perspectivas no estudo da leitura texto, leitor e...
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Referência: LEFFA, Vilson J. Perspectivas no estudo da leitura; Texto, leitor e interação social. In: LEFFA, Vilson J. PEREIRA, Aracy, E. (Orgs.) O ensino da leitura e produção textual; Alternativas de renovação. Pelotas: Educat, 1999. P. 13-37.
Perspectivas no estudo da leituraTexto, leitor e interação social
Vilson J. Leffa, UCPEL
INTRODUÇÃO
A pretensão deste trabalho é oferecer uma visão panorâmica do fenômeno
cognitivo/social da leitura, com ênfase no processo da construção do sentido.
Para fins de organização do texto, tenta-se classificar as diferentes linhas
teóricas que tratam da leitura em três grandes abordagens: (1) as abordagens
ascendentes, que estudam a leitura da perspectiva do texto, onde a construção
do sentido é vista basicamente como um processo de extração; (2) as
abordagens descendentes, com ênfase no leitor e que descrevem a leitura como
um processo de atribuição de significados; e, finalmente, (3) as abordagens
conciliadoras, que pretendem não apenas conciliar o texto com o leitor, mas
descrever a leitura como um processo interativo/transacional, com ênfase na
relação com o outro.
A pretensão maior é tentar reunir tudo isso num único capítulo e produzir
um texto útil. A necessidade de ser econômico nos obrigará, às vezes, ao uso
de algumas metáforas, principalmente quando tratamos das relações entre o
texto e o leitor. Assim, vemos o texto como uma rede colocada na base do
processo, pretensamente protegendo o leitor na eventualidade de uma queda;
acima do texto, vemos o leitor, pairando em algum lugar do espaço, assumindo
riscos maiores ou menores nas suas evoluções, com maior ou menor grau de
confiança na segurança da rede. Mostrar que o leitor não está sozinho diante do
texto, mas faz parte de uma comunidade consumidora de textos, é o objetivo
maior deste trabalho.
Descer à rede do texto é a parte mais perigosa deste projeto, com a
descrição de detalhes não muito agradáveis. Trata-se, porém, de uma incursão
necessária. Muito do que acontece em nossa mente quando lemos está abaixo
da superfície da consciência, onde as tarefas são executadas de modo
extremamente rápido e automático, no que se convencionou chamar de
processamento em paralelo. Trabalha-se com muitas hipóteses e poucas
certezas neste nível mais profundo, mas é um ponto de partida necessário,
principalmente por compor a imensa base inconsciente do que poderíamos
chamar de iceberg da leitura.
Acima do texto, portanto, está o leitor. Quando, na teoria da leitura, põe-se
à ênfase no leitor, concentra-se basicamente em algo que acontece na mente
desse leitor. A construção do significado não é feita a partir do texto, num
processo de extração, mas a partir do leitor, que não extrai do, mas atribui ao
texto um significado. Poderíamos dizer que é um processo ilusoriamente
consciente de compreensão do texto. O leitor pode ter consciência de estar
fazendo uma coisa vendo, por exemplo, um determinado significado no texto
quando na realidade pode estar fazendo outra: atribuindo um significado, que
segundo um outro leitor pode ou não estar presente no mesmo texto (definindo
aqui, cautelosamente, a ilusão como a discordância entre o que um leitor vê e
outro não).
Finalmente, no fim do processo, temos a presença do outro. O encontro do
outro na leitura pode levar algum tempo. Há aprendizes do ofício, leitores de
triste figura, que ficam presos às grades do texto ou do mundo individual que
construíram e são incapazes de se libertar. Outros, no entanto, partem para a
busca e chegam, mais cedo ou mais tarde, ao momento da revelação. Na área
da literatura, a revelação pode ser precedida de vários indícios, de encontros
ocasionais e troca de olhares com o autor do texto, até chegar aquelas noites
em claro que se passa na companhia de um livro. Na área acadêmica, a
revelação dá-se pela aprendizagem das regras de convivência de um grupo
social, geralmente composto de um grupo de pessoas interessadas num
determinado assunto o que Swales (1990) chama de comunidade discursiva.
A leitura deixa de ser um encontro furtivo com o texto ou consigo mesmo para
ser um encontro permanente com o outro. O leitor passa finalmente da categoria
de excluído para a de participante.
O que se pretende é descrever a leitura como um processo de interação.
Parte-se do princípio de que para haver interação é necessário que haja pelo
menos dois elementos e que esses elementos se relacionem de alguma
maneira. No processo da leitura, por exemplo, esses elementos podem ser o
leitor e o texto, o leitor e o autor, as fontes de conhecimento envolvidas na
leitura, existentes na mente do leitor, como conhecimento de mundo e
conhecimento lingüístico, ou ainda, o leitor e os outros leitores. No momento em
que cada um desses elementos se relaciona com o outro, no processo de
interação, ele se modifica em função desse outro. Em resumo, podemos dizer
que quando lemos um livro, provocamos uma mudança em nós mesmos, e que
essa mudança, por sua vez, provoca uma mudança no mundo.
A opção pela abordagem interativa, neste trabalho, leva também em
consideração aspectos que poderíamos chamar de psicológicos, pedagógicos e
necessários para a teoria da leitura. Entre os aspectos psicológicos está a
tradição interativa na explicação da aprendizagem, em geral, e da compreensão,
em particular destacando-se, entre outros, a percepção do mundo através de
categorias, segundo Kant, os processos de acomodação e assimilação de
Piaget (1971), o papel do conhecimento prévio na memória, demonstrado por
Bartlett (1932), a idéia de Wittgenstein de que compreender é relacionar, bem
como as inúmeras experiências realizadas pelos pesquisadores da Teoria de
Esquemas (Ex.: Rumelhart, 1981) demonstrando a importância dos
mecanismos de interação entre o conhecimento antigo e os dados do texto. Na
pedagogia da leitura, também, o pressuposto interativo perpassa diferentes
linhas teóricas, desde abordagens psicolingüísticas (Ex. Leffa, 1996a), até
propostas voltadas para as questões de gênero (Ex: Motta-Roth, 1998) e para os
aspectos sociais da leitura (Ex: Moita Lopes, 1996).
O argumento mais forte, no entanto, pelo uso aqui da abordagem interativa
é o pressuposto de que ela é necessária para uma explicação adequada e
completa da leitura. Essa explicação deve envolver não apenas aspectos
essenciais do texto, do leitor e da comunidade discursiva em que o outro está
inserido, mas também de que modo esses aspectos se autoinfluenciam. A
abordagem interativa, na medida em que perpassa diferentes linhas teóricas,
permite o estudo dos vários elementos que compõem a leitura, de maneira
distribuída e equilibrada, evitando a centralização num único foco de interesse.
Ao examinar o processo da leitura de três perspectivas básicas · o texto, o
leitor e a comunidade · não se partem de elementos isolados para a análise do
processo, mas de perspectivas diferentes, onde, independente da focalização
dada num determinado momento, mantém-se a visão dos outros aspectos.
Olha-se a leitura primeiramente sob a perspectiva do texto, depois do leitor e
finalmente da comunidade discursiva, descrevendo-se cada uma dessas
perspectivas não como pontos de vista fixos, mas dinâmicos, em mudança
constante, à medida que interagem durante o processo extremamente complexo
da leitura.
A PERSPECTIVA DO TEXTO
Historicamente pode-se dizer que há na teoria da leitura um movimento,
que vai de uma ênfase inicial no texto, passa depois para uma ênfase no leitor e
chega-se finalmente a uma ênfase no contexto social. É um movimento de
complexidade crescente. O estudo do texto pode ser relativamente simples (e o
foi historicamente) focalizando questões como a freqüência de palavras e
organização sintática da frase. A ênfase no leitor já envolve uma complexidade
maior, considerando não apenas o que acontece durante a leitura, mas também
a experiência de vida que antecede o encontro com o texto. Finalmente, a
ênfase no contexto social procura examinar a leitura como um fenômeno social
restrito a determinadas comunidades e sujeito às suas normas, regras e
restrições.
Falar do texto quando se fala de leitura é de certa maneira falar do
passado, embora pesquisas recentes em determinadas áreas (i. e. inteligência
artificial, lingüística textual) têm reavivado o interesse no seu estudo. Na
inteligência artificial, temos os estudos sobre anáfora (ex. Mitkov, 1999),
ambigüidade lexical (ex. Justeson; Katz, 1995) e segmentação textual (ex.
Stefanini, 1993). Na lingüística textual, podemos citar, entre tantos outros, os
estudos sobre sinalizadores lexicais (ex. Araújo, 1996), organização retórica (Ex.
Meurer, 1997), repetição lexical (ex. Hoey, 1991).
Mas foi no passado, principalmente nas décadas de 50 e 60 nos Estados
Unidos, que a perspectiva do texto predominou nos estudos da leitura.
Buscava-se, nessa época a invisibilidade do texto, combatendo-se com rigor
toda e qualquer opacidade. O que se queria era que o texto, visto como um
intermediário entre o leitor e o conteúdo, fosse transparente, mostrando o
conteúdo da maneira mais clara possível. A proposta de Anatole France
"primeiro a clareza, depois a clareza e, por fim, a clareza" era o lema da época.
O resultado dessa preocupação foi a enorme popularidade das fórmulas de
inteligibilidade ("readability formulae"), das antologias básicas ("basal readers"),
e, no ensino da segunda língua, dos livros de textos simplificados. Segundo
Leffa:
O texto inteligível era aquele que apresentava um vocabulário comum, medido pelo
critério de extensão da palavra e uma estrutura simples, medida pelo critério do
tamanho da frase. Como em inglês as palavras mais freqüentes e comuns da língua são
geralmente monossilábicas, foi fácil criar fórmulas relativamente simples que eram
capazes de avaliar sem grande esforço o grau de inteligibilidade de um texto (Dale &
Chall, 1948; Flesch, 1951; Fry 1968). O pressuposto básico era de que mesmo
conceitos complexos podiam ser expressos em linguagem simples, usando vocabulário
comum, frases curtas e a voz ativa do verbo (Leffa, 1996b, p. 144).
Na escola os livros didáticos e paradidáticos eram preparados para cada
série do ensino primário e secundário, seguindo rigorosamente as fórmulas de
inteligibilidade, com as fronteiras bem delimitadas, não se permitindo, portanto,
qualquer sobreposição de uma série para outra. Fora da escola, onde não era
possível a estratificação, buscava-se um leitor universal, de competência
genérica, forçosamente nivelando-o por baixo. Para atingir a esse leitor, artigos
e livros já publicados eram reescritos com maiores ou menores recortes e
condensações e republicados em linguagem mais simples, às vezes com
grande sucesso, como atestam as grandes tiragens, na época, do Reader's
Digest, traduzido para o português como Seleções do Reader's Digest. A
escolha do vocabulário e das estruturas sintáticas ficava restrita àquilo que era
julgado do conhecimento do leitor, cuidando sempre para jamais expô-lo a uma
palavra ou frase que lhe fosse estranha. O que se buscava era adaptar o texto
ao leitor, respeitando suas limitações; a falta de proficiência em leitura era um
direito do leitor.
Embora houvesse alguma preocupação com a contextualização no ensino do
vocabulário e fórmulas simplistas baseadas apenas nas estatísticas de freqüências de
palavras já fossem condenadas (Flesch, 1946), a idéia predominante era de que o grau
de compreensão alcançado pelo leitor dependia das características do texto. A resposta
dada por Flesch (1953) em seu famoso livro Why Johnny can't read (Por que Joãozinho
não sabe ler) era de que Johnny não sabia ler porque os textos eram, de um modo geral,
muito mal escrito (Leffa, 1996b, p. 145).
Ao tentar extirpar o texto de qualquer estranhamento, lexical ou sintático,
visava-se não apenas deixá-lo transparente e cristalino para o leitor qualquer
leitor mas partia-se, também, do pressuposto de que o texto deveria ser
processado na sua totalidade. A leitura não era vista como um processo
seletivo, onde o leitor busca no texto, de modo ativo, as informações que lhe
interessam, mas um processo passivo, onde tudo é importante, cada frase e
cada palavra. Devido à transparência do próprio texto, que de tão familiar se
torna invisível, o processamento se dá de modo total e inconsciente, já que
conscientemente não seria possível processar tanta informação.
O aspecto mais importante da leitura, nesta perspectiva textual, é a
obtenção do conteúdo que subjaz ao texto. O conteúdo não está no leitor, nem
na comunidade, mas no próprio texto. Daí que a construção do significado não
envolve negociação entre o leitor e o texto e muito menos atribuição de
significado por parte do leitor; o significado é simplesmente construído através
de um processo de extração. Tudo está no texto, mas separado em duas
camadas: uma camada profunda, que é o conteúdo a ser acessado pelo leitor, e
uma camada superficial, que recobre o conteúdo, mostrando-o com maior ou
menor clareza, dependendo justamente de sua transparência. Como na imagem
de Thoreau, o texto é o vidro que protege a paisagem numa pintura. Ler é
extrair esse conteúdo, e a leitura será tanto melhor quanto mais conteúdo
extrair.
O processo que o leitor poderá usar para extrair esse significado não faz
parte dos interesses da leitura sob a perspectiva do texto. O processo da
compreensão, por não poder ser explicado empiricamente, é visto
simplesmente como uma caixa preta um processo mais ou menos mágico, a
que Gough (1972) deu o nome de Merlin, descrevendo-o como um PWSGWTAU
(Place Where Sentences Go When They Are Understood / Lugar Onde as
Sentenças Vão Quando Elas São Compreendidas).
A leitura é vista como um processo ascendente ("bottom-up" em inglês),
fluindo do texto para o leitor. É, portanto, um processamento ativado pelos
dados ("data-driven" em inglês), onde as atividades executadas pelo leitor são
determinadas pelo que está escrito na página. Na medida em que ler é extrair
significados, um mesmo texto produz sempre os mesmos significados, pelo
menos em leitores de um mesmo nível de competência. O mais competente
pode ditar o significado ao menos competente, incluindo a situação típica de sala
de aula, onde o texto significa aquilo que o professor diz que ele significa.
Para obter outros significados é preciso ler outros texto, justificando um
pensamento de Fulton Sheen, autor de vários livros de não-ficção na década de
60: "Quando todos lêem a mesma coisa, ninguém sabe nada". Não só todos
que lêem as mesmas coisas sabem as mesmas coisas, mas também todos lêem
tudo do mesmo jeito. Produto e processo são os mesmos. O que caracteriza a
leitura é a linearidade, representada por um movimento uniforme dos olhos,
consumindo o texto da esquerda para a direita e de cima para baixo (em línguas
como o português e o inglês), sem recuos e sem saltos para a frente.
A capacidade de reconhecer as letras e as palavras é considerada
essencial, enfatizando-se assim o processamento de baixo nível. Ler é
basicamente decodificar, palavra que na teoria da leitura significa passar do
código escrito para o código oral. Uma vez feita essa decodificação, chega-se
supostamente sem problemas ao conteúdo. Embora descartada pela maioria
dos pesquisadores como um estágio intermediário e necessário para a
compreensão, a decodificação (ou recodificação) ainda é vista por muitos como
um aspecto fundamental da leitura, pelo menos numa fase inicial de
desenvolvimento da consciência fonológica (Adams, 1996; Goswami, 1998).
A habilidade no reconhecimento de palavras é outro aspecto da
perspectiva ascendente do texto que tem permanecido nos debates sobre a
importância do vocabulário na compreensão. A argumentação básica é de que
numa análise componencial das diferentes habilidades ou fontes de
conhecimento do leitor, a competência lexical é o fator crítico da compreensão,
suplantando todos os outros componentes, incluindo conhecimento do tópico,
domínio da estrutura discursiva, capacidade de síntese e estratégias de
monitoração (Grabe, 1991). A conexão entre conhecimento do vocabulário e
compreensão de leitura é vista não apenas como uma correlação positiva (todas
as demais condições sendo iguais, o leitor que possuir um vocabulário maior
compreende melhor um texto), mas como uma relação de causa e efeito (o leitor
que aumentar seu vocabulário aumentará automaticamente a compreensão do
texto, todas as demais condições sendo iguais). (Como veremos adiante, há um
diferença importante entre correlação positiva e relação de causa e efeito que
precisa ser explicada)
Mesmo as abordagens interativas, que consideram tanto os aspectos
ascendentes, com base no texto, como os aspectos descendentes, com base no
leitor, privilegiam a orientação ascendente com ênfase em habilidades de
reconhecimento de palavras (Grabe, 1991). Mas são os estudos sobre o
movimento dos olhos na leitura, conforme levantamento feito por Chun & Plass
(1997), que parecem oferecer o suporte maior, mostrando dois aspectos
interessantes. Primeiro, tanto os leitores principiantes como os leitores mais
proficientes processam praticamente todas as palavras do texto, de modo
menos ou mais automático, dependendo justamente do grau de proficiência.
Segundo, contrariando o mecanismo de previsão proposto por Smith (1994),
Goodman (94) e outros a grande maioria das palavras são reconhecidas
antes que as informações contextuais possam influenciar o acesso lexical.
CRITICAS A PERSPECTIVA TEXTUAL
A perspectiva do texto na leitura tem suscitado inúmeras críticas aos
longos dos anos por três razões principais: (1) ênfase no processamento linear
da leitura, (2) defesa da intermediação do sistema fonológico da língua para
acesso ao significado e (3) valorização das habilidades de baixo nível, como o
reconhecimento de letras e palavras. Resumidamente:
Pelo pressuposto do processamento linear, o significado é extraído
seqüencialmente do texto, da esquerda para a direita, de cima para baixo,
página após página. O principal defensor dessa teoria foi Gough, em seu famoso
artigo de 1972, com mais de 25 páginas e que se intitulava "Um segundo de
leitura" onde descreve em detalhes o que entende, ou entendia na época,
constituir o processo da leitura: laboriosamente seqüencial. A principal crítica
que se pode fazer é citar o próprio Gough. Como as idéias não parecem ser o
produto de um homem, mas de uma época, Gough, em época posterior, refutou
o que tinha escrito, num pós-escrito curto que iniciava dramaticamente com a
frase “The model is wrong/O modelo está errado” (Gough, 1985). O que tão
laboriosamente tinha construído com um artigo, destruíra com uma nota.
O processamento linear tem sido questionado tanto na teoria como prática
da leitura. Na prática pode-se argumentar que há diferentes tipos de leitura para
atender a diferentes objetivos, apenas eventualmente implicando extração linear
de significados. Não se lê um dicionário da mesma maneira que se lê um
romance, como não se lê um jornal da mesma maneira que se lê um manual de
instruções para montar um aparelho ou um texto para preparar uma prova de
matemática.
Cada suporte textual (lista de compras, formulário, cheque, nota fiscal,
etiqueta, etc.) pode implicar um processamento diferente. Um suporte que
parece demonstrar na prática e em escala maior a substituição da leitura linear
pela leitura aleatória é o hipertexto. Se em outros suportes a trajetória do leitor é
mais subjacente e de observação mais difícil, no hipertexto a trajetória deixa um
rastro visível e eloqüente das possibilidades de diferentes caminhos. Cada
caminho seguido por cada leitor ao longo de diferentes links são diferentes
leituras ficando mais difícil argumentar que o significado está no texto. Ainda
que fisicamente seja o mesmo texto, cada trajetória feita por cada leitor sobre o
mesmo texto constitui um texto diferente. Não só deixa de existir uma leitura
única; o texto único, linear e seqüencial, desdobrando-se da esquerda para a
direita e de cima para baixo, página após página, também não existe.
A leitura como um processo linear/ascendente também tem sérios
problemas para se sustentar teoricamente. Um dos pressupostos da abordagem
é de que o acesso ao significado das palavras na leitura dá-se por intermediação
do sistema fonológico da língua, isto é, o leitor só entende o que leu depois de
pronunciar a palavra, mentalmente ou não. Experiências feitas com diferentes
leitores, usando os exemplos do Quadro 1, mostram, no entanto, que eles
levam mais tempo para entender o que está escrito na coluna A (80ção, 20ver,
10pota) do que na coluna B (Oi, tentação; Vim te ver; Déspota), sendo que
alguns leitores nem mesmo conseguem perceber a brincadeira sem ver a coluna
B.
O mesmo acontece também em relação aos exemplos seguintes, ainda
que de modo menos dramático. Os erros de grafia, embora não interfiram de
modo algum na pronúncia das palavras, interferem na compreensão, causando
pelos menos um pequeno ruído na comunicação. Se os leitores precisassem
pronunciar as palavras, mesmo mentalmente, para entenderem o que lêem, a
diferença não deveria existir.
Finalmente, há os inúmeros casos de surdos de nascença que aprenderam
a ler, sem jamais terem ouvido uma palavra. Mais uma vez parece comprovado
que o acesso ao significado na leitura, ao menos com leitores proficientes, dá-se
diretamente da imagem gráfica ao significado.
Quadro 1 Intermediação fonológica
A
80ção!
20ver.
10pota!
B
Oi, tentação!
Vim te ver.
Déspota!Ele houve o que
digo.
É a cesta vez!
Cem sinto, cinto
muito!
Ele ouve o que digo.
É a sexta vez!
Sem cinto, sinto
muito!
Os estudos feitos com os movimentos dos olhos podem ser questionados
por pesquisas, principalmente nas tarefas de decisão lexical na psicolingüística,
onde se mostra a importância do contexto no reconhecimento de palavras.
Quando o sujeito lê a palavra “médico”, depois de “enfermeira” tem um acesso
mais rápido ao significado do que quando lê a mesma palavra “médica”
precedida de uma outra, com a qual não compartilha nenhum traço semântico.
Um argumento mais forte em favor do processamento ascendente da
leitura tem sido a alta correlação existente entre compreensão de leitura e
reconhecimento de vocabulário; todas as outras condições sendo iguais, quem
tem um vocabulário maior entende melhor um texto. Em outras palavras, parece
haver uma relação de causa e efeito entre quantidade e qualidade; quanto maior
o vocabulário, melhor a compreensão. Mas também aqui parece haver
problemas. Se a relação de causa e efeito realmente existisse, o ensino do
vocabulário deveria garantir uma melhor compreensão do texto, mas isso nem
sempre acontece, conforme comprovam inúmeros estudos já realizados (ex.
Anderson & Davison, 1986)). Na verdade não se trata de uma relação causal,
mas de uma correlação casual, meramente acidental. Não é o conhecimento
do vocabulário que melhora a compreensão, mas uma outra ou outras variáveis
associadas ao vocabulário. Essas variáveis associadas podem ser, por
exemplo, a capacidade de identificar o contexto, acionar o conhecimento de
mundo relevante, estabelecer conexões com diferentes partes do texto. A causa
da melhor compreensão do texto estaria, assim, não no domínio do vocabulário,
mas na presença dessa variável. Não há espaço aqui para se entrar em
detalhes, mas imagine-se, a título de ilustração, quantas relações intra e
intertextuais o leitor precisa fazer, além do conhecimento de vocabulário, para
entender e apreciar o significado de um cartaz de uma peça teatral que tem por
título e subtítulo os seguintes dizeres: "Prisioneiros da Balança; uma comédia de
peso".
A idéia de que o texto contém o significado apresenta também problemas
quanto à sua capacidade de gerar diferentes significados. Como o significado
está no texto, o número de significados possíveis tem que ser fixo, qualquer
coisa entre 1 e um número superior a 1, supondo que não exista um texto com 0
significados. O ato da leitura, nesta perspectiva do texto, pressupõe que para
haver compreensão é necessário que cada leitor em cada leitura acione
exatamente os mesmos significados na mesma variação de possibilidades.
A experiência que temos com a leitura no dia a dia mostra que isso não é
verdadeiro e nem possível. Não só leitores diferentes, mas até o mesmo leitor
em leituras e releituras do mesmo texto, pode acionar diferentes significados. A
notícia de um acidente envolvendo um amigo íntimo, por exemplo, pode produzir
um efeito de sentido muito diferente do que produziria a mesma notícia com
desconhecidos.
A PERSPECTIVA DO LEITOR
Enquanto que na perspectiva textual da leitura, a construção do sentido dá-
se de modo ascendente, acionada pelos dados do texto, na perspectiva do leitor,
o sentido é construído de modo descendente, acionado pelos conceitos
("concept-driven", em inglês). Esses conceitos estão baseados na experiência
de vida do leitor, anterior ao seu encontro com o texto, e envolvem
conhecimentos lingüísticos, textuais e enciclopédicos, além de fatores afetivos
(preferências por determinados tópicos, motivação, estilos de leitura, etc.).
Os conhecimentos lingüísticos incluem principalmente as habilidades de
baixo nível, envolvendo a consciência fonológica, o mapeamento do sistema
sonoro ao sistema ortográfico da língua, além do conhecimento sintático e
semântico. Ainda que reconhecido como necessário para a leitura e descrito
com detalhes por Goodman (1973), o conhecimento lingüístico, talvez por ter
sido exaustivamente abordado pelas teorias anteriores com ênfase no texto, não
mereceu muita atenção nas abordagens descendentes.
O conhecimento textual, com ênfase na estrutura formal do texto,
despertou um interesse maior. Pesquisas da época demonstraram que crianças
com conhecimento de gramática de história ("story grammar"), adquirido em
casa através da leitura de estórias feita por seus familiares, tinham mais
facilidade na compreensão de leitura (Allen &Mason, 1989). O fato de já
estarem familiarizadas com os traços formais das histórias infantis ("Era uma
vez", "E foram felizes para sempre", etc.) desenvolvia-lhes a sensibilidade para
a estrutura esquemática da narrativa, antes mesmo de terem aprendido a ler.
Foi o conhecimento enciclopédico, no entanto, com ênfase na experiência
de vida, que despertou a atenção maior dos pesquisadores. A idéia é de que
nas vivências do dia a dia, o leitor vai construindo uma representação mental do
mundo, resumindo, agrupando e guardando o que acontece num arquivo mental
que podemos chamar de memória episódica. É essa memória episódica que ele
aciona quando inicia a leitura de um texto, buscando os episódios relevantes e
desse modo construindo a compreensão do texto. O que o texto faz, portanto,
não é apresentar um sentido novo ao leitor, mas fazê-lo buscar, dentro de sua
memória, um sentido que já existe, que já foi de certa maneira construído
previamente.
O uso dessas diferentes fontes de conhecimento (lingüístico, textual e
enciclopédico) envolve um processamento que não é de extração mas de
atribuição de sentido. Esse processamento do texto não é feito de modo linear,
da esquerda para a direita, mas através de amostragem, com a participação
ativa do leitor que elabora e testa hipóteses sobre as amostras obtidas,
confirmando-as ou rejeitando-as. A perspectiva da leitura como atribuição de
sentido, envolve alguns pressupostos básicos, entre os quais podemos destacar
os seguintes:
Ler é usar estratégias
Ler envolve a capacidade de avaliar e controlar a própria compreensão,
permitindo, a qualquer momento, a adoção de medidas corretivas. Se for
perguntado durante a leitura, o leitor deverá ser capaz de dizer se está ou não
compreendendo o texto, de identificar os problemas encontrados e especificar
as estratégias que devem ser usadas para melhorar sua compreensão. O leitor
proficiente sabe também que há estratégias adequadas e inadequadas,
dependendo dos objetivos de uma determinada leitura.
Tem consciência de que há diferentes tipos de leitura. Há a leitura rápida
do jornal diário ou da revista semanal, apenas para se ter uma idéia geral do que
está acontecendo. Há a leitura lenta e penosa do texto de um autor famoso que
precisa ser conhecido. Há a leitura atenta e cautelosa do manual de uma
máquina sofisticada que precisa ser montada corretamente. Cada um desses
tipos de leitura exige uma estratégia diferente.
Os objetivos de uma leitura também variam muito. Podemos ter, entre
outros, objetivos puramente práticos ou ocupacionais (ler para aprender, para
obter uma nota melhor num exame, para conseguir um emprego, para se
orientar numa rua desconhecida, para montar um aparelho), objetivos
recreativos (ler para passar o tempo, ler na cama para adormecer com o livro),
objetivos afetivos (ler por prazer, para obter forças num momento difícil da vida,
para impressionar alguém) e até objetivos ritualísticos (ler para executar uma
cerimônia religiosa). Ninguém lê sem um objetivo, nem mesmo na escola, ainda
que muitas vezes por um objetivo errado (ler um romance o mais rápido possível
para preencher uma ficha de leitura). Esses e outros objetivos pressupõem
diferentes estratégias de abordagem do texto
A leitura depende mais de informações não-visuais do que visuais
O que está atrás dos olhos é mais importante do que está na frente. A
informação não-visual, residente na memória do leitor, comanda o que o leitor vê
ou deixa de ver na página impressa. A experiência pode ser constatada na
prática quando se pede a alguém para ler um texto em voz alta: muitas palavras
vão ser omitidas, acrescentadas e trocadas, sem que o leitor se dê conta. A
explicação é de que não leu o que estava escrito na página, mas o que sua
mente mandou seus olhos procurar.
O conhecimento prévio está organizado na forma de esquemas
Nossa memória arquiva as experiências que vivemos de maneira
extremamente organizada. Não se trata, porém, de um arquivo estático onde as
pastas e os documentos estão sempre na mesma ordem, alfabética ou não, mas
provavelmente de uma estrutura dinâmica e hierárquica que permite múltiplos
recortes. Os esquemas, por sua vez, são estruturas cognitivas abstratas que
permitem inúmeras realizações (instanciações), com ênfase no que é típico e
genérico. Esquemas de casamentos, aulas de português ou acidentes de
automóvel, por exemplo, guardam apenas os traços que são típicos e
suficientes, em cada um desses eventos, para caracterizá-los e distingui-los dos
demais. Os esquemas possibilitam que de forma econômica o cérebro, dentro
de suas limitações, inventarie a grande variedade das experiências vividas.
Ler é prever
Como tudo que se faz na vida, a atividade da leitura só é possível na
medida em que o leitor usa seu conhecimento prévio para direcionar sua
trajetória pelo texto, eliminando antecipadamente as opções inválidas. Quanto
mais se avança num texto, mais exatamente pode-se prever o que vem a seguir,
e quanto maior for nossa experiência geral de leitura maior será nossa
capacidade de prever o que um texto pode conter, antes mesmo de se iniciar
sua leitura.
No nível dos processos automáticos, quando um leitor proficiente vê, por
exemplo, um artigo já pode prever que mais adiante virá um substantivo,
seguido ou não de um adjetivo, que fechará um sintagma nominal. Da mesma
maneira quando encontra uma frase que inicia com uma conjunção subordinada,
já sabe que está numa oração subordinada, que mais adiante será seguida de
uma oração principal. Isso tudo, obviamente, abaixo do nível da consciência.
Em níveis mais elevados, o leitor pode prever o conteúdo do texto, usando
ilustrações, tabelas, gráficos, títulos, subtítulos, etc. Ao ver a distribuição do
texto na página já sabe se o que está escrito é uma carta, uma receita ou um
poema. O leitor proficiente preocupa-se também em localizar a origem do texto,
quem editou, quem escreveu, quando foi publicado, e até para quem foi escrito e
com que propósito o que o ajuda a fazer previsões com um melhor índice de
acertos, incluindo a linha de argumentação do autor.
A capacidade de previsão é uma condição necessária para a leitura
eficiente na medida em que ela afasta as opções incorretas, evitando idas e
vindas desnecessárias no processamento. No nível da consciência, o cérebro é
extremamente limitado, processando apenas uma informação de cada vez. A
tomada de um caminho errado significa ter que voltar em cada decisão e repetir
todos os caminhos, um a um, até chegar à opção certa, o que acabaria
provocando um curto circuito na compreensão. A previsão, ao levar o leitor a
tomar decisão mais provável, normalmente evita que isso aconteça embora,
às vezes a volta no texto seja necessária.
Ler é conhecer as convenções da escrita
Ler é muito mais do que passar do código escrito para o código oral. Há
muitas convenções na escrita que foram criadas pela própria escrita e que
portanto não existem na linguagem oral (incluindo abreviaturas, notas de rodapé,
citações, etc.), que o leitor precisa conhecer para compreender um texto. Não é
difícil argumentar que escrita e fala são duas entidades diferentes. O que foi
escrito existe para ser lido e não para ser falado. Uma carta, um livro, um
relatório são lidos, silenciosamente ou em voz alta, mas lidos. A palavra carta
não é objeto do verbo falar. Ninguém fala uma carta. Há uma diferença muito
grande entre ler e falar e o leitor proficiente, com maior ou menor grau de
consciência, tem noção dessa diferença e dos traços que a marcam.
A perspectiva da leitura, com foco no leitor, procura, em resumo, descrever
o que acontece em sua mente quando lê um texto. O leitor pode ser até menos
ou mais refratário ao texto, permitindo ou não que seja tocado por ele, mas não
é um elemento passivo, que apenas extrai significado do texto. Caracteriza-se
por ser ativo, atribuir significado, fazer previsões, separar amostras, confirmar e
corrigir hipóteses sobre o texto.
CRITICAS DA PERSPECTIVA DO LEITOR
A perspectiva do leitor na teoria da leitura repousa principalmente na
abordagem psicolingüística da compreensão, com ênfase nos aspectos
cognitivos, mais do que afetivos e principalmente mais do que sociais. A
preocupação maior é descrever a leitura como processo, como algo que
acontece na mente do leitor, opondo-se à leitura vista como produto, na
abordagem do texto, onde o que importava era o resultado obtido.
O leitor passa a ser visto como o soberano absoluto na construção do
significado. Como o significado não é extraído, mas atribuído, o leitor tem o
poder de atribuir o significado que lhe aprouver. Não há significado certo ou
errado, há apenas o significado do leitor. Se a interpretação do aluno entrar em
choque com a interpretação do professor, prevale a interpretação do aluno na
medida em que ele é que é o leitor. A construção do significado é uma questão
de foro íntimo, imune a qualquer injunção externa que possa interferir na
privacidade e no direito que o leitor tem de interpretar. A compreensão não é
ditada por um juiz, autoridade ou academia, mas pela relação que se estabelece
entre o texto lido e a experiência vivida por cada leitor.
Na medida em que privilegiava o processo sobre o produto, a perspectiva
do leitor representa uma evolução sobre a abordagem anterior com ênfase no
texto. Na medida, porém, em que ignora os aspectos da injunção social da
leitura, consegue ver apenas parte do próprio processo que tenta descrever.
A PERSPECTIVA INTERACIONAL
Ciência é o encontro de duas ou mais variáveis e construir ciência é
descrever as interações entre essas variáveis. O estudo da interação não é,
portanto uma exclusividade da teoria da leitura, mas um pressuposto teórico de
qualquer ciência. Seria uma redundância falar de uma abordagem interacional
como se fosse possível uma abordagem não-interacional. Na teoria da leitura,
entretanto, criou-se essa redundância. Por seu caráter universal, no entanto, a
perspectiva interativa ou interacional (usando-se aqui os dois termos como
sinônimos) acabou perpassando todas as linhas teóricas da leitura, mas com
ênfase maior nas abordagens psicolingüística e social.
O paradigma psicolingüístico
Na psicolingüística, temos pelo menos duas propostas que precisam ser
mencionadas: a abordagem transacional e a teoria da compensação. Na visão
da leitura como atividade social, vamos expandir o conceito de comunidade
discursiva, partindo da idéia de Swales (1990).
A abordagem transacional pode ser descrita como uma revisão das teorias
que focalizam a perspectiva do leitor, considerando o contexto em que ele atua e
as mudanças que sua atuação produz. Parte-se da idéia de Rosenblat (1978,
1994), por sua vez baseada em Dewey, de que não só o conhecedor, mas
também o conhecido transformam-se durante o processo do conhecimento. A
leitura não é vista como um processo isolado, mas estudada dentro de um
contexto maior em que o leitor transaciona com o autor através do texto, num
contexto específico com intenções específicas (Goodman, 1994, p. 814). Esse
processo de transação caracteriza-se por causar mudanças em todos os
elementos envolvidos. Muda o autor na medida em que vai escrevendo o texto,
muda o leitor na medida em que o vai lendo e muda também o texto, tanto
durante a escrita como durante a leitura. O texto, em outras palavras, é
construído não só pelo autor ao produzi-lo, mas também pelo leitor ao lê-lo.
A teoria da compensação (Stanovich, 1980) parte do princípio de que a
leitura envolve várias fontes de conhecimento (lexical, sintático, semântico,
textual, enciclopédico, etc.) e de que essas fontes interagem entre si com uma
participação maior ou menor na construção do sentido, dependendo da
contribuição das outras fontes de conhecimento. Se o leitor tem um déficit
numa dessas fontes (ex: vocabulário desconhecido) ele poderá compensar esse
déficit usando conhecimento de um outro domínio (ex: conhecimento do tópico),
inferindo por esse mecanismo de compensação o significado do termo que não
conhece.
Um problema a ser resolvido pelo modelo é a exigência de patamares
mínimos de proficiência para que o mecanismo de compensação funcione
adequadamente. No caso típico de uma leitura em língua estrangeira, por
exemplo, um déficit muito grande no léxico e na sintaxe pode levar a curto
circuito na compreensão; o leitor pára, retoma o que leu várias vezes, mas é
obrigado desistir porque não consegue ir adiante.
O paradigma social
A leitura pode também ser vista não apenas como uma atividade mental,
usando a interação das fontes de conhecimento que temos na memória, mas
como uma atividade social, com ênfase na presença do outro. Esse outro pode
ser um colega de aula, com quem colaborativamente trocam-se idéias sobre o
texto, uma autoridade de quem se pode solicitar um esclarecimento (ex: o
professor) e o próprio autor do texto, a cujo público (aquele para quem o texto foi
escrito) o leitor precisa pertencer. Na situação de sala de aula, pertencer ao
público visado pelo escritor pode exigir uma certa preparação, às vezes proposta
por uma edição especial do texto com introduções e notas sobre o autor, a
época em que viveu, a circunstância em que foi produzido o texto.
Ler deixa de ser uma atividade individual para ser um comportamento
social, onde o significado não está nem no texto nem no leitor, mas nas
convenções de interação social em que ocorre o ato da leitura. Qualquer texto
equivale a um documento legal cujo efeito está circunscrito às pessoas
nomeadas ou pressuposto no próprio documento, com direitos e deveres
claramente definidos. Uma certidão de casamento ou uma escritura de posse
de terras só têm valor, por exemplo, se forem produzidas pelas pessoas
legitimadas pela sociedade para produzir tais documentos, nas circunstâncias
em que devem ser produzidos, seguindo rigorosamente o ritual previsto,
envolvendo as pessoas que se prepararam para o ritual conforme as
convenções impostas pela comunidade. Fora disso, podemos ter uma
simulação (como freqüentemente acontece na sala de aula), mas não a situação
autêntica que dá validade ao texto.
A leitura como comportamento social validado pela comunidade coloca em
questão o problema da exclusão do leitor, dentro e fora da sala de aula. Na sala
de aula, o aluno é muitas vezes solicitado a ler um texto que não foi escrito para
ele ou seja, um texto que exige pré-requisitos que a própria instituição escolar
e a sociedade sonegaram a determinados alunos. Na medida em que não tem o
domínio das práticas sociais previstas pelo discurso hegemônico, o aluno não
tem como se inserir na comunidade dos consumidores de texto (leitores e
escritores) e permanece um excluído geralmente condenado à reprovação e ao
fracasso escolar. A aquisição do conhecimento e o conseqüente sucesso na
escola podem ser obtidos pela leitura de textos escritos, mas tragicamente não
há como se apropriar do sentido e da função do texto, sem o domínio das
práticas sociais em que ele está inserido.
Pode-se também argumentar que o objetivo da escola seja justamente
manter o aluno preso à sua condição social de excluído. O filho de operário
receberá uma educação limitada para que não aspire a ser mais do que um
operário minimamente remunerado, sem condições de ascender
economicamente, prisioneiro do que Graff (1981) chamou de “incompetência
especializada”. Como recebe apenas os rudimentos da leitura, não conhece o
potencial emancipador da linguagem. Os oprimidos não sabem que são
oprimidos e permanecem incapazes de promover as mudanças necessárias
para melhorar sua situação e se tornarem agentes de sua história. As regras
que mantêm o poder dos opressores, incluindo as que ensinam como os textos
devem ser lidos, já foram estabelecidas e os oprimidos não conseguem mudá-
las.
A educação, neste caso, não leva o indivíduo à socialização do
comportamento lingüístico, mas à exclusão do leitor. Uma exclusão que se
inicia na escola, onde o aluno é levado a ler os textos de uma determinada
maneira, e continua vida afora, dentro de um determinismo social avesso a
qualquer transformação. A leitura é usada para moldar o pensamento e
comportamento das pessoas dentro de uma forma conservadora, numa visão
imutável da sociedade. Segundo Gee (1992), para quem a leitura não tem o
efeito emancipador proposto por Paulo Freire, o aluno aprende a ler não com os
“próprios olhos”, mas com os olhos da igreja ou do estado, atribuindo ao texto o
sentido que é determinado por aqueles que estão no poder. Qualquer prática de
leitura, desde o momento da alfabetização, é politicamente situada e informada
por uma determinada ideologia. Para Gee, mesmo a chamada pedagogia
libertadora de Freire é apenas a substituição de um conjunto de crenças
ideológicas por outro.
Mas dentro do paradigma social da leitura, a construção do sentido
também pode ser vista como um processo de interação, baseado numa
experiência social globalizada. Quando a interação ocorre, as pessoas mudam
e ao mudar mudam a sociedade em que estão inseridas. No caso da leitura, a
transformação ocorre porque ler é desvelar o desconhecido. Não só o oprimido
tem a revelação de sua condição de oprimido, mas o próprio opressor descobre
que a mudança para uma sociedade igualitária traz benefícios para todos,
oprimidos e opressores, de acordo com a visão utópica de Paulo Freire.
Ao lado dessa dicotomia opressores/oprimidos há também uma outra mais
visível e mais fácil de ser identificada, que é a dicotomia iniciados/não-iniciados,
caracterizada por grupos que podem ser formados especificamente para fins de
produção e recepção de textos. Para se tornar leitor e, por extensão, escritor
o aprendiz precisa passar por um processo de aculturação a fim de que
possa ser aceito pelo grupo e usufruir dos privilégios que só são dispensados
aos seus associados. Usando a terminologia de Swales (1990), vou definir esses
grupos como comunidades discursivas, fazendo uma adaptação livre de sua
proposta à comunidade dos consumidores de textos. Seriam exemplos dessas
comunidades, entre outros: o fã-clube de um cantor famoso, o grêmio estudantil
de uma escola, o diretório de um partido político, uma associação de bairro,
uma escola de samba, um grupo de pesquisa e, obviamente, a sala de aula,
incluindo os alunos, os professores, o líder da turma e, principalmente os grupos
que se formam dentro da sala, com seus rituais, explícita ou implicitamente
estabelecidos.
Como muitos outros grupos que se formam na sociedade, as comunidades
discursivas às vezes podem ser extremamente corporativistas, com muitas
restrições para a admissão de novos membros. Não são raros os casos de
comunidades que obrigam os candidatos a passarem por verdadeiros “batismos
de fogo”, devidamente institucionalizados (exames, concursos, defesas de tese,
etc.).
A preparação para esses rituais de iniciação envolve basicamente a
apropriação da linguagem adequada. Para ser aceito no grupo o candidato tem
que falar e escrever igual aos iniciados, demonstrando competência e fluência
total no uso de sua linguagem. Sem o domínio dessa linguagem a interação
com os outros membros da comunidade não é possível. Demonstrações de
incerteza ou hesitação podem levantar suspeitas e levar o candidato à rejeição.
Para dominar a linguagem, o candidato precisa se iniciar nas diferentes
manifestações lingüísticas que caracterizam uma determinada comunidade
discursiva: reuniões, correspondência escrita, circulares, informativos, relatórios,
correio eletrônico, grupos de interesse, etc. Cada uma dessas manifestação
exige um determinado ritual. Numa reunião, por exemplo, há normas para
solicitar o turno de fala, um tempo explícita ou tacitamente estabelecido para
expor as idéias, expectativa de manutenção do tópico em pauta, preferência por
determinadas formas de tratamento, etc.
Tudo que é dito e escrito pelos membros de uma comunidade discursiva
pressupõe um conhecimento compartilhado, que o candidato precisa adquirir.
Esse conhecimento envolve, entre outros aspectos, a história da comunidade,
realizações passadas, objetivas que foram e não foram atingidos, associados
importantes, os estatutos, escritos ou não, que regem a própria comunidade, etc.
Em casos extremos, o domínio da linguagem necessária para participar de
uma determinada comunidade discursiva envolve um círculo vicioso difícil de ser
rompido: para adquirir o conhecimento compartilhado é preciso entrar na
comunidade; para entrar na comunidade é preciso ter o conhecimento
compartilhado. Como colocou Bartholomae:
A luta do aprendiz a escritor não é a luta para externar o que traz dentro de si; é a luta
para executar as atividades ritualísticas que permitem o ingresso numa sociedade
fechada. Ou como diria Foucault, 'O discurso da luta não se opõe ao que é
inconsciente, opõe-se ao que é secreto' (Bartholomae, 1983, p. 300).
Na perspectiva de interação social, portanto, as relações estudadas não
estão nas fontes de conhecimento do indivíduo, mais ou menos conscientes,
como acontecia na perspectiva psicolingüística, mas nas convenções, mais ou
menos explícitas, que regem as relações entre os membros de um determinado
grupo. Os inúmeros estudos feitos sobre o papel da interação em sala de aula
no desenvolvimento da leitura (ex. Moita Lopes, 1996) demonstram essa
preocupação.
CONCLUSÃO
O pressuposto teórico que sustenta cada uma das diferentes perspectivas
da leitura envolve uma visão diferente do que consiste o ato da leitura. Na
perspectiva do texto, ler pode ser apenas a capacidade de passar do código
escrito da língua para o código oral. Isso não significa necessariamente que a
aprendizagem se encerre aí; o aluno ainda tem muito a aprender, mas o que tem
a aprender, e que é importante, não pertence mais à área de conhecimento,
rigorosamente definida como leitura, sob essa perspectiva.
Na perspectiva do leitor, onde ler é atribuir um significado, não se entra na
questão se esse significado é adequado ou não. O importante é que o leitor
tenha a liberdade de atribuir esse significado liberdade essa que não deve ser
tolhida pela escola, obrigando o aluno a ler algo para o qual ele não está
preparado. A liberdade na atribuição do significado é precedida pela liberdade
do leitor em escolher o próprio texto. A idéia é de que a adequação entre o leitor
e o texto acabará levando a uma atribuição adequada de sentido.
Tanto a perspectiva do texto como a do leitor oferecem sérias dificuldades
para uma definição adequada de leitura, como vimos no desenvolvimento deste
trabalho. Na perspectiva do texto, a principal crítica que se pode fazer é de que
o texto escrito não é igual ao texto oral; ao se tentar transpor o código escrito
para o oral, esbarra-se em algo que não existe. Como são diferentes, não dá
para encaixar um no outro. "Mens@agem para você" só pode ser escrito e lido;
não dá para falar e escutar.
Na perspectiva do leitor, há o problema delicado da qualificação. Todo
texto pressupõe um leitor, estabelecendo parâmetros para a atribuição de
sentido. Se o leitor não tiver a competência necessária, agirá fora desses
parâmetros e dará ao texto uma interpretação não autorizada. Ao fazer isso, o
leitor estará na verdade ignorando o texto, usando o verbo ler apenas na forma
intransitiva. Pode ler muito ou pouco, mas não lê um objeto chamado texto,
como se a leitura fosse apenas uma atividade introspectiva baseada na
reativação de lembranças do leitor.
A questão da qualificação e a existência de uma interpretação autorizada
mostram, como se vê, que a leitura não é um ato solitário, mas coletivo, exercido
dentro de uma comunidade que tem suas regras e convenções. Ler é um verbo
de valência múltipla: não se lê apenas adverbialmente, mas também direta e
indiretamente, de modo acusativo e ablativo. Isto é, o leitor não lê apenas muito
ou pouco; ele lê algo com alguém e para alguém.
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