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Tradução de Luciano Ramos Mendes caderno de leituras n. 55 Pão e poesia Isroel Shtern

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Tradução de Luciano Ramos Mendes

caderno de leituras n. 55

Pão e poesia

Isroel Shtern

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Pão e poesia Isroel Shtern caderno de leituras n. 55

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Pão e poesia1

Isroel Shtern Tradução de Luciano Ramos Mendes

Numa das ruazinhas judaicas mais pobres de Varsóvia, eu conheço um apartamento. Lá se come pouco. Lá se lê muito – sobre comida.

São em três. O pai tem 69 anos. A mãe tem 46 (é a segunda esposa). A filha, 12. Eles moram na cozinha. A sala é dividida com outros moradores, idosos.

A cozinha e o quarto – os dois são bonitos. Decorados com pobreza. Nenhum cômodo tem água encanada. Não há banheiro. Luz elétrica – isso tem. Pertence a todos ao mesmo tempo, e todos o ressentem. Por volta das nove, nove e meia começam as incitações: “Nu2, hora de dormir”, “Chega, hora de dormir”, “Hora de terminar o dia”.

Por hora a filha não tem mais que 12 anos. Pra que é que ela vai se apressar? Ela vira as páginas de um livro com vagar. Está lendo. O quarto e a cozinha gritam: “Nu, Sime-Leye, hora de dormir”, “Chega, Sime-Leye, hora de dormir”, “Sime-Leye, o dia acabou”; Sime-Leye está bem no meio de um capítulo e não quer parar.

Começa uma discussão. Nem o pai, nem a mãe, nem os vizinhos, nenhum deles entende: o que é que ela tem tanto pra ler? Dia e noite, sempre lendo.

Assim continua por muito tempo, até alguém dar um pulo pela sala e apagar a luz. Sime fica lá sentada, olhando as páginas escurecidas. Até agora tinha tanta coisa lá, tanto movimento. Risadas, barulho. Tinha vida, tinha fé, cantoria, costumes. Agora as páginas estão mortas. Não há mais nada. O mundo está estático. É hora de ir dormir.

Quando todos já estão deitados, a mãe se lembra:

– Mas como é que eu vou dormir? O que foi que eu comi hoje?

O pai se irrita: “E eu, comi o quê?”

– Você – responde a mãe – você... de manhã eu trouxe meio pão. De noite eu trouxe meio pão. Onde é que isso tudo foi parar?

A filha não se mete na discussão. Ela reflete sobre quanta estranheza há nas páginas de um livro. Enquanto uma luz brilhar, num livro há vida, inspiração, movimento. Então escurece, e é isso, morto como todos os mortos.

1 Texto originalmente publicado em: Shtern, Yisroel. “Broyt un poezie”. In: Shtern, Yisroel. Lider un esayen. Nova Iorque: H. Leyvik Publishing House, 1955. p. 143-149.

2 [Nota do tradutor] Nu: interjeição iídiche quase que onomatopéica e virtualmente intraduzível.

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Pão e poesia Isroel Shtern caderno de leituras n. 55

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Ela sabe que são tolices o que pensa. Sem dúvida, se há luz enxergamos para ler, se está escuro, não enxergamos e não podemos ler. Mesmo assim ela continua a pensar nisso...

Quando as pessoas dormem cedo, acordam junto com o dia. Antes de mais nada, o pai começa a se arrumar.

E assim que o pai se esgueira pra fora do apartamento, a mãe vira para a filha:

– Leia, Simele, leia! Pois é nos livros que você vai achar comida. Eu digo, daqui a pouco seu pai deve ir de casa em casa, eu vou lavar roupas, e você vai ser uma empregada. Leia os seus livros, leia!

O apartamento geralmente me lembra de um poema. Um poema famoso, que eu não gosto, um poema muito popular e que não é muito auspicioso... Um poema que é citado a cada pogrom, a cada tragédia, e que é tão bonito e refinado como só o sofrimento judaico consegue ser.

“Dê aos mortos as mortalhas

Dê aos vivos o pão”

Você conhece esses versos? À primeira vista tudo bem, é simples e generoso. Mas experimente uma análise mais detalhada.

Quando de um só fôlego dizemos: “Dê aos mortos as mortalhas, dê aos vivos o pão”, os vivos também são uma espécie de mortos, mas mortos que precisam comer.

E qual cadáver terá o atrevimento de dar um tapa na mesa: “Nos dêem as morta-lhas!” – seria uma algazarra geral: “Volta pro teu descanso!...”

Também aquele que vive precisa ficar deitado ou sentado como morto, até que alguém, de bom grado, lhe corte um pedaço de pão, do mesmo modo como se corta um pedaço de algodão para o morto.

E não é só isso. Quando “damos aos mortos as mortalhas”, logo tudo está em ordem. Jamais houve um defunto arrivista, que se recusasse a submeter-se e não esti-vesse satisfeito com o modo das coisas, exigindo alguma coisa diferente. Então pra que é que os vivos precisam de mais que pão? Eles não são mais do que cadáveres, só que cadáveres que precisam se empanturrar...

E mais: que higienista louco escavaria uma cova e vestiria o finado em roupas novas? Uma vez vestido já basta. Então dê ao morto a mortalha, e ao vivo o pão. A carcaça número 1 e a carcaça número 2. Dê-lhes sua parte de uma vez por todas e que o diabo lhes carregue...

Sim, esse é um poema triste. Triste de todos os modos – e muito popular.

Vocês podem calcular quanto por cento sua popularidade iria diminuir se a estro-fe fosse: “Dê aos vivos mais do que pão?”

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Pão e poesia Isroel Shtern caderno de leituras n. 55

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Imaginem então o quão impopular, o quão pouco citado seria o caprichoso poeta que quisesse escrever esse verso:

“Dê aos vivos pão e poesia.”

Junto aos pais de Sime-Leye centenas e milhares de pais e mães berrariam: “Leia os livros, leia. Os livros vão te dar de comer.”

***

O que ele vai achar num poema? Pra que é que lhe servem uns versos? Ele precisa comer. Pra que encher a cabeça com besteiras?

Mas justamente por isso, porque nenhuma outra coisa pode existir para ele; por isso cada manifestação, cada experiência, cada acontecimento, todos os objetivos fo-ram rasgados como se fossem paredes de papel, e do outro lado da parede gravita-se, gravita-se para a infinitude marrom ou preta de uma fatia de pão – por isso mesmo a fome é mais, muito mais do que um assunto prosaico.

Quando há uma coisa tal que tira todo o resto de vista, cintilando sozinha: quan-do há algo que abafa todos os clamores e barulhos, todos os lamentos e murmúrios, e ecoa sozinho nas orelhas como pesados sinos de cobre – então isso é o Despertar do Sangue, o chamado do pão, o canto do sangue.

Certamente, quando se tem fome, não se quer nada além de comida, comida.

Mas se todas as coisas querem envolver-se em si mesmas, se toda a sua saudade está numa única lágrima: é exatamente essa a fonte da poesia.

Essa é a hora em que tudo te pressiona, te esmaga, te agarra como um alicate – a fome.

O teto lhe é estranho. O chão, um inimigo. Nas cadeiras estão sentados esquele-tos que escaparam de uma cova algures.

Você não pode suportar o horror em seu próprio lar. Você sai, foge para a rua.

Mas as casas permanecem em repouso, como prisões escuras. As pessoas na rua riem na sua cara como que se tivessem prazer na sua desgraça.

Há uma escapatória. Uma única salvação: a lua cheia é um pão redondo. Mas o padeiro a dependurou muito alto, muito longe...

Ele te provoca com ela, sempre fora de alcance.

Todas as janelas iluminadas na noite da cidade piscam para você: “O esfomeado é você, não nós, não nós.”

Os automóveis flutuam saciados e suaves em seus pneus largos e silenciosos, e buzinam seu contentamento: “A fome é tua, tua, tua.”

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Pão e poesia Isroel Shtern caderno de leituras n. 55

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Mesmo os exaustos cavalos da carroça que vêm se aproximando: “Nós comemos aveia, comemos feno, comemos deliciosas cascas de batata fervidas...”

Comida – esse é o centro. Ao redor dela orbitam todos os cinco sentidos. Possivel-mente também o sexto.

O rio dos acontecimentos parou. As incontáveis formas das coisas tomaram umas as outras pela mão e, todas juntas, despencaram na mesma pilha. A descomu-nal inteireza dos objetos perdeu sua aparência; no fogo da fome derreteram-se as peculiaridades como numa fundição de moedas. São uma coisa borrada e apagada, sem simetria.

Tudo está se apagando, apenas se vive por não se querer desaparecer.

De milhões faz-se um...

Quando tudo acontece num só lugar, esse é o lugar de um grande sonho:

No momento em que sua vizinhança não está mais lá para distraí-lo, um lugar desconhecido rapidamente de aproxima de você, –

Quando seu corpo está tão cheio de medo e tão no limite que é como se um machado tivesse cortado fora todas as suas dores, –

Quando o mundo não é maior que o seu coração e seu coração não é menor do que sua aflição, –

Quando o fluxo dos eventos está congelado e só seu sangue murmura, cheio de segredos, –

Quando os quatro cantos do mundo se curvam, curvam-se sobre sua carência e sua pobreza, como sobre uma criança nua e indefesa, –

E é então, pobre, que você é celebrado – a Terra se deposita como uma guirlanda de flores à sua cabeceira...

E você a vê toda, em sua inteireza... Você a olha desde seus quatro cúbitos. Além dos teus quatro cúbitos você não tem condições de ver. E neles ela adentra, a Terra vasta, distante, estendida.

Da mesma maneira que o grande e santo evangelho entra na minúscula e mal iluminada cabana de Sonia e Raskolnikov...

E todas as terras distantes se enrodilham num só lugar, que deve tornar-se uma colina. Cada vez mais alta. Quanto mais alto sobe o homem, mais belo o mundo se torna...

Esta é a hora mais sagrada. Vocês, barulhentos, mostrem respeito! Agora se dá, silenciosamente, a unificação do universo. A linha dourada é tecida, se estendendo desde a terra preta até chegar a Deus.

O nascimento da visão, a origem do grande sonho.

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Pão e poesia Isroel Shtern caderno de leituras n. 55

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Patrocínio

1069/2014

Edições Chão da Feira Caderno de Leituras n. 55 Imagem capa e Projeto gráfico: Clarice G. LacerdaDezembro de 2016

chaodafeira.com

Este Caderno de Leituras foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Fundação Municipal de Cultura. Patrocínio UNA.

Os sóbrios não entenderão. Eles têm em seus estoques latas de lixo cheias de piadinhas a respeito da “fome” e “assuntos elevados”. O grotesco aqui é que é dos pobres que se origina a maior parte dessas besteiras. Eles, que assaram o pão e ser-viram o vinho dos ricos, também cuidam das almas dos saciados... Tendo certeza de que eles também se sentem privilegiados espiritualmente...

Não se economizou no sarcasmo ao diferenciar-se um estômago faminto e as coisas elevadas. Foi a esperteza barata que triunfou.

Naturalmente, os sóbrios não o entendem. A sobriedade é a inteligência do bolso do colete de um homem. A poesia é a inteligência do homem. A riqueza é um brilho do exterior, a pobreza um brilho do interior.

Portanto: os pobres entendem a poesia mais profundamente.

Só não coloque uma divisão entre você e eles, não se convença de que uma tal iguaria não é pras entranhas deles.

Não frite uma costeleta feita duma mistura de pão e mortalhas. Não pense que um homem pobre é um defunto que mastiga e engole.

Seja prudente com os pobres. Pois é aqui que o homem começa a se tornar rico... Pois é aqui que fazem-se os mais nobres...