poesia completa - hilda hilst
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HILDA HILST
OBRA POTICA REUNIDA (1950 - 1996)
Organizao: Edson Costa Duarte
Obra potica reunida
Hilda Hilst
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OBRA POTICA REUNIDA (1950-1996)
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Casa do Sol
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A ilustrao da capa......
FICHA CATALORFICA ELABORADA POR XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Hilst, Hilda H00x Poesia reunida / Hilda Hilst -- CIDADE, ESTADO: Editora da Universidade XXXXX, 1998. 1. Hilst, Hilda, 1930 - /// - Literatura Brasileira sc. XX 2. Fico Brasileira. I. Universidade XXXXXXXXXXXXX II. Ttulo.
00.XXX - B869.000 B 869.00
ISBN 00-000-000-0 (Editora XXXXXXXXXX)
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ndices para catlogo sistemtico: 1. Escritor Brasileiro - Obra Reunida B869.000 2. Fico Brasileira B869.00
Copyright
1998 Hilda Hilst
Editora XXXXXXXX Endereo XXXXXXX XXXXXXXXXXXXX Tel: (000) 0000000000 / Fax (000) 00000000
1998
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SumrioCantares do Sem Nome e de Partidas (1995).............................5 Do desejo (1992).....................................................................14 Do desejo (1992)...........................................................15 Da noite (1992).............................................................20 Amavisse (1989)...........................................................24 Via Espessa........................................................35 Via Vazia...........................................................42 Alcolicas (1989).........................................................46 Sobre a Tua Grande Face (1986)..................................51 Poemas malditos gozosos e devotos (1984)............................ Cantares da perda e predileo (1983)...................................74 Da morte. Odes mnimas (1979)................................................. - Tempo Morte.......................................................................... - Tua Frente. Em vaidade........................................................... Jbilo Memria Noviciado da Paixo (1974).............................. - Dez chamamentos ao amigo....................................................... - O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade.......... - Moderato cantabile....................................................................... - Ode descontnua e remota para flauta e obo. De Ariana para Dionsio.........................................................................
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- Preldios-Intensos para os desmemoriados do amor............ - rias pequenas. Para bandolim................................................. - ria nica, turbulenta................................................................ - Poemas aos Homens do nosso tempo...................................... Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Arajo (1967)............................................................... - Corpo de Terra.......................................................................... - Corpo de luz.............................................................................. Exerccios para uma idia (1967)................................................ Trajetria potica do ser (1963-1966)......................................... - Passeio...................................................................................... - Memria................................................................................... - Odes maiores ao pai................................................................. - Iniciao do poeta..................................................................... Sete cantos do poeta para o anjo (1962)..................................... Ode fragmentria (1961)............................................................. - Buclicas................................................................................. - Testamento lrico......................................................................... Hericas......................................................................................... Trovas de muito amor para um amado senhor (1960).......... Roteiro do Silncio (1959)........................................................... - Cinco elegias.................................................................................. - Sonetos que no so.................................................................... - Do amor contente e muito descontente.................................. Balada do festival (1955)............................................................. Balada de Alzira (1951)................................................................ Pressgio (1950)............................................................................
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CANTARES DO SEM-NOME E DE PARTIDAS(1995)
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A Andr Pinotti e memria de Mirella Pinotti
tirnico Amor, caso vrio Que obrigas um querer que sempre seja De si contnuo e spero adversrio... Luiz Vaz de Cames
Cubram-lhe o rosto, meus olhos ofuscam-se; ela morreu jovem. John Webster
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I Que este amor no me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua do estar sendo perseguida E do tormento De s por ele me saber estar sendo. Que o olhar no se perca nas tulipas Pois formas to perfeitas de beleza Vm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor s me faa descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faa pequena. E diminuta e tenra Como s soem ser aranhas e formigas. Que este amor s me veja de partida.
II E s me veja
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No no merecimento das conquistas. De p. Nas plataformas, nas escadas Ou atravs de umas janelas baas: Uma mulher no trem: perfil desabitado de carcias. E s me veja no no merecimento e interdita: Papis, valises, tomos, sobretudos Eu-algum travestida de luto. (E um olhar de prpura e desgosto, vendo atravs de mim navios e dorsos). Dorsos de luz de guas mais profundas. Peixes. Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis Machucadas de gozo. E que jamais perceba o rocio da chama: Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
III Isso de mim que anseia desepedida (Para perpetuar o que est sendo) No tem nome de amor. Nem celeste Ou terreno. Isso de mim marulhoso E tenro. Danarino tambm. Isso de mim novo: Como quem come o que nada contm. A impossvel oquido de um ovo.
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Como se um tigre Reversivo, Veemente de seu avesso Cantasse mansamente. No tem nome de amor. Nem se parece a mim. Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso Danarino e novo, ter nome de ningum E preferir ausncia e desconforto Para guardar no eterno o corao do outro.
IV E por que, tambm no doloso e penitente? Dolo pode ser punhal. E astcia, logro. E isso sem nome, o despedir-se sempre Tem muito de seduo, armadilhas, mincias Isso sem nome fere e faz feridas. Penitente e algoz: Como se s na morte abraasses a vida. pomposo e pungente. Com ares de santidade Odores de cortes, pode ser carmelita Ou Catarina, ser menina ou mals. Penitente e doloso Pode ser o sumo de um instante. Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte. Fmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo
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Que s se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.
V O Nunca Mais no verdade. H iluses e assomos, h repentes De perpetuar a Durao. O Nunca Mais s meia-verdade: Como se visses a ave entre a folhagem E ao mesmo tampo no (E antevisses Contentamento e morte na paisagem). O Nunca Mais de plancies e fendas. de abismos e arroios. de perpetuidade no que pensas efmero E breve e pequenino No que sentes eterno. Nem corvo ou poema o Nunca Mais.
VI Tem nome veemente. O Nunca Mais tem fome. De formosura, desgosto, ri E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue.
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E perseguido s novo, devastado e outro. Pensas comicidade no que breve: paixo? H de se diluir. Molhaduras, lenis E de fartar-se, O nojo. Mas no. Atado tua prpria envoltura Manchado de quimeras, passeias teu costado. O Nunca Mais a fera.
VII Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus. Aldeia o que sou. Alde de conceitos Porque me fiz tanto de ressentimentos Que o melhor partir. E te mandar escritos. Rios de rumor no peito: que te viram subir A colina de alfafas, sem guas e sem cabras Mas com a mulher, aquela, Que sempre diante dela me soube to pequena. Sabenas? Esqueci-as. Livros? Perdi-os. Perdi-me tanto em ti Que quando estou contigo no sou vista E quando ests comigo vem aquela.
VIII Aquela que no te pertence por mais queira (Porque ser pertencente
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entregar a alma a uma Cara, a de spide Escura e clara, negra e transparente), Ai! Saber-se pertencente ter mais nada. ter tudo tambm. como ter o rio, aquele que desgua Nas infinitas guas de um sem-fim de ninguns. Aquela que no te pertence no tem corpo. Porque corpo um conceito suposto de matria E finito. E aquela luz. E etrea. Pertencente no ter rosto. ser amante De um Outro que nem nome tem. No Deus nem Sat. No tem ilharga ou osso. Fende sem ofender. vida e ferida ao mesmo tempo, ESSE Que bem me sabe inteira pertencida.
IX Ilharga, osso, algumas vezes tudo o que se tem. Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso. E pensas maravilha quando pensas anca Quando pensas virilha pensas gozo. Mas tudo mais falece quando pensas tardana E te despedes. E quando pensas breve Teu balbucio trmulo, teu texto-desengano Que te espia, e espia o pouco tempo te rondand o a ilha. E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas Luta, ascese, e as ms do tempo vo triturando
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Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo Canta! Ainda que se desfaam ilhargas, trilhas... Canta o comeo e o fim. Como se fosse verdade A esperana.
X Como se fosse verdade encantaes, poemas Como se Aquele ouvisse arrebatado Teus cantares de louca, as cantigas da pena. Como se a cada noite de ti se despedisses Com colibris na boca. E candeias e frutos, como se fosses amante E estivesses de luto, e Ele, o Pai Te fizesse porisso adormecer... (Como se se apiedasse porque humana s apenas poeira, E Ele o grande Tecelo da tua morte: a teia). Como se fosse vo te amar e por isso perfeito. Amar o perecvel, o nada, o p, sempre despedir-se. E no Ele, o Fazedor, o Artfice, o Cego O Seguidor disso sem nome? ISSO... O amor e sua fome.
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Do Desejo
(1992)
memria de Apolonio de Almeida Prado Hilst meu pai
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Do Desejo
Quem s? Perguntei ao desejo. Respondeu: lava. Depois p. Depois nada.
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I Porque h desejo em mim, tudo cintilncia. Antes, o cotidiano era um pensar alturas Buscando Aquele Outro decantado Surdo minha humana ladradura. Visgo e suor, pois nunca se faziam. Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo Tomas-me o corpo. E que descanso me ds Depois das lidas. Sonhei penhascos Quando havia o jardim aqui ao lado. Pensei subidas onde no havia rastros. Extasiada, fodo contigo Ao invs de ganir diante do Nada.
II Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de mscaras. Que desenhos e rictus na tua cara Como os frisos veementes dos tapetes antigos. Que sombrio te tornas se repito O sinuoso caminho que persigo: um desejo Sem dono, um adorar-te vvido mas livre. E que escura me fao se abocanhas de mim Palavras e resduos. Me vm fomes Agonias de grandes espessuras, embaadas luas Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te. Cordura. Crueldade.
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III Colada tua boca a minha desordem. O meu vasto querer. O incompossvel se fazendo ordem. Colada tua boca, mas descomedida rdua Construtor de iluses examino-te sfrega Como se fosses morrer colado minha boca. Como se fosse nascer E tu fosses o dia magnnimo Eu te sorvo extremada luz do amanhecer.
IV Se eu disser que vi um pssaro Sobre o teu sexo, deverias crer? E se no for verdade, em nada mudar o Universo. Se eu disser que o desejo Eternidade Porque o instante arde interminvel Deverias crer? E se no for verdade Tantos o disseram que talvez possa ser. No desejo nos vm sofomanias, adornos Impudncia, pejo. E agora digo que h um pssaro Voando sobre o Tejo. Por que no posso Pontilhar de inocncia e poesia
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Ossos, sangue, carne, o agora E tudo isso em ns que se far disforme?
V Existe a noite, e existe o breu. Noite o velado corao de Deus Esse que por pudor no mais procuro. Breu quando tu te afastas ou dizes Que viajas, e um sol de gelo Petrifica-me a cara e desobriga-me De fidelidade e de conjura. O desejo Esse da carne, a mim no me faz medo. Assim como me veio, tambm no me avassala. Sabes por qu? Lutei com Aquele. E dele tambm no fui lacaia.
VI Aquele Outro no via minha muita amplido. Nada LHE bastava. Nem gneas cantigas. E agora v, te pareo soberba, magnfica E fodes como quem morre a ltima conquista E ardes como desejei arder de santidade. (E h luz na tua carne e tu palpitas.)
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Ah, porque me vejo vasta e inflexvel Desejando um desejo vizinhante De uma Fome irada e obsessiva?
VII Lembra-te que h um querer doloroso E de fastio a que chamam de amor. E outro de tulipas e de espelhos Licencioso, indigno, a que chamam desejo. H o caminhar um descaminho, um arrastar-se Em direo aos ventos, aos aoites E um nico extraordinrio turbilho. Porque me queres sempre nos espelhos Naquele descaminhar, no p dos impossveis Se s me quero viva nas tuas veias?
VIII Se te ausentas h paredes em mim. Friez de ruas duras E um desvanecimento trmulo de avencas. Ento me amas? te pes a perguntar. E eu repito que h paredes, friez H ,olimentos, e nem por isso h chama. DESEJO um Todo lustroso de carcias Uma boca sem forma, em Caracol de Fogo. DESEJO uma palavra com a vivez do sangue
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E outra com a ferocidade de Um s Amante. DESEJO Outro. Voragem que me habita.
IX E por que haverias de querer minha alma Na tua cama? Disse palavras lquidas, deleitosas, speras Obscenas, porque era assim que gostvamos. Mas no menti gozo prazer lascvia Nem omiti que a alma est alm, buscando Aquele Outro. E te repito: por que haverias De querer minha alma na tua cama? Jubila-te da memria de coitos e acertos. Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
X Pulsas como se fossem de carne as borboletas. E o que vem a ser isso? perguntas. Digo que assim h de comear o meu poema. Ento te queixas que nunca estou contigo Que de improviso lano versos ao ar Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles Que apetecia a Talleyrand cuidar. Ou ainda quando grito ou desfaleo Advinhas sorrisos, cdigos, conluios Dizes que os devo ter nos meus avessos.
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Pois pode ser. Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo. Pens-LO gozo. Ento no sabes? INCORPREO O DESEJO.
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DA NOITE
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I Vi as guas da noite galopando entre as vinhas E buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas. Algumas tinham manchas azuladas E o dorso reluzia igual noite E as manhs morriam Debaixo de suas patas encarnadas. Vi-as sorvendo as uvas que pendiam E os beios eram negros e orvalhados. Unssonas, resfolegavam. Vi as guas da noite entre os escombros Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas. Laos de pedra e palha entre as alfombras E vasto, um poo engolindo meu nome e meu retrato. Vi-as tumultuadas. Intensas. E numa delas, insone, me vi.
II Que canto h de cantar o que perdura? A sombra, o sonho, o labirinto, o caos A vertigem de ser, a asa, o grito. Que mitos, meu amor, entre os lenis: O que tu pensas gozo to finito E o que pensas amor muito mais.
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Como cobrir-te de pssaros e plumas E ao mesmo tempo te dizer adeus Porque imperfeito s carne e perecvel E o que eu desejo luz e imaterial. Que canto h de cantar o indefinvel? O toque sem tocar, o olhar sem ver A alma, amor, entrelaada dos indescritveis. Como te amar, sem nunca merecer?
III Vem dos vales a voz. Do poo. Dos penhascos. Vem funda e fria Amolecida e terna, anmonas que vi: Corfu. No mar Egeu. Em Creta. Vem revestida s vezes de aspereza Vem com brilhos de dor e madreprola Mas ressoa cruel e abjeta Se me proponho ouvir. Vem do Nada. Dos vnculos desfeitos. Vem do Nada. Dos vnculos desfeitos. Vem dos ressentimentos. E sibilante e lisa Se faz paixo, serpente, e nos habita.
IV
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Dirs que sonho o dementado sonho de um poeta Se digo que me vi em outras vidas Entre claustros, pssaros, de marfim uns barcos? Dirs que sonho uma rainha persa Se digo que me vi dolente e inaudita Entre amoras negras, nsperas, sempre-vivas? Mas no. Algum gritava: acorda, acorda Vida. E se te digo que estavas a meu lado E eloqente e amante e de palavras vido Dirs que menti? Mas no. Algum gritava: Palavras... apenas sons e areia. Acorda. Acorda Vida.
V guas. Onde s os tigres mitigam a sua sede. Tambm eu em ti, feroz, encantoada Atravessei as cercaduras raras E me fiz mscara, mulher e conjetura. guas que no bebi. Crespusculares. Cavas. Cdigos que decifrei e onde me vi mil vezes Inconexa, parca. Ah, toma-me de novo Antquissima, nova. Como se fosses o tigre A beber daquelas guas.
VI
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O que a carne? O que esse Isso Que recobre o osso Este novelo liso e convulso Esta desordem de prazer e atrito Este caos de dor dobre o pastoso. A carne. No sei este Isso. O que o osso? Este vio luzente Desejoso de envoltrio e terra. Luzidio rosto. Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.
VII Dunas e cabras. E minha alma voltada Para o fosco profundo da Tua Cara. Passeio meu caminho de pedra, leite e plo. Sou isto: um algum-nada que te busca. Um casco. Um cheiro. Esvazia-me de perguntas. De roteiro. Que eu apenas suba.
VIII
Costuro o infinito sobre o peito. E no entanto sou gua fugidia e amarga. e sou crvel e antiga como aquilo que vs:
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Pedras, frontes no Todo inamovvel. Terrena, me adivinho montanha algumas vezes. Recente, inumana, inexprimvel Costuro o infinito sobre o peito Como aqueles que amam.
IX Penso linhos e ungentos Para o corao machucado de Tempo. Penso bilhas e ptios Pela comoo de contempl-los. (E de te ver ali luz da geometria de teus atos) Penso-te Pensando-me em agonia. E no estou. Estou apenas densa Recolhendo aroma, passo O refulgente de ti que me restou.
X Que te demores, que me persigas Como alguns perseguem as tulipas Para prover o esquecimento de si. Que te demores Cobrindo-me de sumos e de tintas Na minha noite de fomes.
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Reflete-me. Sou teu destino e poente. Dorme.
AMAVISSE
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memria de Ernest Becker memria de Vladimir Jankelevitch
...ter um dia amado (amavisse) Vladimir Jankelevitch
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Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco espera da Tua Fome, permita-me a pergunta Senhor dos porcos e de homens: Ouviste acaso, ou te foi familiar Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve O verbo amar? Porque na cegueira, no charco Na trama dos vocbulos Na decantada lmina enterrada Na minha axila de plos e de carne Na esteira de palha que me envolve a alma Do verbo apenas entrevi o contorno breve: coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso. Sangra, estilhaa, devora, e por isso De entender-lhe o cerne no me foi dada a hora. verbo? Ou sobrenome de um deus prenhe de humor?
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Na pripla aventura da conquista?
I Carrega-me contigo, Pssaro-Poesia Quando cruzares o Amanh, a luz, o impossvel Porque de barro e palha tem sido esta viagem Que fao a ss comigo. Isenta de traado Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem Hei de levar apenas a vertigem e a f: Para teu corpo de luz, dois fardos breves. Deixarei palavras e cantigas. E movedias Embaadas vias de Iluso. No cantei cotidianos. S cantei a ti Pssaro-Poesia E a paisagem-limite: o fosso, o extremo A convulso do Homem. Carrega-me contigo. No Amanh.
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II Como se perdesse, assim te quero. Como se no te visse (favas douradas Sob um amarelo) assim te apreendo brusco Inamovvel, e te respiro inteiro Um arco-ris de ar em guas profundas. Como se fosse tudo o mais me permitisses, A mim me fotografo nuns portes de ferro Ocres, altos, e eu mesma diluda e mnima No dissoluto de toda desespedida. Como se te perdesse nos trens, nas estaes Ou contornando um crculo de guas Removente ave, assim te somo a mim: De redes e de anseios inundada.
III De uma fome de afagos, tigres baos Vm se juntar a mim na noite oca. E eu mesma estilhaada, prenhe de solides Tento voltar luz que me foi dada E sobreponho as mos nas veludosas patas. De uma fome de sonhos Tento voltar quelas geografias
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De um Fazedor de versos e sua estada. Memorizo este ser que me sou E sobre os fulcros dentes, ali que passeio e deslizo a minha fome. Ento se aquietam de pura madrugada Meus tigres de ferrugem. As garras recolhidas Como se mesmo amorte os exclusse.
IV Se chegarem as gentes, diga que vivo o meu avesso. Que h um vivaz escarlate Sobre o peito de antes palidez, e linhos faiscantes Sobre as magras ancas, e inquietantes cardumes Sobre os ps. Que a boca no se v, nem se ouve a palavra Mas h fonemas slabas sufixos diagramas Contornando o meu quarto de fundo sem comeo. Que a mulher parecia adequada numa noite de antes E amanheceu como se vivesse sob as guas. Crispada. Flutissonante. Diga-lhes principalmente Que h um oco fulgente num todo escancarado. E um negrume de trao nas paredes de cal Onde a mulher-avesso se meteu. Que ela no est neste domingo tarde, apropiada.
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E que tomou alglia E gritou s galinhas que falou com Deus.
V As mas ao relento. Duas. E o viscoso Do Tempo sobre a boca e a hora. As mas Deixa-as para quem devora esta agonia crua: Meu instante de penumbra salivosa. As mas comi-as como quem namora. Tocando Longamente a pele nua. Depois mordi a carne De mas e sonhos: sua alvura porosa. E deitei-me como quem sabe o Tempo e o vermelho: Brevidade de um passo no passeio.
VI Que as barcaas do Tempo me devolvam A primitiva urna de palavras. Que me devolvam a ti e o teu rosto Como desde sempre o conheci: pungente Mas cintilando de vida, renovado Como se o sol e o rosto caminhassem Porque vinha de um a luz do outro. Que me devolvam a noite, o espao
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De me sentir to vasta e pertencida Como se as guas e madeiras de todas as barcaas Se fizessem matria rediviva, adolescncia e mito. Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
VII Aquele fino trao de colina Quero trancar na cancela Da alma. Alimento e medida Para as muitas vidas do depois. Curva de um devaneio inantigido Um todo estendido adolescente Aquele fino trao da colina H de viver na paisagem da mente Como a distncia habita em certos pssaros Como o poeta habita nas ardncias.
VIII Guardo-vos manhs de terracota e azul Quando o meu peito tingido de vermelho
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Vivia a dissolvncia da paixo. O capim calcinado das queimadas Tinha o cheiro da vida, e os atalhos Estreitos tinham tudo a ver com o desmedido E as guas do universo se faziam parcas Para afogar meu verso. Guardo-vos, iluminadas Recedentes manhs to irreais no hoje Como fazer nascer girassis no topzio E dos rubis, roms.
IX Amor chagado, de prpura, de desejo Pontilhado. Volto seiva de cordas Da guitarra, e recheio de sons o teu jazigo. Volto empoeirada de vestgios, arvoredo de ouro Do que fomos, gotas de sal na plancie do olvido Para recender a tua fome. Amor de sombras de ocasos e de ovelhas. Volto como quem soma a vida inteira A todos os outonos. Volto novssima, incoerente Cgnita Como quem v e escuta o cerne da semente E da altura de dentro j lhe sabe o nome. E reverdeo No rosa de umas tangerinas E nos azuis de todos os comeos.
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X H um incndio de angstia e de sons Sobre os instentos. E no corpo da tarde Se fez uma ferida. A mulher emergiu Descompassada no de dentro da outra: Uma mulher de mim nos incndios do Nada. Tinha o dorso de uns rios: quebradio E terroso. O peito carregado de ametistas. Uma mulher me viu no roxo das ciladas: Esculpindo de novo teu rosto no vazio.
XI Os ponteiros de anil no esguio das guas. Tua sombra azulada repensando os rios E agudssimas horas atravessando o leito Das barcaas. Tem sido noite extrema. Finos fios Sulcando de sangue as esperanas. Os ponteiros de anil. Nossas duas vidas Devastadas, num lago de janeiros.
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XII Se tivesse madeira e iluses Faria um barco e pensaria o arco-ris. Se te pensasse, amigo, a Terra toda Seria de saliva e de chegana. Te moldaria numa carne de antes Sem nome ou Paraso. Se me pensasses, Vida, que matria Que cores para minha possvel sobrevida?
XIII Extrema, toco-te o rosto. De ti me vem ponta dos meus dedos o ouro da volpia E o encantado glabro das avencas. De ti me vem A noite tingida de matizes, flutuante De mitos e de guas. Inaudita. Extrema, toco-te a boca como quem precisa Sustentar o fogo para a prpria vida. E mido de cio, de inocncia, saudade de mim que me condenas. Extrema, inomeada, toco-me a mim. Antes, to memria. E to jovem agora.
XIV
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um fado para guitarra Outeiros, trios, pombas e vindimas. Em algum tempo Vivi a eternidade dessas rimas. Pastora, entre os animais que cresci. E lhes pensava O plo e a formosura. Senhora, tive a casa Daqueles da minha raa. Agrandados vestbulos E aves e pomares, e por fidelidade pereci. De humildes aldeias e de casas grnades Translitei entre as vidas. Depois amei Extremante e soturna. A quem me amava matei. Porisso nesta vida temo o amor e facas. Porisso nesta vida Canto canes assim to compassivas Na lngua esquecida.
XV Paliadas e juncos E agudos gritos de um pssaro nos alagadios. Tem sido este o tempo de prenncios. Tecida de carmim no traado das horas A vida se refaz: Um risco de sorriso nos olhos luminosos Um ter visto
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O traado do extenso no inatingvel Paraso. e de novo, no instante Paliadas e juncos. E agudos gritos de um pssaro nos alagadios.
XVI Devo viver entre os homens Se sou mais plo, mais dor Menos garra e menos carne humana? e no tendo armadura E tendo quase muito de cordeiro E quase nada de mo que empunha a faca Devo continuar a caminhada? Devo continuar a te dizer palavras Se a poesia apodrece Entre as runas da Casa que a tua alma? Ai, Luz que permanece no meu corpo e cara: Como foi que desaprendi de ser humana?
XVII As barcas afundadas. Cintilantes Sob o rio. E assim o poema. Cintilante E obscura barca ardendo sob as guas. Palavras eu as fiz nascer
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Dentro da tua garganta. midas algumas, de transparente raiz: Um molhado de lnguas e de dentes. Outras de geometria. Finas, angulosas Como so as tuas Quando falam de poetas, de poesia. As barcas afundadas. Minhas palavras. Mas podero arder luas de eternidade. E doutas, de ironia as tuas S atravs da minha vida vo viver.
XVIII Ser que apreendo a morte Perdendo-me a cada dia No patamar sem fim do sentimento? Ou quem sabe apreendo a vida Escurecendo anrquica na tarde Ou se pudesse Tomar para o meu peito a vastido O caminho dos ventos O descomedimento da cntiga. Ser que apreendo a sorte Entrelaando a cinza do morrer Ao smen da tua vida?
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XIX Empoada de instantes, cresce a noite Descosendo as falas. Um poema entre-muros Quer nascer, de carne jubilosa E longo corpo escuro. Pergunro-me Se a perfeio no seria o no dizer E deixar aquietadas as palavras Nos noturnos desvos. Um poema pulsante Ainda que imperfeito quer nascer. Estando sobre a mesa o grande corpo Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar Sobre as suas ventas. Nasce intensa E luzente a minha cria No azulecer da tinta e luz do dia.
XX De grossos muros, de folhas machucadas que caminham as gentes pelas ruas. De dolorido sumo e de duras frentes que so feitas as caras. Ai, Tempo Entardecido de sons que no compreendo Olhares que se fazem bofetadas, passos Cavados, fundos, vindos de um alto poo De um sinistro Nada. E bocas tortuosas
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Sem palavras. E o que h de ser da minha boca de inventos Neste entandercer. E o do ouro que sai Da garganta dos loucos, o que h de ser?
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VIA ESPESSA
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I De cigarras e pedras, querem nascer palavras. Mas o poeta mora A ss num corredor de luas, uma casa de guas. De mapas-mndi, de atalhos, querem nascer viagens. Mas o poeta habita O campo de estalagens de loucura. Da carne de mulheres, querem nascer os homens. E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome.
II Se te perteno, separo-me de mim. Perco meu passo nos caminhos de terra E de Dionsio sigo a carne, a ebriedade. Se te perteno perco a luz e o nome E a nitidez do olhar de todos os comeos: O que me parecia um desenho no eterno Se te perteno um acorde ilusrio no silncio. E por isso, por perder o mundo Separo-me de mim. Pelo Absurdo.
III Olhando o meu passeio
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H um louco sobre o muro Balanando os ps. Mostra-me o peito estufado de plos E tem entre entre as coxas um lixo de papis: - Procura Deus, senhora? Procura Deus? E simtrico de zelos, balouante Dobra-te num salto desnuda o traseiro. IV O louco estendeu-se sobre a ponte E atravessou o instante. Estendi-me ao lado da loucura Porque quis ouvir o vermelho do bronze E passar a lngua sobre a tintura espessa De um aoite. Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz minha dura noite.
V O louco (a minha sombra) escancarou a boca: _ O que restou de ns decifrado nos sonhos Os arrozais, teu nome, tardes, juncos Tuas ruas que no meu caminho percorri Ai, sim, me lembro de um sentir de adornos
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Mas h uma luz sem nome que me queima E das coisas criadas me esqueci.
VI O louco saltimbanco Atravessa a estrada de terra Da minha rua, e grita minha porta: - senhora Samsara, senhora Pergunto-lhe por que me faz a mim to perseguida Se essa de nome esdrxulo aqui no mora. - Pois aquilo que caminha em crculos Samsara, senhora E recheado de risos, murmura uns indizveis Colado ao meu ouvido. VII Devo voltar luz que me pensou De poeira e comeos? Devo voltar ao barro e s mos de vidro Que fragilizadas me pensaram? Devo pensar o louco (a minha sombra) luz das emboscadas? Ai girassis sobre a mesa de guas. - Estetizante - disse-me o louco Grudado minha potica omoplata.
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- Os girassis? Ah, Samsara, teu esquecido sol. Uma mesa de guas? Que volpia, que mscara E que ambguo deleite Para a voracidade de tua alma.
VIII Eram guas castanhas as que eu via. Caras de palha e cprda nas barcaas brancas. Velas de linhos novos, luzidios Mas resduos. Sobras. Colou-se minha sombra s minhas costas: - Que bagagem, senhora. O Nada navegando tua porta. IX O louco se fechou ao riso Se torceu convulso de fingida agonia E como se lanasse flores cova de um morto Atirou-me os guizos. Por qu? perguntei adusta e ressentida. - senhora, porque mora na morte Aquele que procura Deus na austeridade. X - o olho copioso de Deus. o olho cego
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De quem quer ver. Vs? De to aberto Queimado de amarelo Assim me disse o louco (esguio e loiro) Olhando o girassol que nasceu no meu teto.
XI De canoas verdes de amargas oliveiras De rios pastosos de cascalho e poeira De tudo isso meu cantocho e ervas negras. Grita-me o louco: - De amoras. De tintas rubras do instante que se tinge a vida. De embriaguez, Samsara. E atravessou no riso a tarde fulva.
XII Temendo desde agosto o fogo e o vento Caminho junto s cercas, cuidadosa Na tarde de queimadas, tarde cega. H um velho mouro enegrecido de queimadas antigas. E ali reencontro o louco: - Temendo os teus limites, Samsara esvaecida? Por que no deixas o fogo onividente Lamber o corpo e a escrita? E por que no arder Casando o Onisciente tua vida?
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XIII - Querer voar, Samsara? Queres trocar o moroso das pernas Pela magia das penas. e planar coruscante Acima da demncia? Porque te vejo s tardes desejosa De ser uma das aves retardatrias do pomar. Aquela ali talvez, rumo ao poente. Pois pode ser, lhe disse. Santos e lobos Devem ter tido o meu mesmo pensar. Olhos no cu Orando, uivando aos corvos. Ento aproximou-se rente ao meu pescoo: - Esquece texto e sabena: as cadeias do gozo. E labaredas do intenso te faro o vo.
XIV Telhas, calhas Cordas de luz que se fizeram palavra Algum sonha a carne da minha alma. Ecos, poo O esquecimento perseguindo um corpo Aqui me tens entre a viglia e o encanto Cativa da loucura Perseguindo o louco.
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XV Eram azuis as paredes do prostbulo Ela estendeu-se nua entre os arcos da sala E matou-se devassada de ternura. Que azul insuportvel, antes gritou. Como se adulta um bero me habitasse Foi esta a cano de Natal cantada pelo louco Quando me deu a Hilde: a porca que levava sobre o dorso.
XVI - No percebes, Samsara, que Aquele que se esconde E que tu sonhas homem, quer ouvir teu grito? Que h uma luz que nasce da blasfmia E amortece na pena? Que o cinza a cor do teu queixume E o grito tem a cor do sangue Daquele que se esconde? Vive o carmim, Samsara. A ferida. E ters um vestgio do Homem na tua estrada.
XVII Minha sombra minha frente desdobrada
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Sombra de sua prpria sombra? Sim. Em sonhos via. Prateado de guizos O louco sussurava um refro erudito: - Ipseidade, Samsara. Ipseidade, senhora. E enfeixando energia, cintilando Fez de ns dois um nico indivduo.
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VIA VAZIA
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I Eu sou Medo. Estertor. Tu, meu Deus, uma cavalo de ferro Colado futilidade das alturas.
II Movo-me no charco. Entre o junco e o lagarto. E Tu, como Petrarca, deves cantar tua Laura: Le Stelle, il cielo, caldi sospiri E nem h lua esta noite. Nascidas deste canto Das palavras, s h borbulhas ngua.
III Rato dgua, crculo no remoinho da busca. Que sou teu filho, Pai, me dizem. Farejo. Com a focinhez que me foi dada encontro alguns dejetos. Depois, estendido Na pedra (que dizem ser teu peito) , busco um sinal. E de novo farejo. H quanto tempo. H quanto tempo.
IV carnem aos plos, garganta, lngua
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A tudo isso te assemelhas? Mas e o depois da morte, Pai? As centelhas que nascem da carne sob a terra O estar ali cintilando de treva. treva te assemelhas?
V D-me a via do excesso. O estupor. Amputado de gestos, d-me a eloqncia do Nada Os ossos cintilando Na orvalhada friez do teu deserto.
VI Que vertigem, Pai. Pueril e devasso No furor da tua vscera Trituras a cada dia Meu exguo espao.
VII Tu sabes que serram cavalos vivos Para que fiquem macias
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As sacolas dos ricos? Tu gozas ou defecas Diante do ato sem nome O rubro dessa orgia?
VIII Descansa. O Homem j se fez O escuro cego raivoso animal Que pretendias.
IX Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes. Antiqssima ave, marionete de penas As asas que pensou lhe foram arrancadas. Lavado de luzes, um deus me movimenta. Indiferente. Bufo.
X PEDRA DGUA, ABISMO, PEDRA-FERRO Como te chamas? Para que eu possa ao menos Soletrar teu nome, grudada tua fundura.
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XI Nos pauis, no pau-de-lacre, Aquele de nervuras e de folhas brilhantes, transitas. No pau-de-virar-tripa, s neste ltimo, Pai Eu sei que te demoras, meditando minha vscera.
XII guas de grande sombra, gua de espinhos: O Tempo no roer o verso da minha boca. guas manchadas de um torpor de vinhos: Hei de trag-las todas. E lbrico, descontnuo O TEMPO NO VIVER SE TOCAR A MINHA BOCA.
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ALCOLICAS
(1989)
a Goffredo da Silva Telles Jnior Ignacio da Silva Telles Jos Aristodemo Pinotti pelas guas intensas da amizade
Drink we till we prove more, not lesse, then men,
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And turn not beasts, but Angels. ... and forget to dy. Richard Crashaw (poet e saint)
I a Jamil Snege
crua a vida. Ala de tripa e metal. Nela despenco: pedra mrula ferida. crua e dura a vida. Como um naco de vbora. Como-a no livro da lngua Tinta, lavo-te os antebraos, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida Tua unha pmblea, me casaco rosso E perambulamos de coturno pela rua Rubras, gticas, altas de corpo e copos. A vida crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser to generosa e mtica: arroio, lgrima Olho dgua, bebida. A vida liquda.
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II Tambm so cruas e duras as palavras e as caras Antes de nos sentarmos mesa, tu e eu, Vida Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos Vo se fazendo remansos, lentilhas dgua, diamantes Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas De um amora, um que entrevi no teu hlito, amigo Quando me permitiste o paraso. O sinistro das horas Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte um rei que nos visita e nos cobre de mirra. Sussuras: ah, a vida liquda.
III Alturas, tiras, subo-as, recorto-as E pairamos as duas, eu e a Vida No carmim da borrasca. Embriagadas Mergulhamos ntidas num borraal que coaxa. Que estiola galhofa. Que desempenados Serafins. Ns duas nos vapores Lobotmicas lricas, e a gaicagem Se transforma em galarim, e translcida A lama e extremoso o Nada. Descasco o dementado cotidiano E seu rito pastoso de parbolas. Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
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Aguardamos o tpido poente, o copo, a casa. Ah, o todo se dignifica quando a vida liquda.
IV E bebendo, Vida, recusamos o slido O nodoso, a friez-armadilha De algum rosto sbrio, certa voz Que se amplia, certo olhar que condena O nosso olhar gasoso: ento, bebendo? E respondemos lassas lrias letcias O lusco das lagartixas, o lustrino Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos E afasta-se de ns o slido de fechado cenho. Rejubilam-se nossas coronrias. Rejubilo-me Na noite navegada, e rio, rio, e remendo Meu casaco rosso tecido de acuena. Se dedutiva e lquida, a Vida plena.
V Te amo, Vida, lquida esteira onde me deito Rom baba alcauz, teu tranado rosado Salpicado de negro, de douras e iras. Te amo, Lquida, descendo escorrida Pela vscera, e assim esquecendo
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Fomes Pas O riso solto A dentadura etrea Bola Misria. Bebendo, Vida, invento casa, comida E um Mais que se agiganta, um Mais Conquistando um fulcro potente na garganta Um ltego, uma chama, um canto. Ama-me. Embriagada. Intedita. Ama-me. Sou menos Quando no sou lquida.
VI Vem, senhora, estou s, me diz a Vida. Enquanto te demoras nos textos eloqentes Aqueles onde meditas a carne, essa coisa Que geme sofre e morre, ficam vazios os copos Fica em repouso a bebida, e tu sabes que ela mais viva Enquanto escorre. Se te demoras, comeas a pensar Em tudo que se evola, e cantars: como triste O poente. E a casa como antiga. J vs Que te fazes banal na rima e na medida. Corre. O casaco e o coturno esto em seus lugares. Carminadas e altas, vamos rever as ruas
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E como dizia o Rosa: os olhos nas nonadas. Como tu dizes sempre: os olhos no absurdo. Vem. Liquidifica o mundo.
VII Mandbulas. Espduas. Frente e avesso. A Vida ressoa o coturno na calada. Estou mais do que viva: embriagada. Bbados e loucos que repensam a carne o corpo Vastido e cinzas. Conceitos e palavras. Como convm a bbados grito o inarticulado A garganta candente, devassada. Alguns se ofendem. As caras so paredes. Deitam-me. A noite um infinito que se afasta. Funil. Galxia. Lquida e bemaventurada, sobrevo. Eu, e o casaco rosso Que no tenho, mas que a cada noite recrio Sobre a espdua. VIII O casaco rosso me espia. A l Desfazida por maus tratos gasta e rugosa nas axilas. A frente revela ndoas vivas Irregulares, distintas Porque quando arranco os coturnos
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Na alvorada, ou quando os coloco rpida Ao crespsculo, caio sempre de bruos. A Vida que me pe em p. E a sede. E a saliva. A lngua procura aquele gosto Aquele seco dourado, e acaricia os lbios Babando impudente no casaco. bom e manso o meu casaco rosso. s vezes grita: ah, se te lembrasses de mim Quando prolixa. Lava-me, hilda.
IX Se um dia te afastares de mim, Vida - o que no creio Porque algumas intensidades tm a parecena da bebida Bebe por mim paixo e turbulncia, caminha Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as) Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te Com aquele que sem mim h de sentir um prolongado vazio. Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso : compreender O porqu de buscar conhecimento na embriagus da via manifesta. Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experincia lsbica: Estilhaa a tua prpria medida.
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SOBRE A TUA GRANDE FACE (1986)
memria de Ernest Becker A Ricardo Guilherme Dicke, por identificao no exerccio da procura
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Honra-me com teus nadas. Traduz me passo De maneira que eu nunca me perceba. Confude estas linhas que te escrevo Como se um brejeiro escoliasta Resolvesse Brincar a morte de seu prprio texto. D-me pobreza e fealdade e medo. E desterro de todas as respostas Que dariam luz A meu eterno entendimento cego. D-me tristes joelhos. Para que eu possa finc-los num mnimo de terra E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro. D-me mudez. E andar desordenado. Nenhum co. Tu sabes que amo os animais Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome No desejo alvio. Apenas estreitez e fardo. Talvez assim te encantes de to farta nudez. Talvez assim me ames: desnudo at o osso Igual a um morto.
O que me vem, devo dizer-te DESEJADO, Sem recuo, pejo ou timidezes. Porque mais certo mostrar Insolncia no verso, do que mentir decerto. Ento direi O que se coleia a mim, na intimidade, e atravessa os vaus
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Da fantasia. Deito-me pensada de bromlias vivas E me recrio corprea e incandescente. Tu sabes como nasceu a idia das pontiagudas catedrais? De um louco incendiando um pinheiro de espinhos. Arquiteta de mim, me construo imagem das tuas Casas E te adentras em carne e moradia. Queixumosa vou indo E queixoso te mostras, depois de te fartares Do meu jogo de engodos. E a cada noite voltas Numa simulao de dor. Paraso do gozo. De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a Iluso. A mesma iluso Da gua que sorve a gua pensando sorver a lua. De te pensar me deito nas aguadas E acredito luzir e estar atada Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas. De te sonhar, Sem Nome, tenho nada Mas acredito em mim o ouro e o mundo. De te amar, possuda de ossos e de abismos Acredito ter carne e vadiar Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar Tocando os outros Acredito ter mos, acredito ter boca Quando s tenho patas e focinho. Do muito desejar altura e eternidade Me vem a fantasia de que Existo e Sou. Quando sou nada: gua fantasmagrica Sorvendo a lua ngua.
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Vem apenas de mim, Cara Escura Este desejo de te tocar o esprito Ou s tu, precisante de mim e de minha carne Que incendeias o espao e vens muleiro Montado em ouro e sabre, clavina, cintures Rebenque caricioso Sobre a minha anca viva? Ou h de ser a fome dos teus brilhos Que torna vadeante o meu esprito E me faz esquecer que sou apenas vcio escureza de terra, latejante. Vem de mim, Cara Escura, a ramagem de prpura Com a qual me disfaro. As facas Que a cada dia preparo, no seduzir Tua fina simetria. E vem de ti, Obscuro, Toda cintilncia que jamais me busca.
Quisera dar nomes, muitos, a isso de mim Chagoso, trsite, informe. Uns resduos da tarde Algumas aves, e asas buscando tua cara de fuligem. De spide. Quisera dar o nome de Roxura, porque a nsia Tem parecimento com esse desmesurado de mim
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Que te procura. Mas tambm no isso Este meu neblinar contnuo que te busca. Ando em grandes vaguezas, aoitando os ares Relinchando sombras, carreando o nada. Os que me vem me gritam: como tem passado A alde de sua alteza? E h chacotas e risos. Mas vem vindo de ti um entremuro de sons e de cicios Um labiar de sabores, um sem nome de passos Como se guas pequenas desaguassem Num pomar de abios. Como se eu mesma Flutuasse, cativa, oflica, sobre a tua Grande Face.
Hoje te canto e depois no p que hei de ser Te cantarei de novo. E tantas vidas terei Quantas me dars para o meu outra vez amanhecer Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome, Sutilssimo amado, relincho do infinito, e vivo Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem Teu pasto que o meu verso orvalhado de tintas E de um verde negro teu casco e os areais Onde me pisas fundo. Hoje te canto E depois emudeo se te alcano. E juntos Vamos tingir o espao. De luzes. De sangue. De escarlate.
Desejei te mostrar minha forma humana Afastada de todo da velhice. Por isso
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que te chamo a ti desde criana E adolescente e mulher, tambm contigo Em chamamento convivi. E tive corpo e cara preciosos E brisas crespas numa voz to rara Que se tivesses vindo quele tempo Me verias a mim num corrido de horas Um demoroso estar de muitos noivos. E de todos, Soturno, nenhum foi to coalescente To colado minha carne, como tu foste, ausente. Dirs demasiado. Mas fosca e acanhada, hoje, Peo-te com o luzir dos ossos Com a fragilidade de uma espuma ngua Que me visites antes do adeus da minha palavra.
Lavores, cordas e batalhas O que me vem da alma. Lavor Porque trabalho sobre o teu rosto De palha: construo o impossvel Meu senhor. Cordas, porque te amarro Com as turquesas informes do desejo. E um sem fim de batalhas Porque prender a ti num coraa de fmea querer lavores: o quebradio constante Porque tento com a palha A finura perfeita de um semblante. E o que deve fazer Quem no se lembra mais do mais perfeito
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E de si mesma s tem o humano gesto?
De montanhas e barcas nada sei. Mas sei a trajetria de uma altura E certa fundura de guas E h de me levar a ti uma das duas. De ares e asas no percebo nada. Mas atravesso abismos e um vazio de avessos Para tocar a luz do teu comeo. Das pedras s conheo as gatas. Ams arranco do xisto as esmeraldas Se me disseres que o verde a ddiva Que responde as perguntas da Iluso. E posso me ferir no gelo das espadas Se me quiseres banhada de vermelho. Em minhas muitas vidas hei de te perseguir. Em sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nome Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta Destruindo o Homem.
Escaldante, Obscuro. Escaldante teu sopro Sobre o fosco fechado da garganta. Palavras que pensei acantonadas Ressurgem diante do toque novo: Carrascais. Grgulas. Emergindo do luto
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Vem vindo um lago de surpreendimento Recriando musgo. Voltam as sedues. Volta a minha prpria cara seduzida Pelo teu duplo rosto: metade razes Oquides e poo, metade o que no sei: Eternidade. E volta o fervente langor Os sais, o mal que tem sido esta luta Na tua arena crispada de punhais. E destes versos, e da minha prpria exuberncia E excesso, h de ficar em ti o mais sombroso. Dirs: que instante de dor e intelecto Quando sonhei os poetas na Terra. Carne e poeira O perecvel, exsudando centelha.
Casa do Sol, 1985/1986
Poemas Malditos Gozosos e Devotos
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(1994)
memria de Ernest Becker Otto Rank Simone Weil
Pensar deus apenas uma certa maneira de pensar o mundo. Simone Weil
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I
Ps burilados Luz alabastro Mandou seu filho Ser trespassado Ns ps de carne Nas mos de carne No peito vivo. De carne. Ps burilados Fino formo Dedo alongado agarrando homens Galxias. Corpo de homem? No sei. Cuidado. Vive do grito De seus animais feridos Vive do sangue de poetas, de crianas E do martrio de homens Mulheres santas. Temo que se aperceba De umas misrias de mim. Ou de veladas grandezas Soberbas
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De alguns neurnios que tenho To ricos, to carmesins Tem esfaimada fome Do teu todo que lateja. Se tenho a pedir, no peo. Contente, eu mais lhe agradeo Quanto maior a distncia. E s porisso uma dana, vezenquando Se faz nos meus ossos velhos. Cantando e danando, digo: Meu Deus, por tamanho esquecimento Desta que sou, fiapo, da terra um cisco Beijo-te ps e artelhos.
Ps burilados Luz-alabastro Mandou seu filho Ser trespassado Nos ps de carne Nas mos de carne No peito vivo. De carne. Cuidado.
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II
Rasteja e espreita Levita e deleita negro. Com luz de ouro. branco e escuro. Tem muito de foice E furo. Se tu s vidro punho. Estilhaa. murro. Se tu s gua tocha. mquina Poderosa se tu s rocha. Um olfato que aspira Teu rastro. Um construtor De finitutes gastas. Deus. Um sedutor nato.
III
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Caio sobre teu colo. Me retalhas. Quem sou? Tralhas, do teu divino humor. Corronhadas exatas De tuas mos sagradas. Me queres esbatida, gasta E antegozas o gosto De um trmulo Nada. Me devoras Com teus dentes ocos. A ti me incorporo A contra-gosto. Sou agora fria E descontrole. Agito-me desordenado Nos teus moles. Sou faanha Escuro pulsante Fera doente. tua semelhana: Homem.
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IV Doem-te as veias? Pulsaram porque fizeste Do barro dos homens. E agora di-te a Razo? Se me visses fazer Panelas, cuias E depois de prontas Me visses Aquec-las a um ponto A um grande fogo At faz-las desaparecer Dirias que sou demente Louca? Assim fizeste aos homens. Me deste vida e morte. No te di o peito? Eu preferia A grande noite negra A esta luz irracional da Vida.
V
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Para um Deus, que singular prazer. Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes Ser o enhor de um breve Nada: o homem: Equao sinistra Tentando parecena contigo, Executor. O Senhor do meu canto, dizem? sim. Mas apenas enquanto dormes. Enquanto dormes, eu tento meu destino. Do teu sono Depende meu verso minha vida minha cabea. Dorme, inventado imprudente menino. Dorme. Para que o poema acontea.
VI Se mil anos vivesse Mil anos te tomaria. Tu. e tua cara fria. Teu recesso. Teu encostar-se s duras paredes De tua sede.
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Teu vcio de palavras. Teu silncio de facas. As nuas molduras De tua alma. Teu magro corpo De pensadas asas. Meu verso cobrindo Inocncias passadas. Tuas. Imagina-te a mim A teu lado inocente A mim, e a essa mistura De piedosa, erudita, vadia E to indiferente. Tu sabes. Poeta buscando altura Nas tuas coxas frias. Se eu vivesse mil anos Suportaria Teu a ti procurar-se. Te tomaria, Meu Deus, Tuas luzes. Teu contraste.
VII
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rgido e mata Com seu corpo-estaca. Ama mas crucifica. O texto sangue E hidromel. sedoso e tem garra E lambe teu esforo Mastiga teu gozo Se tens sede, fel. Tem trplices caninos. Te trespassa o rosto E chora menino Enquanto agonizas. pai filho e passarinho. Ama. Pode ser fino Como um ingls. genuno. Piedoso. Quase sempre assassino. Deus.
VIII
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neste mundo que te quero sentir. o nico que sei. O que me resta. Dizer que vou te conhecer a fundo Sem as bncos da crne, no depois, Me parece a mim magra promessa. Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos. Mas tu sabes da delcia da carne Dos encaixes que inventaste. De toques. Do formoso das hastes. Da corolas. Vs como fico pequena e to pouco inventiva? Haste. Corola. So palavras rseas. Mas sangram Se feitas de carne. Dirs que o humano desejo No te percebe as fomes. Sim, meu Senhor, Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto Como os enlevos De uma mulher que s sabe o homem.
IX Poderia ao menos tocar As ataduras da tua boca? Panos de linho luminescentes com que magoas Os que te pedem palavras?
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Poderia atravs Sentir teus dentes? Tocar-lhes o marfim E o liso da saliva O molhado que mata e ressuscita? Me permitirias te sentir a lngua Essa pea que alisa nossas nucas E fere rubra Nossas delicadas espessuras? Poderia, ao menos tocar Uma fibra desses linhos Com repetidos cuidados Abrir Apenas um espao, um gro de milho Para te aspirar? Poderia, meu deus, me aproximar? Tu, na montanha. Eu no meu sonho de estar No resduo dos teus sonhos.
X Atada a mltiplas cordas
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Vou caminhando tuas costas. Palmas feridas, vou contornando Pontas de gelo, luzes de espinho E degredo, tuas omoplatas. Busco tua boca de veios Adentro-me nas emboscadas Vazia te busco os meios. Te fechas, teia de sombras Meu Deus, te guardas. A quem te procura, calas. A mim que pergunto, escondes Tua casa e tuas estradas. Depois trituras. Corpo de amantes E amadas. E buscas A quem nunca te procura.
XI Sobem-me as guas. Sobem-te as frias. Fartas me sobem dor e palavras. De vidro, nozes, de vinhas, me sobem dores To tardas, to carecentes. Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
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Na terra que preparei, nem nas caladas Da casa? Me vs e me pensas caa? Ai, no. No me pensas. Eu sim, nas noites Que caminhadas! Que sangramento de passos! Que cegueira pretendendo Seguir teu prprio cansao. Olha-me a mim. Antes que eu morra de guas., aguada do que inventei.
XII Estou sozinha se penso que tu existes. No tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhana. E igualmente sozinha se tu no existes. De que me adiantam Poemas ou narrativas buscando Aquilo, que se no , no existe Ou se existe, ento se esconde Em sumidouros e cimos, nomenclaturas Naquelas no evidncias Da matemtica pura? preciso conhecer Com preciso para amar? No te conheo. S sei que desmereo se no sangro. S sei que fico afastada De uns fios de conhecimento, se no tento.
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Estou sozinha, meu Deus, se te penso.
XIII Vou pelos atalhos te sentindo frente. Volto porque penso que voltaste. Alguns me dissem que passaste Rente a algum que gritava: Tateia-me, Senhor, Ests to perto E s percebo ocos Moitas estufadas de serpentes. Algum me diz que esse algum Que gritava, a mim se parecia. Mas era mais menina, percebes? De certo modo mais velha Como algum voltando de guerrilhas Mulher das matas, filha das Idias. No eras tu, vadia. Porque o Senhor Lhe disse: Poeira: estou dentro de ti. Sou tudo isso, oco moita E a serpente de versos da tua boca.
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XIV Se te ganhasse, meu Deus, minhalma se esvaziaria? Se a mim me aconteceu com os homens, por que no com Deus? De incio as lavas do desejo, e rouxinis no peito. E aos poucos lassido, um desgosto de beijos, um esfriar-se Um pedir que se fosse, fartada de carcias. Se te ganhasse, que coisas ainda desejaria minhalma Se ficasses? que luz seria em mim mais luminosa? Que negrume mais negro? No haveria mais nem seduo, nem nsias. E partirias. Eu vazia de ti porque to cheia. Tu, em abastanas do sentir humano, de novo dormirias.
XV Desenho um touro de seda. Olhos de um ocre espelhado O plo negro, faustoso seduzo meu Deus montado Sobre este touro. Desenhas Deus? Desenho o Nada Sobre este grande costado.
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Um rio de cobre desgua Sobre essas patas. Uma mulher tem nas mos Uma bacia de guas Buscando matar a sede Daquele divino Nada. O touro e a mulher sou eu. Tu s, meu deus, A Vida no desenhada Da minha sede de cus.
XVI Se j soubesse quem sou Te saberia. Como no sei Planto couves e cravos E espero ver uma cara Em tudo que semeei. Pois no dizem que te mostras Por vias tortas, nos mnimos? Te mostrars na minha horta Talvez mudando o destino Dessa de mim que s vive Tentando semeadura
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Dessa de mim que envelhece Buscando sua prpria cara E muito atravs, a tua Que a mim me apeteceria Ver frente a frente. H luas luzindo o verde E luas luzindo os cravos. Couves de tal estatura E carmesins dilatados Que os que passam perguntam: So os canteiros de Deus? Digo que sim por vaidade Sabendo dos infinitos De uma infinita procura De tu e eu.
XVII Penso que tu mesmo cresces Quando te penso. E digo sem cerimnias Que vives porque te penso. Se acaso no te pensasse Que fogo se avivaria no havendo lenha? E se no houvesse boca Porque o trigo crescreria?
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Penso que o corao Tem alimento na Idia. teu alimento uma serva Que bem te serve mo cheia. Se tu dormes ela escreve Acordes que te nomeiam. Abre teus olhos, meu Deus, Come de mim tua fome. Abre tua boca. E grita este nome meu.
XVIII Se some, tem cuidado. Se no some fardo. Cuida que ele no suma Pois ficar mais pesado Se sumir de tua alma. de uma Idia de Deus que te falo. Pesa mais se ausente Pesa menos se te toma Ainda que descontente Te vejas pensando sempre Num algum que est a dentro
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De quem no conheces rosto Nem gosto nem pensamento. Cuida que tal Idia Te tome. Melhor um cheiro de dentro Que no conheces, um fartar-se De um nada conhecimento Do que um vazio de luto Umas cascas sem os frutos Pele sem corpo, ou ossos Sem matria que os sustente. Toma contento Se te sabes pesado Dessa idia de Nada. um pensar para sempre. E no sentes verdade Que a vida vale um extenso Altura e profundidade Se vives do pensamento?
XIX Teus passos somem Onde comeam as armadilhas. Curvo-me sobre a treva que me espia.
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Ningum ali. Nem humanos, nem feras. De escuro e terra tua moradia? Pegadas finas Feitas a fogo e espinho. teu passo queima se me aproximo. Ento me deito sobre as roseiras. Hei de saber o amor tua maneira. Me queimo em sonhos, tocando estrelas.
XX Move-te. Desperta. H homens tua procura. H uma mulher, que sou eu. A Terra mora na Via-Lctea Eu moro beira de estradas No sou pequena nem alta Sou muito plida Porque muito caminhei Nas escurezas, no vcio De perseguir uns falares teus indcios.
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Move-te. Tua aliana com os homens Teu atar-se comigo Tem muito de quebra e dessemelhana. Muitos de ns agonizam. A Terra toda. H de ser quase Brinquedo adivinhares Onde reside o p, onde reside o medo. No te demores. Eu tenho nome: Poeira. Move-te se te queres vivo.
No te machuque a minha ausncia, meu Deus, Quando eu no mais estiver na Terra Onde agora canto amor e heresia. Outros ho de ferir e amar Teu corao e corpo. Tuas bifrontes Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez No temas. Meu pares e outros homens Te faro viver destas duas voragens: Matana e amanhecer, sangue e poesia. Chora por mim. Pela poeira que fui Serei, e sou agora. Pelo esquecimento Que vir de ti e dos amigos.
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Pelas palavras que te deram vida E hoje me do morte. Punhal, cegueira, Sorri, meu Deus, por mim. De cedri De mil abelhas tu s. Cavalo dgua Roandando o ego. Sorri. Te amei sonmbula Escrxula, mas te amei inteira.
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Cantares de perda e predileo(1983)
memria de Ernest Becker
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I Vida da minha alma: Recaminhei casas e paisagens Buscando-me a mim, minha tua cara. Recaminhei os escombros da tarde Folhas enegrecidas, gomos, cascas Papis de terra e tinta sob as rvores Nichos onde nos confessamos, praas Revi os ces. No os mesmos. Outros De igual destino, loucos, tristes, Ns dois, meu dio-amor, atravessando Cinzas e paredes, o percurso da vida. Busquei a luz e o amor. Humana, atenta Como quem busca a boca nos confins da sede. Recaminhei as nossas construes, tijolos Ps, a areia dos dias E tudo que encontrei te digo agora: Um outro algum sem cara. Tosco. Cego. O arquiteto dessas armadilhas.
II Que dor desses calendrios Sumidios, fatos, datas O tempo envolto em visgo
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Minha cara buscando Teu rosto reversivo. Que dor no branco e negro Desses negativos Lisura congelada do papel Fatos rodos E teus dedos buscando A carnao da vida. Que dor de abraos Que dor de transparncia E gestos nulos Derretidos retratos Fotos fitas Que rolo sinistroso Nas gavetas. Que gosto esse do Tempo De estancar o jorro de umas vidas.
III Se a tua vida se estender Mais do que a minha Lembra-te, meu dio-amor, Das cores que vivamos Quando o tempo do amor nos envolvia.
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Do ouro. Do vermelho das carcias. Das tintas de um cime antigo Derramado Sobre o meu corpo suspeito de conquistas. Do castanho de luz do teu olhar Sobre o dorso das aves. Daquelas rvores: Estrias de um verde-cinza que tocvamos. E folhas da cor das tempestades contornando o espao De dor e afastamento. Tempo turquesa e prata Meu dio-amor, senhor da minha vida. Lembra-te de ns. Em azul. Na luz da caridade.
IV Lobos Lerdos leopardos Cadelas Ternuras velhas Ns, lado a lado Num sumidouro de linhas
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E ponteiros de pedra. Enrodilhados Escuros Famintos de nossas sombras Nas aldeias antigas. Lobo Leopardo-cadela Ternuras velhas Tu e eu desenhados Trelias e telas Nas tintas das conquista.
V Me vias Partida ao meio A cara das emboscadas Dizias Esssa era a cara do meu desejo. E possuas O inteirio, o Narciso Tu mesmo e tua fantasia.
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Um fronteirio de linhas Que se pensavem contguas. Me vias dura, vestida De ls e de campainhas. Sobre o teu vale eu passava Em chagas, sem parceria. Passava, sim. Mas nua, queimada Do amor que tu me tiravas.
VI Eu no te vejo Quando teu dio aflora. Como poderia Ver teu dio e a ti Iludida Por uma s labareda da memria?
Cegos, no somos dois. Apenas pretendemos. Devorados e vastos Temos um nome: EFMERO.
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VII E se leopardos e tigres Convivessem E se no mundo houvesse Lonjura de cordas Para amarrar torres vastas (as incansveis crias do desejo) E se guas no fossem molhadas E o que fosse montanha Ao invs de altura Se fizesse rasa Se o fogo no tragasse Sua prpria espessura E a lucidez perfeita No fosse embriaguez Do teu excesso E da minha loucura Um caminho adequado Em direo a Deus.
VIII Me vinha: Que se tecesse
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Hastes de compaixo Corolas de caridade Sopro e saudade tecid os Na rede do corao Eu nunca mais sentiria Teu nome de hostilidade. Me vinha: Se desfizesse O que j tranado tinha Meu nome que ficaria Amor na tua eternidade. Ento teci Sis e vinhas: Ouro-escarlate-paixo E consumida de linhas Enovelada de ardncia Te aguardo s portas da minha cidade.
IX E atravessamos portas trancadas. Esteiras pedras cestos Espreitam
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Nossas passadas. E amamos como quem sonha Cancelas de sal e palha Prendendo o sono. Assim te amo. Sabendo. Degelo prendendo as guas.
X E a lngua lambe A cria que se feriu De puro arrojo E altaneria. De gozo, sabor e nojo Desta conquista de mim. De tua companhia. Cadentes teu passo e o meu Temos a marcha de dois caminhos De plo e breu. Lentos, tenazes Em ns demora-se O amor e a clera. A crueldade. Que o som de Deus.
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XI Faremos deste modo Para que as mos no cometam Os atos derradeiros: Envolveremos as facas e os espelhos Nas ls dobradas, grossas. E de alongadas ndoas, o ressentimento. Pintadas as caras num nariz de gesso Recobriremos corpo, carne Na tentativa clida, multiforme Na rubra pastosidade De um toque sem sofrimento. E afinal Cara a cara (espelho e faca) De nossas duplas fomes No diremos.
XII Um cemitrio de pombas Sob as guas E guas-vivas na cinza
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sseas e lassas sobras Sa minha e da tua vida. Um pedao de muro Na enxurrada Prumos soterrados, nascituros No cu Indecifrveis sobras Da minha e da tua vida. Um crculo sangrento Uma lua ferida de umas garras Assim de ns dois o escuro centro. E no abismo de ns Havia sol e mel.
XIII E batalhamos. Dois tigres Colados de um s deleite Estilhaando suas armaduras Amor e fria Carcia, garra Tua luz
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E a centelha rara De um corpo e duas batalhas.
XIV Como se desenhados Tu E o de dentro da casa. Entro Como se entrasse No papel adentro E sem ser vista Rasgo Alguns vus e fibras Sem ser amada Perteno. Que sobreviva O fino trao de tua presena. Aroma. Altura. E lacerada eu mesma Que jamais se perceba Umas gotas de sangue na gravura.
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XV Para poder morrer Guardo insultos e agulhas Entre as sedas do luto.
Para poder morrer Desarmo as armadilhas Me estendo entre as paredes Derrudas. Para poder morrer Visto as cambraias E apascento os olhos Para novas vidas. Para poder morrer apetecida Me cubro de promessas Da memria. Porque assim preciso Para que tu vivas.
XVI S o mel escorresse Da boca do tigre Transmutando listras
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Talho Num largar de meiguice O incisor em ns As sinistras punturas Os alanhados, meu dio-amor, Um claro de carcias Entre as partituras. Se o rugidor em ns Se somasse nvoa calmaria da velhice Nos outeiros do espao O rugido da vida. Um barco. Eo nmero par.
XVII Os juncos afogados Um co ferido As altas paliadas Devo achar a palavra Companheira do grito. Um risco ngua Um pssaro aturdido Entre o capim e a estrada
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Um grande girassol Explodindo entre as rodas Imagens de mim Na caminhada.
XVIII Para tua fome Eu teria colocado meu corao Entre os ciprestes e o cedro E tu o encontrarias Na tua ronda de luta e incoeso: A ronda que persegues. Para a tua sede As nascentes da infncia: Um molhado de fadas e sorvetes. E abriria em mim mesma Uma nova ferida Para tua vida.
XIX
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Corpo de carne Sobre um corpo de gua. Sonha-me a mim Contigo debruada Sobre este corpo de rio. Guarda-me Solido e nome E vive o percurso Do que corre Jamais chegando ao fim. Guarda esta tarde E repe sobre as guas Teus navios. Pensa-me Imensa, iluminada Grande corpo de gua Grande rio Esquecido de chagas e afogados. Pensa-me rio. Lavado e aquecido da tua carne.
XX Soberbo Libertas sobre o meu peito Teu cavalo cego.
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E pontas e patas Tentam enlaadas Furtar-se s guas Do sentimento. Suja de espadas Golpeada em negro Sou tua cara e medo Teu cavaleiro Teu corpo Tua cruzada.
XXI De ossos De altos pomos De dio e ouro Doloso Teu rosto Sobre a minha cara Crepuscular.
Gozoso Sobre o meu corpo
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Criando magia e ponta Para morrer E fazer matar.
XXII Toma para teu gozo Este rio de saudade. Nenhum recobrir teu corpo Com tamanha leveza E com tal gosto Ainda que sejam muitos Os largos rios da Terra. Toma para teu gozo Minha dor e insanidade De nunca voltar a ver Meu prprio rosto. E aguarda uma tarde sem tempo Quando serei apenas retalhada Um espelho molado de umas guas.
XXIII
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Eu amo Aquele que caminha Antes do meu passo. Deus e resiste. Eu amo a minha morada A Terra triste. sofrida e finita E sobrevive. Eu amo o Homem-luz Que h em mim. poeira e paixo E acredita.
Amo-te, meu dio-amor Animal-Vida. s caa e perseguidor E recriaste a Poesia Na minha Casa.
XXIV Cavalos negros Entre lenis e abetos E machetadas as cartas Repulsa e gosma Entre as palavras.
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E listras Desejo Ps E leopardos de gelo Entre a m e o pelo. E ainda assim Altura, forquilha, tranco Teu dio-amor Procura minha pegada.
XXV Insensatez e sombra. Foi o que se apossou de mim Quando sonmbula Amoldei meus ps ao teu caminho. Um distorcido de luzes e de lrios Lagunas ruivas, vozes Vindas de um no sei onde, vivas Me fizeram supor que o teu caminho Era a luz do meu passo, merecida Porque de luta e a ss Toda minha vida.
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E agora sei que as palmas do martrio que brilhavam E ruivos Eram os lagos de nudez e sangue E viva era minha prpria voz Maldizendo meu nome.
XXVI De sacrifcio De conhecimento Da carne machucada Os joelhos dobrados Frente ao Cristo Meu canto compassado De mulher-trovador. Ai. Descuidado Que palavras altas Que montanha de mgoas Que guas De um venenoso lago Tu derramaste Nos meus ferimentos.
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Que simetria, justeza Para ferir-me a mim Como se a cruz quisesse De mim ser a moradia. E eu canto Porque esse o destino Da minha garganta. E canto Porque criana aprendi Nas feiras: ave e mulher Cantam melhor na cegueira.
XXVII Amor agora Meu inimigo. Barco do olvido Entre o teu dio E o meu navegar Fico comigo. Sopro, cadncia Meu hausto e mar Navego a rocha Somo o castigo Desliso, meu dio-amigo,
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Graa e alvio De te alcanar.
XXVIII Ronda tua crueldade. Esconde, avana At que descubras Fissura rigorosa Na tua garra Ajustado tensor Para tua lana. Ronda meu abandono Persegue Trana meu desamparo Sono e tua iniqidade. Ritualiza a matana De quem s te deu vida. A me deixa viver Nessa que morre.
XXIX Faz de mim tua presa: Raiz para o teu dio
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Amor para o meu navegar E abrandado cessa De lanar tua rede Tua armadila. Faz de mim tua sombra E injria, sangra Essa que te descansa Na tua soberba escalada ao meio-dia. Golpeia Para amansar tua fina presa. Faz de mim tua boca E cobre de saliva Tua cria de carne e solido. E abrandado cessa Teu exerccio de virtude e treva.
XXX O Tempo e sua fome. Volpia e Esquecimento Sobre os arcos da vida. Rigor sobre o nosso momento. O Tempo e sua mandbula. Musgo e furor Sobre os nossos altares. Um dia, geometrias de luz.
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Mais dia nada somos. Tempo e humildade. Nossos nomes. Carne. Devora-me, meu dio-amor, Sob o claro cruel das despedidas.
XXXI Barcas Carregando a vida Descendo as guas. Passam pesadas Distantes do poeta e de sua caminhada. Barcas Inundadas de afago Nas guas da meiguice. O fulgor dos cascos Ilumina o dorso dos afogados: Eu soterrada Em aguaduras escuras da velhice. Barca o teu nome. E passas. Candente, clara Navegas tua ltima viagem Sobre o meu corpo molhado de palavras.
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XXXII Um coro de despedidas. A apenas duas as vozes. Um discursivo de muros E algoz-olhares Fundas aguadas Subindo tona Das desmedidas. E aoite Sobre as lembranas. e musgo, vsceras Cobrindo o vnculo Rtilo brilho das alianas. E facas to alongadas Trilhas, estradas Frias escarpas AINDA para a tua volta.
XXXIII Se te pronuncio Retomo um Paraso Onde a luz se faz dor
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E gelo a claridade. Se te pronuncio esplendor a treva E as sombras ao redor So turquesas e sis Depois de um mar de pedras. Vigio Esta sonoridade dos avessos. Que se desfaa o fascnio do poema que eu seja Esqueciemento E emudea.
XXXIV As guas, meu dio-amor. Uma boca de seixos Um oco de palavras Um sumidouro de fomes E de asas Teu dio-escama Sobre o meu desejo. As guas, meu dio-amor. Mulheres afogadas Eu-muitas De litgio, escureza E a seduo de me pensares Presa Me sabendo invaso.
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E ungento sobre a tua mgoa. Flores, graas Para que os nossos corpos Se lavem dessas guas Caridosos com a carne e as iluses.
XXXV Desgarrada de ti Sou a sombra da Amada. Das madeiras da casa Farei barcas cncavas E tingirei de negri Os lenis de fogo Onde nos deitvamos Velas Bandeira para minhas barcas. E de dureza e arrojo Hei de chegar a um porto De pedras frias. Memria e fidelidade Meu corpo-barca Esmago contra as escarpas.
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De luto e choros um dia Verei tua boca beijando as guas Teu corpo-barca. Minha trilha.
XXXVI Pedras dentro das barcas Favos trincados Embaando as guas Ai que cuidados Que fulgor de dentes Para criar um espao De ausncias no meu presente. E envoltrio de malhas E escuros rosrios Feitos de sal e ao Ai que cuidados Para prender quem vive Dessas cadeias E morre S de pensar em no t-las.
XXXVII
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Quem que ousa cantar, senhor, Um dio dito formoso? Que raro fosso h de ser O escuro melodioso Esse to meu, de sementes De verdes dentro de um poo? Que largueza incongruente Nos versos, sem parecer Que quem trova Se fez demente. Que altas novas Este cantar de mulher: Um dio de esclarecer Desejo que no se mostra. Um dio-fmea, senhor, bem o fosso onde cresce a rosa: A rara. De dio formoso.
XXXVIII Toma-me ao menos
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Na tua viglia. Nos entressonhos. Que eu faa parte Das dores empoadas De um estendido de outono Do estar ali e largar-se Da tua vida. Toma-me Porque me agrada Meu ser cativo do teu sono. Corporifica Boca e malcia. Tatos. Mas importa mais O que a ausncia traz E a boca no explica. Toma-me annima Se quiseres. Eu outra Ou fictcia. At rapaz. sempre a mim que tomas. Tanto faz.
XXXIX Escreveste meu nome
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Sobre a gua? A fogo, na alma Desenhei o teu Grafismo iluminado Imantado e novo Teu nome e o meu. Novo Porque no nunca se viu Nome to pertencido. Antigo porque h milnios Se entrelaaram justos No infinito. E raro Porque tingido de um mosaico vivo De danao e amor. Teu nome. Irmo do meu.
XL De rispidez e altivo Passeias teu passo predador Sobre o meu peito
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E sobre o meu deserto. Minha alma a teu redor Na muralha dos sculos. De amplitude e fervor A casa e sua candeia Te aguardam. Famintas dessa caa E desse caador. Se h volpia no mal Trago as mos cheias. Um sol que se dissolve E me incendeia. E sempre o mesmo fogo A lenha, o mesmo mal.
XLI Ouvia Que no podia te odiar E nem te temer Porque eras eu. E como seria Odiar a mim mesma E a mim mesma temer Se eu caminhava, vivia
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Colada a quem sou E ao mesmo tempo ser Dessa de mim, inimiga? Que no podia te amar To mais do que pretendia. Pois como seria ser Pessoa alm do que me cabia? Que pretenses de um sentir To excedente, to novo So questes para o divino E ao mesmo tempo um estorvo Pra quam nasceu pequenino. Tu e eu. Humanos. Limite mnimo.
XLII Atados os ramos Os fios de linho As fitas Teci para ns A coroa da vida. Depois fiz a cano: Gracejos, lascvia E leveza Foram primos irmos
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E noivos da conquista. E de granito e sol Me parecia o tempo Dessas vidas. Milnios no depois Me soube iluminura Entre os dedos dos mortos. Poeira e entendimento Sob a luz dos ossos.
XLIII Ai que distncia Meu dio-amor Que dores Que cintilncias De pena. To ao meu lado Te penso No entanto To afastado Como se a gua ficasse A um dedo da minha boca E todo o deserto volta Me segurasse. To triste e to vontade
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Neste meu sol de martrios Como se o corpo soubesse Desses caminhos da sede Porque nasceu conhecendo Da paixo seu descaminho. E brilhos no teu sadismo E perdio na minha cara. Que coloridos espinhos Ters Para a tua dura saudade. Que tempestade de sede Nos areais da procura Quando sares caa De quem te amou. De mim. caa do NUNCA MAIS.
XLIV Lembra-te que morreremos Meu dio-amor. De carne e de misria Esta casa breve de matria Corpo-campo de luta e suor. Lembra-te do annimo da Terra
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Que meditando a ss com seus botes Gravou no relgio das quimeras: mais tarde do que supes. Porisso Mata-me apenas em sonhos. Podes dormir em fria pela eternidade Mas acordado, ama. Porque a meu lado Tudo se faz tarde: amor, gozo, ventura.
XLV Que no poema ao menos Viscosidade e luz De ns dois, criaturas, Recriem seu momento. Que da desordem De dois encntamentos Do visgo, do vidro De palavras duras Coabitem O tosco e o transparente. E desconforto e gosto Disciplina e paixo Discursivo e cincia
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Construam pelo menos no poema A vizinhana dessas aparncias.
XLVI Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ningum Espelhismo de outra To em sigilo e extrema To sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcansveis Coisas mortas. Talvez no seja. E nfima, tangente Aspire indeifinida Um infinito de sonhos E de vidas.
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XLII Dorme o tormento O Eterno dorme suspenso Sobre as idias e inventos S eu no durmo Pra te pensar. Dormem perjuros E vanidade e urnas Dormem os medos E califados e ventres Dormem ardentes OS loucos, ptios adentro S eu no durmo Pra te pensar. Dormem ativas AS dobradias De mil bordis e conventos E pndulos dormindo ao tempo S eu no durmo Pra te pensar. A gora escura Do jugo dos sentimentos
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Irreversiva, suicida Tateio aquele rochedo Do dio de desamar.
XLVIII Teu livre-arbtrio, meu dio-amor? O distendido flanco do tigre Sobre teu peito vivo. Esculpida alvorada. Tua pretensa caa Na cara de granito. No a mim que persegues Nem s tu aquele que persigo. Os amantes se entregam quele corpo cruel mas perseguido Armadura de garra e de delcias Corpo listrado de mel. Meu livre-arbtrio, meu dio-amor? Jbilo imerecido: O distendido flanco do tigre Sobre meu peito vivo.
XLIX
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Se me viessem boca As palavras foscas Para te abrandar. Se levez e sopro Habitassem a casa Do meu corpo No seria eu aquela do teu gosto E amarias lrios Ao invs de ostras. Se comedimento Mornido, prudncia Me dourassem a carne E o corao Tu me dirias rouco Que a bem do Desejo Desfez-se o Paraso E inventou-se a Paixo. Bem porisso preserva Quem te sabe inteiro. E cala teu instante De um cime que repete Que devo ser repouso E conteno.
L Um percurso de noites e vazantes Dunas escuras e casas vazias
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De mim mesma fui cruz e viajante. As costas do meu Deus era o que eu via. E ainda assim to curvas Arco que minha frente se movia Tambm como quem busca. Um percurso a ss, meu dio -amor, E um poderoso frente viajante. Gritei nomes e sons, reinventei E s vezes via o ombro flamejante Mover-se Mas nunca como aquele que pretende Salvar algum sem luz atrs de si. E pranteei meu nome e minha vida. Ma laboriosa Hei de plantar redondas redivivas Para prender meu Deus tua volta.
LI Clida alquimia: Ouro e compaixo Sofrida pena Aquecendo a mo fria. Toma-me cara e mos E a morosa tenta
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Revestir de ventura Palavra e teia. Ilumina o roteiro do poeta Reabrindo as ramas da iluso. Que a caridade Te faa mais sbia Diante da fmea frgil. Que a mentira apascente O fogo da verdade. E entre as escarpas As minhas, do corao Esperana e vivez Novamente se faam Sobre a minha cara e mos.
LII Eu era parte da noite e caminhava Adulta e austera Sem luz e aventurana. Tu eras praia e dia Um fogo branco O rosto da montanha sobre a terra. E juntamos a treva Ao mar do meio-dia. Cristas aguadas, pontas Trilhas fosforescentes
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Na vastido das sombras Mas um instante apenas. Porisso que caminho como antes Adulta e austera. Acrescida de vus me mostro aos viajantes: Vs a mulher, aquela? Dizem que a cara de calia e pedra. Que a luz das iluses passou por ela.
LIII Cadenciadas Vo morrendo as palavras Na minha boca. Um sudrio de asas H de ser agasalho E ptria para o corpo. Annimo, calado O poeta contempla Espelho e mgoa Fragmentos de um veio Berrio de palavras. Umas lendas volteiam O poeta vazio de seus meios: Escombros, escadas
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Amou de amor escuro A fugiu de si mesmo De sua prpria cilada. O poeta. Mudo. Aceitvel agora para o mundo No seu sudrio de asas.
LIV Na moldura, no esquadro Inalterveis Passado e sentimento. Dos dois contemplo Rigor e fixidez. Passado e sentimento Me contemplam Arduidade nas caras Rigor no teorema. Tento apagar Atos, postura. Revivem. Irremovveis, vtreos Incorporam-se para sempre eternidade do meu esprito.
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LV Um tempo-luz Sobre o tempo do adeus Porque ainda vivaz O sentimento. Porque ainda me vejo Como se tocasse Uns mosaicos azuis Lisura de surpresa Na caligem de quadros E de quartos No areal das mesas. Ronda pela casa a maciez Se me repenso mansa E com cuidado. E ao meu redor Um gosto perolado Degusta o prprio fio De cordame e pobreza. Rondas a casa. Ah, foi apenas teu passo
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A pretendida luz deste poema.
LVI Areia, vou sorvendo A gua do teu rio. E sendo rio Tu podes me tomar Minscula, extensa Ampulheta guardada Esteira, desafio. Areia, encharcada Recebo tuas palavras dgua Sumidouro, aguaa Em gua-mel te prendo. Areia, vou te tomando vasta Ou milimtrica, lenta Um rio de areia e caa Luminescente, tua, Uma presa de gua.
LVII H este cu duro Empedrado de ventos. Eternidade s tu, meu dio-amor
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Senhor do meu sentimento. H este Nunca-Mais Ancorado no Tempo. E uma s tarde num aroma de ruas De mogorim, de aves. E h refres e gatas Nas praas Daquele paraso de iluses. E barcas, pedras roladas Extensos esgarados Eternidade de ns, meu dio-amor No SEMPRE-NUNCA MAIS.
LVIII O bisturi e o verso. Dois instrumentos Entre as minhas mos. Um deles rasga o Tempo O outro eterniza Aquele tempo-ouro sem medida. Rompems-e slabas e fonemas. Estanco meus projetos. E o que se v um s comum-complexo
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Corao aberto. E nunca mais Na dimenso da Terra Hei de rever as moradas, os tetos Os parasos soberbos da paixo.
LIX Sonha-me, meu dio-amor, Atravs do teu sonho, volto vida. Passeia minha sombra e iluses Pelos mesmos caminhos, os antigos, E sonha-me como se tomasses No fulgor da carne Tua primeira amante proibida. Sonha-me um novo-sempre Um rosto Isento de crueldades e partidas. Sonha-me tua. Criana e esquecida da experincia humana Hei de voltar vida.
LX Teu rosto se faz tarde Sob a minha mo.
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E envelheo terna Dividida e austera Um mergulho de luz Metade treva. Pincis de fino plo Desenhando emoes. Teu rosto se faz noite Niquelado trao Anil e ouro bao Sob a minha mo. E jardins de gelo E muralhas-espelho E papis guardados Castos de desejo. Teu rosto. Uma tintura de fogo Na plancie dos dedos.
LXI Um verso nico Oco de fundos Extenso, vermelho-vivo No tnel dos meus ouvidos: Sempre comigo Sempre comigo.
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Um verso escuro De folhas-pontas De nichos De negras grutas A lngua excede seu exerccio: Sempre comigo Sempre comigo. Um verso-vcio Constncia e nojo Vindo de uns lagos De malefcio. Amor partido Torres Poo-edifcio Um verso nico num golpe ntido: Sempre comigo Sempre comigo.
LXII Garas e fardos O vo e o pesado No meu corao. E lebres lbidas E ces. Correirice e caa No meu corao.
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Hilda Hilst
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Torres, escadas e guas Nem barcos, nem cordas No meu corao. E lutos e garras Tua cara No meu corao.
LXIII Tens a medida do imenso? Contas o infinito? E quantas gotas de sangue Pretendes Desta amorosa ferida De to dilatada fome. Tens a medida do sonho? Tens o nmero do Tempo? Como hei de saber do extenso De um dio-amor que percorre Furioso Passadas dentro do vento? Sabes ainda meu nome? Fome. De mim na tua vida.
LXIV
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De sol e lua De fogo e ventre Te enlao. Ainda que a boca A tua (Sem se mover No dizendo) Me diga palavras cruas: Mscara fria Lua-serpente Viva inimiga. De sol e lua Me fao. Sabendo que a alma A tua (Sem se mostrar, Escondendo) Me sabe irm de tua eternidade.
LXV Meu dio-amor: Tudo se esvai. A hora se faz imvel Escorrida
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Sobre o corpo da vida. Vou-me Pedra lisa e mar Fixa-informe Tento te segurar Tu que s minha vida. Morre O mesmismo de mim Se no me colo a ti. Vagueio. Algum me v E aponta: Dentro da flor aberta Uma abelha morta.
LXVI Nuns atalhos da tarde Vivendo imensido Minha alma disse a mim Rica de sombras: No pertencida. Exilada dos sis Das outras vidas.
LXVII Vida da minha alma:
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Um dia nossas sombras Sero lagos, guas Beirando antiqussimos telhados. De argila e luz Fosforescentes, magos, Um tempo no depois Seremos um s corpo adolescente. Eu estarei em ti Transfixiada. Em mim Teu corpo. Duas almas Nmades, perenes Texturadas de mtua seduo. LXVIII Te penso. E j no s o pensado. s tu e mais algum No informe, nos guardados Algum E tu mesmo sem nome, imaginado. Te penso Como quem quer pintar o pensamento Colorir os muros do passado De umas ramas finas, mergulhadas Num luxo de tinturas. Te penso novo e vasto. E velho Igual fome que tenho das funduras.
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LXIX Resolvi me seguir Seguindo-te. A dois passos de mim Me vi: Molhada cara, matando-se. Cravado de flechas claras Ramo de luzes, de punhaladas Te vi. Sangrando de morte rara: A minha. Morrendo em ti.
LXX Poeira, cinzas Ainda assim Amorosa de ti Hei de seu eu inteira. Vazio o espao Que me contornava Hei de Estar ali. Como se um rio corresse Seu corpo de corredor E s tu o visses. Corpo de rio? Sou esse.
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Fiandeira de versos Te legarei um tecido De poemas, um rtilo amarelo Te aquecendo. Amorosa de ti VIDA o meu nome. E poeta. Sem morte no sobrenome.
Casa do Sol 12/12/1981 a 5/11/1982
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Da Morte. Odes Mnimas (1979)
memria de Ernest Becker
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I Te batizar de novo. Te nomear num tranado de teias E ao invs de Morte Te chamar Insana Fulva Feixe de flautas Calha Candeia Palma, por que no? Te recriar nuns arcoris Da alma, nuns possveis Construir teu nome E cantar teus nomes perecveis Palha Cora Nula Praia Por que no? II Demora-te sobre a minha hora. Antes de me tomar, demora. Que tu me percorras cuidadosa, etrea Que eu te conhea lcita, terrena Duas fort