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POLÍTICAS DE HABITAÇÃO, SAÚDE E SANEAMENTO: desafios no contexto de
desconstrução de políticas públicas de Estado
Coordenadora:
POLÍTICA HABITACIONAL E QUESTÃO DA HABITACIONAL: em tempo de dissolução
de políticas públicas
Profª. Dra. Rosa Maria Cortês de Lima, Docente do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social (PPGSS/UFPE), Assistente Social, Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Habitação e Saneamento Ambiental (NEPHSA/UFPE). Email:
Participantes:
SAÚDE E INTERSETORIALIDADE: os desafios à articulação intersetorial entre saúde,
habitação e saneamento.
Profª. Dra. Maria Dalva Horácio da Costa - Docente do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social (PPGSS/UFRN), Assistente Social, Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa
em Seguridade Social e Serviço Social (GEPSSS-UFRN). E-mail:
POLÍTICA DE SANEAMENTO: desafios no contexto de desconstrução das políticas públicas do Estado
Prof. Dr. Ronald Fernando Albuquerque Vasconcelos, Engenheiro Civil, Departamento de Arquitetura e Urbanismo (UFPE), Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Habitação e Saneamento Ambiental (NEPHSA/UFPE). Email: [email protected].
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: para além da
interpretação jurídica
Ms. Celso Severo da Silva; Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Habitação e
Saneamento Ambiental (NEPHSA/UFPE); Assistente Social da PERPART-PE. Email:
QUESTÃO SOCIOAMBIENTAL, CIDADE E POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE: em tempo de
crise do capital
Ms. Amanda dos Santos Paiva, Assistente Social da Secretaria Municipal da Assistência
Social de Natal; Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Seguridade Social e
Serviço Social (GEPSSS-UFRN). Email: [email protected]
POLÍTICA HABITACIONAL E QUESTÃO DA HABITACIONAL em tempo de
dissolução de políticas públicas
Profª. Dra. Rosa Maria Cortês de Lima1 RESUNO Este artigo versa sobre a questão da habitação, da Política Nacional de Habitacional do país, atendo-se, em especial, as décadas iniciais do século vinte. Trata do marco legal estabelecido, suporte para a institucionalização da política, de programas, de avanços e assinala retrocessos. Situa firmes contradições no direito à moradia e à cidade, pela parcela de população na faixa de interesse social e, ao mesmo tempo, demarca desconstrução da política do Estado brasileiro. Habitação e saneamento configuram questões imbricadas historicamente e acirradas com a expansão urbana e o crescimento das cidades, indicativo de espaços em constantes disputas. Palavras-chave: Questão da Habitação; Política Habitacional; Cidade; Saneamento. ABSTRACT This article deals with the question of housing, the National Housing Policy of the country, especially the early decades of the twentieth century. It deals with the established legal framework, support for the institutionalization of politics, programs, advances and signals setbacks. It places firm contradictions in the right to housing and the city, by the portion of the population in the range of social interest and, at the same time, demarcates deconstruction of the Brazilian State policy. Housing and sanitation are issues that are historically overlapping with urban sprawl and the growth of cities, indicative of spaces in constant disputes. Keyword: Housing Issue; Housing Policy; City; Sanitation.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo trata da Política Nacional de Habitação (PNH), aborda a questão da
habitação, versa sobre a cidade e constituição do urbano, em sua dimensão histórica.
Entende-se que o urbano configura-se de forma diferenciada em tempos distintos, muito
1Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/UFPE), Assistente Social,
Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Habitação e Saneamento Ambiental (NEPHSA/UFPE). Email: [email protected]
embora, preserve e mesmo ultrapasse a conformação inicial, demarcada pela associação
realizada entre urbanização e industrialização, do período da revolução industrial, para se
constituir em formas variadas e distintas nos dias atuais.
A Política Nacional de Habitacional (PNH) é discutida atendo-se, em especial, as
décadas iniciais do século vinte e um, assinaladas pela retomada da ação do Estado
brasileiro no campo da habitação, a definição do marco legal, fator importante para a
constituição e institucionalização da política, a formulação de programas, a destinação de
fontes de financiamento, a indicação de avanços e o apontar de retrocessos.
São fatores que sinalizam contradições, no que tange ao direito à moradia e à
cidade, pela parcela de população na faixa de interesse social e, em simultaneidade,
demarca elevada desconstrução da PNH, do Estado brasileiro. Habitação e saneamento
configuram questões imbricadas historicamente e acirradas com a expansão urbana e o
crescimento das cidades, indicativo de territórios em constantes disputas, acionados pelo
processo de produção capitalista do espaço (HARVEY, 2005), da financeirização e
mercantilização das cidades.
As particularidades da Região Metropolitana do Recife (RMR) são expressas e
engendradas na aproximação com o real, no contexto da temática examinada.
2 DA QUESTÃO DA HABITAÇÃO E DA CIDADE
A questão da habitação conforma expressões da questão social, aqui
apreendida enquanto universo de desigualdades sociais, econômicas, políticas, jurídicas
proveniente do processo de acumulação e exploração constituinte do modo de produção
capitalista. (ENGELS, 2015). Dessa forma, a questão da habitação apresenta-se enquanto
elemento imbricado com as relações sociais capitalistas estabelecidas e, nessa perspectiva,
a habitação agrega valor de uso e, ao mesmo tempo, valor de troca, caracterizando-se
como mercadoria na relação configurada com o mercado. Entra em pauta, nesse cenário, a
renda da população e o acesso à moradia.
Engels (2015) ao analisar a questão da habitação, no período da revolução
industrial, chamava a atenção para a ausência de renda solvável dos trabalhadores, e a
impossibilidade destes resolverem a questão da habitação pela via do mercado apontando,
ainda, que interessava a classe capitalista à penúria da habitação, uma vez que, assim
sendo, impingia-se acentuado processo de exploração, ao se considerar que os salários
eram insuficientes para responder as necessidades de sobrevivência, reprodução da força
de trabalho, de assegurar o alojamento sem precariedade, entre outras necessidades. Tal
situação conduzia os trabalhadores a se submeteram às precárias condições de trabalho.
Novamente recorrendo a Engels (2008), destaca-se a análise realizada pelo
autor no livro "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra", no século XIX, no qual
registra as precárias condições de moradia e chamar a atenção para os chamados “bairros
de má fama”, fétidos, fugindo às normas vigentes, dispostos em lugares sem drenagem das
águas e desprovidos de saneamento. Tais lugares, onde habitava a população operária,
eram distantes das áreas habitadas pela população abastada, e marcados por vias de
circulação estreitas.
Nesses termos, a questão da habitação vinculava-se e, ainda, vincula-se a
fatores determinantes atrelados também ao processo saúde/doença que sinaliza para as
condições de vida, de pobreza, do acesso aos serviços de infraestrutura básica -
saneamento, água -, por parcela significativa da população brasileira. Essa questão ganha
força no processo de urbanização, associado com a industrialização, a partir do qual se
amplia a aglomeração de pessoas na cidade, período assinalado pela dissolução da
manufatura e da emergência da grande indústria, da dissolução da atividade do campo, da
introdução e utilização de maquinário que afetará e alterará, sobremaneira, o processo
produtivo. (LEFEBVRE, 2001) Assim, a questão da habitação envolve múltiplos, complexos
e contraditórios processos de constituição do urbano na sociedade capitalista.
Nessas circunstâncias, entende-se como fundamental a discussão sobre a
cidade e, nesse sentido, toma-se como referência o debate de Carlos (2015, p. 10) sobre a
produção do espaço quando defende que a "[...] produção do espaço, como construção
social é condição imanente para a produção humana ao mesmo tempo que é seu produto".
Acrescenta a mesma autora (2015, p. 10):
Nesse raciocínio, a produção do espaço seria uma das obras do processo civilizatório. O espaço, em sua dimensão real, coloca-se como elemento visível, em sua materialidade, mas também como representação de relações sociais reais que a sociedade (constrói) em cada momento da história.
Isso permite pensar que a questão da habitação, as cidades - nas fases mais
avançada da urbanização -, enfrentam momentos diferenciados e historicamente
constituídos e definidos, muito embora possam preservar e, ao mesmo tempo, superar
traços antecedentes. Desse modo, a cidade torna-se um lugar fundamental para a
materialização do capital, converte a habitação em mercadoria, possibilitando, assim,
assegurar maior lucratividade e fortes processos de acumulação. De outra parte, conformar
em sua estruturação a convergência de distintos agentes - Estado, proprietários de terra,
empresas imobiliárias e de construção, população -, que na construção desse espaço detêm
interesses diferentes, em constantes disputas, concorrendo e definindo a reorganização
espacial, estabelecendo a seletividade dos lugares e favorecendo a sua valorização.
Atento a dimensão histórica, verifica-se que nos dias atuais, formas contínuas e
ampliadas aceleram a inter-relação entre o rural e o urbano, dilata os territórios das cidades,
aproximando-os ao campo, e vice-versa, estabelecem-se franjas aproximando convivências,
trocas permanentes, confluências, mas também distanciamentos, sejam, nas relações
estabelecidas no âmbito das atividades que abarcam, nos deslocamentos e na circulação de
pessoas, na circulação e no consumo de mercadorias, nas modalidades variadas de
produção, nas vivências cotidianas que concorrem para assegurando, também formas de
acumulação e, nesse ambiente, a questão da habitação persiste em ambos os espaços,
acentuando-se no urbano, entre outros.
3 DA POLÍTICA NACIONAL DE HABITAÇÃO: as décadas inicias do século XIX
No ano de 2003, ao assumir o governo do país o Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, expectativas se fizeram sentir em relação a definição de uma política de habitação
que fosse pautada no diálogo com a população - movimentos sociais técnicos, acadêmicos
e trata no campo da reforma urbana. Nesse ambiente é criado o Ministério das Cidades e
formulada a Política Nacional de Habitação (PNH, 2004).
A definição dessa política teve referências nas propostas do Projeto Moradia,
construído no período antecedente as eleições majoritárias com a participação de diferentes
intelectuais ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT), que passa a incorporá-las para o
setor habitacional para o país.
O Ministério das Cidades criado constrói as bases da institucionalização,
organização e operacionalização da política. As definições concernentes ao direito à
moradia contida na Carta Constitucional de 1988, Ementa 26/2000, associa-se Lei federal
10.257/2001 do Estatuto da Cidade e são incorporados a Política Nacional de habitação
(PNH, 2004). Essa política obedece a princípios e diretrizes e estabelece como principal
meta "[...] garantir à população, especialmente de baixa renda, o acesso à moradia digna,
e considera para atingir seus objetivos a integração entre política habitacional e política
nacional de desenvolvimento urbano" (BRASIL, 2014, p. 29). Prever a articulação entre os
diferentes entes federativos no compartilhamento da atribuição para a realização da política.
Dessa forma, conta com um número significativo de instrumentos para viabilizar
sua implementação e operacionalização. Assim, cria como principal instrumento o Sistema
Nacional de Habitação (SNH), constituído por instância de gestão e controle, articulada e
integrada pelo Ministério das Cidades, o Conselho das Cidades, o Conselho Gestor do
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, os Conselhos Estaduais, do Distrito
Federal e Municipais, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), bem
como Fundos Estaduais e Municipais de Habitação de Interesse Social (FEHIS e FMHIS).
Esse sistema conta também com o Sistema Nacional de Habitação (SNH), agregando uma
rede de agentes financeiros.
Ademais, a gestão e o controle do Sistema Nacional de Habitação
compreendem dois subsistemas: o Subsistema de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e
o Subsistema de Habitação de Mercado (SHM), destinados congregar as fontes de recursos
para viabilizar o acesso à moradia digna, às distintas demandas e responder ao déficit
habitacional. A lei que cria o FNHIS define os pontos fundamentais para a instituição do
Sistema nacional de Habitação de Interesse Social, alicerçado no compartilhamento de
atribuições entre as instâncias federativas - estados, municípios, distrito federal, implicando,
inclusive a instituição de fundo, políticas, conselho com a participação popular e plano, no
qual deveriam ser estabelecidas as diretrizes e as prioridades na instância local. Instituído
em, o FNHIS, passou a contar com 2006 com a destinação de R$ 1 bilhão por ano, iniciando
a operacionalização os recursos com urbanização de assentamentos precários, construção
de unidades habitacionais, assistência técnica e a elaboração de planos habitacionais para
estados e municípios, cuja obrigatoriedade pala a formulação recaí em municípios acima de
20 mil habitantes.
As mudanças registradas no âmbito da política econômica do governo, já no ano
de 2006, com a destinação de recursos para os programas sociais, vistos como prioritários
(CARDOSO, 2013), se desdobrará na criação e lançamento do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), em 2007, no governo Lula. Nesse programa são definindo
investimentos de ampla envergadura para alavancar a infraestrutura do país. Nesse mesmo
programa foi incorporada a urbanização de favelas, com foco no saneamento, sendo a
habitação um componente atrelado conforme os requisitos e necessidades da realização da
obra. Cardoso et. al. (2017, p. 25-26) anotam que realizou "[...] na primeira etapa do (PAC-
1), um investimento de 20,8 bilhões para a urbanização de 2,113 assentamentos precários
de todo o país [...]" . Em 2012, no governo Dilma Rousseff, foi lançada a segundo etapa do
programa (PAC-2), quando foi disponibiliza a soma de "[...] R$12,7 bilhões para obras em
337 municípios de 26 estados", de acordo com a mesma fonte.
Outro investimentos são ainda registrados, nos períodos de governo Lula,
destinados ao PAR e ao Crédito Solidário, sendo o segundo utilizados no âmbito das
cooperativas responsáveis pela gestão.
Interessa observar que a implementação do PAC, levou o Banco Central a inicia
a redução da taxa básica de juros, construindo para o crescimento econômico com elevação
do PIC e a expansão do crédito imobiliário. Em simultaneidade, a implementação dos
programas sociais de transferência de renda concorreram para a redução dos índices de
pobreza e de desigualdades, somando esforços e ampliando o financiamento habitacional.
Esse financiamento expande-se para os segmentos médios e terá sua versão mais definida
com a criação do Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009.
Na realidade, para os críticos do governo o neodesenvolvimentismo estava se
instituído, como uma política de conciliação de classes. Dessa feita, as contradições
prementes se dissolviam em meio à conciliação em que todos ganhavam.
O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), resulta da busca do governo em
se antecipar na adoção de alternativas que fizesse frente, antecipasse e evitasse os efeitos
da crise que se abateu entre 2007 e 2008, nos países avançados. De inspiração na
experiência chilena e mexicana, esse programa situava na perspectiva de criar as condições
para dinamizar a economia, tendo como elemento propulsor a construção civil. Com isso há
mudanças no sistema habitacional pensado e acionado a partir da criação do Ministério das
Cidades, visto que o FNHIS deixa de fazer os repasses para as ações de urbanização de
assentamentos precários, assumindo após o lançamento do PMCMV, o Fundo passa a
concentrar os recursos que lhes eram disponíveis na urbanização de assentamentos
precários e no desenvolvimento institucional, conforme orientação do Ministério das
Cidades. Na medida em que o PMCMV se concretiza, o fundo vai se esvaziando no governo
Dilma Rousseff, e isso afeta a proposta contida na PNH, voltada para a população na faixa
de renda de interesse social e os ocupantes de assentamentos precários. Nova agenda
conforma a PNH com a instituição do Programa Minha Casa, Minha Vida, gerando
mudanças no marco legal e regulatório instituído, como no Plano Nacional de Habitação
(2009).
O lançamento da segunda fase do programa, estave relacionada à avaliação
positiva das ações, que atuava também nas demandas reprimidas por habitação, atendia
faixa de renda mais ampliada do que aquelas situação nos assentamentos precários,
portanto, com possibilidade de resolver a necessidade da habitação pela via do mercado,
muito embora com financiamento subsidiado. Mantinha a economia dinâmica, acionava o
mercado da construção civil e imobiliário, mas repetia também práticas fortemente criticadas
do período do Banco Nacional da Habitação (BNH), 1964-1986 - grandes conjuntos,
distâncias dos centros urbanos, ausência de infraestrutura, seja no local ou no percurso.
Ainda foi anunciado o lançamento da terceira etapa, para o ano de 2015, no entanto as
mudanças políticas no país com a destituição da Presidenta Eleita Dilma Rousseff,
alteraram a rota.
Cardoso et. al. (2017, p. 33) mostram que:
O último levantamento divulgado pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão indica que até junho de 2016 já tinha sido contratadas a construção de
4,36 milhões de unidades habitacionais em 96% dos municípios do país (com 2,9 milhões já entregues). Cerca de 35% delas estão concentradas na região sudeste, 28,4% na região nordeste, 18% na região sul, 11,35 na região centro-oeste e 6,8% na região norte;algo que corresponde a um investimento na ordem de R$ 309,6 bilhões.
Verifica-se que com o impacto da crise, em 2015, os recursos tornam-se
escassos e míngua o sistema de crédito, permanecendo ainda o crédito oriundo dos bancos
públicos, representado por 50% dos recursos disponibilizados. O agente financeiro de maior
monta, a Caixa Econômica Federal (CEF), responsável pelo maior volume de crédito, em
torno de 70%, inicia alterações nas normas e com isso dificulta a contratação de créditos
novos.
A instituição do PMCMV gera modalidade em que das ações oriundas da política
habitacional a se concentrar nesse programa, desviando-se, portanto, das propostas
inicialmente formuladas. Interessante observar que o de mercantilização da habitação,
quando PMCMV estabelece modalidade aciona a transferência da propriedade do bem.
Também na operacionalização do programa um amplo mercado de terra é mobilizado para
assegura a construção dos conjuntos habitacionais.
Entretanto, no que pese as mais variadas críticas, o PMCMV passou a
responder a necessidades de acesso á habitação para as diferentes faixas que atende.
4 REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE E SUAS CARACTERÍSTICAS
A Região2 Metropolitana do Recife (RMR) corresponde a quinta maior região
metropolitana do Brasil, atrás, somente, das RM's de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte e Porto Alegre. De acordo com o IBGE (2010) a população metropolitana
corresponde a 3.693.177 mil/hab., sendo a maioria mulheres, 1.953.844 mil/hab., que
residem, em especial, o urbano. Quanto à densidade demográfica é Olinda quem acumula a
taxa mais elevada - 9.344,64 hab/km² -, seguido de Jaboatão dos Guararapes - 9.068,36
hab./km² - e do Recife com taxa de 7.037,61 hab./km (Tabela 1). Prevalece na RMR a
população urbana, e considerando o conjunto de dos 14 municípios, três, Recife, Paulista e
Camaragibe, não dispõem de população rural. (IBGE, 2010).
Com uma área de 2.787,469km², e 1.111.213 domicílios particulares
permanentes (CONDEPE/FIDEM, 2012), a RMR registra Índice de Desenvolvimento
2A RMR foi criada por Lei Complementar N. 14/73 que instituiu oito regiões metropolitanas: Belém,
Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo e Porto Alegra. Reúne atualmente 14 municípios - Recife (capital do estado de Pernambuco e cidade polo), Olinda, Paulista, Igarassu, Moreno, Jaboatão dos Guararapes, São Lourenço da Mata, Cabo de Santo Agostinho, Ilha de Itamaracá, Itapissuma, Abreu e Lima, Ipojuca, Paulista e Cabo de Santo Agostinho.
Humano (IDH), de 0,734, além de desenvolvimento educacional (IDHM-E), relativo a 0,662,
enquanto o índice de longevidade acumula 0,813. Essa metrópole apresenta renda per
capta de R$ 745,0, e o IDHM–Renda, e de acordo com o PNUD, atingiu 0,736 (ATLAS
BRASIL, 2010). O Produto Interno Bruto (PIB) resultou em um total de R$75.933.066,
correspondendo a 65,1% do PIB do estado de Pernambuco.
Estudos realizados por Pasternak e D’Ottaviano (2016), apontam que no ano de
2010 existiam no Brasil 11,4 milhões de pessoas morando em assentamentos precários,
88% desse universo residem em 22 grandes cidades do país, entre as quais São Paulo, Rio
de Janeiro, Recife e Salvador. Atento as particularidades da informação, verifica-se,
segundo o IBGE, que em 1991, “aglomerados favelados”, contabilizavam 3.187; em 2000,
atingiram 3.906 e, de acordo com o Censo Demográfico de 2010 (IBGE), esse número
ampliou-se para 6.329 aglomerados espalhados nas cinco regiões brasileiras, desvelando
permanente crescimento.
Os dados apontam para de desigualdades socioespaciais e territoriais na
apropriação e uso da cidade, indicando a negação do direito à moradia e à cidade.
Lefebvre (2001, p. 105) em reflexão analítico sobre o direito à cidade discorre
"[...] as necessidades sociais inerentes à sociedade urbana", vinculadas, na perspectiva
interpretativa do autor, as funções e estruturas da cidade, incluindo as econômicas,
políticas, culturais, entre outras. Segundo Lefebvre a cidade pode responder as
necessidades do ser humano da organização do trabalho, da diversão, do encontro, do
acumular energia e mesmo da solidão, e mais. Todavia, reconhece a capacidade estratégica
existente na cidade, assim, afirma: "Apenas grupos, classes ou frações de classes sociais
capazes de iniciativas revolucionárias podem se encarregar das, e levar até a sua plena
realização, soluções para os problemas urbanos: com essas forças sociais e políticas, a
cidade renovada se tornará a obra". (2001, p. 113).
Inspirado nas ideias de Lefebvre, o geógrafo David Harvey (2013) examina a
vinculação entre urbanização e capitalismo, analisa o acelerado crescimento das cidades e
aborda o direito à cidade como direito humano. Nesse sentido, reconhece a importância de
se definir o tipo de cidade que se quer, os vínculos sociais a serem estabelecidos e
referentes à natureza, o estilo de vida, as tecnologias a serem adotadas e os valores
estéticos a serem incorporados. No caminho discursivo empreendido, Harvey (2013) amplia
o debate iniciado por seu inspirador e diz:
O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmo, mudando à cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer
e refazer as nossas cidades, e a nós mesmo é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.
De acordo com o IBGE (2010), o Recife concentra 41% dos assentamentos
precários da RMR, contabiliza 110 assentamentos, com destaca-se Casa Amarela como o
maior assentamento do município, somando 15.215 domicílios particulares. No segundo
plano está Jaboatão dos Guararapes, que registra 64, para em seguida anotar Olinda
representada por 57 assentamentos precários (Tabela 01).
Tabela 1 - CARACTERIZAÇÃO GERAL DOS MUNICÍPIOS DA RMR.
Municípios
(RMR)
População
Dens. Demográfica
(Hab/Km²)
Taxa de Urbanização
(%)
Aglomerados Subnormais
(IBGE) Total Urbana Rural
Abreu e Lima 94.429 86.6 7.8 724,90 91,74 07 Araçoiaba 18.156 15.268 2.888 196,7 84,9 01 Cabo de Santo Agostinho
185.025 167.8 17.2 414,32 90,68 23
Camaragibe 144.466 144.466 ---- 2.821,93 100 11 Igarassu 102.021 93.931 8.090 333,09 92,7 04 Ilha de Itamaracá
21.884 16.993 4.891 328,18 77,65 03
Ipojuca 80.637 59.719 20.918 151,39 74,06 01 Itapissuma 23.769 18.320 5.449 320,19 77,8 02 Jaboatão dos Guararapes
644.6 630.6 14.0 9.068,36 97,8 64
Moreno 56.696 50.197 6.499 289,16 88,54 08 Olinda 377.7 370.3 7.4 9.344,64 98 57 Paulista 300.4 300.4 ---- 3.086,01 100 26 Recife 1.537,7 1.537,7 ---- 7.037,61 100 110 São Lourenço da Mata
102.895 96.777 6.118 392,49 94,05 06
Total RMR 3.693.177 3.591.806 101.371 1.324,92 97,26 323
Fonte: IBGE - Censo Demográfico (2010) e Atlas Brasil (2010)
Dados do Trata Brasil apontam Jaboatão dos Guararapes no 94º lugar no Ranking
do Saneamento, entre aqueles em melhor ao pior situação, nos 100 maiores municípios
brasileiros. É seguida por Olinda (84º), Paulista (81º), Recife (73º), Caruaru (64º)
e Petrolina (45º). Dados da mesma pesquisa mostram que a precariedade da infraestrutura
sanitária, atinge em particular, os assentamentos precários, e mesmo existindo a política de
resíduos sólidos, 70% dos municípios de Pernambuco ainda utilizam lixões. As consequências
aparecem na existência diferentes tipos de doenças convivendo com a população, como:
diarréias, problemas de pele, hepatite A, leptospirose, dengue, chycungunha, além de outras.
Embora a cobertura de água para a população ultrapasse 90%, há uma parcela que não dispõe
de encanada, além daquela que recebe água diariamente. Isso acarreta a necessidade de
armazenamento de água em depósitos desprotegidos, e provoca questões relacionadas à saúde
pública.
No Recife, nos assentamentos precários, vivem cerca de 366.028 mil pessoas, dos
quais somente 5.827 têm acesso, ao mesmo tempo, aos serviços de água e esgoto. No caso de
Olinda a situação se agrava, do total de assentamentos precários (Tabela 1), totalizando 90.810
pessoas, 60.970 não dispõem dos serviços de água e esgoto. Enquanto em Jaboatão dos
Guararapes que responde por 34,7 % da população em assentamentos precários e reúne
238.259 pessoas, contata-se que apenas 108 mil dos habitantes contam com água e esgoto.
Retomando a discussão referente aos indicadores sociais dos municípios
metropolitanos, convém anotar os índices de pobreza angariados, esses apontam Araçoiaba
como de menor IDH-M, representado por 0,592. Merece destaque, ainda, em Araçoiaba,
IDHM-Educação registrando 0,498, mostrando-se elevado quando comparado com os
demais municípios da metrópole, bem como apresenta alta incidência de pobreza (71,82%),
correspondendo a 13 mil habitantes do total de (18.156) da população, enquanto a
indigência atinge (40,29%) (ATLAS BRASIL, 2010). Trata-se do último município a compor a
RMR, ao ser emancipado, em 1995, do município de Igarassu. As atividades e
características desse ente federativo, aproximam mais do rural, uma pequena cidade a
compor o território da metrópole, e situa-se no limite com a Zona da Mata Norte.
Índice de pobreza e de indigência elevado faz parte do município Ipojuca, visto
que mais de 1/4 da população (27,22%) localiza-se na faixa de pobreza, enquanto e 30,20%
respondem pela indigência, ao se adicionar os percentuais, atinge-se mais de 50% de sua
população fixada nesses patamares. Além desse, registra-se são os municípios de
Itamaracá, 60%, de Moreno 57,50%, e de Itapissuma 57,17% que ultrapassam 50% da
população, com altos índices de pobreza.
Dados expressivos em relação à renda percebida desvelam que a maioria da
população metropolitana aufere renda correspondente a meio salário mínimo e um salário
mínimo3 (308.934). Contudo, o acesso a cinco salários ou mais fica é recebido por apenas
60.981 indivíduos. Outro aspecto significativo, diz respeito ao número de pessoas que se
declararam sem rendimentos, correspondendo ao total de 136.246 mil pessoas (IBGE,
2010).
Os dados apontam para a imbricada relação entre habitação e saneamento básico e,
estreita a proximidade com a saúde/doença e o distanciando com o direito à moradia e à cidade.
Além de associar a relação entre a pobreza da população da população, as condições de
moradia e inclusive a ausência de regularização fundiária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão da habitação mantém-se persistente na realidade do país e da Região
Metropolitana do Recife e de seus municípios. Traços da formação social brasileira
3O salário mínimo no ano de 2010, correspondia a R$ 510,00 (quinhentos e dez reais).
associam a dinâmica de crescimento das cidades, desvelando formas de produção e de
apropriação do espaço na produção capitalista.
A desigualdade e a seletividade dos lugares são expressão do distanciamento
ao acesso à moradia e à cidade, enquanto direito humano defendido por Harvey e mostra
que a ação do Estado na estruturação de políticas públicas, termina por direcionar recursos
que favorecem ao processo de acumulação em contraposição ao enfrentamento da questão
da habitação na dimensão e proporção necessária para fazer face às demandas da
ppulação situada na faixa de interesse social.
Assim, sinaliza fortes contradições que se desvelam nos espaços da cidade,
agravando essa situação com o recuo das ações do Estado, ao retomar a política liberal
demarcando a redução do seu papel, por meio das políticas públicas, de formas mais
acentuada nos dois últimos anos, e provocando a dissolução dessas políticas, ao mesmo
tempo em que alargam-se as desigualdade e as demandas por habitação.
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SAÚDE E INTERSETORIALIDADE: os desafios à articulação intersetorial entre
saúde, habitação e saneamento.
Profª. Dra. Maria Dalva Horácio da Costa4
RESUMO Esse artigo aborda os desafios à efetivação da saúde como direito de cidadania, fundamentada no conceito ampliado de saúde, assegurado pela Constituição de 1988, destacando os desafios à construção da intersetorialidade, no contexto de implementação e desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS), ressaltando o papel estratégico da participação social e da gestão democrática e participativa como requisitos inerentes à gestão intersetorial condições essenciais para assegurar a saúde como direito universal e integral. Palavras-chave: Saúde Coletiva; Cidadania; Intersetorialidade; Promoção da Saúde. ABSTRACT This article addresses the challenges to the implementation of health as a right to citizenship, based on the expanded concept of health, guaranteed by the 1988 Constitution, highlighting the challenges to the construction of intersectoriality, in the context of the implementation and development of the Unified Health System ), Highlighting the strategic role of social participation and democratic and participatory management as requirements inherent to intersectoral management conditions essential to ensure health as an universal and integral right. Keywords: Collective Health; Citizenship; Intersectoriality; Health promotion.
1 INTRODUÇÃO
A concepção ampliada de saúde, políticamente conquistada pelo Movimento
Sanitário Brasileiro (MRSB), sistematizada no relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde
(8ª. CNS) e inscrita no arcabouço jurídico-legal a partir da constituição de 1988 (CF. 1988),
atribui às articulações intersetoriais um papel estratégico essencial para efetivar a saúde
como política de seguridade, conforme preconiza a CF de 1988 e a legislação ordinária,
4 Profª. Dra. Maria Dalva Horácio da Costa, docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social (PPGSS/UFRN), Assistente Social, Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Seguridade Social e Serviço Social (GEPSSS-UFRN). E-mail: [email protected]
especialmente a Lei Orgânica da Saúde de nº 8.080/90. Conforme explicitado no relatório da
8ª. CNS:
Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1986, p. 4).
Ressalte-se que esse conceito além de destacar a relação entre a saúde e as
políticas setoriais como alimentação, habitação e meio-ambiente, dentre outras políticas,
incluindo a liberdade e ao vincular todos esses elementos à resultantes da organização
social da produção, aponta ao mesmo tempo para a necessidade de relações democráticas
entre estado e sociedade e para o enfrentamento dos determinantes das desigualdades
sociais como conditio sine qua non para a efetivação da saúde como direito humano em seu
sentido mais abrangente nos termos formulados pelo MRSB.
2 OS SENTIDOS DA INTERSETORIALIDADE ATRIBUÍDOS PELA PERSPECTIVA DA REFORMA SANITARIA BRASILEIRA
Do Artigo 196 ao 200, ao afirmar a saúde como direito de todos e dever do
Estado, a CF de 1988 consagra o conceito ampliado de saúde formulado pelo MRSB,
imputando a garantia do direito à saúde à articulação das políticas econômicas e sociais e
as correlacionando ao âmbito da promoção, proteção e recuperação da saúde.
Art. 196. A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988).
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; VIII- colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Nessa direção, a regulamentação das determinações constitucionais referentes
ao direito à saúde, através da Lei 8.080/90, adensa esse dever do Estado brasileiro e não
apenas do Sistema Único de Saúde (SUS), detalhando o dever de prover as condições
necessárias para a garantia e à produção social da saúde, ratificando o sentido mais amplo
da saúde enquanto direito humano universal, conforme se pode constar nos artigos 2º e 3º:
Art. 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover condições indispensáveis ao seu pleno exercício. §1º - O dever do Estado de garantir a saúde consiste na reformulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução dos riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Art. 3º - A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso a bens e serviços essenciais; os níveis
de saúde da população expressam a organização social e econômica do país. (BRASIL, 1990).
Observe-se que o conjunto do arcabouço constitucional e legislação ordinária,
além de ratificar o sentido mais amplo da saúde enquanto direito humano universal,
enfatizando os determinantes e os condicionantes, dentre os quais a moradia, o
saneamento e o meio-ambiente, concebem a saúde como direito social insculpido como
direito humano essencial que para ser efetivado necessita estar articulado aos demais
direitos sociais e de cidadania, se antecipa e contribui decisivamente para que o direito à
moradia fosse incluído no rol dos direitos sociais fundamentais através da Emenda
Constitucional de nº 26 de 14 de fevereiro de 2000 (EC/26) que alterou a redação do artigo
6º da CF de 1988, significando não apenas incluir a moradia como direito social, mas
ratificar o conceito ampliado de saúde incorporando um das condições básicas para se ter
saúde, que é a moradia:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 20008).
Tais artigos revelam, que as formulações e conquistas do MRSB, em termos de
incorporação do conceito ampliado de saúde, se traduziram no sentido de articulação das
políticas econômicas e sociais, com ênfase no sistema de seguridade social, conferindo-lhe
um sentido mais amplo, ao inscrever a intersetorialidade como elemento concreto implícito à
compreensão da saúde como política de seguridade social, influenciando a CF de 1988 e de
forma mais clara, precisa e concisa na LOS – 8080/90, no Capitulo III, que trata da
Organização, da Direção e da Gestão, especialmente em seu Artigo 12, ao determinar a
criação de comissões intersetoriais:
Art. 12. Serão criadas comissões intersetoriais de âmbito nacional, subordinadas ao Conselho Nacional de Saúde, integradas pelos Ministérios e órgãos competentes e por entidades representativas da sociedade civil. Parágrafo único. As comissões intersetoriais terão a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não compreendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
As influências da 8ª. CNS na CF de 1988 e especialmente no capitulo da
Seguridade Social, ao qualificar a saúde como resultante das condições de vida e como
resultado das formas de organização social da produção, deixa patente a compreensão do
MRSB de que a conquista e a efetivação do direito à saúde, enquanto direito social e de
cidadania, extrapola o âmbito do sistema de saúde e, portanto, tem caráter intersetorial.
Ressaltando que “as modificações necessárias ao setor saúde transcendem aos limites de
uma reforma administrativa e financeira, exigem uma reforma mais profunda”
(BRASIL,1986). Em outros termos, essa reforma mais profunda, consiste na denominada
Reforma Sanitária.
A compreensão e o reconhecimento politico e legal de que a saúde, em seu
sentido mais abrangente é o resultado das formas de organização da social da produção,
associado ao reconhecimento da necessidade de articulação intersetorial expressa na CF
de 1988 e legislação ordinária, assentados no conceito ampliado de saúde formulado pela
8ª. CNS inscrito na legislação em vigor, vão muito além das proposições formuladas pelo
movimento de Atenção Primária de Saúde (APS), e principalmente pelo movimento de
Promoção de Saúde (P.S) na década de 1970, sintetizados na Conferência de Alma Ata em
1978 foram ampliadas e sistematizadas na Carta de Otawa em 1986.
Ao analisar tais movimentos, Schmaller; Vasconcelos (2014:52), enfatizam que a
concepção de P.S presente na literatura e nas práticas em saúde, a situam como “[...] um
nível de atenção da medicina preventiva“, destacam Buss (2000:18) a partir de uma citação
de Leawell; Clark, os quais definem os principais componentes que abrangeriam a PS:
Educação sanitária, bom padrão de nutrição, ajustado às fases do desenvolvimento da vida; atenção ao desenvolvimento da personalidade; moradia adequada; recreação e condições agradáveis de trabalho; aconselhamento matrimonial e educação sexual; genética; exames seletivos periódicos.
O caráter reducionista dessa compreensão, identificado pelo movimento da
medicina social latino americana, demonstram que tal conceito de P. S não é capaz de
apreender os efeitos das condições de vida e trabalho nos níveis de saúde das populações,
conforme corroboram Schmaller e Vasconcelos (2014, p. 52). O próprio movimento da P.S
buscou absorver essa critica, transformando-se em um movimento de Nova Promoção da
Saúde5 (NPS), imbuído da busca para ultrapassar a concepção restrita de saúde, Lalonde
(1986), define 04 amplos elementos integrantes do campo da saúde, dentre os quais, aqui
destacamos o meio ambiente:
5 Surgiu no Canadá nos anos 1970, oficialmente lançado através do documento: ‘A New Perspective on the Health of Canadians’, mais conhecido como Informe Lalonde (Cf. SCHMALLER; VASCONCELOS (2014: 56 Apud. CARVALHO, 2005).
Meio ambiente abrange os fatores relacionados com a saúde que são externos ao corpo humano e sobre o quais tem pouco ou nenhum controle individual (com a qualidade da água e do ar,etc. (SCHMALLER; VASCONCELOS (2014, p. 56 apud. LALONDE, 1996).
Naquele contexto, em âmbito nacional e internacional, a inclusão do meio
ambiente expressa a importância desses elementos enquanto essenciais para a efetivação
da saúde coletiva e individual. Porém, conforme destaca Schmaller; Vasconcelos (2014,
p.58; apud Terris,1996), os dois marcos da NPS, precisamente o Informe Lalonde (1981) e o
Informe Gente Sana (OMS; OPAS, 1996), relaciona a P.S profundamente centrada nos
estilos de vida. Portanto, também constitui um enfoque reducionista.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que a PS e a sua compreensão acerca da
intersetorialidade está diretamente relacionada ao campo dos Determinantes Sociais da
Saúde (DSS), assim denominados desde I CNS do Canadá, realizada em 1981. E, que
ressurge na I Conferência Internacional de Saúde (CIS), vislumbrando a melhoria das
condições de saúde no planeta, passa a vincular o alcance de tal objetivo às seguintes
condições para a promoção da saúde: paz, habitação, educação, alimentação, renda,
ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade.
As dificuldades de incorporar a noção e as estratégias na perspectiva da
intersetorialidade, se faz notar na própria agenda de prioridades da OMS, a qual somente
em 1984, a incorporou na sua agenda de prioridades, como uma estratégia associada a
necessidade de superar abordagens setoriais, como uma das suas 5 metas a serem
recomendas para promover a sua inclusão na agenda de prioridades dos políticos e
dirigentes em todos os níveis e setores. Ainda assim, de fato, somente pós Carta de Otawa
em 1986 e pós 8ª CNS, no Brasil, a OMS, conferiu destaque à estreita relação entre
intersetorialidade e o conceito ampliado de saúde, recomendando a sua inclusão na agenda
governamental.
Além disso, esse processo ocorreu bastante influnciado pelo Movimento Cidade
Saúdáveis, o qual incorpora a perspectiva da P.S e a correspondente compreensão acerca
da intersetorialidade, moldada por uma concepção que “reduz as desigualdades sociais à
exclusão social e a uma mera questão de gestão de planejamento das políticas públicas e
das cidades. Portanto, ignorando as raízes das desigualdades sociais conferindo papel
onipotente às políticas sociais públicas, especialmente as políticas sociais (Cf. COSTA,
2010, p 125).
Ao não considerar que as expressões da questão social que se manifestam em
sua totalidade, ofertando resposta e tratamento setorial, as políticas econômicas e sociais
na sociedade capitalista, ao recortarem as necessidades da população e buscar atendê-las
de forma isolada, fragmentada, setorializada, estão fadadas a iniquidades, ineficiência e
ineficácia de suas ações. (Cf. COSTA, 2010, 2014).
Note-se que o MRSB, se consolidou avançando nas críticas à perspectiva da
P.S e da NPS, sendo capaz de ir além problematizando e teorizando a perspectiva da
determinação social da saúde construindo o paradigma da produção social da saúde, que
na interpretação de Schmaller; Vasconcelos (2014:56), “reivindica mudanças não apenas no
modelo de atenção à saúde, mas na sociedade brasileira como um todo”.
Esses fundamentos constituem o núcleo central das teses do MRSB, cuja luta
política e sanitária se materializou na conquista da saúde como direito de cidadania
ancorado na concepção ampliada sistematizada no relatório da 8ª CNS e inscrita na CF de
1988 e correspondente legislação ordinária, conforme anotamos anteriormente.
Convíctos de que o direito à saúde não se materializa simplesmente pela sua
formalização no texto constitucional, o MRSB, afirma no relatório da 8ª. CNS, que a
efetivação do direito a saúde requer muito mais que a sua formalização constitucional:
Esse direito não se materializa, simplesmente pela sua formalização no texto constitucional. Há, simultaneamente, necessidade do Estado assumir explicitamente uma política de saúde, consequente e integrada às demais políticas econômicas e sociais, assegurando os meios que permitam efetivá-las. Entre outras condições, isso será garantido mediante o controle do processo de formulação, gestão e avaliação das políticas sociais e econômicas pela população. (BRASIL, 1986, p. 4).
Note-se que além de requerer a articulação intersetorial, o MRSB deixou claro
que para dar materialidade a saúde como direito de cidadania, em seu sentido mais
abrangente, conferiu centralidade ao processo de participação da população na formulação,
gestão e avaliação das políticas econômicas e socais. Sinalizando, que a efetivação do
direito à saúde, numa perspectiva intersetorial, requer um novo modo de conceber, planejar,
gerenciar, executar e avaliar as políticas econômicas e sociais.
Em outros termos, requer uma perspectiva transsetorial e interdisciplinar, o que
exige adensar, incorporar a perspectiva da gestão descentralizada, democrática e
participativa, não apenas na saúde, mas em todas as áreas com as quais tenha interface.
Por essa razão, incide sobre o modo de organizar a produção e as relações entre Estado e
sociedade.
Nesse sentido, podemos inferir que pós 8ª. CNS e a partir da CF de 1988, a
intersetorialidade se afirma como um dos principais eixos da seguridade social à medida que
é representada pela exigência de que o Estado assuma a responsabilidade por uma política
de saúde integrada às demais políticas sociais e econômicas e garanta a sua efetivação,
vinculando a saúde a luta por condições de vida dignas e pelo exercício pleno da cidadania.
Porém, no plano gerencial e tático-operacional não se tem avançado na perspectiva da
intersetorialidade.
3 POR QUE NÃO SE TEM AVANÇADO NA PERSPECTIVA DA INTERSETORIALIDADE?
Embora se reconheça que o desenvolvimento de políticas intersetoriais constitui
um grande desafio à gestão das cidades e das políticas sociais públicas, observa-se que tal
reconhecimento teórico e político, em geral, não tem se traduzido em passos concretos na
perspectiva da gestão interseotorial, particularmente quando falamos de saúde, habitação e
saneamento as dificuldades e desafios são cada vez mais patentes.
Partimos da premissa de que atuar efetivamente de forma intersetorial requer
um novo modo de governar, capaz de superar a lógica setorial, mas necessariamente
afronta poderes e culturas institucionais tradicionais.
Reiteramos a nossa afirmação de que, no campo da saúde coletiva, atuar
intersetorialmente requer desenvolver a capacidade de combinar, articular, conectar ações e
serviços no sistema de proteção social e de seguridade social a partir de objetos e objetivos
comuns, à luz do Projeto da Reforma Sanitária. (Cf. COSTA, 2010).
Nessa linha de interpretação, afirmamos que a intersetorialidade constitui-se
estratégia para efetivar os direitos sociais e especialmente para assegurar a integralidade da
atenção à saúde, em sentido ampliado, podendo ser identificada como integralidade
ampliada. (Cf. COSTA, 2010).
Assim, sendo, chama à atenção para o fato de que não é à toa, que pouco se
registra a criação de comissões intersetoriais, conforme, por exemplo, tem ocorrido em
relação as políticas de habitação, saneamento e saúde, embora sejam políticas com
notórias necessidades de interfaces no financiamento, planejamento, execução e avaliação.
Reafirmamos que a intersetorialidade constitui uma das formas de dar
materialidade à necessidade de uma nova forma de abordar, atuar e responder a
necessidades de saúde, considerando a determinação social da saúde, os determinantes e
condicionantes, razão pela qual, mais que uma estratégia, a intersetorialidade configura uma
nova forma de abordar, organizar serviços e conceber a gestão pública. (COSTA, 2010).
Enquanto para a OMS, “[...] a intersetorialidade na saúde se constitui em
estratégia que busca superar a ótica fragmentada que orientou a formação do setor”. Para o
MRSB, representa a possibilidade de interferir nos determinantes e condicionantes do
processo saúde doença.
Para Costa (2010), apud Costa; Pontes; Rocha (2006, p 105) a intersetorialidade
se caracteriza pela atuação em conjunto com outros setores ou partes desses tendo em
vista resultados mais afetivos do que poderiam ser alcançados pela saúde isoladamente.
Ressalta-se nesse conceito que a prática da intersetorialidade está referida aos modos de
atuação entre os setores, não eximindo as responsabilidades de cada um dos setores nem
anulando a importância da singularidade da ação e das práticas setoriais. O reconhecimento
do domínio e das especificidades dos setores interligados em intenções e práticas comuns
talvez constitua um dos princípios para a relação intersetorial.
Nessa perspectiva, o que caracteriza a intersetorialidade é a possibilidade de
síntese de práticas. No entanto, sua possibilidade está na faculdade de reconhecimento dos
limites do poder e de atuação dos setores, pessoas e instituições. Este reconhecimento de
insuficiência não é propriamente uma facilidade para os humanos, especialmente para quem
goza das condições oferecidas pelo poder institucional. A implementação da
intersetorialidade depende, mesmo que circunstancialmente, de uma organização matricial,
na qual a referência seja a lógica de atuação dos problemas. (Cf. COSTA; PONTES;
ROCHA, 2006, p. 106-107).
Notadamente, a intersetorialidade ao requerer atuação conjunta, que só é
possível com efetiva participação integrada dos setores e segmentos envolvidos e
interessados, reiteramos que “[...] a intersetorialidade refere-se ao que pode e deve ser feito
em conjunto pelos diversos setores que têm interface com a saúde”. Portanto, não é um
mero somatório de partes, mas ação coordenada, conjugada e compartilhada sobre um
objeto comum e com determinada direção social e/ou intencionalidade. Aqui, compreendida
na perspectiva do Projeto da Reforma Sanitária Brasileira (PRSB), que se vincula a um
projeto societário com vistas a uma democracia de massas (COSTA, 2014).
Conforme Costa (2010), se por um lado, grande parte das demandas que
chegam ao SUS, traduzidas em necessidades de consultas, exames, medicamentos e
internamentos tem uma clara relação com a ausência ou insuficiência no acesso a direitos
básicos de cidadania, dentre os quais se destaca a moradia e o saneamento básico. Por
outro, ao longo do processo de implementação e desenvolvimento do SUS registra um
grande avanço na sua capacidade de ofertar consultas, exames, cirurgias e outros
procedimentos curativos individuais e poucos avanços em relação a sua capacidade de
atuar na perspectiva da vigilância em saúde, donde se inclui as articulações de natureza
intersetorial, o que exigiria superar o modelo gerencial e assistencial privatista, médico-
hegemônicos e procedimento-centrado.
Ressalte-se que esse modelo gerencial e assistencial hegemônico é sustentado
pelos fortes interesses dos beneficiários do projeto: a indústria farmacêutica, de
equipamentos, de insumos biomédicos e dos prestadores privados que monopolizam a
prestação de serviços, incluindo as cooperativas médicas e empresas de apoio ao
diagnóstico, conformando um poderoso bloco com capacidade para manter o SUS refém de
seus interesses redirecionando o papel do Estado, ao estilo da inciativa privada, agravados
com a Lei nº Lei 13.097/2015, que libera a hegemonia da participação do capital extrangeiro
na prestação de serviços no Brasil, subordina o SUS ao primado do contrato cujo negócio é
a compra de procedimentos. E, seu sucesso a quantidade de procedimentos
ofertados/executados.
Portanto, cada vez mais distante do SUS constitucional, cuja responsabilidade é
atuar na perspectiva de conjugar promoção, proteção e proteção, com prioridade para as
ações de promoção e prevenção através de uma gestão democrática e participativa,
conforme o artigo 198 da CF de 1988 e respectiva regulamentação através da Lei 8.142/90.
Também não é por acaso, que a incipiente incorporação da intersetorialidade no
campo da gestão pública e particularmente no contexto de implementação e
desenvolvimento do SUS, ocorre diretamente relacionado aos frágeis avanços nos
processos organizativos da sociedade brasileira, sendo reproduzido até mesmo nos
espaços de participação social, tendo em vista que os conselhos de políticas setoriais,
também atuam isoladamente e setorialmente.
Em outros termos, a própria sociedade organizada, sobretudo os representantes
do segmento dos usuários e dos trabalhadores dos sistemas e serviços que implementam
as políticas sociais, ainda não atuam de forma conjunta com capacidade propositiva e
articulação política capaz de reverter a correlação de forças hegemônicas que presidem a
condução da gestão públicas e das políticas econômicas e sociais. Mesmo com tantas
limitações, os espaços de controle social do SUS, sofrem ataques, e têm resistido
bravamente, em defesa do SUS, público, estatal e em defesa da vida. Assim, a sua
ampliação e fortalecimento são essenciais para a afirmação do Projeto da Reforma Sanitária
Brasileira (PRSB), que depende essencialmente da ampliação das articulações intersetoriais
também entre os espaços e instâncias de controle social com os movimentos social, sindical
e popular no sentido de avançar na compreensão da saúde em sentido ampliado.
Afinal, atuar intersetorialmente significa compartilhar poderes, saberes, recursos
em uma arena permeada por conflitos de interesses inerentes aos ideais e projetos
societários a que se vinculam os participantes dos processos de gestão no processo de
implementação das políticas públicas no contexto do Estado democráticos de direito.
Portanto, requerem a afirmação do primado da gestão participativa e da
democracia como valor central das relações Estado sociedade, na perspectiva da afirmação
dos direitos políticos, civis, trabalhistas e sociais como condição essencial para afirmar os
interesses coletivos e a proteção social dos cidadãos. Razão pela qual, os atuais ataques ao
Estado democrático de direito, que se traduziram no golpe parlamentar, tem como alvo
principal a redução dos direitos sociais e trabalhistas, aprofundando os processos de
privatização da saúde e da previdência social (capitalização através da acelerada expansão
dos fundos de pensão), como mecanismos para promoverem a apropriação do fundo
público pelo capital monopolista, sob hegemonia do capital financeiro.
4.. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que para efetivar a saúde como direito de todos e dever do estado,
com base no conceito ampliado de saúde preconizado pela 8ª CNS e legalmente
assegurado pela CF de 1988 e legislação ordinária, ancorada em uma gestão intersetorial, é
absolutamente necessário criar e fortalecer os espaços de participação social, portanto
requer e avançar na perspectiva da gestão participativa.
Para construir esse modelo gerencial intersetorial, por sua vez, requer
reconhecer que as necessidades de saúde de um indivíduo ou coletividade, também
dependem de respostas que não são da estrita responsabilidade do SUS, vincula-se ao
dever do Estado brasileiro de garantir a saúde e não apenas do SUS, principalmente de
promover e proteger a saúde como direito de cidadania.
Nesse sentido, ainda que restrita aos fatores determinantes da saúde e não
alcance dimensões da estrutura social excludente, no que diz respeito à saúde, agir
intersetorialmente significa invocar o dever do Estado de garantir a saúde, o próprio direito à
vida lançando mão dos diversos poderes do Estado brasileiro, para atuar de forma conjunta
na perspectiva de prover as ações e condições necessárias, dentro e fora do sistema de
saúde, com vistas à garantia do direito à saúde, universal, integral e sob controle social.
Assim, mais que desencadear um processo de incorporação de medidas
intersetoriais que possam deslocar o atual tratamento dispensado - reduzido à ação ou
atividade, em direção à construção de ações estratégicas incorporadas ao planejamento em
saúde, como política de seguridade, requer que a responsabilidade da gestão dos três entes
federados transitem e sejam capazes de articular o Estado brasileiro em sentido amplo, que
do ponto de vista do Projeto da Reforma Sanitária Brasileira requer:
1) Inverter a cultura política das soluções individuais, de que são exemplos: a
segurança privada X ausência de defesa social; Planos privados de saúde, em
vez de fortalecer o SUS público/estatal sob controle social; Incentivos à
aquisição de automóveis para uso particular, em vez de ofertar transporte de
massa de qualidade; Poços artesanais e compra de água mineral água de
qualidade ofertada pelo sistema público de água e esgoto. Enfim, requer o
combate a soluções que privatizam e mercantilizam a vida e a reduz ao poder de
compra de cada um.
2) Reafirmar e avançar em direção a ampliação dos espaços coletivos fundados na
rés-publica (coisa de todos). E, portanto na defesa e construção de uma
democracia de massas, tendo como exemplo a defesa do SUS Estatal, universal
e em defesa da vida. Portanto contra a mercantilização da saúde e da vida.
Ademais, se faz necessário compreender que as demandas de natureza
intersetorial, indicam a necessidade, em nível imediato, de lutarmos contra o
subfinanciamento das sociais públicas, especialmente as políticas voltadas para segurança
e seguridade social do cidadão, cujos sistemas e serviços cada vez mais tem sido
desmontado, em grau proporcional ao aprofundamento das privatizações.
No caso da saúde, a expansão do acesso a serviços curativos e individuais tem
se dado mediado pela compra/contratualização de serviços, os quais, ainda que com base
em metas, tende a reduzir as ações à oferta de procedimentos e consomem a grande
maioria dos recursos nas ações curativas individuais, inviabilizando as ações voltadas para
a promoção e a prevenção da saúde.
Essa lógica tem induzido a condução das políticas públicas cada vez mais longe
da concepção de que o dever do Estado brasileiro de garantir a saúde requer ações amplas
para além do próprio campo da seguridade social legalmente instituído.
Conclui-se que, incorporar a intersetorialidade, mais que uma decisão política,
constitui uma necessidade e condição fundamental para a efetivação do direito à saúde em
sentido amplo. Seu papel estratégico vincula-se ao requisito de avançar em medidas
capazes de produzir efetivos impactos nas condições de vida da população. Por isso,
incorporar a intersetorialidade, necessariamente, requer desde efetivas mudanças no
modelo assistencial e gerencial, avançando no sentido de que se estabeleçam pactuações
conjuntas nos momentos de formulação e aprovação dos plano anuais, plurianuais e
previsão orçamentária.
No caso da habitação e do saneamento urge a criação de comissões
intersetoriais nos espaços dos conselhos de saúde e nos colegiados de gestão nos níveis
estadual, municipal, regional e distrital, de forma a pautar e deliberar as questões que
envolvem simultaneamente saúde, habitação e saneamento.
Sobretudo requer fortalecer os sujeitos coletivos como condição para avançar na
perspectiva de práticas moldadas pela intersetorialidade com vistas à consolidação do SUS
como sistema e política universal de seguridade social. Pode se constituir estratégia capaz
de portar potencial prático, tácito operacional e teórico-político capaz de contribuir para
acirrar as lutas em prol de profundas alterações nas relações de poder e de apropriação das
riquezas socialmente produzidas.
Por isso, avançar na perspectiva intersetorial, requer combate a mercantilização
da saúde e da própria vida! Nesse sentido, tem potencial para corroborar no acirramento
dos conflitos que perpassam a luta para abolir a propriedade privada e a sociedade de
classes.
REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13097.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017. BRASIL. República Federativa do Brasil. Emenda Constitucional de nº 26. Brasília, DF, Senado, 14 de fevereiro de 2000. BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br/legislacao>. Acesso em: 15 jun. 2017. BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br/legislacao>. Acesso em: 15 jun. 2017. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. ______. Relatório da 8ª conferência nacional de saúde. Brasília, março de 1986. COSTA, Maria. Dalva Horácio da. PAIVA, Amanda Santos de. Ataques à política de saúde em tempos de crise do capital. In. Revista de Políticas Públicas, v. 20, n. 1 Jan/Jun. São Luis: EDUFMA, 2016. p. 75-84. COSTA, Maria Dalva Horácio da. A intrínseca relação entre intersetorialidade e promoção da saúde. In. Por uma crítica da promoção da saúde: contradições e potencialidades no contexto do SUS. VASCONCELOS, Kathleen Elane Leal de; COSTA Maria Dalva Horácio da (Org.). São Paulo: HICITEC, 2014. ______. Serviço social e intersetorialidade: a contribuição dos assistentes sociais à construção da intersetrialdiade no cotidiano do Sistema único de Saúde. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE. Recife, 2010. VASCONCELOS, K. E. L; SCHMALLER, V. P. V. Promoção da saúde: polissemias conceituais e ideopolíticas. In. Por uma crítica da promoção da saúde: contradições e potencialidades no contexto do SUS. VASCONCELOS, Kathleen Elane Leal de; COSTA, Maria Dalva Horácio da (Org.). São Paulo: HICITEC, 2014.
POLÍTICA DE SANEAMENTO: desafios no contexto de desconstrução das políticas
públicas do Estado
Prof. Dr. Ronald Fernando Albuquerque Vasconcelos6
RESUMO Este artigo objetiva examinar a questão do saneamento, no contexto atual da crise do Estado brasileiro. Busca-se apresentar a problemática do setor e os principais desafios a serem superados face ao elevado déficit dos serviços e a forte redução dos investimentos em saneamento. Intrinsecamente relacionado com o saneamento encontra-se a questão, não resolvida da habitação, para as famílias de baixa renda. Saneamento e habitação são problemas não resolvidos que remontam ao século XIX. Os impactos decorrentes impõem fortes consequências na qualidade de vida da população. São, portanto, desafios a serem superados para melhoria das condições de vida nas cidades brasileiras. Palavras Chaves: Política de Saneamento; Política de Habitação; Desafios das Políticas Públicas.
ABSTRACT This article aims to examine the issue of sanitation in the current context of the Brazilian state crisis. It seeks to present the sector's problems and the main challenges to be overcome in the face of the high deficit of services and the strong reduction of investments in sanitation. Intrinsically related to sanitation lies the unresolved issue of housing for low-income families. Sanitation and housing are unresolved problems dating back to the nineteenth century. The resulting impacts have a strong impact on the quality of life of the population. They are, therefore, challenges to be overcome to improve Keywords: Sanitation Policy; Housing Policy; Public Policy Challenges.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo examinar a problemática do setor de saneamento
no Brasil, no contexto atual da crise do Estado vivida pelo país. Após a formulação e
aprovação da nova política de saneamento, há cerca de uma década, o elevado déficit dos
6 Engenheiro Civil, Professor do Departamento de Arquiteura e Urbanismos da Universidade Federal de Pernambuco - Recife-BRASIl. Pesquisador do NEPHSA/UFPE.
serviços de saneamento continua a ser um desafio não superado das cidades brasileiras,
que tem forte interface com a questão da habitação para as camadas de baixa renda.
Inicialmente busca-se apresentar a problemática do setor e os principais
desafios a serem superados num contexto de elevado déficit dos serviços e de forte redução
dos recursos disponibilizados para implementação da política de saneamento.
Na segunda parte busca-se mostrar de forma sucinta como a problemática do
setor de saneamento está intrinsecamente relacionada com a questão da habitação,
também uma questão, também, não resolvida para as famílias de renda até três salários
mínimos e abaixo da linha da pobreza.
Na parte final do artigo, procura-se apresentar os principais desafios a serem
superados, no contexto atual de crise fiscal, para a execução da política de saneamento,
bem como indicar diretrizes para a superação do imobilismo atual, visando à melhoria das
condições de vida da população alvo nas cidades brasileiras.
2 QUADRO GERAL DA SITUAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO NO BRASIL7 O Brasil é um país continental, marcado por desequilíbrios socioeconômicos,
refletidos na repartição desigual do produto e da renda, ao que se somam as dificuldades de
acessos aos serviços básicos por segmentos expressivos da população.
A demanda por serviços de saneamento é determinada pelo crescimento da
população total, e no caso brasileiro pelo crescimento da população urbana, pois é nas
cidades onde está a maior parte da demanda e os principais problemas decorrentes da falta
dos serviços e de suas inter-relações com as questões de saúde e habitação.
Desde os anos 1970, tem ocorrido uma diminuição no número de pessoas por
domicílio urbano, que registrou o valor de 5,07 naquela década e estima-se chegar a 3,60,
no final da década atual, o que acarretará uma maior demanda por serviços de saneamento.
A evolução do PIB do país permite identificar a capacidade de geração de
recursos. No pós-guerra o PIB brasileiro registrou valores elevados até a década de 70 e, a
partir daí, devido à crise econômica vem apresentando taxas modestas de crescimento, o
que indica uma dificuldade na geração de recursos para fazer face à cobertura dos serviços.
Em termos de distribuição de renda, os dados do IBGE demonstram a
perversidade da situação, com 21,4% das famílias sobrevivendo com renda igual ou inferior
a um salário mínimo, fato agravado pela atual crise. A concentração de é brutal: os 5% mais
ricos ficam com 36,6% da renda nacional enquanto os 40% mais pobres com apenas 7,2%.
7 Para uma ampla visão da problemática do setor ver: Ronald F. A. Vasconcelos, Enigma de hidra, 2011.
Destes dados pode-se inferir que, uma parcela expressiva da população tem
limitações fortes em sua capacidade de pagamento pela prestação de serviços. E, isto
acontece justamente naquela parcela da população na qual o desatendimento é maior.
Os indicadores de população, PIB e renda indicados são significativos. Se os
indicadores da população são positivos, no sentido de que a diminuição no seu crescimento
acarretará uma menor demanda; por outro lado, o baixo PIB e a distribuição de renda
mostram as dificuldades para o financiamento.
No que diz respeito à prestação dos serviços, a mesma está concentrada em 25
Companhias Estaduais de Saneamento, que prestam serviços de abastecimento de água,
em 3.887 municípios – 91,5% do total do país, atendendo a uma população de 94,5 milhões
de habitantes, que representa 73,3 % da população urbana do país e uma cobertura média
nos municípios atendidos pelas CESBs de 91,3%.
Nos serviços de esgotamento sanitário os níveis de atendimento são muito
menores. As CESBs são responsáveis pelos serviços de esgotamento sanitário em 893
municípios, cerca de 81,6% do total. Como observa Abicalil (2002, p. 14):
[...] geralmente as CESBs atendem em esgotos as capitais e as maiores cidades dos respectivos estados. Isso explica porque, apesar de atenderem poucos municípios, o número de habitantes atendidos alcança os 40,0 milhões, ou cerca de 50% do total de pessoas servidas por redes coletoras no país.
Os prestadores de abrangência Microrregional e Local são quantitativamente em
número de 7 e 342, respectivamente. Os primeiros prestam serviços de abastecimento de
água e esgotamento sanitário em 20 e 11 sedes municipais, respectivamente, enquanto os
segundos respondem pelo atendimento de água em 341 municípios e 190 em esgotos.
Estas duas classes de prestadores de serviços, são, na sua maioria, serviços municipais,
que estão em grande parte organizados sob a forma de autarquia.
Embora muito se tenha falado em privatização no Setor de Saneamento, a
participação do Setor Privado é, atualmente, incipiente. Esta participação limita-se a 210
concessões municipais, concentradas na região Sudeste, em cidades de porte médio.
Os serviços operados pelos municípios com apoio da FUNASA são aqueles de
pequeno porte de cidades interioranas. Não se restringem às sedes dos municípios,
registrando-se mais de duas localidades atendidas por municípios. A operação dos serviços
é de responsabilidade dos denominados Serviços Autônomos de Água e Esgoto (SAAE).
O atendimento de água e esgotamento sanitário no Brasil está distante da
universalização. Quando se leva em conta o grau de desenvolvimento do país, persiste uma
considerável demanda não atendida, especialmente nos estratos de baixa renda.
De acordo com a PNSB, os índices de atendimento pelos serviços de abastecimento
de água, por meio de ligações domiciliares às redes, alcançaram, em 2000, o percentual de
89,8% domicílios urbanos. No que se refere ao esgotamento sanitário, apenas 56% destes
domicílios estão ligados às redes coletoras (exclusivas ou conectadas a drenagem pluvial),
número que se eleva para 62,0% quando se considera a solução de tratamento em fossa
séptica como adequada. Assim, o déficit de abastecimento de água atinge os 10 milhões de
domicílios, e mais de 30 milhões não estão conectados às redes coletoras de esgotos.
Quadro Nº 01. Evolução da cobertura dos serviços de água e esgotos no Brasil - %
INDICADORES 1970 1980 1990 2000 Abastecimento de Água
Domicílios urbanos – rede de distribuição 0,5 9,2 6,3 9,8
Esgotamento Sanitário
Domicílios Urbanos – rede de coleta 2,2 7,0 7,9 6,0
Domicílios urbanos – fossas sépticas 5,3 2,9 0,9 6,0
Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1970, 1980, 1990 e 2000, In: Vasconcelos (2011).
Os índices apresentados não são muito diferentes dos apresentados pela última
amostra de dados processados pelo SNIS. De fato,
[...] em 2004, o índice de atendimento dos prestadores de serviço do SNIS foi de 95,4% para água, 50,3% para coleta de esgotos e 31,3% para esgotos tratados (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005, p. 78).
As desigualdades regionais também estão explicitas nas carências dos serviços de
saneamento. Nas regiões mais pobres do país, no Norte e Nordeste, os índices de
atendimento são inferiores àqueles verificados nas regiões Sul e Sudeste. Na Região Norte,
o déficit em abastecimento d’água chega a ser quase cinco vezes o da Região Sul, que
junto com o Sudeste apresenta déficits inferiores à média nacional (ver Quadro a seguir).
Quadro Nº 02 – Distribuição regional dos déficits em saneamento básico
Região N° de Domicílios
Abastecimento de Água Esgotamento Sanitário – rede e fossa séptica
Déficit Déficit % Déficit Déficit %
Norte 2809912 1460770 51,99 1809015 64,38
Nordeste 11401385 3832238 33,61 7074641 62,05 Sudeste 20224269 2360528 11,67 3573507 17,67 Sul 7205057 1436542 19,94 2609759 36,22 C. Oeste 3154478 845630 26,81 1867729 59,21 Brasil 44.795.101 9.935.708 22,18 16.934.651 37,80
Fonte: IBGE, Censo 2000, In: Vasconcelos (2011).
Nove estados localizados nas regiões Sul, Sudeste, Centro Oeste e Norte,
apresentam índice de atendimento em abastecimento d’água na faixa de 80% a 90%8,
enquanto na faixa de 60% a 80% encontram-se 10 estados localizados em sua maioria na
8Estes estados são: Amazonas, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul.
Região Nordeste9. Na faixa de índice menor que 40% registra-se apenas o estado de
Rondônia, e na faixa maior de 90% estão Mato Grosso do Sul, São Paulo e o Distrito
Federal.
No tocante ao índice de atendimento total com coleta de esgotos, os dois
estados têm melhores índices (>70%), são: São Paulo e o Distrito Federal. Na pior faixa
(<10%) encontram-se cinco estados: Rondônia, Pará, Amapá, Tocantins e Piauí.
Na segunda melhor faixa (40% a 70%) estão outros dois estados do Sudeste (Minas Gerais e Rio de Janeiro), com os demais estados distribuindo-se nas outras duas faixas, sendo 8 entre 20% e 40%
10 e 10 na faixa de 10 a 20%
11 (MINISTÉRIO DAS
CIDADES, 2005, p. 80).
A implantação de sistemas de água e esgotamento produz externalidades
positivas. Entre os impactos positivos estão a redução nos casos de doenças como: a febre
tifóide, esquistossomose, disenteria bacilar, amebíase, gastroenterites e infecções cutâneas.
A incidência de doenças por veiculação hídrica, bem como os maiores
coeficientes de mortalidade infantil, são maiores nas regiões menos desenvolvidas do país e
nos municípios de menor renda. O quadro apresentado a seguir, permite fazer esta
constatação.
Quadro Nº 03 – Internações hospitalares provocadas por doenças relacionadas com a falta de
saneamento – regiões / Brasil – 1995 a 1999. CAUSAS DE INTERNAÇÕES REGIÕES BRASIL
N NE SE S CO Doenças Infecciosas Intestinais (*)
385.226 1.508.658 729.210 439.182 206.003 3.268.279
Doenças Transmitidas por vetores e reservatórios (**)
117.279 29.299 14.100 4.564 11.395 176.637
Fonte: Abicalil, Marcos Thadeu (2002).
Conforme se apresenta no Quadro Nº 03, as internações hospitalares
provocadas por doenças relacionadas à ausência ou insuficiência de saneamento
representam, no Nordeste 44%, do total do país, enquanto na Região Sudeste este número
é de apenas 21%, evidenciando assim a correspondência entre o déficit dos serviços de
saneamento e a maior incidência de doenças decorrente da ausência dos serviços, quando
se compara os déficits de água (62% e 33%) e esgotos (18% e 12%) nestas duas regiões,
respectivamente.
Em vista do exposto, para se atingir a universalização dos serviços, superando
os desafios impostos pela demanda não atendida, é fundamental que se priorize os
investimentos com subsídios ficais no atendimento às populações de baixa renda,
9Nesta faixa encontram-se: Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe,
Bahia, Amapá e Santa Catarina. 10
São eles: Ceará, Paraíba, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul. 11São eles: Amapá, Amazonas , Acre, Maranhão, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina.
modernize-se, aumente-se a eficiência e capacidade de alavancagem de recursos para
investimento, buscando formas adequadas de financiamento dos investimentos necessários.
No tocante às receitas e despesas, em 2004, os prestadores de serviço
participantes do SNIS, tiveram uma receita total de R$ 17, 3 bilhões e despesas totais de R$
16,4 bilhões. Do valor da receita total, 81,5% correspondem às CESB, enquanto 18,5%
correspondem aos demais prestadores de serviço. Já com relação às despesas, observa-se
uma distribuição proporcional às receitas entre os subconjuntos de prestadores de serviço,
ou seja, 82,9% correspondem aos prestadores regionais e 17,1% aos demais.
Cabe destacar que, entre os prestadores de serviço regional, que são
constituídos pelas CESBs, 12 delas tiveram as receitas superiores às despesas, num
percentual da ordem de 3,7%, demonstrando o esforço que tem sido feito, nos últimos anos,
por estas empresas no sentido de atingir o equilíbrio financeiro, estando incluídas nesta
situação: SANEATINS/TO, CAERN/RN, CAGECE/CE, COMPESA/PE, DESO/SE,
CEDAE/RJ, CESAN/ES, COPASA/MG, SABESP/SP, CASAN/SC, SANEPAR/PR e
SANEAGO/GO. Por sua vez, entre os serviços locais, cerca de 67%, estão em situação
semelhante.
A composição das despesas totais dos serviços é, para efeito de apropriação,
desagregada nos tipos: despesas de exploração (DEX); depreciação, provisão e
amortização (DPA); serviço da dívida; despesas ficais ou tributárias; e outras despesas. No
Quadro, a seguir estão os percentuais por tipo de despesa para as CESBs e serviços locais.
Quadro Nº 04 - Composição média das despesas totais com os serviços (DTS) dos prestadores de
serviços participantes do SNIS
Tipo de despesa Participação na DEX
Regional Local
DEX (despesa de exploração) 68,0% 84,0% DPA (depreciação, provisão e amortização) 17,1% 5,9%
Parcela do Serviço da dívida (*) 9,3% 3,9% Despesas fiscais ou tributárias 3,1% 1,1% Outras despesas 2,6% 5,1%
Fonte: SNIS (2004). (*) Parcela do serviço da dívida que compreende juros e encargos mais variações monetárias e cambiais.
O peso das despesas de exploração corresponde a maior parcela na
composição do custo dos serviços, item que se apresenta menor nas CESB e maior nos
serviços locais, o que se deve ao fato de que os serviços locais, por serem autarquias,
contam com recursos fiscais para investimento e, em geral, não contabilizam a DPA.
O Quadro a seguir, mostra os tipos de despesas desagregadas de exploração
(DEX). Entre estas despesas, a de maior peso refere-se aos gastos com pessoal, tanto nas
CESBs (41,2% do total) quanto nos serviços locais (39,4% do total). Os demais itens com
maior peso são os serviços de terceiros, que inclui, inclusive, a contratação de mão de obra
terceirizada (aumentando o peso das despesas com pessoal) e o gasto de consumo de
energia elétrica, que, não raro, assume o segundo lugar em algumas CESB, principalmente,
nas que atendem áreas no semiárido do NE, que operam adutoras de influência regional.
Quadro Nº 05 - Composição das despesas de exploração (DEX) dos prestadores de serviços participantes
do SNIS
TIPO DE DESPESA
PARTICIPAÇÃO NA DEX Regional Local
Pessoal próprio 41,2% 39,4%
Produtos químicos 3,2% 4,0% Energia elétrica 15,4% 17,4% Serviços de terceiros 17,8% 19,0% Água importada 0,3% 5,9% Despesas fiscais ou tributárias 10,7% 4,9% Outras despesas 11,4% 9,4%
Fonte: SNIS (2004).
As despesas com pessoal, conforme SNIS (2004), indicam para as CESBs uma
despesa média anual por empregado de R$ 51,4 mil, com máximo de R$ 90,2 mil. Os
serviços locais tiveram uma despesa média anual por empregado de R$ 24,3 mil, menos da
metade do gasto das CESBs, o que permite os serviços locais praticarem tarifas menores.
Outra despesa que cabe registro são as despesas fiscais e tributárias, cujo
montante em 2004 foi de R$ de 1,6 bilhões, dos quais 90,3% pagos pelas CESBs. Isso
indica que o Setor de Saneamento aporta fortes recursos para o governo. Esse elevado
montante de tributos pagos pelas CESBs, leva alguns especialistas a considerarem as
autarquias como a melhor solução do ponto de vista financeiro, dispensadas de pagar uma
série de obrigações fiscais, mas lhes “engessam” os procedimentos administrativos.
Quanto aos investimentos, os anos 70 foi o período de maiores investimentos,
alcançando a taxa média de 0,34% do PIB. Nos anos 80 a taxa caiu para 0,28% do PIB e
nos 90 para 0,13%. A maior taxa foi 1981, 0,41%, e a pior, 1994, com 0,07%.
Em 1995, se iniciou uma reversão da tendência de queda dos investimentos,
chegando a um valor de 0,38% do PIB, em 1998. Mas, em 1999, voltaram a cair para 0,25%
do PIB, e somente em 2002 se verificou uma retomada, que despencou em 2015.
Na série dos investimentos realizados na última década, a Região Sudeste
respondeu por 47,7% do total. Do total de recursos investidos (R$3,1 bilhões), 50,1% foram
recursos próprios dos prestadores de serviço, 20,4% recursos onerosos, 20,15% recursos
não onerosos e só 9,4% foram despesas capitalizáveis, indicando a tendência das CESBs
de se financiarem com os próprios recursos.
É importante destacar que, a realização dos investimentos por região tem sido
inversamente proporcional à demanda. Como observa Abicalil (2002, p. 20),
[...] nos estados onde o déficit dos serviços é maior, menor é capacidade das empresas estaduais em alavancar financiamentos, dificultando ainda mais a universalização nestes estados.
Nestas circunstâncias, a alocação dos investimentos com recursos fiscais tem sido
priorizado para as regiões com maiores déficits, conforme pode ser visto no Quadro a
seguir. Mas deve-se destacar que, os investimentos fiscais, sozinhos, não são capazes de
financiar todos os investimentos necessários à universalização.
Quadro Nº 06 - Distribuição de investimentos totais e fiscais por região - %
Regiões Investimentos totais 1995-99 CESBs
Distribuição investimento fiscal
Participação relativa investimentos fiscais
Norte 1,2 14,0 67,6 Nordeste 9,7 54,4 36,2
Sudeste 47,6 8,1 2,2 Sul 26,4 12,3 10,1 C. Oeste 15,0 11,1 19,4
Fonte: SNIS (2004)
Assim, para superação do desafio da universalização faz-se necessário um
investimento maior do que o que vem sendo realizado. Para o que são estratégias centrais:
aumento da eficiência na prestação dos serviços; definição de novos mecanismos de
financiamento pela iniciativa privada; aperfeiçoamento do gasto público fiscal na adoção de
políticas compensatórias (através de subsídios fiscais da União para os mais pobres).
A perda de faturamento é um indicador importante para as avaliações de
desempenho das empresas. É um indicador bastante utilizado pela facilidade de percepção
por parte dos técnicos, dirigentes e o público em geral. O índice médio de perdas de
faturamento do conjunto dos prestadores de serviço foi de 40,4%, indicando que há espaço
para melhoria, em ações como hidrometração que trazem drásticas reduções nas perdas.
Em apenas três estados brasileiros e o Distrito Federal (Paraná, Minas Gerais,
Distrito Federal e Tocantins) a perda encontram-se na melhor faixa, <30%, enquanto outros
três estados da região Norte (Acre, Amazonas e Amapá) situam-se na pior faixa, >70%. Há
ainda outros sete estados na faixa entre 50,1% e 70%.
De acordo com o SNIS (2004), a tarifa média cobrada pelos serviços de água e
esgotos no Brasil foi de R$ 1,47/m3. O comportamento da tarifa média guarda semelhanças
às despesas médias destes mesmos prestadores de serviços. Observe-se que, em 2004, as
CESBs apresentam uma despesa média de R$ 1,57/m3, enquanto os serviços locais tiveram
este valor menor da ordem de R$ 1,05/m3, o que se justifica pela necessidade de cobrir
despesas que também são menores. Estes mesmos prestadores de serviço praticaram
tarifas médias de R$ 1,58/m3 e R$ 1,11/m3, respectivamente.
Por fim, cumpre destacar que, apenas 1/3 das CESB adotaram a tarifa social,
como forma de beneficiar a população mais pobre, cujos valores de consumo mensal não
ultrapassam os 10m3/mês (valor que corresponde a um consumo da ordem de 70 l/hab.dia).
3 A QUESTÃO DA HABITAÇÂO E SUA INTERFACE COM O SANEAMENTO
Aqui o objetivo não é fazermos uma ampla análise da questão da habitação nas
cidades brasileiras, mas tão-somente situarmos sua interface com a problemática do
saneamento, que não terá perspectiva de solução sem que seja resolvida a questão da
habitação para amplos segmentos da população urbana, principalmente, as camadas de
renda familiar menor que três salários mínimos e abaixo da linha da pobreza.
Se para os segmentos de maior renda, de acordo com o último censo, a questão
da moradia já parece resolvida, para os segmentos de baixa renda o problema persiste. De
fato, à parte os demais fatores, entre os principais obstáculos à questão da moradia estão o
acesso a terra e a questão da renda.
Com efeito, a questão habitacional no Brasil, acumulada ao longo da história,
expõe aspectos relacionados aos determinantes econômicos e a concentração privada da
terra, resultando em desigualdades socioespaciais, situação agravada pela ocupação
irregular de locais inapropriados nas cidades brasileiras pela população de baixa renda. Nos
4565 municípios brasileiros, a problemática habitacional instalada requer a ação do Estado à
provisão da política pública de habitação e saneamento, por parte dos gestores públicos.
Não é por falta de política pública ou pela necessidade de criação de fundos
específicos de financiamento (que existem, mas estão quase sempre descapitalizados), que
o problema da moradia se apresenta grave, mas pela ocupação inadequada, pela falta de
renda, e de terrenos apropriados, que impõe aos mais pobres a ocupação de áreas de
preservação, encostas e fundo de vales, alagados ou áreas de aterros, que sem
abastecimento d’água, esgotamento sanitário, drenagem e coleta de lixo estão sujeitas a
múltiplos problemas, entre os quais aqueles que afetam a saúde dessa população.
O déficit habitacional é de duas naturezas: o quantitativo que se refere à
ausência de moradia para suprir as unidades situadas em áreas de risco ou insalubres. E, o
déficit qualitativo que está relacionado às condições inadequadas da habitação, como:
ausência de infraestrutura, ausência de iluminação e ventilação, carência ou precariedade
das instalações sanitárias, ausência de espaços de convívio ou de lazer, inadequação de
materiais da habitação, entre outros.
Sem lugar para morar, ao longo do século XX, as camadas populares foram
ocupando terras ociosas e erguendo suas moradias. E, com o advento da redemocratização
do país foram reivindicando a manutenção de suas construções nos locais que haviam
ocupado. Este movimento ensejou a formulação de políticas públicas nos níveis federal,
estadual e municipal, objetivando regularizar e urbanizar as ocupações existentes,
enfrentando o déficit qualitativo e quantitativo.
É lamentável que, mesmo existindo uma política pública para dar conta do
problema, os governos, em todos os níveis, tenham preferido a construção de novos
conjuntos habitacionais, de forma semelhante à falida política do BNH, à urbanização e
implantação das infraestruturas (uma responsabilidade intransferível do Estado) dos
assentamentos de baixa renda nos locais onde se encontram instalados.
Com efeito, na última década, com a elevação da renda per capita nacional foi
possível se observar uma melhoria das condições de vida da população mais pobre, que
utilizou parte dos recursos disponíveis na melhoria de suas moradias e na aquisição de bens
duráveis como: televisores, fogões, geladeiras, entre outros. Entretanto, ao deixarem suas
residências todos os dias para irem trabalhar ou estudar se deparam com a lama e o lixo,
pela falta dos serviços públicos de infraestrutura.
Importa destacar que, nos locais onde foram realizadas ações de urbanização e
regularização das terras, as experiências realizadas se mostraram exitosas, a ponto de
algumas áreas de favelas hoje fazerem parte do tecido urbano de muitas cidades, dando
origem a comunidades e bairros. Outro aspecto a ser destacado é que, muitos programas
de universalização do saneamento, alguns até decorrentes de parceria com a iniciativa
privada, encontram como obstáculo a necessidade de urbanização dessas áreas onde estão
localizadas a população de baixa renda, sem o que se torna impossível a implantação dos
serviços de saneamento, tornando praticamente inócua a meta do atendimento pleno.
Enfim, os problemas de habitação e aqueles do saneamento, principalmente da
drenagem e do esgotamento sanitário, estão intrinsecamente ligados e não haverá solução
se o enfrentamento da questão não for realizado de maneira integrada, para o que o país já
conta com a Política de Habitação de Interesse Social (e o seu fundo específico), formulada
pelo poder público com participação dos segmentos populares, e cuja implementação em
algumas comunidades aponta para um resultado exitoso, por todo o território nacional.
4 OS DESAFIOS A SEREM SUPERADOS NO CONTEXTO ATUAL DA CRISE BRASILEIRA
A crise atual que o país atravessa tem uma de suas principais manifestações na
questão fiscal. Durante os governos militares o país endividou-se fortemente, acumulando
uma dívida externa, no inicio dos anos 80, que foi considerada a maior do planeta. Nos
últimos trinta anos do regime democrático, os dez primeiros anos foram gastos na
administração da crise econômica e no serviço da dívida.
Os dez anos seguintes, os anos 1990 e primeiros anos deste século foram
marcados pela busca da estabilização, após a deflagração do Plano Real que visou à
redução brusca da inflação, resultante da administração do serviço da dívida, após o
amortecimento da dívida externa e sua conversão em dívida interna.
O relativo sucesso do Plano Real e a boa situação da economia internacional, no
período seguinte, últimos dez anos deste século, permitiram que a dívida externa fosse
zerada e que a dívida interna fosse bastante reduzida, alcançando pouco antes da eclosão
crise internacional de 2008, uma relação dívida/PIB de 38%, com boa chance de maior
redução desde que bem administrada. A crise internacional e as escolhas feitas pelo país
ampliaram fortemente os gastos governamentais12 trazendo à tona o fantasma da crise
fiscal, que atualmente o Brasil experimenta, e como consequência a redução do gasto
público.
Assim, face ao do agravamento da crise é possível se antever que o setor de
saneamento estará diante dos seguintes desafios:
• Forte redução na alocação de recursos públicos da União, estados e municípios e
nos financiamentos dos bancos públicos com recursos do FGTS e do BNDES;
• Aumento dos problemas de poluição difusa no meio urbano e dos recursos
hídricos;
• Aumento das doenças de veiculação hídrica: cólera, febre tifoide, diarreia aguda,
hepatite infecciosa, amebíase, giárdias e contaminantes químicos. E das doenças
relacionadas à falta de água e ao mau uso: tracoma, escabiose, conjuntivite
bacteriana aguda, salmonelose, tricuríase, enterobíase, e ascaridíase;
• Elevação do nível de ineficiências dos serviços prestados pelas empresas de
saneamento (devido ao corte nos gastos de operação e manutenção) com a
depreciação dos sistemas.
E, diante desses desafios é importante que iniciativas sejam tomadas visando à
quebra do imobilismo priorizando o saneamento:
• Os municípios precisam mudar a postura institucional e já tradicional de
coadjuvante para uma postura inovadora de PROTAGONISTA na condução da
Política de Saneamento e habitação;
• Os municípios devem cuidar dos projetos de urbanização das de baixa renda
priorizando o saneamento nessas áreas;
• Os municípios devem em conjunto com as CESB definirem as áreas prioritárias
para implantação de novos sistemas de água e esgotos nos municípios no âmbito
dos novos projetos de investimentos;
• Os novos Planos Municipais de Saneamento devem ter suas ações priorizadas;
• Participação privada nos investimentos a serem realizados.
12
Sobre os gastos públicos ver: Flávio Rezende, in: Revista Política Hoje, n.11, p. 124-137, 2001.
5 CONCLUSÃO
De tudo o que foi exposto pode-se inferir quão grande é o desafio, e quão elevados
são os recursos a serem mobilizados pelo Estado para fazer face à universalização no setor
de saneamento, no contexto atual de crise fiscal. Mas deve-se destacar que, os
investimentos fiscais, sozinhos, não são capazes de financiar todos os investimentos
necessários à universalização devendo-se buscar recursos privados complementares.
Para a superação do desafio do atendimento pleno faz-se necessário um
investimento maior do que o que vem sendo realizado, o que se torna mais difícil devido a
crise. Para isso são estratégias centrais: aumento da eficiência na prestação dos serviços;
definição de novos mecanismos de financiamento, participação da iniciativa privada;
aperfeiçoamento do gasto fiscal na adoção de políticas compensatórias (via subsídios fiscais
da União para os mais pobres).
Além disso, para superar o desafio imposto pela demanda não atendida, é
fundamental que se priorize os investimentos com subsídios ficais no atendimento à baixa
renda, o que pode ser combinado com ações de urbanização de áreas pobres.
REFERÊNCIAS
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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: para além da
interpretação jurídica.
Ms. Celso Severo da Silva13
RESUMO O presente artigo visa analisar como a regularização fundiária no Brasil se expressa na contemporaneidade, suas contradições e interpretações. Ao mesmo tempo, inserir a sua análise nas condições históricas, políticas e econômicas presentes na crise capitalista, o papel do Estado e a materialização do uso e ocupação do espaço urbano. Nesse sentido, a lógica capitalista insere o urbano e as cidades como lócus de reprodução. Assim, a análise da regularização fundiária, associada a discussão meramente jurídica, limita a compreensão de que moradia, propriedade privada e o capital fundiário não estão conectadas com os conflitos característicos da sociedade de classes. Palavras-chave: Regularização fundiária. Estado. Cidades.
ABSTRACT The present article aims to analyze how land regularization in Brazil is expressed in contemporaneity, its contradictions and interpretations. At the same time, to insert its analysis in the present historical, polítical and economic conditions of the capitalist crisis, the role of the State and the materialization of the use and occupation of the urban space. In this sense, the capitalist logic inserts the urban and the cities as locus of reproduction. Thus, the analysis of land regularization, coupled with purely legal discussion, limits the understanding that housing, private property, and land capital are not connected with the class conflicts characteristic of class society.
Keywords: Land tenure regulation. State. Cities.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos 13 anos, governados pelo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e
Dilma Rousseff (2011-2016), ambos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil viveu
13
Ms. Celso Severo da Silva; Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Habitação e Saneamento Ambiental (NEPHSA/UFPE); Assistente Social da Pernambuco Participações e investimentos S/A Perpart - PE.
momentos de mudanças significativas no campo da política urbana, com a criação do
Ministério das Cidades, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), e
vultosos investimentos em infraestrutura através do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC,), que abarca os eixos: Logística (Rodovias, Ferrovias, Portos,
Aeroportos e Hidrovias), Energética (Geração e Transmissão de Energia, Petróleo e Gás) e
Social e Urbano (Habitação, Mobilidade Urbana, Saneamento, Prevenção de Riscos,
Recursos hídricos, Equipamentos Sociais, Cidades Históricas e Luz Para Todos). Segundo o
4º balanço do programa, até 2016 foram executados 386,6 bilhões de reais.14
Mas, nada se compara a dimensão política e social, que o Programa Minha
Casa Minha Vida (PMCMV), criado em 2009, teve no país. Programa esse, que esvaziou a
prioridade que vinha sendo dada pelo governo ao FNHIS, pois o PMCMV aparece não pela
lógica da Política Urbana que pesquisadores e os movimentos sociais de luta urbana
defendem, mas sim, com o intuito de diminuir os efeitos da crise econômica internacional,
iniciada exatamente com o estouro hipotecário e financeiro nos Estados Unidos (ROLNIK,
2015), bem como, a crise política no governo federal, com os efeitos dos casos de denúncia
de corrupção, no chamado “mensalão”.
Nesse sentido, como resposta imediata ao mercado e a população, o
lançamento do PMCMV, passa a atender essas duas necessidades, como afirmam Aragão e
Cardoso (2013, p. 35):
A reação do governo brasileiro à crise internacional foi rápida, adotando medidas de expansão do crédito pelos bancos públicos (Banco do Brasil, BNDES e Caixa Econômica), de forma a compensar a retração do setor privado, e também medidas de apoio aos setores em dificuldades. Como medida de caráter anticíclico, o governo manteve os investimentos em infraestrutura previstos no âmbito do PAC e mobilizou a Petrobrás no sentido de que também mantivesse os investimentos previstos.
Na mesma perspectiva de analítica, referente ao PMCMV, Rolnik (2015, p. 306)
anuncia:
Entretanto, não é possível entender a gênese e o sucesso do programa sem atentarmos para suas dimensões políticas. A centralidade dos recursos para o financiamento define um papel centra por parte do governo federal sobre as políticas habitacionais, que resulta no controle de importante capital político-eleitoral. Não é de estranhar que o MCMV tenha sido lançado em março de 2009, um ano e meio antes do período eleitoral para presidente. Além de conter os efeitos políticos nefastos que uma crise econômica poderia gerar sobre a sucessão presidencial, serviu para fortalecer a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff – lançada como “mãe do Minha Casa Minha Vida” - à sucessão de Lula, que não podia mais ser reeleger.
Apesar dos esforços empreendidos com esses avanços, a base da estrutura
14 <http://www.pac.gov.br/pub/up/relatorio/12c9979f887047791592a0e16c838e04.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017.
fundiária no país não foi alterada, pois partimos da compreensão de que a terra é um bem
limitado e não reproduzível, visto que não se constitui do trabalho humano, dessa forma,
não tem valor - trabalho socialmente necessário. Seu preço, embora não seja a expressão
“monetária”, funciona como uma mercadoria ao ser adquirida, através do mecanismo de
compra e venda, no mercado imobiliário, apresentando um preço que, apesar de não
expressar monetariamente o valor, é uma materialização da propriedade privada, que realiza
a renda obtida pelo proprietário fundiário.
De acordo com essa perspectiva, a política habitacional no Brasil, expressa as
contradições presentes na incompatibilidade entre necessidades habitacionais e domínio de
terras, por meio da concentração de terras.
Este artigo, não tem a pretensão de esgotar as complexas teias que envolvem a
Política Urbana, e aqui destacamos a Política Habitacional no Brasil, mas sim, tecer um
panorama do contexto atual da luta pelo direito à terra, e situá-la nas relações sociais,
políticas e econômicas, e não meramente no aspecto legal/jurídico, tão comum quando se
discute e/ou apresenta a regularização fundiária no país.
2 O FENÔMENO URBANO E AS CIDADES
Enquanto produção do homem permite-nos dizer que as cidades se constituem
como espaço de convivência, mesmo que seja conflituosa. É nas cidades que sob o modo
de produção capitalista o ser social, historicamente luta pela satisfação de necessidades
individuais e coletivas, e que aparecem sob a forma de conflitos.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo, sobretudo, em uma
formação socioespacial como a brasileira, marcada por profundas disparidades, só ampliou
a dimensão e a diversidade dos conflitos urbanos, sejam eles implícitos ou explícitos.
Desse modo, a densidade territorial, combinada com exiguidade territorial e
grandes disparidades socioespaciais compõem um quadro adverso à satisfação simultânea
das necessidades individuais e coletivas.
Assim, segundo Davis (2006, p.106) é no “[...] cenário urbano que os conflitos de
classe mais intensos por espaço urbano ocorrem no centro das cidades e nos principais
entroncamentos urbanos” Na análise realizada sobre o urbano Lefebvre (2001, p. 87)
destaca que “[...] o urbano se baseia no valor de uso. Não se pode evitar o conflito”.
Ainda Lefebvre (2016, p. 79), ao trata da cidade e do urbano, afirma que:
O Urbano se distingue da cidade precisamente porque ele aparece e se manifesta no curso da explosão da cidade, mas ele permite reconsiderar e mesmo compreender certos aspectos dela que passaram despercebidos durante muito
tempo: a centralidade, o espaço como lugar de encontro, a monumentalidade etc.
Os diferentes sujeitos que compõem a cidade e sua urbanidade agem e
competem em uma arena de conflitos, em processo permanente de produção e reprodução
do espaço urbano.
O crescimento das cidades e a problemática urbana são anteriores ao próprio
desenvolvimento da sociedade industrial. Mas no Brasil o processo de industrialização
acelerou a urbanização, contribuindo para o crescimento das cidades brasileiras. Assim, o
fenômeno urbano surge a partir do processo de industrialização trazido pela revolução
industrial. No país, é com a Lei de Terras em 1850, que se dá a institucionalização da
propriedade privada, com a separação da Igreja do Estado, sendo as cidades divididas em
lotes, atitude necessária para transformar o solo urbano em mercadoria. É a partir deste
momento que se dá a expansão das cidades brasileiras.
Salienta-se, que o direito à propriedade privada em nosso país, é garantido
desde a Constituição de 1824.
Na constituição de 1824 já se afirma a garantia da propriedade no Parágrafo XXII do Artigo 179 que rege sobre “Inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros”: “É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude (Constituição Política do Império do Brazil, 1824).(MAIA, 2006, p. 157).
De fato, como aponta Bernardes (2013, p, 143-144) a cidade, “[...] é por
excelência um espaço construído, ou seja, um espaço de edificações indispensáveis ao
abrigo de seus habitantes, dos bens que comercializa, produz e consume, dos serviços
públicos e privados que é um dos fatores essenciais de sua existência”. Portanto, é neste
contexto que o Recife se reproduz na sua formação urbana.
Dessa forma, as grandes cidades, como Recife, continuam atraindo elevado
contingente populacional, devido a sua vocação de metrópole, aqui compreendida como
espaço de concentração populacional, de riqueza, de tecnologia, de inovação e de
possibilidades, justamente pela existência concentrada de atividades e serviços. As
metrópoles são marcadas pelo aumento da pobreza, da violência, das formas precárias de
habitação e, atualmente, no caso brasileiro, pela ampliação do número de trabalhadores
informais que ocupam os espaços públicos para reprodução da vida. (ALVES, 2011), e são
nos assentamentos precários - favelas, palafitas e ocupações - que se consolidam na
maioria das vezes a opção de moradia para população de baixa renda.
Pelegrino (2005, p. 79) reforça a ideia de que as cidades crescem e desenvolvem
uma complexidade, marcada:
Pela exigência de valorização do capital, na medida em que o capitalismo
desenvolve-se e consolida-se. Nesse sentido, a urbanização, bem como a suburbanização, a favelização e a periferização, contêm elementos fundantes da divisão social do trabalho e, igualmente, da divisão territorial do trabalho, portanto, no âmbito do capitalismo, a moradia no espaço urbano é concebida e se materializa como atributo de valor de uso e valor de troca”.
Sendo a habitação, uma mercadoria, sua legalidade requer instrumentos que
garantam a propriedade. Nesse cenário, que estão inseridos o controle, a regulação e a
ordenamento urbanístico do Estado, em consonância com a valorização da terra e a
concentração fundiária.
3 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL: algumas reflexões
Ao longo dos quase 30 anos de Política Habitacional no Brasil, seja na provisão
de moradias, massivamente via construção de grandes conjuntos habitacionais, urbanização
de favelas e/ou projetos de incentivo a autoconstrução, a política urbana não foi
necessariamente seguida da regularização fundiária. Desse modo, a exploração do espaço
urbano, enquanto mercadoria projeta a cidade como um grande negócio e a renda
imobiliária obtida se configura como seu motor central (MARICATO, 2011). Assim, o Estado
por meio da atuação empreendida via políticas públicas urbana, é o principal agente para a
concentração da renda fundiária e imobiliária.
Convém lembrar, que no capitalismo, o Estado tem um papel central na
produção e reprodução do espaço, posto que, segundo interpretação de Maricato (2015, p.
25).
É dele o controle do fundo público para investimentos, e cabe a ele, sob a forma de poder local, a regulamentação e o controle sobre o uso e ocupação do solo (seguindo, hipoteticamente, planos e leis aprovados no parlamento. É, portanto, o principal intermediador na distribuição de lucros, juros, rendas e salários (direto e indireto), entre outros papéis.
Esse papel, exercido pelo Estado na contemporaneidade em relação à política
urbana, se materializa em legislações, sobretudo após a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e de leis federais e estaduais, daí decorrentes, como a Lei Federal nº
10.257/2001 (Estatuto da Cidade), a Lei federal nº 11.977/2009, e a Lei Estadual nº
15.211/2013/PE e, por fim, a Medida Provisória – MP nº 759/2016, que altera a
Regularização Fundiária, trazendo ameaças aos avanços sociais previstos nas legislações
destacadas.
Após seis meses de sua proposição, em 31/05/2017 o Senado brasileiro
aprovou, por 47 votos a 12, a medida, que trata da regularização fundiária. Com isso, são
promovidas alterações estruturais em legislações do campo e da cidade, referentes ao
assunto.
Ao longo do período de tramitação na Câmara e no Senado, a proposta recebeu
mais de 700 emendas, entretanto, manteve a essência desejada pelo Planalto. De interesse
dos ruralistas, a MP altera, entre outras regras, a forma como são destinadas as terras
públicas no Brasil. Em tais circunstâncias, em vez da terra ser destinada na forma de
concessão para ser utilizada de acordo com sua função social da propriedade, nos moldes
adotados hoje, com base na legislação em vigor, o governo passa a dar uma titulação. Essa
nova modalidade, entre outras coisas, permite que o lote seja vendido a terceiros,
acarretando profundas implicações para os processos de regularização fundiária, urbana e
rural.
A Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, aprovada sofreu
diversas críticas, em razão da ausência de diálogo com os movimentos sociais, conselho
das cidades e pesquisadores da área do urbano, entre outros. O caminho traçado pelo
poder executivo federal, não diferente de outras medidas e contrarreformas apresentadas
pelo governo ilegítimo de Michel Temer15, desencadeando o desmonte da democracia e dos
direitos sociais, arduamente conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora.
Mas, as primeiras disposições legais acerca da regularização fundiária vieram
com a Lei Federal nº 6.766/1979, que versa sobre o parcelamento urbano, e estabelece
entre outros pontos normatiza a obrigação dos municípios na regularização dos loteamentos
no âmbito de sua jurisdição.
Todo esse aporte legal (Legislações e Medida Provisória), tem como perspectiva
a falsa ideia da conciliação entre o controle do Estado, a garantia de direitos aos cidadãos
de permanecerem nos locais que habitam, a valorização da terra e o mercado imobiliário.
Partimos do pressuposto, de que há incompatibilidade entre esses fatores, uma vez que no
capitalismo, as formas de apropriação e utilização do espaço permitidas ou proibidas no
contexto de uma economia marcada por profundas desigualdades de renda, geraram uma
legislação urbana que “[...] acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura
regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada” (ROLNIK, 2007, p. 13), na qual
separa a ‘cidade legal’, ocupada pelas classes médias, grupos de alta renda e parte dos
setores populares, da ‘cidade ilegal’, destinada à maior parte das classes de baixa renda.
15
Michel Temer, assumiu o comando do país em 31/08/2016, após um golpe jurídico, parlamentar e midiático, contra a presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff, sob alegação de um crime de responsabilidade.
A regularização fundiária no Brasil é entendida como um conjunto de medidas
jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. Mas é recorrente, no âmbito da esfera pública,
dos poderes executivo, legislativo, judiciário, bem como no acadêmico, a ótica meramente
jurídica, como se a regularização de um lote ou edificação, fosse o fim de sim mesma. Para
Gonçalves (2009, p. 240), a regularização fundiária “[...] envolve, finalmente, uma reflexão
de ordem propriamente jurídica, concernindo a legitimação da posse dos habitantes pela
transferência de títulos, individuais ou coletivos, de direitos reais aos moradores”.
Nesse contexto, defendemos a contraponto a essa ideia, uma vez que para a
questão fundiária ser resolvida, nos marcos do sistema capitalista, precisa enfrentar a
propriedade privada da terra e os limites do mercado consumidor. Isso nos leva a conclusão
de que a questão habitacional é intrínseca ao sistema e revela a profundidade da questão
social no capitalismo.
Há uma complexidade de fatores, característicos do modo de produção
capitalista do espaço, que lança uma série de desafios a sociedade a serem superados,
sobretudo nos fatores que se impõem como obstáculos ao desenvolvimento da sociedade
como um todo. Além disso, a questão habitacional é fruto de uma cadeia de fatos históricos
que modelaram sua situação atual. Assim, o conhecimento aprofundado dos fatores
socioeconômicos e históricos, que moldam as necessidades habitacionais do país, permite a
compreensão atual e a projeção futura da habitação.
Ao lançarmos as reflexões de que a regularização fundiária deve ser analisada
sobre o prisma dos fatores sociais e econômicos, não estamos negando os aspectos
jurídicos e, sim, afirmando que eles são componentes e não determinantes. Visto que, a
despeito desse viés, há um movimento no qual a sociedade precisa ser considerada, o
debate aprofundado, uma vez que, conforme assinala Lacerda e Melo (2009, p. 113)
O acesso à terra urbana decorre diretamente da magnitude do capital monetário acumulado por indivíduos ou grupos de indivíduos. Esse acesso realiza-se mediante duas formas institucionais diferentes: a primeira rege-se por um conjunto de normas legais advindas de um vasto aparato documental de fé pública; e a segunda prescinde de normas.
Dito isso, e se contraponto à produção imobiliária formal, há uma produção
informal, que acontece de modo irregular sob o ponto de vista da legislação urbanística16, a
partir do movimento entre proprietários de imóveis e seus respectivos compradores, e é
isso, que dá especificidade ao mercado imobiliário informal.
16Na nossa compreensão a legislação urbanística, faz parte do marco regulatório institucional do Estado para controle do espaço urbano.
A classificação do acesso ao solo urbano e a lógica de mercado, é
dimensionada na tradição da economia urbana, em duas vertentes teóricas, uma é a
tradição ortodoxa que se “[...] apresenta como uma enorme e influente produção sobre os
processos de uso do solo, formação de preços e preferências locacionais familiares”, e outra
vertente é a que está baseada nos conceitos da economia urbana, pois “[...] procura
identificar os processos de geração da riqueza e da acumulação do excedente urbano a
partir da definição dos usos e da apropriação do solo urbano”. (ABRAMO, 2009, p. 18).
A dinâmica do controle do Estado, diante da informalidade urbana, sobre o uso e
ocupação no espaço territorial, direciona para um sistema jurídico que reconhece e valoriza
a propriedade, a partir do registro do imóvel/lote. Então, quem não registra não é dono,
dono/proprietário. Assim, a propriedade privada, no modo de produção capitalista,
impulsiona a população de baixa renda, a ocupar os lugares sobrantes das cidades.
Espaços que para valorização do capital ainda não se apresenta viável para a especulação
imobiliária e a concentração fundiária.
O acesso informal ao solo e, consequentemente, à moradia é um dos maiores
problemas da sociedade, uma vez que, há o agravado da falta de políticas habitacionais
adequadas para atender a população pobre. As populações de baixa renda não alcançam o
acesso às terras urbanas legalizadas devido ao custo do solo, a concentração de terras nas
mãos dos proprietários fundiários.
Marx (1980 p. 210-211) também nos chama a atenção sobre a relação entre os
processos de produção e reprodução social, frente a relação com as dimensões do valor de
uso e de troca e, nesse sentido, afirma:
[...] o produto, de propriedade privada, é um valor de uso, fios, calçados etc., mas, embora calçados sejam úteis à marcha da sociedade e nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica sapatos por paixão aos sapatos. Na produção de mercadorias, nosso capitalista não é movido por puro amor aos valores. Produz valores - de - uso apenas por serem e enquanto forem substrato material, detentores de valor-de-troca
A análise de Silva (1989, p. 13) pressupõe que o urbano e a moradia se
circunscrevem no marco do sistema capitalista e que urbano:
[...] é gerado pelas necessidades de reprodução do capital, e a questão habitacional dele decorrente, se constituem (sic) espaço de luta de classes, onde os movimentos sociais se estruturam como instância representativa das classes populares e o Estado, como instância contraditória, por situar-se nas relações entre as classes.
Nesse sentido, a lógica do sistema capitalista em geral se funda em sua
capacidade de manter as condições que garantam a existência de certo padrão de relações
de produção e, ao mesmo tempo, na constante reposição dos pressupostos que alimentam
o próprio modo de produção capitalista. Nas palavras Harvey (2006, p. 84) “O Estado
capitalista não pode ser outra coisa que instrumento de dominação de classe, pois se
organiza para sustentar a relação básica entre capital e trabalho”
Entretanto, falar em reprodução das relações de produção implica considerar o
papel do Estado nas sociedades capitalistas em sua dupla determinação: tanto a
intervenção econômica do poder estatal é uma necessidade constante e crescente da
reprodução capitalista, de modo particular no quadro da experiência brasileira, quanto essa
intervenção tem de se dar em todos os níveis que implicam a manutenção do capitalismo,
como é caso das condições urbanas de vida.
As várias experiências de regularização fundiária no Brasil, não rompem com a
lógica da concentração de terras, mas acabam imprimindo medidas de garantia de direitos,
mesmos que sejam restritos, como a entrega de um título, seja de concessão de uso ou de
propriedade, mas não materializam o direito à cidade, no seu sentido mais amplo e irrestrito.
CONCLUSÃO
A materialização da reprodução capitalista do espaço é o elemento central que
problematizamos, nesse artigo, uma vez que lógica do capital e a apropriação do espaço, a
partir do desencadeamento da contradição entre o capital e o trabalho, tem raízes históricas
e se constituem como próprios da estruturaração das cidades.
Nessa perspectiva, ao tratarmos dessa constituição histórica, o papel do Estado
torna-se elementar na determinação das condições de reprodução social, pois é ele que irá
criar às condições necessárias a reprodução do capital, sejam, por intermédio do arcabouço
jurídico-normativo, urbanístico, político ou ideológico.
Pode-se dizer que a principal contribuição do Estado, é via produção da
urbanização das cidades, que através da valorização imobiliária das áreas antes
desvalorizadas, potencializará as condições necessárias para produção social do espaço.
Assim, a valorização do solo urbano pode ser vista como condição da acumulação
capitalista.
Todavia, o estudo da questão da habitação, incluindo regularização fundiária, irá
decorrer necessariamente de análises das formas de intervenção do Estado e sua relação
com o mercado, e em que condições se reproduzem na sociedade. Além disso, a
concentração fundiária territorial influenciará a segregação socioespacial dos sujeitos
habitantes de territórios mais precários.
Nesse processo, vimos que os territórios não são homogêneos, sendo
necessário que as intervenções públicas e as estruturas operacionais passem a adotar
estratégias de legitimação e controle da população pelas políticas públicas, que na maioria
das vezes são fragmentadas, impossibilitando, assim, a emancipação econômica, social e
política dos sujeitos.
Nesse sentido, o Brasil vem passando por um amplo processo de mudanças na
estrutura urbana, que nas relações políticas das últimas décadas, em face da conjuntura de
transformações ocorridas, no país surge como resposta à crise estrutural do capital. Por
outro lado, o modelo político-econômico adotado, é subordinado às regras do receituário
neoliberal, que traz em seu bojo o desmonte da esfera pública estatal, a redução de direitos,
a exacerbação da questão social, bem como, a fragmentação da classe trabalhadora e o
agravamento das desigualdades territoriais.
As formas de reprodução social capitalista do espaço, da moradia e da sua
regularização da terra, são apresentadas com um bem, que não é produzido da mesma
formo como ocorre com os bens não duráveis ou menos duráveis, mas é vendido como
mercadoria sob os arranjos semelhantes de mercado. O bem imóvel, porém, existe e
persiste no tempo como investimento lucrativo, independente de tais ciclos. Essa qualidade
deriva da própria natureza da propriedade como mercadoria dotada de um mercado dentro
da rede das relações sociais capitalistas.
Sendo assim, a regularização fundiária, apresenta-se como uma fração do
capital, organizado em torno dos investimentos de ocupação do solo, linha esta voltada para
a materialização do processo de desenvolvimento capitalista do espaço.
REFERÊNCIAS
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QUESTÃO SOCIOAMBIENTAL, CIDADE E POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE: em tempo
de crise do capital
Ms. Amanda Santos de Paiva17
RESUMO Este trabalho apresenta como objetivo debater a partir de fundamentos marxistas o direito à cidade, à saúde e expressões da questão socioambiental em cenário de crise. A investigação configura-se pela pesquisa bibliográfica. Constata-se que os embates de classe e urbanos atravessam um Estado classista. Enfim, as lutas pelas políticas sociais como saúde e habitação devem apresentar bandeira anticapitalista. Palavras-chave: Saúde; Cidade; Questão socioambiental. ABSTRACT This paper presents the objective of from Marxist foundations the right to the city, health and expressions of the social and environmental Issues in a crisis scenario. The investigation are configured by the bibliographical research. It is seen that the class and urban clashes cross a class state. Finally, the struggles for social policies such as health and housing must be anti-capitalist. Keywords: Health; City; Social and Environmental Issues.
1 INTRODUÇÃO
Em tempos temerosos, as reivindicações históricas da classe trabalhadora,
configurados por direitos sociais, são destituídas em prol de um projeto societário burguês.
Os ataques do capital reafirmam seu caráter insalubre e de depreciação da vida humana e
planetária. Corroboramos com o tema da campanha do dia do/a assistente social do
conjunto CFESS/CRESS de 2017: “Na luta de classes não há empates”, ou seja, o capital é
destrutivo e assim, a luta por políticas sociais é em sua essência revolucionária e com
bandeira anticapitalista.
17
Assistente Social da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social do Natal/RN; Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Seguridade Social e Serviço Social (GEPSSS-UFRN). Email: [email protected]
Para embasamento de tal posicionamento ético-político, expomos barbarização
da vida social contemporânea por exprimir a desumanização, a selvageria, o não civilizado.
Essa se evidencia em situações de terror, de atentados, guerras, aumento crescente de
refugiados, promovendo uma verdadeira crise humanitária, surtos, epidemias,
miserabilidade. Assim, os rumos impostos pela continuidade do modelo de produção
capitalista revelam-se incapaz de garantir o direito à vida, sequer assegurando condições
mínimas de dignidade humana.
A partir destes fundamentos, debatemos a radicalização da questão
socioambiental. Principalmente, as apreensões críticas da política de saúde intrinsecamente
associadas ao direito à cidade e suas condições socioambientais. Mas também,
apresentamos uma análise da saúde e do direito à cidade como questão socioambiental no
que tange expressões de resistência e de desigualdade.
2 QUESTÃO SOCIOAMBIENTAL E DIREITO À CIDADE: percursos de aproximações
O capital é uma organização social-econômica fundamentada pela apropriação
privada dos meios de produção o qual tem como objetivo gerar lucro para a burguesia a
partir da força de trabalho e da natureza, ambas transformadas em mercadorias. A classe-
que-vive-do-trabalho torna-se uma ferramenta:
Através da redução e degradação dos seres humanos ao status de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária”, o capital pode tratar o trabalho vivo homogêneo como nada mais do que uma “mercadoria comercializável”, da mesma forma que qualquer outra, sujeitando-a às determinações desumanizadoras da compulsão econômica (MÉSZÁROS, 2000, p. 8).
Nessa perspectiva, para a classe trabalhadora, a exploração se expressa por o
valor gerado na atividade laboral ser superior o da sua reprodução (salário), ou seja, a força
de trabalho gera um valor maior ao que custa (mais-valia) (NETTO; BRAZ, 2007).
E a lógica do capital para o meio ambiente impõe a própria destruição da
natureza ao buscar satisfazer interesses mercantis. Nas palavras de Coutinho (2009, p. 23-
24):
O metabolismo estabelecido pelo capital em sua relação com o meio ambiente pressupõe riscos ambientais crescentes, inerentes a um modo de produção que necessita destruir a natureza para transformá-la em mercadoria. A água, o solo, a vegetação, entre outros elementos, a partir do momento em que são contaminados, poluídos e degradados, justificam sua transformação em bens destinados ao mercado.
Assim, o capital apresenta-se com caráter explorador tanto ao indivíduo quanto à
natureza para a obtenção de lucro, o qual se acumula nas mãos de uma pequena parcela
da população. “E esse despotismo é tanto mais mesquinho, mais odioso e mais exasperador
quanto mais abertamente proclama o lucro como sua finalidade exclusiva”. (MARX;
ENGELS, 1999, p. 13).
No tempo corrente, o cenário de crise estrutural do capital 18 promove a
intensificação da exploração e da mercantilização da vida. E nesta perspectiva que é
necessário apreender a configuração da “questão social” e ambiental sendo a depreciação
da vida e do meio ambiente como algo genético do capital. Dessa forma, a questão
ambiental dentro da “questão social” apresenta a mesma raiz: o capital.
Vejamos a seguir:
Fome e epidemias afligem a população excluída de suas mais elementares necessidades devido à incapacidade de transformar essas necessidades imediatas em demandas monetárias dando origem a “exclusão”, cuja natureza é econômica, produto desse regime de acumulação com predominância financeira (IAMAMOTO, 2010, p. 123, grifo nosso).
A partir dessa reflexão, entendemos a fome e as epidemias como exemplos de
expressões da “questão social” e não meramente um fenômeno natural-biológico, mas
apresentam uma determinação social configurada na dinâmica do capital. E transitamos
essa apreensão crítica, para o debate da crise ambiental.
Advogamos a “questão social” como a politização da miserabilidade, ou seja, é o
questionamento das desigualdades sociais pela classe trabalhadora, em outras palavras,
além das expressões das mazelas, é também resistência. Assim, “Foi a partir da perspectiva
efetiva de uma eversão da ordem burguesa que o pauperismo designou-se como 'questão
social'.” (NETTO, 2004, p. 43). Nessa perspectiva, temos a definição de Carvalho e
Iamamoto (1983, p. 77):
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia [...].
18 Destacamos que as crises são modos operantes da dinâmica do capital, aliás, são até mesmo funcionais para seu fortalecimento e redimensionamento. Todavia, a crise contemporânea com início da década de 1970 é diferenciada. A mesma está associada a aspectos fundantes do capital como a sua imposição pela exploração da natureza, ademais as reações burgueses radicalizam as contradições e fomentam um cenário do pior. Por tal, é denominada de crise estrutural do capital por apresentar como características: a permanência, a universalidade e a globalidade. (MÉSZÁROS, 2011).
Para organização da classe trabalhadora em situação de crise política e do
acirramento capital X trabalho, torna-se central para as pesquisas contemporâneas, pensar
estratégias de resistência. E para tal, configuramos como adesão teórica o termo questão
socioambiental por apreendemos como indissociáveis a exploração da natureza e nela
incluído o indivíduo.
Correlacionam-se a “questão social” e a questão ambiental por entender que a
relação do indivíduo com o restante da natureza torna-se emblemática a partir da
impregnação da lógica do capital a qual configura uma suposta desarmonia entre a unidade
indivíduo-natureza expressa pelo cenário atual de crise ambiental.
Aliás, a unidade indivíduo-natureza fica clara na afirmação de Marx (1968) nos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 apud in Andrioli (2007, p. 1):
O ser humano vive da natureza significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele precisa estar em processo contínuo para não morrer. Que a vida física e espiritual do ser humano está associada à natureza não tem outro sentido do que afirmar que a natureza está associada a si mesma, pois o ser humano é parte da natureza.
A relação do indivíduo com a natureza a qual possibilitava a subsistência da
humanidade é o trabalho. De tal forma, a categoria trabalho é a relação mediada do
indivíduo com a natureza para a satisfação material da primeira (NETTO; BRAZ, 2007).
Ademais, as condições de existência para humanidade é garantida pela
construção do meio ambiente seja para alimentar-se, locomover-se, vestir-se, beber água,
ações de sobrevivência do ser social.
Essas mesmas garantidas nas legislações como direitos básicos são violadas
cotidianamente na vida de grande parte da classe trabalhadora:
Milhões de pessoas são obrigadas a viver em condições subumanas porque não têm acesso ou tem um acesso precaríssimo à alimentação, à saúde, à habitação, ao vestuário, ao saneamento, ao transporte etc. (TONET, 2009, p. 3-4).
Nesse direcionamento, o debate intrinsecamente correlaciona-se com o direito à
cidade. E principalmente, acesso ao saneamento ambiental, entendido nessa análise como
condições socioambientais. Compartilhamos, a cidade como:
[...] lócus das diferentes formas de desigualdades - social, econômica e política. Essas diferentes formas de desigualdade estão expressas no desemprego, nos baixos salários, no aumento da pobreza, no analfabetismo, nas crianças e nas famílias vivendo nas ruas, nos doentes sem tratamento, nas moradias precárias, na falta de terra para os/as trabalhadores/as, na violência e insegurança urbana. A luta pela cidade é a luta pelos direitos para todos/as ao trabalho, à educação, ao lazer, à saúde, à habitação,à participação política e tantos outros direitos. (CFESS, 2016, p. 8).
As grandes periferias urbanas brasileiras apresentam serviços públicos precários
para atender as demanda da população como a falta de abastecimento de água e da coleta
de lixo (GUBLER, 1997 apud in SILVA et al, 2003). Destacamos que:
A intensificação da urbanização decorreu principalmente do avanço da industrialização, que atraiu grandes fluxos de mão-de-obra do campo, associada ao crescimento vegetativo da população urbana; no último meio século (XX) a urbanização brasileira caracterizou-se predominantemente por uma dinâmica desordenada e sem infra-estrutura adequada, com grandes contingentes populacionais em condições de pobreza e miserabilidade (MENDONÇA et. al, 2009, 259).
Em relação dialética com a dinâmica rural, a cidade é expressão do caráter
insustentável do capital por não seguir a prerrogativa de atender as necessidades dos
indivíduos e configurar relações desarmônicas com o restante da natureza. E por tal, sendo
um lugar promotor de processos de adoecimentos ao invés de vitalidades.
E nesta perspectiva, ressaltamos a apreensão da questão socioambiental como
parte constitutiva das relações capitalistas e por tal, impõe respostas para necessidades
coletivas dos trabalhadores que perpassa na afirmação da responsabilidade do Estado com
políticas sociais. Embora, tomamos como realidade a crise a qual fragiliza e promove a
retirada do Estado para a questão socioambiental abrindo caminho para a mercantilização
dos direitos e para políticas sociais pontuais e seletivas (IAMAMOTO, 2007).
Na parte a seguir, aprofundaremos como a cena de radicalização da questão
socioambiental interfere da garantia do direito à saúde e direito à cidade em um Estado
classista. Ademais, expomos o acirramento de lutas de classes.
3 (RE) POLITIZAÇÃO DA SAÚDE E LUTAS SOCIAIS: imposição à classe trabalhadora em frente à barbárie
A garantia do direito à saúde em seu conceito ampliado está diretamente
associado à infraestrutura das cidades e a seus serviços essências a população como
abastecimento seguro e intermitente de água e coleta e tratamento de efluentes.
Por exemplo, no caso de aumento de números de diarréias em uma comunidade
“x”, o problema de saúde não pode ser encarado somente no enfoque biológico-médico,
pois, nota-se que a diarréia é uma doença que se estabelece a partir de múltiplas
determinações e determinantes socioambientais como: a falta de saneamento desta
localidade, a renda da população, a desnutrição das crianças, o baixo grau de escolaridade
(falta de informações sobre higiene), as péssimas condições de trabalho, a história de luta
da comunidade entre outras expressões. Estes são apenas algumas questões que podem
demonstrar a amplitude de intervenções para garantir o direito à saúde (TEIXEIRA, 2012).
Defendemos, então, a consolidação do direito à saúde como a Constituição
Federal de 1988, estabelece:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Logo, o Estado está diretamente correlacionado com o direito à saúde e os
direcionamentos das políticas públicas. O aparelho estatal é atravessado por lutas urbanas
a partir das reivindicações da classe trabalhadora por acesso a bens sociais. Em um Estado
classista, favorável aos interesses da burguesia, o mesmo é tensionado pela categoria
analítica da contradição trilhada por caminhos de avanços e retrocessos (BEHRING e
BOSCHETTI, 2010). Em nossa compreensão, as políticas públicas devem ser analisadas
em seus limites e possibilidades.
Nesse panorama, não se pode pensar na questão socioambiental sem
considerar um Estado ampliado o qual necessita ser permeável as demandas dos/as
trabalhadores/as para a reprodução do capital. Por exemplo, as políticas sociais são uma
forma de respostas à questão socioambiental. Ponderamos que essas não foram
fomentadas simplesmente pelo interesse dos trabalhadores diante de suas péssimas
condições de vida, mas também por medidas anticrises. Por tal, temos um Estado de
natureza burguesa, todavia é tensionado pelas classes. Apesar da constatação de um
Estado neoliberal19 com a destituição de direito, em tempo coetâneo.
Nesse cenário de satanização do Estado e desestatização, a classe
trabalhadora sofre com a maior precarização de suas condições de vida através do
desmonte do mundo trabalho (THERBORN, 1995; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
Assim, há a predominância do interesse do capital o qual obstaculiza a
concretude plena de projetos a favor da classe trabalhadora com horizonte de
transformações estruturais como a política de saúde nos ideários do Movimento da Reforma
Sanitária Brasileira. Tal processo é nítido pelo prejuízo orçamentário para as políticas
sociais públicas.
Cenário atual incompatível ao direito à saúde em seu conceito politizado e amplo
o qual está intimamente relacionado com as condições de vida e com o conjunto dos direitos
sociais ambos depreciados na cena do capital. Entender, nessa perspectiva, que para
consolidar o direito à saúde no sentido ampliado é indiscutivelmente investir nas condições
de vida população e por tal, envolve a defesa do meio ambiente e o direito à cidade.
19 Suscita-se em um Estado que não providencia os serviços sociais para as liberdades do mercado, ou seja, um Estado livre de qualquer obrigação a promoção de bem-estar aos cidadãos.
Ademais, a política de habitação e a política de saúde convergem nos percursos
históricos na realidade brasileira. Ambas apresentam a ponderação de interesses mercantis.
A localização de parcela dos trabalhadores em parte das cidades segregadas com
ineficiência de serviços de coleta de esgoto e de água fomentaram grandes e graves
problemas de saúde. E as resposta do Estado eram legislações com direção higienista: o
autoritarismo sanitário com enfoque de padrão de comportamentos (CFESS, 2016).
Com discurso e prática higienista20 voltadas para modernizar o país e limpar o
Brasil de doenças e epidemias, a população sofria com o braço coercitivo do Estado o qual
não abria espaços para diálogos ou esclarecimentos sobre suas ações. Todavia, esses
processos de respostas as expressões da questão socioambiental com autoritarismo, não
aconteciam em vista a passividade total dos trabalhadores.
Nos dias atuais, apesar de um cenário adverso, os/as trabalhadores/as resistem,
discutem, propõem, ocupam lugares de controle social, não estão silenciados e paralisados,
logo, movimentam-se, demonstrando que o capital não é o fim na história. Aliás, o
acirramento das contradições em período de crise demonstra a incapacidade do capital de
atender um caráter progressista. Seguindo, revelamos a pontuação de Antunes (2005) sobre
a rebeldia da classe trabalhadora. No cenário atual, não há “pacificação dos conflitos
sociais”:
Elas recuperam, isso sim, aquela que talvez seja a batalha central da humanidade hoje: a busca de uma vida cheia de sentido dentro e fora do trabalho. O que mostra, em nosso entendimento, a força e a centralidade contemporânea do trabalho. (ANTUNES, 2005, p. 38).
As greves recentes e explosões sociais articulam a luta social no seio do mundo
do trabalho, com luta de gênero, com a luta ecológica, com luta étnica partindo de uma
concepção ampliada do ser trabalho. Ou seja, uma luta por outra sociabilidade.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estágio contemporâneo do capital em crise estrutural promove reações
burguesas como minimização da garantia de direitos fundamentais e injuria da natureza.
Defendemos ao longo do debate que a relação harmônica da unidade indivíduo-natureza
apresenta incompatibilidade com a dinâmica do capital pela supremacia do lucro e
20
Apesar da heterogeneidade e tensão deste campo, seguimos a perspectiva de Marins (1998) e apreendemos as práticas higienistas como o controle sobre os hábitos corporais e “limpeza” na cidade de populações e moradores indesejados ao progresso e à imagem de modernização do país. Exemplo clássico foi a demolição dos cortiços no Rio de Janeiro no início século XX.
subsunção do trabalho ao capital. Assim, a exacerbação da questão socioambiental tem raiz
do capital.
Em uma sociedade de classes, a não garantia de direitos como acesso a água
potável se contrapõe a extrema concentração das riquezas. Assim, o cenário é de profundas
desigualdades que são orquestradas pelo capital e pelo mesmo são tratadas por políticas
sociais. Viabilizadas por um Estado mínimo para expressões da questão socioambiental, as
cidades são palcos de lutas sociais e retrato de não acesso e/ou precário de serviços
básicos resultado de uma urbanização fomentada por interesses mercantis que configuram
cidades com as massas doentes.
Enfim, apreendemos a reafirmação da associação do Projeto da Reforma
Sanitária e o direito à cidade, à luta anticapitalista, ou seja, a luta para uma sociedade justa,
sem classes sociais e com pacto harmônico do indivíduo com o restante da natureza.
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