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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião Religião e Cultura Brasil Fernandes de Barros RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita segundo a concepção de Allan Kardec Belo Horizonte 2018

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Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS · concepção de Allan Kardec / Brasil Fernandes de Barros. Belo Horizonte, 2018. 140 f.: il. Orientador: Carlos Frederico Barboza

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião – Religião e Cultura

Brasil Fernandes de Barros

RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita

segundo a concepção de Allan Kardec

Belo Horizonte

2018

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Brasil Fernandes de Barros

RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita

segundo a concepção de Allan Kardec

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Frederico Barboza de

Souza

Área de concentração: Religião e Cultura,

Belo Horizonte

2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Barros, Brasil Fernandes de

B277r Religião e espiritismo: o conceito de religião da doutrina espírita segundo a

concepção de Allan Kardec / Brasil Fernandes de Barros. Belo Horizonte,

2018.

140 f.: il.

Orientador: Carlos Frederico Barboza de Souza

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

1. Kardec, Allan, 1803-1869 - Crítica e interpretação. 2. Espiritismo -

Aspectos religiosos. 3. Conceitos - Religião. 4. Religiosidade. 5. Iluminismo. I.

Souza, Carlos Frederico Barboza de. II. Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.

CDU: 133.7

Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999

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Brasil Fernandes de Barros

RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita

segundo a concepção de Allan Kardec

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Área de concentração: Religião e Cultura,

____________________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Frederico Barboza de Souza – PUC Minas (Orientador)

____________________________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Coppe Caldeira – PUC Minas (Banca Examinadora)

____________________________________________________________

Prof. Dr. Silvio Seno Chibeni - UNICAMP (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 31 de outubro de 2018

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À Vanessa pelo apoio

incondicional e compreensão,

a minha mãe pela vida

e aos meus filhos e família

pela inspiração de viver.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Frederico

que me ajudou a manter a esperança quando

achei que não tinha saída.

Ao João Gabriel que me ajudou encontrá-la

e a todos que de alguma forma me ajudaram

nessa empreitada.

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LISTA DE ABREVIATURAS

Lista de Abreviaturas para referência das Obras de Allan Kardec.

LE = O Livro dos Espíritos – As referências serão compostas de número das questões e

quando for Introdução ou Conclusão com número do tópico referenciado.

LM = O Livro dos Médiuns – As referências serão compostas de número do capítulo e

item.

ESE= O Evangelho Segundo o Espiritismo - As referências serão compostas de número

do capítulo e item.

AG= A Gênese - As referências serão compostas de número do capítulo e item.

OP= Obras Póstumas - As referências serão indicadas pelo nome do capítulo já que não

há número de capítulos.

OE = O que o Espiritismo - As referências serão compostas de número do capítulo e

item.

RE = Revista Espírita – As referências da Revista Espírita serão seguidas de mês e ano

que foram publicadas. As páginas se referem à versão em português traduzida por Evandro

Noleto Bezerra de 2007 conforme encontram-se nas referências.

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RESUMO

Mais de 150 anos depois da codificação da doutrina espírita, ainda são frequentes os debates

entre os seus fiéis a respeito do aspecto religioso do Espiritismo. A doutrina, codificada por

Allan Kardec no século XIX, surgiu em meio a uma profusão de novas teorias e concepções

científicas e filosóficas, tendo sido fortemente marcada pelo legado iluminista e pelos

pensadores de sua época. O objetivo deste trabalho é estabelecer um diálogo entre o conceito

de Kardec sobre religião e alguns autores, tais como Lactâncio, Cícero, Benson Saler, Greschat

e Clifford Geertz, dentre outros, de forma a identificar, a partir de uma aparente contradição

entre as afirmações de Kardec, qual era seu entendimento a respeito do aspecto religioso do

Espiritismo no período de desenvolvimento de seu trabalho, de 1857 a 1869. Para isso, num

primeiro momento, discutiremos as origens do termo religião e seus conceitos, em seguida

procuraremos entender, por meio de uma pesquisa bibliográfica, o porquê de Kardec ter

afirmado que o Espiritismo não era uma religião. Além disso, investigaremos a sua perspectiva

secular, suas relações com o Iluminismo e as Igrejas Católicas e Protestantes naquela época.

Concluiremos, por fim, como Kardec posicionava o Espiritismo em termos de Religião e o

porquê que entendemos que essa doutrina pode ser tratada como religião.

Palavras-Chave: Allan Kardec, Espiritismo, Conceito de Religião, Iluminismo.

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ABSTRACT

More than 150 years after the codification of the Spiritist doctrine, the debates among its faithful

about the religious aspect of Spiritism are still frequent. The doctrine, codified by Allan Kardec

in the 19th century, came amid a profusion of new scientific and philosophical theories and

conceptions, having been strongly marked by the enlightened legacy and thinkers of his day.

The purpose of this work is to establish a dialogue between the concept of Kardec about religion

and some authors, such as Lactantium, Cicero, Benson Saler, Greschat and Clifford Geertz,

among others in order to identify from an apparent contradiction between the statements of

Kardec what his understanding of the religious aspect of Spiritism in the period of his work

was, from 1857 to 1869. For this, in a first moment, we will discuss the origins of the term

religion and its concept, then we will try to understand, through a bibliographical research, the

reason why Kardec affirmed that Spiritism was not a religion, In addition we will investigate

his secular perspective, his relations with the Enlightenment, and the Catholic and Protestant

Churches at that time. We will conclude, finally, how Kardec posited Spiritism in terms of

Religion and why we understand that this doctrine can be treated with religion.

Keywords: Allan Kardec, Spiritism, Concept of Religion, Enlightenment.

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RÉSUMÉ

Plus de 150 ans après la codification de la doctrine spirite, les débats entre fidèles sur l'aspect

religieux du spiritisme sont encore fréquents. La doctrine, codifiée par Allan Kardec au

XIXème siècle, est venu au milieu d'une profusion de nouvelles théories et conceptions

scientifiques et philosophiques, et a été fortement influencée par l'héritage des Lumières et les

penseurs de son temps. L'objectif de ce travail est d'établir un dialogue entre le concept de

Kardec sur la religion et quelques écrivains, tels que Lactance, Cicéron, Benson Saler, Greschat

et Clifford Geertz, entre autres, afin d'identifier d'une apparente contradiction entre les

déclarations de Kardec quel était votre compréhension de la religion d'aspect spiritisme dans le

développement de leur période de travail, de 1857 à 1869. pour ce faire, dans un premier temps,

nous discuterons des origines du terme religion et ses concepts nous cherchons à comprendre

par une recherche bibliographique, pourquoi Kardec a prétendu que le spiritisme n'était pas une

religion. En outre, nous examinerons sa perspective laïque, ses relations avec les Lumières et

les églises catholique et protestante à cette époque. Nous conclurons enfin comment Kardec a

posé le spiritisme en termes de religion et pourquoi nous comprenons que cette doctrine peut

être traitée avec la religion.

Mots-clés: Allan Kardec, Spiritisme, Concept de religion, Lumières.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13

1. O CODIFICADOR DO ESPIRITISMO: Um cidadão chamado Rivail no século

XIX. ................................................................................................................................ 20

1.1. A França do século XIX ........................................................................................ 20 1.1.1. A Revolução Francesa ........................................................................................ 20 1.1.2. A França pós-revolucionária ............................................................................... 23

1.2. A formação científica e religiosa do codificador do Espiritismo .......................... 25 1.2.1. O cidadão francês Hippolyte Léon Denizard Rivail ........................................... 25 1.2.2. A formação escolar e acadêmica de Rivail ......................................................... 28 1.2.3. A formação religiosa de Rivail e a influência de Pestalozzi .............................. 32

1.3. As influências do pensamento iluminista francês na filosofia, na ciência e na

religião no século XIX .................................................................................................... 36 1.3.1. A Razão como fonte de progresso da humanidade: O pensamento positivista e o

cientificismo ................................................................................................................... 36

1.3.2. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Um brado pela liberdade de pensamento 40 1.3.3. Princípios de Igualdade e Fraternidade: A influência de Rousseau ................... 44

1.4. Outras influências do século XIX ......................................................................... 46 1.4.1. A física do século XIX ....................................................................................... 46

1.4.2. As ciências naturais do século XIX na obra kardeciana ..................................... 50

2. FÉ INABALÁVEL E RAZÃO: O significado de religião para Allan Kardec ... 53

2.1. Identificando um possível conceito de religião ..................................................... 53

2.1.1. RELEGERE ou RELIGARE? ............................................................................ 55 2.1.2. Semelhanças familiares e categorias de religião................................................. 57 2.2. Kardec e a Religião ............................................................................................... 62

2.3. A perspectiva secularizada de Kardec sobre o Espiritismo .................................. 64 2.4. Perspectiva Religiosa versus Perspectiva Científica ............................................. 68

2.5. O Conceito de religião para Kardec ...................................................................... 71 2.6. A perspectiva do Sagrado para Kardec ................................................................. 73

2.6.1. O Sagrado e o Profano para Eliade ..................................................................... 74 2.6.2. O Sagrado e o Profano para Rudolf Otto ............................................................ 76 2.6.3. O Sagrado e o Profano para Kardec ................................................................... 79

3. O ESPIRITISMO COMO ALTERNATIVA RELIGIOSA: Entre Espiritualistas,

Ocultistas e Cristãos ..................................................................................................... 89

3.1. Uma nova religião em Paris .................................................................................. 89 3.2. Auto de fé de Barcelona ........................................................................................ 94 3.3. Outros eventos com a Igreja Católica ................................................................... 95

3.4. A ideia de uma reforma religiosa .......................................................................... 96 3.5. Outras correntes de Pensamento Espiritualistas .................................................... 99 3.6. Espíritas, Espiritualistas e Ocultistas e a questão das religiões .......................... 103

3.7. Os inter-relacionamentos do Espiritismo com o Iluminismo .............................. 109

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CONCLUSÃO ............................................................................................................. 113

Referências ................................................................................................................... 122 ANEXOS A .................................................................................................................. 128

ANEXOS B .................................................................................................................. 135 ANEXOS C .................................................................................................................. 138

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INTRODUÇÃO

Logo nos anos iniciais de seu desenvolvimento, a Federação Espírita Brasileira, fundada

em 1884, vivenciou enormes dificuldades no plano ideológico com uma forte tendência de cisão

no movimento entre os chamados laicos ou científicos, liderados pelo professor Afonso Angeli

Torteroli, e os religiosos ou místicos, liderados pelo Dr. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti

(QUINTELLA, 1973). Em 1889, Dr. Bezerra de Menezes, como era comumente chamado, foi

eleito presidente da Federação Espírita Brasileira, considerado o único capaz de promover a

unificação do movimento espírita, apesar da dissidência de diversos membros. Mais de 150

anos depois da codificação do Espiritismo, ainda são frequentes os debates entre os espíritas a

respeito do aspecto religioso do Espiritismo, como na matéria de José Reis Chaves, colunista

do jornal O Tempo, de 04 de fevereiro de 2013, intitulada Fiéis ao espiritismo científico, mas

não ao seu lado evangélico, na qual se discute a divisão dos espíritas quanto ao seu aspecto

religioso. Além disso, não é difícil encontrar dezenas de sites, blogs e grupos de discussão na

internet nos quais se discute o assunto, assim como obras e artigos dos autores Gabriel Dellane,

Antônio Pinheiro Guedes, Silvio Seno Chibeni, Augusto César Dias de Araujo, dentre outros.

O tema deste trabalho, RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina

Espírita segundo a concepção de Allan Kardec, surge da necessidade de discutir uma aparente

contradição de Allan Kardec (1857–1869) sobre o aspecto religioso da Doutrina Espírita, e que

essa contradição seria influência dos pensadores de sua época, particularmente os iluministas.

A contradição teria surgido do fato de ele negar que como resultado de sua obra surgisse uma

religião e sim uma doutrina filosófica de efeitos religiosos, mas ter feito em alguns momentos

declarações que poderiam apontar para uma mudança de posicionamento sobre esse aspecto do

Espiritismo.

A hipótese que vamos discutir é de que Kardec foi influenciado pelos pensadores de sua

época, particularmente os positivistas e iluministas, mas que não havia contradição em seu

raciocínio, pois levava em consideração para sua conclusão os conceitos de tradição religiosa

ditados pelo cristianismo dominante, fazendo do conceito de religião no Espiritismo um

contraponto do entendimento usual de religião.

As influências a que nos referimos se situam em duas importantes vertentes. A primeira

vertente foi o seu próprio ambiente sociocultural, onde esteve extremamente presente a cultura

religiosa cristã, católica enquanto esteve na França em seu ambiente familiar e protestante em

seu círculo de convivência acadêmica na Suíça. Essas influências podem ter afetado a trajetória

do pensamento de Kardec, que aparentemente passou por uma transformação de ideias em torno

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do conceito e do papel da religião no desenvolvimento de seus trabalhos. A segunda vertente

decorre de seu convívio com os diversos pensadores da época, já que enquanto adulto tornou-

se um respeitado pedagogo com diversas obras publicadas e que participava de várias

sociedades de intelectuais de sua época (WANTUIL, 1984a, p. 172). Entre tais influências,

destacamos Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que teve grande ascendência sobre

Kardec na condição de professor e mestre, Franz Anton Mesmer (1734-1815), famoso

magnetizador, ao qual Kardec se dedicou por muito tempo em termos de pesquisa e de outros

que iremos descrever no decorrer de nosso trabalho, além da grande influência iluminista que

permeava o pensamento de muitos dos intelectuais da época.

O pensamento de Kardec, como já dissemos, gerou diversas discussões a respeito do

conceito de religião e de seu papel que são recorrentes até os dias de hoje. Um dos pontos

centrais dessa discussão é a sua afirmação que diz que o Espiritismo não é religião: “O

Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, [...] Mas não é uma

religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos,

nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.” (KARDEC, OP:

Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo). Apesar dessa afirmação, para Kardec, a

doutrina espírita teria um papel diferenciado e serviria de complementação de conteúdo para

todas as religiões, não pertencendo, pois, particularmente, a nenhuma delas e, ao contrário,

fornecendo subsídios para a compreensão de cada um, ao seu modo, à sua crença particular. Ele

chega, inclusive, a recomendar que ninguém deixe a sua religião (KARDEC, RE: Fev/1862, p.

62 e 63). Portanto, este trabalho visa estabelecer um diálogo entre o conceito de Kardec sobre

religião e alguns autores, tais como Lactâncio, Cícero, Benson Saler, Greschat e Clifford

Geertz, dentre outros, investigando o pensamento particular de Kardec a respeito da religião no

período de desenvolvimento de seu trabalho, de 1857 a 1869 e o que teria gerado essa aparente

contradição e sua eventual dependência da propaganda materialista e positivista do século XIX

(ELIADE, 1989, p. 58).

Quando iniciamos esta pesquisa, para atingir nossos objetivos, tínhamos um desejo

particular de identificar um conceito de religião que pudesse harmonizar-se de forma clara com

o Espiritismo e assim oferecer um possível alento à discussão que, por tanto tempo, tem se

desenvolvido no meio espírita com a relação ao seu aspecto religioso. Porém, essa busca

confrontou-se, logo em seus primeiros passos, com a afirmação de Benson Saler:

Como indica a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem

definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. (Alguns

acadêmicos, de fato, propuseram rótulos como "quase-religiões" ou "semi-religiões"

para indicar que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma

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forma, mas não o suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de

"religião".) (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa)1

As afirmações de Saler nos levaram a constatações com significados antagônicos;

primeiro que não há uma definição clara, definida e universalmente aceita sobre o conceito de

religião; segundo que há margens de discussão importantes para o assunto que vislumbram essa

necessidade pessoal de compreender melhor o conceito de religião.

Com vistas a colaborar com essa discussão, temos a intenção de oferecer ao meio

espírita e aos pesquisadores em geral um referencial teórico, metodologicamente distanciado

das paixões que envolvem aqueles que se dedicam à discussão do aspecto religioso do

Espiritismo, de forma a fornecer reflexões a respeito do ambiente histórico em que foi cunhada

essa doutrina, para tentar compreender as afirmações de Kardec.

No primeiro capítulo de nosso trabalho, vamos discorrer sobre o cidadão Hippolyte-

Léon-Denizard Rivail, que adotava o nome Allan Kardec, pseudônimo criado quando publicou

O Livro dos Espíritos, em 18 de abril de 1857, a fim de evitar que, ao lerem sua nova proposta,

confundissem-na com seus trabalhos publicados no mundo científico e como pedagogo

renomado (WANTUIL, 1984a, p. 141-189), como é transcrito em sua biografia grafada por

Henri Sausse:

No instante de o dar à publicação, o autor bastante embaraçado em resolver como o

deveria assinar, se com o seu nome - Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, ou com o

pseudônimo. Por ser muito conhecido o seu nome no mundo científico, devido aos

seus trabalhos anteriores, e podendo dar origem a uma confusão, talvez até prejudicar

o êxito do empreendimento, ele adotou a sugestão de o assinar com o nome de Allan

Kardec que, conforme o seu guia lhe revelara, ele trouxera nos tempos dos Druidas.

(SAUSSE, 2014, p. 29)

Do ponto de vista deste trabalho, é reveladora a necessidade de desvinculação do nome

de Kardec, conhecido no meio científico pela publicação de trabalhos anteriores à obra que ele

agora divulgava. Ele acreditava que essa obra trazia um potencial extremamente importante e

revolucionário que deveria ser aceito não pelo seu nome no mundo científico e pensador, mas

sim por seu conteúdo consistente.

Discípulo de Pestalozzi, Kardec teve sua formação fortemente enraizada nos

pensamentos do século XVIII, palco da consolidação de um racionalismo intenso que se projeta

para o século XIX, influenciado pelos pensadores de seu tempo. Esses pensamentos abriram as

comportas a uma torrente de paixão, sentimento e religiosidade, lançando bases importantes,

1 As the scholarly literature on religion indicates, there are no sure, sharp, and universally accepted criteria for

marking off religion from not-religion. (Some scholars, indeed, have proposed such labels as "quasi-religions"

or "semi-religions" to indicate that various complexes of phenomena resemble religions in some ways, but not

sufficiently in other respects to justify the unqualified label "religion.").

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para os movimentos sociais, filosóficos, antropológicos e religiosos, que influenciariam de

alguma forma o pensamento religioso, com consequências até os dias de hoje, sobretudo no

mundo ocidental. O século XIX, foi tão fértil em ideias, movimentos e talentos, que pelo menos

alguns volumes seriam necessários para situar o Espiritismo nesse cenário, abarcando os

aspectos estéticos, políticos, filosóficos, científicos, dentre outros (INCONTRI, 2015)

Kardec escreveu sua proposta espiritista2 em uma época em que se despertava para um

sentimento de ansiedade pela procura das origens da vida e da mente, na qual pululavam

inúmeros estudiosos como Marx, Durkheim, Weber e Auguste Comte que tinham o desejo de

romper com o tempo e com o espaço para atingir os limites e os primórdios do universo visível.

Havia também, como veremos no capítulo três, o desejo de encontrar uma razão

espiritual para a questão de igualdade entre os seres humanos e inclusive no que tange às

questões de gênero. Herculano Pires (PIRES, 1975, p. 18) afirma sobre Kardec que: “Formado

na tradição cultural do Século XVIII, herdeiro de Francis Bacon, René Descartes e Rousseau,

compreendeu claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método”. O

método a que se referia corresponde ao da experimentação para investigação do fenômeno das

mesas girantes,

Kardec não só reconheceu o papel fundamental do método positivo no avanço e na

consolidação da ciência moderna, como, também, desenvolveu procedimentos para empregar

tal método em seus estudos dos fenômenos espíritas.

Foi nesse cenário que Kardec publicou, O Livro dos Espíritos. Terá sido o sucesso desta

edição o desejo dos leitores de responderem às questões apontadas por Mircea Eliade (1989, p.

59) “o fascínio pelos ‘mistérios da Natureza’, o impulso de penetrar e decifrar as estruturas

internas da Matéria – todos esses anseios e impulsos denotam uma espécie de nostalgia pelo

primordial, pela matriz original universal”? Por outro lado, teria tido sucesso essa publicação

se houvesse afirmado que o Espiritismo nascente era uma nova religião? Neste momento, o

trabalho de Allan Kardec estava apenas começando, visto que ele elaborou conteúdos entre

1857 e 1869, em uma série de obras, além das publicações da Revista Espírita, pertencente à

Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas de Paris, fundada em 1° de abril de 1858. Toda a sua

obra como Allan Kardec ficou conhecida simplesmente por codificação espírita, além disso

também houve a publicação, por parte de seus seguidores, em 1890, do livro Obras Póstumas3.

2 Espiritista é sinônimo de espírita, ou seja, aquele que é um adepto do Espiritismo. 3 A editora da FEB (Federação Espírita Brasileira) traz antes de sua introdução do livro Obras Póstumas uma nota

de esclarecimento que diz: “O livro Obras Póstumas foi organizado por Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901) a

partir de manuscritos guardados por Allan Kardec no interior de sua residência. Entre estes escritos havia material

fragmentário, ensaios, verdadeiros esboços, aguardando, possivelmente, mais ampla revisão, e que não tinham

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A preocupação de Kardec em não transformar sua obra em religião é amplamente

discutida, e diversas vezes refutada por ele, particularmente quando responde a uma publicação

do Abade Françoise Chesnel, que, ao escrever ao periódico L’Univers, criticou a doutrina

espírita no artigo Une religion nouvelle à Paris4, em 13 de abril de 1859. Em sua resposta, diz:

“O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus

ministros.” (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206).

Apesar de suas reiteradas defesas a respeito do aspecto científico da doutrina espírita,

Kardec ainda a defendia como uma doutrina filosófica, mas, anos depois, na Revista Espírita

de dezembro de 1868, faz a seguinte afirmação:

Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida,

senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos

vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e

da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases

mais sólidas: as próprias leis da Natureza. (KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491, grifo

nosso)

A afirmação, em 1868, de que “o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos

por isto”, depois de ter dito o contrário em 1859 e diversas outras vezes, como demonstraremos

no decorrer de nosso trabalho, tem sido tomada para justificar tal aparente contradição ou falta

de clareza, fazendo com que diversos autores, no decorrer do tempo, venham discutindo esse

aspecto religioso do Espiritismo enquanto que outros, por outro lado, discutam a posição de

Kardec no sentido contrário.

Acreditamos, dessa forma, que esse diálogo com os pensamentos de Kardec acerca do

conceito de religião pode contribuir com o meio acadêmico, trazendo informações importantes

a respeito do Espiritismo em si e das diferentes correntes de pensamento dentro do seu universo,

buscando analisar as correntes históricas e socioculturais que fundamentaram o pensamento dos

espiritistas na atualidade. A contribuição ainda vai além, na medida em que oferece ao meio

acadêmico uma oportunidade concreta de dialogar com os pensamentos de Kardec que, de certa

maneira, não são tradicionais, já que trata o divino de forma diferenciada das demais religiões

quando trata o que é sagrado. Ao dar voz, portanto, a Kardec, entendemos que o leitor poderá

compreender um pouco mais do que essa doutrina tem a dizer.

Procuramos ainda fomentar o entendimento de como o pensamento basilar do

Espiritismo, como as questões presentes na sociedade, fundamentalmente a fé religiosa,

sido publicados [...], reservado ainda sob análise e observação, material que [...] julgou conveniente não publicar,

seguramente, entre outras razões, por não estar convencido de que retratasse uma verdade.” (KARDEC, 2016,

p. 12). 4 Esse assunto será tratado em detalhes no capítulo três.

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articulam-se com o pensamento kardeciano5 nas questões de: crença, ritos e símbolos e sua

incidência na vida dos indivíduos e em seus processos sociais.

Para poder desenvolver, portanto, essa linha de raciocínio, no primeiro capítulo,

procuramos descrever a França do século XIX e os desdobramentos da Revolução Francesa, já

que foi pouco depois desse importante momento histórico que nasceu Hippolyte Léon Denizard

Rivail, nome civil de Allan Kardec, que, por sua vez, vivenciou todo o ambiente político e

social, inclusive sendo ele e sua família obrigados a se mudar da França para a Suíça a fim de

fugir das convulsões, reflexos da Revolução. No primeiro capítulo, também desenvolveremos

a trajetória de vida desse cidadão francês, descrevendo as principais influências acadêmicas que

ele recebeu tanto no campo das Ciências Naturais como nas Ciências Humanas.

No capítulo dois, procuraremos entender os conceitos de religião por Cícero e

Lactâncio, que possuem relevante influência no Cristianismo, e estabeleceremos um diálogo

entre a visão de religião de Benson Saler, que se baseia nas semelhanças familiares de

Wittgenstein, e Clifford Geertz, que desenvolve as questões de simbologia e cultura nas

religiões. Depois, num segundo momento, ainda no capítulo dois, vamos discorrer como Kardec

dialoga com o conceito de crença no sagrado e sua relação com o profano, tomando por

referências Mircea Eliade e Rudolf Otto. De posse desses conceitos teóricos, pretendemos

aprofundar esse diálogo com cada um dos autores citados para compreender mitos, ritos e

símbolos na visão de Kardec.

Depois de ter discutido os conceitos de religião do ponto de vista de Kardec, numa visão

de dentro para fora, vamos discutir, no capítulo três, como o Espiritismo era visto no século

XIX pela Igreja Católica e por outros pensadores e como foi o papel de Kardec nesse processo.

Esse três capítulos, portanto têm por objetivo traçar a trajetória do pensamento de

Kardec para que possamos compreender como ele chegou às suas conclusões a respeito da

religião e como o Espiritismo se situava diante das outras religiões.

A metodologia deste trabalho foi basicamente de pesquisa bibliográfica junto à forntes

5 A utilização do termo “kardeciano” ou “kardeciana” é uma opção para evitar o uso dos termos “kardecista” ou

“kardecismo”, que, ao nosso ver, são equivocados, posto que, em termos de análise morfológica, na palavra

kardecismo, o sufixo –ismo, designa “movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos, religiosos, e

personativos através dos nomes próprios representativos ou locativos de origem” (LOPES, 2011, p. 3). No caso,

a palavra kardecismo se encaixa na condição religiosa e personativa, que se trataria da derivação do nome da

pessoa de Kardec, o que, em primeira análise, anunciaria que essa doutrina seria de Kardec, ou seja, doutrina de

Kardec. Por outro lado, ele próprio afirma que essa doutrina não é sua e sim legada pelos espíritos superiores,

como está escrito no subtítulo de sua obra básica O Livro dos Espíritos, que diz: “PRINCÍPIOS DA DOUTRINA

ESPÍRITA, sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais,

a vida presente, a vida futura e o porvir da Humanidade - segundo os ensinos dados por Espíritos superiores

com o concurso de diversos médiuns - recebidos e coordenados por Allan Kardec” Grifos nossos -

(KARDEC, 2008, p. 3) .

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primárias e, para fundamentar a formação, as influências teológicas e as escolas científicas em

que Allan Kardec se inspirou, foram pesquisadas particularmente as obras de Zêus Wantuil e

Francisco Thiesen, para identificar de forma mais detalhada a formação acadêmica de Kardec,

destacando sua convivência em Yverdon, na Suíça, em instituto homônimo dirigido por

Pestalozzi. Foram também investigadas as influências de Jean Jacques Rousseau, Franz Anton

Mesmer, além do ambiente da reforma protestante, que se fazia fortemente presente em

Yverdon, e que tinha forte relevância no processo educacional nesse instituto (WANTUIL,

1984, p. 71).

Será estudada também, a evolução do pensamento de Kardec através da Revista Espírita

editada pela Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, entre os anos de 1858 a 1869,

comparando a evolução de seu pensamento através desses anos. Buscar-se-ão também os

diversos escritos dos detratores do Espiritismo na Europa, citados por Kardec na Revista

Espírita, além de suas réplicas, bem como os seus apoiadores, como León Denis, Camille

Flammarion que deixaram obras significativas no contexto espiritista.

E finalmente será demonstrado no capítulo três como o Espiritismo foi recebido no

século XIX pela comunidade religiosa e científica de sua época, particularmente a Igreja

Católica, o Mesmerismo, o Espiritualismo Americano6 e o Ocultismo, analisando como foi

encarado pelos iluministas e a fim de notar como se tornou uma alternativa religiosa para muitas

correntes de pensamento de sua época.

6 A literatura a respeito do assunto cita esse fenômeno como Espiritualismo Americano, mas o correto seria Norte-

americano pois se concentra na América do Norte.

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1. O CODIFICADOR DO ESPIRITISMO: Um cidadão chamado Rivail no século XIX.

Logo no início do século XIX, em meio a uma profusão de ideias e pensamentos

revolucionários resultados do século das luzes7, mais conhecido como Iluminismo, é que ocorre

o nascimento do codificador8 do Espiritismo. Pretendemos neste capítulo demonstrar um pouco

da influência do Iluminismo francês na vida e obra de Hippolyte Léon Denizard Rivail, nome

civil de Allan Kardec, e por consequência compreender o ambiente em que foi cunhado o

Espiritismo.

1.1. A França do século XIX

Geralmente quando se fala de Iluminismo nos lembramos da França, embora esse

movimento não tenha sido um fenômeno exclusivo francês, ele esteve presente em diversas

partes do mundo, com destaque para a Alemanha, Escócia, nas colônias britânicas que

formariam no futuro os Estados Unidos9, Inglaterra e Portugal. Para o objeto de nosso estudo,

importa-nos particularmente o Iluminismo Francês, embora venhamos mais à frente, no

capítulo três, também falar um pouco das influências presentes nos Estados Unidos.

1.1.1. A Revolução Francesa

É na França do século XIX que surgiu o Espiritismo, e entendemos que por causa dos

ventos da liberdade trazidos pelo que convencionou-se tratar por início da idade contemporânea

surgiu esta filosofia espiritualista, tratada à época por pensadores, parte da população francesa

e inclusive pela Igreja Católica como uma religião. A Revolução Francesa (1789/1799) e todos

os seus eventos foram importantes na formação do ambiente em que surgiu essa doutrina, já

que esse influenciou de forma significativa o pensamento de seu do codificador. Não

pretendemos discorrer neste trabalho sobre todos fatos da Revolução Francesa, mas, sim, sobre

7 Termo usado para descrever as tendências do pensamento e da literatura na Europa e em toda a América durante

o século XVIII, antecedendo a Revolução Francesa. Foi empregado pelos próprios escritores do período,

convencidos de que emergiam de séculos de obscurantismo e ignorância para uma nova era, iluminada pela

razão, a ciência e o respeito à humanidade. 8 Em geral Allan Kardec é tratado como codificador da Doutrina Espírita, pois recusava para si o papel de fundador

ou criador do espiritismo por afirmar que essa doutrina era dos Espíritos, embora seja inegável que sua

estruturação formal foi tenha sido feita por ele. Em nosso trabalho adotamos essa designação de codificador,

embora esse título seja merecedor de problematização que será feita em trabalhos futuros. 9 O movimento Iluminista começou nos Estados Unidos um pouco antes de sua independência em 04 de julho de

1776.

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alguns fatos que se tornaram mais significativos na formação de Allan Kardec.

O início da idade contemporânea foi marcado pelo enfraquecimento do absolutismo

monárquico de direito divino e dos privilégios do nascimento dos nobres, que acentuavam a

divisão da sociedade. Com essa revolução, foram reforçados os fundamentos da sociedade

burguesa capitalista, que se estenderiam a todo o mundo ocidental, influenciando toda Europa

em campanhas similares. A deflagração da Revolução Francesa, entre outras razões, foi baseada

em princípios filosóficos, inspirada por clamores de liberdade, igualdade e fraternidade, unindo

em torno de seu ideal segmentos improváveis da sociedade, desde o campesinato, passando

pelos sans-culottes10 até a alta burguesia, embora suas percepções a respeito do movimento

fossem diferentes (BRETAS, 2012, p. 57). Havia um envolvimento geral entre os personagens

da revolução, um entusiasmo coletivo no engajamento pela causa, o que levava à difusão de um

sentimento de orgulho em relação à participação desse momento memorável, no qual até mesmo

artistas e cronistas demonstravam-se “conscientes de viver um período excepcional, [e]

desenhistas, aquarelistas e gravadores começaram então propor uma crônica precisa dos

acontecimentos.” (VOVELLE, 1997, p. 162).

Apesar de existir uma motivação teoricamente de ordem filosófica, o principal motivo

da revolução surgiria de uma questão histórica mais profunda. No final do século XVIII a

estratificação social da França ainda possuía uma elite aristocrática que conservava os seus

traços originais, baseados no poder latifundiário. Era na posse da terra que se estabelecia o

poder e a riqueza, pois nela que a sociedade hauria o seu meio de trabalhar e viver. No século

anterior, esses aristocratas haviam sido despojados gradativamente do seu poder político pelo

rei, sendo submetidos ao clero e à nobreza, mas ainda continuaram a ter o seu lugar privilegiado

na hierarquia social.

[...] o renascimento do comércio e da indústria criara, nesse interim, uma nova forma

de riqueza, a riqueza mobiliária, e uma nova classe, a burguesia, que desde o século

XVI assumiria um lugar nos Estados Gerais sob o nome de Terceiro Estado, e cujos

progressos tinham sido poderosamente beneficiados pelas descobertas marítimas dos

séculos XV e XVI e pela exploração dos novos mundos, como pela preciosa

cooperação que prestava ao Estado monárquico, fornecendo-lhe dinheiro e

administradores competentes. No século XVIII, o comércio, a indústria e as finanças

assumiam um lugar cada vez mais importante na economia nacional; a burguesia era

quem socorria o Tesouro real nos momentos prementes [...]. O papel social da nobreza

decrescia continuamente e, na medida em que o ideal proposto pelo clero ao povo

perdia seu prestígio, sua autoridade se enfraquecia. A estrutura legal do país ainda

lhes reservava o primeiro lugar, mas na verdade o poder econômico, a capacidade, as

perspectivas de futuro passavam às mãos da burguesia. (LEFEBVRE, 1989, p. 31)

10 Sans-culotte, foi a denominação dada pelos aristocratas aos artesãos, trabalhadores e até pequenos proprietários

participantes da Revolução Francesa, principalmente em Paris.

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A Revolução Francesa estabeleceu, portanto, um rearranjo da estrutura social,

determinando uma harmonia entre o que existia de fato e a estrutura legal estabelecida. Esse

ajuste político aconteceu também em outros países, mas, o que tornou a Revolução Francesa

única foi a forma violenta em que estes arranjos se deram. As mudanças que possibilitaram a

liberdade do Terceiro Estado aconteceram em decorrência do desmoronamento do poder central

da monarquia, uma vez que, nos outros países, conservou-se o controle desse poder. Não teria

havido a Revolução Francesa da forma que ocorreu se o rei não tivesse sido deposto. A

revolução foi, portanto, causada pela crise governamental que Luís XVI não conseguiu resolver.

Apesar disso, o Terceiro Estado não foi o beneficiário imediato, pois, apesar de se dizer que o

povo tinha se rebelado, este não foi o seu primeiro motor. Na verdade, houve uma falta de

interlocução da burguesia, dos camponeses e dos operários com o rei, visto que não tinham

como interagir com ele. Esta interlocução aconteceu através do clero, via sua Assembleia, e da

nobreza, nos Parlamentos e nos Estados provinciais, os quais coagiram o rei. “Os patrícios”,

escreveu Chateaubriand, “começaram a revolução; os plebeus a terminaram”. (LEFEBVRE,

1989, p. 32).

Diante de tais circunstâncias, houve primeiramente um triunfo da Aristocracia, obtendo

sua oportunidade de voltar ao poder, que achava ser seu por direito, já que séculos antes haviam

sido despojados pela dinastia dos Capetos11. Todavia, sem a proteção do poder real, abriu-se

caminho para a revolução burguesa, para revolução popular das cidades e, por fim, para a

revolução camponesa. (LEFEBVRE, 1989, p. 33)

Uma das grandes contribuições da Revolução Francesa à humanidade foi o

fortalecimento do movimento iluminista e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,

mas, apesar dessa contribuição, nunca se utilizou tanto a guilhotina como nesta época,

ultrajando os próprios direitos do ser humano.

Em seu passivo: os massacres de setembro, os horrendos agentes do Terror em Paris

e na província, a corrupção e a incompetência, a ruína econômica, a guerra civil, o

vandalismo tacanho e os discursos vazios. No ativo: os grandes princípios que vão

dominar o século XIX, a destruição do feudalismo, as vitórias nas fronteiras e o

fortalecimento do sentimento nacional. (TULARD, 1989, p. 386)

Embora a revolução tenha sido francesa, os seus desdobramentos foram duradouros para

a maioria do mundo ocidental, particularmente no que concerne à Declaração dos Direitos do

Homem, que atingiram primeiramente a Europa, mas desdobraram-se por diversos países. Os

11 A dinastia dos Capetos, foi uma dinastia que governou a França por mais de trezentos anos. O nome vem da

alcunha do fundador, Hugo Capeto (941-987).

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pensamentos de Montesquieu, Voltaire e Rousseau12 foram fundamentais colaboradores da

elaboração destes direitos (LEFEBVRE, 1989, p. 213).

A revolução que culminou com a independência dos Estados Unidos não implantou

uma renovação religiosa no estilo da Revolução Francesa. Não desenvolveu o deísmo

filosófico ou patriótico, o ateísmo republicano nem o cristianismo evangélico

comprometido com a revolução social. O que ocorreu foi antes um fortalecimento e

uma confirmação do cristianismo puritano, com o desenvolvimento de várias

comunidades religiosas que preconizavam uma religião de colonização, de afirmação

do grupo étnico e da ordem civil de uma democracia de proprietários. Não se

desenvolveram as determinações da Revolução Francesa, de um cristianismo

comprometido com um processo de revolução social, e da revolução exigindo

manifestações de religiosidade. Até o milenarismo, o misticismo e a religiosidade

humanista se desenvolveriam nos Estados Unidos mais como consequência da

influência francesa, do que como influência direta do espírito revolucionário da

própria independência ou da tradição da Revolução Inglesa do século XVII.

(SABORIT, 2009, Locais do Kindle 3491-3498)

O pensamento de igualdade não era novo, por séculos, o mundo ocidental foi modelado

pelo pensamento cristão que, entre outros elementos, trazia em seu bojo esta ideia: a “Igreja

defendia a liberdade do indivíduo para garantir-lhe a faculdade de trabalhar em paz pela sua

salvação e merecer o paraíso”. Mas os filósofos, desde o século XVI até o XVIII, propunham

que essa liberdade fosse mais ampla, pela qual houvesse um lugar onde o homem pudesse

transformar a natureza segundo suas necessidades. Apesar de tanto a Igreja quanto os filósofos

terem em mente a defesa da dignidade humana, para os filósofos, não era papel da Igreja fazê-

lo e sim do estado. (LEFEBVRE, 1989, p. 214).

1.1.2. A França pós-revolucionária

O primeiro ato da Revolução Francesa se deu em 26 de agosto de 1789, mas as suas

consequências foram persistentes, desdobrando-se até hoje, mas oficialmente na história até

1799. Entretanto, segundo Lefebvre (1989, p. 213), os desdobramentos ao redor da Declaração

dos Direitos do Homem se prolongaram até 1830 e há relatos de fatos relacionados com a

instabilidade política da época que foram além, como os que envolveram diretamente Alan

Kardec, objeto de estudo deste trabalho:

Paris, 1848. Operários desempregados, Artesões, estudantes e mulheres tomaram as

ruas com centenas de barricadas. Paralelepípedos, móveis, entulho, tudo amontoado,

formando barreiras. Em meio a prisões e fuzilamentos, 50.000 manifestantes viveram

terror e entusiasmo. O povo mobilizado ostentava bandeira e exigia: - Fora o rei!

Queremos república! Democracia! Igualdade! [...] Desde a Revolução Francesa de

1789, as insurreições pareciam respeitar um ciclo natural, voltando de tempos em

12 O Pensamento de Rousseau é particularmente interessante para nosso estudo e será estudado mais à frente com

maior detalhe.

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tempos como ondas. Nessa primavera dos povos, professor Rivail13 morava com sua

esposa Amélie Boudet na rua Mauconseil, uma das mais agitadas desde o início das

jornadas populares. No primeiro anoitecer, uma algazarra percorreu a rua. Um tiro foi

ouvido. Depois da meia-noite, fez-se silêncio. No segundo dia, naquela curta e mal

defendida rua, as tropas abriram fogo. Protegidos por barricadas improvisadas, cinco

operários foram baleados - três mulheres e duas crianças. Na manhã do terceiro dia,

dois estudantes que lutavam ao lado dos trabalhadores foram mortos. (FIGUEIREDO,

2016, p. 37)

Por cerca de trinta anos, a França passou por diversas ondas de instabilidade política. A

primeira República caiu com o golpe de Napoleão, que se tornou imperador. Este, por sua vez,

foi substituído pela dinastia de Bourbon, na figura de Luís XVIII, quando Napoleão perdeu sua

batalha em 1815. Carlos X assumiu o trono de Luís XVIII em 1824, em razão de sua morte. Por

causa das condições deploráveis dos operários, da má colheita e da fome, explode, em 1830,

uma nova onda revolucionária que depôs Carlos X e o exilou em favor de Luís Felipe I o rei

burguês.

O poder só havia mudado de mãos, os direitos do ser humano ainda eram um sonho,

longe de serem realizados, os operários ainda enfrentavam miséria, fome e desemprego. Com

uma população de um milhão e duzentos mil habitantes, a maior cidade industrial da Europa

possuía quatrocentos mil operários. Nas fábricas, trabalhavam sem descanso mulheres e

crianças, além de muitos homens, em condições precárias. Salários baixos e preços altos, as

condições de vida pioravam para os pobres operários, enquanto tudo melhorava para os

portadores de capital: industriais e comerciantes.

Os doze distritos de Paris ainda estavam confinados dentro de seus muros, cercada

para cobrança dos impostos Ferme générale na passagem dos seus 55 portões. A

maior parte da cidade era cortada por vielas. Por algumas, passava um por vez de cada

lado de um córrego sujo. Nos bairros distantes, os pobres amontoavam-se em casebres

insalubres e a classe média fugia, assustada com a degradação. (FIGUEIREDO, 2016,

p. 39)

Estavam assim estabelecidas as condições para a Segunda República, com cinquenta

mil pessoas nas ruas que queriam a queda do rei Luís Filipe, que acabou por abdicar sem

maiores resistências. A Segunda República durou pouco, Luís Napoleão Bonaparte (1808 –

1873), sobrinho de Napoleão, foi eleito para governar o país como presidente, mas em 1851,

como não haveria reeleição, promoveu um golpe de estado, tornou-se o imperador Napoleão

III e governou por quase vinte anos, trazendo alguma estabilidade política na França.

Apesar de Napoleão III ter feito importantes reformas para a França, principalmente de

ordem arquitetônica, com a demolição de prédios, alargamento das ruas, para a consolidação

de uma França mais cosmopolita e comercial, as questões sociais continuaram a ser relegadas,

13 Nome de batismo de Allan Kardec.

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e as diferenças sociais continuavam marcadamente acentuadas.

Em meio a essas convulsões políticas e sociais, diversos pensadores iluministas

reforçavam o seu pensamento e ousavam manifestar as suas visões de mundo. Cada um a seu

modo tentou contribuir para modificar os pensamentos dessa época. Entre eles, um pedagogo

discípulo de Pestalozzi, o Professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, que assumiria no futuro

o pseudônimo Allan Kardec, do qual passaremos a descrever a vida e a obra.

1.2. A formação científica e religiosa do codificador do Espiritismo

Antes de entender quem foi Allan Kardec, o codificador do Espiritismo, é necessário

compreender o homem através da figura histórica. Por mais que ele mesmo afirme, como

veremos adiante, que o conteúdo legado pelo Espiritismo não é dele e sim dos espíritos, ele teve

importância fundamental na coordenação de seu conteúdo, assim como ao expressar também o

seu pensamento em diversos momentos. Por essa razão, o objetivo desse tópico é de falar um

pouco sobre quem foi esse homem.

1.2.1. O cidadão francês Hippolyte Léon Denizard Rivail

Aos 11 do Vindemiário14 do ano XIII, na Rua Sala, n° 74, no Estabelecimento de Águas

Minerais da Cidade de Lyon, onde se encontrava hospedada temporariamente a esposa do Sr.

Jean Baptiste Antoine Rivail, a Sra. Jeanne Louise Duhamel deu à luz a um menino que,

conforme sua certidão de nascimento, recebeu o nome de Denisard, Hypolite Leon Rivail, o

qual, mais tarde, adotaria o pseudônimo de Allan Kardec.

O nome civil de Allan Kardec é objeto de diversas discussões, pois há uma série de

documentos que apontam que ele mesmo assinava seu nome de forma diversa da que é

apresentada em sua certidão de nascimento. Em sua certidão de casamento, consta o nome

Hippolyte Léon Denizard Rivail, o qual, além de diferenças na disposição dos nomes, apresenta

grafia diferenciada, com dois “p” em Hippolyte, “y” depois do “l” e não depois do “h” e acento

no “e” de Leon.

14 Esta data pertence ao calendário da Revolução Francesa, que começou em 22 de setembro de 1792, ano I da

república. Pelo novo calendário, oficializado em novembro de 1793, o ano tinha 12 meses e 30 dias e mais cinco

dias complementares, dedicados às festas republicanas. O novo calendário nunca foi popular. Com exceção dos

funcionários do governo, poucas pessoas o utilizavam, embora ignorá-lo fosse considerado crime. Em primeiro

de janeiro de 1806 ele foi definitivamente abolido por Napoleão (cf. MARTINS, 1999, p. 29). A data da certidão

de nascimento de Rivail é 12 do Vindemiário e nela está grafado, que “ontem” nasceu o filho do Sr. Jean Baptiste,

portanto, dia 11, que corresponde a 3 de outubro de 1804 do calendário gregoriano.

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Em se tratando ainda de documentos oficiais, veremos que sua certidão de óbito possui

outras diferenças que também vão além da grafia, já que nela consta o nome Léon Hippolyte

Denisart Rivail.15 Ao fim deste trabalho no Anexo A, apresentamos as cópias da certidão de

nascimento, contrato de casamento e sua certidão de óbito e suas respectivas transcrições bem

como uma foto sua quando da idade adulta.

Diante dessas divergências, optamos por usar no decorrer deste trabalho o nome que

consta em sua certidão de casamento, que é o que ele mesmo adotava em suas obras acadêmicas,

Hippolyte Léon Denizard Rivail (WANTUIL, 1984a, p. 88), e é, inclusive, utilizada por

Maurice Lachâtre (1867 p. 199), no Nouveau Dicitionnaire Universel. Pantheon Litteraire et

Encyclopédie Ilustrée 16, que o biografou em vida. Acreditamos, portanto, que este nome o

retrata de forma mais fiel, pois, em tal momento ele mesmo se encontrava pleno de sua vontade,

e, provavelmente, deve ter revisado tanto sua certidão de casamento quanto as referências feitas

a seu respeito por Lachâtre. O nome da certidão de casamento é também o que foi escolhido

por Wantuil e Thiesen, biógrafos de Kardec.

Não são muitos os biógrafos de Rivail. Notadamente, as informações relativas à sua

pessoa para fins biográficos recaem principalmente sobre seu trabalho enquanto Allan Kardec.

Neste capítulo, todavia, nossa atenção se fixará principalmente sobre a figura do Professor

Rivail, pois pretendemos, no decorrer de nosso trabalho, considerar como a formação do

homem Rivail culminou com a figura do codificador do Espiritismo Allan Kardec. Escolhemos,

para nortear o trabalho biográfico, Henri Sausse, cuja biografia é a mais conhecida e popular,

particularmente por ser a que foi adotada como oficial pela editora da FEB (Federação Espírita

Brasileira) na introdução do livro O que é o Espiritismo17 (KARDEC, 1989). Seguimos também

duas outras biografias: a primeira delas é a de Maurice Lachâtre (LACHÂTRE, 1867) cujo

volume de informações acerca de Rivail não é grande, mas que tem a importância de ter sido

contemporânea a ele e deste ter sido seu amigo pessoal. A segunda referência biográfica é de

Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (1984a)18 em virtude da qualidade e da análise crítica da vida

de Rivail presentes nesta obra, problematizando inclusive mitos acerca do homem idolatrado

15 No apêndice da biografia de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (WANTUIL, 1984a, p. 193-197), há meticuloso

estudo sobre o nome do Sr. Rivail, detalhando e problematizando as questões relacionadas às divergências

encontradas em seu nome. 16 Há nessa biografia ainda uma outra divergência, já que os três primeiros nomes aparecem separados por hífen

“Hippolyte-Léon-Denizard Rivail”, o que não se encontra presente em sua certidão de casamento. 17 A primeira edição dessa biografia data de 1896 e aparecia traduzida na coletânea O Principiante Espírita, que a

Federação Espírita Brasileira publicava no passado. (CHIBENI, 1999, p. 52). 18 Silvio Seno Chibeni afirma que: “a obra ‘Allan Kardec’, em três volumes, da autoria de Zêus Wantuil e Francisco

Thiesen, dada a público pela Federação Espírita Brasileira em 1979/80 [...], representa o mais completo e

rigoroso estudo já publicado sobre a vida e a obra de Kardec”. (CHIBENI, 1999, p. 52).

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por alguns. Nesta biografia eles desmentem ainda algumas informações equivocadas legadas

por Henri Sausse e alguns outros19 que desenvolvem biografias sobre o cidadão Rivail em seus

trabalhos. Além disso, esta última biografia, particularmente, traz informações relevantes

acerca da formação acadêmico-científica de Rivail. Lançamos mão também do trabalho de

Jorge Damas Martins e Stênio Monteiro de Barros (MARTINS, 1999) que fizeram relevante

análise de documentos biográficos de Rivail, e de Paulo Henrique Figueiredo (2016) que, apesar

de não fazer um trabalho biográfico, traz relevantes informações sobre a vida do Professor

Rivail.

O jovem Rivail foi natural de Lyon, mas não residiu nesta cidade20 e sim em Bourg de

L’Ain ou Bourg-en-Bresse, cidade sede do Departamento de Ain localizado a 60 km a Noroeste

de Lyon (MARTINS, 1999, p. 33), onde seu avô materno, Benôit Marie Duhamel, havia sido

nomeado prefét 21. Bourg, como era simplesmente chamada, tratava-se da cidade natal de sua

mãe, o que levou o historiador Antoine-Marie-Alexandre Sirand (1799-1871) a afirmar

equivocadamente que Rivail havia nascido nesta cidade.

Rivail era descendente de antiga família lionesa de tradição católica e com forte tradição

na magistratura, sendo seu pai declarado em sua certidão de nascimento como homem de lei, o

que foi tratado por Henri Sausse como magistrado, juiz. Nos documentos levantados, há

indícios que levam a crer que ele, à época do nascimento de seu filho, estaria residindo em

Paris, mas não se determina o porquê de lá residir22 (MARTINS, 1999, p. 32-33). Lachâtre

(1867, p. 199) afirma que Rivail era “filho e neto de advogados, e de uma antiga família que se

distinguiu na magistratura e no foro, não seguiu essa carreira; dedicou-se cedo ao estudo da

ciência e da filosofia”.

Hippolyte Léon Denizard Rivail era o terceiro filho do casal, embora seus irmãos

Auguste Claude Joseph Françoise, o primogênito, e Marie-Françoise Charlotte Eloise tenham

falecido antes do seu nascimento, o menino aos 6 anos e a menina aos 2 anos de idade

19 Anna Blackwell faz pequena biografia de Kardec na sua tradução para o inglês de O Livro dos Espíritos, André

Moreil também faz uma importante biografia em Allan Kardec sa vie, son œuvre, além de ser também citado

pelo historiador francês Antoine-Marie-Alexandre Sirand (1799-1871). 20 Na Revista Espírita de 1862, Kardec afirma textualmente que “jamais morei em Lyon” (KARDEC, RE:

Mai/1862, p. 251) 21 Na França o prefét, tem alguma semelhança com nosso governador de estado. As cidades são chamadas de

communes, geridas por conselhos municipais. Desde 1790, o país foi dividido em 89 unidades administrativas,

ou departamentos administrados por um conselho geral, eleito a cada seis anos. Quem representava a nação no

departamento era o prefét. No caso do Departamento de Ain, o prefét era o avô materno de H.L.D. Rivail, o Sr.

Benôit Marie Duhamel. (FIGUEIREDO, 2016, p. 82) 22 Em obra recente Paulo Henrique de Figueiredo (2016, p. 83) esclarece que Jean Rival era juiz de paz e promotor

militar, e inclusive servia no exército de Napoleão. Quando do nascimento do menino Rivail, ele se encontrava

em Paris a serviço do exército, mas Figueiredo, por sua vez, não afirma que este residia em Paris, como é sugerido

por Sausse.

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(FIGUEIREDO, 2016, p. 90). O infortúnio de Jeanne-Louise Duhamel não haveria de ser só

este, pois, quando o menino Rivail tinha apenas três anos, sofreu a perda de seu marido, dado

como morto, já que este fazia parte do efetivo de Junot, que tentou a invasão frustrada de Lisboa

em 1807, quando a corte Portuguesa fugiu para o Brasil.

A morte do Sr. Jean Baptiste Antoine Rivail e de seus tenros filhos não foram as únicas

desditas pessoais de Jeanne Duhamel, pois anos antes, em 16 de março 1794, ela e sua mãe

Charotte Bochard receberam a notícia do guilhotinamento sofrido pelo Sr. Benôit, vítima da

perseguição dos jacobinos23. Com a morte de Benôit e mais tarde, em 1807, de Jean Rivail, o

jovem Rivail foi criado, dos três aos dez anos, por sua mãe e sua avó Charlotte, que viviam do

espólio de seu marido, no valor de seiscentas libras por ano (FIGUEIREDO, 2016, p. 89).

Em 1814, com o enfraquecimento dos exércitos de Napoleão, a guerra chegou às ruas

de Bourg, e os bressans24 pegaram em armas, e a família Rivail fugiu das lutas rumo à Suíça,

onde o jovem Rivail passou a estudar (FIGUEIREDO, 2016, p. 104).

1.2.2. A formação escolar e acadêmica de Rivail

Henri Sausse (2014, p. 19) afirma que os primeiros anos de estudo de Rivail se deram

em Lyon25 e, aos 10 anos de idade26, foi enviado para estudar em tradicional escola na Suíça,

do cantão de Vaud, no Instituto de Yverdon (ou Yverdun).

O Instituto de Educação de Yverdon, fundado e dirigido por Johann Heinrich Pestalozzi

(1746-1827), surgiu em 1805 e gozava de enorme reputação, sendo citada como escola modelo

da Europa. Este instituto foi visitado para fins de servir como modelo de educação por diversas

personalidades políticas, científicas, literárias e filantrópicas além de autoridades de renome

como o Rei da Prússia, o czar da Rússia, o Rei de Espanha, a futura Imperatriz do Brasil, D.

Leopoldina de Áustria, e muitos expoentes da nobreza europeia e do mundo cultural

(WANTUIL, 1984a, p. 33).

Roger de Guimps (1802-1894) foi aluno do Instituto dirigido por Pestalozzi de 1808 a

23 Jacobinos, eram membros de uma sociedade política revolucionária, Le club des Jacobins, fundada em Paris em

1789, que defenderam um ideário democrático exacerbado. 24 Naturais da cidade de Bourg-en-Bresse. 25 Apesar de Henri Sausse ter feito essa afirmação, vemos a possibilidade de haver equívoco nessa informação, já

que, na Revista Espírita de 1862, Kardec afirma textualmente que “jamais morei em Lyon” (KARDEC, RE:

Jan/1862, p. 251). Segundo Martins (1999 p. 33), Lyon ficava a 60 km da residência dos pais de Rivail, o que,

para a época, torna questionável esta afirmação, já que não havia meios de se deslocar 60 km diariamente para

frequentar a escola. 26 Dora Incontri (2001, p. 181) afirma que Rivail foi matriculado em Yverdon aos 11 anos e não aos 10 como

afirma Henri Sausse. Segundo ela, essa informação consta nos registros do Centre de Documentation et

Recherche de Yverdon. Figueiredo (2016, p. 104) corrobora com esta informação.

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1817 e descreve assim a sua rotina:

Os alunos gozavam de grande liberdade; as portas do castelo permaneciam abertas o

dia todo, e sem porteiros. Podia se sair entrar a qualquer hora, como em toda casa de

uma família simples, e as crianças quase não se prevaleciam disso. Eles tinham, em

geral, dez horas de aula por dia, das seis da manhã às oito da noite, mas cada lição só

dura uma hora e era seguida de pequeno intervalo, durante o qual ordinariamente

trocava de sala. Por outro lado, algumas dessas lições consistiam em ginástica ou em

trabalhos manuais, como cartonagem e jardinagem. A última hora da jornada escolar,

das sete às oito da noite era dedicada ao trabalho livre; as crianças diziam: On travaille

por soi, e elas podiam, a seu bel prazer, ocupar-se de desenho ou de geografia,

escrever a seus pais, ou pôr em dia seus deveres. [...] Três vezes por semana, os

mestres davam conta a Pestalozzi da conduta e do trabalho dos alunos; estes, cinco a

seis de cada vez, eram chamados à presença do “velho” para receber suas

admoestações e exortações. Pestalozzi os levava então, um após o outro, a um canto

do seu gabinete de trabalho e com eles conversava em surdina. Perguntava se tinham

algo para lhe dizer, para lhe pedir; procurava assim ganhar-lhes a confiança, a fim de

sondar se eles se sentiam bem, o que lhes agradava ou desagradava. Todos os

domingos, numa assembleia geral, passava-se em revista o trabalho da semana. (apud

WANTUIL, 1984a, p. 37)

Na condição de aluno estrangeiro (não suíço), Rivail viveu no ambiente descrito acima

por Roger de Guimps de 1815 até pelo menos27 1822, já que não há registros claros a respeito

de seu retorno a Lyon (segundo alguns biógrafos) ou a Bourg-en-Bresse. Há dúvidas se ele teria

ido diretamente a Paris ou se teria voltado à sua terra natal por um período. Em Paris estabeleceu

residência na Rua da Harpa, 117, um dos principais eixos da vida universitária parisiense nas

proximidades do Liceu Saint-Louis (WANTUIL, 1984a, p. 82).

Para uma criança ser mantida no instituto de Pestalozzi, em 1812, a família despendia

cerca de setecentos e vinte cinco francos28 por ano, além de cama e enxoval completo

(WANTUIL, 1984a, p. 36). A educação do jovem Rivail, portanto, foi invejável, e restrita a

uma pequena minoria de cidadãos, que formariam uma elite de intelectuais de sua época.

Figueiredo (2016, p. 104) afirma que houve uma mobilização familiar para manter o jovem,

com venda de imóveis e outras ações, para custear os estudos do menino. Hippolyte Léon

Denizard Rivail tornou-se, com o passar do tempo, um dos mais eminentes discípulos de

Pestalozzi e deu continuidade ao seu revolucionário método de trabalho (LACHÂTRE, 1867),

pelo qual legou muitas obras na área da pedagogia e da educação, as quais se encontram

relacionadas no Anexo B, ao fim deste trabalho.

No ano de 1813, em função das guerras napoleônicas, o Instituto de Yverdon passou por

27 Há aqui também divergências biográficas a respeito da época em que Rivail tenha deixado o Instituto de

Pestalozzi. Na biografia de Wantuil e Thiesen (1984a, p. 78 a 82), são feitas discussões e análises acerca desta

data. 28 Esta quantia era elevada para a educação de uma criança. Como comparação monetária, Sausse (2014, p. 21)

declara que Rivail, adulto, recebia a quantia de 7.000 francos por ano para fazer a contabilidade de três empresas.

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dificuldades tanto financeiras como pedagógicas, na medida em que uma série de alunos-

mestres deixaram o instituto, voltando para seus países de origem, particularmente a Alemanha.

Os alunos-mestres eram jovens professores enviados pelos governos de nações próximas que

ali se matriculavam para aprender o método pestalozziano de ensino e o introduzirem em seus

países de origem no seu regresso. Essa situação fez com que Pestalozzi lançasse mão da

utilização de alunos mais adiantados na condição de colaboradores. Esta era uma prática que

ele se utilizava desde o orfanato de Stans, onde desenvolveu o seu método. Numa carta escrita

em 1799, Pestalozzi destaca que:

Logo encontrei ajuda entre meus próprios alunos, e na diferença de capacidade de

cada um deles. Servia-me dos mais adiantados para fazê-los ensinar aos seus colegas

o que eles mesmos sabiam. Esta distinção lhes dava prazer; excitava neles pura e

louvável emulação; consolidavam o que tinham aprendido, ao repeti-lo para os outros.

[...] Eu me cercava, assim, de colaboradores, os quais, conformando sua conduta com

a minha, seriam, com tempo, bem mais úteis e melhor adaptados às necessidades do

estabelecimento que os “instituteurs29” propriamente ditos. (apud, WANTUIL, 1984a,

p. 62).

Apesar do exílio de Napoleão Bonaparte em 1815, que deu novo impulso à situação do

instituto, a prática dos alunos colaboradores se manteve. Há evidências de que Rivail passou

por esta experiência, uma vez que ele próprio declara em sua obra Mémoire sur l’instruction

publique (1831) que tinha experiência pedagógica de 12 anos, o que apontaria, se levada em

consideração a data da publicação, para a idade de 15 anos, época em que ele ainda estudava

em Yverdon. O Instituto de Pestalozzi fornecia formação primária e secundária e aqueles que

assim o quisessem recebiam um terceiro e último grau: a educação normal, dedicada à

formação de professores, normalmente até a idade de quinze ou dezesseis anos, ao qual tudo

indica ter sido a opção de Rivail, posto que se tornou pedagogo.

Além das já citadas obras que publicou (Anexo B), o Professor Rivail também fez parte

de diversas sociedades, chamadas à época de sociedades sábias. No Plan proposé pour

l'amélioration de l'education publique de 1828 ele mesmo cita que era “membro de diversas

sociedades sábias”, e no discurso de 14 de agosto de 1834, cita também que fazia parte da

Académie d’industrie. Na obra Projet de réforme concernant les examens et le maisons

d'éducation des jeunes personnes, de 1847, cita ainda que fazia parte da Academia Real de

Ciências de Arrás, do Instituto Histórico, da Sociedade das Ciências Naturais de França

(WANTUIL, 1984a, p. 172-179).

Muitos documentos acerca da vida pública de Rivail foram perdidos quando houve

29 Palavra francesa que não tem tradução exata para o português, e tem sido traduzida de forma livre simplesmente

como “professores”.

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pilhagem nazista durante a ocupação alemã, na Segunda Guerra Mundial. Esses documentos

encontravam-se na Maison des Spirites, no número 8 da rue Copernic, em Paris, fundada por

Jean Meyer em 1923. Além das já citadas, ele foi comprovadamente membro de diversas

sociedades30. A participação nelas, como descreve Wantuil e Thiesen (1984a, p. 172 a 179),

fizeram de Rivail, além de conhecido, muito respeitado.

Henri Sausse (2014, p. 19) afirma que Rivail chegou a substituir Pestalozzi na direção

de seu instituto, o que é problematizado por Wantuil e Thiesen (1984a, p. 64) dizendo que não

há evidências e/ou registros históricos que apontem para tal atividade. Os biógrafos afirmam

ainda que é muito pouco provável que Rivail o tenha substituído, já que, no período em que ele

estudou no instituto, Pestalozzi era amparado por Johannes Niederer (1779-1843) e Johann

Joseph Schmid (1785-1851) que o ajudavam na administração da instituição.

Henri Sausse faz ainda outras afirmações a respeito da formação de Rivail que merecem

atenção:

Bacharelara-se em letras e ciências e doutorara-se em medicina após completar todos

os estudos médicos e defender com brilhantismo sua tese. Insigne linguista, conhecia

e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano, o espanhol; tinha conhecimentos,

também, do holandês, e com facilidade podia expressar-se nesta língua. (SAUSSE,

2014, p. 19)

As afirmações de Sausse que Rivail tenha sido Doutor em Medicina são

problematizadas por Wantuil e Thiesen (1984a, p. 157), ao afirmarem que esta notícia surge

com a declaração Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901), sucessor de Rivail na direção da

Revista Espírita, e que os biógrafos o seguiram, mas sem verificar as fontes. Não há, até então,

nenhum documento que comprove que ele tenha frequentado e, muito menos, defendido tese

como médico. Segundo Albert L. Caillet (apud WANTUIL, 1984a, p. 157), Rivail tinha

“conhecimentos médicos incontestáveis”, mas não há, porém, evidências para afirmar que tenha

sido médico. Quanto ao fato de ser linguista insigne, há evidências documentais, entre elas

excertos da obra de Fénelon (1651-1715) que foram traduzidos para o alemão, com destaque

para Telémaque que foi por ele traduzida, confirmando que era poliglota. Além dos idiomas

30 Rivail foi comprovadamente membro das seguintes instituições:1) Membro residente da Sociedade Gramatical

(Société grammaticale); 02) Sociedade para instrução elementar (Société pour l’instruction élémentaire); 03)

Membro fundador da Sociedade de Previdência dos Diretores de Instituições e Pensões de Paris (Société de

prévoyonce des chefs d’instituition et des maitres-de-pension de Paris); 04) Sociedade de Educação Nacional

(Société d’éducation nationale); 05) Instituto de Línguas (Institut des langues); 06) Membro correspondente da

Sociedade Real de Emulação, de Agricultura, Ciências, Letras e Artes do Departamento de Ain (Société royale

d’émulation, d’agriculture, aciences, letres et arts du dépertment de l’Ain); 07) Sociedade Promotora da

Indústria Nacional (Société d’encouragement pour l’industrie); 08) Membro titular da Sociedade Francesa de

Estatística Universal (Société française de statistique universelle); 09) Membro titular da Academia de Indústria

Agrícola, Manufatureira e Comercial (Académie de l’industrie agricole, manufacturière et commerciale).

(WANTUIL, 1984a, p. 172 a 179)

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citados no texto de Sausse, Wantuil e Thiesen dizem ainda que Rivail tinha sólidos

conhecimentos do latim, do grego, do gaulês e de algumas línguas novilatinas31 (WANTUIL,

1984a, p. 155).

Existem muitos outros relatos acerca do cidadão Rivail que são discutidos por Wantuil

e Thiesen. Entre eles, a questão de que Rivail teria sido maçom, outros biógrafos afirmam que

ele tenha sido advogado. Há relações citadas também de Rivail com o teatro na condição de

contrôleur (uma espécie de administrador), além de outras funções. O que nos parece é que

existe uma tendência em evidenciar a inteligência e a característica polimática de Rivail devido

a uma necessidade de seus seguidores de exaltar a figura do codificador do Espiritismo. Não

que ele não tivesse sido de fato um homem culto e preparado intelectualmente, mas percebe-se

em seus biógrafos uma forte admiração, na qual permeia a adoração de um seguidor, de um

discípulo.

Nesse tópico, procuramos trazer informações que permitam ao leitor compreender quem

foi o cidadão Rivail, que serviu de base para o personagem histórico Allan Kardec.

Observaremos agora como foi a sua formação religiosa.

1.2.3. A formação religiosa de Rivail e a influência de Pestalozzi

Nascido em tradicional família católica, Rivail foi batizado pelo Padre Barthe a 15 de

junho de 1805 na igreja Saint-Denis de la Croix-Rousse, em Lyon, onde constam seus registros

de batismo (WANTUIL, 1984a, p. 31). Aparentemente, ele recebeu toda a formação pertinente

às tradições católicas da época. Apesar de ter nascido numa tradicional família católica, foi a

educação em Yverdon na Suíça que teve consequências significativas para a sua formação

religiosa:

Nascido na religião católica, mas criado num país protestante, os atos de intolerância

que sofreu a esse respeito lhe fizeram conceber, desde os quinze anos de idade, a ideia

de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio por muitos anos, com o

pensamento de chegar à unificação das crenças; mas faltava-lhe o elemento

indispensável à solução desse grande problema. O Espiritismo veio mais tarde

fornecer-lhe esse elemento e imprimir uma direção especial a seus trabalhos.

(LACHÂTRE, 1867, p. 199).

Nas afirmações de Lachâtre, encontramos importante informação a respeito da

influência religiosa sobre o cidadão Rivail, codificador do Espiritismo, pois, nascido na tradição

católica, foi educado em um país de fortes tradições protestantes. A que “atos de intolerância”

31 Novilatino é o mesmo que neolatino; diz-se das línguas, da cultura e dos povos oriundos da civilização dos

antigos romanos.

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se referiu o biógrafo?32 O fato de ter recebido uma formação católica foi motivo de violência

naquele país protestante? A influência dos pensamentos de Pestalozzi e de seu instituto atingiam

os seus alunos de que forma? Para responder a tais questionamentos, vejamos como se

processava a educação religiosa do Instituto de Yverdon.

A formação do homem integral fazia parte do programa de Pestalozzi, portanto, a

influência deste e de seu instituto para seus alunos foi de grande monta em suas personalidades,

não se restringindo tão somente à formação acadêmica, mas também à formação do caráter e

da moral do indivíduo, já que este acreditava na formação do ser global: “a educação não pode

ser massificada, homogeneizada, padronizada, porque a relação educador/educando se funda

na globalidade do ser” (INCONTRI, 2001, p. 178).

Os biógrafos de Kardec, Wantuil e Thiesen, apresentaram um resumo dos princípios

pestalozzianos retirados do livro Como Gertrudes ensina seus filhos:

I - A intuição é o fundamento da instrução.

II - A linguagem deve estar ligada à intuição.

III - A época de ensinar não é a de julgar e criticar.

IV - Em cada matéria, o ensino deve começar pelos elementos mais simples, e daí

continuar, gradualmente, de acordo com o desenvolvimento da criança, isto é, por

séries psicologicamente encadeadas.

V – Deve-se insistir bastante tempo em cada ponto da lição, a fim de que a criança

adquira sobre ela o completo domínio e a livre disposição.

VI - O ensino deve seguir a via do desenvolvimento e jamais a da exposição

dogmática.

VII - A individualidade do aluno deve ser sagrada para o educador.

VIII - O principal fim do ensino elementar não é sobrecarregar a criança de

conhecimentos e talentos, mas desenvolver e intensificar as forças de sua inteligência.

IX - Ao saber é preciso aliar a ação; aos conhecimentos, o savoir-faire.

X - As relações entre mestre e aluno, sobretudo no que concerne à disciplina, deve ser

fundada no amor e por ele governadas.

XI - A instrução deve constituir o escopo superior da educação. (WANTUIL, 1984a,

p. 96 e 97).

Esses princípios, portanto, foram muito importantes na formação do jovem Rivail, pois

Pestalozzi era tido como um pai para os seus alunos, e sua forma de pensar, no que tange às

questões morais e religiosas, foram fundantes para o pensamento de seus educandos.

A questão é como engajar a vontade moral do ser — desde a fase infantil — para que

se realize como homem integral (segundo Pestalozzi, esse desenvolvimento deve ser

harmonioso, integrando mãos, coração e cabeça. “Há que se cultivar de tal modo as

faculdades da pessoa que nenhuma delas predomine às custas da outra…”). Aparece

então a maior contribuição de Pestalozzi [...] Afirma ele que o acesso a essa vontade

profunda do ser, a possibilidade de tocar a divindade íntima do homem está no amor,

que ele chama de “força elementar da moralidade”. Uma vez ativado esse impulso

fundamental, ele passa a reger um desenvolvimento harmonioso e espontâneo, em que

não faltam o esforço do sujeito e o empenho do educador, mas que se dá a partir do

32 Na biografia de Kardec feita por Anna Blackwell na tradução de O Livro do Espíritos, este desejo de uma

reforma religiosa também é relatado, mas a fonte dessa informação não é citada (que poderia inclusive ter sido

buscada no próprio Lachâtre). (KARDEC, 1996, p. 9)

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interior da criança, de forma natural e não coercitiva (INCONTRI, 2001, p. 177,

grifos nossos).

Dessa forma, quando se estuda o método de ensino de Pestalozzi, não há como acreditar

que o jovem Rivail tenha sofrido intolerância pelo seu método em si, já que baseava o seu

ensino no despertar do conhecimento do indivíduo “a partir do interior da criança, de forma

natural e não coercitiva”, mas talvez pelo ambiente onde as crianças eram criadas. Entendemos

que seria contra a ética de Pestalozzi violentar a formação religiosa da criança; entretanto,

existia, como foi descrito anteriormente por Roger Guimps (WANTUIL, 1984a, p. 37), um

ambiente de total integração dos alunos com o instituto, de forma que eles percebiam tudo o

que acontecia ao seu redor.

Apesar de pertencer à igreja reformada e de ter em seu quadro professores luteranos e

calvinistas, Pestalozzi procurava manter-se distante das querelas e paixões religiosas. Dava à

Bíblia valor relativo e não demonstrava fervor às lições de catecismo. Aliás, enquanto discípulo

de Jean Jacques Rousseau acreditava em

[...] uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios

universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da

alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome,

individual, e muito mais orientada para a ética do que para o culto (INCONTRI, 2001,

p. 71).

Em consequência dessa postura em relação ao ensino da religião, o instituto de

Pestalozzi sofreu diversos ataques externos e internos. Mais de uma vez teve que rebater,

através da imprensa, imputações inverídicas a respeito do ensino religioso no instituto.

Internamente, aconteceram embates de cunho religioso com seu administrador Johannes

Niederer, que chegou a afirmar que havia se apercebido de que Pestalozzi não era

verdadeiramente cristão. Esta declaração foi feita publicamente, na presença de seus alunos nas

comemorações do Pentecostes de 1817, como registra a história do instituto, culminando com

a saída de Niederer. Tal maneira de pensar, que aceitava o cristianismo, mas rejeitava os dogmas

e as suas formas, foi citada por mais de um de seus biógrafos, como James Guillaume (1844–

1916) e Gabriel Compayré (1843-1913), este último disse: “Não lhe perdoavam por contentar-

se com uma religião natural, com um deísmo filosófico à Rousseau, com um cristianismo

racionalista.” (WANTUIL, 1984a, p. 70).

Na contramão do método pestalozziano, Rivail viu o nascimento de uma vivificação da

fé protestante denominada réveil33 que pregava uma teologia estreita e opressiva que pretendia

33O Réveil (palavra em francês que significa "reavivamento", "despertar") de 1814 foi um movimento de

renascimento dentro da Igreja Reformada da Suíça ocidental e de algumas comunidades reformadas no sudeste

da França.

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anular o livre arbítrio e a tentativa do homem de trabalhar a sua própria santificação. Os adeptos

deste movimento chegaram a afirmar, assim como Niederer, que Pestalozzi não era verdadeiro

cristão e tentaram a todo custo impor ao fundador do instituto sua forma de pensar acerca dos

métodos de ensino religioso.

O ensino da religião era dividido no instituto. Os alunos oriundos de países protestantes,

que eram sua maioria, recebiam instrução religiosa desse segmento religioso, o que não era

obrigatório para os outros alunos. Com o aumento do número dos alunos católicos, estes

passaram a receber aulas de catecismo por um sacerdote católico romano, o que provavelmente

aconteceu com o jovem Rivail (WANTUIL, 1984a, p. 74). A presença de Rivail nesse ambiente,

portanto, pode ter levado à declaração de Lachâtre sobre o desejo de Kardec de fazer um

movimento de unificação das religiões. Entendemos que o tempo se incumbiu de demonstrar

que Rivail estava alinhado com os pensamentos de Pestalozzi, que se preocupava mais com

ensino moral do que com as doutrinas dogmáticas. Essa influência pode ser verificada na

introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo na qual Kardec diz:

Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos

comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas

pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro primeiras

têm sido objeto de controvérsias; a última, porém, conservou-se constantemente

inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno

onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se,

quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das

disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se originaram das questões

dogmáticas. [...] Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra. (KARDEC, ESE:

Introdução: I).

Além da influência de seu mestre Rousseau, Pestalozzi recebeu também a influência e

proteção do filósofo e teólogo Johann Kaspar Lavater (1741-1801), com o qual manteve

relações até sua morte. Lavater foi um estudioso do ocultismo e evidenciado nas cartas que

escreveu à Imperatriz Maria Feodorowna (1847-1928). Nessas cartas apresentou ideias que,

inclusive, concordam com o Espiritismo acerca do destino da alma após a morte. Um dos

campos de estudo de Lavater também foi o estudo a respeito do magnetismo animal, tendo ele

trocado informações relevantes com o fundador do mesmerismo criado pelo médico alemão

Franz Mesmer (1734-1815), assunto este que não por coincidência foi estudado por Kardec por

muitos anos, e inclusive, fortemente relacionado ao Espiritismo como veremos mais à frente no

tópico quatro deste capítulo.

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1.3. As influências do pensamento iluminista francês na filosofia, na ciência e na

religião no século XIX

Liberdade, Igualdade e Fraternidade, este é o título de um dos capítulos do livro Obras

Póstumas, de Allan Kardec, (2016, p. 211), assim, com base nessa simples referência, entre

outras, pode se estabelecer a existência de uma influência marcante do Iluminismo na obra de

Kardec. Nesse capítulo, recuperado por P.-G. Leymarie, fica evidente esta influência quando

Kardec diz, logo no início: “Liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras representam,

por si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da

humanidade, se o princípio que elas traduzem pudesse receber integral aplicação.” (KARDEC,

OP: Liberdade, Igualdade e Fraternidade). Entender, portanto, o que significou o Iluminismo

na vida e obra de Rival (e também como Kardec) é de fundamental importância.

Como discípulo de Pestalozzi, Rivail teve sua formação fortemente enraizada nos

pensamentos do século XVIII, preâmbulo da consolidação de um racionalismo intenso no

século XIX, além disso, a Reforma Protestante, o Renascimento, a Revolução Industrial e a

Revolução Francesa influenciaram de forma determinante os pensadores de seu tempo. Todas

essas ideias lançaram bases importantes para os movimentos sociais, filosóficos, científicos e

religiosos que afetaram o pensamento religioso da época, com consequências até os dias de

hoje. O século XIX foi tão fértil em ideias, movimentos e talentos, que seria impossível nas

poucas linhas deste capítulo descrevê-los todos, para situar o Espiritismo nesse cenário, mas

tentaremos descrever as fontes que foram cruciais para Rivail, o homem por trás de Allan

Kardec.

Como fontes dessas influências destacaremos aquelas que foram, em nosso ponto de

vista, as mais significativas para o pensador Rivail e que culminaram na formação do

personagem mais conhecido historicamente: Allan Kardec. Entre elas identificamos as

seguintes: 1) A Razão como fonte de progresso; 2) A Liberdade de pensamento; 3) Princípios

de Igualdade e Fraternidade.

1.3.1. A Razão como fonte de progresso da humanidade: O pensamento positivista e

o cientificismo

Sob influência do pensamento pedagógico positivista de Augusto Comte, que afirmava

“que todo o conhecimento científico e filosófico deve ter por finalidade o aperfeiçoamento

moral e político da humanidade” (GADOTTI, 1997. p. 107), criou-se um ambiente em que os

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pensadores do século XIX acreditavam na razão como o único caminho para a explicação do

mundo que os circundava através do conceito de determinismo de Laplace, que será explicado

mais adiante no tópico quatro deste capítulo. Sob essa influência, entre outras, Kardec escreveu

sua proposta espiritista. Em uma época em que se despertava um sentimento de ansiedade pela

procura das origens da vida e da mente, estudiosos como Karl Marx, Émile Durkheim, Max

Weber e o próprio Auguste Comte, tinham o desejo de romper com o tempo e com o espaço

para atingir os limites e os primórdios do universo visível, sobre isso Eliade diz:

[...] Não pretendo recordar todas as datas importantes da história do estudo científico

da religião durante a segunda metade do século XIX, paremos por um momento para

examinar o significado desta sincronicidade entre as ideologias materialistas por um

lado e o crescente interesse pelas formas orientais e arcaicas da religião por outro.

Poderia dizer-se que a ansiosa procura das origens da Vida e da Mente, o fascínio

pelos “mistérios da Natureza”, o impulso de penetrar e decifrar as estruturas internas

da Matéria – todos esses anseios e impulsos denotam uma espécie de nostalgia pelo

primordial, pela matriz original universal. A Matéria, a Substância, representa a

origem absoluta, o começo de todas as coisas: Cosmos, Vida, Mente. Há um

irresistível desejo de romper profundamente o tempo e o espaço para atingir os limites

e os primórdios do Universo visível, e em especial para desvendar o solo fundamental

da Substância e o estado germinal da Matéria Viva. De certo ponto de vista, dizer que

a alma humana é, em última análise, um produto da matéria não é necessariamente

uma afirmação humilhante (ELIADE, 1989, p. 59).

Como destaca Eliade, havia uma busca para compreensão do mundo material em que

vivíamos e como isso se relacionava com a origem da vida. E é neste momento que surgem os

fenômenos espiritistas, em um contexto no qual existiam diversas teorias e concepções

científicas. Entre elas, além do já citado positivismo, existiam ainda o Evolucionismo, o

Darwinismo e o Marxismo, que foram fortemente marcados pelo Iluminismo, como reforça

Mircea Eliade:

Os fenômenos espiritistas são conhecidos desde os tempos antigos e têm sido

diferentemente interpretados por várias culturas e religiões. Mas o elemento novo e

importante no espiritismo moderno é a sua perspectiva materialista. Antes do mais,

existem agora “provas positivas” da existência da alma, ou antes, da existência post-

mortem de uma alma: pancadas, inclinações da mesa e, algum tempo depois, as

chamadas materializações (ELIADE, 1989, p. 61, grifos nossos).

E além disso, Herculano Pires (PIRES, 1975, p. 18) afirma que: “Formado na tradição

cultural do século XVIII, herdeiro de Francis Bacon, René Descartes e Rousseau, compreendeu

claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método”. O método a que se

referiu Herculano Pires corresponde ao da experimentação indutiva para investigação do

fenômeno das mesas girantes 34, sobre o qual Kardec mesmo diz:

34 Mesas girantes, mesas falantes ou dança das mesas é uma prática em que os participantes se sentam ao redor de

uma mesa, colocam as mãos sobre ela e esperam que ela se movimente para oferecer respostas dos espíritos,

sejam por batidas ou por indicações de letras do alfabeto. Tais práticas foram muito populares no século XIX.

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[...] fiz os meus primeiros estudos sérios de Espiritismo, menos ainda por efeito de

revelações que por observação. Apliquei a essa nova Ciência, como até então o tinha

feito, o método da experimentação: nunca formulei teorias pré-concebidas;

observava atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos procurava

remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo

como válida uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades

da questão [...] Entrevi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão

controvertido do passado e do futuro, a solução do que havia procurado toda a minha

vida; era, em uma palavra, uma completa revolução nas ideias e nas crenças; preciso,

portanto, se fazia agir com circunspecção e não levianamente, ser positivista e não

idealista, para me não arrastar pelas ilusões. (KARDEC, OE: Introdução, grifos

nossos).

Apesar de não ser possível afirmar que Kardec era positivista, visto que muitos pontos

do positivismo são incompatíveis com o Espiritismo (INCONTRI, 2001, p. 67 a 71), o trecho

citado acima é a chave para a compreensão desta marcante influência. Quando ele diz: “preciso,

portanto, se fazia agir com circunspecção e não levianamente, ser positivista e não idealista”,

ele estabelece uma das premissas básicas do positivismo, que era a de que o “único método de

conhecimento é das ciências naturais, o qual prima pela identificação das leis causais e seu

domínio sobre os fatos” (ARAUJO, 2014, p. 94). Temos notícias históricas registradas pelos

seus biógrafos Wantuil e Thiessen (1984a, p. 155) que declaram que “Rivail ensinou [...] todas

as chamadas ciências fundamentais de Augusto Comte”, que, por sua vez, afirmava em seu

Curso de Filosofia Positiva que o positivismo surge para o mundo pela ação combinada dos

preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das descobertas de Galileu (COMTE, 1983,

p. 8).

Kardec não só reconheceu o papel fundamental do método positivo no avanço e na

consolidação da ciência moderna, como também desenvolveu procedimentos próprios para

empregar tal método em seus estudos dos fenômenos espíritas.

Quando Kardec afirma utilizar-se do método da experimentação, ele se referia ao

método indutivo defendido por Francis Bacon (1561-1626), o qual previa que a formação das

leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas, numa lógica sequencial de

formulação de hipóteses e validação da sua consistência. Esse processo foi batizado por Bacon

como método da experimentação. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na

proposição de uma metodologia científica que se pautava pela racionalização de procedimentos

que foram caracterizados como a indução e a dedução.

A indução é o processo de formular enunciados a partir de observações e coleta de dados

sobre o particular, contextualizado no experimento. Estabelecido um problema, o cientista

Esse fenômeno que chamou a atenção de Rivail, que, por sua vez, começou a estudá-lo em função de ser um

pesquisador do magnetismo, também conhecido por Mesmerismo.

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executa experimentos que o levem a observações cuidadosas, coleta de dados, registro e

divulgação entre outros membros de sua comunidade, na tentativa de refinar as explicações para

os fenômenos subjacentes ao problema em estudo (GIORDAN, 1999, p. 2). Este método

fundamenta a chamada ciência indutivista, que nas palavras de Bacon se resume na seguinte

afirmação:

Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.

Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas

mais gerais e, a seguir, a descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses

princípios e de sua inamovível verdade. A outra, que recolhe os axiomas dos dados

dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em

último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho,

porém ainda não instaurado. (BACON, p. 16, 1988)

O método científico utilizado por Kardec, portanto, é claramente o método da

experimentação legado por Francis Bacon, cuja utilização corrobora com “um sentimento

profundamente criador, uma confiança absoluta na edificação e na renovação do mundo”

(CASSIRER, 1966, p. 195), na Europa nesta época. Com um pensamento extremamente ligado

nas inovações de seu tempo, Kardec se inspirava na lógica e na ciência para fazer suas

afirmações e estudos. “Apliquei a essa nova Ciência, como até então o tinha feito, o método da

experimentação: nunca formulei teorias pré-concebidas; observava atentamente, comparava,

deduzia as consequências; dos efeitos procurava remontar às causas pela dedução.” (KARDEC,

OE: Introdução). E uma das premissas fundamentais desta época era o evolucionismo que

herdou do século anterior este sentimento de renovação e trazia em seu bojo o evolucionismo

biológico de Darwin (1809-1882), o transformismo de Lamarck (1744-1829), as teorias sociais

de Karl Marx (1818-1883), e a revolucionária forma de pensar de Rousseau, que, foi colocada

em prática por Pestalozzi, mestre de Rivail. O mundo, portanto, despertava para o

evolucionismo, que nascido no século XVIII se consolidou no século XIX, e que podemos

resumir em quatro características básicas: 1) A evolução está presente no mundo natural

biológico e na produção humana; 2) A evolução tem um sentido, que pode, se não determinado,

ser predito (Fichte, Comte e Marx) ou pelo menos inteligível e pensável (Spencer e Darwin35);

3) No plano histórico, a evolução se fecha num ciclo; 4) O indivíduo está submetido a uma lei

que transcende a ele próprio e que até o determina (INCONTRI, 2001, p. 45).

Com uma relação estreita com o evolucionismo, o cientificismo36 por sua vez, acredita

35 Para Alfred Russel Wallace, coautor da teoria do evolucionismo biológico e espiritualista, “a evolução tem um

propósito e não se dá a partir do acaso - o universo mostra não apenas um desígnio, mas uma intenção.”. The

Last of the Great Victorians, Special Interview with Dr. Alfred Russel Wallace (in: The Millgate monthly, Aug.

1912. Disponível em: <https://people.wku.edu/charles.smith/wallace/S750.htm>. Acesso em 03 nov. 2017). 36A denominação ‘cientifismo’, ‘cientismo’ ou ‘cientificismo’ identifica a exacerbada convicção de que só é

possível explicar e orientar o comportamento humano e a convivência social pela via da ciência ‘positiva’.

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na possibilidade incondicionada de poder explicar tudo através da ciência e, com isso,

transformar a realidade. O método científico pretende abarcar e desvendar toda a estrutura da

realidade do mundo a partir do Renascimento, passando pela Revolução Industrial como

resultado prático da Ciência. Partidário de tal convicção, Bertrand Russell durante o século XX,

explica que:

A ciência tem por meta descobrir, por meio da observação e do raciocínio a partir

desta, primeiros fatos particulares sobre o mundo, depois leis, ligando esses fatos uns

aos outros e, permitindo (nos casos favoráveis) prever eventos futuros. A este aspecto

teórico da ciência está ligada a técnica científica, que utiliza do conhecimento

científico para produzir condições de conforto e de luxo, que eram irrealizáveis, ou ao

menos muito mais caras, nos tempos pré-científicos. É este último aspecto que dá

tanta importância à ciência, mesmo aos olhos daqueles que não são cientistas.

(RUSSELL, 1971, p. 8)

Há aí uma dualidade que trata de um mundo real, fixo, acabado e imutável que pode ser

estudado e analisado, do qual seríamos prisioneiros de suas leis, podendo-se extrair dele, por

outro lado, diversas possibilidades em favor da humanidade, num caráter progressivo. Daí

poderiam se extrair novas descobertas que podem trazer aplicações inesperadas, estabelecendo-

se uma espécie de fé, na qual, para a ciência, tudo é possível, nada seria limitado. “A ciência

aspira abarcar o conhecimento inteiro do mundo [...] Nada do que é suscetível de entrar em

relação conosco é estranho ao seu domínio. É impossível, a priori, de lhe assinalar limites.”

(BOUTY, 1908, p. 21). Portanto, todos os fenômenos, inclusive os metafísicos, poderiam ser

explicados pela Ciência.

É nesse cenário que Kardec publica, em 18 de abril de 1857, O Livro dos Espíritos, com

tamanho êxito que precisou ser reeditado em 1860 corrigido e consideravelmente aumentado.

Teria sido o sucesso dessa edição o desejo dos leitores de terem respondidas as questões

apontadas por Mircea Eliade (1989): “o fascínio pelos ‘mistérios da Natureza’, o impulso de

penetrar e decifrar as estruturas internas da Matéria – todos esses anseios e impulsos denotam

uma espécie de nostalgia pelo primordial, pela matriz original universal”.

1.3.2. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Um brado pela liberdade de pensamento

Devido aos ventos de liberdade que sopraram na Europa com a Revolução Francesa,

com o enfraquecimento do absolutismo monárquico de direito divino e os privilégios de

nascimento da nobreza que empunham uma divisão social, os fundamentos da sociedade

Positivismo, evolucionismo spenceriano, o haeckelismo e outras correntes monistas constituíram exemplos do

pensamento ‘cientificista’ que também se caracterizou pelo sectarismo dogmático e intolerante dos adeptos de

cada uma das correntes que abrangia no final do século XIX. (COLLICHIO, 1988, p. 17.)

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burguesa e capitalista foram reforçados de tal forma que o movimento francês influenciou

campanhas similares na Europa, além de processos de emancipação na América do Norte. Os

brados de liberdade cantados na Marselhesa falam a respeito disto:

Allons enfants de la patrie

Le jour de gloire est arrivé

Contre nous de la tyrannie

L'étendard sanglant est levé

L'étendard sanglant est levé

Entendez-vous dans les campagnes

Mugir ces féroces soldats

Ils viennent jusque dans vos bras

Égorger vos fils, vos compagnes

Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!

Marchons, marchons

Qu'un sang impur abreuve nos sillons!37

Qu'un sang impur abreuve nos sillons! – Que o sangue impuro regue os nossos sulcos

demonstra uma disposição de ir às últimas consequências pela liberdade, inclusive a de pensar.

A Marselhesa foi composta por um jovem oficial de Estrasburgo com o título original de Canto

de Guerra para o Exército do Reino e depois intitulada Les Enfants de la patrie – Os filhos da

Pátria, tornou-se canto nacional em 1795, foi proibido durante império e, em 1879, reconhecido

como Hino da Terceira República. A Revolução Francesa, numa aliança eclética, reunia desde

o campesinato, passando pelos sans-culottes até a alta burguesia, tendo cada um destes

segmentos diferentes percepções desse movimento.

Decorrente da Revolução Francesa, foi promulgada em 1789 pela Assembleia Nacional

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão38 , em francês: Déclaration des Droits de

l'Homme et du Citoyen, que, entre 17 artigos, estabelece logo em seu primeiro o direito de

liberdade e de igualdade:

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL,

considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem

são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram

expor em declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do

Homem, [...]

Por consequência, a ASSEMBLEIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e

sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:

Artigo 1º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções

sociais só podem fundar-se na utilidade comum.

37 Vamos, filhos da Pátria/ O dia da glória chegou / Contra nós da tirania / A bandeira sangrenta é levantada /A

bandeira sangrenta é levantada / Você ouve no campo / Os uivos de soldados ferozes /Eles vêm até os seus braços

/ Matar seus filhos, seus companheiros / Às armas cidadãos! Formem seus batalhões! /Marchemos, marchemos

/ Que o sangue impuro regue nossos sulcos. Disponível em: <http://www.elysee.fr/la-presidence/la-marseillaise-

de-rouget-de-lisle/>. Acesso em: 28 out. 2017. 38 Texto completo da declaração no ANEXO C.

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Artigo 2º - O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais

e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a

segurança e a resistência à opressão.

Artigo 3º - O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação.

Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não

emane expressamente.

Artigo 4º - A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique

outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites

senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos

direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei. [...]

Artigo 10º - Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões

religiosas, contando que a manifestação delas não perturbe a ordem pública

estabelecida pela Lei.

Artigo 11º - A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais

preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever,

imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos

previstos na Lei. [...] (CCF, 1789)

Essa declaração faz um contraponto ao Absolutismo Monárquico e a certos preceitos

religiosos da época, e é revolucionária no real sentido da palavra, na medida em que

transformou de maneira definitiva a posição do ser humano diante da sociedade. Além das

questões políticas intrínsecas que contrapõem os poderes políticos, abre um precedente no que

diz respeito ao pensamento religioso. Quando expõe os Direitos naturais, inalienáveis e

sagrados do Homem, um paradigma importante imposto por séculos pela Igreja Católica é

rompido, de forma a colocar o ser humano em uma posição de destaque no mundo em que

vivemos, mais em consonância com o pensamento de Rousseau que diz que o homem é bom

em seu estado Natural, ou seja, que traz em si mesmo o germe desta bondade (ROUSSEAU,

2004, p. 95).

É importante observar que esta declaração, apesar de romper com o paradigma de

obediência à Igreja, já que a soberania reside essencialmente na Nação, não rompe com a

divindade, pois declara que seus termos são postos “na presença e sob os auspícios do Ser

Supremo”. Diz fundar seus princípios na constituição do Estado, que deve garantir e conservar

a felicidade do homem. Rubem Alves cita Kant em sua obra dizendo que o Iluminismo permitiu

o nascimento de um novo homem:

Trata-se de uma descrição do novo homem que julgava ver nascer. Livre da tutelagem

de forças externas a ele mesmo, não mais submisso a qualquer poder heteronômico,

este novo homem anuncia a sua bandeira: “Sapere Aude! Ousa Saber. Tem coragem

de usar a tua razão”. Abre-se um mundo novo como permissão e convite. Nasce o

homem livre e com coragem para conhecer e dominar tal mundo. Transformação

fundamental. De santo a cientista. (ALVES, 1984, p. 67)

Rubem Alves, em sua obra O Enigma da Religião, afirma que “O que está em jogo é a

constatação de que as estruturas de pensamento e de linguagem que o teísmo oferecia entraram

em colapso. Chegou ao fim uma certa visão do universo. Uma nova maneira de pensar a vida,

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de encarar os seus problemas” (ALVES, 1984, p. 60). Com essa nova forma de pensar, ele traz

também o pensamento de Feuerbach que diz: “O cristianismo, [...] já desapareceu há muito

tempo não apenas da razão, mas da própria vida da humanidade” (FEUERBACH, 1957, p.

xxiv).

É no meio dessa oportunidade de um novo pensar, que o Espiritismo surge oferecendo

uma nova forma de encarar o transcendente. Centrado no cristianismo, mas com um conceito

diferenciado de Deus, essa doutrina vai contra toda uma forma de pensar típica do seu tempo,

afirmando que a própria razão dá significado à existência de Deus.

Para Kardec, o Espiritismo, em consonância com o pensamento iluminista, não é

teocêntrico, mas é centrado na razão do homem e acredita que este é responsável por suas ações

e deve se responsabilizar por seus atos, e, portanto, tem que usar a razão como ferramenta de

compreensão do mundo em que vive. Kardec entende que apesar de o homem ser racional e,

portanto, responsável pelo que acontece em sua própria vida, ele também pode errar e com isto

gerar consequências para o mundo ao seu redor, para si mesmo e para a sociedade:

O homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas

ideias são as mais falsas, se apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo

o que lhes parece impossível. Os que outrora repeliram as admiráveis descobertas de

que a Humanidade se honra, todos endereçavam seus apelos a esse juiz, para repeli-

las. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer

que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos, pois, aos

ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro pelo

passado, não creem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a Natureza lhe

tenha facultado ler a última página do seu livro. (KARDEC, LE: Introdução: VII)

É com base nesse princípio de falibilidade do ser humano que Kardec julga a sua obra

inacabada. Baseando-se no princípio do progresso ininterrupto, reafirma sua fé na razão,

dizendo que o Espiritismo não tem a última palavra e que se houver algum ponto em que a

ciência a contradiga, faça a opção pelo conceito científico.

Um último caráter da revelação espírita, [...], é que, apoiando-se em fatos, tem que

ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de

observação. Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da

Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus,

autor daquelas leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem,

glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas

idéias que formaram de Deus. O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio

absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta

logicamente da observação. Entendendo com todos os ramos da economia social, aos

quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas

progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de

verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. (...)

Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque,

se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer,

ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.

(KARDEC, AG: Cap. I: 55, grifos nossos).

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Totalmente consoante com o pensamento de liberdade, Kardec faz da proposta

espiritista uma alternativa secularizante39, livre de dogmas e imposições, de forma que a

humanidade é livre para escolher sua crença e o seu Deus e afirma que:

O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral

e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular.

Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade

de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência,

pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide, pois, cada um, ao templo do

vosso culto ... (KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62 e 63)

1.3.3. Princípios de Igualdade e Fraternidade: A influência de Rousseau

Assim como não é possível falar da vida de Kardec sem citar a influência significativa

de Pestalozzi, não se pode deixar de falar desse sem falar de Rousseau, já que suas influências

também podem ser identificadas na obra do codificador do Espiritismo como já citamos na

terceira parte deste capítulo.

As luzes da liberdade tratadas na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen,

começaram a ser trilhadas muito antes. Jean Jacques Rousseau, um dos pais do Iluminismo

francês publicou, em abril de 1762, a obra Du Contrat Social ou Principes du droit politique40

e poucas semanas depois Émile ou De l’éducation41. Essas obras são revolucionárias e foram

de fundamental importância para a fundamentação do pensamento Iluminista. Logo no primeiro

capítulo do livro O Contrato Social, Rousseau define que o homem é livre, e que a ordem social

é baseada em convenções humanas:

O homem nasceu livre, e, por toda parte geme agrilhoado; o que julga ser senhor dos

demais é de todos o maior escravo. Donde veio tal mudança? Ignoro-a. Quem a

legitima? Esta questão creio poder resolver. [...] Mas a ordem social é um direito

sagrado, onde todos os outros se fundamentam, direito não vindo da natureza, mas

fundado em convenções; antes de dizer quais elas sejam, cumpre firmar o que acabo

de dizer. (ROUSSEAU, 2003, p. 23)

Nessa obra, Rousseau defende que o Estado exerça seu papel de forma igualitária para

o ser humano, no qual todos possam, no plano civil, ter restabelecida a igualdade natural. Mas,

além de liberdade, ele propõe a igualdade entre os seres. Na obra Platão, Rousseau e o Estado

total, Gilda Barros afirma que “Enquanto Platão esposa claramente a ideia da superioridade de

poucos em relação à maioria, Rousseau insiste na igualdade da natureza humana. Quer vê-la

39 No segundo capítulo deste trabalho iremos abordar a questão da secularização no espiritismo de forma mais

profunda. 40 “Do contrato social ou princípios do direito político” 41 “Emílio, ou Da Educação”

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garantida pela expressão da vontade geral, a fórmula da virtude.” (BARROS, 1996, p. 163). No

desenvolvimento da obra O Contrato Social, Rousseau discute questões delicadas como a

propriedade, que, a princípio, seria a origem da desigualdade entre os homens, na medida em

que alguns haveriam usurpado de outros. Para ele, o contrato social, título de sua obra, seria a

solução que se daria pela soberania popular, na qual a vontade coletiva estabeleceria as soluções

das relações, e o ponto fundamental era a igualdade entre as pessoas, a vontade e o interesse no

bem comum. “Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum

a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça, todavia,

senão a si mesmo e fique tão livre como antes.” (ROUSSEAU, 2003, p. 31). Com essas

afirmações, ficou estabelecido que o Soberano seria o povo e não o rei, e estava lançada a base

para a Fraternidade.

Com a reformulação de tais princípios, Rousseau elevou-se muito acima de seus

contemporâneos, estabeleceu uma lógica de liberdade como direito inalienável e como

exigência essencial da própria natureza espiritual do homem, dessa forma, levou às últimas

consequências o pensamento iniciado pelo humanismo renascentista.

Na obra Emílio, Rousseau afirma que o homem nasce bom em seu estado natural, e que

tudo que reside nele depende da educação, podendo ele ser moldado por quem o cria. Quem

educa, segundo Rousseau, tem o poder de corromper. “Toda nossa sabedoria consiste em

preconceitos servis, todos os nossos costumes não passam de sujeição, embaraço e

constrangimento. [...] enquanto conservar a figura humana, estará acorrentado por nossas

instituições” (ROUSSEAU, 2004, p. 16). Do ponto de vista da religião, o conceito da bondade

natural rompe diretamente com o dogma do pecado original da Igreja, e a ideia de os homens

estarem acorrentados às instituições rompe não só com o Estado quanto com a própria Igreja.

A reação às obras de Rousseau foi violenta. O parlamento de Paris condenou Emílio a

ser rasgado e queimado, e que seu autor devia ser detido e conduzido às prisões. O mesmo se

deu com O Contrato Social. O arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, condenou o livro

Emílio como “blasfematório, ímpio e cheio de heresias”. (ALVES, 2014, p. 47). Rousseau foi

severamente perseguido, inclusive em Genebra, onde suas obras foram queimadas e sua prisão

decretada (ALVES, 2014, p. 47). Apesar das perseguições e mandatos de prisão, ele foi seguido

por muitos que estudaram suas obras proibidas. Entre esses, na cidade de Zurique estava A

Sociedade Helvética, onde entre seus membros encontraríamos Pestalozzi e Lavater, que

inclusive foram presos por seus atos subversivos (NATORP, 1931, p. 8). Não haveria mais

retorno, o germe dos conceitos de Liberdade e Igualdade a Fraternidade estavam lançados na

sociedade.

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Anos mais tarde, apesar de nunca ter conhecido Rousseau pessoalmente, Pestalozzi

abandonou os estudos de teologia influenciado por este e pensou em seguir carreira política,

passando a escrever artigos de cunho político, inspirado nas publicações de Rousseau

(NATORP, 1931, p. 9). Defendeu e ampliou os conceitos de seu mestre, pois acabou por ser

seu discípulo no campo da educação, na qual o conceito de bondade natural do homem foi

ampliado, dizendo que o ser humano não é apenas bom em seu estado natural, mas também já

traz, em si mesmo, o germe da sabedoria e da virtude. Kardec por consequência herda de seu

mestre este conceito. Para Kardec, em Obras Póstumas, a Fraternidade,

[...] na rigorosa acepção do termo, resume todos os deveres dos homens, uns para com

os outros. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência.

É, por excelência, a caridade evangélica e a aplicação da máxima: “Proceder para com

os outros, como quereríamos que os outros procedessem para conosco.” O oposto do

egoísmo. A fraternidade diz: “Um por todos e todos por um.” O egoísmo diz: “Cada

um por si.” Sendo estas duas qualidades a negação uma da outra, tão impossível é que

um egoísta proceda fraternalmente para com os seus semelhantes, quanto a um

avarento ser generoso, quanto a um indivíduo de pequena estatura atingir a de um

outro alto. (KARDEC, OP: Liberdade, Igualdade e Fraternidade).

Liberdade, Igualdade e Fraternidade, portanto são princípios que ficaram claramente

marcados em toda a obra tanto de Hippolyte Léon Denizard Rivail, como de Allan Kardec.

1.4. Outras influências do século XIX

O Espiritismo tem sido apresentado como uma doutrina de aspecto tríplice, filosofia,

ciência e religião assunto, que citaremos no capítulo três deste trabalho no que o Dr. Araujo da

UFJF chama de hibridismo (2010, p. 132) e que o Dr. Silvio Chibeni (2003a, p. 315) diz ser

assunto que tem sido mal compreendido. No capítulo três, abordaremos o assunto de forma

mais aprofundada.

Até aqui neste capítulo, falamos da formação e das influências religiosas e filosóficas

de Kardec no que tange aos aspectos de sua vida pessoal enquanto Rivail, porém é necessário

identificar também as influências que ele recebeu no campo das ciências naturais,

particularmente da Física e da Química.

1.4.1. A física do século XIX

O estudo do universo em que vivemos foi sempre objeto de interesse dos pensadores.

No século XV, Nicolau Copérnico (1473-1543) propôs uma das mais controversas teorias

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científicas a respeito de nosso universo para a época, o heliocentrismo; Galileu Galilei (1564-

1642), defendeu as ideias de Copérnico além de desenvolver pontos relevantes da Física; René

Descartes (1596-1650), considerado por alguns como o fundador da Filosofia e da Matemática

moderna, Isaac Newton (1643-1727) o pai da Física Clássica, e Pierre-Simon Laplace (1749-

1827) proeminente estudioso da Mecânica Celeste. Citamos esses apenas como exemplos dessa

época extremamente prolífera, em que foram registrados avanços significativos para o

desenvolvimento da ciência moderna. Foram desenvolvidas, portanto, importantes teorias a

respeito do funcionamento do universo em que vivemos. Entre essas teorias, uma das mais

proeminentes foram as Teorias do éter42 e do vácuo, que foram amplamente discutidas no século

XIX.

Laplace considerava que todos os movimentos da humanidade seriam previsíveis, caso

fossem conhecidas as informações sobre a posição, velocidade e direção inicial de cada átomo,

da mesma forma que se pode prever os movimentos de uma bola de bilhar. Essa previsibilidade

dos fatos foi chamada de determinismo. Através dessa lógica, o determinismo foi adotado como

pressuposto científico básico para todas as demais ciências, inclusive as humanas e biológicas,

a exemplo do que já citamos no tópico 1.3.1 deste capítulo. Através do pensamento de Laplace,

acreditava-se que os corpos fossem formados por pequenas esferas diminutas perfeitamente

homogêneas, sólidas, indestrutíveis eternas e indivisíveis. Essas partículas se combinariam por

afinidade43. Segundo essa teoria, todo o universo fora da matéria seria um imenso e absoluto

vazio. Esta ideia caiu quando os físicos modernos se debruçaram sobre as partículas e outros

fenômenos como a luz e o calor (FIGUEIREDO, 2016, p. 424). É bom ressaltar que hoje o

determinismo e o mecanicismo são questionados pela física moderna.

Por grande que fosse o êxito das ideias clássicas na interpretação dos fenômenos de

interferência, não menos impressionante é a sua incapacidade para esclarecer os

processos de emissão e absorção da radiação. Aqui a eletrodinâmica e a mecânica

clássica fracassaram em absoluto (…). Finalmente a mecânica e a estatística clássica

também falharam na explicação das leis da radiação do calor (ou energia) (BORN,

1971, p. 90)

42 A teoria do éter é o nome dado ao conjunto de ideias produzidas principalmente na segunda metade do século

XIX com o objetivo de dar um corpo coeso às teorias físicas existentes até então. Apesar de podermos encontrar

traços fortes dessa teoria desde o pensamento de Isaac Newton (1642-1727), foram Hendrik Lorentz (1853-1928)

e Henri Poincaré (1854-1912) os cientistas que ficaram conhecidos como autores dela. Hoje a teoria do éter é

vista como uma abordagem equivocada para os fenômenos naturais. Ela não é mais lecionada ou defendida

enquanto teoria física, restando-lhe somente seu grande valor histórico, embora a física moderna na atualidade

venha reabrindo a discussão a esse respeito com as novas teorias a respeito da “matéria escura” 43 A Química do século XIX concebia duas forças atômicas: coesão e afinidade. A coesão unia as moléculas

homogêneas como as partículas do ouro entre si, dando origem ao metal. Já a afinidade seria uma atração de

combinação de moléculas heterogêneas, como a atração do hidrogênio e do oxigênio para formar a água.

(FIGUEIREDO, 2016, p. 404)

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A partir das discussões ao redor das questões da radiação do calor e da energia de modo

geral, ganharam força a teoria de propagação de ondas no éter ou campo eletromagnético

propostas por Maxwell, a partir das experiências de Faraday, que segundo Einstein,

Nossa única saída parece ser a de ter por fato consumado que o espaço tem a

propriedade física de transmitir ondas eletromagnéticas [...]. Ainda podemos usar a

palavra Éter, mas apenas para expressar alguma propriedade física o espaço. Essa

palavra éter mudou de significado muitas vezes com o desenvolvimento da ciência.

No momento, não mais representa o meio formado de partículas. Sua história, de

modo algum acabada, é continuada pela teoria da relatividade. (EINSTEIN, 2008, p.

131)

Nessa linha de discussão, enquanto se discutia questões da validade ou não da teoria do

éter e do vácuo, surgiu a teoria do magnetismo animal criada pelo médico alemão Franz Anton

Mesmer (1734-1815). Ele sustentava que seria possível, entre outros fenômenos, desenvolver

a cura pelo magnetismo animal, através de um processo de indução natural do estado de saúde

do magnetizador para o paciente, promovendo uma evolução mais rápida em seu processo

natural de restabelecimento. Mesmer afirmava que “o magnetismo animal bem direcionado é o

meio geral de restabelecer a harmonia alterada em todos os casos possíveis” (apud,

FIGUEIREDO, 2016, p. 433)

Franz Anton Mesmer44 nasceu na região do lago de Constância, que divide a fronteira

entre a Suíça e a Alemanha, na cidade Suábia de Iznang em maio de 1734, era o terceiro filho

de nove de Anton Mesmer, guarda de caça das florestas do bispo de Constância. A grande

capacidade intelectual do menino foi notada pelo Bispo von Schönborn. Logo cedo, na

educação primária, aprendeu línguas, literatura clássica, e tornou-se um grande musicista.

Estudou Filosofia na Universidade de Dillingen, na Bavária, e em seguida na Universidade de

Ingolstadr. Estudou ainda Teologia, Astronomia, e Matemática, com aprofundamento nas

experiências de Galileu, nas leis de Kepler e de Newton, e em 1759 abandonou um lugar na

Igreja, optando por estudar na Universidade de Viena. Por um ano dedicou os seus estudos no

campo do Direito, mas acabou por migrar para a Medicina, que em Viena havia sido totalmente

reformulada pelo médico Hermann Boerhaave (1668-1738) e depois de 6 anos doutorou-se

como médico.

Hermann Boerhaave reformulou os estudos da Medicina, rompendo com a formação

galênica e arcaica, e usava a Física e a Química para compreender os movimentos da circulação

sanguínea, o sistema nervoso, as funções do cérebro, os pulsos elétricos no sistema nervoso e a

44 A influência do trabalho de Mesmer na obra de Kardec foi importante e por isso optamos em inserir essa pequena

biografia de Mesmer já que ele não se tornou amplamente conhecido como Pestalozzi, Rousseau e outros citados

em nosso trabalho.

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função das secreções glandulares. Mesmer recebeu na Universidade vienense a melhor

educação médica da Europa e completou sua formação com um doutorado sobre a influência

dos astros no corpo humano. Os estudos de Mesmer não tinham nada de místicos e tratavam de

forma estritamente científica as possíveis influências da força da gravidade sobre os ciclos

naturais da fisiologia humana em comparação com esta influência nas marés.

Em 1774 iniciou suas experiências com o magnetismo através de passes com uma

senhorita de 29 anos, de nome Esterlina e, a partir daí, progrediu em sua técnica, tendo sucesso

em centenas de casos. Desenvolveu uma base teórica a respeito do magnetismo, registrando

criteriosamente os seus resultados fundamentando-os na Física, Fisiologia e Medicina. O

sucesso de sua técnica suscitou fortes resistências na classe médica da época. (FIGUEIREDO,

2016, p. 427-438)

A resistência obstinada que se opôs a esse método no início do seu desenvolvimento

não me dissuadiu de continuar minhas observações; quanto mais eu as confirmava

através de minhas anteriores conjecturas, mas me esforçava para conseguir o

aperfeiçoamento de alguns conhecimentos físicos, retificando-os, a fim de elaborar o

sistema sobre o mecanismo interno da Natureza, do qual deveria surgir um novo

conhecimento sobre a conservação da saúde (MESMER apud FIGUEIREDO, 2016,

p. 430)

Apesar de ter suscitado desconfiança, da classe médica de um lado, por outro despertou

o interesse de alguns, entre eles o teólogo Johann Kaspar Lavater, amigo e protetor de

Pestalozzi, citado no tópico 1.2 deste capítulo, e do Sr. Rivail como explicitaremos mais à

frente.

Um dos pontos mais significativos a respeito das pesquisas de Mesmer, que foi batizada

de Mesmerismo, foi a concepção da teoria geral física da ciência do magnetismo animal, que

este denominou por Fluido Universal. Nessa teoria ele parte do pressuposto que a teoria de

Laplace e Lavoisier estava equivocada, já que “nem a luz, nem o fogo, nem a eletricidade, nem

o magnetismo e nem o som são substâncias, mas sim efeitos do movimento de diversas séries

do fluido universal” (FIGUEIREDO, 2007, p. 529)

Para Mesmer, desde a matéria sólida, passando pelo estado líquido, gasoso, depois o

éter e outras fases desconhecidas, tudo estaria representado pela:

[...] existência de um fluido universal, que é o conjunto de todas as séries da matéria

dividida pelo movimento interno (isto é, o movimento de suas partículas entre si).

Nesse estado, ele preenche os interstícios de todos os fluidos, do mesmo modo que

todos os sólidos contidos no espaço. Por causa dele, o universo está fundido e reduzido

a uma única massa (MESMER apud FIGUEIREDO, 2016, p. 436).

Apesar disso, esse fluido não tem nenhuma propriedade per si, ele não é elástico e não

tem peso, mas as tem em suas modificações “é o meio apropriado para determinar as

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propriedades de todas as ordens de matéria que se encontram mais compostas e que não é ele

próprio” (MESMER apud FIGUEIREDO, 2016, p. 436).

O Fluido cósmico definido por Mesmer guarda grande analogia à seguinte descrição de

Einstein: “A maior parte da energia está concentrada na matéria, mas o campo que circunda a

partícula também representa energia. [...] Poderíamos, portanto, dizer: Matéria é onde a

concentração de energia é grande, e campo onde a concentração de energia é pequena”

(EINSTEIN, 2008, p. 201)

1.4.2. As ciências naturais do século XIX na obra kardeciana

A presença dos conceitos citados no tópico anterior é marcante na obra de Kardec e não

é difícil essa constatação, na medida em que ele os usa como referência em toda a sua obra,

particularmente na quinta obra de sua série, publicada em 6 de janeiro de 1868, intitulada A

Gênese. A própria estrutura de O Livro dos Espíritos, que é feita de perguntas e respostas, deixa

clara essa influência, na qual as perguntas eram elaboradas por Kardec e as respostas eram

atribuídas aos Espíritos.

As perguntas elaboradas eram estruturadas de forma a desenvolver e comprovar uma

linha de raciocínio do próprio Kardec, e tinham por base o conhecimento científico, filosófico

e religioso da época e na formação do autor nestes campos do conhecimento.

No que tange às ciências, por exemplo, que é o ponto em questão deste tópico, a

influência desses conhecimentos é extremamente significativa, pois sem entrar no mérito das

respostas dadas pelos Espíritos vamos encontrar Kardec fazendo as mesmas perguntas que os

cientistas da época estavam elaborando e, cada um à sua maneira, procurando as respostas.

No capítulo segundo de sua obra basilar, O Livro dos Espíritos, Kardec faz algumas

perguntas que vão ao encontro das dúvidas dos cientistas da época:

A ponderabilidade é um atributo essencial da matéria?

A matéria é formada de um só ou de muitos elementos?

Donde se originam as diversas propriedades da matéria?

A mesma matéria elementar é suscetível de experimentar todas as modificações e de

adquirir todas as propriedades?

As moléculas têm forma determinada?

O vácuo absoluto existe em alguma parte no Espaço universal? (KARDEC, 2009, p.

76 -79)

Nessas perguntas, vemos a necessidade de identificar os mesmos pontos que foram

tratadas por Laplace sobre a questão da ponderabilidade da matéria além das relacionadas à sua

composição. Vemos também a preocupação com a questão do vácuo e do éter. Quando ele

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pergunta sobre as propriedades da matéria e daquilo que ele chama de matéria elementar, que

poderia adquirir diversas propriedades, ele está se referindo às questões do éter e, mais

particularmente, à questão do fluido universal tratado por Mesmer. No que diz respeito ao fluido

universal, inclusive, ele adota tal conceito como uma das bases fundamentais da sua obra.

[...] a teoria do fluido universal foi proposta pelo médico alemão Franz Anton Mesmer

como alternativa paradigmática da física adequada para explicar sua teoria, já que não

admite a hipótese substancialista que estava sendo incorporada à ciência oficial em

sua época. A teoria dinâmica ou ondulatória do fluido universal, proposta por Mesmer,

foi assim adotada pelos espíritos superiores nas obras da doutrina espírita. Desse

modo, podemos concentrar na sequência das páginas da obra de Kardec, citações das

duas teorias, a dos fluidos imponderáveis que ele aprendeu dos manuais de física, e

da do fluido universal proposta por Mesmer e desenvolvida pelos espíritos. Por fim,

como veremos na obra A gênese, Kardec definiu a segunda teoria como princípio

fundamental estabelecida pela concordância do ensino dos espíritos superiores.

(FIGUEIREDO, 2016, p. 408 a 409)

As influências das Ciências que estão presentes de modo geral na obra kardeciana,

particularmente da Física e da Química, ficam claramente estabelecidas no livro A Gênese, em

sua primeira parte, dos capítulos IV até o X, que tratam, entre outros, dos seguintes assuntos:

1) Papel da ciência na gênese; 2) O espaço e o tempo; 3) A matéria; 4) As leis e as forças; 5) A

criação primária; 6) A criação universal; 7) Os sóis e os planetas; 8) Os satélites; 9) Os cometas;

10) A Via Láctea; 11) As estrelas fixas; 12) Os desertos do espaço; 13) Eterna sucessão dos

mundos. No início dessa primeira parte, Kardec afirma:

Impotente se mostrou o homem para resolver o problema da Criação, até o momento

em que a Ciência lhe forneceu para isso a chave. Teve de esperar que a Astronomia

lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar aí o olhar; que, pelo

poder de cálculo, determinasse com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o

volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a Física lhe revelasse as leis da

gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a Química lhe mostrasse as

transformações da matéria e a Mineralogia os materiais que formam a superfície do

globo; que a Geologia lhe ensinasse a ler, nas camadas terrestres, a formação gradual

desse mesmo globo. À Botânica, à Zoologia, à Paleontologia, à Antropologia coube

iniciá-lo na filiação e sucessão dos seres organizados. Com a Arqueologia pôde ele

acompanhar os traços que a humanidade deixou através das idades. Numa palavra,

completando-se umas às outras, todas as ciências houveram de contribuir com o que

era indispensável para o conhecimento da história do mundo. Em falta dessas

contribuições, teve o homem como guia as suas primeiras hipóteses. (KARDEC, AG:

Cap. IV: 3).

As citações de Kardec a respeito da matéria são particularmente interessantes, porque

demonstram que ele se baseava na Física corrente, e que, além de questionarem a

ponderabilidade da matéria, estão intimamente ligadas com as teorias do éter e do vácuo de seu

tempo, como ele descreve:

Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos. Esse fluido é o éter ou

matéria cósmica primitiva, geradora do mundo e dos seres. Ao éter são inerentes as

forças que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que

regem o mundo. Essas múltiplas formas, indefinidamente variadas segundo as

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combinações da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas em seus

modos de ação, segundo as circunstâncias e os meios, são conhecidas na Terra sob os

nomes de gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa. Os

movimentos vibratórios do agente são conhecidos sob os nomes de som, calor, luz

etc. (KARDEC, AG: Cap. VI: 10).

As influências de Mesmer na obra kardeciana vão além das questões do fluido universal,

a ponto de o mesmo afirmar que “o magnetismo e o Espiritismo são, com efeito, duas ciências

gêmeas, que se completam e explicam uma pela outra, e das duas, a que não quer imobilizar-se

não pode chegar ao seu complemento sem se apoiar na sua congênere.” (KARDEC, RE:

Jan/1869, p. 28). Diz ainda Kardec em O Livro dos Espíritos, no qual categoricamente afirma

o caráter científico do Espiritismo:

O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma imensidade de fenômenos

sobre os quais a ignorância teceu um sem-número de fábulas, em que os fatos se

apresentam exagerados pela imaginação. O conhecimento lúcido dessas duas ciências

que, a bem dizer, formam uma única, mostrando a realidade das coisas e suas

verdadeiras causas, constitui o melhor preservativo contra as idéias supersticiosas,

porque revela o que é possível e o que é impossível, o que está nas leis da Natureza e

o que não passa de ridícula crendice. (KARDEC, LE: Questão:555).

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2. FÉ INABALÁVEL E RAZÃO: O significado de religião para Allan Kardec

No primeiro capítulo discorremos sobre Allan Kardec, sua formação e influências. Neste

capítulo iremos fazer uma análise de ordem epistemológica do conceito de religião e efetuar

um diálogo com o Espiritismo.

Para o cientista da religião, um conceito adequado só poderá ser encontrado na precisão

das palavras, pois a definição de um termo encontra-se na sua caracterização, uma vez que há

uma tendência que os indivíduos falem das coisas segundo o seu ponto de vista, tomando por

referência somente aquilo que conhecem. Primeiramente, procuraremos entender os conceitos

históricos da religião tratada por Cícero e Lactâncio. O primeiro entendia a religião com um

sentido escrúpulo em relação ao culto; o segundo tinha uma visão de que religião fosse somente

a cristã porque essa seria a verdadeira religião, a única que, pelo laço de piedade, nos uniria a

Deus. Em seguida, estabeleceremos um diálogo entre o conceito de religião de Benson Saler,

que se baseia nas semelhanças familiares de Wittgenstein, e o de Greshat e Clifford Geertz, o

qual afirma que as questões de simbologia e cultura definem as religiões. Depois, num terceiro

momento, vamos discorrer como Kardec dialoga com o conceito de crença no sagrado e sua

relação com o profano, tomando por referências Mircea Eliade e Rudolf Otto. De posse dos

conceitos desses autores, vamos desenvolver um diálogo de Kardec com cada um para

compreender o entendimento do Espiritismo acerca de mitos, ritos e símbolos e entender porque

Kardec afirmava que esses não estavam presentes no Espiritismo.

2.1. Identificando um possível conceito de religião

Identificar um conceito de religião não é uma tarefa fácil, principalmente quando

falamos do mundo ocidental que tem uma tendência de confundir religião com o cristianismo,

particularmente quando falamos de suas versões teológicas católicas e protestantes. Para o

cientista em geral, a precisão dos termos é algo que deve ser perseguido, mas, para o cientista

da religião, essa precisão não se apresenta como uma fórmula ou um cálculo e só poderá ser

encontrada na precisão das palavras, ou seja, nos conceitos. A definição de um termo encontra-

se na sua caracterização. E é neste ponto que está o problema, pois há uma tendência que os

indivíduos falem das coisas segundo o seu ponto de vista, tomando por referência aquilo que

conhecem, segundo Greschat, “quem conhece apenas uma religião só pode falar a respeito dela”

(2005, p. 18). Na busca por ouro e especiarias, há muito tempo os europeus descobriram os

chineses, hindus, índios, africanos e australianos, e com isso descobriram a existência de

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diversas outras religiões, os judeus, por sua vez, na Terra Santa, conviveram por muito tempo

com os mulçumanos. Essa diversidade de religiões, no entanto, não abalou os europeus, os

quais, a exemplo de Lactâncio, como veremos à frente, acreditavam que somente o

“cristianismo era a verdadeira religião” (LACTÂNCIO, apud AZEVEDO, 2010, p. 93) capaz

de religar o homem a Deus.

Sobre a diversidade das religiões, Greschat faz uma comparação interessante;

É como no caso dos seres humanos: alguns conhecemos bem, outros apenas pelo

nome, muitos só de vista. Indo além, os rostos transformam-se em massa anônima que

acaba abstraída em humanidade. Chega-se a um último grau de abstração quando

todos os homens e todas as mulheres, independentemente de sua raça e cultura,

profissão interesses, são sintetizados como “espécie humana”. Faz-se o mesmo com

as religiões. (GRESCHAT, 2005, p. 18)

A generalização do que entendemos por religião feita acima é compatível com as

discussões sobre jogos de linguagem feitas por Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em seu livro

Investigações Filosóficas, no qual faz afirmações dessa ordem quando fala em semelhanças

familiares, ao comparar características entre os seres humanos (WITTGENSTEIN, 1994, p. 52).

Wittgenstein discute quando fala de jogos de linguagem da generalização das palavras para

definir coisas e traça uma comparação dos conceitos que carregam as palavras como uma linha

de costura. Segundo ele, as linhas de costura apresentam em si mesmas uma unidade, uma forma

única, embora sejam compostas de diversas fibras de algodão que se unem e se sobrepõem umas

às outras (1994, p. 52), assim como certos conceitos. De forma semelhante, o antropólogo

Benson Saler se apoia nas considerações de Wittgenstein para falar de religião da seguinte

forma:

Como indica a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem

definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. (Alguns

acadêmicos, de fato, propuseram rótulos como "quase-religiões" ou "semi-religiões"

para indicar que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma

forma, mas não o suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de

"religião".) Além disso, algumas religiões apresentam um volume maior de

características típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião do que

outras, e talvez uma maior elaboração dessas características do que é o caso em outros

lugares. Algumas religiões, por assim dizer, são "mais religiosas" do que outras. A

religião, então, na minha abordagem, é uma categoria graduada cujas instanciações

estão ligadas por semelhanças de família. Eu defendo ainda que nós reconhecemos

explicitamente que para a maioria dos acadêmicos ocidentais, os exemplos mais claros

da categoria religião, os exemplos mais prototípicos dela, são aquelas famílias de

religiões que chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias

exibem os maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião.

E, claro, essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela

primeira vez com o termo religião. [...] (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).45

45As the scholarly literature on religion indicates, there are no sure, sharp, and universally accepted criteria for

marking off religion from not-religion. (Some scholars, indeed, have proposed such labels as "quasi-religions"

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Identificamos nas afirmações de Saler, citadas anteriormente, quatro pontos

extremamente relevantes: primeiro, e o mais óbvio, que não há uma definição clara e

universalmente aceita sobre o conceito de religião; segundo, que há fenômenos rotulados como

religiões que podem apresentar características tão particulares e distintivas a ponto de se

questionar, inclusive, se as mesmas podem se enquadrar nessa categoria; terceiro, que Saler se

utiliza das considerações de Wittgenstein de semelhança familiar para definir e categorizar o

fenômeno religioso46, assunto que desdobraremos mais à frente; quarto, que o entendimento de

religião está intimamente ligado a questões de cultura e formação do indivíduo.

2.1.1. RELEGERE ou RELIGARE?

Como já vimos anteriormente no texto de Saler: “não há critérios seguros, bem definidos

e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião.” (2000, p. xiv, tradução

nossa). Estaria correto Mircea Eliade considerar a religião como algo sui generis no âmbito dos

assuntos estudados pelas Ciências Humanas, e que, portanto, seria necessário estabelecer uma

metodologia própria para seu estudo? (PASSOS, 2013, p. 39). Não temos a intenção aqui de

resolver esse problema, e chegar a uma conclusão clara a respeito do que é ou não é religião,

mas precisamos de um ponto de partida. Portanto, para compreender o conceito de religião,

devemos avaliar primeiramente algumas questões históricas.

O termo religio, antes de pertencer ao domínio específico do religioso, esteve presente

no cotidiano de Roma e foi empregado tanto nos cultos romanos quanto nos cultos da religião

cristã. Sua origem navegou entre duas etimologias possíveis, uma cristã e outra romana, e a

pergunta é: como o mesmo termo pode ter dois princípios tão diferentes e ter designado coisas

tão distintas? Dubuisson explica que a palavra religio “só podia ser o sentido primeiro e muito

especializado de uma palavra latina antes ordinária e que permaneceu assim até que os

primeiros pensadores cristãos se apoderaram dela e favoreceram seu excepcional destino.”

or "semi-religions" to indicate that various complexes of phenomena resemble religions in some ways, but not

sufficiently in other respects to justify the unqualified label "religion.") Further, some religions exhibit more of

the typicality features that we associate with our general model of religion than do others, and perhaps greater

elaboration of these features than is the case elsewhere. Some religions, in a manner of speaking, are "more

religious" than others. Religion, then, in my approach, is a graded category the instantiations of which are linked

by family resemblances. I further advocate that we acknowledge explicitly that for most Western scholars the

clearest examples of the category religion, the most prototypical exemplars of it, are those families of religions

that we call "Judaism," "Christianity," and "Islam." Those families exhibit the greatest clusterings of typicality

features that we associate with religion. And, of course, those are the religions that most of us, as children, first

identified with the term religion. 46 Em sua obra “Conceptualizing Religion; Immanent Anthropologist, Transcendent Natives, and Unbounded

Categories”, Benson Saler deixa explícito esse pensamento, o qual será desdobrado no decorrer deste trabalho.

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56

(DUBUISSON, 1998, p. 41).

O significado inicial romano de religio tinha um sentido de escrúpulo em relação ao

culto, de um preciosismo em relação aos atos exteriores de adoração, aos quais os romanos se

orgulhavam grandemente, inclusive se autoproclamando, dentre todos os povos, o mais

religioso:

Quando Cícero fala da religião romana, o conceito de religio que utiliza tem como

origem etimológica o termo relegere que deixa transparecer a “atenção escrupulosa,

o respeito, a paciência, inclusive o pudor e ou a piedade”. A prática religiosa romana

está associada ao zelo, a uma relação respeitosa com os deuses que torna necessária a

repetição precisa dos ritos. Com isso, a realização correta dos rituais ganha extrema

importância já que é a maneira de estar em contato direto com a divindade.

(AZEVEDO, 2010, p. 91).

Segundo esse conceito, é necessário que se empreenda uma escuta escrupulosa, tenaz e

atenta ao que dizem os deuses, de forma que se escute aquilo que eles têm a dizer, o que justifica

o uso dos oráculos pelos romanos. Portanto, negligere, neste caso, era exatamente o contrário

de religio, ou seja, não escutar o que os deuses diziam era negligenciar a divindade

(AZEVEDO, 2010, p. 92). Cabe aqui uma observação: já que em nosso trabalho estamos

falando de Espiritismo, a consulta aos espíritos por meio dos médiuns (que são os oráculos

modernos) poderia levar a uma associação do Espiritismo, em uma primeira análise, ao

relegere, no entanto, não é assim. A interpretação de que os espíritos que se manifestavam pelos

oráculos eram deuses foi um equívoco que levou a religião ao erro; Kardec afirma que “do

mesmo modo que o sabeísmo47 nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo48, mal

compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do Cristianismo,

podemos julgá-lo com mais critério.” (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206).

O significado de religião, com o sentido de “relegere”, ou seja, de escrúpulo em relação

ao culto, passou por transformações e não se alinhou com o sentido de oposição aos falsos

cultos com o qual o Cristianismo se apresentava no século XIX. Segundo Bouillard, o

significado de religio não poderia designar aquilo que foi tido como a verdadeira religião, pois

era necessário encontrar outro termo que pudesse corresponder à fé cristã (AZEVEDO, 2010,

p. 92).

Assim, uma nova compreensão para o termo surgiu através da imposição de diferenças

e de exclusões. Segundo Dubuisson, a religião enquanto domínio radicalmente

separado e diferente daquilo que a cerca é uma criação exclusiva e original dos

primeiros pensadores cristãos de língua latina como Lactâncio, Tertuliano e Santo

Agostinho. Ao se criar um domínio específico para a religião, surge também o espaço

47 Sabeísmo era a religião dos antigos sabeus, do Reino de Sabá, no atual Iêmen. Era uma religião baseada na

adoração dos astros. 48 Quando Kardec, nesta afirmação, usa a palavra Espiritismo, ele está se referindo à prática do intercâmbio com

os espíritos.

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57

do não religioso, do profano: “a diferença e a superioridade que ela [religião]

reivindicava para si mesma enquanto religião verdadeira reservada ao Deus

verdadeiro [...] fazia apelo à necessidade do mundo profano”. Nesse mesmo sentido,

Benveniste afirma que só se poderia conceber claramente a religião a partir do

momento em que ela é delimitada, quando ela ganha um domínio distinto, onde pode-

se saber o que lhe pertence e o que lhe é estranho. (AZEVEDO, 2010, p. 92).

Diante disso, era necessário estabelecer uma origem etimológica própria para o religio-

relegere, considerando que essa se referenciava às práticas exteriores e não à verdadeira religião

que se dirigia ao verdadeiro Deus, à divindade única, já que o sentido era de estabelecer a

ligação do ser humano com Deus, o religare como propõe Lactâncio. No primeiro conceito,

segundo Lactâncio, no religio-relegere de culto aos deuses, o indivíduo está separado deles

porque não há busca da sabedoria, porque não há preocupação com a moral, e sim apenas uma

preocupação com o rito exterior. Para ele, ainda mesmo a filosofia não alcança a Deus, pois não

se encontra com a piedade, já que só o Cristianismo seria a verdadeira filosofia: “a verdadeira

sabedoria para os pensadores, a verdadeira religião para os ignorantes.” (LACTÂNCIO, apud

AZEVEDO, 2010, p. 93). Dessa forma, a verdadeira religião consiste no laço de piedade que

nos une a Deus, e aos homens cabe servir e obedecer ao Deus único e verdadeiro.

2.1.2. Semelhanças familiares e categorias de religião

Entre o relegere e o religare passou a ser adotado de maneira geral no mundo ocidental

o sentido dado por Lactâncio, até mesmo em função da força do Cristianismo, que foi por

muitos tido de fato como sendo única e a verdadeira religião. Mas a ideia de estabelecer o

religare como a base do conceito, ou seja, uma ligação do homem com Deus simplesmente não

resolveu todas as questões em torno da religião, o que fez que surgissem outros conceitos. O

antropólogo Benson Saler traz um ponto de vista interessante que tomamos por referência em

nosso trabalho. Nas suas considerações, ele afirma que as religiões são divididas em categorias

graduadas por instâncias com semelhanças familiares. As considerações sobre semelhanças

familiares elaboradas por Wittgenstein são aplicadas por Saler para a(s) religião(ões), mas não

foram criadas com essa finalidade, e sim como considerações acerca do emprego da linguagem

e definição de sentido para as coisas de maneira geral. A teoria tradicional, endossada por

estudiosos ocidentais, sustenta, diferentemente de Wittgenstein, que os membros de um grupo

de pessoas ou de coisas são entendidos como tal porque compartilham características típicas ou

uma conjunção dessas características em comum. Por exemplo, os jogos de bola são jogos

porque têm pessoas usando uma bola para atingir um objetivo competitivo, como o futebol e o

vôlei. Essas são chamadas de características definidoras ou diferenciadas e serão usadas para

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aceitar ou identificar os membros de um determinado conjunto, seja ele qual for. Portanto, todas

as coisas que chamamos de jogos, por exemplo, devem compartilhar algo em comum, pelo

menos uma característica definidora. Segundo Saler, Wittgenstein discorda dessa postura

afirmando que:

Embora ele reconheça que as instanciações de uma categoria possam compartilhar

uma ou mais características em comum, não é necessário que elas façam isso para

justificar serem mutuamente rotuladas pelo termo de categoria. É suficiente que eles

estejam ligados por semelhanças por sobreposição de vários tipos, assim como os

membros de uma família humana podem mostrar semelhanças que se sobrepõem -

"semelhanças de família" - em características faciais, constituição do corpo, cor do

cabelo e assim por diante membros da família compartilhando os mesmos recursos.

(SALER, 2000, p. xi, tradução nossa)49

Ainda usando o exemplo dos jogos, vamos ver que algumas de suas instâncias50 não

partilham entre si características discretas comuns e nem por isso deixam de ser jogos. O os

jogos de bola e a paciência, por exemplo, não possuem características diretamente

relacionáveis, mas ainda sim são jogos. Quando uma criança joga uma bola na parede e a pega

de volta, e estabelece para si mesma uma regra, uma meta pessoal a ser alcançada: ela não está

jogando? Se fizermos uma análise detalhada, veremos uma intrincada rede de semelhanças e

relacionamentos se sobrepondo e se cruzando, às vezes com semelhanças gerais, às vezes com

semelhanças específicas. Da mesma forma que Wittgenstein afirma que o que chamamos de

jogos estão ligados por semelhanças de família, podemos inferir o mesmo para as religiões. Por

esse ponto de vista, os fenômenos para os quais comumente usamos a palavra religião podem

ser analisados dessa forma, pois, apesar de nem todas as religiões compartilharem

necessariamente características em comum, numa análise mais aprofundada, elas revelam

coletivamente uma multiplicidade de "semelhanças que se sobrepõem e se cruzam" (SALER,

2000, p. 160), da mesma forma que as fibras de algodão juntam-se para formar uma linha

(WITTGENSTEIN, 1994, p. 52). Nesta linha de raciocínio, repetimos a afirmação de Saler:

A religião, [...] é uma categoria graduada cujas instâncias estão ligadas por

semelhanças de família. Além disso, defendo que reconhecemos explicitamente que,

para a maioria dos estudiosos ocidentais, os exemplos mais claros da categoria

religião, os exemplos mais prototípicos dela, são as famílias de religiões que

chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias exibem os

maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião. E, claro,

essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela primeira

vez com o termo religião. Bem cedo na vida aprendemos a afastar a religião de outras

49 While he acknowledges that the instantiations of a category might share one or more features in common, it is

not necessary for them to do so in order to justify being mutually labeled by the category term. It is sufficient

that they are linked together by overlapping similarities of various sorts, just as the members of a human family

may show overlapping similarities -"family resemblances" -in facial features, body build, hair color, and so forth,

without all the members of the family sharing the very same features. 50 Instâncias são, neste caso, tipos de jogos: jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos de bola, jogos olímpicos e

assim por diante.

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coisas, embora de forma imperfeita. [...] Como estudiosos, procuramos refinar e

aprofundar tais entendimentos de maneira sistemática. Usamos nossos entendimentos,

de fato, para buscar no mundo outras religiões. Identificamos várias afirmações

verbais e outros comportamentos em sociedades não ocidentais como "religiosas" por

analogia com o que encontramos no Ocidente. (SALER, 2000, p. xiv, tradução

nossa).51

A questão dos exemplos mais prototípicos intrincados particularmente na cultura

ocidental faz com que reconheçamos no judaísmo, cristianismo e islamismo como nossas

maiores referências de religião, pois “são essas as religiões que a maioria de nós, quando

crianças, identificou pela primeira vez com o termo religião”. Essa identificação está fortemente

associada à questão de linguagem e de cultura, pois há um entrelaçamento vigoroso entre

linguagem e significado. Segundo Jean-Marc Tétaz, há “uma ancoragem pré-linguística em um

contexto de interações práticas que resistem a qualquer redução na linguagem” (2002, p. 68),

que, a nosso ver, está fortemente relacionado com a cultura, visto que há um:

[...] entrelaçamento inseparável da linguagem no mundo e para o mundo na língua:

[...]destaca que qualquer teoria da referência, portanto, qualquer realismo linguístico

é necessariamente aporético porque ele assume uma linguagem separada do mundo e

um mundo livre de toda a mediação linguística. Este ponto será decisivo para

esclarecer o status semântico dos símbolos religiosos. (TÉTAZ, 2002, p. 68, tradução

nossa52)

Dessa forma, em nosso ponto de vista, essa ancoragem linguística passa pela cultura,

uma vez que nossa concepção de mundo envolve a cultura que recebemos particularmente de

nossos familiares e do ambiente em que somos criados. Portanto, recebemos por herança as

características prototípicas do que identificamos por religião, ou seja, essa transmissão é

cultural. Mas é necessário definir o que é cultura para que possamos compreender como esse

conhecimento é transmitido, para tanto, nos apoiamos em Geertz, que declara:

[...] o conceito de cultura [...] denota um padrão de significados transmitido

historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas

expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam,

perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. [...]

51 Religion, then, in my approach, is a graded category the instantiations of which are linked by family

resemblances. I further advocate that we acknowledge explicitly that for most Western scholars the clearest

examples of the category religion, the most prototypical exemplars of it, are those families of religions that we

call "Judaism," "Christianity," and "Islam." Those families exhibit the greatest clusterings of typicality features

that we associate with religion. And, of course, those are the religions that most of us, as children, first identified

with the term religion. Fairly early in life we learned to set religion off from other things, though imperfectly.

As scholars, we seek to refine and deepen such understandings in systematic ways. We use our understandings,

indeed, to search the world for other religions. We identify various verbal assertions and other behaviors in non-

Western societies as "religious" by analogy to what we find in the West. 52 “imbrication inextricable de la langue dans le monde et du monde dans la langue: […] met en évidence que toute

théorie de la référence, donc tout réalisme linguistique, est nécessairement aporétique parce qu'elle suppose une

langue déta-chée du monde et un monde franc de toute médiation linguistique. Ce point sera décisif pour clarifier

le statut sémantique des symboles religieux.” (TÉTAZ, 2002, p. 68).

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o conceito do significado, em todas as suas variedades, é o conceito filosófico

dominante da nossa época. (GEERTZ, 1978, p. 66).

A implicação dessa transferência cultural traz em seu bojo a adoção de preceitos morais

e estéticos implicados num mundo com uma estrutura particular, como simples senso comum

transmitido, muitas das vezes, com os símbolos religiosos particulares. “Os símbolos religiosos

formulam uma congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica específica

(implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-lo, sustenta cada uma delas com a autoridade

emprestada do outro.” (GEERTZ, 1978, p. 67). Podemos classificar esses símbolos como

características definidoras ou diferenciadas na teoria tradicional de grupos, que são usadas para

identificar determinados fenômenos como religiões, e considerar aqueles que se afastam dessas

características como não sendo religiões.

Na grande maioria das culturas, onde houver seres humanos, a religião estará por perto,

e a forma com que cada grupamento vai encarar a religião dependerá de sua cultura, ou, em

alguns casos, a sua cultura será construída pela própria religião. Não será difícil identificar a

influência da cultura na religião e vice-versa quando viajamos e fazemos contato com outros

povos. Cristãos querem batizar todos os povos para fazer do Cristianismo uma unidade mundial,

sacrifícios e autoflagelos são encarados com naturalidade em certas religiões. “Os diferentes

comportamentos diante do que é rotulado como religião poderão despertar diversas emoções,

pelas quais os indivíduos afirmarão que este ou, aquele objeto ou ato religioso seja, chato,

terrível ou fascinante.” (GRESCHAT, 2005, p. 21-22).

Para Saler, diferentemente de Geertz, herdadas ou não da cultura, se tomadas as

semelhanças familiares como base, as características definidoras ou diferenciadas não serão

suficientes para classificar se um fenômeno é ou não mais ou menos religioso, pois um único

símbolo religioso não pode ser considerado, por exemplo, como uma característica definidora

para comparar duas ou mais religiões ou famílias de religiões. Levando-se em conta esse ponto

de vista, a comparação de conceitos com outros autores pode não se compatibilizar, como, por

exemplo, a de Geertz, que diz que uma religião é:

[...] (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes

e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de

conceitos de uma ordem geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de

fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.

(GEERTZ, 1978, p. 67).

Essa definição de Geertz que discutiremos com mais detalhes à frente, se confrontada

com as propostas de Saler, apresenta, logo em seu início, um problema, pois ele assume que

uma religião precisa ter um sistema de símbolos ou que precisa estabelecer disposições e

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motivações nos homens. Isso seriam características definidoras que, segundo as semelhanças

por famílias, poderiam não estar necessariamente presentes em todas as religiões. Poderíamos

estabelecer, segundo Saler formulações de conceitos de religião que não passassem

necessariamente por essas características definidoras.

A ideia de que as religiões possuem conjuntos de características definidoras ou

diferenciadas está também presente em Greschat. Ele nos diz que a observação do objeto

religião deve ser feita de forma circunscrita a três maneiras: 1) que a observação do objeto

religião pode ser feita em uma totalidade; 2) que essa totalidade deve ser analisada em quatro

perspectivas (como comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas e como

sedimentação de experiências); 3) que essa totalidade está viva, e que não para de se transformar

(GRESCHAT, 2005, p. 24-25). Já para Saler, segundo o critério de semelhanças familiares de

Wittgenstein, podemos afirmar que a religião, para ser encarada como tal, não precisa ter as

mesmas características definidoras. Pelo processo de análise apresentado por Greschat,

poderemos, por assim dizer, fatiar o objeto religião em características que coletivamente

possuem uma multiplicidade de "semelhanças que se sobrepõem e se cruzam" (SALER, 2000,

p. 160). Assim, uma religião “A” pode ter um conjunto de características definidoras que

coincidem com “B” e uma terceira “C” que coincidem com “B”, mas que por sua vez não possui

nenhuma característica de “A”.

De fato, no caso de algumas categorias ("jogo", por exemplo), algumas instanciações

(por exemplo, paciência) não partilharão quaisquer características discretas com

outras instanciações (por exemplo, futebol). Em tais casos, no entanto, normalmente

ainda há outras instanciações da categoria com as quais elas se sobrepõem. Vamos

supor que nossa categoria tenha três subconjuntos de instâncias, A, B e C. A e C não

compartilham recursos em comum. Os membros de ambos, no entanto, compartilham

alguns recursos com membros do subconjunto B. As instâncias de B, portanto, servem

para vincular instâncias de A e C, da mesma forma que os elos centrais de uma cadeia

conectam os links periféricos em ambas as extremidades. Tais ligações, sugere o

filósofo J. R. Bambrough [,,,], fornecem uma justificativa “objetiva” para a categoria

e suas instanciações. (SALER, 2000, p. xi, tradução nossa53)

Um exemplo disso é que nem todas as religiões precisam demarcar suas fronteiras por

meio de um senso de comum pertencimento distinguindo os que estão dentro ou fora de sua

comunidade, já em outras, a questão de pertencimento está intimamente ligada com a herança

consanguínea.

53 Indeed, in the case of some categories ("game," for instance), some instantiations (e.g., solitaire) will not share

any discrete features with other instantiations (e.g., football). In such cases, however, there are typically still

other instantiations of the category with which they overlap. Let us suppose that our category has three subsets

of instances, A, B, and C. A and C share no features in common. Members of both, however, share some features

with members of the subset B. Instances of B, therefore, serve to link instances of A and C, just as the central

links in a chain connect the peripheral links on either end. Such linkages, the philosopher J.R. Bambrough

suggests […], provide an "objective" justification for the category and its instantiations.

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Diversos autores estabeleceram conceitos próprios de religião e seriam necessárias

muitas páginas para abordá-los todos, o que não seria possível nem é nosso objetivo aqui,

portanto, escolhemos abordar até aqui o conceito de Lactâncio, Greschat, Geertz e Benson Saler

e agora vamos identificar como esses conceitos dialogam com o Espiritismo.

2.2. Kardec e a Religião

A partir dos fenômenos de 1848, vivenciados pelas irmãs Fox em Hydesville, nos

Estados Unidos54, o Espiritismo tornou-se uma fonte que prometia oferecer respostas para uma

série de questões da ciência, da filosofia e da religião. O fenômeno das mesas girantes tornou-

se uma febre na Europa e servia como diversão nos salões da alta sociedade. Diversos

observadores se dedicaram aos experimentos e esperavam obter uma fundamentação científica

para tais fenômenos, o que significava, em meados do século XIX, encontrar uma prova

irrefutável para a sobrevivência do espírito após a morte (ARAUJO, 2010, p. 119).

Entre esses observadores, vamos encontrar Allan Kardec que, a partir desses fenômenos,

lançou a obra basilar do Espiritismo, O Livro dos Espíritos, que logo na contracapa traz a

declaração de que se trata de uma filosofia espiritualista (KARDEC, 2008, p. 3), algo sobre o

qual os seus adeptos não têm dúvidas. Apesar disso, hoje, a terceira maior religião brasileira,

com 3,8 milhões de seguidores55 (IBGE, 2010), debate-se com uma questão de identidade no

que tange ao seu aspecto religioso. Um grande número de adeptos tem questionado se o

Espiritismo é ou não uma religião, a ponto de existirem movimentos não reconhecidos pelos

órgãos unificadores do Espiritismo56, como o chamado espiritismo-científico ou filosófico-

científico (CHAVES, 2013), que não aceitam o aspecto religioso do Espiritismo. Um dos pontos

centrais dessa discussão é decorrente da afirmação de Kardec, que diz que o Espiritismo não é

54 Embora seja praticamente impossível determinar a data de início da história do Espiritismo, convencionou se

que o ano de 1848 constitui seu ponto de partida. Essa data é citada por Arthur Conan Doyle e é aceita pela

Federação Espírita Brasileira. A 31 de março, na casa da família Fox, na aldeia de Hydesville, condado de

Wayne, Estado de Nova York, nos Estados Unidos da América do Norte, ruídos insólitos surgiram de maneira

ostensiva e uma série de fenômenos chamou a atenção da sociedade da época. Das paredes vinham pancadas ou

ruídos que pareciam provir de uma inteligência oculta desejosa de comunicar-se. As irmãs Katherine e Margareth

Fox, duas meninas de 11 e 14 anos, que aparentemente eram a causa dos acontecimentos, foram dormir no quarto

de seus pais, mas os ruídos aumentaram; a irmã mais nova começou a bater palmas e da parede ouviu-se o mesmo

número de batidas. A menina fazia perguntas e a parede respondia com um golpe para dizer “sim” e com dois

golpes para dizer “não”. A partir destes eventos, por todos os Estados Unidos, e posteriormente na Europa,

espalhou-se a febre das evocações dos chamados espíritos batedores. (DOYLE, 2013, p. 15). 55 O censo de 2010 apresenta que igreja católica possui cerca de 65% da população, a igreja evangélica 22,2% e o

Espiritismo 2%. Apesar desses números, levantamentos não oficiais apontam para um número muito maior de

espíritas, principalmente porque o IBGE não registra o fenômeno de dupla pertença religiosa. 56 Como órgãos unificadores do Espiritismo nos referimos ao movimento organizado pelos espíritas a partir da

FEB – Federação Espírita Brasileira.

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religião:

O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como

qualquer filosofia espiritualista; por isso mesmo, vai ter forçosamente as bases

fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma

religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus

adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.

(KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).

Não obstante Kardec, em 1859 (RE: Mai/1859, p. 206-290), tenha dito que a doutrina

espírita não fosse uma religião, ele afirmou, como veremos mais à frente, que ela deveria servir

como elemento aglutinante às diversas religiões. Mas disse também, anos depois da publicação

de O Livro dos Espíritos, em seu discurso em reunião pública, na noite de 1° de novembro de

1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que "O Espiritismo é uma religião, e nós

nos vangloriamos por isto.57 " (KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491).

Quando iniciamos as nossas pesquisas sobre o Espiritismo, havia um desejo particular

de identificar um conceito de religião que pudesse se harmonizar de forma clara com o

Espiritismo e, assim, oferecer um possível alento a essa discussão, que por tanto tempo tem se

desenvolvido no meio espírita em relação ao seu aspecto religioso. Porém, essa busca

confrontou-se, logo em seus primeiros passos, com afirmação de Benson Saler: “Como indica

a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem definidos e universalmente

aceitos para diferenciar a religião da não-religião” (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa.), que

discutimos no tópico 2.1.

Essas afirmações de Saler nos levaram a constatações com significados inquietantes

sobre o Espiritismo, pois se não há uma definição clara e universalmente aceita sobre o conceito

de religião, não há como afirmar categoricamente que essa doutrina não seja uma religião.

Portanto, ficam margens de discussão importantes para o assunto, as quais vislumbram a

necessidade de compreender melhor o conceito de religião. Ao afirmar que possam existir

religiões que são mais ou menos religiosas do que outras, Saler abre um leque de possibilidades

flexibilizando o conceito de religião apresentando possibilidades que possam incluir o

57 Há divergências nas diversas traduções, alguns tradutores usaram o verbo ufanar, outros, porém o verbo

vangloriar ou ainda gloriar. No original em francês usou-se o vocábulo “glorifions”: “Le lien établi par une

religion, quel qu'en soit l'objet, est donc un lien essentiellement moral, qui relie les cœurs, qui identifie les

pensées, les aspirations, et n'est pas seulement le fait d'engagements matériels qu'on brise à volonté, ou de

l'accomplissement de formules qui parlent aux yeux plus qu'à l'esprit. L'effet de ce lien moral est d'établir entre

ceux qu'il unit, comme conséquence de la communauté de vues et de sentiments, la fraternité et la solidarité,

l'indulgence et la bienveillance mutuelles. C'est en ce sens qu'on dit aussi: la religion de l'amitié, la religion de

la famille. S'il en est ainsi, dira-t-on, le Spiritisme est donc une religion? Eh bien, oui! sans doute, Messieurs;

dans le sens philosophique, le Spiritisme est une religion, et nous nous en glorifions, parce que c'est la doctrine

qui fonde les liens de la fraternité et de la communion de pensées, non pas sur une simple convention, mais sur

les bases les plus solides: les lois mêmes de la nature. ” (KARDEC, 1868a, p. 359)

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Espiritismo como um fenômeno religioso. Mas não é de se admirar que os seus seguidores

tenham a dificuldade de definir este ponto, já que aparentemente o próprio Kardec não tenha

deixado clara a questão.

Com vistas a colaborar com essa discussão, e é esse o ponto central de nosso trabalho,

temos a intenção de oferecer um referencial teórico, metodologicamente distanciado das

paixões que envolvem aqueles que se dedicam à discussão do aspecto religioso do Espiritismo,

de forma a fornecer reflexões a respeito do ambiente histórico em que essa doutrina foi cunhada.

Para tentar compreender a questão, pretendemos, portanto, estabelecer um diálogo com os

pensamentos de Kardec acerca dos conceitos de religião abordados no início deste capítulo. É

importante frisar, porém, que esse diálogo será estabelecido em relação à época e também

levando em consideração como a cultura influenciou o seu pensamento e o de seus

contemporâneos. Falamos aqui de cultura porque foi a partir de um modismo extremamente

popular, denominado as mesas girantes, que surgiu o Espiritismo (KARDEC, LM: Cap. II: 60-

64).

2.3. A perspectiva secularizada de Kardec sobre o Espiritismo

Como vimos no primeiro capítulo, a influência do Iluminismo foi importante na

formação de Kardec e, por consequência, o ajudou a formular alguns de seus pensamentos. O

Iluminismo, segundo a ótica de seus defensores, foi um conjunto de eventos que instauraram a

possibilidade de pensar sobre Deus, sobre o universo e tudo ao seu redor. Para os iluministas,

o ser humano não mais estaria submetido às estruturas sagradas das instituições religiosas, pois

elas não poderiam mais se proclamar guardiãs das verdades do mundo.

Pensadores dos mais diversos matizes surgiram, desvendando realidades no campo da

ciência e da cultura. Alguns desses à luz de uma perspectiva secular, como Hegel (1770-1831),

Heinrich Heine (1797-1856) e Nietzche (1844-1900) chegaram a suscitar a morte de Deus, num

mundo onde haveria a prevalência tão somente da existência do ser humano e a realidade

científica à sua volta. Nesse contexto, o mundo intelectual não mais escutaria aos argumentos

teológicos da existência de Deus. Todavia, ao contrário do que se acreditou por um tempo, o

pensamento secularizante58 não matou Deus, e sim deu a possibilidade de fazer as perguntas

58 No nosso trabalho tratamos o que é secular no sentido da contraposição que se fazia ao religioso pela visão de

ciência que o mundo vivia àquela época, questionando a autoridade formal da Igreja. “Inúmeras vezes antes da

Reforma, a fronteira entre o religioso e o secular foi redesenhada; mas a autoridade formal da Igreja permaneceu

sempre preeminente. Nos séculos seguintes, com o surgimento triunfal da ciência moderna, do modo moderno

de produção e do Estado moderno, as igrejas elas mesmas assumem uma posição clara acerca da necessidade de

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essenciais de forma diferente:

Pode o cientista como cientista levantar a pergunta acerca de Deus? Não implicaria

esta pergunta que ele já rompeu com a ortodoxia da ciência? A morte de Deus, assim,

se apresenta como um silêncio túrgido de significações antropológicas e sociais.

Vivemos em uma época que proibiu o mistério [...]. Porque o grande dogma do mundo

que se chama científico é que a realidade é auto-explicativa e que a razão dispõe dos

instrumentos para decifrar o enigma que lhe é proposto. Talvez que, ao invés de falar

da morte de Deus, seria mais correto falar do “eclipse de Deus”, como Martin Buber

sugere. (ALVES,1984, p. 61).

E é nessa linha de raciocínio que vamos encontrar Kardec questionando os princípios

da vida, indagando de onde viemos e para onde vamos, como todos os pensadores de sua época:

Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi,

naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado

e do futuro da Humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era,

em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto,

andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista e não

idealista, para não me deixar iludir. (KARDEC, OP: Minha iniciação no Espiritismo,

grifo nosso).

Na citação acima, Kardec se refere aos seus estudos sobre o que chamou de fenômenos

espíritas. Nessa passagem é possível perceber que o seu pensamento, se não era claramente

científico, era, com certeza, filosófico, já que ele não estava em busca de uma explicação

religiosa para as situações que ele vivenciara. Fica claro o pensamento secularizante no trecho

grifado, pois o princípio que outrora tratava apenas da separação do Estado e da Igreja, agora

atingia o indivíduo, que se permitia investigar aquilo que tinha sido tratado no passado por

mistérios que pertenciam tão somente ao domínio da Igreja, e Kardec não estava sozinho nisso.

Segundo Lynn Sharp

A história [...] mostra como os espíritas e outros pensadores usaram a reencarnação

para defender reformas sociais, mudanças políticas e uma mudança de visão de

gênero59 [...], argumento que, em vez de o pensamento iluminista substituir a tradição

religiosa católica na cultura francesa do século XIX, a relação da razão com a religião

é mais complicada. As linhas do pensamento espiritualista no século XIX,

especialmente o espiritismo, criaram novas combinações de espiritualidade, razão e

pontos de vista românticos que se recusavam a dar primazia absoluta à materialidade

iluminista ou à estreita religiosidade da Igreja Católica. A reencarnação e o espiritismo

ofereceram uma versão secular da espiritualidade popular entre aqueles que talvez

quisessem rejeitar o catolicismo em favor da ciência, mas definitivamente queriam

manter uma profunda visão religiosa do mundo. (SHARP, 2006, p. xii, tradução

nossa)60

se distinguir o religioso do secular, transferindo, como de fato o fizeram, o peso da religião cada vez mais na

direção das disposições e motivações do indivíduo crente. A disciplina (intelectual e social) iria, nesse período,

gradualmente abandonar o espaço religioso, cedendo seu lugar à ‘crença’, à ‘consciência’ e à ‘sensibilidade’.”

(ASAD, 2010, p. 269) 59 Sharp coloca no final do século XIX a questão de gênero, nosso entendimento é que essas questões vão surgir

de fato no início do século XX. 60 The story […] shows how spiritists and other thinkers used reincarnation to argue for social reform, for political

change, and for a changed vision of gender […] I argue that rather than Enlightenment thought replacing Catholic

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Contudo, ainda aqui a linha de separação entre o que é religioso e o que é filosófico é

extremamente tênue. “Desde que a filosofia nasceu, a religião tornou-se um tema seu. Com

efeito, a maior parte das questões a que os filósofos tentaram responder [...], foram antes temas

de narrativas mitológicas, de celebrações culturais e sentenças da sabedoria religiosa.”

(SCHAEFFLER, 1992, p. 13).

Augusto César Dias de Araujo, doutor em Ciência da Religião pela UFJF, defende que

há no Espiritismo um caráter polissêmico, quando navega entre a filosofia, a ciência e a religião

assunto que trataremos no capítulo três. Em seu artigo datado de fevereiro de 2010, Araujo

afirma que o Espiritismo tratar-se-ia de um híbrido, embora ele mesmo não insista na utilização

desse termo em sua tese de doutorado (ARAUJO, 2014). Em seus estudos, ele afirma que

Kardec posiciona o Espiritismo numa posição de ponte entre a filosofia, a ciência e a religião.

Como se viu, em suas relações com a ciência, a filosofia e a religião, o espiritismo se

coloca como um entre-lugar – um espaço de encontro e reapropriação. A partir daí,

forja uma identidade híbrida, marcada pelo signo da mediação. Ou seja, para Kardec,

o espiritismo aponta para algo além, para o pós-ciência, pós-filosofia e pós-religião.

(ARAUJO, 2010, p. 132).

O entre lugar abordado por Araujo vai de encontro às perspectivas científicas e

perspectivas religiosas abordadas por Geertz, sobre as quais falaremos mais à frente, e, segundo

esse autor, essas perspectivas não podem conviver simultaneamente, e, portanto, não poderia

haver esse entre lugar. Araujo completa seu pensamento da seguinte forma:

[...] no espiritismo, [...] encontra-se um tipo bem acabado de movimento religioso de

fronteira, que tende a transitar entre representações ambíguas e cuja configuração

híbrida indica uma dupla tendência. Por um lado, pode-se dizer que há um esforço de

Kardec no sentido de secularizar a religião ao aproximá-la de conceitos como ciência

e filosofia – esta última não mais compreendida como serva da teologia, mas, em certo

sentido, como instrumento de validação racional da religião –, já que, aliada à noção

de método experimental, a filosofia espírita pretende dar à religião – e religião cristã

– a prova definitiva de seus postulados básicos. Por outro lado, Kardec parece querer

propor que a ciência amplie seus horizontes e passe a considerar o antigo objeto da

religião (Deus, alma e vida futura) como parte dos fenômenos naturais a serem

investigados. (ARAUJO, 2010, p. 132).

No ano seguinte à publicação da obra basilar do Espiritismo, Kardec fundou, em 01 de

janeiro de 1858, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que se tratava de uma associação

civil dedicada ao estudo dos fenômenos espíritas, o que aponta para um movimento de

desvinculação com as instituições tradicionais, já que não tinha nenhum vínculo nem com o

religious tradition in nineteenth century French culture, the relationship of reason to religion is more complicated.

Lines of spiritualist thought in the nineteenth century, especially spiritism, created new combinations of

spirituality, reason, and romantic outlooks that refused to give absolute primacy to either Enlightenment

materiality or to the narrow religiosity of the Catholic church. Reincarnation and spiritism offered a secular

version of spirituality popular with those who may have wanted to reject Catholicism in favor of science but

definitely wanted to retain a deep-seated religious outlook on the world. (SHARP, 2006, p. xii)

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Estado nem com a Igreja. A sociedade fundada por Kardec podia figurar-se como um dos

exemplos do fenômeno da secularização, um dos diversos embriões61 da sociedade pós-cristã,

que era novidade àquele tempo, mas que é comum na sociedade secular europeia nos dias de

hoje, possuindo algumas das características que nos relata Jean Paul Willaime:

A passagem da religião por herança à religião por escolha significa, para o

cristianismo na Europa, o fim da “cristianitude”, ou seja, o fim do cristianismo como

cultura englobante da sociedade, mesmo sob forma secularizada, e a evolução na

direção de um cristianismo como subcultura particular numa sociedade global. Não é,

pois, apenas a separação do político e do religioso [...], é também a separação da

cultura global e da religião. É neste sentido forte que se pode falar de sociedades pós-

cristãs. Individualização, abandono institucional e atomização, de uma parte; buscas

identitárias e afirmações comunitárias, de outra. A mundialização e a

desterritorialização do religioso acarretam sua reconfiguração como subculturas e

como comunidades-redes nas sociedades secularizadas e pluralistas. Doravante, as

religiões constituem subculturas que oferecem um sentido a seus membros,

permitindo a eles se orientarem numa sociedade pluralista, em grupos de referência,

em recintos de convicção que os indivíduos escolhem individualmente. O religioso

não é mais o dossel sagrado das sociedades, os guarda-chuvas sagrados de que

Christian Smith fala ou, antes, o que poderíamos qualificar de “capiteis sagrados” ou

“tendas sagradas”, para melhor assinalar a um só tempo o caráter comunitário e

individual dessas subculturas religiosas nas sociedades pluralistas. (WILLAIME,

2007, p. 04).

Como diz Willaime, não há mais uma cultura englobante que determina a forma de

pensar Deus, não havia uma forma única de pensar e não existia para Kardec e seus adeptos

uma atitude de radicalização de pensamento, como a ideia de Deus estar morto ou o pensamento

de o indivíduo estar submetido à Igreja. Allan Kardec e seus colegas da Sociedade Parisiense

de Estudos Espíritas pensavam livremente e não se intitulavam ateus; ao contrário, entendiam

que os estudos do Espiritismo fortaleceriam suas crenças individuais, pois não acreditavam,

pelo menos naquele momento, que seu pensamento se caracterizava como religioso. O

pensamento secularizado de Kardec fica mais fortemente estabelecido em suas palavras,

quando diz que:

Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião.

Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis

em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor;

quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a

religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o

Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria

confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral

que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de

todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que

mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de

61 A abordagem de Willaime é muito atual e inclusive fala de uma sociedade pós-secular possuindo outras

características que vão além da secularização na época de Kardec. Aqui colocamos as ideias desse autor para

demonstrar que a visão de Kardec e de seus seguidores na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas eram

embrionárias para o movimento secular que surgiria à frente.

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observar as práticas ditadas pela sua consciência ... (KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62

e 63, grifo nosso).

A citação anterior traz diversas questões que julgamos relevantes e dentre elas

destacamos as frases: “a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem”

e “Deixa a cada um a liberdade de adorar a Deus à sua maneira”. Essas afirmações trazem

embutidas em si pelo menos dois significados relevantes: no primeiro, Kardec aceita a

existência de Deus e da alma, e acredita que cada indivíduo tem a liberdade de orar ou cultuar

a divindade como queira. Também deixa claro que não é contra a religião e que acredita que o

conhecimento do Espiritismo pode, na verdade, fortalecer o indivíduo em sua crença particular.

Apesar disso, acredita na liberdade de crença e consciência, como se vê na resposta dada a uma

carta, na qual Kardec diz:

[...] e se nenhum culto me convier?” Muito bem! ficai então como estais. Aí o

Espiritismo nada pode. Ele não se encarrega de vos fazer abraçar um culto à força,

nem de discutir para vós o valor intrínseco dos dogmas de cada um: deixa isto à vossa

consciência. Se o que o Espiritismo dá não vos basta, buscai, entre todas as filosofias

existentes, uma doutrina que melhor satisfaça às vossas aspirações. (KARDEC, RE:

Jan/1863, p. 35)

Para Kardec, a liberdade de pensar é extremamente importante e, portanto, com tal

perspectiva, o indivíduo deverá se manifestar através da razão, abrindo a possibilidade de ver o

mundo por diversas perspectivas tanto religiosas como científicas, pensamento esse

extremamente secular.

2.4. Perspectiva Religiosa versus Perspectiva Científica

Ao dizer que “não aconselha a ninguém que mude de religião” e que cada um pode

“adorar a Deus à sua maneira”, percebemos que Kardec alimentava em si a ideia de que não

havia uma só religião62 e que cada um poderia escolher a sua. Além disso, acreditava que os

fatos que ele pesquisava iriam trazer elementos palpáveis do mundo metafísico e que não seria

62 Kardec publicou na Revista Espírita dezenas de artigos sobre o assunto religião, demonstrando também seu

interesse pelo assunto de forma geral e que ele não concentrava seu conhecimento somente na visão europeia

cristã de religião (KARDEC, RE: Jan/1865, p. 45). Há artigos que ele discute a origem da religião (KARDEC,

RE: Abr/1858, p. 186); (KARDEC, RE: Ago/1866, p. 318), a religião como fenômeno social e político

(KARDEC, RE: Jun/1868, p. 259), dialogou com outros pensadores como Maquiavel (KARDEC, RE: Ago/1866,

p. 320), Voltaire (KARDEC, RE: Set/1859, p. 357), Guizot (KARDEC, RE: Dez/1861, p. 556), Lamennais

(KARDEC, RE: Ago e Out/1860, p. 378 e 482), Descartes (KARDEC, RE: Mar/1867, p. 125). E ainda tratou de

forma bem ampla o Islamismo (KARDEC, RE: Abr/1858, p. 184); (KARDEC, RE: Jun/1860, p. 278);

(KARDEC, RE: Ago/1866, p. 303); (KARDEC, RE: Nov/1866, p. 433); (KARDEC, RE: Nov/1866, p. 441),

além de outras religiões orientais, como a dos egípcios (KARDEC, RE: Nov/1858, p. 458), do judaísmo

(KARDEC, RE: Set/1861, p. 414 ), do hinduísmo (KARDEC, RE: Jan/1859, p. 48); (KARDEC, RE: Set/1868

p. 387) e inclusive religiões primitivas, como os druidas (KARDEC, RE: Set/1868, p. 390), indígenas do México

(KARDEC, RE: Ago/1864, p. 330) e religião primitiva dos árabes (KARDEC, RE: Ago/1866, p. 308).

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papel do Espiritismo lidar com a adoração, já que a religião é que se ocupava de tal função.

Apesar de dar crédito às religiões, Kardec tinha um conceito particular a respeito do

Cristianismo, pois afirmava que “de todas as doutrinas, o Cristianismo63 é a mais esclarecida, a

mais pura”. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206). Outra questão, a mais importante por sinal, é

que ele põe a religião e o Espiritismo em lugares separados e não conflitantes, sendo, porém,

complementares. Com essas afirmações, Kardec faz a compatibilização de algo que Geertz diz

não ser possível a Perspectiva Religiosa e a Perspectiva Científica.

Geertz define perspectiva “como um modo de ver, no sentido mais amplo de ‘ver’ como

significado ‘discernir’, ‘aprender’, ‘compreender’, ‘entender’. É uma forma particular de olhar

a vida, uma maneira particular de construir o mundo” (GEERTZ, 1978, p. 81). Kardec tinha

sua própria perspectiva, a qual não era propriamente religiosa, podendo se dizer que era

filosófica, mas não descartava a perspectiva religiosa. Na perspectiva de Kardec, a autoridade

do Espiritismo advém da lógica e da observação dos fatos pela razão, a qual deve rejeitar “toda

teoria em notória contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados

positivos que se possui, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como

assinatura.” (KARDEC, ESE: Introdução: II).

A definição de religião tratada por Geertz diz que:

[...] uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer

poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da

(3) formulação de conceitos de uma ordem geral e (4) vestindo essas concepções com

tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente

realistas. (GEERTZ, 1978, p. 67).

Estabelecendo um diálogo entre os pensamentos de Kardec e Geertz, destacam-se dois

pontos importantes: em primeiro lugar, Kardec concorda com a primeira e a segunda parte da

afirmação antropológica de Geertz, a qual estabelece que os símbolos e rituais são a motivação

central das religiões, que elas não sobrevivem sem os seus símbolos e rituais (GEERTZ, 1978,

p. 71-73), e inclusive, por isso, entende que o Espiritismo não é religião quando afirma que

“não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre

seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.”

(KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).

Por outro lado, Kardec não é consonante com Geertz (1978, p. 80) quando este detalha

a terceira e quarta parte de sua definição, afirmando que a crença religiosa não envolve uma

indução baconiana da experiência cotidiana baseada numa autoridade estabelecida

63 Para Kardec Cristianismo e a Igreja Católica e Protestantes eram coisas diferentes.

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previamente. É exatamente nesse ponto que Kardec apresenta a possibilidade de uma

perspectiva científica na relação com o metafísico, apostando na existência da alma, baseada

numa autoridade racional e empírica, e na observação de provas positivas, como discorre

Mircea Eliade sobre o Espiritismo:

Os fenômenos espiritistas são conhecidos desde os tempos antigos e têm sido

diferentemente interpretados por várias culturas e religiões. Mas o elemento novo e

importante no espiritismo moderno é a sua perspectiva materialista. Antes do mais,

existem agora “provas positivas” da existência da alma, ou antes, da existência post-

mortem de uma alma: pancadas, inclinações da mesa e, algum tempo depois, as

chamadas materializações. (ELIADE, 1989 p. 61, grifo nosso).

A perspectiva científica proposta por Kardec, ao contrário do que Geertz (1978, p. 82)

apregoa, afirma que o Espiritismo pode enfrentar os fatos seculares sem receios, sem que se

torne violável pelas revelações discordantes ou sem fatualidade e, ao contrário, Kardec afirma

ser plenamente falseável, chegando a afirmar que a fé deve ser objeto da razão, dizendo que:

“Fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da

humanidade” (KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo). É por tal

perspectiva científica que ele vai afirmar, como já dissemos anteriormente, que o Espiritismo

não é religião, pois declara formalmente que ele prescinde de toda forma ritual na sua prática.

Para a formulação de conceitos, ao contrário do que Geertz afirma no terceiro tópico de

sua definição, Kardec lançou mão do método de experimentação de Francis Bacon, o qual

previa que a formação das leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas,

numa lógica sequencial de formulação de hipóteses e validação da sua consistência. A isso

Bacon definiu como sendo experimentação, como já explicamos em detalhes no primeiro

capítulo. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na proposição de uma

metodologia científica, que se pautava pela racionalização de procedimentos e que foi

caracterizada como a indução e a dedução.

O método da experimentação utilizado por Kardec, legado por Bacon, advém da forte

presença do evolucionismo herdado do século XVIII com um sentimento de transformação, que

existia também entre os pensadores contemporâneos dele, como o evolucionismo biológico de

Darwin (1809-1882), o transformismo de Lamarck (1744-1829), as teorias sociais de Karl Marx

(1818-1883) e a revolucionária forma de pensar de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que,

dentre outros, inspirou Pestalozzi, mestre de Kardec.

Ao utilizar-se desse método, Kardec tinha a intenção de fugir exatamente do que Geertz

propunha como condição para os fenômenos metafísicos: uma aura de fatualidade, como

descreve no tópico quatro de sua definição, ou seja, a crença no metafísico, ou no religioso,

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pode sim passar por uma indução baconiana, o que contraria Geertz.

2.5. O Conceito de religião para Kardec

Como vimos até agora, os limites estabelecidos para dizer o que é ou não religião passam

por um vasto leque de concepções, navegando entre duas etimologias possíveis, o relegere e o

religare, uma de origem romana, voltada para a adoração de diversos deuses e a outra

reconceituada como cristã apontando para um Deus único e verdadeiro. A religião não fica,

porém, somente entre essas duas concepções, passando por outros pensamentos que poderiam

se dizer intermédios ou, como disse Benson Saler, com “características típicas às quais

associamos no nosso modelo geral de religião”, estabelecendo lugares mais ou menos

“religiosos” (SALER, 2000, p. xiv). Praticamente todos esses conceitos podem ser englobados

na afirmação de Geertz, de que todas as religiões se revestem de uma aura de fatualidade, dada

por rituais que seriam, segundo ele, sua motivação central. (GEERTZ, 1978, p. 67).

No século XIX, para muitos europeus64, isso tudo parecia correto e acertado, bastando

apenas situar as religiões entre o relegere ou o religare. Quando surgiram os fenômenos

espíritas com os eventos de Hydesville e as mesas girantes na França, analisadas por Kardec,

uma nova visão veio à tona, que considerava a existência de “provas positivas da existência da

alma, ou antes, da existência post-mortem de uma alma”, como afirma Eliade. (ELIADE, 1989

p. 61).

Allan Kardec, então, surge com uma perspectiva científica baconiana e principalmente

secular do que, até aquele momento, era apenas do domínio das famílias de religiões com

características definidoras, mais comumente associadas às religiões ditas tradicionais, no caso,

o judaísmo, o cristianismo e islamismo. O pedagogo francês propõe, em meio às revoluções do

pensamento moderno do Iluminismo, que o metafísico, outrora assunto das religiões ou da

filosofia, passasse a ser assunto da ciência, ou pelo menos da razão. A “fé inabalável é somente

a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.” (KARDEC, OP:

Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).

Se levarmos em conta a visão de que existem nas religiões categorias graduadas, cujas

instâncias estão ligadas por semelhanças de família, elas seriam compostas de um conjunto de

características, das quais cada uma tomaria para si um pequeno subconjunto e, por assim dizer,

existiriam áreas periféricas que são menos comuns às religiões tidas como as maiores

64 Dizemos aqui para os europeus, pois não estamos trabalhando aqui os conceitos orientais de religião.

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referências ocidentais de religião. Dessa forma, o hibridismo apontado por Araujo no

Espiritismo (ARAUJO, 2010, p. 132), que seria, segundo ele, um entre lugar, uma ponte entre

a ciência e a filosofia com a religião tida como referência, nada mais é, ao nosso modo de ver,

uma área periférica do conjunto de características das religiões apontadas por Saler.

Por isso, não obstante Kardec tenha dito (2016, p. 232), que a doutrina espírita não é

uma religião propriamente constituída e que serviria como elemento aglutinante às diversas

religiões, foi encarada por livre pensadores e diversos movimentos religiosos como uma

religião, como veremos no terceiro capítulo.

Retomando a definição de Geertz de religião, Kardec parecia não acreditar que fosse

possível, em termos de religião, desvincular “um sistema de símbolos que atua para estabelecer

poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens” de uma

“formulação de conceitos de uma ordem geral” (GEERTZ, 1978, p. 67) não baconiana. Por essa

razão, pelo menos naquele momento, Kardec não acreditava que o Espiritismo pudesse ser uma

religião, pois os ritos, os símbolos e os sacerdotes seriam características que estariam sempre

presentes na religião, segundo seu pensamento. Dizemos aqui pelo menos naquele momento,

porque a visão kardeciana a respeito da religião se transformou com o tempo e passou por uma

fase que foi nomeada por Araujo (2014, p. 218) como um período religioso, particularmente

quando publicou O Evangelho Segundo o Espiritismo. Segundo Araujo, as afirmações de

Kardec, com o tempo, passaram por modificações, chegando ele a afirmar que o Espiritismo é

uma religião em termos filosóficos.

Por fim, entendemos que Kardec fez das famílias do Cristianismo (a Igreja Católica e a

Igreja Protestante) como suas referências de religião, o que corrobora o pensamento de Saler

que a maioria das pessoas tem essas como as principais referências de religião. Dessa forma,

em contraponto, afirmou que o Espiritismo não era uma religião, já que o mesmo não possuía,

ritos, símbolos ou sacerdotes. Concluímos que isso se deu por dois motivos: primeiro porque

se, para ele, de todas as doutrinas, o Cristianismo era a mais esclarecida e a mais pura, não

haveria, portanto, razão para criar nova religião, e sim agregar as revelações65 dos espíritos ao

Cristianismo (ou a outras religiões que aceitassem as concepções do Espiritismo); e, em

segundo lugar, porque Kardec não tinha a ideia de fundar uma nova religião, mas sim fornecer

elementos para fazer “uma reforma religiosa, [...], com a intenção de chegar à unificação das

crenças.66” (LACHÂTRE, 1867, p. 199). A consequência desse pensamento era que se o

65 A frente ainda neste capítulo (item 2.6.3) explicaremos o entendimento de Kardec a respeito de revelação. 66 Apesar da ideia que ele tinha de uma unificação de crenças que, como veremos no capítulo terceiro, “foi

exportada” para outras correntes espiritualistas, Kardec parecia ter a noção da impossibilidade dessa unificação,

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Espiritismo fosse mais uma religião haveria um novo ponto de cisão, e se ao contrário, ele

contribuísse para o entendimento e diálogo das religiões, haveria menos espaço para a

intolerância religiosa.

2.6. A perspectiva do Sagrado para Kardec

Como vimos até agora, a questão religiosa para Kardec tinha contornos particulares,

portanto, entendia que não se podia classificar o Espiritismo como religião, pois essa doutrina

não teria esse papel. Para ele, a intenção dessa filosofia espiritualista seria apenas de ser um

meio para esclarecer os pontos obscuros presentes nas religiões de maneira geral, deixando a

cargo de cada um o entendimento dessas como bem lhe aprouvesse. Por esse viés, o Espiritismo

teria o papel apenas de dissolver as tensões presentes entre as diversas correntes religiosas.

(KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62 e 63). Sendo assim, para Kardec, o Espiritismo não sendo uma

religião, não estaria sujeito a essas disputas religiosas, pois não teria em sua constituição os

elementos que julgava obrigatoriamente fundamentais para a caracterização dele como tal: 01)

a presença de um templo religioso; 02) a liderança de um Sumo-Sacerdote e seus sacerdotes;

03) a existência de cultos; 04) e a presença de ritos.

Se observarmos atentamente quando Kardec trata das religiões, há semelhanças com

algumas das proposições dos autores que citamos nesse trabalho, cada um à sua maneira,

apresentando, conforme a definição de Benson Saler, algumas das características definidoras

das religiões e/ou seus conceitos. Com Lactâncio, há uma aproximação de sentido com o

religare e que o Cristianismo seria a forma mais pura para estabelecer os laços morais do

homem com Deus e era contra o relegere que dava prioridade ao culto no lugar da moral

(KARDEC, RE: Mai/1859, p. 205). Com Clifford Geertz, as aproximações se dão nas questões

dos símbolos e rituais que, segundo ambos, são a motivação central das religiões, as quais não

sobreviveriam sem esses (e, em consequência disso, não entendia que o Espiritismo fosse

religião). Com Benson Saler, encontraremos as maiores divergências, mas ainda sim veremos

que Kardec também entendia que as maiores referências ocidentais de religião eram as famílias

ligadas ao judaísmo, cristianismo e islamismo. Para ele, estávamos muito perto do

entendimento de considerar, como Eliade, que a religião era um objeto de estudo sui generis,

com uma forma única e exclusiva em sua constituição, e que não caberia ao Espiritismo destruí-

la e sim complementá-la. (KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62 e 63).

pelo menos no estágio atual da humanidade. (KARDEC, RE: Mar/1861, p. 144).

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Além dos pontos citados anteriormente, há uma questão relevante quando se aborda o

tema religião, o conceito de sagrado e o profano, e não poderíamos deixar de abordar esse tema

ao tentar entender o pensamento de Kardec a respeito das religiões. Para entender esse ponto,

optamos por compreender a posição de dois autores clássicos a esse respeito, Rudolf Otto e

Mircea Eliade. O objetivo deste tópico é de compreender como Kardec dialoga com o conceito

de crença no sagrado e sua relação com o profano, tomando por referências esses dois autores.

Abordaremos primeiramente Eliade, embora Rudolf Otto o preceda normalmente nas

abordagens sobre o sagrado por questões históricas. Fizemos essa opção porque Kardec em O

Livro dos Espíritos67 trata primeiro das manifestações do sobrenatural no mundo físico para

depois tratar a questão da relação com a divindade.

2.6.1. O Sagrado e o Profano para Eliade

Segundo Mircea Eliade, em sua obra Tratado de História das Religiões, todas a

definições do fenômeno religioso apresentam características comuns de que cada uma mostra,

à sua maneira, uma oposição entre o sagrado e o profano, entre a vida religiosa e a vida secular.

Segundo ele, é na delimitação do que é sagrado e do que é profano que as coisas se complicam,

pois, o estabelecimento desses limites seria extremamente complexo (ELIADE, 2008, p. 7), a

ponto dele mesmo se render a essa dificuldade citando Roger Caillois que, na abertura de seu

livro L’homme et le sacré, diz que:

No fundo, acerca do sagrado em geral, na própria definição do termo: é aquilo que se

opõe ao que é profano. A partir do momento em que nos dediquemos a precisar a

natureza, a modalidade desta oposição, esbarramos com os maiores obstáculos.

Nenhuma fórmula, ainda que elementar, é aplicável à complexidade labiríntica dos

fatos. (CAILLOIS, apud ELIADE, 2008, p. 2).

As dificuldades de definição desses limites tanto na ordem teórica quanto na ordem

prática se dão porque não é fácil identificar “os fatos religiosos, e principalmente, dentre esses

fatos, os que se deixam observar em ‘estado puro’, isto é, os que são ‘simples’ e estão mais

próximos da sua origem.” (ELIADE, 2008, p. 7). Nas citações de Eliade, ele trata das

dificuldades que encontrou para fazer uma história comparada das religiões, pois procurava

fazê-lo entre diversas religiões:

67 O Livro dos Espíritos é dividido em quatro partes, a primeira parte trata das causas primárias e foi tomado por

base para o livro A Gênese; a segunda parte trata do mundo dos espíritos, e foi tomado como a base de O Livro

dos Médiuns; a terceira parte trata das leis morais, que foi a base para O Evangelho Segundo o Espiritismo; a

quarta parte trata das esperanças e consolações e foi a base do livro O Céu e o Inferno.

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[...] a reunião da documentação apresenta também importantes dificuldades práticas.

Por duas razões: 1°) ainda que nos contentássemos em estudar uma só religião, a vida

de um homem mal chegaria para levar tal investigação a cabo; 2°) se nos propusermos

o estudo comparativo das religiões, até várias existências seriam insuficientes para se

alcançar o objetivo proposto. Ora, o que nos interessa é justamente este estudo

comparativo, o único capaz de nos revelar, por um lado, a morfologia inconstante do

sagrado e, por outro, o seu devir histórico. Para nos aproximarmos desse estudo,

fomos, pois, obrigados a escolher certas religiões entre aquelas que a história registrou

ou que a etnologia nos revelou, e também alguns dos seus aspectos e das suas fases.

(ELIADE, 2008, p. 7)

Para estabelecer a definição e delimitação do sagrado, seria necessário, segundo Eliade,

dispor em cada religião de uma certa quantidade de sacralidades, isto é, uma certa quantidade

de fatos sagrados, que se manifestam através de uma vasta e longa série de ritos, mitos, formas

divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias, teologúmenos, homens

consagrados, animais, plantas e lugares sagrados. Além do fato de que cada uma dessas

categorias apresentam uma morfologia extremamente rica e luxuriante. (ELIADE, 2008, p. 8).

As manifestações do sagrado através desses elementos foram designadas por Eliade como

hierofania68, termo esse cunhado por ele mesmo, ou seja, ele definiu na palavra hierofania todas

as manifestações do sagrado no mundo real, que, por sua vez, podem ser de diversos tipos.

Cada um dos fatos sagrados citados no parágrafo anterior são entendidos como

hierofanias e são extremamente heterogêneas em sua origem e em sua história, e têm

características próprias, que dimanam de sacerdotes ou homens sagrados, outras de fragmentos

textuais sagrados ou textos completos, outras ainda de objetos ou de elementos da natureza,

entre outras fontes de dimanações nas quais o sagrado se manifesta. Para ilustrar, podemos

tomar as hierofanias vegetais (isto é, o sagrado revelado através da vegetação), nas quais o

sagrado se revela, por exemplo, através de uma determinada árvore, que será o símbolo de uma

árvore cósmica, árvore da vida ou outras concepções que inspirarão mitos ou ritos específicos,

segundo um contexto histórico. De acordo com a religião e a cultura específica, existirá uma

documentação69 específica para compreender esta hierofania. (ELIADE, 2008, p. 14).

Uma das características importantes das hierofanias é que, a qualquer momento, toda e

qualquer coisa pode se tornar uma hierofania, o que não invalida a dicotomia sagrado-profano.

Poderia se dizer que há aí uma contradição, pois, se qualquer coisa pode incorporar uma

sacralidade, tudo o que é profano poderia ser sagrado, mas não é bem assim. Essa contradição

é aparente, pois, todos os objetos poderão tornar-se sagrados, mas não serão sagrados todos os

68 Hierofania - (do grego hieros (ἱερός) = sagrado e faneia (φαίνειν) = manifesto) pode ser definido como o ato de

manifestação do sagrado. 69 Eliade entende por documentação tudo o que possa contar a história de uma determinada hierofania, uma pintura,

um objeto sagrado, um texto, um elemento da natureza, etc. (ELIADE, 2008, p. 3)

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objetos ao mesmo tempo. Dessa forma, apesar de qualquer coisa poder se tornar uma hierofania,

somente uma coisa específica (um objeto, um fenômeno, um vegetal, um animal, etc.), com

uma história e uma característica peculiar poderá ser tida por sagrada. Por exemplo, quando se

fala de culto às pedras não se quer dizer que todas as pedras são sagradas, mas sim certas pedras

que tenham uma forma, um tamanho ou uma implicação de ritual específica que possa se tornar

uma hierofania. Deve existir uma lógica que incorpore à pedra algo além dela mesma (ELIADE,

2008, p. 19).

As hierofanias são muitas e estão presentes em todos os atos sagrados de todas as

religiões e entre todos os povos, são símbolos sagrados como descreve Geertz:

[...] os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com uma

estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de

identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar um sentido

normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real. O número desses

símbolos sintetizadores é limitado em qualquer cultura e, embora em teoria se possa

pensar que um povo poderia construir todo um sistema autónomo de valores,

independente de qualquer referente metafísico, uma ética sem ontologia, na verdade

ainda não encontramos tal povo. A tendência a sintetizar a visão de mundo e o ethos

em algum nível, embora não necessária logicamente, é pelo menos empiricamente

coerciva; se não é justificada filosoficamente, ela é ao menos pragmaticamente

universal. (GEERTZ, 1978, p. 94)

Mircea Eliade condensa esse sentido de síntese de visão de mundo abordado por Geertz

nos mitos, que serviriam para “fixar o modelo exemplar de todos os ritos e de todas as ações

humanas significativas [...] o mito serve igualmente de modelo a outras ações humanas

significativas: à navegação e à pesca por exemplo.” (ELIADE, 2008, p. 334). Os mitos seriam

como um conjunto de documentos (no sentido das histórias de cada símbolo) que justificariam

as hierofanias, que dariam sentido aos objeto e/ou eventos sagrados, contando sua história ou

sucessão de eventos, criando um sentido norteador do que é sagrado. Os mitos são revividos

através de rituais representativos, que repetem ou contam de forma representativa esses eventos

significativos que fizeram desse ou daquele fato, desse ou daquele objeto uma hierofania.

(ELIADE, 2008, p. 334 e 335).

2.6.2. O Sagrado e o Profano para Rudolf Otto

A tentativa de compreensão do sagrado tem sido objeto de diversos autores,

comentamos até aqui a visão de Eliade sobre a dicotomia sagrado-profano nos concentrando

nas hierofanias, mas entendemos que, como estamos falando de uma doutrina espiritualista que

se autodenomina cristã, não poderíamos deixar de abordar a visão de sagrado de Rudolf Otto,

já que ele dá grande ênfase ao Cristianismo em seu trabalho. Ele inicia o seu discurso sobre o

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sagrado da seguinte forma:

O sagrado é, antes de mais, uma categoria de interpretação e de avaliação que, como

tal, só existe no domínio religioso. Sem dúvida, também ocorre noutros domínios, por

exemplo na ética, mas não é dela que provém. Esta categoria é complexa; compreende

um elemento com uma qualidade absolutamente especial, que escapa a tudo o que

chamámos racional, constituindo, enquanto tal, uma arrêton70, algo de inefável. [...] À

primeira vista, tal afirmação poderia parecer falsa se o sagrado fosse o que significa a

palavra em certas locuções usadas pelos filósofos e habitualmente pelos teólogos. De

facto, adquirimos o hábito de usar o termo sagrado dando-lhe um sentido

completamente figurado. Que já não é, de modo algum, o sentido primitivo.

Normalmente entendemos, por esta palavra um predicado de ordem ética, sinónimo

do absolutamente moral e perfeitamente bom. Por exemplo, Kant chama “vontade

santa” à vontade cujo dever é o móbil e que, sem cedências, obedece à lei moral; seria

simplesmente a vontade moral perfeita. (OTTO, 1992, p. 13)

Se, de certa forma, Eliade faz uma análise do sagrado do ponto de vista das diversas

sacralidades e as traduz por hierofanias, registrando-as de uma forma mais material, mais

empírica em suas diversas documentações, Rudolf Otto, porém parte para uma interpretação

mais subjetiva, inefável e a desenvolve no sentido de uma tradução de ordem moral. Otto faz

uma associação da palavra sagrado Heilige (em alemão) a um sentido mais elevado, do que é

bom, perfeito, e reconhece a incapacidade da palavra na sua acepção comum de traduzir o seu

pensamento. Por essa razão, assim como Eliade fez com a palavra hierofania para traduzir o seu

pensamento, Otto cunha o termo numinoso que advém da palavra latina numen (divindade,

desejo divino) que diria respeito a um sentimento de ordem mística (no sentido de vivência de

uma experiência) de perplexidade em relação à grandeza do divino. Ele explica o numinoso da

seguinte forma:

O elemento de que falamos [...] aparece como um princípio vivo em todas as religiões.

Constitui a sua parte mais íntima e, sem ele, nunca seriam formas da religião. A sua

vitalidade manifesta-se, com um particular vigor, nas religiões semíticas e, entre elas,

num grau ainda superior, nas religiões bíblicas. Nelas possui um nome que lhe é

próprio, o de Qadoch, a que corresponde Hagios e Sanctus, ou mais exactamente,

Sacer. Com toda a certeza que, nas três línguas, estas palavras implicam a ideia do

bem e do bem absoluto, considerada no mais alto grau do seu desenvolvimento e na

sua maturidade; vamos traduzi-las, pois por “sagrado”. É impossível que este

elemento seja neutro em si mesmo relativamente àquilo que é de ordem ética e possa

ser examinado por si próprio. Não há dúvida alguma de que na origem deste

desenvolvimento todas aquelas expressões significavam outra coisa diferente de bom.

E um ponto hoje geralmente admitido pelos exegetas. Reconhece-se, e com razão,

uma interpretação racionalista no facto de se traduzir Qadoch simplesmente por bom.

Portanto, convém encontrar um nome para este elemento tomado isoladamente. Tal

nome fixar-lhe-ia o carácter particular, permitindo, além disso, captar e indicar

também, eventualmente, as formas inferiores ou frases de desenvolvimento. Formo,

por isso, a palavra: o numinoso. Se omen pôde servir para formar ominoso, de numem

pode formar-se numinoso. (OTTO, 1992, p. 14)

Uma das características mais importantes apresentadas por Otto acerca do numinoso é

70 Arrêton – definido pelo próprio Otto como indizível. (OTTO, 1992, p. 223)

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a impossibilidade de percebê-lo senão pelo sentimento, ou seja, pelas emoções religiosas

despertadas no indivíduo que se proponha a compreender o numinoso ou o sagrado. Ele entende

que tal processo de percepção é exclusivo da vivência religiosa e afirma que aquele que não se

predisponha a essa experiência que abandone seu estudo. A experiência subjetiva do

“sentimento do estado de criatura à reação provocada na consciência pelo sentimento do objeto

numinoso” (1992, p. 17) é para Otto a base fundamental para o estudo da religião sem a qual

não é possível avançar em seu entendimento. Decorrente disso, Otto desenvolve a ideia de um

sentimento que ele chama de dependência que teria o sentido da nossa insuficiência, da nossa

impotência, da nossa limitação em relação à divindade. “Procuro um nome para este algo mais

e chamo-lhe: o sentimento do estado de criatura, que se abisma no seu próprio nada e desaparece

perante o que está acima de toda a criatura” (OTTO, 1992, p. 19).

O sentimento de dependência e de insuficiência em relação à divindade foi designado

por Otto como sendo um dos aspectos do numinoso, e ele o chama de mysterium tremendum.

Esse é um ponto importante para nossa pesquisa, pois trata da nossa relação com a divindade e,

para o autor, uma das suas características é a impossibilidade de ser delimitada por conceitos,

por tratar-se de um sentimento particular, de uma experiência do indivíduo que o contato com

a divindade provoca. Essa experiência mística, segundo Otto, provoca no indivíduo sensações

inexplicáveis, poderosas expressões emotivas que são alcançadas nas solenidades e tonalidades

dos rituais e dos cultos. São emoções que podem espalhar na alma como que uma onda

apaziguadora de quietude e profundo recolhimento. As emoções causadas pelo mysterium

tremendum se refletem em tudo à volta do indivíduo, nos monumentos religiosos, edifícios e

templos religiosos. Esses estados de alma, porém, para Otto, desfazem-se quando a pessoa

retoma o seu estado profano e ele completa seu pensamento da seguinte forma:

Este sentimento pode assim transformar-se num estado de alma constantemente

fluido, semelhante a uma ressonância que se prolonga durante muito tempo, mas que

acaba por extinguir-se na alma que retoma o seu estado profano. Também pode surgir

bruscamente na alma com choques e convulsões. Pode levar a estranhas excitações,

ao inebriamento, aos arrebatamentos, ao êxtase. Tem formas selvagens e demoníacas.

Pode degradar-se e quase confundir-se com o arrepio e o pasmo de horror

experimentado diante dos espectros. Tem graus inferiores, manifestações brutais e

bárbaras, possuindo uma capacidade de desenvolvimento com que se refina, se

purifica, se sublima. Pode transformar-se no silencioso e humilde estremecimento da

criatura que fica interdita... em presença daquilo que está, num mistério inefável,

acima de toda a criatura. (OTTO, 1992, p. 22)

Otto ainda discorre sobre a questão do mistério, como aquilo que não é manifesto, que

está escondido, aquilo que não é compreendido e que é extraordinário, que está além de nossa

compreensão, muito embora entenda que, apesar de oculto, seja positivo, e embora sem

precisão, possa ser acessado pelo sentimento (OTTO, 1992, p. 22). Otto ainda discorre em sua

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obra sobre outras características do numinoso, a visão do fascínio e a questão do tremendum do

poder (majestas) que a divindade pode exercer sobre o indivíduo, mas que não são relevantes

para nossa abordagem.

2.6.3. O Sagrado e o Profano para Kardec

Como vimos, uma das questões iniciais levantadas por Eliade seria a dificuldade da

identificação dos fatos religiosos em virtude da grande profusão de religiões e de suas visões

de mundo. Em nosso caso, por outro lado, o trabalho não é fácil, mas é menos penoso, pois

vamos usar apenas algumas das conclusões que ele chegou para identificar como os conceitos

de sagrado e de profano são entendidos e aplicados ao Espiritismo. A dificuldade inicial

apontada por Eliade ficará, portanto, amenizada pois faremos o caminho inverso, aproximando

os conceitos do Espiritismo abordados por Kardec às conclusões de Eliade e de Rudolff Otto,

muito embora não sejam menos penosas e incompletas tais observações.

Para que possamos estabelecer um diálogo de Kardec com os conceitos de Eliade e de

Otto sobre o sagrado, é necessário primeiramente identificar o entendimento do codificador do

Espiritismo sobre o sagrado. Na obra kardeciana, não há nenhuma definição explícita para o

termo sagrado e todas as vezes que esse termo aparece é utilizado na sua acepção comum, que

no dicionário online Priberam71 é definido como aquilo que é relativo ao culto religioso. =

SACRO, SANTO ≠ PAGÃO, PROFANO ou o que inspira ou deve inspirar grande respeito ou

veneração. = SACRO, SANTO. Embora não trate o sentido de sagrado com uma definição

específica, Kardec trata no livro A Gênese das manifestações do divino, que, pela definição de

Eliade, seriam hierofanias nos eventos que chamaremos aqui de miraculosos, fenômenos

sobrenaturais ou fenômenos metafísicos. Kardec discorre sobre esse tema da seguinte forma:

Na acepção etimológica, a palavra milagre (de miracŭlum, admirar) significa:

prodígio, maravilha; coisa extraordinária. A Academia definiu-a deste modo: Um ato

do poder divino contrário às leis da natureza, conhecidas. Na acepção usual, essa

palavra perdeu, como tantas outras, a significação primitiva. De geral, que era, se

tornou de aplicação restrita a uma ordem particular de fatos. No entender das massas,

um milagre implica a ideia de um fato extranatural; no sentido teológico, é uma

derrogação das leis da natureza, por meio da qual Deus manifesta o seu poder. Tal,

com efeito, a acepção vulgar, que se tornou o sentido próprio, de modo que só por

comparação e por metáfora a palavra se aplica às circunstâncias ordinárias da vida.

Um dos caracteres do milagre propriamente dito é o ser inexplicável, por isso mesmo

que se realiza com exclusão das leis naturais. É tanto essa a ideia que se lhe associa,

que, se um fato milagroso vem a encontrar explicação, se diz que já não constitui

milagre, por muito espantoso que seja. O que, para a Igreja, dá valor aos milagres é,

71 DICIONÁRIO PRIBERAM. Disponível em: <https://www.priberam.pt/dlpo/sagrado>. Acesso em: 18 ago.

2018.

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precisamente, a origem sobrenatural deles e a impossibilidade de serem explicados.

Ela se firmou tão bem sobre esse ponto, que o assimilarem-se os milagres aos

fenômenos da natureza constitui para ela uma heresia, um atentado contra a fé, tanto

assim que excomungou e até queimou muita gente por não ter querido crer em certos

milagres. Outro caráter do milagre é o ser insólito, isolado, excepcional. Logo que um

fenômeno se reproduz, quer espontânea, quer voluntariamente, é que está submetido

a uma lei e, desde então, seja ou não seja conhecida a lei, já não pode haver milagres.

(KARDEC, AG: Cap. XIII: 1).

De acordo com essa citação, no Espiritismo, segundo o entendimento de Kardec, não há

fatos sagrados ou miraculosos, aliás, de seu ponto de vista, esses fatos sequer existem em

qualquer religião que seja. Para ele, os fenômenos e eventos tratados como milagres por muitas

comunidades religiosas, inclusive para a Igreja Católica quando esta trata da criação do mundo,

por exemplo, por não compreender os fenômenos geológicos, físicos, químicos ou

astronômicos deu à criação do mundo uma conotação de intervenção divina72, ao que, na

verdade, não passam de fenômenos naturais mal compreendidos pelo desconhecimento de fatos

científicos (KARDEC, AG: Cap. IV: 3). A criação e outros fenômenos de ordem natural foram

atribuídos às divindades, demônios ou qualquer tipo de fenômenos metafísicos sobrenaturais.

Em certas culturas, por exemplo, se tomarmos religiões mais primitivas, os eventos naturais,

como relâmpagos que ao cair partem e colocam fogo em uma árvore, são atribuídos a algo de

ordem sobrenatural, a um deus, a espíritos malignos ou a quaisquer entidades metafísicas,

dependendo ao que essa cultura atribua, transformando esse evento natural em uma hierofania,

devendo essa(s) ser(em) adorada(s) ou temida(s) dentro de uma visão de mundo constituída..

Kardec, nesse ponto, inclusive, generalizou esse entendimento para todas as religiões.

As colocações de Kardec apresentadas justificam inclusive as dificuldades apontadas

por Eliade, pois a “heterogeneidade dos ‘fatos sagrados’ começa por ser perturbante e acaba,

pouco a pouco, por se tornar paralisante, pois se trata de ritos, de mitos, de formas divinas, de

objetos sagrados e venerados, de símbolos, de cosmologias, de teologúmenos, de homens

consagrados”. (ELIADE, 2008, p. 8). Não queremos aqui discutir o mérito dos fatos sagrados

ou como diria Eliade das suas hierofanias, estamos considerando apenas que, mesmo que esses

não existissem ou que não pudessem ser falseados, ainda sim, para seu observador, seriam

sagrados. Sejam quais forem os nomes dados, esses serão fenômenos ou fatos religiosos mesmo

quando forem imaginários e cujas explicações têm uma lógica estabelecida por sua cultura e/ou

72 Cabe aqui uma explicação a respeito do entendimento do Espiritismo sobre a criação. Segundo O Livro dos

Espíritos, em sua pergunta primeira, “Que é Deus?” e cuja resposta é “Deus é a inteligência suprema, causa

primária de todas as coisas” (KARDEC, LE: Questão: 1) o universo foi criado por Deus. A questão é que,

segundo esse pensamento, essa criação não é “miraculosa” no sentido de derrogação das leis naturais. Para o

Espiritismo, Deus criou o universo não em sete dias, mas sim de acordo com que nos apresenta as ciências

naturais. Esse assunto é tratado em toda a primeira parte do livro A Gênese de Kardec (1990).

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costumes.

A aparição de uma entidade metafísica qualquer será para alguns a aparição de um

demônio, para outros um fantasma, um anjo, um santo ou qualquer denominação que o

observador desse fato quiser dar, segundo sua bagagem cultural e eventualmente religiosa,

segundo sua visão de mundo. Para Kardec, por outro lado, será um fenômeno relativamente

incompreendido pela ciência corrente, um fenômeno que pode ou não ter uma explicação do

ponto de vista da ciência natural corrente, mas que um dia será revelado assim como foram os

relâmpagos, outrora atribuídos a eventos metafísicos e que posteriormente foram entendidos

como descargas atmosféricas.

Para Kardec a revelação tem uma acepção própria, segundo ele, não existe nas

revelações elementos sobrenaturais, ao contrário, são fatos naturais que se “nos deram a

conhecer [...], e pode-se dizer que existe para nós uma revelação incessante; a astronomia nos

revela o mundo astral, que não conhecíamos, a geologia, a formação da terra” (KARDEC,

1868b, p. 1, tradução nossa)73. Ele afirma que, sendo as revelações baseadas em fatos, são por

isso mesmo progressivas e completa que o Espiritismo “Pela sua substância, alia-se à Ciência

que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser

contrária às leis de Deus, autor daquelas leis.” (KARDEC, AG: Cap. I: 55). No capítulo três

aprofundaremos o entendimento de Kardec sobre as revelações.

Para Kardec, o Espiritismo não pode estabelecer como princípio algo que não tenha sido

claramente demonstrado e que deve, por sua vez, incorporar toda e qualquer descoberta de

ordem científica, desde que essa tenha assumido o estado de ordem prática e abandonado o

domínio da utopia. Diz ainda que o Espiritismo “caminhando de par com o progresso, [...]

jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca

de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a

aceitará. (KARDEC, AG: Cap. I: 55).

De volta à questão do sagrado propriamente dito, de acordo com Eliade, para que

possamos delimitar e definir o sagrado, teremos que lançar mão de uma certa quantidade de

sacralidades, ou seja, de fatos sagrados (ELIADE, 2008, p. 8). Geertz explica que os

significados para os fenômenos de ordem metafísica que são transformados em algo sagrado se

traduzem em símbolos e/ou objetos de culto (as hierofanias), que são envolvidos por uma aura

73 O conteúdo que é citado aqui, denominado “Caracteres da revelação Espírita” encontra-se também no livro A

Gênese do mesmo autor em seu primeiro capítulo. Preferimos usar o primeiro original em francês de 1868

intitulado: “Caractères de la révélation Spirite”: [...]qui nous font connaítre [...] l'on peut dire qu'il y a pour

nous une révélation incessante; l'astronomie nous révélé le monde astral, que nous ne connaissions pas; la

géologie, la formation de la terre.

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de extrema seriedade moral que encoraja a devoção ao fato sagrado, gera segundo ele um

“sentido de obrigação intrínseca: [...] não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas

induz a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional.” (GEERTZ, 1978, p. 93).

Esta ligação emocional cria uma relação da religião com o homem e seu ambiente que não é

meramente metafísica, que causa efeitos morais transformadores como objeto principal, que

estão previstos no conceito de Lactâncio de religare. Para Geertz esse entendimento causa

consequências que vão além do que é,

mundano, é considerado, inevitavelmente, como tendo implicações de grande alcance

para a orientação da conduta humana. Não sendo meramente metafísica, a religião

também nunca é meramente ética. Concebe-se que a fonte de sua vitalidade moral

repousa na fidelidade com que ela expressa a natureza fundamental da realidade.

Sente-se que o "deve" poderosamente coercivo cresce a partir de um "é" fatual

abrangente e, dessa forma, a religião fundamenta as exigências mais específicas da

ação humana nos contextos mais gerais da existência humana. Na discussão

antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os

elementos valorativos, foram resumidos sob o termo "ethos", enquanto os aspectos

cognitivos, existenciais foram designados pelo termo "visão de mundo [...] A crença

religiosa e o ritual confrontam e confirmam-se mutuamente; o ethos torna-se

intelectualmente razoável porque é levado a representar um tipo de vida implícito no

estado de coisas real que a visão de mundo descreve, e a visão de mundo torna-se

emocionalmente aceitável por se apresentar como imagem de um verdadeiro estado

de coisas do qual esse tipo de vida é expressão autêntica. Essa demonstração de uma

relação significativa entre os valores que o povo conserva e a ordem geral da

existência dentro da qual ele se encontra é um elemento essencial em todas as

religiões, como quer que esses valores ou essa ordem sejam concebidas. O que quer

que a religião possa ser além disso, ela é, em parte, uma tentativa (de uma espécie

implícita e diretamente sentida, em vez de explícita e conscientemente pensada) de

conservar a provisão de significados gerais em termos dos quais cada indivíduo

interpreta sua experiência e organiza sua conduta. (GEERTZ, 1978, p. 93)

O entendimento de Kardec sobre as manifestações metafísicas se alinha com o

pensamento de Geertz, pois para ele o principal papel do Espiritismo, não está na simples

observação e explicação dos fatos metafísicos. Para o Espiritismo, o ponto central é a

possibilidade de oferecer um sentindo de ordem moral e estético, no qual o indivíduo possa,

através de um senso de moralidade dado por valores emocionalmente assumidos, transformar-

se em seu mundo real, aqui no mundo profano e vivenciado no corpo físico material. Embora

Kardec entenda que essa relação com a divindade possa ser sentida, pode e deve também ser

“explícita e conscientemente pensada”. A esse respeito, inclusive, Kardec, na introdução de O

Evangelho segundo o Espiritismo, compara os ensinamentos do Cristo com os ensinos de Platão

e cita Sócrates:

[...] “Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhada nessa

corrupção, nunca possuiremos o objeto dos nossos desejos: a verdade. Com efeito, o

corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que nos achamos de cuidar

dele. Ao demais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e

de mil tolices, de maneira que, com ele, impossível se nos torna ser ajuizados, sequer

por um instante. Mas, se não nos é possível conhecer puramente coisa alguma,

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enquanto a alma nos está ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a

verdade, ou só a conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo,

conversaremos então, lícito é esperá-lo, com homens igualmente libertos e

conheceremos, por nós mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os

verdadeiros filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo

nenhum, temível.” Está aí o princípio das faculdades da alma obscurecidas por motivo

dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades depois da morte. Mas trata-se

apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá com as almas impuras. (KARDEC,

ESE: Introdução: IV).

O Espiritismo procura a compreensão de que se ele existe no mundo material, existirá

também no mundo metafísico e que será consequência do que ele é aqui. Kardec entende que

religio no sentido de escrúpulo em relação ao culto, ou seja, um preciosismo em relação aos

atos exteriores de adoração como descrito por Cícero é um equívoco (KARDEC, RE: Mai/1859,

p. 206 a 208). Ele entende que aqueles que se apegam com exclusividade à existência dos

fenômenos e se dedicam aos mesmos são espíritas imperfeitos e classifica-os da seguinte forma:

O Espiritismo não institui nenhuma nova moral; apenas facilita aos homens a

inteligência e a prática da do Cristo, facultando fé inabalável e esclarecida aos que

duvidam ou vacilam. Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das

manifestações não lhes apreendem as conseqüências, nem o alcance moral, ou, se os

apreendem, não os aplicam a si mesmos. [...] Têm a crença nos Espíritos como um

simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas.

Numa palavra: não divisam mais do que um raio de luz, insuficiente a guiá-los e a

lhes facultar uma vigorosa aspiração, capaz de lhes sobrepujar as inclinações. Atêm-

se mais aos fenômenos do que à moral, que se lhes afigura cediça e monótona. Pedem

aos Espíritos que incessantemente os iniciem em novos mistérios, sem procurar saber

se já se tornaram dignos de penetrar os arcanos do Criador. Esses são os espíritas

imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em

crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas

simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas ou das prevenções. (KARDEC,

ESE: Cap. XVII: 4).

O Espiritismo propõe dessa forma uma abordagem que corrobora Geertz quando este

diz que: Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada

cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo ethos, enquanto os aspectos

cognitivos, existenciais foram designados pelo termo visão de mundo. Há no Espiritismo uma

visão de mundo que não separa o homem físico do metafísico, mas por outro lado discorda da

visão de que “a crença religiosa e o ritual confrontam e confirmam-se mutuamente”. Entende

que não há necessidade da existência de rituais, pois que para o acesso ao fato metafisico não é

necessário o ritual, que o fenômeno pode ser compreendido e reproduzido por meios racionais

e que o mais próximo que se deve chegar do ritual é de rito no sentido de cumprimento a um

procedimento para reprodução de forma baconiana de um fenômeno.

Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.

Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas

mais gerais e, a seguir, a descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses

princípios e de sua inamovível verdade. A outra, que recolhe os axiomas dos dados

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dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em

último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho,

porém ainda não instaurado. (BACON, p. 16, 1988)

Isso, por exemplo, aconteceu quando Kardec observou o fenômeno das mesas girantes,

pois colocou de lado todas as questões de ordem ritualísticas e aplicou o método da

experimentação. As pessoas que vivenciaram o fenômeno das mesas girantes achavam que se

não encostassem as pontas dos dedos uns dos outros, fechando uma corrente, a mesa não se

moveria. Foram repetidos procedimentos, avaliados os eventos que ocorriam e descobriu-se

que bastaria uma única mão para o fenômeno. Pouco a pouco as mesas foram substituídas pelos

cestos de três pontas, depois passou a usar-se pranchetas e finalmente, abandonando por

completo estes recursos, chegou-se ao que foi chamado de psicografia usando-se somente a

mão do médium e um lápis. Ele compreendeu que não eram as mesas que falavam, pois efeitos

inteligentes deviam ser produzidos por seres inteligentes.

Não há, portanto, segundo Kardec, hierofanias, pois o sagrado no sentido aplicado por

Eliade perde sentido e o metafísico se apresenta como um fenômeno natural e, dessa forma, é

profano no sentido de que faz parte do mundo cotidiano. Nessa visão de mundo alinhado ao

pensamento iluminista, o homem não tem que se curvar, não tem que fazer reverência ao

sagrado ou ao fenômeno metafísico, assim como o homem moderno não se curva diante do

relâmpago, pois o entende como algo simples e corriqueiro. Não há nessa visão de mundo o

mysterium tremendum, pois não há que se curvar ao sobrenatural e sim compreendê-lo e

dominá-lo quando possível.

Por outro lado, um dos aspectos do mysterium tremendum é o sentimento de impotência

em relação à Divindade. Na visão de mundo do Espiritismo não nos é possível o entendimento

e a compreensão de todas as particularidades do mundo metafísico devido às limitações

humanas. O numinoso, enquanto sentimento de humildade em relação à grandeza de Deus, está

fortemente estabelecido nessa visão de mundo. Por outro lado, no conceito de revelação de

Kardec, não há mistérios que não possam ser revelados, e sim fatos que ainda não foram

compreendidos, apesar disso, porém há realidades que não podem ser suportadas por limitações

do ser humano, cuja inteligência ainda não pode alcançar. Em nosso ponto de vista, isso se

equivale, de certa forma74, ao mysterium tremendum, a diferença é que entende-se aqui que um

dia, com a evolução do ser humano, esse entendimento será alcançado e não deve ser temido.

Em O Livro dos Espíritos são feitas as seguintes considerações sobre a compreensão dos

74 Aqui dissemos que se equivale de “certa forma” porque para Otto o mysterium tremendum é algo que nunca será

revelado, enquanto para Kardec um dia ele será alcançado através do processo de evolução. Fica dessa forma

enquanto ele é mistério o sentimento relatado por Otto.

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mistérios (das coisas ainda não reveladas) do mundo em que vivemos:

17. É dado ao homem conhecer o princípio das coisas?

“Não, Deus não permite que ao homem tudo seja revelado neste mundo.”

18. Penetrará o homem um dia o mistério das coisas que lhe estão ocultas?

“O véu se levanta a seus olhos, à medida que ele se depura; mas, para compreender

certas coisas, são-lhe precisas faculdades que ainda não possui.”

19. Não pode o homem, pelas investigações científicas, penetrar alguns dos segredos

da Natureza?

“A Ciência lhe foi dada para seu adiantamento em todas as coisas; ele, porém, não

pode ultrapassar os limites que Deus estabeleceu.”

Quanto mais consegue o homem penetrar nesses mistérios, tanto maior

admiração lhe devem causar o poder e a sabedoria do Criador. Entretanto, seja

por orgulho, seja por fraqueza, sua própria inteligência o faz joguete da ilusão.

Ele amontoa sistemas sobre sistemas e cada dia que passa lhe mostra quantos

erros tomou por verdades e quantas verdades rejeitou como erros. São outras

tantas decepções para o seu orgulho. (KARDEC, LE: Questões: 17, 18 e 19, grifos

nossos)

O texto destacado em negrito na citação acima é comentário pessoal de Kardec,

enquanto as perguntas são feitas por ele e as respostas atribuídas aos Espíritos. Observemos que

Kardec admite a existência de mistérios, que para ele são particularidades a respeito do mundo

metafisico, chamado, em geral, de mundo dos espíritos, e que ainda não foram revelados ou

que ainda não nos foram dados a compreender. Nesse comentário, ele admite um sentimento de

impotência em relação à divindade que ele nomeia por Criador, alinhado com a descrição do

sentimento de humildade em relação à divindade que Rudolf Otto destaca no numinoso.

Nessa visão de mundo apresentada por Kardec, encontramos a existência de uma certa

mística, um discurso de fundo, o qual se pode ler claramente como religioso, não no sentido do

relegere mas sim no sentido de religare em que o ser humano não alcança a divindade ainda,

mas é por ela cuidada, pois o sentido de providência, da proteção do Criador está presente, e se

confirma no seguinte comentário:

Nada tem de surpreendente a doutrina dos anjos guardiães, a velarem pelos seus

protegidos, mau grado à distância que medeia entre os mundos. É, ao contrário,

grandiosa e sublime. Não vemos na Terra o pai velar pelo filho, ainda que de muito

longe, e auxiliá-lo com seus conselhos correspondendo-se com ele? Que motivo de

espanto haverá, então, em que os Espíritos possam, de um outro mundo, guiar os que,

habitantes da Terra, eles tomaram sob sua proteção, uma vez que, para eles, a distância

que vai de um mundo a outro é menor do que a que, neste planeta, separa os

continentes? Não dispõem, além disso, do fluido universal, que entrelaça todos os

mundos, tornando-os solidários; veículo imenso da transmissão dos pensamentos,

como o ar é, para nós, o da transmissão do som? (KARDEC, LE: Questão:495)

Essa passagem é um comentário de Kardec sobre a resposta dada pelos espíritos a

respeito das questões dos anjos guardiães, e fica patente o pensamento de que há uma

providência superior que guia os homens no mundo terreno. Há em alguns pontos inclusive que

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Kardec afirma existir sentimentos que corroboram a ideia do numinoso de Rudolf Otto, quando

fala de percepções intuitivas do mundo metafísico ou da divindade: “Se o sentimento da

existência de um ser supremo fosse tão-somente produto de um ensino, não seria universal e

não existiria senão nos que houvessem podido receber esse ensino, conforme se dá com as

noções científicas.” (KARDEC, LE: Questão:6).

Como vimos então até aqui, para Mircea Eliade e Rudolf Otto, o divino se manifesta

para o ser humano através das diversas sacralidades ou hierofanias e despertam nesse o

sentimento numinoso, particularmente no que tange ao mysterium tremendum, e retomando a

afirmação de Kardec:

O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como

qualquer filosofia espiritualista; por isso mesmo, vai ter forçosamente as bases

fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma

religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus

adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.

(KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).

Percebemos que, como já discorremos anteriormente, na visão de mundo baconiana e

secular de Kardec, não haveria hierofanias nem tão pouco o mysterium tremendum (na sua

concepção plena), pois poder-se-ia vir a compreender pela razão cada um dos fenômenos ditos

como sobrenaturais presentes nas religiões. Com a aplicação da ciência na interpretação dos

fenômenos metafísicos, Kardec explica que não há necessidade de cultos ou rituais, porque

estes seriam substituídos por procedimentos positivos ou indutivos que levariam ao alcance dos

fenômenos metafísicos, já que os fenômenos teriam suas causas e fontes reveladas. Os mitos

também não teriam razão de ser, assim como os templos religiosos como uma variedade das

hierofanias, perderiam também o seu sentindo da mesma forma que os símbolos e objetos

sagrados.

Ficaria, então, restando compreender a questão dos sacerdotes ou sumo-sacerdotes que

seriam portadores de uma capacidade especial para o trato com o metafísico como em qualquer

outra religião. Para o Abade François Chesnel, em artigo publicado no jornal L’Univers que

abordaremos com detalhes no capítulo três, Allan Kardec era o sumo sacerdote desta nova

religião e os médiuns seriam os sacerdotes, portadores de um dom especial para lidar com a

divindade ou com os demônios. A prática mediúnica era denominada pela Igreja Católica como

necromancia, colocando o Espiritismo na mesma posição de uma religião. (KARDEC, RE:

Jul/1859, p. 289). A mediunidade seria, segundo Chesnel, um pretenso dom de que alguns

privilegiados teriam de trazer revelações a respeito do mundo sobrenatural ou, como queiram

alguns, do mundo metafísico.

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Por essa razão, precisamos entender porque, para Kardec, no Espiritismo os médiuns

não são tidos por sacerdotes ou pessoas especiais. Começaremos por retomar a questão das

revelações já anteriormente tratadas particularmente com o comportamento daqueles tidos por

Kardec como os reveladores das religiões até aquele momento instituídas:

Todas as religiões tiveram os seus reveladores, e embora todos estivessem longe de

ter conhecido toda a verdade, eles tinham uma razão de ser providencial, pois estavam

apropriados ao tempo e ao meio onde viviam, ao gênio particular dos povos para os

quais falaram e para aos quais seriam relativamente superiores. [...] Infelizmente, as

religiões sempre foram instrumentos de dominação - o papel dos profetas tem

tentado alcançar ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de

pretendentes reveladores ou messias que, graças ao prestígio do nome, a

credulidade explorada em benefício de seu orgulho, sua ganância ou sua ociosidade,

achando mais conveniente viver à custa dos que se deixam enganar. A religião cristã

não foi imune a esses parasitas. (KARDEC, 1868b, p. 4)

Para fugir das ambições secundárias de alguns reveladores, que no entender de Kardec

nada mais eram do que médiuns, ele não diz que suas comunicações eram falsas, mas sim que

esses, por orgulho ou vaidade, arvoram-se de donos da verdade. Por essa razão que Kardec nega

a condição atribuída por Chesnel de sumo-sacerdote e da posição de sacerdotes pelos médiuns.

No decorrer de sua obra, ele trata diversas vezes da questão da impossibilidade de existir aquele

que não cometa equívocos, diz não ser possível depositar em um único homem a reveleção de

uma verdade sem que com isso não se cometam erros.

Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por

penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo,

poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade

absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem,

nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que

dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita,

quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria

sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo. Quis Deus que a nova

revelação chegasse aos homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu,

pois, os Espíritos de levá-la de um pólo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem

conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser

ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de

criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e

para todos. (KARDEC, ESE: Introdução: II).

Primeiramente, cabe destacar aqui que Kardec não se enquadrava na condição de

médium e tudo o que ele redigiu o fez por si próprio. O trabalho dele se deu em parte atráves

da coleta de mensagens que foram trazidas por médiuns de diversas localidades do mundo, e

que foram acrescidas ao seu trabalho. Outra parte das mensagens tiveram sua origem fomentada

por ele quando submetia perguntas e proposições aos espíritos que as respondiam. Ele deixa

claro, porém, que nem todas as respostas e mensagens eram aproveitadas, pois deveriam seguir

uma lógica e os espíritos que as respondiam deveriam demonstrar conhecimento a respeito do

assunto. Ele comparava essas respostas com a de outros espíritos que a respondiam atrávés de

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fontes (médiuns) diferentes que não se conheciam entre si (KARDEC, ESE: Introdução: II).

Kardec faz questão inclusive de dizer, em nota na introdução de O Evangelho Segundo

o Espiritismo, que os médiuns não foram sequer nomeados ao trazer as mensagens e respostas

do espíritos “Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. [...] Ao demais, os nomes dos

médiuns nenhum valor teriam acrescentado à obra dos Espíritos.” (KARDEC, ESE: Introdução:

II).

Na obra kardeciana, de maneira geral, as mensagens não são atribuídas a esse ou àquele

médium, e inclusive, na Revista Espírita, quando o faz, Kardec omite o nome do médium

citando a primeira letra do nome seguido de reticências. Por exemplo, a mensagem sobre os

anjos guardiões citada neste capítulo é comentada na Revista Espírita com o seguinte subtítulo:

“Os anjos-da-guarda. Comunicação espontânea obtida pelo Sr. L..., um dos médiuns da

Sociedade.” (KARDEC, RE: Jan/1859, p. 41). Por fim, Kardec pondera que sua palavra não é

a última e que nínguém pode se arvorar na condição de infalibilidade:

O homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas

ideias são as mais falsas, se apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo

o que lhes parece impossível. Os que outrora repeliram as admiráveis descobertas de

que a Humanidade se honra, todos endereçavam seus apelos a esse juiz, para repeli-

las. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer

que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos, pois, aos

ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro pelo

passado, não creem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a Natureza lhe

tenha facultado ler a última página do seu livro. (KARDEC, LE: Introdução: VII)

Dessa forma, não poderiam haver sacerdotes ou pessoas especiais, portadoras da

revelação e inclusive ele diz que a condição de médium não é privilégio e que toda e qualquer

pessoa é portadora dessa ou daquela mediunidade, e que seriam raros aqueles indivíduos que

não tivessem nenhum traço dessa faculdade. (KARDEC, LM: Cap. XIV: 159).

Com esse raciocínio fica claro, segundo o ponto de vista de Kardec, que o Espiritismo

não possui sacerdotes ou sumo-sacerdotes portadores de uma condição privilegiada para trazer

ao mundo revelações fantásticas e especiais. Para ele qualquer ser humano, seja ele homem ou

mulher, rico ou pobre, ligado ao Espiritismo ou não poderá ser portador das mensagens do

mundo espiritual.

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3. O ESPIRITISMO COMO ALTERNATIVA RELIGIOSA: Entre Espiritualistas,

Ocultistas e Cristãos

Até aqui pudemos identificar a formação de Kardec e como ele pensava em relação à

religião numa visão que é, por assim dizer, de dentro para fora. Entretanto, o fenômeno das

mesas girantes não foi o único e nem tão pouco esteve restrito a Paris. Arthur Conan Doyle, em

sua obra A História do Espiritualismo – De Swedenborg ao início do século XX, afirma que o

Espiritualismo75 é anterior a Kardec e que esteve presente através de outras vertentes e não só

no Espiritismo Francês, e, dessa forma, foi encarado como religião não só pela Igreja Católica,

mas como também por muitos outros livres pensadores do século XIX.

O objetivo deste capítulo é fazer uma abordagem de fora para dentro, demonstrando

como o Espiritismo foi recebido no século XIX pela comunidade religiosa e científica de sua

época, particularmente a Igreja Católica, o Mesmerismo, o Espiritualismo Americano e o

Ocultismo. Neste capítulo não vamos abordar o Mesmerismo, visto que já o fizemos no

primeiro capítulo, apresentando que o magnetismo animal foi relacionado por Kardec como

uma ciência gêmea do Espiritismo (KARDEC, RE: Jan/1869, p. 28). Veremos como o

Espiritismo foi encarado pelos iluministas e notaremos como se tornou uma alternativa religiosa

para muitas correntes de pensamento de sua época e como muitos dos que se relacionavam e

interagiam com Kardec em suas abordagens religiosas. Vamos observar inclusive que as

próprias palavras dele foram tomadas por alguns como religiosas.

3.1. Uma nova religião em Paris

Um dos fatos mais relevantes a respeito da relação entre o Espiritismo e a Igreja Católica

foi a publicação de 13 de abril de 1859 do jornal L’Univers76 intitulada Une religion nouvelle

à Paris – Uma nova religião em Paris, o autor do artigo foi o Abade François de Chesnel77, que

75 Como veremos no decorrer deste capítulo, Espiritualismo era o nome dado ao Espiritismo por outras correntes

de pensamento da época. 76 Originalmente chamado L’Univers Religieux, o jornal foi fundado em novembro de 1834 pelo Abade Jaques-

Paul Migne (1800-1875), editor de Patrologia Latina. A partir de 1838, L’Univers passou por uma crise financeira

e ameaçava declarar falência. O conde Charles de Montalembert (1810-1870), membro da Casa dos Pares, um

dos promotores do catolicismo liberal e ex-editor do jornal L'Avenir de Lamennais, condenado em 1832 pelo

papa Gregório XVI, começou a salvar o jornal. Com a ajuda de seu sogro, Félix de Mérode (1791-1857), ele

pegou empréstimo para cobrir as dívidas do jornal e depois assumiu a redação. Este periódico era de edição

diária, considerado um jornal polêmico e violento. 77 O Abade François Chesnel, nascido em Quimperlé, em 1822, morreu no castelo de Kergree'h em Plougrescant,

no dia 12 de abril de 1877. Ele iniciou seus estudos teológicos em St. Sulpice e os completou em Roma. Ele foi

consultor do Concílio do Vaticano a convite do Papa, foi vigário geral da diocese de Quimper, e escreveu as

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de forma categórica, nesse texto, tratou o Espiritismo como uma religião. Do ponto de vista do

Abade, ele registrava o surgimento de uma seita que tentava elevar o magnetismo à condição

de religião, entendendo que o magnetismo, nessa época, teve certa expressão como já citamos

no capítulo primeiro de nosso trabalho. Para ele, essa seita estava desencaminhando pessoas

respeitáveis do seu caminho católico. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196-208)

Esse artigo e outro que se sucedeu em 28 de maio de 1859 tiveram particular relevância

para o Espiritismo, pois Kardec elaborou cuidadosa resposta publicada no próprio jornal

L’Univers, seguida de tréplica de Chesnel na mesma edição e publicada também na Revista

Espírita de julho de 1859 (KARDEC, RE: Jul/1859, p. 287-290), que se transformou, a

posteriori, em um capítulo do livro O que é o Espiritismo, no qual há um diálogo teórico de

Kardec com um padre (KARDEC, OE: Cap I: Terceiro Diálogo), com diversas refutações

originadas nas discussões do artigo de Chesnel. São principalmente nessas refutações de Kardec

que constam boa parte das argumentações daqueles que afirmam que o Espiritismo não é uma

religião, ou que o seu codificador não tinha a intenção de formular uma religião. Kardec, ao

responder tal artigo, justifica-se afirmando que estava dando particular atenção a Chesnel por

causa da qualidade do trabalho dele, pois, segundo Kardec, ele demonstrava ter estudado com

algum critério as questões do Espiritismo. Para demonstrar isso, registrou: “Nós o teríamos

deixado de lado, como o fazemos a tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância,

se se tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que revelam, da parte de seus autores, a mais

absoluta ignorância daquilo que atacam.” (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196). Esta colocação é

importante porque revela, nas próprias palavras de Kardec, que o Espiritismo sofria diversas

interferências externas, o que inclusive motiva um dos capítulos do livro Obras Póstumas

intitulado “Ligeira resposta aos detratores do Espiritismo” (KARDEC, 2016, p. 229 a 233).

O longo artigo do Abade de François de Chesnel suscitou muitas questões de destaque

por parte de Kardec e, por essa razão, resolvemos transcrever a seguir os trechos deste texto

que julgamos mais importantes, seguidos de alguns comentários:

Todos conhecem o espiritualismo do Sr. Cousin78, essa filosofia destinada a substituir

lentamente a religião. Sob o mesmo título, hoje possuímos um corpo de doutrinas

reveladas, que pouco a pouco se vai completando, e um culto muito simples, é

verdade, mas de eficácia maravilhosa, pois que poria os devotos em comunicação real,

sensível e quase permanente com o mundo sobrenatural. (KARDEC, RE: Mai/1859,

p. 196, grifos nossos)

seguintes obras: Du paganisme, de son principe et de son histoire (in-12, 1853); Petites méditations sur le sacré

coeur de Jésus (in-12, 1857); Méditations à l'usage des communautés religieuses pour tous les jours de l'année

(4 vol. in-12, Lyon, 1860); Les Droits de Dieu et les idées modernes (in-8, 1875). (REVUE, 1876, p. 544). 78 Filósofo, educador e historiador francês Victor Cousin (1792-1867).

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No artigo do Abade, em nenhum momento ele se refere ao Espiritismo como tal e sim

como espiritualismo, isso se dá porque havia outros movimentos espiritualistas além do

Espiritismo de Kardec, os quais, inclusive, abordaremos mais à frente nesse capítulo. O autor,

no artigo, cita personalidades da época que publicamente se dedicavam a divulgar ideias

espiritualistas, como o Sr. Victor Cousin, apontado nesse trecho e em outras partes que não

reproduzimos aqui, e destaca também o socialista romântico o Sr. Jean Reynaud79, mas em

momento algum se dirige a Allan Kardec nem mesmo a seu nome civil.

Esse culto tem reuniões periódicas, iniciadas pela invocação de um santo canonizado.

Depois de constatada, entre os fiéis, a presença de São Luís, rei da França, pedem-lhe

que proíba a entrada dos Espíritos malignos ao templo e lêem a ata da sessão anterior.

Em seguida, a convite do presidente, um médium se aproxima do secretário

encarregado de anotar as perguntas feitas por um dos fiéis e as respostas que serão

ditadas ao médium pelo Espírito invocado. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)

Chesnel deu às reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas uma atenção

pormenorizada, pelo menos aos procedimentos das reuniões lá realizadas, com um nível de

detalhes em seu conteúdo que denota o testemunho de alguém que participou de suas sessões,

com a finalidade de entender os rituais dessa suposta nova religião. A interpretação dos estudos

realizados estabeleceu uma relação entre os procedimentos do Espiritismo com as

características típicas normalmente encontradas em uma religião, como essas eram comumente

entendidas.

A assembléia assiste gravemente, piedosamente, a essa cena de necromancia, por

vezes bastante longa e, quando a ordem do dia se esgota, as pessoas se retiram mais

convencidas do que nunca da veracidade do espiritualismo. [...] Seríamos levados a

crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos fosse muito

hostil à Igreja Católica, que jamais deixou de proibir a prática da necromancia. [...]

Eles fazem justiça ao Evangelho e a seu Autor; confessam que Jesus viveu, agiu, falou

e sofreu como narram os nossos quatro evangelistas. A doutrina evangélica é

verdadeira; mas essa revelação, de que Jesus foi o instrumento, longe de excluir o

progresso, deve ser completada. É o espiritualismo que dará ao Evangelho a sã

interpretação que lhe falta e a complementação que ele espera há dezoito séculos.

(KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196, grifos nossos)

São feitas no artigo diversas referências ao termo necromancia com destaque para:

“Seríamos levados a crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos

fosse muito hostil à Igreja Católica, que jamais deixou de proibir a prática da necromancia”,

79 Ideias a respeito da reencarnação já existiam antes do movimento espírita. Jean Reynaud e Pierre Leroux eram

jovens idealistas chamados de socialistas românticos. Reynaud e Leroux trabalharam juntos para difundir ideias

social-democráticas como um meio de reforma social e política. Com base no pensador católico Pierre-Simon

Ballanche, Reynaud e Leroux argumentaram que a alma evoluiu através de uma série de vidas, seja na Terra ou

em outros planetas. Eles eram membros dos utópicos radicais, os saint-simonians, na década de 1820. Tais ideias

de progresso, preocupações românticas com a morte, novas explorações na literatura "oriental", tudo contribuiu

para as ideias de Reynaud e Leroux.

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relacionando o Espiritismo à passagem bíblica “Não vos voltareis para os necromantes, nem

para os adivinhos; não os procureis para serdes contaminados por eles.” (Lv 19, 31). Esta

referência é feita, inclusive nos dias de hoje, por grupos de católicos e protestantes quando se

contrapõem a essa doutrina80.

Daí a conseqüência de que o espiritualismo é uma religião, porque nos põe

intimamente em relação com o infinito e absorve, alargando-o, o Cristianismo que, de

todas as formas religiosas, presentes ou passadas, é, como facilmente se confessa, a

mais elevada, a mais pura e a mais perfeita. Mas engrandecer o Cristianismo é tarefa

difícil, que não pode ser realizada sem derrubar as barreiras por detrás das quais ele

se mantém entrincheirado. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira; menos

ardentes ou melhor avisados, os espiritualistas só encontram duas, cuja redução parece

indispensável, a saber: a autoridade da Igreja Católica e o dogma das penas eternas.

(KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)

O Abade reconhece a exaltação feita pelo Espiritismo ao Cristianismo, mas procura

diminuir esse relacionamento, por não acreditar que esse tenha a autoridade suficiente para

fazê-lo entendendo que somente a Igreja Católica poderia assumir tal papel.

Não é necessário remontar a Pitágoras e aos sacerdotes egípcios para descobrirmos as

origens do espiritualismo contemporâneo. Encontrá-las-emos ao manusear as atas do

magnetismo animal.

Desde o século XVIII a necromancia já desempenhava um grande papel nas práticas

do magnetismo e, vários anos antes que se manifestassem os Espíritos batedores na

América, dizia-se que certos magnetizadores franceses obtinham, da boca dos mortos

ou dos demônios, a confirmação das doutrinas condenadas pela Igreja, notadamente a

dos erros de Orígenes, relativos à conversão futura dos anjos maus e dos réprobos.

Igualmente é preciso dizer que o médium espiritualista, no exercício de suas funções,

pouco difere do sujeito nas mãos do magnetizador, e que o círculo abraçado pelas

revelações do primeiro também não ultrapassa aquele que é delimitado pela visão do

segundo. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)

Nesse trecho, são feitos íntimos relacionamentos do Espiritismo com o magnetismo,

ponto de vista esse que não é rechaçado por Kardec, aliás, como apresentamos no capítulo

primeiro, ele endossa tal relacionamento dizendo que são ciências gêmeas (KARDEC, RE:

Jan/1869, p. 28). Aqui Chesnel afirma, por sua vez, que o magnetismo também seria um ato de

necromancia, e vai inclusive tratar do Espiritualismo americano, que será objeto de nossa

análise ainda à frente neste capítulo.

Seja como for, no espetáculo que hoje nos oferecem nada mais há que a evolução do

magnetismo, que se esforça por tornar-se uma religião. [...] Na forma mística que hoje

assume em Paris, ela merece ser estudada, pelo menos como sinal dos tempos em que

vivemos. O espiritualismo já recrutou um certo número de homens, entre os quais

diversos são honrosamente conhecidos no mundo. Esse poder de sedução que ele

exerce, o lento, mas ininterrupto progresso, que lhe é atribuído por testemunhas dignas

de fé, as pretensões que apregoa, os problemas que apresenta, o mal que pode fazer às

almas, eis, sem dúvida, motivos por demais reunidos para atrair a atenção dos

80 Não é difícil encontrar, na internet ou em outras mídias, publicações de grupos católicos e protestantes que,

como o Abade Chesnel, argumentam que o Espiritismo é um ato de necromancia.

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católicos. Guardemo-nos de atribuir à nova seita mais importância do que realmente

merece. Mas, para evitar o exagero, que tudo amplia, não caiamos também na mania

de negar ou de amesquinhar todas as coisas. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)

No artigo do Abade, encontramos uma preocupação clara em classificar o Espiritismo

como religião e que esse teria potencial para amealhar adeptos da Igreja Católica, tanto é que,

no final de seu artigo no lugar da palavra religião, usa a palavra seita para tentar diminuí-la e

ainda recomenda que não se deva dar a ela mais importância do que mereça. Além das citações

diretas em que afirma que o Espiritismo é uma religião, as afirmações do Abade tinham a

intenção de trazer um relacionamento com as características definidoras típicas de uma religião,

como tratamos no capítulo anterior, baseado em Benson Saler (2000, p. xiv) que identifica, por

exemplo, a evocação dos espíritos como a evocação de um santo canonizado e entende que a

Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas era um templo religioso em que seus associados

seriam fiéis e que Kardec seria seu sacerdote (KARDEC, RE: Jul/1859, p. 289).

Discordando com veemência de tais pontos de vista, na resposta publicada no Jornal

L’Univers do dia 28 de maio de 1859, Kardec fez questão de esclarecer as atividades e objetivos

das reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas com o fito de refutar as afirmações

de Chesnel. A preocupação de Kardec não se concentrou na questão da necromancia como um

ponto dogmático ou com um eventual desencaminhamento de católicos respeitáveis, mas

procurou, sim, rejeitar a posição do Espiritismo da condição de seita ou religião tentando deixar

clara a sua característica científica, secular e não ritualística:

[...] a denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de

nenhuma seita; tão diferente é o seu caráter que seu estatuto proíbe tratar de questões

religiosas; está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, com

efeito, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos que resultam das

relações entre os mundos visível e invisível; tem seu presidente, seu secretário e seu

tesoureiro, como todas as sociedades; não convida o público às suas sessões; ali não

se faz nenhum discurso, nem coisa alguma que tenha o caráter de um culto qualquer.

Conduz os seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiro porque é uma condição

necessária para as observações e, segundo, porque sabe que devem ser respeitados

aqueles que não vivem mais na Terra. Ela os chama em nome de Deus porque crê em

Deus, em sua Onipotência e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão.

Abre as sessões com um apelo geral aos Espíritos bons, uma vez que, sabendo que os

há bons e maus, cuida para que estes últimos não venham se misturar

fraudulentamente nas comunicações que recebe e induzi-la em erro. O que prova isso?

Que não somos ateus; mas de modo algum implica que sejamos partidários de uma

religião. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206).

Aqui há de se pontuar que ele havia dito que o Espiritismo “não é uma religião

constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos, e que, entre seus adeptos reais,

nenhum tomou o título de sacerdote ou de sumo sacerdote” (KARDEC, OP: Ligeira Resposta

ao Detratores do Espiritismo). Nessas afirmações, Kardec toma como sendo premissa

obrigatória para a definição de um fenômeno social como religião a de apresentar as seguintes

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características já abordadas no capítulo anterior: 01) A presença de um templo religioso; 02) A

liderança de um Sumo-Sacerdote e seus sacerdotes; 03) A existência de cultos; 04) E, por fim,

a presença de ritos81.

3.2. Auto de fé de Barcelona

Um dos fatos tido como um dos mais famosos na história do Espiritismo e que

demonstra claramente a atenção que a Igreja Católica deu a essa nova religião foi o evento

chamado de Auto de fé de Barcelona. Kardec cita que, a pedido do Sr. Lachâtre82, que a essa

época residia em Barcelona, foi solicitado o envio de certa quantidade de O Livro dos Espíritos,

O Livro dos Médiuns, alguns folhetos sobre o Espiritismo, além de outras obras, que perfizeram

um total de 300 volumes. Essa expedição, segundo o relato, foi feita de acordo com a legislação

da época, cumprindo todos os quesitos de legalidade. Ao chegar a Barcelona, as devidas taxas

legais foram pagas, mas como se tratavam de livros, o bispo daquela cidade tinha poder de

polícia para fiscalização e censura de conteúdos literários, por essa razão, ao verificar o

conteúdo, o sacerdote ordenou que os livros fossem apreendidos e queimados em praça pública

com o poder de sentença, marcando para a data de 9 de outubro de 1861. (KARDEC, OP: Auto

de Fé de Barcelona). A seguir, um trecho da ata de execução extraído do livro Obras Póstumas:

Neste dia, nove de outubro de mil oitocentos e sessenta e um, às dez e meia da manhã,

na esplanada da cidade de Barcelona, onde os criminosos são executados e

condenados à última tortura e por ordem do Bispo desta cidade foram queimados

trezentos volumes e folhetos sobre o Espiritismo, a saber: O Livro dos Espíritos, por

Allan Kardec ... etc.83. (KARDEC, 1912, p. 247, tradução nossa)

Segundo a Revista Espírita de novembro de 1861, Kardec solicitou a reexportação das

obras, e a resposta dada pelo bispo foi a seguinte: “A Igreja católica é universal; e sendo estes

81 Quanto ao termo “rito”, cabe observar que a palavra usada no original em francês é “rite” e não “rituel”

(KARDEC,1912, p. 298) e, portanto, foi traduzida para o português corretamente. Entendemos, porém, que esta

palavra carrega o sentido de ritual como Geertz a define, pois, é apresentada juntamente com “culto” que é

aplicada às religiões, embora as atividades da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seguissem um rito no

sentido de “protocolo de procedimentos” para a realização das suas reuniões, como é claramente demonstrado

nas descrições de Chesnel, quando este descreve inclusive a leitura de ata da sessão anterior. A definição de

ritual por Geertz é a seguinte: “[...] comportamento consagrado – que se origina, de alguma forma, essa convicção

de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. É em alguma espécie

de forma cerimonial – ainda que essa forma nada mais seja que a recitação de um mito, a consulta a um oráculo

ou a decoração de um túmulo.” (GEERTZ, 1978, p. 82). 82 Não encontramos evidências que demonstrem que este Sr. Lachâtre seria o mesmo Maurice Lachâtre que

Biografou Kardec no Nouveau Dicitionnaire Universel, mas há grande probabilidade que seja o mesmo. 83 “ Ce jour, nouf octobre, mil huit cent-soixante-et-un, à dix heures et demie du matin, sur l'esplanade de la ville

de Barcelone, au lieu où sont exécutés les criminels condamnés au dernier supplice, et par ordre de l'Évoque de

cette ville, ont été brûlés trois cents volumes et brochures sur le Spiritisme, savoir : Le Livre des Esprits, par

Allan Kardec... etc ”

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livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir que venham perverter a moral e a

religião de outros países.” (KARDEC, RE: Nov/1861, p. 466). A repercussão de tal evento foi

marcante para o Espiritismo na Espanha, pois promoveu fortes reações na imprensa espanhola

tanto a favor como contra tal atividade. Esses fatos provocaram uma grande divulgação do

Espiritismo em território espanhol, já que muitos ficaram extremamente curiosos em conhecer

as obras condenadas pelo bispo. No que concerne à nossa pesquisa, as notícias proferidas nos

jornais Las Novedades, um dos maiores de Madrid, Diário de Barcelona, La Coruña, El Diário,

falavam sobre liberdade de culto e/ou liberdade religiosa, marcando claramente o entendimento

de que o Espiritismo foi tratado também na Espanha como uma religião. O jornal Francês El

Ciècle, emitiu nota em 14 de outubro de 1861 a respeito do evento em Barcelona e fez

comentários jocosos a respeito do fato, “Em todo o caso, não seríamos nós que nos

divertiríamos neste momento em fazer girar as mesas na Espanha.” (KARDEC, RE: Dez/1861,

p. 550-554).

3.3. Outros eventos com a Igreja Católica

As questões de Kardec com a Igreja Católica não se restringiram aos artigos do Abade

de Chesnel ou ao Auto de fé de Barcelona, outros eventos foram registrados84 de duas formas,

às vezes diretamente, quando Kardec cita o autor desta ou daquela publicação ou discurso

contra o Espiritismo e a comenta, outras vezes aborda de forma indireta, quando comenta a

presença dessa ou daquela comunicação sem citar o seu conteúdo por julgá-las de pouca

qualidade. Esse tipo de citação indireta aconteceu, por exemplo, na resposta que foi feita ao

Abade de Poussin, que publicou um livro intitulado O Espiritismo Diante da História e da

Igreja - sua origem, sua natureza, sua certeza, seus perigos. Na introdução aos comentários

sobre esta obra, Kardec elogia a qualidade do trabalho de Poussin e diz que seu conteúdo deve

ser comentado em detrimento de outras publicações de baixa qualidade que ele tem observado.

Abade de Poussin procura fazer em seu livro uma refutação do Espiritismo que, segundo Kardec

é, sem contradita, uma das mais completas e mais bem-feitas, e que, de seu ponto de vista, ao

84 Segue uma amostra das respostas dadas por Kardec na Revista Espírita: “Resposta do Sr. Allan Kardec à Gazette

de Lyon” (KARDEC, RE: Out/1860, p. 427); “A Bibliografia Católica contra o Espiritismo” (KARDEC, RE:

Jan/1861, p. 24); “Resposta de uma senhora a um eclesiástico sobre o Espiritismo” (KARDEC, RE: Mai/1862,

p. 209); “Suicídio falsamente atribuído ao Espiritismo” (KARDEC, RE: Abr/1863, p. 172); “Primeira carta ao

padre Marouzeau” (KARDEC, RE: Jul/1863, p. 297); “Pastoral do bispo de Argel contra o Espiritismo”

(KARDEC, RE: Nov/1863, p. 453); “Reclamação do abade Barricand” (KARDEC, RE: Nov/1864, p. 263);

“Nova tática dos adversários do Espiritismo” (KARDEC, RE: Jun/1865, p. 254); “O Espiritismo só pede para

ser conhecido” (KARDEC, RE: Set/1866, p. 358).

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tentar combater as premissas espíritas, confirmou, a partir de suas observações, a existência dos

seus fenômenos, cometendo equívocos somente em suas conclusões. (KARDEC, RE: Jan/1868,

p. 21).

Outro registro que demonstra o interesse da Igreja Católica pela compreensão do que

era o Espiritismo é citado no livro Obras Póstumas, no qual há uma pergunta feita por Kardec

aos espíritos em 10 de junho de 1860 sobre uma carta que ele mesmo havia recebido de

Marselha. Nessa carta haveriam informações acerca de que, em um seminário desta cidade, o

Clero estava estudando com seriedade O Livro dos Espíritos. O objetivo da pergunta era tentar

entender o porquê destes estudos (KARDEC, OP: Minha Volta). Independente da resposta85

dada pelos espíritos, este registro demonstra mais uma evidência do interesse que essa doutrina

despertou na Igreja.

3.4. A ideia de uma reforma religiosa

Outra questão que julgamos importante acerca do posicionamento de Kardec em relação

às religiões é que ele já havia demonstrado no passado a sua intenção de trazer esclarecimentos

que pudessem acabar com as disputas religiosas e suas dissenções. Como demonstra a citação

de um de seus biógrafos:

Nascido na religião católica, mas estudando em um país protestante, os atos de

intolerância a que foi submetido por este motivo lhe fizeram conceber desde a idade

de 15 anos, a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante

longos anos, com a intenção de chegar à unificação das crenças. Contudo, faltava-lhe

o elemento indispensável para a solução deste grande problema. O espiritismo, mais

tarde, veio fornecer-lhe e imprimir uma direção especial a seus trabalhos.

(LACHÂTRE, 1867, p.199).

Entendemos que os atos de intolerância a que Lachâtre se refere são particularmente os

que Kardec presenciou no instituto de Pestalozzi, em Yverdon, durante sua formação

acadêmica, como citamos no primeiro capítulo. Acreditamos que a relativa importância dada à

religião por Pestalozzi fez com que ele próprio entendesse que os aspectos morais da religião

fossem mais importantes do que a própria religião em si. É válido relembrar que, no instituto

85 A resposta dada pelos Espíritos é a que citaremos em seguida, mas não é objetivo deste trabalho dar crédito ou

não às mensagens dos espíritos. Trazemos a pergunta e a resposta tão somente para que não fique incompleta a

informação: Pergunta (à Verdade) — “Acabo de receber de Marselha uma carta em que se me diz que, no

seminário dessa cidade, estão estudando seriamente o Espiritismo e O Livro dos Espíritos. Que se deve augurar

desse fato? Será que o clero toma a coisa a peito? Resposta — Não podes duvidar disso. Ele a toma muito a

peito, porque lhe prevê as conseqüências e grandes são as suas apreensões. Principalmente a parte esclarecida

do clero estuda o Espiritismo mais do que o supões; não creias, porém, que seja por simpatia; ao contrário, é à

procura de meios para combatê-lo e eu te asseguro que rude será a guerra que lhe fará.” (KARDEC, OP: Minha

Volta).

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de Pestalozzi, apesar da presença de professores católicos, luteranos e calvinistas, o seu

fundador procurava manter-se distante das querelas e paixões religiosas. Dava à Bíblia valor

relativo e não demonstrava fervor às lições de catecismo (WANTUIL, 1984, p. 69). Aliás como

dissemos no primeiro capítulo, enquanto discípulo de Jean Jacques Rousseau, acreditava em,

[...] uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios

universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da

alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome,

individual, e muito mais orientada para a ética do que para o culto. (INCONTRI, 2001,

p. 71).

O desejo de promover uma reforma religiosa que promovesse a unificação das crenças,

também foi registrada em sua biografia feita por Anna Blackwell na introdução da versão

traduzida para o inglês de O Livro dos Espíritos com o nome The Spirits’ Book nos seguintes

termos:

Nascido em um país Católico, mas educado em um pais Protestante, ele começou,

enquanto ainda era apenas um menino, a meditar sobre os meios de produzir uma

unidade de crença entre as várias seitas Cristãs - um projeto de reforma religiosa em

que trabalhou em silêncio por muitos anos, mas necessariamente sem sucesso, já que

os elementos da solução desejada não estavam naquele momento em sua posse.

(KARDEC, 1996, p. 9, tradução nossa86).

O relato de Anna Blackwell a esse respeito é particularmente relevante porque confirma

a afirmação de Lachâtre, já que ela mesma teve a oportunidade de conviver com Kardec em sua

intimidade familiar, bem como participou de reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos

Espíritas e foi a primeira a traduzir O Livro dos Espíritos para o inglês (FERNANDES, 2008,

p. 25). Mas seus relatos quanto à intolerância não se restringem a esse, pois informa que, quando

Kardec terminou seus estudos em Yverdon, tinha a intenção de ir para Lyon para se dedicar ao

Direito, mas que desistiu por causa do que ela descreveu por “vários atos de intolerância

religiosa” (KARDEC, 1996, p. 10), embora não os tenha explicado de forma pormenorizada.

Como já introduzido no capítulo dois deste trabalho, Kardec tinha um conceito próprio

de revelação. Havia para ele, uma certa rejeição da ideia de religião como um princípio

revelador que fosse arrastar multidões como uma revelação espetacular, sem o auxílio da razão.

Ele entendia o conceito de revelação como algo que não estava reservado somente às religiões,

para ele “de certo ponto de vista, que nos deram a conhecer os mistérios da natureza são

revelações, e pode-se dizer que existe para nós uma revelação incessante; a astronomia nos

revela o mundo astral, que não conhecíamos, a geologia, a formação da terra” (KARDEC,

86 Born in a Catholic country, but educated in a Protestant one, he began, while yet a mere boy, to meditate on the

means of bringing about a unity of belief among the various Christian sects-a project of religious reform at which

lie laboured in silence for many years, but necessarily without success, the elements of the desired solution not

being at that time in his possession.

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1868b, p. 1, tradução nossa87). Para Kardec, Nicolau Copérnico, Isaac Newton, Laplace,

Lavoisier foram pessoas que trouxeram revelações para a humanindade. Para ele, o Espiritsmo

também seria a revelação de fatos reais que estavam incobertos enquanto ciência e não como

religião. As religiões, de seu ponto de vista, foram reveladas, mas de forma parcial, e foi a sanha

de alguns homens que as fizeram objeto de dominação, estando aí talvez a sua ideia de não

tornar o Espiritismo uma religião, para que isso não viesse a acontecer:

Todas as religiões tiveram os seus reveladores, e embora todos estivessem longe de

ter conhecido toda a verdade, eles tinham uma razão de ser providencial, pois estavam

apropriados ao tempo e ao meio onde viviam, ao gênio particular dos povos para os

quais falaram e para aos quais seriam relativamente superiores. Apesar das

interpretações de suas doutrinas, eles não incitaram menos os espíritos e, ao mesmo

tempo, lançaram sementes de progresso que, mais tarde, floresceriam ou floresceriam

um dia ao sol do cristianismo. É, portanto, errado que eles sejam anatematizados em

nome da ortodoxia, pois um dia virá em que todas essas crenças, tão diversas na forma,

mas que de fato assentam no mesmo princípio fundamental: Deus e a imortalidade da

alma, essas fundir-se-ão numa grande e vasta unidade, quando a razão triunfar sobre

os preconceitos. Infelizmente, as religiões sempre foram instrumentos de dominação

- o papel dos profetas tem tentado alcançar ambições secundárias, e tem-se visto surgir

uma multidão de pretendentes reveladores ou messias que, graças ao prestígio do

nome, a credulidade explorada em benefício de seu orgulho, sua ganância ou sua

ociosidade, achando mais conveniente viver à custa dos que se deixam enganar. A

religião cristã não foi imune a esses parasitas. (KARDEC, 1868b, p. 4, tradução

nossa88)

Em toda a sua obra, Kardec se preocupa com a questão das descobertas de novos

conceitos e novas ideias, ele acredita que a verdade não pode ser revelada por um único

indivíduo, pois entende que não se pode garantir que um único homem possa ser portador de

todo o conhecimento. Ele estabeleceu um conceito que chamou de Controle universal do ensino

dos Espíritos, no qual ele afirma que uma revelação não poderá sê-la se não se manifestar por

diversos meios e em diversas partes e que a religião pode ser um desses meios, mas que podem

e devem existir outros meios, inclusive os científicos (KARDEC, ESE: Introdução: II).

Portanto, ele não se arvora em ser o detentor da verdade e demonstra que o que foi trazido pelo

87 A ce point do vue, tout eles sciences qui nous font connaître les mystères de la nature sont des révélations, et

l'on peut dire qu'il y a pour nous une révélation incessante; l'astronomie nous révélé le monde astral, que nous

ne connaissions pas 88 Toutes les religions ont eu leurs révélateurs, et quoique tous soient loin d'avoir connu toute la vérite, ils avaient

leur raison d'étre providentielle, car ils étaient appropriés au temps et au milieu où ils vivaient, au génie

particulier des peuples auxquels ils parlaient, et auxquels ils étaient relativement supérieurs. Malgré les lereurs

de leurs doctrines, ils n'en ont pas moins remué les esprits, et par pela méme semé des germes de Progrès qui,

plus tard, devaient s'épanouir, ou s'épanouiront', un jour au soleil du Christianisme. C'est donc à tort qu’on leur

jette l'anathème au nom de l'orthodoxie, car un jour viendra où toutes ces croyances , si diverses pour la forme,

mais qui reposent en réalité sur un mème principe fondamental : Dieu et l'immortalité de l'âme, se fondront dans

une grande et vaste unité, lorsque la raison aura triomphé des préjugés.Malheureusement, les religions ont de

tous temps éte des instruments de domination - le rôle de prophète a tenté les ambitions secondaires' et l'on a vu

surgit une multitude de prétendus révélateurs ou messies qui, à la faveur du prestige de ce nom, ont exploité la

crédulité au profit de leur orgueil , de leur cupidité ou de leur paresse , trouvant plus commode de vivre aux

dépens de leurs dupes. La religion chrétienne n'a pas été à l'abri de ces parasites.

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Espiritismo pode ser derrogado pela ciência.

A sua preocupação com a questão de personalidades que se digam portadoras de

revelações maravilhosas, inclusive, refletem no que ele apontou como sendo a melhor forma de

sucedê-lo na condução do Espiritismo, para que esse não fosse refém de nenhuma autoridade.

Para tanto, ele prevê a criação de um Comissão Central que garantiria o desenvolvimento do

Espiritismo, composta por uma comissão permanente que tomaria as decisões de forma

democrática, não admitindo portanto a presença de um líder que fosse tido na condição de

sacerdote infalível (KARDEC, OP: Projeto 1868 – Comissão Central). Esse pensamento,

inclusive, está muito bem alinhado com o pensamento iluminista.

Havia, portanto, em Kardec, o anseio de encontrar um modo ou um modelo que pudesse

harmonizar todas as religiões ao redor de um princípio único e universal, o que nos permite

reconher a sua motivação de não criar mais uma religião e, sim, identificar um meio de trazê-

las para um único lugar, para que se pudesse convergir o entendimento de todos para um único

ponto.

Vamos identificar também, nas correntes de Ocultismo do final do século XIX, o desejo

de encontrar uma forma de unificação das crenças em torno de um princípio único e universal,

e Lynn Sharp sugere que esse movimento nasceu no Espiritsmo: “A Revista Espírita nos anos

de 1880 a 1890 ampliou a ideia de Espiritismo de Kardec, unificando todas as religiões para

incluir um interesse mais oculto, menos cristão, nos planos astrais e no misticismo oriental.89”

(SHARP, 2006, p. 175, tradução nossa). A essa época, a Revista Espírita já não era mais dirigida

por Kardec e sim por Pierre-Gaëtan Leymarie, que se posicionou de forma a estabelecer um

contato do Espiritismo com o Ocultismo, particularmente através de sua amizade com Madame

Blavatsky, e viria, em 1879, a fundar a Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses.

3.5. Outras correntes de Pensamento Espiritualistas

O fenômeno das mesas girantes não foi o único na ordem dos fenômenos metafísicos,

além dos franceses, os americanos, ingleses, alemães e italianos também registraram o desejo

dos espíritos de se manifestar ao mundo dos vivos. Convencionou-se o dia 31 de março de 1848,

em Hydesville, nos Estados Unidos, como sendo o marco do processo de comunicação dos

espíritos com os homens através de um processo inteligente (DOYLE, 2013, p. 15). Nesse

episódio, a menina Kate Fox de 11 anos desafiou um espírito em sua casa que reproduzia batidas

89 The Revue Spirite in the 1880s and 1890s broadened Kardec's idea of spiritism unifying all religions to include

a more occult, less Christian interest in astral planes and Eastern mysticism.

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e diversos ruídos nas paredes90 a fazê-los de acordo com o estalar de seus dedos. O espírito

seguiu a menina nesse processo e assim estabeleceu-se entre eles um código de comunicação

(DOYLE, 2013, p. 57). Os ruídos insólitos como os que aconteceram naquele lar, de acordo

Arthur Conan Doyle em sua obra A História do Espiritualismo – De Swedenborg ao início do

século XX, não eram novidade. Embora, segundo Conan Doyle, aquela família simples nunca

tivesse tido acesso a essas notícias, batidas desse gênero já haviam sido registradas em

Oppenheim na Alemanha em 1520, relatadas por Melanchthon; na Inglaterra em 1661, na

residência do Sr. Mompesson, em Tedworth; e também em 1716 no vicariato de Epworth. A

diferença no caso das Irmãs Fox é que as manifestações obedeciam a um estímulo inteligente,

criando um processo de comunicação (DOYLE, 2013, p. 56). Isso mais tarde foi definido por

Kardec como um efeito inteligente respondendo a uma causa inteligente. (KARDEC, LE:

Conclusão: IX).

Esse relato completo é tratado por Conan Doyle em sua obra que é considerada a mais

completa resenha de fatos psíquicos da literatura mundial91 em se considerando o período por

ela tratada, que vai de abril de 1744 com os fenômenos de Swedenborg92 a 1926, quando é

editada a sua primeira edição na língua inglesa (DOYLE, 2013, p. 9 e 19). Nessa obra, além de

Swedenborg, são tratados diversos fenômenos espiritualistas, entre eles: 1) Edward Irving; os

shakers; 2) As irmãs Fox de Hydesville; 3) outros fenômenos que vieram depois das irmãs Fox

na América; 4) Daniel Dunglas Home; 5) Os irmãos Davenport; 6) As pesquisas de Sir Willian

Crookes; 7) Os irmãos Eddy e o casal Homes; 8) Henry Slade e o Dr. Monck; 8) Eusápia

Palladino; 9) O Espiritualismo, francês, alemão e o italiano.

Quando Doyle aborda em seu livro o Espiritualismo francês, ele se refere ao trabalho de

pesquisa do Espiritismo de Allan Kardec. Nessa obra ficam claros os diversos fenômenos que

foram classificados como espíritas por Kardec e que como já dissemos, estiveram longe de ser

exclusivos da França e, na verdade, explicam inclusive de onde surgem os diversos

correspondentes que Kardec teve em diversos lugares do mundo. (KARDEC, RE: Jun/1862, p.

232). O livro de Conan Doyle tem por título, como dissemos, A História do Espiritualismo e

não a história do Espiritismo e seu autor fala do espiritualismo francês e não de Espiritismo.

90 Essas batidas no Espiritualismo Americano foram chamadas de rapping sounds. Kardec chamou esse fenômeno

de tiptologia. 91 Essa afirmação que posiciona a obra de Conan Doyle como sendo a mais completa da literatura mundial é feita

na apresentação da obra feita pelo tradutor o Sr. José Carlos da Silva Silveira. 92 Emanuel Swedenborg nasceu em Estocolmo, em 29 de janeiro de 1688 e morreu em Londres 2 de março de

1772, era médium clarividente, um grande engenheiro de minas; autoridade em metalurgia; engenheiro militar;

autoridade em astronomia e física; autor de eruditos trabalhos sobre as marés e a determinação das latitudes;

zoologista e anatomista; financista economista político, que antecipou as conclusões de Adam Smith. (DOYLE,

2013, p. 16)

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Isso é relevante, porque na Revista Espírita, por sua vez, quando Kardec aborda o

Espiritualismo Americano, ele fala de Espiritismo americano (KARDEC, RE: Abr/1869, p.

152), o que revela diferenças no modo de pensar entre Kardec e os espiritualistas. Dessa forma,

vamos ver que existiram no século XIX duas vertentes de espíritas (ou espiritualistas) uma

centrada no Espiritismo Francês e outra no Espiritualismo Americano. Apesar do pensamento

das duas correntes de maneira geral se alinharem em muitos dos seus conceitos, nem todos

adotaram os pensamentos de Kardec, apesar dos diversos fenômenos similares.

No artigo do Abade François Chesnel, abordado no início desse capítulo, ele fala do

espiritualismo do Sr. Cousin e cita o Sr. Jean Reynaud, socialista romântico que defendia outras

correntes do espiritualismo ligadas a movimentos sociais, anteriores a Kardec, mas existia

também uma forte corrente espiritualista, essa inclusive bem organizada nos Estados Unidos.

Havia uma divergência de pensamentos entre o Espiritismo francês e o Espiritualismo

americano e Kardec a reconhecia, pois, na Revista Espírita de abril de 186993 Kardec fala sobre

o Espiritismo Europeu e o Espiritismo Americano:

Em que, então, o Espiritismo americano difere do Espiritismo europeu? Seria porque

um se chama Espiritualismo e o outro Espiritismo? Questão pueril de palavras, sobre

a qual seria supérfluo insistir. Dos dois lados a coisa é vista de um ponto de vista

muito elevado para se prender a semelhante futilidade. Talvez ainda difiram em alguns

pontos de forma e de detalhes, muito insignificantes, e que se devem mais aos meios

e aos costumes de cada país, do que ao fundo da Doutrina. O essencial é que haja

concordância sobre os pontos fundamentais. (KARDEC, RE: Abr/1869, p. 152)

Este comentário retirado da Revista Espírita vem na sequência da transcrição da

declaração de princípios feita pela Quinta Convenção Nacional dos Espiritualistas Americanos,

assembleia na qual compareceram os delegados das diversas partes do país (KARDEC, RE:

Abr/1869, p. 143). Kardec fez essa transcrição com a finalidade de efetuar uma comparação

entre os princípios do que ele chamava de escola espírita europeia e a americana. Uma das

primeiras comparações que podemos identificar é que a escola americana não adotava o nome

Espiritismo e sim Espiritualismo, sendo que Kardec, logo no primeiro parágrafo de O Livro dos

Espíritos, registra essa diferença:

Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza

da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas

palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem

definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos, fora multiplicar as

causas já numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritismo é o oposto do

materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria,

é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em

93 Allan Kardec morreu em 31 de março de 1869, além dos fascículos publicados, referentes aos meses de janeiro

a março, já estava no prelo o número de abril do mesmo ano, ao qual ele mesmo redigiu integralmente, passando

os demais, a partir de maio, à responsabilidade direta de seus continuadores, tendo à frente, pelo Comitê de

Redação, o Sr. Armand Théodore Desliens, na qualidade de Secretário-gerente da Revista Espírita.

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suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritual,

espiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os

termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que,

por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando

ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina

espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os

Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas,

ou, se quiserem, os espiritistas. (KARDEC, LE: Introdução: I)

Um dos principais pontos de divergência entre essas doutrinas era a questão da

reencarnação ou a pluralidade das existências, que, segundo Kardec, teve dificuldades de ser

abraçada pelo Espiritualismo Americano, pois o pensamento deles estava fundado na cultura

escravagista norte-americana, que não aceitaria a possibilidade da reencarnação na forma que

era apresentada no Espiritismo francês. Kardec afirma que a “idéia (sic) de que um negro

pudesse tornar-se um branco; de que um branco poderia ter sido um negro; de que um senhor

tivesse sido um escravo poderia parecer de tal forma monstruosa que seria suficiente para que

o resto fosse rejeitado.” (KARDEC, RE: Abr/1862, p. 152). Há, por outro lado, também, a

concordância com alguns pontos importantes no que tange ao nosso trabalho, que é a

concordância com a existência do divino, com a importância da transformação moral do homem

e de que os milagres e curas são atribuídos a divindades por falta de entendimento da ciência

(KARDEC, RE: Abr/1869, p. 145 a 146).

No final do século XIX, a partir de 1880, surgem também além dos já existentes espíritas

e espiritualistas um movimento que se autodenominava de Ocultismo, cujos seguidores

alegavam ser “os novos árbitros do invisível”, como trataremos à frente (SHARP, 2006, p. 164).

O Ocultismo foi o mais importante entre muitos movimentos espiritualistas que seguiram

depois do que foi chamado de espiritismo clássico. Ele se baseava nas tradições da alquimia e

do hermetismo renascentista, adaptados e desenvolvidos por grupos de pensadores da França

dos séculos XVIII e XIX. Os ocultistas fundaram várias organizações, escreveram

prolificamente e se promoviam à condição de magos. A filosofia desse movimento por ironia

foi consequência do prestígio intelectual da psicologia científica que parecia dever mais ao alto

escolasticismo que ao pensamento moderno. Muitos pensadores do século XIX se afastaram do

estudo da metafísica, mas as pessoas comuns continuavam atentas aos eventuais mistérios da

providência e do futuro, o que fomentava a manutenção de livros e periódicos com conteúdos

“longos, obscuros e confusos, cheios de personificações e metáforas.” (MONROE, 2008, p.

233).

Na obra de John Warne Monroe Laboratories of Faith - Mesmerism, Spiritism, and

Occultism in Modern France, ele descreve e reforça a existência de uma série de movimentos

espiritualistas, inclusive o Mesmerismo que surgiu antes mesmo do fenômeno das mesas

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girantes, e cita mais alguns importantes movimentos, que são conhecidos até os dias de hoje e

que se relacionam com a manifestações metafísicas no século XIX:

O engajamento entusiasmado com as preocupações intelectuais do momento, de fato,

contribuiu fortemente para o apelo do Ocultismo durante o fim do século. A partir de

meados de 1880, obras de escritores como Joséphin Péladan transformaram a magia

e o esoterismo em elementos-chave [...]e, em 1892, o ocultismo havia se tornado uma

presença notável na cena cultural francesa. Naquele ano, Encausse94 editou uma

edição especial de uma importante revista literária simbolista, La Plume, enquanto

Péladan - que diferia em pontos-chave de doutrina, mas compartilhava uma atitude

semelhante - organizou o primeiro Salon de la Rose-Croix, apresentando obras de

artistas que usaram imagens tiradas de tradições esotéricas “para arruinar o realismo,

reformar o gosto latino e criar uma escola de arte idealista”. Essa crescente marca

cultural levou à expansão constante das várias organizações que Encausse e seus

colegas ocultistas coordenaram, que incluíam três grandes as sociedades, a Ordre

Martiniste, a Ordre Kabbalistique de la Rose-Croix, e o Groupe indépendant d’études

ésotériques. Os adeptos desses grupos e outros como eles receberam uma atenção

desproporcional de jornalistas em busca de temas fascinantes e novos. (MONROE,

2008, p. 234, tradução nossa95)

3.6. Espíritas, Espiritualistas e Ocultistas e a questão das religiões

Na introdução de nosso trabalho, fizemos referência às dificuldades que o movimento

espírita brasileiro enfrentava no plano ideológico com a tendência de cisão entre os chamados

laicos ou científicos, liderados pelo professor Afonso Angeli Torteroli de um lado e os

religiosos ou místicos, liderados pelo Dr. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti do outro.

(QUINTELA, 1973). Essa tendência de cisão não se deu por acaso, pois as mesmas discussões

estavam acontecendo no Espiritismo Europeu96. Nessa época também crescia o movimento

liderado pelos ocultistas que, “[...] como a ciência, ofereciam explicações alternativas para os

fenômenos espíritas. Os ocultistas, como os psicólogos, afirmavam ser os novos árbitros do

invisível, que eles insistiam não ser necessariamente tão sobrenatural quanto os espíritos

alegavam.” (SHARP, 2006, p. 164, tradução nossa)97. Esse movimento acabou por colocar lado

94 Gérard Encausse proeminente líder ocultista que adotava o pseudônimo “Papus”. 95 Enthusiastic engagement with the intellectual concerns of the moment, in fact, contributed strongly to

Occultism’s appeal during the fin de siècle. Beginning in the mid-1880s, works by writers such as Joséphin

Péladan transformed magic and esotericism into key elements […], and by 1892, Occultism had become a

notable presence on the French cultural scene. That year, Encausse edited a special issue of a leading Symbolist

literary magazine, La Plume, while Péladan—who differed on key points of doctrine but shared a similar

attitude—organized the first Salon de la Rose-Croix, featuring works by artists who used images drawn from

esoteric traditions “to ruin realism, reform Latin taste, and create a school of idealist art.”80 This ever-increasing

cultural cachet led to the steady expansion of the various organizations Encausse and his fellow Occultists

coordinated, which included three major societies, the Ordre Martiniste, the Ordre Kabbalistique de la Rose-

Croix, and the Groupe indépendant d’études ésotériques. Adherents of these groups and others like them

received a disproportionate amount of attention from journalists in search of glamorous and novel subject matter. 96 Nesse ponto falamos Europeu e não francófono, pois nos referimos também ao Espiritualismo. 97 […] like science, offered alternative explanations for spiritist phenomena. Occultists, like psychologists, claimed

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a lado os espíritas e os espiritualistas apesar de suas divergências, pois chegou a ameaçar a

continuidade do Espiritismo/Espiritualismo. No Congres de Psychologie no ano de 1900,

Gabriel Delanne e León Denis ambos defensores do Espiritismo e, de certa forma, herdeiros da

liderança de Kardec98, se pronunciaram na condição de principais líderes do Espiritismo

Francês (apesar de suas divergências com relação ao aspecto religioso do Espiritismo), contra

as colocações depreciativas que vinham sendo feitas a respeito da intervenção dos espíritos no

mundo corporal. Mais à frente, nesse mesmo ano, no Congres spirite et spiritualiste

international, o ocultista Gérard Encausse Papus proferiu discurso, elogiando a defesa notável

que foi feita por Delanne e Léon Denis a respeito do Espiritualismo. No livro Secular

Spirituality. Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-Century France, Lynn L. Sharp

descreve tais eventos da seguinte forma:

Em 1900, a comunidade científica em geral havia rejeitado as explicações dos

espíritas sobre os fenômenos mediúnicos. No quarto Congres de Psychologie, em

Paris, em 1900, espíritas e ocultistas tiveram sua última chance de participar do

diálogo público com os cientistas que começaram a estudar os mesmos fenômenos.

Em uma seção intitulada "Psicologia e Hipnotismo", os espíritas foram "autorizados"

a apresentar sua opinião. Os líderes das ciências heterodoxas se apresentaram em peso.

Gabriel Delanne falou sobre a clarividência e a telepatia; e seu colega e líder espírita

Léon Denis falou da captura por foto ou outros aparelhos de "radiações" humanas.

Isso provou a manifestação dos espíritos. Uma figura ocultista líder, Dr. Encausse

(Papus), apresentou medições elétricas de médiuns para provar que eles adquiriram

mais energia (implícita ser extra-humana) quando funcionavam como médiuns. M.

Dariex, editor do Annales des sciences psychiques, apresentou evidências sobre

telecinese e Paul Gibier sobre as materializações dos fantasmas. O Dr. Grasset, ao

descrever a conferência, gabou-se do caráter de mente aberta dos cientistas, mesmo

diante de evidências tão pouco convincentes. (SHARP, 2006, p. 135, tradução nossa)99

Havia nessa época uma tentativa de desmerecer os fenômenos espíritas, tentando

atribuí-los à histeria e ao transe hipnótico com mensagens que eram trazidas do subconsciente

dos médiuns. (SHARP, 2006, p. 136).

A tentativa de desacreditar os eventos metafísicos produzidos nos fenômenos espíritas

to be the new arbiters of the invisible, which they insisted was not necessarily as supernatural as the spirits had

claimed. 98 Dizemos aqui de certa forma porque não era desejo de Kardec deixar uma liderança individual e sim uma

comissão central como foi tratado no item 3.4. (KARDEC, OP: Projeto 1868 – Comissão Central). 99 By 1900, the scientific conununity in general had rejected spiritists' explanations of mediumistic phenomena.

At the fourth Congres de Psychologie in Paris in 1900, spiritists and occultists had their last chance to participate

in public dialogue with the scientists who had begun to study the same phenomena. In a section titled

"Psychology and Hypnotism," the spiritists were "allowed" to present their view. The leaders of the heterodox

sciences turned out in force. Gabriel Delanne spoke on clairvoyance and telepathy; fellow spiritist leader Leon

Denis on the capture by photo or other apparatus of human "radiations" that proved the workings of the spirits.

A leading occult figure, Dr. Encausse (Papus), presented electric measurements of mediums to prove that they

acquired more energy (implied to be extra-human) when they functioned as mediums. M. Dariex, editor of the

Annales des sciences psychiques, presented evidence on telekinesis, and Paul Gibier on the materializations of

phantoms. Dr. Grasset, in describing the conference, boasted of the open-minded character of the scientists, even

in the face of such unconvincing evidence.

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não era novidade, pois desde a época das mesas girantes e de sons de pancadas nas paredes

(rappings sounds) atribuídas aos espíritos, tais fenômenos eram, para alguns cientistas, nada

mais que fraudes, atitudes de autoilusão. Eles defendiam que os movimentos das mesas girantes

se tratavam de movimentos involuntários causados pelos participantes de forma inconsciente.

Em 1853 William Faraday publicou o relato de uma sessão na qual ele observou que os

participantes moviam a mesa com as mãos, embora não tivessem consciência disso. Em 1853,

o Journal des debats republicou um artigo de 1834 da Revue des deux mondes detalhando

estudos de Leon Chevreul, o qual provou que indivíduos poderiam causar os movimentos

apenas com seu pensamento sem, contudo, terem intenção ou consciência de fazê-lo. Em 1854,

o respeitado cientista Jacques Babinet também argumentou, na Revue des deux mondes, que o

movimento involuntário era a causa do fenômeno das mesas girantes. Mesmo com a alegação

dos espíritas de que as mesas se moviam sem serem tocadas, os cientistas argumentaram que

isso era simplesmente autoilusão por parte de praticantes ávidos. A comunidade científica

estava de acordo e o assunto parecia fechado. (SHARP, 2006, p. 131).

No período compreendido entre 1860 a 1870, o interesse pelos fatos espíritas por parte

da comunidade científica foi muito pequeno, mas os fenômenos mediúnicos cresceram e não

mais se limitavam a mesas ou objetos que se movimentavam. Começaram a surgir fenômenos

muito mais complexos, como a materialização de flores, doces e até espíritos inteiros com a

manipulação de ectoplasma100. Os fenômenos se multiplicaram e muitos eram apresentados

como verdadeiros shows enquanto outros eram objeto de estudos científicos sérios. Entre eles

Daniel Dunglas Home, viajou pela Europa fazendo apresentações públicas, incluindo uma para

Napoleão III, os irmãos Davenport trouxeram grandes audiências para salas em Paris e Londres.

Os mesmos fenômenos foram relatados por sociedades espíritas e pesquisas científicas de

observadores respeitados, como o físico William Crookes, na Inglaterra. Esses fenômenos

despertaram na década de 1870 um crescente interesse dos cientistas na Inglaterra; a década de

1880 viu aumentar a participação em grupos espíritas na França, junto com um aumento no

número de periódicos, o que tornou o movimento mais visível. (SHARP, 2006, p. 132).

Os espíritas se afastaram do meio científico tradicional e passaram a se autoentitular

cientistas, atuando em diversas frentes invandindo o território de diversas ciências:

Astrônomos encontraram espíritas ocupados descrevendo os mundos plurais do

cosmos. Curadores espíritas, fazendo curas nas pessoas através do conselho de

espíritos, ameaçavam a autonomia profissionalizante dos médicos alopatas101. Os

100 Segundo o Espiritismo, o ectoplasma é uma substância viscosa, branca ou clara que sairia das bocas e narizes

de pessoas e seria manipulada pelos espíritos no processo de materialização de si mesmos. 101 Essa prática no Brasil inclusive determinou a criação do artigo 157 do Código Penal de 1890, que dizia que era

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espíritas também afirmaram que o mundo espiritual era a fonte dos fenômenos que os

psiquiatras argumentavam que vinham do subconsciente. Tanto em Paris como em

Marselha, leigos com inclinação para a ciência criaram sociedades para estudar

fenômenos mediúnicos. Em 1878 P.-G. Leymarie e Gabriel Delanne fundaram a

Sociedade Científica de Estudos Psíquicos (Société scientifique des etudes

psychologiques) para atuar em conjunto com a Sociedade de Estudos Espíritas

(Societe des etudes spirites), mais moralmente inclinada. Este grupo envolveu os

espíritas mais elitistas de Paris. Delanne convidou cientistas da Inglaterra e da França

para participar de sessões e para testemunhar por si mesmos as habilidades

sobrenaturais dos melhores médiuns; alguns de seus convites foram respondidos. (SHARP, 2006, p. 132, tradução nossa102)

O afastamento que se deu entre os espíritas e os cientistas tradicionais de sua época fez

com que os próprios espíritas fizessem ciência à sua maneira. Isso aconteceu exatamente no

período que vai de 1860 a 1870, que, não por coincidência, esteve sob a batuta de Kardec, no

auge de sua produção. Entendemos que isso se deu pelo fato dele ter dado uma abordagem

científica para o Espiritismo particularmente pela influência positivista em suas análises dos

fenômenos espíritas. Apesar disso, a própria mentalidade positivista, recurso amplamente

utilizado pelos cientistas de seu tempo, foi usada para “combater as concepções idealistas e

espiritualistas da realidade, concepções que os positivistas rotulavam como metafísicas”

(REALE; ANTISERI, 2005, p. 298). Mas isso não afetou Kardec, pois ele afirmou que o

Espiritismo “amplia, [...] o domínio da Ciência, e é nisto que ele próprio se torna uma ciência;

como, porém, a descoberta dessa nova lei traz consequências morais, o código das

consequências faz dele, ao mesmo tempo, uma doutrina filosófica.” (KARDEC, OE: Cap I:

Segundo Diálogo). Ao ampliar o conceito de ciência, Kardec passa a analisar o fenômeno

metafísico de forma positiva, já que, como demonstramos anteriormente na discussão das

hierofanias e do sagrado, o sobrenatural não existiria. Isso reforça a ideia de que Kardec não

era positivista como afirma Dora Incontri (INCONTRI, 2001, p. 67-71), uma vez que, para o

positivismo, a priori, o sobrenatural não existe, estando assim em contradição com o próprio

positivismo, o que para Araujo ficaria caracterizada uma espécie de positivismo espiritualista

para ser aplicado ao metafisico. (ARAUJO, 2014, p. 95).

crime praticar o Espiritismo. Teoricamente, a intenção da lei era de resguardar o monopólio do exercício da “arte

de curar”, pois estava associado aos artigos 156 e 158 que se referiam à prática ilegal da medicina. (GIUMBELLI,

2003, p. 254) 102 Astronomers found spiritists busy describing the plural worlds of the cosmos. Spiritist healers, curing people

through the advice of spirits, threatened the newly professionalizing autonomy of allopathic doctors. Spiritists

also claimed the spirit world was the source of phenomena that psychiatrists argued came from the subconscious.

Both in Paris and in Marseilles, scientifically inclined lay people created societies to study mediumistic

phenomena. In 1878 P.-G. Leymarie and Gabriel Delanne founded the scientific leaning Societe scientifique des

etudes sychologiques (Scientific Society of Psychical Studies) to act alongside the more morally inclined Societe

des etudes spirites (Society of Spiritist Studies). This group involved the most elite spiritists in Paris. Delanne

invited scientists, from England as well as France, to participate in seances and to witness for themselves the

supernatural skills of the best mediums; few of his invitations were answered.

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Nessa ampliação do espectro da ciência feita por Kardec, vamos ver o nascedouro de

uma enorme fonte de discussões, que inclusive dura até hoje, como, por exemplo, quando

vemos Araujo afirmar que é apologética a posição de Dora Incontri quando esta fala da posição

científica de Kardec (ARAUJO, 2014, p. 96). Não queremos nesse ponto entrar no mérito da

discussão em si, se Espiritismo é ou não ciência, ou se Kardec era de fato positivista. O que

queremos chamar a atenção é para a discussão que isso gerou e como que dividiu os espíritas e

espiritualistas do século XIX e divide até hoje. Por consequência desse conceito expandido de

ciências, encontraremos três vertentes: 01) aqueles que seguiram Kardec em sua nova forma de

ciência e se mantiveram como espíritas; 02) os que vão afirmar que o Espiritismo era

pseudociência e rejeitaram o Espiritismo, pois não aceitavam associar a ciência ao sobrenatural;

03) os que vão ver no Espiritismo um aspecto místico ou religioso e que vão, como veremos à

frente, fazer do Espiritismo/Espiritualismo uma religião, aspecto esse que nem mesmo os

positivistas deixaram de lado:

Os mais proeminentes líderes espíritas, Gabriel Delanne e Léon Denis, representavam

as duas principais respostas do movimento. Delanne lutou para obter reconhecimento

científico, enquanto Denis promoveu o lado espiritual, até mesmo místico, do

movimento espírita. Os espíritas nunca desistiram de sua pretensão de ser científicos,

mas isso mudou no fim do século para ser uma explicação minoritária (incorreta na

opinião de muitos) dos fenômenos científicos comumente aceitos. No final, foi a visão

de espiritualidade, reencarnação e um papel crítico contínuo de Denis para o

espiritismo, que permaneceu como características duradouras do movimento.

(SHARP, 2006, p. 164, tradução nossa)103

A discussão sobre o aspecto científico versus o aspecto místico/religioso do Espiritismo

é complexa, Araujo (2014, p. 51 a 53) destaca que o astrônomo Camille Flammarion (1842-

1925) teria se afastado da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, da qual era membro desde

1861, por não admitir que o Espiritismo tomasse os contornos de uma religião, pois entendia

que esse devia ser estudado primeiramente como ciência antes que uma filosofia religiosa. Essa

questão entre o aspecto científico e o religioso da doutrina era tão acirrada que no discurso

promovido por Camille Flammarion no túmulo de Kardec, na ocasião de sua morte, ele trouxe

à tona as questões que vinham sendo discutidas sobre o aspecto religioso do Espiritismo:

Quantos corações foram consolados, de início, por esta crença religiosa! Quantas

lágrimas foram enxutas! [...] Não será nada ter trazido ao espiritualismo tantos seres

que vacilavam na dúvida e que não mais amavam a vida física, nem a intelectual?

Allan Kardec era o que eu denominarei simplesmente “o bom-senso encarnado”.

103 Gabriel Delanne and Leon Denis, represent the two main responses of the movement. Delanne struggled to gain

scientific recognition, while Denis promoted the spiritual, even mystical, side of the spiritist movement. The

spiritists have never given up their claim to be scientific, but it changed in the fin de siecle to be a minority

explanation (incorrect in the opinion of many) of commonly accepted scientific phenomena. In the end it was

Denis' vision of spirituality, reincarnation, and a continuing critical role for spiritism that remained the lasting

characteristics of the movement.

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Razão reta e judiciosa, aplicava sem cessar à sua obra permanente as indicações

íntimas do senso comum. [...] O ponto de partida era aplicar-lhes a razão firme do

simples bom-senso e examiná-las segundo os princípios do método positivo.

Conforme o próprio organizador deste estudo demorado e difícil previra, esta

doutrina, até então filosófica, tem que entrar agora num período científico. [...] Esse

método experimental, a que devemos a glória dos progressos modernos e as

maravilhas da eletricidade e do vapor, deve colher os fenômenos de ordem ainda

misteriosa a que assistimos para os dissecar, medir e definir. Porque, meus Senhores,

o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o

abecê. Passou o tempo dos dogmas. [...] O sobrenatural não existe. As manifestações

obtidas com o auxílio dos médiuns, como as do magnetismo e do sonambulismo, são

de ordem natural e devem ser severamente submetidas à verificação da experiência.

Não há mais milagres. Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida. [...]

Doravante, o mundo é regido pela ciência e, Senhores, não virá fora de propósito,

neste discurso fúnebre, assinalar-lhe a obra atual e as induções novas que ela nos

patenteia, precisamente do ponto de vista das nossas pesquisas. (KARDEC, RE:

Mai/1869, p. 198, grifos nossos).

O discurso de Camille Flammarion deixa claro que, do seu ponto de vista, entendia que

Kardec posicionava o Espiritismo como religião, ou pelo menos agia como tal. Ele fala

claramente que essa doutrina se tratava de uma crença religiosa e até então filosófica, tinha sua

real vocação para ser uma ciência. O autor do artigo O Espiritismo em seu tríplice aspecto:

científico, filosófico e religioso, Silvio Chibeni (2003b, p. 357), problematiza a questão do

aspecto científico do Espiritismo, discordando do que Flammarion afirmava. Para Chibeni, se

for feita uma análise do Espiritismo sem um viés apologético, avaliando sua estrutura e

desenvolvimento, verificar-se-á que se trata de uma ciência genuína, se forem levadas em conta

as características apontadas pela filosofia da ciência contemporânea. Chibeni afirma que a:

[...] ciência autêntica consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico principal,

formado por leis fundamentais, introduzidas a título de hipóteses. Esse núcleo é

circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com

os dados empíricos. Essa estrutura teórica mais ou menos hierarquizada faz-se

acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu

desenvolvimento. De um lado, há a regra “negativa”, que estipula que nesse

desenvolvimento os princípios do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser

mantidos inalterados. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as

observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais

da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas” sugerem

ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser

efetuadas. Essa é uma descrição sucinta e simplificada daquilo que o filósofo da

ciência contemporâneo Imre Lakatos chamou de programa científico de pesquisa.

(CHIBENI, 2003b, p. 356)

Dessa forma, pode-se falar em uma Ciência Espírita104, pois o método científico

104 Quando se fala em Ciência Espírita, Kardec diz que a ciência comum não está apta a avaliá-la e por esse sentido

deixa de ser positivista, pois uma das características fundamentais do positivismo era, segundo Comte, ter uma

unidade de métodos para todas as ciências (ARAUJO, 2014, p. 100). Embora não seja objeto de nosso trabalho

o aspecto científico do Espiritismo, Kardec afirma de forma direta sobre essa impossibilidade da ciência natural

“comum” de analisar o Espiritismo: “As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode

experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de

vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As

observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de

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baconiano aplicado por Kardec, herdado da influência positivista de Comte, se aplicava

perfeitamente à definição abordada acima. Chibeni afirma ainda que Kardec se antecipa às

conquistas recentes da filosofia da ciência, segundo ele

seus escritos, correspondem efetivamente à visão que os filósofos da ciência têm hoje.

Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de

fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que

lhe possibilitou a implantação de uma verdadeira ciência do espírito. (CHIBENI,

2003b, p. 357)

Baseados nesses relatos, podemos concluir que não era somente a Igreja Católica que

encarava o Espiritismo como religião, tanto os cientistas e estudiosos da época, como algumas

correntes dos espíritas e dos espiritualistas alimentavam essa ideia com forte relacionamento

com o Iluminismo.

3.7. Os inter-relacionamentos do Espiritismo com o Iluminismo

Os defensores da reencarnação do século XIX, particularmente da década de 1850,

segundo Lynn Sharp (2006), entendiam que a alma humana estava em processo de evolução,

era perfectível e que não deveria estar sujeita às desigualdades sociais de sua época. Ao abordar

esse entendimento, a autora relaciona o Espiritismo com Rousseau, mas deixa entender que esse

relacionamento seria fortuito, sem uma ligação mais direta com o pensador. Ele diz que: “Os

espíritas, sem nunca apontar para Rousseau, no entanto, argumentaram com essa visão

iluminista da desigualdade social, substituindo uma visão diferente de perfectibilidade, que

levou a uma crescente igualdade e justiça social” (2006, p. xv). Entendemos que essa visão de

Sharp é equivocada, pois que esse fato guarda uma relação direta e perfeitamente compreensível

se levarmos em conta, que Rousseau, como citamos no capítulo primeiro, foi fonte de inspiração

para Pestalozzi e, por consequência, para Kardec.

Os inter-relacionamentos do Espiritismo com o Iluminismo vão além dos pensamentos

de Rousseau, na verdade, entendemos que não só o Espiritismo Francês de Kardec, como o

Espiritualismo Americano e o Ocultismo e em todas as suas correntes, sejam elas científicas ou

místicas, tinham relações como o movimento iluminista. Entendemos que inclusive as vertentes

religiosas do Espiritismo têm muito mais a ver com o Iluminismo do que se imagina. Os adeptos

do conceito de reencarnação imaginavam que o ser humano seria portador de uma alma

partida. Querer submetê-las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A

Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo:

não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá

ter.” (KARDEC, LE: Introdução: VII).

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evolucionária e perfectível, longe da desigualdade. Nessa visão, à medida que os seres humanos

progredissem em direção à perfeição, eles se tornariam menos egoístas, mais capazes de criar

uma sociedade que reconhecesse as necessidades, direitos e interesses de todos, incluindo a

classe trabalhadora e as mulheres que na época não tinham seus direitos assegurados. Essa visão

de uma sociedade melhor ofereceu um grande atrativo para as pessoas ao Espiritismo (SHARP,

2006, p. xv).

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como dissemos no primeiro

capítulo, fazia um contraponto ao Absolutismo Monárquico e a certos preceitos religiosos da

época, e era revolucionária no real sentido da palavra, pois procurava um ponto de equilíbrio

entre a estreita religiosidade da Igreja Católica e a materialidade iluminista, mas sem abandonar

uma visão religiosa do mundo quando declara que seus termos são postos “na presença e sob

os auspícios do Ser Supremo” (Ver a Declaração completa no Anexo C). Sharp afirma que o

Espiritismo ofereceu na época uma alternativa aos iluministas, já que permitia a defesa de

reformas sociais, mudanças políticas e uma mudança de visão de gênero sem abandonar a ideia

de religiosidade, ele argumenta que:

[...] ao invés de o pensamento iluminista substituir a tradição religiosa católica na

cultura francesa do século XIX, a relação da razão com a religião era mais complicada.

As linhas do pensamento espiritualista no século XIX, especialmente o espiritismo,

criaram novas combinações de espiritualidade, razões e pontos de vista românticos

que se recusavam a dar primazia absoluta à materialidade iluminista ou à estreita

religiosidade da Igreja Católica. A reencarnação e o espiritismo ofereceram uma

versão secular da espiritualidade popular entre aqueles que talvez quisessem rejeitar

o catolicismo em favor da ciência, mas definitivamente queriam manter uma visão

religiosa profunda do mundo. [...] A reencarnação, para os socialistas românticos, para

os livre-pensadores, e especialmente para os espíritas, era atraente porque promovia

um ideal de progresso iluminista sem sacrificar a religiosidade. A espiritualidade

secular rejeitava uma dicotomia tradicional entre religião e o Iluminismo. (SHARP,

2006, p. xii, tradução nossa)105

Os adeptos do pensamento espírita estavam conscientes do momento em que viviam,

sabiam que havia o incentivo para o uso da razão associada a questões de ordem moral para

compreender o mundo em que viviam. O império de Napoleão contou de forma significativa

com a filosofia prática de August Comte, usando de engenheiros e pensadores que viam no

positivismo uma forma de viver. Um positivismo que pregava a separação entre a ciência

105 rather than Enlightenment thought replacing Catholic religious tradition in nineteenth century French culture,

the relationship of reason to religion is more complicated. Lines of spiritualist thought in the nineteenth century,

especially spiritism, created new combinations of spirituality, reason, and romantic outlooks that refused to give

absolute primacy to either Enlightenment materiality or to the narrow religiosity of the Catholic church.

Reincarnation and spiritism offered a secular version of spirituality popular with those who may have wanted to

reject Catholicism in favor of science but definitely wanted to retain a deep-seated religious outlook on the world.

[...] Reincarnation, for the romantic socialists, for freethinkers, and especially for the spiritists, was attractive

because it promoted an ideal of Enlightenment progress without sacrificing religiosity. Secular Spirituality

rejects a traditional dichotomy between religion and the Enlightenment.

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factual e a espiritualidade supersticiosa.

Por outro lado, os adeptos do Espiritismo encontravam nele uma saída para essa

dicotomia. Essa doutrina podia adotar esse entre lugar e atuar nessas duas áreas tornando-se, ao

mesmo tempo, uma ciência e uma religião. As manifestações diversas, como psicografia,

materializações espirituais, forneceram base empírica e científica para a prova da sobrevivência

da alma (SHARP, 2006, p. 59). Defendemos inclusive, com base neste ponto, que podemos

concordar que, como apregoado no meio espírita, o Espiritismo possui um tríplice aspecto de

filosofia, ciência e de religião, como defende Silvio Chibeni:

Tornou-se comum no meio espírita afirmar-se que o Espiritismo é ciência, filosofia e

religião, ou tem um “tríplice aspecto”, englobando as três áreas. Essa caracterização

não pode ser encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. É, porém,

correta e, em sua essência, está presente no pensamento do criador do Espiritismo e

de seus mais lúcidos continuadores. (CHIBENI, 2003, p. 315)

Kardec combinou uma forte fé na ciência e uma prova científica da sobrevivência da

alma, fortalecendo as formas mutáveis de prova aceitas como válidas no século XIX. O poder

explicativo da Igreja diminuía à medida que a observação científica crescia, mas a ciência não

conseguia explicar o sobrenatural, ou ainda a agitação da alma que pedia algo além da realidade

material. O Espiritismo empenhou-se em responder a ambas as necessidades: a recusa

positivista a acreditar sem prova e o impulso religioso de saber que a alma continua após a

morte.

Não só o Espiritismo francês trazia essa tendência de tornar-se religioso, visto que

existia espaço em outros movimentos desse entre lugar entre a tradição cristã e “um ideal de

progresso iluminista sem sacrificar a religiosidade. A espiritualidade secular rejeitava uma

dicotomia tradicional entre religião e o Iluminismo (SHARP, 2006, p. xii). É nessa linha que o

pai do positivismo Augusto Comte vem a fundar sua própria religião: a Religião da

Humanidade ou Positivismo Religioso, a qual apresenta algo que guarda alguma semelhança

com a espiritualidade laica dos dias de hoje. O Espiritualismo americano, em uma linha de

pensamento Ocultista, também procurou identificar sua forma de religião. Em 1875 foi fundada,

em Nova York, a Sociedade Teosófica pela imigrante russa Helena Petrovna Blavatsky, mais

conhecida como Madame Blavatsky, e o advogado Henry Steele Olcott. Os membros dessa

sociedade tinham uma pretensão de descobrir nada menos que a essência da própria religião.

Eles pretendiam desenvolver um corpo unificado de conhecimento esotérico que pudesse

unificar as aparentes irreconciliáveis crenças de todo o mundo. Acreditavam que os

espiritualistas eram ingênuos, mas não descartavam completamente os fenômenos

sobrenaturais (MONROE, 2008 p. 235). É essa mesma Sociedade que vai desembarcar na

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França em 1879 para fundar a Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses.

Com o crescimento do Ocultismo e do Espiritualismo tanto norte-americano como

europeu, o Espiritismo Francês tomou contornos muito tímidos no final do século XIX, as obras

de Kardec continuaram sendo encontradas em algumas lojas especializadas e o movimento

espírita foi absorvido no Brasil a partir do ano 1870, onde inclusive as mesmas discussões a

respeito do seu aspecto místico e científico se tornaram objeto de disputas intelectuais. Tanto

Lynn Sharp (2006, p. 202), como Monroe (2008, p. 261) entendem que, a partir da morte de

Gabriel Delanne e Léon Denis no começo do século XX, ocorre um obscurecimento do

Espiritismo, que renasce fortemente no Brasil com um viés religioso, resultante da vitória dos

místicos liderados por Bezerra de Menezes, em 1889, quando este assume a liderança da

Federação Espírita Brasileira.

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CONCLUSÃO

Como pisar em terreno minado sem que se detone uma bomba? É assim que me sinto

ao iniciar a conclusão desse trabalho. Discutir o aspecto religioso do Espiritismo não é tarefa

fácil, aliás trabalhar com o conceito de religião também não o é, por isso a sensação de campo

minado. De um lado, a indefinição sobre o aspecto religioso do Espiritismo em meio a uma

disputa de ideias que perfazem mais de um século e meio, do outro, a dificuldade de tratar o

conceito de religião. O objeto desse trabalho, como estabelecemos na introdução, não era

responder se Espiritismo é ou não religião, embora o assunto orbite nossa discussão todo o

tempo. O que pretendíamos era entender se o conceito de religião considerado pelo Espiritismo

foi influenciado pelos pensadores e teólogos do século XIX, a ponto de Kardec negar o

surgimento de uma nova religião. E se ao negar o surgimento dessa religião ele teria entrado

em contradição ao afirmar que o Espiritismo é “uma doutrina filosófica de efeitos religiosos”.

A hipótese que havíamos postulado era que, sim, Kardec foi influenciado pelos

pensadores da época, particularmente os positivistas e iluministas, mas que não havia

contradição em seu raciocínio, pois ele considerou, para sua conclusão, os conceitos de sua

época que eram ditados pela religião dominante, fazendo do conceito de religião do Espiritismo

um contraponto com o entendimento tradicional.

Concluímos, portanto, que a questão estava no entendimento de que Kardec fazia acerca

do conceito de religião. Dessa forma, a verdadeira questão de nosso trabalho não é se o

Espiritismo é ou não é uma religião, ou se ele tenha negado o surgimento de uma nova religião,

mas sim compreender qual era o conceito de religião para Kardec. Diante dessa visão

poderíamos entender a intenção dele ter feito um contraponto entre as religiões ocidentais

tradicionais e o Espiritismo. Como vimos no decorrer do trabalho, o desejo de Kardec era de

estabelecer um “uma reforma religiosa, [...] com a intenção de chegar à unificação das crenças.”

(LACHÂTRE, 1867, p. 199), esse desejo teve tamanha força que alcançou inclusive os

Espiritualistas e Ocultistas como abordamos no capítulo três.

Para atingir esse objetivo, estudamos a formação, as influências teológicas e as escolas

científicas em que Allan Kardec se inspirou para desenvolver os seus trabalhos como pensador

e cientista e contextualizamos o ambiente social legado pela Revolução Francesa. Trabalhamos

o conceito de religião segundo o ponto de vista de alguns autores e entendemos que, embora

obviamente o assunto não se esgote definitivamente, era necessário estabelecer um ponto de

partida. A definição desse conceito foi por si só um desafio, já que essa é uma das mais difíceis

tarefas da ciência das religiões. O ponto de partida histórico foi traçado a partir de Lactâncio e

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Cícero, depois passamos pela visão antropológica de Benson Saler, com a ajuda dos jogos de

linguagem de Wittgenstein e algumas pontuações de Greschat, para em seguida dialogar com

os pontos de vista de Cliford Geertz. Discorremos também sobre as hierofanias de Eliade e

visitamos o sagrado na visão de Rudolf Otto. Com todos esses autores estabelecemos um

diálogo de seus conceitos com os pontos de vista de Kardec, para tentar aproximar ou distanciar

seu pensamento de cada um deles, particularmente para estabelecer se estão presentes no

Espiritismo as seguintes características definidoras: 01) a presença de um templo religioso; 02)

a liderança de um Sumo-Sacerdote e seus sacerdotes; 03) a existência de cultos; 04) e a presença

de ritos; pois que segundo Kardec esse eram pontos centrais para a caracterização da existência

de uma religião.

Resultante desses diálogos, percebemos que os limites estabelecidos para dizer o que é

ou não religião passam por um vasto leque de concepções, navegando inicialmente entre duas

etimologias possíveis, o relegere e o religare, uma de origem romana, voltada para a adoração

de diversos deuses, e a outra reconceituada como cristã. A religião não ficou, porém, somente

entre essas duas concepções, passou, com o decorrer do tempo, por outros pensamentos que

poderiam se dizer intermédios ou, como disse Benson Saler (2000, p. xiv), com “características

típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião”, estabelecendo lugares mais ou

menos religiosos. Praticamente todos esses conceitos puderam ser englobados na afirmação de

Geertz (1978, p. 67) de que todas as religiões se revestem de uma aura de fatualidade, dada por

rituais que seriam, segundo ele, sua motivação central.

No século XIX, para a maioria dos europeus, isso tudo parecia correto e acertado,

bastando apenas situar as religiões entre o relegere ou o religare. Quando se destacaram os

fenômenos espiritistas, a começar com os eventos de Hydesville nas américas e pouco tempo

depois as mesas girantes na França. Com as análises feitas por Kardec, uma nova visão veio à

tona, considerando a existência de “provas positivas da existência da alma, ou antes, da

existência post-mortem de uma alma”, como afirma Eliade (1989 p. 61).

Apesar da existência de diversos fenômenos dessa ordem antes de Hydesville e das

mesas girantes, como foi relatado por Arthur Conan Doyle, foi com Allan Kardec que surgiu

uma perspectiva científica baconiana e principalmente secular do que, até aquele momento, era

apenas do domínio das religiões ditas tradicionais no mundo europeu. Respondendo a um anseio

Iluminista, o Espiritismo, como afirma Sharp (2006, p. xii), apontou com novas combinações

de espiritualidade que se recusavam a dar primazia absoluta à materialidade iluminista ou à

estreita religiosidade da Igreja Católica. O Espiritismo, principalmente por causa do conceito

da reencarnação, ofereceu uma versão secular da espiritualidade, o que abordamos no capítulo

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dois, dando a opção aos que quisessem rejeitar a Igreja Católica ou Protestante em favor da

ciência, mas que quisessem manter uma visão religiosa do mundo (SHARP, 2006, p. xii). O

pedagogo francês propôs, em meio às revoluções do pensamento moderno iluminista, que o

metafísico, outrora assunto das religiões ou da Filosofia, passasse a ser assunto da Ciência ou

pelo menos da razão. A “fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em

todas as épocas da humanidade.”, afirmava Kardec (2016, p. 232).

Esse pensamento que situava o Espiritismo num entre lugar entre os pensadores

materialistas, passando pelos Iluministas e a religiosidade da igreja, abria uma possibilidade

para um pensamento secular nascente. A aparente contradição que apontamos em Kardec se

deu porque os próprios pensadores de seu tempo estavam passando por um processo de

transição da tradição para o pensamento secular, assunto esse tratado no capítulo três. Os

defensores da reencarnação passaram a ver no mundo metafisico um caminho para defender

reformas sociais, políticas e uma mudança de visão sobre o gênero. A reencarnação era a

oportunidade de confirmar as reinvindicações de igualdade entre todos os seres humanos sem

abrir mão de uma espiritualidade que também não estivesse submetida à tradição cristã.

O próprio posicionamento de Kardec se transformou com o tempo e passou por uma

fase que foi nomeada por Araujo (2014, p. 218) como um período religioso, particularmente

quando publicou O Evangelho Segundo o Espiritismo. Segundo Araujo, as afirmações de

Kardec, com o tempo, passaram por modificações, inclusive chegando a afirmar que o

Espiritismo era uma religião em termos filosóficos. Tal afirmação corrobora com a ideia de

Benson Saler, em cuja definição existem características definidoras que permeiam a religião:

A religião, na minha forma de ver, é uma categoria graduada cujas instâncias estão

ligadas por semelhanças de família. Além disso, defendo que reconhecemos

explicitamente que, para a maioria dos estudiosos ocidentais, os exemplos mais claros

da categoria religião, os exemplos mais prototípicos dela, são as famílias de religiões

que chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias exibem

os maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião. E, claro,

essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela primeira

vez com o termo religião. Bem cedo na vida aprendemos a afastar a religião de outras

coisas, embora de forma imperfeita. [...] Como estudiosos, procuramos refinar e

aprofundar tais entendimentos de maneira sistemática. Usamos nossos entendimentos,

de fato, para buscar no mundo outras religiões. Identificamos várias afirmações

verbais e outros comportamentos em sociedades não ocidentais como "religiosas" por

analogia com o que encontramos no Ocidente. (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).

Assim sendo, as religiões seriam compostas de um conjunto de características, das quais

cada uma tomaria para si um pequeno subconjunto dessas e, por assim dizer, existiriam áreas

periféricas que são menos comuns às religiões tidas como as maiores referências ocidentais de

religião. Para Kardec, a Igreja Católica e a Igreja Protestante foram suas maiores referências de

religião, já que, como descrevemos no capítulo um, ele entendia que o Cristianismo era o que

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existiria de melhor modelo para religião (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206). Dessa forma, o

Espiritismo não possuindo tais características típicas, não poderia ser, portanto uma religião, já

que o Cristianismo já ocupava esse lugar. Se o Espiritismo não era religião, por sua vez seria

outra coisa. Assim, o hibridismo apontado por Araujo no Espiritismo (ARAUJO, 2010, p. 132),

que seria, segundo ele, um entre lugar, uma ponte entre a ciência e a filosofia com a religião

tida como referência, nada mais é, ao nosso modo de ver, uma área periférica do conjunto de

características das religiões apontadas por Saler, que diz por definição que essa outra coisa

possuía semelhanças familiares com outras religiões106.

Por isso, não obstante tenha dito ao Abade de Chesnel em 1859 que a doutrina espírita

não fosse uma religião propriamente constituída e que serviria como elemento aglutinante às

diversas religiões, Kardec (2016, p. 232), anos depois, em seu discurso em reunião pública, na

noite de 1° de novembro de 1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, afirmou:

O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois,

essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as

aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à

vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito.

O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como conseqüência

da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a

indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a

religião da amizade, a religião da família. Se é assim, perguntarão, então o

Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o

Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina

que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre

uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.

(KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491, grifos nossos)

Se fizermos uma análise desse discurso de forma pormenorizada, tomando as definições

de Benson Saler, verificaremos que se mostram presentes algumas importantes características

definidoras das religiões, segundo o pensamento de Kardec, que por sua vez corroboram o

pensamento de alguns autores que citamos no capítulo dois. Quando ele afirma que “o laço

estabelecido por uma religião [...] é, pois essencialmente moral que liga os corações, que

identifica os pensamentos, as aspirações” seu pensamento se alinha com a visão de religare de

Lactâncio, que aborda a questão da moralidade em detrimento “das fórmulas que falam mais

aos olhos do que ao espírito”, em oposição ao relegere de Cícero. O senso de totalidade

abordado por Greschat (2005, p. 24-25) que analisa as religiões nas perspectivas de

comunidade, como sistema de atos; como conjunto de doutrinas e como sedimentação de

experiências, está presente na afirmação de que se estabelece uma união “como conseqüência

106 Essa extrapolação é nossa, Benson Saler não associa essa ideia diretamente ao Espiritismo em seu texto, ele

fala de maneira geral sobre religiões quando usa o pensamento de Wittgenstein. Explicaremos mais à frente de

forma explícita essa questão.

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da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a

benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da

família.” E finalmente, quando Kardec afirma que “é a Doutrina que funda os vínculos da

fraternidade e da comunhão de pensamentos”, ele se alinha com Geertz (1978, p. 67) que

apresenta em sua definição a “formulação de conceitos de uma ordem geral [...]e disposições e

motivações parecem singularmente realistas.” (GEERTZ, 1978, p. 67).

Há também que se analisar a afirmação “No sentido filosófico, o Espiritismo é uma

religião”, a qual possui grande importância, por ser uma afirmação literal de Kardec e dizer

que, de alguma forma, o Espiritismo é uma religião porque estabelece um dos fundamentos

básicos que é a questão da moral, e que completaremos mais à frente.

Podemos observar que, se tomadas as definições de Benson Saler, essa definição de

Kardec possui algumas características definidoras, mas não todas as que comumente são

associadas às religiões, porém, que seriam suficientes pelo conceito semelhanças familiares de

Wittgenstein estabelecer o relacionamento do Espiritismo no grupo das coisas chamadas de

religião.

Quando Kardec (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196-208), em 1859, responde ao artigo

do Abade de Chesnel, rechaçando a ideia de que o Espiritismo fosse uma religião, o que ocorreu

em diversas outras oportunidades, Kardec não acreditava na possibilidade de poder desvincular

certas características definidoras que para ele seriam fundantes para a existência de uma

religião. Esse pensamento está de acordo com o de Geertz, que dizia não ser possível, em termos

de religião, desvincular “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,

penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens” de uma “formulação de

conceitos de uma ordem geral” (GEERTZ, 1978, p. 67). Por essa razão, pelo menos naquele

momento, Kardec não acreditava que o Espiritismo pudesse ser uma religião, pois os ritos, os

símbolos e os sacerdotes seriam características que estariam sempre presentes na religião,

segundo seu pensamento. Essa ideia de que essas características fossem fundantes são citadas

por ele de forma textual em 1868:

Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de

não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião

geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente

uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma

religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser,

dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de

hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo

e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou. Não tendo o

Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra,

não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se

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teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.

(KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491, grifos nossos)

Fica muito claro aqui o pensamento de Kardec quando ele fala que “a palavra religião é

inseparável da de culto” e que “uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de

cerimônias” são características fundantes de uma religião, ou seja, ele definitivamente entende

que os cultos, ritos, templos e sacerdotes são características definidoras de uma religião, e como

diz textualmente, o Espiritismo não possui “nenhum dos caracteres de uma religião”.

Observemos, porém, que ele diz que o Espiritismo não possui nenhuma das

características definidoras de uma religião, porque no século XIX não havia ainda espaço

definitivo para o que era secular e o que valia era somente a tradição. Mas, por outro lado, é

importante observar que ele já admitia a possibilidade de uma variante de entendimento para a

palavra religião, pois complementa a frase “Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de

uma religião” com o aposto “na sua acepção usual da palavra”, dessa forma, deixando claro que

existiam concepções não usuais. Com isso, o Espiritismo se enquadraria na classe das

“doutrinas filosóficas e morais”, que poderia ser uma outra forma de se ver a religião, como foi

abordado anteriormente quando analisamos a afirmação de que “no sentido filosófico, o

Espiritismo é uma religião.”

Assim, entendemos que Kardec fez das famílias do Cristianismo (a Igreja Católica e a

Igreja Protestante) como suas referências de religião e que isso está de acordo o pensamento de

Saler que entendia que, pelo menos para os ocidentais, essas religiões são (ou foram) suas

maiores referências de religião. Dessa forma, em contraponto, Kardec afirmou que o

Espiritismo não era uma religião, já que não possuía, ritos, símbolos ou sacerdotes. Concluímos

que isso se deu por dois motivos: primeiro, porque se para ele, de todas as doutrinas, o

Cristianismo era a mais esclarecida e a mais pura, não haveria, portanto, necessidade de se criar

nova religião, e sim agregar as revelações dos espíritos ao Cristianismo (ou a outras religiões

que aceitassem as concepções do Espiritismo); e segundo, porque Kardec não tinha a ideia de

fundar uma nova religião, mas sim fornecer elementos para fazer “uma reforma religiosa, [...],

com a intenção de chegar à unificação das crenças.” (LACHÂTRE, 1867, p. 199).

A questão acerca de uma aparente contradição no pensamento de Kardec sobre a religião

se dá porque as avaliações que têm sido feitas sobre esse tema são de um ponto de vista

moderno. A questão temporal aqui é extremamente relevante, pois estamos fazendo um recorte

do pensamento do Espiritismo no século XIX, época em que o conceito de religião estava

fortemente atrelado à Religião Católica e à Protestante, já que o pensamento secular ainda

estava começando a surgir. Por essa razão a relevância de entender o pensamento de Kardec

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situando-o no século XIX, de acordo com as ideias que eram correntes na época. É necessário

compreender, como afirma Greschat (2005, p. 24-25), que as religiões passam por um processo

de transformação contínuo e que a visão do que era religião no século XIX já vinha passando

por modificações desde a idade média.

Todos sabem que a religião era, anteriormente, uma questão coletiva e que se tornou

uma questão individual [...]. Mas se concluirmos que esta mudança está

correlacionada com o nascimento do Estado moderno [...]. Avancemos um pouco

mais: a religião medieval foi um grande manto [...]. Uma vez que ela se tornou uma

questão individual, perdeu sua capacidade totalizante e se tornou apenas um dentre

outros fatores em aparente pé de igualdade [...]. Cada indivíduo pode, é claro, e talvez

o faça, reconhecer na religião (ou na filosofia) a mesma capacidade totalizante com

que antes ela era dotada socialmente. No entanto, no nível do consenso social ou da

ideologia, a mesma pessoa migrará para uma configuração de valores distinta, na qual

valores autônomos (religiosos, políticos, etc.) são aparentemente justapostos, assim

como os indivíduos estão justapostos na sociedade. (DUMONT, 1971, p. 32)

A transformação a que Dumont se refere diz respeito particularmente à possibilidade de

tornar a religião objeto de poder de algumas tradições, que começaram a perder, como afirma

o autor, a sua capacidade totalizante. Particularmente a Igreja Católica passaria, com o

nascimento do Estado moderno, a não mais exercer esse poder em diversos setores da

sociedade, como foi o caso exemplificado no Auto de Fé de Barcelona (KARDEC, OP: Auto

de Fé de Barcelona), citado no capítulo três deste trabalho, em que a Igreja fiscalizava o

conteúdo das obras literárias. Assim como “essa separação entre religião e poder é uma norma

Ocidental moderna, produto de uma singular história pós-Reforma” (ASAD, 2010, p. 264),

inicia-se nas religiões um processo de transformação rumo à secularização. Dessa forma,

entendemos que não se pode aceitar o que Kardec afirmou naquela época ser uma verdade

absoluta nos dias de hoje, visto que ele mesmo afirma: “Caminhando de par com o progresso,

o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar

em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se

revelar, ele a aceitará.” (KARDEC, AG: Cap. I: 55). Acreditamos, portanto, que se a ideia

secular de religião de hoje fosse corrente àquela época talvez ele concordasse que o Espiritismo

assumisse esse papel. Por isso que dizemos que não é objeto deste trabalho saber se o

Espiritismo é ou não uma religião, mas sim entender o que era religião para Kardec e o qual

objetivo ele queria atingir ao dizer que não era. Inclusive a questão de como o Espiritismo

encara o conceito de religião nos dias de hoje será objeto de trabalhos futuros, já que como

Sharp (2006, p. 202, tradução nossa) declara que depois dos diversos reveses que sofreu “o

Espiritismo sobreviveu, mas em silêncio, até reviver nas décadas de 1980 e 1990, quando foi

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reimportado do Brasil, onde floresceu desde a década de 1870.”107

Não queremos com nossas reflexões causar polêmica e nem fechar questões, mas sim

trazer uma reflexão a respeito do assunto buscando as próprias palavras de Kardec que diz: “Por

que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão

uma palavra para exprimir duas idéias (sic) diferentes [...]” (KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491).

Há no termo religião um sem número de ideias e pensamentos associados, por isso mesmo a

dificuldade de definir o termo mesmo entre os cientistas da religião. Por isso adotamos no nosso

trabalho a visão de Benson Saler que traz um vasto leque de opções dizendo que “alguns

acadêmicos, [...] propuseram rótulos como ‘quase-religiões’ ou ‘semi-religiões’ para indicar

que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma forma, mas não o

suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de religião" (SALER, 2000, p.

xiv). O que nos conduz ao ponto central de nossa conclusão.

Embora Allan Kardec tenha entendido que cultos, ritos, templos e sacerdotes são

características definidoras inseparáveis de uma religião, a presença de outras características

definidoras, em se usando o conceito de semelhanças familiares de Wittgenstein, pode incluir

o Espiritismo no hall das religiões, já que nem todas as religiões possuirão todas e as mesmas

características.

Como bem descreve Eliade (2008, p. 8), as religiões possuem uma enorme diversidade

de fatos sagrados, que se manifestam através de uma vasta e longa série de ritos, mitos, formas

divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias, teologúmenos, homens

consagrados, animais, plantas e lugares sagrados, que apesar de não serem os mesmos em todas

elas ainda serão consideradas religiões. Nessa linha de raciocínio, não importa a explicação que

seja dada aos fatos sagrados, sejam eles miraculosos ou fenômenos naturais como Kardec os

definia, serão fatos religiosos, metafísicos ou sobrenaturais, não importando o nome que se dê,

uma vez que, para seu fiel, ele representa uma realidade.

Concluímos, portanto, que Kardec foi de fato influenciado pelos pensadores de sua

época, particularmente os positivistas e iluministas, mas que essa influência só o ajudou a tirar

suas próprias conclusões e que não havia contradição em seu raciocínio, pois que sua ideia de

uma reforma religiosa combinada com o seu conceito de religião fazia com que ele tivesse uma

ideia bem clara a respeito do Espiritismo. Todavia, seu conceito de religião se aplica tão

somente à sua época. Por fim, podemos entender que: 1) Kardec entendia que a doutrina espírita

não era religião, pois não poderia se designar essa palavra a duas ideias diferentes, já que, na

107 spiritism survived, but quietly, until reviving in the 1980s and 1990s as it was reimported from Brazil, where it

had flourished since the 1870s

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opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto, ritos mitos e sacerdotes e ao

Espiritismo esses caracteres não eram aplicáveis; 2) Se o Cristianismo era, em termos de

religião, a doutrina mais pura e esclarecida, não havia necessidade de fundar outra, bastando

agregar a ela os conceitos do Espiritismo para explicar o que ainda estava obscuro ou por ser

revelado; 3) Os milagres e revelações nada mais são do que fenômenos naturais ainda não

compreendidos, fazendo com que as relações entre o sagrado e o profano percam sentido; 4)

Kardec não tinha a intenção de fundar uma religião porque, ao invés de congregar as pessoas,

ele as iria separar ainda mais, já que, se o Espiritismo se arrojasse à condição de uma religião,

o público em geral não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, dos princípios

absolutos em matéria de fé, não o separando das ideias de misticismo e dos abusos contra os

quais tantas vezes a opinião se levantou; 5) O Espiritismo é uma doutrina de fundamentação

moral e filosófica e, alinhada como o pensamento de Lactâncio, de religação com Deus; 6)

Mesmo no século XIX, os germens da secularização nascente ampliaram o conceito de religião

abarcando as outras espiritualidades possíveis, de forma que, apesar de o Espiritismo não

possuir todos os caracteres tradicionalmente aceitos à religião, ele possui caracteres suficientes

para tal associação, se levarmos em conta os princípios de secularização nascentes junto com o

Iluminismo.

Ficam dessa forma estabelecidos nossos pontos de vista sobre o pensamento de Kardec

e o Espiritismo, assuntos que ainda estão longe de serem esgotados, principalmente por que não

temos a pretensão de pôr fim a uma discussão que perfaz mais de um século e meio.

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ANEXOS A

Seguem neste anexo as Certidões de Nascimento, Casamento e Óbito de Hippolyte Léon

Denizard Rivail e suas respectivas transcrições em francês e português.

Certidão de Nascimento:

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Transcrição em Francês:

Du douze vindémiaire de l'an treize.

Acte de naissance de Denisard, Hypolite Leon Rivail, né hier soir à sept heures, fils de

Jean Baptiste Antoine Rivail, homme de loi, demeurant à Bourg de L'Ain, et actuellement à

Paris, et de Jeanne Louise Duhamel son epouse. Le sexe de l'enfant a été reconnu masculin.

Témoins majeurs Syriaque Frederic Dittmar, Directeur de L'Établissement des eaux minérales,

susdite rue Sala, et Jean François Turge demeurant même rue. Sur la réquisition de Pierre

Rodamel, médecin, demeurant rue Saint Dominique, n° 78. Lecture faite, et ont signé. Constaté

par moi maire soussigné / de présent à Lyon, rue Sala, n° 74. Renvoy approuvé

Transcrição em Português:

Aos doze, vindemiário ano treze.

Certidão de Nascimento de Denisard, Hypolite Leon Rivail, nascido ontem à noite, às

sete horas, filho de Jean Baptiste Antoine Rivail, homem de lei, morador em Bourg de L'Ain, e

atualmente em Paris, e de Jeanne Louise Duhamel, sua esposa. O sexo da criança foi

reconhecido como masculino. Testemunhas principais, Syriaque Frederic Dittmar, diretor do

estabelecimento de águas minerais na rua Sala, e Jean François Turge, morador na mesma rua.

Por requisição de Pierre Rodamel, médico, morador à rua Saint Dominique n° 78. Leitura feita,

e por todos assinada. Constatada por mim, prefeito, abaixo assinada /Atualmente em Lyon, rua

Sala, n° 74. Nota aprovada

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Certidão de Casamento:

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131

Transcrição em Francês:

Reconstitution des Actes de L'État Civil

Dépôt Central

Préfecture du Département de La Seine

L'an mil huit cent trente deux, le neuf Février è Paris.

Acte de Mariage de Hippolyte Léon Denizard Rivail, chef d'Institution, demeurant rue

de Sèvres n° 35, fils de Jean Baptiste Antoine Rivail et de Jeanne Louise Duhamel, son épouse

- et de Amélie Gabrielle Boudet, demeurant rue de la Planche n° 10, fille de Julien Louis Boudet

et de Julie Louise Saigne son épouse décédée.

Le membre de la Commission

Assinatura

Transcrição em Português:

Reconstituição dos Atos de Estado Civil

Depósito Central

Prefeitura do Departamento de La Seine

Ano mil oitocentos e trinta e dois, nove de fevereiro, em Paris.

Certidão de casamento de Hippolyte Léon Denizard Rivail, diretor de instituição de

ensino, morador na rua de Sèvres, n° 35, filho de Jean Baptiste Antoine Rivail e de Jeanne

Louise Duhamel, sua esposa; e de Amélie Gabrielle Boudet, moradora na rua de la Planche, n°

10, filha de Julien Louis Boudet e de Julie Louise Saigne, sua esposa falecida.

Membro da Comissão

Assinatura

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Certidão de Óbito:

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Transcrição em Francês:

343 Rivail

Agé de: soixante cinq ans

Du premier avril mil huit cent soixante neuf à dix heures et demie du matin

Acte de Décès de Léon Hippolyte Denisart Rivail, décédé hier à deux heures du soir, en

son domicile à Paris, rue Ste Anne n° 59 né à Lyon (Rhône), homme de lettres, fils de Rivail,

et de Duhamel son épouse, décédés. Marié à Amélie Gabrielle Boudet, agée de soixante treize

ans, son épouse, sans profession. Le dit décès dûment constaté par nous, François Ernest

Labbel, adjoint au Maire et officier de l'État Civil du Deuxième Arrondissement de Paris; Le

tout fait sur la déclaration de Armand Théodore Deslien, employé, agé de vingt cinq ans,

demeurant Boulevard du Prince Eugène n° 110 et de Alexandre Delorme, négociant, agé de

trente neuf ans, demeurant passage Choiseul n° 39 & 41, non parents, témoins qui ont signé

avec nous après lecture de l'acte.

Transcrição em Português:

343 Rivail

Idade: sessenta e cinco anos de idade.

Ao primeiro de abril de mil oitocentos e sessenta e nove, às dez horas e meia da manhã.

Certidão de óbito de Léon Hippolyte Denisart Rivail, falecido ontem às duas horas da

tarde em seu domicílio em Paris, rua S'e Anne no 59', nascido em Lyon (Rhône), escritor, filho

de Rivail, e de Duhamel sua esposa, falecidos. Casado com Amélie Gabrielle Boudet, de setenta

e três anos de idade, sua esposa, sem profissão. O dito óbito devidamente constatado por nós,

François Ernest Labbé, adjunto do prefeito e oficial do estado civil no Segundo Distrito de

Paris; totalmente feita conforme declaração de Armand Théodore Desliens, empregado, de

vinte e cinco anos de idade, morador no Boulevard du Prince Eugène no 110 e de Alexandre

Delanne, negociante, de trinta e nove anos de idade, morador na passagem Choiseul no 39 &

41, não parentes, testemunhas que assinaram conosco após leitura da certidão.

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Foto atribuída a Kardec.

Não há referências a respeito de sua idade na ocasião da fotografia.

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ANEXOS B

Wantuil e Thiesen (1984a, p. 182 a 187) destacam a contribuição de Rivail à educação

relacionando parte das obras publicadas por ele, e ressaltam que certamente há outras obras que

não foram por eles identificadas:

i. Curso Prático e Teórico de Aritmética; (Cours pratique et théorique

d'arithmétique) - 1824

ii. Curso Completo Teórico e Prático de Aritmética; (Cours complet théorique et

pratique d'arithmétique) - 1845

iii. Escola de Primeiro Grau; (École de premier degré) - 1825

iv. Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública; (Plan proposé pour

l'amélioration de l'education publique) - 1828

v. Os Três Primeiros Livros de Telêmaco108; (Les trois premier livres de

Télémaque) - 1830

vi. Gramática Francesa Clássica em um novo plano; (Grammaire française

classique sur un nouveau plan) - 1831

vii. Memória sobre a Instrução Pública; (Mémoire sur l'instruction publique) - 1831

viii. Qual o Sistema de Estudos mais em Harmonia com as Necessidades da Época?

(Quel est le système d'études le plus en harmonie avec le besoins de l'époque) -

1831 - Premiada pela Academia de Arrás

ix. Discurso Pronunciado por Ocasião da Distribuição dos Prêmios de 14 de agosto

de 1834; (Discours prononcé à la distribuition des prix du 14 août 1834) - 1834

x. Programa dos Estudos segundo o Plano de Instrução de H.L.D. Rivail;

(Programme des études selon le plan d'instrution de H.L.D. Rivail) - 1838

xi. Manual dos Exames para os Certificados de Capacidade; (Manuel des examens

pour le brevets de capacité) - 1846

xii. Soluções dos Exercícios e Problemas do Tratado Completo de Aritmética;

(Solution des exercices et problèmes du "Traité complet d'arithmétique" de

H.L.D. Rivail) - 1847

xiii. Projeto de Reforma referente aos Exames e aos Educandários para Mocinhas;

(Projet de réforme concernant les examens et le maisons d'éducation des jeunes

personnes) - 1847

108 Em alemão, com tradução literal dos dois primeiros e o texto francês e alemão do terceiro, com notas acerca

das raízes das palavras, para uso nas casas de educação.

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xiv. Catecismo Gramatical da Língua Francesa; (Catéchisme grammatical de la

langue française) - 1848

xv. Gramática Normal dos Exames; (Grammaire normale des examens) - 1849

xvi. Ditados Normais dos Exames; (Dictées normale des examens) - 1849

xvii. Ditados da Primeira e da Segunda Idade; (Dictées du premier et du second âge)

- 1850

xviii. Ditados da Primeira e da Segunda Idade, volume dois; (Dictées du premier et du

second âge) - 1850

xix. Curso de Cálculo Mental; (Cours de calcul de tête) - Ano não identificado pelos

biógrafos, mas afirmam que pode ter sido publicada antes de 1845

xx. Programa dos Cursos Usuais de Física, Química, Astronomia e Fisiologia;

(Progremme des cours usuels de physique, de chimie, d'astronomie) - Segundo

os biógrafos, foram encontradas referências109 à obra, mas não foram

encontrados exemplares.

xxi. Programa dos Estudos de Instrução Primária; (Programme des études

d'instruction primaire) - Segundo os biógrafos, foram encontradas referências110

à obra, mas não foram encontrados exemplares.

xxii. Tratado de Aritmética (Traité d'arithmétique) - 1847

É interessante notar que Rivail assinava suas obras, mas destacava o fato de ser discípulo

de Pestalozzi e de seguir o seu método, conforme demonstra a contracapa de um de seus livros

na imagem abaixo:

109 Citado por J.-M. Queránd no tomo VI de La Littérature Française Contemporaine e no tomo XII de La France

Littéraire. 110 Citado por J.-M. Queránd no tomo VI de La Littérature Française Contemporaine e no tomo XII de La France

Littéraire.

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ANEXOS C

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL,

considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as

únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em

declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta

declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem

cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder legislativo e do Poder

executivo, a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações

dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à

conservação da Constituição e à felicidade geral.

Por consequência, a ASSEMBLEIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e

sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:

Artigo 1º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais

só podem fundar-se na utilidade comum.

Artigo 2º - O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a

resistência à opressão.

Artigo 3º - O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma

corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não emane expressamente.

Artigo 4º - A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem:

assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que

asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas

podem ser determinados pela Lei.

Artigo 5º - A Lei não proíbe senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que

não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.

Artigo 6º - A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de

concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser

a mesma para todos, quer se destine a proteger quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a

seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,

segundo a sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus

talentos.

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Artigo 7º - Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados

pela Lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam

ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser castigados; mas qualquer cidadão convocado

ou detido em virtude da Lei deve obedecer imediatamente, senão torna-se culpado de

resistência.

Artigo 8º - A Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e

ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito

e legalmente aplicada.

Artigo 9º - Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar

indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário a guarda da sua pessoa, deverá ser

severamente reprimido pela Lei.

Artigo 10º - Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões

religiosas, contando que a manifestação delas não perturbe a ordem pública estabelecida pela

Lei.

Artigo 11º - A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais

preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir

livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.

Artigo 12º - A garantia dos direitos do Homem e do Cidadão carece de uma força

pública; esta força é, pois, instituída para vantagem de todos, e não para utilidade particular

daqueles a quem é confiada.

Artigo 13º - Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração, é

indispensável uma contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos de acordo com

as suas possibilidades.

Artigo 14º - Todos os cidadãos têm o direito de verificar, por si ou pelos seus

representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o

seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.

Artigo 15º - A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua

administração.

Artigo 16º - Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos,

nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.

Artigo 17º - Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode

ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir

evidentemente e sob condição de justa e prévia indemnização.

CONSEIL CONSTITUTIONNEL DA FRANÇA. Déclaration des Droits de l'Homme

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140

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