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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antônio Honório Ferreira Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a programa de ação afirmativa DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2010

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Antônio Honório Ferreira

Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a programa

de ação afirmativa

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2010

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Antônio Honório Ferreira

Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a programa

de ação afirmativa

Tese apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em

Psicologia Social, sob orientação da

Prof. Drª. Fúlvia Rosemberg.

São Paulo

2010

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BANCA EXAMINADORA

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

parcial desta dissertação/tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura:_______________________________Local e Data:___________________

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AGRADECIMENTOS

Meu reconhecimento e agradecimento aos que me antecederam, por tudo que edificaram

e que me serve como ponto de partida.

A minha orientadora, Profa. Dra. Fúlvia Rosemberg, pela competência, generosidade

intelectual, sentido ético, comprometimento, paciência e compreensão.

À Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci, ao Prof. Dr. Luiz Alberto Oliveira

Gonçalves e ao Prof. Dr.Valter Roberto Silvério pelas valiosas contribuições que me

deram por ocasião da minha qualificação .

Ao Prof. Dr. Antônio da Costa Ciampa, pela inspiração teórica, que me acompanha

desde que foi meu orientador no mestrado e por também compor esta banca

examinadora.

À Profa. Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt, pela sua colaboração neste momento

de defesa de tese.

À Profa. Estefânia K. Canguçu Fraga e ao Prof. Dr. Alípio Márcio Dias Casali, por

terem aceito participar, como suplentes, neste processo.

À minha família que vem me apoiando das mais variadas formas. De maneira especial

agradeço à minha mãe, que sempre valorizou e incentivou a formação escolar de seus

filhos.

Ao amigo do peito, José Gabriel da Costa, pela presença constante e iluminada e de toda

a irmandade.

Ao amigo-irmão Derli Batista da Silva e família: Cláudia Cristina Nascimento da Silva,

Cristiano Nascimento da Silva e Heitor Nascimento Batista da Silva, pela amizade e

consideração.

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Ao amigo-irmão Gustavo Lopes Borba e família: Kelli Gonçalves e o pequeno

Guilherme, que me proporcionaram momentos agradáveis de convívio, pela afetividade

fraterna na “embaixada mineira” em terras paulistanas.

Ao novo amigo-irmão Luiz do Nascimento Carvalho e família: Alciene Alves Ferreira e

Maria Luiza do Nascimento Carvalho, pela hospitalidade goiânia, carinhosa e amiga na

Paulicéia e apoio bem oportuno.

A amiga-irmã Myrt-Thânia de Souza Cruz e família: Ednalva Souza Cruz, Tânison

Alves da Cruz, Victor Souza Cruz, Vincent Alves de Palma D’Elia e Pedro Cruz D’Elia,

pelos momentos de afeto compartilhados e o apoio.

À minha família paulistana, Ricardo Clerice , Rosimeire Niccioli Clerice, Ana Carolina

Clerice e Pedro Henrique Clerice, pelo acolhimento afetuoso, amizade verdadeira e

momentos de espituralidade compartilhados.

Às companheiras e companheiros do NEGRI, com os quais tive a oportunidade de

compartir bons momentos de aprimoramento acadêmico.

Aos funcionários da Biblioteca Nadir Kfouri pelo bom trabalho que realizam.

Aos(às) professores(as) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social

da PUC-SP e a Marlene Camargo, secretária do Programa.

À competente equipe da Fundação Carlos Chagas, Maria Luisa Santos Ribeiro, Leandro

Feitosa Andrade, Márcia Aparecida Caxeta Pereira, Raquel Ribeiro, Marli Ribeiro, Ida

Lewkowicz pelo apoio e colaboração.

À profa. Regina Lúcia de Souza e demais colegas de trabalho, pelo apoio e incentivo.

Aos(às) candidato(as) do Programa IFP que autorizaram o uso de suas informações para

pesquisa, das quais utilizei-me para a realização deste trabalho.

A CAPES pela concessão da bolsa sem a qual seria impossível realizar esta tese.

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RESUMO

FERREIRA, Antônio Honório. Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a

programa de ação afirmativa.

Esta pesquisa se articula ou dá continuidade a dissertações e teses produzidas no

contexto do Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI), do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de

São/PUC-SP, tendo por objetivo geral procurar contribuir para a compreensão e

melhoria da prática, de processos de identificação étnico-raciais em experiência de ação

afirmativa. Seu objetivo específico é descrever e propor interpretações a discursos

étnico-raciais proferidos no contexto do Programa Internacional de Bolsas de Pós-

graduação da Fundação Ford (Programa IFP). Fundamenta-se na hipótese teórica de

Munanga (1988), que propõe a pluralidade do ser negro, no Brasil; na concepção de

racismo que integra a dimensão estrutural e simbólica na produção das desigualdades

raciais e na defesa do argumento de justiça social como a melhor justificativa, no Brasil,

para a implementação de políticas de ação afirmativa com recorte racial, a partir de

Feres Júnior (2006). Como método de pesquisa adotamos a hermêutica de profundidade

(HP). Nesta tese, as formas simbólicas analisadas provêm das respostas de candidatos

ao Formulário para Candidatura do Programa IFP, onde foram examinados os discursos

proferidos nos campos específicos relacionados à autodeclaração e identificação racial,

pela técnica de análise de conteúdo. A caracterização do perfil da amostra de autores

dos discursos que analisamos aponta para: uma proximidade com o universo de

candidatos ao Programa IFP; um percentual predominante de autores pretos e pardos,

que declararam pertencer ao grupo-alvo negro; um predomínio de jovens e de mulheres.

Dentre os 169 candidatos que compõem nossa amostra, 105, ou seja 62,1%, declararam

identificar-se como negros. Ocorreu alta freqüência da justificativa por origem para a

autodeclaração de cor/raça, o que aponta a necessidade de novos estudos. Encontramos

nítida diferença entre os subconjuntos de autores de relatos autodeclarados pretos ou se

que se identificam como negros e os autores brancos. Já os relatos dos autores pardos se

situam em posição intermediária. Os resultados revelam uma variedade de formas de se

apresentar como preto, pardo ou branco em um programa de ação afirmativa com

recorte étnico-racial.

Palavras-chave: ação afirmativa, negro, Programa IFP, análise de conteúdo

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ABSTRACT

FERREIRA, Antônio Honório. Ethnic-racial speeches delivered by candidates for

affirmative action program.

This research articulates itself or gives continuity to dissertations and theses produced in

the context of the Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI), part of the

Program of Graduate Studies in social psychology from Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo/PUC-SP. Its overall goal, is to try to contribute to the

understanding and the improvement of the ethnic-racial identification processes in

affirmative action experiences. Its main specific goal is to describe and propose

interpretations to the ethnic-racial speeches delivered in the International Fellowships

Program - IFP (IFP Program) context. Based on the Munanga (1988), theoretical

hypothesis, which proposes the plurality of being negro in Brazil; in the concept the

concept of racism which integrates the structural and symbolic dimension in production

of racial inequalities and in defense of the argument of social justice as the best

justification, in Brazil, for the implementation of affirmative action policies with racial

clipping, from Feres Júnior (2006). As a research method we adopted the Depth

Hermeneutical (DH). In this thesis, the symbolic shapes examined comes from the

answers given from candidates, which filled in a form to be part of the IFP Program,

where the speeches were examined in specific fields related to self-declaration and

racial identification, by content analysis technique. The profile from the authors which

we analyzed the speech, shows that: proximity with the universe of candidates to the

IFP Program; a predominant percentage of pretos and pardos authors, which have

declared that they belong to the target group negro; with a predominance of young

people and women. Among the 169 candidates that comprise our sample, 105 or 62.1%

declared that they identify themselves as negros. High frequency occurred per source

justification for self-declaration of color/race, suggesting the need for further studies.

We found clear difference between subsets of authors which declared themselves as

pretos or who identify themselves as negros and the authors as brancos. But the reports

from the pardos show that they are located in the middle. The results reveal a variety of

ways to present oneself as preto, pardo or branco in an affirmative action program with

clipping ethnic-racial.

Keywords: affirmative action, black, IFP Program, content analysis

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SUMÁRIO

Introdução: Objeto e método 01

PARTE I: O racismo e seu enfrentamento 16

Capítulo 1 – Estudos sobre o racismo e seu enfrentamento 16

Capítulo 2 – O racismo no Brasil 34

Capítulo 3 – Conceituando ação afirmativa 55

Capítulo 4 – Ação afirmativa no Brasil: debates e práticas 64

Capítulo 5 – Classificação racial no Brasil 86

PARTE II: Reflexão Identidade racial e ações afirmativas 106

Capítulo 1 – Reflexões sobre identidade 107

Capítulo 2 – De estágios para tipologia 123

PARTE III: Análise das formas simbólicas 141

Capítulo 1 – Procedimentos: corpus e grades de análise 141

1.1 Seleção da amostra e constituição do corpus 141

1.2 Análise do corpus 145

Capítulo 2 – Resultados: interpretações e re-interpretações 153

2.1 Caracterização da amostra 153

2.2 Como efetuam a declaração de pertença/identificação aos grupos-alvo 159

2.3 Como justificam a autodeclaração de cor/raça 162

2.4 Relatos sobre experiências/vivências étnico-raciais 167

2.5. Síntese dos resultados 186

CONSIDERAÇÕES FINAIS : Reinterpretações e inquietações 189

REFERÊNCIAS 193

ANEXOS 211

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Informações seletas sobre o Programa IFP 105

Quadro 2 – Estágios de desenvolvimento da identidade negra e tipologias 130

Quadro 3 – Campos do Formulário que foram analisados 143

Quadro 4 – Composição da amostra 145

Quadro 5 – BLOCO 1: Identificação do candidato

(Campos A e M do Formulário) 147

Quadro 6 – BLOCO 2: Justificativa de opção da categoria cor/raça

(Resposta à pergunta: “Por que você usou a categoria acima?”) 148

Quadro 7 – BLOCO 3: Relatos pessoais

(Respostas ao campo N do Formulário: “Relate suas experiências

ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”) 149

Quadro 8 – BLOCO 4: Tipos de relato 151

Quadro 9 – Temas em relatos com foco étnico-racial 175

Quadro 10 – Tipologia discursiva referente à negritude em relatos relacionados a

vivências/experiências étnico-raciais 182

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: População total e com mestrado e doutorado por cor ou raça.

Brasil 2007 10

Tabela 2: Composição do universo e da amostra de candidatos 153

Tabela 3: Subconjuntos mais freqüentes identificados na amostra 155

Tabela 4: Caracterização da amostra por sexo 156

Tabela 5: Caracterização da amostra por idade 157

Tabela 6: Caracterização da amostra por cor/raça 158

Tabela 7: Declaração de pertença por sexo, idade e cor/raça 161

Tabela 8: Distribuição de freqüência das justificativas dadas à opção cor/raça 163

Tabela 9: Justificativas dadas à opção cor/raça por sexo, idade e cor/raça e

declaração de pertença 165

Tabela 10: Presença/ausência de relato sobre experiências/vivências

relacionadas à pertença étnico-raciais por sexo, idade,

cor/raça e declaração 168

Tabela 11: Pessoas gramaticais enunciadas nos relatos por sexo, idade e

cor/raça e declaração de pertença 171

Tabela 12: Foco dos relatos por sexo, idade e cor/raça e

declaração de pertença 173

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Tabela 13: Temas dos relatos com foco étnico-racial por sexo, idade e

cor/raça e declaração de pertença 177

Tabela 14: Tipos de discursos referentes à negritude mais e menos

Freqüentes nos relatos 183

Tabela 15: Tipos discursivos mais freqüentes nos relatos por sexo, idade e

cor/raça e declaração de pertença 184

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ANTÔNIO HONÓRIO FERREIRA – AGOSTO/2010

1

INTRODUÇÃO: Objeto e método

Foi para estudar as identidades negras que me lancei no grande oceano que é o

campo de estudos das relações raciais brasileiras. O título inicial do meu projeto de

mestrado “A construção da identidade negra em diferentes contextos sociais”, indicava

a idéia de pluralidade identitária, inspirado que estava por um texto provocativo do

antropólogo Kabengele Munanga (1988), que apontava que a diversidade de contextos

sociais resultaria em múltiplas possibilidades de ser negro no Brasil e que também

indicava as dificuldades metodológicas para apreensão desse fenômeno tão complexo e

dinâmico (MUNANGA, 1988, p. 146). Ouvi esse alerta e, naquele momento, prossegui

meu mestrado pesquisando identidades negras a partir do método de história de vida,

orientando-me pela teoria da identidade-metamorfose-emancipação de Ciampa (1986,

1999).

Vim para o doutorado ainda influenciado por esse encantamento, elaborei meu

projeto e fui para o exame de qualificação pensando em estudar identidade a partir de

discursos raciais proferidos em contexto de experiência de ação afirmativa. Naquele

momento meu projeto se intitulava “Discursos étnico-raciais e identidades em contexto

de programa de ação afirmativa”. Todavia, os resultados de minha pesquisa

descortinaram o que estava posto desde o início: a complexidade do meu objeto,

configurada na complexidade de operacionalizar a identificação racial em programas de

ação afirmativa que procuram equalizar igualdade de oportunidades laborais ou

educacionais entre negros e brancos. Quando empreendi a análise dos discursos, o

campo empírico desta tese, buscando filtrar meu objeto e integrar a preocupação

pragmática com as teorias que estava utilizando, defrontei-me com um grande

descompasso. Isto é, no âmbito da Psicologia (ou da Psicologia Social), as teorias de

identidade permitem compreender a pessoa num processo histórico, por isto estudam

história de vida. Porém, passei a perguntar-me se tal enfoque permite apoiar programas

de ação afirmativa que necessitam selecionar conjuntos de pessoas que provêm dos

segmentos da população focalizados pela ação compensatória de tais experiências.

Dei-me conta que um programa de ação afirmativa que foca grupos-alvo não

busca reconstruir, no processo seletivo, trajetórias pessoais para compreender uma dada

subjetividade, mas trabalha com um corte temporal, para captar como se dá a

autoidentificação da pessoa no momento de sua candidatura. Um programa de ação

afirmativa estará interessado em saber se a pessoa é um representante de um grupo

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exposto às condições de desigualdades sociais, se compartilha da mesma trajetória do

seu grupo dessa perspectiva.

Desse modo, feito Ulisses, pude ouvir o canto das sereias sem, contudo, me

perder no mar, amarrado que estava em mastros firmes, como a concepção de racismo

adotada no Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI) do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de

São/PUC-SP; o texto inspirador de Munanga (1988) e a defesa do argumento de justiça

social como a melhor justificativa, no Brasil, para a implementação de políticas de ação

afirmativa com recorte racial, feita por Feres Júnior (2006). Daí a mudança de título da

proposta apresentada no exame de qualificação para a tese que ora apresento: de

identidade(s) para discursos; não mais a busca de compreensão da construção de

identidades individuais (ou pessoais) mas procurar contribuir para a compreensão de

processos de identificação étnico-raciais em experiência de ação afirmativa visando à

melhoria da prática.

Esta pesquisa se articula ou dá continuidade a dissertações e teses produzidas no

contexto do que, desde 1992, vem trabalhando o tema das relações raciais no contexto

da educação brasileira. Os(as) pesquisadores(as) do NEGRI vêm adotando uma

concepção de racismo que integra a dimensão estrutural e simbólica na produção e

reprodução das desigualdades raciais. Ou seja, tais desigualdades não são explicadas

apenas pelo preconceito, pelos estereótipos ou por outras atitudes ou crenças

individuais, mas também por uma estrutura de relações de poder sistematicamente

assimétricas entre os segmentos étnico-raciais.

Articular-se e dar continuidade, nesta tese, à perspectiva do NEGRI, significa

pensar a ação afirmativa como uma das estratégias (mas não a única) de combate à

desigualdade racial brasileira. No caso desta tese, descrever e propor interpretações a

discursos étnico-raciais proferidos no contexto do Programa Internacional de Bolsas de

Pós-graduação da Fundação Ford (Programa IFP),destinado, entre outros segmentos

sociais, a negros e indígenas.

No NEGRI já temos uma trajetória de trabalhos no campo de estudos das

relações raciais: as dissertações de mestrado de Rachel de Oliveira, “Relações raciais na

escola: uma experiência de intervenção”, de 1992; de Eliana de Oliveira, “Relações

raciais nas creches diretas do município de São Paulo”, de 1994; de Chirley Bazilli,

“Discriminações contra personagens negros na literatura infanto-juvenil brasileira

contemporânea”, de 1999; de Edmar José da Rocha, “Autodeclaração de cor e/ou raça

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entre alunos(as) paulistanos(as) do ensino fundamental e médio - um estudo

exploratório”, de 2005 e as teses de Edith Piza, “O caminho das águas : estereótipos de

personagens femininas negras na obra para jovens de escritoras brancas”, de 1995 e de

Paulo Vinicius Baptista da Silva, “Relações raciais em livros didáticos de língua

portuguesa”, de 2005.

Dentre os diversos temas que o Núcleo vem privilegiando, destacarei um deles

que foi de especial apoio para esta tese, além do enfoque teórico: o da denominação,

classificação e identificação étnico-racial, pedra de toque para a seleção de candidatos

em experiências de ação afirmativa com viés étnico-racial (Piza e Rosemberg, 2003;

Rocha e Rosemberg, 2007; Rosemberg, 2004).

Se esta tese compartilha com os trabalhos supracitados no que diz respeito à

meta política, ou seja, o enfrentamento das desigualdades raciais no sistema educacional

brasileiro, ela se diferencia por focalizar o nível mais elevado da trajetória educacional

do(a) brasileiro (a): a pós-graduação. Com efeito, tendo como única exceção a

dissertação de mestrado de Neiva de Oliveira Moro, “Um estudo sobre o universitário

do anual de 1990 da Universidade Estadual de Ponta Grossa: carreiras educacionais e

raça”, de 1993, estudo pioneiro no Brasil sobre o acesso de negros ao ensino superior,

os demais trabalhos focalizaram questões relacionadas a crianças e adolescentes ou à

educação básica.

Ela se diferencia, também, porque nosso objetivo de pesquisa não tematiza a

análise das desigualdades educacionais – de acesso, permanência e sucesso -, mas sim a

implementação de estratégias para sua superação via experiência de ação afirmativa

destinada, entre outros segmentos sociais, a negros. Neste ponto, a questão de demarcar

quem é negro(a) – e quem não é negro –, no Brasil, é uma questão crucial. Qual a

tradução dessa pergunta na implementação de um programa de ação afirmativa? A

diversidade de tipos de relatos sobre experiências e vivências relacionadas ao

pertencimento étnico-racial que apreendi, ou de formas de se apresentar a um programa

de ação afirmativa que tem recorte étnico-racial, conduz à idéia de pluralidade ou de

diversidade contextual sugerida por Munanga (1988), candidatos pretos, pardos ou

brancos proferiram discursos variados inclusive internamente a cada segmento.

Para nós, a relevância social desta tese é ter procurado adentrar um pouco mais

na complexidade do processo de classificação/identificação racial em experiência

brasileira de ação afirmativa. De nosso ponto-de-vista, tal complexidade resulta não

apenas da “intrincada trama do nosso universo de classificações” (Silvério, 2002a,

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p.225), mas, também, de um desencontro entre a agenda identitária dos movimentos

negros entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 e as particularidades de

identificação étnico-racial para sustentar programas de ação afirmativa com viés étnico-

racial. Com efeito, é possível afirmar que organizações dos movimentos negros

brasileiros entre 1980 e 1990 apostaram na visibilidade numérica da população negra

como ferramenta política. A campanha que antecedeu o Censo de 1991 é prova dessa

perspectiva: “Não deixe sua cor passar em branco. Tenha bom Censo” (NASCIMENTO

e NASCIMENTO, s/d). Essa campanha pode apontar para uma certa fluidez na

demarcação das linhas de cor/raça, ao estimular a autodeclaração em outras categorias

que não a branca.

Ora, com o advento de programas de ação afirmativa, tal perspectiva torna-se

inadequada na medida em que a questão, agora, é fortalecer a diferenciação da linha de

cor para barrar candidatos “de ocasião” que se declaram não-brancos para beneficiar de

prioridades em programas de ação afirmativa. Ou seja, tais experiências abrem a

possibilidade, no Brasil, de que não declarar-se branco pode ser benéfico.

A fluidez do modo brasileiro de auto ou heteroclassificação de cor/raça já vinha

sendo apontada como um obstáculo para a introdução no Brasil de experiências de ação

afirmativa, desde os anos 1990, inclusive por Rosemberg (1999)1. Algumas soluções

foram sendo sugeridas, por vezes, no calor do debate e sem ponderação mais

aprofundada. Bailey e Telles (2002), por exemplo, referem-se a um projeto de lei, da

então Senadora Benedita da Silva, para incluir em documento oficial declaração de

pertença (“one’s race”),sem que tenha explicitado quem faria tal classificação, sem que

se tenha idéia das possibilidades ou não de alteração de declaração pregressa. Pode-se

imaginar o estardalhaço mediático se esta lei fosse aprovada e adotada.

Instituições pioneiras, em solo brasileiro, na implementação de experiências de

ação afirmativa com viés racial logo atentaram para esta questão. Por exemplo, ela é

mencionada desde o início pelo que tem sido considerado como “primeiro projeto de

ação afirmativa para pessoas negras no Brasil” (Silva, 2003), o “Geração 21. Tal

projeto, criado em 1999, como “fruto da aliança social estratégica” entre Geledès (ONG

do Movimento Negro), Fundação Bank-Boston e Fundação Palmares, oferecia bolsas de

1 Esse foi uma das questões consideradas no manifesto assinado pelos “Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis racias”, que foi entregue ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, em 30 de abril de 2008. Dentre esses “cidadãos anti-racistas” figuram Yvone Maggie, Marcos Chor Maio e Peter Fry, apenas para apontar alguns cientistas sociais que assinaram o documento (http://revistaepoca.globo.com).

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estudos a adolescentes negros(as) do final da 8ª série do ensino fundamental ao término

da graduação no ensino superior (Silva, 2003).

Em um capítulo específico sobre o tema no livro “Ações afirmativas em

educação: experiências brasileiras”, Cidinha da Silva (2003) adentra a discussão pública

da questão e talvez seja quem tenha introduzido as expressões “negros(as) de ocasião e

negros(as) emergentes” (p. 47): “Estamos chamando de negros(as) de ocasião aquelas

pessoas oportunistas e/ou desonestas que se declaram negras com o fim exclusivo de

conseguir uma vaga, cujo acesso não seria possível caso se declarassem brancas,

morenas ou quase brancas como fizeram a vida inteira” (Silva, 2003, p. 47). E a autora

sugere, quando possível, entrevista com “especialista” para dirimir dúvida2.

Ou seja, apesar de a quase totalidade das experiências de ação afirmativa para

ingresso no ensino superior, via cotas ou bonificação, adotar a autodeclaração como

definição “se uma pessoa pode ou não ser considerada negra” (Ferreira, s/d apud Paixão

e Carvano, 2008, p. 82), encontramos pouca discussão pública sobre procedimentos

para impedir a passagem da linha de cor “por oportunismo”.

Rosemberg (mimeo 7) considera esta uma das tensões que a implementação do

Programa IFP enfrentou no Brasil: de um lado, não violentar os candidatos impondo-

lhes uma classificação étnico-racial que não a própria; de outro, impedir a identificação

“de ocasião” com os grupos-alvo do Programa IFP.

Com efeito, as polarizações do debate em torno das ações afirmativas na mídia e

fora dela, posições de ataque e defesa, têm dificultado uma reflexão mais interna sobre

tais estratégias na implementação de programas de ação afirmativa. Neste sentido, a

defesa de Feres Júnior (2006, p. 55) do argumento de justiça social é uma importante

aliada neste estudo, uma vez que o autor apresenta uma articulação entre o conceito de

ação afirmativa, a sustentação retórica dessas políticas e os procedimentos para sua

implementação.

Assim, de acordo com o princípio de justiça social, “a ação afirmativa justifica-

se simplesmente pela constatação de desigualdades que são grupo-específicas e,

portanto, passíveis de se tornar objeto de políticas públicas”. Trata-se de um princípio

que favorece a operacionalidade de programas de ação afirmativa, com recorte racial no

sentido de indicar critérios pragmáticos para a eleição de seus futuros beneficiários. O

2 Nota-se, com relativa frequência na literatura e em algumas experiências de ação afirmativa para ingresso no ensino superior (por exemplo o da Universidade de Brasília), a expectativa de um critério objetivo externo para classificação de cor/raça como no caso de Cidinha Silva (2003) o apelo a “especialistas”.

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autor sugere que sejam adotadas as categorias de cor/raça do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), de modo a encontrar sustentação em evidências

estatísticas de desigualdade, bem como a dispensar qualquer essencialização identitária.

Porém, isto não é suficiente, posto que resolve, apenas, um dos problemas que a

implementação de experiências de ação afirmativa devem responder: o dos grupos-alvo.

Resta, porém, o segundo problema: o da identificação. Trata-se de um campo em grande

tensão: como fazer justiça e, ao mesmo tempo, criar barreiras para evitar identificações

raciais “de ocasião” e não violentar as pessoas que se candidatam a um programa de

ação afirmativa quanto a sua pertença racial.

Esta tese procurou, então, participar da compreensão dessa complexidade,

descrevendo e interpretando discursos étnico-raciais no contexto do Programa

Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford3 (International

Fellowships Program - IFP), procurando jogar luz nessa questão.

Quando Feres Júnior (2006) apresentou as dificuldades operacionais das

justificações de programas de ação afirmativa pautadas nos argumentos de reparação e

de diversidade, destacou a distância entre o campo retórico e o campo prático. No que

tange aos aspectos fundamentais, definição dos beneficiários e sua identificação, parece-

nos que o Programa IFP esteve consciente desse contexto político-pragmático desde o

seu início.

O objetivo do Programa IFP é aprimorar o potencial de liderança via pós-

graduação, de pessoas envolvidas com a promoção da justiça social, que provêm de

segmentos sociais subrepresentados no ensino superior. O Programa IFP foi criado no

ano de 2000 e foi implementado, gradualmente, em 22 países da África, América

Latina, Ásia, Oriente Médio e na Rússia, locais de atuação da Fundação Ford

(www.programabolsa.org.br). Apesar de seu caráter internacional, o Programa

estabeleceu que a definição de qual(is) segmento(s) seriam atendido(s) ocorreria de

acordo com a especificidade de cada país.

O Programa IFP no mundo oferece bolsas de estudo de até três anos em nível de

mestrado ou doutorado, stricto sensu ou profissional especializado, “para que mulheres

e homens, com potencial de liderança, possam continuar sua formação superior, dando-

lhes a oportunidade de se capacitarem para promover o desenvolvimento de seus países

3 O sítio oficial do Programa informa que a Fundação Ford é uma organização de caráter privado, sem fins lucrativos, que foi criada nos Estados Unidos da América “para ser uma fonte de apoio a pessoas e instituições inovadoras em todo mundo, comprometidas com a consolidação da democracia, a redução da pobreza e da injustiça social e com o desenvolvimento humano” (www.programabolsa.org.br).

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7

e comunidades de origem, assim como de promover maior justiça social”

(www.programabolsa.org.br).

O lançamento do Programa IFP no Brasil se deu no ano de 2001, em um

contexto efervescente de debates a respeito da implantação de ação afirmativa no nível

de graduação no país. A Fundação Carlos Chagas (FCC)4 é a instituição brasileira

responsável pela coordenação do Programa desde 2002. A escolha da FCC como

instituição parceira da Fundação Ford (FF) na implantação do Programa IFP, deveu-se à

sua “reconhecida reputação e respeitabilidade nos campos de concursos públicos”,

formação de recursos humanos e também por sua experiência nas áreas de produção de

conhecimento sobre desigualdades raciais no sistema educacional brasileiro, bem como

o incentivo à investigação de novos temas (ROSEMBERG, mimeo 7, p . 2). O

Programa IFP, no Brasil, concedeu bolsas exclusivamente para doutorado e mestrado

stricto sensu, com prazos máximos de 36 meses e 24 meses, respectivamente,

adequando-se às normas internacionais e nacionais. No Brasil, o Programa IFP

processou sua oitava e última seleção em 2009, tendo oferecido 343 bolsas no total

(ROSEMBERG, 2009, p. 2).

Apesar de sua vinculação a um formato central, análises e descrições sobre a

implementação do Programa IFP, no Brasil, destacam algumas de suas especificidades

locais. A primeira especificidade brasileira é de ter se identificado, desde o início, como

um programa de ação afirmativa, por dar preferência a segmentos sociais sub-

representados no ensino superior brasileiro (ROSEMBERG, mimeo 6, p. 3). Operando

com uma conceituação que enfatiza a ação afirmativa como uma ação focalizada que

provê tratamento preferencial a certos grupos, visando aumentar a proporção de seus

membros em setores da vida social, nos quais tais grupos se encontram sub-

representados em razão de discriminações históricas ou atuais (CALVÈS, 2004, p. 7), o

Programa IFP no Brasil se inscreve na perspectiva de justiça social, conforme Feres

Júnior (2006, p. 47).

De acordo com Rosemberg (2008, p. 205), tal embasamento, juntamente com o

conceito de “subrepresentação” e não de exclusão social, por exemplo, favoreceu a

adoção de critérios pragmáticos para a identificação dos candidatos, por ser um

termo/conceito de “caráter descritivo e de melhor manejo operacional”. Assim, o

Programa IFP elegeu como seus grupos-alvo, pessoas que se identificam como pretas ou

4 A Fundação Carlos Chagas é uma instituição privada sem fins lucrativos, reconhecida como de utilidade pública nos âmbitos federal, estadual e municipal e foi criada em 1964 (www.fcc.org.br).

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pardas ou indígenas5 ou que tenham nascido nas regiões Norte, Nordeste, Centro-oeste

ou provenientes de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas e

educacionais (www.programabolsa.org.br). São esses segmentos sociais, conforme

inquéritos realizados pelo IBGE, que dispõem, no país, de menor acesso à pós-

graduação. Para Silvério (2008, p. 234), ao escolher como grupos-alvo os membros dos

grupos subrepresentados por origem socioeconômica, região e origem étnico-racial, o

Programa IFP, no Brasil, agiu de modo “exemplar sobre os três principais gargalos das

desigualdades sociais brasileiras”.

O Programa IFP adotou como principal estratégia para determinar a pertença aos

três grupos-alvo, a autodeclaração dos candidatos, inclusive a pertença étnico-racial. Tal

recurso à autodeclaração está coerente com a recomendação da Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, também, com os princípios

democráticos, conforme indicação de Feres Júnior (2006, p. 57).

[...] em uma sociedade com instituições de matriz democrático-liberal como a nossa, não se pode ignorar completamente a identidade que os indivíduos escolhem. Ou seja, a autonomia moral de cada um é o pressuposto básico da cidadania democrática, e essa autonomia inclui fazer escolhas identitárias, por mais que estas possam parecer equivocadas aos olhos de alguns.

De início, a Equipe da Fundação Carlos Chagas considerava que tais

procedimentos adotados no Formulário para Candidatura seriam filtros para barrar

autodeclarações “de ocasião” (Rosemberg, 2004). Porém, as entrevistas previstas no

processo seletivo do Programa IFP, realizadas apenas para um pequeno conjunto de

candidatos que ultrapassavam etapas preliminares, apontaram que os filtros não eram

suficientes.

Assim, logo após a Seleção de 2003, a Equipe da Fundação Carlos Chagas

organizou um seminário com representantes dos movimentos negros e estudiosos das

relações raciais para discutir a questão: como melhorar os procedimentos do Programa

visando manter a autodeclaração de cor/raça e evitar passagem da linha de cor “de

ocasião”.

Dentre as possibilidades para diluir a tensão, ampliaram o Formulário para

Candidatura ao Programa IFP – instrumento-chave do dossiê elaborado pelos

candidatos à seleção –, incluindo mais duas questões: a primeira, logo após a

autodeclaração de cor/raça conforme as alternativas tradicionais usadas nos inquéritos

5 A população indígena não será objeto de estudo desta pesquisa.

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do IBGE (branca, preta, parda, amarela e indígena), solicita ao candidato que justifique

porque optou pela categoria indicada; a segunda solicita que o candidato relate “suas

vivências ou experiências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial” (Formulário

para Candidatura, Seleção 2004).

Foi este conjunto de respostas a estas quatro questões – autodeclaração de

cor/raça, justificativa da autodeclaração, relato das experiências/vivências relacionadas

à pertença étnico-racial e identificação de pertença – fornecidas por uma amostra de 169

candidatos autodeclarados brancos, pretos e pardos ao Formulário para Candidatura da

Seleção 2007 que constituiu o corpus desta pesquisa.

Se atentarmos para a busca de solução apresentada pela seção brasileira do

Programa IFP à intrincada questão da identificação étnico-racial em contexto de

programa de ação afirmativa, em conexão com sua justificativa de busca de justiça

social, observamos que o termo “negro” assume duas conotações: de um lado uma

categoria analítica resultante da integração de pretos e pardos em um único contingente

populacional e que permite apreender a desigualdade entre brancos e negros no acesso

ao ensino superior ou a outros bens sociais; de outro, uma categoria de identificação,

identitária ou política.

Tal diferenciação nas conotações do termo negro não estava posta desde o início

da elaboração deste projeto de tese. Ela foi se configurando à medida que fomos

analisando os discursos proferidos por nossa amostra de candidatos ao Programa IFP na

Seleção Brasil 2007, bem como na releitura de Munanga (1988), de Silvério (2002a) e

no encontro com as reflexões de Sergio Costa (1997, 2001, 2002, 2007). Parodiando o

título do artigo de Rosemberg (2004) “O branco do IBGE continua branco na ação

afirmativa?”, nossa questão é: a categoria negro, construída a partir das categorias do

IBGE para sustentar o combate a desigualdades raciais, mantém esse significado quando

usada por candidatos para identificar-se como negros em programa de ação afirmativa?

Conforme mencionamos acima, o encontro com textos de Sergio Costa (2002),

especialmente o artigo “A Construção Sociológica da Raça no Brasil”, foi de grande

utilidade para domarmos o objeto de pesquisa, particularmente após a análise dos

resultados, quando observamos diferenças sistemáticas entre discursos de candidatos

autodeclarados pretos e pardos. Por vezes, discursos de candidatos pardos mais se

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aproximaram daqueles proferidos por candidatos autodeclarados brancos do que de

pretos.6

Evocamos, então, observações de Sergio Costa (2002, p. 54-55), quando discute

e distingue os estudos e os usos do conceito raça: de um lado, os estudos que procuram

compreender as desigualdades raciais e que adotam um modelo bipolar negro-branco de

classificação racial; de outro, os estudos que procuram compreender a construção da

idéia de nação ou de identidade negra. “Se a categoria raça constitui recurso

metodológico indispensável para a identificação das desigualdades raciais, o mesmo não

se pode dizer, todavia, do uso do conceito como categoria geral de análise da dinâmica

da sociedade brasileira” (Costa, 2002, p.49).

De um lado, portanto, não haveria contestação ao fato de que o Programa IFP

considerasse pretos e pardos como grupos-alvo, construindo a categoria negro, na

medida em que, por um lado, se agrupam frente à proximidade que apresentam quanto à

desigualdade de acesso, permanência e sucesso na pós-graduação e, por outro lado, se

distanciam de brancos (tabela 1).

Tabela 1. População total e com mestrado e doutorado por cor ou raça.

Brasil 2007.

População Com

mestrado/doutorado

Taxa

de frequência

Branca 93.762.324 513.285 0,55

Preta 14.138.162 16.397 0,12

Parda 80.302.472 72.184 0,09

Negros 94.440.634 88.581 0,09

Fonte: FIBGE, Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, 2007.

Isto é, a distância entre brancos, de um lado, e pretos e pardos de outro, é

notável. Além disso, a proximidade estatística entre as taxas de frequência ao mestrado

e doutorado entre pretos e pardos, além do enfoque interpretativo, permite agrupá-los

em uma única categoria, a de negros.

6 Alguns professores e livros de metodologia criticam o procedimento adotado pelo NEGRI de enunciarmos já na introdução, resultados da pesquisa. Fúlvia Rosemberg, em nossos seminários, assinala que dissertação e tese não é romance policial cuja leitura é orientada pela busca ansiosa do desfecho. Para ela, de fato, o objeto é completamente apreendido ao final do trabalho, quando se têm os resultados em mãos. Além disso, enunciá-los na introdução significa considerar o leitor como igual, estabelecendo relação dialógica.

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Porém, quando se passa para o plano das vivências e experiências relacionadas

ao pertencimento étnico-racial é possível manter esta categoria no plano analítico?

Como veremos em detalhe no capítulo 2, da Parte III, tal passagem parecenos enfrentar

óbices notáveis.

Para dar conta dessa empreitada, foi necessário fazer um percurso bibliográfico,

que permitisse “domar” o objeto de pesquisa, bem como contextualizar essa produção

discursiva. Assim, na Parte I desta tese, trataremos de estudos sobre racismo e seu

enfrentamento: estudos sobre racismo; o racismo no Brasil; ação afirmativa

conceituação e debate no Brasil; debates e práticas e classificação racial no Brasil. Na

Parte II, discutiremos algumas teorias sobre identidade racial, refletindo sobre a

adequação de sua utilização para auxiliar na implementação prática de programas de

ação afirmativa. Finalmente, na Parte III, apresentaremos análises e interpretações dos

discursos étnico-raciais proferidos por candidatos ao Programa IFP.

E como método de pesquisa, seguindo o caminho que vem sendo trilhado pelos

pesquisadores do NEGRI, adotamos a hermêutica de profundidade (HP) como

metodologia de trabalho para análise de produções dicursivas (ou formas simbólicas).

Nesta tese, as formas simbólicas analisadas provêm das respostas de candidatos à

Seleção 2007 Formulário para Candidatura do Programa IFP, onde foram examinados

os discursos proferidos nos campos específicos relacionados à autodeclaração e

identificação racial. Adotando a proposta de John B. Thompson (1995), utilizamos a HP

como interessante recurso metodológico quando propõe três etapas para a análise

discursiva: a do contexto sócio-histórico, a das formas simbólicas e a da interpretação-

reinterpretação.

John B. Thompsom (1995) assinala que todas as áreas de conhecimento

levantaram problemas de compreensão e interpretação e que há uma diferença básica

entre as ciências naturais e as sociais. Nas ciências sociais, o objeto é pré-interpretado.

O mundo sócio-histórico é, ao mesmo tempo, campo-objeto, que está ali para ser

observado, e campo-sujeito, que é parcialmente construído pelos sujeitos. Como ponto

de partida, John B. Thompsom entende como necessário, inevitável, porém não

suficiente o que ele chamou de interpretação da doxa ou a hermenêutica da vida

cotidiana. Ou seja, como os objetos de nossas investigações se situam em campos pré-

interpretados, é necessário uma interpretação das opiniões, crenças e compreensões

desses sujeitos que constituem o mundo social.

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Antes de prosseguirmos, é necessário conhecermos como John B. Thompsom

(1995) define formas simbólicas. Na introdução de seu livro, o autor reuniu

considerações históricas acerca da importância que as formas simbólicas foram

alcançando com o desenvolvimento capitalista, o qual ampliou, de forma antes

inimagináveis, as possibilidades de sua produção, reprodução e de circulação na

mediação da cultura. Para o autor, formas simbólicas são construções reconhecidas

socialmente como significativas, podendo ser lingüísticas, não-lingüísticas ou mistas

(envolvendo imagem e palavras), tais como: falas e expressões, textos escritos, gestos e

ações, imagens, rituais, programas de televisão e obras de arte, etc. Para o autor

interessa que as formas simbólicas são produzidas, vinculam e são recebidas em

contextos sociais estruturados, ou seja, contextos que envolvam relações de poder,

formas de conflito e desigualdades. As formas simbólicas não são apenas

representações, mas servem tanto para articular quanto para obscurecer relações entre

pessoas e grupos. O autor ainda afirma que as formas simbólicas, continuamente e

criativamente, estão implicadas na composição das relações sociais como tais, pois as

formas simbólicas também produzem realidade.

Para o estudo e análise dos significados das formas simbólicas, John B.

Thompson (1995, p. 182-192) apresenta cinco aspectos que lhes são típicos: os aspectos

intencional, convencional, estrutural e referencial estão relacionados aos termos

“significado”, “sentido” e “significação”. O aspecto contextual está relacionado às

características socialmente estruturadas das formas simbólicas. O aspecto intencional

caracteriza-se pelo “querer dizer”, pelo “tencionar” de quem estabeleceu ou criou as

formas simbólicas, para expressar certos objetivos e propósitos para um outro(s)

sujeito(s) e também pela capacidade de que tais expressões sejam percebidas como

intencionadas. O aspecto que John B. Thompsom chamou de convencional refere-se às

características, tanto de produção quanto de recepção, que envolvem a aplicação de

regras, códigos ou convenções que estão diretamente relacionadas com tais formas

simbólicas. O aspecto estrutural indica que as formas simbólicas são estruturalmente

articuladas em seus elementos constitutivos. O aspecto referencial nos direciona para o

que as formas simbólicas representam, pois elas “referem-se a algo, dizem algo sobre

alguma coisa”. E, finalmente, o aspecto contextual aponta que as formas simbólicas

estão sempre incluídas em processos e contingências sócio-históricas específicas de

produção, transmissão e de recepção. Em contextos sociais estruturados, as pessoas

ocupam posições e constroem trajetórias diferentes que determinam suas ações e

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interações. Esses contextos sociais são espacial e temporalmente específicos e são

estruturados, ou seja, implicam em “assimetrias e diferenças relativamente estáveis em

termos de distribuição de, e acesso a, recursos de vários tipos, poder, oportunidades e

chances de vida” (JOHN B. THOMPSON, 1995, p. 198).

Levando em conta que as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e

recebidas em condições sociais e históricas específicas, e que a preocupação exclusiva

com a interpretação da doxa é tão ilusória como o equívoco de não levá-la em

consideração, Thompson (1995) propõe irmos além da hermenêutica de vida cotidiana,

para então assim examinarmos as maneiras como as formas simbólicas estão

estruturadas, bem como as condições sócio-históricas que as engendram. Deste modo, o

autor estabelece três fases para a HP que servem de inspiração para esta tese: análise

sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/re-interpretação. Tais fases

“devem ser vistas não tanto como estágios separados de um método seqüencial, mas

antes como dimensões analiticamente distintas de um processo interpretativo complexo”

(1995, p. 365).

A análise sócio-histórica, que é a primeira fase, tem por objetivo “[...]

reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das

formas simbólicas” (JOHN B. THOMPSON, 1995, p. 366, grifos do autor). É uma fase

importante, porque as formas simbólicas não se mantêm num vácuo, elas são pois,

fenômenos sociais circunscritos em contextos de produção, circulação e recepção, cujas

condições sócio-históricas específicas “podem ser reconstruídas com a ajuda de

métodos empíricos, observacionais e documentários” (JOHN B.THOMPSON, 1995, p.

34). O autor descreve cinco níveis distintos de análise: 1) “situações espaço-temporais”

- análise dos locais e tempos específicos nas quais as formas simbólicas são

engendradas e recebidas; 2) “campos de interação” – análise das posições e trajetórias

que determinam as oportunidades de acordo com o “capital” (econômico, cultural,

simbólico) de cada pessoa; 3) “instituições sociais” – análise do conjunto de regras e

recursos e as relações sociais que estabelecem; 4) “estrutura social” – análise das

assimetrias e diferenças em que se estabelecem nas instituições e nos campos de

interação, de modo sistemático e duradouro, em termos de distribuição e acesso a

recursos, bem como ao poder, oportunidades e perspectiva de realização; 5) “meios

técnicos de construção de mensagens e de transmissão” – análise do substrato material

por meio dos quais as formas simbólicas são produzidas e transmitidas.

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Assim, entendemos que os discursos produzidos por candidatos ao Programa

IFP, e que foram analisados nesta tese, constituem formas simbólicas. Além disso,

consideramos que o contexto sócio-histórico de sua produção, circulação e recepção

assimetricamente estruturado, ou seja, hierarquizado, comportando inúmeras

desigualdades, dentre elas a desigualdade racial. Segundo Costa (2007, p. 240), a

sociedade brasileira por um lado “se apresenta política e juridicamente como liberal”,

por outro lado “funciona como uma sociedade estamental ou de castas que limita

sistematicamente as chances de ascensão social dos grupos demográficos [...]”. Neste

trabalho focalizaremos as desigualdades raciais, particularmente no campo da

Educação.

Elaborada uma reflexão sobre o contexto sócio-histórico em que são construídos,

transmitidos e recebidos os relatos sobre experiências raciais, passarei à segunda fase da

HP que consiste na análise formal ou discursiva. Para John B. Thompsom (1995), esta

fase tem por objetivo descrever as formas simbólicas quanto à sua organização interna,

focalizando suas características narrativas e estruturais, seus padrões e valores. Para o

autor, os objetos e expressões que transitam nos campos sociais são também

“construções simbólicas complexas que apresentam uma estrutura articulada” (JOHN B.

THOMPSON, 1995, p. 369, grifo do autor). Ou seja, as formas simbólicas são o

resultado de ações situadas, mas que também dizem algo mais e isto exige um diferente

tipo de análise, que deve levar em conta o contexto sócio-histórico de sua produção.

Apesar de sugerir alguns métodos tais como análise semiótica, análise da conversação,

análise sintática, análise narrativa e análise argumentativa o autor não deixa de sinalizar

a possibilidade de uso de outros métodos que sejam mais adequados, pois a escolha do

procedimento de análise depende dos objetivos e circunstâncias específicas da pesquisa.

Neste sentido, acompanhando o que já vem sendo feito em diversas pesquisas do

NEGRI, usaremos o método de análise de conteúdo apoiando na perspectiva de Bardin

(1977) e Rosemberg (1981), para o estudo dos relatos sobre experiências eventuais

étnico-raciais, que será desenvolvido na Parte III. A técnica de análise de conteúdo

se propõe a descrever aspectos de uma mensagem, objetiva e sistematicamente, e algumas vezes, se possível, quantificável, a fim de interpretá-la, de acordo com os pressupostos da investigação. O processo de análise de conteúdo, nesta perspectiva, nada mais é que uma tentativa de categorizar partes de um discurso, tentando, assim, desvendar significados pouco claros ou trazer, para o primeiro plano, aspectos comuns subjacentes e sossobrados na diversidade estilística (ROSEMBERG, 1981, p. 70).

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A terceira e última fase da HP é a interpretação/re-interpretação. Os

resultados das fases anteriores servem de ponto de partida para esta fase, indo além de

ambas pelo seu caráter sintético. Pela análise sócio-histórica obtêm-se luz sobre as

condições sociais de produção, circulação e recepção das formas simbólicas e pela

análise discursiva, suas características formais. É ao mesmo tempo momento de

interpretação e de re-interpretação, pois se trata de re-interpretação de um objeto-

domínio que já está interpretado e compreendido por aquelas pessoas que compõem o

mundo sócio-histórico, ou seja, trata-se de atribuir novos sentidos às formas simbólicas

estudadas.

Nesta introdução é necessário, ainda, justificar a opção por adotarmos a

expressão “discursos étnico-raciais” e não outras expressões, por exemplo, discursos

raciais. Optamos por manter esta expressão em decorrência do fato de ela ter sido

utilizada em todo material veiculado pelo Programa IFP, inclusive na solicitação ao

candidato para que produzisse um relato “relacionado às suas vivências ou experiências

étnico-raciais” (Formulário para Candidatura, Seleção 2007).

Iniciamos, a seguir, a busca por entendimento que o pesquisador empreendeu,

num caminho que, em alguns momentos, foi sinuoso, cheio de seduções e provas, mas

que, também, permitiu acumular referências firmes, que mencionamos acima, bem

como resultados instigantes e, provavelmente, inconclusivos.

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PARTE I – O RACISMO E SEU ENFRENTAMENTO

Nesta tese entendemos ação afirmativa com recorte racial, como uma das

estratégias de enfrentamento ao racismo. Deste modo, era indispensável uma incursão

bibliográfica nos estudos sobre o racismo e seu enfrentamento, particularmente no que

diz respeito as ações afirmativas. Focalizaremos aqui: estudos sobre racismo; conceito

de ação afirmativa; o racismo no Brasil; ação afirmativa no Brasil: debates e práticas e

classificação racial no Brasil e ação afirmativa.

CAPÍTULO 1 – Estudos sobre racismo e seu enfrentamento

O racismo, no formato de teoria científica, aparece no final do século XIX. Com

a efetiva ocupação colonial da África é que teorias pseudo-científicas legitimaram e

justificaram tanto a escravidão, quanto a colonização. O preconceito em relação ao

negro, tratado como um ser humano inferior e primitivo, já ocorria entre os europeus

“antes do aparecimento da escravatura no Novo Mundo [séc. XVI e XVII]”

(TAGUIEFF, 1997, p. 47) Mas é a partir de produções discursivas de diversos

intelectuais do século XIX que se institui o racismo. Como afirma Munanga (1988,

p.20): “Numa época em que a ciência se tornava um verdadeiro objeto de culto, a

teorização da inferioridade racial ajudou a esconder os objetivos econômicos e

imperialistas da empresa colonial”.

Ao efetuar uma discussão semelhante à de Munanga (1988), Taguieff (1997)

identifica autores que não reconhecem a existência de um local e data de nascimento

para o racismo, o que ele chamou de visão antropológica. Por esta maneira de ver, o

racismo seria inerente ao homem ou à natureza da sociedade. Mas, por outro lado, numa

visão que denomina “modernista”7, haveria aqueles que caracterizam o racismo como

fenômeno ideológico e sociopolítico que teria surgido na Europa e no Novo Mundo na

idade moderna. Assim, se colocariam, de um lado, os que pensam o racismo como

herança do etnocentrismo e de outro aqueles que o vêem8 como resultado de uma

modernidade capitalista, individualista, igualitarista ou científica.

7 Mantivemos como está no livro, que foi editado em Portugal. 8 Neste trabalho ainda utilizaremos a antiga ortografia, que tem validade até dezembro de 2012.

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Taguieff (1997) irá concordar com a origem européia e moderna do racismo,

mas antes irá considerar ingênuo imaginar que o racismo só tenha passado a existir

depois de ser nomeado. Afirma que, no idioma francês, a palavra surgiu nos anos 1920.

A geminação [sic], num discurso explícito, da “doutrina das raças” ou da “mística das raças”, com uma visão expressamente hostil que tem como alvo algumas categorias raciais ou racializadas, preexistiu, e isto, desde a segunda terça parte do século XIX, à formação da palavra “racismo”. O fenômeno “racismo” precedeu o surgimento do termo, referindo-se a ele explicitamente (TAGUIEFF, 1997, p. 25).

As várias formas de emergência do racismo na modernidade, desde os séculos

XV e XVI, caminharam de forma independente até o século XIX, como informa

Taguieff (1997), mas destaca um elemento que permaneceu para caracterizar este como

um fenômeno ocidental moderno: a tendência à classificação hierarquizada da variedade

dos seres humanos enquanto “raças” diferentes, como “espécies” diferentes, pondo,

assim, em xeque, o pensamento monogenista difundido até então. Na perspectiva

monogenista, era necessário definir o negro, explicar o seu aparecimento, já que

acreditava-se que a origem da humanidade era uma só. Para uns, o negro era um branco

degradado, para outros, ele se tornara o que era devido às condições ecológicas e outros,

ainda, preferiram explicá-lo pela “maldição de Cam”, segundo a qual a descendência

deste deveria ser escrava dos outros filhos de Noé. Por esta última explicação, decorria

que escravizar o negro era uma forma de redenção9. Era a forma “cristã” de salvar-lhe a

alma, argumento este que apaziguava a consciência dos europeus em pleno iluminismo,

de modo que, mesmo algumas ordens religiosas tinham seus escravos ou se

beneficiavam financeiramente daquele comércio des-humano e lucrativo10.

Também identifica-se outra origem do racismo no nascimento da era moderna

ocidental. Para Munanga (2004), foi o momento de substituição do saber teológico

hegemônico pela explicação científica. Ou seja, a partir dos princípios do iluminismo,

do liberalismo, e apoiando-se em classificações naturalistas, o pensamento racista

colocou em dúvida a unidade do gênero humano, fazendo ruir o argumento bíblico da

criação. Nesta mesma linha de pensamento, tem-se a contribuição de Taguieff (1997, p.

26):

9 A pintura intitulada “A Redenção de Cam”, de 1895, de Modesto Brozos y Gomes, mostra uma avó negra de pé com as mãos para o alto, como que em agradecimento: a filha mestiça sentada carregando o neto branco no colo. Sentado, mais ao lado, um homem branco. Para o artista, a redenção do negro seria o branqueamento. 10 Carta Régia de 22/02/1502 mandando pagar à Ordem de Christo a vintena de ouro, dos escravos e de todas as mercadorias que vinham da Guiné (MENDES DE ALMEIDA, 1866).

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[...] Visto que a distinção entre as “raças humanas” é pensada como diferença de natureza ou como desigualdade irremediável, ela desempenha o papel do argumento principal contra a tese da unidade, actual ou original, do género humano. A biologização vai de par com a fragmentação da espécie humana.

A Biologia desempenhou, portanto, essa função, através da classificação

científica dos grupos humanos, baseada nos caracteres físicos, tais como a cor da pele,

os traços morfológicos, etc., “características imaginadas”, no dizer de Seyferth (2002, p.

24), para explicar as diferenças raciais. A tese poligenista, que preconizava múltiplas

origens do ser humano, respaldada pela inserção do ser humano num sistema zoológico,

favoreceu o pensamento racista. Munanga (2004) considera que esse momento de

substituição do saber teológico para um novo tipo de saber, no qual prevalece uma

explicação biológica para o determinismo racial, constituiu a grande virada ideológica

de construção do racismo.

Fundamentando-se em concepção biológica de raças, o racismo seria

teoricamente uma ideologia de cunho essencialista que pressupõe a divisão da

humanidade em grandes grupos humanos denominados raças, que se diferenciariam por

caracteres físicos e hereditários comuns, hierarquicamente valorizados11. O fundamental

nesta ideologia é que o racismo consiste em considerar que os traços físicos e biológicos

determinam as características intelectuais e morais de um grupo específico. Para

Munanga (2004), foi quando começou-se a considerar que havia relação intrínseca entre

caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que, de

fato, surgiu o racismo, desaguando na hierarquização das chamadas raças humanas.

Uma síntese elucidativa das origens modernas do racismo é proposta por

Taguieff (1997, p. 26). O autor estabelece três formas de pensar o racismo como um

fenômeno moderno: “uma teoria modernista restrita, uma teoria modernista ultra-restrita

e uma teoria modernista alargada”. Pela “teoria modernista restrita” identifica-se o

racismo como sucessor direto das elaborações taxonômicas de Lineu, Buffon,

Blumenbach, Camper e outros naturalistas-antropólogos, que se ocuparam, ao longo do

século XVII, de diferenciar as “raças” humanas por suas características morfológicas,

que seriam fixas e hereditárias.

Já pela “teoria modernista ultra-restrita”, seria reservado o termo “racismo” para

aquelas teorias e práticas, denominadas hoje de pseudo-científicas, que estabeleciam

uma relação determinista entre fenótipo e qualidades psíquicas, morais e culturais,

11 Como nos informa Seyferth (2002, p. 25), foi Cuvier quem primeiro representou “as raças como uma hierarquia explicada pelas diferenças de cultura e de qualidade mental, com os brancos no topo e os negros na base”.

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enfatizando uma hierarquia entre os grupos humanos. Essas teorias, biológicas e

antropológicas, foram iniciadas no final do século XVII e aperfeiçoadas no século XIX.

O racialismo de Gobineau e o racialismo evolucionista, com base na teoria de Darwin,

são exemplos deste racismo. Um racismo secular que teria como princípio de autoridade

o conhecimento científico (TAGUIEFF, 1997, p. 36).

A “teoria modernista alargada” apreende características pré-racialistas do

racismo, que teriam surgido à revelia das classificações das “raças humanas” e seriam

anteriores a elas. O que Taguieff (1997) chama de “proto-racismo moderno”

caracteriza-se por modos de exclusão e de configurações ideológicas que legitimam tais

práticas. Teria surgido entre o século XV até início do século XVIII, e apresentaria os

seguintes ideologemas, como são nomeados pelo autor: 1) o mito da pureza de sangue;

2) o racismo escravagista e antinegrista e 3) “racismo aristocrático à francesa”:

[...] o mito do “sangue puro” e a obsessão correlativa de uma “mácula do sangue”; a convicção de uma inferioridade natural de alguns grupos percebidos como infra-humanos, em razão de seus costumes [...] ou da cor da pele [...]; a visão, na doutrina aristocrática francesa dita das “duas raças” com uma diferença hierárquica entre linhagens que distinguem e opõem as suas qualidades hereditárias, donde a idéia de uma “luta” fatal entre nobres [...] e os outros [...] (TAGUIEFF, 1997, p. 37-38, aspas do autor).

Foi na Península Ibérica, entre os séculos XV e XVI, que surgiu o primeiro

proto-racismo ocidental. Em Espanha e Portugal, a instituição de “estatutos de pureza de

sangue”12 tinha como objetivo impedir o acesso de judeus ao exercício do poder

político. Imaginava-se que a pureza e a impureza fossem transmitidas hereditariamente.

Um judeu, mesmo que se convertesse, continuaria judeu. Ocorreu uma judeofobia

racializada que essencializava o diferente. Ao menos nessa parte da Europa, de meados

do século XV a início do século XVIII, nota-se um racismo maniqueísta - “nós, os

puros versus eles, os impuros” (TAGUIEFF, 1997, p, 38 e 43) - aliado à prática de

discriminação social.

Os outros dois ideologemas, o racismo escravagista e antinegrista, bem como o

“racismo aristocrático à francesa”, são considerados, por Taguieff (1997, p. 45), a partir

dos autores que datam o surgimento do racismo desde a expansão européia. É o racismo

12 “[Estatuto Puritate Sanguinis] uma sucessão de normas jurídicas, reais e eclesiásticas, instituídas na Espanha no século XV e, posteriormente, em Portugal, onde vigoraram do século XVI ao século XVIII. No contexto do Estatuto, negros e mulatos [judeus, mouros], entre outros, são considerados como portadores de ‘sangue infecto’, o que lhes vedava o acesso à nobreza, aos cargos públicos e a outros privilégios” (PINTO, 1995, p. 14).

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que surge no contato com as colônias, estruturado a partir da relação vencedores e

vencidos ou senhores e escravos. Na construção da ideologia da superioridade racial dos

dominadores primeiramente interpretaram-se, de forma imaginada, as características dos

povos dominados: seriam idólatras, canibais e anti-cristãos. Posteriormente, adotou-se o

critério da “pureza de sangue”, permitindo legitimar a estigmatização e a discriminação

dos mestiços “brancos/negros ou brancos/índios” (TAGUIEFF, 1997, p. 46).

O proto-racismo anti-judeu e o racismo colonial dos séculos XVI e XVII

antecederam o surgimento do pensamento tipológico. Os doutrinadores destes proto-

racismos não recorreram à ciência para “sacralizar as diferenças hierárquicas entre as

‘raças’, com referências a heranças de grupo erguidas em tantos destinos” (TAGUIEFF,

1997, p. 46).

Conforme a “teoria modernista alargada”, Taguieff (1997) conclui que não é a

classificação taxonômica, fundamentada pela Biologia e Antropologia que dá origem ao

racismo moderno, mesmo que este procedimento científico tenha contribuído, no século

XIX, para justificar e propagar os seus ideologemas. Para fundamentar seu argumento, o

autor recorre à tese de Eric Williams para afirmar que foi a escravatura que esteve na

origem do racismo. Taguieff (1997, p.46) completa ainda, informando que

O “preconceito de cor” é, nesta perspectiva [sic] explicado de acordo com um modelo funcionalista: a sua função é legitimar um modo de exploração que supõe um sistema de domínio, que naturaliza o preconceito racial, tem por assim dizer acumulação da condição servil e da segregação ligada à cor.

Taguieff (1997), no entanto, não nega a ocorrência de um preconceito anti-negro

anterior à escravidão, como pode ser evidenciado pelos proto-racismos voltados para a

idéia de pureza de sangue e de inferioridade dos povos vencidos, como explicado acima.

Da soma de preconceito com racionalidade econômica resultou o surgimento de uma

“ordem sócio-racial”, que combinou segmentação racial com estratificação social e

econômica (TAGUIEFF, 1997; MUNANGA, 1988 e 2004).

Taguieff (1995, 1988 apud D’ADESKY, 2001, p. 25) adota o que ele chama de

modelo quadripartito para interpretar o racismo e também para configurar o anti-

racismo. O racismo, sendo definido a partir de sua relação com a noção de identidade

coletiva, pode se apresentar de forma heterófobica, como denegação da identidade, ou

seja, ele nega radicalmente a identidade de um grupo, a sua existência e seu valor (não

reconhecimento da cultura). Esse racismo atuaria, então, no sentido de apagar, anular ou

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mesmo destruir a diferença entre os grupos. Mas, também, o racismo pode se apresentar

de forma heterófila, caracterizando-se pela denegação da humanidade do grupo alvo do

racismo (negação de uma humanidade comum). Assim, ocorre uma absolutizacão da

diferença, valorizando-a no sentido de manter-se a separação entre os grupos: por uma

“recusa de identidade (não reconhecer como digno de respeito tal cultura,

desumanizamos tal comunidade humana)”, por uma “recusa de humanidade (declar

infra-humanos tal grupo de aparência humana)” (TAGUIEFF, 1997, p. 109).

Para melhor compreensão de seu modelo (veja forma adaptada na página 15),

D’Adesky (2001) informa que Taguieff estabelece dois eixos para sua análise do

racismo. No eixo horizontal, ele coloca em oposição, de um lado, os modernos valores

absolutos do indivíduo e do universal e, de outro os valores holísticos de pertencimento

a determinada comunidade. Assim, tem-se num eixo o racismo universalista, baseado

no modo “indivíduo-universalista”, que se fundamenta na denegação da identidade do

grupo e na afirmação da desigualdade, podendo conduzir-se por uma prática de

assimilação, de uniformização ou de dominação, tendo como pressuposto essencial a

ocorrência de classificação hierárquica entre os grupos. A assimilação dos diferentes

pode se dar por via da miscigenação e pela mestiçagem, como destaca Munanga (1999).

No outro lado desse eixo horizontal, tem-se o racismo “diferencialista/comunitarista”,

que se pauta pelo modo “tradício-comunitarista”: seu pressuposto ontológico é que

existe uma diferença natural entre os grupos humanos, o que lhes permite defender a

diferenciação, a separação, a expulsão e a eliminação, se for preciso. É aquele racismo

próprio de sociedades pluriculturais hierarquizadas, tendo a segregação como prática,

como foi o sistema do apartheid na África do Sul e o Jim Crow, nos Estados Unidos.

Nesse racismo não há lugar para a mestiçagem, pois ela apaga a “diferença que confere

o status de superioridade à ‘raça’ dominante e que legitima a dominação e a exploração”

(MUNANGA, 1999, p. 117).

Já no eixo vertical, o antagonismo é entre as categorias

“espiritualistas/culturalistas” e as categorias “materialistas/biologizantes”, colocando, de

um lado concepções ontológicas (aquilo que é), e de outro, as maneiras de se conhecer

(gnoseologia). O resultado do encontro destes dois eixos resulta na caracterização dos

quatro tipos básicos do racismo, conforme Taguieff (1995, 1988 apud D’ADESKY,

2001).

1) “Racismo universalista do tipo espiritualista”: sua base é uma teoria

evolucionista que preconiza que às raças superiores compete a missão civilizatória sobre

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as demais. Concebe um progresso indefinido da civilização, o qual será atingido pelas

raças mais evoluídas. Deste modo, os grupos humanos são avaliados pelo grau de

evolução, “esclarecimento” e de aptidão para a civilização, sendo mais ou menos

assimiláveis.

2) “Racismo universalista de tipo bioevolucionista ou biomaterialista”: dentro do

processo evolutivo existiriam raças mais adiantadas que outras. É o pertencimento racial

que determina a primazia intelectual e civilizatória, definindo hierarquias fixas entre os

seres humanos. “Esse tipo de racismo, ressalta Taguieff, legitima a dominação colonial

ou a exterminação das raças inferiores, inaptas para o progresso” (D’ADESKY, 2001, p.

27).

3) “Racismo diferencialista do tipo espiritualista”: a ênfase aqui recai na

incompatibilidade de mistura entre os grupos humanos, reconhecidos como portadores

de especificidades identitárias espirituais/culturais que devem ser preservadas de modo

a não se misturarem. Na verdade, a mistura é percebida como algo degradante.

4) “Racismo diferencialista do tipo biomaterialista”: tem como pressuposto o

poligenismo, ou seja, que a humanidade não tem origem comum, sustentando que dos

diversos grupos humanos, as chamadas raças, derivam de espécies distintas, não

havendo assim, qualquer possibilidade de cruzamento entre elas. Há expressa rejeição à

miscigenação, considerada como uma transgressão às leis naturais.

Para cada tipo de racismo corresponderia um tipo de anti-racismo similar,

comportando outra forma de identidade. Segundo Taguieff (1995, 1988 apud

D’ADESKY, 2001), tem-se, então, os anti-racismos universalistas, que preconizam a

igualdade e unidade da espécie humana, rejeitando a concepção poligenista. Orientam-

se pelos valores universalmente consagrados de respeito ao ser humano, sem

discriminação de qualquer natureza. No dizer de Munanga (1999), é um tipo de

integracionismo que se pauta no indivíduo “universal”. E os anti-racismos

diferencialistas, defensores da conservação das identidades coletivas e a manutenção

das diferenças entre os grupos humanos. Preconizam sociedades plurirraciais e

pluriculturais, onde as culturas diversas poderiam compartilhar um espaço geopolítico,

tendo direitos iguais, conforme Munanga (1999). Portanto, os duplos dos racismos

anteriormente apresentados são:

1) “anti-racismo universalista de tipo espiritualista”: acredita que, em condições

favoráveis, os chamados grupos inferiores podem progredir. O progresso para todos é

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possível, desde que haja uma educação que combata os preconceitos e as

especificidades culturais e que também racionalize os costumes;

2) “anti-racismo universalista de tipo bio-materialista”: defende que as raças

humanas são realidades temporais, pois acredita que exista a unidade humana.

Pressupõe a existência de uma raça “adiantada”, que estabeleceu um parâmetro a seguir,

a moderna civilização ocidental. Preconiza uma assimilação universal de todos os

grupos, através da miscigenação;

3) “anti-racismo diferencialista de tipo espírito-cultural”: preconiza a

preservação das identidades culturais e a proteção das comunidades chamadas naturais,

contra um processo “imperialista” de homogeneização e uniformização;

4) “anti-racismo diferencialista de tipo biomaterialista”: exige respeito às

particularidades culturais, preconiza que as raças têm características

psicossocioculturais específicas, irredutíveis e não repassadas a outra raça. “Respeitar

essas diferenças bioculturais naturais é deixar cada raça desenvolver-se livremente:

‘separadas mas[sic] iguais’ ”(D’ADESKY, 2001, p 29, grifo do autor).

O modelo de Taguieff é um modelo possível para o entendimento da temática

étnico/racial, pois como nos lembra D’Adesky (2001, p. 30), “não existe uma ciência ou

uma disciplina específica sobre os problemas étnicos, menos ainda métodos e

instrumentos de análise apropriados ao estudo dessa questão”. O modelo ora proposto

dá a idéia da complexidade de tal temática. Ao perguntar “Por quê [sic] ser anti-

racista?”, essa complexidade fica ainda mais evidente, pois o autor propõe seis respostas

prováveis: 1) “Em nome das luzes”, a civilização versus a barbárie; 2) “Em nome de

uma verdade científica”, um discurso da verdade; 3) “Em nome do Bem”, um anti-

racismo moral; 4) “Em nome do impedimento do pior”, também da ordem da moral,

porém o foco não é a realização do bem, mas impedir o pior; 5) “Em nome da paz e da

igualdade”, um dever universalista de unificação do gênero humano e 6) “Em nome do

direito à diferença”, para preservar a diversidade e respeitar as identidades coletivas

Taguieff (1997, 103-125). O autor não deixa de apontar que os fundamentos, para cada

uma dessas respostas, são contraditórios. Ao suposto antagonismo subentendido entre as

respostas 5) e 6), ou seja entre universalismo e diferencialismo, o autor conclui por

apontar uma solução pragmática: “o anti-racismo não pode ser abordado apenas do

ponto de vista dos seus fundamentos, de mesma forma que o racismo não é redutível a

um problema para o pensamento”. Taguieff ainda enfatiza que o racismo deve ser

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combatido imperiosamente, no plano da ação, independentemente de ser bem conhecido

ou compreendido.

As dificuldades especulativas encontradas pela tentativa de basear a luta contra o racismo podem e devem ser postas entre parênteses nos contextos onde a acção [sic] não puder esperar. [...] A questão agora já não é senão de oportunidade, e a finalidade reduz-se à obtenção de resultados, através da adaptação às condições de contexto. A eficácia da estratégia adoptada [sic] [...] impõe-se como o critério provisório da escolha que incide sobre a orientação geral – universalista ou diferencialista – da acção [sic] anti-racista, com a condição de defendermos apenas o direito à diferença, subordinando-o à exigência de universalidade (TAGUIEFF, 1997, p. 125).

É pertinente o que o autor destaca, quanto ao caráter de urgência da luta anti-

racista, particularmente para a realidade brasileira, uma vez que já se passaram 121 anos

da Abolição da Escravatura e a população negra, em sua maioria, ainda não alcançou

seu status de cidadania. No entanto, deparamos com um tropeço em nossa viagem. O

modelo do Taguieff parece situar-se exclusivamente no plano do simbólico, do

pensamento, da ideologia. Assim, a pergunta a si fazer é mais ampla: como entender o

racismo institucional usando este modelo? Em que uma teoria de racismo, que coloca a

questão da estratégia anti-racista em termos de universalismo ou diferencialismo pode

nos ajudar na implementação de um programa de ação afirmativa? Antes de responder,

atentos à complexidade do fenômeno, façamos um breve exame de uma mudança no

conceito de racismo, estudada por alguns autores.

O racismo atual não é aquele teorizado e praticado entre os séculos XVI e o

século XVIII. Não é fruto da secularização, do positivismo científico e do “pensamento

classificatório”, do mesmo modo teorizado e praticado entre o final do século XVIII e o

final do século XIX. Tampouco, “uma mitologia mortífera que atingiu o seu resultado

final com o genocídio nazi dos judeus da Europa, cujos traços apenas teríamos de

reconhecer e denunciar”. O racismo é, pois, um fenômeno que se recicla e se re-

contextualiza, como afirma Taguieff (1997, p. 60).

Foi a partir dos progressos das Ciências Biológicas (Genética, Bioquímica,

Biologia Molecular), nos anos 1970, que a concepção de racismo, com base em

explicações biológicas, começou a sofrer mudanças (MUNANGA, 2004). Mas, a

despeito dos avanços da ciência atual, insiste-se na hierarquização entre grupos

humanos, só que agora não mais com base na Biologia, mas numa concepção

racializada (biologizada) de certa categoria social em questão, como se a ela fosse

atribuída um estigma.

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Houve uma tendência, em estudos e textos, de chamar de racismo qualquer ação

discriminatória ou atitude preconceituosa contra mulheres, pobres, homossexuais, etc.

“Trata-se aqui de um racismo por analogia ou metaforização, resultante da biologização

de um conjunto de indivíduos pertencendo a uma mesma categoria social”

(MUNANGA, 2004, p. 26). Essa forma de racismo seria qualificada como “qualquer

atitude ou comportamento de rejeição e de injustiça social” (MUNANGA, 2004, p. 40).

Tal maneira de ver o racismo é muito criticada, como veremos mais adiante.

Kabengele Munanga (2004) considera que a virada mais importante no conceito

do racismo se deu no momento em que se passou a valorizar a diferença, mas no sentido

de manter-se a separação. O principal exemplo que esse autor nos traz é a legislação do

apartheid a partir de 1948, um projeto fundamentado no multiculturalismo, política e

ideologicamente conduzido por interesses de grupos dominantes. Assim, reivindicando

o respeito à diferença e à identidade cultural, o chamado novo racismo prescinde da

noção de raça. Segundo Taguieff (1997, p. 60), tem-se que: “O princípio da

metamorfose ideológica recente do racismo reside precisamente na deslocação da

desigualdade biológica entre as raças para a absolutização da diferença entre as

culturas”.

Para Wieviorka (1996, p. 10), a crise da modernidade “desperta os velhos

demônios do racismo e do nacionalismo”. O autor aponta, que até o início nos anos

1970, havia uma confiança no progresso da humanidade e se acreditava que o racismo

diminuiria gradualmente nos países ocidentais. Porém, mudanças no cenário econômico

e político de alguns países europeus, fez arrefecer essa idéia de um progresso inevitável

e temas como racismo, xenofobia e anti-semitismo voltaram a fazer parte da agenda

política de grande parte da Europa. Segundo o autor, nos anos 1960 no Reino Unido, já

se faziam sentir os ventos de uma mudança que atingiria a maioria das sociedades

européias. Uma das conseqüências da crise econômica foi a expansão de um discurso

racializado no tratamento dos imigrantes, o recrudescimento progressivo do racismo e

da xenofobia em diversos países: Reino Unido, França, ex-República Federal da

Alemanha, Itália, Bélgica e outros. O problema comum a todos esses países é que, a

partir dos anos 1970, nota-se um enfraquecimento da classe operária, aumento do

desemprego, bem como elevação do número de idosos. Esse cenário, de acordo com

Wieviorka, favoreceu um novo espaço para a expansão do racismo, como resultado do

ressentimento da população que se viu preterida das políticas do Estado de Bem-estar,

que não conseguiram atender às demandas sociais. A expansão do neoliberalismo nos

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anos de 1980, fez agravar a situação de escassez de recursos e isto fez crescer os

nacionalismos e “as questões de identidades”. De acordo com Wieviorka (1996, p. 13),

Esses nacionalismos traduzem o sentimento de que a identidade e a cultura nacionais encontram-se ameaçadas. Voltam-se contra os imigrantes, mas também contra os judeus ou os ciganos, para denunciar a invasão cultural que esses povos possam representar, realçando o caráter irredutível de sua cultura ou de sua religião. O racismo, então, torna-se cultural.

O racismo foi reformulado e passou-se a combater os imigrantes na Europa e os

chamados grupos étnicos em diversas partes do mundo. É de triste lembrança as guerras

de “limpeza étnica” na antiga Iugoslávia ou em Ruanda, por exemplo.

Esse novo racismo caracteriza-se por seu foco na “cultura” e não na “raça”; na

absolutização da diferença, posta como irreduzível, o que irá definir a não

assimilabilidade entre elas e “por fim, o seu caráter simbólico, no que respeita às regras

da aceitabilidade ideológica (daí uma certa complexidade retórica): trata-se de rejeitar

os diferentes, celebrando ao mesmo tempo a diferença” (TAGUIEFF, 1997, p. 64).

Este racismo sutil e indireto é praticado sob eufemismos como o direito à

diferença, em nome da tolerância e respeito às culturas. O conteúdo para a definição do

novo racismo é diferente para cada país: nos países europeus utilizam-se categorias

culturais fechadas e estáticas, como a categoria raça; já nos Estados Unidos,

diferentemente, conforme Guimarães (1999, p. 180)

o “novo racismo” estaria mais próximo do racismo à brasileira, no qual categorias biológicas são ainda utilizadas para discriminar e excluir, mas tais categorias não são reconhecidas ou confessadas, escondendo-se sob codinomes, alusões e figurações. No Brasil, mas não nos Estados Unidos, a marca principal desse racismo é que, em vez de categorias culturais, como religião ou valores, serem consideradas irredutíveis e irremovíveis, é uma categoria econômica – a classe ou a posição econômica – que é considerada responsável pela discriminação ou exclusão social.

Dado este novo perfil do racismo, transformado em culturalismo e

diferencialismo, Taguieff (1997) chama a atenção para a exigência de atualização da

luta anti-racista, alertando que não servem mais os argumentos tradicionais de luta

contra o racismo doutrinal, pois já não se trata mais de um racismo de cunho “biologista

e inigualitarista”, pois se está no campo do racismo simbólico, afirma. É sim um

racismo sutil, implícito e velado, pois não segue uma cartilha explicitamente racializada,

acompanhada de manifestações ou reivindicações, reconhecíveis e conseqüentemente

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condenáveis. Taguieff (1997, p. 58) afirma que, de fato, “ele é uma formação de

compromisso entre pulsões de hostilidade e o respeito da norma anti-racista

interiorizada pelo efeito da educação”. É um racismo que age no campo do simbólico,

“como uma maneira de contornar as legislações anti-racistas e de evitar ser identificado

socialmente como ‘racista’” (TAGUIEFF, 1997, p. 59).

Para pensarmos a ação anti-racista, é oportuno dar uma resposta à questão que

foi formulada logo acima. Taguieff (1995) coloca as opções de luta contra o racismo,

nos termos de escolha entre universalismo e diferencialismo. Consideramos que o

modelo é interessante, porém, no contexto brasileiro, não oferece espaço para a

implementação de programas de ação afirmativa. Uma vez que não sinaliza para o

combate ao racismo no plano material, ou seja, das desigualdades, como pode nos

ajudar na implementação de um programa de ação afirmativa? Isto porque, se de um

lado, tem-se uma negação às políticas de ação afirmativa, a partir de uma concepção

liberal subjacente à orientação universalista (PAIXÃO, 2008, p. 37), de outro a noção

de diversidade, que fundamenta uma perspectiva diferencialista, é um argumento frágil

para a defesa dessas políticas, em função da pulverização de beneficiários que

acarretaria, como atesta Feres Júnior (2006, p. 58).

O modelo de Taguieff (1995) pode permitir o entendimento do novo racismo na

Europa ou nos Estados Unidos da América, mas para o caso brasileiro, é de maior

utilidade uma concepção que aponte também para as desigualdades sociais e não para as

diferenças culturais. Além do mais, por ter como foco as diferenças culturais, um

racismo culturalista pode conduzir a uma diluição do conceito, favorecendo uma

apreensão fragmentada da realidade fenomêmica, como assinala o próprio Taguieff

(1997, p. 61). Essa falta de precisão conceitual leva Guimarães (1999) e Munanga

(2004) se alinharem ao denunciar o que consideram o risco de banalização dos efeitos

do racismo. Para Munanga (2004, p. 40), isto levaria a um “esvaziamento da

importância ou da gravidade dos efeitos nefastos do racismo no mundo”. Guimarães

(1999, p. 36) salienta que considerar racismo qualquer tipo de discriminação é

transformá-lo “numa metáfora, numa imagem política”.

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Ao examinar a conceituação de John Rex13, no que diz respeito às condições

gerais que fundamentam a hierarquização social, Guimarães (1999) afirma que tais

condições se aplicariam não só ao campo das relações raciais, mas a todo e qualquer

hierarquia social: gênero, classes, grupos religiosos, etnias, raças e outros. Pode-se

acrescentar a este rol, a hierarquia por idade. Porém, Guimarães (1999, p. 28) chama a

atenção para o caráter reificado que tais formas de desigualdade podem assumir, ou

seja, serem “justificadas em termos do pretenso caráter natural da ordem social”.

Segundo Guimarães (1999), a conseqüência dessa banalização é a perda de

precisão conceitual no estudo das relações raciais. Pois, há que se considerar que os

grupos sociais não estão submetidos, ao mesmo tempo e da mesma forma, às condições

de desigualdade.

Apesar do fato de todos os grupos humanos considerarem “naturais” as características pelas quais eles se diferenciam, uns dos outros, e ademais de estarem todos submersos em situações de desigualdade de poder, de direitos e de cidadania, o fato é que as teorias e os critérios empregados para distinguir os grupos não são sempre os mesmos, nem têm, todos, os mesmos fundamentos e as mesmas conseqüências (GUIMARÃES, 1999, p. 29).

Da mesma forma, Rosemberg e Andrade (2008), defendendo um conceito de

heterocronia ou não-sincronia, pensam um modelo mais complexo, não convergente e

não paralelo de análise e afirmam que os vetores da desigualdade não atuam

necessariamente no mesmo sentido. Alertaram que é necessário precisão para se estudar

as diferentes formas de desigualdade, considerando as especificidades de cada

identidade social. Para os autores, as hierarquias de gênero, raça, classe e idade se

articulam de forma complexa, não sendo redutíveis umas às outras. Segundo Rosemberg

(2001), tem-se buscado, muitas vezes, no Brasil, uma compreensão simultânea dessas

hierarquias, fazendo-se uma associação linear entre os eixos de desigualdade,

dificultando uma compreensão diferenciada delas. Portanto, levar em conta um modelo

não paritário e associativo abre a possibilidade de se apreender a complexidade e as

contradições nas diversas relações inter e intra-institucionais. Para os autores isto quer

dizer

13 Sociólogo sul-africano que foi membro do comitê de experts da Unesco sobre condição da raça e do preconceito racial, em 1967 e foi presidente do Comitê de Investigação da Associação Sociológica Internacional (www.john-rex.com). Para Rex, qualquer hierarquia social estaria fundamentada em: “(1) uma desigualdade estrutural entre grupos humanos convivendo num mesmo Estado; (2) uma ideologia ou teoria que justifica ou respalda tais desigualdades” (GUIMARÃES, 1999, p. 28).

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[...] que a interseção dessas relações pode levar a interrupções, descontinuidades, alterações ou incremento do impacto original das dinâmicas de raça, classe, gênero ou idade em dado contexto social ou institucional. Nem as pessoas individualmente, nem os movimentos sociais desenvolvem em perfeita sincronia consciência de classe, gênero, raça e idade. Por exemplo, a busca de superação de desigualdades de gênero pode ignorar, ou mesmo apoiar-se, em desigualdades de raça. Além disso, é possível supor que as desigualdades não são sincrônicas nos diversos campos sociais e nos diversos momentos da trajetória de vida de uma pessoa (ROSEMBERG e ANDRADE, 1998, p. 434).

Sem esgotar o conceito de racismo que propõe, Guimarães (1999, p. 29) destaca

também a necessidade de um recorte ideológico14, considerando uma teoria que tenha

“raça” como pressuposto. Deste modo, toma emprestado de Kwame Anthony Appiah o

termo “racialismo”. Appiah (1997), procurando distinguir as diversas doutrinas que

disputam o termo “racismo” no século XIX, estabelece três classificações, de acordo

com seu entendimento. A primeira, o “racialismo”, seria uma teoria das “raças”, serviria

de pressuposto para as outras doutrinas. Segundo essa doutrina

[...] existem características hereditárias, possuídas por membros de nossa espécie, que nos permitem dividi-los num pequeno conjunto de raças, de tal modo que todos os membros dessas raças compartilham entre si certos traços e tendências que eles não têm em comum com membros de nenhuma outra raça. Esses traços e tendências característicos de uma raça constituem, segundo a visão racialista, uma espécie de essência racial; e faz parte do teor do racialismo que as características hereditárias essenciais das “Raças do Homem” respondam por mais do que as características morfológicas visíveis – cor da pele, tipo de cabelo, feições do rosto – como base nas quais formulamos nossas classificações informais.

Para Appiah (1997, p. 33), o racialismo é uma crença ou doutrina, que, por

operar coma idéia de raça, não é necessariamente perigosa “mesmo que se considere

que a essência racial implica predisposições morais e intelectuais”.

A segunda doutrina, chamada de “racismo extrínseco”, considera que, membros

das diferentes raças são moralmente distintos entre si em conseqüência da chamada

essência racial que cada qual tem. “A base da discriminação que os racistas extrínsecos

fazem entre os povos é sua crença em que os membros das diferentes raças diferem em

aspectos que justificam o tratamento diferencial; [...]” (APPIAH, 1997, p. 33, grifo do

autor).

Já a terceira doutrina, o “racismo intrínseco”, estabelece “(...) diferenças morais

entre os membros das diferentes raças, por acreditarem que cada raça tem um status

14 No sentido crítico, pois são formas “que respaldam as desigualdades sociais e as justificam” (GUIMARÃES, 1999, p. 29).

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moral diferente, independentemente das características partilhadas por seus membros”.

Por isto mesmo, defendem seu direito de preferir alguém do seu próprio grupo e não de

outros, como sustenta Appiah (1997, p. 33).

Diferentemente de Appiah, no entanto, Guimarães (1999) considera que a

“essência racial” pode ser definida pela cultura, tanto na percepção das marcas físicas e

sua correlação com valores morais, psicológicos e simbólicos, quanto nas regras de

transmissão dessa “essência”.

[...] Appiah parece acreditar às vezes que essa “essência racial” tem características absolutas que, para ele, coincidem com a definição norte-americana de “raça”. Para mim, ao contrário, essa “essência” é definida pela cultura, utilizando diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, a depender do contexto histórico, demográfico e social (GUIMARÃES, 1999, p. 28).

Guimarães (1999) constrói argumentos contra um realismo ontológico para a

análise dos fenômenos, defendendo a necessidade de compreender os sentidos

subjetivamente intencionados das ações sociais. Para ele, “Não é necessário reivindicar

nenhuma realidade biológica das ‘raças’ para fundamentar a utilização do conceito em

estudos sociológicos” (GUIMARÃES, 1999, p. 31). Foi tendo por base essas reflexões

de Guimarães (1999), que adotamos, neste estudo, “a perspectiva nominalista da

Sociologia que considera raça como uma construção social que ganha sentido ao ser

utilizada para orientar e compreender classificações sociais hierarquizadas”

(ROSEMBERG, mimeo 1).

Alguns estudiosos preferem adotar o conceito de etnia pensando, assim, fugir de

um discurso biologizante, o que nem sempre acontece15. Falar de etnia, no entanto,

pressupõe o uso do termo numa perspectiva de cultura. Mas, como nos ensina Munanga

(1988, p. 143), é muito complicado pensar o negro no Brasil como um grupo definido

por uma cultura. Incluir o Sergio Costa ? Para explicar seu posicionamento, Munanga

(2004, p. 30) toma emprestado o conceito de população de Jean Hiernaux, que o

entende como “um conjunto de indivíduos que participam de um mesmo círculo de

união ou de casamento e que, ipso facto, conservam em comum alguns traços do

patrimônio genético hereditário”.

Assim, Munanga assinala que prefere usar os conceitos “Negros” e “Brancos”,

numa acepção “político-ideológica” ou os conceitos de “População Negra” e 15 “O termo ‘etnia’ possui má fama atualmente na França, precisamente por não poder mais ser pensado de outro modo a não ser como substituto da palavra ‘raça’” (POUTIGNAT E STREIFF-FENART, 1998, p. 43).

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“População Branca”. Em sua argumentação, o autor aponta para o encontro de culturas

e para o processo de miscigenação ocorrido no Brasil que dão sustentação à idéia de que

aqui temos populações e não raças. Questiona, ainda, uma tendência a se estabelecer

ligações diretas entre biologia e cultura ou raça e cultura, que deixa de considerar que a

“etnia não é uma entidade estática”.

Deste modo, por considerar que a etnia tem historicidade e evolui no tempo e no

espaço, Munanga chama a atenção para o fato de que é um equívoco pensar uma “etnia

branca” ou uma “etnia negra”, pois não levaria em conta as diferenças geográficas e

culturais da população branca e da população negra. Por isto mesmo, também seria

equivocado pensar uma cultura “negra” ou “branca” no singular. O autor julga

pertinente pensar que, no Brasil contemporâneo, estamos todos imersos numa “cultura

de massas, produto da tecnologia, dos meios de comunicação e de consumo, [...]”

(MUNANGA, 2004, p. 31).

Nesse sentido, Sansone (2004, p. 23) traz uma complementação importante, a

partir da pesquisa que realizou na região metropolitana de Salvador entre os anos de

1992 e 1994. Para esse autor, a cultura negra é resultado de um conjunto de relações

sociais, portanto

[...] nem todas as pessoas que podem ser definidas como negras num contexto específico participam da cultura negra o tempo todo. Por essa razão, qualquer definição que dermos da cultura negra e que tente apontar para uma essência supostamente universal das coisas negras será um cobertor curto, que não conseguirá cobrir todos os grupos dentro da população negra.

Neste momento que informamos que não utilizaremos o conceito etnia e que

explicitamos o conceito de raça que assumimos neste trabalho, destacamos, também,

que optamos por uma teoria de racismo que nos parece mais adequada à compreensão

do racismo no Brasil, que está atenta para as desigualdades estruturais e que também

permita incorporar estratégias de anti-racismo que incluam políticas de ação afirmativa.

Seguindo os passos dos pesquisadores do NEGRI, conceituamos racismo como

uma ideologia, uma estrutura e um processo pelo qual, grupos específicos, com base em características biológicas e culturais verdadeiras ou atribuídas, são percebidos como uma raça ou grupo étnico inerentemente diferente e inferior. Tais diferenças são, em seguida, utilizadas como fundamentos lógicos para excluírem os membros desses grupos do acesso a recursos materiais e não materiais. Com efeito, o racismo sempre envolve conflito de grupos a respeito de recursos culturais e materiais. E opera por meio de regras, práticas e percepções individuais, mas por definição, não é uma características de indivíduos. Portanto, combater o racismo não significa lutar

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contra indivíduos, mas se opor às práticas e ideologias pelas quais o racismo opera através das relações culturais e sociais. Na ideologia dominante, em geral não se conhece que o racismo seja um problema estrutural. [...] o termo racismo é reservado apenas a crenças e ações que apóiam abertamente a idéia de hierarquias de base genética ou biológica entre grupos de pessoas. O problema dessas definições restritas de racismo é que elas tendem a fazer vista grossa à natureza cambiante do racismo nas últimas décadas. O discurso do racismo está se tornando cada vez mais impregnado de noções que atribuem deficiências culturais a minorias étnicas. Essa culturalização do racismo constitui a substituição do determinismo biológico pelo cultural. Isto é, um conjunto de diferenças étnicas reais ou atribuídas, representando a cultura dominante como sendo a norma, e as outras culturas como diferentes, problemáticas e, geralmente, também atrasadas (Essed, 1991, p. 174 apud ROSEMBERG, BAZILLI e SILVA, 2003, p. 128).

Chamando a atenção para o campo das desigualdades, Rosemberg (mimeo 1 e 3)

nos alerta que o racismo brasileiro opera ao mesmo tempo nos planos simbólico e

material. No plano simbólico, o racismo manifesta-se através da aceitação da crença da

superioridade, entendida como natural, de um grupo racial sobre o outro, por exemplo,

na consideração da inferioridade do negro em relação ao branco. Sendo o plano das

relações horizontais16, temos a expressão aberta, latente ou velada, de preconceitos,

provocando efeitos deletérios e dilacerantes sem suas vítimas, mas que não é o bastante

para explicar toda a desigualdade racial no Brasil, como aponta Rosemberg (mimeo 3).

No plano estrutural ou material, os diferentes segmentos raciais têm, sistematicamente,

acesso desigual a bens materiais e não materiais, ou seja, aos recursos e equipamentos

disponíveis na sociedade.

No contexto brasileiro, o caráter de urgência a que faz alusão Taguieff (1997)

parece-nos, portanto, orientar-se para o combate às desigualdades raciais. Trataremos,

mais à frente, das desigualdades de acesso ao ensino superior.

A luta anti-racista dos grupos do movimento negro brasileiro tem sido orientada

para o combate ao racismo tanto na dimensão simbólica quanto estrutural. A demanda

por inclusão e valorização da história da África nos currículos escolares, que resultou na

aprovação da Lei 10.63917, é um exemplo de luta no campo simbólico. Por outro lado,

há também aquelas estratégias que atacam o racismo estrutural, como por exemplo, as

políticas de ação afirmativa, que conceituaremos no Capítulo 3 e que têm sido

consideradas formas privilegiadas de combate às desigualdades, tanto por militantes

quanto por agentes governamentais (ROSEMBERG, 2005, mimeo 8), apesar da

16 Telles (2003, p. 25-26) chama de relações horizontais o eixo simbólico do sistema de relações raciais brasileiras e de relações verticais, o eixo que trata das desigualdades raciais. 17 Foi alterada pela Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que acrescentou a obrigatoriedade da inclusão curricular da temática “História e Cultura Indígena.

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variedade de conceituações e justificativas que a sustentem (Moehlecke, 2009; Feres Jr.,

2006). Vejamos, a seguir, uma panorâmica sobre as relações raciais no Brasil.

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CAPÍTULO 2 – O racismo no Brasil

No Brasil, há muito se convive com um suposto racismo sutil18, como aquele

que vem se configurando tanto na Europa como nos EUA, sob a denominação de novo

racismo. Durante muitos anos, argumentou-se que o Brasil não é um país racista (ainda

hoje, há quem o negue), tendo como contraponto as situações de conflitos raciais em

países como a África do Sul e os EUA. Pelo fato de não ter ocorrido em terras

brasileiras uma segregação racial oficial ou leis racistas, argumenta-se que o racismo

não faz parte de nossa realidade. O que se teria no máximo, seria um preconceito de cor,

que se limitaria à esfera do privado. Porém, ao mudarem a perspectiva teórica e de

análise, estudiosos das relações raciais chegaram a conclusões diferentes a essa. Em um

breve excurso histórico poderemos ter uma visão panorâmica dessa nossa configuração

tão singular, no tocante às relações raciais.

A despeito de sofrer grande influência das teorias raciais produzidas por

cientistas ocidentais, europeus e norte-americanos, tanto no final do século XIX quanto

no século anterior, intelectuais brasileiros acabaram por adotar um pensamento original

sobre a mestiçagem, ao selecionarem o que naquelas teorias raciais ocidentais era mais

apropriado à condição de país mestiço. No Velho Mundo, a mistura de raças era vista

com maus olhos, via de regra, pela intelectualidade. Havia aqueles que teorizavam

contra a mestiçagem, alegando que brancos e negros eram de espécies diferentes e que o

efeito de um cruzamento entre ambos resultaria em anomalias e monstruosidades. Neste

grupo, Munanga (1999, p. 25) inclui Voltaire, Maupetius, Julien Offray de la Mattrie,

Edward Lang e até mesmo Kant. No grupo oposto, que considerava a unidade da

espécie e que via como positiva a mestiçagem, encontramos Buffon e Diderot. Seyferth

(2002, p.27) pondera que a atribuição de degenerescência à mestiçagem foi um dos

principais dogmas do chamado racismo científico, que não ficaram restritos ao mundo

acadêmico, tendo sido também disseminados no meio da população em geral. Silva

(2005) traz uma contribuição importante neste sentido:

A particularidade do racialismo brasileiro foi reestruturar as teorias raciais européias ao contexto local, privando-as da concepção de necessária degenerescência causada pela miscigenação. A doutrina do branqueamento pendeu para uma explicação inversa ao racismo científico. Mantendo a hierarquia em relação ao branco e apontando-o como ideal, considerou que a inferioridade da raça negra seria abrandada com a miscigenação, à medida

18 “Racismo cordial” é o nome do livro editado pelo jornal Folha de S. Paulo e o Instituto de Pesquisas Datafolha, resultado da pesquisa em empreenderam em 1995.

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que os traços fenotípicos deixassem de ser tão marcados. Essa concepção influenciou para um alto grau de importância da cor da pele na hierarquização das pessoas (SILVA, 2005, 49, grifo do autor).

Como informa Silva (2005), a ambivalência de posições em relação à

miscigenação, que dominava o debate europeu, também dividiu a intelectualidade

brasileira. Do lado contrário à mistura das raças estavam João Ribeiro, Nina Rodrigues,

Euclides da Cunha e Monteiro Lobato e do lado favorável, João Batista de Lacerda,

Sílvio Romero entre outros. Acabou prevalecendo esta última posição, mas com a

crença de que o elemento branco se sobreporia às demais raças, consideradas inferiores.

Diversos foram os autores que reiteraram a imagem de um Brasil mestiço, que teria o

branco como elemento superior da sua constituição. No entanto, do cruzamento do

elemento branco com os grupos negro e indígena, defendiam a idéia que o país

resultaria cada vez mais branco, com o passar dos anos: a chamada “solução brasileira”

(Skidmore, 1976, p. 81 apud SILVA, 2005, p. 49). Telles (2003, p. 46), apoiando-se em

Skidmore, traz um bom exemplo do que estamos falando:

[...] em 1912, João Batista Lacerda19, certo de que a miscigenação acabaria por produzir indivíduos brancos, previu que em 2012 a população brasileira seria composta por 80% de brancos, 3% de mestiços, 17% de índios e nenhum negro.

Do século XIX ao início do século XX, prevaleceu esse pensamento brasileiro

de supremacia branca, como nos informa Telles (2003). Pensamento que, no início, foi

influenciado por uma perspectiva eugênica neo-lamarckiana. Linha teórica de origem

francesa, que respaldava a crença na inferioridade dos não-brancos, mas que permitia

aos intelectuais brasileiros defender o processo de miscigenação, como possibilidade de

superação dessa inferioridade. No entanto, a solução que propunham, em função de “sua

sensibilidade às teorias de degeneração racial e tropical” (TELLES, 2003, p. 46), era o

branqueamento pela mistura entre brancos, negros e indígenas.

Mas a doutrina do branqueamento não ficou apenas na intenção. Esse

pensamento foi o sustentáculo da política de imigração no Brasil, como nos lembram

Silva (2005) e Telles (2003, p. 46): “O branqueamento prescrito pelos eugenistas tornar-

se-ia sustentação principal da política de imigração do Brasil”. Isto porque acreditavam

que sendo o estoque branco superior, à medida que se misturassem geneticamente com a

população negra, esta desapareceria, conforme acima ilustrado na previsão de Lacerda.

19 João Batista Lacerda foi médico, antropólogo e diretor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, até 06 de agosto de 1915. (VERGARA, 2005, p. 511)

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A idéia era “tornar o país mais claro” (SCHWARCZ, 1998, p. 187). Também, como

política de Estado, havia a interdição à imigração negra e asiática, esta pelo menos até

19l0. Ao situar a história demográfica do Brasil, Telles (2003, p. 47) evidencia os

efeitos da “grande imigração européia” na composição racial brasileira: “A porcentagem

da população branca em relação à população total do Brasil aumentou de 37% para 44%

entre 1872 e 1890. A população mestiça decresceu de 44% para 41% e a população

negra caiu de 19% para 15%”.

Telles (2003) aponta mudanças nas visões sobre raça no Brasil, que ocorreram

nas décadas de 1910 e 1920, em função da perda de espaço do grupo neo-lamarckiano

na comunidade eugenista, para uma nova geração de acadêmicos, inspirados por uma

perspectiva mendeliana, que não davam tanto crédito ao conceito de raça quanto seus

parceiros no exterior. Além do mais, por influência culturalista, Edgar Roquete-Pinto

fez uma consistente defesa da mestiçagem, na Primeira Conferência Eugênica

Brasileira, em 1929. Tais fatos, além da forte presença de mestiços na elite brasileira,

impediram o Brasil de seguir o caminho trilhado por países como os EUA e a

Alemanha. Conforme Telles (2003, p. 49-50),

[...] a variante da eugenia relacionada à higiene pública, compatível com a mistura de raças e com o mito da democracia racial, ganhou adeptos, o que não ocorreu com a eugenia reprodutiva extremista ou higiene racial ao estilo nazista.[...] a maior parte da elite brasileira e muitos eugenistas haviam começado a exaltar as virtudes da miscigenação brasileira, incluindo a possibilidade de harmonia racial e união.

Sem deixar de ser valorizada , a brancura deixa de ser o objetivo. A mestiçagem

passou a ser encarada como algo distintivo da nação brasileira. O Brasil passou a ser

entendido a partir da imagem de um grande rio (europeu), que absorve os pequenos

afluentes (africano e indígena). O país visto como um “cadinho de raças”, um lugar

onde as raças se misturam, se fundem. Tornou-se comum a argumentação a favor da

existência de uma convivência harmoniosa entre as três raças. Tese fortemente presente

na obra de Gilberto Freyre, o que contribuiu para a propagação, na sociedade brasileira,

da idéia da existência de uma “democracia racial” no país. Silva (2005, p. 54) nos

lembra que

A concepção de que o Brasil era um país sem barreiras que impediam a ascensão social firmou-se internamente. O país esforçou-se para divulgar esta imagem no exterior, o ideário de que no Brasil as relações raciais eram cordiais, e que não existiam demarcações sociais baseadas em critérios de raça. Tal ideário foi, após, a década de 1930, absorvido rapidamente na sociedade brasileira, e passou a ter uma ampla aceitação.

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A obra de Gilberto Freyre, em 1930, deu o tom dessa visão otimista acerca da

mestiçagem (TELLES, 2003, p. 50). Segundo Schwarcz (1998, p. 178), “[...] o mestiço

transformou-se em ícone nacional, em um símbolo de nossa identidade cruzada no

sangue, sincrética na cultura, [...]”. Acrescenta, no entanto, que a valorização se deu no

plano retórico, não de fato. Opinião concordante com Telles (2003) que, ao analisar as

relações raciais da América Latina, afirma que, apesar do discurso positivo em torno da

mestiçagem, as “ideologias”20 não evitaram as injustiças. Ou seja, conforme veremos

adiante, a população mestiça autodeclarada parda situa-se em plano equivalente ao da

população de autodeclarados pretos no acesso aos bens sociais.

As primeiras organizações do movimento negro, por volta dos anos 1930,

compartilhavam desse ideário não conflitivo, pois também acreditavam que o Brasil

seria uma democracia racial. Diversos autores, tais como Fernandes (1964 apud PINTO,

1987), Nogueira (1998), Guimarães (1999), D’Adesky (2001), Seyferth (2002), Telles

(2003) entre outros, apontam o caráter assimilacionista do movimento negro brasileiro

naquele período. Guimarães (2002, p. 146) apresenta um trecho de uma declaração de

princípios do Teatro Experimental do Negro (TEN), organização que defendia os

direitos dos negros, formada em 1944, onde aparece expresso o que ele nomeou de

consenso racial-democrático: “[...] considerando que o Brasil é uma comunidade

nacional onde tem vigência os mais avançados padrões de democracia racial, apesar da

sobrevivência, entre nós, de alguns restos de discriminação”.

Uma das conseqüências da valorização do mestiço foi a desafricanização da

cultura. Para Schwarcz (1998, p. 196-197), esse foi o processo de abrasileirar aqueles

elementos culturais que estavam relacionados aos negros, tais como a feijoada, a

capoeira, que se tornaram representações simbólicas da mestiçagem, além do samba, do

carnaval. Além do fim da perseguição policial ao Candomblé e da escolha de uma santa

“mestiça como os brasileiros” para padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição

Aparecida. Também ocorreu a paulatina associação do futebol aos negros.

Esse culto à mestiçagem implicou em recusa à identidade étnica do negro21

(BANDEIRA, 1990, p. 21), o que resultou numa negação da cultura e também de suas

20 Concepção neutra de ideologia, conforme teoria de ideologia de John B. Thompson (1995). 21 “A recusa à identidade étnica dos negros tem sido negligenciada em todo o intercurso da história, pela sociedade e pelo Estado. Essa recusa engendrou mecanismos ideológicos e práticos de fragmentação da identidade, técnica social de subordinação e a obediência do negro. As comunidades negras rurais são, neste sentido, expressões objetivas de resistência e etnicidade” (BANDEIRA, 1990, p. 21).

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heranças históricas. A despeito de se levar em consideração as contribuições dos

estoques africanos e indígenas, a cultura ocidental foi considerada melhor. Tais medidas

não foram sem conseqüências para o “indivíduo negro”, como bem salienta D’Adesky

(2001, p. 69):

[...] a indiferenciação racial através da mistura sistemática que privilegia o tipo branco e, secundariamente, o tipo moreno mestiço, torna-se, para o negro, [sic] exigência de despertencimento, dever de ruptura, idealização de abertura. Em suma, a mestiçagem, que aparentemente aproxima e une, vem ferir o indivíduo negro que não corresponde ao tipo ideal, o qual, despido de semelhanças, supõe a exclusão e a denegação da identidade.

Ocorreria uma “negação por indiferenciação racial do negro” que é

acompanhada de uma segunda negação, que é cultural. É analisando esta dupla negação

que D’Adesky (2001) aponta as características do racismo brasileiro, nos anos de 1930,

a partir do modelo proposto por Taguieff, acima mencionado. O caráter universalista do

tipo espiritualista pode ser identificado naquilo que o racismo brasileiro elegeu como

valores superiores e universais, quer dizer, a cultura ocidental e o seu caráter anti-racista

universalista do tipo biomaterialista, no seu aspecto assimilacionista, através do

reconhecimento da unidade da espécie humana e da fusão de todos os grupos raciais,

por meio da mestiçagem. Assim, nos anos 1930, o processo de miscigenação foi

valorizado, mas tendo-se em mente o branqueamento da população e da cultura. Este é o

foco deste anti-racismo, não havendo lugar para uma total exclusão, pois as raças

consideradas inferiores teriam a chance de progredir, desde que fossem assimiladas ou

se miscigenassem. Para D’Adesky (2001), considerar esses dois eixos de análise

permite identificar o que ele chamou de “evidência consensual da mestiçagem”, que

apesar de não ser uma unanimidade

[...] mantém um insidioso racismo antinegro e antiindígena que jamais pode ser praticado ou falado abertamente, sob pena de se romper um consenso baseado tanto no racismo quanto no anti-racismo universalista mixófilos. Nesse sentido, a mestiçagem, quando não é produto da “ordem natural”, deve ser compreendida como uma prática e uma configuração ideológica tanto anti-racista quanto racista, devido à sua indução enquanto norma valorizada, quase imperativa, e enquanto prática discriminatória sutil (D’ADESKY 2001, p. 73).

É importante destacar que esse caráter assimilacionista do racismo brasileiro

atingiu também a gama de imigrantes que para aqui vieram. Como nos revela Seyferth

(2002, p. 36), “esperava-se a assimilação cultural e física dos europeus e o

desaparecimento dos negros e mestiços mais escuros, num prazo que variava, conforme

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o autor, entre três gerações e três séculos”. Mas a “nação imaginada”, principalmente a

partir do Estado Novo (1937-1945) e da Segunda República (1945-1964), conforme

Guimarães (2002, p. 117), comportava um paradoxo, nos alerta Seyferth (2002, p. 36):

deveria haver a ocidentalização da população, com seu conseqüente clareamento mas,

ao mesmo tempo, os imigrantes deveriam se misturar, fundir-se, assimilando elementos

das culturas negras e indígenas. O objetivo era abrasileirar todos. Segundo Nogueira

(1998, p. 244/245), o estrangeiro seria aceito na sociedade à medida que deixasse de ser

estrangeiro.

Estudos, patrocinados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (UNESCO), permitiram revelar uma realidade diferente daquela até

então veiculada sobre as relações raciais no Brasil. Esses estudos, realizados no período

de 1951 a 1953, na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco22, foram motivados

pelo interesse da instituição internacional de conhecer a suposta experiência exitosa de

relações raciais harmônicas existentes no Brasil. A idéia básica da organização era de

que o modelo brasileiro poderia ser um alento para que surgissem formas mais

democráticas de convivência racial no mundo, que ainda tinha viva a lembrança das

conseqüências trágicas da Segunda Guerra Mundial.

Conforme Schwarcz (1998, p. 202), a UNESCO esperava que esses “estudos

fizessem um elogio da mestiçagem e enfatizassem a possibilidade de convívio

harmonioso entre as etnias nas sociedades modernas”. Mas o que se viu não foi bem

isto. Se alguns estudos ainda reproduziram a maneira até então predominante de se

encarar as relações raciais brasileiras, outros caminharam no sentido da revisão crítica

dos modelos interpretativos e metodológicos. Estudos importantes, como os de Costa

Pinto, no Rio de Janeiro, Roger Bastide e de Florestan Fernandes, em São Paulo,

trouxeram à tona as desigualdades sociais entre brancos e negros no Brasil, apontando,

dessa forma, as falácias do mito: no lugar de democracia, discriminação; no lugar de

relações harmoniosas, uma “etiqueta racial” que camuflava o preconceito.

Guimarães (1999, p 75) examinou alguns estudos realizados no período de 1940

a 1960, sobretudo aqueles relacionados ao Projeto UNESCO, levando em conta o que

chamou de “diferenças ideológicas”, “diferenças interpretativas” e “diferenças

teórico/empíricas”. O autor concluiu que, apesar das divergências interpretativas, as

22 Na Bahia os estudos foram desenvolvidos por Thales de Azevedo e Charles Wagley; no Rio de Janeiro, por Costa Pinto; em São Paulo, por Roger Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Virgínia Leone Bicudo e Aniela Ginsberg e em Pernambuco, por René Ribeiro (SILVA, 2005, p. 54).

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chamadas escolas “baiana” e “paulista” tenderam mais a pontos de convergência do que

se pensava encontrar, quais sejam: chegaram a um consenso quanto à existência de

preconceito racial no Brasil, bem como à existência de uma democracia racial, enquanto

ideologia e que, a despeito de diferenças regionais, permitiu generalizar as conclusões

que encontraram para o restante do país.

De acordo com Silva (2005, p. 55), o Projeto UNESCO contribuiu de maneira

expressiva para a crítica à idéia de “democracia racial” e também para a transformação

da maneira de se fazer Ciência Social no Brasil, particularmente no campo da

Sociologia. Neste sentido, Schwarcz (1998, p 202) considera que foram fundamentais e

reveladores os estudos empreendidos por Florestan Fernandes, que tiveram como foco o

estudo das desigualdades, a problematização da noção de “tolerância racial”, a

substituição de estudos culturalistas por interpretações sociológicas sobre o lugar do

negro nas sociedade de classes.

Para Guimarães (1999, p. 100), os estudos patrocinados pelo Projeto UNESCO

possibilitaram a construção de uma nova agenda para o estudo das relações raciais no

Brasil. Se alguns brasilianistas e pesquisadores brasileiros enfatizavam anteriormente o

caso brasileiro a partir de uma perspectiva universalista, comparativista e contrastante, a

grande contribuição do projeto foi estabelecer “uma problemática sociológica das

relações raciais propriamente brasileira”, principalmente com as pesquisas de

Fernandes.

Entretanto, as inovações introduzidas e enunciadas por Fernandes, nas Ciências

Sociais e no estudo das relações raciais no Brasil, não ficaram sem crítica por parte das

lideranças do movimento negro, pois a ênfase dos seus estudos supunha que as

desigualdades raciais eram um epifenômeno da luta de classes. Tal abordagem era

coerente com os pressupostos marxianos de Fernandes, mas que se chocava com o foco

do movimento negro nas questões mais voltadas para a cultura e para a identidade

negra. As conclusões de Fernandes, ao desmascarar o mito da democracia racial, no

entanto, foram de grande valia para o movimento negro na sua luta contra a opressão e

as desigualdades impingidas ao negro e na luta pela defesa de sua cidadania, a partir dos

anos de 1970.

Naquela época, a ditadura militar empunhava, de maneira dogmática, a bandeira

de um Brasil em que as relações raciais se davam de maneira harmoniosa e cordial, e

reprimia as manifestações em prol dos direitos de cidadania do negro, bem como

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procurava neutralizar a influência de importantes estudiosos. Como nos lembra Telles

(2003, p. 60):

De 1964 ao final dos ano 70, à medida que o governo militar consolidava o seu poder autoritário, os estudos sobre raças feitos por brasileiros foram aniquilados, pois muitos dos mais influentes estudiosos de raça no Brasil haviam sido exilados. Os estudos sobre essa questão haviam se tornado um perigo à segurança pessoal.

Foi um momento de grande embate, pois o movimento negro defendia a tese da

existência de discriminação racial e não de classe, que se contrapunha ao pensamento da

sociedade, de modo geral e de grande parte da esquerda brasileira, além de ir contra o

ideário hegemônico que estava em voga deste 1930, de acordo com Silva (2005, p. 57).

Este ideário da democracia racial prevaleceu até 1970, apesar das conclusões contrárias

do Projeto UNESCO, as quais não foram imediatamente assimiladas pela população

brasileira, mas que inspirou diversos estudos, a partir dos anos 1970, que tinham como

objetivo o desvelamento do racismo brasileiro. Schwarcz (1999, p. 287) informa que, já

nas décadas de 1980 e de 1990, os estudos “demonstraram como o preconceito de cor

não estava exclusivamente atrelado a uma questão econômica e social; ao contrário,

persistia como um dado divisor social”.

Os estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva (apud GUIMARÃES,

1999) evidenciaram que as desigualdades referentes às oportunidades sociais e

econômicas entre brancos e negros (pretos e pardos) apresentavam um componente

racial, que não deixava dúvidas. Hasenbalg (1979), nos seus estudos, concluiu que raça,

como conceito historicamente construído, é um critério importante para se determinar

posições tanto na estrutura de classe quanto no sistema de estratificação social; que o

racismo é mais que um epifenômeno de estrutura econômica e que sua persistência, na

sociedade brasileira, tem a ver com a garantia de interesses dos grupos hegemônicos na

sociedade. Assim, contrariamente ao que acreditava Fernandes, para Hasenbalg, a

desigualdade racial não desapareceria com o desenvolvimento do capitalismo, como nos

assinala Telles (2003).

Sintetizando o pensamento brasileiro sobre “exclusão racial”, a partir de uma

ampla revisão bibliográfica, Telles (2003, p. 16-21), ao considerar o conceito de

exclusão, afirma que as teorias raciais, no Brasil, tomaram direções distintas. A primeira

geração, tendo Freyre como principal expoente, focalizou as relações horizontais,

argumentando a favor de relações harmoniosas, considerando a mistura de raças.

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Segundo Silva (2005, p. 60), “Os autores [da primeira geração] enfatizaram a

miscigenação racial e sustentaram as teses de que as relações raciais no Brasil são

amigáveis, calcadas na proximidade e cortesia”, negando, assim, a ocorrência do

racismo. Já na segunda geração, instaura-se, a partir de Florestan Fernandes, um novo

modo de ver a raça no meio acadêmico. A partir de estudos das relações verticais, isto é,

tendo o foco nas desigualdades estruturais23 entre brancos e negros, foram realizadas

diversas pesquisas que possibilitaram descrever e interpretar o racismo brasileiro,

jogando por terra a interpretação de uma discriminação branda, como característica da

sociedade brasileira, sustentadas em dados empíricos, as pesquisas constataram

discriminação em diversos âmbitos e dimensões, dentre as quais, destacaremos algumas

no campo da Educação. Boa parte dessas pesquisas apoiaram-se na análise de dados

coletados pelos inquéritos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e, de

modo geral, comparam indicadores educacionais de brancos, pretos e pardos, esses

últimos segmentos agrupados sob a denominação “negros” ou “não-brancos”.

Hasenbalg (1979, p. 221) atestou que, em função dos “efeitos de práticas

discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais, os não-brancos têm

oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos da mesma origem social”.

Em função dos dados empíricos que encontrou, o autor constatou que “os brasileiros

não-brancos estão expostos a um ‘ciclo de desvantagens cumulativas’ em termos de

mobilidade social intergeneracional [sic] e intrageracional” (HASENBALG, 1979, p.

220). A essa mesma conclusão chegou Nelson do Valle e Silva (1988, 2000 apud

SILVA, 2005, p. 72).

Hasenbalg (1987, p. 26) destacou dois fatores explicativos para a diferença de

rendimento escolar de crianças, por classe e raça. Um deles seria um “mecanismo de

recrutamento, ou seja, o aluno negro ou o aluno pobre é absorvido pela rede escolar de

maneira diferente do aluno de classe média ou não pobre”. O outro fator, que seria

conseqüência do primeiro, conforme o autor refere-se ao comportamento dos

professores que, ao trabalharem com uma clientela homogênea, “atuam no sentido de

reforçar a crença de que os alunos pobres e negros não são educáveis”.

Rosemberg (1987, p. 22), também ao examinar rendimento escolar dos

segmentos negro e branco, a partir do estudo dos dados dos Censos de 1980 e da PNAD

1982, constatou que o “sistema escolar interpõe ao alunado negro uma trajetória escolar

23Linha de pesquisa inaugurada com as teses de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, em 1978, como informa Osório (2008, p. 81).

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mais difícil que aquela que interpõe a crianças brancas [...]”. E fazendo coro à idéia de

“mecanismo de recrutamento”, sugere que “o sistema escolar empurraria o alunado

negro preferencialmente para equipamentos destinados à população pobre, e que este

mecanismo poderia encontrar ressonância entre certas famílias negras” (ROSEMBERG,

1987, p. 23).

Gonçalves (1987, p.27) estudou os mecanismos que silenciam a criança negra

em escola pública e que dificultam o desenvolvimento da consciência de sua cidadania.

O autor conclui pela necessidade que, na produção e transmissão do saber, no espaço da

escola, seja contemplada a particularidade cultural da população negra, como forma de

se evitar o silenciamento da criança negra.

Estudando a hipótese de segregação espacial em São Paulo, Rosemberg (1990

apud SCHWARCZ, 1999, p. 292) constatou a existência de desigualdade de acesso ao

ensino básico. Para a autora, mais que os brancos, os negros freqüentam cursos

noturnos. Em outro estudo, Rosemberg (1991, p. 25), depois de analisar os dados

coletados pelas PNADs 1982, 1985 e 1987, a respeito de creche, pré-escolar e séries

iniciais da educação básica, assinalou que “as oportunidades educacionais de crianças

negras são as de pior qualidade que o sistema oferece”. Comentando a adoção de

programas de massa para educação pré-escolar, a autora destacou que eles são

oferecidos em espaços inadequados, sonegam material pedagógico, contratam

profissionais despreparados, com baixos salários e que são responsáveis por um grande

número de crianças. A autora concluiu que, desde a creche, a criança negra inicia uma

trajetória educacional marcada “por experiências frustrantes e de segunda mão”

(ROSEMBERG, 1991, p. 32).

Barcelos (1992 apud SCHWARCZ, 1999, p. 289) mostrou a existência de maior

taxa de analfabetismo para os autodeclarados pretos. Em uma pesquisa posterior,

Barcelos (1993, p. 15) assinalou que os indicadores “educacionais obtidos por pretos e

pardos são sistematicamente inferiores aos de outros grupos raciais”, constatando que a

variável raça tem um importante efeito no processo de estratificação na sociedade

brasileira.

Pinto (1993) referiu-se ao contexto educacional como um “ ‘ambiente’ escolar

hostil, ou pelo menos indiferente aos problemas enfrentados pela criança negra tanto na

sociedade como na escola e, portanto, discriminador, [...]” (PINTO, 1993, p. 26, aspas

da autora). A pesquisadora destacou que esse “ambiente hostil” poderia ser detectado na

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estrutura curricular, no material didático de todas as disciplinas, bem como nas

interações aluno-aluno e professor-aluno

Silva (2005), ao efetuar uma ampla revisão da literatura sobre desigualdades

raciais, localiza e discute uma diversidade de pesquisas que analisaram as profundas

desigualdades no campo da educação: Hasenbalg (1988) constatou um aumento

exponencial das desigualdades nos níveis de ensino mais altos; Rosemberg (1998) notou

que, no Sudeste, o custo-aluno é quase sete vezes mais alto do que no Nordeste rural;

Cavalleiro (1999) revelou que os alunos brancos receberam mais elogios e proximidade

física de seus professores do que crianças negras, no pré-ecolar, as quais também não

têm a quem recorrer quando sofrem alguma discriminação, pois os professores ignoram

esses fatos; (já mencionou antes); Pinto (1993), Rosemberg (1998), Telles (2003) e

Silva (2005) observaram a produção de discurso racista em livros didáticos e de

literatura infantil; Rosemberg (2000 apud SILVA, 2005, p. 70) identificou critérios

discriminatórios na expansão do ensino. Jaccoud e Beghin (2002, p. 31-32), ao

compararem os anos de estudo de brancos e negros, verificaram que

a população negra apresenta grande desvantagem em relação à branca. [...] a diferença em anos de estudo mostra-se mais ou menos estável, em torno de dois anos, ao longo do tempo, ou seja, na década de 1990, os negros não conseguem alcançar mais do que 70% da média de anos de estudo dos brancos. De modo análogo, observa-se que, mesmo havendo redução da taxa de analfabetismo entre negros e brancos, se mantém quase constante a diferença percentual na taxa (cerca de 10%) [...].

Jaccoud e Beghin (2002) comentam o estudo de Soares et alii (2002), que

verificou se os diferenciais encontrados refletiriam uma situação de discriminação

pretérita. Nessa pesquisa foi feita uma simulação supondo-se que os pais dos alunos

negros teriam o mesmo nível educacional dos brancos. Os resultados revelaram que

a maior parte do diferencial racial pode ser atribuída à discriminação na escola. A média de anos de estudo de todas as coortes de nascimento entre 1900 e 1965 é de 5,44 anos para os brancos e 3,16 anos para os negros, perfazendo uma diferença de 2,27 anos de estudo (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 34).

A partir da análise desses resultados, Jaccoud e Beghin (2002, p. 35) concluem

que, em parte, as desigualdades entre brancos e negros são tributárias da discriminação

racial vigente no âmbito escolar. Para Henriques, essa diferença de anos de estudo, entre

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brancos e negros, dá a indicação de que a discriminação racial e o racismo têm efeitos

nocivos sobre os níveis de escolarização, afetando várias gerações, pois

embora todos os brasileiros tenham aumentado os níveis médio de escolarização [no século XX], a diferença de 2,3 anos a menos para os jovens negros em relação aos brancos permaneceu a mesma que a de seus avós (Henriques 2001 apud SILVÉRIO, 2008, p. 219).

Osório e Soares (2005) revelaram que as desigualdades entre negros e brancos

tendem a se perpetuar. Os autores fizeram um “documentário” estatístico para estudar a

trajetória de um grupo de brasileiros que nasceram no ano de 1980, chamado de

Geração 80. Tomando como referência a PNAD 1987, os autores “seguiram” por um

período de tempo, 1987 a 2003, os grupos raciais negro e branco, chamados de

pseudocoortes e avaliaram seus resultados para os indicadores de taxa de alfabetização,

freqüência e não freqüência e série e chegaram a uma das seguintes conclusões:

Os indicadores de educação, em conjunto, nos permitiram documentar um quadro preocupante: além de serem prejudicados por ter uma origem mais humilde, o que dificulta o acesso e a permanência na escola, os negros são prejudicados dentro do sistema de ensino, que se mostra incapaz de mantê-los e de compensar eventuais desigualdades que impeçam a sua boa progressão educacional. No caso da educação, parece óbvio que às desvantagens iniciais – que podem ser consideradas frutos de uma discriminação indireta, resultado da sobre-representação entre os pobres – se sobrepõem discriminações presentes no âmbito do sistema de ensino (OSÓRIO e SOARES, 2005, p. 34).

As diferenças na educação de negros e brancos, que os autores encontraram

fazendo o acompanhamento até a conclusão da graduação, levaram os pesquisadores à

seguinte constatação: “a chance de se encontrar um branco nascido em 1980 que em

2003 tinha concluído um curso superior era cinco vezes maior que a de se encontrar um

negro” (OSÓRIO e SOARES, 2005, p. 32).

Analisando, também, dados do IBGE, de 2002, Heringer (2006) apresenta outra

informação importante: “A população jovem de 20 a 24 anos também mostra níveis

expressivos de desigualdades raciais. Para 53,6% dos brancos cursando educação

superior em nível de graduação, tem-se apenas 15,8% de pretos e pardos” (IBGE, 2003,

p. 218 apud HERINGER, 2006, p. 94). Nesta mesma direção, Rosemberg (2004, p. 261)

acrescenta que o sistema educacional brasileiro mantém profunda desigualdade racial e

afirma que o segmento racial branco é o segmento privilegiado no acesso aos níveis

médio e superior do sistema. Segundo Rosemberg (2004, p. 256-7), mesmo que se

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controle local ou região de residência e nível de renda familiar, as estatísticas

educacionais apontam melhores indicadores para o segmento branco.

Uma outra constante dessas pesquisas é que o destino educacional de pretos e

pardos é equivalente e muito diferente ao dos brancos (ROSEMBERG, 1986).

Guimarães (1999, p. 67) também afirma que não existe brandura no racismo

brasileiro, porque: “Trata-se de um racismo às vezes sem intenção, às vezes ‘de

brincadeira, mas sempre com conseqüências sobre os direitos e as oportunidades de vida

dos atingidos”.

Depois de um aprofundado estudo sobre a persistência da desigualdade racial,

Telles (2003) também assinala um recorte racial na constituição das desigualdades

sociais no Brasil. Segundo o autor, a estrutura da sociedade reflete a importância da

raça, por tanto tempo negada: “Os cidadãos brancos compõem a vasta maioria das

classes média e alta, enquanto os pretos e mulatos se encontram entre os pobres, de

modo desproporcional” (TELLES, 2003, p. 216). Atesta, ainda, que a desigualdade

racial é maior que nos EUA, “pois o Brasil tem uma estrutura sócio-econômica mais

desigual e os negros brasileiros têm menos chance de chegar a seu ponto mais alto. Um

bom exemplo disto é que, a despeito de sermos quase 50% da população, conforme

PNAD 2007 (SOARES, 2008, p. 99), não temos força política correspondente a este

contingente.

Diversos documentos produzidos pelo governo federal atual e também pelo

governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), através de seus institutos de pesquisa,

bem como por outras iniciativas institucionais, revelam que os indicadores sócio-

econômicos dos negros são sempre piores em relação aos dos brancos: salários, níveis

educacionais, índices de desemprego, etc. São muitos os indicadores que atestam as

condições desiguais entre brancos e negros. Assim, a chamada sutileza do racismo

brasileiro vem sendo confrontada e desmascarada, desde os estudos inovadores de

Florestan Fernandes, estendendo-se por diversos trabalhos valiosos tais como: Mapa da

População Negra no Mercado de Trabalho, do Departamento Intersindical de Estatística

e de Estudos Sócioeconômicos (DIEESE), de 1999; Desigualdade Racial no Brasil:

evolução das condições de vida na década de 90, do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA), de 2001 e o Atlas Racial Brasileiro, do Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento (PNUD), de 2004.

Para Silvério (2002a, p. 222), o Estado também tem responsabilidade nesta

realidade: “[...] a dimensão econômica explica apenas parte das desigualdades entre

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negros e brancos, a outra parte é explicada pelo racismo, e a discriminação racial teve

uma configuração institucional, tendo o Estado legitimado historicamente o racismo

institucional”. Passa-se, então, a adotar o conceito de racismo institucional para aqueles

processos de discriminação indireta, que ocorrem nas organizações. Segundo Guimarães

(1999, p. 172), são “ mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema

social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”. Segundo o IPEA

(2005, p. 216),

o racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das organizações e das instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa da sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele manifesta-se em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho das instituições, os quais são resultantes, em larga medida, do preconceito ou dos estereótipos racistas.

O conceito de racismo institucional permite a ampliação tanto dos estudos das

relações raciais, quanto das ações de combate às desigualdades, pois nos permite

estarmos atentos “a todas as ações individuais e institucionais que tenham como

conseqüências o aumento e a sustentação da subordinação do povo ‘negro’” (Miles,

1989, 51 apud SILVÉRIO, 2003, p. 326). Rosemberg (mimeo 3) dá um exemplo

pertinente para entendermos a necessidade da mudança de foco neste campo:

Penso que há um equívoco ao se considerar que o racismo brasileiro seja provocado exclusivamente pelo preconceito racial interpessoal. Posso provocar ações racistas, que redundam em discriminação contra os negros, sem que eu mesma tenha ou expresse preconceito contra negros. Quando reduzo a verba para a escola pública de educação básica, mesmo que não seja uma ação específica contra negros, esta redução terá um impacto na manutenção das desigualdades materiais/estruturais contra os negros. [...] O racismo material se sustenta também via políticas públicas “para todos” que tratam de modo desigual pobres e não pobres.

No mesmo sentido, Telles (2003) dá como exemplo a destinação de

financiamento público municipal que afeta, preferencialmente, escolas com maior

proporcionalidade de alunos “brancos”. Dessa perspectiva, “a legislação anti-racismo no

Brasil, não está apta a inverter este tipo de discriminação” (TELLES, 2003, p. 269).

Portanto, para combater o racismo não bastam leis anti-discriminatórias, de caráter

penal24, mas também apresentar alternativas às práticas institucionais, públicas ou

privadas, que podem reproduzir, modificar e atualizar o racismo estrutural brasileiro

(SILVÉRIO, 2003, p. 326). Uma dessas alternativas é a formulação e a implementação

24 Conforme Silvério (2003, p.326), tais leis sido pouco eficazes e atuado mais ao nível individual.

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de políticas de ação afirmativa que promovam igualdade material a negros e indígenas

em certos aspectos da vida social nos quais têm estado submetidos a condições de

desvantagens: locacional, ocupacional ou educacional, ou seja, para bens e recursos

escassos, conforme Calvès (2004, p. 36)25. A desigualdade locacional tem a ver com o

lugar de residência; a desigualdade educacional relacionada ao grau de escolarização e a

desigualdade ocupacional, relacionada ao posicionamento da pessoa na estrutura das

ocupações (SILVÉRIO, 2003, p. 326).

Como mostrado acima, são imensas as desigualdades no campo educacional. Por

isto mesmo, este tem sido um campo de interesse e de reivindicações do movimento

negro, desde as primeiras entidades negras26 na década de 1930 (ROSEMBERG, mimeo

1; GOMES, 2007) e tem acompanhado “a própria história da educação brasileira ao

longo do século XX” (SILVÉRIO, 2008, p. 223).

Para tentar compreender o que levou o tema do acesso a negros, indígenas e

egressos da escola pública no ensino superior, via ações afirmativas, a ser incluído na

agenda educacional brasileira, dos anos 1990 para cá, Rosemberg (mimeo 1) destacou

quatro possíveis condições sociais: “a seletividade do sistema educacional, a

mobilização pelos cursinhos, a importância atribuída à educação pelo movimento negro

e a atuação do governo federal”. Destacaremos aqui apenas a primeira condição. Para

compreender o caráter seletivo do sistema de ensino, Rosemberg (mimeo 1) propõe três

explicações que estariam complementarmente relacionadas ao racismo. A primeira delas

é a “herança do passado escravista”: aos escravos e pretos livres era vetado o direito à

escolarização27.

Em 1837 foi sancionada lei no Rio de Janeiro que se destinava a regular os direitos à instrução pública primária, assim determinado: Art. 3º: São proibidos de freqüentar as escolas públicas: Parágrafo 1º - Todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas; Parágrafo 2º - Os escravos e os pretos africanos, ainda que livres ou libertos (CUNHA, 1999, p. 87).

Tal situação não foi sanada com a Abolição, pois não se seguiram medidas para

compensar as condições de cativeiro, o que proporcionou desvantagens cumulativas aos

descendentes dos escravos. Como bem afirmam Silva e Rosemberg (2008, p. 75), “O

25 “A preferência não deve ser exclusiva: a pertença ao grupo nunca pode ser o único critério de distribuição do bem

raro subtraído das regras normais da competição” (CALVÈS, 2004, p. 36, tradução livre, grifo nosso). 26 Pinto (1987, p. 9) informa que por volta de 1915 já havia associações negras que reconheciam a importância da educação para a população negra. 27 “Quanto à época da escravidão, não há consenso entre os autores sobre a extensão da escolaridade do negro” (PINTO, 1987, p. 13).

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país não desenvolveu política específica de integração dos negros recém-libertos à

sociedade envolvente, o que fortaleceu as bases do histórico processo de desigualdades

sociais entre brancos e negros que perduram até os dias atuais”. O direito de votar

chegou tardiamente para pretos e pardos, pois até 1960 eles eram a maioria dos

analfabetos do país (TELLES, 2003, p. 202). Esse passado tem a ver com a transmissão

geracional da possibilidade de ascensão social, facilitada que é por melhores condições

educacionais.

São diversos os pesquisadores que atribuem “a importância da escolaridade dos

pais no sucesso educacional dos filhos” (ROSEMBERG, mimeo 1, p.6). Porém,

Gonçalves (2007, p. 325) questiona o mito de que o sucesso escolar dependa, em grande

parte, do capital cultural, principalmente da família, pois famílias com pouco capital

cultural têm conseguido influenciar as gerações futuras. Para esse autor, não dá para

associar direta e mecanicamente sucesso escolar e escolaridade dos pais, a importância

do capital cultural teria que ser relativizado28.

Controvérsias à parte, examinando a escolaridade dos pais e os retornos à

educação no mercado de trabalho, a partir de evidências empíricas, Ferreira e Veloso

(2003), Ramos e Reis (2008, p. 19) afirmam que “Indivíduos com pais mais

escolarizados têm um nível médio de escolaridade bem superior ao dos trabalhadores

com pais pouco educados, indicando uma limitada mobilidade educacional”. Ramos e

Reis, ao examinarem os estudos de Lam e Schoeni (1993), acrescentam ainda que as

“diferenças nos retornos da escolaridade conforme a educação dos pais têm um papel

potencialmente importante no processo de transmissão da desigualdade de rendimentos

entre as gerações” (RAMOS e REIS, 2008, p. 24).

Aliado a um passado escravista, há que se considerarem as condições

educacionais hodiernas. A segunda explicação possível estaria num “ambiente hostil”

da escola, desde o conteúdo curricular, no material didático até nas relações

interpessoais entre alunos e entre professor e aluno, como destacou Pinto (1993). É um

ambiente que deprecia a identidade racial de crianças ou de adolescentes negros,

afetando seu equilíbrio psíquico e sua autoimagem (Teixeira, 1992 apud

ROSEMBERG, mimeo 1). No entanto, a desigualdade produzida no campo da educação

28 Talvez devêssemos perguntar não pelo capital cultural, mas o quanto a família valoriza a educação de seus filhos. Este pesquisador descende de pai não letrado e mãe que se alfabetizou tardiamente, mas que sempre teve apoio e incentivo de seus pais.

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não é explicada somente pelo racismo simbólico, a pesquisadora levanta a hipótese de

que esteja ocorrendo uma segregação espacial de população negra e pobre, no país.

Para fundamentar essa terceira explicação, a autora apresenta resultados de

diversas pesquisas (algumas das assinaladas acima) que sugerem: a) que negros e pobres

não freqüentam exatamente a mesma escola de brancos e não pobres, no que diz

respeito à diferenciação de recursos material, humano e de equipamentos disponíveis

nas escolas frequentadas por ambos os grupos (Rosemberg, Pinto e Negrão, 1986 apud

ROSEMBERG, mimeo 1), bem como aos estudos que se referem ao prognóstico de

desempenho e às profecias autorealizadoras (Hasenbalg, 1997 apud ROSEMBERG,

mimeo 1); b) “que famílias negras de melhor nível sócio-econômico tendam a viver em

áreas mais pobres, ou a se servirem de equipamentos sociais utilizados por famílias

brancas de nível sócio-econômico inferior”. Trata-se da hipótese de segregação

residencial, a qual Telles (2003) dedica um capítulo de seu livro, comparando a situação

brasileira com a norte-americana. Segundo o autor, a segregação no Brasil pode ser

parcialmente explicada pela classe social.

Com efeito, estudos sobre segregação residencial indicam que “integrantes de um grupo racial se concentram no mesmo espaço” não apenas em decorrência de condições socioeconômicas, discriminação no mercado de trabalho, mas também da “preferência de viver nas proximidades de pessoas pertencentes ao mesmo fenótipo” (PNUD, 2005, p. 77 apud ROSEMBERG, mimeo 1).

Ter em mente a hipótese de segregação espacial permitirá identificar e corrigir

mecanismos de desigualdade racial nas políticas públicas, segundo Rosemberg (mimeo

1). O exemplo da instalação de um campus da Universidade de São Paulo (USP), na

zona leste, da cidade de São Paulo é um indicador dessa segregação espacial, pois, de

acordo com Guimarães (s/d, p. 2), os cursos que lá foram instalados não estão entre os

de maior valor social.

Estudos revelam, ainda, que as universidades públicas e privadas de maior

prestígio são espaços de maioria branca.

A seletividade econômica e étnico-racial do ensino superior brasileiro é intensa: o segmento composto pelos 20% mais ricos ocupa 7% das matrículas no ensino superior brasileiro, ao passo que os 40% mais pobres ocupam apenas 3% das vagas. De modo equivalente, 78,5% dos estudantes do ensino superior são branco, apesar de os brancos representarem 55% da população brasileira, 52% do total de estudantes (em todos os níveis de ensino e de todas as idades) e 58% dos estudantes do nível (Censo 2000 apud ROSEMBERG, mimeo 1).

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Sérgio Costa (2002, p. 50-51), sem aprofundar a explicitação do significado, se

refere à segregação como conceito a ser privilegiado, por considerar que tal conceiro

expressaria “melhor a realidade social das relações desiguais [...]”, ou seja, permitiria

estudar as diversas adscrições negativas a partir da dinâmica própria de cada uma, sem

dar a todas o mesmo estatuto de racismo. Deste modo, para o autor seria racismo apenas

uma segregação “propriamente racial”.

O problema de acesso do negro às universidades esbarra, ainda, na sua

invisibilidade nas estatísticas universitárias. Se dependessem de dados agregados pelo

sistema de pesquisas do IBGE (Censos e PNADs, entre outros), as instituições de ensino

superior, individualmente, não disporiam de informações sobre cada unidade. Assim,

não se teriam informações precisas que pudessem atestar a discriminação racial local e

estimular a mobilização por sua superação29. Uma iniciativa importante, e que se

alastrou, foi introduzida pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Até o ano 2000,

nenhuma universidade pública tinha informação registrada sobre a pertença racial ou

declaração de cor de seus alunos. Para que se tenha idéia da mudança, destacamos a

pesquisa de Moro (1993), que precisou, inicialmente, usar do recurso da

heteroatribuição de cor/raça para compor sua amostra, descrevendo a classificação

racial de seus sujeitos de pesquisa a partir de suas fotografias em suas fichas de

inscrição. Num segundo momento, na aplicação do questionário, a pesquisadora utilizou

do recurso da autoatribuição, o que possibilitou a ela denominar de negros aqueles

estudantes “que se auto-classificaram como pretos e pardos” (MORO, 1993, p. 12).

Esse mesmo expediente, também precisou ser usado por Ferreira (1998), em seu

trabalho de iniciação científica, quando pesquisou alunos matriculados no ano de 1994,

na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Foi somente a partir do debate sobre a implantação das políticas de ação

afirmativa que começaram a surgir as primeiras iniciativas visando à classificação racial

dos alunos. A UFBA incluiu a pergunta “Qual é a sua cor?”30, no seu formulário de

inscrição ao vestibular, pela primeira vez, em 1999, exemplo seguido por várias

universidades (GUIMARÃES, 2003c, p. 256).

29 A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também não incluem estatísticas com recorte racial. 30 Em 1998, este pesquisador sugeriu aos órgãos competentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que fosse feita a identificação racial dos candidatos ao vestibular e dos estudantes ingressantes (FERREIRA, 1998, p. 106). Segundo Gomes (2004, p. 43), esse procedimento foi adotado pela UFMG a partir de 2001.

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Os negros (pretos + pardos) encontram-se sub-representados (abaixo de sua

representação na população) nos níveis superiores de escolaridade, principalmente nas

universidades públicas e gratuitas. Como exemplo disto, Guimarães (2003a) nos

informa que, em pesquisa realizada na USP em 2001, os negros eram 8,3% (somando-se

7% dos pardos e 1,3% dos pretos) dos seus alunos. Ao passo que na população do

Estado de São Paulo, pardos representariam 20,9 % e pretos 4,4%. O autor aponta que

as causas para a pequena absorção dos negros na USP têm a ver com: “a) pobreza. b)

qualidade da escola pública; c) preparação insuficiente; d) pouca persistência (pouco

apoio familiar e comunitário); e) a forma de seleção” (GUIMARÃES, 2003c, p. 259).

A pós-graduação não constitui exceção, ao contrário, conforme afirma Silvério

(2008, p. 233)

O grande problema é que esse sistema, tal qual a graduação brasileira nas universidades públicas, tem reproduzido, até mesmo em maior elitismo, a estrutura de desigualdades do país; como conseqüência, ele atua mais como um instrumento de distinção entre os seus participantes, pelas hierarquias que estabelece, do que como instrumento de equacionamento das disparidades regionais. De certa forma, é possível dizer que o sistema de ciência e tecnologia gerado no país, a partir de um grande investimento do Estado, é extremamente ambíguo, pois, se a sociedade como um todo o financiou, apenas uma pequena parte desta mesma sociedade faz usufruto dos seus resultados.

Apesar de ser um nível de ensino considerado bem sucedido em termos de

organização, produtividade, eficiência e eficácia, que alçou o país a uma posição de

destaque na produção de ciência e tecnologia na América Latina e no mundo31, as

desigualdades do sistema educacional brasileiro também configuram a pós-graduação,

dentre elas, as desigualdades regionais e raciais quanto ao acesso e produção racial.

As desigualdades raciais na pós-graduação podem ser exemplificadas com as

evidências empíricas encontradas na pesquisa de Osório e Soares. Os autores

encontraram diferenças na educação de negros e brancos no período que estudaram, de

1987 a 2003. Na Geração 80, enquanto 1% dos brancos prosseguiu seus estudos na pós-

graduação, em 2003, nenhum negro foi encontrado nesse nível. Ou seja, as

desigualdades persistiram (OSÓRIO e SOARES, 2005, p. 33).

Dados do Censo 2000 complementam a visão dessa desigualdade: o percentual

de brancos que freqüentam ou freqüentaram a pós-graduação (0,55%) é nitidamente

31 O país se encontra em sétimo lugar mundial em número de doutores, na faixa etária de 25 a 64 anos. (DOUTORES 2010, p. 18).

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superior ao de pretos (0,12%) e ao de pardos (0,09%). A partir da análise das PNADs

1998, 2001, 2004, 2007 e 2008, os autores do estudo identificaram uma maior inclusão

dos segmentos pretos e pardos na população com mestrado e doutorado, porém, a

situação de desvantagem para os negros não se alterou.

Petrucelli (2004) utilizou resultados do Censo 2000 para questionar se o sistema

de cotas já não seria uma característica estrutural do ensino superior brasileiro, quando

observou que, de um lado, tem-se quase metade da população que se declara preta ou

parda e, de outro, uma proporção de 86,4% de brancos, que freqüentaram e/ou

concluíram mestrado ou doutorado (PETRUCELLI, 2004, p 10 e 23).

Tal desigualdade racial de acesso, permanência e sucesso na pós-graduação

brasileira foi um dos indicadores que levou o Programa Internacional de Bolsas de Pós-

graduação da Fundação Ford a incluir os negros entre seus grupos-alvo.

Para Rosemberg (2005, mimeo 8), discursos e propostas de intervenção de

diversos militantes, pesquisadores e agentes governamentais e não governamentais, têm

privilegiado as ações afirmativas, como forma de combate às desigualdades raciais. No

caso dos grupos do movimento negro, D’Adesky (2006, p. 5) assinala que tal postura se

explicaria pelo “anti-racismo diferencialista do movimento negro brasileiro, desde os

anos 1970, que orientou uma pauta de reivindicações concebidas a partir de uma

“política que faz das diferenças o fundamento mesmo de um tratamento diferente

[preferencial], [...]”.

Para nós, o foco não é a diferença, mas a desigualdade. Rosemberg detectou,

nessa defesa privilegiada das ações afirmativas, uma forte crítica às políticas de cunho

universalista, as quais, segundo afirma Silvério (2003, p. 328), não dariam conta de

reverter a situação de desigualdade impingida ao povo negro. No entanto, Rosemberg

(2005, mimeo 8), mesmo defendendo políticas públicas de ação afirmativa para o

ingresso e permanência de grupos sub-representados no ensino superior, alerta que na

“educação, nem toda desigualdade será corrigida por políticas de ação afirmativa” e

exemplifica com o caso da educação infantil32.

O caráter de urgência, a que se referiu Taguieff (1997), particularmente para

alterar esse quadro desvantajoso para o negro na educação, impõe a união, da sociedade

32 Não trataremos desse nível de ensino neste trabalho.

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civil e do Estado, em torno tanto de medidas de cunho universalistas quanto de medidas

específicas de promoção de eqüidade social, isto é, de ações afirmativas.

O enfrentamento ao racismo no Brasil vem ocorrendo através de diversas formas

ao longo do tempo. Os grupos do movimento negro têm adotado estratégias variadas,

alguns enfatizando o combate ao racismo no plano simbólico, outros no plano

estrutural.

Nos próximos capítulos, conceituaremos ação afirmativa e apresentaremos um

breve histórico referente à atuação do movimento negro e sua agenda política de

enfrentamento ao racismo brasileiro.

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CAPÍTULO 3 – Conceituando ação afirmativa

Acreditamos que o combate a toda forma de racismo, seja direto ou sutil, deva

fazer parte de uma agenda que una a sociedade civil e o Estado em torno, não só da

efetivação de leis anti-racistas, mas também em ações que promovam a equidade social,

como são as chamadas ações afirmativas. As primeiras experiências ocorreram na Índia

como nos esclarece D’Adesky (2001), Feres Júnior (2006) e Wedderburn (2005)

O conceito de ação afirmativa originou-se na Índia imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, ou seja, bem antes da própria independência deste país. Em 1919, Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-56), jurista, economista e historiador, membro da casta “intocável” Mahar propôs, pela primeira vez na história, e em pleno período colonial britânico, a “representação diferenciada” dos segmentos populacionais designados e considerados como inferiores. A vida política e a obra de B. R. Ambedkar sempre estiveram voltadas para a luta pelo fim do regime de castas. [...] Para ele, quebrar os privilégios historicamente acumulados pelas “castas superiores”, significava instituir políticas públicas diferenciadas e constitucionalmente protegidas em favor da igualdade para todos os segmentos sociais (WEDDERBURN, 2005, p. 314, grifo do autor).

“A Índia é o país de mais longa experiência histórica com políticas de ação

afirmativa, as quais começaram a ser implantadas ainda sob o domínio colonial inglês

[de 1858 a 1947], muitas vezes com o desígnio de dividir os colonizados e enfraquecê-

los [...]” (FERES JÚNIOR, 2006, p 47). No entanto, com a independência, o governo

indiano livre ratificou aquelas medidas em sua Constituição de 1950. Três anos antes,

conforme D’Adesky (2001, p. 208), o governo já havia aprovado cotas para a casta dos

“intocáveis” em setores da administração e do ensino público.

Nos Estados Unidos da América (EUA), datam de 1935 as primeiras referências

à ação afirmativa com o caráter preventivo, no sentido de corrigir injustiças sociais, na

legislação trabalhista. Já as primeiras medidas de políticas de ação afirmativa, com o

sentido de tratamento preferencial a certos segmentos ou grupos sociais, ocorrem

durante a administração conservadora do Presidente Dwight D. Eisenhower, entre 1953

e 1961 (Guimarães, 1999). Nesse período, os EUA viviam um momento de

efervescência política em torno da luta pelos direitos civis, capitaneada, principalmente,

por lideranças do movimento negro norte-americano, que lutavam pela expansão da

igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, juntamente com os segmentos mais

progressistas da sociedade. “É nesse contexto que se desenvolve a idéia de uma ação

afirmativa, exigindo que o Estado, para além de garantir leis anti-segregacionistas,

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viesse também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições da população

negra” (MOEHLECKE, 2002, p. 117). É o que Gomes (2001, p. 37) chamou de ruptura

da noção de neutralidade estatal, pois, para esse jurista, nas sociedades em que ocorreu

escravidão, não eram suficientes proclamações jurídicas e dispositivos constitucionais

para reverter a situação dos grupos historicamente marginalizados. Tais mecanismos

revelaram-se inócuos. “Desse imperativo de atuação ativa do Estado nasceram as Ações

Afirmativas, [...]”. As negociações entre os movimentos sociais e o Estado resultaram

na implantação de vários programas, via de regra apoiados pela Suprema Corte,

conforme informa Silvério ( 2002b, p. 92)

1) exigência de desenvolvimento de ação afirmativa em empresas que quiserem estabelecer contrato com o governo [...]; 2) discriminação não intencional no emprego, também chamada de discriminação indireta, proibindo a adoção de requisitos e testes para a contratação, desnecessários à execução das tarefas às quais os candidatos se habilitem; 3) o governo federal assegurou por meio de programas objetivos e mensuráveis, em especial nos altos escalões de sua própria burocracia, a presença de minorias e mulheres; 4) o Congresso norte-americano incluiu um dispositivo na lei sobre obras públicas (Public Works Employment Act), estabelecendo que cada governo, local ou estadual, usasse 10% dos fundos federais destinados a obras públicas para gerenciar serviços de empresas controladas por minorias; 5) o governo federal passou a exigir que as instituições educacionais que tivessem praticado discriminações adotassem programas especiais pra admissão de minorias e mulheres como condição para que se habilitassem à ajuda federal; 6) incentivo às ações voluntárias de emprego e educação: essas ações corresponderiam ao que se passou a chamar de cotas, isto é, assegurar porcentuais mínimos de contratação e promoção de trabalhadores nas empresas privadas e instituições públicas. E admissão de estudantes provenientes de grupos minoritários das universidade, tendo por base a discriminação passada.

Ao fazer o estudo das instituições jurídicas dos EUA, Gomes (2001, p. 44-48)

reconhece os seguintes objetivos das políticas de ação afirmativa:

a) proporcionar transformações de mentalidades no sentido de por fim a idéia de

supremacia seja por gênero, raça, etnia ou outra forma;

b) “não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os ‘lingering

effects’, ie [sic], os efeitos persistentes [...] da discriminação do passado, que tendem a

se perpetuar” (GOMES, 2001, p. 47);

c) proporcionar visibilidade aos grupos sub-representados, abrindo espaço para a

diversidade nos domínios públicos e privados;

d) criar espaço para o surgimento de “personalidades emblemáticas”, indivíduos que

serviriam de exemplo para seus grupos de origem.

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Assim, no amplo leque possível de políticas governamentais de combate à

discriminação, Gomes (2001, p. 49) identifica, ao lado de políticas “neutras” – normas

meramente proibitivas, as políticas “positivas”, também chamadas de ações afirmativas.

Estas últimas podem ser políticas de iniciativa do poder executivo, do poder judiciário e

mesmo do setor privado. De acordo com o autor, as políticas de ação afirmativa se

inscrevem dentro do princípio da igualdade material ou substantiva, que, ao contrário do

chamado princípio da igualdade formal, gestado no pensamento liberal33 oitocentista, irá

atuar junto ao indivíduo concreto, especificado. Dito de outra maneira, o Direito passa a

perceber o indivíduo em sua singularidade, considerando suas determinações de raça,

idade, gênero, etc. Pelo princípio da igualdade substantiva é possível atentar para as

desigualdades que, de fato, são observadas na sociedade.

Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna redobrada atenção por parte dos aplicadores da norma jurídica à variedade das situações individuais, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas (GOMES, 2001, p. 4).

Pelo princípio da igualdade material, o legislador pode tratar os desiguais de

forma dessemelhante, contribuindo para que as situações de desigualdades não sejam

perenizadas e agravadas na sociedade (Gomes, 2001). Segundo Feres Júnior (2006, p.

50), mecanismos contra as desigualdades já estariam presentes nos princípios

normativos do Estado de Bem-Estar Social34. A despeito de serem reconhecidas como

sendo de cunho universal, as ações focais antecederam o que chamamos, hoje, de ações

afirmativas, tais como: “Políticas keynesianas de proteção de setores estratégicos da

economia, investimentos públicos pesados em áreas carentes, investimento em

habitação popular, seguro desemprego etc. [...]”.

De acordo com Gomes (2001), são variados os postulados filosóficos que

subjazem às ações afirmativas, mas comum a todos é serem tributários do pensamento

liberal, dentre os quais ele salienta o postulado da Justiça Compensatória e o da Justiça

Distributiva. São esses postulados, além da noção de diversidade, que irão fundamentar

33 Em uma concepção liberal clássica, ou pura, o Estado é o locus do valor da igualdade, é só no Estado, ou melhor, por meio de leis que garantem direitos universais negativos (mormente civis), que os cidadãos são verdadeiramente iguais. (FERES JÚNIOR, 2006, p. 49) Assim, na perspectiva liberal era suficiente que o princípio da igualdade estivesse escrito, para que ele estivesse assegurado, conforme Gomes (2001, p. 3). 34 Esse paradigma se opõe à concepção liberal pura. “[...] Estado e mercado não funcionam como esferas autônomas geridas por valores independentes (igualdade e mérito, respectivamente). [ao contrário] o Estado subtrai recursos do mercado [...] e os redistribui com a finalidade de promover uma igualdade maior. Trata-se aqui já de uma concepção de igualdade substantiva” (FERES JÚNIOR, 2006, p. 49).

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os argumentos para justificar políticas de ação afirmativa, como informam Gomes

(2001, p. 61) e Feres Júnior (2006, p. 46).

A Justiça Compensatória, que fundamenta inúmeros programas de ação

afirmativa, mesmo nos EUA, segundo Gomes (2001, p. 62), pode ter como instrumento

a “reparação” ou a “compensação” para fazer frente a injustiças e discriminações

impingidas, no passado, a um ou vários grupos numa dada sociedade. Considera,

principalmente, a persistência dessa subordinação e de seus efeitos perversos no

presente, já que a “marginalização” daqueles grupos pelo preconceito, estigmatização e

pela falta de oportunidades, tende a se reproduzir ao longo do tempo, geração após

geração. Considera, também, que há vantagens competitivas iniciais, quase

insuperáveis, a favor dos grupos dominantes, numa sociedade fortemente hierarquizada.

Assim, faz-se necessária a participação ativa do Estado, no sentido de estabelecer

programas de preferência em defesa daqueles grupos que foram tratados,

historicamente, à margem dos benefícios e recursos disponíveis na sociedade (Gomes,

2001).

Gomes (2001), no entanto, não deixa de apontar as falhas no argumento da

Justiça Compensatória, lembrando que a idéia de compensação pressupõe a existência

de dano, numa relação causal. Assim, muitas vezes, é difícil sustentar, por exemplo, a

tese de que o que um indivíduo ou grupo sofre hoje seja conseqüência direta de uma

injustiça que seus antecessores sofreram no passado.

Seguindo esse princípio da compensação ou reparação, Walters (1997 apud

Santos, 2007, p. 425) declara que

a ação afirmativa é um conceito que indica que, a fim de compensar negros, outras minorias em desvantagens e as mulheres pela discriminação sofrida no passado, devem ser distribuídos recursos sociais como empregos, educação, moradias, etc., de forma tal a promover o objetivo social final da igualdade.

Examinando a definição de Cashmore, autor americano, Santos (2007) conclui

que sua definição também está fundamentada nesse mesmo princípio quando ele declara

que ação afirmativa é uma política pública que

é voltada para reverter as tendências históricas que conferiram às minorias e às mulheres uma posição de desvantagem, particularmente nas áreas de educação e emprego. Ela visa ir além da tentativa de garantir igualdade de oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e tem como principais beneficiários os membros de grupos que enfrentaram preconceitos

(Cashmore, 2000 p. 31 apud SANTOS, 2007, p. 428, grifo nosso).

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59

Também encontramos essa mesma base em Silvério (2002b, p. 91-92), quando

defende que “ações afirmativas são um conjunto de ações e orientações do governo para

proteger minorias e grupos que tenham sido discriminados no passado”. Se por um lado,

a Justiça Compensatória propugna uma justiça retroativa para reparar danos que foram

causados em tempos anteriores, a Justiça Distributiva tem seu foco na justiça social35 no

presente e refere-se

à necessidade de se promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riqueza e outros importantes “bens” e “benefícios” entre os membros da sociedade. Tal redistribuição teria o efeito de mitigar as iniqüidades decorrentes da discriminação (GOMES, 2001, p. 66).

Sendo o racismo e o sexismo barreiras, dentre outras, que são antepostas ao

pleno desenvolvimento de pessoas e grupos e ao seu acesso aos recursos e benefícios

que a sociedade oferece, é necessário que sejam criados mecanismos, como ações

afirmativas, que possibilitem, se não igualar os indivíduos, ao menos reduzir as

desvantagens competitivas entre eles. “Portanto, sob essa ótica, a ação afirmativa

define-se como um mecanismo de ‘redistribuição’ de bens, benefícios, vantagens e

oportunidades que foram monopolizadas por um grupo em detrimento de outros [...]”

(GOMES, 2001, p. 68).

Uma ilustração do uso do princípio da Justiça Distributiva, encontramos numa

definição abrangente de ação afirmativa, proposta por um historiador norte-americano,

segundo o qual, ação afirmativa

significa mais do que o combate contra a discriminação. A ação afirmativa indica uma intervenção estatal para promover o aumento da presença negra

- ou feminina, ou de outras minorias étnicas - na educação, no emprego, e nas outras esferas da vida pública. Promover esse aumento implica levar em conta a cor como critério relevante na seleção de candidatos para tais oportunidades [...]. Tradicionalmente foram as pessoas brancas as favorecidas para qualquer oportunidade social ou econômica; com a ação afirmativa, o Estado estabelece certas preferências para as pessoas negras, ou mulheres, ou membros de outras minorias étnicas. Essas preferências não são absolutas; a raça é só um dos critérios utilizados para a distribuição de vagas nas

faculdades ou empregos. Um candidato negro de baixa capacidade não pode substituir a um candidato branco de alta capacidade. Mas, no caso de competição entre dois candidatos de capacidade mais ou menos igual, um branco e outro negro, segundo os critérios da ação afirmativa, o candidato negro teria preferência sobre o branco (Andrews, 1997, p. 137-138, apud SANTOS, 2007, p. 426 grifos do autor).

35 Para Feres Júnior (2006, p. 47), o conceito de Justiça Distributiva se encaixa no de justiça social.

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Também, orientando-se pelo pressuposto filosófico da Justiça Distributiva,

Calvès (2004) chama a atenção para o fato de que uma política de ação afirmativa é uma

política preferencial e não apenas diferencial, como pôde notar em diversos países.

Trata-se de uma política de nivelamento, que visa garantir que ocorra igualdade de

oportunidades aos membros de grupos menos favorecidos na sociedade. Segundo a

autora, a política de ação afirmativa faz parte de uma lógica de encurtamento das

distâncias sócio-econômicas entre os indivíduos36.

Em direito internacional, como ocorre em numerosos países onde é praticada, a ação afirmativa (discriminação positiva) é o instrumento-chave de uma política de nivelamento entre diferentes grupos. Ela visa promover entre eles uma maior igualdade de fato, ou, pelo menos, garantir aos membros dos grupos em desvantagem, uma verdadeira igualdade de oportunidades. Ela se inscreve numa lógica de diminuição da distância no plano de desenvolvimento econômico e social e supõe, então, mais que um tratamento diferencial, um verdadeiro tratamento preferencial (CALVÈS, 2004, p. 7, grifo da autora, tradução livre).

Nesta mesma direção, e acrescentando um alerta quanto ao uso “naturalizado”

das categorias “sexo”, “cor”, “raça”, “etnia”, implicando na distribuição de recursos

públicos, Guimarães (1999, p. 174-175) afirma que ações afirmativas “são políticas que

visam afirmar o direito de acesso a tais recursos a membros de grupos sub-

representados, uma vez que se tenham boas razões e evidências para supor que o acesso

seja controlado por mecanismos ilegítimos de discriminação (racial, étnica, sexual)”.

Guimarães (1999) ainda acrescenta que as ações afirmativas têm caráter preventivo,

visando evitar a expropriação de direitos e de oportunidades de indivíduos e grupos

fragilizados socialmente.

Ao tecer considerações importantes sobre a base filosófico-constitucional do

programa de direitos civis dos EUA, Gomes (2001) declara que é a tese da Justiça

Distributiva que apóia grande parte dos argumentos daqueles que defendem as ações

afirmativas, por considerarem que assim têm mais poder de convencimento. Mas o

36“En droit international comme dans les nombreux pays, ou elle est pratiquée, la discrimination positive est l’instrument clé d’une politique de rattrapage entre différents groupes. Elle vise à promouvoir entre eux une plus grande égalité de fait, ou, à tout le moins, à garantir aux membres des groupes désavantagés une véritable égalité des chances. Elle s’inscrit dans une logique de comblement d’un écart de développement économique et social et suppose donc, plus, qu’um simple traitement différencié, l’instauration d’um véritable traitement préférentiel” (CALVÈS, 2004, p. 7, grifo da autora).

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autor não deixa de apontar que, também, ocorre o uso de ambas noções para a

justificação de políticas de ação afirmativa37, como fica bem ilustrado a seguir:

Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego (GOMES, 2001, p. 40).

Depois de percorrer algumas discussões jurídicas e normativas a respeito da

questão, Moehlecke (2002) elabora sua conceituação, também tendo como base tanto a

noção de Justiça Compensatória quanto a de Justiça Distributiva:

[...] podemos falar em ação afirmativa como uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado, presente ou futuro, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social (MOEHLECKE, 2002, p. 203, grifo nosso).

Tendo como base o multiculturalismo, o argumento da diversidade também tem

sido usado para a justificação da ação afirmativa (GOMES, 2001; FERES JÚNIOR,

2006). Para Gomes, essa justificação é encontrada em tendências mais moderadas e

apresenta uma discussão entre universalismo e particularismo nas democracias liberais.

O princípio liberal por excelência não admite particularismos. Ou seja, pretende uma

legislação que tenha caráter universal. Diante disto, Gomes (2001) questiona se um

Estado com essa postura seria capaz de atender com eqüidade aos “cidadãos detentores

de identidades e etnias diversas da dominante”. Reportando-se ao conceito de

“reconhecimento” de Charles Taylor, Gomes irá concluir que ações com base numa

política de reconhecimento é justificativa válida para se lutar por direitos iguais entre os

cidadãos. O exemplo que evoca é o da luta pelos direitos civis nos EUA na década de

1960, que deu origem às ações afirmativas em solo norte-americano, como já dito

anteriormente.

Feres Júnior (2006, p. 47) esboça, em seu ensaio como se deu ao longo do tempo

nos EUA, a mudança dos argumentos de justificação de ações afirmativas, a partir do

37 Feres Júnior (2006, p. 48-49 ) considera que o discurso do Presidente Lyndon Johnson, proferido para a turma de formandos da Howard University, em 1965, está baseado em ambos pressupostos, de reparação e de justiça social, pois chama a atenção para os efeitos nefastos da escravidão e para o enfrentamento que era necessário em função das dificuldades competitivas dos negros norte-americanos, à época.

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que ele chamou de tipologia tripartite: reparação, justiça social e diversidade. No

primeiro momento, que perdurou décadas, prevaleceu o argumento da reparação.

Segundo Guimarães (1999), as ações afirmativas, nesse momento, estavam sob a

inspiração do direito consuetudinário inglês, que era baseado numa “antiga noção” de

reparação por uma injustiça passada, noção esta que fundamentou muitas das decisões

de Cortes norte-americanas. Feres Júnior (2006) cita os casos emblemáticos, julgados

pela Suprema Corte, o Regents of the University of Califórnia v. Bakke, em 1978 e o

Adarand Constructors Inc, v. Peña, em 1995. No segundo momento, sobressaiu o

argumento da justiça social. Para D’Adesky (2006, p. 7), justiça social é um conceito

“fundamentado na percepção de igualdade de oportunidades”. Isso significa promover,

em circunstâncias específicas, “políticas públicas capazes de compensar, reduzir,

mediante dotações desiguais (portanto, mais equitativas), as disparidades que afetam

minorias e membros de grupos em situação de desvantagem por motivos raciais, étnico,

religioso, etc”. No entanto, argumento da justiça social sofreu duros golpes nas décadas

que se seguiram ao desmonte do Estado de Bem-Estar Social norte-americano,

conforme Feres Júnior (2006, p. 52).

A defesa das ações afirmativas pelo argumento da diversidade, nos EUA, veio

crescendo nos últimos anos, dadas algumas dificuldades que as políticas de ação

afirmativa enfrentaram nesse país, sendo inclusive banidas de estados importantes,

como Califórnia, Texas e Flórida. Se, por um lado, o argumento da diversidade pôde ser

usado inúmeras vezes no âmbito da Corte norte-americana nas últimas décadas, como

nos informa Feres Júnior (2006), por outro, esse mesmo argumento trouxe

desdobramentos negativos, no sentido de diluir a importância da raça, de abrandar a

idéia de reparação e competir com a idéia de justiça social. No caso da raça, porque

outros critérios passaram a ser exigidos; a noção de reparação fica prejudicada, porque

“diversidade tem um registro temporal incerto, às vezes sugerindo a produção de um

tempo futuro quando as diferenças puderem se expressar em todas as instâncias da

sociedade” (FERES JUNIOR, 2006, p. 54). E a idéia de combate à desigualdade,

implícita na justiça social, fica comprometida pela “valorização geral da diferença”.

As ações afirmativas não ficaram restritas à Índia e aos EUA, pois diversas

outras experiências são registradas pela literatura: Malásia, antiga União Soviética,

Israel, Nigéria, Colômbia, Canadá, África do Sul, vários países da Europa Ocidental,

Austrália, Argentina, Cuba, México, Líbano, Nova Zelândia, Hungria, etc.

(MOLECKE, 2002; SILVA, 2002; CALVÈS, 2004; PINTO, 2006; D’ADESKY, 2006).

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Na Europa, as primeiras experiências ocorreram em 1976, com as denominações de

“ação ou discriminação positiva”, ou “ação compensatória” de acordo com Molecke

(2002, p. 199) e Pinto (2006, p. 145).

A despeito da origem indiana das políticas de ação afirmativa, é o exemplo

norte-americano que mais significado tem para a política de ação afirmativa brasileira,

dadas algumas semelhanças históricas e a forte influência cultural desse país, como nos

lembra Feres Júnior (2006). Assim, foi importante esta incursão pelos princípios

filosóficos que norteiam as políticas de ação afirmativa e esta rápida mirada pela

realidade norte-americana, para podermos tratar, em seguida, das ações afirmativas no

Brasil, no Capítulo 4.

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CAPÍTULO 4 – AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: DEBATES E

PRÁTICAS

Foi pela via da implantação de legislação antidiscriminatória38 que os grupos do

movimento negro se pautaram durante muitos anos. Mas, posteriormente, com uma

percepção mais refinada para as desigualdades estruturais passaram a combater o

racismo institucional. Risério (2007, p. 326) nos fala dessa mudança de perspectiva nos

seguintes termos: “Se a questão central, do século XVI ao XIX, era livrar-se da

condição escrava, passou esta questão a ser, do século XX ao XXI, livrar-se da linha de

pobreza e da condição proletária”. O novo movimento negro, surgido a partir dos anos

1970, já não trazia a visão assimilacionista e culturalista dos seus antecessores. Além do

mais, nas décadas anteriores, os grupos negros estavam envolvidos em “políticas

clientelistas e corporativistas”, como nos informa Telles (2003).

Traçando um breve percurso histórico dos grupos do chamado movimento negro

brasileiro, até o ano de 2001, podemos notar como se deu essa mudança de estratégia.

Segundo Guimarães (2003c, p.248), as entidades negras, nos anos 192039, tinham em

mente que o próprio negro era responsável pelo seu infortúnio, dada as suas

precariedades de origem, de educação e de formação. Diversos autores, estudiosos do

movimento negro brasileiro, assinalam a perspectiva assimilacionista da Frente Negra

Brasileira (FNB), primeira entidade negra a atuar no campo político (1931 a 1938):

“movimento reivindicatório de tipo assimilacionista”, é como Regina P. Pinto (1987, p.

9) define a FNB. No campo da cultura, não defendiam as manifestações culturais

africanas, por considerá-las primitivas (GUIMARÃES, 1999, p. 227). Ao defenderem,

a integração à sociedade mais ampla, da forma como ocorria entre os imigrantes, havia

pouco espaço para a construção de uma identidade negra diferenciada, completa

(D’Adesky, 2001, p. 152).

Já em 1945, as associações negras abandonaram parcialmente o diagnóstico de

que, a despeito do “preconceito de cor”, o problema estava no próprio negro, mas ainda

compartilhavam o ideal de assimilação implícito na chamada democracia racial

brasileira (GUIMARÃES, 2003c, p. 248). Lutava-se contra os preconceitos, mas

persistiam os sentimentos de inferioridade, uma vez que a referência simbólica

38 Na Convenção Nacional do Negro Brasileiro, de 1946, os ativistas negros reivindicavam que o preconceito e a discriminação se tornassem ofensas criminais (SILVÉRIO, 2008, p. 223). 39 Já havia uma atuante imprensa negra desde os anos 1915, como nos informa Santos (2001, p 14).

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continuava a ser a do branco europeu (D’ADESKY, 2001, p. 152). O Teatro

Experimental do Negro (TEN) é um exemplo emblemático de defesa da visão

assimilacionista dessa época (GUIMARÃES, 1999 e 2003c), como já dissemos na

página 42.

Com o início do período ditatorial, em 1964, a idéia da democracia racial tornou-

se estratégica para os sucessivos governos militares e os grupos do movimento negro

foram proscritos. No entanto, muito desses grupos não deixaram de atuar, assumindo,

progressivamente, um discurso racialista e multicultural (GUIMARÃES, 1999, p. 227),

atribuindo o caráter de “mito” à idéia de um país de convivência pacífica e harmoniosa

entre as raças. A partir dos anos 1970, já não era o “preconceito racial”, mas a

“discriminação racial” o principal alvo da mobilização negra, conforme Guimarães

(2003c, p. 248):

Essa foi uma diferença crucial em relação às décadas passadas: a pobreza negra passou a ser tributada às desigualdades de tratamento e de oportunidades de cunho “racial” (e não apenas de cor). E os responsáveis por tal estado já não eram os próprios negros e sua falta de união, mas o establishment branco, governo e sociedade civil, numa palavra, o racismo difuso na sociedade brasileira.

A passagem para uma “política negra moderna” se concretiza com a fundação do

Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, em 1978. Anteriormente a

esse fato, Telles lembra da fundação do Ilê Aiyê, na Bahia, em 1974, marcando “a

transição das mobilizações culturais do passado para um protesto negro moderno”

(TELLES, 2003, p. 70), bem como das iniciativas em prol de uma identidade negra do

movimento Black Soul, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Para D’Adesky (2001, p. 153

e 161), operou-se um corte epistemológico, pois os grupos do movimento negro vieram

a assumir

uma posição anti-racista diferencialista (ou comunitarista) de tipo espírito-cultural [...] que considera ser necessário preservar as identidades culturais diante dos efeitos da cultura ocidental hegemônica que homogeneíza e desenraiza o indivíduo negro, ao mesmo tempo que espelha uma imagem depreciada e deformada do negro e de seu grupo.

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Tivemos a oportunidade de testemunhar e vivenciar, nos anos 198040, a

efervescência da mobilização para a causa do negro na sociedade, que não se restringiu

aos principais centros do país. Apesar de Andrews (1991 apud D’ADESKY, 2001, p.

155) assinalar que o que houve foi um refluxo e perda de influência política do

movimento negro nessa época, D’Adesky (2001) dá uma idéia positiva da expansão do

movimento negro no período, bem como Telles (2003) afirma que foi mesmo como

resposta às reivindicações crescentes do movimento negro que se implantaram

conselhos voltados à necessidade da população negra em diversos estados. Alguns

exemplos ilustram essa influência atribuída ao movimento negro em importantes

decisões governamentais e legislativas: o deputado Abdias Nascimento propôs o Projeto

de Lei nº 1.332, em 1983, que propunha “ação compensatória” para negros, mas que

não foi aprovado pelo Congresso Nacional; o governo brasileiro reconheceu, em 1984, a

Serra da Barriga, sede do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, como patrimônio

histórico do país; nesse mesmo ano, o governo de São Paulo instituiu o Conselho de

Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra - seguindo esse exemplo,

estabeleceram-se conselhos estaduais na Bahia, Rio Grande de Sul, Minas Gerais, Mato

Grosso do Sul e Distrito Federal e conselhos municipais no Rio de Janeiro, Belém,

Santos e Uberaba (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 16); a instituição da Fundação

Cultural Palmares, em 1988, pelo Ministério da Cultura; a promulgação da Lei nº 7.716,

em 5 de janeiro de 1989, de âmbito federal, que define os crimes resultantes de

preconceitos de raça ou de cor (SILVA JR., 1998, p. 52); a introdução, nesse ano

também da história africana no currículo escolar de 1º e 2º graus dos colégios da cidade

de Salvador, Bahia. D’Adesky (2001) não deixa de salientar que foram medidas

tomadas por órgãos do governo, a despeito de terem objetivos comuns com os do

movimento negro e terem em seu comando muitas pessoas ligadas às associações

negras.

O papel relevante do movimento negro no processo democrático brasileiro, que

apesar de há décadas vir denunciando o racismo difuso na sociedade, só veio ter suas

reivindicações contempladas a partir da Constituição de 1988. Por isto, merece destaque

a grande vitória dos movimentos sociais, particularmente negros, que conseguiram

influenciar decisivamente a Constituição, principalmente no caso da luta anti-racista,

40 Em nosso período de militância no Grupo de União e Consciência Negra, de 1982 a 1992, participamos de diversos congressos do grupo, bem como trabalhamos em parceria com a Pastoral de Combate ao Racismo, da Igreja Metodista. De 1993 a 1996, participamos do Grupo Interdisciplinar de Estudos Afro-brasileiros, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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fazendo-se aprovar o artigo 5º, inciso 42, que tipificou o racismo como crime

inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. Além da criminalização do

racismo, o movimento auferiu outras conquistas importantes tais como: o

reconhecimento das contribuições culturais dos diversos agrupamentos étnicos e o

direito de posse e titulação das terras aos remanescentes dos quilombos.

A partir da Carta Constitucional, os grupos do movimento negro alavancaram

um forte trabalho pela cidadania do povo negro (GUIMARÃES, 2003c, p.248). No

entanto, o que se seguiu à promulgação da Carta Magna foram políticas públicas

tímidas, voltadas para a diversidade cultural e constatou-se a pouca eficácia das leis de

combate aos crimes de racismo (SILVÉRIO, 2008, p. 217). Isto fez com que o

movimento negro voltasse seu foco para ações concretas de luta contra as desigualdades

e demandasse por políticas públicas de ações afirmativas (HERINGER, 2001;

GUIMARÃES, 2003c), tema que será aprofundado mais adiante.

Essa demanda representou uma importante guinada na pauta de reivindicação dos negros brasileiros, dando início a uma era de luta contra as desigualdades sociais do país, vistas agora como “raciais”, independentemente do combate à discriminação e ao preconceito (GUIMARÃES, 2003c, p. 249).

Acompanhando a mudança ocorrida em diversos movimentos sociais, vários

grupos do movimento negro estruturam-se como organizações não-governamentais

(ONGs)41, nos anos 1990, tendo estrutura, meios e perfil profissional diferenciados,

organizações que tornaram-se “cada vez mais seus representantes institucionais”

(TELLES, 2003, p. 73). Em 1994, o Centro de Articulação de Populações

Marginalizadas (CEAP), fundada em 1979, seguiu essa tendência de estruturar-se como

uma ONG. Muitas lideranças negras receberam o apoio da Fundação Ford para criar

ONGs, tais como: Geledés – Instituto da Mulher Negra Brasileira, em 1990 e o Centro

de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdade (CEERT), posteriormente,

conforme Telles (2003).

De 1992 a 1997, instituíram-se vários SOS Racismo, através das organizações

do movimento negro, visando estabelecer uma linha direta para defender as vítimas da

discriminação racial: em 1992, pela iniciativa do Instituto de Pesquisa das Culturas

Negras no Rio de Janeiro (IPCN), funcionou o primeiro desses serviços como um

jornal. Em 1993, o Geledés também estruturou um SOS Racismo, porém no formato de

41 Em D’Adesky (2001, p. 153-156) encontramos, também, um pequeno rol dessas entidades.

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assistência jurídica. Outros estados reproduziram tais experiências, como Rio de

Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Sergipe e Pernambuco (TELLES, 2003, p. 74).

Em 20 de novembro de 1995, aconteceu a “Marcha Zumbi dos Palmares contra

o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, em homenagem aos 300 anos da morte do grande

líder do Quilombo dos Palmares. Milhares de pessoas se dirigiram a Brasília e, ao final

do encontro, lideranças do movimento negro e sindicalistas apresentaram suas

reivindicações ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. O documento

apresentava a situação do negro no país e trazia um programa de ações concretas para o

fim do racismo e das desigualdades raciais no Brasil. Em uma de suas exortações, o

documento expressava que

É dever do Estado Democrático de Direito esforçar-se para favorecer a criação de condições efetivas que permitam a todos beneficiar-se da igualdade de oportunidade, assegurando a eliminação de qualquer fonte de discriminação direta ou indiretamente e reorientando o sistema educacional no sentido da valorização da pluralidade étnica que caracteriza nossa sociedade (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 45).

A resposta do governo foi imediata. No mesmo dia, o presidente estabeleceu, por

decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI

População Negra), ligado ao Ministério da Justiça. Jaccoud e Beghin (2002, p. 19)

ressaltam que foi a partir da articulação dos segmentos do movimento negro, que

pleiteavam políticas públicas eficazes no combate às desigualdades, que tal iniciativa

governamental aconteceu. Pela primeira vez, na história do Brasil, um presidente da

república “reconhecia a existência de racismo no país e anunciava a possibilidade de

medidas de promoção da justiça racial, rompendo assim com décadas de negativa

formal do racismo” (TELLES, 2003, p. 77). O GTI População Negra foi organizado de

forma colegiada, contemplando oito representantes da sociedade civil, provenientes do

movimento negro (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 20).

O Ministério da Justiça promoveu o Seminário Internacional sobre

“Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos

contemporâneos”, em 1996, tendo a participação de pesquisadores nacionais e norte-

americanos e um número expressivo de lideranças do movimento negro brasileiro.

Guimarães (2003c, p. 252) lembra a importância do acontecimento, enfatizando o

caráter oficial do evento, que foi aberto pelo Presidente da República, ladeado pelo

Vice-presidente e pelo Ministro da Justiça.

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Foi criada a Aliança Estratégica de Afro-latino-americanos (La Alianza), em

1998, tendo o movimento negro brasileiro tido um papel fundamental nesse

acontecimento. Trata-se de uma organização, com sede em Montevidéu, que congrega

negros latino-americanos e do Caribe que têm como objetivo promover “a capacitação

de lideranças, troca de informações, debates sobre problemas comuns e o

desenvolvimento de estratégias regionais” (TELLES, 2003, p. 91).

Heringer (2001) fez um levantamento sobre as diferentes estratégias de combate

às desigualdades raciais por ONGs, órgãos do governo, empresas, universidades,

igrejas, partidos, sindicatos e outras instituições, entre o final dos anos 1990 até o ano

de 2000, em dez principais capitais do pais, inclusive no Distrito Federal. No período

considerado, foram identificadas 124 experiências. Focalizaremos, neste trabalho, as

análises relacionadas ao protagonismo do movimento negro. Foi encontrada grande

variedade de ações e organizações engajadas no combate às desigualdades. ONGs

ligadas ao movimento negro, mas também aquelas iniciativas do poder público mais

local se sobressaíram; 1/3 das experiências estavam explicitamente orientadas para o

atendimento específico à população negra. As áreas de atuação mais encontradas foram

educação, trabalho e geração de renda e direitos humanos e Advocacy, nesta ordem. Das

quinze atividades identificadas por Heringer (2001), essas estavam relacionadas às

organizações negras42: a) “estímulo e ampliação do acesso de afro-brasileiros ao ensino

superior”, aos moldes de cursinhos pré-vestibulares; b) “atividades comunitárias”,

principalmente em favelas ou bairros periféricos; c) “reconhecimento e titulação de

terras de comunidades remanescentes de quilombos”, atividade da Fundação Palmares,

que conta com a colaboração de diversos atores, inclusive ONGs; d) “Grupo de

Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra – GTI”; e) “Projeto

Geração XXI”, uma parceria entre Geledés Instituto da Mulher Negra e Fundação Bank

Boston; d) “advocay action”, uma importante estratégia utilizada pelas organizações

negras.

O então deputado Paulo Paim apresentou o Projeto de Lei nº 3.198, em 2000,

que “institui o Estatuto da Igualdade Racial43, em defesa dos que sofrem preconceito ou

discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências”, que foi

42 Em função da delimitação deste trabalho, as experiências serão apenas citadas. 43 Depois de tramitar durante dez anos no Congresso Nacional, o Estatuto foi aprovado em junho de 2010, no Senado e sancionada como lei, sob número 12.288 no dia 20/07/2010, pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, com várias alterações em relação ao texto original, mas prevê a adoção de programas de ação afirmativa. (www.portaldaigualdade.gov.br)

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elaborado com a colaboração de diversos consultores, intelectuais ligados às questões

raciais e o movimento negro.

No Brasil, o debate político sobre ações afirmativas com recorte racial se inicia

na década de 1990, através das pautas de reivindicação do movimento negro, como

dissemos acima e tomou grande impulso com os eventos preparatórios para a III

Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial,

Xenofobia e Intolerância Correlata (CMR)44, realizada em Durban, que aconteceu no

período de 31 de agosto a 08 de setembro de 2001. Estiveram presentes delegações de

173 países, 4 mil ONGs e mais de 16 mil participantes. As conferências anteriores

foram em 1978 e em 1983. O documento resultante dessa conferência recomendou a

adoção de políticas que visassem o desenvolvimento igualitário dos segmentos sociais

histórica e tradicionalmente marginalizados nas sociedades. Dentre suas recomendações

destacamos:

[...] 4. Insta os Estados a facilitarem a participação de pessoas de descendência africana em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade, no avanço e no desenvolvimento econômico de seus países e a promoverem um maior conhecimento e um maior respeito pela sua herança e cultura, 5. Solicita que os Estados, apoiados pela cooperação internacional, considerem positivamente a concentração de investimentos adicionais nos serviços de saúde, educação, saúde pública, energia elétrica, água potável e controle ambiental, bem como outras iniciativas de ações afirmativas ou de ações positivas, principalmente, nas comunidades de origem africana, [...] (DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001, p. 37-38)

A CMR configurou-se como uma baliza importante para a recomposição da

agenda das relações raciais, tanto no mundo quanto no Brasil (HERINGER, 2006, p.

79), pois que reacendeu o debate e estimulou a introdução de ações afirmativas na

legislação brasileira. A possibilidade de intervir num evento da magnitude da CMR

mobilizou, ativamente, órgãos do governo, organizações do movimento negro e diversas

entidades da sociedade civil que tinham o interesse de ver suas demandas atendidas.

Assim, os eventos preparatórios da CMR contribuíram para alavancar as discussões em

torno das relações raciais vigentes até então (HERINGER, 2006, p. 79). Telles (2003, p

86 a 93) descreve com detalhes como foi trilhado esse “caminho” até Durban e destaca

a importância dessas pré-conferências, no Brasil, como verdadeiro estimulante para o

44 A exemplo de Heringer (2006, p. 80), utilizaremos CMR para nos referirmos à essa conferência, neste trabalho.

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movimento negro brasileiro, dado o ineditismo de se poder discutir, francamente,

questões de racismo com pessoas do alto escalão do governo.

Dentre os eventos que impulsionaram as ações brasileiras de combate ao

racismo, da década de 1980 ao início do ano 2000, a CMR é considerada por muitos

estudiosos como um divisor de águas. Os pesquisadores destacam alguns fatores para

apoiar sua argumentação: a atuação do governo brasileiro, particularmente FHC, que se

empenhou diretamente para a mudança de conduta da chancelaria brasileira nos

encontros internacionais que antecederam a CMR, não mais difundindo a imagem do

país como democracia racial; a intensa mobilização do movimento negro e o

posicionamento inovador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada45 (IPEA); a

inédita cobertura que a mídia brasileira deu à temática racial, durante o evento; as

transformações que se seguiram após a conferência com o maior destaque que a

temática racial passou a ter na sociedade civil e em termos das ações governamentais

com vistas a reverter as desigualdades raciais (FERES JR., 2006; HERINGER, 2006;

TELLES, 2003; GUIMARÃES, 2003c; MUNANGA, 2001; ROSEMBERG, mimeo 1).

Segundo Guimarães (1999, p. 201), antes do impulso da CMR, há registros

históricos, no Brasil, de “algumas experiências de discriminação positiva bem

sucedidas”, ainda que não se utilizasse a nomenclatura de ações afirmativas naquela

época e que ambas não tivessem recorte racial: a lei de 2/346, assinada por Getúlio

Vargas, era voltada para a admissão de trabalhadores nacionais em qualquer fábrica

instalada no país e a lei de incentivos fiscais, voltada para a nascente burguesia

industrial nordestina. O primeiro registro de tentativa de se criar uma lei que estabelecia

uma porcentagem mínima de “empregados de cor”, foi por iniciativa dos técnicos do

Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, em 1968, mas a lei não

chegou a ser elaborada, conforme Moehlecke (2002, p. 204). Jaccoud e Beghin (2002,

p. 45) lembram que foi em 1969 que o Brasil promulgou a Convenção Internacional

sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que preconiza a adoção

de políticas de ação afirmativa voltadas “para garantir o desenvolvimento e a proteção

dos indivíduos pertencentes a certos grupos raciais, com a finalidade de garantir-lhes o

pleno e igual desfrute dos direitos humanos”.

45 O IPEA, vinculado ao Ministério do Planejamento, publicou dados revelando a dimensão das desigualdades raciais no país, provendo as liderança do movimento negro com argumentos sólidos (ROSEMBERG, mimeo 1). 46 [...] “Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de março de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), previa, no seu artigo 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas” (PINTO, 2006, p. 146).

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Através da legislação eleitoral, instituiu-se, nacionalmente, em 1995, a primeira

política de cotas, que estabelece que 30% das candidaturas dos partidos políticos devem

ser destinadas às mulheres. De 1996 até 2001 aconteceram várias iniciativas

legislativas, objetivando políticas de ação afirmativas. Moehlecke (2002) afirma, no

entanto, que até o final dos anos 1990, nenhum desses projetos de lei tinham sido

aprovados ou implementados. Jaccoud e Beghin (2002) fizeram um levantamento

sistematizado e detalhado das ações realizadas pelo governo federal que estavam sendo

implementadas no período de 1995 a 2002.

Os desdobramentos da CMR não tardaram a aparecer tanto no âmbito

governamental (federal, estadual e municipal), quanto na sociedade civil. Ainda durante

a Conferência, o Ministério do Desenvolvimento Agrário anunciou a adoção de 20%

para a participação de negros em posições administrativas e em concursos públicos. Em

outubro de 2001 foi a vez da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro estabelecer que

“40% das vagas nas universidades estaduais seriam dedicadas a negros e pardos”; na

sequência, através do Ministério Público de Minas Gerais, reservou-se 50% de vagas

nas universidades estaduais para estudantes da rede pública de ensino; em dezembro de

2001, o Ministério da Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceram que ao

menos “20% dos diretores, consultores sênior e funcionários de empresas terceirizadas

que prestam serviço ao STF deveriam ser negros”; em março de 2002, o Ministério do

Trabalho determinou que 20% dos recursos do Fundo de Assistência ao Trabalhador

(FAT), para cursos de treinamento e de capacitação, fossem destinados a trabalhadores

negros, especialmente às mulheres. Seguiram-se diversas iniciativas em nível estadual e

municipal, no início de 2002, tendo algumas localidades implantado ações voltadas

exclusivamente para indígenas (TELLES, 2003, p. 96).

Para Heringer (2006), as ações no plano federal não eram, inicialmente,

resultado de ação coordenada. Só em maio de 2002 é que o presidente Fernando

Henrique Cardoso, ao lançar o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos

(PNDH II), instituiu, também, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, mas que não

se efetivou dada a situação política de fim de mandato. A autora destaca que, em nível

estadual, o principal acontecimento foi o ineditismo da implantação de cotas para o

ingresso nas universidades estaduais: no Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do

Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF); na

Bahia, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

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Uma iniciativa considerada emblemática, nesse período, foi a criação do

Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, que consiste em oferecer bolsas

de estudo para negros e indígenas se prepararem para o concurso de diplomata do

Ministério das Relações Exteriores, um dos mais prestigiosos do país (ROSEMBERG,

mimeo 1).

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 2003, de pronto mostrou-se

mais sensível às reivindicações por igualdade racial do que o de Fernando Henrique

Cardoso. Entre outras iniciativas, é possível constatar isto, segundo Feres Júnior e

Zoninsein (2006, p. 33), pela maior quantidade de ministros negros que nomeou, pelo

pioneirismo da indicação de um negro para o Supremo Tribunal Federal e pela criação

da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) com

estatuto de ministério, em março de 2003. Os autores informam, também, que, nesse

governo, difundiu-se a criação de programas de promoção da igualdade racial,

particularmente no Ministério da Educação. O presidente Lula sancionou uma lei, há

muito esperada pelo movimento negro, a Lei nº 10.639, em janeiro de 2003, que tornou

obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escola de ensino

fundamental e médio de todo o país.

Diferentemente do governo anterior, onde inicialmente não havia previsão de

ações coordenadas, a criação da SEPPIR que tem por objetivo “articular, estimular e

monitorar as iniciativas em diferentes áreas, implementadas por diversos órgãos do

governo” (HERINGER, 2006, p. 87). A autora nos lembra, no entanto, que não foi sem

controvérsia a criação de uma secretaria nos moldes da SEPPIR, encarregada da

promoção da igualdade racial de forma transversal. Em seus primeiros dois anos, a

SEPPIR conseguiu trabalhar articuladamente com o Ministério da Educação, para

planejar a implantação da Lei nº 10.639 e para a definição de programas de acesso de

estudantes negros ao ensino superior; com o Ministério da Saúde, a autora destaca como

referência a realização do I Seminário Nacional de Saúde da População Negra, que

aconteceu em Brasília, em agosto de 2004; e a instituição do Comitê Técnico de Saúde

da População Negra; com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA) e a Fundação Cultural Palmares (FCP), a definição da política para as

comunidades quilombolas; com a Casa Civil, a elaboração de projeto para ampliação do

acesso da população negra ao ensino superior, no começo de 2004.

Em sua avaliação dos primeiros dois anos do governo Lula, Heringer (2006)

ressalta que, a despeito de louváveis iniciativas no campo da promoção da igualdade

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racial, não havia consenso, dentro do governo, em relação a essas medidas. Isto em

função da composição heterogênea de sustentação política do governo, o que trouxe

conseqüências para o apoio ao programa de ação afirmativa.

No plano federal, Heringer (2006) informa que o governo instituiu 15% dos

recursos do Plano de Ação para o Sistema Nacional de Emprego (PLANSINE), para

atendimento a grupos vulneráveis, com recorte racial. No plano estadual e municipal, as

administrações destinaram um número de vagas para negros em concursos públicos. Até

dezembro de 2004, onze universidades estaduais já haviam estabelecido programas de

ação afirmativa para alunos negros.

Para trazermos as experiências de ações afirmativas no âmbito da sociedade

civil, é importante sinalizarmos que a resistência, de parte da sociedade, às políticas

públicas com recorte racial no Brasil, só foi quebrada parcialmente pela ressonância

positiva que teve, na opinião pública internacional, o fato de o país ter aposentado a

doutrina da democracia racial, por ocasião da CMR, em Durban (GUIMARÃES, 2003c,

p. 255).

Como vimos, datam da década de 1990 as primeiras iniciativas na sociedade

voltadas para o combate às desigualdades, por meio de políticas de ação afirmativa. Na

avaliação de Heringer (2006, p. 90), no entanto, a maioria das experiências “tinham um

caráter piloto e experimental, e algumas poucas delas apenas conseguiram consolidar-se

como alternativas concretas e viáveis de inclusão racial”. A autora destaca, nesse

período, as redes de pré-vestibulares comunitários, que se difundiram para todo o país.

Guimarães (2003c, p. 259) informa que a criação desses cursinhos foi a primeira

tentativa de o movimento negro fazer frente às dificuldades de acesso dos negros ao

ensino superior. Rosemberg (mimeo 1) completa afirmando que, além do objetivo de

preparar alunos negros para o vestibular, esses cursos também buscavam conscientizar

jovens negros e de camadas populares da sua condição social e racial. No levantamento

de Heringer (2001, p 20), percebemos que, apesar de ser uma experiência disseminada,

não havia uma uniformidade quanto ao público-alvo a ser alcançado nos cursinhos pré-

vestibulares: alguns não faziam o recorte racial em sua proposta. Dentre as iniciativas

que Heringer (2006) distingue estão o “Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e

Carentes (EDUCAFRO)” e o “Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC).”

Das propostas no campo da iniciativa privada, no período de 2001 a 2004,

Heringer (2006) encontrou um maior foco tanto no ensino superior quanto na inserção

no mercado de trabalho. Verificou, também, que as empresas buscaram parcerias com

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ONGs e que a área voltada para a “responsabilidade social empresarial” tem sido um

espaço de expansão para os programas de ação afirmativa nas empresas. Há também

aqueles projetos de cunho mais geral, sem focar objetivos de diversidade racial. As

ações das empresas no campo educacional têm sido voltadas para o médio prazo e de

alcance limitado, conforme afirma Heringer (2006).

Considerando o mesmo período, Heringer (2006) também avaliou as

experiências de ONGs e dos movimentos sociais. Ela encontrou muitas iniciativas onde

ocorreram parcerias com agências de cooperação internacional, destacando dois

programas apoiados pela Fundação Ford. Um deles é o Programa Políticas da Cor na

Educação Brasileira (PPCor), criado em 2001 pelo Laboratório de Políticas Públicas

(LPP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que promoveu cinco

edições do “Concurso Cor no Ensino Superior” com o objetivo de apoiar projetos

destinados a promover e ampliar as possibilidades de acesso e permanência de

estudantes negros no ensino universitário. Durante seus três primeiros anos, o PPCor

assumiu um destacado papel no cada vez mais intenso debate sobre os processos de

democratização do ensino superior47. Foram 27 projetos desenvolvidos por ONGs,

movimentos sociais e acadêmicos. O outro foi o apoio dado pela Fundação Ford, em

2002, ao “Concurso Ação Durban”, promovido pelo Centro de Estatística Religiosa e

Investigações Sociais (CERIS). O concurso visava dar suporte a ações consideradas

modelares, objetivando à implantação do Plano de Ação da CMR. Uma ausência notada

na análise de Heringer, é a implantação do Concurso Negro e Educação, a partir de

1999, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),

através da ONG Ação Educativa, com financiamento da Fundação Ford. Segundo Siss e

Oliveira (s/d, p. 2) o “objetivo do concurso é ampliar o quadro de pesquisadores na área,

[...]”.

Outras ações concretas apontadas por Heringer (2006) após Durban, voltadas

para a “ascensão social da comunidade de forma imediata”, foram aquelas realizadas na

promoção dos empresariado negro, pela “QualiAfro Diversidade na Prática” e pela

“Integrare”, ambas em São Paulo. Outra iniciativa destacada pela autora é a Incubadora

Afro-Brasileira, do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH), criada em

setembro de 2004, no Rio de Janeiro, cujo objetivo é promover a atuação de

profissionais e empreendedores negros. O Centro de Apoio às Populações

47 http://www.politicasdacor.net/

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Marginalizadas (CEAP), em conjunto com outras ONGs, organizou a campanha “Ação

Afirmativa, Atitude Positiva”, com o objetivo de identificar com o selo da Camélia, o

símbolo que foi usado pelos abolicionistas no século XIX, aquelas empresas que

contratassem negros para seus quadros e para reconhecer aquelas empresas que lutam

pela causa do negro. Em 2004, o Sindicato dos Comerciários de São Paulo, firmou um

acordo pioneiro com uma rede de lojas, na qual se reservava 20% das vagas para

trabalhadores negros.

É em função do quadro de desvantagens, ao qual nosreferimos anteriormente,

que as propostas de ação afirmativa, objetivando ampliar o acesso de negros e indígenas

na graduação, se expandiram em todo o país ao longo dos últimos três anos, analisados

por Heringer (2006). A autora lembra que as primeiras propostas de iniciativas de ação

afirmativa para estudantes negros em universidades públicas são do final dos anos 1990.

Tais iniciativas adquiriram maior visibilidade na “versão de ‘cotas raciais’” (MAIO e

SANTOS, 2006, p. 14). A primeira, na Universidade de Brasília (UnB), cujo primeiro

projeto de cotas para negros foi apresentado em novembro de 1999, mas apenas

aprovado em 2003, depois de longo e acirrado debate, tanto interna quanto

externamente48; a segunda, na UERJ e na UENF, com propostas de cotas para

estudantes negros e provenientes da escola pública. As propostas dessas duas

universidades do Rio de Janeiro foram alvo de críticas, não só pelo mérito da questão

em si, mas pela forma como se deu sua implantação, posto que elas sofreram

contestações judiciais por alunos que se sentiram excluídos do processo e também por

um deputado estadual49. Em dezembro de 2004, já haviam 15 outras iniciativas de

programa de ação afirmativa em universidades públicas. Heringer (2006) nos lembra

que as políticas desses programas não seguiram um padrão comum e cada universidade

estabeleceu seu próprio procedimento para discussão e aprovação das propostas. O que

a autora destaca é que, a não ser nos casos da UnB, da UERJ e da UENF, “as demais

universidades optaram por definir reserva de vagas combinando o critério de

classificação racial50 com o de ter estudado em escola pública do ensino médio”.

Para as universidades que instituíram reserva de vagas para negros, prevaleceu o

critério da autodeclaração para definir quem seria beneficiário, de acordo com a

classificação preto/pardo do IBGE, equivalendo ao termo negro. A Universidade

48 Conforme Steil (2006). 49 Veja também em Feres Júnior (2006). 50 Apresentaremos uma seção específica para discutirmos classificação e denominação racial no Brasil.

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Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e a UnB utilizaram o método da identificação

por fotografia, o que causou alguns constrangimentos e processos judiciais. A discussão

sobre ampliação e acesso de negros ao ensino superior se expandiu para o restante do

país. Heringer (2006) elenca mais 12 iniciativas que estavam em fase de implantação, à

época de seu estudo. Hoje já se contariam 83 programas implantados em nível federal,

estadual e municipal, nas modalidades de sistema de cotas ou bônus, conforme

informação no sítio do Programa Políticas da Cor. Já o sítio do Fórum Interinstitucional

em Defesa das Ações Afirmativas, em seu Mapa das Ações Afirmativas, dá a notícia de

que são setenta e nove IES, oitenta e sete iniciativas no mercado de trabalho e no plano

do poder público, duas leis federais e seis iniciativas em autarquias federais e no poder

judiciário51.

Além de critérios menos excludentes para o acesso, seja para estudantes negros,

indígenas ou oriundos de escola pública, é necessário garantir-lhes a permanência nas

instituições de ensino superior, de maneira que possam auferir resultados positivos em

suas carreiras. Entre as experiências que analisou, Heringer (2006) concluiu que ainda

eram incipientes a adoção de medidas auxiliares tais como bolsas, ajuda de custo,

auxílio moradia e outras. Para Rosemberg (mimeo 1), são necessárias medidas

complementares que fortaleçam o acesso ao conhecimento e sugere “a elaboração de um

projeto político-educacional e a disponibilidade de recursos materiais e humanos”.

Telles (2003, p. 278) completa afirmando que é preciso ainda auxiliar o aluno egresso

desses programas “na busca de empregos adequados à educação obtida, o que ajudaria a

superar o nível relativamente fraco de capital social que possuem”.

Digno de nota, quanto a essa atenção à permanência dos beneficiários de um

programa de ação afirmativa, é o trabalho de acompanhamento aos bolsistas, que é

desenvolvido no Programa IFP. O acompanhamento é composto de uma fase pré-

acadêmica, que se refere ao apoio dado ao bolsista antes da seleção na pós-graduação –

“recursos para aquisição de livros, para viagem e estadia visando à seleção num curso

de pós-graduação, para curso de língua estrangeira e orientação para aperfeiçoamento

do pré-projeto” - e depois um acompanhamento após o seu ingresso em um curso,

consistindo de monitoramento e orientação no uso dos recursos e no desempenho

acadêmico. (ROSEMBERG, 2008, p. 211).

51 www.acoes.ufscar.br e www.politicasdacor.net

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Como já dissemos, em outubro de 2003, foi criado um Grupo de Trabalho

Interministerial (GTI), com a tarefa de levantar dados à respeito da desigualdade racial

no ensino superior e propor medidas para saná-la. No início do ano de 2004, o

Ministério da Educação (MEC) encaminhou à Casa Civil um texto de medida provisória

autorizando a adoção de cotas, pelas universidades públicas. Heringer (2006) destaca

que, a proposta de medida provisória propunha o uso da autodeclaração para identificar

os futuros beneficiados pelas cotas. Em fevereiro de 2004, Tarso Genro assume como

novo ministro da educação, posicionando-se contrário às cotas e propondo o uso do

método de vagas sobrantes52. Evidentemente surgiram reações a favor e contrárias de

diversos setores, recolocando o debate nesses termos, como afirma Heringer (2006),

levando, assim, à diluição da questão principal que era do acesso às universidades

públicas. O resultado de tudo isto foi o aumento daqueles que preferiam estabelecer

cotas para estudantes egressos do ensino médio em escolas públicas e não daqueles que

defendiam a adoção de cotas para negros. Outra conseqüência do debate acerca do

acesso da população negra e indígena, apontada pela autora, foi a mobilização em torno

da democratização do ensino superior, privilegiando-se o acesso à universidade aos

alunos originários de escola pública.

Quanto ao debate sobre ações afirmativas, particularmente aquele relativo à

implantação de cotas nas instituições de ensino superior, ocorrido nas fileiras do

governo federal, Heringer (2006) nos informa que tal tema nunca alcançou relevância

no MEC. Na verdade, houve resistência por parte de alguns setores, durante todo o

governo de Fernando Henrique Cardoso. Guimarães (2003c) nos informa que, até a

realização da CMR, a maior parte da ação do governo restringia-se a programas de

cunho universalistas, como “Alvorada”, “Avança Brasil” e “Comunidade Solidária”. O

ministro da educação, Paulo Renato Souza, no princípio, não admitia “o caráter ‘racial

das desigualdades raciais, preferindo atribuí-las ao mau funcionamento do ensino

fundamental público e a questões de renda e classe social” (GUIMARÃES, 2003c, p.

254). A falta de vontade política, no entanto, foi contornada no final de 2002, em função

da pressão do movimento negro, resultando daí a única medida concreta nesse governo,

que foi a criação do Programa Diversidade na Universidade (GUIMARÃES, 2003c, p.

52 “[...] o aproveitamento de 100 mil vagas ociosas nas universidades privadas que seriam ocupadas por estudantes negros, indígenas, portadores de deficiência e ex-presidiários, [...] A contrapartida do governo seria um plano de renúncia fiscal que beneficiaria as universidades privadas que adotassem o sistema” (HERINGER, 2006, p. 100).

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261 e HERINGER, 2006, p. 99). Com a criação da SEPPIR, no governo Lula, houve um

incremento no debate a respeito da ampliação do acesso de negros ao ensino superior.

Levando em consideração o embate em prol do fim das desigualdades, iniciado

nos anos 1990 até os dias de hoje, encontramos inúmeros argumentos tanto favoráveis

quanto contrários às ações afirmativas. É importante salientar que foi no meio desse

debate que foi implementado o Programa IFP, o qual se assume como um programa de

ação afirmativa na pós-graduação. Especificamente, em relação a medidas de ação

afirmativa no ensino superior, os argumentos contrários têm sido “pacientemente

refutados pelos que vêm implantando programas de ação afirmativa” (ROSEMBERG,

mimeo 1), como veremos em seguida.

Pela ocorrência de ampla produção, tanto acadêmica quanto midiática, sobre

essa altercação, limitamos o nosso olhar à primeira arena e indicamos alguns autores

que analisaram, com maestria, os principais argumentos e os pressupostos esgrimidos

nessa contenda. Guimarães (1999, p. 165-196) discute em um capítulo os argumentos

contra e pró ações afirmativas, esquematizando-os tanto para a realidade norte-

americana quanto brasileira. Heringer (1999, p. 14 a 21) apresenta e discute os

principais argumentos a favor e contra. Jaccoud e Beghin (2002, p. 50 e 51)

complementam a discussão feita por Hélio Santos. Silvério (2002a, p. 219-246) dedica

um artigo para analisar o debate brasileiro. Moehlecke (2002, p. 197-217) também faz

uma discussão sobre o debate em um artigo. Guimarães (2002, p. 70 a 75) apresenta

alguns dados refutando os argumentos contrários às ações afirmativas e afirma que seus

detratadores fazem é defender privilégios. Telles (2003, p. 274 a 295) sistematiza e

analisa os pontos principais, além de apresentar sugestões para o desenvolvimento das

políticas de ação afirmativa. Steil (2006) organizou, num livro, o debate acadêmico

sobre a política de cotas para negros no vestibular, focalizando o polêmico processo de

implantação das cotas na Universidade de Brasília. Feres Júnior e Zoninsein (2006)

trazem textos de autores que também apresentam e discutem os pontos do debate, dentre

eles Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Rosemberg (mimeo 1) faz a discussão dos

argumentos contrários à introdução de ação afirmativa no ensino superior. PAIXÃO

(2008, p. 135) avaliou a coerência dos argumentos contrários, a partir de suas matrizes

teóricas subjacentes, quais sejam: liberal, democrático-racial, nacionalista, culturalista

contemporâneo, funcionalista, marxista e geneticista. Em seu texto, Paixão salienta os

pontos de convergência, bem como as contradições entre essas diferentes matrizes.

Tomando como referência essa identificação feita por Paixão, propomos uma

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categorização dos principais elementos suscitados no debate, principalmente por aqueles

contrários à implantação das ações afirmativas no Brasil. Antes, é necessário apresentar,

de maneira sucinta, cada matriz teórica.

A visão liberal tem como principal fundamento o conceito de igualdade jurídica

de todos os indivíduos perante a lei. Basta que o Estado garanta direitos universais

negativos, para que esse princípio esteja garantido, conforme já dito anteriormente. A

formação dos estratos sociais se dá dentro do princípio do mérito, ou seja, “os ativos

adquiríveis, tais como a experiência pessoal e profissional” (PAIXÃO, 2008, p. 137), de

cada indivíduo, o que resultaria na construção de desigualdades. Tal concepção tem

como pressuposto a competição por recursos que são escassos, bem como a defesa de

direitos individuais.

O discurso democrático-racial está fundamentado no mito da democracia racial,

que irá enfatizar o caráter miscigenado do povo brasileiro para justificar o obstáculo de

se implantar políticas de ação afirmativa, “tendo em vista as dificuldades da população

em se reconhecer como branca ou negra” (PAIXÃO, 2008, p. 139). Segundo o autor,

entende-se que no Brasil, dada a sua mestiçagem, as relações sociais ocorrem em clima

“naturalmente” paternalista e hierarquizado social e racialmente, onde cada pessoa já

conheceria, por antecipação, qual é o seu lugar na sociedade. O mais importante,

segundo o autor, é a defesa do que ele chama de um ativo nacional, sustentada por

argumentos de ordem sociológica, quer dizer

[...] no Brasil, a ausência do racismo e do preconceito racial, associada ao consenso estabelecido de que os negros são piores do que os brancos (miscigenados ou não) em termos estéticos, culturais se intelectivos, guardam o caráter de um patrimônio cultural nacional imaterial (PAIXÃO, 2008, p. 140).

A fundamentação nacionalista respalda-se no modelo desenvolvimentista que

perdurou no país entre as décadas de 1930 a 1970. Nessa perspectiva, a cultura é

instrumentalizada com o propósito de construção do Estado-Nação. Para os

nacionalistas “as especificidades culturais são fundamentalmente importantes por conta

de seu valor enquanto instrumento para a modernização de uma nação portadora de

estruturas políticas e econômicas atrasadas (PAIXÃO, 2008, p. 141, grifo do autor).

Os argumentos contrários às políticas de promoção da igualdade racial derivadas

da tradição culturalista contemporânea são próprios daqueles que reconhecem que a

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democracia racial no Brasil é um mito, mas que defendem que o país tenha alcançado

um patamar imaginado “de uma sociedade moderna e industrializada”, ou seja, atingiu

uma paz inter-racial, que outros países liberais não teriam conseguido.

Para Paixão (2008, p. 152), há pontos de convergência entre os argumentos

democrático-racial, nacionalista e culturalista contemporâneo. Essas visões

compartilham da visão de que o modelo de relações raciais brasileiras é único e

primordialmente virtuoso.

O ponto central das concepções funcionalistas é que geracionalmente os negros

se estabilizam em posições sociais menos valorizadas, permanecendo, de maneira

perceptível, nos estratos inferiores da pirâmide social e em grande quantidade. Haveria

uma cronicidade nessas posições em função da herança do passado escravista; em

função do peso do preconceito que seria social e não racial e em função de que a

“condição negra remontaria ao tema da pobreza e não às barreiras motivadas por

mecanismos discriminatórios derivado de sua raça” (PAIXÃO, 2008, p. 145, grifo do

autor). De acordo com essa perspectiva, as desigualdades raciais brasileiras são

espontâneas e têm como causa o fato de haver mais negros na população pobre. Assim,

funcionalistas defendem a ação do Estado, junto aos setores mais pobres da população

em geral.

Segundo uma corrente hegemônica, dentro da perspectiva marxista, o racismo

não é visto como algo estrutural do sistema capitalista. A fundamentação que norteia

esse entendimento é que as contradições dentro desse sistema situam-se na luta de

classes, ou seja, entre operários e capitalistas. Compreende-se que a luta anti-racista

atingiria seus propósitos “após a superação da sociedade capitalista” (PAIXÃO, 2008,

p. 148-9). Por se guiarem por essa orientação classista, defendem princípios

universalistas na aplicação de políticas sociais.

O ponto de vista geneticista baseia-se nos avanços no campo do estudo genético,

que desautorizam o discurso racialista, que associa “características físicas a atributos

físicos, culturais e mentais” (PAIXÃO, 2008, p. 164). Também se fundamenta em

pesquisas relativas às origens do povo brasileiro, que atestaram o caráter miscigenado

de nossa população. Os opositores de políticas de equidade racial se utilizam dessas

conclusões para sustentar seus argumentos, bem como para deslegitimar o discurso do

movimento negro. O autor ainda informa que as outras seis matrizes analisadas se

identificam com a perspectiva geneticista, pois concordam que não haja uma realidade

biológica para o conceito de raça e assim mobilizam os “experimentos do campo da

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genética, para articular discursos contrários às demandas [...]” de políticas públicas com

recorte racial resultando esse uso instrumental, em permear de racialismo “um debate

que desde seus conteúdos essenciais, prescinde de semelhante fundamentação”

(PAIXÃO, 2008, p. 165).

Seguimos apresentando os principais elementos de crítica à proposta de ação

afirmativa de recorte racial no ensino superior, que foram identificados por importantes

autores quando examinaram esses pontos polêmicos.

A questão relacionada à definição racial e a autoclassificação, considerada

uma das principais críticas a ação afirmativa no Brasil, segundo a qual não existiriam

fronteiras raciais definidas no país e, portanto, não haveria como definir quem é negro,

quem é branco. Tal apontamento foi identificado nas análises dos seguintes autores:

Guimarães (1999, p. 184, 190, 192 e 206); Guimarães (2002, p. 70 e 75); Guimarães

(2003, p. 263); Silvério (2003, p. 327 e 336); Telles (2003, p. 289); Maio e Santos

(2006, p. 33, 143 e 154); Guimarães (2006, p. 52 e 55); Azevedo (2006, p. 2006, p. 63);

Pinto (2006, p. 149); Schwarcz (2006, p. 90); Sansone (2006, p. 94); Lima (2006, p.

105); Carvalho (2006, p. 115); Pena (2006, p. 129) e Maggie (2006, p. 133/4).

Decorrente dessa questão da definição racial foi encontrado o problema do

oportunismo, ou seja, tendo em vista fronteiras raciais frouxas, haveria possibilidade

de candidatos a programas de ação afirmativa passarem a linha de cor, os chamados

“fraudadores raciais” ou “burladores raciais”. Esse elemento do debate foi identificado

por: Guimarães (1999, p. 192 e 208); Guimarães (2002, p. 75); Guimarães (2003, p.

205); Telles (2003, p. 289); Maio e Santos (2006, p. 23 e 46); Guimarães (2006, p. 52 a

55); Schwarcz, (2006, p. 90); Sansone (2006, p. 94); Carvalho (2006, p. 115); Maggie

(2006, p. 132) e Pinto (2006, p. 154/5). Considerando os estudos de Paixão (2008),

enquadramos ambos os elementos do debate, dentro das perspectivas democrático

racial, nacionalista, culturalista contemporânea e geneticista.

Como determinar qual seria o grupo-alvo das “políticas para compensar

minorias” é outro ponto levantado no debate, a partir das análises de Guimarães (1999,

p. 191) e Pinto (2006, p. 146). Consideramos que tal questionamento inscreve-se dentro

das perspectivas funcionalistas e culturalista contemporâneo.

Outro ponto problematizado e que direcionou muito das discussões a respeito da

implantação das ações afirmativas no Brasil, foi a ênfase na modalidade de cotas como

única forma de acesso dos negros no ensino superior e que sistema de cotas atenderia

somente a uma elite negra. Essas temáticas foram identificada nos estudos de

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Guimarães (1999, p. 188 e 193); Heringer (1999, mimeo 1, p. 14); Guimarães (2002, p.

70); Pinto (2006, p. 146, 149, 162); Maio e Santos (2006, p. 14); Ribeiro (2006, p. 72);

Lima (2006, p. 107), Rosemberg (2008, p. 205) e Rosemberg (mimeo 7, p. 6). Estes

pontos podem ser alocados dentro das abordagens liberal, funcionalista, democrático-

racial, nacionalista e culturalista contemporâneo.

Um ponto que teve considerável ênfase no debate foi o entendimento que os

programas de ação afirmativa pressupunham a eliminação da idéia de mérito. Foram

vários os autores que examinaram esse argumento: Guimarães (1999, p. 185, 193);

Heringer (1999, mimeo 1, p. 14); Heringer (2001, p. 51); Silvério (2002a, p. 237);

Silvério (2003, p. 327); Moehlecke (2002, p. 210); Guimarães (2002, p. 73/4); Telles

(2003, p. 286/7); Guimarães (2003, p. 266); Pinto (2006, p. 140, 149) e Rosemberg

(mimeo 7, p. 5). Tal argumento pode ser enquadrado dentro das matrizes teóricas

liberal, funcional, democrático-racial e culturalista contemporâneo.

Argumento recorrente no debate foi a ênfase em políticas universalistas. Tal

elemento foi apontado por Guimarães (1999, p. 187 e 193); Heringer (2001, p. 50/1);

Moehlecke (2002, p. 213); Telles (2003, p. 283); Duarte (2006, p. 99/101); Pinto (2006,

p. 149) e Rosemberg (mimeo 1, p. 16). Esse argumento é próprio das concepções

liberal, democrático-racial e marxista.

A preocupação com a perda da qualidade do ensino superior e a consequente

estigmatização dos futuros bolsistas, também foram destaques no debate, conforme

Heringer (1999, mimeo 1, p. 14); Moehlecke (2002, p. 210); Telles (2003, p. 284);

Guimarães (2003, p. 263); Pinto (2006, p. 156) e Rosemberg (mimeo 1, p. 15).

Acreditamos que tais argumentam estejam fundamentados em concepções teóricas

liberais e funcionalistas.

Da mesma maneira como analisou as formas de justificativa para implantação de

ações afirmativas nos EUA, Feres Júnior (2006) examinou as conseqüências do uso dos

argumentos de reparação, diversidade e justiça social para a implantação de programas

de ação afirmativa no Brasil.

Se para os norte-americanos houve um momento onde vigorou, separadamente,

cada modo de justificação, no Brasil eles ocorreram quase ao mesmo tempo,

sobressaindo mais os argumentos de reparação e de diversidade em detrimento ao de

justiça social, pouco usado. O autor, de pronto, explicita como ele ordenaria esses

argumentos, elegendo a justiça social como sua primeira opção, depois a reparação.

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Para ele, o argumento da diversidade não deveria ter tanta importância (FERES, 2006,

p. 31).

Tanto para o argumento da reparação quanto para o de diversidade, o autor

apontou suas limitações quanto à operacionalidade em termos de implementação. A

reparação, apesar de forte apelo moral, esbarra, primeiramente, na questão do tempo,

pois segundo o autor não se transfere direitos ou culpabilidade (em casos de vítimas da

repressão militar), de maneira fácil aos descendentes. Outra dificuldade é de identificar

os beneficiários, considerando a ampla miscigenação da população. Por esse argumento,

ao se utilizar um critério de descendência africana poderíamos ter dois resultados

opostos: ou se teria uma grande maioria a ser beneficiada ou um número muito limitado

de favorecidos (FERES JUNIOR, 2006, p. 57).

A dificuldade operacional para o argumento da diversidade decorre da noção de

grupos discriminados, pautada numa concepção pragmática que implicaria numa

pluralidade de possíveis beneficiários, o que reduziria muito o alcance de ações

afirmativas pautadas nesse argumento. É um argumento que permite pensar pequenos

grupos, mas que traz dificuldade para implementar, por exemplo, políticas de ação

afirmativa para o acesso ao ensino superior para pretos e pardos, que juntos já são quase

a metade de população brasileira, segundo PNAD 2007.

Uma concepção essencializada da diversidade é de pouca utilidade para a

justificativa de implementação de políticas de ação afirmativa, pois pressupõe a idéia de

etnia que “ funciona como instrumento de se racializar a cultura ou se culturalizar

percepções raciais” segundo Feres Júnior (2006, p. 58). E como nos lembra Munanga

(1988 e 2004), esse é um caminho equivocado para o entendimento da realidade da

população negra no Brasil. No entanto, o argumento culturalista tem sido muito

utilizado num discurso anti-racista diferencialista, particularmente pelo movimento

negro (D’ADESKY, 2006, p. 161). Contudo, Feres Júnior não deixa de apontar uma

contradição nessa posição. Se, por um lado, a idéia de diversidade pressupõe variados

“modos de vida dados na sociedade”, o uso político que os grupos do movimento negro

faz do conceito negro, implica em negação dessa diversidade, por não levar em conta o

fenômeno da miscigenação. Outro problema que o autor aponta é que grande parte da

população não compartilha do significado que o movimento negro dá ao termo negro,

que é a aglutinação de pretos e pardos, o que comprometeria a legitimidade das políticas

de ação afirmativa que utilizassem desse recurso (FERES JÚNIOR, 2006, p. 59). O uso

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da categoria negro, nesse sentido aglutinador de pretos e pardos, é também criticado por

Sergio Costa (1997), como veremos mais adiante.

Contrariamente aos outros dois argumentos, o da justiça social, além de ter

amparo constitucional, “atende a todos os grupos que sofrem discriminação sistemática,

sem necessidade de maiores justificações históricas, [...]. Ademais, tal argumento pode

ser conjugado ao argumento da reparação sem prejuízo mútuo, num jogo de soma

positiva” (FERES JUNIOR, 2006, p. 31). É um argumento que tem seu foco nas

desigualdades presentes e não em injustiças pretéritas. No caso brasileiro, são diversos

pesquisadores que atestam o componente racial dessas desigualdades, como vimos

anteriormente. Quanto aos possíveis beneficiários, o autor recomenda o uso das mesmas

categorias de cor-raça do IBGE na implantação de política de ação afirmativa, de modo

que sua justificação encontre apoio nas evidências estatísticas de desigualdade. Na

defesa desse argumento, Feres Junior (2006, p. 61) ainda complementa:

[...] o argumento da justiça social tem a virtude de não demandar nenhuma essencialização identitária além dos critérios já praticados há décadas por institutos de pesquisa governamentais. Ademais, esse princípio pode ser estendido, a outros grupos que sofrem ou possam vir a sofrer discriminação.

Um dos argumentos contrários mais recorrentes no debate, diz respeito ao

processo de classificação racial no Brasil, pelo qual, segundo os detratores, “seria

infactível deslindar-se quem seria negro ou branco” (PAIXÃO, 2008, p. 139), ponto

frequentemente apresentado como uma das dificuldades para efetivação, de políticas de

ação afirmativa . Assim sendo, faremos, no capítulo seguinte, uma breve mirada em

parte da bibliografia pertinente, para termos uma noção da especificidade da

identificação/classificação racial na sociedade brasileira e refletirmos sobre seu impacto

na implementação de experiências de ação afirmativa.

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CAPÍTULO 5 - Classificação racial no Brasil

Dada a diversidade de configurações societárias, nenhum organismo

internacional propôs uma classificação geral para raças ou etnias. “Assim, em pesquisas

internacionais, quando a ‘etnicidade’ é objeto de interesse, geralmente é captada

segundo as categorias locais empregadas pelo órgão oficial de estatística do país”

(OSÓRIO, 2004, p. 106). São variados os modelos adotados pelos censos, em função da

história de cada sociedade: no Brasil, pergunta-se sobre a cor ou raça das pessoas; na

Índia, a orientação religiosa; na Inglaterra, o grupo étnico; na França, a nacionalidade;

nas Ilhas Maurício, os grupos lingüísticos; nos EUA e Canadá, a raça (OSÓRIO, 2004;

PETRUCCELLI, 2007).

Blumenbach, fisiologista e antropólogo alemão (1752-1840), foi quem

introduziu a cor da pele como critério básico para diferenciar as chamadas raças

humanas no século XVIII na Europa Ocidental. Sua classificação das raças humanas

associava cor da pele e região geográfica de origem em cinco tipos: branca ou

caucasiana; negra ou etiópica; amarela ou mongol; parda ou malaia e vermelha ou

americana. Muito dessa terminologia inspirou a forma de classificar em nosso país e no

restante do mundo. O vocabulário racial com base na “cor da pele” penetrou no Brasil

no período colonial, sendo usado nos inquéritos populacionais, de forma variada, desde

o primeiro Censo Demográfico de 1872 até os dias de hoje. Há que se observar, de

certo, que os sentidos dos termos variaram ao longo do tempo e de acordo com

contextos específicos (ROCHA e ROSEMBERG, 2007, p. 763), como veremos mais

adiante, quando falarmos do uso da categoria cor ou raça nos censos brasileiros.

Osório (2004) e Petruccelli (2007) lembram que classificar é um ato básico do

processo cognitivo, permitindo o conhecimento e o reconhecimento, bem como a vida

societária. “Classificações são o tijolo do simbólico”, afirma Osório. Por sua vez,

Petruccelli (2007, p. 10) ressalva que o processo de classificar ocorre em contextos

estruturados, ou seja, a operação de classificar é acompanhada por uma dissimetria entre

quem se vê no direito de classificar e quem é alvo da classificação. “Interpenetrada pelo

uso comum das categorias de cor, se verifica a presença de uma relação de dominação

simbólica expressada na classificação”. Como bem lembram Piza e Rosemberg (2003, p

107), “As palavras para nomear a cor das pessoas não são meros veículos neutros

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enunciadores de matizes, mas carregam índices de preconceito/discriminação, de seu

distanciamento e de sua superação”.

Osório (2004, p. 92-93) aponta que, mesmo considerando a raça como uma

“realidade sociocultural”, há que se reconhecer um embasamento biológico, porém

adverte que as diferenças visíveis daí resultantes, quando ocorrem, não produzem por si

mesmas as desigualdades, uma vez que essas são socialmente construídas. No entanto,

deve-se levar em conta os aspectos biológicos e sociais na conceituação de cor.

Conforme Soares (2008, p. 103), cor é

uma construção social baseada parcialmente em características genéticas herdadas da mãe, parcialmente em características genéticas herdadas do pai e parcialmente em características socioeconômicas herdadas da família na qual a criança nasce ou adquiridas ao longo da vida.

No processo classificatório, são atribuídos termos ou palavras a coisas, classes,

ou categorias. Petruccelli (2007) demarcou como se deu a formação da lexicografia

relacionada à cor como tropo para raça. Segundo o autor, já se faziam alusões às

características dos povos desde os primeiros contatos entre os europeus e os ameríndios

e essas referências às características continuaram a ser feitas aos africanos e seus

descendentes em solo brasileiro, a partir da segunda metade do século XVI. Assim,

construiu-se, ao longo do tempo, uma diversificada nomenclatura, muito mais

sofisticada que a utilizada nos dias de hoje, conforme Osório (2004, p.104), que

contemplava à intensa miscigenação, podendo produzir ainda identidades socialmente

construídas associadas a ela. Pela pesquisa que empreendeu, Petruccelli situa, entre os

séculos XIV e XVII, o aparecimento de marcadores referentes a essa mistura de raças.

No levantamento da gênese dos termos, o autor identificou o termo pardo como um dos

mais antigos, definido como “de cor entre o branco e o preto, mulato” (Cunha, 1982

apud PETRUCCELLI, 2007, p. 19). Em português e espanhol, parece derivado do latim

pardus e do grego pardos, significando leopardo (leão-pardo). Já havia referência ao

termo pardo na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, em 1500, falando

sobre os nativos “que a feiçam deles he serem pardos maneira avermelhados de boôs

rrostros e boos narizes bem feitos” (Castro, 1985, p. 41 apud PETRUCCELLI, 2007, p.

17).

O substantivo mulato é proveniente do castelhano, datado de 1525 e denomina a

ascendência de “pai branco e mãe preta ou vice-versa” (Cunha, 1982 apud

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PETRUCCELLI, 2007, p. 19), que faz referência ao mulo, que é o resultado híbrido,

fruto de mestiçagem e que é infecundo, (Bonniol e Benoist, 1994 apud PETRUCCELLI,

2007, p. 19). De acordo com esse autor, há no livro de Antonil, do século XVIII, uma

referência ao termo mulato, com conotação pejorativa atribuída aos descendentes

miscigenados de africanos (PETRUCCELLI, 2007, p. 17).

O termo mestiço, definido como “nascido de pais de raças diferentes” (Cunha,

1982, apud PETRUCCELLI, 2007, p. 19), nome ibérico, do espanhol mestizo, usado

como adjetivo ou substantivo, aparece no português no século XIV. Etimologicamente

proveniente do “latim tardio mixticus, de mixtus, particípio passivo [sic] do verbo

miscère, misturar” (PETRUCCELLI, 2007, p. 20). Foi usado, inicialmente, nas Índias

Ocidentais para designar somente a ascendência de europeus com ameríndios.

O termo preto carece ainda de precisão quanto à sua exata origem, tanto no

espanhol, quanto no português. Said-Ali (1931 apud PETRUCCELLI, 2007, p. 21)

apresenta a seguinte definição para o termo branco::

[...] em sentido rigoroso, é a neve, a cal o leite, a açucena etc. Homem ou mulher com a pele exatamente da cor destes objetos, não existe, nem nunca existiu, [...] Na cor da pele de qualquer indivíduo da chamada raça branca ou caucásica transparece sempre entre o alvo e o róseo um amarelado ou morenado mais leve nos povos septentrionais, mais fortes nas gentes do meio-dia.

Outras denominações, com menor representatividade estatística, também foram

estudadas por Petruccelli referentes às “qualificações aplicadas à descendência de

uniões com a população indígena”, tais como caboclo, cafuzo e bugre, mas não serão

tratadas aqui por estarem fora do escopo deste trabalho. Trataremos do termo negro

mais adiante.

O que a categoria cor significa no Brasil? Guimarães (1999, p. 104-5) apresenta

um breve trajeto de ampliação dessa categoria, no campo teórico, desde o estudo

pioneiro de Donald Pierson, em Salvador, nos anos 1930. Se nesse primeiro trabalho de

pesquisa, Pierson deu indicações de que a “cor” era mais do que pigmentação, incluindo

outras características físicas, (Harris e Kottak, 1963, apud GUIMARÃES, 1999, p. 104)

conseguiram comprovar como eram importantes e em qual ordem vinham os seguintes

elementos, na definição de cor: tipo de cabelo, formato do nariz e formato dos lábios.

Afastando-se dos pressupostos racialistas da época e adentrando nos estudos de relações

raciais, a Antropologia Social permitiu uma ampliação ainda maior do significado da

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“cor”. Os estudos que se seguiram de 1940 a 1960 possibilitaram identificar a

associação do sistema de classificação brasileiro com hierarquização social. De acordo

com Nogueira (1998, p. 244), além dos traços físicos, a “identificação da cor de um

indivíduo é influenciada pela associação a outros característicos de status, como o grau

de instrução, a ocupação e os hábitos pessoais [bem como] sua associação tradicional ou

habitual com grupos predominantemente de brancos ou de pretos”.

Segundo Guimarães (1999, p 43), diversos autores consideravam que, tanto no

Brasil quanto na América Latina, não haveria preconceito racial, mas apenas

“preconceito de cor”. Aqueles que estudaram o Brasil alegavam que não se poderia falar

em grupos raciais no país, mas apenas em “grupos de cor”. Isto devido à particularidade

da forma de classificação racial de diversos países, baseada na aparência e não na

origem. Neste mesmo sentido, Nogueira (199853, p. 239), ao fazer um exame das

relações raciais nos EUA e no Brasil, apontou que, em nosso país, ocorre o “preconceito

de cor ou de marca racial”, ao passo que norte-americanos nutririam um “preconceito de

origem”. Florestan Fernandes (1965, apud GUIMARÃES, 1999, p. 46) apontou para o

fato “de que o ‘preconceito de cor’ deveria ser usado como noção nativa –

conceitualizado, no início, pela Frente Negra Brasileira, em 1930 – para se referir à

forma particular de discriminação racial que oprime os negros brasileiros”. Mas, ao

problematizar essa idéia nativa de “cor”, Guimarães alerta que a atribuição de “cor” a

alguém não está isenta dos valores que orientam a nossa percepção. “É desse modo que

a ‘cor’, no Brasil, funciona como uma imagem figurada de “raça” (GUIMARÃES,

1999, p. 46), um “tropo54 para raça” (GUIMARÃES, 2002, p. 54). Isto é, “a

classificação das pessoas por cor é orientada por um discurso sobre qualidades, atitudes

e essências transmitidas por sangue, que remontam a uma origem ancestral comum

numa das ‘subespécies humanas’” (GUIMARÃES, 2003a, p. 103).

Para o autor, um discurso classificatório que se pauta em cores, como um tropo

para raça, é um discurso naturalizado, uma vez que estamos no campo das construções

discursivas, não diante de dados de uma realidade concreta.

A bibliografia produzida por autores brasileiros ou estrangeiros, tem sido

praticamente unânime em apontar que o processo de classificação de cor/raça no Brasil

é baseado na aparência e não na ascendência (Nogueira, 1998, p. 239). Alguns raros

53 O relatório que originou o livro, foi publicado parceladamente na revista Anhembi nos anos de 1954 e 1955, conforme nos informa Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, na introdução dessa edição do livro. 54 No Dicionário Houaiss, tropo é o emprego figurado de palavra ou locução, figura. Estas observações não se aplicam ao contexto de classificação indígena-não indígena, como nos lembra Rocha (2005, p. 26).

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estudos, porém, se referem a um sistema classificatório que se basearia também na

origem ou ascendência.

Talvez o texto que tenha dado mais atenção a este aspecto tenha sido o de Piza e

Rosemberg (2003) que efetuam uma análise exaustiva dos Censos desde o de 1872. O

primeiro recenseamento geral da população, o de 1872, que diferenciava as pessoas pela

condição de serem livres ou escravas. As categorias de cor utilizadas foram aquelas que

estavam mais disseminadas na população à época: preto, pardo, branco e caboclo. Preto

e pardo eram as categorias de cor, reservadas aos escravos, mas também para as pessoas

livres. A categoria caboclo, que possuía raiz na origem racial do declarante, era

reservada aos indígenas (PIZA e ROSEMBERG, 2003, p 2). Percebe-se a utilização de

um critério misto de fenótipo e de origem para a caracterização racial da população

(PIZA e ROSEMBERG, 2003; OSÓRIO, 2004 e PETRUCCELLI, 2004).

Segundo Rosemberg (2003, p. 94), no entanto, nem sempre foi desse jeito, pois

“o critério de descendência vigorou no Brasil, em determinados momentos históricos

[século XVIII e século XIX] e circunstâncias”.

O segundo censo geral, o de 1890, também adotou o critério misto para compor

as categorias (preto, branco, caboclo e mestiço), de modo a referir-se, explicitamente, à

ancestralidade ou ascendência das pessoas. Nota-se que o termo mestiço substituiu o

termo pardo e deveria ser usado para se referir, exclusivamente, aos descendentes da

união de pretos e brancos (PIZA e ROSEMBERG, 2003, p 5). Os censos que se

seguiram, 1900 e 1920, não coletaram cor da população.

Apesar de o Censo de 1920 não ter incluído a investigação sobre cor/raça da

população, Piza e Rosemberg (2002), citando Lamounier (1976), destacam a

justificativa oficial referente à exclusão do quesito, na qual se percebe, novamente, um

modo de classificação de cor/raça assentado na origem:

[...] as respostas [ocultam] em grande parte a verdade, especialmente [...] de ordinário refratários à cor original a que pertencem [...] sendo que os próprios indivíduos nem sempre podem declarar sua ascendência [...].Além do mais, a tonalidade da cor deixa a desejar como critério discriminativo, por seu elemento incerto [...] (Censo 1920, apud Lamounier, 1976, p. 18, apud PIZA e ROSEMBERG, 2003, p. 6).

O quesito só voltou a ser coletado no Censo de 1940, o primeiro da série de

censos modernos decenais e que utilizam as categorias branco, preto, pardo e amarelo.

O termo mestiço deu lugar ao termo pardo e criou-se a categoria amarelo para designar

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os imigrantes asiáticos, particularmente japoneses e seus descendentes, que ingressaram

no país a partir de 1908. O Censo de 1950, segundo dos censos modernos, seguiu as

cores do Censo de 1940 e explicitava que a categoria pardo deveria abranger os índios,

mulatos, caboclos, cafuzos e outros, um amálgama de aparência e origem.

Os Censos de 1960 e 1980 seguiram esse mesmo padrão. Já o Censo de 1970

não coletou a informação sobre a cor e não foram expostos os motivos para não fazê-lo.

A partir do Censo de 1991, acrescentou-se a categoria indígena e a pergunta efetuada

passou a ser “Qual a cor ou raça?”, compondo as cinco categorias que são usadas

atualmente (PIZA e ROSEMBERG, 2003; OSÓRIO, 2004 e PETRUCCELLI, 2004).

Tal inclusão merece um comentário mais pormenorizado. Quando a literatura sobre

classificação/denominação de cor/raça se refere ao sistema brasileiro como orientado

pela aparência, seu foco, sem explicitá-lo, são os segmentos branco e negro (pretos e

pardos), posto que, conforme discussão efetuada por Antonio Carlos de Souza Lima

(2007)55, a autoidentificação entre os indígenas ocorre pela pertença uma etnia.

Uma outra referência sobre classificação com base na origem encontra-se no

artigo de Robin E. Sheriff (2002) “Como os senhores chamavam os escravos: discursos

sobre cor, raça e racismo um morro carioca”. Trata-se de artigo primoroso, que, a

nossos olhos, dentre outras qualidades, efetua uma distinção entre denominação e

classificação racial. No primeiro caso teríamos discursos descritivos: “Esses discursos

não são, propriamente falando, raciais, mas referem-se, antes, a conceitos de cor e

aparência” (SHERIFF, 2002, p. 226). Por outro lado, a autora identificou, também, “um

discursos ou identidade e classificação racial [...] que enfatiza tanto a raça como a noção

de categorias raciais distintas” (p. 226, 227). E é nesse padrão discursivo que a autora

se defronta com processos classificatórios que remetem à origem, o que, em seu texto

foi analisado a partir dos comentários de Ana Lúcia, moradora da vizinhança pesquisada

pela autora: “Eu sou parda, mas sou da raça negra” (p. 230). Na discussão do

comentário de Ana Lúcia, Sheriff (2002, p. 231) pondera: “Ela [Ana Lúcia] refuta, ao

menos parcialmente, a noção de que, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a

identidade racial é determinada não pela família ou pelo parentesco, mas pela cor da

pessoa”.

E, em nota refere-se a observação equivalente de Benjamin Zimmerman, em

artigo de 1952, publicado no famoso e histórico livro de Charles Wagley – “Race and

55 Doutor em Antropologia Social e pesquisador do CNPq. (http://lattes.cnpq.br/0201883600417969)

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class in rural Brazil”: “Em numerosos casos, as pessoas entrevistadas disseram que não

podiam indicar a qualidade de algumas das pessoas da lista ‘porque não conheciam suas

famílias’ [...]” (Zimmerman, 1952, p. 103, apud SHERIFF, 2002, p. 240).

Por ocasião da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de 1998, como ensaio para

a introdução do termo afrodescentente no Censo de 2000, conforme análise de

Schwartzman (1999, apud ROCHA, 2005, p. 69), incluiu a pergunta sobre origem a

maioria das pessoas respondeu à pergunta via origem nacional dos pais ou origem

regional brasileira, o que pode ter desqualificado investigações mais aprofundadas sobre

a referência à origem na classificação de cor/raça.

Tais comentários são necessários, posto que, no Capítulo 2, da Parte III,

discutiremos a alta incidência da justificativa origem quando os sujeitos de nossa

amostra responderam porque optaram pela categoria indicada na pergunta que seguiu o

formato tradicional do IBGE.

Outros pontos do debate são muito importantes, referem-se aos modos

brasileiros de operar as classificações (se é bipolar ou múltiplo), quais são os sistemas

de classificação adotados no país (oficial ou oficiais, popular e outros) e o sistema de

coleta de dados (se por autodenominação ou hetero-denominação) (Rocha,2005).

Quanto aos modos de operar a classificação racial, Peter Fry (1995/1996 apud ROCHA,

2005, p. 60) identifica três modos diferenciados: um para as classes médias

intelectualizadas do meio urbano, que utilizariam um modo binário de classificação

(branco x negro); outro para as camadas populares, um modelo múltiplo, variando

contingencialmente; finalmente um modelo que combinaria uma forma reduzida do

modo múltiplo ou ampliada do bipolar, que resultaria no uso de três categorias - negro,

branco e “mulato” -, que seria, para Fry, o mesmo modelo utilizado oficialmente no

censo brasileiro.

Na interpretação de Telles (2003, p. 105), são três os modos para classificar a

população brasileira, dentro “de um continuum de cores do branco ao negro”, cada qual

apresentando uma variedade de categorias. De acordo com o autor, teríamos então: 1) o

modelo oficial dos censos do IBGE (cor/raça), utilizando cinco categorias (branco,

pardo, preto, amarelo e indígena); 2) “o discurso popular”, que, à primeira vista,

indicaria o uso de uma profusão de termos para descrever raças e cores, e 3) o sistema

bipolar (branco, negro), utilizado pelo movimento negro. Telles (2003), como outros

pesquisadores, sustenta sua caracterização do modelo múltiplo na variada terminologia

utilizada pelos brasileiros para descrever as gradações de cor.

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Já D’Adesky (2001, p. 135) indica o uso de cinco modos de classificação racial:

1) o uso das cinco categorias oficiais do IBGE; 2) “o sistema branco, negro e índio,

referente ao mito fundador da civilização brasileira”; 3) o sistema classificatório popular

de 135 cores, segundo apurado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

(PNAD, 1976); 4) o modo binário branco e não-branco usado por inúmeros

pesquisadores nas Ciências Humanas e 5) o modelo binário branco e negro, dos grupos

e organizações do movimento negro.

Para Rosemberg (2005), seria um equívoco associar linear vocabulário racial e

classificação ou identidade racial, bem como afirmar que o vocabulário utilizado pelo

IBGE, nos Censos Demográficos e nas PNADs, seja o vocabulário oficial do país.

Analisando diversos documentos oficiais, a autora identificou uma diversidade de

termos utilizados para se referir a cor/raça, além daqueles usados pelo IBGE. Segundo a

autora, o vocabulário para denominação varia de acordo com o contexto social em que é

utilizado. Por exemplo, o termo “afro-brasileiro” é mais empregado quando o tema está

relacionado ao contexto cultural e religioso; já o termo negro, aos contextos

relacionados à explicitação de discriminação e preconceito. Um exemplo que vem do

interior de um órgão de governo, o Ministério da Educação, assinala esta diversidade de

denominação racial: nas provas elaboradas, em 2003, para o Sistema de Avaliação da

Educação Básica (SAEB), tanto para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),

quanto para o Exame Nacional de Cursos (ENC), as alternativas para o campo de

pertença étnico-racial eram branco, negro (e não preto), mulato (e não pardo), amarelo e

indígena. Desta forma, Rosemberg (2005 apud ROCHA, 2005, p. 62)

chama a atenção que os diferentes contextos institucionais acionam repertórios lingüísticos diversos que podem, ou não, ser associados a um modelo bipolar ou múltiplo de classificação racial. Além disso, assinala que, mesmo o sistema classificatório equivalente ao do IBGE e que inclui cinco termos, pode apresentar vocabulários diversos em diferentes instrumentos produzidos pelo Estado brasileiro.

Assim, a denominação/classificação racial usada em documentos do Estado

brasileiro não se assemelha a um sistema monolítico. Deste modo, os termos preto e

pardo, apesar de fazerem parte do vocabulário do IBGE para classificação racial, por

diferentes razões, não foram utilizados em leis e decretos contemporâneos, nas provas

do MEC até 2003. Em outro documento governamental, o Relatório Preparatório para a

Conferência de Durban (Brasil, 2000), que também foi assinado por representantes da

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sociedade civil, comissões do legislativo, representante do Ministério Público Federal e

militantes do movimento negro, Rosemberg (2005) constatou o uso de uma

nomenclatura tendente a “um modelo bipolar ‘negro/afrodescendente-branco’ e restrita

a dois vocábulos ‘negro’ e ‘afro-descendente ou afro-brasileiro’, muito distante do

vocabulário usado nas pesquisas do IBGE”.

Muitos são os autores que defendem que no Brasil adotaríamos um modo

múltiplo de classificação racial, em função do nosso extenso e variado vocabulário

racial para nomear nossa cor/raça. São diversos os estudos56, conforme Rocha e

Rosemberg (2007, p. 768), que “identificaram inúmeros termos, em diferentes regiões

do país, para denominar ou classificar a si mesmo no espectro de cor ou em categorias

de raça”. Para alguns estudiosos, essa profusão de termos é que singulariza o sistema de

classificação brasileiro (Telles, 2003). Já outros vêem nesse fenômeno um indicador de

que o procedimento adotado pelo IBGE, nos censos demográficos e nas PNADs, é

inadequado. Rocha (2005) e Rocha e Rosemberg (2007) discutiram esses

posicionamentos a partir da análise de dois inquéritos realizados pelo IBGE - a Pesquisa

Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 1976 e a Pesquisa Mensal de Empregos

(PME) 1998 - e também da pesquisa DataFolha 1995, os quais também foram objeto de

estudo de diversos pesquisadores (TELLES, 2003; OSÓRIO, 2004; PETRUCELLI,

2004).

Na PNAD 1976, foram arrolados 135 termos diferentes e 143 na PME 1998, a

partir do procedimento de efetuar uma pergunta aberta aos respondentes: (“qual a sua

cor” em 1976 e “qual a sua cor ou raça” em 1998 (ROCHA e ROSEMBERG, 2007, p.

768). Essa multiplicidade de termos ensejaria uma “idéia da suposta enorme

complexidade do sistema classificatório brasileiro” (PETRUCCELLI, 2004, p. 18). Tal

idéia, porém, estaria sendo sustentada pela desatenção ao uso muito reduzido de vários

termos de acordo com Telles (2003) e Rocha (2005), muitos termos foram usados por

poucas pessoas que responderam aos inquéritos. Complementarmente, os pesquisadores

notaram uma forte concentração de respostas em poucos termos, particularmente

naqueles usados pelo IBGE.

[...] o fato de que 95% dos entrevistados usaram apenas seis termos é frequentemente ignorado. Em nova análise dos dados de 1976, encontrou-se que 135 termos foram usados na amostra de 82.577 brasileiros, mas 45 desses

56 Rocha e Rosemberg (2007, p. 767) apresentam um rol de pesquisas sobre vocabulário racial brasileiro. Apresentam um quadro por autor, ano, local da pesquisa e os termos de cor e/ou raça encontrados.

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termos foram utilizados por apenas uma ou duas pessoas. Oitenta e seis (86), ou aproximadamente dois terços (64%) desses termos foram utilizados por apenas 279 dos 82.577 entrevistados, correspondendo a 0,3% da população. Logo, os brasileiros utilizaram uma vasta gama de termos raciais, mas a grande maioria utiliza os mesmos termos (TELLES, 2003, p.107).

Assim, ao contrário do que supõem os críticos dos instrumentos utilizados pelo

IBGE, dentre os seis termos que foram usados por 95% da população, cinco são os

mesmos que o Instituto aplica em suas pesquisas: branco, preto, pardo, amarelo e

indígena. A partir desses achados, pesquisadores defendem os procedimentos do IBGE

(OSÓRIO, 2004, p. 85; PETRUCELLI, 2004, p. 20; TELLES, 2003, p. 107).

Rocha (2005) considera não apropriada a interpretação de que os resultados dos

inquéritos dão suporte à idéia de que teríamos um sistema classificatório múltiplo.

Reportando-se a estudos que utilizaram diversas fontes de dados, Petruccelli (2004, p.

21) chega mesmo a indicar um crescimento da tendência para um sistema bipolar, no

sentido de que nota “uma instabilidade das categorias intermediárias de cor frente à

fixidez da dicotomia branco/negro ou branco/não-branco”.

Encontramos uma problematização interessante sobre o caráter múltiplo das

categorias de classificação racial em D’Adesky (2003) e Petruccelli (2004). Ambos

autores apontam para o caráter hierarquizador implícito nessa variedade cromática. Ou

seja, haveria uma subordinação dos diversos termos da escala cromática ou do continum

de cor, a cor branca, tomada como “norma referencial positiva” (D’ADESKY, 2003, p.

136). Dito de outro modo, o ideal de branqueamento, imporia a cor branca como padrão

estético superior a ser alcançado, o que implicaria numa hierarquização.

A diversidade de termos usualmente encontrados permitiria realçar, na caracterização da “aparência”, o componente mais claro, numa tentativa de procurar melhor aceitação social apesar de outro componente ancestral socialmente inferiorizado que se quer, simbolicamente, manter dissimulado (Queiroz, s/d, p.4; Petruccelli, 2001, p. 10 apud PETRUCCELLI, 2004, p. 19).

Ao contrário de supor apenas uma capacidade inventiva fértil no sistema

classificatório popular, D’Adesky (2003, p. 137) identifica representações coletivas

fundamentadas nos binômios “elite/povo” e “branco/negro” e também na “ambigüidade

do racismo e anti-racismo universalista dominante no Brasil”. Assim, para o autor, trata-

se de uma dissemetria em forma de um “continuum vertical em que a categoria branco

se situa no topo e a categoria negro em baixo”. Essa reflexão apontaria para uma

tendência à bipolaridade do sistema de classificação racial brasileiro. Além disso,

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Petrucelli (2004, p. 21) destaca que a instabilidade das categorias intermediárias

contrasta com a “fixidez da dicotomia branco/negro ou branco/não branco”.

Debates sobre os sistema brasileiro de classificação racial vão além da discussão

sobre as categorias de cor/raça adotados. Outro aspecto crucial, e controverso, é o

“método de identificação de pertença” Osório (2004, p. 86), isto é, a maneira de como

se define a pertença da pessoa aos grupos raciais. Osório identifica três formas: 1) por

autoatribuição de pertença, no qual o próprio respondente “escolhe o grupo do qual se

considera membro”; 2) por hetero-atribuição de pertença, no qual outra pessoa define a

que grupo a pessoa pertence e 3) por identificação biológica, através de análise do

DNA57. Os dois primeiros são respectivamente chamados de processo de

autoidentificação e processo de heteroidentificação, por Piza e Rosemberg (2003, p. 91).

A opção de usar um modelo ou outro, ou mesmo ambos, tem variado de acordo

com a situação/instrumento em que está sendo usado. Osório (2004, p. 94) assinala a

convivência das três formas no Brasil. Em registros administrativos, no entanto, há

casos onde só é possível uso da heteroatribuição, como em registro de nascimento ou de

morte. E outros, nos quais o próprio respondente é o interessado, a informação de

cor/raça é definida por autoatribuição. O autor ainda afirma que, nas pesquisas

domiciliares, do tipo surveys, realizadas pelo IBGE, é usado um método misto de auto e

de heteroatribuição de cor/raça, pois os questionários são aplicados no responsável pela

residência ou seu substituto no momento da aplicação, que dá informação sobre sua cor

e também sobre a cor dos demais residentes, principalmente de crianças ou de outra

pessoa que esteja impossibilitada de fazer isto.

A controvérsia de estudiosos quanto ao uso da autoatribuição em pesquisas

brasileiras, acontece em função da categoria pardo. Para alguns pesquisadores, a

autoatribuição poderia facilitar o “embranquecimento” àqueles que se encontram numa

faixa intermediária do chamado continuum de cor e/ou com melhores condições

socioeconômicas. Para investigar a polêmica sobre a conveniência de se usar ou não o

método de autodeclaração, Osório (2004, p. 97-103) comparou três estudos, nos quais

os pesquisadores confrontavam os dois métodos: as eleições 1986 em São Paulo, a

pesquisa DataFolha 1995 e a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) 1996.

Analisando os resultados desses estudos, o autor encontrou um alto grau de

concordância entre os dois métodos: 76%, 72% e 89% respectivamente. Em uma

57 Este método não será apreciado neste trabalho. Para maiores considerações consultar Osório (2004, p.87 a 94).

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pesquisa realizada nos EUA, também citada por Osório (2004, p. 101), foi detectada

uma concordância de 94% entre a classificação do entrevistado e a do entrevistador. O

que os estudos mostram é que ocorreria uma mesma percepção de raça entre

entrevistadores e entrevistados. Isto quer dizer, no contexto brasileiro, que a

heteroabribuição não está isenta da influência da idéia de embranquecimento, o que

indica que esse não é um método mais objetivo do que o método da autoatribuição.

Senão vejamos: pelo critério da heteroatribuição, foram encontrados mais brancos, do

que pelo critério de autoatribuição nas três pesquisas consideradas. Além do mais,

A abrangência da categoria parda e sua aparente indefinição, por sua vez, paradoxalmente ampliam a objetividade da classificação. Sendo fluidas as linhas de fronteira que separam as três grandes zonas de cor, preta, parda e branca, a classificação ganha a capacidade de apreender a situação do indivíduo classificado em seu microcosmo social, no contexto relacional que efetivamente conta na definição da pertença ao grupo discriminador, ou ao discriminado. A classificação tira assim sua objetividade não de classificar pessoas invariável e precisamente segundo um padrão fenotípico único e supra-local, como parecem desejar os que reclamam “precisão” ou “objetividade científica”, mas da sua flexibilidade que lhe proporciona a aceitação das definições locais das fronteiras de cor, sejam estas quais forem (OSÓRIO, 2004, p. 113).

Da sua discussão com Valle Silva a respeito da pesquisa das eleições de 1986,

Osório termina por apontar o método da autoatribuição de cor como sendo o método

mais acurado, por produzir uma composição racial brasileira com menos brancos e

também por reafirmar a eficiência do sistema de classificação do IBGE, não deixando,

no entanto, de indicar um cuidado para a “sua aplicação em contextos onde o

enquadramento em determinadas categorias possa alavancar vantagens pessoais [...]”

(OSÓRIO, 2004, p. 133), como no caso de experiências de ação afirmativa com recorte

racial.

Falta ainda nos referirmos ao termo negro, que foi deixado para ser apresentado

neste momento, em função de sua especificidade e importância neste estudo. Como

vimos acima, o termo negro nunca foi usado nas categorias oficiais dos censos, mas

passou a ser incorporado, de forma positiva, pela imprensa negra, nos anos 1920 e

diversos grupos e organizações, dos anos 1930 aos dias de hoje (GUIMARÃES, 2003b,

p. 254 e TELLES, 2003, p. 134).

Piza e Rosemberg (2003) chamam a atenção para os diversos sentidos que o

termo negro pode assumir, dependendo de quem o usa e do contexto de seu uso. Os

grupos e lideranças do movimento negro têm usado o termo numa perspectiva racial-

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política-cultural. Alguns pesquisadores das relações raciais e alguns demógrafos usam o

termo negro como sinônimo de preto, como foi o caso da pesquisa da Fundação Sistema

Estadual de Análise de Dados (SEADE), em 1992, sobre família e pobreza na cidade de

São Paulo, exemplificada pelas autoras. Isso também ocorreu no debate midiático sobre

ações afirmativas, bem como em diversos programas de ação afirmativa implantados no

país. Fazendo uma crítica ao estudo de Yvone Maggie para o catálogo das

comemorações do Centenário da Abolição, Piza e Rosemberg (2003, p. 110)

identificaram que, naquele estudo, o termo negro foi usado de modo isomorfo ao termo

branco, já que não se levou em consideração os aspectos de hierarquização social. Para

as autoras, o trabalho de Maggie mostra que

em contextos puramente culturais [...] o termo negro parece adquirir um certo isoformismo com o termo branco. A cultura negra e a cultura branca aparentemente se equivaleriam enquanto produtos culturais cuja diferença não implicaria subordinação e de seus efeitos.

Reiteramos que, neste trabalho, utilizaremos o termo raça a partir de uma

perspectiva ontológica nominalista, ou seja, que não reivindicamos qualquer substrato

biológico para as chamadas raças, bem como chamamos de negros o conjunto de

pessoas pretas e pardas. Na defesa do uso desse critério de agregação dessas duas

categorias para constituir-se um grande grupo populacional, o de negros, Osório (2004,

p. 113) apresenta uma justificativa estatística, ou seja, os dois segmentos, preto e pardo,

apresentam características socioeconômicas muito semelhantes, diferenciando-se pouco

entre si, em potencialmente todos os indicadores; e uma justificativa teórica, isto é,

ambos os grupos estão submetidos a discriminações de mesma natureza. Ao abordar a

situação de fronteira em que se situa a categoria pardo, o autor declara que

o propósito da classificação racial não é estabelecer com precisão um tipo ‘biológico’, mas se aproximar de uma caracterização sociocultural local. O que interessa, onde vige o preconceito de marca, é a carga de traços nos indivíduos do que se imagina, em cada local, ser a aparência do negro. Pardos têm menos traços, mas estes existem, pois se não fosse assim não seriam pardos, e sim brancos; e é a presença desses traços que os elegerá vítimas potenciais de discriminação (OSÓRIO, 2004, p. 114).

Guimarães (2003b), em um estudo sobre a imprensa negra, no período de 1925 a

1950, em São Paulo e no Rio de Janeiro, identificou como se deu a evolução

terminológica no modo de autodesignação dos negros, no Brasil. Nesse estudo podemos

verificar as diferentes acepções que o termo adquiriu ao longo do tempo. Logo no início

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de seu texto, o autor faz algumas observações importantes. A primeira, que o estudo se

restringe a compreender qual o caminho que negros escolarizados e militantes, em São

Paulo e no Rio de Janeiro, percorreram na construção de sua identidade racial e cultural.

A segunda refere-se a sua metodologia, informando que tomará as palavras “raças” e

“cultura”, nos sentidos que lhes foram imputados por “um grupo social determinado a

partir dos anos 1920 em São Paulo, e a partir de 1944 no Rio de Janeiro, grupo esse que

passou a se autodenominar ‘negros’ e ‘raça negra’”. O autor ainda informa que

Ao não imputar conteúdos a esses termos que não sejam aqueles historicamente definidos pelos agentes sociais, quero evitar qualquer discussão sobre substâncias e essências apropriadas seja à “raça negra”, seja à “cultura negra”, seja à “identidade negra”, pois entendo que essa é uma tarefa política que não me cabe (GUIMARÃES, 2003b, 249).

Na primeira metade do século XIX, na Bahia, o termo “preto”58 designava os

africanos e o termo “crioulo” os negros nascidos no Brasil. Na outra metade, também na

Bahia, o termo “preto” passou a abarcar africanos e seus descendentes e “negro” deixou

de designar a “cor” e foi lentamente passando a ter um significado racial e pejorativo.

Em São Paulo, nos anos anteriores à Abolição da Escravatura, ao termo “negro” foi

atribuído uma conotação muito pejorativa e “preto” um significado neutro. No anos de

1920, os militantes do movimento negro se chamavam de “homens de cor” e “homens

pretos” e chamavam o coletivo de “classe”, um vocabulário legado do passado. As

palavras “raça” e “negro”, que também eram usadas por eles, tinham o sentido distinto

dos dias atuais. A partir da década de 1920, no entanto, começa a haver mudança na

concepção de “raça” e “negro”. “O que existia de negativo, inferior e insultuoso nessas

palavras passa para um segundo plano para dar lugar à reivindicação de um sentido

positivo e arregimentador” (GUIMARÃES, 2003b, p. 255). Nesse momento, já se sentia

a influência do historiador, sociólogo e líder político norte-americano, W. E. B. Du

Bois, que foi o primeiro a teorizar sobre “raça negra”, em 1897, atribuindo-lhe um

significado que não era totalmente biológico. A partir de 1924, os termos “negros” e

“raça” começaram a denominar o coletivo, que outrora era chamado por “homens de

cor” e de “classe”. Mas com o decorrer do tempo, os termos “homens de cor” e “classe”

começaram a cair em desuso, tanto na imprensa quanto nos movimentos. O autor faz

uma ressalva para a permanência do termo “classe” até o século XXI, mas com “outro

58 Utilizaremos os termos relacionados a denominação de cor/raça entre aspas, do mesmo modo que Guimarães (2003b, p. 247-269) usou em seu texto. São termos extraídos de jornais publicados por associações, clubes e pessoas pioneiras do movimento negro brasileiro, no período de 1925 a 1950, estudados pelo autor.

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significado, para designar a ausência da idéia de ‘raça’ no tratamento dado aos negros

no Brasil” (GUIMARÃES, 2003b, p. 256).

A mudança que ocorreu da autodesignação dos negros, no período de 1916 a

1970, Guimarães (2003b, p. 257) atribui a uma revolução identitária que ocorreu em

nível mundial entre o final do século XIX a meados do século XX59. Foram

fundamentais para essa revolução a reapropriação e aproximação de dois termos “raça”,

conceito da biologia, que foi re-significado com o sentido de comunidade histórica e

espiritual transnacional e o termo “cultura”, para denominar o grupo de manifestações

artísticas e materiais desse povo transnacional (Guimarães, 2003b, p. 257).

Essa mudança na forma pela qual os negros vinham se nomeando, tem sido

examinada e constatada em diversos estudos: Telles (2003), Osório (2004) e Soares

(2008). Nas análise que fez, relativa ao período de 1940 a 1991, Telles verificou um

“empardecimento” da população, apontando para o fato de que, no período, a população

de pardos fora a única que apresentava crescimento: de 21%, em 1940 passaram para

43%, em 1991, o que ele atribuiu à miscigenação. Quanto ao Censo de 2000, Telles

encontrou resultado inverso, ou seja, crescimento para as categorias preto e branco e

decréscimo para a categoria pardo. Sua suposição é que se não ocorreu mudanças em

fatores demográficos, tal variação seria atribuída às mudanças na autoclassificação

racial, indicando uma bipolarização preto e branco, identificada por ele. A substituição

de “cor” por “cor e raça”, na maneira de perguntar do censo, também teria influenciado

nessa escolha, segundo Telles (2003, p. 61-62).

Já Osório (2004, p. 122) levanta a hipótese de valorização de negritude. Segundo

o autor, “O aumento da declaração da cor negra e da previsibilidade do enquadramento

induzido dos que espontaneamente se declararam pretos e pardos podem ser indícios de

que essa valorização está em curso”. Tendência, que segundo esse autor, já teria sido

indicada por Petruccelli (2002), quando esse comparou o aumento da proporção de

pretos no Censo de 2000 em relação ao de 1991.

Para Soares (2008, p. 99), o “enegrecimento do Brasil” está em curso desde

1940, apresentando acentuado aumento no período de 2001 a 2007. Em 1890, a

população negra era de 56%. Em 1940, essa população apresentou seu ponto

demográfico mais baixo, 35,8%, como resultado da intensa imigração européia que se

seguiu entre 1890 a 1930, quando mais de três milhões de europeus vieram para o

59 Aqui o autor faz referência indireta ao Movimento de Negritude.

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Brasil. A partir de 1940, a população conjunta de pretos e partos não parou mais de

crescer: no Censo de 1960, 38%; no Censo de 1980, 44%; na PNAD 2002, 46% e por

último, na PNAD 2007, 49,8% da população brasileira se identificaram como preta ou

parda. Soares propõe três hipóteses explicativas para analisar esse fenômeno: 1) haveria

uma taxa de fecundidade maior para um dos grupos; 2) o processo de miscigenação e 3)

“mudanças de cor/raça idiossincráticas” ou “mudança na identificação racial”. Após

examinar empiricamente todas as três hipóteses, Soares, em concordância com

Petruccelli (2002), Telles (2003) e Osório (2004), chega à conclusão de que vem

ocorrendo, de maneira crescente, uma mudança da identificação racial favorável à

identificação preta, sentida pelos indivíduos como negra, no país.

A história até aqui é mais ou menos clara e coerente: a despeito da existência indubitável de efeitos da taxa de fecundidade e da identificação racial ao nascer [efeito da miscigenação], há uma avalanche de mudanças da identificação racial. Essa avalanche vem em detrimento da identidade branca e, principalmente, a favor da identidade coletada pelo IBGE como preta, mas muito possivelmente sentida pelos indivíduos como negra. Finalmente, essa avalanche começa com pouca força a partir de meados da década de noventa, mas adquire muito mais movimento a partir da mudança do milênio (SOARES, 2008, p. 111).

Soares (2008, p. 116) situa entre 1996 e 2001 o início do processo de mudança

na autoidentificação das pessoas negras. Salienta que tal identificação ocorreu mais

fortemente na categoria preto, do que na categoria pardo, indicando, segundo o autor,

que as pessoas estariam perdendo o medo de assumir a sua identidade negra, deixando

de ter vergonha de se dizerem negras, recusando o branqueamento como forma de

legitimarem-se. Para o autor, o “escurecimento da população brasileira” tem uma

explicação que está evidente, como poucas vezes aconteceu na história das Ciências

Sociais brasileiras nos últimos dez anos: é a mudança na maneira como as pessoas se

vêem, a causa principal do fenômeno e não fatores exclusivamente demográficos.

Lembramos que foi uma década de muitas mudanças políticas e sociais, com

acontecimentos marcantes para a sociedade, dentre eles, a participação do Brasil na

CMR, em Durban e o fato de o Estado brasileiro ter passado a introduzir “a noção de

‘ação afirmativa’ como um dos princípios organizadores de algumas de suas políticas

sociais” (Zoninsein, 2004, p 107-108 apud PINTO, 2006, p. 136). Assim, podemos

considerar que a disseminação dos programas de ação afirmativa possa ser também uma

hipótese explicativa para o “enegrecimento” que está em curso no país, uma vez que são

programas que têm colocado, no debate público, o tema da classificação racial, e da

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identificação de quem é branco, quem é negro para as experiências de ação afirmativa.

Trataremos desse componente do debate na seção seguinte, quando apresentarmos a

estratégias do Programa IFP frente aos pontos de crítica dos opositores da implantação

de ações afirmativas no Brasil.

Soares (2008) considera outras explicações possíveis ao “enegrecimento” da

população. Sem pautar-se em evidência, o autor reconhece a importância que o

movimento negro também teve nesse processo, bem como o novo papel social

alcançado pelo negro na mídia, na política, no Supremo Tribunal Federal e em

telenovelas. “Pode-se dizer que o que está acontecendo não é que o Brasil esteja

tornando-se uma nação de negros, mas, sim, que está se assumindo como tal”

(SOARES, 2008, p. 116).

Nesse contexto de mudança de identificação racial do povo brasileir -; somando-

se à luta contra o racismo, principalmente na luta contra as desigualdades raciais na

Educação, particularmente na pós-graduação e no fogo cruzado do debate a respeito da

implantação de ações afirmativas para o ensino superior - o Programa IFP adotou,

dentre uma multiplicidade de conceituações de ação afirmativa, um conceito mais

afinado com seus objetivos de justiça social. A ação afirmativa como uma ação

focalizada que provê tratamento preferencial a certos grupos (por pertença étnico/racial,

região de nascimento e condições sócio-econômicas da família de origem), visando

aumentar a proporção de seus membros em setores da vida social (pós-graduação), nos

quais tais grupos se encontram sub-representados em razão de discriminações históricas

ou atuais (CALVÈS, 2004, p. 7)

O Programa IFP no Brasil adotou como principal estratégia para a determinação

da pertença aos grupos-alvo, a autodeclaração dos candidatos, conforme dito

anteriormente. Estratégia fundamentada no princípio da confiança, conforme

Rosemberg (2008, p. 209) e em conformidade com a orientação da Convenção 169 da

OIT. No tocante ao combate a eventual oportunismo na identificação de cor/raça, o

Programa IFP solicita ao candidato três tipos de respostas na identificação de cor/raça:

1) o modelo do IBGE (branca, preta, parda, amarela, indígena), 2) declaração de

pertença étnico/racial, onde é utilizado o termo negro no formulário:

Declaro que pertenço ao(s) segmento(s) sub-representado(s) na pós-graduação privilegiado(s) no edital do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e que assinalei abaixo: (entre outros) identifico-me como negro(a) ou identifico-me como indígena e pertenço ao povo (ROSEMBERG, 2008, p. 208/9).

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E, para completar a sistemática de “triangulação”, incluiu uma questão aberta

“Relate suas experiências ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico/racial”,

cujas respostas foram analisadas nesta tese. Segundo Rosemberg (2008, p. 209), o

objetivo de tal sistemática “é a de não cometer injustiça, incluindo pessoas que passem a

linha de cor por oportunismo”. Outras estratégias utilizadas pelo Programa IFP para

conter os possíveis “fraudadores raciais” foram: “solicitar documentos, foto [...],

anunciar, no edital, a realização de entrevistas e divulgar, no site e nos cartazes, o perfil

e a “cara” dos bolsistas – [...]” (ROSEMBERG, mimeo 7, p. 4), bem como a

explicitação de que se trata de um programa de ação afirmativa, seus objetivos e a quem

se destina (ROSEMBERG, 2008, p. 210).

Para sua implementação no Brasil, o Programa IFP procurou adaptar as

diretrizes internacionais às particularidades de ação afirmativa e à cultura da pós-

graduação brasileira. O dossiê para candidatura é composto de “campos relacionados às

informações sobre os atributos adscritos e que dão suporte à seleção de pessoas

provenientes de grupos subrepresentados na pós-graduação, outros à trajetória escolar,

ao curriculum vitae”, além de exigir a apresentação de um pré-projeto de pesquisa,

como ocorre em muitos programas de pós-graduação stricto sensu (ROSEMBERG,

mimeo 7, p. 6). A forma de estabelecer quem entraria no Programa revelou-se uma

inovação importante, no sentido de estar atento à inversão de uma lógica de mercado

que é desfavorável aos grupos-alvo. Assim, Rosemberg (2008, p. 206) assinala que

[...] o Programa IFP no Brasil não prefixou cota ou meta para os segmentos sociais que privilegia. Apenas invertemos a lógica do mercado: tem mais chance no Programa quem tem menos chance no mercado. E como definir as chances no mercado? Calculando o peso específico de cada uma das variáveis no conjunto das três prefixadas por meio do cálculo do Probito60 aplicado aos dados da PNAD 1996 referentes à população brasileira que concluiu o ensino superior.

A estratégia do Programa IFP para responder a questão do mérito, ponto por

diversas vezes levantado no debate, como dissemos acima, advém da operacionalização

do conceito de ação afirmativa adotado, ou seja, seu processo de seleção, que acontece

em três fases: primeiramente identifica os candidatos, através do cálculo do Probito, em

número de 200, que teriam menor probabilidade de terminar a graduação em

60 Rosemberg (2008, p. 206) informa que se trata de uma nova metodologia desenvolvida em parceria com Sergei Soares, pesquisador do IPEA.

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decorrência de atributos adscritos; os dossiês desses 200 candidatos são, posteriormente

avaliados pelo mérito; selecionam-se 75 que são entrevistados. Conforme Rosemberg

(2008), os procedimentos de experiências de ação afirmativa não eliminam a avaliação

do mérito de pessoas, mas o re-situa em outro momento, posto que são pessoas os

contemplados pela experiência. E, por isso, processasse também a avaliação da pessoa,

seu mérito ou potencial”. Aqui mais uma inovação importante introduzido pelo

Programa IFP. O foco não recai apenas sobre potencial ou mérito acadêmico, mas visa

integrar três dimensões: acadêmica, liderança e compromisso social (FCC, Informe 2, p.

4-5). Para Gonçalves (2004, p. 103), apesar de “espinhoso”, o processo seletivo do

Programa IFP é um dos mais avançados em termos de ação afirmativa no Brasil.

Tais estratégias adotadas para enfrentar as particularidades da arena de debates e

experiências, possibilitaram ao Programa IFP, no Brasil, alcançar alguns indicadores de

sucesso. “Em julho de 2009, 132 dissertações e teses já haviam sido defendidas. E mais

ainda: vários/as ex-bolsistas IFP de mestrado ingressaram no doutorado tendo obtido,

para tanto, bolsas de outras instituições [...] (ROSEMBERG, 2009, p. 2).

Silvério (2008, p. 236/7) considera que o Programa IFP tem alcançado seus

objetivos, porque tem permitido acesso à pós-graduação, a pessoas que não teriam essa

possibilidade; por apontar novas formas de selecionar, quando consegue que os

candidatos entrem nos melhores cursos do país; bem como por ampliar “a agenda de

pesquisa do país ao privilegiar áreas fundamentais até então pouco assistidas”.

Dados referentes a dezembro de 2008 revelam que o Programa tem atingido seus

objetivos, conforme vemos no Quadro 1 abaixo:

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Quadro 1 – Informações seletas sobre o Programa IFP

Ano de início 2001 Número de seleções 8 Número de candidatos nas sete seleções 7797 Bolsas concedidas 295 (75% para mestrado) Duração das bolsas . mestrado: 24 meses + pré-acadêmico (até 12 meses)

. doutorado: 36 meses + pré-acadêmico (até 12 meses)

. média: 26,8 meses Perfil dos (as) bolsistas* . 49,8 % mulheres

. 83% declararam-se pretos ou pardos

. 11,9 % declararam-se indígenas

. 64,1% nasceram nas regiões norte, nordeste ou centro-oeste . média de idade 33,6 anos

Principais campos de estudo dos (as) bolsistas* . Educação: 21,9 % . Artes e cultura: 10,9 % . Meio-Ambiente e Desenvolvimento: 9,3 % . Direitos Humanos: 7,6 %

Principais universidades em que os (as) bolsistas estudam/ingressaram*

. PUC-SP: 47 . UFRJ: 9

. USP: 15 . UFBA: 9

. UNISINOS: 12 . UFF: 9

. U. COIMBRA: 11 . UnB: 10 Em 08/05/2009 . 152 bolsistas terminaram a bolsa

. dentre eles 129 já completaram o curso, 109 no mestrado e 20 no doutorado

Tempo médio para titulação . 26,1 meses no mestrado . 44,7 meses no doutorado

Fonte: Base de dados do Programa IFP Brasil (FCC, 2008). * Dados referentes a dezembro 2008.

Pinto (2006, p. 136), ao estudar uma das medidas de políticas de ação afirmativa,

que foi a implantação do sistema de cotas raciais para o ingresso nas universidades

estaduais do Rio de Janeiro, assinala o impacto dessa política pública no processo de

construção de identidades sociais. Segundo o autor, a “formalização de identidades

sociais como sujeitos de direito reconhecidos pelo Estado, permitindo que aqueles que

as reivindiquem tenham um acesso diferenciado a recursos, bens e serviços, tem efeitos

profundos na dinâmica social dessas identidades” (PINTO, 2006, p. 138).

Principalmente quando consideramos “bens raros”, como no caso do acesso ao ensino

superior. Mas aqui é necessário problematizar, em acordo com Costa (2002) e Feres Jr.

(2006): se as reivindicações por ações afirmativas são sustentadas ou justificadas por

desigualdade no acesso a bens raros desigualmente distribuídos – no caso a população

negra composta por pretos e pardos –, a quais identidades o autor se refere, na medida

em que o principal ator para sua reivindicação, no Brasil, é o movimento negro.

Chamamos atenção para eventual descompasso entre os que reivindicam e os que são

beneficiários de programas de ação afirmativa com recorte racial. Sentimos como

oportuno, fazermos uma reflexão sobre o conceito de identidade.

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PARTE II – REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE RACIAL E AÇÕES

AFIRMATIVAS

O que se pretendia delinear aqui era o aporte de teorias não essencialistas de

identidade, compreendida como dinâmica, relacional, processual, não teleológica, como

um movimento de identificação da pessoa com seus personagens, encantados que

estávamos com teorias que: 1) pressupõem que o sujeito se faz na experiência: “O

indíviduo é o que ele faz (CIAMPA, 1986, p 135); “a experiência é o local de formação

do sujeito (BRAH, 1996, p. 116) e 2) pressupõem que o sujeito não existe previamente,

ele é produzido no discurso (BRAH, 1996, p. 120). Por tudo isto, a idéia era propor um

estudo sobre as identidades negras que levasse em consideração, abordagens teóricas

que contemplam o contexto, a importância dos grupos de referência, a manipulação de

impressão, o caráter performativo da linguagem e da identidade e “a identidade como

uma construção social personalizada”.

Por estar atado aos mastros firmes aos quais nos referimos na introdução dessa

tese, pudemos ouvir o canto dessas sedutoras sereias e por isto dar conta de perceber, no

decorrer do trabalho, que na implementação de um programa de ação afirmativa, não se

trata de conhecer ou entender subjetividades, mas de identificar possíveis beneficiários

que se enquadrem em um dos grupos-alvo do programa, no caso, o étnico/racial.

Deparamo-nos, então, com a necessidade de enfoques teóricos que fornecessem

ferramentas que permitissem compreender o como se dá a identificação étnico/racial.

Por se tratar de um programa de massa, que trabalha com um recorte temporal,

percebemos como impraticável recorrermos ao método de história de vida, pois o que

precisamos saber é como a pessoa se apresenta a um programa. Buscando, então, filtrar

meu objeto e integrar essa preocupação pragmática redirecionamos o barco para o

entendimento do processo de identificação. O que apresentamos a seguir é o pequeno

desvio que tomamos nessa viagem.

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CAPÍTULO 1 – Reflexões sobre identidade

Neste capítulo faremos uma incursão reflexiva sobre as formas de

conceituação/teorização da identidade à luz de nossa inquietação quanto a processos de

identificação étnico-racial em programas de ação afirmativa.

Dada a diversidade teórico-metodológica no estudo da identidade, nota-se uma

diversidade terminológica para se referir a esse objeto. Assim, tem-se a identidade

pessoal, que está relacionada aos atributos específicos de cada pessoa; identidade social

ou identidade coletiva, que correspondem aos atributos que indicam a pertença a grupos

ou categorias; identidade do eu, que é uma identidade reflexiva tanto em Goffman

(1963) quanto em Habermas (1983)61. Há também o termo identidade psicológica

empregado por Costa (1989) apud Jacques (1998, p. 161) “para se referir a um

predicado universal e genérico definidor por excelência do humano em contraposição a

apenas um atributo do eu ou de algum eu como é a identidade social, étnica ou religiosa,

por exemplo”. Considerando a inter-relação entre as dimensões individual e social,

também se emprega o termo identidade psicossocial, numa tentativa de contemplar a

relação dialética entre indivíduo e sociedade, de acordo com Neto (1985) apud Jacques

(1998, p. 161).

Conforme Nunes et alii (1986), a origem do conceito está na Grécia antiga,

apresentando-se com diversas acepções, dependendo da forma de pensar de cada época.

Os autores apresentam duas formas de como as Ciências Humanas têm se apropriado do

conceito de identidade. A idéia dos autores é identificar diferença entre um modo

estável e um modo dinâmico de pensar a identidade.

Segundo Nunes et alii (1986), o pensamento ocidental62 é resultado de uma série

de idéias desenvolvidas pelos primeiros pensadores gregos nos séculos VI a V a.C.

Parmênides de Eléia (515-510 a.C.) foi o precursor do princípio da não-contradição, que

foi posteriormente sistematizado por Aristóteles (384-322 a.C.) (NUNES et alii, 1986,

p. 27). Para Parmênides o ser é localizado no tempo e no espaço. “Consagra-se então o

conceito de identidade preso a uma realidade concreta, erigindo a era do sensório como 61 É uma identidade que não é meramente atribuída, que se desenvolve a partir de “uma identidade constituída por papéis e mediatizada simbolicamente” precedida por uma “identidade natural”, “é o estágio de consciência de si, no qual o pessoa pode se referir a si mesmo através da reflexão, já que entra em comunicação com um outro Eu, de modo tal que ambos podem conhecer-se e reconhecer-se reciprocamente como Eus: [...]” (HABERMAS, 1983, 78-79, grifo do autor). 62 Refere-se ao pensamento do homem urbano ocidental. (NUNES et alii, 1986, p. 25)

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determinante de todos os fenômenos, quer sejam físicos, quer psíquicos” (NUNES et

alii, 1986, p. 25). No pensamento de Parmênides, a verdade poderia ser indagada na

perspectiva do ser ou do não ser, mas apenas o caminho da certeza conduz à verdade,

pois o não-ser é inalcançável, portanto não há mudança. Pensamento e ser são uma coisa

só. Este ser não divisível (indivíduo) é completamente idêntico e fixo.

Instala-se, desse modo, o princípio da identidade, espelhando o ser sobre si mesmo, abrindo caminho para o racional, o que é objetivável, excluindo a instabilidade, o paradoxo, do âmbito do universo do discurso lógico, que passou a constituir-se na característica implícita dos propósitos da ciência (NUNES et alii, 1986, p. 27).

Não é difícil de perceber, como tal pensamento esteve e está presente na maneira

de se fazer ciência, principalmente nos moldes positivistas. A busca por regularidades, a

procura por aquilo que é idêntico através do ideal de um rigor sistemático, tem

subjacente a idéia de uma substancialidade regida pelo princípio da não-contradição.

Tanto as Ciências Naturais quanto as Ciências Humanas e Sociais estão envoltas com

essa concepção dualista. Para as primeiras, Nunes et alii (1986, p. 27) exemplificam

com o postulado de que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao

mesmo tempo”; para as Ciências Humanas, lembram as dicotomias bom/mau,

doente/sadio, lei/“fora da lei”, normal/patológico.

As idéias de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.) representam outra forma de

pensar, conforme Nunes et alii (1986). Uma das idéias refere-se à unidade dos opostos.

Ao se observar uma garrafa de água meio cheia, e alguém afirmar que ela está meio

vazia, não há contradição nisto. No entanto, segundo Nunes et alii, o paradoxo sempre

foi algo a ser depurado do pensamento ocidental.

Tudo (pensava Heráclito) é uma reunião de opostos ou, pelo menos, de tendências opostas. A luta e a contradição não devem ser evitadas, pois elas se juntaram para formar o mundo. Se eliminássemos a contradição, perderíamos a realidade. Mas isto significa que a realidade é inerentemente instável (MAGEE, 2001, p. 14).

Essa fluidez é a segunda idéia de Heráclito que é “Tudo flui. Nada neste mundo

é permanente. Tudo está mudando o tempo todo. [...] A mudança é a lei da vida e do

universo. Ela manda em tudo”. (MAGEE, 2001, p. 15).

Para Nunes et alii (1986, p. 30), a proposição heraclítica, “unidade que contém e

transcende todas as forças opostas”, indica uma forma de pensar não hierarquizada.

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Quando se hierarquiza se estabelece o que é superior e o que é inferior, a partir de uma

valoração. E o modo de pensar que caracteriza o pensamento ocidental tem sido

recorrente ou a eliminar o que é diferente ou a situá-lo no campo do desvio, da

marginalidade, tomando conceitos universais enquanto norma, enquanto regra. Na visão

de Heráclito, não faz qualquer sentido essa hierarquização, já que tudo está em

movimento.

Em Heráclito, uma visão de identidade tal como postulada por Parmênides e tal como é tomada pela modernidade não teria mais sentido, pois nenhuma coisa se acha apoiada num só ponto, legitimada pela limitação do ser engendrado pelo seu não-ser. Pelo contrário, há a coexistência da polaridade, da pluralidade (NUNES et alii, 1986, p. 30).

Para exemplificar no que resultou, na produção científica contemporânea, as

influências de Parmênides e Heráclito, Nunes et alii (1986) retratam como exemplo de

concepção estável de identidade, a obra de Goffman (1988) e como exemplo de

concepção dinâmica, apesar de algumas ressalvas, a obra de Berger e Luckmann (1985).

Veremos, mais adiante, que Ciampa (1984, 1986) também se inspirou na fluidez de

Heráclito.

Erving Goffman, sociólogo e escritor canadense, identificado com um grupo de

autores da Escola de Chicago63, que escrevem partindo da perspectiva do

Interacionismo Simbólico64 (BAZILLI et alii, 1998, p. 120), defende que a “sociedade

estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como

comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (GOFFMAN, 1963,

p. 11). Esse conjunto de categorias e atributos informaria a “identidade social” de

alguém. Com base nessa identidade é que “se cria uma série de expectativas normativas

relacionadas ao indivíduo e que estão ligadas ao papel que o mesmo vai desempenhar,

[...] (BAZILLI et alii, 1998, p. 138). Decorreria daí, então, duas posições distintas; uma

“identidade social virtual” e uma “identidade social real”. A primeira refere-se àquilo

que foi imputado pela sociedade, “de acordo com as categorias e atributos esperados por

esta (NUNES et alii, 1986, p. 26). A segunda refere-se à “categoria e aos atributos que

ele [o indivíduo], na realidade, prova possuir, [...] (GOFFMAN, 1963, p. 12)”.

63 “A Escola de Chicago enfatiza processos e não estruturas, introspecção e não escalas de atitudes, indeterminação e emergência e não determinação” (BAZILLI et alii, 1998, p. 31, grifo dos autores). 64 Apresentaremos um pouco mais essa linha teórica, à frente.

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110

De acordo com Goffman (1963, p. 74), o conceito de identidade social refere-se

aos papéis, é aparente e tem a ver com o como a pessoa é vista ou percebida, possibilita,

assim, levar em conta o processo de estigmatização; o conceito de identidade pessoal,

que considera qual é “o papel do controle de informação na manipulação do estigma” e

a identidade do eu, possibilita levar em conta o sentido subjetivo que a pessoa dá a sua

situação, enquanto portadora de um atributo estigmatizável. (GOFFMAN, 1963, p. 117)

Para Nunes et alii (1986, p. 26), o fato de a identidade ser analisada tomando

como referência uma “identidade deteriorada”, ou seja, a partir do estigma, pressupõe

que Goffman considera que haja um centro, ou eixo de referência tomado como norma e

que qualquer movimento, afastando-se desse ponto, indicaria desvio65. Isto indicaria,

segundo os autores, uma visão dicotômica, opondo o normal ao patológico, a identidade

social real à identidade social virtual. Completam sua análise apontando o caráter

determinista da obra, uma vez que Goffman enfoca “a sociedade como produtora da

identidade”.

Na análise de Nunes et alii (1986), a abordagem de Berger e Luckman (1985)

representa a superação dos modelos teóricos pautados numa perspectiva estática da

identidade. Peter Ludwig Berger e Thomas Luckmann, sociólogos engajados no campo

da Sociologia do Conhecimento66, consideram que a

Identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 228).

Berger e Luckmann (1985, p. 173) compreendem a sociedade como uma

realidade que é, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva, uma vez que ela é percebida

como um processo dialético que ocorre, simultaneamente, como exteriorização,

objetivação e interiorização. O mesmo acontecendo com a pessoa que externaliza o seu

próprio ser no mesmo momento em que interioriza o mundo social como uma realidade

objetiva.

65 Note-se que nos dois últimos capítulos do livro, Goffmam (1963) trata da temática do desvio e do comportamento desviante. 66 “A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que é considerado ‘conhecimento’ na sociedade” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p.29).

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O início de todo o processo é a interiorização, ou seja, quando a criança

internaliza como sendo seu a “manifestação de processos subjetivos que são de outrem”

(BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 174). Só quando se realiza este nível de

interiorização é que a pessoa se torna membro da sociedade, num processo denominado

de socialização, que consiste num movimento consistente e de grandes dimensões que

visa inserir a pessoa no mundo objetivo de uma dada sociedade ou em determinado

segmento dela. Este processo acontece em dois estágios diferenciados: a socialização

primária e a socialização secundária (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 175).

O que a pessoa conhece como realidade objetiva nada mais seria do que o

conjunto de informações e definições que lhe são transmitidas pelos “outros

significativos”, com os quais ela se identifica. Os “outros significativos” é que

estabelecem a mediação entre o mundo social objetivo e a pessoa, fazendo uma

“filtragem” da realidade a partir de sua própria localização social e de sua história

pessoal (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 176).

Faz-se pertinente destacar pontos importantes e díspares entre a teoria de

socialização de Berger e Luckmann e os novos paradigmas nos estudos da infância.

Grigorowitschs (2008, p. 43) não concorda que haja uma ruptura entre a socialização

primária e a secundária. Para a autora, trata-se de uma constelação e não de processos

lineares. Outro ponto de discordância é que para a autora crianças não são “socializadas”, mas

“socializam-se”, são ativas no processo, tanto quanto os adultos, pois se trata de interações que

prosseguem durante toda a vida. Estas são considerações relevantes nas pesquisas que vêm

sendo desenvolvida no interior do NEGRI, segundo as quais

a criança passa de objeto de socialização a ator social, de futuro adulto a criança historicamente contextualizada. A socialização deixa de ser vista como uma questão de adaptação ou interiorização de normas e padrões sociais e começa a ser entendida como um processo de apropriação, de inovação e de reprodução (MONTANDON, 2001): as crianças são agentes do processo de socialização de adultos e de outras crianças, de modo equivalente aos adultos (PRADO, 2009, p 17)

Nunes et alii (1986, p. 26/27) chamam a atenção para os aspectos contextual e

processual na teoria de identidade de Berger e Luckmann (1985). Para Nunes et alii, o

foco na dimensão processual da formação da identidade sinaliza um progresso em

relação à concepção de Goffman (1963), pois a identidade não é mais imaginada

teleologicamente. A identidade passou a ser compreendida de forma mais dinâmica,

podendo ser mantida, modificada ou mesmo remodelada. No entanto, a despeito desse

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avanço apontado, Nunes et alii consideram que o modelo de Berger e Luckmann não

superou o modelo dicotômico, na medida em que persistiu numa “referenciação

espacializada”, permanecendo “a idéia de sentido/não sentido, conflito/síntese, na

esteira continuísta da linearidade, identificada no espaço” (NUNES et alii, 1986, p. 28).

Na conclusão da reflexão que fazem acerca do conceito de identidade, Nunes et

alii (1986) apontam que, na contemporaneidade67, estão abertas as possibilidades para

formulações teóricas mais próximas da concepção fluida de Heráclito, uma vez que é o

tempo da velocidade; “do bombardeio de informações”; da tecnociência produzindo a

hiper-realidade; “da diversidade dos fenômenos, curvando-se inapelavelmente à sua

complexidade”; tempo de indeterminação e de instabilidade. Para os autores, seria,

então, o momento oportuno para uma abordagem de identidade

que guarde em si aspectos do mesmo e do outro. Pensar ser e não-ser, semelhanças e diferenças. Ao invés de superar a contradição, absorvê-la num paradoxo, onde identidade não mais se constitui num processo teleológico ou mesmo teleonômico de um fim a atingir (NUNES et alii, 1986, p. 32, grifo dos autores).

Assim, a identidade deveria ser considerada em formulações que postulassem a

instabilidade e a superação das dicotomias. A identidade seria uma instância não

estável, assimetricamente simétrica e atemporalmente temporal (NUNES et alii, 1986,

p. 32).

Paiva (2007, p. 85) está de acordo que nos dias atuais estamos mais propensos a

considerarmos a posição de Heráclito, depois que passamos por um longo tempo

influenciados por Parmênides, convictos que estávamos da força da permanência das

coisas. Os deslocamentos provocados pelo o que alguns chamam de globalização, e

outros de pós-modernidade, têm caracterizado um momento de “acelerada

transitoriedade”, dando “a impressão de que hoje novamente estamos impedidos de nos

banhar duas vezes no mesmo rio e que pouco espaço resta para a memória”. No entanto,

o autor ressalva que, se esse fenômeno é mundial, ele não abarca a todos, ou seja, estaria

limitado “aos estratos abastados da sociedade ocidental”. Se a identidade é vazia, fluida

ou líquida como querem alguns, apontando para um questionamento da utilidade do

conceito de identidade ou mesmo para sua reconfiguração, o autor se contrapõe com

exemplos de outros pesquisadores, que estudam grupos de resistência e minorias, que

67 Em seu texto os autores falam de pós-modernidade, mas não utilizaremos tal designação, neste trabalho, considerando tratar-se de conceito impreciso e discutível (SANTOS, 2000, p. 11 e 77)

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“percebem a manutenção, ou mesmo o reforçamento, de referências estáveis a

coletividades que lhes forneçam um lugar no mundo, ou seja, para voltar o velho termo,

uma identidade” (PAIVA, 2007, p. 86). São vários os exemplos de produção de “novas

identidades”, como afirma Stuart Hall (1997, p. 93), produzidas politicamente, ou seja,

levando em conta o caráter “posicional e conjuntural” das mesmas, tais como

identidades étnicas, identidades sexuais, identidades culturais, identidades nacionais ou

transnacionais, etc.

Strey et alii (1998, p. 160) informam que, no campo da Psicologia, as pesquisas

sobre identidade passam, geralmente, pela Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia

Cognitiva. Ambas “caracterizam o desenvolvimento por estágios crescentes de

autonomia, e consideram a identidade como gerada pela socialização e garantida pela

individualização”. Já no campo da Psicologia Social, os autores destacam que os

estudos da identidade foram centrais na obra de William James68 e nos trabalhos

pioneiros de George Mead, na perspectiva do Interacionismo Simbólico.

O termo ‘interacionismo simbólico’ é devido a Herberth Blumer, um dos mais influentes autores da Escola de Chicago, [...] e designa o processo pelo qual se constituem os me’s (mim, moi) da pessoa na interação com os outros e com o outro generalizado, [...] por meio dos símbolos deles, as palavras e jogos. (PAIVA, 2007, p. 78)

Papel é definido como as expectativas de comportamento ligadas à posição

social. Segundo Paiva (2007, p. 78), esse conceito sociológico tornou-se um conceito-

chave na Psicologia Social na tradição do Interacionismo Simbólico. Ocorreram

importantes usos e desdobramentos das propostas desse movimento, conforme Bazilli et

alii (1998, p. 43), dentre os quais a Teoria de Papéis, na perspectiva de Sarbin e Scheibe

(1983), da qual Ciampa (1984, 1986) se apropriou de alguns conceitos, como veremos a

seguir.

Numa perspectiva histórico-social, Ciampa (1984, 1986) leva em conta a

dimensão dialética apreendida na interação social para desenvolver a sua teoria da

identidade-metamorfose-emancipação. Compreendendo a identidade de uma forma

dinâmica e processual, o autor articula dimensões que à primeira vista se mostram

antagônicas como vida e morte, pessoa e sociedade, estabilidade e transformação,

igualdade e diferença, unicidade e totalidade, ocultação e revelação.

68 Não trataremos dessa vertente teórica neste trabalho.

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Para Ciampa somente pelo nome não é suficiente para se conhecer uma pessoa,

outras “marcas de identidade”69 (CIAMPA, 1984, 1986) se fazem necessárias. A pessoa

não vive como uma mônada, mas sim em relação e sua identidade está em constante

transformação70. Um componente importante que emerge desta abordagem relacional da

identidade (CIAMPA, 1986, p. 127 e 243) é o reconhecimento71.

Na abordagem de Ciampa o que se tem é a noção personagem para dar conta de

um movimento que vai além do institucional. Quem constrói o personagem é a pessoa

com sua história, com sua idiossincrasia, com sua personalidade. As personagens “são

momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em

um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão (CIAMPA, 1986, p.

198). A identidade se concretiza no movimento das personagens. Um movimento que é

determinado por condições históricas, sociais, materiais e da própria pessoa.

O que se propõe é o estudo da personagem enquanto dar-se. Considerando a

abordagem dramatúrgica72, o que se busca é o entendimento do processo em que ocorre

a produção da identidade (CIAMPA, 1986, p. 159). O importante é identificar as

personagens que encarnam o drama e assim a identidade torna-se o processo de

identificação das pessoas com seus personagens (CIAMPA, 1986, p. 160).

O que pode, às vezes, dificultar a percepção desse movimento é o desempenho

dos diversos papéis pela qual se passa numa vida e que tendem a cristalizar a pessoa

pela predicação, ou seja, a pessoa passa a se identificar pelo aquilo que faz. Essa

cristalização caracteriza o “fetichismo da personagem”, quando o envolvimento73 do

ator, com seu personagem se torna permanente.

Ocorre então uma aparência de permanência e de estabilidade. É a ordem

institucional que nos impõe uma “re-posição”, que nos obriga a uma representação

constante de personagens pressupostas, dadas como a-históricas, revelando a

“mesmice” (CIAMPA, 1986, p. 165), apontando para uma não-metamorfose. Mas

69 “[...] Scheibe reconhece a existência de marcas de identidade, desde o nascimento (nome, família, nacionalidade, etc.) [...] Estão presentes e vão ter incidência marcante, tanto na construção de identidades [...] Contudo, a influência tem um caráter de relação dialética na qual a pessoa vai constituindo ou criando (ou não) novas marcas e relações que influenciam o meio e o processo de mudança ou de constituição de novas identidades (BAZILLI et alii, 1998, p. 221). 70 Nota-se uma aproximação com as três concepções de identidade que Stuart Hall (1997, p. 10) faz: a) “sujeito do iluminismo” – individualista, indivisível com identidade fixa; b) “sujeito sociológico” – o pessoa está em interação dialética com a sociedade e c) “sujeito pós-moderno” – o pessoa é composto de várias identidades, formadas e transformadas continuamente. 71 “Recognition is at the heart of the matter. (...) Recognition is vital to any reflexivity...” (CALHOUN, 1994, p. 20) 72 Ciampa (1986, p. 191) esclarece que o que ele faz é o uso do recurso da analogia e “não uma redução da realidade social à realidade do teatro”. Nota-se aqui a influência da abordagem dramatúrgica de Goffman (1985). 73 Conforme a concepção de Sarbin e Scheibe (1983, p. 12) o “envolvimento pode ser considerado como uma dimensão de intensidade com a qual um papel está ligado”, podendo variar situacional e temporariamente.

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Ciampa (1986, p. 184) assinala que as mudanças podem ocorrer desde que a pessoa

esteja imbuída da perspectiva da “mesmidade” e não da mesmice. O que permite a

pessoa romper com as determinações.

Assim, está falando em emancipação humana. Ciampa (1999) estabelece a

indissociabilidade entre a identidade, a metamorfose e a emancipação. Para o autor, já

está posto que identidade é metamorfose, mas dadas as condições hegemônicas do

capitalismo não há garantias que essa metamorfose seja progressista, podendo até

mesmo ser negativa, deste modo torna-se imprescindível entender o sintagma74

identidade-metamorfose-emancipação e desta maneira poder analisar a qualidade da

transformação ocorrida, tendo em vista alcançar uma vida-que-merece-ser-vivida.

Identidade para Ciampa, além de ser uma questão científica é, portanto, uma questão

política (1986, p. 243).

O tema da diversidade em Cross Jr., que veremos adiante e também em Ciampa

(1986, p. 138), segundo o qual a identidade “é a articulação da diferença e da

igualdade”, convida ao exame da noção de diferença.

Depois de discutir a questão da diferença dentro do movimento feminista,

preocupada em saber como a diferença é construída, dentro de discursos competitivos,

Brah75 (1996) constata que o mais importante não é a diferença em si mesma, mas saber

quem define a diferença, como diferentes categorias de mulheres são representadas

dentro do discurso da diferença e como se dá o processo de hierarquização, pela

diferença (BRAH, 1996, p. 114/115, tradução nossa). A partir dessas questões, a autora

formulou quatro maneiras de conceituar a diferença: 1) “diferença enquanto

experiência”; 2) “diferença enquanto relação social”; 3) “diferença enquanto

subjetividade” e 4) “diferença enquanto identidade”. Dado o escopo deste trabalho, nos

deteremos principalmente na quarta conceituação. Mas é importante apontar que “o

sujeito se forma na experiência” (BRAH, 1996, p. 116, tradução nossa), não há uma

teleologia; que a diferença é constituída dentro de contextos estruturados de relações de

poder, tais como diferenciação de gênero, classe e raça (BRAH, 1996, p. 118); e que o

74 Sintagma para Ciampa consiste na junção de mais de um conceito, cada qual mantendo sua especificidade, mas que se articulam de modo a não prescindirem um do outro. No caso da identidade-metamorfose-emancipação tem-se que a “IDENTIDADE é a formação social que se dá como METAMORFOSE no momento histórico em busca da EMANCIPAÇÃO que constitui o humano concreto em individualidades e coletividades articulando como história, sociedade e natureza” (CIAMPA, 1999). 75 Professora de Sociologia da School of Continuing Education, Birkbeck, University of London, membro da

Academy of Learned Societies for the Social Sciences e da British Sociological Association. Seus campos de estudos são: (des)emprego e mercado de trabalho juvenil, etnicidade, teoria feminista, gênero, gênero e geração, raça e etnicidade e teoria social (http://www.bbk.ac.uk/ce/about_staff/academic_staff/brah).

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sujeito é produzido no discurso (BRAH, 1996, p. 120). Propõe, no entanto, uma

conexão entre identidade, experiência, subjetividade e relações sociais.

Identidades são inscritas através de experiências culturalmente construídas em relações sociais. Subjetividade – o local de processos de fazer sentido de nossa relação com o mundo – é a modalidade na qual a natureza precária e contraditória do sujeito-em-processo é significada ou experienciada como identidade. Identidades são marcadas pela multiplicidade de posições de sujeito que constitui o sujeito. Por esta razão, identidade não é fixa nem singular; antes é uma multiplicidade relacional em constante mudança. Mas durante o curso deste fluxo, identidades assumem padrões específicos, como em um caleidoscópio, contra conjuntos particulares de circunstâncias históricas, sociais e pessoais (BRAH, 1996, p. 120, grifo da autora, tradução nossa).

Encontramos em Brah (1996, p. 124) mais uma contribuição para o

entendimento da relação entre identidade pessoal e “identidade coletiva”.

Relacionamento complexo e contraditório, pois há uma articulação entre identidade

pessoal e a experiência coletiva de grupo, mas não quer dizer que a identidade coletiva

seja reduzível à soma das experiências individuais.

Identidade coletiva é o processo de significação por meio do quais experiências comuns ao redor de um eixo específico de diferenciação, seja de classe, casta ou religião, são investidas com significado particular. Neste sentido uma dada identidade coletiva parcialmente apaga, mas também carrega traços de outras identidades. Isto quer dizer que a consciência ampliada de uma construção de identidade, em um dado momento, sempre implica uma anulação parcial da memória ou sentido subjetivo de heterogeneidade interna de um grupo (BRAH, 1996, p. 124, grifo da autora, tradução nossa).

No entanto, Brah acrescenta que essa supressão parcial de um sentido de uma

identidade pela afirmação de outra, não significa que identidades diferentes não possam

“co-existir”. Além de ressaltar o aspecto de diversidade, a autora chama atenção para a

dimensão processual e não teleológica da identidade. “Se a identidade é um processo,

então é problemático falar de uma identidade existente como se ela já estivesse sempre

constituída. É mais apropriado falar de discursos, matrizes de significado e memória

histórica [...]” (BRAH, 1996, p. 124). Brah ainda reforça que, mesmo que o sujeito seja

efeito dos discursos, das instituições e de suas práticas, em algum momento ele

experimenta a si mesmo como um “eu” e pode re-interpretar e re-significar suas

posições (BRAH, 1996, p. 125).

O conceito de diferença, para Brah (1996), refere-se à variedade de maneiras nas

quais discursos específicos de diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e

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re-significados. Assim, “diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão”

(BRAH, 1996, p. 126).

A partir de uma perspectiva não-essencialista, este trabalho procurou se

aproximar do conceito de performatividade, elaborado por Judith Butler76 (apud

IÑIGUEZ, 2004, p. 40). A partir de suas reflexões acerca da produção performática da

identidade sexual, Butler revolucionou as noções de identidade, subjetividade e práticas

de subjetivação. “Trata-se de uma posição anti-essencialista que nega tanto o caráter

natural da identidade como seu caráter fixo e estável. A identidade é uma construção

social, [...]” (IÑIGUEZ, 2004, p. 40, tradução nossa).

A identidade sexual não é a expressão ou manifestação externa de um núcleo

natural ou essencial e o gênero é uma encenação através do qual não há um núcleo que

lhe dê consistência. “O sujeito é constituído nesse processo, não é anterior a ele”

(IÑIGUEZ, 2004, p. 41, tradução nossa). Segundo Butler (1990, p. 58 apud IÑIGUEZ,

2004, p. 40), não há uma essência por trás das performances ou atuações de gênero da

qual sejam expressões ou externalizações. “A interpelação do ato performativo não se

dirige, como pretende, a um sujeito que já existe antes do ato, senão que, em sentido

estrito, o produz” (IÑIGUEZ, 2004, p. 42, tradução nossa).

O conceito de performatividade é tributário do conceito de ato de fala

performativo (ou realizativo), que segundo John Austin (1962, apud IÑIGUEZ, 2004, p.

42) “el decir algo equivale a hacer algo”. Para Pinto (2007, p. 16), da perspectiva dos

atos de fala, “Identidades são performativas, ou seja, são efeitos de atos que

impulsionam marcações em quadros de comportamento (fala, escrita, vestimentas,

alimentação, cultos, elos parentais, filiações, etc.)”. Dentre as ações que produzem

identidades, a linguagem é um elemento fundamental, conforme Pinto (2007, p. 16).

São teorias interessantes, que me encantaram pelo seu caráter dinâmico, não-

essencialista, não teleológico, mas que esbarraram na questão do seu uso para refletir

sobre a implementação de programa de ação afirmativa na identificação de candidatos

que correspondam aos segmentos étnico-raciais priorizados. Reconhecemos a utilidade

delas para o campo de estudo da subjetividade, mas um programa de ação afirmativa,

que foca grupos-alvo, não busca reconstruir, no processo seletivo, trajetórias pessoais

para compreender uma dada subjetividade, mas trabalha com um corte temporal, para

captar como se dá a autoidentificação da pessoa no momento de sua candidatura. Um

76 Máxima representante da “teoria queer”, conforme Iñiguez (2004, p. 40).

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programa de ação afirmativa estará interessado em saber se a pessoa é um representante

de um grupo exposto às condições de desigualdades sociais, se compartilha da mesma

trajetória do seu grupo dessa perspectiva. Neste ponto, estabelecer quem é negro(a) – e

quem não é negro(a), no Brasil, é fundamental em experiência de ação afirmativa com

recorte racial. A pessoa precisa explicitar sua identificação com um grupo ou segmento

racial para fins de seleção. Identificar-se como negro significa reconhecer-se

identitariamente como negro?

Na implantação de programas de ação afirmativa a tensão é não violentar o

candidato na sua identificação étnico/racial e ao mesmo tempo ser justo e evitar os

“fraudadores raciais”. Lembrando Feres (2006, 57), na democracia é importante se

respeitarem as escolhas identitárias (ou identificatórias ?) que as pessoas fazem, sob o

risco de negar-lhes autonomia moral. Neste sentido, a identificação étnico-racial é uma

questão que deve ser tratada com reflexividade, principalmente no contexto de

implementação de um programa de ação afirmativa.

No acirrado debate, por ocasião da implementação de cotas para o ensino

superior, cometeram-se alguns desatinos a esse respeito: desde afirmar que bastaria

perguntar à polícia quem é negro, até recorrer à chamada neutralidade científica,

apelando-se para meios supostamente objetivos, como foi o caso do denominado

“tribunal racial” pela mídia, na implementação do programa de cotas da UnB, onde um

grupo de especialistas77 homologaria quem era negro ou não, por meio da avaliação das

fotografias dos candidatos. Steil (2006) apresenta em seu livro o debate acadêmico que

tal medida provocou.

Um outro exemplo, que não ganhou a mídia, provém da experiência da

implementação de cotas na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).

Maria José de J.A. Cordeiro (2008), em sua tese de doutorado, transcreve a Resolução

CEPE/UEMS nº 382, de 14/8/2003 que estabeleceu os critérios exigidos para a

inscrição no sistema de cotas. Dentre eles: “os candidatos inscritos no percentual de

vagas para negros terão as suas inscrições avaliadas por uma comissão instituída pela

Pró-reitoria de Ensino, composta por representantes da UEMS e do Movimento Negro

indicados pelo (...) que as deferirá ou não por decisão fundamentada de acordo com o

fenótipo do candidato” (apud Cordeiro, 2008, p.66).

77 “Um estudante, um sociólogo e um antropólogo da UnB, além de três representantes de entidades ligadas ao movimento negro” (MAIO e SANTOS, 2006, p. 28).

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Conforme apontado por Rocha (2005, p. 59), é consenso entre os estudiosos o

nível de complexidade do sistema de classificação/identificação étnico/racial brasileiro.

É um sistema sofisticado e fluido mas que permite apreender as desigualdades raciais

brasileiras quando nos baseamos no modo de identificação que vem sendo usado pelo

IBGE (OSÓRIO, 2001; Petrucelli, 2007 e outros). Como vimos no Capitulo 5, da Parte

I, o termo “negro” pode receber diversos sentidos, dependendo de quem o usa e do

contexto do seu uso (PIZA e ROSEMBERG, 2003). No contexto do Programa IFP,

percebemos, durante a análise do material empírico, que o termo “negro” assumia duas

conotações: como categoria analítica que aglutina pretos e pardos, para apreender a

dimensão de desigualdade educacional; e, como categoria política ou identitária, quando

o Formulário para Candidatura solicita ao candidato que se identifique ou não, como

negro. No caso da UEMS, como mencionamos uma comissão com representação

indicada por organizações do Movimento Negro (Fórum Permanente de Entidades do

Movimento Negro do Mato Grosso do Sul e pelo Conselho Estadual de Defesa dos

Direitos do Negro) defere (ou não) a identificação de acordo com o fenótipo do

candidato.

Contra um pretenso “objetivismo estruturalista” (COSTA, 2002, p. 51), em

termos de identificação étnico-racial, devemos nos lembrar dos apontamentos de

Munanga (1988) sobre a pluralidade do ser negro, com os quais compactuamos desde a

nossa dissertação de mestrado, que teve como título final “Identidades negras:

contextos, alternativas e possibilidades emancipatórias”. Neste trabalho atual,

conhecendo a teoria de Cross (1991), no entanto, reconhecemos a possibilidade da

pessoa também tomar caminhos regressivos no seu processo de tornar-se negra. Mas,

como dissemos, não estamos tratando de subjetividades, tampouco de identificação

política mas da maneira como a pessoa se apresenta em um programa de ação afirmativa

e de como esse programa irá eleger seus beneficiários a partir da identificação étnico-

racial.

Costa (2002, p 49) considera legítimo aglutinar pretos e pardos para o estudo das

desiguldades, no entanto, aponta como problemático o uso político-instrumental feito

pelo movimento negro, pelo poder público e pelos estudiosos das relações raciais.

No tocante ao movimento negro, Costa assinala que a idéia de uma raça negra é

uma estratégia lídima de mobilização política contra as desigualdades, uma construção

discursiva de um coletivo político. Porém, afirma o autor, “o êxito público das novas

formas de expressão ‘afro-brasileira’ não transforma o amplo conjunto da população

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afrodescendente em uma comunidade étnica cultural e politicamente homogênea”

(COSTA, 1997, P. 173). O autor está se referindo a estratégia do movimento negro de

tentar, discursivamente, construir uma identidade coletiva que abranja tanto as

expressões de ser negro no Brasil quanto as experiências dos negros na diáspora

africana. O autor admite que tal recurso tem fortalecido a autoestima do negro brasileiro

e tem trazido subsídios para a luta contra a discriminação, mas aponta que tem tido

alcance limitado entre os negros, pois a maioria “define-se, em primeiro lugar como

brasileiro e não reconhece sua origem, nem mesmo remota, na África” (COSTA, 2001,

p. 153). Para o autor não haveria vinculação direta entre marcas fenotípicas e uma

determinação de consciência racial, no caso africana (COSTA, 1997, P. 52).

Duas considerações se fazem necessárias. Para Munanga (1990, 2004), a

identidade coletiva do negro deve se apoiar numa orientação político-ideológica, pela

tomada de consciência da situação de desigualdade e não por uma orientação

culturalista. Outro ponto é que o aporte à teoria de Cross (1991, p. 222) pode ampliar a

nossa análise, já que em seu modelo de Psicologia de enegrecimento, nem todas as

pessoas se orientariam para uma perspectiva “afrocêntrica”, em seu processo, mesmo

que tivessem tido contato com o movimento social negro americano.

Brah (1996, p. 96) argumenta contra um conceito essencialista da diferença, a

partir da discussão que faz do uso político do termo negro, como um sinal para designar

realidades e contextos tão diferentes, tais como grupos afro-caribenhos e grupos sul-

asiáticos, na Inglaterra do pós-guerra. Esses grupos, influenciados pelo Movimento

Black Power, dos Estados Unidos da América, utilizavam essa “cor política”, como

forma de resistência contra o racismo centrado na cor. Segundo a autora, esse uso

aglutinador do termo negro prejudica a idéia de diversidade, por fundamentar-se numa

concepção de uma África idealizada; por negar as diferenças entre África, Caribe e sul

da Ásia; por não considerar que nem todos sul-asiáticos e afro-caribenhos se

reconhecem como “negros”; porque o discurso etnicista impõe noções estereotipadas,

bem como por confundir os diferentes significados, do uso do termo negro, pelos grupos

de militantes e pelos agentes do governo (BRAH, 1996, p. 100, tradução nossa).

Essa diversidade de ser negro nos remete, novamente, a Munanga (1988),

quando aponta para a pluralidade do ser negro no Brasil. Remete-nos, também, à

variedade de formas de se apresentar a um programa de ação afirmativa com recorte

racial, como encontramos nos relatos que analisamos.

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Em relação às formas de intervenção estatal, no campo das relações raciais,

Costa (1997, p. 173) identifica duas concepções opostas: de um lado, os liberais que

defendem uma posição neutra do Estado em relação a promover uma identidade

coletiva. Eles não descartariam políticas de igualdade de oportunidades, mas competiria

ao indivíduo definir sua identidade. Por outro lado, os comunitaristas para os quais

caberia ao Estado promover e fortalecer “por meio de políticas de ação afirmativa, a

identidade cultural, transformando as diferenças – hoje razão de discriminação e

desigualdades - em fonte de compensação e reparação” (COSTA, 1997, p. 175).

Quanto aos liberais, Costa critica-os afirmando que não dá para desconsiderar o

contexto de injustiça e discriminação para escolha de uma identidade cultural, ou seja,

não se trata de uma opção exclusivamente pessoal. Quanto aos comunitaristas, o autor

se contrapõe dizendo não compactuar com a idéia de que uma identidade seja construída

por fatos objetivos, “ela é o produto de significados experienciados” (COSTA, 2001,

155). Em outra crítica aos comunitaristas, Costa é taxativo em não aceitar o uso de uma

identidade política em contexto de ação afirmativa. Para ele “[...] não se verificaria a

neutralidade dos objetivos da ação do Estado, mas sua adesão a uma concepção de bem

particular e a imposição autoritária de uma forma cultural de vida específica, qual seja, a

sociedade racializada” (COSTA, 2007, p. 244).

Apontando as limitações do uso político do conceito de raça no campo dos

estudos raciais, Costa (1997, p. 172) aponta para aquilo que Munanga (1988) já havia

exposto que é o fato de que os conceitos de raça e cultura não coincidem. Neste ponto,

assinalamos uma crítica fundamental de Costa às concepções de identidade cultural e de

identidade pessoal que pressupõem uma escala evolutiva de “consciência racial”. Para o

autor, essas concepções não consideram o campo das negociações e de escolhas

pessoais e coletivas que estão envolvidas no processo de identificação. Alertando para o

risco de se qualificar de falsa consciência aquilo que não se encaixa em um certo

modelo de entendimento das relações raciais no Brasil, o autor assinala que não

compete “aos cientistas sociais construir, artificialmente, um lugar epistemológico

acima dos processos históricos concretos, julgando a partir dele quais são as escolhas

identitárias e as formas culturais de vida válidas” (COSTA, 2002, p. 52). Dito de outro

modo, para o autor não cabe aos estudiosos da área “hierarquizar escolhas e os padrões

identitários”.

A despeito das ressalvas quanto ao uso do conceito raça como categoria analítica

geral, para o estudo da formação nacional brasileira ou da identidade negra, Costa

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reconhece que o agrupamento dos segmentos pardos e pretos “confere visibilidade às

dimensões raciais que co-determinam as injustiças sociais no Brasil” (COSTA, 2002, p.

49). Assim, não haveria contestação ao fato de que o Programa IFP considerasse pretos

e pardos como grupos-alvo, construindo a categoria negro, na medida em que, se

agrupam frente à proximidade que apresentam quanto à desigualdade de acesso,

permanência e sucesso na pós-graduação.

No próximo capítulo, apresentaremos a teoria de desenvolvimento da identidade

negra de Cross Jr (1991). Trata-se de uma leitura, com livre tradução em que, além do

esforço para compreender outro idioma, tive também que ir quebrando resistências

iniciais por não compartilhar da noção de estágio posta pela teoria, a qual me reportava

a abordagens essencialistas e a-históricas dentro da Psicologia de Desenvolvimento.

Mas, à medida que o autor foi descortinando a possibilidade de se trabalhar com

tipologias, que fui identificando uma consonância com a perspectiva de diversidade

defendida por Munanga (1988), e fui considerando que, o momento atual brasileiro é

um momento de efervescência política e de visibilidade militante como aquele por

ocasião da formulação teórica de Cross Jr (1991), propício ao instigamento, mais

generalizado, de “consciência de negritude”, passei a achar pertinente me inspirar nas

tipologias identificadas no modelo teórico de Cross Jr. Ou seja, inspirei-me na tipologia

proposta por Cross Jr para apoiar algumas descrições dos relatos sobre “experiências

étnico-raciais” em um contexto de programa de ação afirmativa. O autor nos informa

que esse modelo processual de desenvolvimento da identidade negra, também foi usado

em outras pesquisas, não só para grupos minoritários (identidade de asiático-

americanos, identidade gay/lésbica), mas também para a experiência de americanos

brancos, bem como no campo do aconselhamento psicológico. "Assim, o que começou

focado num tempo específico se expandiu para incluir aplicações contemporâneas"

(CROSS JR, 1991, p. 158-9, tradução nossa).

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CAPÍTULO 2 – De estágios para tipologia

William E. Cross Jr, um dos principais pesquisadores e teóricos sobre o

desenvolvimento da identidade negra nos Estados Unidos da América, é psicólogo e

professor associado na Africana Studies and Research Center da Cornell University. É,

também, professor e chefe do Doctoral Program in Social-Personality Psychology, do

Centro de Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Conforme

sítio da CUNY, seu livro “Shades of Black – Diversity in African American Identity”,

de 1991, considerado inovador (groundbreaking book), é uma obra de grande referência

para os estudos da identidade negra. Seu modelo conceitual de estágios de

desenvolvimento da identidade negra tem gerado um grande número de ensaios,

comentários e estudos empíricos. De acordo com o sítio do Centro para Equidade

Multicultural e Acesso (CMEA), da Universidade Georgetown, entre os interesses de

investigação de Cross Jr encontramos a estrutura e as funções cotidianas da identidade

negra; conteúdo da identidade (nacionalista, bicultural e multicultural), como preditor

primário das conseqüências da identidade na vida cotidiana; personalidade geral e

orientação grupo-referencial como preditores independentes de nível de autoconceito

diferencial; etc. Como veremos adiante, as reflexões de Cross Jr. podem se aproximar

do método de pesquisa que vem sendo adotado no NEGRI – a Hermenêutica de

Profundidade – ao situar as formas simbólicas sob análise em seu contexto de produção,

transmissão e recepção.

As referências teóricas para a teoria de Cross Jr. são apontadas como sendo a

teoria do desenvolvimento da identidade, de Erik Erikson; a abordagem ecológica do

desenvolvimento humano, de Urie Bronfenbrenner e a teoria da identidade social, de

Henry Tajfel (STRAUSS e CROSS JR, 2005, p. 7). Na perspectiva de Erik Erikson, a

identidade “tem como modelo o indivíduo em situação de competência e eficácia sociais

[...]” (STREY et alii,1998, p. 160), cuja personalidade continua se desenvolvendo para

além da infância, nos oitos estágios de desenvolvimento psicossocial, cada um com um

conflito ou desafio a resolver (ALMADA, 2006).

Na abordagem ecológica do desenvolvimento humano, o sujeito desenvolve-se

em contexto, em quatro níveis dinâmicos – pessoal, processual, contextual, temporal.

“Bronfenbrenner privilegia os aspectos saudáveis do desenvolvimento e explicita a

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necessidade dos pesquisadores estarem atentos à diversidade que caracteriza o homem

[...]” (ALMADA, 2006, grifo da autora).

A partir de pesquisas com percepção visual, Tajfel concluiu que a identidade

social “está associada ao conhecimento da pertença aos grupos sociais e ao significado

emocional e avaliativo dessa pertença” (Tajfel, 1972 a, p. 292 apud VALA e

MONTEIRO, 1997, p. 291). Tajfel, juntamente com J. C. Turner, compõem a chamada

“Escola de Bristol”, cujo modelo de identidade social foi “o primeiro a colocar a

identidade no centro da análise das relações intergrupos, atribuindo-lhe uma posição

explicativa da diferenciação e da discriminação sociais, [...]” (VALA e MONTEIRO,

1997, p. 291). Diferentemente do Interacionismo Simbólico, a Escola de Bristol tem seu

foco na relação entre grupos, freqüentemente na forma de conflito (PAIVA, 2007, p.

79).

Partindo de uma revisão dura sobre os estudos clássicos norte-americanos sobre

identidade negra no período entre 1939 a 1980, Cross Jr. resgata a noção de diversidade

para a compreensão da identidade negra. O objetivo de seu trabalho é “expurgar da

Black Psychology tanto o seu aspecto bastante pejorativo quanto sua propensão

romântica, substituindo-os por um discurso centrado na diversidade e complexidade do

funcionamento psicológico negro” (CROSS JR., 1991, xiii, tradução nossa). Segundo o

autor, o modelo resultante da revisão que fez “tornou-se conhecido como o modelo do

enegrecimento [nigrescence]78. Nigrescence é uma palavra francesa que significa ‘o

processo de tornar-se negro’; [...]” (CROSS JR., 1991, p. x, tradução nossa). Sua

proposta teórica é descrever a Psicologia do tornar-se negro, de assumir a negritude. No

Brasil, em 1983, uma pesquisadora já afirmava que “Ser negro é [...] criar uma nova

consciência que assegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a

qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um

vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (SOUZA, 1983, p. 77).

Reconhecer-se enquanto negro é uma construção passível de acontecer ao longo

da vida, é uma jornada na busca de resgatar seu próprio valor, um processo de tornar-se

negro, ir além do estigma, da baixa estima, da inferiorização; lutar contra o racismo, o

preconceito e a discriminação e, sobretudo, lutar por cidadania. Tanto em Souza (1983)

quanto em Cross Jr (1991), notamos a influência do Movimento da Negritude, apesar de

78 “Our resulting developmental models became known as models of nigrescence. Nigrescence is a French word that means ‘the process of becoming Black’; thus our models attempted to depict the psychology of the process of becoming Black” (CROSS JR, 1991, p. x).

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que, na sua obra seminal, Cross Jr. (1991) não faz nenhuma referência a uma influência

direta desse movimento. Melhor dizendo, há duas referências rápidas, uma a DuBois,

considerado o “Pai da Negritude”79 , que aparece na bibliografia do livro e outra a

Fanon, um dos críticos da Negritude, que aparece como exemplo do uso da perspectiva

processual, no estudo da identidade negra (CROSS JR., 1991, p. 156).

Uma referência a DuBois aparece novamente em um texto de 1994, quando o

autor faz um histórico dos estudos que têm sido feitos na tentativa de elaboração de um

corpo teórico e empírico que dê conta do processo de transformação da identidade negra

(CROSS JR., 1994, p. 120). Uma referência mais explícita ao Movimento da Negritude

aparece em um texto de 2005, quando é apresentada a relação direta entre a teoria

desenvolvida por Cross Jr. (1991) e a apropriação que os negros americanos fizeram do

termo francês, no início dos anos 1970, inspirados pelo Movimento da Negritude, na

busca pela identidade negra80. Foi essa a população que Cross Jr. estudou para elaborar

sua teoria, durante a fase “Black Power”81 do Movimento Social Negro norte-

americano, em sua cidade natal, Evanston, no Estado de Illinois e na cidade vizinha de

Chicago. Seu “Modelo de conversão Negro-to-Black [...] foi desenvolvido através de

auto-análise e estudos de observação participante” (CROSS JR., 1991, xi, tradução

nossa).

É necessário fazer uma rápida digressão a respeito do Movimento da Negritude,

para depois prosseguir apresentando a teoria de desenvolvimento da identidade negra,

segundo Cross Jr.. Negritude é um termo polissêmico, segundo Bernd (1988, p. 15),

cuja “multiplicidade de interpretações está relacionada à evolução e à dinâmica da

realidade colonial e do mundo negro no tempo e no espaço” (MUNANGA, 1988, p. 5).

A despeito da riqueza conceitual que Munanga (1988) apresenta em seu livro, Bernd

traz dois sentidos que vêm ao encontro das necessidades deste trabalho.

1) em um sentido lato, negritude – com n minúsculo (substantivo comum) – é utilizada para referir a tomada de consciência de uma situação de dominação e de discriminação, e a conseqüente reação pela busca de uma identidade negra. [...] 2) em um sentido restrito, Negritude – com N maiúsculo (substantivo próprio) – refere-se a um momento pontual na trajetória da

79 Segundo Munanga, (1988, p. 36) e também Bernd (1988, p. 22). 80 “In the early 1970s the French term effectively captured the African American search for identity and today Nigrescence Theory is synonymous with theory and research on African American identity development” (STRAUSS e CROSS, 2005, p. 6). 81 “Today we take the concept Black identity for granted, in fact, however, Black identity is a contemporary term given credence by events primarily associated with the Black Power phase of the Black Social Movement”. (CROSS JR, 1991, p. 151) “[…] today ‘Negro’ implies a deracinated identity” (CROSS JR, 1991, p. 152).

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construção de uma identidade negra, dando-se a conhecer ao mundo como um movimento que pretendia reverter o sentido da palavra negro, dando-lhe um sentido positivo (BERND, 1988, p. 20, grifo da autora).

O período colonial do séc. XX foi o contexto de nascimento do Movimento da

Negritude. A situação colonial implicava em submissão econômica e cultural das

sociedades colonizadas, sendo elas inferiorizadas e desqualificadas em seus valores e

seu povo considerado primitivo e não-lógico. O negro foi reduzido e submetido a

condições de desumanização e humilhação, tanto no continente africano quanto nas

Américas. Essa redução visava a sua alienação, para que assim fosse dominado e

explorado, com mais eficácia, pelo colonizador europeu (MUNANGA, 1988, p. 33).

A negritude, entendida como tomada de consciência e de luta contra uma

situação de dominação e/ou discriminação, remonta às primeiras manifestações de

resistência dos escravos africanos nas Américas. Assim, pode-se considerar como

eventos precursores da Negritude: a revolta dos escravos no Haiti, que desencadeou a

independência desse país, em 1804; a disseminação de quilombos durante todo o

período escravista brasileiro; a militância de DuBois, que influenciou o “renascimento

negro”, no Harlem, nos anos de 1920, nos EUA e outros acontecimentos, conforme

Munanga (1988) e Bernd (1988). No entanto, o termo Negritude só surgiu em 1939,

quando foi definido pelo poeta antilhano Aimé Césaire “uma revolução na linguagem e

na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo da palavra negro para dele

extrair um sentido positivo” (BERND, 1988, p. 17). É um grande movimento de recusa

à assimilação. Por assimilação entenda-se que o negro deveria assumir para si, os

valores culturais do branco. Processo que “foi apenas um mito, pois o caminho de

desumanização do negro escolhido pelo colonizador não poderia integrá-lo. Pelo

contrário, criou sua desestabilidade cultural, moral e psíquica [...] (MUNANGA, 1988,

p. 31).

O objetivo da Negritude, liderada por Césaire, Senghor e Damas era afirmar ao

mundo os valores da cultura negra (CONSTANT e MABANA, 2009, p. 6). Nesse

processo, competia aos negros expurgar e substituir atitudes negativas em relação ao ser

negro e africano, por atitudes proativas e positivas.

Em sua expansão, a Negritude recebeu influências do marxismo, do surrealismo

e do existencialismo, o que lhe proporcionou muita força. Nos EUA, nas Antilhas e na

África o movimento foi, inicialmente, muito influenciado pelo comunismo

internacional. Nesse período, Bernd (1988) pôde identificar duas tendências, uma mais

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voltada para a “consciência de classe”, independente da cor e outra focada na

“consciência de raça”. Após a Segunda Guerra Mundial, o movimento, em sua fase

militante, se engajou na luta pela independência das colônias africanas e se

internacionalizou, chegando a “outros países do Terceiro Mundo, como o Brasil”

(BERND, 1988, p. 31).

No Brasil, tomando o termo negritude em seu sentido lato, identificamos a luta

pela consciência negra e contra a opressão desde os primeiros quilombos, como já

dissemos; a “bodorrada”, de Luiz Gama, no período pré-abolicionista82; uma combativa

imprensa negra, desde os anos 1915; as ações do Teatro Experimental do Negro (TEN),

nos anos 1940, em São Paulo, definido por Abdias do Nascimento como “um

instrumento e um elemento de negritude” (BERND, 1988, p. 47); a militância do

Movimento Negro Unificado (MNU), a partir de 1978, e os demais grupos, como o

Grupo de União e Consciência Negra (GRUCON), a Pastoral de Combate ao Racismo

da Igreja Metodista, a Pastoral do Negro da Igreja Católica, etc., que existiram e ainda

existem voltados pela causa da identidade negra e de combate ao racismo.

Apesar das críticas que o movimento sofreu (MUNANGA, 1988, p. 56-80),

diversos escritores realçam a atualidade da Negritude como um movimento literário,

filosófico, poético e também ideológico, como uma resposta à opressão que ainda é

relevante (CONSTANT e MABANA, 2009, p. 6).

Foi necessária essa olhada superficial para o Movimento da Negritude para

mostrarmos a aproximação da teoria de Cross Jr. com esse movimento, bem como para

situarmos a maneira como foram apropriadas algumas palavras do texto original do

autor. “Nigrescence” foi traduzida por “enegrecimento”, visando destacar seu caráter

processual; “Blackness” que o autor utiliza em maiúsculo em todo seu texto, foi vertida

para o português como “negritude”, atendendo ao sentido lato da palavra, conforme

indicado acima. Também o termo “Black” apareceu em maiúsculo no decorrer da obra

de Cross Jr., mas optamos por traduzir para “negro”, escrito em minúsculo, da mesma

maneira que foi utilizado no restante do presente estudo, particularmente no Capítulo 5,

da Parte I, que trata da denominação e classificação racial brasileira.

Cross Jr. (1991) procura articular a compreensão da construção da identidade do

negro norte-americano com a realidade do racismo local, enfatizando a importância do

82 “Em 1861 […] Luiz Gama, assume pela primeira vez o termo BODE com que pejorativamente eram chamados os negros, devolvendo assim ao branco a ‘pedra’ que este lhe atirara: […]” (BERND, 1888, p.44, destaque da própria autora).

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grupo de referência83. Modelo interessante, principalmente por considerar que a

identidade tem muito mais a ver com componentes sociais e culturais do que

psicológicos, isto é, é um modelo que leva em conta a influência dos grupos de

referência na formação da identidade. Sobre essa influência, Cross Jr. (1991, p. 187,

tradução nossa) afirma que “A diferença básica entre os negros, na medida em que o

nível de negritude está em causa, é freqüentemente menos psicológica (relacionado à

identidade pessoal), do que cultural, ideológica e filosófica (relacionado ao grupo de

referência)” 84.

Como nos informa Cross Jr. (1991, p. 190, tradução nossa), enegrecimento é

uma experiência de ressocialização85, no qual se busca a transformação de uma

identidade pré-existente, não voltada para o seu grupo étnico/racial, para uma identidade

afro-orientada. Lembra, no entanto, que uma pessoa pode ser socializada, desde sua

infância, voltada para uma identificação mais positiva com seu grupo de origem. Nesse

seu modelo revisado86, Cross Jr. salienta que, no primeiro estágio, encontramos duas

“tipologias”, correspondentes a essas duas possibilidades identitárias.

Um dos argumentos contra a perspectiva pejorativa, que prevaleceu nos estudos

sobre identidade negra que Cross Jr. analisou, é que sempre houve diversidade de

possibilidades identitárias para negro, como resultado da diferença de grau de

conscientização negra das gerações anteriores, ou seja, os estudiosos tendiam somente a

ver evidência de auto-ódio, quando de fato “[...] A saúde mental foi um legado das

vitórias psicológicas pessoais, que seus pais foram capazes de alcançar e passar para a

próxima geração através da socialização via família, igreja e comunidade” (CROSS JR.,

1991, xiv, grifo e tradução nossa). Assim, novamente afirmando a diversidade, Strauss e

Cross Jr (2004, p. 7) destacam que as diferentes experiências de socialização, da

infância à adolescência, é que irão determinar se a pessoa chegará a se tornar um jovem

adulto com atitudes de Pré-encontro, ou de Imersão-Emersão ou de Internalização, que

são algumas das fases identificadas, por Cross Jr (1991), em seu modelo de

desenvolvimento da identidade negra, o qual veremos mais adiante.

Assim, o que o modelo de enegrecimento se propõe é explicar como adultos

negros assimilados, desenraizados, aculturados, transformam-se, devido a circunstâncias

83 “The distinction between personal identity (‘general personality’) and group identity (‘reference group orientation’) is crucial to my analysis” (CROSS JR, 1991, p. xiv). 84 O autor usa uma concepção neutra de ideologia, conforme conceituação de John B. Thompson (1995). 85 “Nigrescence is a resocializing experience” (CROSS JR, 1991, p. 190). 86 Em seu primeiro modelo, Cross Jr ainda compartilhava a idéia de que no primeiro estágio só havia a identidade do negro desenraizado e colonizado mentalmente a ser transformada (CROSS JR, 1991, p. 158).

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e eventos específicos, em negros mais conscientes de seu pertencimento étnico/racial.

Propõe, então, um modelo de desenvolvimento da identidade do negro – de seu

enegrecimento – composto por cinco estágios, articulados entre si, num processo

contínuo. Os estágios indicam uma proeminência de certas características em relação a

outras, um padrão descritivo. Neste sentido, a teoria sugere processos que são

transitórios na construção da identidade e não uma “camisa de força”. Não se trata, por

certo, de uma perspectiva naturalizante muito comum a certas teorias de

desenvolvimento em Psicologia. “Com efeito, a negritude é um estado de espírito, não

um traço herdado, cuja aquisição muitas vezes exige um esforço considerável” (CROSS

JR., 1991, p. 149, tradução nossa).

Apresentamos, a seguir, os cinco estágios de desenvolvimento da identidade

negra, propostos e nomeados por Cross Jr (1991, p. 190) e tipologias correspondentes

aos mesmos, identificadas e nomeadas por este pesquisador, conforme Quadro 1 na

página seguinte. Em seu modelo de enegrecimento, Cross Jr., (1991, 160, tradução

nossa) indica a possibilidade para que isto seja feito: “As tipologias implícitas nos

estágios e na dinâmica do processo como um todo têm comprovada relevância para

discussões de identidade pós-movimento, conseqüentemente, estudos continuam a

aparecer”. Tal tipologia não se refere a estágios de desenvolvimento nem às pessoas,

apenas qualifica, neste trabalho, os tipos de relatos identificados no corpus analisado.

Deve ser encarada apenas com fins instrumentais, pois entendemos que estamos no

campo da pluralidade.

O estágio do Pré-encontro descreve a identidade a ser mudada; o estágio do

Encontro envolve os pontos nos quais a pessoa se sente compelida a mudar e tenta

localizar ou descrever, com precisão, “aquelas circunstâncias e eventos que

provavelmente induzem à metamorfose da identidade de um indivíduo” (CROSS JR.,

1991, p. 199, grifo e tradução nossa); o estágio Imersão-Emersão descreve o ápice da

mudança de identidade e os estágios de Internalização e Internalização-Compromisso,

descrevem a familização e internalização da nova identidade.

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Quadro 2 – Estágios de desenvolvimento da identidade negra e tipologia

Pré-encontro 1 (baixa saliência para questões raciais) Omisso Transcendente Centrado no estigma Racista anti-negro

Pré-encontro 2 (alta saliência para questões raciais) Simpatizante

Encontro (situações que levam a tomada de consciência) Centrado na constatação Político

Imersão-Emersão (transição de uma velha perspectiva para uma nova referência)

Imersão Entusiasmado Emersão Estável Imersão-Emersão Restrição em relação à negritude Revolta com o branco Ativismo ou militância frustrada Ativismo ou militância ocasional

Internalização (negritude consolidada e atenção para outras problemáticas

Grupocentrado Centrado no seu grupo, mas sem exclusividade Bi-focado Multi-focado

Internalização-Compromisso (ação em direção a compromisso ou reciclagem)

Desistência Comprometimento adiado Questionamento

No estágio do “Pré-encontro”, como é chamado o primeiro momento, podemos

encontrar negros que se encaixam no perfil do auto-ódio (distantes das pessoas negras;

com estereótipos negativos internalizados, mas também negros que apresentam alta

tendência para afiliação negra, baixo nível de internalização de estereótipos negativos

para o negro e um sentido geral de aceitação e conexão aos negros (CROSS JR., 1991,

p. 169). Podemos subdividir esse estágio em Pré-encontro I e Pré-encontro II, para

mostrar essas duas possibilidades. Neste estágio se forma a primeira identidade de

alguém. “Esta socialização envolve os anos de experiência da pessoa com sua família

nuclear, sua família extensa, vizinhos, comunidade e escolas; abrange todos os anos da

infância, adolescência e início da vida adulta” (CROSS JR., 1991, p. 198, tradução

nossa). As principais atitudes de pessoas no estágio de Pré-encontro I são: 1) “atitudes

de baixa saliência”; 2) “atitudes de estigma social”; 3) “atitudes anti-negro”.

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Atitudes de baixa saliência são aquelas em que a pessoa apresenta baixa

saliência para questões raciais, não negando ser negra, mas não considerando isto um

fato relevante. Pode variar de uma baixa saliência a uma neutralidade racial. Ser negro e

ter experiência negra é algo que contribui pouco para a sua vida. As pessoas, neste

estágio, valorizam outras coisas, que não seja a negritude, tais como religião, estilo de

vida, status social, profissão, etc. “Podem considerar terem alcançado um plano mais

elevado (isto é, um humanismo abstrato), abaixo dos quais estão aqueles do mundo

vulgar da raça e da etnicidade” (CROSS JR., 1991, p. 191, tradução nossa).

Relacionadas a essas atitudes, este pesquisador sugere os tipos de relato OMISSO e

TRANSCENDENTE.

Atitudes de estigma social estão relacionadas àquelas em que as pessoas

consideram raça como um problema de estigma. “Raça é uma luta, um problema, uma

imposição. Necessitam defender-se contra a negritude enquanto um estigma” (CROSS

JR., 1991, p. 191, tradução nossa). São pessoas que têm pouco conhecimento da história

e da cultura negra. Para essa atitude, este pesquisador sugere o tipo CENTRADO NO

ESTIGMA.

Atitudes anti-negro estão relacionadas às pessoas que têm o negro como um

grupo de referência negativo, ou seja, sua atitude é anti-negritude, cuja perspectiva é

semelhante à dos racistas brancos. Detestam outros negros, não buscam suporte pessoal

em negros ou em comunidades negras. Sua visão é dominada por estereótipos racistas

em relação à negritude, ao mesmo tempo em que desenvolvem estereótipos positivos

em relação às pessoas e à cultura branca. Para elas os próprios negros são culpados por

sua condição. A tipologia que sugerimos para essa atitude é RACISTA ANTI-NEGRO.

A essas atitudes estão associadas outras características, tais como

“miseducation”, que se refere àqueles negros que passaram por uma educação formal

centrada numa perspectiva ocidental e branca, distanciados de qualquer informação

sobre a contribuição da África para a civilização ocidental, no geral e para o

desenvolvimento da cultura norte-americana, em particular87; “uma perspectiva cultural

eurocêntrica”, isto é, a partir de sua socialização a pessoa considera corretos o padrão de

beleza e de arte brancos; “ansiedade, imagem racial ou holofote”, a pessoa fica em

alerta para qualquer sinal de negritude, preocupado quanto ao fato de ser “muito negro”,

87Situação bem parecida com a realidade brasileira, por isto mesmo a necessidade de luta, pelos grupos do movimento negro brasileiro, para inclusão de História da África no currículo escolar, que culminou com a promulgação da Lei 10.639, em janeiro de 2003.

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principalmente quando está próximo de pessoas brancas; “assimilação-integração”, a

preocupação aqui é se integrar e ser aceito pelo mundo branco; “estrutura de valores e

orientação de valores”, as pessoas podem não ser tão diferentes, em sua estrutura de

valores, quanto as outras de estágios mais avançados, porém colocam “prioridades em

organizações e causas que têm baixa saliência racial” (CROSS JR., 1991, p. 197,

tradução nossa).

Negros Pré-encontro II são aqueles que, a despeito de colocarem baixa saliência

sobre questões raciais e culturais negras, podem sustentar percepções e atitudes mais

positivas em direção a negros, indicando assim uma alta tendência para afiliação negra

(CROSS JR., 1991, p. 169). Chamaremos de SIMPATIZANTE esse tipo.

O que Cross Jr. (1991) salienta, a título de resumo do estágio do Pré-encontro, é

que a baixa saliência racial pode ocorrer em qualquer classe social, que diversas

situações e circunstância podem produzir atitudes de pré-encontro; o que separa negros

Pré-Encontro de negros afrocentrados é a orientação de valores, perspectiva histórica e

visão de mundo; que a possibilidade de negros Pré-Encontro faz parte da diversidade da

experiência negra; que Pré-Encontro e todos os demais estágios, não são traços

hereditários ou um ordenamento divino e principalmente, que Pré-Encontro não é uma

forma de doença mental. “As pessoas nesse estágio são tão saudáveis quanto os outros”

(CROSS JR., 1991, p. 198, tradução nossa). As pessoas, nesse estágio, além de

atribuírem baixa saliência às questões de raça e a cultura negra, podem subestimar a

existência de racismo e, conseqüentemente, ficar desprotegidas para lidar com situações

racistas que possam aparecer (CROSS JR., 1991, p. 215).

No segundo estágio, chamado de “Encontro”, situações impactantes levariam a

pessoa a tomar consciência da existência de discriminação e preconceito nota-se, então,

a emergência de uma pessoa afro-centrada. Podem ocorrer eventos dramáticos

singulares ou mesmo pequenos episódios que teriam efeito cumulativo para a

transformação da pessoa em direção à negritude (CROSS JR., 1991, p. 199-200). O

Encontro deve trabalhar na destruição da importância da identidade e visão de mundo

corrente da pessoa e simultaneamente fornecer pistas da nova identidade. Pode ser que

para alguns candidatos, participar do processo seletivo do Programa IFP, que se coloca

como um programa de ação afirmativa, tenha sido um momento de impacto em suas

vidas.

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Segundo Cross Jr. (1991, p. 200), o Encontro envolve dois passos: 1) a

experiência do Encontro e 2) essa experiência ter um impacto pessoal88. Considerando

essas duas possibilidades, propomos as tipologias: CENTRADO NA

CONSTATAÇÃO, ou seja, um tipo de relato de quem passou pela experiência do

Encontro, mas que manteve inalterada sua atitude e visão de mundo em relação à raça e

a negritude, numa perspectiva integracionista e assimilacionista; e o POLÍTICO,

próprio daqueles que se vêem transformados, de maneira poderosa, em direção à

negritude. No entanto, Cross Jr. assinala que o Encontro não tem que ser

necessariamente negativo. A pessoa pode se deparar com uma informação histórico-

cultural poderosa que até então ela desconhecia, a respeito do negro ou de África e isto

transformar a vida da pessoa89. O autor ainda destaca que, nesse momento de “morte”

da pessoa do Pré-Encontro, ela pode experimentar uma amplitude de emoções: culpa,

raiva e ansiedade generalizada (CROSS JR., 1991, p. 201).

O terceiro estágio, chamado de “Imersão–Emersão”, que é uma fase de

transição, representa um turbilhão de possibilidades, quando a pessoa começa a demolir

sua velha perspectiva e tenta, ao mesmo tempo, construir o que será a sua nova forma de

referência (CROSS JR., 1991, p. 201-202). Ocorre uma verdadeira batalha entre a velha

identidade e a identidade emergente. “Todas as explosões da metamorfose da identidade

estão contidas neste estágio intermediário90” (CROSS JR., 1994, p. 122, tradução

nossa). Esse estágio representa o ápice da Psicologia do Enegrecimento, onde o “novo

convertido” ainda não mudou, mas tomou a decisão de mudar. Como está mais

habituado com a identidade a ser demolida do que a que será assumida, tende a erigir

imagens especulativas “altamente romanceadas, simplistas e glorificadas no novo self

que virá”. Por estar em transição, o “novo convertido” é muito atraído para os símbolos

da nova identidade, uma fase de “entusiasmo racial” (STRAUSS e CROSS JR., 2005, p.

6, tradução nossa). Para quem experimentou uma conversão particularmente intensa,

este é “um período de altos e baixos, de alta energia, de assunção de riscos, chauvinismo

racial, de se achar superior, de ódio, de alegria, de extrema certeza, intercalado com

momentos de profunda dúvida” (CROSS JR., 1994, p. 122). Cross Jr. ainda aponta,

como características gerais, a atitude viciosa de atacar “o que ele considera ser seu

88“ [...] we see that the Encounter entails two steps: experiencing an encounter and personalizing it” CROSS JR, 1991, p. 200). 89 Há diversos exemplos de pessoas que têm esse tipo de “encontro”, quando entram na faculdade, como veremos adiante em alguns relatos dos candidatos, examinados neste trabalho. 90 “All the fireworks of identity metamorphosis are contained in this middle stage, for within its boundaries, [...]”CROSS JR, 1994, p. 122).

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velho self, nos outros (síndrome blacker-than-thou)91” (CROSS JR., 1991, p. 205,

tradução nossa); uma visão dicotomizada no mundo, para alguns os brancos são vistos

como demônios, opressores, inferiores e não humanos, enquanto os negros são tidos

como superiores, até mesmo biogeneticamente, por causa da presença de melanina.

Na fase de Imersão, a pessoa mergulha no mundo da negritude. Tudo que é

negro é inerentemente maravilhoso. É uma experiência de liberação de tudo o que é

branco: a pessoa procura percorrer o “mar da negritude”. “Esta imersão é uma sensação

dominante, poderosa e forte, constantemente energizada pela fúria, culpa e um

desenvolvimento de um sentido de orgulho”. É o momento em que a pessoa se interessa

pela estética negra no vestir, nas formas de arrumar o cabelo, na arte de origem africana.

Ocorre uma busca por nomes de origem africana para si e/ou para seus filhos e “The

label ‘Negro’ is dropped as a self-referent, and preference is given to Black, Black

American, or African” (CROSS JR., 1991, p. 203). Desenvolve-se um sentido de

fraternidade e unidade a todo o povo negro, num sentimento quase religioso (CROSS

JR., 1991, p. 207). O autor enfatiza, nesse momento, a importância do grupo de

referência,

The groups provide a counterculture to the one being replaced (the “Negro” identity) by entangling the person in membership requirements, symbolic dress codes, rites, rituals, obligations, and reward systems that nurture and reinforce the emerging “new” (Black, or Afrocentric) identity (CROSS, 1991, p. 205).

No entanto, Cross Jr. não deixa de apontar o risco para a conformidade por parte

dos novos recrutas às demandas de certas organizações negras, pois o novato que quer

se conformar ao novo padrão do grupo, procura mostrar, na ação “to perform”92, que é

negro. Para o autor, pessoas que ficam fixadas nesta fase desenvolvem uma “falsa”

identidade negra, pois é uma identidade por oposição ao branco (CROSS JR., 1991, p.

206). Para essa fase de Imersão, propomos o tipo ENTUSIASMADO.

No momento de Emersão, a pessoa já não se encontra mais dominada pelas

emoções ou pensamentos obcecados. Ocorre uma busca de estabilidade e um

reconhecimento de modelos ou de heróis, que, aliados a um crescimento pessoal,

facilitam atingir estados mais adiantados no desenvolvimento da identidade. É quando a

91 “O negro fica avaliando se os outros têm nível ‘adequado’ de negritude e rotula-os de acordo com esse julgamento” (CROSS JR, 1991, p. 205, tradução nossa). 92 “As noted elsewhere (Cross, Parham and Helms, in press), demonstrating and proving one’s level of Blackness or Afrocentricity requires an audience before which to perform and a set of group-sanctioned standards toward which to conform” (CROSS JR, 1991, p. 205, grifos do autor).

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pessoa compreende que a fase da Imersão não é um fim em si mesma, e que a

possibilidade de crescimento está mais adiante (CROSS JR., 1991, p. 207). Relacionado

a esse momento, sugerimos a tipologia ESTÁVEL.

Esse estágio de transição pode inspirar, mas também pode frustrar uma pessoa.

Dada a volatilidade desse estágio, algumas conseqüências negativas podem aparecer,

tais como: “regressão, fixação ou estagnação”. Por ter experiências negativas em toda

parte, não encontrando reforço para o crescimento de uma nova identidade, a pessoa

pode tornar-se desapontada e escolher rejeitar a negritude, podendo tornar-se quase

reacionário em relação a ela (CROSS JR., 1991, p. 208). Apontamos como sugestão, o

tipo RESTRIÇÃO EM RELAÇÃO À NEGRITUDE.

Pessoas que experienciam confrontações e percepções dolorosas advindas das

formas mais cruéis e explícitas de racismo e pobreza, podem ser invadidas pelo ódio aos

brancos e permanecerem fixadas nesse terceiro estágio (CROSS JR., 1991, p. 208). O

tipo proposto é REVOLTA COM O BRANCO.

Aqueles considerados estagnados ou desistentes por Cross Jr. (1991, p. 208), são

aqueles que apresentam algum sinal de terem internalizado a nova identidade negra,

mas que desistem de qualquer envolvimento com as questões do negro, podendo

apresentar duas atitudes: a primeira daqueles que vêem o “problema racial” como algo

insuperável e sem solução, podem até se re-engajarem nas questões raciais

posteriormente, mas por um tempo retiram a “raça” de seu discurso. “Em casos

extremos podem ficar deprimidos ou em anomia, podendo experimentar um colapso

mental” (CROSS JR., 1991, p. 209, tradução nossa). Para relatos, relacionados a essa

característica, nomearemos de ATIVISMO OU MILITÂNCIA FRUSTRADA. Outra

atitude muito comum entre estudantes universitários é viverem sua “fase de etnicidade”,

mas terminada a vida de estudos na universidade, se afastam da vida negra (CROSS JR.,

1991, p. 208, tradução nossa). A tipologia sugerida é ATIVISMO OU MILITÂNCIA

OCASIONAL

No quarto estágio, nomeado de “Internalização”, o grupo negro torna-se o

principal grupo de referência, a pessoa desenvolve uma perspectiva afrocentrada, não

estereotipada e de valorização da negritude, porém o grau de saliência é determinado

por considerações ideológicas93, variando de um extremo nacionalismo (voltado para o

93 Cross Jr. (1991) utiliza uma concepção neutra de ideologia, conforme conceituação de John B. Thompson (1995).

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próprio grupo negro) a uma perspectiva multicultural94. Este estágio, provavelmente,

não é o fim das preocupações em relação à negritude. Pode ocorrer necessidade de

reciclagem através de algum estágio anterior. O bom termo do conflito de identidade

racial leva a pessoa a sentir-se segura o suficiente, podendo, assim, se envolver mais

intensamente, tanto a nível pessoal quanto coletivo, com pessoas que, geralmente, não

estejam associadas a seu próprio grupo (CROSS JR., 1994, p. 122). Desse modo, a

pessoa pode voltar sua atenção para outras problemáticas identitárias, as quais podem

ser sensíveis à raça ou até mesmo neutras, tais como identidade religiosa, sexual,

ocupacional, etc. (CROSS JR., 1991, p. 210).

Como marcadores-chave da Internalização, Cross Jr. (1991) destaca que é um

momento em que a pessoa se sente calma e mais tranqüila consigo mesma. Alcança-se

uma paz interior, substituindo a “ansiedade weusi95” pelo “orgulho weusi (orgulho

negro) e autoaceitação negra. A característica mais importante, segundo o autor, é que

esta paz interior implica numa concepção de negritude mais aberta, expansiva e

sofisticada. Outro ponto de destaque, neste momento, é que o enegrecimento tende a ter

mais efeito sobre a identidade de grupo ou no componente grupo-referenciado do

autoconceito negro, do que na personalidade geral de alguém. Dito de outro modo, se

uma pessoa tinha um perfil de liderança no Pré-Encontro, terá o mesmo perfil na

Internalização. Se era tímido no Pré-Encontro, continuará tímido na Internalização

(CROSS JR., 1991, p. 211). Assim, o enegrecimento como uma forma de “terapia

social”, é extremamente efetivo para mudar a saliência de raça e cultura na vida de uma

pessoa, pois a mudança ocorre ao nível de orientação grupo-referencial, deste modo

“não é um processo que se presta a uma terapia de identidade pessoal”96 (CROSS JR.,

1991, p. 212, grifo do autor, tradução nossa).

Coerente com seu objetivo de afirmar a diversidade e a complexidade do

funcionamento psicológico negro, Cross Jr. (1991) pondera que, a despeito de todos

apresentarem alta saliência para questões de raça e cultura negra, neste estágio, há

diferenças de grau, provavelmente por influência da ideologia de cada um.

94 “Some may progress no further than this ‘group’ centered identity (black nationalism), but others move to still another level. They may begin to see and relish interactions with other groups, including people who are white” (Cross Jr, 1994, p. 122, destaques do autor). 95 “Weusi is Swahili for ‘black’, and weusi anxiety is the anxiety that the convert experiences when he or she worries about being or becoming black enough” (CROSS JR., 1991, p. 205, grifo do autor). 96 “As a form of social therapy, nigrescence is extremely effective at changing the salience of race and culture in a person’s life. It is not a process that lends itself to the needs of personal identity therapy” (CROSS, 1991, p. 212, grifo do autor).

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A negritude pode aumentar a saliência de raça e cultura para todos que alcancem sucesso nos estágios avançados de desenvolvimento da Identidade Negra, mas a Internalização não resulta em uma unidade ideológica. Pode-se olhar isto como uma fragmentação ideológica ou como uma diversidade ideologicamente saudável (CROSS JR., 1991, p. 213, grifo e tradução nossa)

Aqueles que constroem uma forte estrutura nacionalista (voltada para seu

próprio grupo) de sua experiência de Imersão-Emersão podem continuar neste caminho

ideológico na Internalização, mas outros podem derivar uma instância menos

nacionalista, quais sejam: a) “nacionalista vulgar”; b) “nacionalista tradicional”; c)

“biculturalmente orientado” e d) “multiculturalmente orientado”.

Cross Jr. (1991, p.212) chama de nacionalista vulgar aquela pessoa que acredita

que negros e brancos são biogeneticamente diferentes, sendo os negros de um estoque

racial “superior” e brancos, uma mutação “inferior” do estoque negro: “o racismo

reacionário do nacionalista vulgar, o qual está usualmente pautado numa mistura

estranha de mitos pseudocientíficos, distorções históricas e um indiscutível misticismo,

oferecem uma saliência e orientação para além do alcance do discurso normal” (CROSS

JR., 1991, p. 212, tradução nossa). Adotaremos a tipologia GRUPOCENTRADO.

Como nacionalista tradicional, Cross Jr. classifica aqueles que fundamentam o

seu nacionalismo em outras concepções, que não aquelas de caráter biogenético.

“Apresentam alternativas mais saudáveis, enquanto sua alta saliência e estrutura de

referência é objeto de debate e análise racional” (CROSS JR., 1991, p. 212, tradução

nossa). A tipologia proposta é CENTRADO NO SEU GRUPO, MAS SEM

EXCLUSIVIDADE.

Cross Jr. (1991, p. 2l3) chama de biculturalmente orientados aqueles que

conseguem incorporar aspectos da identidade negra, ao mesmo tempo em que também

incorporam aspectos da sociedade norte-americana mais ampla. Chamaremos estes de

BI-FOCADO. Já os multiculturalmente orientados, compartilham seu envolvimento

com a negritude com uma multiplicidade de interesses culturais e saliências. Esses serão

chamados aqui de MULTI-FOCADO

Do ponto de vista psicodinâmico, a identidade internalizada parece desempenhar

três funções dinâmicas na vida cotidiana de uma pessoa: a) defendê-la e protegê-la de

insultos psicológicos; b) fornecer um sentido de pertencimento e ancoragem (funções de

orientação grupo-referencial) e c) fornecer uma base ou ponto de partida para realizar

transações com pessoas, culturas e situações para além do mundo da negritude (CROSS

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JR., 1991, p. 210). Dentre essas, vamos dar um pequeno destaque à segunda, por

representar o argumento da diversidade que o autor defende.

Em seu melhor as funções de orientação grupo-referencial da identidade negra conduzem à celebração da negritude, à resolução dos problemas do negro e ao desejo de promulgar a história e a cultura negra. Em seu pior, fornece a base para inibição, se não destrutividade, conformidade social, chauvinismo étnico, ideologias culturais reacionárias (ideologias com base biogenética), e uma tendência a ver como menos do que humano, num grau ou outro, aquelas pessoas que não “sejam negras” (tal potencial negativo e positivo acompanha qualquer uma e todas as formas de nacionalismo, etnicidade ou afiliação de grupo, e assim, não é a única experiência negra; alguém pode abraçar uma perspectiva cultural sem ser reacionário, mas todas as noções da cultura definidas biogeneticamente, são inerentemente reacionárias (CROSS JR., 1991, p. 210, tradução nossa).

Segundo Cross Jr. (1991, p. 220), no último estágio, denominado

“Internalização–Compromisso”, depois de desenvolver uma identidade negra, que

atenda às suas necessidades pessoais, alguns negros fracassam em sustentar, por um

longo período de tempo, interesses por assuntos negros. Há, também, aqueles que

demandam um período prolongado, se não a vida toda, para conseguir um jeito de

transferir seu sentido pessoal de negritude, para um plano de ação concreto ou para um

sentido geral de compromisso. Para o autor, faltavam estudos empíricos que

focalizassem os desdobramentos da negritude em termos de compromissos assumidos e

ainda acrescenta: “Um olhar mais diferenciado para a Internalização-Compromisso está

à espera de investigações futuras”.

A negritude sendo pensada como um evento único da vida de uma pessoa

implica na experiência de atravessar quatro ou cinco estágios. No entanto, Thomas A.

Parham97, aluno de Janet E. Helms98, desenvolveu o conceito de reciclagem. Segundo

esse autor, se uma pessoa completou seu ciclo de negritude original na adolescência ou

no início da vida adulta, desafios singulares podem aparecer em outras fases de sua

vida. Esses desafios levantam questões e levam a pessoa a descobrir “lacunas” no seu

entendimento da negritude. O casamento da pessoa, o crescimento dos filhos ou um

grave incidente racista, podem significar um novo Encontro, conduzindo a uma

necessidade de reciclagem, quando “a pessoa busca por novas respostas e fundamentos

97 Thomas A Parham é professor adjunto da Universidade da Califórnia, ex-presidente da Associação Nacional dos Psicólogos Negros. Ele também é membro da American Counseling Association e da American Psychological Association. (http://www.sagepub.com/authorDetails.nav?contribId=525210). 98 Janet E. Helms, importante figura no campo da Psicologia do negro, é professora emérita no Departamento de Psicologia Educacional, Desenvolvimento e Aconselhamento e diretora do Instituto para o Estudo e Promoção da Raça e Cultura, da Universidade de Boston. (http://www.bc.edu/schools/lsoe/isprc/staff/helms.html).

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continuados em seu julgamento sobre o significado de ser negro. Dependendo da

natureza e intensidade do novo Encontro, a reciclagem pode variar de uma amena re-

focalização a uma passagem, com todas as suas características, pelos estágios de

Encontro, Imersão-Emersão e Internalização (CROSS JR., 1991, p. 220). O que

propomos como tipologia, para esse estágio, é DESISTÊNCIA, COMPROMISSO

ADIADO e QUESTIONAMENTO.

Mais uma vez, reafirmando o seu argumento da diversidade, Cross Jr. (1991, p.

222) declara que o enegrecimento não resulta de uma postura ideológica99 única, pois

nem todas as pessoas no estágio da Internalização movimentam-se em direção a um

nacionalismo negro ou ao afrocentrismo100. Quer dizer, “que nem todos que têm uma

identidade negra sejam, necessariamente, afrocêntricos, como definido pelas teorias

afrocêntricas e a afrocentricidade não incorpora toda interpretação legítima da

negritude”.

Ricardo Franklin Ferreira (1999) foi um pesquisador brasileiro que adotou o

modelo de Cross Jr. em sua tese de doutorado. Em seu trabalho intitulado “Uma história

de lutas e vitórias: a construção da identidade de um afro-descendente brasileiro” não

observamos o caráter plural resultante do processo de enegrecimento apontado por

Cross Jr. Ferreira (1999, p. 76) centrou-se numa perspectiva afrocêntrica no estágio

final do processo, que ele chamou de estágio de articulação, no qual haveria “o

desenvolvimento de uma nova identidade em que as matrizes africanas são salientadas”.

Abandonando, como afirmamos, a idéia de apreender “estágios de

desenvolvimento da identidade”, experimentamos, nesta pesquisa, construir uma

tipologia inspirada no modelo de Cross Jr., e empregá-la na análise de discursos

proferidos por candidatos ao Programa IFP, relacionados à sua identificação étnico-

racial. Consideramos que esta tipologia poderia captar a diversidade de apresentar-se

como negro (e como branco), o que nos apoiaria na construção de nossa argumentação.

E isto ocorreu, como veremos no capítulo 2 da Parte III.

Ao confrontarmos os tipos inspirados em Cross Jr. aos discursos proferidos

pelos candidados ao Programa IFP, observamos que nem todos os tipos foram

identificados no corpus deste trabalho. Em relação ao Quadro 1, não foram apreendidos

99 Concepção neutra de ideologia, conforme conceituação de John B. Thompson (1995) 100 “Essencialmente, o movimento afrocêntrico é uma tentativa de codificar e aplicar uma perspectiva não-ocidental para a análise da vida negra nos Estados Unidos da América. Mais especificamente constitui uma interpretação Ocidental (isto é, negro norte-americana) do que significa ter uma perspectiva africana, [...]” (CROSS JR., 1991, p. 222, grifo do autor, tradução nossa).

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os seguintes tipos: racista anti-negro; estável; restrição em relação à negritude; revolta

com o branco; ativismo ou militância frustrada; ativismo ou militância ocasional;

centrado no seu próprio grupo, mas sem exclusividade; bi-focado; desistência;

comprometimento adiado e questionamento. É interessante perceber que esses tipos, que

se distanciam da negritude ou que apresentam uma negritude em oposição ao branco,

não tenham aparecido no corpus analisado. Lembrando-nos do alerta de Osório (2004),

quanto ao uso da autoidentificação, será que eles surgiriam em um contexto que não

implicasse em vantagem proferir um discurso pró negritude?

Para Iñiguez (2004, p. 92), todo discurso é produzido dentro de um contexto

específico, que ele chama de “formação discursiva”. Dito de outro modo, o sujeito

produtor do discurso encontra-se situado num “espaço social”, conforme a abordagem

de Pêcheux (1969 apud BARDIN, 1977, p. 214).

Na perspectiva foucaultiana, os discursos são práticas sociais (IÑIGUEZ, 2004,

p. 92) e, assim, devemos considerar os aspectos performativos da linguagem na sua

interface com a sua condição de produção, reprodução e circulação, considerando tanto

o contexto social e interacional, quanto no sentido de construções históricas. O aspecto

contextual é um dos cinco aspectos fundamentais para o estudo e análise dos

significados das formas simbólicas, de acordo com a HP. O contexto está relacionado às

características socialmente estruturadas101 das formas simbólicas. Nesta tese, as formas

simbólicas que foram examinadas provêm dos discursos proferidos nos campos

específicos relacionados à identificação étnico-racial no Formulário de Candidatura ao

Programa IFP. Os discursos que analisamos ocorrem em um contexto de avaliação, em

um programa de ação afirmativa que tem, também, foco étnico-racial profusamente

divulgado via imagem das pessoas contempladas pela bolsa. Portanto, pode-se supor

que o material produzido nesse contexto é tipificado, quer dizer, fruto de um discurso

endereçado para um outro, que, nesse caso, são os avaliadores do processo seletivo.

Dentre uma diversidade de construções discursivas dos candidatos ao Programa

IFP, no ano de 2007, nove foram os tipos identificados na amostra, analisada: Omisso,

Transcendente, Centrado no Estigma, Simpatizante, Centrado na constatação, Político,

Entusiasmado, Grupocentrado e Multi-focado. As análises das formas simbólicas serão

apresentadas na Parte III desta tese.

101 Contextos que envolvem relações de poder, formas de conflito e desigualdades, conforme John B. Thompson (1995).

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PARTE III – ANÁLISE FORMAL DAS FORMAS SIMBÓLICAS

“Toda obra científica acabada não tem sentido senão o de fazer com que surjam novas perguntas: assim, pois, ela exige ser superada e envelhecer” (Max Weber, “Le savant et la politique”)

Esta parte explora dois tópicos: no primeiro, descrevemos os procedimentos de

análise; no segundo, descrevemos os resultados, para, em seguida, propor nossas

interpretações.

CAPÍTULO 1 – Procedimentos: corpus e grades de análise

1.1 Seleção da amostra e constituição do corpus

De toda a documentação solicitada aos candidatos para participarem da Seleção

Brasil 2007 do Programa IFP (Edital, Seleção 2007), esta pesquisa analisou quatro

questões contidas no Formulário para Candidatura 2007 (Anexo I), por vezes

denominado aqui, de Formulário102. Esse formulário inclui uma série de perguntas,

inclusive aquelas relativas à adequação do candidato aos grupos-alvo privilegiados pelo

Programa IFP: local de nascimento, renda familiar e pessoal, educação e ocupação do(a)

pai/mãe, responsabilidades familiares e quatro perguntas sobre autodeclaração e

identificação étnico-racial.

O Formulário passou por modificações visando afinar as informações fornecidas

pelos candidatos, no intuito de coibir respostas de ocasião que objetivassem apenas a

adequação aos grupos focalizados pelo edital (FCC/IFP, 2004).

Nas duas primeiras seleções, o Formulário continha apenas duas questões

relacionadas à autodeclaração e identificação de cor/raça/etnia: uma idêntica à

formulada pelo IBGE (“Usando as categorias do IBGE, sua cor ou raça é: branca, preta,

parda, indígena, amarela) e, ao final, uma declaração do candidato de

102 O dossiê para candidatura é bastante complexo, na medida em que constitui instrumento para analisar, simultaneamente, pertencimento aos grupos-alvo, trajetória pessoal, potencial acadêmico e de liderança, bem como compromisso com questões sociais.

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identificação/pertença aos grupos focalizados pelo edital (FCC/IFP, Formulário para

Candidatura, 2003).

Declaro que pertenço ao(s) segmento(s) sub-representado(s) na pós-graduação privilegiado(s) pelo edital do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e que assinalei abaixo: Nasci na região ( ) Norte ( ) Nordeste ( ) Centro-Oeste ( ) Identifico-me como indígena e pertenço ao povo ___________ ( ) Identifico- me como negro/a

Após as duas primeiras seleções e observando, conforme mencionado na

introdução por ocasião das entrevistas, a passagem da linha de cor por “oportunismo” de

alguns candidatos, a Equipe da FCC realizou um seminário com lideranças do

movimento negro visando refinar as questões sobre autodeclaração e identificação

étnico-racial, procurando ajustar-se à regra que haviam estabelecido de não violentar a

autodeclaração do candidato (FCC/IFP, 2003)

Após as discussões que aconteceram no seminário, foram introduzidas mais duas

questões no Formulário: uma, logo após a pergunta “modelo IBGE”: “Por que você

indicou a categoria acima?”. A outra, “Relate suas experiências ou vivências

relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”. Tal pergunta é ampla, permitindo ao

candidato que direcione seu relato para uma variedade de aspectos do que podem ser

experiências étnico-raciais para uma pessoa que vive no Brasil. Daí termos nos

interessado, particularmente, por esta questão.

Portanto, nesta pesquisa, analisamos as respostas dadas a essas quatro questões,

além de considerarmos o Campo L do Formulário, que trata da autorização para o uso

das informações prestadas pelo candidato para fins de pesquisa (Quadro 3).

Consideramos que estas questões (com exceção da autorização) constituem o corpus da

pesquisa. Para Bardin (1977, p. 96-98), corpus “é o conjunto dos documentos tidos em

conta para serem submetidos aos procedimentos analíticos”. A autora ainda acrescenta

que, na constituição do corpus, devem-se considerar as regras de exaustividade,

representatividade, homogeneidade e pertinência, o que exporemos adiante.

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143

Quadro 3 – Campos do Formulário que foram analisados

Campo A, sub-campo 3: Identificação Sexo ( ) Masculino ( ) Feminino Idade ( ) Tipo de bolsa ( ) Mestrado ( ) Doutorado Usando as categorias do IBGE, assinale sua cor ou raça: ( ) branca ( ) preta ( ) parda ( ) amarela ( ) indígena Por que você indicou a categoria acima? Campo L: Autorização Autorizo a utilização ( ) SIM ( ) NÃO Campo M: Declaração Declaro que pertenço ao(s) segmento(s) sub-representado(s) na pós-graduação privilegiado(s) pelo edital do Programa Internacional de Bolsas da Pós-Graduação da Fundação Ford e que assinalei abaixo. ( ) Identifico- me como negro/a Campo N: Relatos pessoais sub-campo 3) Relate suas experiências ou vivências relacionadas ao pertencimento étnico-racial. Fonte: Formulário para Candidatura ao Programa IFP: Seleção 2007 (FCC/IFP).

Do ponto de vista dos procedimentos, tivemos que tomar três decisões: como

compor uma amostra representativa do universo de respostas dos candidatos, como

proceder à análise, e como nos ajustar a padrões éticos que orientam a pesquisa

envolvendo pessoas. Iniciemos por esta última questão: este projeto foi submetido à

apreciação de uma comissão constituída pela sessão brasileira do Programa IFP, que

autorizou a análise dos Formulários, desde que mantivéssemos o anonimato e que não

incluíssemos, na análise, aqueles que não concederam sua autorização.

Com efeito, desde a primeira seleção do Programa IFP, seus responsáveis

incluíram uma pergunta no Formulário solicitando, expressamente, ao candidato que

informasse se concedia, ou não, autorização para que suas respostas fossem usadas em

pesquisa, guardando-se o anonimato. Portanto, nossa amostra excluiu os Formulários

que não apresentaram respostas afirmativa ao quesito relativo à autorização (Campo L

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do Formulário). Além desses cuidados, o projeto foi objeto de análise e aprovação pelo

Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (parecer no Anexo

II).

A outra decisão tomada referiu-se ao procedimento de sorteio da amostra de

Formulários. De início, decidimos excluir da amostra os Formulários relativos às

seleções de 2004 e 2009. Isto porque 2004 foi o ano de introdução da questão − “Relate

suas experiências ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”. Por ser

uma novidade tanto para a Equipe quanto para os/as candidatos/as, preferimos excluir

esse ano. Consideramos que tal questão é inabitual para brancos, que, no Brasil, não

consideram ter/construir uma identidade étnico-racial (BENTO, 2002). Para negros e

indígenas, apesar de habitual, a pergunta foi efetuada em contexto de programa de ação

afirmativa, daí a novidade. Por outro lado, em 2009, ocorreu uma seleção sui generis,

por prever, exclusivamente, bolsas de mestrado, o que nos levou a excluí-lo também.

Ficamos, então, com os Formulários das seleções de 2005, 2006, 2007 e 2008. A seguir,

abriram-se duas possibilidades: selecionar uma amostra distribuída por todos os anos ou

sortearmos apenas um ano e, desse universo de Formulários, extrairmos uma amostra.

Optamos por esse último caminho, na medida em que simplificava nosso trabalho e não

reduziria a representatividade da amostra. Sorteamos, então, o ano de seleção (2007 foi

sorteado) e, do conjunto de 900 formulários que continham autorização para análise,

extraímos 20% para a composição da amostra, utilizando a Tabela de Números

Equiprováveis. Desse processo resultou uma amostra composta por 180 Formulários.

Como o número de Formulário de candidatos autodeclarados indígenas e amarelos era

reduzido (onze ao todo), e que nosso enquadre teórico focalizava relações raciais da

perspectiva negra-branca, decidimos compor uma amostra exclusivamente com

formulários de candidatos pretos, pardos e brancos, o que resultou num conjunto de 169

formulários (Quadro 4).

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Quadro 4 – Composição da amostra

Total de formulários (A)

Não preencherama autorização

(B)

Não autorizaram o uso de suas informações

(C)

Formulários que não foram

utilizados (B+C) = D

Universo (A-D) = E

Amostra (20% de E)

Indígenas e amarelos

(F)

Amostra final (E-F)

949 15 34 49 900 180 11 169

Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).

Nesta pesquisa, os discursos captados nos campos selecionados do Formulário

para Candidatura ao Programa IFP constituem o corpus de análise. Selecionada a

amostra de Formulários e delimitado o corpus, passamos a descrever os procedimentos

de análise.

1.2 Análise do corpus

Para esta fase de análise discursiva desta pesquisa optou-se por articular ao

referencial metodológico da Hermenêutica de Profundidade (HP), as técnicas de análise

de conteúdo, tal como utilizadas por Bardin (1977) e Rosemberg (1981): isto é, a

análise de conteúdo atuou como apoio para proceder à descrição organizada e

sistemática de conteúdos apreendidos nos formulários analisados.

As técnicas de análise de conteúdo se desenvolvem por meio de procedimentos

sistemáticos de descrição e caracterização de discursos, de forma a buscar objetividade

e constância durante a coleta de dados, num processo de ir e vir entre o material

empírico sob análise (discursos proferidos pelos sujeitos) e o objeto de investigação,

bem como o referencial teórico adotado (Bardin, 1977; Rosemberg, 1981).

Identificar os “temas”, conforme Bardin (1977, p. 105), ou estabelecer os “cortes

no fluxo da mensagem”, segundo Rosemberg (1981, p. 70), aponta as etapas iniciais no

tratamento dos dados: a categorização e a codificação. Anteriormente a isso, Bardin

(1977, p. 96) indica a necessidade de se fazer uma “leitura flutuante” no contato com o

documento a ser analisado, “deixando-se invadir por impressões e orientações”.

A codificação é o momento da transformação dos dados do texto em índices.

Organizar a codificação envolve a escolha das unidades de registro e de contexto, a

escolha das regras de contagem e a elaboração das categorias. A unidade de registro é a

unidade de sentido que corresponde ao conteúdo considerado como unidade básica, a

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categoria para a qual será verificada a freqüência de aparecimento no discurso sob

análise. Conforme Bardin (1977, p. 105-106),

Fazer uma análise temática consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objectivo analítico escolhido. O tema, enquanto unidade de registro, corresponde a uma regra de recorte (do sentido e não da forma) que não é fornecida uma vez por todas, visto que o recorte depende do nível de análise e não de manifestações formais reguladas.

Assim, o critério de recorte na análise de conteúdo é da ordem das significações

(Bardin, 1977, p. 104). Neste sentido, o olhar do analista é orientado tanto pela teoria

quanto por seu interesse e por suas percepções (Rosemberg, 1988, p. 76).

A unidade de contexto é outra dimensão importante a ser considerada na análise,

pois, segundo Bardin (1977, p. 107), os “resultados [de uma análise] são susceptíveis de

variar sensivelmente, segundo as dimensões de uma unidade de contexto”. De acordo

com a autora, a escolha das unidades, de registro e de contexto, deve ser coerente com o

documento a ser analisado, bem como com os objetivos do estudo. A unidade de

contexto, nesta pesquisa, foi, para cada um dos quesitos analisados, a resposta do

candidato.

Outra tarefa no tratamento dos dados, a categorização, consiste na operação de

classificar o corpus procurando dar-lhe certa organização, reconstruindo-o, “produzindo

uma representação simplificada dos dados brutos”, num movimento de diferenciação e

agrupamento dos elementos, considerando os critérios que podem ser semânticos,

sintáticos, léxicos ou expressivos, conforme Bardin (1977, p. 117-119). Neste trabalho,

foram construídas categorias de análise, a partir de recortes temáticos das respostas com

base no objeto de investigação, nas referências teóricas e nas percepções do

pesquisador, atento aos critérios de construção de “boas categorias” apresentados por

Bardin (1977, p.120, grifo nosso).

1) a exclusão mútua – Essa condição estipula que cada elemento não pode existir em mais de uma divisão. [...]; 2) a homogeneidade – O princípio de exclusão mútua depende da homogeneidade das categorias. Um único princípio de classificação deve governar a sua organização. Num mesmo conjunto categorial, só se pode funcionar com um registro e com uma dimensão de análise. [...]; 3) a pertinência – Uma categoria é considerada pertinente quando está adaptada ao material de análise escolhido, e quando pertence ao quadro teórico definido. [...] O sistema de categorias deve refletir as intenções da investigação, as questões do analista e/ou corresponder às características das mensagens; 4) a objetividade e a fidelidade – [...] As distorções devidas à subjetividade dos codificadores e à variação dos juízos não se produzem se a escolha e a definição das categorias forem bem estabelecidas. [...]; 5) [...]a

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produtividade – Um conjunto de categorias é produtivo se fornece resultados férteis: férteis em índices de inferências, em hipóteses novas e em dados exatos.

Apresentamos, a seguir, as grades que foram construídas para a análise de

conteúdo dos discursos dos candidatos ao Programa IFP. Para isso, foram criados quatro

blocos de análise.

O Bloco 1 inclui categorias referentes à identificação dos candidatos, a saber:

sexo, idade, cor/raça, tipo de bolsa (quadro 5). Aqui é necessário explicitar a construção

das categorias Negro 1 e Negro 2: a categoria Negro 1 resulta da somatória das

respostas dos que se autodeclararam pretos e pardos. Já a categoria Negro 2 se refere

aos candidatos que, no campo M do Formulário, que solicita a declaração de pertença

aos grupos-alvo do Programa, indicaram a opção Negro.

Quadro 5 – BLOCO 1: Identificação do candidato (Campos A e M do Formulário)

CATEGORIAS

Autodeclaração Declaração de pertença

Branca Negro2

Preta Outros

Parda Não consta

21 a 30

31 a 40

41 a 50

DESCRIÇÃO

Masculino

Feminino

Mestrado

Doutorado

51 acima

Não consta

1.1. Sexo

Idade

Cor/raça

Tipo de bolsa

O Bloco 2 (quadro 6) inclui categorias que permitem descrever, de modo

agrupado, as respostas à pergunta do Formulário “Por que você usou a categoria

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acima?”, referindo-se à opção pelas alternativas de cor/raça empregadas nos inquéritos

do IBGE.

Quadro 6 – BLOCO 2: Justificativa da opção da categoria cor/raça (Respostas à pergunta: “Por

que você usou a categoria acima?”)

Aparência

"minha cor", cabelo, traços físicos, etc.

Origem

"meus pais", "meus avós", família, ancestrais, etc.

Documento

certidão de nascimento, RG, etc.

Cultura

"identifico-me com a cultura", "identifico-me com modo de ser", etc.

Reafirmação

"sou negro", "sou indígena", "sou afrodescente", "sou branco", etc.

Postura política

militância, participação política, consciência racial (negritude)

Outros conteúdos

não se enquadra em nenhuma categoria anterior

Mista

mais de uma categoria [p. ex.: aparência (1) e origem (2) = categoria (1-2)]

Não consta

o candidato não justificou sua resposta

Os Blocos 3 e 4 incluem categorias que se propõem a descrever os relatos

pessoais dos candidatos ao campo M do Formulário: “Relate suas experiências ou

vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”.

É necessário mencionar que, conforme o Formulário para Candidatura, este

campo devia ser manuscrito. Porém, os relatos manuscritos dos candidatos eram

enviados, pela Equipe da Fundação Carlos Chagas, a um bureau de digitação visando

sua utilização mais confortável durante o processo de seleção. A digitação pelo bureau

adotou a sistemática de usar caixa alta. Para fins desta pesquisa, preferimos adotar caixa

baixa entre aspas, diminuindo a poluição visual. Por outro lado, incluímos pontuação e

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acentuação nos relatos, posto que sua ausência no material que recebemos decorreu do

trabalho de digitação.

Além disso, ao final dos excertos transcritos, incluímos uma fórmula de

identificação dos autores: sexo (M ou F), idade (numeral), cor autodeclarada (preta,

parda ou branca) e declaração de pertença do campo M (Negro ou −, esta última quando

não há indicação de resposta). Por exemplo, a fórmula F/26/preta/negra indica que se

trata de mulher, tendo 26 anos, que indicou a cor preta no quesito sobre sua cor/raça

(IBGE) e declarou-se negra no campo M referente à declaração de

identificação/pertença.

No Bloco 3 (Quadro 7) foram incluídas as categorias que descrevem o foco do

relato, seu tema principal, em que pessoa é relatado, qual a terminologia étnico-racial

que usa e se menciona ação afirmativa.

Quadro 7 – BLOCO 3: Relatos pessoais (Respostas ao campo N do Formulário: “Relate suas

experiências ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”)

Qual é o foco do relato?

Não há relato Étnico-racial “Não tenho relatos graves como ser impedida de entrar em algumas instituições, de ser barrada em lugares sofisticados para “brancos”, até porque não tenho e nunca tive condições econômicas para frequenta-los. Durante minha infância e adolescência sempre ouvi brincadeiras de mau gosto por ser parda, cabelos não rebeldes, mas nariz “parracha”. Ofendia-me, claro. Tive até complexos na adolescência, orgulhava-me de ter amigos(as) brancos(as) – que bobagem” (F/55/parda/-) Outros (cultura, desigualdade social, profissional, indefinido) Cultura “Eu tenho muito orgulho de ser brasileira. tenho orgulho da culinária, da música e das pessoas deste país. [...]”. (F/23/parda/-) Desigualdade social “As descriminações que sofri foram mais referente a desigualdade social. Já que de certa forma estive a margem da sociedade [...]”. (F/33/parda/negro) Profissional “Ao trabalhar com a população de baixa renda, percebe-se que os indivíduos carecem de atenção e de informação. [...]”. (F/26/branca/-) “Não tenho discriminação alguma independente do sexo, raça ou algum tipo de deficiência. em minhas aulas os alunos trocam informações e elaboram exercícios como um todo. (F/24/branca/-) Indefinido “Respeito e confiança pelas crianças”. (F/26/parda/-)

Qual o tema central do relato racial?

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Pertencimento étnico-racial “Como sabemos, o pertencimento étnico racial é uma descoberta que você faz ao longo de sua vida. Comigo não foi diferente [...]. (F/24/preta/negro) “Tenho descendência afro”. (F/24/parda/-) Discriminação étnico-racial (geral, sofrida por familiares, pelos negros ou pelo próprio candidato) “[...] Sinto uma grande inquietação quando vejo a impunidade e discriminação [...] ao qual vivem as comunidades negras, indígenas e etc.” (F/34/branca/-) “[...] Um deles ocorreu com a minha tia que foi proibida de entrar em um elevador social em razão da sua cor [...]” (F/26/parda/negro/) “[...] Observo as grandes dificuldades encontradas pelos negros, desde o ingresso às faculdades públicas até a presença de negros [...]”. (M/26/parda/-) “Pensa-se que o negro e o indígena e que são discriminados. Não só. Brancos também são, [...] na minha infância foi muito difícil superar essas dificuldades, [...] ainda era ruiva e sardenta. [...]”. (F/48/branca/-) “Quando criança, principalmente, vivenciei momentos de discriminação, por exemplo, com apelidos na escola de neguinha da Beija Flor, picolé de asfalto, [...]”. (F/26/preta/negro) Ação de enfrentamento ao racismo “Tenho contato com movimentos quilombolas, movimentos negros. [...]”. (M/29/parda/negro)

Atividade cultural "Participei do grupo de capoeira angola [...]". (F/28/preta/negro) Atividade profissional "Minha experiência como coordenadora técnica há 8 anos na [...] equipamento de acolhimento destinado a adolecentes Do sexo feminino. [...]”. (F/43/preta/negro) Nunca "sofreu" problema étnico-racial “Neste caso confesso que nunca tive nenhum pertencimento pois dos 20 anos aos 41, nunca tive problemas em relação a minha cor, pelo menos a olhos vistos. [...]”. (M/50/preta/negro)

Em que pessoa o relato é narrado?

1ª do singular

3ª do singular

1ª do plural

3ª do plural

Indefinido Misto

Terminologia étnico-racial que emprega

Se usa e o que usa

Menciona ação afirmativa?

Sim Não

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O Bloco 4 incluiu categorias que buscaram construir uma tipologia das

experiências/vivências étnico-raciais relatadas, inspirando-nos no modelo proposto por

Cross Jr (1991). Porém, diferentemente da proposta de Cross Jr (1991), não nos

referimos a estágios de desenvolvimento de uma pessoa referente à sua negritude, mas a

tipos de experiências apreendidos nos discursos dos candidatos. Mas, como

discutiremos adiante, é possível vislumbrar uma hierarquia entre os tipos em direção a

discursos centrados na dimensão política nos relatos relacionados a

vivências/experiências étnico-raciais.

Quadro 8 – BLOCO 4: Tipos de relatos

Omisso quando o relato não se refere aos negros ou a relações raciais entre brancos e negrosTranscendente o relato privilegia uma humanidade abstrataCentrado no estigmao relato realça apenas aspectos negativos da identificação étnico/racial

Simpatizante o relato trata de experiências étnico-raciais a partir da ação de terceiros ou na cultura negra/indígena emgeral ou da atividade profissional

Centrado na constataçãoo relato apenas apresenta uma situação étnico/racial discriminatória sem, contudo, apontar envolvimento emsua superação Político o relato foca a militância política ou acadêmica no trato de questões étnico/raciais

Entusiasmadoo relato é entusiasmado por causa de recém descoberta da negritude

Grupocentradoo relato focaliza exclusivamente o próprio grupo étnico/racial como importanteMultifocadoo relato tem foco em causas raciais e também em outras expressões identitárias

Adotando-se os procedimentos descritos, as respostas contidas nos 169

Formulários para Candidatura foram codificadas. Em seguida, os dados foram

processados usando-se o programa Microsolft Access, o que deu origem a tabelas a

partir de cruzamentos simples entre variáveis de identificação dos candidatos e variáveis

respostas, ou seja, o conteúdo categorizado e codificado das respostas dos candidatos.

Paralelamente, líamos e relíamos as respostas, procurando captar aspectos que

poderiam ter escapado ou que complementavam a codificação, ou ainda que

exemplificassem as tendências dominantes ou as ausências apreendidas nos discursos.

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Este conjunto de tratamentos permitiu a configuração de resultados, a nosso ver,

interessantes, e alguns deles inovadores. Antes, porém de apresentá-los, é necessário

informar que procedemos à análise via comparação entre percentuais (distribuição de

freqüência). A base para o cálculo das porcentagens nem sempre foi 169 (conjunto de

Formulários), posto que, por vezes, efetuamos reduções excluindo, por exemplo,

Formulários em que o campo/quesito não havia sido respondido. Para facilitar a leitura,

a explicitação da base para cálculo da porcentagem ocorrerá no momento específico de

apresentação dos resultados.

Outro aspecto a ser mencionado refere-se à explicitação da fonte em quadros e

tabelas: informamos a fonte “Banco de Dados (FCC/IFP)” quando as codificações já

haviam sido processadas pela Equipe da Fundação Carlos Chagas. Não mencionamos a

fonte quando fomos nós que efetuamos a codificação das informações.

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CAPÍTULO 2 – Resultados: interpretações e re-interpretações

2.1 Caracterização da amostra

Comparando-se a composição de nossa amostra com o universo de candidatos103

que autorizou o uso de seus Formulários para fins de pesquisa, observamos uma

proximidade muito grande entre os conjuntos: maioria de candidatos a mestrado, do

sexo feminino, nas faixas etárias mais jovens e que se autodeclararam pretos e pardos,

portanto, predominantemente negros. Isto é, nossa amostra se apresenta representativa

do conjunto de candidatos (Tabela 2).

Tabela 2: Composição do universo e da amostra de candidatos

Sexo Universo %

Amostra %

Sexo Feminino Masculino Total

612 288 900

78,0 22,0

100,0

120 49

169

71,0 29,0

100,0

Cor/raça Branca Preta Parda Outros Negro 1 Total

154 354 336 56

690 900

17,1 39,3 37,3 6,2 76,6

100,0

31 71 67 00

138 169

18,3 42,0 39,6 0,0 81,6

100,0 Idade 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 e acima Não consta Total

372 316 163 46 3 900

41,3 35,1 18,1 5,1 0,3

100,0

80 56 26 06 01

169

47,3 33,1 15,4 3,6 0,6

100,0 Tipo de bolsa Mestrado Doutorado Total

702

198 900

78,0

22,0 100,0

126 43

169

74,6 25,4

100,0

Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).

103 Daremos preferência ao uso do genério masculino, para não sobrecarregar o texto, a não ser quando estivermos explicitando a variável sexo na descrição e análise das tabelas. Além disso, quando pertinente, usamos autor para nos referirmos aos candidatos que redigiram os relatos analisados.

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154

Ou seja, o corpus aqui analisado foi predominantemente produzido por autores

mulheres (71,0%), autodeclarados pretos (42,0%) ou pardos (39,6%), tendo entre 21 e

30 anos (47,3%) e candidatos a bolsas de mestrado.104

Ao apontar as tendências predominantes no perfil dos autores dos discursos aqui

analisados, indicamos os limites das generalizações para a população brasileira. Não

estamos lidando com discursos proferidos por uma amostra da população brasileira, mas

por uma amostra de uma reduzida parcela (os que terminaram o curso superior), que

pretendem prosseguir os estudos, que se candidataram a um programa de acão

afirmativa e, predominantemente, jovens, pretos ou pardos e mulheres.

Apesar de o Programa IFP focalizar, também, a região de nascimento do

candidato, optamos por não discutir este aspecto aqui, por duas razões: em primeiro

lugar, pela quantidade de informações que eu, neófito em procedimentos quantitativos,

deveria processar, descrever e interpretar. Isto porque, e esta é a segunda razão e que se

articula à primeira, as diversas dimensões das experiências raciais no Brasil, conforme a

literatura vem mencionando (Petruccelli, 2001), estão relacionadas à região de

residência das pessoas. Neste sentido, teria que articular local de nascimento e local de

residência, o que aumentaria, em muito, a complexidade da descrição e das

interpretações.

Para que se tenha uma idéia mais precisa dos perfis dos candidatos que

predominam em nossa amostra, transpusemos, na Tabela 3, os subconjuntos mais

freqüentes, resultantes da integração das quatro variáveis que privilegiamos: sexo, cor,

idade e tipo de bolsa pleiteada.

104 É necessário lembrar que os grupos-alvo do Programa IFP no Brasil incluem outros segmentos populacionais, além de negros e indígenas, o que explica a presença de candidatos brancos.

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155

Característica Frequência %

Mulheres pretas candidatas ao mestrado entre 21 a 30 anos

21 12,4

Mulheres pardas candidadas ao mestrado entre 21 a 30 anos

19 11,2

Mulheres pardas candidadas ao mestrado entre 31 e 40 anos

13 7,7

Homens pretos candidatos ao mestrado entre 21 a 30 anos

8 4,7

Mulheres brancas candidatas ao mestrado entre 21 e 30 anos

7 4,1

Mulheres brancas candidatas ao mestrado entre 31 a 40 anos

7 4,1

Homens pardos candidatos ao mestrado entre 21 a 30 anos

7 4,1

Homens pardos candidatos ao mestrado entre 31 a 40 anos

7 4,1

Percentual da amostra 89 52,7

Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).

Tabela 3: Subconjuntos mais frequentes identificados na amostra

Observamos que o subconjunto de mulheres pretas ou pardas, candidatas a

mestrado, tendo entre 21 e 30 anos representam praticamente ¼ dos autores de discursos

aqui analisados.

Para analisar a amostra com maior detalhe, descreveremos, a seguir, sua

composição a partir de cruzamentos simples entre as categorias de identificação.

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156

a) Por sexo

Tabela 4: Caracterização da amostra por sexo

Categorias

Fem

inin

o

%

Mas

culi

no

%

Tot

al

%

Mestrado 87 72,5 39 79,6 126 74,6Doutorado 33 27,5 10 20,4 43 25,4

Total 120 100,0 49 100,0 169 100,0

21 a 30 58 48,3 22 44,9 80 47,331 a 40 39 32,5 17 34,7 56 33,141 a 50 16 13,3 10 20,4 26 15,451 acima 6 5,0 0 0,0 6 3,6Não consta 1 0,8 0 0,0 1 0,6

Total 120 100,0 49 100,0 169 100,0

Branca 26 21,7 5 10,2 31 18,3Preta 47 39,2 24 49,0 71 42,0Parda 47 39,2 20 40,8 67 39,6Negro1(Preta + Parda) 94 78,3 44 89,8 138 81,7

Total 120 100,0 49 100,0 169 100,0Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).

Tipo de bolsa

Idade

Cor/raça

Nota-se maior variação no perfil de homens e mulheres na categoria cor/raça,

observando-se maior percentual de pessoas que se declaram brancas entre as mulheres

do que entre homens. Observação idêntica já fora efetuada por Rosemberg e Andrade

(2008) em análise do conjunto de candidatos até a Seleção 2006. Os autores

assinalaram: uma sobrerrepresentação das mulheres entre os candidatos ao Programa

IFP (explicável, entre outros aspectos, por seus melhores resultados escolares); um

número e um percentual maior de mulheres que de homens candidatos fora dos grupos-

alvo ((ROSEMBERG e ANDRADE, 2008, p. 431).

Ao procurarem interpretar essa sobrerrepresentação de mulheres “fora do

ninho”, os autores caminham por duas linhas argumentativas: as mulheres, mais que os

homens, seriam pró-ativas e desafiariam “as regras do jogo do Programa IFP”; as

mulheres se sentiriam “mais autorizadas a se candidatarem a um programa de ação

afirmativa porque, enquanto mulheres, se consideram ‘sempre discriminadas’”, tendo

em vista a frase que constava do edital das seleções (excluída em 2007) – “no Brasil, o

Programa além de estar atento à igualdade de gênero, destina-se, prioritariamente, a ...”

(ROSEMBERG e ANDRADE, 2008, p. 432). E terminam o artigo levantando questões

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157

políticas: “Estaria a sociedade brasileira, neste momento do debate sobre ação

afirmativa, apta a estabelecer subcotas para homens e para mulheres? [...]” Isto seria

justo? (ROSEMBERG e ANDRADE, 2008, p. 435).

b) Por idade

Categorias

21 a

30

%

31 a

40

%

41 a

50

%

51 a

cim

a

%

Não

con

sta

%

Tot

al

%

Mestrado 65 81,3 39 69,6 17 65,4 4 66,7 1 100,0 126 74,6Doutorado 15 18,8 17 30,4 9 34,6 2 33,3 0 0,0 43 25,4

Total 80 100,0 56 100,0 26 100,0 6 100,0 1 100,0 169 100,0

Feminino 58 72,5 39 69,6 16 61,5 6 100,0 1 100,0 120 71,0Masculino 22 27,5 17 30,4 10 38,5 0 0,0 0 0,0 49 29,0

Total 80 100,0 56 100,0 26 100,0 6 100,0 1 100,0 169 100,0

Branca 13 16,3 13 23,2 2 7,7 2 33,3 1 100,0 31 18,3Preta 38 47,5 17 30,4 13 50,0 3 50,0 0 0,0 71 42,0Parda 29 36,3 26 46,4 11 42,3 1 16,7 0 0,0 67 39,6

Total (Branca+Negro1) 80 100,0 56 100,0 26 100,0 6 100,0 1 100,0 169 100,0

Negro1 (Preta + Parda) 67 83,8 43 76,8 24 92,3 4 66,7 0 0,0 138 81,7

Tabela 5: Caracterização da amostra por idade

Tipo de bolsa

Sexo

Cor/raça

Quando analisamos a distribuição das variáveis de identificação por idade,

observamos, em primeiro lugar, uma intensa maioria de candidatos mais jovens, o que

acarreta uma reduzida presença de candidatos tendo 51 anos e mais. Isto pode distorcer

o significado das porcentagens neste grupo etário, cuja base para o cálculo apresenta

número reduzido de pessoas (seis candidatos apenas).

Notamos que a distribuição de frequência por idade não apresenta pontos de

inflexão no cruzamento com as demais categorias de identificação. Porém, certas

diferenças precisam ser apontadas: entre os muito jovens (entre 31 e 30 anos), notamos

um percentual maior dos que se autodeclaram pretos, seguido de pardos; no grupo

intermediário, um percentual maior dos que se autodeclaram pardos. Poderíamos evocar

os resultados da pesquisa de Sergei Soares (2008), na qual aponta um aumento de

pessoas que se autodeclaram pretas na população brasileira que não se explicaria por

razões demográficas. Também poderíamos evocar o livro de Sansone (2003), no qual

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158

assinala uma variação geracional na terminologia racial usada na Bahia. Mas, essas

interpretações se desmancham ao observarmos que, nos grupos menos jovens (que são

menos representados), volta a aumentar o percentual dos que se autodeclaram pretos.

Portanto, não observamos uma tendência uniforme conforme a menor ou maior idade

dos candidatos e o uso preferencial de uma categoria de cor/raça.

c) Por cor/raça

Categorias

Bra

nca

%

Pret

a

%

Pard

a

%

Neg

ro1

%

Tot

al

%

Neg

ro2

%

Mestrado 21 67,7 50 70,4 55 82,1 105 76,1 126 74,6 77 73,3Doutorado 10 32,3 21 29,6 12 17,9 33 23,9 43 25,4 28 26,7

Total 31 100,0 71 100,0 67 100,0 138 100,0 169 100,0 105 100,0

Feminino 26 83,9 47 66,2 47 70,1 94 68,1 120 71,0 72 68,6Masculino 5 16,1 24 33,8 20 29,9 44 31,9 49 29,0 33 31,4

Total 31 100,0 71 100,0 67 100,0 138 100,0 169 100,0 105 100,0

21 a 30 13 41,9 38 53,5 29 43,3 67 48,6 80 47,3 52 49,531 a 40 13 41,9 17 23,9 26 38,8 43 31,2 56 33,1 29 27,641 a 50 2 6,5 13 18,3 11 16,4 24 17,4 26 15,4 21 20,051 acima 2 6,5 3 4,2 1 1,5 4 2,9 6 3,6 3 2,9Não consta 1 3,2 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,6 0 0,0

Total 31 100,0 71 100,0 67 100,0 138 100,0 169 100,0 105 100,0Fonte: Banco de DadosDados (FCC/IFP).

Tabela 6: Caracterização da amostra por cor/raça

Tipo de bolsa

Sexo

Idade

Quando analisamos a composição do perfil dos candidatos de nossa amostra por

cor/raça, observamos diferenças que, por vezes, aproximam pretos e brancos, outras

vezes pardos e brancos e, outras vezes, pretos e pardos. Quanto ao tipo de bolsa,

notamos um percentual maior de candidatos ao doutorado entre brancos (32,3%),

seguidos dos pretos (29,6%), que se destacam dos pardos (17,9%). Quanto ao sexo, o

percentual de mulheres é pronunciadamente maior entre os brancos (83,9%) –

lembrando análise anteriormente mencionada por Rosemberg e Andrade, (2008) – que

entre pardos (70,1%) e entre pretos (66,2%). Além disso, são os candidatos pretos que

apresentam o maior percentual de jovens tendo entre 21 e 30 anos (53,5%), mas também

de candidatos de meia idade (18,3%), isto é, tendo entre 41 e 50 anos. Entre os

candidatos brancos, a igualdade na distribuição dos que têm entre 21 e 30 anos e 31 e 40

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159

anos (41,9%) pode ser associada ao maior equilíbrio entre as candidaturas para

mestrado e doutorado.

Finalmente, chamamos atenção para a categoria Negro 2 que introduzimos nessa

Tabela 6. Lembrando: o Formulário incluiu um campo (M) que solicita ao candidato

declarar com quais grupos-alvo do Programa IFP se identifica. Entre as alternativas,

encontra-se o termo negro. Este campo, e o uso aí do termo negro, constitui uma

estratégia metodológica da Equipe da Fundação Carlos Chagas para controlar a

“passagem da linha de cor por oportunismo”, ou para barrar negros” “de ocasião”,

conforme informamos na Introdução desta tese e que constitui um dos focos centrais de

nossa problematização.

Apesar de dedicarmos o próximo tópico à análise desta categoria, assinalamos

que o perfil dos que se identificaram como negros no campo M (Negro 2) se aproxima

mais do perfil dos que se autodeclaram pretos, do que dos pardos.

Em praticamente todas as categorias (com exceção mínima em sexo),

encontramos a seguinte sequência de proximidade na distribuição dos dados: preto,

negro 2, negro 1 e pardo. Esta proximidade na distribuição dos dados entre as categorias

preto e negro 2 pode ser explicada pelo maior número de pessoas pretas que se

identificaram como negras (Negro 2) do que entre os autodeclarados pardos, o que será

analisado no próximo tópico (tabela 6).

Em síntese, a caracterização do perfil da amostra de autores dos discursos que

analisamos aponta para: uma proximidade com o universo de candidatos ao Programa

IFP; um percentual predominante de autores pretos e pardos, que declararam pertencer

ao grupo-alvo negro; um predomínio de jovens e de mulheres. Além disso, notamos

variações no perfil de pretos e pardos, o que será uma constante na análise de todas as

demais categorias.

2.2 Como efetuam a declaração de pertença/identificação aos grupos-alvo

A preocupação com a passagem da linha de cor, em programas de ação

afirmativa, como vimos, é pertinente na implementação dessas experiências no Brasil,

na medida em que nossa classificação de cor/raça é “complexa e sofisticada”.

Para enfrentar essa complexidade, com o sugestivo título “O branco no IBGE

continua branco na ação afirmativa?”, Rosemberg (2004, p. 63) informa que foi

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160

introduzida a questão incluída no campo M do Formulário para Candidatura ao

Programa IFP, objeto de análise neste tópico.

Para triangulação, incluímos no questionário um campo inspirado em prática que vem se consolidando em programas de ação afirmativa brasileiros, para que a pessoa declare sua pertença racial quando, então, usamos o termo negro [...] Ao usarmos esta prática de triangulação, nossa busca é não incluir pessoas que passam a linha de cor por oportunismo. Além disso, nossa busca é não incluir perguntas que possam violentar o candidato(a).

Para a Equipe da Fundação Carlos Chagas, esta pergunta atuaria como filtro pois

inclui duas dimensões: de um lado, o uso do termo negro, e não mais os termos preto e

pardo; de outro, uma incitação aos candidatos que assumam sua responsabilidade

quando declaram que se identificam com este segmento racial (há alternativa

equivalente para os indígenas que devem informar a qual povo/etnia pertencem).

A sustentação para tal triangulação (pergunta no formato IBGE e solicitação de

declaração de pertença) provém, conforme Rosemberg (2004, p. 64), do trabalho de

Petruccelli (2001) sobre a Pesquisa Mensal de Empregos (julho de 1998), que efetuou

uma pergunta aberta (“qual a sua cor”), além da pergunta fechada tradicional do IBGE

que apresenta alternativas ao respondente. Com efeito, Petruccelli observou “que a

grande maioria das pessoas que responderam ‘parda’ na pergunta fechada, usaram

também denominações ‘intermediárias’ entre branco e negro na pergunta aberta”

(Rosemberg, 2004, p. 64). Ou seja, a tendência predominante da população brasileira é

que pessoas que se declaram pretas na pergunta fechada prefiram usar o termo negro na

pergunta aberta, o que não ocorre com os que se declaram pardos. Portanto, a autora

considera que, mesmo apoiando-se em indícios “metodologicamente fracos”, os

candidatos do IFP que se declaram pardos (pergunta fechada) e negros (campo M)

teriam uma identificação de pertença ao segmento negro mais consistente.

Com efeito, analisando os dados referentes aos 931 candidatos à seleção de

2003, Rosemberg (2004) observou que, dentre os 290 candidatos que optaram pela cor

preta, 97% se identificaram como negros no campo M; por outro lado, dentre os 304

candidatos que optaram pela cor parda, apenas 46% se identificaram como negros. Ou

seja, um número expressivo de candidatos pardos não declaram pertença ao segmento

negro focalizado pelo edital do Programa IFP. Entre os que optaram pela cor branca

(307 candidatos à seleção IFP 2003), apenas 3% se declararam negros no campo M, na

Seleção 2003 analisada por Rosemberg (2004).

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161

Tais observações de Rosemberg (2004) sobre o Programa IFP e as discussões

efetuadas na Introdução e nos dois primeiros capítulos desta tese, conduziram-nos a

considerar esta variável como de alta relevância em nossas análises sobre os discursos

dos candidatos. Por isto, esta variável foi adotada em todos os cruzamentos que

efetuamos e, como afirmamos, foi denominada Negro 2. Os resultados referentes a

nossa amostra foram transcritos na tabela 6, lembrando que a expressão “não consta”

significa que essas pessoas não declararam pertença a nenhum segmento étnico-racial e

que o termo “outros” significa que a declaração de pertença recaiu sobre a alternativa

indígena.

Dentre os 169 candidatos que compõem nossa amostra, 105, ou seja 62,1%,

declararam identificar-se como negros.

Fem

inin

o

Mas

culi

no

21 a

30

31 a

40

41 a

50

50 a

cim

a

Não

con

sta

Bra

nca

Pret

a

Pard

a

Neg

ro 1

Negro2 60,0 67,3 63,8 53,6 80,8 50,0 0,0 0,0 98,6 52,2 76,1 62,1

Outros 1,7 0,0 1,3 0,0 0,0 16,7 0,0 3,2 0,0 1,5 0,7 1,2

Não consta 38,3 32,7 35,0 46,4 19,2 33,3 100,0 96,8 1,4 46,3 23,2 36,7

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP)

Tabela 7: Declaração de pertença por sexo, idade e cor/raça (%)

Sexo Idade Cor/raça

Tot

al

Declaração de pertença

Analisando os dados da Tabela 7, observamos que, em nossa amostra, nenhum

candidato branco identificou-se como negro, 52,2% dos pardos e 98,6% dos pretos

identificaram-se, também, como negros.

Tendo-se esta alta associação entre cor autodeclarada e identificação, ou não,

com os grupos étnico-raciais alvo do Programa IFP – intensa entre os pretos,

intermediária entre os pardos e ausente entre os brancos –, o comportamento das demais

variáveis (sexo e idade) se adéqua ao que já havíamos apontado no item anterior. Ou

seja: proporcionalmente menor número de mulheres que de homens se identificaram

como negras; uma configuração oscilante conforme as idades, não obedecendo a um

padrão crescente ou decrescente de identificação como negro entre os candidatos.

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162

Porém, vale a pena notar aqui a alta porcentagem (80,8%) dos que identificaram como

negros que se situam na faixa etária entre 41 e 50 anos.

2.3. Como justificam a autodeclaração de cor/raça

Visando afinar o filtro para evitar passagens da linha de cor/raça “por

oportunismo”, o Formulário para Candidatura ao Programa IFP inclui uma pergunta, a

nosso ver, inédita: no campo referente à identificação, após o quesito “usando as

categorias do IBGE, assinale sua cor ou raça”, o Formulário inclui a pergunta “Por que

você indicou a categoria acima?” Conforme relatório (FCC, 2004), esta pergunta foi

incluída, também (mas não somente), para auxiliar os entrevistadores a abordarem o

tema durante a entrevista, nos casos em que se defrontassem com discrepância entre a

autodeclaração e a percepção que estariam tendo de pertença étnico-racial do candidato.

Como a literatura tem mencionado (NOGUEIRA, 1998), dispomos, no Brasil, de uma

etiqueta no trato de temas raciais, que orientam o que e como devemos nos comportar

na questão. Por isto, dispor de uma justificativa escrita pelo candidato no Formulário

podia constituir uma estratégia para o entrevistador iniciar uma conversa.

Ao qualificarmos a questão como inédita, nos apoiamos nas pesquisas e nos

estados das artes já mencionados (Capítulo 5, Parte I), nos quais não localizamos

inquéritos sobre as justificativas que sustentam as opções das pessoas pelas alternativas

postas pelo IBGE. De fato, há um consenso na literatura nacional, de que o modo

brasileiro de efetuar a declaração de cor/raça se assenta na aparência (FERNANDES,

1965; NOGUEIRA, 1998; GUIMARÃES, 1999). Daí a nomeação, por Oracy Nogueira

(1998) de “preconceito de marca”, em contraposição ao “preconceito de origem”.

Porém, também como vimos no capítulo (Capítulo 5, Parte I), alguns autores já

vinham assinalando um modo “misto” (PIZA e ROSEMBERG, 2002; SHERIFF, 2002)

de classificação de cor/raça.

Ao analisarmos as respostas de nossa amostra de candidatos ao Programa IFP

referentes a esta questão, encontramos uma pluralidade de justificativas, sendo que a

aparência não foi aquela predominante.

Antes de detalharmos os resultados transcritos na Tabela 8, é necessário

explicitar um procedimento que adotamos. A maioria das respostas informa apenas uma

razão para justificar porque escolheu a alternativa de autodeclaração (136 ou 80,5%).

Porém, dado o número de respostas a este quesito que explicitava duas categorias,

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163

decidimos alterar a unidade de análise para incluí-las. Portanto, na análise deste tópico,

efetuamos uma tabulação não tendo mais como unidade de registro o número de

Formulários, mas o número de alternativas apreendidas nas respostas à questão. Assim,

passamos de 169 respostas a 192 justificativas, ou seja, 136 justificativas provenientes

das respostas simples, mais 56 das respostas mistas.

Observamos nas respostas dos candidatos a esta questão aspectos notáveis: a

quase totalidade (97,0%) dos candidatos respondeu à questão; a justificativa mais

presente se baseia na origem, e não na aparência. De fato, o percentual de justificativas

na origem (35,4%) é quase o dobro do percentual obtido pela justificativa aparência

(19,8% das justificativas). Vejamos alguns exemplos de justificativas com base na

aparência e na origem.

“Pela cor da cútis” (M/23/branca/-) “Pela cor da pele” (F/34/branca/-) “Porque é minha cor de pele” (/28/preta/negro) “Por causa dos traços que carrego” (F/29/parda/negro) “Por ser filho e neto de casais negros” (M/29/preta/negro) “Porque os avós eram brasileiros (afrodescendentes) e italiano” F/24/parda/-) “Porque meus pais são brancos” (F/29/branca/-) “Devido às origens e miscigenações de meus ancestrais” (F/30/parda/negro) “Descendência paterna” (F/25/parda/-) “Herança genética, mãe morena, pai mulato” (F/28/preta/negro)

Categorias Sim

ples

Mis

ta

Tot

al

%Aparência 19 19 38 19,8

Origem 49 19 68 35,4

Documento 25 3 28 14,6

Cultura 2 7 9 4,7

Reafirmação 13 4 17 8,9

Postura política 17 4 21 10,9

Outros conteúdos 11 0 11 5,7

Total 136 56 192 100,0

Tabela 8: Distribuição de frequência das justificativas dadas à opção cor/raça

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164

Deve-se notar, ainda, o número expressivo (14,2%) de justificativas que se

apóiam em documentos, aspecto não localizado na bibliografia.

“É a informação que consta no meu registro de nascimento e entre as opções me parece a mais coerente” (M/37/parda/-) “Porque é a que consta na minha certidão de nascimento, porém esta caracterização não me agrada” (F/36/parda/negro)

Em quarto lugar situam-se as justificativas sustentadas em razões políticas

(10,7%).

“Dentre essas categorias é a que política e socialmente abarca minha autoidentificação” (F/24/preta/negro)

As justificativas que reafirmam a identificação obtiveram 8,6%: “Sou negro” (M/26/preta/negro). Finalmente, as justificativas que apelam por razões culturais foram as menos frequentes (4,6%).

“Levei em conta a cor da pele, compleição física, pertencimento cultural e social” (F/35/preta/negro) “Por apresentar traços físicos, repertório cultural e sentimento de pertencimento” (F/56/preta/negro)

De fato, tais resultados apelam por mais estudos: por exemplo, que documentos,

de onde, e de que modo “declaram” a cor/raça das pessoas. Além disso, tais resultados

intensificam os qualificativos “complexo e sofisticado” associados ao modo brasileiro

de classificação racial, sobretudo quando atentamos aos dados transcritos na Tabela 9.

Com exceção das respostas dos autodeclarados brancos e dos que se situam na faixa

etária acima de 50 anos, as justificativas apoiadas na origem são predominantes em

todos os demais subconjuntos de candidatos.

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165

Dec

lara

ção

Fem

inin

o

Mas

culi

no

21 a

30

31 a

40

41 a

50

51 a

cim

a

Não

con

sta

Bra

nca

Pret

a

Pard

a

Neg

ro1

Neg

ro2

Aparência 18,1 22,0 20,9 18,8 18,2 14,3 0,0 27,3 18,9 16,2 17,7 19,3 16,5

Origem 36,2 30,5 37,4 31,3 36,4 14,3 50,0 21,2 28,9 47,3 37,2 34,5 33,1

Documento 13,0 16,9 6,6 28,1 6,1 14,3 50,0 33,3 1,1 21,6 10,4 14,2 8,7

Cultura 5,1 3,4 5,5 3,1 6,1 0,0 0,0 3,0 7,8 1,4 4,9 4,6 6,3

Reafirmação 7,2 11,9 11,0 3,1 12,1 14,3 0,0 3,0 15,6 2,7 9,8 8,6 12,6

Postura política 11,6 8,5 14,3 4,7 9,1 28,6 0,0 0,0 22,2 1,4 12,8 10,7 15,7

Outros conteúdos 5,8 5,1 2,2 7,8 9,1 14,3 0,0 9,1 3,3 6,8 4,9 5,6 3,9

Sub-total 97,1 98,3 97,8 96,9 97,0 100,0 100,0 97,0 97,8 97,3 97,6 97,5 96,9

Não consta 2,9 1,7 2,2 3,1 3,0 0,0 0,0 3,0 2,2 2,7 2,4 2,5 3,1

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Tabela 9: Justificativas dadas à opçãocor/raça por sexo, idade, cor/raça e declaração de pertença

Sexo Idade Cor/raça

Tot

al G

eral

Categoria

Poder-se-ia imaginar, por exemplo, que nos subconjuntos preto e Negro 2 as

respostas referentes à origem remeteriam a ancestrais escravizados ou ao termo

afrodescendente. Analisando, porém, em detalhes as justificativas referentes à “origem”

nesses conjuntos de candidatos, encontramos algumas poucas respostas que adotam o

termo afrodescendente: ”sou descendente de afrobrasileiro” (F/50/preto/negro); ou se

referem à origem quilombola (“sou remanescente de quilombo, tenho o biótipo de raça

negra, pele preta e cabelo pixaim F/42/preta/negra), ou, ainda, a ascendência escrava:

“sou filha, neta, bisneta de negros e tataraneta de negros escravos” (F/33/preta/negro).

Alguns candidatos aproveitaram este campo para insurgir-se contra o modo de

inquirição do IBGE, ou contra o uso do termo preto e ausência da opção negro(a) dentre

as alternativas: “identifico-me como negra, apesar de a opção não constar nas

classificações oficiais do IBGE” (F/28/preta/negro).

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166

É necessário destacar, ainda, que os subconjuntos de candidatos autodeclarados

pretos e que se identificaram como negros (Negro 2) foram os que apresentaram os mais

altos percentuais de justificativas políticas e de reafirmação: “sou negro”

(M/26/preto/negro; “sou afrodescendente” (M/47/preta/negro); “porque me considero

um cidadão negro brasileiro” (M/27/preta/negro). Além disso, foram também os

subconjuntos de candidatos que menos se apoiaram em documentos para justificar sua

autodeclaração de cor/raça.

Finalmente, assinalamos que, se no tópico anterior (declaração de pertença aos

grupos-alvo do Programa IFP), o subconjunto de candidatos pretos respondeu quase que

homogeneamente negro ao campo M (“sou preto, portanto sou negro”), nesta questão

nota-se intensa variedade de respostas entre os pretos, a indicar, diferentes modos de

expressar sua identificação como negro. Este aspecto será tratado em maior

profundidade no próximo item que tem por foco os relatos relacionados às experiências

étnico-raciais.

Antes, porém, de passarmos para a descrição do próximo bloco de resultados,

vamos nos deter na análise da justificativa de autodeclaração pela origem.

Sugerimos, aqui, uma distinção (que não nos parece efetuada pela literatura),

entre modo de classificar a si mesmo e modo de classificar o outro105: sugerimos que a

classificação pela aparência seja o predominante quando atribuímos categoria de

cor/raça aos outros, posto que não temos, enquanto observadores dos outros, nada além

de sua aparência, a não ser nos casos em que conhecemos outros detalhes desses outros

(sua família, por exemplo). Porém, no caso de autodeclaração, os modos que nos levam

à opção por uma das alternativas na terminologia racial, parecem se originar de

múltiplas raízes. Lembramos, aqui, a pesquisa de Sheriff (2002) em “morro carioca”,

mencionada no Capítulo 5, quando interpreta a fala de Ana Lúcia, uma das moradoras

locais (“Quando a gente se reúne e você olha bem, tem mistura do negro no meio. Sabe

que tem negro na família”):

Nesses comentários Ana Lúcia refere-se a si mesma como de raça negra. Ela refuta, ao menos parcialmente, a noção de que, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a identidade racial é determinada não pela família ou pelo parentesco, mas pela cor da pessoa (SHERIFF, 2002, p. 231).

105 Note bem: nossa questão aqui não é discutir se a categoria usada na auto e heteroclassificação são ou não coincidentes. Sobre este aspecto dispõe-se de literatura especialmente os trabalhos de Telles (2002).

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167

Em suma, nossos resultados também apontam nesta direção, apelando por novos

estudos no campo da classificação por cor/raça.

2.4 Relatos sobre experiências/vivências étnico-raciais

Descrevemos, nesta seção, os discursos sobre as experiências ou vivências

étnico-raciais relacionadas à pertença dos candidatos proferidos no campo “N” do

Formulário. Foram analisados 169 (cento e sessenta e nove) textos, que já se

encontravam digitalizados, por isto a necessidade de se fazer o uso da expressão “sic”

alguma poucas vezes, não para menosprezar os candidatos, mas pela dificuldade de

identificar se o texto, como está apresentado, foi produzido pelo candidato ou decorre

da transcrição feita pelo bureau de digitação contratado pela Fundação Carlos

Chagas106.

Originalmente, os textos são manuscritos, estratégia empregada para

mobilização do candidato e para mostrar que os relatos são valorizados pela Equipe da

Fundação Carlos Chagas. São relatos curtos (em média menos de 100 caracteres por

relato digitado), em sua maioria escritos em primeira pessoa (74,1%). Muitos são

densos, alguns poucos telegráficos e burocráticos. Para um ou outro poderia usar o

adjetivo desinteressante. Outros me tocaram, especialmente aqueles com os quais pude

me identificar e reconhecer uma trajetória equivalente àquela relatada. Alguns

candidatos deixaram de preencher o campo, o que ocorreu particularmente entre

brancos, como veremos adiante. Poucos relatos (5,3%) tocam no tema da ação

afirmativa, o que causou certa estranheza. O fato é que constituem um conjunto de

produções discursivas que apresenta intensa variação interna. A seguir, alguns

exemplos. 107

“Sou filho de descendentes de negro e índios, meus pais foram trabalhadores rurais, minha mãe toda vida foi doméstica. Não foram alfabetizados, meu pai foi bóia-fria. Atuei em comunidades que tinham forte tradição afro-descendente. Hoje, na Secretaria, trabalho com a diversidade do campo que envolve indígenas, campo e quilombolas. Cabe à minha coordenação desenvolver propostas com os grupos quilombolas. Hoje vejo um meio de resgate, conhecimento e valorização das origens”. (M/44/preta/negro) “A sociedade brasileira é muito racista, não apenas de cor, mas também de classe social dentre outros. Ficamos, como sempre [...] de lado por muitas empresas e até instituições”. (F/28/preta/negro)

106 Não tive acesso aos manuscritos, pois não se dispõe, ainda, de norma internacional no Programa IFP para o acesso aos textos manuscritos. 107 Serão utilizados, como exemplos, relatos completos ou fragmentos dos mesmos, visando ilustrar os pontos considerados. Serão suprimidos nomes de lugares de instituições, no intuito de preservar informações que possibilitem a identificação do autor do relato.

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168

”Filha de homem negro, sendo pertencente à etnia negra, tenho vivenciado momentos de preconceitos e racismos velados e explícitos. Já perdi oportunidade de emprego nas universidades públicas e privadas, devido à minha cor de pele. Sofro exclusão social, zombarias, perseguições/humilhações desde a infância até então.” (F/53/preta/negro) “Quando fui morar em X, tive de comprovar que o fato de ser nordestina e [...] não interfere na minha capacidade e na minha competência profissional. A dedicação e o compromisso demonstrados nos desenvolvimentos das atividades profissionais, como, também, a facilidade e o bom relacionamento com colegas e superiores foram fatores diversos para superar as barreiras étnicas por mim enfrentadas.” (F/29/branca/-) “Até hoje nunca tive nenhuma experiência negativa com relação ao meu pertencimento étnico-racial. Não costumo militar em grupos anti-racismo porque acredito que a dificuldade venha principalmente da falta de oportunidades, que, historicamente, neste universo, existem com o acesso à educação e informação, que é negado às pessoas de baixa renda.” (F/31/parda/negro) “Apesar de me considerar pertencente à raça negra, nunca sofri nenhuma espécie de preconceito declarado.” (M/25/pardo/negro) “Minha experiência como coordenadora técnica há 8 anos na X, equipamento de acolhimento destinado a X. No período em gestão, cerca de 90% de X são de origem afrodescendente, sendo as mesmas discriminadas em espaços tais como escola, cursos ou mesmo no processo de famílias substitutas. Essas jovens têm baixo autoestima e consideram-se inferiores por serem negras.” (F/43/preta/negro)

a) Presença/ausência de relatos sobre experiências/vivências étnico-raciais.

Iniciaremos a análise discutindo a presença ou ausência de relatos conforme o

perfil dos candidatos (Tabela 10).

Tabela 10: Presença/ausência de relato sobre experiências/vivências relacionadas à

pertença étnico-raciais por sexo, idade, cor/raça e declaração

Categoria Com relato %

Sem relato %

Total %

Sexo Feminino Masculino

105 42

87,5 85,7

15 7

12,5 14,3

120 49

100,0 100,0

Idade 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 acima Não consta

70 48 23 5 1

87,5 85,7 88,5 83,3 100,0

10 8 3 1 0

12,5 14,3 11,5 16,7

-

80 56 26 6 1

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Cor/raça Branca Preta Parda

23 67 57

74,2 94,4 85,1

8 4

10

25,8 5,6

14,9

31 71 67

100,0 100,0 100,0

Negro 1 Negro 2

124 96

89,9 91,4

14 9

10,1 8,6

138 105

100,0 100,0

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169

Ao todo, 22 candidatos (13,0%) não incluíram relatos sobre suas

experiências/vivências relacionadas à pertença étnico-raciais no Formulário para

Candidatura ao Programa IFP. Para todas as variáveis referentes ao perfil dos

candidatos, com exceção de cor/raça, notamos pequena variação interna (entre 11,5% e

16,7%). Isto é, o percentual de homens e mulheres que não redigiram relatos é muito

semelhante (12,5% e 14,3%, respectivamente), bem como são semelhantes os

percentuais relacionados às faixas etárias. Porém, a variação é bem maior quando se

considera a autodeclaração de cor: no extremo superior, 25,8% dos candidatos brancos

omitiram relatos sobre experiências étnico-raciais contra 5,6% de candidatos pretos.

Candidatos pardos situam-se em posição intermediária entre brancos e pretos (14,9%

sem relatos), posição esta que se repete no transcorrer desta análise de resultados, o que

será comentado ao final deste capítulo. A notar, ainda, que apenas 8,6% dos candidatos

que se identificaram como negros (Negro 2) não redigiram relatos sobre suas

experiências étnico-raciais, o que os aproxima dos pretos.

Quanto à relativa maior ausência de relatos sobre experiências étnico-raciais nos

formulários de candidatos brancos, remetemos à ainda reduzida, mas instigante,

literatura brasileira (BENTO, 2002) sobre branquitude e branquidade. É necessário,

porém, destacar que alguns candidatos brancos relatam experiências que, para eles, se

configuram como étnico-raciais, particularmente referenciadas à própria origem

regional.

“Não estava sendo verdadeira se afirmasse ter sido discriminada ou excluída por uma questão étnico-racial. [...] Outro aspecto tem impacto maior como ser nordestina, mulher e jovem [...]”. (F/30/parda/-)

A análise que segue discutirá os focos e os temas apreendidos nos relatos dos

candidatos sobre suas experiências étnico-raciais.

b) Em que pessoa o relato foi enunciado108

Ao analisarmos o Formulário para Candidatura, observamos que a quase

totalidade das perguntas usa os pronomes “você” e/ou “seu, sua”, por exemplo:

“Você morou em outro estado ou país?”; “Atualmente você tem dependentes?”; “Sua língua materna é”; “Você exerce alguma atividade de liderança nesse trabalho?”; “Relate e comente os desafios que você tem enfrentado em seu percurso educacional, social e profissional”.

108 A partir deste item, a não ser que seja mencionado algo em contrário, a base para o cálculo das porcentagens elimina os Formulários que não dispõem de relatos referentes a experiências/vivências étnico-raciais.

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170

Ou seja, são raros os campos/quesitos do Formulário que adotam um enunciado

que não utilize você/seu/sua. Citamos como exceções os quesitos sobre identificação, ou

enquadres referentes a RG, CPF, RNE: sexo, idade, data e local de nascimento, local de

residência estão desacompanhados dos termos você/seu/sua. Portanto, parece-nos

legítimo concluir que o Formulário adota um estilo que focaliza o eu dos candidatos.

A formulação do principal quesito que selecionamos para análise nesta tese não

foge à regra: assim, as páginas 21 e 22, portanto, ao final do Formulário, encontra-se o

Campo N “Relatos Pessoais”. O quadro 3 desse campo apresenta uma redação que,

também, apela pelo envolvimento ao eu do candidato: “Relate suas experiências ou

vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial” (Formulário para

Candidatura, p. 22, grifos nossos).

Portanto, não foi surpresa constatarmos que a grande maioria dos relatos foram

enunciados exclusivamente na primeira pessoa do singular (74,1%).

“Até os 17 anos, o fato de ser mulher negra me marcou de forma muito negativa [...] nas festas, eu quase nunca era tirada para dançar, eu conseguia a atenção dos colegas quando me sobressaia [...]”. (F/35/preta/negro) “Quando fui morar em X, tive de comprovar que o fato [...]”. (F/29/branca/-) “Com relação à etnia, meu cabelo crespo e comprido é motivo para muitos me agredirem com piadas de mal gosto. Mas prefiro os elogios [...]”. (M/37/parda/-)

Um percentual reduzido de relatos (25,8%) adotou mais de uma pessoa em seu

enunciado:primeira e terceira do singular, primeira do singular e do plural, etc.

“Uma experiência que merece ser ressaltada, foi quando iniciei o meu namoro com minha esposa (cor branca) que tem descendência portuguesa. Sua mãe, ou melhor, minha sogra (cor branca), já falecida, tinha certas restrições quanto ao namoro com um rapaz de ‘cor’ [...]”. (M/43/preta/negro)

No conjunto dos relatos, alguns poucos (15 ou 10,2%) são enunciados também

na primeira pessoa do plural, o que pode remeter a um nós coletivo, como no excerto

abaixo.

“Na minha trajetória acadêmica, como de praxe, tive a oportunidade de uma ampla absorção ao saber [...] Durante o período do diretório acadêmico de X, juntamente com outras representações, organizávamos a festa da Consciência Negra [...]. Já em X, resolvemos oficializar o grupo de estudo negro [...]”. (F43/preta/negro)

Analisando a distribuição do uso das pessoas gramaticais pelo perfil dos autores

dos relatos (Tabela 11), encontramos resultados bem interessantes.

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171

Tabela 11: Pessoas gramaticais enunciadas nos relatos por sexo, idade, cor/raça e

declaração de pertença

Pessoas gramaticais Categoria Exclusivamente

1ª do singular %

1ª do plural

%

Outras combinações %

Total

% Sexo Feminino Masculino

79 30

75,2 71,4

8 7

7,6

16,7

18 5

17,1 11,9

105 42

100,0 100,0

Idade 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 acima Não consta

51 37 16 4 1

72,8 77,1 69,6 80,0 100,0

7 6 2 0 0

10,0 12,5 8,7

- -

12 5 5 1 0

17,1 10,4 21,7 20,0

70 48 23 5 1

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Cor/raça Branca Preta Parda

20 45 44

87,0 67,2 77,2

1 10 4

4,3 14,9 7,0

2

12 9

8,7 17,9 15,8

23 67 57

100,0 100,0 100,0

Negro 1 Negro 2

89 69

71,8 65,7

14 12

11,3 11,4

21 24

16,9 22,8

124 105

100,0 100,0

De início, observamos intenso predomínio de relatos construídos exclusivamente

na primeira pessoa do singular em todos os subconjuntos de autores. Além disso,

observamos percentuais próximos em todos os subconjuntos de autores com exceção

dos relatos de autores na faixa etária de 41 a 50 anos, brancos, pretos e que se

identificaram como negros (Negro 2). Dentre eles, autores brancos construíram, mais

freqüentemente que os demais, relatos exclusivamente na primeira pessoa do singular

(87,0%) e bem menos que os demais relatos usando a primeira pessoa do plural (4,3%).

No outro extremo, se situam os relatos de autores pretos e os que se identificaram como

negros (Negro 2), que apresentam o menor percentual de relatos na primeira pessoa do

singular, e percentual mais alto em relatos empregando na primeira pessoa do plural ou

em outras combinações (primeira pessoa do singular associada a terceira pessoa do

singular).

Uma análise interna desses relatos mostrou que, entre aqueles que empregam a

primeira pessoa do plural, encontramos enunciados que se referem a um eu coletivo,

como nos exemplos abaixo.

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172

“Descoberta de meu pertencimento étnico-racial deu-se recentemente numa das tantas manifestações que nós mulheres negras passamos”. (F/50/parda/negro) “Quando jovem, participei de um grupo de consciência negra, onde discutíamos cultura, educação, problemas, soluções da nossa gente [...]”. (M/31/preta/negro)

Vale destacar, antes de concluir este tópico, que os percentuais referentes ao

emprego da primeira pessoa do singular em relatos de autores autodeclarados pardos

(77,2%) se situam exatamente entre os de autores brancos (87,0%) e os de autores

pretos (67,2%), bem como os percentuais referentes ao uso da primeira pessoa do

plural: 4,3% entre brancos, 7,0% entre pardos e 14,9% entre pretos.

c) Os focos dos relatos

Se atentarmos, novamente, ao campo N do Formulário para Candidatura,

observamos que sua formulação não solicita um relato sobre as “experiências/vivências

étnico-raciais”, mas solicita relato de “experiências ou vivências relacionadas a seu

pertencimento étnico-racial”. Apesar da sutil diferença, consideramos que a redação da

solicitação no Formulário abria possibilidades para que o candidato focalizasse temas

para além do étnico-racial. Porém, a esmagadora maioria de candidatos de nossa

amostra (85,7%) optou pelo foco no tema das relações étnico-raciais.

“Filha de homem negro, sendo pertencente à etnia negra, tendo vivenciado momentos de preconceitos e racismos velados e explícitos” (F/53/preta/negro) “É muito complicado falar deste assunto quando se sofre preconceito dentro da própria família, já que não se tem claro a qual grupo étnico-racial pertence [...]” (F/50/parda/negro)

Nesses relatos, encontramos, via de regra, o emprego dos termos raça, etnia, por

vezes cor e de um vocabulário racial bastante reduzido. Assim, verificamos que o termo

negro(a) – no singular ou plural – é o que apareceu em maior número de relatos

(61,9%), seguido de branco(a) – também no singular ou no plural – que apareceu em

12,9% dos relatos. Já o termo afrodescendente foi usado em 10,9% dos relatos;

indígena(s) (8,8%) foi usado em maior número de relatos que índio(a) – no singular ou

no plural (6,1%). Preto e pardo foram os termos que menos apareceram nos relatos

(2,0% cada um deles).

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173

Tais resultados convergem para aspectos já assinalados na literatura: a variação

do vocabulário de cor/raça conforme o contexto em que ele é empregado (SHERIFF,

2002; SANSONE, 2003 entre outros).

Alguns poucos relatos (14,3%) têm outro foco que não o tema das relações

étnico-raciais, tratando, principalmente, de desigualdades econômicas. Com freqüência,

nesses casos, não ocorre menção aos termos raça, etnia, racismo, tampouco uso de

vocabulário racial.

“A comunidade onde desenvolvo meu trabalho é bastante carente e a maioria de baixa renda, onde poucos têm chance em prosseguir os estudos”. (F/38/parda/-) “Com a vivência que tenho com a cultura popular, teatro, dança e literatura, venho desenvolvendo ações culturais que põem em discurso algumas ideologias, angústias e anseios do grupo ao qual pertenço”. (M/34/parda/negro)

Na Tabela 12 transcrevemos os resultados referentes aos focos dos relatos

conforme variáveis relativas ao perfil de seus autores.

Tabela 12: Foco dos relatos por sexo, idade, cor/raça e declaração de pertença.

Focos

Categorias

Étnico-racial %

Outros %

Total %

Sexo Feminino Masculino

90 36

85,7 85,7

15 6

14,3 14,3

105 42

100,0 100,0

Idade 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 acima Não consta

60 39 22 4 1

85,7 81,3 95,6 80,0 100,0

10 9 1 1 0

14,3 18,7 4,3 20,0

0

70 48 23 5 1

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Cor/raça Branca Preta Parda

12 65 49

52,2 97,0 86,0

11 2 8

47,8 3,0 14,0

23 67 57

100,0 100,0 100,0

Negro 1 114 91,9 10 8,1 124 100,0 Negro 2 92 95,8 4 4,2 96 100,0

Aqui, também, notamos uma forte homogeneidade quanto aos percentuais

auferidos por relatos focalizados em temas étnico-raciais em todos os subconjuntos de

autores (percentuais entre 80% e 86%). Três subconjuntos se destacam, porém: de um

lado, autores tendo entre 41 e 50 anos, os que se autodeclarados pretos ou que se

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174

identificaram como negros (Negro 2), cujos percentuais de relatos focados em temas

étnico-raciais ultrapassam os 90%; de outro, os autores autodeclarados brancos, cujos

relatos com foco em temas étnico-raciais atingiram o percentual mais baixo (52,2%).

Novamente, os autores pardos se situam em posição intermediária entre brancos e pretos

(86,0%), desta feita mais próximos de pretos.

Quando o foco do relato se dirige a outras questões (14,3%), os temas

privilegiados referem-se à atividade profissional, condições econômicas ou à cultura.

Alguns exemplos:

“Na condição de imigrante, de certo modo, encontrei algumas resistências, em especial no ambiente de trabalho [...]”. (F/50/branca/-) “Por ser cidadão de classe baixa, não dispunha de renda suficiente para custear os meus estudos e por isso tive que me individar para custear os meus estudos e por isso tive que me individar com o crédito educativo (FIES), como morador de subúrbio enfrentei obstáculos relativos ao transporte coletivo [...]”. (M/23/branca/-) “As discriminações que sofri foram mais referentes à desigualdade social [...]”. (F/33/parda/negro)

Dentre os 21 autores de relatos que focalizam outros temas, onze (52,4%)

autodeclaram-se brancos, oito pardos (38,1%) e apenas dois pretos (9,5%), bem como

cinco dos que se identificaram como negro (Negro 2).

Dentre os relatos com foco em questões étnico-raciais (126), aprofundamos a

análise em busca de seus temas centrais. Conforme descrevemos no tópico 1.2 (p. 145),

criamos seis categorias que nos pareceram melhor articular nossos objetivos, referencial

teórico e as formas simbólicas sob análise (os relatos). Para facilitar o trabalho do leitor,

reproduzimos no quadro abaixo, essas categorias, sua definição, um exemplo, bem

como sua freqüência simples no conjunto de 126 relatos que focalizam temas étnico-

raciais.

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175

Quadro 9 – Temas em relatos com foco étnico-racial

Categoria/definição

Frequência

Discriminação/preconceito étnico-racial no geral, contra familiares, negros em geral ou contra o próprio candidato. Exemplo: “Há duas experiências constrangedoras e marcantes em minha vida. A primeira [...] quando meu namoro de quatro anos teve que terminar porque a família dele não aceitava o namoro dele com uma negra [...]”. (F/41/parda/negro)

40 31,7%

Pertencimento: reiteração da pertença étnico-racial. Exemplo: “A minha vida esteve sempre próxima de meu povo, minha raça e minha família. Tive a oportunidade de conhecer as diversidades étnico-raciais que existem em nosso país [...]”. (F/32/branca/-)

39 30,9%

Ação de enfrentamento ao racismo Exemplo: “[...] vejo com uma certa aflição como são enormes nossos desafios [...]. A cada manhã peço forças para lutar por mais um dia [...]”. (M/26/preta/negro)

20 15,9%

Nunca “sofreu problema” étnico-racial Exemplo: “Apesar de me considerar pertencente à raça negra, nunca sofri nenhuma espécie de preconceito declarado.” (M/25/parda/negro)

13 10,3%

Foco étnico-racial relacionado à atividade profissional Exemplo: “Quando recebo alunos carentes e/ou negros [...] percebo um certo constrangimento de alguns [...]”. (F/38/branca/-)

12 9,5%

Foco étnico-racial relacionado à atividade cultural Exemplo: “Participei do grupo de capoeira X” (F/28/preta/negro)

2 1,6%

Dentre os relatos com foco étnico-racial e que tematizam a discriminação (40 ou

31,7%), apreendemos maior frequência de narrativas que descrevem discriminações

sofridas pelo próprio autor (25). Uma síntese deles retrata as diversas manifestações de

racismo interpessoal, desde injúrias raciais, passando por preterição na escola, na

universidade, no elevador, no trabalho, nas festas ou nas relações amorosas. Não raro

utilizam o adjetivo “doloroso(a)” para qualificar as experiências. Outras vezes, o relato

retrocede à infância e percorre a trajetória de vida, como no exemplo a seguir.

“Ouvi desde criança que meu cabelo era ruim, na adolescência sentia-me feia e ausente e não compreendia o porque da minha depressão. Quando passei a me definir como negra em público, cheguei mesmo a perder colegas e (naturalmente) oportunidades de trabalho, mas a experiência que mais me marcou vivi aos vinte e cinco anos, quando, acreditava já ter elaborado definitivamente a questão, namorava um canadense e tentaram dificultar minha entrada no hotel em que ele estava hospedado, mesmo no ambiente de ativistas de direitos humanos sinto o racismo cordial presente, o que é assustador.” (F/29/parda/negro)

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176

Quando analisamos os temas centrais nos relatos com foco étnico-racial

cruzados pelo perfil de seus autores, observamos, também aqui, a repetição da tendência

anteriormente mencionada: os subconjuntos de autores de relatos autodeclarados pretos

ou que se identificam como negros (Negro 2) se diferenciam de autores brancos (Tabela

13).

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ANTÔNIO HONÓRIO FERREIRA – AGOSTO/2010

1

Tabela 13: Temas dos relatos com foco étnico-racial por sexo, idade, cor/raça e declaração de pertença

Temas

Categorias

Pertencimento %

Discriminação %

Enfrentamento %

Nunca “sofreu” %

Cultural %

Profissional %

Total %

Sexo Feminino Masculino

27 12

30,0 33,3

30 10

30,0 27,8

16 4

17,8 11,1

9 4

10,0 11,1

1 1

1,1 2,8

7 5

7,8

13,9

90 36

100,0 100,0

Idade 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 acima Não consta

22 9 8 0 0

36,7 23,1 36,4

0 0

17 14 6 3 0

28,3 35,9 27,3 75,0

0

11 5 3 1 0

18,3 12,8 13,6 25,0

0

6 5 1 0 1

10,0 12,8 4,5 0

100,0

2 0 0 0 0

3,3 0 0 0 0

2 6 4 0 0

3,3

15,4 18,2

0 0

60 39 22 4 1

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Cor/raça Branca Preta Parda

3 20 16

25,0 30,8 32,6

4 22 14

33,3 33,8 28,6

0

15 5

0

23,1 10,2

2 2 9

16,7 3,1

18,4

1 1 0

8,3 1,5 0

2 5 5

16,7 7,7

10,2

12 65 49

100,0 100,0 100,0

Negro 1 Negro 2

36 28

31,6 30,8

36 29

31,6 31,9

20 20

17,5 21,9

11 7

9,6 7,7

1 1

0,9 1,1

10 6

8,8 6,6

114 91

100,0 100,0

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178

Dentre as análises efetuadas até o momento a partir de cruzamentos entre

categorias discursivas e perfil dos autores, talvez tenha sido esta relativa ao tema

discutido nos relatos com foco étnico-racial a que apresentou maior heterogeneidade

interna. Assim, apesar de observarmos proximidade nos temas centrais dos relatos de

candidatos homens e mulheres, notamos que as autoras (17,8%), mais que os autores

(11,1%), tratam do enfrentamento ao racismo. Evocamos o artigo de Telles (2002), no

qual, analisando resultados da pesquisa do Datafolha de 1995, “Racismo Cordial”,

encontrou percentual maior de mulheres que de homens que se autodeclararam negras e

dá a seguinte interpretação: “pode ser uma reação [das mulheres] à maior discriminação

que sofrem por serem mulheres e negras” (TELLES, 2002, p. 29). Se esta interpretação

for correta, talvez possamos acrescentar que tais experiências levariam-nas a relatar

maior enfrentamento ao racismo. Por outro lado, eles mais do que elas, tratam das

relações étnico-raciais no âmbito de atividades profissionais, o que também não seria

inusitado encontrar-se.

Nos subconjuntos etários, excluindo da análise os autores com 51 anos e mais

dado seu reduzido número (apenas 4), não observamos uma tendência constante

conforme o aumento ou a diminuição da idade. Porém, novamente, o subconjunto

relativo à faixa etária entre 41 e 50 anos destaca-se por apresentar o menor percentual

(4,5%) na categoria “nunca sofreu discriminação/preconceito/racismo”. Notamos,

também, que o conjunto de autores mais jovens, raramente (3,3%) construiram relatos

focando o tema de experiências/vivências étnico-raciais em contexto profissional, o que

se pode facilmente entender.

No que diz respeito ao subconjunto de autores organizados em torno da

autodeclaração de cor/raça, autores pretos se destacam por serem aqueles que, mais

freqüentemente que os demais (23,1%), proferiram discursos tematizando o

enfrentamento à discriminação étnico-racial. Além disso, raros autores pretos (3,1%)

informaram, em seus relatos, que não “sofreram problemas” no âmbito das relações

étnico-raciais. Comparando-se os temas centrais nos relatos de autores autodeclarados

pretos e aqueles que se identificaram como negros (Negro 2), observa-se intensa

semelhança. Por outro lado, os temas centrais privilegiados nos relatos do subconjunto

de autores autodeclarados pardos se distanciam daqueles privilegiados por autores

pretos. Além disso, curiosamente, autores pardos tematizaram menos que autores

brancos a discriminação étnico-racial. Ou seja, quando candidatos brancos elaboram

relatos relacionados a vivências/experiências étnico-raciais (lembrar que vários

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179

candidatos brancos não redigiram relatos), e quando seus relatos têm por foco questões

étnico-raciais, situam a discriminação/preconceito/racismo como tema central mais que

autores pardos. Por outro lado, autores pardos, nos relatos que focalizam questões

étnico-raciais, tendem, um pouco mais que autores brancos (18,4% entre pardos e

16,7% entre brancos) a informar que nunca sofreram/enfrentaram, pessoalmente,

preconceitos, discriminações ou exposições ao racismo.

Foi possível identificar um padrão entre autores pardos que, mesmo focalizando

sua pertença ou origem negra, realçam, em seus relatos, que as discriminações sofridas

não teriam sido raciais, mas econômicas e sociais.

“Sou pardo, descendente de negros e índios [...] de X. Mas, sinceramente, nunca expus isso para adquirir qualquer vantagem em qualquer processo. Nunca me sentid discriminado por isso, mas estou atento que minha condição social é fator que diminui oportunidades.” (M/34/parda/-) “Apesar de ter sofrido muitas necessidades no decorrer da minha formação, e de ser descendente de negro, nunca sofri preconceito, sempre tive uma boa relação na academia. O preconceito que sofri foi em decorrência da posição social que minha família ocupa, isto é, venho de uma família carente, filha de lavadeira.” (F/31/parda/negro) “Observo que durante a minha jornada enquanto estudante, não tive discriminação em relação a pertencer a grupos étnicos, mas sim por não ter uma boa condição financeira [...].” (F/37/parda/-) “Apesar de me considerar pertencente raça negra, nunca sofri nenhuma espécie de preconceito declarado.” (M/25/parda/negro) “Não tenho tido durante minha vida problemas relacionados com a minha etnia/raça, sempre tenho sido respeitada e bem acolhida por onde passo. Meus maiores problemas estão mesmo relacionados com questões financeiras, como já havia citado antes. Minha vida tem caminhado, apesar das dificuldades, não precisei parar em nenhuma etapa da minha vida, com muita luta e perseverança tenho conseguido chegar no lugar que almejo.” (F/24/parda/negro)

Mais uma vez recorremos ao texto de Munanga (1988): todos esses exemplos

provém de autores(as) que se autodeclararam pardos e se identificaram como negros no

Campo M referente à declaração de pertença aos grupos-alvo do Programa IFP. Isto é, a

cada etapa da análise, deparamo-nos com a diversidade de construções discursivas de

candidatos que, no Formulário para Candidatura ao IFP, se autodeclararam pretos ou

pardos ou que se identificaram como negros (Negro 2). Tal diversidade de modos de

expressar as experiências/vivências étnico-raciais fica mais evidente, ainda, quando

analisamos os relatos usando a tipologia inspirada em Cross Jr (1991), com foco na

negritude, o que será tratado no próximo tópico.

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180

d) Tipologia discursiva referente à negritude

Conforme anunciado no Capítulo 2, da Parte II e no item 1.2, deste capítulo,

inspiramo-nos em Cross Jr (1991) para esboçar uma tipologia de “negritude” capaz de

apreender a variedade de expressões dos candidatos ao Programa IFP do que é ser

negro.

Porém, a tipologia que propomos apenas inspira-se nos “estágios de

desenvolvimento da identidade negra (Black)” elaborado por Cross Jr (1991, p. 190-

223), na medida em que abandonamos a idéia de estágios evolutivos e focamos nossa

análise na descrição de tipos de discursos e não em identidades de pessoas. Com efeito,

seria teórica, metodológica e eticamente insustentável efetuar interpretações sobre a

subjetividade dessas pessoas com base em fragmentos de discursos.

Ainda lembrando o que já foi enunciado, não procuramos localizar nos discursos

aqui analisados todos os tipos (estágios) enunciados pelo autor, mas nove tipos ou

configurações discursivas referentes à negritude. Lembramos, ainda, que as análises

efetuadas focalizarão 147 relatos. Diferentemente da análise dos itens anteriores

referentes ao foco e aos temas, aqui não excluiremos os relatos que não trataram de

temas étnico-raciais, posto que “omissão” constitui uma das categorias previstas na

tipologia.

Seria possível indagar, então, por que também não incluímos na categoria

omisso, os Formulários para Candidatura que não continham relato sobre

vivências/experiências relacionadas ao pertencimento étnico-racial. Nossa interpretação

é que não podemos supor a presença da categoria “omissão” em texto inexistente, posto

que a inexistência de relato pode ser atribuída a outras razões, como descuido do

candidato no preenchimento do Formulário. Conforme relatório anual da Seção

Brasileira do Programa IFP à coordenação geral (FCC, 2007), foram observados vários

casos de descuido na montagem de dossiês para candidatura, inclusive ausência de

assinatura do candidato no Formulário, o que constitui razão suficiente para sua

eliminação do processo seletivo.

Resta-nos, ainda, justificar porque nos autorizamos a construir uma tipologia de

relatos focalizando o tratamento discursivo dado à “negritude” em programa de ação

afirmativa destinado a negros e a indígenas, entre outros segmentos sociais. Como

informado na introdução desta tese, do universo de Formulários para Candidatura a

Seleção 2007 do Programa IFP no Brasil, retivemos apenas aqueles de candidatos

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181

negros e brancos, estes últimos mantidos porque poderiam constituir um grupo

contrastivo a pretos e pardos.

Explicitadas e justificadas nossas ponderações e decisões teóricas e

metodológicas, passemos à descrição dos resultados. No Quadro 10 descrevemos os

tipos, acompanhados de exemplo e da freqüência que obtiveram a partir da análise dos

147 relatos.

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182

Quadro 10 – Tipologia discursiva referente à negritude em relatos relacionados a

vivências/experiências étnico-raciais

Tipologia

Frequência

Omisso: quando o relato não se refere aos negros ou a relações raciais entre brancos e negros. “Ao trabalhar com a população de baixa renda, percebe-se que os indivíduos carecem de atenção e de informação. Muitas vezes podemos observar que os mesmos possuem algum tipo de informação sobre saúde e alimentação. [...]”. (F/26/branca/-)

35 23,8%

Transcendente: o relato privilegia uma humanidade abstrata “Já sofri algum tipo de preconceito relacionado ao meu grupo étnico-racial, e mesmo assim sou convicto de que a harmonia entre os seres humanos é a melhor solução para o convívio mais humano, independente do grupo étnico-racial a qual pertença”. (M/36/parda/-)

8 5,4%

Centrado no estigma: o relato realça apenas aspectos negativos da identificação étnico-racial “A vivência de pertencimento racial de uma pessoa negra em um país racista como o Brasil e o relato de experiências discriminatórias. [...]” (M/29/preta/negro)

25 17,0%

Simpatizante: o relato trata de experiências étnico-raciais a partir da ação de terceiros ou na cultura negra/indígena em geral ou da atividade profissional “Fiz aulas de dança e percussão num grupo afro X. Joguei capoeira 6 anos de minha [...]. Toquei 3 anos no maracatu X. Essas 3 atividades todas na comunidade de X”. (M/22/branca/-)

37 25,2%

Centrado na constatação: o relato apenas apresenta uma situação étnico-racial discriminatória sem, contudo, apontar envolvimento em sua superação “Sou pardo, descendente de negros e índios bororos do Mato Grosso, mais sinceramente nunca expus isso para adquirir qualquer vantagem em qualquer processo, nunca me senti discriminado por isso, mas estou atento que minha condição social é fator que diminui oportunidades”. (M/34/parda/-)

6 4,1

Político: o relato foca a militância política ou acadêmica no trato de questões étnico/raciais “Participação nas discussões do Movimento Negro Unificado em X (onde firmamos parceria com o X). Participação em eventos e discussões acerca da problemática que envolve a comunidade negra. [...]” (F/24/parda/negro)

27 18,4%

Entusiasmado: o relato é entusiasmado por causa de recém descoberta da negritude “A descoberta do meu pertencimento étnico-racial deu-se recentemente numa das tantas manifestações que nos mulheres negras passamos. [...]” (F/50/parda/negro)

3 2,0%

Grupocentrado: o relato focaliza exclusivamente o próprio grupo étnico-racial como importante “Como eu tive uma criação humilde, procuro, mesmo que eu tenha uma evolução profissional e acadêmica, conviver com pessoas do meu grupo étnico e racial e passar o que eu tenho de melhor para esse grupo. [...]” (F/50/parda/negro)

1 0,7%

Multi-focado: o relato tem foco em causas raciais e também em outras expressões identitárias “[...] Foram distintos grupos de consciência étnica e de gênero: estudantes, pastorais que marcariam profundamente minha vida e maneira de atuar no mundo. [...]” (F/42/parda/negro)

5 3,4%

Total

147 100,0%

Uma primeira observação se impõe: uma intensa diferenciação interna quanto à

frequência obtida pelos diferentes tipos discursivos propostos, o que permite efetuar um

corte nítido entre os mais e os menos freqüentes, conforme Tabela 14.

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183

Tabela 14: Tipos discursivos referentes à negritude mais e menos frequentes nos

relatos

Mais freqüentes

%

Menos frequentes

%

Simpatizante

25,2

Grupo centrado

0,7

Omisso

23,8

Entusiasmado

2,0

Político

18,4

Multi-focado

3,4

Centrado na constatação

4,1 Centrado no estigma

17,0 Transcendente

5,4

Total

84,4

15,6

É notável que quatro dos tipos discursivos propostos – simpatizante, omisso,

político, centrado no estigma – por si só açambarquem 84,4% dos relatos.

Parece-nos possível sugerir que, no contexto de candidatura a programa de ação

afirmativa, discursos referentes a experiências/vivências étnico-raciais cobrem um

reduzido espectro de tipos: temas relacionados à negritude ou são omitidos (23,8%) ou,

quando tratados, sustentam produções discursivas simpatizantes (25,2%), seguidas de

políticas (18,4%) e daquelas que se centram no estigma referente à condição de ser

negro (17,0%).

Este ponto de nossa análise requer uma parada para tratarmos de dois aspectos

teórico-metodológicos. O primeiro diz respeito à decisão de concentrarmos, doravante,

a análise apenas nos tipos discursivos mais freqüentes. Esta decisão decorre da reduzida

frequência observada nas demais categorias (entre um e oito, em números absolutos), o

que se acentua quando efetuamos os cruzamentos com as variáveis relacionadas aos

autores dos relatos.

O segundo aspecto refere-se à assunção de hierarquia entre as categorias

discursivas mais freqüentes que compõem a tipologia que elaboramos. Se é bem

verdade que abandonamos, por razões já expostas, a noção de estágios de

desenvolvimento (no caso do estudo de Cross Jr, associados ao desenvolvimento da

identidade negra), não nos parece contra-senso apontar uma hierarquia entre os tipos

discursivos mais freqüentes, no sentido de uma aderência (ou envolvimento) mais ou

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184

menos intensa , ao enfrentamento político do racismo no Brasil. Mesmo estando cientes

do alerta de Costa (2002), já enunciado, mencionar tal hierarquia aqui faz sentido pois

voltaremos a discuti-la adiante quando de nossas interpretações.

Assim, sugerimos a configuração de uma hierarquia partindo do patamar de

menor aderência - a omissão do discurso sobre a “questão da negritude” -, passando

pelos tipos intermediários de discursos sensíveis ou que abordam tratamento

estigmatizado relacionados a negritude, até discursos políticos frente ao racismo.

Portanto, continuaremos a análise da tipologia em conformidade com as duas

decisões que tomamos (Tabela 15). Alertamos, porém, que reduzimos a base para

cálculo das porcentagens a 124, ou seja, ao número de relatos classificados neste

subconjunto de categorias e que correspondem a 84,4% dos Formulários que contém

relatos sobre vivências/experiências relacionadas ao pertencimento étnico-racial.

Tabela 15: Tipos discursivos mais frequentes nos relatos por sexo, idade, cor/raça e

declaração de pertença

Categorias Omisso

%

Centrado no estigma %

Simpatizante

%

Político

%

Total

% Sexo Feminino Masculino

25 10

27,8 29,4

21 4

23,3 11,8

25 12

27,8 35,3

19 8

21,1 23,5

90 34

100,0 100,0

Idade 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 acima Não consta

17 12 4 1 1

26,6 31,6 25,0 20,0

100,0

12 8 2 3 0

18,7 21,0 12,5 60,0

0

21

11 5 0 0

32,8 28,9 31,3

0 0

14 7 5 1 0

21,9 18,4 31,3 20,0

0

64 38 16 5 1

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Cor/raça Branca Preta Parda

14 4

17

70,0 7,0

37,0

1

13 11

5,0

22,4 23,9

4

19 14

20,0 32,7 30,4

1

22 4

5,0

37,9 8,7

20 58 46

100,0 100,0 100,0

Negro 1 Negro 2

21 12

20,2 14,3

24 20

23,1 23,8

33 25

31,7 29,8

26 27

25,0 32,1

104 84

100,0 100,0

Comparando-se os resultados por sexo, observamos proximidade nos discursos

masculinos e femininos nos tipos extremos e uma inversão nos intermediários:

percentual superior nos discursos de mulheres (11,8%) que nos de homens (11,8%)

centrados no estigma. Aqui nos deparamos com algumas produções discursivas das

mulheres relacionada à estética do corpo.

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“Ouvi desde criança que meu cabelo era ruim. Na adolescência sentia-me feia e ausente e não compreendia o porque da minha depressão. [...] (F/29/parda/negro) “[...] Durante minha enfância e adolescência sempre ouvi brincadeiras de mau gosto por ser parda, cabelos não rebeldes, mas nariz "parracha". Ofendia-me, claro. Tive até complexos na adolescência, orgulhava-me de ter amigos(as) brancos(as)- que bobagem. E considerava-me inferior.[...]” (F/55/parda/-)

Por outro lado, os relatos de homens, mais frequentemente que os de mulheres

(35,3% e 27,8%, respectivamente), foram classificados como discursos simpatizantes à

causa negra ou da negritude.

“Por intermédio de um diretor (X), particularmente, tive e privilegio de receber uma formação pessoal sobre igualdade étnica. Radicado na cidade de X, foi fundador da X de teatro (que posteriormente eu viria a integrá-la) [...]. Na mesma época, fundou o grupo de consciência negra [...], desenvolvendo com o passar dos anos, o debate político sobre igualdade racial no estado. Posteriormente, sua influencia política acabou influenciando nosso grupo da inspiração dos valores étnicos”. (M/27/preta/negro)

Quanto aos subconjuntos etários, novamente nos deparamos com resultados que

desafiam a captação de uma tendência dominante, a não ser uma certa particularidade

notada nos relatos de autores tendo entre 41 e 50 anos: maior frequência que os demais,

nos tipos discursivos simpatizante e político (31,3% em ambos).

“Como coordenadora de cultura de X, foi possível ter um olhar mais direcionado aos grupos indígenas e afro-descendentes. Quando na elaboração do calendário de eventos, representantes destes grupos eram convidados a participar na construção do calendário, garantindo espaço para divulgarem seus costumes, cultura e tradições. [...]” (F/44/parda/-) “Toda minha trajetória artística/profissional centrada nas questões étnico/raciais, ao longo dos anos, tem possibilitado acompanhar as mudanças significativas na sociedade brasileira, a lei 10.639, as ações afirmativas, núcleo de mulheres negras e outros, e o resultado concreto. Desta militância artística/acadêmica, minha experiência enquanto professor, negro, vindo da periferia, tem respaldo em trajetória de pesquisa, participação em congressos nacionais e internacionais. [...]” (M/47/preta/negro)

Finalmente, quando nos debruçamos sobre os resultados no subconjunto

cor/raça, observamos as tendências mais contrastantes: de um lado, autores

autodeclarados brancos, em expressiva maioria, produziram discursos omissos quanto

às questões relacionadas a negritude (70,0%) e de outro, em expressiva minoria (5,0%),

produziram discursos políticos ou centrados no estigma.

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186

Em franca oposição ao subconjunto de autores brancos, situam-se autores

autodeclarados pretos ou os que se identificaram como negros (Negro 2). Aqui foram

raros os discursos que omitiram questões relacionadas a negritude (7,0% entre pretos e

14,3% entre os que se identificaram como negros/Negro 2) e muito mais freqüente, que

nos demais subconjuntos, os que elaboraram relatos políticos ou simpatizantes à causa

negra.

Porém, os discursos analisados de autores brancos parecem mais homogêneos

que os de autores pretos: em bloco (70,0%) ignoram questões relacionadas a negritude

em seus relatos; se raríssimos autores pretos omitem o tema (apenas 7,0%), ao tratá-lo,

seus discursos se dispersam (ou se abrem) pelos três outros tipos previstos.

Novamente, os autores autodeclarados pardos apresentam um padrão discursivo

que ora os aproxima de autores pretos, ora ao de brancos: um número expressivo deles

(37,0%) não trata, em seus relatos, de questões relacionadas à negritude; poucos (8,7%)

apresentaram um foco político em suas produções discursivas, porém, seus discursos se

aproximam daqueles produzidos por autores pretos quando analisados da ótica dos tipos

“centrado no estigma” e “simpatizante”.

“Com relação à etnia, meu cabelo crespo e comprido e motivo para muitos me agredirem com piadas de mal gosto. Mas prefiro os elogios que recebo de muitas pessoas pelo fato de me impor com minhas características naturais e estilo. Era muito comum na minha adolescência e infância ser incomodado com palavras pejorativas do tipo: "paraiba", como sinônimo de que todo nordestino e inferior. Apesar disso, minha família que e oriunda do nordeste sempre me fez sentir orgulhoso de mim e do lugar”. (M/37/parda/-)

“Minha família e etnicamente diversa, mas me reconheço pertencente ao grupo negro, pois meus avos e meus traços se aproximam mais deste grupo. apesar de termos indígenas, árabes, portugueses na descendência”. (F/27/parda/negro)

A seguir, apresentamos uma síntese dos resultados para encaminharmos nossas

interpretações.

2.5. Síntese dos resultados

Apesar do interesse central desta pesquisa ter repousado, inicialmente, nos

relatos relacionados às experiências/vivências étnico-raciais, destacamos o interesse que

despertou em nós a análise das justificativas referentes à classificação por cor/raça.A

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alta e inesperada incidência de justificativas baseadas na origem ou ascendência, em

todos os subconjuntos de candidatos aqui considerados, levaram-nos a rever a

bibliografia (PIZA e ROSEMBERG, 2002; SHERIFF, 2002; SCHWARTZMAN, 1999)

– o que efetuamos no capítulo 5, Parte I – e propor uma outra entrada para as análises de

auto e heteroclassificação de cor/raça, não mais focalizando convergências e

divergências, mas nos próprios indicadores usados.

Perguntamo-nos, durante as análises, em que medida tais justificativas baseadas

na origem, como também nos documentos, não teriam sido evocadas exatamente porque

foram efetuadas em contexto de experiência de ação afirmativa com viés étnico-racial

em meio ao debate midiatizado (que se lembre o estardalhaço em torno das

classificações dos gêmeos no processo seletivo da Universidade de Brasília109: “se

minha aparência pode colocar em cheque a autodeclaração que efetuei, não há como

questionar a origem, já que somos um país mestiço, ou o documento que me classifica”.

Tal reinterpretação parece consistente com o fato de que os candidatos pardos foram os

que apresentaram os mais altos percentuais de justificativas referentes à autodeclaração

de cor/raça assentada na origem (47,3% das justificativas), um percentual que foi muito

pouco evocada (1,1%) por candidatos pretos.

Por outro lado, esta reinterpretação não parece se manter para as diferentes

categorias de autodeclaração, posto que os candidatos brancos também usaram-na com

frequência (21,2%). Notar, porém, que a frequência desta justificativa entre os pardos os

situam entre brancos e pretos.

Tais suposições merecem, a nosso ver, aprofundar na pesquisa. Replicar a

pergunta entre pessoas do mesmo nível educacional, porém fora do contexto de ação

afirmativa, poderá contribuir para sustentá-las, aperfeiçoá-las ou descartá-las.

O outro destaque nesta síntese e que estimulou nossas reinterpretações refere-se

a proximidades e diferenças nos discursos apreendidos nos relatos dos subconjuntos de

autores, particularmente, com respeito à autodeclaração de cor/raça.

Notamos proximidades, também, nos discursos analisados, à luz de nossas

categorias, proferidos por autores tendo entre 41 e 50 anos e por pretos. Ambos

subconjuntos de autores foram os que mais se identificaram como negros (Negro 2). Por

outro lado, seus relatos, sob o foco de nossas categorias, foram os que mais se

distanciaram dos relatos de autores brancos. Ou seja, em nosso estudo, relatos de

109 Irmãos gêmeos univitelinos, filhos de pai negro e mãe branca, Alan foi aceito pelo sistema de cotas ao vestibular no meio do ano de 2007, da UnB e Alex, seu irmão não foi. (http://g1.globo.com/Notícias/Vestibular, 29/05/07)

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candidatos pretos e dos que se identificaram como negros (Negro 2) e relatos de autores

brancos são contrastivos, se situam em extremos: do mais ao menos centrado em temas

étnico-raciais, em um nós coletivo e em uma abordagem política nos diversos discursos.

Os relatos de autores pardos, por sua vez, se situam em posição intermediária

entre aqueles de autores pretos e brancos. Por esta razão, apesar de termos integrado os

resultados de pretos e pardos na categoria Negro 1, em nenhuma das análises

precedentes discutimos os dados. Isto porque a posição intermediária de pardos, várias

vezes, nos permitiria, integrá-los ao subconjunto de autores brancos. Por exemplo, na

análise dos tipos discursivos: se nas categorias “centrado no estigma” e “simpatizante”

os relatos de autores pretos e pardos se aproximam, na categoria “político”, os relatos de

pardos mais se aproximam dos autores brancos que dos pretos, bem como na categoria

“omisso”, os relatos de autores pardos poderiam se aproximar tanto de brancos, quanto

de pretos.

Para aprofundar esta discussão pensamos refinar nossa análise efetuando

comparações internas aos relatos de autores pardos: de um lado, relatos proferidos por

autores pardos que se identificaram como negros (52,5 deles cf. tabela 6); de outro,

autores pardos que não se identificaram como negros/Negro 2 (46,3% deles). Nossa

hipótese é que deveríamos encontrar distinções internas conforme a declaração de

pertença. Porém, é necessário confessar que não tivemos fôlego para fazê-lo neste

momento de término do doutorado. Com certeza, voltaremos, mais tarde, a analisar

estas dados.

Consideramos que este aspecto da análise dos resultados constitui o ponto

central que se liga ao objeto da investigação e às discussões efetuadas nos Capítulos 1 e

2 da Parte I desta tese. Portanto, ele será o foco de nossas considerações finais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: REINTERPRETAÇÕES E

INQUIETAÇÕES

Iniciamos estas considerações finais enfatizando que esta tese não se colocou o

objetivo de avaliar o uso de categorias de identificação em experiências de ação

afirmativa, mas de contribuir para o debate. No caso específico do Programa IFP, isto

seria no mínimo deselegante e no extremo anti-ético, na medida em que Fúlvia

Rosemberg é, ao mesmo tempo, orientadora desta tese e coordenadora do Programa IFP

no Brasil.

Por isto, não nos detivemos até agora, e não nos deteremos, na análise do uso,

pelo Programa IFP, da categoria negro no processo de seleção. Ou seja, procedimentos

internos da seleção do Programa IFP não é nosso foco aqui.

Além disso, é necessário lembrar que o Programa IFP, no Brasil e em cenário

internacional, tem como meta contribuir para “a formação de uma nova geração de

líderes da justiça social”, conforme tem se expressado Joan Dassin (2008, p. 13),

diretora executiva do International Fellowships Fund, instituição norte-americana que

coordena o Programa em contexto internacional.

No Brasil, reencontramos a mesma expressão em textos de Fúlvia Rosemberg,

coordenadora local: “Na medida em que o Programa IFP objetiva, em última instância,

a formação de líderes com a constituição de um mundo mais justo, igualitário e

solidário, a formação pós-graduada é entendida como uma das ferramentas para o

empoderamento dessas novas lideranças” (Rosemberg, 2008, p.18). Portanto, não seria

inadequado assinalarmos, além de um enfoque na justiça social, um objetivo político do

Programa IFP na meta de empoderar ou formar “líderes comprometidos com a justiça

social”. Ou seja, o Programa IFP ao adotar procedimentos que captem o envolvimento

político dos candidatos pode “empoderar” lideranças também dos movimentos negros.

Esta observação é importante, na medida em que, nestas considerações finais, o sentido

político associado ao termo negro foi captado em um subconjunto de candidatos à

Seleção 2007 do Programa IFP no Brasil que se autodeclaram majoritariamente como

pretos. Por outro lado, observamos, também, um pequeno subconjunto de candidatos

autodeclarados pretos, mas principalmente pardos, que não parecem expressar tal

comprometimento político com a causa do enfrentamento ao racismo brasileiro.

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Voltamos, então, a nossos inspiradores: João Feres Júnior (2006), Sérgio Costa

(2002) e Kabengele Munanga (1988). Qual (quais ?) as metas de experiências de ação

afirmativa com viés étnico-racial no Brasil? Compensar injustiças sociais e/ou fortalecer

identidades negras? São elas compatíveis, convergentes?

Encontramos na literatura quem defenda uma ou outra posição com argumentos

consistentes. Basta atentarmos para o debate ocorrido entre Guimarães (1999) e Costa

(2001) - que esse último autor considerou como confronto entre posições liberal e

comunitarista. Como compatibilizar ambas posições na implementação de programa de

ação afirmativa? São posições compatíveis?

Surge, de maneira inequívoca, a problematização do uso de identidades coletivas

e, com isto, como operar a identificação de candidatos a beneficiários de programa de

ação afirmativa, que tenha recorte étnico-racial. Pelo argumento da justiça social,

segundo defende Feres Júnior (2006), tem-se a sustentação para a operacionalização de

programa de ação afirmativa, pois é a partir de evidências estatísticas de desigualdade

que se pode determinar quais são os grupos-alvo das políticas de tratamento

preferencial.

A nossa pergunta, que se reconfigurou durante o exame do material empírico,

“Como candidatos(as) se identificam ao se apresentarem a um programa de ação

afirmativa com recorte étnico-racial?”, conduziu-nos a uma aproximação mais atenta à

literatura sobre classificação racial no Brasil. Todos esses estudos, sobre cor/raça, foram

feitos em contexto em que não havia vantagem em ser negro.

Recentes trabalhos, como o de Sergei Soares (2008, p. 97), apontam um

aumento do número de brasileiros que têm se identificado com o grupo negro, aqueles

que se autodeclaram de cor “preta” ou “parda” nas pesquisas do IBGE. O autor situa

entre 1996 e 2001 o momento onde se inicia o processo de mudança na

autoidentificação das pessoas negras. Soares (2008, p. 116) salienta que tal identificação

ocorreu mais fortemente na categoria preto, do que na categoria pardo, indicando,

segundo o autor, que as pessoas estariam perdendo o medo de assumir uma identidade

negra, deixando de ter vergonha de se dizerem negras, recusando o branqueamento

como forma de legitimarem-se. Para o autor, o “escurecimento da população brasileira”

tem uma explicação que está evidente, como poucas vezes aconteceu na história das

Ciências Sociais brasileiras nos últimos dez anos: é a mudança na maneira como

algumas pessoas se vêem, a causa principal do fenômeno e não fatores exclusivamente

demográficos. Lembramos que foi uma década de muitas mudanças políticas e sociais,

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com acontecimentos marcantes para a sociedade, dentre eles, a participação do Brasil na

CMR, em Durban e o fato de o Estado brasileiro ter passado a introduzir “a noção de

‘ação afirmativa’ como um dos princípios organizadores de algumas de suas políticas

sociais” (Zoninsein, 2004, p 107-108 apud PINTO, 2006, p. 136). Talvez possamos

atribuir essa mudança ao longo trabalho de conscientização dos grupos do movimento

negro, desde a década de 1970, bem como considerar que a disseminação de programas

de ação afirmativa possa ser também uma hipótese explicativa para o “enegrecimento”

que está em curso no país, uma vez que são programas que têm colocado, desde 2001,

no debate público, o tema da classificação racial, complexificando o ato de identificar

quem é branco, quem é negro para as experiências de ação afirmativa, principalmente

para o ensino superior.

Identificar-se como negro significa reconhecer-se identitariamente como negro?

O recurso adotado no Programa IFP, em respeito às pessoas e em conformidade com

resoluções internacionais, é a autoidentificação étnico-racial. No entanto, Piza e

Rosemberg (2003, p. 111) destacam que a autoidentificação não implica,

necessariamente, num pertencimento racial ou étnico, ou seja: “a cor auto-atribuída no

momento da declaração possivelmente limite-se a definir um traço físico que não

expressa pertencimento racial ou étnico, [...]”. Somando-se a essa observação das

autoras, os resultados que obtivemos mostram a complexidade do processo de

autoidentificação étnico-racial, no Brasil, e os cuidados que devem ser tomados sobre

sua operacionalização em programas de ação afirmativa.

Qual a meta de programa de ação afirmativa? Reforçar identidades coletivas ou

individuais? Ampliar a equidade no usufruto dos bens sociais? São elas compatíveis?

Percebeu-se, neste estudo, uma grande diversidade quando se analisam relatos

raciais, inclusive no interior de subconjuntos específicos de pessoas que se declaram de

mesma cor/raça. Isso aponta uma complexificação para a operacionalização de

programas de ação afirmativa, que tenham como foco a justiça social e não a

diversidade. Notamos mais momentos de aproximação dos relatos dos(as)

candidatos(as) brancos(as) e pardos(as), do que entre esses e os(as) de candidatos(as)

pretos(as). Os relatos dos(as) candidatos(as) pretos(as), muitas vezes, se aproximam dos

relatos dos(as) candidatos(as) que se declararam negros(as). Essa padrão não

possibilitou o uso do recurso analítico, muito recorrente nos estudos sobre desigualdade

racial, que é o de aglutinar pretos e pardos na categoria negro. Verificamos aqui a

necessidade de um refinamento desta questão em futuras pesquisas, tendo em vista que

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o uso analítico da categoria negro, nos estudos sobre desigualdades raciais, inaugurados

por Carlos Hasenbalg (1979), potencializou lideranças do movimento negro na

construção de argumentos contra a persistência das desigualdades raciais no Brasil.

Não estamos tratando de identificação política, mas da maneira como as pessoas

se apresentam em um programa de ação afirmativa e de como esse programa irá eleger

seus beneficiários a partir da identificação étnico-racial que elas próprias informam.

Neste sentido, são perguntas que levantamos para futuros trabalhos. Vimos, pela análise

e interpretação da literatura e dos dados empíricos, que preto não é categoria

exclusivamente de aparência, pode, também, ser política. Então, cor teria o mesmo

estatuto que raça nas respostas aos inquéritos do IBGE? A literatura tem mostrado um

“destino comum” entre pretos e pardos, por que, ou como, se configura a diferença

discursiva entre os grupos em relação à negritude? Autodeclarados pardos em um

programa de ação afirmativa, continuariam pardos em outros contextos? A literatura

tem informado que a maneira predominante de declaração de cor/raça é feita pela

aparência. Contrariamente a esses estudos, nosso campo empírico apresentou alta

incidência de justificativa por origem. Em quais ocasiões e para quem se usaria um tipo

ou outro de sustentação da declaração de cor/raça? Seria capcioso da parte de pessoa

autodeclarada parda, mas com fenótipo identificável como branco, apelar para sua

origem como justificada para sua autodeclaração?

À pergunta de “quais seriam as metas de experiências de ação afirmativa com

viés étnico-racial no Brasil?”, podemos responder, tendo em vista a perspectiva de

entendimento do racismo que integra as dimensões simbólica e estrutural. Um programa

de ação afirmativa que possibilita o acesso e permanência de grupos subrepresentados,

particularmente pretos e pardos, está atingindo essas duas dimensões, uma vez que, se

por um lado ataca um dos gargalos da desigualdade, dando oportunidade para aqueles

que não a teriam, por outro pode formar lideranças e produtores de conhecimento.

Porém, cabe ainda perguntar: lideranças e produtores de conhecimento exclusivamente

alinhados com o(s) ideário(s) do(s) movimentos(s) negro(s)? E qual deles, se aceitarmos

o plural?

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ANEXO I

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ANEXO II

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