensual: transmissão das informações; troca e confronto de opiniões; procura de

soluções, tomada coletiva e respeito às decisões — não encontramos, de fato, equipe alguma sem

coordenação médica. De qualquer forma, na participação consensual, a gestão do médico é

menos hierarquizada do que na participação normativa, principalmente nas condições de trabalho

do hospital-dia;

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ü normativa: transmissão de informações; troca de opiniões a partir da avaliação do

psiquiatra; hierarquia na tomada de decisões;

ü anômica: transmissão dispersa de informes; assentimento da rotina do serviço;

hierarquia na tomada de decisões.

Liderança: observamos o modo pelo qual eram tomadas as decisões no grupo. A observação da liderança mostra bem como ocorre a circulação das informações, como se toma as decisões e qual o peso da hierarquia:

ü consensual: visivelmente, a liderança era do psiquiatra, embora o entrevistado, no

discurso, admitisse um rodízio na coordenação da equipe. De qualquer forma,

pode-se dizer que a liderança era do tipo democrático, baseado fundamentalmente

na confiança do grupo. No hospital-dia, apesar da nítida coordenação médica,

durante as discussões na reunião, encontramos vários líderes informais, a começar

pelo psicólogo;

ü normativa: o psiquiatra possui aqui o monopólio da coordenação da equipe. Não

há a possibilidade de uma rodízio entre os profissionais. A liderança é firmemente

ancorada na hierarquia profissional, em que o psiquiatra tem uma predominância

evidente;

ü anômica: há hierarquia sem liderança. No fundo, o que acontece é um "laisser-

aller" — cada um assume a rotina do serviço, dá continuidade ao trabalho, pouco

se importando com o serviço do outro.

Comunicação social: aqui, demos a atenção, digamos assim, à forma da comunicação.

Observamos as assimetrias no processo comunicativo, a ocorrência de "ruídos e dissonâncias":

ü consensual: acesso livre à discussão; escuta dos argumentos; criatividade na

elaboração das respostas; participação no debate; desacordos sem

constrangimentos; expressão dos conflitos; escuta dos argumentos — vale dizer

que, devido à liderança consuetudinária do psiquiatra, raramente percebemos

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conflitos ou desacordos frontais com o líder, exceto em algumas situações bastante

circunscritas nas reuniões do hospital-dia;

ü normativa: passividade (mutismo) na discussão, com exceção do psiquiatra;

participação incipiente no debate; esquiva dos conflito e dos desacordos; bloqueio

dos argumentos; conformismo e espera da decisão do líder;

ü anômica: ausência de debate; ausência de conflito; pass ividade e espera ansiosa do

final da reunião;

Tomada das decisões: observamos essencialmente como era obtida a decisão, entendida

como resultado da discussão:

ü consensual: as decisões eram tomadas de forma coletiva, embora não devamos

subestimar o peso da palavra do líder na argumentação e na influência no

resultado da discussão. Como na discussão ocorrem polarizações, a tendência é a

formação de pequenos grupos, apresentando opiniões diferentes, até que um ou

outro grupo apresente uma maior influência no resultado do debate. Enfim, a

decisão era tomada consensualmente, a partir de um leque de soluções;

ü normativa: hierárquica, embora em assuntos incontroversos a tomada de decisão

pudesse ser coletiva. Nessa situação, como dificilmente há polêmica, a influência

ocorre via a percepção de que a maioria está de acordo com determinada posição.

A decisão era tomada por compromisso, seguindo a maioria e a hierarquia;

ü anômica: hierárquica. Mesmo em assuntos incontroversos, a expectativa fica toda

centrada na tomada de decisão do psiquiatra. Há uma conduta passiva, no sentido

de seguir de forma acrítica a decisão hierárquica;

Engajamento na discussão: observamos aqui a qualidade da implicação dos participantes e

a forma do engajamento;

ü consensual: engajamento público e implicação dos membros do grupo na

discussão;

ü normativa: engajamento mitigado e pouca implicação;

ü anômica: ausência de engajamento e implicação.

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Condutas: este item é um prolongamento do anterior, pois aqui observamos um tipo de

comportamento relacionado ao engajamento e à implicação — uma espécie de descrição da

postura do engajamento no grupo. Seriam diversas variáveis que corporificam o engajamento e a

implicação:

ü consensual: assiduidade nas reuniões; exposição de opiniões pessoais; procura do

convencimento do colega; sugestão de soluções; gestão dos conflitos e desacordos;

respeito da decisão e realizá- las na prática;

ü normativa: moderada assiduidade nas reuniões; opiniões de compromisso; procura

da maioria e do argumento "médio"; passividade na sugestão de soluções; esquiva

do conflito;

ü anômica: baixa assiduidade nas reuniões; falta de opiniões e de argumentação;

espera da decisão hierárquica; indiferença às soluções apresentadas.

Pode-se facilmente inferir de toda essa discussão que o modo de participação tem uma

relação com a implicação. Quanto mais anômica a participação, provavelmente menor será a

implicação; quanto mais consensual, maior a implicação. Como vimos, a implicação do

entrevistado possui outras explicações, mas é evidente que, numa situação anômica, o estímulo à

participação será menor e, portanto, menor sua implicação. Pode-se deduzir que, em geral, quanto

maior a participação, maior a implicação; contudo, tal relação dependerá do contexto, isto é, do

modo concreto em que ocorre a participação. E, se existe uma relação entre participação e

implicação, provavelmente há também uma relação entre o modo de participação consensual e o

trabalho em equipe — o tipo consensual favorece as atividades em equipe.

Porém, até que ponto podemos deduzir do modo de participação o engajamento? Nossa

impressão é que nossos "indicadores de participação" apontam muito mais para a forma ou estilo

da participação do que propriamente a alguma determinação do engajamento dos profissionais.

Engajamento envolve implicação e participação, mas principalmente supõe solidariedade com

alguma representação do grupo, isto é, envolve atitudes concretas. Dessa forma, para deduzir o

engajamento dos profissionais, construímos "índices" de engajamento baseados no

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254

comportamento dos participantes das reuniões134. A construção dos índices, reconheçamos, peca

por sua arbitrariedade, mas, apesar da consciência de suas limitações, foi-nos útil como um

instrumento descritivo do engajamento. O que encontramos, de todo modo, não foi uma surpresa,

mas sim a corroboração de que as práticas consensuais favorecem o engajamento. Senão

vejamos:

• primeiro, inferimos alguns comportamos que julgamos importantes para uma

reunião em grupo: 1) assiduidade nas reuniões; 2) atenção durante a falação do

outro; 3) expressão de opinião pessoal; 4) persuasão do outro; 5) sugestão de

soluções; 6) respeito às decisões e sua realização na prática; 7)gestão da polêmica

e do conflito; 8) procura da liderança na discussão;

• segundo, demos pesos (de 1 a 5) diferenciados aos índices: peso 1 para os índices

1) e 2); peso 2 para os 3) e 4); peso 3 para os 5) e 6); peso 4 para o índice 7) e 5

para o 8).

• terceiro, produzimos uma escala com notas de 0 a 3: ausente, fraco, moderado,

forte;

• quarto, produzimos uma escala com as seguintes notações percentuais: muito

engajado (> 80); engajamento forte (60 a 80); engajamento moderado (40 a 60);

engajamento fraco (30 a 40); nenhum engajamento (< 30)

• quinto, produzimos uma tabela com os resultados:

Índices Peso Hospital fechado (enferma rias sem trabalho em equipe)

Hospital fechado (enfermarias com trabalho em equipe)

Hospital-dia Clínica privada

assiduidade nas reuniões

1 Fraco Moderado forte Forte

atenção durante a falação do outro

1 Fraco Moderado forte Moderado

expressão de opiniã o pessoal

2 Fraco Moderado forte Fraco

persuasão do outro 2 Ausente Moderado forte Fraco sugestão de soluções

3 Ausente Moderado moderado Fraco

respeito às decisões 3 Fraco Moderado moderado Moderado

134 Seguimos, aqui, o trabalho de Blin (1997).

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255

e sua realização na prática gestão da polêmica e do conflito

4 Ausente Moderado moderado Fraco

procura da liderança na discussão

5 Ausente Fraco moderado Fraco

Resultado Máximo: 63

07: nenhum engajamento (< 30)

37: engajamento moderado (58%)

48: engajamento forte (76%)

27: engajamento fraco (43%)

Assim, encontramos um engajamento forte justamente no hospital-dia, local onde existem

práticas consensuais, e, claro, numa situação onde imperam práticas anômicas, o engajamento

não existe enquanto tal. Vale frisar que colocamos no mesmo tópico as duas enfe rmarias do

hospital fechado, embora tenham, como já analisamos anteriormente, diferenças no modo de

participação, principalmente por causa das diferentes formas de condução do trabalho em equipe

realizadas pelos dois psiquiatras. Caso separássemos as duas enfermarias, aplicando os critérios

expostos acima, veríamos que a enfermaria, onde a condução das atividades favorece uma prática

consensual, apresentaria como resultado um engajamento moderado para forte, enquanto na outra

enfermaria, onde há a predominância de uma prática normativa, o resultado seria o de um

engajamento fraco.

Mas, se a implicação, o modo de participação e o engajamento têm uma relação com o

trabalho em equipe, o que dizer das representações dos entrevistados? Ora, de toda essa

discussão, podemos concluir que a opinião dos entrevistados a respeito do trabalho em equipe

teve, na prática, uma influência relativamente marginal. Se, de um lado, o trabalho em equipe vai

depender prioritariamente de uma decisão institucional; do outro, caso não seja uma norma

institucional, tudo vai depender da implicação, do engajamento e do modo de participação no

qual está inserido o psiquiatra. Todavia, embora marginal na prática, as representações dos

entrevistados revelaram importantes questões identitárias. Inclusive, não deixa de ser importante

assinalar que houve uma grande polarização: enquanto 26 entrevistados defenderam uma equipe

sem a obrigatoriedade de uma coordenação médica135, 21 entrevistados sustentaram a

necessidade da mesma — já três entrevistados assumiram uma posição sui generis: trabalho em

135 Haveria, no caso, um rodízio na coordenação.

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256

equipe sem funções profissionais, em que todas as diferenciações e especializações seriam

superadas pela atividade coletiva.

Em relação aos dois primeiros grupos, foi notória a preocupação, quase uma obsessão no

segundo grupo, em delimitar as fronteiras profissionais. A inquietação do primeiro grupo seria a

seguinte: a equipe pode trabalhar sem coordenação médica, na base do rodízio, contanto que seja

respeitada a competência de cada profissional. Nesse sentido, todo saber especializado deve ter o

seu locus apropriado, desde que isso não traga privilégio algum. A equipe é multiprofissional,

sendo um espaço de igualdade entre as profissões, onde não há propriamente uma hierarquia e

sim uma horizontalidade baseada na função profissional. "Cada macaco no seu galho" — como

fez alusão um entrevistado. Nessa visão, a autonomia profissional é garantida pela independência

de cada função e pelo respeito que se deve a cada saber. A palavra-chave é a complementaridade

de competências, sem misturas, com fronteiras nítidas.

Já do grupo que defende a equipe com coordenação médica, pode-se dizer que sua

inquietação é mais premente, beirando a ansiedade. A coordenação da equipe é valorizada,

apresentando três exigências: responsabilidade, qualificação e saber profissional abrangente. Ora,

todas as três determinações, segundo os entrevistados, são características marcantes do médico.

Pelo que interpretamos, basicamente o argumento seria o seguinte: como o saber médico (no

caso, o saber psiquiátrico) é o mais abrangente, ponto de referência inclusive das outras

profissões de saúde, seria inevitável que o médico tenha uma maior qualificação e assuma uma

maior responsabilidade. Como disse um entrevistado: é natural que o médico seja o líder, pois é

o mais qualificado — a maior qualificação implica um saber mais abrangente do que todos os

outros do campo da saúde.

Noutras entrevistas, a mediação entre o saber e a responsabilidade foi realizada a partir do

reconhecimento profissional. O saber médico é mais valorizado, logo, mais reconhecido. Mas,

nas argumentações, a responsabilidade não adviria necessariamente do maior status da medicina,

e sim da maior cobrança pela qual é submetida. Sendo assim, a medicina não só teria mais status,

como também seria, por causa disso, mais cobrada e exigida, logo, teria mais responsabilidade.

Com efeito, o problema da cobrança foi, várias vezes, ressaltado pelos entrevistados: Quem

responde pelo paciente é o médico, não é a enfermagem, nem outro profissional — argumentou

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257

um entrevistado. Equipe com rodízio é uma beleza, mas qualquer bronca quem vai responder é o

médico — acrescentou ainda outro psiquiatra. De certa maneira, através do argumento da

cobrança, os entrevistados escapam, principalmente num ambiente onde existe uma sensibilidade

igualitária, da percepção de que a maior responsabilidade da medicina viria do seu status ou

privilégio. Enfatizar a relação entre a responsabilidade e a cobrança tem como estratégia

legitimadora um raciocínio meritocrático: a medicina implica um saber mais abrangente e a

necessidade de uma vasta qualificação, logo, uma competência que engloba ou, pelo menos,

condiciona o campo inteiro da saúde. O reconhecimento profissional, assim, viria mais da

competência de seu saber do que propriamente de seu status — o qual seria um subproduto

meritocrático. Saber ? reconhecimento ? competência ? responsabilidade seria um raciocínio

mais legítimo do que privilégio ou status ? reconhecimento ? responsabilidade.

As diversas argumentações a respeito da responsabilidade da medicina escamoteiam,

também, outro espinhoso problema: a questão do poder. Nenhum entrevistado desse grupo

argumentou que a coordenação da equipe deveria ser médica por causa do maior poder médico.

Não existiu um raciocínio do tipo: maior poder, maior responsabilidade. No máximo, foi

assinalado que o médico tem mais recurso, dado sua qualificação mais ampla, e assim uma maior

capacidade em exercer uma coordenação de uma equipe multiprofissional. O termo "recurso"

pode no limite ser identificado com o de "poder", contudo, o sentido parece ser mais pragmático,

relacionado à capacidade em resolver problemas e encontrar soluções. Como insinuou um

entrevistado, ao ter mais recurso e capacidade, o médico teria uma maior aptidão à

"administração" de uma equipe. Os termos "recurso" e "administração" têm uma função

semelhante à da noção de "cobrança", pois, enquanto esta última ameniza a questão do status da

medicina e sua relação com a responsabilidade, os dois termos escamote iam um poder médico

identificado à dominação.

Os entrevistados, ao defenderem a necessidade da coordenação médica, estavam

preocupados em delimitar as competências profissionais. Se, no grupo anterior de entrevistados,

admitiu-se um rodízio na coordenação, embora fosse sempre ressaltado que isso não devia apagar

as fronteiras entre as profissões, neste grupo, a exigência da delimitação está relacionada à

manutenção da coordenação nas mãos dos médicos. Seria como se, sem coordenação médica,

ocorreria inevitavelmente a mistura de competências e, conseqüentemente, uma diminuição

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258

sensível da performance da equipe. Por que tanto medo da mistura e tanta preocupação em

preservar as diferentes competências? Inferimos que há, aqui, um medo difuso e velado de que o

psiquiatra seja "despossuído" de seu saber e competência. O psiquiatra pode-se transformar,

segundo um entrevistado, num "passador" de medicamentos ou, ainda, tornar-se um profissional

igual a qualquer outro da equipe, perdendo sua identidade e especificidade. Acontecendo a

"despossessão", o procedimento médico-psiquiátrico ficaria espalhado pelo coletivo e, assim, a

tríade fundamental da medicina — diagnóstico/prognóstico/tratamento — seria realizada

coletivamente e não mais através da performance individual de um profissional.

O medo da despossessão não é sintoma apenas desse grupo de entrevistados; na verdade,

encontramo-lo entre quase todos os psiquiatras entrevistados, com exceção dos três já assinalados

que defenderam uma equipe sem delimitação de funções profissionais. O medo, entretanto, é

mais pronunciado entre aqueles que exigem a coordenação médica. Mas, afinal, o medo tem

algum fundamento na realidade ou é uma ilusão, quase uma paranóia? Vários entrevistados

afirmaram que o medo baseia-se numa possibilidade que pode tornar-se realidade daqui a algum

tempo. Ora, numa equipe de saúde mental interdisciplinar, por que a enfermagem ou a psicologia

não poderiam emitir diagnósticos? E o tratamento e o prognóstico? Por que tais procedimentos

seriam monopólio dos psiquiatras? Um entrevistado alegou que, em tese, não há interdito técnico

algum para que um psicólogo, por exemplo, possa dar um diagnóstico psiquiátrico. E que seu

medo, caso seja permitido o fim das delimitações das tarefas profissionais, é que ocorra uma

diminuição considerável da valorização profissional do psiquiatra. O psiquiatra seria "rebaixado"

(sic), tendo o mesmo valor de um enfermeiro ou de um psicólogo. Mesmo a parte clínica já é

realizada por um clínico... O que iria sobrar pra gente? — disse o entrevistado. Iria sobrar

apenas a administração de medicamentos, pois até a psicoterapia teria a concorrência dos

psicólogos.

Na realidade, o nó da questão seria justamente esta: a possibilidade técnica ou não da

enfermagem ou da psicologia, por exemplo, darem conta de alguns, quando não da totalidade dos

procedimentos médicos. Com exceção de quatro entrevistados (o logo acima descrito e os outros

três já citados), todos os entrevistados colocaram que as tarefas realizadas por um psiquiatra

exigiam justamente a qualificação e a especialização de um... psiquiatra. Não haveria a

necessidade, para o bom funcionamento da equipe, de uma mistura de competências, já que

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tecnicamente, para a realização das tarefas, precisa-se de vários profissionais especia lizados, com

suas respectivas qualificações. O que existiria seria uma complementaridade técnica entre as

diversas profissões — uma do tipo igualitária, sustentada pelos defensores do rodízio, e uma

outra do tipo "complementaridade com predominante", em que a predominância estaria com o

psiquiatra, visto possuir a maior qualificação, exigindo-se, por isso, a coordenação médica. Neste

último caso, pode-se perceber que a defesa da coordenação médica seria a garantia da

permanência do status profissional do psiquiatra, justamente porque sua qualificação técnica é

imprescindível ao trabalho da equipe — sem médico, não tem trabalho. Tire qualquer outro e o

trabalho ainda pode continuar... (entrevistado). O status adviria da exigência técnica e não de um

privilégio ou do poder. É o bom funcionamento da equipe que não pode prescindir do papel do

médico. Com tal argumento, escapa-se do constrangimento em defender o status da medicina via

privilégio ou poder. Não haveria, como disse um entrevistado, um problema ético. O argumento

técnico torna-se um argumento meritocrático e, como tal, basta a si mesmo, não infringindo

nenhuma sensibilidade igualitária. Pois seria muito mais eficiente defender a coordenação médica

através de um argumento baseado no mérito do que utilizando outras fontes de legitimação — no

geral, fundar o status ou o reconhecimento profissional via um discurso baseado no privilégio ou

no poder compromete a legitimidade da profissão numa sociedade de base igualitária.

Pelo que deduzimos das entrevistas, se as representações dos entrevistados sobre o

trabalho em equipe trouxeram à tona algumas questões identitárias, o mesmo se pode dizer a

respeito das opiniões sobre as suas relações com os outros profissionais da saúde mental.

Comparando as opiniões dos entrevistados que trabalhavam nos serviços observados com os

outros que responderam às perguntas, percebemos algumas diferenças:

Ø os psiquiatras que trabalham no HPP e na clínica privada afirmam que sentem uma

dificuldade profissional com a enfermagem, em particular com os auxiliares de

enfermagem. A razão alegada seria a sua má qualificação profissional. Muitos

alegaram que tal problema dificulta, e muito, o trabalho em equipe, outros

disseram que o verdadeiro problema é o contato diário, envolvendo hierarquias e

subordinações, nas condições de trabalho como as existentes, por exemplo, no

HPP. Vale lembrar que, na prática, os psiquiatras quase não têm contato com a

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260

psicologia, enquanto que, na clínica privada, a hierarquia é explicitamente

favorável à psiquiatria;

Ø nas entrevistas, a maioria absoluta dos entrevistados que relataram dificuldades

com a enfermagem eram "clínicos". No discurso, a queixa central resume-se à má

qualificação da enfermagem;

Ø os psiquiatras que trabalham no hospital-dia, apesar de algumas queixas em

relação à enfermagem, colocaram que a principal dificuldade nas relações

profissionais seria com a psicologia. Aqui, as queixas são exuberantes: os

psicólogos são "invasivos", entrando indevidamente na área de competência

médica; não conhecem os limites da doença mental, pois pensam que podem

interpretar arbitrariamente um sintoma; pensam que são os mais qualificados e os

atores principais do serviço; buscam o tempo liderar as reuniões. Percebemos aqui

o sinal, pelo menos no discurso, de uma preocupação com uma delimitação de

fronteiras profissionais e de um medo da perda do status da psiquiatria. Apesar das

queixas, quando da nossa permanência no serviço, não observamos atrito algum;

na realidade, percebemos um evidente esforço de cooperação. Nas reuniões, é

verdade, observamos aqui e ali pequenas querelas, polêmicas pontuais, mas nada

que revelasse algum antagonismo explosivo. Dada as queixas, só podemos supor

que nossas observações, infelizmente, passaram ao largo do problema ou,

pensando em outra hipótese, os antagonismos são mitigados na prática e revelados

apenas no discurso. De todo modo, num ambiente "relacional", onde a psicologia,

em tese, teria mais relevância, onde os psiquiatras têm formação analítica e onde

as práticas consensuais favorecem as polarizações e os conflitos, embora também

favoreçam a resolução dos mesmos, os confrontos entre psicólogos e psiquiatras

não seriam uma surpresa.

Ø nas entrevistas, as queixas contra a psicologia foram principalmente apanágio dos

psiquiatras "biomédicos". Na verdade, as queixas eram nem tanto contra a

psicologia e sim contra a psicanálise. As críticas são semelhantes às descritas

acima, talvez um pouco mais virulentas;

Ø nas entrevistas, os psiquiatras psicanalistas reclamaram mais dos médicos e dos

próprios psiquiatras do que da psicologia. A dificuldade central seria que os

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261

médicos e os psiquiatras, por causa de sua formação biológica, não priorizam o

"relacional", apresentando problemas em trabalhar em equipe, nos

relacionamentos profissionais e nos com os pacientes.

Inferimos da discussão acima que o convívio no ambiente de trabalho pode ser decisivo

nos discursos sobre as relações profissionais. Tal fato explica porque psiquiatras de formação

analítica criticaram a psicologia, enquanto outros com a mesma formação, mas sem

apresentarem, no trabalho, uma vivência relevante com psicólogos, direcionaram as críticas aos

médicos e aos psiquiatras, sendo inclusive coerentes com sua representação de doença mental.

Provavelmente, psiquiatras "clínicos", trabalhando num hospital-dia, apresentariam mais queixas

contra a psicologia do que contra a enfermagem, justamente porque, num tal ambiente, as

superposições profissionais acontecem freqüentemente e as disputas profissionais são (quase)

inevitáveis. Parece que as representações que os entrevistados têm das relações profissionais

possuem um evidente condicionamento do contexto, até por motivos óbvios, já que as relações,

quando vivenciadas, e por esse fato mesmo, produzem representações bem mais impregnantes do

que uma opinião apriorística sobre o assunto.

Fechando, enfim, a discussão, podemos inferir que as representações e as práticas

profissionais são dependentes da força dos sistemas normativos da instituição. A autonomia do

profissional vai depender do efeito que tal coerção produz na sua prática. A pressão normativa,

caso seja inibidora da autonomia, afasta a prática da representação, podendo até implicar um

antagonismo. Geralmente, a obediência institucional ou a conformidade ao grupo prescrevem e

orientam, via as normas do serviço, as práticas. Quando há efetivamente uma maior autonomia,

representações e práticas formam "sistema", possuindo uma circularidade sem contradições.

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262

XII. Capítulo VII

A. Trajetória e Vocação

Neste tópico, através da análise das entrevistas, faremos uma discussão sobre a relações

entre trajetória e vocação na formação identitária. Analisaremos o delicado problema da razão

(ou das razões) dos entrevistados terem escolhido a medicina, em particular a psiquiatria, como

profissão, e se tal escolha possui alguma relação com a trajetória do profissional. Problema

delicado porque a "escolha" da profissão, muitas vezes, é afirmado de uma forma tão subjetiva

quanto idiossincrática, sendo assim difícil para o pesquisador inserir o discurso numa

contextualização menos psicológica e menos biográfica. Por isso, achamos interessante

problematizar a "escolha" da profissão em relação à trajetória social, tentando encontrar, digamos

assim, os vínculos sociais da opção profissional dos entrevistados.

Não quisemos, com isso, encontrar uma relação necessária entre trajetória e vocação; na

verdade, nosso objetivo findou sendo o de problematizar a própria relação. Assim, pelo que

percebemos na análise do material empírico, o conteúdo da relação entre trajetória e vocação não

pôde ser determinada a priori, sendo na realidade uma questão empírica — dessa forma, nada

impede que, no caso de um determinado entrevistado, a sua trajetória biográfica e social tenha

determinado a sua escolha profissional... ou não: nada impede também que a escolha profissional

tenha tido uma relação indireta ou mesmo contingente com a trajetória do entrevistado — no

mundo contemporâneo, em diversas situações, pode-se perceber a trajetória do indivíduo como o

produto do encontro contingente de várias séries causais independentes entre si; nesse sentido,

para alguns indivíduos, vale a divisa de Ortega Y Gasset: "eu sou eu, e minhas circunstâncias".

Certo, essa é uma situação não tão freqüente, pois relacionada a uma estrutura de escolhas bem

mais ampla do que a que vigora normalmente, mas potencialmente mais freqüente em sociedades

onde reinam uma crescente democratização, aliada a um aumento do processo de individuação.

Enfim, não negamos que exista uma relação entre trajetória e vocação, pois não negamos a

relação enquanto tal, afirmamos apenas que a sua natureza não pode ser determinada antes que

seja analisada empiricamente.

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263

Ao mesmo tempo, não inferimos da origem social do entrevistado a sua trajetória, embora

seja interessante como ponto de partida na análise. Não há um apriorístico caminho traçado,

determinado pela posição social de origem do entrevistado. Não há imposição de um destino.

Dependendo de qual sistema social estamos nos referindo e de que modo foi construída a

trajetória, a origem social pode ter um peso maior ou menor na formação identitária do indivíduo

— peso que vai da determinação à probabilidade, do destino à escolha. Igualmente, pode-se

deduzir também que, quanto mais limitado o leque de escolhas, mais determinante a origem

social e, quanto mais amplo, mais o peso causal da determinação esfumaça-se e se transforma

numa mera probabilidade.

Em relação à situação de nossos entrevistados, inferimos que, pela forma mesma como se

estrutura a escolha profissional, geralmente num contexto de acentuada individuação e

especialização na divisão social do trabalho, logo, inserida numa estruturação mais ampla de

escolhas, a origem e a posição sociais têm uma relação probabilística com a escolha da profissão

— como a profissão insere-se numa complexa divisão social do trabalho e se alicerça num

acentuado processo de individuação (incluindo neste o sistema educacional), logo, inscreve-se na

estruturação de um amplo leque de escolhas vocacionais. Nesse sentido, dando um exemplo e

fazendo uma comparação, geralmente o sistema de escolha de um filho de um pequeno agricultor

é restrito o suficiente para determinar sua condição futura e presente de pequeno agricultor,

enquanto um filho de um médico, inserido num sistema educacional e de escolha profissional —

portanto, possuindo uma estruturação mais ampla de escolha —, embora tenha uma probabilidade

razoável de se tornar ele mesmo um médico, possui uma acentuada margem de manobra de não

sê-lo. Por isso, não é surpreendente que a escolha profissional tenha uma maior probabilidade de

acontecer em setores superiores da estratificação social, na qual, para falar como Bourdieu

(1980), a possessão de vários tipos de capitais (econômico, social e simbólico) permite um leque

amplo de escolhas, incluindo as profissionais.

Talvez, por isso, não tenha sido uma surpresa que todos os entrevistados possuam uma

filiação (pais) de "classe média"136, embora a coisa mude de figura quando analisamos a filiação

136 Não problematizaremos a noção de "classe média". No caso, entendemos como "classe média" os setores médios da estratificação social, incluindo assalariados (principalmente funcionários públicos de nível médio e superior, e profissionais assalariados) e pequeno-burgueses (principalmente, pequenos

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anterior (avós), cuja proveniência dos estratos inferiores da estratificação social foi importante137

— 15 entrevistados tiveram avós incluídos nos setores "populares" ou de baixa renda. E, vale

sublinhar, estes últimos eram todos provenientes do interior do estado. Para analisar melhor tais

questões, vale a pena discutir a direção geral da filiação encontrada:

Para os 15 entrevistados que tiveram seus avós incluídos nos setores ditos populares, a

direção geral da filiação é clara: há uma nítida mobilidade social ascendente. Dos avós aos pais,

percebemos a transformação de famílias, antes inseridas nos setores mais inferiores da

estratificação social, em famílias de "classe média". A ascensão social segue diversas estratégias,

mas, pelo que interpretamos, o caminho passa principalmente por um ponto de partid a

fundamental: a passagem da condição de pequeno agricultor e de artesão para a condição de

comerciante138. Segundo os entrevistados, a educação não cumpriu um papel relevante nessa

passagem, e sim a poupança dos avós, permitindo aos pais a entrada no comércio. Embora os pais

desses entrevistados tivessem, na maioria absoluta, o segundo grau completo, não foi tal fator,

segundo os entrevistados, isto é, a entrada no circuito escolar, a condição fundamental para a

ascensão social dos pais em relação aos avós, e sim, repetimos, a entrada no comércio ?

portanto, tal fato permitiu a ascensão social, a transformação dos mesmos em "classe média" e,

para seis (06) pais de tais entrevistados, a mudança para a capital.

Foi somente neste momento, justamente quando os pais de tais entrevistados tornaram-se

"classe média", que o papel da educação, como estratégia dominante para a mobilidade social,

tornou-se relevante. Os entrevistados foram explícitos: seus pais sempre enfatizaram o papel da

educação. Tal papel, pelo que interpretamos, foi constantemente relacionado a um discurso de

ascensão social. Inclusive, os entrevistados ofereceram diversos exemplos disso, apresentando

ditos e clichês que teriam sido repetidos constantemente pelos seus pais: "se você quer ser

alguma coisa, você precisa estudar"; "sem estudo, você vai ser um pé-rapado"; "estuda menino,

senão não vai ser nada na vida " ? além das diversas injunções profissionais, principalmente, no

comerciantes, agricultores ou fazendeiros ligados ao comércio, profissionais liberais). Os pais, aqui referidos, possuíam, no mínimo, o segundo grau completo. 137 Incluímos nesse estrato assalariados (principalmente, operários, funcionários públicos de nível inferior) e pequeno-burgueses (principalmente, pequeno agricultor não ligado ao comércio, artesão). Os avós têm, no máximo, o primeiro grau completo. 138 Apenas dois pais desse contingente não conseguiram a ascensão, continuando no meio rural como artesão e ferroviário.

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caso dos entrevistados, para a escolha da profissão médica. E, invariavelmente, essa estratégia

teve como complementação o envio dos entrevistados às cidades (no caso, Recife, pois é no

centro mais próximo onde havia faculdades de medicina). Assim que tomado o caminho para a

capital, ele tornou-se irreversível: nenhum desses entrevistados, após o final da sua formação

universitária, retornou ao local de origem139.

Contudo, ao contrário do analisado acima, a grande maioria dos entrevistados (35)

tiveram como ascendentes famílias de classe média. E, de tal contingente, 11 avós de

entrevistados moraram no interior140, embora a filiação posterior tenha -se estabelecido na capital,

mostrando que, nesse caso, o deslocamento do interior para a capital foi, proporcionalmente,

muito mais massivo do que no exemplo anterior141. Pode-se dizer, assim, que a filiação desses

entrevistados é de "classe média", caracterizando, com isso, uma reprodução social. Não há

propriamente uma ascensão social, e sim uma busca, a partir e por dentro da posição social já

estabelecida, de status social. A escolha profissional (no caso, pela medicina) seria, desse ponto

de vista, uma forma de manter uma posição e adquirir, ao mesmo tempo, uma disposição baseada

no prestígio social. Acreditamos que essa diferença teve uma repercussão direta na forma pela

qual foi apreendida o papel da educação na escolha profissional. A começar que, embora

tenhamos encontrado a mesma ênfase na educação, sendo assim semelhante à considerada no

grupo anterior de entrevistados, o discurso dos pais focava menos a ascensão social do que a

vocação.

Mas, nesse caso, onde ficaria a busca pelo (manutenção ou aumento do) prestígio? Na

verdade, a relação entre educação e vocação tem como pano de fundo justamente a garantia do

prestígio. Não causou surpresa, nesse sentido, a mistura no discurso dos pais, segundo os

entrevistados, de injunções relacionando status com vocação. Ao mesmo tempo em que se dava a

devida importância à educação, fazia-se uma relação entre a escolha profissional e a identidade

139 Fato que pode ser considerado uma mera coincidência, pois fizemos nossas entrevistas no Recife. Há vários casos de médicos que, assim que formados, voltaram às suas cidades de origem para exercer a profissão. 140 Ao todo, juntando toda a filiação, temos 26 entrevistados que tiveram ascendentes que viveram no interior. 141 A questão de que todos os pais de tais entrevistados sejam da capital, independentemente do fato de que vários vieram do interior e se estabeleceram no Recife, deve-se provavelmente às características de nossa amostragem.

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266

do indivíduo, mas não uma escolha qualquer, e sim uma que valorizasse a "pessoa". Certo, ditos

familiares do tipo "você tem que fazer o que gosta" ou "escolha o que é melhor para você" podem

ser considerados como vocacionais, no sentido em que enfatizam a escolha e a realização de si;

no entanto, tais ditos sempre estão misturados e acoplados a outros tão imperativos quanto: "você

tem que escolher uma profissão decente" ou "a melhor profissão é aquela que oferece sustento e

apreço" ? em suma, profissões que têm alguma importância social, logo, prestígio.

Percebemos, assim, dois modos de apreensão do papel da educação na escolha

profissional: a) busca da ascensão social e b) busca do prestígio, via vocação. A busca pela

ascensão, evidentemente, pode implicar também a busca pelo prestígio, e nada impede que esteja

acoplado também a um discurso vocacional. A diferença entre os dois discursos reside, na

verdade, na ênfase que cada um oferece à vocação ? a diferença entre "vencer na vida" e

"realizar o melhor de si" ou entre o sucesso e a vocação pode ser indiscernível. No primeiro

modo de apreensão, talvez a diferença de ênfase seja uma herança da filiação de alguns

entrevistados, para os quais a ascensão social tornou-se uma questão estratégica na construção da

biografia familiar; no segundo modo, a educação formal parece dada, um hábito já adquirido e

entranhado no cotidiano, não sendo afirmada explicitamente como uma estratégia para a ascensão

social ? a preocupação com a vocação e o prestígio parece ser, pelo menos de forma explícita,

bem mais importante.

De todo modo, nos dois discursos, a escolha profissional jamais é completamente livre,

pois sofre um condicionamento do prestígio social que cada profissão possui na sociedade ? o

discurso baseado na ascensão vai escolher estrategicamente as profissões mais valorizadas,

acontecendo o mesmo com o alicerçado no prestígio social. A vocação teria suas raízes fincadas

no "pacote" de escolhas ao qual o entrevistado tem acesso e, ao mesmo tempo, nos diversos

modos de valorização profissional. No plano empírico, isso significa que os entrevistados tiveram

um restrito leque de escolhas profissionais, cuja variação dependeu em parte da valorização

social de cada profissão. O leque de escolhas muda segundo a época e a geração do entrevistado,

porém a variação é pequena e o leque idem. Na realidade, pelo que pesquisamos, os entrevistados

tiveram, quando da época da escolha profissional, acesso a um pacote de, no máximo, três e, no

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267

mínimo, cinco profissões extremamente valorizadas socialmente142. As profissões variaram

muito pouco segundo a geração do entrevistado: do mais velho ao mais novo entrevistado, vemos

um rodízio entre o direito 143, a engenharia144 e a arquitetura 145 ? evidentemente, a medicina é o

membro constante do leque de escolhas146. Embora vários entrevistados tenham sublinhado que

escolheram livremente a profissão médica, colocando que a escolha deu-se por circunstâncias

estritamente pessoais, independentemente do fato de esse discurso ser factível ou não, não

achamos contraditório dizer que, tacitamente, o leque de escolhas foi dado ou construído,

digamos assim, socialmente: o entrevistado pode ter tido sua margem de manobra, sua liberdade

de escolha; contudo, sua liberdade raramente ultrapassou os limites da estrutura de escolhas na

qual estava inserida.

Inclusive, podemos perceber melhor essa questão, analisando a trajetória ocupacional da

filiação dos próprios entrevistados. O leque de escolha é restrito: dos avós aos pais, a ocupação

mais seguida foi a de comerciante, depois, alguma ocupação profissional e, enfim, a de

funcionário público. Claro, pode-se dizer que há, dentro de cada ocupação, diferentes atividades

(vários tipos de comércio, várias profissões, vários tipos de funcionários...), mas, mesmo assim, a

variação interna é pequena. Um exemplo: no campo profissional, a escolha restringiu-se a três

profissões: medicina, engenharia e direito. Entre as mulheres, o pacote é mais restrito ainda: na

verdade, é um pacote de uma só profissão, a de professora do 1° grau.

De todo modo, independentemente do fato de que exista ou não um enquadramento

normativo para a escolha profissional, ou mesmo que a escolha e o sentido da vocação sejam

estruturados ou, ainda, sejam um pano de fundo condicionando as opções vocacionais, a escolha

e, conseqüentemente, a percepção da vocação foram compreendidas pelos entrevistados como um

momento individualizado e até idiossincrático ? chamamos esse discurso de "discurso da

142 O mais comum, sem dúvida, foi o pacote de três profissões... 143 Presente no leque de escolhas dos entrevistados acima dos 45 anos; desaparece um tanto entre os entrevistados que têm, atualmente, em média 40 anos e reaparece entre os que têm abaixo dos 35 anos. 144 Presente nos entrevistados acima dos 35 anos. Abaixo dessa faixa etária, a engenharia, principalmente a civil, perde em importância, talvez porque já não seja tão valorizada profissionalmente como antigamente. 145 Somente aparece nos entrevistados que estão na faixa etária entre 35 e 45 anos. 146 Novamente, a presença constante da medicina deve-se, essencialmente, por causa das características de nossa amostragem, todos médicos. Mas é provável que, num estudo sobre valorização profissional, a medicina tenha realmente um peso importante no leque de escolhas profissionais.

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escolha livre". Alguns entrevistados, é verdade, reconheceram que a escolha e o sentido da

vocação podem ter uma determinação social ou "externa" à vontade do indivíduo, dada

principalmente pela família, mas, em última instância, quem decide é o indivíduo e tal decisão

tem um caráter individual. O que está em jogo, no fundo, é a liberdade da escolha ? e tal

liberdade é bastante valorizada pela maioria dos entrevistados ? , daí a presença constante do

discurso da escolha livre. Contudo, como veremos agora, mesmo que a liberdade da escolha

tenha sido ressaltada, diante da pergunta "por que você escolheu a medicina?", os entrevistados

ofereceram respostas nas quais a estruturação das escolhas aparece com certa evidência.

ü Escolha "desde o início":

O dito paradigmático que ilustra o discurso desses 16 entrevistados é o "pensei em fazer

medicina desde o início ". O que se ressalta aqui é o dom, algo que estava presente nos

entrevistados desde sempre, uma espécie de qualidade inata à medicina. Segundo os

entrevistados, a escolha é totalmente livre, pois ela é uma questão de fórum íntimo, sem qualquer

determinação externa, embora alguns colocassem que a família tenha tido um certo papel na

escolha. No fundo, seria uma escolha livre pelo fato que se negar injunções externas; porém,

como o dom estava escrito nas entranhas da alma desde sempre, pode-se alegar que, do ponto de

vista de um ato que privilegiaria a consciência, a escolha já estava dada ? se estava dada, como

poderia ser livre? Aqui, a escolha é uma espécie de epifania interna: "quando eu soube que

queria fazer medicina, soube também que sempre tinha querido..." ? como ilustra bem essa

frase de um entrevistado. Tal discurso enfatiza bastante, embora não monopolize o termo, o

caráter de missão da profissão médica. O dom é uma capacidade dada, mas, assim que é

explicitado e assumido pela pessoa, a missão de ser médico surge como uma tomada de

consciência, quase como uma reflexão sobre o sentido do dom. Para os entrevistados, a missão de

ser médico é, fundamentalmente, "ajudar e socorrer" as pessoas. O conteúdo da missão do

médico, nesse caso, possui um parentesco com o do sacerdócio ? embora não fosse explicitada,

a relação é um tanto evidente.

ü Escolha parental:

O mote principal do discurso, aqui, é a "influência", no caso e exclusivamente, familiar.

Foram 16 entrevistados que disseram que a influência da família foi decisivo para a escolha da

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medicina. Desses 16, nove (09) têm pais médicos e colocaram explicitamente que o seu exemplo

foi fundamental para a decisão. A determinação para o restante teve a influência de parentes

próximos (irmãos e tios, principalmente) que ajudaram a escolha da medicina como profissão.

Consideramos esse tipo de escolha praticamente um subtipo da "escolha desde o início". Há

referência ao dom e até a uma vocação familiar para a medicina. Continua existindo um discurso

da escolha livre, embora ocorra o reconhecimento de que a influência da família tenha sido

decisivo.

ü Escolha pragmática:

Nesse ponto, aconteceu um fato diferente: a escolha profissional aparece no discurso sem

que se tenha uma relação necessária com a vocação. Pode-se imaginar situações onde a escolha

profissional, além de não ter uma relação necessária com a trajetória, não possui uma

compatibilidade com a vocação ou com o que o indivíduo julgava ser a sua vocação. A escolha

foi uma questão de oportunidade e não exatamente relacionada com a aspiração e o desejo do

indivíduo. Tal situação não é propriamente incomum, pois a encontramos, por exemplo, em 05

entrevistados, cuja escolha pela medicina foi por negação das escolhas existentes ou,

simplesmente, por uma questão circunstancial. Percebemos uma nítida relação, no discurso de

tais entrevistados, entre a escolha e o problema da mobilidade social. O entrevistado tinha que

escolher alguma profissão; havia uma pressão considerável da família para que optasse por uma

profissão valorizada; em suma, como disse um entrevistado: "todos queriam que eu fizesse

medicina" ou, ainda, "desde pequenininho que me falam para ser médico ? fui na onda". Porém,

o que diferencia esses entrevistados seria justamente a falta de um discurso no qual se coloque

explicitamente a "vontade de ser médico". A ênfase recai, nesse sentido, na valorização da

medicina e na oportunidade que oferece para a ascensão social ? muitas vezes, alguns

entrevistados passam a idéia de que foram "empurrados" para a profissão médica, adotando

menos uma conduta performativa do que uma postura passiva diante da necessidade da escolha

profissional.

ü Escolha de "perfil":

Apesar do parentesco com a classificação acima, estamos diante de entrevistados (05) que

se colocam retrospectivamente como uma pessoa "afeita" à profissão. A descoberta da vocação

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acontece no meio do curso de medicina e, para alguns, já em pleno exercício da profissão.

Muitos, assim, não queriam fazer necessariamente medicina, descobrindo a vocação tardiamente.

Contudo, há um olhar retrospectivo para o passado, recuperando de certa maneira a vocação.

Concretamente, a vocação surge depois da escolha; retrospectivamente, a vocação é recuperada, e

a estória da escolha profissional é recauchutada: a vocação já deveria existir na época da escolha,

já que, posteriormente, o entrevistado descobriu-se médico. A escolha, no fundo, já era

vocacional, embora o entrevistado pensasse o contrário. Como disse um entrevistado: "eu não

assumia a profissão ". Outro, de viés psicanalítico, chegou a afirmar que detestava o curso de

medicina, até por causa da imposição familiar para ser médico, mas que tudo isso era uma

"resistência" e que, na verdade, sempre tivera jeito para a profissão, ao ponto de, atualmente,

adorar o que fazia.

ü Escolha "contato mórbido" ou "luminosa":

Sete (07) entrevistados colocaram que a determinação da escolha aconteceu a partir do

contato passageiro ou prolongado com uma doença, seja como doente, seja acompanhando ou

mesmo assistindo a um doente, geralmente da família. Ocorre, nesse caso, o que poderíamos

chamar de catarse: "vi que queria ser médico, acompanhando meu avô no hospital, fiquei

fascinado..."; "ali deitado numa cama de hospital, operado de apendicite, cercado por gente de

branco, descobri que queria estar no lugar deles...". Acreditamos que o discurso tenha uma

relação com a questão do dom. O evento mórbido revelaria ao entrevistado a sua vocação, isto é,

explicitaria o que antes era um tanto inconsciente para a luz do dia ? o dom, ainda oculto, seria

revelado, enfim, sob o aspecto de vocação. Mas o processo não é propriamente racional, pois

baseado num acontecimento de forte conotação afetiva-emocional: o contato com a morbidade.

Parece muito mais uma catarse ou uma iluminação.

De certo modo, exceto a "escolha pragmática ", todas as outras são variações de uma

escolha baseada no dom. Parece que, para a maioria absoluta dos entrevistados, é necessária

alguma predisposição à profissão. Tal predisposição foi chamada de dom. A vocação seria, nesse

sentido, a consciência do dom. E, pelo que percebemos, o dom é, para os entrevistados, um tanto

impermeável a injunções externas. Pode ser explicitado, iluminado, trazido à tona,

potencializado, recuperado retrospectivamente, mas estaria lá sempre latente, de maneira tácita

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ou mesmo oculto, esperando um fiat lux para eclodir. Por isso, a discussão sobre escolha

profissional e vocação é uma narrativa pessoal. Seria a afirmação de um ego que, através da

soberania de sua vontade, embora muitas vezes por caminhos circunstanciais e um tanto

prosaicos, revela o que está inscrito no âmago de sua pessoa ? o fundamento da realização de si:

sua vocação.

Por outro lado, a questão tornou-se um pouco mais complexa quando sobrepomos a

escolha pela medicina à escolha pela psiquiatria. Foi como se reinicializássemos a discussão,

embora o resultado tenha sido muito parecido, pois encontramos praticamente as mesmas

classificações. Contudo, a impressão seria de que a psiquiatria representou, para a maioria dos

entrevistados, uma outra escolha, em certos casos até mais importante do que a própria escolha

pela medicina. Provavelmente, como já discutimos acima, tal fato deva-se ao lugar peculiar que a

psiquiatria ocupa no seio da medicina. Analisaremos melhor tal questão, discutindo já as escolhas

pela psiquiatria.

ü Escolha desde o início:

Fazendo um cruzamento com a respectiva classificação anterior relacionada à escolha

médica, pudemos notar que a composição é diferente, embora a quantidade seja praticamente a

mesma (17 entrevistados). Nove entrevistados compartilham o mesmo grupo, sendo a maioria ?

vemos, aqui, o reaparecimento dos agrupamentos feitos a partir do objeto profissional ?

biomédicos e clínicos. O restante, justamente a diferença na composição dos grupos, é todo

formado por psicanalistas.

Ao passo que o discurso da escolha ("desde o início") pela medicina é relativamente

homogêneo, neste ponto, os discursos são diferentes: os biomédicos e clínicos afirmaram a

coincidência da escolha, identificando medicina e psiquiatria ? já na escolha médica estava

embutida a psiquiátrica. Desde sempre quiseram a psiquiatria, mas porque queriam também ser

médicos. A identificação na escolha entre medicina e psiquiatria deve-se, em parte, à influência

parental (05 entrevistados com pais psiquiatras) e ao contato com a morbidade psiquiátrica

(alguns tiveram contato com parentes apresentando alguma patologia psiquiátrica ou mesmo

conheceram um hospital psiquiátrico). A escolha psiquiátrica seria um momento da vocação

médica.

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272

Já os psicanalistas enfatizaram bastante uma aproximação com a psicologia: "sempre tive

uma queda pela psicologia, pelo relacional"; "quando era pequena, o pessoal me achava

simpática; na adolescência, as pessoas me procuravam pra conversar...". Por que, então, não

fizeram psicologia? Por um motivo já conhecido: a maioria desses entrevistados tinham parentes

psiquiatras e algum contato com pacientes psiquiátricos. Contudo, a ênfase é diferente em relação

aos biomédico e clínicos ? na verdade, parece invertida: a escolha médica seria um momento da

escolha psiquiátrica. As duas escolhas acontecem juntas, mas o pólo psiquiátrico tem uma maior

magnitude.

Enfim, pudemos notar que o momento parental e o "luminoso" estão fundindo no "desde o

início". Porém, o luminoso é bem mais presente entre os psicanalis tas. Seria o contato com a

loucura, principalmente no contato com algum parente psicótico: "um dia, quando tinha 10 anos,

fui visitar minha tia no asilo. Achei esquisitíssimo e fiquei apavorada, mas também fascinada" ?

curiosamente, a fascinação, ao contrário da catarse baseada na admiração, como vimos no

discurso do "desde o início" da escolha médica, foi baseada no pavor e no medo. Inclusive, um

entrevistado disse explicitamente: "não me pergunte por que, mas o que me fez fazer psiquiatria

foi o medo que tive da loucura. Acho que tenho até hoje...". Se a medicina possui uma carga

simbólica carregada o suficiente para produzir escolhas diretamente relacionadas à injunções

edipianas ou sexuais, segundo alguns psicanalistas, a começar por Freud 147, a psiquiatria não

ficaria atrás; assim, podemos aceitar, com alguma prudência, que a atração e a fascinação,

causadas pelo comportamento desviante e pela loucura, produzem algum poder de sedução,

influenciando de alguma forma a escolha profissional pela psiquiatria.

ü Escolha baseada no trabalho

A noção de "experiência" é fundamental para compreender as motivações dos 17

entrevistados que estão inseridos nesse grupo. Aqui, experiência quer dizer trabalho, portanto, a

escolha pela psiquiatria foi condicionada por algum contexto de trabalho que envolvesse a

psiquiatria, principalmente o hospital psiquiátrico. Geralmente, foi a primeira experiência do

147 Ver Freud e sua análise do jogo do médico entre as crianças...

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273

entrevistado, ainda estudante148, em tal ambiente . Neste ponto, pudemos encontrar discursos que

enfatizaram o aspecto "luminoso" do encontro com a loucura e, conseqüentemente, a escolha

profissional da psiquiatria. De todo modo, foi a experiência na psiquiatria, isto é, a prática

psiquiátrica que condicionou a escolha. A presença nesse grupo dos clínicos e dos biomédicos é

marcante ? encontramos apenas dois psicanalistas. O grupo, inclusive, segue o costume médico

de escolher a especialidade após uma série de experiências práticas em vários setores e

disciplinas diferentes da medicina. Após isso, é de praxe a escolha da área almejada. A maioria

dos entrevistados ? não só desse grupo ? passaram por essa situação. Independentemente do

fato de o médico já pretender especificamente alguma especialidade, é comum a passagem por

várias áreas médicas antes da decisão final ? os entrevistados, contudo, assinalam que passaram

por poucas áreas (a maioria passou pela clínica médica ou algum setor de emergência), sendo a

decisão rápida, logo após a primeira experiência de trabalho.

A escolha baseada no trabalho engloba a escolha alicerçada no perfil. Foi no trabalho que,

retrospectivamente, o entrevistado recuperou a vocação pela psiquiatria. A partir da experiência,

olha-se o passado e se reafirma o caminho tomado. O raciocínio é o mesmo do da escolha pela

medicina: a percepção de que o momento presente é a reafirmação de algo que estava ainda

inconsciente no passado: a vocação psiquiátrica.

ü Escolha "desilusão com a medicina"

Embora apenas 05 entrevistados estejam enquadrados nessa classificação, ela é

importante pela sua originalidade e pelo fato de que todos são lacanianos. Os entrevistados, na

verdade, não afirmam uma escolha pela psiquiatria por causa da desilusão com a medicina, e sim

uma pela psicanálise. A desilusão, assim, é dupla: pela medicina e, conseqüentemente, pela

psiquiatria. A psiquiatria é intrinsecamente médica: "é a medicina no campo da loucura", como

disse um entrevistado. A desilusão aconteceu, ao contrário do momento decisório e positivo do

grupo anterior, justamente no ambiente de trabalho. Foi a experiência psiquiátrica que afastou os

entrevistados da psiquiatria e, conseqüentemente, da medicina. Mas por que, então, não saíram da

profissão? Os motivos são vários, a começar pelo mais pragmático de todos: era tarde demais,

148 Todos os entrevistados relataram que o momento da escolha pela psiquiatria aconteceu ainda quando eram estudantes.

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pois o curso já estava acabando, e a psicanálise poderia substituir a psiquiatria, sem o peso de

uma saída definitiva do campo profissional médico, embora isso representasse, na visão dos

entrevistados, uma saída da ciência médica.

Pode-se dizer, no limite, que medicina e psiquiatria são duas escolhas dentro do mesmo

campo profissional, expressando algumas variações nas suas relações: 1) a escolha pela

psiquiatria é um momento da vocação médica; 2) é um momento da vocação médica, mas possui

uma especialidade que, no frigir dos ovos, tem a mesma magnitude; 3) é uma ruptura com a

vocação médica. Aqui, novamente apareceram os agrupamentos produzidos a partir das análises

do objeto profissional, o que não aconteceu quando das questões relativas à escolha pela

medicina: 1) foi expressado preferencialmente pelos biomédicos e pelos clínicos, 2) pelos

clínicos e psicanalistas e 3) pelos lacanianos.

Mas, até agora, questionamos o que determinou a escolha profissional; por isso,

olharemos neste momento com mais atenção o tipo de vocação advogado pelos entrevistados. O

problema seria saber que tipo de engajamento envolveu a escolha profissional. Em termos gerais,

encontramos três tipos:

• vocação como realização pessoal

Tal discurso está disseminado entre os entrevistados e, talvez, seja o discurso

paradigmática da vocação. A profissão, nesse sentido, seria justamente a forma privilegiada de

realização de si. A escolha profissional foi, assim, a melhor forma de concretizar um potencial

existente dentro de cada um. Discurso perfeitamente conectado aos desdobramentos do

individualismo moderno.

• vocação como altruísmo

É a vocação do sacerdócio e da entrega. As palavras chaves são "ajudar" e "tratar". O

médico é altruísta assim que realiza a vocação médica de ajudar e tratar os doentes. É a vocação

médica, por excelência. Encontramo s tal discurso praticamente em todos os entrevistados.

• vocação como relacionamento

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Seria a vocação específica da psiquiatria. Todos os entrevistados, inclusive os biomédicos,

afirmaram essa característica do tratamento psiquiátrico: a necessidade da relação psicoterápica

no tratamento psiquiátrico. Claro, há diferenças de ênfase, mas, no todo, o discurso é homogêneo

Enfim, pesquisamos também qual seria a relação entre a escolha

psiquiátrica e a formação universitária. Se considerarmos a opinião dos

entrevistados (39), não houve influência da formação na escolha pela psiquiatria.

De forma coloquial, vários entrevistados colocaram que a cadeira de psiquiatria

era tão ruim que poderia tê-los feito desistido de qualquer vocação psiquiátrica. A

maioria dos entrevistados colocou que a formação psiquiátrica universitária era

fundamentalmente eclética, embora com alguma predominância da

psicopatologia clássica. Vale dizer que estamos falando das duas faculdades de

medicina que existem no Recife. Apesar disso, 27 entrevistados colocaram que as

cadeiras de psiquiatria eram fracas. Por isso, a formação psiquiátrica confundiu-

se com a experiência adquirida fundamentalmente na prática hospitalar. Era no

hospital, como estudante, geralmente acompanhando algum plantonista mais

velho que a maioria dos entrevistado adquiriu a experiência e,

conseqüentemente, uma formação baseada na prática. Mas, não só no hospital,

pois todos os entrevistados que tiveram alguma formação analítica fizeram-na

durante o período de estudos, até mesmo como compensação à formação

universitária.

1. Consultório e Autonomia

Quando discutíamos as condições de trabalho no HP, fizemos referência a uma condição

comum entre os psiquiatras, isto é, ao fato de que os entrevistados tinham, em geral, mais de uma

jornada de trabalho. Neste tópico, analisaremos de forma mais detida essa questão. O primeiro

fato relevante: todos os entrevistados têm, no mínimo, dois empregos e, geralmente, duas

jornadas de trabalho. O emprego quase onipresente é o trabalho no consultório (41 entrevistados

têm consultório). Pela sua importância na maioria dos discursos, pode-se inferir que é em torno

dele que gira os outros trabalhos e as outras jornadas. Seria o emprego que gera mais renda,

embora não seja necessariamente o mais valorizado. Com efeito, embora vários entrevistados

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tenham colocado o trabalho no consultório como o mais valorizado, para muitos entrevistados,

entretanto, em particular para aqueles que trabalham no público ou na universidade, o trabalho no

consultório está no mesmo patamar de importância, ainda que muitos tenham confessado,

principalmente aqueles que são professores universitários (14), que o consultório perderia

bastante a sua importância relativa, caso o público ou a universidade fosse mais valorizada e mais

bem remunerada, ao ponto de alguns alegarem que prescindiriam do mesmo.

Na realidade, o discurso dos professores universitários (14 entrevistados) parece ter

alguma ambigüidade em relação ao trabalho no consultório. Há um crítica de fundo a respeito do

trabalho liberal como sendo intrinsecamente voltado aos setores de classe média, por isso,

segundo vários entrevistados desse grupo, distante de qualquer política pública de saúde mental.

A maioria dos entrevistados desse grupo é "clínico", com alguma passagem pela medicina

preventiva e pelos movimentos de saúde mental ? possuem um discurso que politiza a saúde

mental, estando articulado ao movimento pela Reforma Psiquiátrica, cujo programa e

organização foram realizados fundamentalmente pela esquerda, principalmente a partidária.

Provavelmente, a ambigüidade venha justamente dessa aparente contradição: como conectar um

discurso político e social sobre a saúde mental com um trabalho no consultório, dito "liberal" e

"individualista"?

A conexão vira um nó górdio, e seu contorno, racionalizações. As justificações são,

digamos assim, de natureza "pragmática", podendo ser resumidas da seguinte maneira: 1) todos

os entrevistados ganham na universidade um salário de professor assistente, percebido como uma

"ninharia"; 2) a jornada de trabalho na universidade impede outra forma de atividade, tipo num

hospital público149 ou numa clínica privada, restando apenas o consultório como alternativa.

Indagados sobre atividades de extensão na universidade, como por exemplo um trabalho de

psiquiatria comunitária, vários concordaram que seria a alternativa ideal, mas não sendo

remunerado, sempre sobrará o sempiterno problema salarial:

149 Todos dessa amostra trabalharam um dia no serviço público, deixando-o após o ingresso na universidade.

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no início, até que tentei uma atividade desse tipo, lá em Nova Descoberta150,

que me exigia muita dedicação. Aí tive filhos, a carestia apertou e montei um

consultório com um amigo professor ? como bem resumiu um entrevistado.

Assim, na universidade, a atividade pedagógica ? aulas e orientação de alunos ? é a

principal, senão a exclusiva, ocupação dos entrevistados. Pode-se alegar que tal questão é um

problema de geração e, com efeito, os próprios entrevistados admitem que o salário não era uma

referência fundamental no início da carreira, passando a sê-lo realmente a partir de um dado

momento, justamente quando ocorreu a decisão de constituir uma família. Vale alertar, porém,

que nossa amostra (professores universitários) foi constituída por pessoas que estão na faixa

etária entre 35 e 45 anos. Uma população mais jovem, sem ainda a constituição de laços

familiares, talvez, prescindisse totalmente do trabalho no consultório... ou não: analisando o

discurso de alguns entrevistados, na faixa etária abaixo dos 30 anos151, que assumem, ainda que

vagamente, como projeto pessoal uma carreira universitária, não percebemos a ambigüidade

discutida acima: não há contradição ideológica entre o trabalho liberal e o social na esfera pública

e societária ? a questão é uma mera adaptação ao tempo exigido pela diversas esferas de

atividade ou mesmo uma questão de "gosto pessoal". Contudo, há uma clara percepção que

consultório e hospital, em particular o HP, são dois mundos diferentes, inclusive no que concerne

a uma diferença anterior entre o público e o privado.

Como disse um entrevistado:

"são dos mundos diferentes. No público, temos uma população que muitas

vezes não tem dinheiro sequer para comprar remédios ? sem dinheiro pra

passagem, logo, não os pacientes não conseguem chegar ao ambulatório. Uma

massa muito grande de pessoas que tem dificuldade de se colocar, de

verbalizar. No consultório, trabalho com o outro lado do Brasil: pessoas de

classe média, que se alimentam, que pensam, que estudam, que falam ?

150 Bairro popular do Recife. 151 A maioria absoluta desses entrevistados trabalha apenas em clínicas privadas, esperando a ocasião de entrar, via concurso, no serviço público ou na universidade.

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parecidas comigo! Posso assim estabelecer vínculos terapêuticos. (...) Cada

mundo invoca condutas diferentes...

Curio samente, são os psicanalistas152 que vão cortar o nó górdio: não há contradição entre

o consultório "liberal" e o trabalho na esfera pública e societária. Na verdade, para

compreendemos melhor essa posição, precisamos esclarecer que o trabalho no consultório não é

visto pelos entrevistados como "liberal" 153, e sim como um espaço privilegiado para a análise ?

o consultório é um espaço profissional como qualquer outro. Dado o caráter individualizado da

consulta analítica, não causa surpresa essa posição. Contudo, vale a nuance: os psicanalista

referem-se a um serviço público do tipo extra-hospitalar, afirmando que o hospital psiquiátrico é

incompatível com a terapia analítica. Todos os entrevistados colocaram que é impossível

trabalhar como psicanalista nas condições atuais do hospital psiquiátrico, por isso admitem a

primazia do consultório como espaço profissional por excelência de atuação dos psicanalistas.

De todo modo, montar um consultório em psiquiatria não é uma tarefa propriamente fácil.

Em média, segundo os entrevistados, é necessário cinco anos para adquirir uma clientela estável

e, mesmo assim, em situações de crise econômica, seria freqüente o paciente que paga a metade

ou, até mesmo, simplesmente não pode pagar a consulta. É preciso ter uma "retaguarda" ?

geralmente, familiar ? que garanta financeiramente o tempo de estabilização do consultório.

Quem não tem "retaguarda" ? a maioria absoluta dos entrevistados ? precisa garantir, no início

da carreira, uma poupança através do trabalho ou no serviço público ou no privado ou nos dois ao

mesmo tempo. Vários entrevistados, na época da pesquisa, ainda estavam na fase de

estabilização, por isso tinham até três jornadas de trabalho ? público, privado e consultório. No

caso da impossibilidade de se trabalhar no serviço público, a alternativa mais escolhida é o

emprego em vários serviços privados ? alguns entrevistados trabalhavam em até cinco serviços

privados, seja como plantonista, seja como assistente154. Já os professores universitários foram

152 Há vários professores univers itários que fizeram formação analítica, mas que não se enquadraram como "psicanalistas", sendo ecléticos, pragmáticos e adeptos da bricolagem ? a formação baseada na psicopatologia clássica e no ecletismo é muito mais proeminente; daí a classificação como "clínicos". 153 Um entrevistado, tendo consciência da identidade entre trabalho liberal e consultório médico, afirmou que um amigo, médico e petista (por coincidência, outro entrevistado), tinha-lhe dito, brincando, que o consultório era um trabalho individualista e liberal, logo pequeno-burguês. 154 A assistência psiquiátrica seria uma atividade que não envolve necessariamente o plantão, mas o acompanhamento diário ou semanal do paciente.

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unânimes em considerar a estratégia de entrar na universidade como o caminho mais

"confortável", já que se garantia uma estabilidade empregatícia e um salário inicial razoável.

Com isso, poder-se-ia manter o consultório até a estabilização da clientela, além do conhecimento

de uma população psiquiátrica potencialmente cliente no hospital universitário.

Sendo o consultório a forma de trabalho mais procurada entre os entrevistados, cabe a

pergunta: seria procurada por quê? Pelos discursos analisados, a procura pelo trabalho no

consultório está relacionada, fundamentalmente, à estabilização financeira. Muitos colocaram

explicitamente que, caso o serviços público ou a universidade fossem melhor remunerados, o

peso do consultório seria diferente ou bem menor. Já os psicanalistas, como vimos, além da

procura da estabilização financeira, afirmaram que o consultório é o esp aço profissional ideal

para a prática psicanalítica. Pode-se interpretar esse último discurso como uma procura pela

autonomia profissional, tomando como premissa que a procura do espaço ideal da profissão seja

uma garantia de controle das condições de trabalho e de controle do exercício do saber

profissional. No entanto, mesmo no caso dos psicanalistas, não encontramos entre os

entrevistados uma vinculação necessária entre o consultório, visto nesse sentido como um

trabalho "liberal", e a autonomia profissional. Pelo que interpretamos, os entrevistados

consideram que é perfeitamente possível garantir a autonomia profissional nos ambientes

profissionais onde vigoram o assalariamento. O grande problema, segundo vários entrevistados,

seria o controle das condições de trabalho, já que, em tese, o controle do exercício do saber

profissional está, de alguma forma, garantido via a profissão. Tal controle das condições de

trabalho seria garantido, no nível local, via equipe multi-profissional, e, de forma geral, por uma

política pública em saúde mental que garantisse uma reforma psiquiátrica.

2. A questão do hospital e da Reforma Psiquiátrica

Mas como garantir uma reforma psiquiátrica? Ora, justamente aqui, há outro problema:

não há consenso sobre a reforma psiquiátrica, nem mesmo sobre o papel do hospital ? talvez,

das questões da reforma, seja a questão. Inclusive, o resultado da pesquisa sobre esse assunto

invalidou nossa hipótese: pensávamos que haveria uma correspondência entre a defesa da DM

como uma doença ontologicamente diferente de todas as outras (dualismo nosológico) e a defesa

de uma instituição especial e separada de todas as outras da medicina (dualismo institucional) ?

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280

logo, a defesa do hospital psiquiátrico (HP). Para tratar uma doença que é um singularidade

patológica seria necessário um aparato especial, diferente das outras instituições médicas, o

hospital psiquiátrico. Ou ainda: haveria uma correspondência entre a defesa da DM como uma

doença igual a qualquer outra (monismo nosológico) e a defesa do fim do HP e,

conseqüentemente, defesa da hospitalização no hospital geral (HG ? monismo institucional).

Para tratar uma doença convencional seria preciso somente um aparato médico banal, o hospital

geral.

Na verdade, o resultado foi diametralmente oposto à nossa especulação: os psicanalistas,

por exemplo, et pour cause defensores do dualismo nosológico, foram radicalmente contra o HP,

sustentando a sua completa substituição por instituições extra-hospitalares; já os biomédicos

ratificaram o HP, defendendo a sua reforma radical, e os clínicos, pelo menos, seguiram seu

ecletismo, repartindo-se entre defensores e adversários do HP, embora tenham sido os maiores

advogados, juntamente com os biomédicos, do HG. Mas, como tentaremos mostrar em seguida,

nossas especulações, pelo menos, direcionaram em algum sentido a discussão.

Ø Não seria incompreensível a ojeriza dos psicanalistas em relação ao HP; afinal, no

decorrer de toda a nossa discussão, desde o início percebemos que os psicanalistas

sempre colocaram como incomp atível a organização atual do HP com a terapia

analítica. Ao mesmo tempo, vimos a adequação entre as organizações extra-

hospitalares e a psicoterapia. Contudo, talvez pudéssemos pensar que os

psicanalistas, por causa de nossa hipótese de uma homologia entre dualismo

nosológico e dualismo institucional, fossem a favor, pelo menos, de uma reforma

radical do HP e não de sua supressão pura e simples. Ora, a homologia é apenas

lógica, e foi a vivência concreta dos psicanalistas que impôs uma posição baseada

na sua experiência do contexto profissional e do exercício de seu saber. Por

exemplo: o HP pode sofrer uma reforma radical e se transformar numa

comunidade terapêutica, onde predomina inclusive a teoria psicanalítica, do tipo

que já existiu na França e nos EUA, e a defesa desse tipo de organização

hospitalar ? ainda um aparato institucional separado das outras instituições

médicas ? não entraria em contradição com a hipótese da homologia. Na verdade,

isso não aconteceu, e, o que importou para os entrevistados, foi a consumação da

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281

terapia analítica, julgada incompatível com uma estrutura hospitalar, qualquer que

seja ela, reformada ou não;

Ø curiosamente, há um dado que pode trazer à tona a homologia: quase todos os

psicanalistas foram contra ou colocaram claras reticências à implantação de

setores psiquiátricos no HG. Os argumentos foram vários: a) medo da loucura por

parte dos médicos, em particular dos clínicos; b) preconceito contra os pacientes e

os psiquiatras; c) incompatibilidade entre o espaço hospitalar e o trabalho

psicoterápico. Assim, embora sejam contra o HP, como também o HG, estão a

favor de uma estrutura extra-hospitalar separada das outras instituições médicas.

Ironicamente, o dualismo institucional voltaria com toda a força através de uma

posição contra qualquer hospitalocentrismo;

Ø já em relação à outra homologia, entre monismo nosológico e monismo

institucional, a posição dos biomédicos e de muitos clínicos é bem nuançada.

Todos são contra o modelo atual, sustentando uma reforma radical do HP; ao

mesmo tempo, afirmam a necessidade de um modelo de reforma que contemple

setores psiquiátricos no HG. Aqui, surge a primeira diferença: a maioria dos

biomédicos coloca um peso maior no HP do que no HG, enquanto os clínicos

afirmam uma clara complementaridade entre as duas estruturas hospitalares. O

peso das estruturas extra-hospitalares é relevante, porém ainda secundário em

relação às estruturas hospitalares, embora possamos interpretar a posição de vários

clínicos como a defesa de um sistema complementar com várias estruturas de

tratamento, sem peso específico numa determinada estrutura em detrimento duma

outra;

Ø os biomédicos sustentaram uma reforma radical do HP, ao contrário do que

afirmaria a lógica da homologia: a defesa incondicional do HG na hospitalização

da DM. Sabemos que, para os biomédicos, é fundamental a volta da psiquiatria à

medicina e sua identificação, quase fusão, com a neurologia. A nossa impressão é

de que a pretendida reforma radical do HP identifica-se à sua transformação numa

estrutura hospitalar neuropsiquiátrica e altamente tecnologizada. O setor

psiquiátrico do HG surgiria como primeiro passo da hospitalização do paciente e o

HP como o local por excelência de tratamento, principalmente para os casos mais

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graves, cujo tratamento no HG tenha sido insuficiente. Diante do questionamento

de que defender um HP recauchutado significaria a defesa de uma aparato

institucional separado da medicina, os entrevistados afirmaram explicitamente que

uma reforma radical do HP implica necessariamente uma volta à medicina ? o

HP seria apenas uma estrutura específica, assim como o é uma clínica neurológica

ou cardiológica. Além do mais, segundo os entrevistados, o fato de essa estrutura

hospitalar ter como base a clínica neurológica e psiquiátrica ? em suma:

neuropsiquiátrica ? torna-a médica como qualquer outra;

Ø já os clínicos espalham-se por várias posições: a maioria defendeu o fim do HP,

assim como os psicanalistas. Outra parte substancial sustentou a reforma radical

do HP. Talvez o que os tenha diferenciado dos dois grupos seja a defesa do HG:

fim do HP, mas transferência da estrutura de hospitalização para o HG; reforma do

HP, mas uma necessária complementação com o HG. As estruturas extra-

hospitalares são relevantes, pelo menos bem mais importantes do que na posição

dos biomédicos. Em regra, pode-se dizer que a posição é baseada na

complementaridade e numa estruturação horizontal, sem peso específico, embora

com funções diferenciadas, para cada estrutura de tratamento.

Podemos resumir as posições, tomando como parâmetro o HP:

Ø hospitalocentrista baseado no HP: o hospital psiquiátrico é o referencial

institucional. Os outros serviços, inclusive o HG, são secundários, embora

cumpram uma função importante;

Ø hospitalocentrista baseado no HG: embora não tenhamos encontrado essa posição

entre os entrevistados, ela é possível logicamente. No limite, alguns clínicos

chegaram a insinuar uma certa simpatia pelo fim do HP e a transferência da

estrutura hospitalar para os hospitais gerais. As estruturas extra-hospitalares

estariam numa situação subalterna, tendo uma função apenas complementar. A

referência seria o HG;

Ø hospitalocentrista mista: a referência seria as duas estruturas hospitalares, o HP e o

HG, os dois estando numa relação de complementaridade. As estruturas extra-

hospitalares continuariam subordinadas à lógica hospitalar. Tal posição, em

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relação à referência hospitalar, pode ser considerada como moderada. Um

entrevistado conceituou-a como "múltiplo com predominante", isto é, várias

estruturas de tratamento com a predominância centrada nos hospitais;

Ø extra-hospitalar pura: não há referência hospitalar alguma, apenas estruturas de

tratamento extra-hospitalares (ambulatório, casa de acolhimento, centro de

emergência psiquiátrica...). Admite-se o hospital-dia e o hospital-noite,

considerando que, por princípio, não são exatamente estruturas hospitalares;

Ø sistema integrado complementar: seria o múltiplo sem predominante. Não seria

hospitalocentrista, pois haveria a garantia da horizontalidade. As estruturas

hospitalares, com maior peso para o HG, seriam estruturas com funções de

hospitalização rápida.

Outra discussão importante é aquela a respeito do papel da hospitalização na psiquiatria.

Possui como pano de fundo o debate anterior, embora tenha sua autonomia. Analisando as

entrevistas, percebemos uma grande preocupação em diferenciar internamento de hospitalização.

Na verdade, internamento é colocado quase como uma noção tabu, relacionada a uma época

ultrapassada da psiquiatria, os idos do asilo. Os entrevistados admitem que, atualmente, ainda se

está fazendo internamentos e não propriamente hospitalizações, dada as condições precárias dos

hospitais, considerados ainda como semi-asilares, e de um modelo psiquiátrico baseado na tutela

e na exclusão do paciente. A noção de internamento, entretanto, é um tanto vaga, podendo ter

vários significados e associações com outras noções: encarceramento, tutela, perda da cidadania,

cronicidade, loucura... O fato é que "internamento" tem um sentido negativo ? como tentou

sintetizar um entrevistado: "internamento é a hospitalização no asilo ". Mas podemos perceber

que a noção é reservada para procedimentos considerados fora do campo médico, embora tenham

algum sentido para a psiquiatria, principalmente durante a sua história. "Hospitalização", assim,

recupera uma psiquiatria mais humanizada e anti-asilar. Diante do pejorativo internamento, é

uma noção ética e cidadã.

Muitos entrevistados, além da denúncia das atuais condições asilares dos hospitais

psiquiátricos, foram contra a hospitalização. Praticamente todos aqueles que pediram o fim do

HP, fizeram severas reticências à hospitalização. Pelo que interpretamos, hospitalização, mesmo

num HP reformado, significaria ainda internamento. Have ria um atendimento emergencial em

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psiquiatria, com imediata compensação do paciente e envio do mesmo para outras estruturas

extra-hospitalares ? segundo um entrevistado, o fato de um paciente passar uma semana num

centro de emergência psiquiátrica ainda não caracterizaria uma hospitalização. O termo é, assim,

identificado à hospital e daí a internamento. Normalmente, a defesa do fim da hospitalização vem

acompanhada, no discurso, de uma premissa: reforma psiquiátrica com criação de estruturas

extra-hospitalares.

Quem não foi contra o fim da hospitalização, sustentou a necessidade de uma restrita. O

discurso pode ser resumido dessa forma: tem doença que não tem como não internar. A definição

do caso restrito passa pela definição jurídica (auto e heteropericulosidade) e médica (gravidade

dos sintomas). Comumente, ocorre a mistura das duas definições, principalmente no caso em que

a gravidade dos sintomas seja identificada a tentativas de suicídio ou extrema agressividade. Mas

existe um outro tipo de discurso, que encontramos em alguns entrevistados, um tanto paradoxal e

contraditório: há o reconhecimento de que a hospitalização não é necessária, porém deve ser

realizada por causa do preconceito social e mesmo por pressão da família. A hospitalização torna-

se inevitável devido a fatores, digamos assim, extra-médicos. O entrevistado pode até resistir a

várias injunções familiares para a hospitalização; contudo, como a pressão é cotidiana, o

psiquiatra fraqueja enfim e abre a guarda. Há uma certa franqueza nessa confissão, pois a defesa

da hospitalização restrita, na verdade, insere-se de forma cômoda no discurso profissional, já que,

na prática, a hospitalização é ampla e irrestrita. No fundo, o discurso pede desculpa à prática.

Quase como uma desculpa, ainda existe uma outra resposta, do tipo: "devemos fazer o

possível para evitar a hospitalização; ela deve ser breve e rápida; tem casos que é impossível o

tratamento sem a hospitalização". Fica-se sem saber até que ponto, para o entrevistado, a

hospitalização não deveria existir, mas parece que a realidade impõe-na, ao risco de o

profissional ter que aceitar a sua convivência, independentemente da sua vontade. Pareceu-nos

evidente que a hospitalização impõe para o psiquiatra uma série de justificações, devido mesmo

ao seu caráter estigmatizante. Existiria uma espécie de "culpa" em relação à hospitalização, até

entre os psiquiatras que defendem o HP. Apesar da dupla transformação reiterada e aprovada por

todos ? do asilo para o hospital; do internamento para a hospitalização ? , a carga negativa em

torno desse ato de passagem da psiquiatria ainda existe forte o suficiente para causar embaraço.

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Não causa surpresa que o debate acima descrito, sobre o hospital e a hospitalização,

repercuta de frente quando se discute a reforma psiquiátrica. Todos os entrevistados foram

unânimes em dizer que a psiquiatria brasileira não pode continuar como está atualmente. Foram a

favor da reforma, mas não existe propriamente consenso a respeito de qual modelo adotar. A

maioria dos entrevistados, inclusive, tem críticas sobre a sua implantação: está lenta demais, está

rápida demais, radical em demasia, conservadora em excesso. Contudo, basicamente o ponto

maior de controvérsia seria o modelo adotado. E, justamente, o grande problema é que somente

uma minoria de entrevistado sabe alguma coisa a respeito do modelo adotado. Uma minoria que,

não por mera coincidência, tem algum interesse ou empatia com o movimento que gerou a

reforma.

Nesse sentido, as respostas foram extremamente vagas. Houve raros elogios explícitos à

reforma enquanto prática realizada, ao contrário da unanimidade à necessidade de reforma. De

todo modo, como a reforma combate o hospitalocentrismo, todos os entrevistados, cuja simpatia

passava por qualquer modelo no qual o hospital ainda tem alguma primazia, foram reticentes à

reforma; de mesmo contrário, os entrevistados que foram contra o HP ou que defenderam um

sistema integrado sem predominância hospitalar mostraram um interesse pela reforma. Mas, se

houve controvérsias, pelo menos ocorreu algum consenso em relação aos problemas que a

reforma precisará enfrentar: 1) preconceito contra a reforma: muitos colocaram que o medo da

loucura atrapalha o movimento reformista, precisando assim de uma campanha acoplada de

esclarecimento; outros, que há resistência ideológica, principalmente por parte daqueles que

advogam um modelo asilar de tratamento psiquiátrico; 2) lobby privado: a maioria dos

entrevistados alegou que o sistema privado é um obstáculo à reforma porque bate de frente com a

eliminação de leitos hospitalares e, conseqüentemente, com a diminuição das hospitalizações.

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XIII. Considerações Finais (à guisa de conclusão)

O fim de uma tese possui um sintoma típico: o medo de um olhar retrospectivo. Medo do

epílogo. Depois de todo um caminho de teorização e de pesquisa, temos a obrigação de examinar

tudo o que foi feito e responder à pergunta dilacerante: ? afinal, qual é a conclusão? Sim, com

efeito, qual seria a nossa conclusão? Talvez a ratificação de que analisar a identidade profissional

de psiquiatras é, de fato, uma tarefa complexa e difícil. Aliás, bem mais difícil do que

pensávamos inicialmente. Imaginávamos, no começo, que apreender a identidade profissional

não exigiria tanto esforço conceitual ? a identidade profissional dos psiquiatras fosse, digamos

assim, mais transparente e evidente. Nosso ponto de partida, no fundo, era de que não existisse

uma contradição tão visível entre identidade e papel social. Aos poucos, fomos obrigados a

procurar um caminho analítico no qual se reconhecesse a assimetria inerente ao processo de

identificação. Outra dificuldade foi a de estabelecer a relação entre identidade e prática, criando a

necessidade de se introduzir uma mediação, o conceito de representação, cuja vantagem foi a de

ter mostrado que a relação possui uma dialética bem mais complexa e árdua de se apreender. Por

causa disso, inclusive, tivemos que articular, de alguma forma, o campo representativo da doença

ao campo profissional, justamente porque o objeto profissional da psiquiatria, a doença mental,

possui uma importância relevante na construção da identidade profissional.

No fundo, olhando retrospectivamente, tentamos implementar uma construção teórica,

cuja interpretação do mundo empírico pudesse articular o psicológico e social, centrada no que

chamamos de "indivíduo socializado". Ela nos permitiu relacionar representações, práticas e

identidades ao examinarmos a maneira de pensar e agir de sujeitos inscritos em contextos

profissionais. Inclusive, a diversidade de representações e lógicas de ação trouxe a necessidade de

utilizarmos vários de aportes teóricos, cuja utilidade foi a de permitir uma melhor apreensão do

conjunto de problemas trazidos à baila pelo nosso objeto de estudo. Evidentemente, o apelo a

vários sistemas explicativos precisa de uma organização teórica, minimamente coerente e

operacional, que permita uma gestão clara das tomadas de decisão, sobretudo em relação às

interpretações realizadas a partir do material empírico. Ao se propor uma análise diferencial das

representações e ao se estudar as suas relações com as práticas e os processos de identificação,

tentou-se evitar a idealização das representações, isto é, um certo de tipo de mentalismo que as

transferisse mecanicamente para o mundo empírico.

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287

Na nossa opinião, nossas análises demonstraram que o objeto profissional é constitutivo

da identidade profissional entre os psiquiatras. Todavia, seria uma questão empírica saber se o

objeto profissional do neurologista, por exemplo, possui uma importância comparável ao do

psiquiatra. A representação de doença em neurologia é estável. É dada para o profissional. Não

há necessidade de se posicionar, visto que já existe um consenso etiológico, isto é, uma tomada

de posição oficial a respeito da doença em neurologia. Não há ortodoxia, propriamente dita na

psiquiatria, mas sim uma competição entre linhas nosológicas que buscam a hegemonia no

campo psiquiátrico. O objeto da psiquiatria possui uma natureza que impede a sua apropriação

completa pela medicina psiquiátrica. E, atualmente, não é mais monopolizado pela psiquiatria e

sim socializado entre as várias profissões do campo da saúde mental. O objeto da psiquiatria

tornou-se objeto da saúde mental, logo, é representado e apropriado por várias profissões. Mas,

convenhamos, a doença mental nunca foi propriamente unidimensional, pois sempre existiram,

dentro da psiquiatria, sobretudo após a segunda guerra, várias representações oficiais, oficiosas e

não oficiais sobre a "loucura". A novidade é, assim, a ampliação dimensional do objeto para

outras profissões que, atualmente, formam o campo profissional da saúde mental. A doença

mental tornou-se um objeto pluriprofissional, possuindo um papel identitário diversificado. Os

psiquiatras, como vimos, possuem uma percepção aguda do problema e, alguns, um temor

pronunciado, pois a apropriação do objeto por outras profissões, independentemente do fato de

serem do campo da saúde mental, é uma perda concreta do antigo status da psiquiatria, quando

esta tinha o controle exclusivo da construção representacional do objeto profissional.

Pelo fato de não existir um consenso etiológico no campo psiquiátrico, há uma luta

fratricida entre diversas correntes nosológicas, embora ocorram também contemporizações,

sobretudo, como vimos, através do mecanismo de bricolagem. De todo modo, do ponto de vista

do controle representacional do objeto profissional, a psiquiatria possui uma fraqueza simbólica,

traduzida numa dificuldade de legitimação, não conseguindo impor no cenário disciplinar da

medicina uma concepção homogênea de doença. Se dentro da área médica, a psiquiatria não

consegue legitimar uma concepção de doença, o mesmo acontece no campo da saúde mental. O

que existe é um espaço onde há um pluralismo de representações de doença mental, justamente

porque acontece um pluralismo de profissões que têm como objeto profissional a doença mental.

Evidentemente, toda essa situação cria tensões identitárias, cujas conseqüências são percebidas

no trabalho em equipe. E, pelo que interpretamos do nosso trabalho, quanto mais constituída a

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288

equipe multiprofissional em saúde mental, mais tensão haverá, mais necessidade terão os

psiquiatrias de re-configurarem sua ocupação para se adaptar aos novos tempos.

Por isso, repetimos, o exame do objeto profissional foi fundamental para o estudo da

identidade profissional entre os psiquiatras. Contudo, tivemos a necessidade de estabelecer o

alcance das representações da doença mental enquanto guias da ação dos entrevistados.

Percebemos assim algumas limitações, pois seria uma questão empírica saber, pelo menos em

relação ao nosso objeto de estudo, quando uma representação social possui essa capacidade de

orientação de conduta. Um exemplo: um psiquiatra que tenha uma representação analítica da

doença mental, dependendo do contexto, não "realiza" sua representação em termos de

comportamento. Como vimos, trabalhando num hospital público ou privado, ou se enquadra nas

normas da instituição ou o próprio ambiente impede que sua conduta seja "guiada" pela sua

representação. É no consultório que observamos uma adequação entre prática e representação,

pois está organizado de tal forma que permite o trabalho analítico. Em suma, percebemos limites,

em relação à determinação da prática, no alcance da representação.

O limite no alcance da representação pôde também ser percebido noutro contexto.

Observamos que a representação para "funcionar" precisava ter um mínimo de enquadramento

doutrinário. Acreditamos que isso seja característica das representações do campo profissional,

sobretudo daquelas que têm como mira o objeto da profissão, no caso daqui a doença mental.

Assim, a representação analítica e a biológica apresentaram uma capacidade de enquadramento

normativo relativamente forte, enquanto a representação clínica, justamente por não apresentar

uma característica doutrinária, não demonstrou a mesma força de coesão lógica e de indução de

condutas, não sendo um ponto de referência no qual se aglutinam atitudes e opiniões dos

entrevistados. Pode-se dizer que a representação clínica foi afetada pelo ecletismo dos

entrevistados, cuja característica é a mistura de registros nosológicos e de lógicas de ação

profissionais, perfazendo o que chamamos de bricolagem. De todo modo, chegamos à conclusão

de que a representação da doença mental, do ponto de vista identitário, pode se transformar,

dependendo das circunstâncias, em habitus ? no caso de psicanalistas e neuropsiquiatras

absolutamente convictos da sua noção de doença, ao ponto de percebê- la como doutrina ? ,

embora na maioria absoluta dos casos seja muito mais próxima do que chamamos de forma

identitária. As representações do objeto profissional podem estar a meio caminho entre o habitus

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289

e as formas identitárias, mas as exclusivamente profissionais, ao contrário, são autênticas formas

identitárias, por causa de sua dependência do contexto ? logo, sua caracterização flutua segundo

as situações, e não pode ser deduzida logicamente, sendo sempre uma questão empírica.

Em relação ao campo profissional, o ponto central da discussão foi, provavelmente, a

discussão sobre a equipe multiprofissional, até porque as observações e as entrevistas mostraram

que, no trabalho em equipe, o jogo identitário profissional possui uma visibilidade importante.

Pensamos que o destino da equipe em saúde mental é o futuro da construç ão identitária do

psiquiatra, seja no sentido de uma luta profissional para a manutenção da posição privilegiada155

do médico, seja aceitando uma democratização do poder profissional médico, o que implicaria

uma re-configuração identitária. Sinceramente, somos pessimistas em relação a esse processo: o

primeiro cenário, na nossa opinião, sufocaria as potencialidades do trabalho em equipe; o

segundo geraria uma crise de identidade da qual não sabemos os desdobramentos. Na verdade, a

viabilização do trabalho em equipe, daí concretamente o nosso pessimismo, exigiria a realização

prática da Reforma Psiquiátrica, o que dificilmente vai acontecer a médio prazo. A tendência é a

saúde mental brasileira continuar atolada na transição e, assim, o trabalho em equipe permanecer

quase pro forma, favorecendo a institucionalização definitiva do poder médico. Por isso, a

realização prática da Reforma agilizaria a consolidação do trabalho em equipe no seio da saúde

mental ? convenhamos, mesmo uma equipe com uma clara coordenação médica, mas

funcionando a contento e erigida numa mínima participação consensual, é melhor do que a

situação atual.

Em relação à vocação, a discussão confirmou o que foi analisado teoricamente: a vocação

é um habitus vinculado ao individualismo. Assim sendo, encontramos no material empírico as

interpelações clássicas do individualismo moderno, sobretudo no sentido de uma vocação como

realização de si. Contudo, temos a impressão que, dada as injunções do mercado e da entrada em

cena de elementos relacionados ao individualismo contemporâneo, é possível que estejamos

chegando a uma época de crise vocacional. Por isso, achamos que a "escolha pragmática" será

cada vez mais dominante na escolha profissional. O ponto de referência será, de forma crescente,

a ascensão social e não uma motivação interna, do tipo vocacional clássico; será o mercado de

155 A defesa do Ato Médico é um sinal de que o conflito pode estar se direcionando para esta posição.

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trabalho, e não "a realização de si"; será o sucesso e o reconhecimento, e não a "vontade de

ajudar". Assim, um estudante de medicina escolherá a psiquiatria, por exemplo, por sua inserção

no mercado de trabalho e sua resposta imediata em termos sobretudo financeiros156. Pensamos

que a crise vocacional é inerente a esse processo, sua conseqüência lógica e real.

Por fim, vale a pena assinalar um "ponto futuro" em nosso trabalho: carecemos de um

trabalho comparativo. Como discutimos na análise conceitual, a sociologia das profissões

necessita da comparação para tornar-se pertinente e fecunda. Comparação entre segmentos

profissionais, comparação entre profissões, comparação com sistemas profissionais de outros

países. Evidentemente, tal trabalho comparativo tornaria nossa pesquisa mais profunda, bem

como permitiria um alcance interpretativo bem maior do que aquele que foi realizado aqui.

Acreditamos que, assim, nosso trabalho é uma sinalização, um ponto de partida para outros

trabalhos de cunho comparativo que possa, inclusive, confirmar ou infirmar nossos

questionamentos, nossas hipóteses e nossas conclusões.

156 Por isso, talvez, encontramos atualmente tão poucos estudantes interessados na psiquiatria ? decididamente, ela não tem uma "resposta de mercado".

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XV. Anexo I

Guia de entrevista:

Doença mental:

interrogar o psiquiatra sobre sua concepção de psicose, em particular, sobre a esquizofrenia.

interrogar o psiquiatra sobre sua concepção acerca do lugar que ocupa as nevroses na psiquiatria.

Interrogar o psiquiatra sobre a existência ou não do dualismo nosológico na psiquiatria

interrogar o psiquiatra sobre as etiologias das doenças mentais (determinar o lugar do biológico, do psíquico e do meio social e familiar na etiologia).

interrogar o psiquiatra sobre o tratamento sintomático das doenças mentais (o lugar dos medicamentos e das psicoterapias).

interrogar o psiquiatra sobre as principais dificuldades do tratamento sintomático das doenças mentais.

interrogar o psiquiatra sobre os preconceitos face à doença mental.

Psiquiatria e seu saber

interrogar o psiquiatra sobre o caráter científico da psiquiatria

interrogar o psiquiatra sobre a relação entre a psiquiatria e a neurologia

interrogar o psiquiatra sobre as diferenças entre saber psiquiátrico e saber profano da doença mental

Identidade profissional

interrogar o psiquiatra sobre o lugar da psiquiatria na sociedade

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305

interrogar o psiquiatra sobre o lugar da psiquiatria na medicina, principalmente face à neurologia (valorização ou desvalorização da psiquiatria, retorno da psiquiatria à neurologia).

interrogar o psiquiatra sobre as relações profissionais nas quais ele se engaja para fazer seu trabalho

interrogar o psiquiatra sobre quais as relações mais difíceis dentro do trabalho

interrogar o psiquiatra sobre o trabalho em equipe

interrogar o psiquiatra sobre o tratamento (monopólio ou não)

Trajetória

Profissão dos pais e avós

interrogar o psiquiatra sobre sua vocação profissional (o motivo de ter escolhido a psiquiatria, o tipo "ideal" do psiquiatra)

Centro de formação universitária (idade de entrada e saída) e as características da disciplina de psiquiatria

currículo sucinto

instituição de referência, psiquiatra de referência e obras de psiquiatria de referência

percurso profissional depois de sua entrada no mercado de trabalho (quais instituições, salários iniciais e atuais)

Lugar(es) de trabalho atual(is) (nível de satisfação)

Hospital

interrogar o psiquiatra sobre o lugar do hospital psiquiátrico nas instituições médicas

interrogar o psiquiatra sobre o lugar do hospital geral nas instituições psiquiátricas.

interrogar o psiquiatra sobre o papel do hospital psiquiátrico no ostracismo do paciente

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interrogar o psiquiatra sobre o papel da hospitalização na psiquiatria

interrogar o psiquiatra sobre o sistema psiquiátrico francês/brasileiro (seus problemas, suas virtudes, seu futuro)

XVI. Anexo II

Protocolo de observação

1. PSIQUIATRA / PACIENTE

1.1. Psiquiatra / situação de consulta

1.2. Psiquiatra / situação de hospitalização (hospitalização compulsória e/ou voluntária)

1.3. Psiquiatra /situação de assistência e de acompanhamento do paciente hospitalizado

1.4. Psiquiatra / psicótico

1.5. Psiquiatra/ neurótico

1.6. Psiquiatra / diagnóstico

1.7. Psiquiatra/ tratamento

2. PSIQUIATRA / SERVIÇO (HOSPITAL, SETOR OU AMBULATÓRIO)

2.1. Organograma do hospital ou do serviço

2.2. Psiquiatra / hierarquia do serviço

2.3. Psiquiatra / normas do serviço

3. PSIQUIATRA / PROFISSIONAL DE SAÚDE

3.1. Psiquiatra / trabalho em equipe

3.2. Psiquiatra / enfermeiras

3.3. Psiquiatra / hierarquia funcional ou profissional

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3.4. Psiquiatra / Psiquiatra

4. PSIQUIATRA / PROCEDIMENTOS

4.1. Psiquiatra / medicamentos

4.2. Psiquiatra / dossiê

4.3 Psiquiatra / caso difícil

4.4 Psiquiatra x árbitro de seu poder (alocação do paciente, transferência de pavilhão, etc)