policarpo controle judicial consumo drogas 2014

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CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 15, nº 2, 2013. pp. 107-153 137 O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS Frederico Policarpo Universidade Federal Fluminense E-mail: [email protected] ABSTRACT This article is based on ethnographic data produced during the fieldwork of a year in the Drug Court of the city of San Francisco (USA). I will show how the negotiations between laws and regulations are actually updated in the judge’s chambers (the court room) of the Drug Court. I had permission from the judge to attend the meetings closed to the public in the judge’s chambers after establishing closer dialogue with the Public Defender. The purpose of this paper is to present a more analytical than descriptive account of this stage of my fieldwork in San Francisco (USA) in order to organize and systematize ethnographic data for future comparisons with the context in Rio de Janeiro. Keywords: Drug Consumption; Drug Court; San Francisco, (USA). ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558 CONFLUÊNCIAS Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito Artigo RESUMO Este artigo é baseado em dados etnográficos que produzi durante o trabalho de campo de um ano na Drug Court da cidade de San Francisco, EUA. Mostrarei como as negociações entre leis e normas são, de fato, atualizadas na judge’s chambers (sala do juiz) da Drug Court. Eu tive a permissão do judge para frequentar as reuniões fechadas ao público na judge’s chambers depois de estabelecer o diálogo mais próximo com a Public Defender. A proposta deste artigo é apresentar um relato mais descritivo do que analítico dessa etapa do meu trabalho de campo na cidade de San Francisco, EUA, com o intuito de organizar e sistematizar os dados etnográficos para futuras comparações com o contexto no Rio de Janeiro. Palavras-chave: Consumo de Drogas; Drug Court; San Francisco (EUA). _________________________www.neip.info

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  • CONFLUNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 15, n 2, 2013. pp. 107-153 137

    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    Frederico PolicarpoUniversidade Federal FluminenseE-mail: [email protected]

    ABSTRACTThis article is based on ethnographic data produced during the fieldwork of a year in the Drug Court of the city of San Francisco (USA). I will show how the negotiations between laws and regulations are actually updated in the judges chambers (the court room) of the Drug Court. I had permission from the judge to attend the meetings closed to the public in the judges chambers after establishing closer dialogue with the Public Defender. The purpose of this paper is to present a more analytical than descriptive account of this stage of my fieldwork in San Francisco (USA) in order to organize and systematize ethnographic data for future comparisons with the context in Rio de Janeiro.Keywords: Drug Consumption; Drug Court; San Francisco, (USA).

    ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

    CONFLUNCIASRevista Interdisciplinar de Sociologia e Direito

    Artigo

    RESUMOEste artigo baseado em dados etnogrficos que produzi durante o trabalho de campo de um ano na Drug Court da cidade de San Francisco, EUA. Mostrarei como as negociaes entre leis e normas so, de fato, atualizadas na judges chambers (sala do juiz) da Drug Court. Eu tive a permisso do judge para frequentar as reunies fechadas ao pblico na judges chambers depois de estabelecer o dilogo mais prximo com a Public Defender. A proposta deste artigo apresentar um relato mais descritivo do que analtico dessa etapa do meu trabalho de campo na cidade de San Francisco, EUA, com o intuito de organizar e sistematizar os dados etnogrficos para futuras comparaes com o contexto no Rio de Janeiro.Palavras-chave: Consumo de Drogas; Drug Court; San Francisco (EUA).

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    POLICARPO, Frederico

    INTRODUOComo pesquisas j observaram, o

    atual regime proibicionista das drogas est baseado em dois pilares: a crimi nalizao e a medicalizao (ACKER, 2002, 2004; ADIALA, 1996, 2011; BARBOSA, 2012; LOURDES, 2009; MUSTO, 1999; VARGAS, 1998, 2008). E o que isso significa? Significa um gigantesco incremento do aparato de justia criminal, com novas especializaes policiais, novas tecnologias de vigilncia e de percia, leis, tribunais, etc. E, do lado da medicalizao, significa um alto investimento na forma o de novos profissionais espe cialistas em dependncia qumica, por exemplo novos tratamentos cien tficos, novos centros de pesquisas aca dmicos, novos medicamentos, etc. Juntos, e tendo como alvo o consumo de drogas, os esforos de criminalizao e medicalizao esta belecem interesses mtuos que vo con formando demandas repressoras e avano cientfico.

    No se trata, portanto, de prender a todos simplesmente, ou de proibir tudo e aplicar uma punio exemplar. Ao lado dos agentes da justia criminal, os detentores do conhecimento cientfico sobre as drogas, cada vez mais, tambm demandam a participao no julgamento. Porm, eles chamam para si uma responsabilidade distinta daquela dos agentes de justia. O que importa para eles no decidir o que legal ou ilegal. O trabalho deles decidir se o consumidor um doente ou no, se o que consome uma droga ou no, se deve ser tratado

    ou no, se tem recuperao ou no. Neste contexto, o saber normalizador da medicalizao se anexa ao poder de criminalizao do consumo de drogas.

    A aproximao entre o poder jurdico e o saber cientfico que informa o aparato de controle sobre as drogas no um fenmeno isolado. O desenvolvimento desta matriz mdica-jurdica faz parte de processos polticos e histricos mais amplos que levaram centralizao das relaes de poder sob a organizao do Estado moderno e valorizao do autocontrole das condutas, no contexto de expanso da economia capitalista industrial (ACKER, 2004). Quer tenha sido resultado da ampliao das cadeias de interdependncia social e da com-petio, que caracteriza o proces-so civilizador (ELIAS, 1993); quer das tcnicas de sujeio s relaes docilidade-utilidade, que caracteriza as disciplinas (FOUCAULT, 2004), o que importa observar que a esfera jurdica vai incorporando, pouco a pouco, outros saberes, outras tcnicas, para alm das tcnicas punitivas sim-plesmente repressoras. Como resul-tado, h a proliferao de uma srie de instncias anexas. Pequenas justias e juzes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos psiquitricos ou psiclogos, magistrados da aplicao das penas, educadores, funcionrios da administrao peniten-ciria fracionam o poder legal de punir (FOUCAULT, 2004: 22).

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    Neste contexto, a mera represso jurdica, baseada na simples oposio binria entre o permitido e o proibido, legal e ilegal, vai dando espao a outras formas de controle, baseadas nas normas que atravessam essas instncias anexas1. Para o que nos interessa aqui, decorre desse fracionamento do poder legal de punir a diversificao das modulaes entre a lei penal propriamente dita legal x ilegal e as mais variadas normas das instncias anexas normal x anormal. A lei julga os atos cometidos no passado, com base no que legal e ilegal; a norma julga os atos presentes, sob a superviso de um profissional responsvel, que define o grau de normalizao alcanado.

    Com toda essa flexibilidade, as mo-dulaes que giram em torno das drogas criam aberturas para agenciamentos di-1Aqui, fao referncia s observaes de Foucault sobre as modulaes crescentes entre as prticas punitivas e as tcnicas disciplinares (2005, 2004). Em particular, a sua anlise sobre o biopoder, quando observa a distino entre norma e a lei: A lei no pode deixar de ser armada e sua arma por excelncia a morte; aos que a transgridem, ela responde, pelo menos como ltimo recurso, com esta ameaa absoluta. A lei sempre se refere ao gldio. Mas um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida ter necessidade de mecanismos contnuos, reguladores e corretivos. J no se trata de pr a morte em ao no campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domnio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fasto mortfero; no tem que traar a linha que separa os sditos obedientes dos inimigos do soberano, opera distribuies em torno da norma. No quero dizer que a lei se apague ou que as instituies de justia tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituio judiciria se integra cada vez mais num contnuo de aparelhos (mdicos, administrativos etc) cujas funes so sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizada o efeito histrico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (2005:135).

    versos: produzem tanto as punies criminais o isolamento da priso ou as penas e medidas alternativas , como as teraputicas a prescrio de tratamentos para o controle do consumo de drogas. A grande questo, que muitas vezes parece passar despercebida, compreender como essas modulaes entre lei e norma so atualizadas. De que forma se encaixam os pares legal/ilegal com o normal/desviante? Quem define esses encaixes? Os agentes da justia criminal, com base no que a lei e o crime? Ou os detentores do saber cientfico, com base em seus critrios sobre o que o saudvel e o doente? Como essas esferas, da justia e da cincia, autnomas entre si, se influenciam? Quais os limites, as fronteiras e suas passagens? Enfim, como, quando e aonde agentes da justia criminal discutem e negociam com os agentes da sade as aes a serem tomadas?

    Tendo como referncia essa discusso mais geral, eu vou apresentar observaes de minhas pesquisas relacionadas aos processos sociais que fazem convergir agentes de justia, profissionais da sade e consumidores de drogas. o momento, por exemplo, em que um consumidor de drogas capturado pelas redes do sistema de justia criminal, seja atravs de uma abordagem policial nas ruas, seja nos juzos e tribunais para onde levado. Desse modo, a pesquisa nas variadas instituies do sistema de justia criminal se caracteriza como um local privilegiado para observar as prticas atualizadas, os saberes trazidos tona e as moralidades

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    POLICARPO, Frederico

    que so mobilizadas pelos agentes de justia, eventuais profissionais de sade que interferem com seus pareceres tcnicos e consumidores de drogas na produo do fazer justia2. (EILBAUM, 2012).

    Este artigo baseado em dados etnogrficos que produzi durante o trabalho de campo de um ano na Drug Court3 da cidade de San Francisco, EUA4. Mostrarei como as negociaes entre leis e normas so, de fato, atualizadas na judges chambers (sala do juiz)5 da Drug 2Aqui, fazer justia, tal como proposto por Eilbaum, no se refere somente aos procedimentos jurdicos formais. Diz respeito tambm aos valores e interesses dos envolvidos no conflito. Diz a autora: Fazer justia nos Tribunales de Los Pantanos, segundo minha experincia, era tambm a possibilidade de estar prximo de valores e interesses de grupos sociais, que no aqueles profissionais. Era partilhar alguns desses valores e interesses com as pessoas envolvidas nos conflitos, ao tempo em que era se opor e excluir outros (2012: 365).3Todas as categorias nativas esto grifadas em itlico.4Realizei essa pesquisa graas a uma bolsa de doutorado-sanduche da CAPES, no mbito de meu doutorado em Antropologia no PPGA/UFF. Na minha tese eu estabeleo uma comparao inicial entre os controles institucionais sobre o consumo de drogas mobilizados na cidade do Rio de Janeiro e de San Francisco, EUA (cf. POLICARPO, 2013).5Eu preferi manter algumas palavras em ingls, como no caso de judges chambers, que poderia ser traduzida por sala do juiz. Justifico a minha escolha porque a traduo poderia sugerir uma semelhana que, tal como entendo, seria equivocada. A judges chambers no uma simples sala do juiz no contexto carioca. Como apresento ao longo do artigo, a judges chambers se caracteriza por ser um espao que possui uma formalidade e temporalidade especficas, palco onde ocorrem as negociaes em torno dos casos. Da mesma maneira, eu no traduzo District Attorney (DA) e Public Defender (PD) por, respectivamente, Promotora e Defensora Pblica. Embora possamos dizer que a DA, assim como uma Promotora, se encarrega da acusao e a PD, assim como a Defensora Pblica, se encarrega da defesa, os modos de conceber todo o processo de disputa e as implicaes de suas aes so distintas. Basta observar que a DA e a PD podem negociar tanto a sentena quanto a prpria tipificao, numa negociao chamada de plea bargain. Essa

    Court. Eu tive a permisso do judge para frequentar as reunies fechadas ao pblico na judges chambers depois de estabelecer o dilogo mais prximo com a Public Defender. Como eu frequentava todos os dias a courtroom da Drug Court, a Public Defender quis saber quem eu era e o que estava fazendo ali. Expliquei a ela a minha pesquisa. Ela achou interessante e estabelecemos um dilogo. Foi ela que sugeriu que eu deveria assistir s reunies na judges chambers e, mostrando o meu interesse, ela conseguiu a permisso do judge. A proposta deste artigo apresentar um relato mais descritivo do que analtico dessa etapa do meu trabalho de campo na cidade de San Francisco, EUA, com o intuito de organizar e sistematizar os dados etnogrficos para futuras comparaes com o contexto carioca.

    CONTROLANDO O CONSUMO DE DROGAS NA JUDGES CHAMBERS DA DRUG COURT: OS MEIOS FORMAIS DE NEGOCIAO NA CIDADE DE SAN FRANCISCO, EUA

    A Drug Court uma inovao relativamente recente na justia criminal norte-americana, considerando que a pri-meira court desse tipo foi criado em 1989 nos EUA, e em 1995 em San Francisco. E pode-se dizer que o aspecto dito inovador da Drug Court a proposta de modulao possibilidade inexistente no contexto brasileiro, devido ao princpio da obrigatoriedade que obriga o Promotor a instaurar um processo judicial sempre que ocorrer um crime. Este, portanto, no pode ser negociado.

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    entre a lei e os saberes da rea da sade. Essa modulao atualizada no dia a dia da Drug Court com a introduo do relatrio de progresso (progress report) fornecido pela equipe de tratamento, na discusso realizada na judges chambers. Essa equipe de tratamento formada pelos case managers, isto , profissionais ligados ao Treatment Center que recebem os infratores oriundos da Drug Court. Uma vez na Drug Court, o infrator passa a ser considerado um client dessa court e passa a ser monitorado por um case manager. O papel do case manager acompanhar o progresso individual de cada client monitorando os testes de urina e sangue para detectar drogas no organismo, a frequncia nos grupos de apoio, o desem-penho do client em procurar trabalho, moradia, enfim e apresentar relatrios de progresso ao judge da Drug Court. Esse relatrio um instrumento de avaliao fundamental na Drug Court, pois in-terfere de maneira muito importante na negociao a respeito dos casos, em especial, entre a Public Defender PD e a District Attorney DA6. Eu comeo a apresentao de meus dados discutindo esse segundo ponto.

    O Judge, a PD, a DA e o relatrio da equipe de tratamento

    Na Drug Court, diferentemente do que ocorre numa criminal court 6A partir de agora, utilizo a sigla PD, para Public Defender, e DA, para District Attorney. No s para facilitar a escrita, mas tambm porque o uso comum em San Francisco.

    comum, o dilogo entre o judge e o client, bem como a participao de pro-fissionais ligados ao tratamento dos consumidores os case managers e do uso do relatrio de progresso do client, ganham centralidade. Portanto, todas as discusses entre a defesa, a PD, e a acusao, a DA, eram diretamente influenciadas por essas caractersticas peculiares da Drug Court. Por exemplo, na Drug Court, o client comparece com frequncia diante do judge na courtroom para prestar contas de seu progresso no tratamento. Ao contrrio de uma criminal court comum, o client da Drug Court incentivado a conversar diretamente com o judge. Mas, como mostro adiante, esse dilogo pode ser prejudicial para o client, pois tudo o que dito na courtroom registrado e pode ter implicaes legais. Por conta disso, a PD ficava em estado de alerta total ao lado do client e exercia controle sobre eles na courtroom, s permitindo o que continuassem a falar se fosse benfico para eles.

    A Drug Court, portanto, cria novos elementos que giram em torno da disputa entre a acusao e defesa, de modo que influenciam decisivamente na atuao da DA e PD. Para esclarecer o papel desempenhado pela DA e PD nesse contexto necessrio olharmos para a negociao na Drug Court. Da mesma forma, preciso considerar esses novos elementos, como a introduo do relatrio da equipe

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    POLICARPO, Frederico

    de tratamento na negociao. Este relatrio, que baseado em critrios psicolgicos e comportamentais (a avaliao do case manager responsvel) e objetivos (o teste de droga), tm importantes implicaes para os pro-cedimentos criminais.

    O meu argumento que o relatrio no um simples instrumento usado ou pela DA ou pela PD, mas, antes, o relatrio o principal responsvel pelo enquadramento e um modo de interpretao (CRAPANZANO, 2000) de toda a discusso em torno dos casos. A negociao na judges cham bers comea, primeiro, com o relatrio feito pela a equipe de trata-mento e, s em seguida, a discusso entre a DA e a PD se inicia. O rela-trio no uma ferramenta para dar apoio a um argumento especfico, nem pr nem contra o client, mas considerado um dado objetivo que d base e informa toda a negociao subsequente. Por conta disso, eu diria que a PD, por exemplo, ainda desempenha um papel importante, ou ainda mais fundamental do que numa criminal court, mas s que com menos poder de deciso. Porque o poder tem que se compartilhado com a equipe de tratamento, que tem a vantagem de ter suas observaes e sugestes cobertas pela aparente objetividade do relatrio. Afinal de contas, difcil argumentar contra testes de drogas e avaliaes psicolgicas.

    Mas o ponto a ser destacado aqui que essa objetividade do relatrio tambm era, em alguns casos, atraves-sada por moralidades que no atendiam a critrios estritamente objetivos. As-sim, esses critrios tambm serviam para destacar algum juzo moral envol-vendo certos clients, e no outros. Nesse sentido, podemos pensar que o relatrio influenciava tanto as discus-ses de fundo (EILBAUM, 2012) que informavam o que deveria ser considerado na avaliao de cada ca-so, bem como o enquadramento da forma (Ibid.) procedimental dos atos jurdicos seguintes e tambm o modo de interpretao (CRAPANZANO, 2000) das questes discutidas.

    Portanto, eu observei que a nego-ciao na Drug Court no apenas entre a DA e a PD. A PD tambm tem que dialogar com os case managers que elaboram o relatrio de progresso dos clients.

    ele o cara que foi visto na esquina da 6th durante a noite, no ?

    Eu entrevistei duas PD em atividade. Uma delas trabalhou na Drug Court por trs anos e depois se mudou para uma criminal court. E a outra estava trabalhando, durante a minha pesquisa, na Drug Court. As duas disseram que era muito frustrante trabalhar na Drug Court porque os PD no tm total controle para tomar a melhor deciso para o client, como em uma criminal

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    court comum. sempre necessrio dialogar com o relatrio elaborado pela equipe de case managers do Treatment Center vinculado Drug Court. A PD que trabalhava na Drug Court ainda reclamou sobre como os procedimentos so realizados na Drug Court: Eu no gosto quando algum da equipe do Treatment Center ou a DA diz que viu um cara parado na 6th com a Market Street. Esse tipo de informao simplesmente aparece do nada. Por que isto no est no relatrio e, mais ainda, por que isto importante? Eu vi esse tipo de comentrio surgir algumas vezes durante as negociaes na judges chambers. Geralmente, e este era o motivo da PD em reclamar, esses comentrios eram ditos de forma sempre negativa, sugerindo que o acusado estava fazendo algo de errado. A esquina da 6th com a Market Street um conhecido ponto de venda e consumo de drogas em San Francisco. A qualquer hora do dia possvel ver pessoas usando e vendendo drogas nesta esquina e nos arredores. Mas o tipo de pressuposio que estes tipos de comentrios carregam totalmente injusto porque, como me explicou a PD, a maioria dos alojamentos oferecidos pela Drug Court, e vrios outros programas municipais, ficam no bairro do Tenderloin. E a esquina da 6th com a Market Street est no meio do bairro.

    Uma das prprias case managers que, alis, conhecia bem as situaes

    envolvendo os clients por ter sido, ela mesma, presa diversas vezes por conta de drogas antes de entrar em tratamento e se profissionalizar como case manager sempre discutia isso durante as reunies que conduzia para os clients no Treatment Center. Ela era bem crtica a esse tipo de vinculao: As pessoas dizem que voc deve sair fora da Market Street, mas eles esquecem que voc no tem dinheiro. Tudo bem, me d dinheiro que eu mudo. Se no, este o nico lugar que eu consigo pagar. O que ela destacava que o lugar em que a polcia mais prende pessoas que acabam indo para a Drug Court o mesmo lugar para onde os clients da Drug Court so alojados, quando no tm moradia. Deste modo, fcil compreender que a mera meno de que algum foi visto na 6th com a Market Street uma especulao que visa a criminalizao das pessoas que vivem na rea de um modo geral. por isso que a PD ficava to irritada com este tipo de comentrio.

    Negociando com a equipe do Treament Center

    Nenhuma das duas PD que conversei achavam que estavam praticando o Direito na Drug Court. As reclamaes sobre isto eram frequentes: eu no estudei Direito para trabalhar na Drug Court. Uma vez, logo que comecei a ter acesso s negociaes na judges chambers, eu estava conversando com

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    POLICARPO, Frederico

    a PD no corredor e perguntei sobre as outras pessoas que tambm ficam presentes na sala. Ela disse que a DA no tinha muita experincia em negociao porque ela nunca tinha trabalhado no andar de baixo [ela estava se referindo ao primeiro andar do prdio do Hall of Justice onde ficam as criminal courts comuns]: por isso que ela sempre fica falando aquela bobagem sobre the People. Ela no sabe como negociar. E continuou: Ela velha, vai se aposentar no prximo ano. Ela j est cansada. Por isso que o agente da Probation pensa que ele pode agir como se fosse a DA. ridculo. Portanto, alm do relatrio da equipe de tratamento, a PD da Drug Court tinha que lidar tambm com o agente da Probation. Perguntei como a PD fazia para lidar com essa situao. Uma delas me deu esse exemplo de como negociar nessa situao e conseguir o que quer:

    Eu tenho que manipular a equipe de tratamento. Antes da negociao na judges chambers, eu tenho que ligar para eles e tentar passar informaes que apoiam a minha viso sobre o caso. Mas eles tm que pensar que eles tiveram a ideia, e no eu. Ento, na judges chambers, eles falam uma ideia que, na verdade, baseada em minha ideia. Se no for assim, eles

    vo falar que eu estou sendo mandona, querendo impor minha vontade.

    A seguir, passo a descrever algu-mas discusses que acompanhei na judges chambers.

    O lugar da negociao: a judges chambersNingum entra na judges chambers

    sem que todos os outros participantes da reunio estejam presentes. medi-da que vo chegando, a DA, a PD, os funcionrios da Probation e os case managers do Treatment Center, eles fi-cam aguardando na courtroom. Quan-do todos chegam, o funcionrio da Drug Court liga para o judge, que j est aguardando todos na judges chambers, e pergunta a ele se todos podem en-trar. Este um ponto importante pa-ra se entender o que acontece na judges chambers. Ela o local aonde se discutem os casos e os acordos so feitos. Deste modo, todos tm que estar presentes ao mesmo tempo. uma forma de controle sobre as decises e, ao mesmo tempo, de proteo dos participantes, pois, as discusses, por mais longas e complexas que sejam, so encerradas com a concordncia de todos. Nesse sentido, a transparncia nos procedimentos das decises tambm uma forma de controle. Na judges chambers se discute o que ser validado durante a audincia e o que garante isto o consenso de todos no momento

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    da validao. Portanto, entrar antes ou sair depois dos outros participantes pode gerar dvida acerca deste processo. Alm do mais, se a DA ou a PD no concordarem com o que dito durante a audincia, isto , no reconhecerem o acordo feito antes na judges chambers, possvel se manifestar. Quando isso ocorre na courtroom, preciso solicitar a aproximao: Meritssimo, posso me aproximar da bancada?. Apesar de ser uma prtica relativamente comum, parecia que causava certo mal estar. O judge, a DA e a PD ficam conversando baixinho e possvel observar gestos rspidos e aborrecimento nos rostos, pois o caso j foi discutido antes e o acordo selado. A persistncia na discusso no bem-vinda na courtroom.

    A importncia dessa reunio na judges chambers como o local formal, adequado para a discusso do caso com todos os interessados presentes pode at ser observada no fato de que o judge, pelo que notei, parecia realmente se esforar para ficar sozinho, inclusive fora do Hall of Justice. Ele sempre andava sozinho pelos corredores e j o vi almoando sozinho algumas vezes em um restaurante que fica ao lado do Hall of Justice e que freqentado por agentes da justia, case managers e funcionrios do Hall of Justice. Essa distncia formal foi at explicitada pelo prprio judge. Durante uma discusso na judges chambers sobre um caso, em que a DA e a PD comearam a se

    exaltar, o judge foi firme e rude: hei, vamos parar com essa discusso e nos concentrar no caso. Aqui ningum precisa ser amigo. Eu no quero e no preciso de mais amigos. Temos que trabalhar aqui e discutir o caso. Ponto final. Ningum pareceu ter ficado ofendido. Acredito at que, de certa forma, esperado esse tipo de comportamento do judge. Para reforar essa observao, eu lembro que at mesmo uma colega do curso de direito da universidade da Califrnia me disse que no se dava bem com ningum na faculdade e relacionou essa situao com o fato de que os alunos acabam reproduzindo o modelo do sistema adversrio, caracterstico do sistema de justia anglo-americano.

    NA JUDGES CHAMBERSGeralmente, a negociao na judges

    chambers seguia o mesmo padro: o funcionrio do departamento da Probation falava o nmero do caso que constava numa lista que todos na sala tinham em mos, e um case manager dava um breve relato sobre o client e falava a data para a prxima audincia. Em geral, o intervalo entre as audincias era semanal e vai se ampliando conforme o progresso do client. Esta era a maneira como a negociao na judges chambers se desenvolvia. A maioria dos casos repetia essa sequncia. Vou descrever um dos inmeros casos que observei: neste dia,

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    POLICARPO, Frederico

    o agente da Probation e o case manager eram responsveis, respectivamente, por chamar o caso e dar o resumo do relatrio. O agente falou: nmero XX, linha 1. Em seguida, o case manager comeou a falar: o senhor X est indo muito bem. Ele est frequentando todas as duas reunies de grupo e est testando negativo [para o teste de droga]. Duas semanas, por favor, para novo relatrio. O agente da Probation olhou em sua agenda e disse: dia 7 de Julho, para novo relatrio. Prximo caso o nmero YY, linha 2. Se a PD e a DA no disserem nada, a negociao segue esse padro.

    Essa monotonia era quebrada quando o client no estava cumprindo o tratamento. Nessas ocasies, que eram bastante frequentes, a PD vai falar algo para minimizar a falta cometida e, inversamente, a DA vai se opor e cobrar mais rigor na punio. No caso da equipe de tratamento, como so eles mesmos que elaboram os relatrios, os case managers j teriam escolhido algumas punies, como o aumento do nmero de reunies de grupo, por exemplo, e a PD ouvia isto pela primeira vez na judges chambers. Portanto, a judges chambers era o lugar para a PD discutir com os case managers. A discordncia entre a PD e os case managers ocorria todos os dias, pelo menos em dois ou trs casos. Normalmente, a PD reclamava da maneira como os case managers escolhiam as punies. Ela

    sempre fazia questo de destacar que essa escolha parecia ser por acaso.

    Ns vamos fazer o que eu falar que devemos fazer. Eu tomo as decises aqui e ns vamos fazer isto... ou o judge da Drug Court

    A DA sempre apoiava as reco-mendaes dos case managers. Pelo que observei, mesmo se for somente para ir contra a PD. A relao entre a PD e a DA rspida e, frequentemente, seus argumentos so irreconciliveis. Na verdade, de se esperar, poderamos pensar, pois afinal de contas o papel da DA processar o acusado e da PD defend-lo. Na Drug Court, essa disputa no concluda atravs de um acordo entre PD e DA, a chamada plea bargain (cf. GUEIROS), ou atravs de um jri, o chamado trial by jury, como nas criminal courts tradicionais. Na Drug Court, o judge, considerando tambm o relatrio dos case mana-gers, que coloca um ponto final na disputa. Algumas vezes, de forma agressiva e autoritria.

    Eu tive a oportunidade de ver o judge se exaltando em algumas discusses. Geralmente, isto acontecia porque a PD e a DA estavam falando ao mesmo tempo sem parar, de forma descontrolada. O judge, ento, usava a sua autoridade para estancar a discusso. Eu lembro de uma vez que o judge, aps algumas tentativas de encerrar a discusso, falou com um tom de voz alto e forte:

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    Chega! Ns vamos fazer o que eu falar que devemos fazer. Eu tomo as decises aqui e ns vamos fazer isto... Esta breve descrio de como os desacordos so comumente resolvidos aconteceu na judges chambers. Durante as audincias na courtroom, porm, essas diferenas no aparecem devido ao fato do judge insistir em transmitir para o pblico uma imagem de completa unio e pleno acordo entre todos os envolvidos na Drug Court. Sempre que surge uma oportunidade durante uma audincia, o judge fala algo do tipo: Aqui, ns tomamos a deciso como uma equipe (team), e isto o que a equipe decidiu sobre o seu caso.

    A Equipe (team) da Drug CourtO ponto importante que eu quero

    destacar aqui sobre o significado da equipe. No se trata de uma tentativa do judge em criar uma iluso, quando afirma que uma deciso de equipe, mas na realidade h mais desacordo do que acordo. O judge est apenas seguindo as orientaes gerais das Collaborative Courts. Em suma, o objetivo destas courts trazer para o mbito da justia criminal perspectivas de outras reas. Deste modo, alm do judge, da PD e da DA, a Drug Court, como um exemplo de Collaborative Court, conta tambm com os case managers do Treatment Center. A ideia a de que a court pode tomar melhores decises baseadas em recomendaes

    de profissionais de outras reas, alm da do Direito. Portanto, primeira vista, no h nenhum problema acerca da equipe.

    Eu quero explorar o que tem atrs desta ideia de equipe e quais so as implicaes que ela causa nos procedimentos criminais que atingem os clients. Destaco duas: primeiro, a confidencialidade. Quando o client, se ele segue os conselhos dos profissionais da Drug Court e estabelece um dilogo aberto e honesto com o judge, ele est tambm abrindo mo de seus direitos. Pois, se nesse dilogo na courtroom, onde a court reporter est registrando tudo no estengrafo, o client corre o risco de se incriminar. Quer dizer, o client pode falar algo que, embora no tenha sido o crime pelo qual ele tenha sido detido, pode tambm ser alvo de criminalizao. Por isso que importante o papel da PD para controlar o que o client diz. Segundo, a ideia de equipe esconde o poder que o judge tem na Drug Court. Pelo que observei na judges chambers, o judge, quando quer, utiliza o relatrio do case manager como um critrio indiscutvel e, assim, encerra discusso. O relatrio do case manager, de certa maneira, acaba dando mais poder de deciso ao judge. Mas de maneira no to explcita. E que o prprio judge faz questo de destacar. Para o pblico na courtroom, a deciso sempre da equipe, nunca s dele.

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    POLICARPO, Frederico

    District Attorney (DA) x Public Defender (PD)

    Sempre que surgia a oportunidade para a discusso, a PD e a DA se desentendiam. Por exemplo, era co-mum a DA lembrar as orientaes pro-cedimentais formais da Drug Court para discutir com a PD, mesmo que fosse por quase nada. Dessa maneira, ao invs de seguir os argumentos da PD sobre a elegibilidade7 de um caso para o programa da Drug Court, a DA se prendia aos mnimos detalhes processuais e dizia que era preciso que o caso fosse enviado de volta para a criminal court de origem antes de ser aceito na Drug Court. A maioria dos casos na Drug Court era oriunda de criminal courts, quando o ento offender, se seu caso fosse elegvel, podia negociar uma plea bargain, ou seja, nesse caso, virar um client na Drug Court, ao invs de seguir adiante nos procedimentos processuais normais da criminal court. Embora a DA at concordasse com a elegibilidade, ela fazia questo de fazer referncia aos procedimentos formais da Drug Court, argumentando que o caso deveria seguir um caminho burocrtico obri-gatrio. Interessante notar que a DA tem o poder para suspender os requerimentos burocrticos. Mas, pelo que observei, parecia que ela no o fazia apenas para discordar da PD. Em vrias 7Dentre os critrios de elegibilidade, era avaliada a gravidade da acusao, por exemplo.

    ocasies, ouvi a DA reclamando da PD: Ela no pode fazer isso. Ela nunca segue as orientaes. No meu ponto aqui destacar se as pessoas na Drug Court seguem ou no as orientaes. Na verdade, isto no importa. O que importante compreender como as pessoas usam essas orientaes, como estas so manipuladas para apoiar determinado argumento, como so mobilizadas de diferentes maneiras e atualizadas cotidianamente. Apesar dos procedimentos escr itos nas orientaes, e das pessoas as segui-rem ou no, importante destacar que a referncia a essas orientaes formais s era mencionada pela DA e sempre pela mesma razo: para ser contra a perspectiva da PD, pura e simplesmente. Toda hora que aparecia alguma referncia s orientaes, a DA e a PD discutiam. Quando o assunto parecia ser simples e sem muita importncia, a PD costumava conseguir a concordncia do judge. Presenciei ocasies em que, depois da PD explicar que a solicitao da DA era completamente desnecessria e uma perda de tempo e dinheiro de todo mundo, o judge interrompeu a discusso e seguiu a sugesto da PD.

    Era por conta dessa referncia constante s orientaes formais, em detrimento do que se podia negociar na judges chambers, que a PD me falava que a DA no tinha experincia em negociar.

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    Discutindo a punioDepois que um dos case managers,

    que neste dia estava responsvel em apresentar os relatrios na judges chambers, ter dito que um client tinha faltado vrias das reunies de grupo que deveria ir, ele pediu para o judge aplicar um SWAP. SWAP a sigla de Sheriff s Work Alternative Program. Basicamente, isto significa trabalho comunitrio por um dia. Imediatamente, a PD comeou a falar. Mostrando irritao, ela disse que no conseguia entender a lgica deste pedido de SWAP: Por que um SWAP ao invs de pedir por um ensaio8 ou alguma outra coisa? Voc no acha que um SWAP muito neste caso? Por que voc no pede um ensaio? O case manager simplesmente respondeu que tinha sido uma deciso tomada pela equipe de tratamento, baseada em informaes especficas e no comportamento do client.

    Em outra ocasio, a rotina na sala do judge estava seguindo o padro normal que j descrevi. O agente da Probation chamou um caso e 8Era comum o client que cometia faltas leves receber como sano a obrigao de escrever um ensaio. Em geral, o tema do ensaio deveria versar sobre a falta cometida. Por exemplo, se o client no estava freqentando as reunies de grupo, ele deveria escrever sobre a importncia de freqentar as reunies. Se o client estava testando positivo nos testes de drogas, ele deveria escrever sobre a importncia de se manter sbrio. Era muito interessante observar a cobrana desses ensaios. Na hora em que era chamado na courtroom, o client deveria se apresentar diante do judge e ler o seu ensaio. No tinha como no lembrar o ambiente escolar. Nada mais normalizador do que isso.

    um case manager leu o relatrio sobre o client. O judge, a PD e a DA estavam sendo breves. O case manager, ento, comeou a falar de um relatrio de um rapaz que, apesar de querer ir, no tinha conseguido o aval da equipe de tratamento para ir para a Walden House, que oferece tratamento em regime de internato para os clients. Ele apenas falou isso, sem mais detalhes do motivo pelo qual a equipe tinha sido contra. Para mim, pareceu que o case manager no estava querendo se alongar neste caso porque sabia que podia despertar algum tipo de discusso. E ele tinha razo. A PD ficou curiosa e, ao invs de deixar o ritmo da reunio seguir, pois o agente da Probation j tinha chamado outro caso, ela quis saber mais: Desculpa, desculpa. Podemos voltar para o ltimo caso? Eu gostaria de saber o motivo. Por que o rapaz no pode ir para a Walden House? O case manager respondeu secamente: Bem, ele anti-social. O pessoal na Walden House no vai aceit-lo. Anti-social?! exclamou a PD. O que isto? O que ele fez? Estou perguntando porque eu li que at mesmo psiquiatras tm problemas com esse tipo de diagnstico, perguntou a PD em um tom provocativo. De novo, fiquei com a impresso de que o case manager no queria discutir este ponto. Ele deu uma explicao confusa dizendo que anti-social eram pessoas agitadas,

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    que no respeitavam as regras, que s faziam o que queriam e, ao mesmo, tempo eram institucionalizadas, isto , ficavam dependentes das instituies pelas quais passavam. Como ele parecia estar falando de uma maneira bem generalizante, a PD insistiu: Ok, ok. Mas o que esse rapaz fez? Por que ele recebeu esse diagnstico? Ele deve ter feito algo, no? O que foi? Antes que o case manager pudesse dizer algo, o judge interrompeu a discusso com uma piada: O que isto? Interrogatrio?. Todo mundo riu e o judge colocou um ponto final na discusso, dizendo para a PD: Acho que se trata do comportamento do rapaz. S isso. O case manager concordou aliviado: Exatamente! o comportamento do rapaz. simples assim. A PD aceitou o fim da discusso: Tudo bem, s estava curiosa.

    Ficou claro que a PD no ficou satisfeita com essa explicao e tambm tive a impresso de que ela insistiu nesta discusso apenas para expor a fraca explicao da equipe de tratamento. Ela no estava tentando convencer a ningum neste momento, mas apenas explicitando o quanto arbitrria a equipe de tratamento podia ser. Tive esta impresso no s porque a PD estava calma durante a discusso com o case manager e focou seus argumentos na definio de anti-social, ao invs de detalhes do caso como costuma ser, mas porque ela estava deixando a Drug

    Court em poucas semanas, como ela j havia dito para todos. Inmeras vezes, quando nos encontrvamos no corredor do tribunal antes da negociao na judges chambers, ela me dizia: Fred, voc vai ficar vindo aqui at quando? Voc j no viu maluquice suficiente aqui? Eu j estou cheia. Estou indo embora da Drug Court.

    ALGUMAS OBSERVAES GERAIS ACERCA DA NEGOCIAO NA JUDGES CHAMBERS: A DISPUTA ACERCA DO ENQUADRAMENTO PARA A INTERPRETAO

    Gostaria de destacar agora algumas implicaes relacionadas negociao na judges chambers. Elas so impor-tantes para entender as crticas Drug Court e tambm s Collaborative Courts, de uma maneira geral. Em primeiro lugar, a autoridade dos case managers para estabelecer sanes para os clients antes da negociao na judges chambers. A questo que me parece mais importante a falta de controle sobre a deciso dos case managers. uma deciso unilateral, sem qualquer referncia a algum procedimento legal ou discusso com entre a DA e a PD ou o judge. Eles que criam e decidem os critrios, como no exemplo do com-portamento anti-social do client. A segunda implicao com relao prpria negociao. Como mencionei anteriormente, os case managers j chegam na judges chambers com uma

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    punio escolhida. Embora os case managers no tenham poder para aplicar as punies, porque depende da concordncia do judge, o fato da equipe j ter escolhido uma punio antes importante para a deciso final. Quando os case managers apresentam a suas recomendaes a discusso que se segue toma essa recomendao como ponto de partida. Geralmente, o que ser discutido se a punio justa ou no. Deste modo, a referncia para a discusso dada pela equipe de tratamento que, por sua vez, baseou sua deciso em seus prprios critrios.

    Em outras palavras, quero dizer que ela fornece um enquadramento, uma moldura para a discusso pos-terior. Essa recomendao, de certa maneira, impe os critrios e as referncias para a discusso. A reco-mendao se transforma em pre-missa para a discusso. E muito difcil para a PD mudar isso. Aqui necessrio ter em mente quem so os participantes da negociao na judges chambers. Sempre h seis pessoas: o judge, a PD, a DA, um agente da Probation e dois case managers. Os trs primeiros so sempre os mesmos. Quer dizer, so titulares da Drug Court. Eventualmente, por algum motivo especial, so substitudos. Mas as outras posies sempre variam. No total, h dois agentes da Probation e sete case managers que se revezam na judges chambers. De qualquer modo,

    o que quero destacar a fragilidade da posio da PD. Frequentemente, a nica PD tem que discutir no somente contra a DA, como numa criminal court comum, mas tambm contra diferentes agentes da Probation e, principalmente, vrios case managers. Este parecia ser o ponto central que incomodava a PD e o motivo pela qual ela estava deixando a Drug Court. Ela no estava satisfeita com esse enquadramento, o controle que os case managers tm para impor o horizonte e as premissas da discusso. Ela queria voltar para a criminal court tradicional onde: eu posso fazer o que quiser para o meu client sem ter que discutir com ningum, s eu e meu client.

    CONCLUSOA partir das descries apresen-

    tadas, eu gostaria de sugerir o padro da administrao institucional do con-sumo de drogas que atualizado na cidade de San Francisco, EUA. Com a Drug Court, a rede de controle estatal est se tornando cada vez mais capilar, com novas estratgias disciplinadoras e sanes normalizadoras para alm da simples deteno e do isolamento. Nesse sentido, a Drug Court parece funcionar como uma dessas modulaes da rede de controle, conjugando as aes dos agentes de justia com as dos profissionais da sade. Quem come-te uma infrao, o offender, no fi-ca apenas detido na priso. Ele

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    POLICARPO, Frederico

    encaminhado e se vincula ao programa da Drug Court, se tornando um client dessa court, tendo que prestar contas regularmente aos case managers e ao judge. A maioria dos clients est l no por causa exclusivamente do uso de drogas. Como alguns deles me falaram e os case managers me explicaram, eles chegam at a Drug Court porque uma oportunidade de no ficarem detidos e tambm de limparem suas fichas criminais. A Drug Court, portanto, uma criao que estica a rede de controle e produz novas modulaes para dentro do sistema judicial.

    No me interessa aqui avaliar se esse tipo de controle do consumo de drogas eficaz ou no. Meu interesse observar e delinear o modo especfico de controle social acerca do consumo de drogas mobilizado na cidade de San Francisco, EUA. Pois o meu objetivo problematizar exatamente o controle exercido e os modos como so atualizados pelos aparatos estatais.

    Nesse sentido, possvel traar um esboo da maneira como o controle concebido e produzido pelo sistema judicial daquela cidade. A existncia da reunio dos agentes de justia na judges chambers da Drug Court impe, obrigatoriamente, uma forma, previsvel e controlada por todos, aos atos jurdicos. H disputas e negociao acerca das moralidades mobilizadas pelos envolvidos. Mas o fundamental observar que essa

    negociao explcita, com uma espacialidade a judges chambers e uma temporalidade antes das audincias especficas. O relatrio de progresso interfere na negociao, mas no a determina diretamente. A discusso de fundo que ocorre na judges chambers e que acaba por informar a forma dos atos jurdicos a ser seguida posteriormente, depende tambm, como sugere Eilbaum (2012), das moralidades situacionais dos envolvidos. Como mostrei, os critrios objetivos dos relatrios de progresso so usados de maneiras diferentes, dependendo dos argumentos da PD e DA, bem como da posio do judge. Por mais divergente e complicada que seja a negociao, ela comea e se encerra na judges chambers. Este espao funciona para controlar as divergncias e formalizar os resultados das negociaes. ele mesmo, portanto, disciplinador e normalizador das aes dos agentes de justia. Na courtroom, explicitado somente o resultado da negociao, de maneira breve e transparente.

    Assim, o ponto que gostaria de destacar aqui que o controle exercido pelos agentes de justia sobre os consumidores de drogas em San Francisco, EUA, segue atos jurdicos previsveis e normalizadores. Espero que esse artigo chame a ateno e contribua para a reflexo no s sobre as condutas dos consumidores de

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    O CONTROLE JUDICIAL DO CONSUMO DE DROGAS

    drogas, mas tambm, para as condutas dos que visam control-los.

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    Frederico PolicarpoProfessor do curso de Polticas

    Pblicas IEAR/UFF e pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administrao Institucional de Conflitos InEAC/UFF.

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