pettit, p republicanismo

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1 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas. Pensamento Plural | Pelotas [06]: 35 - 56, janeiro/junho 2010 Principais aspectos do neorrepublicanismo de Philip Pettit Cíntia Luzardo Rodrigues 1 Resumo. Este artigo parte da constatação da existência de uma ampla tradição de debates republicanos. Nesta tradição, podemos destacar Philip Pettit, considerado a figura central da retomada das discussões acerca do republicanismo. Pettit é oriundo da tradição romana do republicanismo e concebe uma terceira possibilidade à tradicional distinção existente entre liberdade positiva e liberdade negativa. Ele admite a liberdade como não-dominação, como ausência de toda e qualquer interferência que possa ser arbitrária. Nesta perspectiva, só é cidadão republicano quem não sofre arbitrariedades por parte de outro. Estes aspectos carac- terizam o neorrepublicanismo do autor. Palavras-chave: republicanismo, liberdade, cidadão, não-dominação. Main aspects of Philip Pettit’s neorepublicanism Abstract. This article starts from a notice of the existence of a wide tradition of republican debate. In this tradition we can highlight Philip Pettit, regarded as the leading figure of the debate revival concerning republicanism. Pettit comes from Roman tradition of republicanism and conceives a third possibility of freedom, which is an alternative to the traditional distinction between positive freedom and negative freedom. He stresses freedom as non-domination, as the absence of all kind of arbitrary interference. In this view, a republican citizen is just the person who does not suffer arbitrary interference from another. These aspects characterize the author’s neorepublicanism. Key-words: republicanism, freedom, citizen, non-domination. 1 Introdução No presente artigo, a proposta é fazer uma apresentação dos principais aspectos da teoria política de Philip Pettit (1945-), filósofo e

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  • 1 Mestre em Cincias Sociais pela Universidade Federal de Pelotas.

    Pensamento Plural | Pelotas [06]: 35 - 56, janeiro/junho 2010

    Principais aspectos do neorrepublicanismo de Philip Pettit

    Cntia Luzardo Rodrigues1

    Resumo. Este artigo parte da constatao da existncia de uma ampla tradio de debates republicanos. Nesta tradio, podemos destacar Philip Pettit, considerado a figura central da retomada das discusses acerca do republicanismo. Pettit oriundo da tradio romana do republicanismo e concebe uma terceira possibilidade tradicional distino existente entre liberdade positiva e liberdade negativa. Ele admite a liberdade como no-dominao, como ausncia de toda e qualquer interferncia que possa ser arbitrria. Nesta perspectiva, s cidado republicano quem no sofre arbitrariedades por parte de outro. Estes aspectos carac-terizam o neorrepublicanismo do autor.

    Palavras-chave: republicanismo, liberdade, cidado, no-dominao.

    Main aspects of Philip Pettits neorepublicanism

    Abstract. This article starts from a notice of the existence of a wide tradition of republican debate. In this tradition we can highlight Philip Pettit, regarded as the leading figure of the debate revival concerning republicanism. Pettit comes from Roman tradition of republicanism and conceives a third possibility of freedom, which is an alternative to the traditional distinction between positive freedom and negative freedom. He stresses freedom as non-domination, as the absence of all kind of arbitrary interference. In this view, a republican citizen is just the person who does not suffer arbitrary interference from another. These aspects characterize the authors neorepublicanism.

    Key-words: republicanism, freedom, citizen, non-domination.

    1 Introduo

    No presente artigo, a proposta fazer uma apresentao dos principais aspectos da teoria poltica de Philip Pettit (1945-), filsofo e

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    terico poltico irlands, considerado um dos responsveis pela recente renascena do republicanismo. Tal republicanismo se refere a uma ampla tradio republicana, que se originou na Roma antiga, reapare-ceu no Renascimento e configurou-se no pensamento de pensadores como Maquiavel e Guiccciardini, nos sculos XV e XVI, e, posterior-mente, em autores como Pocock e Skinner, no sculo XX. Tal tradio foi de suma importncia para o desenvolvimento das primeiras comu-nidades polticas modernas. Essa apresentao abordar, mais precisa-mente, questes que envolvem a liberdade e o cidado republicano, temas que caracterizam o neorrepublicanismo2 de Pettit e que esto presentes em sua obra Republicanismo: uma teoria sobre a liberdade e o governo (1999).

    Na primeira parte do artigo, far-se- uma aproximao com a teoria poltica de Pettit. Essa teoria republicana preocupa-se inteira-mente com o ideal poltico de liberdade. Na segunda parte, ser abor-dado e estudado esse ideal de liberdade poltica, que a liberdade como no-dominao, considerada pelo autor a verdadeira liberdade republicana. Na terceira parte, ser analisado o cidado republicano, que o sujeito da liberdade. Na perspectiva da teoria poltica de Pettit, s considerado cidado o indivduo que no se encontra sob o jugo ou arbtrio de outrem. Na quarta e ltima parte do artigo, aps a apre-sentao e anlise dos temas acima elencados, ser caracterizado e analisado o neorrepublicanismo de Philip Pettit.

    2 Aproximao teoria de Philip Pettit

    A teoria poltica de Philip Pettit est presente em seu livro Re-publicanismo: una teoria sobre la libertad y el gobierno (1999). Tal obra caracteriza e sintetiza a viso poltica do autor, que considerado um neorrepublicano por fazer parte do rol de autores, entre eles Quen-tin Skinner e Maurizio Viroli (2007), que retomaram os debates acerca do republicanismo.

    Toda a teoria republicana de Pettit gira em torno do conceito de liberdade. Tal conceito torna-se indispensvel para que os adeptos das diferentes correntes de pensamento, presentes na histria, possam postular o seu ideal poltico. O ideal de liberdade possui um papel

    2 Neorrepublicanismo no sentido de um despertar da tradio republicana (PRADOS, 2003, p. 83).

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    fundamental na teoria poltica e constitui-se em ponto central para o desenvolvimento e o estudo do republicanismo. Dessa forma, a con-cepo de liberdade representa a essncia da tradio republicana.

    Conceitual e historicamente, a liberdade possui dois lados: um se refere ao conceito negativo que est associado aos direitos civis e ao liberalismo; o outro se refere ao conceito positivo que est associado democracia, no caso dos direitos polticos e ao socialismo, no caso dos direitos sociais. Para desenvolver sua teoria e chegar ao seu conceito de liberdade, Pettit utiliza a distino que Isaiah Berlin (2002) fez entre liberdade positiva e negativa. Liberdade negativa: sou livre at o ponto em que desfruto de uma capacidade de eleio sem impedimento nem coero (PETTIT, 1999, p. 35). Sobre Liberdade positiva, diz o autor, na mesma pgina, eu sou positivamente livre na medida em que con-sigo o autodomnio (...). Berlin aborda o conceito de liberdade nega-tiva como sendo o elemento chave das duas concepes. Segundo ele, aqueles que defendem a liberdade negativa possuem o interesse de limitar a autoridade, enquanto que os oponentes de tal ponto de vista querem a autoridade em suas mos. Para Pettit, Berlin fez da liberdade negativa, como no interferncia, um ideal admissvel, no sentido de possuir inmeros adeptos no decorrer da modernidade e levantou srias dvidas acerca da liberdade positiva, visto que:

    Berlin fez mais que converter a liberdade negativa em algo atrativo, e a liberdade positiva, em algo lamentvel. Tambm as utilizou para insinuar que, enquanto a maioria dos pensadores modernos e com sentido de realidade haviam entendido a liberdade em seu sentido negativo, a construo positiva da liberdade estava associada a fontes anteriores e mais suspeitas (PETTIT, 1999, p. 36).

    Essa distino, segundo Pettit, remete a outra distino que Benjamin Constant (1819) fez, no incio do sculo XIX, entre liberda-de dos antigos e liberdade dos modernos. A liberdade positiva de Berlin corresponde liberdade dos antigos de Constant, concebida como algo do passado que fez parte dos tempos pr-modernos; a liber-dade negativa de Berlin corresponde liberdade moderna de Constant, ilustrada como algo do presente e concebida como um ideal autenti-camente moderno. Tal distino entre ambas as liberdades esteve pre-sente no decorrer da histria ao lado da dicotomia filosfica existente

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    entre a liberdade pblica e a liberdade privada. A liberdade dos tempos pr-modernos referia-se a interesses com a participao democrtica e com a autorrealizao, o que era caracterstico dos cidados da Anti-guidade Clssica. Diferentemente, os modernos se preocupam com as questes privadas, com os direitos individuais. Eles sacrificam a parti-cipao pblica em troca da satisfao de seus prprios interesses (PETTIT, 1999).

    Enquanto a liberdade positiva ameaa as liberdades dos indiv-duos, a liberdade negativa protege e oferece subsdios para a iniciativa dos cidados. Assim, a pretenso de Pettit fazer uma releitura daquilo que foi pretendido por Constant, no sculo XIX, e por Berlin, no sculo XX. Com essas distines, Berlin e Constant oferecem meios para interpretar a tradio republicana. Segundo Pettit, Berlin:

    [...] pensa na liberdade positiva como autodomnio e na liberdade negativa como ausncia de interferncia por parte dos outros. Porm, domnio e interferncia no so equivalentes. Existe, pois, a possibilidade intermediria de que a liberdade consista em uma ausncia como quer a concepo negativa , porm em uma ausncia de domnio pelos outros, no em uma ausncia de interferncia? Essa possibilidade teria um elemento conceitual em comum com a concepo negativa o foco na ausncia, no na presena , e um elemento em comum com a positiva: o foco na dominao, no na interferncia (PETTIT, 1999, p. 40-41).

    Pettit acredita que essas duas concepes sobre a liberdade no so bem concebidas e impedem que se enxergue de forma clara a vali-dade filosfica e a realidade histrica de outro modo de se entender a liberdade. A dicotomia proposta por Berlin abre espao para uma terceira possibilidade para a liberdade, pois:

    Eu creio que a distino liberdade negativa-positiva fez um mau servio ao pensamento poltico. Ela alimentou a iluso filosfica de que, detalhes a parte, somente existe dois modos de se entender a liberdade: de acordo com o primeiro, a liberdade consiste na ausncia de obstculos externos eleio individual; de acordo com o segundo, entranha a presena, e normalmente o exerccio (Taylor 1985, ensaio 8; Baldwin 1984), das coisas e atividades que permitem o autodomnio e a autorrealizao: em particular, a presena e o exerccio das atividades

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    participativas e de sufrgio, de modo que os indivduos podem unir-se a outros em formao de uma vontade comum, popular (PETTIT, 1999, p. 37).

    Desse modo, Pettit chega sua definio de liberdade como no-dominao, uma terceira possibilidade de liberdade poltica que, segundo seu ponto de vista, corresponde ao conceito republicano. A concepo de liberdade como no-dominao, nas palavras de Boesche, : (...) uma nova concepo para nosso sculo, mas no nova para a tradio europeia das ideias polticas (...) (BOESCHE, 1998, p. 861). Pode-se constatar que Pettit transitou entre a tradicional dicotomia acerca da liberdade, foi at as origens do pensamento republicano e elaborou um trabalho de arqueologia desde Ccero at Madison, para conceber o seu ideal de liberdade. De acordo com Rodrigues, Pettit retoma temas e conceitos republicanos do passado como uma particu-lar tomada de posio terica e poltica no presente (RODRIGUES, 2008, p. 13).

    Pettit, no decorrer de seu livro, apresenta subsdios que refor-am sua posio poltica de que a liberdade como no-dominao a verdadeira liberdade republicana. Para ele, os principais nomes da tradio republicana no se preocuparam com o sentido positivo da liberdade como participao poltica, mas se detiveram com maior nfase na oposio entre cidado e escravo. Pois, [O] contrrio do liber, da pessoa livre, no uso romano republicano era o servus, o escra-vo (PETTIT, 1999, p. 52). Mesmo percebendo que no decorrer da histria exista certa concordncia, derivada das interpretaes liberais do sculo XIX, de que a liberdade poltica a liberdade negativa, tal oposio revela que o sentido da liberdade como no-dominao esteve mais presente na tradio do que o sentido de no-interferncia.

    Assim sendo, em suas palavras: [E]u sustento que sim, e man-terei nas sees que seguem que a tradio republicana est ligada precisamente a esta concepo da liberdade como ausncia de servido, ou como eu prefiro dizer, como no dominao (PETTIT, 1999, p. 41). essa liberdade como no-dominao, o pressuposto do verdadei-ro Estado Republicano.

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    3 Liberdade como no-dominao: a verdadeira liberdade republicana

    Percebe-se que Pettit possui uma viso diferente e singular sobre liberdade. No entanto, tal viso no pode ser entendida e concebida como algo novo. Ela vem de longa tradio, esteve presente na Roma clssica, na Itlia renascentista, nos desenvolvimentos republicanos ingleses e americanos e perdeu-se no decorrer da histria do sculo XIX. Conforme as palavras do autor: a liberdade como no-dominao a liberdade republicana no somente se perdeu para os pensadores e os ativistas polticos; chegou inclusive a tornar-se invisvel para os historiadores do pensamento poltico (PETTIT, 1999, p. 75). Corroborando a afirmao de Pettit, Skinner afirma que: estudar a causa da liberdade e sua perda , inevitavelmente, estudar a histria dos vrios pases europeus que passaro de um estado de liberdade popular escravido do absolutismo (SKINNER apud PETTIT, 1999, p. 54). Vrias passagens no decorrer da obra de Pettit confirmam a presena e a perda desse ideal de liberdade poltica.

    Segundo Pettit, a liberdade como no-dominao, baseada em uma no-interferncia arbitrria, o iderio poltico e social e refere-se verdadeira possibilidade republicana. Essa concepo de liberdade, especificamente republicana, no seria apenas um meio termo entre a dicotomia corrente da liberdade positiva (liberdade dos antigos), aque-la concebida como autogoverno e controle do agente sobre si prprio, e a negativa (liberalismo ou liberdade dos modernos), concebida como no-interferncia alheia. Ela provm da antiga tradio em que ser livre significa no estar sob o domnio de outrem e deve ser vista como um ideal qualitativamente distinto de sociedade (RODRIGUES, 2008, p. 35). Conforme afirma Christman: Philip Pettit move-se entre a tradi-cional dicotomia e desenvolve um tipo de Republicanismo cvico baseado no nico entendimento de liberdade: liberdade como no dominao (CHRISTMAN, 1998, p. 203). Esse ideal de liberdade possui aspectos negativos, na medida em que requer a ausncia de dominao alheia, e positivos, na medida em que necessita de algo mais do que a ausncia de interferncia, ele requer segurana frente interferncia arbitrariamente fundada (PETTIT, 1999). No estamos nos referindo ao liberalismo, ao comunitarismo e nem ao humanismo cvico. A posio apresentada por Pettit rejeita, ao mesmo tempo, a

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    liberdade negativa e a liberdade positiva, por serem elas responsveis por consequncias polticas no desejadas, conforme as palavras de Larmore:

    [...] embora a idia negativa de liberdade como ausncia de interferncia tenha sido muitas vezes invocada para autorizar a criao de condies no humanas, particularmente no domnio econmico, o mau uso da idia positiva levou historicamente mais longe e tornou a prpria noo de liberdade sinnima de tirania, ao proclamar que o mais elevado eu do indivduo fosse a Nao ou o Partido (LARMORE, 2010, p. 15).

    Isso se deve ao fato de que, para os adeptos da liberdade no sen-tido positivo, a liberdade como sinnimo de autonomia considera a vida poltica como sendo o primeiro domnio onde as virtudes so discutidas, decididas e executadas.

    O conceito de liberdade como no-dominao se ope contem-poraneamente ao conceito de liberdade negativa, que a liberdade da tradio liberal. Esse conceito negativo fundado na perspectiva con-tratualista, em que todos os indivduos nascem livres. Nesse ideal, a medida da liberdade refere-se menor interferncia possvel do Estado. De acordo com Larmore: [L]iberdade negativa como Berlin entendeu o domnio de ao onde indivduos podem fazer o que eles querem sem interferncia da parte de outros (LARMORE, 2001, p. 230). A liberdade negativa implica, de acordo com os liberais, que as leis e instituies polticas existem para permitir o exerccio da liberdade, sendo ela considerada um valor absoluto. Conforme Berten:

    (...) a diferena que a liberdade republicana3 est ativamente garantida pelo aparelho poltico e jurdico da comunidade: ela consiste na garantia de no dominao mais do que na simples ausncia de interferncia. O que me parece significativo, e que eu gostaria de apontar, seria, em primeiro lugar, que essas concepes implicam numa crtica aos modelos contratualistas e, mais geralmente, insuficincia dos procedimentos democrticos concebidos como devendo produzir normas corretas (BERTEN, 2007, p. 7).

    3 Deve-se entender por liberdade republicana a liberdade como no-dominao.

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    Essa diferena entre a liberdade como no-interferncia e a li-berdade republicana como no-dominao constitui o ponto original da tradio republicana enfatizada por Pettit. Assim, embora estejam presentes elementos positivos, essa concepo de liberdade deve ser considerada como sendo negativa, pois ela focaliza a ausncia de interferncia arbitrria. Porm, essa ausncia, na concepo de Pettit, difere da concepo liberal de liberdade que requer a ausncia de toda e qualquer interferncia. O foco na arbitrariedade no est presente na tradio liberal, pouco importando se a interferncia legal ou arbitr-ria: para um liberal, toda a interferncia constitui diminuio da liber-dade. Pettit, diferentemente dos liberais, enfatiza a questo da arbitra-riedade, constituindo ela o ponto primordial que difere sua liberdade da liberdade negativa dos modernos.

    importante salientar dois momentos importantes na obra do autor. Um se refere a um artigo publicado em 1996, denominado Freedom as Antipower, momento em que Pettit faz referncia liber-dade republicana como sendo sinnima de antipoder. Isso significa que: existe uma forte e tradicional associao entre ser livre e estar sendo dominado ou subjugado por algum: no estar sob o jugo de nenhum poder, no estar desprotegidamente suscetvel interferncia de outro (PETTIT, 1996, p. 576). Em um segundo momento, em 1997, foi publicado o livro ao qual se faz referncia desde o comeo da exposio.4 Nele, o autor aprimora, desenvolve e fundamenta detalha-damente os requisitos indispensveis para que ocorra a liberdade como no-dominao.

    Para dominar algum o outro deve ter poder sobre esse algum. Ele tem de ter domnio sobre essa pessoa. Para que exista uma relao de dominao, so necessrios trs requisitos: 1) ter capacidade para interferir; 2) de modo arbitrrio; 3) em determinadas escolhas que o outro possa realizar (PETTIT, 1999, p. 78). A seguir, veja cada um dos requisitos:

    1) A capacidade para interferir no pode ser virtual, ela tem de ser uma capacidade real. A interferncia deve ser sempre exercida de forma intencional, com o intuito de piorar a situao do indivduo e pode ocorrer na forma de coero fsica, da vontade ou atravs de

    4 Cabe salientar que a edio do livro Republicanismo: uma teoria sobre a liberdade e o governo, utilizado neste artigo de 1999.

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    manipulao. Ou seja: em outras palavras, liberdade como no-dominao, de acordo com Pettit, condena um potencial de interfern-cia arbitrria com algum que gostaria de exercer escolhas (BOES-CHE, 1998, p. 862).

    2) Perpetrar um ato de modo arbitrrio significa no atender, nem levar em considerao as escolhas, os interesses ou opinies dos outros. Toda vez que algum ou algo considerar os interesses e as in-tenes de outro, tal interferncia no ser arbitrria, e, por conseguin-te, no se caracterizar a dominao. De acordo com Silva:

    Embora seja esse um caso bvio de interferncia, desde que a lei se fizesse em consonncia com os interesses comuns assumidos pelos indivduos sobre os quais ela exercida, tratar-se-ia de um tipo no arbitrrio de interferncia, um tipo imprprio, portanto, de ser considerado como dominao ou afronta liberdade (SILVA, 2007, p. 206).

    Nessa citao, Silva se refere s leis que devem condicionar as escolhas de todos os indivduos. As leis devem servir a todos os cida-dos de forma igual, sem excees. Nesse requisito, percebe-se uma diferena entre o liberalismo e o ideal de liberdade como no-dominao. Onde o liberalismo enxerga restries, a no-dominao v liberdade. Enquanto o liberalismo se detm apenas na no-interferncia do Estado na esfera de liberdade do cidado, o republica-nismo se prope a evitar a dependncia dos cidados no que se refere ao Estado e aos outros cidados. Como afirma Viroli:

    (...) o republicanismo sustenta que para realizar a liberdade poltica preciso opor-se tanto interferncia e coero em sentido prprio quanto dependncia, pela razo de que a condio de dependncia um constrangimento da vontade e, portanto, uma violao da liberdade. Isso significa que quem ama a verdadeira liberdade do indivduo no pode no ser liberal, mas no pode ser apenas liberal. Deve tambm estar disposto a apoiar programas polticos que tenham como finalidade reduzir os poderes arbitrrios que impe a muitos homens e mulheres uma vida em condio de dependncia (VIROLI, 2007, p. 27-28).

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    O termo dependncia utilizado por Viroli pode ser compreen-dido como a dominao entendida por Pettit.

    3) Toda vez que ocorre uma relao de dominao, esta se ma-nifesta apenas em um determinado mbito de eleio, ou em alguma esfera, aspecto ou perodo da vida de determinado indivduo. Tal rela-o dificilmente pode acontecer em todos os mbitos ao mesmo tempo (PETTIT, 1999, p. 85-86). Pettit utiliza, para ilustrar essa clusula, o exemplo da esposa que est sob o jugo do marido, ou do empregado, que representa um dos polos da relao de dominao com o empre-gador. Em ambos os casos a relao de dominao s pode ser verifi-cada em apenas uma esfera. Para Pettit:

    (...) a dominao pode tambm abarcar um espectro maior ou menor; pode variar em alcance, o mesmo que em intensidade. Essa variao em seu alcance tem importncia, na medida em que melhor estar dominado em poucas reas do que em muitas. Pois tambm importante, na medida em que a dominao em algumas reas ser provavelmente considerada mais danosa que em outras; melhor ser dominado em atividades menos centrais, por exemplo, que em atividades mais centrais (PETTIT, 1999, p. 86).

    Por ser a dominao suscetvel de variao quanto ao alcance, prefervel que ela atinja poucas reas da vida de um indivduo. Um alcance maior pode representar muitos prejuzos e consequncias irre-versveis para quem o sofre.

    Percebe-se, pois, que existe uma diferena entre a simples inter-ferncia e a interferncia arbitrria ou dominao. Conforme Rodri-gues:

    Interferncia constitui-se de um ato intencional pelo qual os agentes possuem responsabilidade. Os atos de interferncia podem ser uma coero tanto no corpo como na vontade, ou uma manipulao. Incluem atos que reduzem as alternativas de escolha ou aqueles que aumentam o custo associado de uma escolha. Assim, a interferncia pode diminuir as possibilidades de escolha ou aumentar o custo de escolher uma ou alternativa (RODRIGUES, 2008, p. 37).

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    A interferncia arbitrria acontece quando algum age impe-dindo o livre arbtrio do outro. Ou seja, as minhas aes e os meus atos no vo levar em considerao as escolhas de determinada pessoa. Dessa forma eu exero dominao sobre o outro, pois:

    Um agente domina outro se e somente se ele ou ela tem certo poder sobre o outro: em particular o poder interfere nos afazeres do outro e inflige um certo prejuzo. [...] O agente dominado, por outro lado, ter sempre que ser uma pessoa ou grupo de pessoas, no simplesmente uma pessoa jurdica (PETTIT, 1996, p. 578).

    De acordo com Pettit, pode haver dominao sem interferncia, que quando um indivduo no livre, mesmo que no esteja sofren-do interferncia no momento (PETTIT, 1999), e pode ocorrer tambm interferncia sem dominao, que quando algum considerado livre mesmo sendo interferido por outro. Para ele, o exemplo da relao entre senhor e escravo caracteriza a primeira situao. O escravo sofre dominao na medida em que tem um senhor e, neste caso, a domina-o acontece mesmo sem interferncia, porque tal relao s necessita da existncia de capacidade para interferir arbitrariamente. O escravo desfruta de no-interferncia quando o senhor no consegue interferir, mas nunca de no-dominao.

    J interferncia sem dominao ocorre toda vez que algum so-fre qualquer tipo de interveno que, de acordo com a viso de Pettit, no considerada arbitrria. Um exemplo tpico, j mencionado ante-riormente, so as leis democrticas que caracterizam um tipo de situa-o no-dominadora. Nesse caso, o republicanismo do autor enxerga liberdade mesmo quando os liberais a consideram prejudicada. [S]ob a liberdade como no-interferncia, o fato de se estar sujeito s leis representa uma perda da liberdade (RODRIGUES, 2008, p. 39).

    Para que ocorra uma relao de dominao, necessria a exis-tncia de mais um ponto relevante, alm das trs caractersticas apre-sentadas, que o conhecimento comum de ambas as partes envolvidas em tal relao. Para isso Pettit afirma:

    A dominao traz geralmente consigo a conscincia de controle por parte do poderoso, a conscincia de vulnerabilidade por parte do submetido, e a conscincia recproca em verdade, a conscincia comum s partes da

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    relao dessa conscincia em ambos os lados. Os submetidos no sero capazes de olhar de frente aos poderosos, conscientes como so todos eles e conscientes como so todos da conscincia do outro dessa assimetria (PETTIT, 1999, p. 88).

    Sem essa conscincia, sem esse conhecimento comum, no possvel uma relao de dominao. Se tal conscincia imprescindvel para a existncia da relao de dominao, para que algum desfrute da no-dominao, o conhecimento comum tambm deve estar presente. Esse conhecimento possui uma significao subjetiva e intersubjetiva. O indivduo deve ter clareza na confiana, diante do outro, de perse-guio de seus objetivos e metas, na certeza de no estar sendo domi-nado.

    Assim, a no-dominao a ausncia de interferncia arbitrria, ou seja, ter conscincia de estar na presena de outras pessoas, mas que nenhuma delas possua subsdios que fortaleam a existncia das trs condies bsicas de dominao. Quem no sofre dominao livre e, de acordo com a teoria de Pettit, considerado um cidado republicano, sujeito da liberdade.

    4 O cidado republicano

    Para Pettit, a liberdade republicana prev que um cidado so-mente livre em uma Repblica quando o governo ou os outros cida-dos no interferem em sua vida de maneira arbitrria. Na liberdade republicana, no existe problema na interferncia do Estado na vida dos cidados; o problema ocorre quando essa interferncia se torna arbitrria. Utilizando as palavras de Christman: na sua interpretao [Pettit], liberdade significa estar imune da interferncia de outros cida-dos ou instituies de estado que so o produto da arbitrariedade ou de decises unilaterais daqueles agentes (CHRISTMAN, 1998, p. 203). Embora Pettit no fornea espao especfico em seu livro para discor-rer exclusivamente sobre o cidado republicano, toda a sua teoria republicana converge em um ponto, que a proteo do indivduo, na qualidade de cidado, contra todo e qualquer tipo de interferncia arbitrria. Sua repblica ideal aquela que possui um governo prote-gido contra manipulaes arbitrrias. O cidado livre quando no est sob o jugo de outros cidados (dominium) e nem sujeito interfe-rncia arbitrria do Estado (imperium). Todos os instrumentos utili-

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    zados pelo Estado no devem ser manipulveis, pois, conforme o au-tor:

    No tem sentido estabelecer instituies ou tomar iniciativas que reduzam a dominao por parte do dominium, se os instrumentos com que se consegue tal feito permitam ao mesmo tempo um tipo de dominao por parte do imperium; o que se ganha por um lado, se perde talvez abundantemente por outro lado (PETTIT, 1999, p. 227).

    O dominium significa a existncia de dominao entre os cida-dos, ou seja, manifesta-se quando algum indivduo ou um grupo de indivduos encontra-se submetido vontade arbitrria alheia. J o imperium, por sua vez, diz respeito interferncia arbitrria exercida por aqueles que detm o poder pblico sobre os cidados (SILVA, 2007, p. 207-208). Para impedir a dominao e garantir o ideal de liberdade, Pettit destaca a importncia das leis e das instituies. Tais instituies e leis concedem aos cidados proteo e defesa necessrias para as suas liberdades. De acordo com o autor, o fato de um cidado ser dominado por outro cidado, ou sofrer imposies arbitrrias de um governo tirnico ocasiona o comprometimento da perseguio dos objetivos republicanos (PETTIT, 1999, p. 225). Os organismos e as polticas estatais interferem de forma sistemtica na vida de todos os cidados, inclusive em um Estado que persegue as causas republicanas. Porm, o que deve ser considerado o fato de que essa interferncia no se torne arbitrria. Tornando-se arbitrria, afirma Pettit, na mesma pgina, o Estado mesmo ser uma fonte de no-liberdade. O Estado republicano deve ao mesmo tempo combater interferncia arbitrria decorrente do dominium, como deve tambm se preocupar com a dominao que procede do imperium do Estado, ou ainda, como nos afirma Bignotto:

    Segundo Pettit, entretanto, cabe a um governo republicano evitar os aspectos mais imediatos de uma dominao exercida por atores que se apossam dos meios de poder, mas tambm evitar que meios consentidos de poder se transformem em meios arbitrrios. (BIGNOTTO in CARDOSO 2004, p. 24).

    Para Pettit, prefervel que os cidados escolham o ideal de li-berdade como no-dominao, ao invs das outras formas de liberda-

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    de, por ser um bem instrumental e primrio. Instrumental, na medida em que constitui um instrumento de garantia dos cidados no terem suas escolhas restringidas pelos demais; primrio, na medida em que todos devem almejar e desejar a no-dominao primariamente. Nesse sentido, a participao poltica apenas um instrumento para se con-seguir a liberdade. Conforme Silva:

    Isto no quer dizer que eles dispensem completamente a linguagem das virtudes, ou que tomem a participao do conjunto dos cidados na vida pblica como algo de menor importncia para a manuteno da liberdade. [...] Quer dizer que eles interpretam a liberdade muito mais como status do que como oportunidade ou exerccio, sendo a participao antes um meio para assegurar tal status do que a prpria essncia da liberdade (SILVA, 2008, p. 168).

    A fim de garantir a no-arbitrariedade, uma repblica prev e exige a participao dos cidados como fiscalizao da ao do Estado. A participao ocorre no sentido da contestao. O princpio da contestabilidade fundamental para a existncia de uma boa Repbli-ca e considerado uma das bases de um bom governo republicano. Pelo que nos diz Christman: [A]dicionalmente, todas as decises do Estado devem ser efetivamente contestveis de maneira que os interes-ses dos cidados sejam apropriadamente traados pelas polticas gover-namentais (CHRISTMAN, 1998, p. 204). Tal contestabilidade de-nominada por Pettit de democracia deliberativa e possibilita aos cidados a formulao de questionamentos contra as aes arbitrrias do Estado. Nessa forma deliberativa de democracia, as decises pbli-cas devem ser exercidas com bases racionais dialgicas e discursivas e no com base nas negociaes, em que cada grupo ou indivduo de-fende seus prprios interesses, utilizando o mnimo possvel de conces-ses. Para que isso seja possvel, necessria a existncia de uma Rep-blica que seja inclusiva e que o cidado disponha de canais institucio-nais para que sejam ouvidas suas contestaes. fundamental a exis-tncia de espaos pblicos para que os anseios dos cidados cheguem s autoridades competentes e para que as contestaes, acerca das deci-ses j tomadas pelo poder pblico, possam ser expressas. Uma demo-cracia que segue o modelo deliberativo na tomada de decises inclui a voz crtica de todos os cidados e responde s queixas apresentadas por eles. Seguindo com as palavras de Pettit:

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    Se a vida poltica deliberativa, haver uma base para que os cidados possam disputar qualquer deciso pblica, seja legislativa, administrativa ou judicial. E se a vida poltica includente, as pessoas de todos os lugares da comunidade disponibilizaro de voz para expressarem suas crticas. A terceira pr-condio de disputabilidade que, no somente se assegure s pessoas uma base e uma voz para a disputa, seno tambm um frum em que suas queixas e disputas tenham a audincia apropriada. A vida poltica tem que ser deliberativa e includente, desde logo, mas tambm sensvel (PETTIT, 1999, p. 254).

    Pettit pretende impedir que a ao dos agentes do Estado, no momento em que procura diminuir a interferncia arbitrria entre os cidados, se transforme em dominao. Assim, a democracia delibera-tiva contestatria de Pettit, alm de incluir indivduos originrios de todos e quaisquer lugares da sociedade, deve possuir representatividade nos diferentes setores da populao e sensibilidade ante as crticas dos cidados contra as decises arbitrrias do Estado. Nesse modelo de democracia, a possibilidade de contestao supera a vontade do povo. Todos os cidados precisam possuir base e segurana para a contesta-o, como forma de garantia dos fruns, momentos em que sero devidamente ouvidos todos os reclames que, por conseguinte, vierem a fazer. de suma importncia que os indivduos se organizem para formar alianas em torno de identidades de grupo, como forma de garantir o direito de tentar convencer a esfera poltica e a opinio pblica sobre suas objees. Como afirma Rodrigues:

    preciso estar atento para o problema de como controlar a influncia dos economicamente poderosos sobre os polticos e o Estado. importante que, para cada tipo de prejuzo causado por uma deciso pblica aos interesses de um cidado existam, em contrapartida, meios capazes de fazer valer seus interesses e idias. Alm disso, a democracia beneficia-se de movimentos sociais, canais de contestao que, alm de contribuir para limpar de rudos, servem como um lugar inicial para depositar e consolidar queixas, canalizando-as para fruns estatais e exercendo presso sobre eles (RODRIGUES, 2008, p. 56).

    importante salientar que se deve tomar muito cuidado com a interpretao das questes que envolvem a possibilidade de contestao. O cidado, no modelo democrtico proposto por Pettit, no possui

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    poder ilimitado para vetar toda deciso do Estado que venha de encon-tro a seus interesses particulares. Aquilo que considerado de interesse da comunidade no considerado dominao, mesmo que esteja em desacordo com os interesses das minorias. Os cidados s podem recor-rer das decises que so contrrias aos interesses comuns da comunida-de. Na qualidade de cidados de uma Repblica, eles podem participar do processo poltico dizendo no s leis e decises que interferem arbi-trariamente em suas liberdades, ou seja, conforme Silva:

    O cidado (ou grupo particular de cidados) afetado por determinada deciso recorre sem intermedirios nos fruns adequados para fazer-se ouvir. Todavia, ainda que direta, essa modalidade de participao de natureza negativa. Ela no destinada criao ou instituio positiva de algo novo. Os cidados participam para dizer no, para conter ou corrigir, em nome dos interesses comuns assumidos pela comunidade, algo j criado pelo povo coletivo, autor da democracia (SILVA, 2007, p. 216).

    Percebe-se que a participao proposta por Pettit instrumental e de natureza negativa. Ela aparece como uma proteo para o exerc-cio da liberdade como no-dominao dos cidados. Para o autor, a participao s vai se apresentar de forma positiva, ou seja, s vai estar vinculada ao autogoverno, de forma indireta, atravs do voto de todos os cidados na escolha dos representantes polticos. Fora das eleies, ela surge de forma desejada como o meio indispensvel para a procura, pelos cidados, de melhores condies para o exerccio de suas liber-dades.

    5 O neorrepublicanismo de Philip Pettit

    Ao falar em republicanismo, Pettit se refere ampla tradio republicana. Essa tradio tem suas origens na Roma clssica, ressurgiu no Renascimento, configurando-se no pensamento de Maquiavel e desempenhando importante papel na autoconscincia das primeiras comunidades polticas europeias modernas.

    Nos ltimos anos, mais precisamente nas ltimas quatro dca-das, assistiu-se renascena da tradio republicana. Seu redescobri-mento ocorreu principalmente na rea anglo-saxnica, em particular graas a autores como Quentin Skinner e Philip Pettit. Essa renascena refere-se retomada dos debates e discusses acerca dos temas que

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    envolvem as questes republicanas, como espao pblico, virtudes cvicas, valores e, principalmente, a questo da liberdade. Como j foi mencionada nas sees anteriores, a liberdade, para Pettit, foi o ponto central no qual ele se baseou para fazer uma reinterpretao da histria poltica desde a antiguidade clssica. Essa onda neo-republicana atingiu vrios pases, aonde vem se desenvolvendo um debate vivaz e prolfico sobre estas ideias republicanas.

    Para caracterizar o republicanismo na atualidade, necessrio analisar todos os momentos que aparecem na tradio republicana e as experincias histricas que so recorrentes atravs dos tempos. Con-forme Prados:

    Definido deste modo, o republicanismo no aparece como um modelo poltico, encerrado em pocas passadas e esgotado definitivamente, seno como uma bagagem de idias e atitudes polticas, que pode ser revitalizado em qualquer momento, e que conserva a capacidade de proporcionar vida poltica uma inspirao e um tom caractersticos (PRADOS, 2003, p. 86).

    A construo terica do neorrepublicanismo, proposta por Pet-tit, critica o liberalismo e defende um conceito de liberdade que no se deixa aprisionar em nenhum dos plos da diviso clssica entre liber-dade positiva e liberdade negativa. Ele concebe outra possibilidade ao conceito de liberdade, uma liberdade como ausncia de dominao, ausncia de toda e qualquer interferncia que possa ser arbitrria. Para ele, no existe liberdade em uma situao em que a ausncia ftica de impedimentos estiver acompanhada de uma relao de dominao.

    Para Pettit, o republicanismo e o liberalismo constituem con-cepes diferentes de liberdade. Tal argumento confirmado por Viro-li, pois, enquanto:

    O liberalismo entende a liberdade como ausncia de interferncia; a democracia identifica a liberdade no poder de estabelecer normas a si prprio e de no obedecer a outras normas alm daquelas estabelecidas a si prprio (so palavras suas); ao contrrio, o republicanismo identifica a verdadeira liberdade na ausncia de dependncia da vontade arbitrria de um homem ou de alguns homens (VIROLI, 2007, p. 1).

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    Percebe-se a diferena quando nos referimos ao tipo de ausn-cia; para o primeiro, ausncia de interferncia, para o segundo, ausn-cia de interferncia arbitrria. Ambas as tradies possuem tambm pontos em comum. Existe em ambas as tradies uma estreita relao entre liberdade e lei, embora esta seja considerada de forma distinta. Na tradio liberal, a lei concebida como limite da liberdade, ou seja, como uma conteno externa que serve para obstar a coliso entre a liberdade de um cidado e a de outro. Assim, a lei, ao restringir a liberdade, proporciona a ela uma garantia. A ao que restringe a li-berdade aceita, porque uma liberdade garantida, mesmo que sofra restries, prefervel a uma liberdade intacta, porm, precria. J no republicanismo, a liberdade aparece como produto e consequncia da lei, que deve ter sido instaurada em um contexto livre de dominao. A funo da lei constituir a liberdade. Antes da existncia da lei no era possvel falar de liberdade republicana.

    No republicanismo, a lei e as instituies estatais so necessrias para o bem estar dos cidados e para o bom funcionamento da Rep-blica. Para que isso ocorra, e para que a liberdade como no-dominao vigore, imprescindvel que existam as normas, como forma de complemento para as leis. As normas devem ser entendidas como regras de conduta social que se destinam a regular as atividades dos homens em suas relaes sociais, como os bons costumes e as virtudes cvicas. Nas palavras de Pettit:

    As leis tm que estar canalizadas em uma rede de normas que imperem de modo efetivo, e com independncia da coero estatal, no reino da sociedade civil. (...) Se o estado tem que ser capaz de formar um lugar nos coraes das pessoas, e se suas leis de estado tm que ser verdadeiramente efetivas, essas leis tm que trabalhar sinergeticamente com as normas j estabelecidas, ou em vias de ser-lo, na sociedade civil. As leis tm que sustentar as normas, e as normas tm que dar apoio s leis (PETTIT, 1999, p. 313-314).

    A importncia da complementao lei/norma bastante antiga e j aparece na tradio, com o pensamento de Maquiavel, que afirma: (...) assim como os bons costumes necessitam, para se manterem, das leis, assim tambm as leis, para serem observadas, tm necessidade dos bons costumes (MAQUIAVEL apud PETTIT, 1999, p. 314).

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    Dessa forma, para que o ideal republicano de Pettit acontea, necessrio que as leis republicanas estejam engajadas com as normas da sociedade civil e que nunca entrem em conflito com elas. As leis tam-bm precisam estar de acordo com os hbitos de virtude cvica, com a boa cidadania e com os hbitos de civilidade, como menciona Viroli: [A] virtude civil: este o verdadeiro significado do ideal republicano do amor pela ptria (VIROLI, 2007, p. 11). A civilidade ou virtude cvica , para Pettit, o que distingue a tradio republicana; o que caracteriza o bom funcionamento da liberdade como no-dominao. A civilidade fornece sustentao para a Repblica. Argumenta Pettit:

    (...) as leis republicanas obtero observncia e as pessoas desfrutaro solidamente de liberdade como no dominao tutelada por essas leis, somente no caso de que estas possam apoiar-se em normas adequadas, somente no caso de que a observncia da lei seja ocasionada ou reforada por uma civilidade amplamente difundida (PETTIT, 1999, p. 320).

    Alm de uma civilidade amplamente difundida, importante a existncia da confiana, ao mesmo tempo, amplamente difundida na sociedade. Em uma sociedade civil estabelecida por uma repblica institucional, a confiana progredir. Conforme Bignotto:

    Com isso, ele abre espao para se discutir o lugar que a prtica das chamadas virtudes cvicas deve ter nas sociedades atuais. Para ele, fundamental no apenas que os cidados incorporem os valores associados ao desenvolvimento de bens coletivos, mas tambm que desenvolvam uma confiana crescente nos mecanismos que constituem a vida comunitria. O resultado , segundo Pettit, uma florescente sociedade civil. Numa sociedade fundada nesses moldes, razovel esperar que o ideal de no dominao possa encontrar, na realidade institucional e no direito, os caminhos para se desenvolver (BIGNOTTO in CARSOSO, 2004, p. 25).

    A civilidade, amplamente difundida, remete a um conjunto de normas republicanas concebidas pelo mtuo conhecimento dos cida-dos e baseadas na confiana recproca. Assim, afirma Pettit: o projeto republicano culmina do modo mais natural na concepo de uma sociedade em que a civilidade e a confiana esto amplamente difun-didas (PETTIT, 1999, p. 348).

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    Todas estas questes, analisadas em conjunto, abrem caminho para uma releitura dos problemas polticos da atualidade, sendo o neorrepublicanismo de Pettit considerado um instrumento intenso e hbil para todos os indivduos que se preocupam em fazer uma refle-xo poltica na contemporaneidade.

    6 Consideraes

    Neste artigo, procurou-se desenvolver elementos importantes da teoria poltica de Philip Pettit, considerado a figura central da retoma-da dos debates republicanos. Na primeira parte, realizou-se uma apro-ximao teoria republicana de Pettit. Nesta abordagem, foram anali-sadas as questes preliminares que so de suma importncia para o entendimento do ideal de liberdade concebido pelo autor, ou seja, a liberdade como no-dominao.

    Na segunda parte, trabalhou-se a questo da liberdade poltica como no-dominao, que considerada pelo autor o ideal de liberda-de republicana. Esta se refere total ausncia de interferncia arbitrria por parte de outro indivduo ou por parte do Estado, e difere tanto da liberdade positiva como da negativa.

    Na terceira parte, analisou-se a questo do cidado republicano, o sujeito do ideal de liberdade como no-dominao, que considera-do livre quando no est sob o arbtrio de outrem.

    Na quarta e ltima parte do captulo, fez-se uma exposio das ideias que caracterizam o neorrepublicanismo de Pettit, enfatizando alguns pontos que o aproximam e outros que o distanciam do libera-lismo.

    As idias analisadas neste artigo apontam para a existncia de um republicano engajado na busca de elementos que garantam a pro-teo dos interesses comuns da coletividade e que auxiliem na constru-o de medidas e valores polticos, capazes de tornar os cidados dig-nos de uma verdadeira Repblica, justa, plural e igualitria.

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    Cntia Luzardo Rodrigues

    E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em abril/2010. Aprovado em junho/2010.