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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião – Religião e Cultura
Brasil Fernandes de Barros
RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita
segundo a concepção de Allan Kardec
Belo Horizonte
2018
Brasil Fernandes de Barros
RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita
segundo a concepção de Allan Kardec
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Frederico Barboza de
Souza
Área de concentração: Religião e Cultura,
Belo Horizonte
2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Barros, Brasil Fernandes de
B277r Religião e espiritismo: o conceito de religião da doutrina espírita segundo a
concepção de Allan Kardec / Brasil Fernandes de Barros. Belo Horizonte,
2018.
140 f.: il.
Orientador: Carlos Frederico Barboza de Souza
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
1. Kardec, Allan, 1803-1869 - Crítica e interpretação. 2. Espiritismo -
Aspectos religiosos. 3. Conceitos - Religião. 4. Religiosidade. 5. Iluminismo. I.
Souza, Carlos Frederico Barboza de. II. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.
CDU: 133.7
Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999
Brasil Fernandes de Barros
RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina Espírita
segundo a concepção de Allan Kardec
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.
Área de concentração: Religião e Cultura,
____________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Frederico Barboza de Souza – PUC Minas (Orientador)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Coppe Caldeira – PUC Minas (Banca Examinadora)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Silvio Seno Chibeni - UNICAMP (Banca Examinadora)
Belo Horizonte, 31 de outubro de 2018
À Vanessa pelo apoio
incondicional e compreensão,
a minha mãe pela vida
e aos meus filhos e família
pela inspiração de viver.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Frederico
que me ajudou a manter a esperança quando
achei que não tinha saída.
Ao João Gabriel que me ajudou encontrá-la
e a todos que de alguma forma me ajudaram
nessa empreitada.
LISTA DE ABREVIATURAS
Lista de Abreviaturas para referência das Obras de Allan Kardec.
LE = O Livro dos Espíritos – As referências serão compostas de número das questões e
quando for Introdução ou Conclusão com número do tópico referenciado.
LM = O Livro dos Médiuns – As referências serão compostas de número do capítulo e
item.
ESE= O Evangelho Segundo o Espiritismo - As referências serão compostas de número
do capítulo e item.
AG= A Gênese - As referências serão compostas de número do capítulo e item.
OP= Obras Póstumas - As referências serão indicadas pelo nome do capítulo já que não
há número de capítulos.
OE = O que o Espiritismo - As referências serão compostas de número do capítulo e
item.
RE = Revista Espírita – As referências da Revista Espírita serão seguidas de mês e ano
que foram publicadas. As páginas se referem à versão em português traduzida por Evandro
Noleto Bezerra de 2007 conforme encontram-se nas referências.
RESUMO
Mais de 150 anos depois da codificação da doutrina espírita, ainda são frequentes os debates
entre os seus fiéis a respeito do aspecto religioso do Espiritismo. A doutrina, codificada por
Allan Kardec no século XIX, surgiu em meio a uma profusão de novas teorias e concepções
científicas e filosóficas, tendo sido fortemente marcada pelo legado iluminista e pelos
pensadores de sua época. O objetivo deste trabalho é estabelecer um diálogo entre o conceito
de Kardec sobre religião e alguns autores, tais como Lactâncio, Cícero, Benson Saler, Greschat
e Clifford Geertz, dentre outros, de forma a identificar, a partir de uma aparente contradição
entre as afirmações de Kardec, qual era seu entendimento a respeito do aspecto religioso do
Espiritismo no período de desenvolvimento de seu trabalho, de 1857 a 1869. Para isso, num
primeiro momento, discutiremos as origens do termo religião e seus conceitos, em seguida
procuraremos entender, por meio de uma pesquisa bibliográfica, o porquê de Kardec ter
afirmado que o Espiritismo não era uma religião. Além disso, investigaremos a sua perspectiva
secular, suas relações com o Iluminismo e as Igrejas Católicas e Protestantes naquela época.
Concluiremos, por fim, como Kardec posicionava o Espiritismo em termos de Religião e o
porquê que entendemos que essa doutrina pode ser tratada como religião.
Palavras-Chave: Allan Kardec, Espiritismo, Conceito de Religião, Iluminismo.
ABSTRACT
More than 150 years after the codification of the Spiritist doctrine, the debates among its faithful
about the religious aspect of Spiritism are still frequent. The doctrine, codified by Allan Kardec
in the 19th century, came amid a profusion of new scientific and philosophical theories and
conceptions, having been strongly marked by the enlightened legacy and thinkers of his day.
The purpose of this work is to establish a dialogue between the concept of Kardec about religion
and some authors, such as Lactantium, Cicero, Benson Saler, Greschat and Clifford Geertz,
among others in order to identify from an apparent contradiction between the statements of
Kardec what his understanding of the religious aspect of Spiritism in the period of his work
was, from 1857 to 1869. For this, in a first moment, we will discuss the origins of the term
religion and its concept, then we will try to understand, through a bibliographical research, the
reason why Kardec affirmed that Spiritism was not a religion, In addition we will investigate
his secular perspective, his relations with the Enlightenment, and the Catholic and Protestant
Churches at that time. We will conclude, finally, how Kardec posited Spiritism in terms of
Religion and why we understand that this doctrine can be treated with religion.
Keywords: Allan Kardec, Spiritism, Concept of Religion, Enlightenment.
RÉSUMÉ
Plus de 150 ans après la codification de la doctrine spirite, les débats entre fidèles sur l'aspect
religieux du spiritisme sont encore fréquents. La doctrine, codifiée par Allan Kardec au
XIXème siècle, est venu au milieu d'une profusion de nouvelles théories et conceptions
scientifiques et philosophiques, et a été fortement influencée par l'héritage des Lumières et les
penseurs de son temps. L'objectif de ce travail est d'établir un dialogue entre le concept de
Kardec sur la religion et quelques écrivains, tels que Lactance, Cicéron, Benson Saler, Greschat
et Clifford Geertz, entre autres, afin d'identifier d'une apparente contradiction entre les
déclarations de Kardec quel était votre compréhension de la religion d'aspect spiritisme dans le
développement de leur période de travail, de 1857 à 1869. pour ce faire, dans un premier temps,
nous discuterons des origines du terme religion et ses concepts nous cherchons à comprendre
par une recherche bibliographique, pourquoi Kardec a prétendu que le spiritisme n'était pas une
religion. En outre, nous examinerons sa perspective laïque, ses relations avec les Lumières et
les églises catholique et protestante à cette époque. Nous conclurons enfin comment Kardec a
posé le spiritisme en termes de religion et pourquoi nous comprenons que cette doctrine peut
être traitée avec la religion.
Mots-clés: Allan Kardec, Spiritisme, Concept de religion, Lumières.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13
1. O CODIFICADOR DO ESPIRITISMO: Um cidadão chamado Rivail no século
XIX. ................................................................................................................................ 20
1.1. A França do século XIX ........................................................................................ 20 1.1.1. A Revolução Francesa ........................................................................................ 20 1.1.2. A França pós-revolucionária ............................................................................... 23
1.2. A formação científica e religiosa do codificador do Espiritismo .......................... 25 1.2.1. O cidadão francês Hippolyte Léon Denizard Rivail ........................................... 25 1.2.2. A formação escolar e acadêmica de Rivail ......................................................... 28 1.2.3. A formação religiosa de Rivail e a influência de Pestalozzi .............................. 32
1.3. As influências do pensamento iluminista francês na filosofia, na ciência e na
religião no século XIX .................................................................................................... 36 1.3.1. A Razão como fonte de progresso da humanidade: O pensamento positivista e o
cientificismo ................................................................................................................... 36
1.3.2. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Um brado pela liberdade de pensamento 40 1.3.3. Princípios de Igualdade e Fraternidade: A influência de Rousseau ................... 44
1.4. Outras influências do século XIX ......................................................................... 46 1.4.1. A física do século XIX ....................................................................................... 46
1.4.2. As ciências naturais do século XIX na obra kardeciana ..................................... 50
2. FÉ INABALÁVEL E RAZÃO: O significado de religião para Allan Kardec ... 53
2.1. Identificando um possível conceito de religião ..................................................... 53
2.1.1. RELEGERE ou RELIGARE? ............................................................................ 55 2.1.2. Semelhanças familiares e categorias de religião................................................. 57 2.2. Kardec e a Religião ............................................................................................... 62
2.3. A perspectiva secularizada de Kardec sobre o Espiritismo .................................. 64 2.4. Perspectiva Religiosa versus Perspectiva Científica ............................................. 68
2.5. O Conceito de religião para Kardec ...................................................................... 71 2.6. A perspectiva do Sagrado para Kardec ................................................................. 73
2.6.1. O Sagrado e o Profano para Eliade ..................................................................... 74 2.6.2. O Sagrado e o Profano para Rudolf Otto ............................................................ 76 2.6.3. O Sagrado e o Profano para Kardec ................................................................... 79
3. O ESPIRITISMO COMO ALTERNATIVA RELIGIOSA: Entre Espiritualistas,
Ocultistas e Cristãos ..................................................................................................... 89
3.1. Uma nova religião em Paris .................................................................................. 89 3.2. Auto de fé de Barcelona ........................................................................................ 94 3.3. Outros eventos com a Igreja Católica ................................................................... 95
3.4. A ideia de uma reforma religiosa .......................................................................... 96 3.5. Outras correntes de Pensamento Espiritualistas .................................................... 99 3.6. Espíritas, Espiritualistas e Ocultistas e a questão das religiões .......................... 103
3.7. Os inter-relacionamentos do Espiritismo com o Iluminismo .............................. 109
CONCLUSÃO ............................................................................................................. 113
Referências ................................................................................................................... 122 ANEXOS A .................................................................................................................. 128
ANEXOS B .................................................................................................................. 135 ANEXOS C .................................................................................................................. 138
13
INTRODUÇÃO
Logo nos anos iniciais de seu desenvolvimento, a Federação Espírita Brasileira, fundada
em 1884, vivenciou enormes dificuldades no plano ideológico com uma forte tendência de cisão
no movimento entre os chamados laicos ou científicos, liderados pelo professor Afonso Angeli
Torteroli, e os religiosos ou místicos, liderados pelo Dr. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti
(QUINTELLA, 1973). Em 1889, Dr. Bezerra de Menezes, como era comumente chamado, foi
eleito presidente da Federação Espírita Brasileira, considerado o único capaz de promover a
unificação do movimento espírita, apesar da dissidência de diversos membros. Mais de 150
anos depois da codificação do Espiritismo, ainda são frequentes os debates entre os espíritas a
respeito do aspecto religioso do Espiritismo, como na matéria de José Reis Chaves, colunista
do jornal O Tempo, de 04 de fevereiro de 2013, intitulada Fiéis ao espiritismo científico, mas
não ao seu lado evangélico, na qual se discute a divisão dos espíritas quanto ao seu aspecto
religioso. Além disso, não é difícil encontrar dezenas de sites, blogs e grupos de discussão na
internet nos quais se discute o assunto, assim como obras e artigos dos autores Gabriel Dellane,
Antônio Pinheiro Guedes, Silvio Seno Chibeni, Augusto César Dias de Araujo, dentre outros.
O tema deste trabalho, RELIGIÃO E ESPIRITISMO: O conceito de religião da Doutrina
Espírita segundo a concepção de Allan Kardec, surge da necessidade de discutir uma aparente
contradição de Allan Kardec (1857–1869) sobre o aspecto religioso da Doutrina Espírita, e que
essa contradição seria influência dos pensadores de sua época, particularmente os iluministas.
A contradição teria surgido do fato de ele negar que como resultado de sua obra surgisse uma
religião e sim uma doutrina filosófica de efeitos religiosos, mas ter feito em alguns momentos
declarações que poderiam apontar para uma mudança de posicionamento sobre esse aspecto do
Espiritismo.
A hipótese que vamos discutir é de que Kardec foi influenciado pelos pensadores de sua
época, particularmente os positivistas e iluministas, mas que não havia contradição em seu
raciocínio, pois levava em consideração para sua conclusão os conceitos de tradição religiosa
ditados pelo cristianismo dominante, fazendo do conceito de religião no Espiritismo um
contraponto do entendimento usual de religião.
As influências a que nos referimos se situam em duas importantes vertentes. A primeira
vertente foi o seu próprio ambiente sociocultural, onde esteve extremamente presente a cultura
religiosa cristã, católica enquanto esteve na França em seu ambiente familiar e protestante em
seu círculo de convivência acadêmica na Suíça. Essas influências podem ter afetado a trajetória
do pensamento de Kardec, que aparentemente passou por uma transformação de ideias em torno
14
do conceito e do papel da religião no desenvolvimento de seus trabalhos. A segunda vertente
decorre de seu convívio com os diversos pensadores da época, já que enquanto adulto tornou-
se um respeitado pedagogo com diversas obras publicadas e que participava de várias
sociedades de intelectuais de sua época (WANTUIL, 1984a, p. 172). Entre tais influências,
destacamos Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que teve grande ascendência sobre
Kardec na condição de professor e mestre, Franz Anton Mesmer (1734-1815), famoso
magnetizador, ao qual Kardec se dedicou por muito tempo em termos de pesquisa e de outros
que iremos descrever no decorrer de nosso trabalho, além da grande influência iluminista que
permeava o pensamento de muitos dos intelectuais da época.
O pensamento de Kardec, como já dissemos, gerou diversas discussões a respeito do
conceito de religião e de seu papel que são recorrentes até os dias de hoje. Um dos pontos
centrais dessa discussão é a sua afirmação que diz que o Espiritismo não é religião: “O
Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, [...] Mas não é uma
religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos,
nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.” (KARDEC, OP:
Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo). Apesar dessa afirmação, para Kardec, a
doutrina espírita teria um papel diferenciado e serviria de complementação de conteúdo para
todas as religiões, não pertencendo, pois, particularmente, a nenhuma delas e, ao contrário,
fornecendo subsídios para a compreensão de cada um, ao seu modo, à sua crença particular. Ele
chega, inclusive, a recomendar que ninguém deixe a sua religião (KARDEC, RE: Fev/1862, p.
62 e 63). Portanto, este trabalho visa estabelecer um diálogo entre o conceito de Kardec sobre
religião e alguns autores, tais como Lactâncio, Cícero, Benson Saler, Greschat e Clifford
Geertz, dentre outros, investigando o pensamento particular de Kardec a respeito da religião no
período de desenvolvimento de seu trabalho, de 1857 a 1869 e o que teria gerado essa aparente
contradição e sua eventual dependência da propaganda materialista e positivista do século XIX
(ELIADE, 1989, p. 58).
Quando iniciamos esta pesquisa, para atingir nossos objetivos, tínhamos um desejo
particular de identificar um conceito de religião que pudesse harmonizar-se de forma clara com
o Espiritismo e assim oferecer um possível alento à discussão que, por tanto tempo, tem se
desenvolvido no meio espírita com a relação ao seu aspecto religioso. Porém, essa busca
confrontou-se, logo em seus primeiros passos, com a afirmação de Benson Saler:
Como indica a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem
definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. (Alguns
acadêmicos, de fato, propuseram rótulos como "quase-religiões" ou "semi-religiões"
para indicar que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma
15
forma, mas não o suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de
"religião".) (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa)1
As afirmações de Saler nos levaram a constatações com significados antagônicos;
primeiro que não há uma definição clara, definida e universalmente aceita sobre o conceito de
religião; segundo que há margens de discussão importantes para o assunto que vislumbram essa
necessidade pessoal de compreender melhor o conceito de religião.
Com vistas a colaborar com essa discussão, temos a intenção de oferecer ao meio
espírita e aos pesquisadores em geral um referencial teórico, metodologicamente distanciado
das paixões que envolvem aqueles que se dedicam à discussão do aspecto religioso do
Espiritismo, de forma a fornecer reflexões a respeito do ambiente histórico em que foi cunhada
essa doutrina, para tentar compreender as afirmações de Kardec.
No primeiro capítulo de nosso trabalho, vamos discorrer sobre o cidadão Hippolyte-
Léon-Denizard Rivail, que adotava o nome Allan Kardec, pseudônimo criado quando publicou
O Livro dos Espíritos, em 18 de abril de 1857, a fim de evitar que, ao lerem sua nova proposta,
confundissem-na com seus trabalhos publicados no mundo científico e como pedagogo
renomado (WANTUIL, 1984a, p. 141-189), como é transcrito em sua biografia grafada por
Henri Sausse:
No instante de o dar à publicação, o autor bastante embaraçado em resolver como o
deveria assinar, se com o seu nome - Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, ou com o
pseudônimo. Por ser muito conhecido o seu nome no mundo científico, devido aos
seus trabalhos anteriores, e podendo dar origem a uma confusão, talvez até prejudicar
o êxito do empreendimento, ele adotou a sugestão de o assinar com o nome de Allan
Kardec que, conforme o seu guia lhe revelara, ele trouxera nos tempos dos Druidas.
(SAUSSE, 2014, p. 29)
Do ponto de vista deste trabalho, é reveladora a necessidade de desvinculação do nome
de Kardec, conhecido no meio científico pela publicação de trabalhos anteriores à obra que ele
agora divulgava. Ele acreditava que essa obra trazia um potencial extremamente importante e
revolucionário que deveria ser aceito não pelo seu nome no mundo científico e pensador, mas
sim por seu conteúdo consistente.
Discípulo de Pestalozzi, Kardec teve sua formação fortemente enraizada nos
pensamentos do século XVIII, palco da consolidação de um racionalismo intenso que se projeta
para o século XIX, influenciado pelos pensadores de seu tempo. Esses pensamentos abriram as
comportas a uma torrente de paixão, sentimento e religiosidade, lançando bases importantes,
1 As the scholarly literature on religion indicates, there are no sure, sharp, and universally accepted criteria for
marking off religion from not-religion. (Some scholars, indeed, have proposed such labels as "quasi-religions"
or "semi-religions" to indicate that various complexes of phenomena resemble religions in some ways, but not
sufficiently in other respects to justify the unqualified label "religion.").
16
para os movimentos sociais, filosóficos, antropológicos e religiosos, que influenciariam de
alguma forma o pensamento religioso, com consequências até os dias de hoje, sobretudo no
mundo ocidental. O século XIX, foi tão fértil em ideias, movimentos e talentos, que pelo menos
alguns volumes seriam necessários para situar o Espiritismo nesse cenário, abarcando os
aspectos estéticos, políticos, filosóficos, científicos, dentre outros (INCONTRI, 2015)
Kardec escreveu sua proposta espiritista2 em uma época em que se despertava para um
sentimento de ansiedade pela procura das origens da vida e da mente, na qual pululavam
inúmeros estudiosos como Marx, Durkheim, Weber e Auguste Comte que tinham o desejo de
romper com o tempo e com o espaço para atingir os limites e os primórdios do universo visível.
Havia também, como veremos no capítulo três, o desejo de encontrar uma razão
espiritual para a questão de igualdade entre os seres humanos e inclusive no que tange às
questões de gênero. Herculano Pires (PIRES, 1975, p. 18) afirma sobre Kardec que: “Formado
na tradição cultural do Século XVIII, herdeiro de Francis Bacon, René Descartes e Rousseau,
compreendeu claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método”. O
método a que se referia corresponde ao da experimentação para investigação do fenômeno das
mesas girantes,
Kardec não só reconheceu o papel fundamental do método positivo no avanço e na
consolidação da ciência moderna, como, também, desenvolveu procedimentos para empregar
tal método em seus estudos dos fenômenos espíritas.
Foi nesse cenário que Kardec publicou, O Livro dos Espíritos. Terá sido o sucesso desta
edição o desejo dos leitores de responderem às questões apontadas por Mircea Eliade (1989, p.
59) “o fascínio pelos ‘mistérios da Natureza’, o impulso de penetrar e decifrar as estruturas
internas da Matéria – todos esses anseios e impulsos denotam uma espécie de nostalgia pelo
primordial, pela matriz original universal”? Por outro lado, teria tido sucesso essa publicação
se houvesse afirmado que o Espiritismo nascente era uma nova religião? Neste momento, o
trabalho de Allan Kardec estava apenas começando, visto que ele elaborou conteúdos entre
1857 e 1869, em uma série de obras, além das publicações da Revista Espírita, pertencente à
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas de Paris, fundada em 1° de abril de 1858. Toda a sua
obra como Allan Kardec ficou conhecida simplesmente por codificação espírita, além disso
também houve a publicação, por parte de seus seguidores, em 1890, do livro Obras Póstumas3.
2 Espiritista é sinônimo de espírita, ou seja, aquele que é um adepto do Espiritismo. 3 A editora da FEB (Federação Espírita Brasileira) traz antes de sua introdução do livro Obras Póstumas uma nota
de esclarecimento que diz: “O livro Obras Póstumas foi organizado por Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901) a
partir de manuscritos guardados por Allan Kardec no interior de sua residência. Entre estes escritos havia material
fragmentário, ensaios, verdadeiros esboços, aguardando, possivelmente, mais ampla revisão, e que não tinham
17
A preocupação de Kardec em não transformar sua obra em religião é amplamente
discutida, e diversas vezes refutada por ele, particularmente quando responde a uma publicação
do Abade Françoise Chesnel, que, ao escrever ao periódico L’Univers, criticou a doutrina
espírita no artigo Une religion nouvelle à Paris4, em 13 de abril de 1859. Em sua resposta, diz:
“O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus
ministros.” (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206).
Apesar de suas reiteradas defesas a respeito do aspecto científico da doutrina espírita,
Kardec ainda a defendia como uma doutrina filosófica, mas, anos depois, na Revista Espírita
de dezembro de 1868, faz a seguinte afirmação:
Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida,
senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos
vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e
da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases
mais sólidas: as próprias leis da Natureza. (KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491, grifo
nosso)
A afirmação, em 1868, de que “o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos
por isto”, depois de ter dito o contrário em 1859 e diversas outras vezes, como demonstraremos
no decorrer de nosso trabalho, tem sido tomada para justificar tal aparente contradição ou falta
de clareza, fazendo com que diversos autores, no decorrer do tempo, venham discutindo esse
aspecto religioso do Espiritismo enquanto que outros, por outro lado, discutam a posição de
Kardec no sentido contrário.
Acreditamos, dessa forma, que esse diálogo com os pensamentos de Kardec acerca do
conceito de religião pode contribuir com o meio acadêmico, trazendo informações importantes
a respeito do Espiritismo em si e das diferentes correntes de pensamento dentro do seu universo,
buscando analisar as correntes históricas e socioculturais que fundamentaram o pensamento dos
espiritistas na atualidade. A contribuição ainda vai além, na medida em que oferece ao meio
acadêmico uma oportunidade concreta de dialogar com os pensamentos de Kardec que, de certa
maneira, não são tradicionais, já que trata o divino de forma diferenciada das demais religiões
quando trata o que é sagrado. Ao dar voz, portanto, a Kardec, entendemos que o leitor poderá
compreender um pouco mais do que essa doutrina tem a dizer.
Procuramos ainda fomentar o entendimento de como o pensamento basilar do
Espiritismo, como as questões presentes na sociedade, fundamentalmente a fé religiosa,
sido publicados [...], reservado ainda sob análise e observação, material que [...] julgou conveniente não publicar,
seguramente, entre outras razões, por não estar convencido de que retratasse uma verdade.” (KARDEC, 2016,
p. 12). 4 Esse assunto será tratado em detalhes no capítulo três.
18
articulam-se com o pensamento kardeciano5 nas questões de: crença, ritos e símbolos e sua
incidência na vida dos indivíduos e em seus processos sociais.
Para poder desenvolver, portanto, essa linha de raciocínio, no primeiro capítulo,
procuramos descrever a França do século XIX e os desdobramentos da Revolução Francesa, já
que foi pouco depois desse importante momento histórico que nasceu Hippolyte Léon Denizard
Rivail, nome civil de Allan Kardec, que, por sua vez, vivenciou todo o ambiente político e
social, inclusive sendo ele e sua família obrigados a se mudar da França para a Suíça a fim de
fugir das convulsões, reflexos da Revolução. No primeiro capítulo, também desenvolveremos
a trajetória de vida desse cidadão francês, descrevendo as principais influências acadêmicas que
ele recebeu tanto no campo das Ciências Naturais como nas Ciências Humanas.
No capítulo dois, procuraremos entender os conceitos de religião por Cícero e
Lactâncio, que possuem relevante influência no Cristianismo, e estabeleceremos um diálogo
entre a visão de religião de Benson Saler, que se baseia nas semelhanças familiares de
Wittgenstein, e Clifford Geertz, que desenvolve as questões de simbologia e cultura nas
religiões. Depois, num segundo momento, ainda no capítulo dois, vamos discorrer como Kardec
dialoga com o conceito de crença no sagrado e sua relação com o profano, tomando por
referências Mircea Eliade e Rudolf Otto. De posse desses conceitos teóricos, pretendemos
aprofundar esse diálogo com cada um dos autores citados para compreender mitos, ritos e
símbolos na visão de Kardec.
Depois de ter discutido os conceitos de religião do ponto de vista de Kardec, numa visão
de dentro para fora, vamos discutir, no capítulo três, como o Espiritismo era visto no século
XIX pela Igreja Católica e por outros pensadores e como foi o papel de Kardec nesse processo.
Esse três capítulos, portanto têm por objetivo traçar a trajetória do pensamento de
Kardec para que possamos compreender como ele chegou às suas conclusões a respeito da
religião e como o Espiritismo se situava diante das outras religiões.
A metodologia deste trabalho foi basicamente de pesquisa bibliográfica junto à forntes
5 A utilização do termo “kardeciano” ou “kardeciana” é uma opção para evitar o uso dos termos “kardecista” ou
“kardecismo”, que, ao nosso ver, são equivocados, posto que, em termos de análise morfológica, na palavra
kardecismo, o sufixo –ismo, designa “movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos, religiosos, e
personativos através dos nomes próprios representativos ou locativos de origem” (LOPES, 2011, p. 3). No caso,
a palavra kardecismo se encaixa na condição religiosa e personativa, que se trataria da derivação do nome da
pessoa de Kardec, o que, em primeira análise, anunciaria que essa doutrina seria de Kardec, ou seja, doutrina de
Kardec. Por outro lado, ele próprio afirma que essa doutrina não é sua e sim legada pelos espíritos superiores,
como está escrito no subtítulo de sua obra básica O Livro dos Espíritos, que diz: “PRINCÍPIOS DA DOUTRINA
ESPÍRITA, sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais,
a vida presente, a vida futura e o porvir da Humanidade - segundo os ensinos dados por Espíritos superiores
com o concurso de diversos médiuns - recebidos e coordenados por Allan Kardec” Grifos nossos -
(KARDEC, 2008, p. 3) .
19
primárias e, para fundamentar a formação, as influências teológicas e as escolas científicas em
que Allan Kardec se inspirou, foram pesquisadas particularmente as obras de Zêus Wantuil e
Francisco Thiesen, para identificar de forma mais detalhada a formação acadêmica de Kardec,
destacando sua convivência em Yverdon, na Suíça, em instituto homônimo dirigido por
Pestalozzi. Foram também investigadas as influências de Jean Jacques Rousseau, Franz Anton
Mesmer, além do ambiente da reforma protestante, que se fazia fortemente presente em
Yverdon, e que tinha forte relevância no processo educacional nesse instituto (WANTUIL,
1984, p. 71).
Será estudada também, a evolução do pensamento de Kardec através da Revista Espírita
editada pela Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, entre os anos de 1858 a 1869,
comparando a evolução de seu pensamento através desses anos. Buscar-se-ão também os
diversos escritos dos detratores do Espiritismo na Europa, citados por Kardec na Revista
Espírita, além de suas réplicas, bem como os seus apoiadores, como León Denis, Camille
Flammarion que deixaram obras significativas no contexto espiritista.
E finalmente será demonstrado no capítulo três como o Espiritismo foi recebido no
século XIX pela comunidade religiosa e científica de sua época, particularmente a Igreja
Católica, o Mesmerismo, o Espiritualismo Americano6 e o Ocultismo, analisando como foi
encarado pelos iluministas e a fim de notar como se tornou uma alternativa religiosa para muitas
correntes de pensamento de sua época.
6 A literatura a respeito do assunto cita esse fenômeno como Espiritualismo Americano, mas o correto seria Norte-
americano pois se concentra na América do Norte.
20
1. O CODIFICADOR DO ESPIRITISMO: Um cidadão chamado Rivail no século XIX.
Logo no início do século XIX, em meio a uma profusão de ideias e pensamentos
revolucionários resultados do século das luzes7, mais conhecido como Iluminismo, é que ocorre
o nascimento do codificador8 do Espiritismo. Pretendemos neste capítulo demonstrar um pouco
da influência do Iluminismo francês na vida e obra de Hippolyte Léon Denizard Rivail, nome
civil de Allan Kardec, e por consequência compreender o ambiente em que foi cunhado o
Espiritismo.
1.1. A França do século XIX
Geralmente quando se fala de Iluminismo nos lembramos da França, embora esse
movimento não tenha sido um fenômeno exclusivo francês, ele esteve presente em diversas
partes do mundo, com destaque para a Alemanha, Escócia, nas colônias britânicas que
formariam no futuro os Estados Unidos9, Inglaterra e Portugal. Para o objeto de nosso estudo,
importa-nos particularmente o Iluminismo Francês, embora venhamos mais à frente, no
capítulo três, também falar um pouco das influências presentes nos Estados Unidos.
1.1.1. A Revolução Francesa
É na França do século XIX que surgiu o Espiritismo, e entendemos que por causa dos
ventos da liberdade trazidos pelo que convencionou-se tratar por início da idade contemporânea
surgiu esta filosofia espiritualista, tratada à época por pensadores, parte da população francesa
e inclusive pela Igreja Católica como uma religião. A Revolução Francesa (1789/1799) e todos
os seus eventos foram importantes na formação do ambiente em que surgiu essa doutrina, já
que esse influenciou de forma significativa o pensamento de seu do codificador. Não
pretendemos discorrer neste trabalho sobre todos fatos da Revolução Francesa, mas, sim, sobre
7 Termo usado para descrever as tendências do pensamento e da literatura na Europa e em toda a América durante
o século XVIII, antecedendo a Revolução Francesa. Foi empregado pelos próprios escritores do período,
convencidos de que emergiam de séculos de obscurantismo e ignorância para uma nova era, iluminada pela
razão, a ciência e o respeito à humanidade. 8 Em geral Allan Kardec é tratado como codificador da Doutrina Espírita, pois recusava para si o papel de fundador
ou criador do espiritismo por afirmar que essa doutrina era dos Espíritos, embora seja inegável que sua
estruturação formal foi tenha sido feita por ele. Em nosso trabalho adotamos essa designação de codificador,
embora esse título seja merecedor de problematização que será feita em trabalhos futuros. 9 O movimento Iluminista começou nos Estados Unidos um pouco antes de sua independência em 04 de julho de
1776.
21
alguns fatos que se tornaram mais significativos na formação de Allan Kardec.
O início da idade contemporânea foi marcado pelo enfraquecimento do absolutismo
monárquico de direito divino e dos privilégios do nascimento dos nobres, que acentuavam a
divisão da sociedade. Com essa revolução, foram reforçados os fundamentos da sociedade
burguesa capitalista, que se estenderiam a todo o mundo ocidental, influenciando toda Europa
em campanhas similares. A deflagração da Revolução Francesa, entre outras razões, foi baseada
em princípios filosóficos, inspirada por clamores de liberdade, igualdade e fraternidade, unindo
em torno de seu ideal segmentos improváveis da sociedade, desde o campesinato, passando
pelos sans-culottes10 até a alta burguesia, embora suas percepções a respeito do movimento
fossem diferentes (BRETAS, 2012, p. 57). Havia um envolvimento geral entre os personagens
da revolução, um entusiasmo coletivo no engajamento pela causa, o que levava à difusão de um
sentimento de orgulho em relação à participação desse momento memorável, no qual até mesmo
artistas e cronistas demonstravam-se “conscientes de viver um período excepcional, [e]
desenhistas, aquarelistas e gravadores começaram então propor uma crônica precisa dos
acontecimentos.” (VOVELLE, 1997, p. 162).
Apesar de existir uma motivação teoricamente de ordem filosófica, o principal motivo
da revolução surgiria de uma questão histórica mais profunda. No final do século XVIII a
estratificação social da França ainda possuía uma elite aristocrática que conservava os seus
traços originais, baseados no poder latifundiário. Era na posse da terra que se estabelecia o
poder e a riqueza, pois nela que a sociedade hauria o seu meio de trabalhar e viver. No século
anterior, esses aristocratas haviam sido despojados gradativamente do seu poder político pelo
rei, sendo submetidos ao clero e à nobreza, mas ainda continuaram a ter o seu lugar privilegiado
na hierarquia social.
[...] o renascimento do comércio e da indústria criara, nesse interim, uma nova forma
de riqueza, a riqueza mobiliária, e uma nova classe, a burguesia, que desde o século
XVI assumiria um lugar nos Estados Gerais sob o nome de Terceiro Estado, e cujos
progressos tinham sido poderosamente beneficiados pelas descobertas marítimas dos
séculos XV e XVI e pela exploração dos novos mundos, como pela preciosa
cooperação que prestava ao Estado monárquico, fornecendo-lhe dinheiro e
administradores competentes. No século XVIII, o comércio, a indústria e as finanças
assumiam um lugar cada vez mais importante na economia nacional; a burguesia era
quem socorria o Tesouro real nos momentos prementes [...]. O papel social da nobreza
decrescia continuamente e, na medida em que o ideal proposto pelo clero ao povo
perdia seu prestígio, sua autoridade se enfraquecia. A estrutura legal do país ainda
lhes reservava o primeiro lugar, mas na verdade o poder econômico, a capacidade, as
perspectivas de futuro passavam às mãos da burguesia. (LEFEBVRE, 1989, p. 31)
10 Sans-culotte, foi a denominação dada pelos aristocratas aos artesãos, trabalhadores e até pequenos proprietários
participantes da Revolução Francesa, principalmente em Paris.
22
A Revolução Francesa estabeleceu, portanto, um rearranjo da estrutura social,
determinando uma harmonia entre o que existia de fato e a estrutura legal estabelecida. Esse
ajuste político aconteceu também em outros países, mas, o que tornou a Revolução Francesa
única foi a forma violenta em que estes arranjos se deram. As mudanças que possibilitaram a
liberdade do Terceiro Estado aconteceram em decorrência do desmoronamento do poder central
da monarquia, uma vez que, nos outros países, conservou-se o controle desse poder. Não teria
havido a Revolução Francesa da forma que ocorreu se o rei não tivesse sido deposto. A
revolução foi, portanto, causada pela crise governamental que Luís XVI não conseguiu resolver.
Apesar disso, o Terceiro Estado não foi o beneficiário imediato, pois, apesar de se dizer que o
povo tinha se rebelado, este não foi o seu primeiro motor. Na verdade, houve uma falta de
interlocução da burguesia, dos camponeses e dos operários com o rei, visto que não tinham
como interagir com ele. Esta interlocução aconteceu através do clero, via sua Assembleia, e da
nobreza, nos Parlamentos e nos Estados provinciais, os quais coagiram o rei. “Os patrícios”,
escreveu Chateaubriand, “começaram a revolução; os plebeus a terminaram”. (LEFEBVRE,
1989, p. 32).
Diante de tais circunstâncias, houve primeiramente um triunfo da Aristocracia, obtendo
sua oportunidade de voltar ao poder, que achava ser seu por direito, já que séculos antes haviam
sido despojados pela dinastia dos Capetos11. Todavia, sem a proteção do poder real, abriu-se
caminho para a revolução burguesa, para revolução popular das cidades e, por fim, para a
revolução camponesa. (LEFEBVRE, 1989, p. 33)
Uma das grandes contribuições da Revolução Francesa à humanidade foi o
fortalecimento do movimento iluminista e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
mas, apesar dessa contribuição, nunca se utilizou tanto a guilhotina como nesta época,
ultrajando os próprios direitos do ser humano.
Em seu passivo: os massacres de setembro, os horrendos agentes do Terror em Paris
e na província, a corrupção e a incompetência, a ruína econômica, a guerra civil, o
vandalismo tacanho e os discursos vazios. No ativo: os grandes princípios que vão
dominar o século XIX, a destruição do feudalismo, as vitórias nas fronteiras e o
fortalecimento do sentimento nacional. (TULARD, 1989, p. 386)
Embora a revolução tenha sido francesa, os seus desdobramentos foram duradouros para
a maioria do mundo ocidental, particularmente no que concerne à Declaração dos Direitos do
Homem, que atingiram primeiramente a Europa, mas desdobraram-se por diversos países. Os
11 A dinastia dos Capetos, foi uma dinastia que governou a França por mais de trezentos anos. O nome vem da
alcunha do fundador, Hugo Capeto (941-987).
23
pensamentos de Montesquieu, Voltaire e Rousseau12 foram fundamentais colaboradores da
elaboração destes direitos (LEFEBVRE, 1989, p. 213).
A revolução que culminou com a independência dos Estados Unidos não implantou
uma renovação religiosa no estilo da Revolução Francesa. Não desenvolveu o deísmo
filosófico ou patriótico, o ateísmo republicano nem o cristianismo evangélico
comprometido com a revolução social. O que ocorreu foi antes um fortalecimento e
uma confirmação do cristianismo puritano, com o desenvolvimento de várias
comunidades religiosas que preconizavam uma religião de colonização, de afirmação
do grupo étnico e da ordem civil de uma democracia de proprietários. Não se
desenvolveram as determinações da Revolução Francesa, de um cristianismo
comprometido com um processo de revolução social, e da revolução exigindo
manifestações de religiosidade. Até o milenarismo, o misticismo e a religiosidade
humanista se desenvolveriam nos Estados Unidos mais como consequência da
influência francesa, do que como influência direta do espírito revolucionário da
própria independência ou da tradição da Revolução Inglesa do século XVII.
(SABORIT, 2009, Locais do Kindle 3491-3498)
O pensamento de igualdade não era novo, por séculos, o mundo ocidental foi modelado
pelo pensamento cristão que, entre outros elementos, trazia em seu bojo esta ideia: a “Igreja
defendia a liberdade do indivíduo para garantir-lhe a faculdade de trabalhar em paz pela sua
salvação e merecer o paraíso”. Mas os filósofos, desde o século XVI até o XVIII, propunham
que essa liberdade fosse mais ampla, pela qual houvesse um lugar onde o homem pudesse
transformar a natureza segundo suas necessidades. Apesar de tanto a Igreja quanto os filósofos
terem em mente a defesa da dignidade humana, para os filósofos, não era papel da Igreja fazê-
lo e sim do estado. (LEFEBVRE, 1989, p. 214).
1.1.2. A França pós-revolucionária
O primeiro ato da Revolução Francesa se deu em 26 de agosto de 1789, mas as suas
consequências foram persistentes, desdobrando-se até hoje, mas oficialmente na história até
1799. Entretanto, segundo Lefebvre (1989, p. 213), os desdobramentos ao redor da Declaração
dos Direitos do Homem se prolongaram até 1830 e há relatos de fatos relacionados com a
instabilidade política da época que foram além, como os que envolveram diretamente Alan
Kardec, objeto de estudo deste trabalho:
Paris, 1848. Operários desempregados, Artesões, estudantes e mulheres tomaram as
ruas com centenas de barricadas. Paralelepípedos, móveis, entulho, tudo amontoado,
formando barreiras. Em meio a prisões e fuzilamentos, 50.000 manifestantes viveram
terror e entusiasmo. O povo mobilizado ostentava bandeira e exigia: - Fora o rei!
Queremos república! Democracia! Igualdade! [...] Desde a Revolução Francesa de
1789, as insurreições pareciam respeitar um ciclo natural, voltando de tempos em
12 O Pensamento de Rousseau é particularmente interessante para nosso estudo e será estudado mais à frente com
maior detalhe.
24
tempos como ondas. Nessa primavera dos povos, professor Rivail13 morava com sua
esposa Amélie Boudet na rua Mauconseil, uma das mais agitadas desde o início das
jornadas populares. No primeiro anoitecer, uma algazarra percorreu a rua. Um tiro foi
ouvido. Depois da meia-noite, fez-se silêncio. No segundo dia, naquela curta e mal
defendida rua, as tropas abriram fogo. Protegidos por barricadas improvisadas, cinco
operários foram baleados - três mulheres e duas crianças. Na manhã do terceiro dia,
dois estudantes que lutavam ao lado dos trabalhadores foram mortos. (FIGUEIREDO,
2016, p. 37)
Por cerca de trinta anos, a França passou por diversas ondas de instabilidade política. A
primeira República caiu com o golpe de Napoleão, que se tornou imperador. Este, por sua vez,
foi substituído pela dinastia de Bourbon, na figura de Luís XVIII, quando Napoleão perdeu sua
batalha em 1815. Carlos X assumiu o trono de Luís XVIII em 1824, em razão de sua morte. Por
causa das condições deploráveis dos operários, da má colheita e da fome, explode, em 1830,
uma nova onda revolucionária que depôs Carlos X e o exilou em favor de Luís Felipe I o rei
burguês.
O poder só havia mudado de mãos, os direitos do ser humano ainda eram um sonho,
longe de serem realizados, os operários ainda enfrentavam miséria, fome e desemprego. Com
uma população de um milhão e duzentos mil habitantes, a maior cidade industrial da Europa
possuía quatrocentos mil operários. Nas fábricas, trabalhavam sem descanso mulheres e
crianças, além de muitos homens, em condições precárias. Salários baixos e preços altos, as
condições de vida pioravam para os pobres operários, enquanto tudo melhorava para os
portadores de capital: industriais e comerciantes.
Os doze distritos de Paris ainda estavam confinados dentro de seus muros, cercada
para cobrança dos impostos Ferme générale na passagem dos seus 55 portões. A
maior parte da cidade era cortada por vielas. Por algumas, passava um por vez de cada
lado de um córrego sujo. Nos bairros distantes, os pobres amontoavam-se em casebres
insalubres e a classe média fugia, assustada com a degradação. (FIGUEIREDO, 2016,
p. 39)
Estavam assim estabelecidas as condições para a Segunda República, com cinquenta
mil pessoas nas ruas que queriam a queda do rei Luís Filipe, que acabou por abdicar sem
maiores resistências. A Segunda República durou pouco, Luís Napoleão Bonaparte (1808 –
1873), sobrinho de Napoleão, foi eleito para governar o país como presidente, mas em 1851,
como não haveria reeleição, promoveu um golpe de estado, tornou-se o imperador Napoleão
III e governou por quase vinte anos, trazendo alguma estabilidade política na França.
Apesar de Napoleão III ter feito importantes reformas para a França, principalmente de
ordem arquitetônica, com a demolição de prédios, alargamento das ruas, para a consolidação
de uma França mais cosmopolita e comercial, as questões sociais continuaram a ser relegadas,
13 Nome de batismo de Allan Kardec.
25
e as diferenças sociais continuavam marcadamente acentuadas.
Em meio a essas convulsões políticas e sociais, diversos pensadores iluministas
reforçavam o seu pensamento e ousavam manifestar as suas visões de mundo. Cada um a seu
modo tentou contribuir para modificar os pensamentos dessa época. Entre eles, um pedagogo
discípulo de Pestalozzi, o Professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, que assumiria no futuro
o pseudônimo Allan Kardec, do qual passaremos a descrever a vida e a obra.
1.2. A formação científica e religiosa do codificador do Espiritismo
Antes de entender quem foi Allan Kardec, o codificador do Espiritismo, é necessário
compreender o homem através da figura histórica. Por mais que ele mesmo afirme, como
veremos adiante, que o conteúdo legado pelo Espiritismo não é dele e sim dos espíritos, ele teve
importância fundamental na coordenação de seu conteúdo, assim como ao expressar também o
seu pensamento em diversos momentos. Por essa razão, o objetivo desse tópico é de falar um
pouco sobre quem foi esse homem.
1.2.1. O cidadão francês Hippolyte Léon Denizard Rivail
Aos 11 do Vindemiário14 do ano XIII, na Rua Sala, n° 74, no Estabelecimento de Águas
Minerais da Cidade de Lyon, onde se encontrava hospedada temporariamente a esposa do Sr.
Jean Baptiste Antoine Rivail, a Sra. Jeanne Louise Duhamel deu à luz a um menino que,
conforme sua certidão de nascimento, recebeu o nome de Denisard, Hypolite Leon Rivail, o
qual, mais tarde, adotaria o pseudônimo de Allan Kardec.
O nome civil de Allan Kardec é objeto de diversas discussões, pois há uma série de
documentos que apontam que ele mesmo assinava seu nome de forma diversa da que é
apresentada em sua certidão de nascimento. Em sua certidão de casamento, consta o nome
Hippolyte Léon Denizard Rivail, o qual, além de diferenças na disposição dos nomes, apresenta
grafia diferenciada, com dois “p” em Hippolyte, “y” depois do “l” e não depois do “h” e acento
no “e” de Leon.
14 Esta data pertence ao calendário da Revolução Francesa, que começou em 22 de setembro de 1792, ano I da
república. Pelo novo calendário, oficializado em novembro de 1793, o ano tinha 12 meses e 30 dias e mais cinco
dias complementares, dedicados às festas republicanas. O novo calendário nunca foi popular. Com exceção dos
funcionários do governo, poucas pessoas o utilizavam, embora ignorá-lo fosse considerado crime. Em primeiro
de janeiro de 1806 ele foi definitivamente abolido por Napoleão (cf. MARTINS, 1999, p. 29). A data da certidão
de nascimento de Rivail é 12 do Vindemiário e nela está grafado, que “ontem” nasceu o filho do Sr. Jean Baptiste,
portanto, dia 11, que corresponde a 3 de outubro de 1804 do calendário gregoriano.
26
Em se tratando ainda de documentos oficiais, veremos que sua certidão de óbito possui
outras diferenças que também vão além da grafia, já que nela consta o nome Léon Hippolyte
Denisart Rivail.15 Ao fim deste trabalho no Anexo A, apresentamos as cópias da certidão de
nascimento, contrato de casamento e sua certidão de óbito e suas respectivas transcrições bem
como uma foto sua quando da idade adulta.
Diante dessas divergências, optamos por usar no decorrer deste trabalho o nome que
consta em sua certidão de casamento, que é o que ele mesmo adotava em suas obras acadêmicas,
Hippolyte Léon Denizard Rivail (WANTUIL, 1984a, p. 88), e é, inclusive, utilizada por
Maurice Lachâtre (1867 p. 199), no Nouveau Dicitionnaire Universel. Pantheon Litteraire et
Encyclopédie Ilustrée 16, que o biografou em vida. Acreditamos, portanto, que este nome o
retrata de forma mais fiel, pois, em tal momento ele mesmo se encontrava pleno de sua vontade,
e, provavelmente, deve ter revisado tanto sua certidão de casamento quanto as referências feitas
a seu respeito por Lachâtre. O nome da certidão de casamento é também o que foi escolhido
por Wantuil e Thiesen, biógrafos de Kardec.
Não são muitos os biógrafos de Rivail. Notadamente, as informações relativas à sua
pessoa para fins biográficos recaem principalmente sobre seu trabalho enquanto Allan Kardec.
Neste capítulo, todavia, nossa atenção se fixará principalmente sobre a figura do Professor
Rivail, pois pretendemos, no decorrer de nosso trabalho, considerar como a formação do
homem Rivail culminou com a figura do codificador do Espiritismo Allan Kardec. Escolhemos,
para nortear o trabalho biográfico, Henri Sausse, cuja biografia é a mais conhecida e popular,
particularmente por ser a que foi adotada como oficial pela editora da FEB (Federação Espírita
Brasileira) na introdução do livro O que é o Espiritismo17 (KARDEC, 1989). Seguimos também
duas outras biografias: a primeira delas é a de Maurice Lachâtre (LACHÂTRE, 1867) cujo
volume de informações acerca de Rivail não é grande, mas que tem a importância de ter sido
contemporânea a ele e deste ter sido seu amigo pessoal. A segunda referência biográfica é de
Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (1984a)18 em virtude da qualidade e da análise crítica da vida
de Rivail presentes nesta obra, problematizando inclusive mitos acerca do homem idolatrado
15 No apêndice da biografia de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (WANTUIL, 1984a, p. 193-197), há meticuloso
estudo sobre o nome do Sr. Rivail, detalhando e problematizando as questões relacionadas às divergências
encontradas em seu nome. 16 Há nessa biografia ainda uma outra divergência, já que os três primeiros nomes aparecem separados por hífen
“Hippolyte-Léon-Denizard Rivail”, o que não se encontra presente em sua certidão de casamento. 17 A primeira edição dessa biografia data de 1896 e aparecia traduzida na coletânea O Principiante Espírita, que a
Federação Espírita Brasileira publicava no passado. (CHIBENI, 1999, p. 52). 18 Silvio Seno Chibeni afirma que: “a obra ‘Allan Kardec’, em três volumes, da autoria de Zêus Wantuil e Francisco
Thiesen, dada a público pela Federação Espírita Brasileira em 1979/80 [...], representa o mais completo e
rigoroso estudo já publicado sobre a vida e a obra de Kardec”. (CHIBENI, 1999, p. 52).
27
por alguns. Nesta biografia eles desmentem ainda algumas informações equivocadas legadas
por Henri Sausse e alguns outros19 que desenvolvem biografias sobre o cidadão Rivail em seus
trabalhos. Além disso, esta última biografia, particularmente, traz informações relevantes
acerca da formação acadêmico-científica de Rivail. Lançamos mão também do trabalho de
Jorge Damas Martins e Stênio Monteiro de Barros (MARTINS, 1999) que fizeram relevante
análise de documentos biográficos de Rivail, e de Paulo Henrique Figueiredo (2016) que, apesar
de não fazer um trabalho biográfico, traz relevantes informações sobre a vida do Professor
Rivail.
O jovem Rivail foi natural de Lyon, mas não residiu nesta cidade20 e sim em Bourg de
L’Ain ou Bourg-en-Bresse, cidade sede do Departamento de Ain localizado a 60 km a Noroeste
de Lyon (MARTINS, 1999, p. 33), onde seu avô materno, Benôit Marie Duhamel, havia sido
nomeado prefét 21. Bourg, como era simplesmente chamada, tratava-se da cidade natal de sua
mãe, o que levou o historiador Antoine-Marie-Alexandre Sirand (1799-1871) a afirmar
equivocadamente que Rivail havia nascido nesta cidade.
Rivail era descendente de antiga família lionesa de tradição católica e com forte tradição
na magistratura, sendo seu pai declarado em sua certidão de nascimento como homem de lei, o
que foi tratado por Henri Sausse como magistrado, juiz. Nos documentos levantados, há
indícios que levam a crer que ele, à época do nascimento de seu filho, estaria residindo em
Paris, mas não se determina o porquê de lá residir22 (MARTINS, 1999, p. 32-33). Lachâtre
(1867, p. 199) afirma que Rivail era “filho e neto de advogados, e de uma antiga família que se
distinguiu na magistratura e no foro, não seguiu essa carreira; dedicou-se cedo ao estudo da
ciência e da filosofia”.
Hippolyte Léon Denizard Rivail era o terceiro filho do casal, embora seus irmãos
Auguste Claude Joseph Françoise, o primogênito, e Marie-Françoise Charlotte Eloise tenham
falecido antes do seu nascimento, o menino aos 6 anos e a menina aos 2 anos de idade
19 Anna Blackwell faz pequena biografia de Kardec na sua tradução para o inglês de O Livro dos Espíritos, André
Moreil também faz uma importante biografia em Allan Kardec sa vie, son œuvre, além de ser também citado
pelo historiador francês Antoine-Marie-Alexandre Sirand (1799-1871). 20 Na Revista Espírita de 1862, Kardec afirma textualmente que “jamais morei em Lyon” (KARDEC, RE:
Mai/1862, p. 251) 21 Na França o prefét, tem alguma semelhança com nosso governador de estado. As cidades são chamadas de
communes, geridas por conselhos municipais. Desde 1790, o país foi dividido em 89 unidades administrativas,
ou departamentos administrados por um conselho geral, eleito a cada seis anos. Quem representava a nação no
departamento era o prefét. No caso do Departamento de Ain, o prefét era o avô materno de H.L.D. Rivail, o Sr.
Benôit Marie Duhamel. (FIGUEIREDO, 2016, p. 82) 22 Em obra recente Paulo Henrique de Figueiredo (2016, p. 83) esclarece que Jean Rival era juiz de paz e promotor
militar, e inclusive servia no exército de Napoleão. Quando do nascimento do menino Rivail, ele se encontrava
em Paris a serviço do exército, mas Figueiredo, por sua vez, não afirma que este residia em Paris, como é sugerido
por Sausse.
28
(FIGUEIREDO, 2016, p. 90). O infortúnio de Jeanne-Louise Duhamel não haveria de ser só
este, pois, quando o menino Rivail tinha apenas três anos, sofreu a perda de seu marido, dado
como morto, já que este fazia parte do efetivo de Junot, que tentou a invasão frustrada de Lisboa
em 1807, quando a corte Portuguesa fugiu para o Brasil.
A morte do Sr. Jean Baptiste Antoine Rivail e de seus tenros filhos não foram as únicas
desditas pessoais de Jeanne Duhamel, pois anos antes, em 16 de março 1794, ela e sua mãe
Charotte Bochard receberam a notícia do guilhotinamento sofrido pelo Sr. Benôit, vítima da
perseguição dos jacobinos23. Com a morte de Benôit e mais tarde, em 1807, de Jean Rivail, o
jovem Rivail foi criado, dos três aos dez anos, por sua mãe e sua avó Charlotte, que viviam do
espólio de seu marido, no valor de seiscentas libras por ano (FIGUEIREDO, 2016, p. 89).
Em 1814, com o enfraquecimento dos exércitos de Napoleão, a guerra chegou às ruas
de Bourg, e os bressans24 pegaram em armas, e a família Rivail fugiu das lutas rumo à Suíça,
onde o jovem Rivail passou a estudar (FIGUEIREDO, 2016, p. 104).
1.2.2. A formação escolar e acadêmica de Rivail
Henri Sausse (2014, p. 19) afirma que os primeiros anos de estudo de Rivail se deram
em Lyon25 e, aos 10 anos de idade26, foi enviado para estudar em tradicional escola na Suíça,
do cantão de Vaud, no Instituto de Yverdon (ou Yverdun).
O Instituto de Educação de Yverdon, fundado e dirigido por Johann Heinrich Pestalozzi
(1746-1827), surgiu em 1805 e gozava de enorme reputação, sendo citada como escola modelo
da Europa. Este instituto foi visitado para fins de servir como modelo de educação por diversas
personalidades políticas, científicas, literárias e filantrópicas além de autoridades de renome
como o Rei da Prússia, o czar da Rússia, o Rei de Espanha, a futura Imperatriz do Brasil, D.
Leopoldina de Áustria, e muitos expoentes da nobreza europeia e do mundo cultural
(WANTUIL, 1984a, p. 33).
Roger de Guimps (1802-1894) foi aluno do Instituto dirigido por Pestalozzi de 1808 a
23 Jacobinos, eram membros de uma sociedade política revolucionária, Le club des Jacobins, fundada em Paris em
1789, que defenderam um ideário democrático exacerbado. 24 Naturais da cidade de Bourg-en-Bresse. 25 Apesar de Henri Sausse ter feito essa afirmação, vemos a possibilidade de haver equívoco nessa informação, já
que, na Revista Espírita de 1862, Kardec afirma textualmente que “jamais morei em Lyon” (KARDEC, RE:
Jan/1862, p. 251). Segundo Martins (1999 p. 33), Lyon ficava a 60 km da residência dos pais de Rivail, o que,
para a época, torna questionável esta afirmação, já que não havia meios de se deslocar 60 km diariamente para
frequentar a escola. 26 Dora Incontri (2001, p. 181) afirma que Rivail foi matriculado em Yverdon aos 11 anos e não aos 10 como
afirma Henri Sausse. Segundo ela, essa informação consta nos registros do Centre de Documentation et
Recherche de Yverdon. Figueiredo (2016, p. 104) corrobora com esta informação.
29
1817 e descreve assim a sua rotina:
Os alunos gozavam de grande liberdade; as portas do castelo permaneciam abertas o
dia todo, e sem porteiros. Podia se sair entrar a qualquer hora, como em toda casa de
uma família simples, e as crianças quase não se prevaleciam disso. Eles tinham, em
geral, dez horas de aula por dia, das seis da manhã às oito da noite, mas cada lição só
dura uma hora e era seguida de pequeno intervalo, durante o qual ordinariamente
trocava de sala. Por outro lado, algumas dessas lições consistiam em ginástica ou em
trabalhos manuais, como cartonagem e jardinagem. A última hora da jornada escolar,
das sete às oito da noite era dedicada ao trabalho livre; as crianças diziam: On travaille
por soi, e elas podiam, a seu bel prazer, ocupar-se de desenho ou de geografia,
escrever a seus pais, ou pôr em dia seus deveres. [...] Três vezes por semana, os
mestres davam conta a Pestalozzi da conduta e do trabalho dos alunos; estes, cinco a
seis de cada vez, eram chamados à presença do “velho” para receber suas
admoestações e exortações. Pestalozzi os levava então, um após o outro, a um canto
do seu gabinete de trabalho e com eles conversava em surdina. Perguntava se tinham
algo para lhe dizer, para lhe pedir; procurava assim ganhar-lhes a confiança, a fim de
sondar se eles se sentiam bem, o que lhes agradava ou desagradava. Todos os
domingos, numa assembleia geral, passava-se em revista o trabalho da semana. (apud
WANTUIL, 1984a, p. 37)
Na condição de aluno estrangeiro (não suíço), Rivail viveu no ambiente descrito acima
por Roger de Guimps de 1815 até pelo menos27 1822, já que não há registros claros a respeito
de seu retorno a Lyon (segundo alguns biógrafos) ou a Bourg-en-Bresse. Há dúvidas se ele teria
ido diretamente a Paris ou se teria voltado à sua terra natal por um período. Em Paris estabeleceu
residência na Rua da Harpa, 117, um dos principais eixos da vida universitária parisiense nas
proximidades do Liceu Saint-Louis (WANTUIL, 1984a, p. 82).
Para uma criança ser mantida no instituto de Pestalozzi, em 1812, a família despendia
cerca de setecentos e vinte cinco francos28 por ano, além de cama e enxoval completo
(WANTUIL, 1984a, p. 36). A educação do jovem Rivail, portanto, foi invejável, e restrita a
uma pequena minoria de cidadãos, que formariam uma elite de intelectuais de sua época.
Figueiredo (2016, p. 104) afirma que houve uma mobilização familiar para manter o jovem,
com venda de imóveis e outras ações, para custear os estudos do menino. Hippolyte Léon
Denizard Rivail tornou-se, com o passar do tempo, um dos mais eminentes discípulos de
Pestalozzi e deu continuidade ao seu revolucionário método de trabalho (LACHÂTRE, 1867),
pelo qual legou muitas obras na área da pedagogia e da educação, as quais se encontram
relacionadas no Anexo B, ao fim deste trabalho.
No ano de 1813, em função das guerras napoleônicas, o Instituto de Yverdon passou por
27 Há aqui também divergências biográficas a respeito da época em que Rivail tenha deixado o Instituto de
Pestalozzi. Na biografia de Wantuil e Thiesen (1984a, p. 78 a 82), são feitas discussões e análises acerca desta
data. 28 Esta quantia era elevada para a educação de uma criança. Como comparação monetária, Sausse (2014, p. 21)
declara que Rivail, adulto, recebia a quantia de 7.000 francos por ano para fazer a contabilidade de três empresas.
30
dificuldades tanto financeiras como pedagógicas, na medida em que uma série de alunos-
mestres deixaram o instituto, voltando para seus países de origem, particularmente a Alemanha.
Os alunos-mestres eram jovens professores enviados pelos governos de nações próximas que
ali se matriculavam para aprender o método pestalozziano de ensino e o introduzirem em seus
países de origem no seu regresso. Essa situação fez com que Pestalozzi lançasse mão da
utilização de alunos mais adiantados na condição de colaboradores. Esta era uma prática que
ele se utilizava desde o orfanato de Stans, onde desenvolveu o seu método. Numa carta escrita
em 1799, Pestalozzi destaca que:
Logo encontrei ajuda entre meus próprios alunos, e na diferença de capacidade de
cada um deles. Servia-me dos mais adiantados para fazê-los ensinar aos seus colegas
o que eles mesmos sabiam. Esta distinção lhes dava prazer; excitava neles pura e
louvável emulação; consolidavam o que tinham aprendido, ao repeti-lo para os outros.
[...] Eu me cercava, assim, de colaboradores, os quais, conformando sua conduta com
a minha, seriam, com tempo, bem mais úteis e melhor adaptados às necessidades do
estabelecimento que os “instituteurs29” propriamente ditos. (apud, WANTUIL, 1984a,
p. 62).
Apesar do exílio de Napoleão Bonaparte em 1815, que deu novo impulso à situação do
instituto, a prática dos alunos colaboradores se manteve. Há evidências de que Rivail passou
por esta experiência, uma vez que ele próprio declara em sua obra Mémoire sur l’instruction
publique (1831) que tinha experiência pedagógica de 12 anos, o que apontaria, se levada em
consideração a data da publicação, para a idade de 15 anos, época em que ele ainda estudava
em Yverdon. O Instituto de Pestalozzi fornecia formação primária e secundária e aqueles que
assim o quisessem recebiam um terceiro e último grau: a educação normal, dedicada à
formação de professores, normalmente até a idade de quinze ou dezesseis anos, ao qual tudo
indica ter sido a opção de Rivail, posto que se tornou pedagogo.
Além das já citadas obras que publicou (Anexo B), o Professor Rivail também fez parte
de diversas sociedades, chamadas à época de sociedades sábias. No Plan proposé pour
l'amélioration de l'education publique de 1828 ele mesmo cita que era “membro de diversas
sociedades sábias”, e no discurso de 14 de agosto de 1834, cita também que fazia parte da
Académie d’industrie. Na obra Projet de réforme concernant les examens et le maisons
d'éducation des jeunes personnes, de 1847, cita ainda que fazia parte da Academia Real de
Ciências de Arrás, do Instituto Histórico, da Sociedade das Ciências Naturais de França
(WANTUIL, 1984a, p. 172-179).
Muitos documentos acerca da vida pública de Rivail foram perdidos quando houve
29 Palavra francesa que não tem tradução exata para o português, e tem sido traduzida de forma livre simplesmente
como “professores”.
31
pilhagem nazista durante a ocupação alemã, na Segunda Guerra Mundial. Esses documentos
encontravam-se na Maison des Spirites, no número 8 da rue Copernic, em Paris, fundada por
Jean Meyer em 1923. Além das já citadas, ele foi comprovadamente membro de diversas
sociedades30. A participação nelas, como descreve Wantuil e Thiesen (1984a, p. 172 a 179),
fizeram de Rivail, além de conhecido, muito respeitado.
Henri Sausse (2014, p. 19) afirma que Rivail chegou a substituir Pestalozzi na direção
de seu instituto, o que é problematizado por Wantuil e Thiesen (1984a, p. 64) dizendo que não
há evidências e/ou registros históricos que apontem para tal atividade. Os biógrafos afirmam
ainda que é muito pouco provável que Rivail o tenha substituído, já que, no período em que ele
estudou no instituto, Pestalozzi era amparado por Johannes Niederer (1779-1843) e Johann
Joseph Schmid (1785-1851) que o ajudavam na administração da instituição.
Henri Sausse faz ainda outras afirmações a respeito da formação de Rivail que merecem
atenção:
Bacharelara-se em letras e ciências e doutorara-se em medicina após completar todos
os estudos médicos e defender com brilhantismo sua tese. Insigne linguista, conhecia
e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano, o espanhol; tinha conhecimentos,
também, do holandês, e com facilidade podia expressar-se nesta língua. (SAUSSE,
2014, p. 19)
As afirmações de Sausse que Rivail tenha sido Doutor em Medicina são
problematizadas por Wantuil e Thiesen (1984a, p. 157), ao afirmarem que esta notícia surge
com a declaração Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901), sucessor de Rivail na direção da
Revista Espírita, e que os biógrafos o seguiram, mas sem verificar as fontes. Não há, até então,
nenhum documento que comprove que ele tenha frequentado e, muito menos, defendido tese
como médico. Segundo Albert L. Caillet (apud WANTUIL, 1984a, p. 157), Rivail tinha
“conhecimentos médicos incontestáveis”, mas não há, porém, evidências para afirmar que tenha
sido médico. Quanto ao fato de ser linguista insigne, há evidências documentais, entre elas
excertos da obra de Fénelon (1651-1715) que foram traduzidos para o alemão, com destaque
para Telémaque que foi por ele traduzida, confirmando que era poliglota. Além dos idiomas
30 Rivail foi comprovadamente membro das seguintes instituições:1) Membro residente da Sociedade Gramatical
(Société grammaticale); 02) Sociedade para instrução elementar (Société pour l’instruction élémentaire); 03)
Membro fundador da Sociedade de Previdência dos Diretores de Instituições e Pensões de Paris (Société de
prévoyonce des chefs d’instituition et des maitres-de-pension de Paris); 04) Sociedade de Educação Nacional
(Société d’éducation nationale); 05) Instituto de Línguas (Institut des langues); 06) Membro correspondente da
Sociedade Real de Emulação, de Agricultura, Ciências, Letras e Artes do Departamento de Ain (Société royale
d’émulation, d’agriculture, aciences, letres et arts du dépertment de l’Ain); 07) Sociedade Promotora da
Indústria Nacional (Société d’encouragement pour l’industrie); 08) Membro titular da Sociedade Francesa de
Estatística Universal (Société française de statistique universelle); 09) Membro titular da Academia de Indústria
Agrícola, Manufatureira e Comercial (Académie de l’industrie agricole, manufacturière et commerciale).
(WANTUIL, 1984a, p. 172 a 179)
32
citados no texto de Sausse, Wantuil e Thiesen dizem ainda que Rivail tinha sólidos
conhecimentos do latim, do grego, do gaulês e de algumas línguas novilatinas31 (WANTUIL,
1984a, p. 155).
Existem muitos outros relatos acerca do cidadão Rivail que são discutidos por Wantuil
e Thiesen. Entre eles, a questão de que Rivail teria sido maçom, outros biógrafos afirmam que
ele tenha sido advogado. Há relações citadas também de Rivail com o teatro na condição de
contrôleur (uma espécie de administrador), além de outras funções. O que nos parece é que
existe uma tendência em evidenciar a inteligência e a característica polimática de Rivail devido
a uma necessidade de seus seguidores de exaltar a figura do codificador do Espiritismo. Não
que ele não tivesse sido de fato um homem culto e preparado intelectualmente, mas percebe-se
em seus biógrafos uma forte admiração, na qual permeia a adoração de um seguidor, de um
discípulo.
Nesse tópico, procuramos trazer informações que permitam ao leitor compreender quem
foi o cidadão Rivail, que serviu de base para o personagem histórico Allan Kardec.
Observaremos agora como foi a sua formação religiosa.
1.2.3. A formação religiosa de Rivail e a influência de Pestalozzi
Nascido em tradicional família católica, Rivail foi batizado pelo Padre Barthe a 15 de
junho de 1805 na igreja Saint-Denis de la Croix-Rousse, em Lyon, onde constam seus registros
de batismo (WANTUIL, 1984a, p. 31). Aparentemente, ele recebeu toda a formação pertinente
às tradições católicas da época. Apesar de ter nascido numa tradicional família católica, foi a
educação em Yverdon na Suíça que teve consequências significativas para a sua formação
religiosa:
Nascido na religião católica, mas criado num país protestante, os atos de intolerância
que sofreu a esse respeito lhe fizeram conceber, desde os quinze anos de idade, a ideia
de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio por muitos anos, com o
pensamento de chegar à unificação das crenças; mas faltava-lhe o elemento
indispensável à solução desse grande problema. O Espiritismo veio mais tarde
fornecer-lhe esse elemento e imprimir uma direção especial a seus trabalhos.
(LACHÂTRE, 1867, p. 199).
Nas afirmações de Lachâtre, encontramos importante informação a respeito da
influência religiosa sobre o cidadão Rivail, codificador do Espiritismo, pois, nascido na tradição
católica, foi educado em um país de fortes tradições protestantes. A que “atos de intolerância”
31 Novilatino é o mesmo que neolatino; diz-se das línguas, da cultura e dos povos oriundos da civilização dos
antigos romanos.
33
se referiu o biógrafo?32 O fato de ter recebido uma formação católica foi motivo de violência
naquele país protestante? A influência dos pensamentos de Pestalozzi e de seu instituto atingiam
os seus alunos de que forma? Para responder a tais questionamentos, vejamos como se
processava a educação religiosa do Instituto de Yverdon.
A formação do homem integral fazia parte do programa de Pestalozzi, portanto, a
influência deste e de seu instituto para seus alunos foi de grande monta em suas personalidades,
não se restringindo tão somente à formação acadêmica, mas também à formação do caráter e
da moral do indivíduo, já que este acreditava na formação do ser global: “a educação não pode
ser massificada, homogeneizada, padronizada, porque a relação educador/educando se funda
na globalidade do ser” (INCONTRI, 2001, p. 178).
Os biógrafos de Kardec, Wantuil e Thiesen, apresentaram um resumo dos princípios
pestalozzianos retirados do livro Como Gertrudes ensina seus filhos:
I - A intuição é o fundamento da instrução.
II - A linguagem deve estar ligada à intuição.
III - A época de ensinar não é a de julgar e criticar.
IV - Em cada matéria, o ensino deve começar pelos elementos mais simples, e daí
continuar, gradualmente, de acordo com o desenvolvimento da criança, isto é, por
séries psicologicamente encadeadas.
V – Deve-se insistir bastante tempo em cada ponto da lição, a fim de que a criança
adquira sobre ela o completo domínio e a livre disposição.
VI - O ensino deve seguir a via do desenvolvimento e jamais a da exposição
dogmática.
VII - A individualidade do aluno deve ser sagrada para o educador.
VIII - O principal fim do ensino elementar não é sobrecarregar a criança de
conhecimentos e talentos, mas desenvolver e intensificar as forças de sua inteligência.
IX - Ao saber é preciso aliar a ação; aos conhecimentos, o savoir-faire.
X - As relações entre mestre e aluno, sobretudo no que concerne à disciplina, deve ser
fundada no amor e por ele governadas.
XI - A instrução deve constituir o escopo superior da educação. (WANTUIL, 1984a,
p. 96 e 97).
Esses princípios, portanto, foram muito importantes na formação do jovem Rivail, pois
Pestalozzi era tido como um pai para os seus alunos, e sua forma de pensar, no que tange às
questões morais e religiosas, foram fundantes para o pensamento de seus educandos.
A questão é como engajar a vontade moral do ser — desde a fase infantil — para que
se realize como homem integral (segundo Pestalozzi, esse desenvolvimento deve ser
harmonioso, integrando mãos, coração e cabeça. “Há que se cultivar de tal modo as
faculdades da pessoa que nenhuma delas predomine às custas da outra…”). Aparece
então a maior contribuição de Pestalozzi [...] Afirma ele que o acesso a essa vontade
profunda do ser, a possibilidade de tocar a divindade íntima do homem está no amor,
que ele chama de “força elementar da moralidade”. Uma vez ativado esse impulso
fundamental, ele passa a reger um desenvolvimento harmonioso e espontâneo, em que
não faltam o esforço do sujeito e o empenho do educador, mas que se dá a partir do
32 Na biografia de Kardec feita por Anna Blackwell na tradução de O Livro do Espíritos, este desejo de uma
reforma religiosa também é relatado, mas a fonte dessa informação não é citada (que poderia inclusive ter sido
buscada no próprio Lachâtre). (KARDEC, 1996, p. 9)
34
interior da criança, de forma natural e não coercitiva (INCONTRI, 2001, p. 177,
grifos nossos).
Dessa forma, quando se estuda o método de ensino de Pestalozzi, não há como acreditar
que o jovem Rivail tenha sofrido intolerância pelo seu método em si, já que baseava o seu
ensino no despertar do conhecimento do indivíduo “a partir do interior da criança, de forma
natural e não coercitiva”, mas talvez pelo ambiente onde as crianças eram criadas. Entendemos
que seria contra a ética de Pestalozzi violentar a formação religiosa da criança; entretanto,
existia, como foi descrito anteriormente por Roger Guimps (WANTUIL, 1984a, p. 37), um
ambiente de total integração dos alunos com o instituto, de forma que eles percebiam tudo o
que acontecia ao seu redor.
Apesar de pertencer à igreja reformada e de ter em seu quadro professores luteranos e
calvinistas, Pestalozzi procurava manter-se distante das querelas e paixões religiosas. Dava à
Bíblia valor relativo e não demonstrava fervor às lições de catecismo. Aliás, enquanto discípulo
de Jean Jacques Rousseau acreditava em
[...] uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios
universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da
alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome,
individual, e muito mais orientada para a ética do que para o culto (INCONTRI, 2001,
p. 71).
Em consequência dessa postura em relação ao ensino da religião, o instituto de
Pestalozzi sofreu diversos ataques externos e internos. Mais de uma vez teve que rebater,
através da imprensa, imputações inverídicas a respeito do ensino religioso no instituto.
Internamente, aconteceram embates de cunho religioso com seu administrador Johannes
Niederer, que chegou a afirmar que havia se apercebido de que Pestalozzi não era
verdadeiramente cristão. Esta declaração foi feita publicamente, na presença de seus alunos nas
comemorações do Pentecostes de 1817, como registra a história do instituto, culminando com
a saída de Niederer. Tal maneira de pensar, que aceitava o cristianismo, mas rejeitava os dogmas
e as suas formas, foi citada por mais de um de seus biógrafos, como James Guillaume (1844–
1916) e Gabriel Compayré (1843-1913), este último disse: “Não lhe perdoavam por contentar-
se com uma religião natural, com um deísmo filosófico à Rousseau, com um cristianismo
racionalista.” (WANTUIL, 1984a, p. 70).
Na contramão do método pestalozziano, Rivail viu o nascimento de uma vivificação da
fé protestante denominada réveil33 que pregava uma teologia estreita e opressiva que pretendia
33O Réveil (palavra em francês que significa "reavivamento", "despertar") de 1814 foi um movimento de
renascimento dentro da Igreja Reformada da Suíça ocidental e de algumas comunidades reformadas no sudeste
da França.
35
anular o livre arbítrio e a tentativa do homem de trabalhar a sua própria santificação. Os adeptos
deste movimento chegaram a afirmar, assim como Niederer, que Pestalozzi não era verdadeiro
cristão e tentaram a todo custo impor ao fundador do instituto sua forma de pensar acerca dos
métodos de ensino religioso.
O ensino da religião era dividido no instituto. Os alunos oriundos de países protestantes,
que eram sua maioria, recebiam instrução religiosa desse segmento religioso, o que não era
obrigatório para os outros alunos. Com o aumento do número dos alunos católicos, estes
passaram a receber aulas de catecismo por um sacerdote católico romano, o que provavelmente
aconteceu com o jovem Rivail (WANTUIL, 1984a, p. 74). A presença de Rivail nesse ambiente,
portanto, pode ter levado à declaração de Lachâtre sobre o desejo de Kardec de fazer um
movimento de unificação das religiões. Entendemos que o tempo se incumbiu de demonstrar
que Rivail estava alinhado com os pensamentos de Pestalozzi, que se preocupava mais com
ensino moral do que com as doutrinas dogmáticas. Essa influência pode ser verificada na
introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo na qual Kardec diz:
Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos
comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas
pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro primeiras
têm sido objeto de controvérsias; a última, porém, conservou-se constantemente
inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno
onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se,
quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das
disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se originaram das questões
dogmáticas. [...] Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra. (KARDEC, ESE:
Introdução: I).
Além da influência de seu mestre Rousseau, Pestalozzi recebeu também a influência e
proteção do filósofo e teólogo Johann Kaspar Lavater (1741-1801), com o qual manteve
relações até sua morte. Lavater foi um estudioso do ocultismo e evidenciado nas cartas que
escreveu à Imperatriz Maria Feodorowna (1847-1928). Nessas cartas apresentou ideias que,
inclusive, concordam com o Espiritismo acerca do destino da alma após a morte. Um dos
campos de estudo de Lavater também foi o estudo a respeito do magnetismo animal, tendo ele
trocado informações relevantes com o fundador do mesmerismo criado pelo médico alemão
Franz Mesmer (1734-1815), assunto este que não por coincidência foi estudado por Kardec por
muitos anos, e inclusive, fortemente relacionado ao Espiritismo como veremos mais à frente no
tópico quatro deste capítulo.
36
1.3. As influências do pensamento iluminista francês na filosofia, na ciência e na
religião no século XIX
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, este é o título de um dos capítulos do livro Obras
Póstumas, de Allan Kardec, (2016, p. 211), assim, com base nessa simples referência, entre
outras, pode se estabelecer a existência de uma influência marcante do Iluminismo na obra de
Kardec. Nesse capítulo, recuperado por P.-G. Leymarie, fica evidente esta influência quando
Kardec diz, logo no início: “Liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras representam,
por si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da
humanidade, se o princípio que elas traduzem pudesse receber integral aplicação.” (KARDEC,
OP: Liberdade, Igualdade e Fraternidade). Entender, portanto, o que significou o Iluminismo
na vida e obra de Rival (e também como Kardec) é de fundamental importância.
Como discípulo de Pestalozzi, Rivail teve sua formação fortemente enraizada nos
pensamentos do século XVIII, preâmbulo da consolidação de um racionalismo intenso no
século XIX, além disso, a Reforma Protestante, o Renascimento, a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa influenciaram de forma determinante os pensadores de seu tempo. Todas
essas ideias lançaram bases importantes para os movimentos sociais, filosóficos, científicos e
religiosos que afetaram o pensamento religioso da época, com consequências até os dias de
hoje. O século XIX foi tão fértil em ideias, movimentos e talentos, que seria impossível nas
poucas linhas deste capítulo descrevê-los todos, para situar o Espiritismo nesse cenário, mas
tentaremos descrever as fontes que foram cruciais para Rivail, o homem por trás de Allan
Kardec.
Como fontes dessas influências destacaremos aquelas que foram, em nosso ponto de
vista, as mais significativas para o pensador Rivail e que culminaram na formação do
personagem mais conhecido historicamente: Allan Kardec. Entre elas identificamos as
seguintes: 1) A Razão como fonte de progresso; 2) A Liberdade de pensamento; 3) Princípios
de Igualdade e Fraternidade.
1.3.1. A Razão como fonte de progresso da humanidade: O pensamento positivista e
o cientificismo
Sob influência do pensamento pedagógico positivista de Augusto Comte, que afirmava
“que todo o conhecimento científico e filosófico deve ter por finalidade o aperfeiçoamento
moral e político da humanidade” (GADOTTI, 1997. p. 107), criou-se um ambiente em que os
37
pensadores do século XIX acreditavam na razão como o único caminho para a explicação do
mundo que os circundava através do conceito de determinismo de Laplace, que será explicado
mais adiante no tópico quatro deste capítulo. Sob essa influência, entre outras, Kardec escreveu
sua proposta espiritista. Em uma época em que se despertava um sentimento de ansiedade pela
procura das origens da vida e da mente, estudiosos como Karl Marx, Émile Durkheim, Max
Weber e o próprio Auguste Comte, tinham o desejo de romper com o tempo e com o espaço
para atingir os limites e os primórdios do universo visível, sobre isso Eliade diz:
[...] Não pretendo recordar todas as datas importantes da história do estudo científico
da religião durante a segunda metade do século XIX, paremos por um momento para
examinar o significado desta sincronicidade entre as ideologias materialistas por um
lado e o crescente interesse pelas formas orientais e arcaicas da religião por outro.
Poderia dizer-se que a ansiosa procura das origens da Vida e da Mente, o fascínio
pelos “mistérios da Natureza”, o impulso de penetrar e decifrar as estruturas internas
da Matéria – todos esses anseios e impulsos denotam uma espécie de nostalgia pelo
primordial, pela matriz original universal. A Matéria, a Substância, representa a
origem absoluta, o começo de todas as coisas: Cosmos, Vida, Mente. Há um
irresistível desejo de romper profundamente o tempo e o espaço para atingir os limites
e os primórdios do Universo visível, e em especial para desvendar o solo fundamental
da Substância e o estado germinal da Matéria Viva. De certo ponto de vista, dizer que
a alma humana é, em última análise, um produto da matéria não é necessariamente
uma afirmação humilhante (ELIADE, 1989, p. 59).
Como destaca Eliade, havia uma busca para compreensão do mundo material em que
vivíamos e como isso se relacionava com a origem da vida. E é neste momento que surgem os
fenômenos espiritistas, em um contexto no qual existiam diversas teorias e concepções
científicas. Entre elas, além do já citado positivismo, existiam ainda o Evolucionismo, o
Darwinismo e o Marxismo, que foram fortemente marcados pelo Iluminismo, como reforça
Mircea Eliade:
Os fenômenos espiritistas são conhecidos desde os tempos antigos e têm sido
diferentemente interpretados por várias culturas e religiões. Mas o elemento novo e
importante no espiritismo moderno é a sua perspectiva materialista. Antes do mais,
existem agora “provas positivas” da existência da alma, ou antes, da existência post-
mortem de uma alma: pancadas, inclinações da mesa e, algum tempo depois, as
chamadas materializações (ELIADE, 1989, p. 61, grifos nossos).
E além disso, Herculano Pires (PIRES, 1975, p. 18) afirma que: “Formado na tradição
cultural do século XVIII, herdeiro de Francis Bacon, René Descartes e Rousseau, compreendeu
claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método”. O método a que se
referiu Herculano Pires corresponde ao da experimentação indutiva para investigação do
fenômeno das mesas girantes 34, sobre o qual Kardec mesmo diz:
34 Mesas girantes, mesas falantes ou dança das mesas é uma prática em que os participantes se sentam ao redor de
uma mesa, colocam as mãos sobre ela e esperam que ela se movimente para oferecer respostas dos espíritos,
sejam por batidas ou por indicações de letras do alfabeto. Tais práticas foram muito populares no século XIX.
38
[...] fiz os meus primeiros estudos sérios de Espiritismo, menos ainda por efeito de
revelações que por observação. Apliquei a essa nova Ciência, como até então o tinha
feito, o método da experimentação: nunca formulei teorias pré-concebidas;
observava atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos procurava
remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo
como válida uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades
da questão [...] Entrevi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão
controvertido do passado e do futuro, a solução do que havia procurado toda a minha
vida; era, em uma palavra, uma completa revolução nas ideias e nas crenças; preciso,
portanto, se fazia agir com circunspecção e não levianamente, ser positivista e não
idealista, para me não arrastar pelas ilusões. (KARDEC, OE: Introdução, grifos
nossos).
Apesar de não ser possível afirmar que Kardec era positivista, visto que muitos pontos
do positivismo são incompatíveis com o Espiritismo (INCONTRI, 2001, p. 67 a 71), o trecho
citado acima é a chave para a compreensão desta marcante influência. Quando ele diz: “preciso,
portanto, se fazia agir com circunspecção e não levianamente, ser positivista e não idealista”,
ele estabelece uma das premissas básicas do positivismo, que era a de que o “único método de
conhecimento é das ciências naturais, o qual prima pela identificação das leis causais e seu
domínio sobre os fatos” (ARAUJO, 2014, p. 94). Temos notícias históricas registradas pelos
seus biógrafos Wantuil e Thiessen (1984a, p. 155) que declaram que “Rivail ensinou [...] todas
as chamadas ciências fundamentais de Augusto Comte”, que, por sua vez, afirmava em seu
Curso de Filosofia Positiva que o positivismo surge para o mundo pela ação combinada dos
preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das descobertas de Galileu (COMTE, 1983,
p. 8).
Kardec não só reconheceu o papel fundamental do método positivo no avanço e na
consolidação da ciência moderna, como também desenvolveu procedimentos próprios para
empregar tal método em seus estudos dos fenômenos espíritas.
Quando Kardec afirma utilizar-se do método da experimentação, ele se referia ao
método indutivo defendido por Francis Bacon (1561-1626), o qual previa que a formação das
leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas, numa lógica sequencial de
formulação de hipóteses e validação da sua consistência. Esse processo foi batizado por Bacon
como método da experimentação. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na
proposição de uma metodologia científica que se pautava pela racionalização de procedimentos
que foram caracterizados como a indução e a dedução.
A indução é o processo de formular enunciados a partir de observações e coleta de dados
sobre o particular, contextualizado no experimento. Estabelecido um problema, o cientista
Esse fenômeno que chamou a atenção de Rivail, que, por sua vez, começou a estudá-lo em função de ser um
pesquisador do magnetismo, também conhecido por Mesmerismo.
39
executa experimentos que o levem a observações cuidadosas, coleta de dados, registro e
divulgação entre outros membros de sua comunidade, na tentativa de refinar as explicações para
os fenômenos subjacentes ao problema em estudo (GIORDAN, 1999, p. 2). Este método
fundamenta a chamada ciência indutivista, que nas palavras de Bacon se resume na seguinte
afirmação:
Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.
Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas
mais gerais e, a seguir, a descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses
princípios e de sua inamovível verdade. A outra, que recolhe os axiomas dos dados
dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em
último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho,
porém ainda não instaurado. (BACON, p. 16, 1988)
O método científico utilizado por Kardec, portanto, é claramente o método da
experimentação legado por Francis Bacon, cuja utilização corrobora com “um sentimento
profundamente criador, uma confiança absoluta na edificação e na renovação do mundo”
(CASSIRER, 1966, p. 195), na Europa nesta época. Com um pensamento extremamente ligado
nas inovações de seu tempo, Kardec se inspirava na lógica e na ciência para fazer suas
afirmações e estudos. “Apliquei a essa nova Ciência, como até então o tinha feito, o método da
experimentação: nunca formulei teorias pré-concebidas; observava atentamente, comparava,
deduzia as consequências; dos efeitos procurava remontar às causas pela dedução.” (KARDEC,
OE: Introdução). E uma das premissas fundamentais desta época era o evolucionismo que
herdou do século anterior este sentimento de renovação e trazia em seu bojo o evolucionismo
biológico de Darwin (1809-1882), o transformismo de Lamarck (1744-1829), as teorias sociais
de Karl Marx (1818-1883), e a revolucionária forma de pensar de Rousseau, que, foi colocada
em prática por Pestalozzi, mestre de Rivail. O mundo, portanto, despertava para o
evolucionismo, que nascido no século XVIII se consolidou no século XIX, e que podemos
resumir em quatro características básicas: 1) A evolução está presente no mundo natural
biológico e na produção humana; 2) A evolução tem um sentido, que pode, se não determinado,
ser predito (Fichte, Comte e Marx) ou pelo menos inteligível e pensável (Spencer e Darwin35);
3) No plano histórico, a evolução se fecha num ciclo; 4) O indivíduo está submetido a uma lei
que transcende a ele próprio e que até o determina (INCONTRI, 2001, p. 45).
Com uma relação estreita com o evolucionismo, o cientificismo36 por sua vez, acredita
35 Para Alfred Russel Wallace, coautor da teoria do evolucionismo biológico e espiritualista, “a evolução tem um
propósito e não se dá a partir do acaso - o universo mostra não apenas um desígnio, mas uma intenção.”. The
Last of the Great Victorians, Special Interview with Dr. Alfred Russel Wallace (in: The Millgate monthly, Aug.
1912. Disponível em: <https://people.wku.edu/charles.smith/wallace/S750.htm>. Acesso em 03 nov. 2017). 36A denominação ‘cientifismo’, ‘cientismo’ ou ‘cientificismo’ identifica a exacerbada convicção de que só é
possível explicar e orientar o comportamento humano e a convivência social pela via da ciência ‘positiva’.
40
na possibilidade incondicionada de poder explicar tudo através da ciência e, com isso,
transformar a realidade. O método científico pretende abarcar e desvendar toda a estrutura da
realidade do mundo a partir do Renascimento, passando pela Revolução Industrial como
resultado prático da Ciência. Partidário de tal convicção, Bertrand Russell durante o século XX,
explica que:
A ciência tem por meta descobrir, por meio da observação e do raciocínio a partir
desta, primeiros fatos particulares sobre o mundo, depois leis, ligando esses fatos uns
aos outros e, permitindo (nos casos favoráveis) prever eventos futuros. A este aspecto
teórico da ciência está ligada a técnica científica, que utiliza do conhecimento
científico para produzir condições de conforto e de luxo, que eram irrealizáveis, ou ao
menos muito mais caras, nos tempos pré-científicos. É este último aspecto que dá
tanta importância à ciência, mesmo aos olhos daqueles que não são cientistas.
(RUSSELL, 1971, p. 8)
Há aí uma dualidade que trata de um mundo real, fixo, acabado e imutável que pode ser
estudado e analisado, do qual seríamos prisioneiros de suas leis, podendo-se extrair dele, por
outro lado, diversas possibilidades em favor da humanidade, num caráter progressivo. Daí
poderiam se extrair novas descobertas que podem trazer aplicações inesperadas, estabelecendo-
se uma espécie de fé, na qual, para a ciência, tudo é possível, nada seria limitado. “A ciência
aspira abarcar o conhecimento inteiro do mundo [...] Nada do que é suscetível de entrar em
relação conosco é estranho ao seu domínio. É impossível, a priori, de lhe assinalar limites.”
(BOUTY, 1908, p. 21). Portanto, todos os fenômenos, inclusive os metafísicos, poderiam ser
explicados pela Ciência.
É nesse cenário que Kardec publica, em 18 de abril de 1857, O Livro dos Espíritos, com
tamanho êxito que precisou ser reeditado em 1860 corrigido e consideravelmente aumentado.
Teria sido o sucesso dessa edição o desejo dos leitores de terem respondidas as questões
apontadas por Mircea Eliade (1989): “o fascínio pelos ‘mistérios da Natureza’, o impulso de
penetrar e decifrar as estruturas internas da Matéria – todos esses anseios e impulsos denotam
uma espécie de nostalgia pelo primordial, pela matriz original universal”.
1.3.2. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Um brado pela liberdade de pensamento
Devido aos ventos de liberdade que sopraram na Europa com a Revolução Francesa,
com o enfraquecimento do absolutismo monárquico de direito divino e os privilégios de
nascimento da nobreza que empunham uma divisão social, os fundamentos da sociedade
Positivismo, evolucionismo spenceriano, o haeckelismo e outras correntes monistas constituíram exemplos do
pensamento ‘cientificista’ que também se caracterizou pelo sectarismo dogmático e intolerante dos adeptos de
cada uma das correntes que abrangia no final do século XIX. (COLLICHIO, 1988, p. 17.)
41
burguesa e capitalista foram reforçados de tal forma que o movimento francês influenciou
campanhas similares na Europa, além de processos de emancipação na América do Norte. Os
brados de liberdade cantados na Marselhesa falam a respeito disto:
Allons enfants de la patrie
Le jour de gloire est arrivé
Contre nous de la tyrannie
L'étendard sanglant est levé
L'étendard sanglant est levé
Entendez-vous dans les campagnes
Mugir ces féroces soldats
Ils viennent jusque dans vos bras
Égorger vos fils, vos compagnes
Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!
Marchons, marchons
Qu'un sang impur abreuve nos sillons!37
Qu'un sang impur abreuve nos sillons! – Que o sangue impuro regue os nossos sulcos
demonstra uma disposição de ir às últimas consequências pela liberdade, inclusive a de pensar.
A Marselhesa foi composta por um jovem oficial de Estrasburgo com o título original de Canto
de Guerra para o Exército do Reino e depois intitulada Les Enfants de la patrie – Os filhos da
Pátria, tornou-se canto nacional em 1795, foi proibido durante império e, em 1879, reconhecido
como Hino da Terceira República. A Revolução Francesa, numa aliança eclética, reunia desde
o campesinato, passando pelos sans-culottes até a alta burguesia, tendo cada um destes
segmentos diferentes percepções desse movimento.
Decorrente da Revolução Francesa, foi promulgada em 1789 pela Assembleia Nacional
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão38 , em francês: Déclaration des Droits de
l'Homme et du Citoyen, que, entre 17 artigos, estabelece logo em seu primeiro o direito de
liberdade e de igualdade:
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO
Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL,
considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem
são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram
expor em declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do
Homem, [...]
Por consequência, a ASSEMBLEIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e
sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:
Artigo 1º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções
sociais só podem fundar-se na utilidade comum.
37 Vamos, filhos da Pátria/ O dia da glória chegou / Contra nós da tirania / A bandeira sangrenta é levantada /A
bandeira sangrenta é levantada / Você ouve no campo / Os uivos de soldados ferozes /Eles vêm até os seus braços
/ Matar seus filhos, seus companheiros / Às armas cidadãos! Formem seus batalhões! /Marchemos, marchemos
/ Que o sangue impuro regue nossos sulcos. Disponível em: <http://www.elysee.fr/la-presidence/la-marseillaise-
de-rouget-de-lisle/>. Acesso em: 28 out. 2017. 38 Texto completo da declaração no ANEXO C.
42
Artigo 2º - O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais
e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência à opressão.
Artigo 3º - O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação.
Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não
emane expressamente.
Artigo 4º - A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique
outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites
senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos
direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei. [...]
Artigo 10º - Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões
religiosas, contando que a manifestação delas não perturbe a ordem pública
estabelecida pela Lei.
Artigo 11º - A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever,
imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos
previstos na Lei. [...] (CCF, 1789)
Essa declaração faz um contraponto ao Absolutismo Monárquico e a certos preceitos
religiosos da época, e é revolucionária no real sentido da palavra, na medida em que
transformou de maneira definitiva a posição do ser humano diante da sociedade. Além das
questões políticas intrínsecas que contrapõem os poderes políticos, abre um precedente no que
diz respeito ao pensamento religioso. Quando expõe os Direitos naturais, inalienáveis e
sagrados do Homem, um paradigma importante imposto por séculos pela Igreja Católica é
rompido, de forma a colocar o ser humano em uma posição de destaque no mundo em que
vivemos, mais em consonância com o pensamento de Rousseau que diz que o homem é bom
em seu estado Natural, ou seja, que traz em si mesmo o germe desta bondade (ROUSSEAU,
2004, p. 95).
É importante observar que esta declaração, apesar de romper com o paradigma de
obediência à Igreja, já que a soberania reside essencialmente na Nação, não rompe com a
divindade, pois declara que seus termos são postos “na presença e sob os auspícios do Ser
Supremo”. Diz fundar seus princípios na constituição do Estado, que deve garantir e conservar
a felicidade do homem. Rubem Alves cita Kant em sua obra dizendo que o Iluminismo permitiu
o nascimento de um novo homem:
Trata-se de uma descrição do novo homem que julgava ver nascer. Livre da tutelagem
de forças externas a ele mesmo, não mais submisso a qualquer poder heteronômico,
este novo homem anuncia a sua bandeira: “Sapere Aude! Ousa Saber. Tem coragem
de usar a tua razão”. Abre-se um mundo novo como permissão e convite. Nasce o
homem livre e com coragem para conhecer e dominar tal mundo. Transformação
fundamental. De santo a cientista. (ALVES, 1984, p. 67)
Rubem Alves, em sua obra O Enigma da Religião, afirma que “O que está em jogo é a
constatação de que as estruturas de pensamento e de linguagem que o teísmo oferecia entraram
em colapso. Chegou ao fim uma certa visão do universo. Uma nova maneira de pensar a vida,
43
de encarar os seus problemas” (ALVES, 1984, p. 60). Com essa nova forma de pensar, ele traz
também o pensamento de Feuerbach que diz: “O cristianismo, [...] já desapareceu há muito
tempo não apenas da razão, mas da própria vida da humanidade” (FEUERBACH, 1957, p.
xxiv).
É no meio dessa oportunidade de um novo pensar, que o Espiritismo surge oferecendo
uma nova forma de encarar o transcendente. Centrado no cristianismo, mas com um conceito
diferenciado de Deus, essa doutrina vai contra toda uma forma de pensar típica do seu tempo,
afirmando que a própria razão dá significado à existência de Deus.
Para Kardec, o Espiritismo, em consonância com o pensamento iluminista, não é
teocêntrico, mas é centrado na razão do homem e acredita que este é responsável por suas ações
e deve se responsabilizar por seus atos, e, portanto, tem que usar a razão como ferramenta de
compreensão do mundo em que vive. Kardec entende que apesar de o homem ser racional e,
portanto, responsável pelo que acontece em sua própria vida, ele também pode errar e com isto
gerar consequências para o mundo ao seu redor, para si mesmo e para a sociedade:
O homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas
ideias são as mais falsas, se apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo
o que lhes parece impossível. Os que outrora repeliram as admiráveis descobertas de
que a Humanidade se honra, todos endereçavam seus apelos a esse juiz, para repeli-
las. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer
que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos, pois, aos
ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro pelo
passado, não creem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a Natureza lhe
tenha facultado ler a última página do seu livro. (KARDEC, LE: Introdução: VII)
É com base nesse princípio de falibilidade do ser humano que Kardec julga a sua obra
inacabada. Baseando-se no princípio do progresso ininterrupto, reafirma sua fé na razão,
dizendo que o Espiritismo não tem a última palavra e que se houver algum ponto em que a
ciência a contradiga, faça a opção pelo conceito científico.
Um último caráter da revelação espírita, [...], é que, apoiando-se em fatos, tem que
ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de
observação. Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da
Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus,
autor daquelas leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem,
glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas
idéias que formaram de Deus. O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio
absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta
logicamente da observação. Entendendo com todos os ramos da economia social, aos
quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas
progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de
verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. (...)
Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque,
se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer,
ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.
(KARDEC, AG: Cap. I: 55, grifos nossos).
44
Totalmente consoante com o pensamento de liberdade, Kardec faz da proposta
espiritista uma alternativa secularizante39, livre de dogmas e imposições, de forma que a
humanidade é livre para escolher sua crença e o seu Deus e afirma que:
O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral
e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular.
Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade
de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência,
pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide, pois, cada um, ao templo do
vosso culto ... (KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62 e 63)
1.3.3. Princípios de Igualdade e Fraternidade: A influência de Rousseau
Assim como não é possível falar da vida de Kardec sem citar a influência significativa
de Pestalozzi, não se pode deixar de falar desse sem falar de Rousseau, já que suas influências
também podem ser identificadas na obra do codificador do Espiritismo como já citamos na
terceira parte deste capítulo.
As luzes da liberdade tratadas na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen,
começaram a ser trilhadas muito antes. Jean Jacques Rousseau, um dos pais do Iluminismo
francês publicou, em abril de 1762, a obra Du Contrat Social ou Principes du droit politique40
e poucas semanas depois Émile ou De l’éducation41. Essas obras são revolucionárias e foram
de fundamental importância para a fundamentação do pensamento Iluminista. Logo no primeiro
capítulo do livro O Contrato Social, Rousseau define que o homem é livre, e que a ordem social
é baseada em convenções humanas:
O homem nasceu livre, e, por toda parte geme agrilhoado; o que julga ser senhor dos
demais é de todos o maior escravo. Donde veio tal mudança? Ignoro-a. Quem a
legitima? Esta questão creio poder resolver. [...] Mas a ordem social é um direito
sagrado, onde todos os outros se fundamentam, direito não vindo da natureza, mas
fundado em convenções; antes de dizer quais elas sejam, cumpre firmar o que acabo
de dizer. (ROUSSEAU, 2003, p. 23)
Nessa obra, Rousseau defende que o Estado exerça seu papel de forma igualitária para
o ser humano, no qual todos possam, no plano civil, ter restabelecida a igualdade natural. Mas,
além de liberdade, ele propõe a igualdade entre os seres. Na obra Platão, Rousseau e o Estado
total, Gilda Barros afirma que “Enquanto Platão esposa claramente a ideia da superioridade de
poucos em relação à maioria, Rousseau insiste na igualdade da natureza humana. Quer vê-la
39 No segundo capítulo deste trabalho iremos abordar a questão da secularização no espiritismo de forma mais
profunda. 40 “Do contrato social ou princípios do direito político” 41 “Emílio, ou Da Educação”
45
garantida pela expressão da vontade geral, a fórmula da virtude.” (BARROS, 1996, p. 163). No
desenvolvimento da obra O Contrato Social, Rousseau discute questões delicadas como a
propriedade, que, a princípio, seria a origem da desigualdade entre os homens, na medida em
que alguns haveriam usurpado de outros. Para ele, o contrato social, título de sua obra, seria a
solução que se daria pela soberania popular, na qual a vontade coletiva estabeleceria as soluções
das relações, e o ponto fundamental era a igualdade entre as pessoas, a vontade e o interesse no
bem comum. “Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum
a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça, todavia,
senão a si mesmo e fique tão livre como antes.” (ROUSSEAU, 2003, p. 31). Com essas
afirmações, ficou estabelecido que o Soberano seria o povo e não o rei, e estava lançada a base
para a Fraternidade.
Com a reformulação de tais princípios, Rousseau elevou-se muito acima de seus
contemporâneos, estabeleceu uma lógica de liberdade como direito inalienável e como
exigência essencial da própria natureza espiritual do homem, dessa forma, levou às últimas
consequências o pensamento iniciado pelo humanismo renascentista.
Na obra Emílio, Rousseau afirma que o homem nasce bom em seu estado natural, e que
tudo que reside nele depende da educação, podendo ele ser moldado por quem o cria. Quem
educa, segundo Rousseau, tem o poder de corromper. “Toda nossa sabedoria consiste em
preconceitos servis, todos os nossos costumes não passam de sujeição, embaraço e
constrangimento. [...] enquanto conservar a figura humana, estará acorrentado por nossas
instituições” (ROUSSEAU, 2004, p. 16). Do ponto de vista da religião, o conceito da bondade
natural rompe diretamente com o dogma do pecado original da Igreja, e a ideia de os homens
estarem acorrentados às instituições rompe não só com o Estado quanto com a própria Igreja.
A reação às obras de Rousseau foi violenta. O parlamento de Paris condenou Emílio a
ser rasgado e queimado, e que seu autor devia ser detido e conduzido às prisões. O mesmo se
deu com O Contrato Social. O arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, condenou o livro
Emílio como “blasfematório, ímpio e cheio de heresias”. (ALVES, 2014, p. 47). Rousseau foi
severamente perseguido, inclusive em Genebra, onde suas obras foram queimadas e sua prisão
decretada (ALVES, 2014, p. 47). Apesar das perseguições e mandatos de prisão, ele foi seguido
por muitos que estudaram suas obras proibidas. Entre esses, na cidade de Zurique estava A
Sociedade Helvética, onde entre seus membros encontraríamos Pestalozzi e Lavater, que
inclusive foram presos por seus atos subversivos (NATORP, 1931, p. 8). Não haveria mais
retorno, o germe dos conceitos de Liberdade e Igualdade a Fraternidade estavam lançados na
sociedade.
46
Anos mais tarde, apesar de nunca ter conhecido Rousseau pessoalmente, Pestalozzi
abandonou os estudos de teologia influenciado por este e pensou em seguir carreira política,
passando a escrever artigos de cunho político, inspirado nas publicações de Rousseau
(NATORP, 1931, p. 9). Defendeu e ampliou os conceitos de seu mestre, pois acabou por ser
seu discípulo no campo da educação, na qual o conceito de bondade natural do homem foi
ampliado, dizendo que o ser humano não é apenas bom em seu estado natural, mas também já
traz, em si mesmo, o germe da sabedoria e da virtude. Kardec por consequência herda de seu
mestre este conceito. Para Kardec, em Obras Póstumas, a Fraternidade,
[...] na rigorosa acepção do termo, resume todos os deveres dos homens, uns para com
os outros. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência.
É, por excelência, a caridade evangélica e a aplicação da máxima: “Proceder para com
os outros, como quereríamos que os outros procedessem para conosco.” O oposto do
egoísmo. A fraternidade diz: “Um por todos e todos por um.” O egoísmo diz: “Cada
um por si.” Sendo estas duas qualidades a negação uma da outra, tão impossível é que
um egoísta proceda fraternalmente para com os seus semelhantes, quanto a um
avarento ser generoso, quanto a um indivíduo de pequena estatura atingir a de um
outro alto. (KARDEC, OP: Liberdade, Igualdade e Fraternidade).
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, portanto são princípios que ficaram claramente
marcados em toda a obra tanto de Hippolyte Léon Denizard Rivail, como de Allan Kardec.
1.4. Outras influências do século XIX
O Espiritismo tem sido apresentado como uma doutrina de aspecto tríplice, filosofia,
ciência e religião assunto, que citaremos no capítulo três deste trabalho no que o Dr. Araujo da
UFJF chama de hibridismo (2010, p. 132) e que o Dr. Silvio Chibeni (2003a, p. 315) diz ser
assunto que tem sido mal compreendido. No capítulo três, abordaremos o assunto de forma
mais aprofundada.
Até aqui neste capítulo, falamos da formação e das influências religiosas e filosóficas
de Kardec no que tange aos aspectos de sua vida pessoal enquanto Rivail, porém é necessário
identificar também as influências que ele recebeu no campo das ciências naturais,
particularmente da Física e da Química.
1.4.1. A física do século XIX
O estudo do universo em que vivemos foi sempre objeto de interesse dos pensadores.
No século XV, Nicolau Copérnico (1473-1543) propôs uma das mais controversas teorias
47
científicas a respeito de nosso universo para a época, o heliocentrismo; Galileu Galilei (1564-
1642), defendeu as ideias de Copérnico além de desenvolver pontos relevantes da Física; René
Descartes (1596-1650), considerado por alguns como o fundador da Filosofia e da Matemática
moderna, Isaac Newton (1643-1727) o pai da Física Clássica, e Pierre-Simon Laplace (1749-
1827) proeminente estudioso da Mecânica Celeste. Citamos esses apenas como exemplos dessa
época extremamente prolífera, em que foram registrados avanços significativos para o
desenvolvimento da ciência moderna. Foram desenvolvidas, portanto, importantes teorias a
respeito do funcionamento do universo em que vivemos. Entre essas teorias, uma das mais
proeminentes foram as Teorias do éter42 e do vácuo, que foram amplamente discutidas no século
XIX.
Laplace considerava que todos os movimentos da humanidade seriam previsíveis, caso
fossem conhecidas as informações sobre a posição, velocidade e direção inicial de cada átomo,
da mesma forma que se pode prever os movimentos de uma bola de bilhar. Essa previsibilidade
dos fatos foi chamada de determinismo. Através dessa lógica, o determinismo foi adotado como
pressuposto científico básico para todas as demais ciências, inclusive as humanas e biológicas,
a exemplo do que já citamos no tópico 1.3.1 deste capítulo. Através do pensamento de Laplace,
acreditava-se que os corpos fossem formados por pequenas esferas diminutas perfeitamente
homogêneas, sólidas, indestrutíveis eternas e indivisíveis. Essas partículas se combinariam por
afinidade43. Segundo essa teoria, todo o universo fora da matéria seria um imenso e absoluto
vazio. Esta ideia caiu quando os físicos modernos se debruçaram sobre as partículas e outros
fenômenos como a luz e o calor (FIGUEIREDO, 2016, p. 424). É bom ressaltar que hoje o
determinismo e o mecanicismo são questionados pela física moderna.
Por grande que fosse o êxito das ideias clássicas na interpretação dos fenômenos de
interferência, não menos impressionante é a sua incapacidade para esclarecer os
processos de emissão e absorção da radiação. Aqui a eletrodinâmica e a mecânica
clássica fracassaram em absoluto (…). Finalmente a mecânica e a estatística clássica
também falharam na explicação das leis da radiação do calor (ou energia) (BORN,
1971, p. 90)
42 A teoria do éter é o nome dado ao conjunto de ideias produzidas principalmente na segunda metade do século
XIX com o objetivo de dar um corpo coeso às teorias físicas existentes até então. Apesar de podermos encontrar
traços fortes dessa teoria desde o pensamento de Isaac Newton (1642-1727), foram Hendrik Lorentz (1853-1928)
e Henri Poincaré (1854-1912) os cientistas que ficaram conhecidos como autores dela. Hoje a teoria do éter é
vista como uma abordagem equivocada para os fenômenos naturais. Ela não é mais lecionada ou defendida
enquanto teoria física, restando-lhe somente seu grande valor histórico, embora a física moderna na atualidade
venha reabrindo a discussão a esse respeito com as novas teorias a respeito da “matéria escura” 43 A Química do século XIX concebia duas forças atômicas: coesão e afinidade. A coesão unia as moléculas
homogêneas como as partículas do ouro entre si, dando origem ao metal. Já a afinidade seria uma atração de
combinação de moléculas heterogêneas, como a atração do hidrogênio e do oxigênio para formar a água.
(FIGUEIREDO, 2016, p. 404)
48
A partir das discussões ao redor das questões da radiação do calor e da energia de modo
geral, ganharam força a teoria de propagação de ondas no éter ou campo eletromagnético
propostas por Maxwell, a partir das experiências de Faraday, que segundo Einstein,
Nossa única saída parece ser a de ter por fato consumado que o espaço tem a
propriedade física de transmitir ondas eletromagnéticas [...]. Ainda podemos usar a
palavra Éter, mas apenas para expressar alguma propriedade física o espaço. Essa
palavra éter mudou de significado muitas vezes com o desenvolvimento da ciência.
No momento, não mais representa o meio formado de partículas. Sua história, de
modo algum acabada, é continuada pela teoria da relatividade. (EINSTEIN, 2008, p.
131)
Nessa linha de discussão, enquanto se discutia questões da validade ou não da teoria do
éter e do vácuo, surgiu a teoria do magnetismo animal criada pelo médico alemão Franz Anton
Mesmer (1734-1815). Ele sustentava que seria possível, entre outros fenômenos, desenvolver
a cura pelo magnetismo animal, através de um processo de indução natural do estado de saúde
do magnetizador para o paciente, promovendo uma evolução mais rápida em seu processo
natural de restabelecimento. Mesmer afirmava que “o magnetismo animal bem direcionado é o
meio geral de restabelecer a harmonia alterada em todos os casos possíveis” (apud,
FIGUEIREDO, 2016, p. 433)
Franz Anton Mesmer44 nasceu na região do lago de Constância, que divide a fronteira
entre a Suíça e a Alemanha, na cidade Suábia de Iznang em maio de 1734, era o terceiro filho
de nove de Anton Mesmer, guarda de caça das florestas do bispo de Constância. A grande
capacidade intelectual do menino foi notada pelo Bispo von Schönborn. Logo cedo, na
educação primária, aprendeu línguas, literatura clássica, e tornou-se um grande musicista.
Estudou Filosofia na Universidade de Dillingen, na Bavária, e em seguida na Universidade de
Ingolstadr. Estudou ainda Teologia, Astronomia, e Matemática, com aprofundamento nas
experiências de Galileu, nas leis de Kepler e de Newton, e em 1759 abandonou um lugar na
Igreja, optando por estudar na Universidade de Viena. Por um ano dedicou os seus estudos no
campo do Direito, mas acabou por migrar para a Medicina, que em Viena havia sido totalmente
reformulada pelo médico Hermann Boerhaave (1668-1738) e depois de 6 anos doutorou-se
como médico.
Hermann Boerhaave reformulou os estudos da Medicina, rompendo com a formação
galênica e arcaica, e usava a Física e a Química para compreender os movimentos da circulação
sanguínea, o sistema nervoso, as funções do cérebro, os pulsos elétricos no sistema nervoso e a
44 A influência do trabalho de Mesmer na obra de Kardec foi importante e por isso optamos em inserir essa pequena
biografia de Mesmer já que ele não se tornou amplamente conhecido como Pestalozzi, Rousseau e outros citados
em nosso trabalho.
49
função das secreções glandulares. Mesmer recebeu na Universidade vienense a melhor
educação médica da Europa e completou sua formação com um doutorado sobre a influência
dos astros no corpo humano. Os estudos de Mesmer não tinham nada de místicos e tratavam de
forma estritamente científica as possíveis influências da força da gravidade sobre os ciclos
naturais da fisiologia humana em comparação com esta influência nas marés.
Em 1774 iniciou suas experiências com o magnetismo através de passes com uma
senhorita de 29 anos, de nome Esterlina e, a partir daí, progrediu em sua técnica, tendo sucesso
em centenas de casos. Desenvolveu uma base teórica a respeito do magnetismo, registrando
criteriosamente os seus resultados fundamentando-os na Física, Fisiologia e Medicina. O
sucesso de sua técnica suscitou fortes resistências na classe médica da época. (FIGUEIREDO,
2016, p. 427-438)
A resistência obstinada que se opôs a esse método no início do seu desenvolvimento
não me dissuadiu de continuar minhas observações; quanto mais eu as confirmava
através de minhas anteriores conjecturas, mas me esforçava para conseguir o
aperfeiçoamento de alguns conhecimentos físicos, retificando-os, a fim de elaborar o
sistema sobre o mecanismo interno da Natureza, do qual deveria surgir um novo
conhecimento sobre a conservação da saúde (MESMER apud FIGUEIREDO, 2016,
p. 430)
Apesar de ter suscitado desconfiança, da classe médica de um lado, por outro despertou
o interesse de alguns, entre eles o teólogo Johann Kaspar Lavater, amigo e protetor de
Pestalozzi, citado no tópico 1.2 deste capítulo, e do Sr. Rivail como explicitaremos mais à
frente.
Um dos pontos mais significativos a respeito das pesquisas de Mesmer, que foi batizada
de Mesmerismo, foi a concepção da teoria geral física da ciência do magnetismo animal, que
este denominou por Fluido Universal. Nessa teoria ele parte do pressuposto que a teoria de
Laplace e Lavoisier estava equivocada, já que “nem a luz, nem o fogo, nem a eletricidade, nem
o magnetismo e nem o som são substâncias, mas sim efeitos do movimento de diversas séries
do fluido universal” (FIGUEIREDO, 2007, p. 529)
Para Mesmer, desde a matéria sólida, passando pelo estado líquido, gasoso, depois o
éter e outras fases desconhecidas, tudo estaria representado pela:
[...] existência de um fluido universal, que é o conjunto de todas as séries da matéria
dividida pelo movimento interno (isto é, o movimento de suas partículas entre si).
Nesse estado, ele preenche os interstícios de todos os fluidos, do mesmo modo que
todos os sólidos contidos no espaço. Por causa dele, o universo está fundido e reduzido
a uma única massa (MESMER apud FIGUEIREDO, 2016, p. 436).
Apesar disso, esse fluido não tem nenhuma propriedade per si, ele não é elástico e não
tem peso, mas as tem em suas modificações “é o meio apropriado para determinar as
50
propriedades de todas as ordens de matéria que se encontram mais compostas e que não é ele
próprio” (MESMER apud FIGUEIREDO, 2016, p. 436).
O Fluido cósmico definido por Mesmer guarda grande analogia à seguinte descrição de
Einstein: “A maior parte da energia está concentrada na matéria, mas o campo que circunda a
partícula também representa energia. [...] Poderíamos, portanto, dizer: Matéria é onde a
concentração de energia é grande, e campo onde a concentração de energia é pequena”
(EINSTEIN, 2008, p. 201)
1.4.2. As ciências naturais do século XIX na obra kardeciana
A presença dos conceitos citados no tópico anterior é marcante na obra de Kardec e não
é difícil essa constatação, na medida em que ele os usa como referência em toda a sua obra,
particularmente na quinta obra de sua série, publicada em 6 de janeiro de 1868, intitulada A
Gênese. A própria estrutura de O Livro dos Espíritos, que é feita de perguntas e respostas, deixa
clara essa influência, na qual as perguntas eram elaboradas por Kardec e as respostas eram
atribuídas aos Espíritos.
As perguntas elaboradas eram estruturadas de forma a desenvolver e comprovar uma
linha de raciocínio do próprio Kardec, e tinham por base o conhecimento científico, filosófico
e religioso da época e na formação do autor nestes campos do conhecimento.
No que tange às ciências, por exemplo, que é o ponto em questão deste tópico, a
influência desses conhecimentos é extremamente significativa, pois sem entrar no mérito das
respostas dadas pelos Espíritos vamos encontrar Kardec fazendo as mesmas perguntas que os
cientistas da época estavam elaborando e, cada um à sua maneira, procurando as respostas.
No capítulo segundo de sua obra basilar, O Livro dos Espíritos, Kardec faz algumas
perguntas que vão ao encontro das dúvidas dos cientistas da época:
A ponderabilidade é um atributo essencial da matéria?
A matéria é formada de um só ou de muitos elementos?
Donde se originam as diversas propriedades da matéria?
A mesma matéria elementar é suscetível de experimentar todas as modificações e de
adquirir todas as propriedades?
As moléculas têm forma determinada?
O vácuo absoluto existe em alguma parte no Espaço universal? (KARDEC, 2009, p.
76 -79)
Nessas perguntas, vemos a necessidade de identificar os mesmos pontos que foram
tratadas por Laplace sobre a questão da ponderabilidade da matéria além das relacionadas à sua
composição. Vemos também a preocupação com a questão do vácuo e do éter. Quando ele
51
pergunta sobre as propriedades da matéria e daquilo que ele chama de matéria elementar, que
poderia adquirir diversas propriedades, ele está se referindo às questões do éter e, mais
particularmente, à questão do fluido universal tratado por Mesmer. No que diz respeito ao fluido
universal, inclusive, ele adota tal conceito como uma das bases fundamentais da sua obra.
[...] a teoria do fluido universal foi proposta pelo médico alemão Franz Anton Mesmer
como alternativa paradigmática da física adequada para explicar sua teoria, já que não
admite a hipótese substancialista que estava sendo incorporada à ciência oficial em
sua época. A teoria dinâmica ou ondulatória do fluido universal, proposta por Mesmer,
foi assim adotada pelos espíritos superiores nas obras da doutrina espírita. Desse
modo, podemos concentrar na sequência das páginas da obra de Kardec, citações das
duas teorias, a dos fluidos imponderáveis que ele aprendeu dos manuais de física, e
da do fluido universal proposta por Mesmer e desenvolvida pelos espíritos. Por fim,
como veremos na obra A gênese, Kardec definiu a segunda teoria como princípio
fundamental estabelecida pela concordância do ensino dos espíritos superiores.
(FIGUEIREDO, 2016, p. 408 a 409)
As influências das Ciências que estão presentes de modo geral na obra kardeciana,
particularmente da Física e da Química, ficam claramente estabelecidas no livro A Gênese, em
sua primeira parte, dos capítulos IV até o X, que tratam, entre outros, dos seguintes assuntos:
1) Papel da ciência na gênese; 2) O espaço e o tempo; 3) A matéria; 4) As leis e as forças; 5) A
criação primária; 6) A criação universal; 7) Os sóis e os planetas; 8) Os satélites; 9) Os cometas;
10) A Via Láctea; 11) As estrelas fixas; 12) Os desertos do espaço; 13) Eterna sucessão dos
mundos. No início dessa primeira parte, Kardec afirma:
Impotente se mostrou o homem para resolver o problema da Criação, até o momento
em que a Ciência lhe forneceu para isso a chave. Teve de esperar que a Astronomia
lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar aí o olhar; que, pelo
poder de cálculo, determinasse com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o
volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a Física lhe revelasse as leis da
gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a Química lhe mostrasse as
transformações da matéria e a Mineralogia os materiais que formam a superfície do
globo; que a Geologia lhe ensinasse a ler, nas camadas terrestres, a formação gradual
desse mesmo globo. À Botânica, à Zoologia, à Paleontologia, à Antropologia coube
iniciá-lo na filiação e sucessão dos seres organizados. Com a Arqueologia pôde ele
acompanhar os traços que a humanidade deixou através das idades. Numa palavra,
completando-se umas às outras, todas as ciências houveram de contribuir com o que
era indispensável para o conhecimento da história do mundo. Em falta dessas
contribuições, teve o homem como guia as suas primeiras hipóteses. (KARDEC, AG:
Cap. IV: 3).
As citações de Kardec a respeito da matéria são particularmente interessantes, porque
demonstram que ele se baseava na Física corrente, e que, além de questionarem a
ponderabilidade da matéria, estão intimamente ligadas com as teorias do éter e do vácuo de seu
tempo, como ele descreve:
Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos. Esse fluido é o éter ou
matéria cósmica primitiva, geradora do mundo e dos seres. Ao éter são inerentes as
forças que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que
regem o mundo. Essas múltiplas formas, indefinidamente variadas segundo as
52
combinações da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas em seus
modos de ação, segundo as circunstâncias e os meios, são conhecidas na Terra sob os
nomes de gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa. Os
movimentos vibratórios do agente são conhecidos sob os nomes de som, calor, luz
etc. (KARDEC, AG: Cap. VI: 10).
As influências de Mesmer na obra kardeciana vão além das questões do fluido universal,
a ponto de o mesmo afirmar que “o magnetismo e o Espiritismo são, com efeito, duas ciências
gêmeas, que se completam e explicam uma pela outra, e das duas, a que não quer imobilizar-se
não pode chegar ao seu complemento sem se apoiar na sua congênere.” (KARDEC, RE:
Jan/1869, p. 28). Diz ainda Kardec em O Livro dos Espíritos, no qual categoricamente afirma
o caráter científico do Espiritismo:
O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma imensidade de fenômenos
sobre os quais a ignorância teceu um sem-número de fábulas, em que os fatos se
apresentam exagerados pela imaginação. O conhecimento lúcido dessas duas ciências
que, a bem dizer, formam uma única, mostrando a realidade das coisas e suas
verdadeiras causas, constitui o melhor preservativo contra as idéias supersticiosas,
porque revela o que é possível e o que é impossível, o que está nas leis da Natureza e
o que não passa de ridícula crendice. (KARDEC, LE: Questão:555).
53
2. FÉ INABALÁVEL E RAZÃO: O significado de religião para Allan Kardec
No primeiro capítulo discorremos sobre Allan Kardec, sua formação e influências. Neste
capítulo iremos fazer uma análise de ordem epistemológica do conceito de religião e efetuar
um diálogo com o Espiritismo.
Para o cientista da religião, um conceito adequado só poderá ser encontrado na precisão
das palavras, pois a definição de um termo encontra-se na sua caracterização, uma vez que há
uma tendência que os indivíduos falem das coisas segundo o seu ponto de vista, tomando por
referência somente aquilo que conhecem. Primeiramente, procuraremos entender os conceitos
históricos da religião tratada por Cícero e Lactâncio. O primeiro entendia a religião com um
sentido escrúpulo em relação ao culto; o segundo tinha uma visão de que religião fosse somente
a cristã porque essa seria a verdadeira religião, a única que, pelo laço de piedade, nos uniria a
Deus. Em seguida, estabeleceremos um diálogo entre o conceito de religião de Benson Saler,
que se baseia nas semelhanças familiares de Wittgenstein, e o de Greshat e Clifford Geertz, o
qual afirma que as questões de simbologia e cultura definem as religiões. Depois, num terceiro
momento, vamos discorrer como Kardec dialoga com o conceito de crença no sagrado e sua
relação com o profano, tomando por referências Mircea Eliade e Rudolf Otto. De posse dos
conceitos desses autores, vamos desenvolver um diálogo de Kardec com cada um para
compreender o entendimento do Espiritismo acerca de mitos, ritos e símbolos e entender porque
Kardec afirmava que esses não estavam presentes no Espiritismo.
2.1. Identificando um possível conceito de religião
Identificar um conceito de religião não é uma tarefa fácil, principalmente quando
falamos do mundo ocidental que tem uma tendência de confundir religião com o cristianismo,
particularmente quando falamos de suas versões teológicas católicas e protestantes. Para o
cientista em geral, a precisão dos termos é algo que deve ser perseguido, mas, para o cientista
da religião, essa precisão não se apresenta como uma fórmula ou um cálculo e só poderá ser
encontrada na precisão das palavras, ou seja, nos conceitos. A definição de um termo encontra-
se na sua caracterização. E é neste ponto que está o problema, pois há uma tendência que os
indivíduos falem das coisas segundo o seu ponto de vista, tomando por referência aquilo que
conhecem, segundo Greschat, “quem conhece apenas uma religião só pode falar a respeito dela”
(2005, p. 18). Na busca por ouro e especiarias, há muito tempo os europeus descobriram os
chineses, hindus, índios, africanos e australianos, e com isso descobriram a existência de
54
diversas outras religiões, os judeus, por sua vez, na Terra Santa, conviveram por muito tempo
com os mulçumanos. Essa diversidade de religiões, no entanto, não abalou os europeus, os
quais, a exemplo de Lactâncio, como veremos à frente, acreditavam que somente o
“cristianismo era a verdadeira religião” (LACTÂNCIO, apud AZEVEDO, 2010, p. 93) capaz
de religar o homem a Deus.
Sobre a diversidade das religiões, Greschat faz uma comparação interessante;
É como no caso dos seres humanos: alguns conhecemos bem, outros apenas pelo
nome, muitos só de vista. Indo além, os rostos transformam-se em massa anônima que
acaba abstraída em humanidade. Chega-se a um último grau de abstração quando
todos os homens e todas as mulheres, independentemente de sua raça e cultura,
profissão interesses, são sintetizados como “espécie humana”. Faz-se o mesmo com
as religiões. (GRESCHAT, 2005, p. 18)
A generalização do que entendemos por religião feita acima é compatível com as
discussões sobre jogos de linguagem feitas por Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em seu livro
Investigações Filosóficas, no qual faz afirmações dessa ordem quando fala em semelhanças
familiares, ao comparar características entre os seres humanos (WITTGENSTEIN, 1994, p. 52).
Wittgenstein discute quando fala de jogos de linguagem da generalização das palavras para
definir coisas e traça uma comparação dos conceitos que carregam as palavras como uma linha
de costura. Segundo ele, as linhas de costura apresentam em si mesmas uma unidade, uma forma
única, embora sejam compostas de diversas fibras de algodão que se unem e se sobrepõem umas
às outras (1994, p. 52), assim como certos conceitos. De forma semelhante, o antropólogo
Benson Saler se apoia nas considerações de Wittgenstein para falar de religião da seguinte
forma:
Como indica a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem
definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. (Alguns
acadêmicos, de fato, propuseram rótulos como "quase-religiões" ou "semi-religiões"
para indicar que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma
forma, mas não o suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de
"religião".) Além disso, algumas religiões apresentam um volume maior de
características típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião do que
outras, e talvez uma maior elaboração dessas características do que é o caso em outros
lugares. Algumas religiões, por assim dizer, são "mais religiosas" do que outras. A
religião, então, na minha abordagem, é uma categoria graduada cujas instanciações
estão ligadas por semelhanças de família. Eu defendo ainda que nós reconhecemos
explicitamente que para a maioria dos acadêmicos ocidentais, os exemplos mais claros
da categoria religião, os exemplos mais prototípicos dela, são aquelas famílias de
religiões que chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias
exibem os maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião.
E, claro, essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela
primeira vez com o termo religião. [...] (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).45
45As the scholarly literature on religion indicates, there are no sure, sharp, and universally accepted criteria for
marking off religion from not-religion. (Some scholars, indeed, have proposed such labels as "quasi-religions"
55
Identificamos nas afirmações de Saler, citadas anteriormente, quatro pontos
extremamente relevantes: primeiro, e o mais óbvio, que não há uma definição clara e
universalmente aceita sobre o conceito de religião; segundo, que há fenômenos rotulados como
religiões que podem apresentar características tão particulares e distintivas a ponto de se
questionar, inclusive, se as mesmas podem se enquadrar nessa categoria; terceiro, que Saler se
utiliza das considerações de Wittgenstein de semelhança familiar para definir e categorizar o
fenômeno religioso46, assunto que desdobraremos mais à frente; quarto, que o entendimento de
religião está intimamente ligado a questões de cultura e formação do indivíduo.
2.1.1. RELEGERE ou RELIGARE?
Como já vimos anteriormente no texto de Saler: “não há critérios seguros, bem definidos
e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião.” (2000, p. xiv, tradução
nossa). Estaria correto Mircea Eliade considerar a religião como algo sui generis no âmbito dos
assuntos estudados pelas Ciências Humanas, e que, portanto, seria necessário estabelecer uma
metodologia própria para seu estudo? (PASSOS, 2013, p. 39). Não temos a intenção aqui de
resolver esse problema, e chegar a uma conclusão clara a respeito do que é ou não é religião,
mas precisamos de um ponto de partida. Portanto, para compreender o conceito de religião,
devemos avaliar primeiramente algumas questões históricas.
O termo religio, antes de pertencer ao domínio específico do religioso, esteve presente
no cotidiano de Roma e foi empregado tanto nos cultos romanos quanto nos cultos da religião
cristã. Sua origem navegou entre duas etimologias possíveis, uma cristã e outra romana, e a
pergunta é: como o mesmo termo pode ter dois princípios tão diferentes e ter designado coisas
tão distintas? Dubuisson explica que a palavra religio “só podia ser o sentido primeiro e muito
especializado de uma palavra latina antes ordinária e que permaneceu assim até que os
primeiros pensadores cristãos se apoderaram dela e favoreceram seu excepcional destino.”
or "semi-religions" to indicate that various complexes of phenomena resemble religions in some ways, but not
sufficiently in other respects to justify the unqualified label "religion.") Further, some religions exhibit more of
the typicality features that we associate with our general model of religion than do others, and perhaps greater
elaboration of these features than is the case elsewhere. Some religions, in a manner of speaking, are "more
religious" than others. Religion, then, in my approach, is a graded category the instantiations of which are linked
by family resemblances. I further advocate that we acknowledge explicitly that for most Western scholars the
clearest examples of the category religion, the most prototypical exemplars of it, are those families of religions
that we call "Judaism," "Christianity," and "Islam." Those families exhibit the greatest clusterings of typicality
features that we associate with religion. And, of course, those are the religions that most of us, as children, first
identified with the term religion. 46 Em sua obra “Conceptualizing Religion; Immanent Anthropologist, Transcendent Natives, and Unbounded
Categories”, Benson Saler deixa explícito esse pensamento, o qual será desdobrado no decorrer deste trabalho.
56
(DUBUISSON, 1998, p. 41).
O significado inicial romano de religio tinha um sentido de escrúpulo em relação ao
culto, de um preciosismo em relação aos atos exteriores de adoração, aos quais os romanos se
orgulhavam grandemente, inclusive se autoproclamando, dentre todos os povos, o mais
religioso:
Quando Cícero fala da religião romana, o conceito de religio que utiliza tem como
origem etimológica o termo relegere que deixa transparecer a “atenção escrupulosa,
o respeito, a paciência, inclusive o pudor e ou a piedade”. A prática religiosa romana
está associada ao zelo, a uma relação respeitosa com os deuses que torna necessária a
repetição precisa dos ritos. Com isso, a realização correta dos rituais ganha extrema
importância já que é a maneira de estar em contato direto com a divindade.
(AZEVEDO, 2010, p. 91).
Segundo esse conceito, é necessário que se empreenda uma escuta escrupulosa, tenaz e
atenta ao que dizem os deuses, de forma que se escute aquilo que eles têm a dizer, o que justifica
o uso dos oráculos pelos romanos. Portanto, negligere, neste caso, era exatamente o contrário
de religio, ou seja, não escutar o que os deuses diziam era negligenciar a divindade
(AZEVEDO, 2010, p. 92). Cabe aqui uma observação: já que em nosso trabalho estamos
falando de Espiritismo, a consulta aos espíritos por meio dos médiuns (que são os oráculos
modernos) poderia levar a uma associação do Espiritismo, em uma primeira análise, ao
relegere, no entanto, não é assim. A interpretação de que os espíritos que se manifestavam pelos
oráculos eram deuses foi um equívoco que levou a religião ao erro; Kardec afirma que “do
mesmo modo que o sabeísmo47 nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo48, mal
compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do Cristianismo,
podemos julgá-lo com mais critério.” (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206).
O significado de religião, com o sentido de “relegere”, ou seja, de escrúpulo em relação
ao culto, passou por transformações e não se alinhou com o sentido de oposição aos falsos
cultos com o qual o Cristianismo se apresentava no século XIX. Segundo Bouillard, o
significado de religio não poderia designar aquilo que foi tido como a verdadeira religião, pois
era necessário encontrar outro termo que pudesse corresponder à fé cristã (AZEVEDO, 2010,
p. 92).
Assim, uma nova compreensão para o termo surgiu através da imposição de diferenças
e de exclusões. Segundo Dubuisson, a religião enquanto domínio radicalmente
separado e diferente daquilo que a cerca é uma criação exclusiva e original dos
primeiros pensadores cristãos de língua latina como Lactâncio, Tertuliano e Santo
Agostinho. Ao se criar um domínio específico para a religião, surge também o espaço
47 Sabeísmo era a religião dos antigos sabeus, do Reino de Sabá, no atual Iêmen. Era uma religião baseada na
adoração dos astros. 48 Quando Kardec, nesta afirmação, usa a palavra Espiritismo, ele está se referindo à prática do intercâmbio com
os espíritos.
57
do não religioso, do profano: “a diferença e a superioridade que ela [religião]
reivindicava para si mesma enquanto religião verdadeira reservada ao Deus
verdadeiro [...] fazia apelo à necessidade do mundo profano”. Nesse mesmo sentido,
Benveniste afirma que só se poderia conceber claramente a religião a partir do
momento em que ela é delimitada, quando ela ganha um domínio distinto, onde pode-
se saber o que lhe pertence e o que lhe é estranho. (AZEVEDO, 2010, p. 92).
Diante disso, era necessário estabelecer uma origem etimológica própria para o religio-
relegere, considerando que essa se referenciava às práticas exteriores e não à verdadeira religião
que se dirigia ao verdadeiro Deus, à divindade única, já que o sentido era de estabelecer a
ligação do ser humano com Deus, o religare como propõe Lactâncio. No primeiro conceito,
segundo Lactâncio, no religio-relegere de culto aos deuses, o indivíduo está separado deles
porque não há busca da sabedoria, porque não há preocupação com a moral, e sim apenas uma
preocupação com o rito exterior. Para ele, ainda mesmo a filosofia não alcança a Deus, pois não
se encontra com a piedade, já que só o Cristianismo seria a verdadeira filosofia: “a verdadeira
sabedoria para os pensadores, a verdadeira religião para os ignorantes.” (LACTÂNCIO, apud
AZEVEDO, 2010, p. 93). Dessa forma, a verdadeira religião consiste no laço de piedade que
nos une a Deus, e aos homens cabe servir e obedecer ao Deus único e verdadeiro.
2.1.2. Semelhanças familiares e categorias de religião
Entre o relegere e o religare passou a ser adotado de maneira geral no mundo ocidental
o sentido dado por Lactâncio, até mesmo em função da força do Cristianismo, que foi por
muitos tido de fato como sendo única e a verdadeira religião. Mas a ideia de estabelecer o
religare como a base do conceito, ou seja, uma ligação do homem com Deus simplesmente não
resolveu todas as questões em torno da religião, o que fez que surgissem outros conceitos. O
antropólogo Benson Saler traz um ponto de vista interessante que tomamos por referência em
nosso trabalho. Nas suas considerações, ele afirma que as religiões são divididas em categorias
graduadas por instâncias com semelhanças familiares. As considerações sobre semelhanças
familiares elaboradas por Wittgenstein são aplicadas por Saler para a(s) religião(ões), mas não
foram criadas com essa finalidade, e sim como considerações acerca do emprego da linguagem
e definição de sentido para as coisas de maneira geral. A teoria tradicional, endossada por
estudiosos ocidentais, sustenta, diferentemente de Wittgenstein, que os membros de um grupo
de pessoas ou de coisas são entendidos como tal porque compartilham características típicas ou
uma conjunção dessas características em comum. Por exemplo, os jogos de bola são jogos
porque têm pessoas usando uma bola para atingir um objetivo competitivo, como o futebol e o
vôlei. Essas são chamadas de características definidoras ou diferenciadas e serão usadas para
58
aceitar ou identificar os membros de um determinado conjunto, seja ele qual for. Portanto, todas
as coisas que chamamos de jogos, por exemplo, devem compartilhar algo em comum, pelo
menos uma característica definidora. Segundo Saler, Wittgenstein discorda dessa postura
afirmando que:
Embora ele reconheça que as instanciações de uma categoria possam compartilhar
uma ou mais características em comum, não é necessário que elas façam isso para
justificar serem mutuamente rotuladas pelo termo de categoria. É suficiente que eles
estejam ligados por semelhanças por sobreposição de vários tipos, assim como os
membros de uma família humana podem mostrar semelhanças que se sobrepõem -
"semelhanças de família" - em características faciais, constituição do corpo, cor do
cabelo e assim por diante membros da família compartilhando os mesmos recursos.
(SALER, 2000, p. xi, tradução nossa)49
Ainda usando o exemplo dos jogos, vamos ver que algumas de suas instâncias50 não
partilham entre si características discretas comuns e nem por isso deixam de ser jogos. O os
jogos de bola e a paciência, por exemplo, não possuem características diretamente
relacionáveis, mas ainda sim são jogos. Quando uma criança joga uma bola na parede e a pega
de volta, e estabelece para si mesma uma regra, uma meta pessoal a ser alcançada: ela não está
jogando? Se fizermos uma análise detalhada, veremos uma intrincada rede de semelhanças e
relacionamentos se sobrepondo e se cruzando, às vezes com semelhanças gerais, às vezes com
semelhanças específicas. Da mesma forma que Wittgenstein afirma que o que chamamos de
jogos estão ligados por semelhanças de família, podemos inferir o mesmo para as religiões. Por
esse ponto de vista, os fenômenos para os quais comumente usamos a palavra religião podem
ser analisados dessa forma, pois, apesar de nem todas as religiões compartilharem
necessariamente características em comum, numa análise mais aprofundada, elas revelam
coletivamente uma multiplicidade de "semelhanças que se sobrepõem e se cruzam" (SALER,
2000, p. 160), da mesma forma que as fibras de algodão juntam-se para formar uma linha
(WITTGENSTEIN, 1994, p. 52). Nesta linha de raciocínio, repetimos a afirmação de Saler:
A religião, [...] é uma categoria graduada cujas instâncias estão ligadas por
semelhanças de família. Além disso, defendo que reconhecemos explicitamente que,
para a maioria dos estudiosos ocidentais, os exemplos mais claros da categoria
religião, os exemplos mais prototípicos dela, são as famílias de religiões que
chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias exibem os
maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião. E, claro,
essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela primeira
vez com o termo religião. Bem cedo na vida aprendemos a afastar a religião de outras
49 While he acknowledges that the instantiations of a category might share one or more features in common, it is
not necessary for them to do so in order to justify being mutually labeled by the category term. It is sufficient
that they are linked together by overlapping similarities of various sorts, just as the members of a human family
may show overlapping similarities -"family resemblances" -in facial features, body build, hair color, and so forth,
without all the members of the family sharing the very same features. 50 Instâncias são, neste caso, tipos de jogos: jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos de bola, jogos olímpicos e
assim por diante.
59
coisas, embora de forma imperfeita. [...] Como estudiosos, procuramos refinar e
aprofundar tais entendimentos de maneira sistemática. Usamos nossos entendimentos,
de fato, para buscar no mundo outras religiões. Identificamos várias afirmações
verbais e outros comportamentos em sociedades não ocidentais como "religiosas" por
analogia com o que encontramos no Ocidente. (SALER, 2000, p. xiv, tradução
nossa).51
A questão dos exemplos mais prototípicos intrincados particularmente na cultura
ocidental faz com que reconheçamos no judaísmo, cristianismo e islamismo como nossas
maiores referências de religião, pois “são essas as religiões que a maioria de nós, quando
crianças, identificou pela primeira vez com o termo religião”. Essa identificação está fortemente
associada à questão de linguagem e de cultura, pois há um entrelaçamento vigoroso entre
linguagem e significado. Segundo Jean-Marc Tétaz, há “uma ancoragem pré-linguística em um
contexto de interações práticas que resistem a qualquer redução na linguagem” (2002, p. 68),
que, a nosso ver, está fortemente relacionado com a cultura, visto que há um:
[...] entrelaçamento inseparável da linguagem no mundo e para o mundo na língua:
[...]destaca que qualquer teoria da referência, portanto, qualquer realismo linguístico
é necessariamente aporético porque ele assume uma linguagem separada do mundo e
um mundo livre de toda a mediação linguística. Este ponto será decisivo para
esclarecer o status semântico dos símbolos religiosos. (TÉTAZ, 2002, p. 68, tradução
nossa52)
Dessa forma, em nosso ponto de vista, essa ancoragem linguística passa pela cultura,
uma vez que nossa concepção de mundo envolve a cultura que recebemos particularmente de
nossos familiares e do ambiente em que somos criados. Portanto, recebemos por herança as
características prototípicas do que identificamos por religião, ou seja, essa transmissão é
cultural. Mas é necessário definir o que é cultura para que possamos compreender como esse
conhecimento é transmitido, para tanto, nos apoiamos em Geertz, que declara:
[...] o conceito de cultura [...] denota um padrão de significados transmitido
historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas
expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. [...]
51 Religion, then, in my approach, is a graded category the instantiations of which are linked by family
resemblances. I further advocate that we acknowledge explicitly that for most Western scholars the clearest
examples of the category religion, the most prototypical exemplars of it, are those families of religions that we
call "Judaism," "Christianity," and "Islam." Those families exhibit the greatest clusterings of typicality features
that we associate with religion. And, of course, those are the religions that most of us, as children, first identified
with the term religion. Fairly early in life we learned to set religion off from other things, though imperfectly.
As scholars, we seek to refine and deepen such understandings in systematic ways. We use our understandings,
indeed, to search the world for other religions. We identify various verbal assertions and other behaviors in non-
Western societies as "religious" by analogy to what we find in the West. 52 “imbrication inextricable de la langue dans le monde et du monde dans la langue: […] met en évidence que toute
théorie de la référence, donc tout réalisme linguistique, est nécessairement aporétique parce qu'elle suppose une
langue déta-chée du monde et un monde franc de toute médiation linguistique. Ce point sera décisif pour clarifier
le statut sémantique des symboles religieux.” (TÉTAZ, 2002, p. 68).
60
o conceito do significado, em todas as suas variedades, é o conceito filosófico
dominante da nossa época. (GEERTZ, 1978, p. 66).
A implicação dessa transferência cultural traz em seu bojo a adoção de preceitos morais
e estéticos implicados num mundo com uma estrutura particular, como simples senso comum
transmitido, muitas das vezes, com os símbolos religiosos particulares. “Os símbolos religiosos
formulam uma congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica específica
(implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-lo, sustenta cada uma delas com a autoridade
emprestada do outro.” (GEERTZ, 1978, p. 67). Podemos classificar esses símbolos como
características definidoras ou diferenciadas na teoria tradicional de grupos, que são usadas para
identificar determinados fenômenos como religiões, e considerar aqueles que se afastam dessas
características como não sendo religiões.
Na grande maioria das culturas, onde houver seres humanos, a religião estará por perto,
e a forma com que cada grupamento vai encarar a religião dependerá de sua cultura, ou, em
alguns casos, a sua cultura será construída pela própria religião. Não será difícil identificar a
influência da cultura na religião e vice-versa quando viajamos e fazemos contato com outros
povos. Cristãos querem batizar todos os povos para fazer do Cristianismo uma unidade mundial,
sacrifícios e autoflagelos são encarados com naturalidade em certas religiões. “Os diferentes
comportamentos diante do que é rotulado como religião poderão despertar diversas emoções,
pelas quais os indivíduos afirmarão que este ou, aquele objeto ou ato religioso seja, chato,
terrível ou fascinante.” (GRESCHAT, 2005, p. 21-22).
Para Saler, diferentemente de Geertz, herdadas ou não da cultura, se tomadas as
semelhanças familiares como base, as características definidoras ou diferenciadas não serão
suficientes para classificar se um fenômeno é ou não mais ou menos religioso, pois um único
símbolo religioso não pode ser considerado, por exemplo, como uma característica definidora
para comparar duas ou mais religiões ou famílias de religiões. Levando-se em conta esse ponto
de vista, a comparação de conceitos com outros autores pode não se compatibilizar, como, por
exemplo, a de Geertz, que diz que uma religião é:
[...] (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes
e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de
conceitos de uma ordem geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de
fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
(GEERTZ, 1978, p. 67).
Essa definição de Geertz que discutiremos com mais detalhes à frente, se confrontada
com as propostas de Saler, apresenta, logo em seu início, um problema, pois ele assume que
uma religião precisa ter um sistema de símbolos ou que precisa estabelecer disposições e
61
motivações nos homens. Isso seriam características definidoras que, segundo as semelhanças
por famílias, poderiam não estar necessariamente presentes em todas as religiões. Poderíamos
estabelecer, segundo Saler formulações de conceitos de religião que não passassem
necessariamente por essas características definidoras.
A ideia de que as religiões possuem conjuntos de características definidoras ou
diferenciadas está também presente em Greschat. Ele nos diz que a observação do objeto
religião deve ser feita de forma circunscrita a três maneiras: 1) que a observação do objeto
religião pode ser feita em uma totalidade; 2) que essa totalidade deve ser analisada em quatro
perspectivas (como comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas e como
sedimentação de experiências); 3) que essa totalidade está viva, e que não para de se transformar
(GRESCHAT, 2005, p. 24-25). Já para Saler, segundo o critério de semelhanças familiares de
Wittgenstein, podemos afirmar que a religião, para ser encarada como tal, não precisa ter as
mesmas características definidoras. Pelo processo de análise apresentado por Greschat,
poderemos, por assim dizer, fatiar o objeto religião em características que coletivamente
possuem uma multiplicidade de "semelhanças que se sobrepõem e se cruzam" (SALER, 2000,
p. 160). Assim, uma religião “A” pode ter um conjunto de características definidoras que
coincidem com “B” e uma terceira “C” que coincidem com “B”, mas que por sua vez não possui
nenhuma característica de “A”.
De fato, no caso de algumas categorias ("jogo", por exemplo), algumas instanciações
(por exemplo, paciência) não partilharão quaisquer características discretas com
outras instanciações (por exemplo, futebol). Em tais casos, no entanto, normalmente
ainda há outras instanciações da categoria com as quais elas se sobrepõem. Vamos
supor que nossa categoria tenha três subconjuntos de instâncias, A, B e C. A e C não
compartilham recursos em comum. Os membros de ambos, no entanto, compartilham
alguns recursos com membros do subconjunto B. As instâncias de B, portanto, servem
para vincular instâncias de A e C, da mesma forma que os elos centrais de uma cadeia
conectam os links periféricos em ambas as extremidades. Tais ligações, sugere o
filósofo J. R. Bambrough [,,,], fornecem uma justificativa “objetiva” para a categoria
e suas instanciações. (SALER, 2000, p. xi, tradução nossa53)
Um exemplo disso é que nem todas as religiões precisam demarcar suas fronteiras por
meio de um senso de comum pertencimento distinguindo os que estão dentro ou fora de sua
comunidade, já em outras, a questão de pertencimento está intimamente ligada com a herança
consanguínea.
53 Indeed, in the case of some categories ("game," for instance), some instantiations (e.g., solitaire) will not share
any discrete features with other instantiations (e.g., football). In such cases, however, there are typically still
other instantiations of the category with which they overlap. Let us suppose that our category has three subsets
of instances, A, B, and C. A and C share no features in common. Members of both, however, share some features
with members of the subset B. Instances of B, therefore, serve to link instances of A and C, just as the central
links in a chain connect the peripheral links on either end. Such linkages, the philosopher J.R. Bambrough
suggests […], provide an "objective" justification for the category and its instantiations.
62
Diversos autores estabeleceram conceitos próprios de religião e seriam necessárias
muitas páginas para abordá-los todos, o que não seria possível nem é nosso objetivo aqui,
portanto, escolhemos abordar até aqui o conceito de Lactâncio, Greschat, Geertz e Benson Saler
e agora vamos identificar como esses conceitos dialogam com o Espiritismo.
2.2. Kardec e a Religião
A partir dos fenômenos de 1848, vivenciados pelas irmãs Fox em Hydesville, nos
Estados Unidos54, o Espiritismo tornou-se uma fonte que prometia oferecer respostas para uma
série de questões da ciência, da filosofia e da religião. O fenômeno das mesas girantes tornou-
se uma febre na Europa e servia como diversão nos salões da alta sociedade. Diversos
observadores se dedicaram aos experimentos e esperavam obter uma fundamentação científica
para tais fenômenos, o que significava, em meados do século XIX, encontrar uma prova
irrefutável para a sobrevivência do espírito após a morte (ARAUJO, 2010, p. 119).
Entre esses observadores, vamos encontrar Allan Kardec que, a partir desses fenômenos,
lançou a obra basilar do Espiritismo, O Livro dos Espíritos, que logo na contracapa traz a
declaração de que se trata de uma filosofia espiritualista (KARDEC, 2008, p. 3), algo sobre o
qual os seus adeptos não têm dúvidas. Apesar disso, hoje, a terceira maior religião brasileira,
com 3,8 milhões de seguidores55 (IBGE, 2010), debate-se com uma questão de identidade no
que tange ao seu aspecto religioso. Um grande número de adeptos tem questionado se o
Espiritismo é ou não uma religião, a ponto de existirem movimentos não reconhecidos pelos
órgãos unificadores do Espiritismo56, como o chamado espiritismo-científico ou filosófico-
científico (CHAVES, 2013), que não aceitam o aspecto religioso do Espiritismo. Um dos pontos
centrais dessa discussão é decorrente da afirmação de Kardec, que diz que o Espiritismo não é
54 Embora seja praticamente impossível determinar a data de início da história do Espiritismo, convencionou se
que o ano de 1848 constitui seu ponto de partida. Essa data é citada por Arthur Conan Doyle e é aceita pela
Federação Espírita Brasileira. A 31 de março, na casa da família Fox, na aldeia de Hydesville, condado de
Wayne, Estado de Nova York, nos Estados Unidos da América do Norte, ruídos insólitos surgiram de maneira
ostensiva e uma série de fenômenos chamou a atenção da sociedade da época. Das paredes vinham pancadas ou
ruídos que pareciam provir de uma inteligência oculta desejosa de comunicar-se. As irmãs Katherine e Margareth
Fox, duas meninas de 11 e 14 anos, que aparentemente eram a causa dos acontecimentos, foram dormir no quarto
de seus pais, mas os ruídos aumentaram; a irmã mais nova começou a bater palmas e da parede ouviu-se o mesmo
número de batidas. A menina fazia perguntas e a parede respondia com um golpe para dizer “sim” e com dois
golpes para dizer “não”. A partir destes eventos, por todos os Estados Unidos, e posteriormente na Europa,
espalhou-se a febre das evocações dos chamados espíritos batedores. (DOYLE, 2013, p. 15). 55 O censo de 2010 apresenta que igreja católica possui cerca de 65% da população, a igreja evangélica 22,2% e o
Espiritismo 2%. Apesar desses números, levantamentos não oficiais apontam para um número muito maior de
espíritas, principalmente porque o IBGE não registra o fenômeno de dupla pertença religiosa. 56 Como órgãos unificadores do Espiritismo nos referimos ao movimento organizado pelos espíritas a partir da
FEB – Federação Espírita Brasileira.
63
religião:
O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como
qualquer filosofia espiritualista; por isso mesmo, vai ter forçosamente as bases
fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma
religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus
adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.
(KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).
Não obstante Kardec, em 1859 (RE: Mai/1859, p. 206-290), tenha dito que a doutrina
espírita não fosse uma religião, ele afirmou, como veremos mais à frente, que ela deveria servir
como elemento aglutinante às diversas religiões. Mas disse também, anos depois da publicação
de O Livro dos Espíritos, em seu discurso em reunião pública, na noite de 1° de novembro de
1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que "O Espiritismo é uma religião, e nós
nos vangloriamos por isto.57 " (KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491).
Quando iniciamos as nossas pesquisas sobre o Espiritismo, havia um desejo particular
de identificar um conceito de religião que pudesse se harmonizar de forma clara com o
Espiritismo e, assim, oferecer um possível alento a essa discussão, que por tanto tempo tem se
desenvolvido no meio espírita em relação ao seu aspecto religioso. Porém, essa busca
confrontou-se, logo em seus primeiros passos, com afirmação de Benson Saler: “Como indica
a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem definidos e universalmente
aceitos para diferenciar a religião da não-religião” (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa.), que
discutimos no tópico 2.1.
Essas afirmações de Saler nos levaram a constatações com significados inquietantes
sobre o Espiritismo, pois se não há uma definição clara e universalmente aceita sobre o conceito
de religião, não há como afirmar categoricamente que essa doutrina não seja uma religião.
Portanto, ficam margens de discussão importantes para o assunto, as quais vislumbram a
necessidade de compreender melhor o conceito de religião. Ao afirmar que possam existir
religiões que são mais ou menos religiosas do que outras, Saler abre um leque de possibilidades
flexibilizando o conceito de religião apresentando possibilidades que possam incluir o
57 Há divergências nas diversas traduções, alguns tradutores usaram o verbo ufanar, outros, porém o verbo
vangloriar ou ainda gloriar. No original em francês usou-se o vocábulo “glorifions”: “Le lien établi par une
religion, quel qu'en soit l'objet, est donc un lien essentiellement moral, qui relie les cœurs, qui identifie les
pensées, les aspirations, et n'est pas seulement le fait d'engagements matériels qu'on brise à volonté, ou de
l'accomplissement de formules qui parlent aux yeux plus qu'à l'esprit. L'effet de ce lien moral est d'établir entre
ceux qu'il unit, comme conséquence de la communauté de vues et de sentiments, la fraternité et la solidarité,
l'indulgence et la bienveillance mutuelles. C'est en ce sens qu'on dit aussi: la religion de l'amitié, la religion de
la famille. S'il en est ainsi, dira-t-on, le Spiritisme est donc une religion? Eh bien, oui! sans doute, Messieurs;
dans le sens philosophique, le Spiritisme est une religion, et nous nous en glorifions, parce que c'est la doctrine
qui fonde les liens de la fraternité et de la communion de pensées, non pas sur une simple convention, mais sur
les bases les plus solides: les lois mêmes de la nature. ” (KARDEC, 1868a, p. 359)
64
Espiritismo como um fenômeno religioso. Mas não é de se admirar que os seus seguidores
tenham a dificuldade de definir este ponto, já que aparentemente o próprio Kardec não tenha
deixado clara a questão.
Com vistas a colaborar com essa discussão, e é esse o ponto central de nosso trabalho,
temos a intenção de oferecer um referencial teórico, metodologicamente distanciado das
paixões que envolvem aqueles que se dedicam à discussão do aspecto religioso do Espiritismo,
de forma a fornecer reflexões a respeito do ambiente histórico em que essa doutrina foi cunhada.
Para tentar compreender a questão, pretendemos, portanto, estabelecer um diálogo com os
pensamentos de Kardec acerca dos conceitos de religião abordados no início deste capítulo. É
importante frisar, porém, que esse diálogo será estabelecido em relação à época e também
levando em consideração como a cultura influenciou o seu pensamento e o de seus
contemporâneos. Falamos aqui de cultura porque foi a partir de um modismo extremamente
popular, denominado as mesas girantes, que surgiu o Espiritismo (KARDEC, LM: Cap. II: 60-
64).
2.3. A perspectiva secularizada de Kardec sobre o Espiritismo
Como vimos no primeiro capítulo, a influência do Iluminismo foi importante na
formação de Kardec e, por consequência, o ajudou a formular alguns de seus pensamentos. O
Iluminismo, segundo a ótica de seus defensores, foi um conjunto de eventos que instauraram a
possibilidade de pensar sobre Deus, sobre o universo e tudo ao seu redor. Para os iluministas,
o ser humano não mais estaria submetido às estruturas sagradas das instituições religiosas, pois
elas não poderiam mais se proclamar guardiãs das verdades do mundo.
Pensadores dos mais diversos matizes surgiram, desvendando realidades no campo da
ciência e da cultura. Alguns desses à luz de uma perspectiva secular, como Hegel (1770-1831),
Heinrich Heine (1797-1856) e Nietzche (1844-1900) chegaram a suscitar a morte de Deus, num
mundo onde haveria a prevalência tão somente da existência do ser humano e a realidade
científica à sua volta. Nesse contexto, o mundo intelectual não mais escutaria aos argumentos
teológicos da existência de Deus. Todavia, ao contrário do que se acreditou por um tempo, o
pensamento secularizante58 não matou Deus, e sim deu a possibilidade de fazer as perguntas
58 No nosso trabalho tratamos o que é secular no sentido da contraposição que se fazia ao religioso pela visão de
ciência que o mundo vivia àquela época, questionando a autoridade formal da Igreja. “Inúmeras vezes antes da
Reforma, a fronteira entre o religioso e o secular foi redesenhada; mas a autoridade formal da Igreja permaneceu
sempre preeminente. Nos séculos seguintes, com o surgimento triunfal da ciência moderna, do modo moderno
de produção e do Estado moderno, as igrejas elas mesmas assumem uma posição clara acerca da necessidade de
65
essenciais de forma diferente:
Pode o cientista como cientista levantar a pergunta acerca de Deus? Não implicaria
esta pergunta que ele já rompeu com a ortodoxia da ciência? A morte de Deus, assim,
se apresenta como um silêncio túrgido de significações antropológicas e sociais.
Vivemos em uma época que proibiu o mistério [...]. Porque o grande dogma do mundo
que se chama científico é que a realidade é auto-explicativa e que a razão dispõe dos
instrumentos para decifrar o enigma que lhe é proposto. Talvez que, ao invés de falar
da morte de Deus, seria mais correto falar do “eclipse de Deus”, como Martin Buber
sugere. (ALVES,1984, p. 61).
E é nessa linha de raciocínio que vamos encontrar Kardec questionando os princípios
da vida, indagando de onde viemos e para onde vamos, como todos os pensadores de sua época:
Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi,
naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado
e do futuro da Humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era,
em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto,
andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista e não
idealista, para não me deixar iludir. (KARDEC, OP: Minha iniciação no Espiritismo,
grifo nosso).
Na citação acima, Kardec se refere aos seus estudos sobre o que chamou de fenômenos
espíritas. Nessa passagem é possível perceber que o seu pensamento, se não era claramente
científico, era, com certeza, filosófico, já que ele não estava em busca de uma explicação
religiosa para as situações que ele vivenciara. Fica claro o pensamento secularizante no trecho
grifado, pois o princípio que outrora tratava apenas da separação do Estado e da Igreja, agora
atingia o indivíduo, que se permitia investigar aquilo que tinha sido tratado no passado por
mistérios que pertenciam tão somente ao domínio da Igreja, e Kardec não estava sozinho nisso.
Segundo Lynn Sharp
A história [...] mostra como os espíritas e outros pensadores usaram a reencarnação
para defender reformas sociais, mudanças políticas e uma mudança de visão de
gênero59 [...], argumento que, em vez de o pensamento iluminista substituir a tradição
religiosa católica na cultura francesa do século XIX, a relação da razão com a religião
é mais complicada. As linhas do pensamento espiritualista no século XIX,
especialmente o espiritismo, criaram novas combinações de espiritualidade, razão e
pontos de vista românticos que se recusavam a dar primazia absoluta à materialidade
iluminista ou à estreita religiosidade da Igreja Católica. A reencarnação e o espiritismo
ofereceram uma versão secular da espiritualidade popular entre aqueles que talvez
quisessem rejeitar o catolicismo em favor da ciência, mas definitivamente queriam
manter uma profunda visão religiosa do mundo. (SHARP, 2006, p. xii, tradução
nossa)60
se distinguir o religioso do secular, transferindo, como de fato o fizeram, o peso da religião cada vez mais na
direção das disposições e motivações do indivíduo crente. A disciplina (intelectual e social) iria, nesse período,
gradualmente abandonar o espaço religioso, cedendo seu lugar à ‘crença’, à ‘consciência’ e à ‘sensibilidade’.”
(ASAD, 2010, p. 269) 59 Sharp coloca no final do século XIX a questão de gênero, nosso entendimento é que essas questões vão surgir
de fato no início do século XX. 60 The story […] shows how spiritists and other thinkers used reincarnation to argue for social reform, for political
change, and for a changed vision of gender […] I argue that rather than Enlightenment thought replacing Catholic
66
Contudo, ainda aqui a linha de separação entre o que é religioso e o que é filosófico é
extremamente tênue. “Desde que a filosofia nasceu, a religião tornou-se um tema seu. Com
efeito, a maior parte das questões a que os filósofos tentaram responder [...], foram antes temas
de narrativas mitológicas, de celebrações culturais e sentenças da sabedoria religiosa.”
(SCHAEFFLER, 1992, p. 13).
Augusto César Dias de Araujo, doutor em Ciência da Religião pela UFJF, defende que
há no Espiritismo um caráter polissêmico, quando navega entre a filosofia, a ciência e a religião
assunto que trataremos no capítulo três. Em seu artigo datado de fevereiro de 2010, Araujo
afirma que o Espiritismo tratar-se-ia de um híbrido, embora ele mesmo não insista na utilização
desse termo em sua tese de doutorado (ARAUJO, 2014). Em seus estudos, ele afirma que
Kardec posiciona o Espiritismo numa posição de ponte entre a filosofia, a ciência e a religião.
Como se viu, em suas relações com a ciência, a filosofia e a religião, o espiritismo se
coloca como um entre-lugar – um espaço de encontro e reapropriação. A partir daí,
forja uma identidade híbrida, marcada pelo signo da mediação. Ou seja, para Kardec,
o espiritismo aponta para algo além, para o pós-ciência, pós-filosofia e pós-religião.
(ARAUJO, 2010, p. 132).
O entre lugar abordado por Araujo vai de encontro às perspectivas científicas e
perspectivas religiosas abordadas por Geertz, sobre as quais falaremos mais à frente, e, segundo
esse autor, essas perspectivas não podem conviver simultaneamente, e, portanto, não poderia
haver esse entre lugar. Araujo completa seu pensamento da seguinte forma:
[...] no espiritismo, [...] encontra-se um tipo bem acabado de movimento religioso de
fronteira, que tende a transitar entre representações ambíguas e cuja configuração
híbrida indica uma dupla tendência. Por um lado, pode-se dizer que há um esforço de
Kardec no sentido de secularizar a religião ao aproximá-la de conceitos como ciência
e filosofia – esta última não mais compreendida como serva da teologia, mas, em certo
sentido, como instrumento de validação racional da religião –, já que, aliada à noção
de método experimental, a filosofia espírita pretende dar à religião – e religião cristã
– a prova definitiva de seus postulados básicos. Por outro lado, Kardec parece querer
propor que a ciência amplie seus horizontes e passe a considerar o antigo objeto da
religião (Deus, alma e vida futura) como parte dos fenômenos naturais a serem
investigados. (ARAUJO, 2010, p. 132).
No ano seguinte à publicação da obra basilar do Espiritismo, Kardec fundou, em 01 de
janeiro de 1858, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que se tratava de uma associação
civil dedicada ao estudo dos fenômenos espíritas, o que aponta para um movimento de
desvinculação com as instituições tradicionais, já que não tinha nenhum vínculo nem com o
religious tradition in nineteenth century French culture, the relationship of reason to religion is more complicated.
Lines of spiritualist thought in the nineteenth century, especially spiritism, created new combinations of
spirituality, reason, and romantic outlooks that refused to give absolute primacy to either Enlightenment
materiality or to the narrow religiosity of the Catholic church. Reincarnation and spiritism offered a secular
version of spirituality popular with those who may have wanted to reject Catholicism in favor of science but
definitely wanted to retain a deep-seated religious outlook on the world. (SHARP, 2006, p. xii)
67
Estado nem com a Igreja. A sociedade fundada por Kardec podia figurar-se como um dos
exemplos do fenômeno da secularização, um dos diversos embriões61 da sociedade pós-cristã,
que era novidade àquele tempo, mas que é comum na sociedade secular europeia nos dias de
hoje, possuindo algumas das características que nos relata Jean Paul Willaime:
A passagem da religião por herança à religião por escolha significa, para o
cristianismo na Europa, o fim da “cristianitude”, ou seja, o fim do cristianismo como
cultura englobante da sociedade, mesmo sob forma secularizada, e a evolução na
direção de um cristianismo como subcultura particular numa sociedade global. Não é,
pois, apenas a separação do político e do religioso [...], é também a separação da
cultura global e da religião. É neste sentido forte que se pode falar de sociedades pós-
cristãs. Individualização, abandono institucional e atomização, de uma parte; buscas
identitárias e afirmações comunitárias, de outra. A mundialização e a
desterritorialização do religioso acarretam sua reconfiguração como subculturas e
como comunidades-redes nas sociedades secularizadas e pluralistas. Doravante, as
religiões constituem subculturas que oferecem um sentido a seus membros,
permitindo a eles se orientarem numa sociedade pluralista, em grupos de referência,
em recintos de convicção que os indivíduos escolhem individualmente. O religioso
não é mais o dossel sagrado das sociedades, os guarda-chuvas sagrados de que
Christian Smith fala ou, antes, o que poderíamos qualificar de “capiteis sagrados” ou
“tendas sagradas”, para melhor assinalar a um só tempo o caráter comunitário e
individual dessas subculturas religiosas nas sociedades pluralistas. (WILLAIME,
2007, p. 04).
Como diz Willaime, não há mais uma cultura englobante que determina a forma de
pensar Deus, não havia uma forma única de pensar e não existia para Kardec e seus adeptos
uma atitude de radicalização de pensamento, como a ideia de Deus estar morto ou o pensamento
de o indivíduo estar submetido à Igreja. Allan Kardec e seus colegas da Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas pensavam livremente e não se intitulavam ateus; ao contrário, entendiam
que os estudos do Espiritismo fortaleceriam suas crenças individuais, pois não acreditavam,
pelo menos naquele momento, que seu pensamento se caracterizava como religioso. O
pensamento secularizado de Kardec fica mais fortemente estabelecido em suas palavras,
quando diz que:
Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião.
Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis
em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor;
quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a
religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o
Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria
confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral
que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de
todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que
mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de
61 A abordagem de Willaime é muito atual e inclusive fala de uma sociedade pós-secular possuindo outras
características que vão além da secularização na época de Kardec. Aqui colocamos as ideias desse autor para
demonstrar que a visão de Kardec e de seus seguidores na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas eram
embrionárias para o movimento secular que surgiria à frente.
68
observar as práticas ditadas pela sua consciência ... (KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62
e 63, grifo nosso).
A citação anterior traz diversas questões que julgamos relevantes e dentre elas
destacamos as frases: “a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem”
e “Deixa a cada um a liberdade de adorar a Deus à sua maneira”. Essas afirmações trazem
embutidas em si pelo menos dois significados relevantes: no primeiro, Kardec aceita a
existência de Deus e da alma, e acredita que cada indivíduo tem a liberdade de orar ou cultuar
a divindade como queira. Também deixa claro que não é contra a religião e que acredita que o
conhecimento do Espiritismo pode, na verdade, fortalecer o indivíduo em sua crença particular.
Apesar disso, acredita na liberdade de crença e consciência, como se vê na resposta dada a uma
carta, na qual Kardec diz:
[...] e se nenhum culto me convier?” Muito bem! ficai então como estais. Aí o
Espiritismo nada pode. Ele não se encarrega de vos fazer abraçar um culto à força,
nem de discutir para vós o valor intrínseco dos dogmas de cada um: deixa isto à vossa
consciência. Se o que o Espiritismo dá não vos basta, buscai, entre todas as filosofias
existentes, uma doutrina que melhor satisfaça às vossas aspirações. (KARDEC, RE:
Jan/1863, p. 35)
Para Kardec, a liberdade de pensar é extremamente importante e, portanto, com tal
perspectiva, o indivíduo deverá se manifestar através da razão, abrindo a possibilidade de ver o
mundo por diversas perspectivas tanto religiosas como científicas, pensamento esse
extremamente secular.
2.4. Perspectiva Religiosa versus Perspectiva Científica
Ao dizer que “não aconselha a ninguém que mude de religião” e que cada um pode
“adorar a Deus à sua maneira”, percebemos que Kardec alimentava em si a ideia de que não
havia uma só religião62 e que cada um poderia escolher a sua. Além disso, acreditava que os
fatos que ele pesquisava iriam trazer elementos palpáveis do mundo metafísico e que não seria
62 Kardec publicou na Revista Espírita dezenas de artigos sobre o assunto religião, demonstrando também seu
interesse pelo assunto de forma geral e que ele não concentrava seu conhecimento somente na visão europeia
cristã de religião (KARDEC, RE: Jan/1865, p. 45). Há artigos que ele discute a origem da religião (KARDEC,
RE: Abr/1858, p. 186); (KARDEC, RE: Ago/1866, p. 318), a religião como fenômeno social e político
(KARDEC, RE: Jun/1868, p. 259), dialogou com outros pensadores como Maquiavel (KARDEC, RE: Ago/1866,
p. 320), Voltaire (KARDEC, RE: Set/1859, p. 357), Guizot (KARDEC, RE: Dez/1861, p. 556), Lamennais
(KARDEC, RE: Ago e Out/1860, p. 378 e 482), Descartes (KARDEC, RE: Mar/1867, p. 125). E ainda tratou de
forma bem ampla o Islamismo (KARDEC, RE: Abr/1858, p. 184); (KARDEC, RE: Jun/1860, p. 278);
(KARDEC, RE: Ago/1866, p. 303); (KARDEC, RE: Nov/1866, p. 433); (KARDEC, RE: Nov/1866, p. 441),
além de outras religiões orientais, como a dos egípcios (KARDEC, RE: Nov/1858, p. 458), do judaísmo
(KARDEC, RE: Set/1861, p. 414 ), do hinduísmo (KARDEC, RE: Jan/1859, p. 48); (KARDEC, RE: Set/1868
p. 387) e inclusive religiões primitivas, como os druidas (KARDEC, RE: Set/1868, p. 390), indígenas do México
(KARDEC, RE: Ago/1864, p. 330) e religião primitiva dos árabes (KARDEC, RE: Ago/1866, p. 308).
69
papel do Espiritismo lidar com a adoração, já que a religião é que se ocupava de tal função.
Apesar de dar crédito às religiões, Kardec tinha um conceito particular a respeito do
Cristianismo, pois afirmava que “de todas as doutrinas, o Cristianismo63 é a mais esclarecida, a
mais pura”. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206). Outra questão, a mais importante por sinal, é
que ele põe a religião e o Espiritismo em lugares separados e não conflitantes, sendo, porém,
complementares. Com essas afirmações, Kardec faz a compatibilização de algo que Geertz diz
não ser possível a Perspectiva Religiosa e a Perspectiva Científica.
Geertz define perspectiva “como um modo de ver, no sentido mais amplo de ‘ver’ como
significado ‘discernir’, ‘aprender’, ‘compreender’, ‘entender’. É uma forma particular de olhar
a vida, uma maneira particular de construir o mundo” (GEERTZ, 1978, p. 81). Kardec tinha
sua própria perspectiva, a qual não era propriamente religiosa, podendo se dizer que era
filosófica, mas não descartava a perspectiva religiosa. Na perspectiva de Kardec, a autoridade
do Espiritismo advém da lógica e da observação dos fatos pela razão, a qual deve rejeitar “toda
teoria em notória contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados
positivos que se possui, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como
assinatura.” (KARDEC, ESE: Introdução: II).
A definição de religião tratada por Geertz diz que:
[...] uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da
(3) formulação de conceitos de uma ordem geral e (4) vestindo essas concepções com
tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente
realistas. (GEERTZ, 1978, p. 67).
Estabelecendo um diálogo entre os pensamentos de Kardec e Geertz, destacam-se dois
pontos importantes: em primeiro lugar, Kardec concorda com a primeira e a segunda parte da
afirmação antropológica de Geertz, a qual estabelece que os símbolos e rituais são a motivação
central das religiões, que elas não sobrevivem sem os seus símbolos e rituais (GEERTZ, 1978,
p. 71-73), e inclusive, por isso, entende que o Espiritismo não é religião quando afirma que
“não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre
seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.”
(KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).
Por outro lado, Kardec não é consonante com Geertz (1978, p. 80) quando este detalha
a terceira e quarta parte de sua definição, afirmando que a crença religiosa não envolve uma
indução baconiana da experiência cotidiana baseada numa autoridade estabelecida
63 Para Kardec Cristianismo e a Igreja Católica e Protestantes eram coisas diferentes.
70
previamente. É exatamente nesse ponto que Kardec apresenta a possibilidade de uma
perspectiva científica na relação com o metafísico, apostando na existência da alma, baseada
numa autoridade racional e empírica, e na observação de provas positivas, como discorre
Mircea Eliade sobre o Espiritismo:
Os fenômenos espiritistas são conhecidos desde os tempos antigos e têm sido
diferentemente interpretados por várias culturas e religiões. Mas o elemento novo e
importante no espiritismo moderno é a sua perspectiva materialista. Antes do mais,
existem agora “provas positivas” da existência da alma, ou antes, da existência post-
mortem de uma alma: pancadas, inclinações da mesa e, algum tempo depois, as
chamadas materializações. (ELIADE, 1989 p. 61, grifo nosso).
A perspectiva científica proposta por Kardec, ao contrário do que Geertz (1978, p. 82)
apregoa, afirma que o Espiritismo pode enfrentar os fatos seculares sem receios, sem que se
torne violável pelas revelações discordantes ou sem fatualidade e, ao contrário, Kardec afirma
ser plenamente falseável, chegando a afirmar que a fé deve ser objeto da razão, dizendo que:
“Fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da
humanidade” (KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo). É por tal
perspectiva científica que ele vai afirmar, como já dissemos anteriormente, que o Espiritismo
não é religião, pois declara formalmente que ele prescinde de toda forma ritual na sua prática.
Para a formulação de conceitos, ao contrário do que Geertz afirma no terceiro tópico de
sua definição, Kardec lançou mão do método de experimentação de Francis Bacon, o qual
previa que a formação das leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas,
numa lógica sequencial de formulação de hipóteses e validação da sua consistência. A isso
Bacon definiu como sendo experimentação, como já explicamos em detalhes no primeiro
capítulo. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na proposição de uma
metodologia científica, que se pautava pela racionalização de procedimentos e que foi
caracterizada como a indução e a dedução.
O método da experimentação utilizado por Kardec, legado por Bacon, advém da forte
presença do evolucionismo herdado do século XVIII com um sentimento de transformação, que
existia também entre os pensadores contemporâneos dele, como o evolucionismo biológico de
Darwin (1809-1882), o transformismo de Lamarck (1744-1829), as teorias sociais de Karl Marx
(1818-1883) e a revolucionária forma de pensar de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que,
dentre outros, inspirou Pestalozzi, mestre de Kardec.
Ao utilizar-se desse método, Kardec tinha a intenção de fugir exatamente do que Geertz
propunha como condição para os fenômenos metafísicos: uma aura de fatualidade, como
descreve no tópico quatro de sua definição, ou seja, a crença no metafísico, ou no religioso,
71
pode sim passar por uma indução baconiana, o que contraria Geertz.
2.5. O Conceito de religião para Kardec
Como vimos até agora, os limites estabelecidos para dizer o que é ou não religião passam
por um vasto leque de concepções, navegando entre duas etimologias possíveis, o relegere e o
religare, uma de origem romana, voltada para a adoração de diversos deuses e a outra
reconceituada como cristã apontando para um Deus único e verdadeiro. A religião não fica,
porém, somente entre essas duas concepções, passando por outros pensamentos que poderiam
se dizer intermédios ou, como disse Benson Saler, com “características típicas às quais
associamos no nosso modelo geral de religião”, estabelecendo lugares mais ou menos
“religiosos” (SALER, 2000, p. xiv). Praticamente todos esses conceitos podem ser englobados
na afirmação de Geertz, de que todas as religiões se revestem de uma aura de fatualidade, dada
por rituais que seriam, segundo ele, sua motivação central. (GEERTZ, 1978, p. 67).
No século XIX, para muitos europeus64, isso tudo parecia correto e acertado, bastando
apenas situar as religiões entre o relegere ou o religare. Quando surgiram os fenômenos
espíritas com os eventos de Hydesville e as mesas girantes na França, analisadas por Kardec,
uma nova visão veio à tona, que considerava a existência de “provas positivas da existência da
alma, ou antes, da existência post-mortem de uma alma”, como afirma Eliade. (ELIADE, 1989
p. 61).
Allan Kardec, então, surge com uma perspectiva científica baconiana e principalmente
secular do que, até aquele momento, era apenas do domínio das famílias de religiões com
características definidoras, mais comumente associadas às religiões ditas tradicionais, no caso,
o judaísmo, o cristianismo e islamismo. O pedagogo francês propõe, em meio às revoluções do
pensamento moderno do Iluminismo, que o metafísico, outrora assunto das religiões ou da
filosofia, passasse a ser assunto da ciência, ou pelo menos da razão. A “fé inabalável é somente
a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.” (KARDEC, OP:
Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).
Se levarmos em conta a visão de que existem nas religiões categorias graduadas, cujas
instâncias estão ligadas por semelhanças de família, elas seriam compostas de um conjunto de
características, das quais cada uma tomaria para si um pequeno subconjunto e, por assim dizer,
existiriam áreas periféricas que são menos comuns às religiões tidas como as maiores
64 Dizemos aqui para os europeus, pois não estamos trabalhando aqui os conceitos orientais de religião.
72
referências ocidentais de religião. Dessa forma, o hibridismo apontado por Araujo no
Espiritismo (ARAUJO, 2010, p. 132), que seria, segundo ele, um entre lugar, uma ponte entre
a ciência e a filosofia com a religião tida como referência, nada mais é, ao nosso modo de ver,
uma área periférica do conjunto de características das religiões apontadas por Saler.
Por isso, não obstante Kardec tenha dito (2016, p. 232), que a doutrina espírita não é
uma religião propriamente constituída e que serviria como elemento aglutinante às diversas
religiões, foi encarada por livre pensadores e diversos movimentos religiosos como uma
religião, como veremos no terceiro capítulo.
Retomando a definição de Geertz de religião, Kardec parecia não acreditar que fosse
possível, em termos de religião, desvincular “um sistema de símbolos que atua para estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens” de uma
“formulação de conceitos de uma ordem geral” (GEERTZ, 1978, p. 67) não baconiana. Por essa
razão, pelo menos naquele momento, Kardec não acreditava que o Espiritismo pudesse ser uma
religião, pois os ritos, os símbolos e os sacerdotes seriam características que estariam sempre
presentes na religião, segundo seu pensamento. Dizemos aqui pelo menos naquele momento,
porque a visão kardeciana a respeito da religião se transformou com o tempo e passou por uma
fase que foi nomeada por Araujo (2014, p. 218) como um período religioso, particularmente
quando publicou O Evangelho Segundo o Espiritismo. Segundo Araujo, as afirmações de
Kardec, com o tempo, passaram por modificações, chegando ele a afirmar que o Espiritismo é
uma religião em termos filosóficos.
Por fim, entendemos que Kardec fez das famílias do Cristianismo (a Igreja Católica e a
Igreja Protestante) como suas referências de religião, o que corrobora o pensamento de Saler
que a maioria das pessoas tem essas como as principais referências de religião. Dessa forma,
em contraponto, afirmou que o Espiritismo não era uma religião, já que o mesmo não possuía,
ritos, símbolos ou sacerdotes. Concluímos que isso se deu por dois motivos: primeiro porque
se, para ele, de todas as doutrinas, o Cristianismo era a mais esclarecida e a mais pura, não
haveria, portanto, razão para criar nova religião, e sim agregar as revelações65 dos espíritos ao
Cristianismo (ou a outras religiões que aceitassem as concepções do Espiritismo); e, em
segundo lugar, porque Kardec não tinha a ideia de fundar uma nova religião, mas sim fornecer
elementos para fazer “uma reforma religiosa, [...], com a intenção de chegar à unificação das
crenças.66” (LACHÂTRE, 1867, p. 199). A consequência desse pensamento era que se o
65 A frente ainda neste capítulo (item 2.6.3) explicaremos o entendimento de Kardec a respeito de revelação. 66 Apesar da ideia que ele tinha de uma unificação de crenças que, como veremos no capítulo terceiro, “foi
exportada” para outras correntes espiritualistas, Kardec parecia ter a noção da impossibilidade dessa unificação,
73
Espiritismo fosse mais uma religião haveria um novo ponto de cisão, e se ao contrário, ele
contribuísse para o entendimento e diálogo das religiões, haveria menos espaço para a
intolerância religiosa.
2.6. A perspectiva do Sagrado para Kardec
Como vimos até agora, a questão religiosa para Kardec tinha contornos particulares,
portanto, entendia que não se podia classificar o Espiritismo como religião, pois essa doutrina
não teria esse papel. Para ele, a intenção dessa filosofia espiritualista seria apenas de ser um
meio para esclarecer os pontos obscuros presentes nas religiões de maneira geral, deixando a
cargo de cada um o entendimento dessas como bem lhe aprouvesse. Por esse viés, o Espiritismo
teria o papel apenas de dissolver as tensões presentes entre as diversas correntes religiosas.
(KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62 e 63). Sendo assim, para Kardec, o Espiritismo não sendo uma
religião, não estaria sujeito a essas disputas religiosas, pois não teria em sua constituição os
elementos que julgava obrigatoriamente fundamentais para a caracterização dele como tal: 01)
a presença de um templo religioso; 02) a liderança de um Sumo-Sacerdote e seus sacerdotes;
03) a existência de cultos; 04) e a presença de ritos.
Se observarmos atentamente quando Kardec trata das religiões, há semelhanças com
algumas das proposições dos autores que citamos nesse trabalho, cada um à sua maneira,
apresentando, conforme a definição de Benson Saler, algumas das características definidoras
das religiões e/ou seus conceitos. Com Lactâncio, há uma aproximação de sentido com o
religare e que o Cristianismo seria a forma mais pura para estabelecer os laços morais do
homem com Deus e era contra o relegere que dava prioridade ao culto no lugar da moral
(KARDEC, RE: Mai/1859, p. 205). Com Clifford Geertz, as aproximações se dão nas questões
dos símbolos e rituais que, segundo ambos, são a motivação central das religiões, as quais não
sobreviveriam sem esses (e, em consequência disso, não entendia que o Espiritismo fosse
religião). Com Benson Saler, encontraremos as maiores divergências, mas ainda sim veremos
que Kardec também entendia que as maiores referências ocidentais de religião eram as famílias
ligadas ao judaísmo, cristianismo e islamismo. Para ele, estávamos muito perto do
entendimento de considerar, como Eliade, que a religião era um objeto de estudo sui generis,
com uma forma única e exclusiva em sua constituição, e que não caberia ao Espiritismo destruí-
la e sim complementá-la. (KARDEC, RE: Fev/1862, p. 62 e 63).
pelo menos no estágio atual da humanidade. (KARDEC, RE: Mar/1861, p. 144).
74
Além dos pontos citados anteriormente, há uma questão relevante quando se aborda o
tema religião, o conceito de sagrado e o profano, e não poderíamos deixar de abordar esse tema
ao tentar entender o pensamento de Kardec a respeito das religiões. Para entender esse ponto,
optamos por compreender a posição de dois autores clássicos a esse respeito, Rudolf Otto e
Mircea Eliade. O objetivo deste tópico é de compreender como Kardec dialoga com o conceito
de crença no sagrado e sua relação com o profano, tomando por referências esses dois autores.
Abordaremos primeiramente Eliade, embora Rudolf Otto o preceda normalmente nas
abordagens sobre o sagrado por questões históricas. Fizemos essa opção porque Kardec em O
Livro dos Espíritos67 trata primeiro das manifestações do sobrenatural no mundo físico para
depois tratar a questão da relação com a divindade.
2.6.1. O Sagrado e o Profano para Eliade
Segundo Mircea Eliade, em sua obra Tratado de História das Religiões, todas a
definições do fenômeno religioso apresentam características comuns de que cada uma mostra,
à sua maneira, uma oposição entre o sagrado e o profano, entre a vida religiosa e a vida secular.
Segundo ele, é na delimitação do que é sagrado e do que é profano que as coisas se complicam,
pois, o estabelecimento desses limites seria extremamente complexo (ELIADE, 2008, p. 7), a
ponto dele mesmo se render a essa dificuldade citando Roger Caillois que, na abertura de seu
livro L’homme et le sacré, diz que:
No fundo, acerca do sagrado em geral, na própria definição do termo: é aquilo que se
opõe ao que é profano. A partir do momento em que nos dediquemos a precisar a
natureza, a modalidade desta oposição, esbarramos com os maiores obstáculos.
Nenhuma fórmula, ainda que elementar, é aplicável à complexidade labiríntica dos
fatos. (CAILLOIS, apud ELIADE, 2008, p. 2).
As dificuldades de definição desses limites tanto na ordem teórica quanto na ordem
prática se dão porque não é fácil identificar “os fatos religiosos, e principalmente, dentre esses
fatos, os que se deixam observar em ‘estado puro’, isto é, os que são ‘simples’ e estão mais
próximos da sua origem.” (ELIADE, 2008, p. 7). Nas citações de Eliade, ele trata das
dificuldades que encontrou para fazer uma história comparada das religiões, pois procurava
fazê-lo entre diversas religiões:
67 O Livro dos Espíritos é dividido em quatro partes, a primeira parte trata das causas primárias e foi tomado por
base para o livro A Gênese; a segunda parte trata do mundo dos espíritos, e foi tomado como a base de O Livro
dos Médiuns; a terceira parte trata das leis morais, que foi a base para O Evangelho Segundo o Espiritismo; a
quarta parte trata das esperanças e consolações e foi a base do livro O Céu e o Inferno.
75
[...] a reunião da documentação apresenta também importantes dificuldades práticas.
Por duas razões: 1°) ainda que nos contentássemos em estudar uma só religião, a vida
de um homem mal chegaria para levar tal investigação a cabo; 2°) se nos propusermos
o estudo comparativo das religiões, até várias existências seriam insuficientes para se
alcançar o objetivo proposto. Ora, o que nos interessa é justamente este estudo
comparativo, o único capaz de nos revelar, por um lado, a morfologia inconstante do
sagrado e, por outro, o seu devir histórico. Para nos aproximarmos desse estudo,
fomos, pois, obrigados a escolher certas religiões entre aquelas que a história registrou
ou que a etnologia nos revelou, e também alguns dos seus aspectos e das suas fases.
(ELIADE, 2008, p. 7)
Para estabelecer a definição e delimitação do sagrado, seria necessário, segundo Eliade,
dispor em cada religião de uma certa quantidade de sacralidades, isto é, uma certa quantidade
de fatos sagrados, que se manifestam através de uma vasta e longa série de ritos, mitos, formas
divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias, teologúmenos, homens
consagrados, animais, plantas e lugares sagrados. Além do fato de que cada uma dessas
categorias apresentam uma morfologia extremamente rica e luxuriante. (ELIADE, 2008, p. 8).
As manifestações do sagrado através desses elementos foram designadas por Eliade como
hierofania68, termo esse cunhado por ele mesmo, ou seja, ele definiu na palavra hierofania todas
as manifestações do sagrado no mundo real, que, por sua vez, podem ser de diversos tipos.
Cada um dos fatos sagrados citados no parágrafo anterior são entendidos como
hierofanias e são extremamente heterogêneas em sua origem e em sua história, e têm
características próprias, que dimanam de sacerdotes ou homens sagrados, outras de fragmentos
textuais sagrados ou textos completos, outras ainda de objetos ou de elementos da natureza,
entre outras fontes de dimanações nas quais o sagrado se manifesta. Para ilustrar, podemos
tomar as hierofanias vegetais (isto é, o sagrado revelado através da vegetação), nas quais o
sagrado se revela, por exemplo, através de uma determinada árvore, que será o símbolo de uma
árvore cósmica, árvore da vida ou outras concepções que inspirarão mitos ou ritos específicos,
segundo um contexto histórico. De acordo com a religião e a cultura específica, existirá uma
documentação69 específica para compreender esta hierofania. (ELIADE, 2008, p. 14).
Uma das características importantes das hierofanias é que, a qualquer momento, toda e
qualquer coisa pode se tornar uma hierofania, o que não invalida a dicotomia sagrado-profano.
Poderia se dizer que há aí uma contradição, pois, se qualquer coisa pode incorporar uma
sacralidade, tudo o que é profano poderia ser sagrado, mas não é bem assim. Essa contradição
é aparente, pois, todos os objetos poderão tornar-se sagrados, mas não serão sagrados todos os
68 Hierofania - (do grego hieros (ἱερός) = sagrado e faneia (φαίνειν) = manifesto) pode ser definido como o ato de
manifestação do sagrado. 69 Eliade entende por documentação tudo o que possa contar a história de uma determinada hierofania, uma pintura,
um objeto sagrado, um texto, um elemento da natureza, etc. (ELIADE, 2008, p. 3)
76
objetos ao mesmo tempo. Dessa forma, apesar de qualquer coisa poder se tornar uma hierofania,
somente uma coisa específica (um objeto, um fenômeno, um vegetal, um animal, etc.), com
uma história e uma característica peculiar poderá ser tida por sagrada. Por exemplo, quando se
fala de culto às pedras não se quer dizer que todas as pedras são sagradas, mas sim certas pedras
que tenham uma forma, um tamanho ou uma implicação de ritual específica que possa se tornar
uma hierofania. Deve existir uma lógica que incorpore à pedra algo além dela mesma (ELIADE,
2008, p. 19).
As hierofanias são muitas e estão presentes em todos os atos sagrados de todas as
religiões e entre todos os povos, são símbolos sagrados como descreve Geertz:
[...] os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com uma
estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de
identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar um sentido
normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real. O número desses
símbolos sintetizadores é limitado em qualquer cultura e, embora em teoria se possa
pensar que um povo poderia construir todo um sistema autónomo de valores,
independente de qualquer referente metafísico, uma ética sem ontologia, na verdade
ainda não encontramos tal povo. A tendência a sintetizar a visão de mundo e o ethos
em algum nível, embora não necessária logicamente, é pelo menos empiricamente
coerciva; se não é justificada filosoficamente, ela é ao menos pragmaticamente
universal. (GEERTZ, 1978, p. 94)
Mircea Eliade condensa esse sentido de síntese de visão de mundo abordado por Geertz
nos mitos, que serviriam para “fixar o modelo exemplar de todos os ritos e de todas as ações
humanas significativas [...] o mito serve igualmente de modelo a outras ações humanas
significativas: à navegação e à pesca por exemplo.” (ELIADE, 2008, p. 334). Os mitos seriam
como um conjunto de documentos (no sentido das histórias de cada símbolo) que justificariam
as hierofanias, que dariam sentido aos objeto e/ou eventos sagrados, contando sua história ou
sucessão de eventos, criando um sentido norteador do que é sagrado. Os mitos são revividos
através de rituais representativos, que repetem ou contam de forma representativa esses eventos
significativos que fizeram desse ou daquele fato, desse ou daquele objeto uma hierofania.
(ELIADE, 2008, p. 334 e 335).
2.6.2. O Sagrado e o Profano para Rudolf Otto
A tentativa de compreensão do sagrado tem sido objeto de diversos autores,
comentamos até aqui a visão de Eliade sobre a dicotomia sagrado-profano nos concentrando
nas hierofanias, mas entendemos que, como estamos falando de uma doutrina espiritualista que
se autodenomina cristã, não poderíamos deixar de abordar a visão de sagrado de Rudolf Otto,
já que ele dá grande ênfase ao Cristianismo em seu trabalho. Ele inicia o seu discurso sobre o
77
sagrado da seguinte forma:
O sagrado é, antes de mais, uma categoria de interpretação e de avaliação que, como
tal, só existe no domínio religioso. Sem dúvida, também ocorre noutros domínios, por
exemplo na ética, mas não é dela que provém. Esta categoria é complexa; compreende
um elemento com uma qualidade absolutamente especial, que escapa a tudo o que
chamámos racional, constituindo, enquanto tal, uma arrêton70, algo de inefável. [...] À
primeira vista, tal afirmação poderia parecer falsa se o sagrado fosse o que significa a
palavra em certas locuções usadas pelos filósofos e habitualmente pelos teólogos. De
facto, adquirimos o hábito de usar o termo sagrado dando-lhe um sentido
completamente figurado. Que já não é, de modo algum, o sentido primitivo.
Normalmente entendemos, por esta palavra um predicado de ordem ética, sinónimo
do absolutamente moral e perfeitamente bom. Por exemplo, Kant chama “vontade
santa” à vontade cujo dever é o móbil e que, sem cedências, obedece à lei moral; seria
simplesmente a vontade moral perfeita. (OTTO, 1992, p. 13)
Se, de certa forma, Eliade faz uma análise do sagrado do ponto de vista das diversas
sacralidades e as traduz por hierofanias, registrando-as de uma forma mais material, mais
empírica em suas diversas documentações, Rudolf Otto, porém parte para uma interpretação
mais subjetiva, inefável e a desenvolve no sentido de uma tradução de ordem moral. Otto faz
uma associação da palavra sagrado Heilige (em alemão) a um sentido mais elevado, do que é
bom, perfeito, e reconhece a incapacidade da palavra na sua acepção comum de traduzir o seu
pensamento. Por essa razão, assim como Eliade fez com a palavra hierofania para traduzir o seu
pensamento, Otto cunha o termo numinoso que advém da palavra latina numen (divindade,
desejo divino) que diria respeito a um sentimento de ordem mística (no sentido de vivência de
uma experiência) de perplexidade em relação à grandeza do divino. Ele explica o numinoso da
seguinte forma:
O elemento de que falamos [...] aparece como um princípio vivo em todas as religiões.
Constitui a sua parte mais íntima e, sem ele, nunca seriam formas da religião. A sua
vitalidade manifesta-se, com um particular vigor, nas religiões semíticas e, entre elas,
num grau ainda superior, nas religiões bíblicas. Nelas possui um nome que lhe é
próprio, o de Qadoch, a que corresponde Hagios e Sanctus, ou mais exactamente,
Sacer. Com toda a certeza que, nas três línguas, estas palavras implicam a ideia do
bem e do bem absoluto, considerada no mais alto grau do seu desenvolvimento e na
sua maturidade; vamos traduzi-las, pois por “sagrado”. É impossível que este
elemento seja neutro em si mesmo relativamente àquilo que é de ordem ética e possa
ser examinado por si próprio. Não há dúvida alguma de que na origem deste
desenvolvimento todas aquelas expressões significavam outra coisa diferente de bom.
E um ponto hoje geralmente admitido pelos exegetas. Reconhece-se, e com razão,
uma interpretação racionalista no facto de se traduzir Qadoch simplesmente por bom.
Portanto, convém encontrar um nome para este elemento tomado isoladamente. Tal
nome fixar-lhe-ia o carácter particular, permitindo, além disso, captar e indicar
também, eventualmente, as formas inferiores ou frases de desenvolvimento. Formo,
por isso, a palavra: o numinoso. Se omen pôde servir para formar ominoso, de numem
pode formar-se numinoso. (OTTO, 1992, p. 14)
Uma das características mais importantes apresentadas por Otto acerca do numinoso é
70 Arrêton – definido pelo próprio Otto como indizível. (OTTO, 1992, p. 223)
78
a impossibilidade de percebê-lo senão pelo sentimento, ou seja, pelas emoções religiosas
despertadas no indivíduo que se proponha a compreender o numinoso ou o sagrado. Ele entende
que tal processo de percepção é exclusivo da vivência religiosa e afirma que aquele que não se
predisponha a essa experiência que abandone seu estudo. A experiência subjetiva do
“sentimento do estado de criatura à reação provocada na consciência pelo sentimento do objeto
numinoso” (1992, p. 17) é para Otto a base fundamental para o estudo da religião sem a qual
não é possível avançar em seu entendimento. Decorrente disso, Otto desenvolve a ideia de um
sentimento que ele chama de dependência que teria o sentido da nossa insuficiência, da nossa
impotência, da nossa limitação em relação à divindade. “Procuro um nome para este algo mais
e chamo-lhe: o sentimento do estado de criatura, que se abisma no seu próprio nada e desaparece
perante o que está acima de toda a criatura” (OTTO, 1992, p. 19).
O sentimento de dependência e de insuficiência em relação à divindade foi designado
por Otto como sendo um dos aspectos do numinoso, e ele o chama de mysterium tremendum.
Esse é um ponto importante para nossa pesquisa, pois trata da nossa relação com a divindade e,
para o autor, uma das suas características é a impossibilidade de ser delimitada por conceitos,
por tratar-se de um sentimento particular, de uma experiência do indivíduo que o contato com
a divindade provoca. Essa experiência mística, segundo Otto, provoca no indivíduo sensações
inexplicáveis, poderosas expressões emotivas que são alcançadas nas solenidades e tonalidades
dos rituais e dos cultos. São emoções que podem espalhar na alma como que uma onda
apaziguadora de quietude e profundo recolhimento. As emoções causadas pelo mysterium
tremendum se refletem em tudo à volta do indivíduo, nos monumentos religiosos, edifícios e
templos religiosos. Esses estados de alma, porém, para Otto, desfazem-se quando a pessoa
retoma o seu estado profano e ele completa seu pensamento da seguinte forma:
Este sentimento pode assim transformar-se num estado de alma constantemente
fluido, semelhante a uma ressonância que se prolonga durante muito tempo, mas que
acaba por extinguir-se na alma que retoma o seu estado profano. Também pode surgir
bruscamente na alma com choques e convulsões. Pode levar a estranhas excitações,
ao inebriamento, aos arrebatamentos, ao êxtase. Tem formas selvagens e demoníacas.
Pode degradar-se e quase confundir-se com o arrepio e o pasmo de horror
experimentado diante dos espectros. Tem graus inferiores, manifestações brutais e
bárbaras, possuindo uma capacidade de desenvolvimento com que se refina, se
purifica, se sublima. Pode transformar-se no silencioso e humilde estremecimento da
criatura que fica interdita... em presença daquilo que está, num mistério inefável,
acima de toda a criatura. (OTTO, 1992, p. 22)
Otto ainda discorre sobre a questão do mistério, como aquilo que não é manifesto, que
está escondido, aquilo que não é compreendido e que é extraordinário, que está além de nossa
compreensão, muito embora entenda que, apesar de oculto, seja positivo, e embora sem
precisão, possa ser acessado pelo sentimento (OTTO, 1992, p. 22). Otto ainda discorre em sua
79
obra sobre outras características do numinoso, a visão do fascínio e a questão do tremendum do
poder (majestas) que a divindade pode exercer sobre o indivíduo, mas que não são relevantes
para nossa abordagem.
2.6.3. O Sagrado e o Profano para Kardec
Como vimos, uma das questões iniciais levantadas por Eliade seria a dificuldade da
identificação dos fatos religiosos em virtude da grande profusão de religiões e de suas visões
de mundo. Em nosso caso, por outro lado, o trabalho não é fácil, mas é menos penoso, pois
vamos usar apenas algumas das conclusões que ele chegou para identificar como os conceitos
de sagrado e de profano são entendidos e aplicados ao Espiritismo. A dificuldade inicial
apontada por Eliade ficará, portanto, amenizada pois faremos o caminho inverso, aproximando
os conceitos do Espiritismo abordados por Kardec às conclusões de Eliade e de Rudolff Otto,
muito embora não sejam menos penosas e incompletas tais observações.
Para que possamos estabelecer um diálogo de Kardec com os conceitos de Eliade e de
Otto sobre o sagrado, é necessário primeiramente identificar o entendimento do codificador do
Espiritismo sobre o sagrado. Na obra kardeciana, não há nenhuma definição explícita para o
termo sagrado e todas as vezes que esse termo aparece é utilizado na sua acepção comum, que
no dicionário online Priberam71 é definido como aquilo que é relativo ao culto religioso. =
SACRO, SANTO ≠ PAGÃO, PROFANO ou o que inspira ou deve inspirar grande respeito ou
veneração. = SACRO, SANTO. Embora não trate o sentido de sagrado com uma definição
específica, Kardec trata no livro A Gênese das manifestações do divino, que, pela definição de
Eliade, seriam hierofanias nos eventos que chamaremos aqui de miraculosos, fenômenos
sobrenaturais ou fenômenos metafísicos. Kardec discorre sobre esse tema da seguinte forma:
Na acepção etimológica, a palavra milagre (de miracŭlum, admirar) significa:
prodígio, maravilha; coisa extraordinária. A Academia definiu-a deste modo: Um ato
do poder divino contrário às leis da natureza, conhecidas. Na acepção usual, essa
palavra perdeu, como tantas outras, a significação primitiva. De geral, que era, se
tornou de aplicação restrita a uma ordem particular de fatos. No entender das massas,
um milagre implica a ideia de um fato extranatural; no sentido teológico, é uma
derrogação das leis da natureza, por meio da qual Deus manifesta o seu poder. Tal,
com efeito, a acepção vulgar, que se tornou o sentido próprio, de modo que só por
comparação e por metáfora a palavra se aplica às circunstâncias ordinárias da vida.
Um dos caracteres do milagre propriamente dito é o ser inexplicável, por isso mesmo
que se realiza com exclusão das leis naturais. É tanto essa a ideia que se lhe associa,
que, se um fato milagroso vem a encontrar explicação, se diz que já não constitui
milagre, por muito espantoso que seja. O que, para a Igreja, dá valor aos milagres é,
71 DICIONÁRIO PRIBERAM. Disponível em: <https://www.priberam.pt/dlpo/sagrado>. Acesso em: 18 ago.
2018.
80
precisamente, a origem sobrenatural deles e a impossibilidade de serem explicados.
Ela se firmou tão bem sobre esse ponto, que o assimilarem-se os milagres aos
fenômenos da natureza constitui para ela uma heresia, um atentado contra a fé, tanto
assim que excomungou e até queimou muita gente por não ter querido crer em certos
milagres. Outro caráter do milagre é o ser insólito, isolado, excepcional. Logo que um
fenômeno se reproduz, quer espontânea, quer voluntariamente, é que está submetido
a uma lei e, desde então, seja ou não seja conhecida a lei, já não pode haver milagres.
(KARDEC, AG: Cap. XIII: 1).
De acordo com essa citação, no Espiritismo, segundo o entendimento de Kardec, não há
fatos sagrados ou miraculosos, aliás, de seu ponto de vista, esses fatos sequer existem em
qualquer religião que seja. Para ele, os fenômenos e eventos tratados como milagres por muitas
comunidades religiosas, inclusive para a Igreja Católica quando esta trata da criação do mundo,
por exemplo, por não compreender os fenômenos geológicos, físicos, químicos ou
astronômicos deu à criação do mundo uma conotação de intervenção divina72, ao que, na
verdade, não passam de fenômenos naturais mal compreendidos pelo desconhecimento de fatos
científicos (KARDEC, AG: Cap. IV: 3). A criação e outros fenômenos de ordem natural foram
atribuídos às divindades, demônios ou qualquer tipo de fenômenos metafísicos sobrenaturais.
Em certas culturas, por exemplo, se tomarmos religiões mais primitivas, os eventos naturais,
como relâmpagos que ao cair partem e colocam fogo em uma árvore, são atribuídos a algo de
ordem sobrenatural, a um deus, a espíritos malignos ou a quaisquer entidades metafísicas,
dependendo ao que essa cultura atribua, transformando esse evento natural em uma hierofania,
devendo essa(s) ser(em) adorada(s) ou temida(s) dentro de uma visão de mundo constituída..
Kardec, nesse ponto, inclusive, generalizou esse entendimento para todas as religiões.
As colocações de Kardec apresentadas justificam inclusive as dificuldades apontadas
por Eliade, pois a “heterogeneidade dos ‘fatos sagrados’ começa por ser perturbante e acaba,
pouco a pouco, por se tornar paralisante, pois se trata de ritos, de mitos, de formas divinas, de
objetos sagrados e venerados, de símbolos, de cosmologias, de teologúmenos, de homens
consagrados”. (ELIADE, 2008, p. 8). Não queremos aqui discutir o mérito dos fatos sagrados
ou como diria Eliade das suas hierofanias, estamos considerando apenas que, mesmo que esses
não existissem ou que não pudessem ser falseados, ainda sim, para seu observador, seriam
sagrados. Sejam quais forem os nomes dados, esses serão fenômenos ou fatos religiosos mesmo
quando forem imaginários e cujas explicações têm uma lógica estabelecida por sua cultura e/ou
72 Cabe aqui uma explicação a respeito do entendimento do Espiritismo sobre a criação. Segundo O Livro dos
Espíritos, em sua pergunta primeira, “Que é Deus?” e cuja resposta é “Deus é a inteligência suprema, causa
primária de todas as coisas” (KARDEC, LE: Questão: 1) o universo foi criado por Deus. A questão é que,
segundo esse pensamento, essa criação não é “miraculosa” no sentido de derrogação das leis naturais. Para o
Espiritismo, Deus criou o universo não em sete dias, mas sim de acordo com que nos apresenta as ciências
naturais. Esse assunto é tratado em toda a primeira parte do livro A Gênese de Kardec (1990).
81
costumes.
A aparição de uma entidade metafísica qualquer será para alguns a aparição de um
demônio, para outros um fantasma, um anjo, um santo ou qualquer denominação que o
observador desse fato quiser dar, segundo sua bagagem cultural e eventualmente religiosa,
segundo sua visão de mundo. Para Kardec, por outro lado, será um fenômeno relativamente
incompreendido pela ciência corrente, um fenômeno que pode ou não ter uma explicação do
ponto de vista da ciência natural corrente, mas que um dia será revelado assim como foram os
relâmpagos, outrora atribuídos a eventos metafísicos e que posteriormente foram entendidos
como descargas atmosféricas.
Para Kardec a revelação tem uma acepção própria, segundo ele, não existe nas
revelações elementos sobrenaturais, ao contrário, são fatos naturais que se “nos deram a
conhecer [...], e pode-se dizer que existe para nós uma revelação incessante; a astronomia nos
revela o mundo astral, que não conhecíamos, a geologia, a formação da terra” (KARDEC,
1868b, p. 1, tradução nossa)73. Ele afirma que, sendo as revelações baseadas em fatos, são por
isso mesmo progressivas e completa que o Espiritismo “Pela sua substância, alia-se à Ciência
que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser
contrária às leis de Deus, autor daquelas leis.” (KARDEC, AG: Cap. I: 55). No capítulo três
aprofundaremos o entendimento de Kardec sobre as revelações.
Para Kardec, o Espiritismo não pode estabelecer como princípio algo que não tenha sido
claramente demonstrado e que deve, por sua vez, incorporar toda e qualquer descoberta de
ordem científica, desde que essa tenha assumido o estado de ordem prática e abandonado o
domínio da utopia. Diz ainda que o Espiritismo “caminhando de par com o progresso, [...]
jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca
de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a
aceitará. (KARDEC, AG: Cap. I: 55).
De volta à questão do sagrado propriamente dito, de acordo com Eliade, para que
possamos delimitar e definir o sagrado, teremos que lançar mão de uma certa quantidade de
sacralidades, ou seja, de fatos sagrados (ELIADE, 2008, p. 8). Geertz explica que os
significados para os fenômenos de ordem metafísica que são transformados em algo sagrado se
traduzem em símbolos e/ou objetos de culto (as hierofanias), que são envolvidos por uma aura
73 O conteúdo que é citado aqui, denominado “Caracteres da revelação Espírita” encontra-se também no livro A
Gênese do mesmo autor em seu primeiro capítulo. Preferimos usar o primeiro original em francês de 1868
intitulado: “Caractères de la révélation Spirite”: [...]qui nous font connaítre [...] l'on peut dire qu'il y a pour
nous une révélation incessante; l'astronomie nous révélé le monde astral, que nous ne connaissions pas; la
géologie, la formation de la terre.
82
de extrema seriedade moral que encoraja a devoção ao fato sagrado, gera segundo ele um
“sentido de obrigação intrínseca: [...] não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas
induz a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional.” (GEERTZ, 1978, p. 93).
Esta ligação emocional cria uma relação da religião com o homem e seu ambiente que não é
meramente metafísica, que causa efeitos morais transformadores como objeto principal, que
estão previstos no conceito de Lactâncio de religare. Para Geertz esse entendimento causa
consequências que vão além do que é,
mundano, é considerado, inevitavelmente, como tendo implicações de grande alcance
para a orientação da conduta humana. Não sendo meramente metafísica, a religião
também nunca é meramente ética. Concebe-se que a fonte de sua vitalidade moral
repousa na fidelidade com que ela expressa a natureza fundamental da realidade.
Sente-se que o "deve" poderosamente coercivo cresce a partir de um "é" fatual
abrangente e, dessa forma, a religião fundamenta as exigências mais específicas da
ação humana nos contextos mais gerais da existência humana. Na discussão
antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os
elementos valorativos, foram resumidos sob o termo "ethos", enquanto os aspectos
cognitivos, existenciais foram designados pelo termo "visão de mundo [...] A crença
religiosa e o ritual confrontam e confirmam-se mutuamente; o ethos torna-se
intelectualmente razoável porque é levado a representar um tipo de vida implícito no
estado de coisas real que a visão de mundo descreve, e a visão de mundo torna-se
emocionalmente aceitável por se apresentar como imagem de um verdadeiro estado
de coisas do qual esse tipo de vida é expressão autêntica. Essa demonstração de uma
relação significativa entre os valores que o povo conserva e a ordem geral da
existência dentro da qual ele se encontra é um elemento essencial em todas as
religiões, como quer que esses valores ou essa ordem sejam concebidas. O que quer
que a religião possa ser além disso, ela é, em parte, uma tentativa (de uma espécie
implícita e diretamente sentida, em vez de explícita e conscientemente pensada) de
conservar a provisão de significados gerais em termos dos quais cada indivíduo
interpreta sua experiência e organiza sua conduta. (GEERTZ, 1978, p. 93)
O entendimento de Kardec sobre as manifestações metafísicas se alinha com o
pensamento de Geertz, pois para ele o principal papel do Espiritismo, não está na simples
observação e explicação dos fatos metafísicos. Para o Espiritismo, o ponto central é a
possibilidade de oferecer um sentindo de ordem moral e estético, no qual o indivíduo possa,
através de um senso de moralidade dado por valores emocionalmente assumidos, transformar-
se em seu mundo real, aqui no mundo profano e vivenciado no corpo físico material. Embora
Kardec entenda que essa relação com a divindade possa ser sentida, pode e deve também ser
“explícita e conscientemente pensada”. A esse respeito, inclusive, Kardec, na introdução de O
Evangelho segundo o Espiritismo, compara os ensinamentos do Cristo com os ensinos de Platão
e cita Sócrates:
[...] “Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhada nessa
corrupção, nunca possuiremos o objeto dos nossos desejos: a verdade. Com efeito, o
corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que nos achamos de cuidar
dele. Ao demais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e
de mil tolices, de maneira que, com ele, impossível se nos torna ser ajuizados, sequer
por um instante. Mas, se não nos é possível conhecer puramente coisa alguma,
83
enquanto a alma nos está ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a
verdade, ou só a conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo,
conversaremos então, lícito é esperá-lo, com homens igualmente libertos e
conheceremos, por nós mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os
verdadeiros filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo
nenhum, temível.” Está aí o princípio das faculdades da alma obscurecidas por motivo
dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades depois da morte. Mas trata-se
apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá com as almas impuras. (KARDEC,
ESE: Introdução: IV).
O Espiritismo procura a compreensão de que se ele existe no mundo material, existirá
também no mundo metafísico e que será consequência do que ele é aqui. Kardec entende que
religio no sentido de escrúpulo em relação ao culto, ou seja, um preciosismo em relação aos
atos exteriores de adoração como descrito por Cícero é um equívoco (KARDEC, RE: Mai/1859,
p. 206 a 208). Ele entende que aqueles que se apegam com exclusividade à existência dos
fenômenos e se dedicam aos mesmos são espíritas imperfeitos e classifica-os da seguinte forma:
O Espiritismo não institui nenhuma nova moral; apenas facilita aos homens a
inteligência e a prática da do Cristo, facultando fé inabalável e esclarecida aos que
duvidam ou vacilam. Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das
manifestações não lhes apreendem as conseqüências, nem o alcance moral, ou, se os
apreendem, não os aplicam a si mesmos. [...] Têm a crença nos Espíritos como um
simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas.
Numa palavra: não divisam mais do que um raio de luz, insuficiente a guiá-los e a
lhes facultar uma vigorosa aspiração, capaz de lhes sobrepujar as inclinações. Atêm-
se mais aos fenômenos do que à moral, que se lhes afigura cediça e monótona. Pedem
aos Espíritos que incessantemente os iniciem em novos mistérios, sem procurar saber
se já se tornaram dignos de penetrar os arcanos do Criador. Esses são os espíritas
imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em
crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas
simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas ou das prevenções. (KARDEC,
ESE: Cap. XVII: 4).
O Espiritismo propõe dessa forma uma abordagem que corrobora Geertz quando este
diz que: Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada
cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo ethos, enquanto os aspectos
cognitivos, existenciais foram designados pelo termo visão de mundo. Há no Espiritismo uma
visão de mundo que não separa o homem físico do metafísico, mas por outro lado discorda da
visão de que “a crença religiosa e o ritual confrontam e confirmam-se mutuamente”. Entende
que não há necessidade da existência de rituais, pois que para o acesso ao fato metafisico não é
necessário o ritual, que o fenômeno pode ser compreendido e reproduzido por meios racionais
e que o mais próximo que se deve chegar do ritual é de rito no sentido de cumprimento a um
procedimento para reprodução de forma baconiana de um fenômeno.
Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.
Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas
mais gerais e, a seguir, a descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses
princípios e de sua inamovível verdade. A outra, que recolhe os axiomas dos dados
84
dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em
último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho,
porém ainda não instaurado. (BACON, p. 16, 1988)
Isso, por exemplo, aconteceu quando Kardec observou o fenômeno das mesas girantes,
pois colocou de lado todas as questões de ordem ritualísticas e aplicou o método da
experimentação. As pessoas que vivenciaram o fenômeno das mesas girantes achavam que se
não encostassem as pontas dos dedos uns dos outros, fechando uma corrente, a mesa não se
moveria. Foram repetidos procedimentos, avaliados os eventos que ocorriam e descobriu-se
que bastaria uma única mão para o fenômeno. Pouco a pouco as mesas foram substituídas pelos
cestos de três pontas, depois passou a usar-se pranchetas e finalmente, abandonando por
completo estes recursos, chegou-se ao que foi chamado de psicografia usando-se somente a
mão do médium e um lápis. Ele compreendeu que não eram as mesas que falavam, pois efeitos
inteligentes deviam ser produzidos por seres inteligentes.
Não há, portanto, segundo Kardec, hierofanias, pois o sagrado no sentido aplicado por
Eliade perde sentido e o metafísico se apresenta como um fenômeno natural e, dessa forma, é
profano no sentido de que faz parte do mundo cotidiano. Nessa visão de mundo alinhado ao
pensamento iluminista, o homem não tem que se curvar, não tem que fazer reverência ao
sagrado ou ao fenômeno metafísico, assim como o homem moderno não se curva diante do
relâmpago, pois o entende como algo simples e corriqueiro. Não há nessa visão de mundo o
mysterium tremendum, pois não há que se curvar ao sobrenatural e sim compreendê-lo e
dominá-lo quando possível.
Por outro lado, um dos aspectos do mysterium tremendum é o sentimento de impotência
em relação à Divindade. Na visão de mundo do Espiritismo não nos é possível o entendimento
e a compreensão de todas as particularidades do mundo metafísico devido às limitações
humanas. O numinoso, enquanto sentimento de humildade em relação à grandeza de Deus, está
fortemente estabelecido nessa visão de mundo. Por outro lado, no conceito de revelação de
Kardec, não há mistérios que não possam ser revelados, e sim fatos que ainda não foram
compreendidos, apesar disso, porém há realidades que não podem ser suportadas por limitações
do ser humano, cuja inteligência ainda não pode alcançar. Em nosso ponto de vista, isso se
equivale, de certa forma74, ao mysterium tremendum, a diferença é que entende-se aqui que um
dia, com a evolução do ser humano, esse entendimento será alcançado e não deve ser temido.
Em O Livro dos Espíritos são feitas as seguintes considerações sobre a compreensão dos
74 Aqui dissemos que se equivale de “certa forma” porque para Otto o mysterium tremendum é algo que nunca será
revelado, enquanto para Kardec um dia ele será alcançado através do processo de evolução. Fica dessa forma
enquanto ele é mistério o sentimento relatado por Otto.
85
mistérios (das coisas ainda não reveladas) do mundo em que vivemos:
17. É dado ao homem conhecer o princípio das coisas?
“Não, Deus não permite que ao homem tudo seja revelado neste mundo.”
18. Penetrará o homem um dia o mistério das coisas que lhe estão ocultas?
“O véu se levanta a seus olhos, à medida que ele se depura; mas, para compreender
certas coisas, são-lhe precisas faculdades que ainda não possui.”
19. Não pode o homem, pelas investigações científicas, penetrar alguns dos segredos
da Natureza?
“A Ciência lhe foi dada para seu adiantamento em todas as coisas; ele, porém, não
pode ultrapassar os limites que Deus estabeleceu.”
Quanto mais consegue o homem penetrar nesses mistérios, tanto maior
admiração lhe devem causar o poder e a sabedoria do Criador. Entretanto, seja
por orgulho, seja por fraqueza, sua própria inteligência o faz joguete da ilusão.
Ele amontoa sistemas sobre sistemas e cada dia que passa lhe mostra quantos
erros tomou por verdades e quantas verdades rejeitou como erros. São outras
tantas decepções para o seu orgulho. (KARDEC, LE: Questões: 17, 18 e 19, grifos
nossos)
O texto destacado em negrito na citação acima é comentário pessoal de Kardec,
enquanto as perguntas são feitas por ele e as respostas atribuídas aos Espíritos. Observemos que
Kardec admite a existência de mistérios, que para ele são particularidades a respeito do mundo
metafisico, chamado, em geral, de mundo dos espíritos, e que ainda não foram revelados ou
que ainda não nos foram dados a compreender. Nesse comentário, ele admite um sentimento de
impotência em relação à divindade que ele nomeia por Criador, alinhado com a descrição do
sentimento de humildade em relação à divindade que Rudolf Otto destaca no numinoso.
Nessa visão de mundo apresentada por Kardec, encontramos a existência de uma certa
mística, um discurso de fundo, o qual se pode ler claramente como religioso, não no sentido do
relegere mas sim no sentido de religare em que o ser humano não alcança a divindade ainda,
mas é por ela cuidada, pois o sentido de providência, da proteção do Criador está presente, e se
confirma no seguinte comentário:
Nada tem de surpreendente a doutrina dos anjos guardiães, a velarem pelos seus
protegidos, mau grado à distância que medeia entre os mundos. É, ao contrário,
grandiosa e sublime. Não vemos na Terra o pai velar pelo filho, ainda que de muito
longe, e auxiliá-lo com seus conselhos correspondendo-se com ele? Que motivo de
espanto haverá, então, em que os Espíritos possam, de um outro mundo, guiar os que,
habitantes da Terra, eles tomaram sob sua proteção, uma vez que, para eles, a distância
que vai de um mundo a outro é menor do que a que, neste planeta, separa os
continentes? Não dispõem, além disso, do fluido universal, que entrelaça todos os
mundos, tornando-os solidários; veículo imenso da transmissão dos pensamentos,
como o ar é, para nós, o da transmissão do som? (KARDEC, LE: Questão:495)
Essa passagem é um comentário de Kardec sobre a resposta dada pelos espíritos a
respeito das questões dos anjos guardiães, e fica patente o pensamento de que há uma
providência superior que guia os homens no mundo terreno. Há em alguns pontos inclusive que
86
Kardec afirma existir sentimentos que corroboram a ideia do numinoso de Rudolf Otto, quando
fala de percepções intuitivas do mundo metafísico ou da divindade: “Se o sentimento da
existência de um ser supremo fosse tão-somente produto de um ensino, não seria universal e
não existiria senão nos que houvessem podido receber esse ensino, conforme se dá com as
noções científicas.” (KARDEC, LE: Questão:6).
Como vimos então até aqui, para Mircea Eliade e Rudolf Otto, o divino se manifesta
para o ser humano através das diversas sacralidades ou hierofanias e despertam nesse o
sentimento numinoso, particularmente no que tange ao mysterium tremendum, e retomando a
afirmação de Kardec:
O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como
qualquer filosofia espiritualista; por isso mesmo, vai ter forçosamente as bases
fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma
religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus
adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote.
(KARDEC, OP: Ligeira Resposta ao Detratores do Espiritismo).
Percebemos que, como já discorremos anteriormente, na visão de mundo baconiana e
secular de Kardec, não haveria hierofanias nem tão pouco o mysterium tremendum (na sua
concepção plena), pois poder-se-ia vir a compreender pela razão cada um dos fenômenos ditos
como sobrenaturais presentes nas religiões. Com a aplicação da ciência na interpretação dos
fenômenos metafísicos, Kardec explica que não há necessidade de cultos ou rituais, porque
estes seriam substituídos por procedimentos positivos ou indutivos que levariam ao alcance dos
fenômenos metafísicos, já que os fenômenos teriam suas causas e fontes reveladas. Os mitos
também não teriam razão de ser, assim como os templos religiosos como uma variedade das
hierofanias, perderiam também o seu sentindo da mesma forma que os símbolos e objetos
sagrados.
Ficaria, então, restando compreender a questão dos sacerdotes ou sumo-sacerdotes que
seriam portadores de uma capacidade especial para o trato com o metafísico como em qualquer
outra religião. Para o Abade François Chesnel, em artigo publicado no jornal L’Univers que
abordaremos com detalhes no capítulo três, Allan Kardec era o sumo sacerdote desta nova
religião e os médiuns seriam os sacerdotes, portadores de um dom especial para lidar com a
divindade ou com os demônios. A prática mediúnica era denominada pela Igreja Católica como
necromancia, colocando o Espiritismo na mesma posição de uma religião. (KARDEC, RE:
Jul/1859, p. 289). A mediunidade seria, segundo Chesnel, um pretenso dom de que alguns
privilegiados teriam de trazer revelações a respeito do mundo sobrenatural ou, como queiram
alguns, do mundo metafísico.
87
Por essa razão, precisamos entender porque, para Kardec, no Espiritismo os médiuns
não são tidos por sacerdotes ou pessoas especiais. Começaremos por retomar a questão das
revelações já anteriormente tratadas particularmente com o comportamento daqueles tidos por
Kardec como os reveladores das religiões até aquele momento instituídas:
Todas as religiões tiveram os seus reveladores, e embora todos estivessem longe de
ter conhecido toda a verdade, eles tinham uma razão de ser providencial, pois estavam
apropriados ao tempo e ao meio onde viviam, ao gênio particular dos povos para os
quais falaram e para aos quais seriam relativamente superiores. [...] Infelizmente, as
religiões sempre foram instrumentos de dominação - o papel dos profetas tem
tentado alcançar ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de
pretendentes reveladores ou messias que, graças ao prestígio do nome, a
credulidade explorada em benefício de seu orgulho, sua ganância ou sua ociosidade,
achando mais conveniente viver à custa dos que se deixam enganar. A religião cristã
não foi imune a esses parasitas. (KARDEC, 1868b, p. 4)
Para fugir das ambições secundárias de alguns reveladores, que no entender de Kardec
nada mais eram do que médiuns, ele não diz que suas comunicações eram falsas, mas sim que
esses, por orgulho ou vaidade, arvoram-se de donos da verdade. Por essa razão que Kardec nega
a condição atribuída por Chesnel de sumo-sacerdote e da posição de sacerdotes pelos médiuns.
No decorrer de sua obra, ele trata diversas vezes da questão da impossibilidade de existir aquele
que não cometa equívocos, diz não ser possível depositar em um único homem a reveleção de
uma verdade sem que com isso não se cometam erros.
Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por
penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo,
poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade
absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem,
nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que
dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita,
quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria
sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo. Quis Deus que a nova
revelação chegasse aos homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu,
pois, os Espíritos de levá-la de um pólo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem
conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser
ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de
criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e
para todos. (KARDEC, ESE: Introdução: II).
Primeiramente, cabe destacar aqui que Kardec não se enquadrava na condição de
médium e tudo o que ele redigiu o fez por si próprio. O trabalho dele se deu em parte atráves
da coleta de mensagens que foram trazidas por médiuns de diversas localidades do mundo, e
que foram acrescidas ao seu trabalho. Outra parte das mensagens tiveram sua origem fomentada
por ele quando submetia perguntas e proposições aos espíritos que as respondiam. Ele deixa
claro, porém, que nem todas as respostas e mensagens eram aproveitadas, pois deveriam seguir
uma lógica e os espíritos que as respondiam deveriam demonstrar conhecimento a respeito do
assunto. Ele comparava essas respostas com a de outros espíritos que a respondiam atrávés de
88
fontes (médiuns) diferentes que não se conheciam entre si (KARDEC, ESE: Introdução: II).
Kardec faz questão inclusive de dizer, em nota na introdução de O Evangelho Segundo
o Espiritismo, que os médiuns não foram sequer nomeados ao trazer as mensagens e respostas
do espíritos “Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. [...] Ao demais, os nomes dos
médiuns nenhum valor teriam acrescentado à obra dos Espíritos.” (KARDEC, ESE: Introdução:
II).
Na obra kardeciana, de maneira geral, as mensagens não são atribuídas a esse ou àquele
médium, e inclusive, na Revista Espírita, quando o faz, Kardec omite o nome do médium
citando a primeira letra do nome seguido de reticências. Por exemplo, a mensagem sobre os
anjos guardiões citada neste capítulo é comentada na Revista Espírita com o seguinte subtítulo:
“Os anjos-da-guarda. Comunicação espontânea obtida pelo Sr. L..., um dos médiuns da
Sociedade.” (KARDEC, RE: Jan/1859, p. 41). Por fim, Kardec pondera que sua palavra não é
a última e que nínguém pode se arvorar na condição de infalibilidade:
O homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas
ideias são as mais falsas, se apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo
o que lhes parece impossível. Os que outrora repeliram as admiráveis descobertas de
que a Humanidade se honra, todos endereçavam seus apelos a esse juiz, para repeli-
las. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer
que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos, pois, aos
ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro pelo
passado, não creem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a Natureza lhe
tenha facultado ler a última página do seu livro. (KARDEC, LE: Introdução: VII)
Dessa forma, não poderiam haver sacerdotes ou pessoas especiais, portadoras da
revelação e inclusive ele diz que a condição de médium não é privilégio e que toda e qualquer
pessoa é portadora dessa ou daquela mediunidade, e que seriam raros aqueles indivíduos que
não tivessem nenhum traço dessa faculdade. (KARDEC, LM: Cap. XIV: 159).
Com esse raciocínio fica claro, segundo o ponto de vista de Kardec, que o Espiritismo
não possui sacerdotes ou sumo-sacerdotes portadores de uma condição privilegiada para trazer
ao mundo revelações fantásticas e especiais. Para ele qualquer ser humano, seja ele homem ou
mulher, rico ou pobre, ligado ao Espiritismo ou não poderá ser portador das mensagens do
mundo espiritual.
89
3. O ESPIRITISMO COMO ALTERNATIVA RELIGIOSA: Entre Espiritualistas,
Ocultistas e Cristãos
Até aqui pudemos identificar a formação de Kardec e como ele pensava em relação à
religião numa visão que é, por assim dizer, de dentro para fora. Entretanto, o fenômeno das
mesas girantes não foi o único e nem tão pouco esteve restrito a Paris. Arthur Conan Doyle, em
sua obra A História do Espiritualismo – De Swedenborg ao início do século XX, afirma que o
Espiritualismo75 é anterior a Kardec e que esteve presente através de outras vertentes e não só
no Espiritismo Francês, e, dessa forma, foi encarado como religião não só pela Igreja Católica,
mas como também por muitos outros livres pensadores do século XIX.
O objetivo deste capítulo é fazer uma abordagem de fora para dentro, demonstrando
como o Espiritismo foi recebido no século XIX pela comunidade religiosa e científica de sua
época, particularmente a Igreja Católica, o Mesmerismo, o Espiritualismo Americano e o
Ocultismo. Neste capítulo não vamos abordar o Mesmerismo, visto que já o fizemos no
primeiro capítulo, apresentando que o magnetismo animal foi relacionado por Kardec como
uma ciência gêmea do Espiritismo (KARDEC, RE: Jan/1869, p. 28). Veremos como o
Espiritismo foi encarado pelos iluministas e notaremos como se tornou uma alternativa religiosa
para muitas correntes de pensamento de sua época e como muitos dos que se relacionavam e
interagiam com Kardec em suas abordagens religiosas. Vamos observar inclusive que as
próprias palavras dele foram tomadas por alguns como religiosas.
3.1. Uma nova religião em Paris
Um dos fatos mais relevantes a respeito da relação entre o Espiritismo e a Igreja Católica
foi a publicação de 13 de abril de 1859 do jornal L’Univers76 intitulada Une religion nouvelle
à Paris – Uma nova religião em Paris, o autor do artigo foi o Abade François de Chesnel77, que
75 Como veremos no decorrer deste capítulo, Espiritualismo era o nome dado ao Espiritismo por outras correntes
de pensamento da época. 76 Originalmente chamado L’Univers Religieux, o jornal foi fundado em novembro de 1834 pelo Abade Jaques-
Paul Migne (1800-1875), editor de Patrologia Latina. A partir de 1838, L’Univers passou por uma crise financeira
e ameaçava declarar falência. O conde Charles de Montalembert (1810-1870), membro da Casa dos Pares, um
dos promotores do catolicismo liberal e ex-editor do jornal L'Avenir de Lamennais, condenado em 1832 pelo
papa Gregório XVI, começou a salvar o jornal. Com a ajuda de seu sogro, Félix de Mérode (1791-1857), ele
pegou empréstimo para cobrir as dívidas do jornal e depois assumiu a redação. Este periódico era de edição
diária, considerado um jornal polêmico e violento. 77 O Abade François Chesnel, nascido em Quimperlé, em 1822, morreu no castelo de Kergree'h em Plougrescant,
no dia 12 de abril de 1877. Ele iniciou seus estudos teológicos em St. Sulpice e os completou em Roma. Ele foi
consultor do Concílio do Vaticano a convite do Papa, foi vigário geral da diocese de Quimper, e escreveu as
90
de forma categórica, nesse texto, tratou o Espiritismo como uma religião. Do ponto de vista do
Abade, ele registrava o surgimento de uma seita que tentava elevar o magnetismo à condição
de religião, entendendo que o magnetismo, nessa época, teve certa expressão como já citamos
no capítulo primeiro de nosso trabalho. Para ele, essa seita estava desencaminhando pessoas
respeitáveis do seu caminho católico. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196-208)
Esse artigo e outro que se sucedeu em 28 de maio de 1859 tiveram particular relevância
para o Espiritismo, pois Kardec elaborou cuidadosa resposta publicada no próprio jornal
L’Univers, seguida de tréplica de Chesnel na mesma edição e publicada também na Revista
Espírita de julho de 1859 (KARDEC, RE: Jul/1859, p. 287-290), que se transformou, a
posteriori, em um capítulo do livro O que é o Espiritismo, no qual há um diálogo teórico de
Kardec com um padre (KARDEC, OE: Cap I: Terceiro Diálogo), com diversas refutações
originadas nas discussões do artigo de Chesnel. São principalmente nessas refutações de Kardec
que constam boa parte das argumentações daqueles que afirmam que o Espiritismo não é uma
religião, ou que o seu codificador não tinha a intenção de formular uma religião. Kardec, ao
responder tal artigo, justifica-se afirmando que estava dando particular atenção a Chesnel por
causa da qualidade do trabalho dele, pois, segundo Kardec, ele demonstrava ter estudado com
algum critério as questões do Espiritismo. Para demonstrar isso, registrou: “Nós o teríamos
deixado de lado, como o fazemos a tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância,
se se tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que revelam, da parte de seus autores, a mais
absoluta ignorância daquilo que atacam.” (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196). Esta colocação é
importante porque revela, nas próprias palavras de Kardec, que o Espiritismo sofria diversas
interferências externas, o que inclusive motiva um dos capítulos do livro Obras Póstumas
intitulado “Ligeira resposta aos detratores do Espiritismo” (KARDEC, 2016, p. 229 a 233).
O longo artigo do Abade de François de Chesnel suscitou muitas questões de destaque
por parte de Kardec e, por essa razão, resolvemos transcrever a seguir os trechos deste texto
que julgamos mais importantes, seguidos de alguns comentários:
Todos conhecem o espiritualismo do Sr. Cousin78, essa filosofia destinada a substituir
lentamente a religião. Sob o mesmo título, hoje possuímos um corpo de doutrinas
reveladas, que pouco a pouco se vai completando, e um culto muito simples, é
verdade, mas de eficácia maravilhosa, pois que poria os devotos em comunicação real,
sensível e quase permanente com o mundo sobrenatural. (KARDEC, RE: Mai/1859,
p. 196, grifos nossos)
seguintes obras: Du paganisme, de son principe et de son histoire (in-12, 1853); Petites méditations sur le sacré
coeur de Jésus (in-12, 1857); Méditations à l'usage des communautés religieuses pour tous les jours de l'année
(4 vol. in-12, Lyon, 1860); Les Droits de Dieu et les idées modernes (in-8, 1875). (REVUE, 1876, p. 544). 78 Filósofo, educador e historiador francês Victor Cousin (1792-1867).
91
No artigo do Abade, em nenhum momento ele se refere ao Espiritismo como tal e sim
como espiritualismo, isso se dá porque havia outros movimentos espiritualistas além do
Espiritismo de Kardec, os quais, inclusive, abordaremos mais à frente nesse capítulo. O autor,
no artigo, cita personalidades da época que publicamente se dedicavam a divulgar ideias
espiritualistas, como o Sr. Victor Cousin, apontado nesse trecho e em outras partes que não
reproduzimos aqui, e destaca também o socialista romântico o Sr. Jean Reynaud79, mas em
momento algum se dirige a Allan Kardec nem mesmo a seu nome civil.
Esse culto tem reuniões periódicas, iniciadas pela invocação de um santo canonizado.
Depois de constatada, entre os fiéis, a presença de São Luís, rei da França, pedem-lhe
que proíba a entrada dos Espíritos malignos ao templo e lêem a ata da sessão anterior.
Em seguida, a convite do presidente, um médium se aproxima do secretário
encarregado de anotar as perguntas feitas por um dos fiéis e as respostas que serão
ditadas ao médium pelo Espírito invocado. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)
Chesnel deu às reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas uma atenção
pormenorizada, pelo menos aos procedimentos das reuniões lá realizadas, com um nível de
detalhes em seu conteúdo que denota o testemunho de alguém que participou de suas sessões,
com a finalidade de entender os rituais dessa suposta nova religião. A interpretação dos estudos
realizados estabeleceu uma relação entre os procedimentos do Espiritismo com as
características típicas normalmente encontradas em uma religião, como essas eram comumente
entendidas.
A assembléia assiste gravemente, piedosamente, a essa cena de necromancia, por
vezes bastante longa e, quando a ordem do dia se esgota, as pessoas se retiram mais
convencidas do que nunca da veracidade do espiritualismo. [...] Seríamos levados a
crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos fosse muito
hostil à Igreja Católica, que jamais deixou de proibir a prática da necromancia. [...]
Eles fazem justiça ao Evangelho e a seu Autor; confessam que Jesus viveu, agiu, falou
e sofreu como narram os nossos quatro evangelistas. A doutrina evangélica é
verdadeira; mas essa revelação, de que Jesus foi o instrumento, longe de excluir o
progresso, deve ser completada. É o espiritualismo que dará ao Evangelho a sã
interpretação que lhe falta e a complementação que ele espera há dezoito séculos.
(KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196, grifos nossos)
São feitas no artigo diversas referências ao termo necromancia com destaque para:
“Seríamos levados a crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos
fosse muito hostil à Igreja Católica, que jamais deixou de proibir a prática da necromancia”,
79 Ideias a respeito da reencarnação já existiam antes do movimento espírita. Jean Reynaud e Pierre Leroux eram
jovens idealistas chamados de socialistas românticos. Reynaud e Leroux trabalharam juntos para difundir ideias
social-democráticas como um meio de reforma social e política. Com base no pensador católico Pierre-Simon
Ballanche, Reynaud e Leroux argumentaram que a alma evoluiu através de uma série de vidas, seja na Terra ou
em outros planetas. Eles eram membros dos utópicos radicais, os saint-simonians, na década de 1820. Tais ideias
de progresso, preocupações românticas com a morte, novas explorações na literatura "oriental", tudo contribuiu
para as ideias de Reynaud e Leroux.
92
relacionando o Espiritismo à passagem bíblica “Não vos voltareis para os necromantes, nem
para os adivinhos; não os procureis para serdes contaminados por eles.” (Lv 19, 31). Esta
referência é feita, inclusive nos dias de hoje, por grupos de católicos e protestantes quando se
contrapõem a essa doutrina80.
Daí a conseqüência de que o espiritualismo é uma religião, porque nos põe
intimamente em relação com o infinito e absorve, alargando-o, o Cristianismo que, de
todas as formas religiosas, presentes ou passadas, é, como facilmente se confessa, a
mais elevada, a mais pura e a mais perfeita. Mas engrandecer o Cristianismo é tarefa
difícil, que não pode ser realizada sem derrubar as barreiras por detrás das quais ele
se mantém entrincheirado. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira; menos
ardentes ou melhor avisados, os espiritualistas só encontram duas, cuja redução parece
indispensável, a saber: a autoridade da Igreja Católica e o dogma das penas eternas.
(KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)
O Abade reconhece a exaltação feita pelo Espiritismo ao Cristianismo, mas procura
diminuir esse relacionamento, por não acreditar que esse tenha a autoridade suficiente para
fazê-lo entendendo que somente a Igreja Católica poderia assumir tal papel.
Não é necessário remontar a Pitágoras e aos sacerdotes egípcios para descobrirmos as
origens do espiritualismo contemporâneo. Encontrá-las-emos ao manusear as atas do
magnetismo animal.
Desde o século XVIII a necromancia já desempenhava um grande papel nas práticas
do magnetismo e, vários anos antes que se manifestassem os Espíritos batedores na
América, dizia-se que certos magnetizadores franceses obtinham, da boca dos mortos
ou dos demônios, a confirmação das doutrinas condenadas pela Igreja, notadamente a
dos erros de Orígenes, relativos à conversão futura dos anjos maus e dos réprobos.
Igualmente é preciso dizer que o médium espiritualista, no exercício de suas funções,
pouco difere do sujeito nas mãos do magnetizador, e que o círculo abraçado pelas
revelações do primeiro também não ultrapassa aquele que é delimitado pela visão do
segundo. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)
Nesse trecho, são feitos íntimos relacionamentos do Espiritismo com o magnetismo,
ponto de vista esse que não é rechaçado por Kardec, aliás, como apresentamos no capítulo
primeiro, ele endossa tal relacionamento dizendo que são ciências gêmeas (KARDEC, RE:
Jan/1869, p. 28). Aqui Chesnel afirma, por sua vez, que o magnetismo também seria um ato de
necromancia, e vai inclusive tratar do Espiritualismo americano, que será objeto de nossa
análise ainda à frente neste capítulo.
Seja como for, no espetáculo que hoje nos oferecem nada mais há que a evolução do
magnetismo, que se esforça por tornar-se uma religião. [...] Na forma mística que hoje
assume em Paris, ela merece ser estudada, pelo menos como sinal dos tempos em que
vivemos. O espiritualismo já recrutou um certo número de homens, entre os quais
diversos são honrosamente conhecidos no mundo. Esse poder de sedução que ele
exerce, o lento, mas ininterrupto progresso, que lhe é atribuído por testemunhas dignas
de fé, as pretensões que apregoa, os problemas que apresenta, o mal que pode fazer às
almas, eis, sem dúvida, motivos por demais reunidos para atrair a atenção dos
80 Não é difícil encontrar, na internet ou em outras mídias, publicações de grupos católicos e protestantes que,
como o Abade Chesnel, argumentam que o Espiritismo é um ato de necromancia.
93
católicos. Guardemo-nos de atribuir à nova seita mais importância do que realmente
merece. Mas, para evitar o exagero, que tudo amplia, não caiamos também na mania
de negar ou de amesquinhar todas as coisas. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196)
No artigo do Abade, encontramos uma preocupação clara em classificar o Espiritismo
como religião e que esse teria potencial para amealhar adeptos da Igreja Católica, tanto é que,
no final de seu artigo no lugar da palavra religião, usa a palavra seita para tentar diminuí-la e
ainda recomenda que não se deva dar a ela mais importância do que mereça. Além das citações
diretas em que afirma que o Espiritismo é uma religião, as afirmações do Abade tinham a
intenção de trazer um relacionamento com as características definidoras típicas de uma religião,
como tratamos no capítulo anterior, baseado em Benson Saler (2000, p. xiv) que identifica, por
exemplo, a evocação dos espíritos como a evocação de um santo canonizado e entende que a
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas era um templo religioso em que seus associados
seriam fiéis e que Kardec seria seu sacerdote (KARDEC, RE: Jul/1859, p. 289).
Discordando com veemência de tais pontos de vista, na resposta publicada no Jornal
L’Univers do dia 28 de maio de 1859, Kardec fez questão de esclarecer as atividades e objetivos
das reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas com o fito de refutar as afirmações
de Chesnel. A preocupação de Kardec não se concentrou na questão da necromancia como um
ponto dogmático ou com um eventual desencaminhamento de católicos respeitáveis, mas
procurou, sim, rejeitar a posição do Espiritismo da condição de seita ou religião tentando deixar
clara a sua característica científica, secular e não ritualística:
[...] a denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de
nenhuma seita; tão diferente é o seu caráter que seu estatuto proíbe tratar de questões
religiosas; está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, com
efeito, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos que resultam das
relações entre os mundos visível e invisível; tem seu presidente, seu secretário e seu
tesoureiro, como todas as sociedades; não convida o público às suas sessões; ali não
se faz nenhum discurso, nem coisa alguma que tenha o caráter de um culto qualquer.
Conduz os seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiro porque é uma condição
necessária para as observações e, segundo, porque sabe que devem ser respeitados
aqueles que não vivem mais na Terra. Ela os chama em nome de Deus porque crê em
Deus, em sua Onipotência e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão.
Abre as sessões com um apelo geral aos Espíritos bons, uma vez que, sabendo que os
há bons e maus, cuida para que estes últimos não venham se misturar
fraudulentamente nas comunicações que recebe e induzi-la em erro. O que prova isso?
Que não somos ateus; mas de modo algum implica que sejamos partidários de uma
religião. (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206).
Aqui há de se pontuar que ele havia dito que o Espiritismo “não é uma religião
constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos, e que, entre seus adeptos reais,
nenhum tomou o título de sacerdote ou de sumo sacerdote” (KARDEC, OP: Ligeira Resposta
ao Detratores do Espiritismo). Nessas afirmações, Kardec toma como sendo premissa
obrigatória para a definição de um fenômeno social como religião a de apresentar as seguintes
94
características já abordadas no capítulo anterior: 01) A presença de um templo religioso; 02) A
liderança de um Sumo-Sacerdote e seus sacerdotes; 03) A existência de cultos; 04) E, por fim,
a presença de ritos81.
3.2. Auto de fé de Barcelona
Um dos fatos tido como um dos mais famosos na história do Espiritismo e que
demonstra claramente a atenção que a Igreja Católica deu a essa nova religião foi o evento
chamado de Auto de fé de Barcelona. Kardec cita que, a pedido do Sr. Lachâtre82, que a essa
época residia em Barcelona, foi solicitado o envio de certa quantidade de O Livro dos Espíritos,
O Livro dos Médiuns, alguns folhetos sobre o Espiritismo, além de outras obras, que perfizeram
um total de 300 volumes. Essa expedição, segundo o relato, foi feita de acordo com a legislação
da época, cumprindo todos os quesitos de legalidade. Ao chegar a Barcelona, as devidas taxas
legais foram pagas, mas como se tratavam de livros, o bispo daquela cidade tinha poder de
polícia para fiscalização e censura de conteúdos literários, por essa razão, ao verificar o
conteúdo, o sacerdote ordenou que os livros fossem apreendidos e queimados em praça pública
com o poder de sentença, marcando para a data de 9 de outubro de 1861. (KARDEC, OP: Auto
de Fé de Barcelona). A seguir, um trecho da ata de execução extraído do livro Obras Póstumas:
Neste dia, nove de outubro de mil oitocentos e sessenta e um, às dez e meia da manhã,
na esplanada da cidade de Barcelona, onde os criminosos são executados e
condenados à última tortura e por ordem do Bispo desta cidade foram queimados
trezentos volumes e folhetos sobre o Espiritismo, a saber: O Livro dos Espíritos, por
Allan Kardec ... etc.83. (KARDEC, 1912, p. 247, tradução nossa)
Segundo a Revista Espírita de novembro de 1861, Kardec solicitou a reexportação das
obras, e a resposta dada pelo bispo foi a seguinte: “A Igreja católica é universal; e sendo estes
81 Quanto ao termo “rito”, cabe observar que a palavra usada no original em francês é “rite” e não “rituel”
(KARDEC,1912, p. 298) e, portanto, foi traduzida para o português corretamente. Entendemos, porém, que esta
palavra carrega o sentido de ritual como Geertz a define, pois, é apresentada juntamente com “culto” que é
aplicada às religiões, embora as atividades da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seguissem um rito no
sentido de “protocolo de procedimentos” para a realização das suas reuniões, como é claramente demonstrado
nas descrições de Chesnel, quando este descreve inclusive a leitura de ata da sessão anterior. A definição de
ritual por Geertz é a seguinte: “[...] comportamento consagrado – que se origina, de alguma forma, essa convicção
de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. É em alguma espécie
de forma cerimonial – ainda que essa forma nada mais seja que a recitação de um mito, a consulta a um oráculo
ou a decoração de um túmulo.” (GEERTZ, 1978, p. 82). 82 Não encontramos evidências que demonstrem que este Sr. Lachâtre seria o mesmo Maurice Lachâtre que
Biografou Kardec no Nouveau Dicitionnaire Universel, mas há grande probabilidade que seja o mesmo. 83 “ Ce jour, nouf octobre, mil huit cent-soixante-et-un, à dix heures et demie du matin, sur l'esplanade de la ville
de Barcelone, au lieu où sont exécutés les criminels condamnés au dernier supplice, et par ordre de l'Évoque de
cette ville, ont été brûlés trois cents volumes et brochures sur le Spiritisme, savoir : Le Livre des Esprits, par
Allan Kardec... etc ”
95
livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir que venham perverter a moral e a
religião de outros países.” (KARDEC, RE: Nov/1861, p. 466). A repercussão de tal evento foi
marcante para o Espiritismo na Espanha, pois promoveu fortes reações na imprensa espanhola
tanto a favor como contra tal atividade. Esses fatos provocaram uma grande divulgação do
Espiritismo em território espanhol, já que muitos ficaram extremamente curiosos em conhecer
as obras condenadas pelo bispo. No que concerne à nossa pesquisa, as notícias proferidas nos
jornais Las Novedades, um dos maiores de Madrid, Diário de Barcelona, La Coruña, El Diário,
falavam sobre liberdade de culto e/ou liberdade religiosa, marcando claramente o entendimento
de que o Espiritismo foi tratado também na Espanha como uma religião. O jornal Francês El
Ciècle, emitiu nota em 14 de outubro de 1861 a respeito do evento em Barcelona e fez
comentários jocosos a respeito do fato, “Em todo o caso, não seríamos nós que nos
divertiríamos neste momento em fazer girar as mesas na Espanha.” (KARDEC, RE: Dez/1861,
p. 550-554).
3.3. Outros eventos com a Igreja Católica
As questões de Kardec com a Igreja Católica não se restringiram aos artigos do Abade
de Chesnel ou ao Auto de fé de Barcelona, outros eventos foram registrados84 de duas formas,
às vezes diretamente, quando Kardec cita o autor desta ou daquela publicação ou discurso
contra o Espiritismo e a comenta, outras vezes aborda de forma indireta, quando comenta a
presença dessa ou daquela comunicação sem citar o seu conteúdo por julgá-las de pouca
qualidade. Esse tipo de citação indireta aconteceu, por exemplo, na resposta que foi feita ao
Abade de Poussin, que publicou um livro intitulado O Espiritismo Diante da História e da
Igreja - sua origem, sua natureza, sua certeza, seus perigos. Na introdução aos comentários
sobre esta obra, Kardec elogia a qualidade do trabalho de Poussin e diz que seu conteúdo deve
ser comentado em detrimento de outras publicações de baixa qualidade que ele tem observado.
Abade de Poussin procura fazer em seu livro uma refutação do Espiritismo que, segundo Kardec
é, sem contradita, uma das mais completas e mais bem-feitas, e que, de seu ponto de vista, ao
84 Segue uma amostra das respostas dadas por Kardec na Revista Espírita: “Resposta do Sr. Allan Kardec à Gazette
de Lyon” (KARDEC, RE: Out/1860, p. 427); “A Bibliografia Católica contra o Espiritismo” (KARDEC, RE:
Jan/1861, p. 24); “Resposta de uma senhora a um eclesiástico sobre o Espiritismo” (KARDEC, RE: Mai/1862,
p. 209); “Suicídio falsamente atribuído ao Espiritismo” (KARDEC, RE: Abr/1863, p. 172); “Primeira carta ao
padre Marouzeau” (KARDEC, RE: Jul/1863, p. 297); “Pastoral do bispo de Argel contra o Espiritismo”
(KARDEC, RE: Nov/1863, p. 453); “Reclamação do abade Barricand” (KARDEC, RE: Nov/1864, p. 263);
“Nova tática dos adversários do Espiritismo” (KARDEC, RE: Jun/1865, p. 254); “O Espiritismo só pede para
ser conhecido” (KARDEC, RE: Set/1866, p. 358).
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tentar combater as premissas espíritas, confirmou, a partir de suas observações, a existência dos
seus fenômenos, cometendo equívocos somente em suas conclusões. (KARDEC, RE: Jan/1868,
p. 21).
Outro registro que demonstra o interesse da Igreja Católica pela compreensão do que
era o Espiritismo é citado no livro Obras Póstumas, no qual há uma pergunta feita por Kardec
aos espíritos em 10 de junho de 1860 sobre uma carta que ele mesmo havia recebido de
Marselha. Nessa carta haveriam informações acerca de que, em um seminário desta cidade, o
Clero estava estudando com seriedade O Livro dos Espíritos. O objetivo da pergunta era tentar
entender o porquê destes estudos (KARDEC, OP: Minha Volta). Independente da resposta85
dada pelos espíritos, este registro demonstra mais uma evidência do interesse que essa doutrina
despertou na Igreja.
3.4. A ideia de uma reforma religiosa
Outra questão que julgamos importante acerca do posicionamento de Kardec em relação
às religiões é que ele já havia demonstrado no passado a sua intenção de trazer esclarecimentos
que pudessem acabar com as disputas religiosas e suas dissenções. Como demonstra a citação
de um de seus biógrafos:
Nascido na religião católica, mas estudando em um país protestante, os atos de
intolerância a que foi submetido por este motivo lhe fizeram conceber desde a idade
de 15 anos, a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante
longos anos, com a intenção de chegar à unificação das crenças. Contudo, faltava-lhe
o elemento indispensável para a solução deste grande problema. O espiritismo, mais
tarde, veio fornecer-lhe e imprimir uma direção especial a seus trabalhos.
(LACHÂTRE, 1867, p.199).
Entendemos que os atos de intolerância a que Lachâtre se refere são particularmente os
que Kardec presenciou no instituto de Pestalozzi, em Yverdon, durante sua formação
acadêmica, como citamos no primeiro capítulo. Acreditamos que a relativa importância dada à
religião por Pestalozzi fez com que ele próprio entendesse que os aspectos morais da religião
fossem mais importantes do que a própria religião em si. É válido relembrar que, no instituto
85 A resposta dada pelos Espíritos é a que citaremos em seguida, mas não é objetivo deste trabalho dar crédito ou
não às mensagens dos espíritos. Trazemos a pergunta e a resposta tão somente para que não fique incompleta a
informação: Pergunta (à Verdade) — “Acabo de receber de Marselha uma carta em que se me diz que, no
seminário dessa cidade, estão estudando seriamente o Espiritismo e O Livro dos Espíritos. Que se deve augurar
desse fato? Será que o clero toma a coisa a peito? Resposta — Não podes duvidar disso. Ele a toma muito a
peito, porque lhe prevê as conseqüências e grandes são as suas apreensões. Principalmente a parte esclarecida
do clero estuda o Espiritismo mais do que o supões; não creias, porém, que seja por simpatia; ao contrário, é à
procura de meios para combatê-lo e eu te asseguro que rude será a guerra que lhe fará.” (KARDEC, OP: Minha
Volta).
97
de Pestalozzi, apesar da presença de professores católicos, luteranos e calvinistas, o seu
fundador procurava manter-se distante das querelas e paixões religiosas. Dava à Bíblia valor
relativo e não demonstrava fervor às lições de catecismo (WANTUIL, 1984, p. 69). Aliás como
dissemos no primeiro capítulo, enquanto discípulo de Jean Jacques Rousseau, acreditava em,
[...] uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios
universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da
alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome,
individual, e muito mais orientada para a ética do que para o culto. (INCONTRI, 2001,
p. 71).
O desejo de promover uma reforma religiosa que promovesse a unificação das crenças,
também foi registrada em sua biografia feita por Anna Blackwell na introdução da versão
traduzida para o inglês de O Livro dos Espíritos com o nome The Spirits’ Book nos seguintes
termos:
Nascido em um país Católico, mas educado em um pais Protestante, ele começou,
enquanto ainda era apenas um menino, a meditar sobre os meios de produzir uma
unidade de crença entre as várias seitas Cristãs - um projeto de reforma religiosa em
que trabalhou em silêncio por muitos anos, mas necessariamente sem sucesso, já que
os elementos da solução desejada não estavam naquele momento em sua posse.
(KARDEC, 1996, p. 9, tradução nossa86).
O relato de Anna Blackwell a esse respeito é particularmente relevante porque confirma
a afirmação de Lachâtre, já que ela mesma teve a oportunidade de conviver com Kardec em sua
intimidade familiar, bem como participou de reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas e foi a primeira a traduzir O Livro dos Espíritos para o inglês (FERNANDES, 2008,
p. 25). Mas seus relatos quanto à intolerância não se restringem a esse, pois informa que, quando
Kardec terminou seus estudos em Yverdon, tinha a intenção de ir para Lyon para se dedicar ao
Direito, mas que desistiu por causa do que ela descreveu por “vários atos de intolerância
religiosa” (KARDEC, 1996, p. 10), embora não os tenha explicado de forma pormenorizada.
Como já introduzido no capítulo dois deste trabalho, Kardec tinha um conceito próprio
de revelação. Havia para ele, uma certa rejeição da ideia de religião como um princípio
revelador que fosse arrastar multidões como uma revelação espetacular, sem o auxílio da razão.
Ele entendia o conceito de revelação como algo que não estava reservado somente às religiões,
para ele “de certo ponto de vista, que nos deram a conhecer os mistérios da natureza são
revelações, e pode-se dizer que existe para nós uma revelação incessante; a astronomia nos
revela o mundo astral, que não conhecíamos, a geologia, a formação da terra” (KARDEC,
86 Born in a Catholic country, but educated in a Protestant one, he began, while yet a mere boy, to meditate on the
means of bringing about a unity of belief among the various Christian sects-a project of religious reform at which
lie laboured in silence for many years, but necessarily without success, the elements of the desired solution not
being at that time in his possession.
98
1868b, p. 1, tradução nossa87). Para Kardec, Nicolau Copérnico, Isaac Newton, Laplace,
Lavoisier foram pessoas que trouxeram revelações para a humanindade. Para ele, o Espiritsmo
também seria a revelação de fatos reais que estavam incobertos enquanto ciência e não como
religião. As religiões, de seu ponto de vista, foram reveladas, mas de forma parcial, e foi a sanha
de alguns homens que as fizeram objeto de dominação, estando aí talvez a sua ideia de não
tornar o Espiritismo uma religião, para que isso não viesse a acontecer:
Todas as religiões tiveram os seus reveladores, e embora todos estivessem longe de
ter conhecido toda a verdade, eles tinham uma razão de ser providencial, pois estavam
apropriados ao tempo e ao meio onde viviam, ao gênio particular dos povos para os
quais falaram e para aos quais seriam relativamente superiores. Apesar das
interpretações de suas doutrinas, eles não incitaram menos os espíritos e, ao mesmo
tempo, lançaram sementes de progresso que, mais tarde, floresceriam ou floresceriam
um dia ao sol do cristianismo. É, portanto, errado que eles sejam anatematizados em
nome da ortodoxia, pois um dia virá em que todas essas crenças, tão diversas na forma,
mas que de fato assentam no mesmo princípio fundamental: Deus e a imortalidade da
alma, essas fundir-se-ão numa grande e vasta unidade, quando a razão triunfar sobre
os preconceitos. Infelizmente, as religiões sempre foram instrumentos de dominação
- o papel dos profetas tem tentado alcançar ambições secundárias, e tem-se visto surgir
uma multidão de pretendentes reveladores ou messias que, graças ao prestígio do
nome, a credulidade explorada em benefício de seu orgulho, sua ganância ou sua
ociosidade, achando mais conveniente viver à custa dos que se deixam enganar. A
religião cristã não foi imune a esses parasitas. (KARDEC, 1868b, p. 4, tradução
nossa88)
Em toda a sua obra, Kardec se preocupa com a questão das descobertas de novos
conceitos e novas ideias, ele acredita que a verdade não pode ser revelada por um único
indivíduo, pois entende que não se pode garantir que um único homem possa ser portador de
todo o conhecimento. Ele estabeleceu um conceito que chamou de Controle universal do ensino
dos Espíritos, no qual ele afirma que uma revelação não poderá sê-la se não se manifestar por
diversos meios e em diversas partes e que a religião pode ser um desses meios, mas que podem
e devem existir outros meios, inclusive os científicos (KARDEC, ESE: Introdução: II).
Portanto, ele não se arvora em ser o detentor da verdade e demonstra que o que foi trazido pelo
87 A ce point do vue, tout eles sciences qui nous font connaître les mystères de la nature sont des révélations, et
l'on peut dire qu'il y a pour nous une révélation incessante; l'astronomie nous révélé le monde astral, que nous
ne connaissions pas 88 Toutes les religions ont eu leurs révélateurs, et quoique tous soient loin d'avoir connu toute la vérite, ils avaient
leur raison d'étre providentielle, car ils étaient appropriés au temps et au milieu où ils vivaient, au génie
particulier des peuples auxquels ils parlaient, et auxquels ils étaient relativement supérieurs. Malgré les lereurs
de leurs doctrines, ils n'en ont pas moins remué les esprits, et par pela méme semé des germes de Progrès qui,
plus tard, devaient s'épanouir, ou s'épanouiront', un jour au soleil du Christianisme. C'est donc à tort qu’on leur
jette l'anathème au nom de l'orthodoxie, car un jour viendra où toutes ces croyances , si diverses pour la forme,
mais qui reposent en réalité sur un mème principe fondamental : Dieu et l'immortalité de l'âme, se fondront dans
une grande et vaste unité, lorsque la raison aura triomphé des préjugés.Malheureusement, les religions ont de
tous temps éte des instruments de domination - le rôle de prophète a tenté les ambitions secondaires' et l'on a vu
surgit une multitude de prétendus révélateurs ou messies qui, à la faveur du prestige de ce nom, ont exploité la
crédulité au profit de leur orgueil , de leur cupidité ou de leur paresse , trouvant plus commode de vivre aux
dépens de leurs dupes. La religion chrétienne n'a pas été à l'abri de ces parasites.
99
Espiritismo pode ser derrogado pela ciência.
A sua preocupação com a questão de personalidades que se digam portadoras de
revelações maravilhosas, inclusive, refletem no que ele apontou como sendo a melhor forma de
sucedê-lo na condução do Espiritismo, para que esse não fosse refém de nenhuma autoridade.
Para tanto, ele prevê a criação de um Comissão Central que garantiria o desenvolvimento do
Espiritismo, composta por uma comissão permanente que tomaria as decisões de forma
democrática, não admitindo portanto a presença de um líder que fosse tido na condição de
sacerdote infalível (KARDEC, OP: Projeto 1868 – Comissão Central). Esse pensamento,
inclusive, está muito bem alinhado com o pensamento iluminista.
Havia, portanto, em Kardec, o anseio de encontrar um modo ou um modelo que pudesse
harmonizar todas as religiões ao redor de um princípio único e universal, o que nos permite
reconher a sua motivação de não criar mais uma religião e, sim, identificar um meio de trazê-
las para um único lugar, para que se pudesse convergir o entendimento de todos para um único
ponto.
Vamos identificar também, nas correntes de Ocultismo do final do século XIX, o desejo
de encontrar uma forma de unificação das crenças em torno de um princípio único e universal,
e Lynn Sharp sugere que esse movimento nasceu no Espiritsmo: “A Revista Espírita nos anos
de 1880 a 1890 ampliou a ideia de Espiritismo de Kardec, unificando todas as religiões para
incluir um interesse mais oculto, menos cristão, nos planos astrais e no misticismo oriental.89”
(SHARP, 2006, p. 175, tradução nossa). A essa época, a Revista Espírita já não era mais dirigida
por Kardec e sim por Pierre-Gaëtan Leymarie, que se posicionou de forma a estabelecer um
contato do Espiritismo com o Ocultismo, particularmente através de sua amizade com Madame
Blavatsky, e viria, em 1879, a fundar a Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses.
3.5. Outras correntes de Pensamento Espiritualistas
O fenômeno das mesas girantes não foi o único na ordem dos fenômenos metafísicos,
além dos franceses, os americanos, ingleses, alemães e italianos também registraram o desejo
dos espíritos de se manifestar ao mundo dos vivos. Convencionou-se o dia 31 de março de 1848,
em Hydesville, nos Estados Unidos, como sendo o marco do processo de comunicação dos
espíritos com os homens através de um processo inteligente (DOYLE, 2013, p. 15). Nesse
episódio, a menina Kate Fox de 11 anos desafiou um espírito em sua casa que reproduzia batidas
89 The Revue Spirite in the 1880s and 1890s broadened Kardec's idea of spiritism unifying all religions to include
a more occult, less Christian interest in astral planes and Eastern mysticism.
100
e diversos ruídos nas paredes90 a fazê-los de acordo com o estalar de seus dedos. O espírito
seguiu a menina nesse processo e assim estabeleceu-se entre eles um código de comunicação
(DOYLE, 2013, p. 57). Os ruídos insólitos como os que aconteceram naquele lar, de acordo
Arthur Conan Doyle em sua obra A História do Espiritualismo – De Swedenborg ao início do
século XX, não eram novidade. Embora, segundo Conan Doyle, aquela família simples nunca
tivesse tido acesso a essas notícias, batidas desse gênero já haviam sido registradas em
Oppenheim na Alemanha em 1520, relatadas por Melanchthon; na Inglaterra em 1661, na
residência do Sr. Mompesson, em Tedworth; e também em 1716 no vicariato de Epworth. A
diferença no caso das Irmãs Fox é que as manifestações obedeciam a um estímulo inteligente,
criando um processo de comunicação (DOYLE, 2013, p. 56). Isso mais tarde foi definido por
Kardec como um efeito inteligente respondendo a uma causa inteligente. (KARDEC, LE:
Conclusão: IX).
Esse relato completo é tratado por Conan Doyle em sua obra que é considerada a mais
completa resenha de fatos psíquicos da literatura mundial91 em se considerando o período por
ela tratada, que vai de abril de 1744 com os fenômenos de Swedenborg92 a 1926, quando é
editada a sua primeira edição na língua inglesa (DOYLE, 2013, p. 9 e 19). Nessa obra, além de
Swedenborg, são tratados diversos fenômenos espiritualistas, entre eles: 1) Edward Irving; os
shakers; 2) As irmãs Fox de Hydesville; 3) outros fenômenos que vieram depois das irmãs Fox
na América; 4) Daniel Dunglas Home; 5) Os irmãos Davenport; 6) As pesquisas de Sir Willian
Crookes; 7) Os irmãos Eddy e o casal Homes; 8) Henry Slade e o Dr. Monck; 8) Eusápia
Palladino; 9) O Espiritualismo, francês, alemão e o italiano.
Quando Doyle aborda em seu livro o Espiritualismo francês, ele se refere ao trabalho de
pesquisa do Espiritismo de Allan Kardec. Nessa obra ficam claros os diversos fenômenos que
foram classificados como espíritas por Kardec e que como já dissemos, estiveram longe de ser
exclusivos da França e, na verdade, explicam inclusive de onde surgem os diversos
correspondentes que Kardec teve em diversos lugares do mundo. (KARDEC, RE: Jun/1862, p.
232). O livro de Conan Doyle tem por título, como dissemos, A História do Espiritualismo e
não a história do Espiritismo e seu autor fala do espiritualismo francês e não de Espiritismo.
90 Essas batidas no Espiritualismo Americano foram chamadas de rapping sounds. Kardec chamou esse fenômeno
de tiptologia. 91 Essa afirmação que posiciona a obra de Conan Doyle como sendo a mais completa da literatura mundial é feita
na apresentação da obra feita pelo tradutor o Sr. José Carlos da Silva Silveira. 92 Emanuel Swedenborg nasceu em Estocolmo, em 29 de janeiro de 1688 e morreu em Londres 2 de março de
1772, era médium clarividente, um grande engenheiro de minas; autoridade em metalurgia; engenheiro militar;
autoridade em astronomia e física; autor de eruditos trabalhos sobre as marés e a determinação das latitudes;
zoologista e anatomista; financista economista político, que antecipou as conclusões de Adam Smith. (DOYLE,
2013, p. 16)
101
Isso é relevante, porque na Revista Espírita, por sua vez, quando Kardec aborda o
Espiritualismo Americano, ele fala de Espiritismo americano (KARDEC, RE: Abr/1869, p.
152), o que revela diferenças no modo de pensar entre Kardec e os espiritualistas. Dessa forma,
vamos ver que existiram no século XIX duas vertentes de espíritas (ou espiritualistas) uma
centrada no Espiritismo Francês e outra no Espiritualismo Americano. Apesar do pensamento
das duas correntes de maneira geral se alinharem em muitos dos seus conceitos, nem todos
adotaram os pensamentos de Kardec, apesar dos diversos fenômenos similares.
No artigo do Abade François Chesnel, abordado no início desse capítulo, ele fala do
espiritualismo do Sr. Cousin e cita o Sr. Jean Reynaud, socialista romântico que defendia outras
correntes do espiritualismo ligadas a movimentos sociais, anteriores a Kardec, mas existia
também uma forte corrente espiritualista, essa inclusive bem organizada nos Estados Unidos.
Havia uma divergência de pensamentos entre o Espiritismo francês e o Espiritualismo
americano e Kardec a reconhecia, pois, na Revista Espírita de abril de 186993 Kardec fala sobre
o Espiritismo Europeu e o Espiritismo Americano:
Em que, então, o Espiritismo americano difere do Espiritismo europeu? Seria porque
um se chama Espiritualismo e o outro Espiritismo? Questão pueril de palavras, sobre
a qual seria supérfluo insistir. Dos dois lados a coisa é vista de um ponto de vista
muito elevado para se prender a semelhante futilidade. Talvez ainda difiram em alguns
pontos de forma e de detalhes, muito insignificantes, e que se devem mais aos meios
e aos costumes de cada país, do que ao fundo da Doutrina. O essencial é que haja
concordância sobre os pontos fundamentais. (KARDEC, RE: Abr/1869, p. 152)
Este comentário retirado da Revista Espírita vem na sequência da transcrição da
declaração de princípios feita pela Quinta Convenção Nacional dos Espiritualistas Americanos,
assembleia na qual compareceram os delegados das diversas partes do país (KARDEC, RE:
Abr/1869, p. 143). Kardec fez essa transcrição com a finalidade de efetuar uma comparação
entre os princípios do que ele chamava de escola espírita europeia e a americana. Uma das
primeiras comparações que podemos identificar é que a escola americana não adotava o nome
Espiritismo e sim Espiritualismo, sendo que Kardec, logo no primeiro parágrafo de O Livro dos
Espíritos, registra essa diferença:
Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza
da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas
palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem
definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos, fora multiplicar as
causas já numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritismo é o oposto do
materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria,
é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em
93 Allan Kardec morreu em 31 de março de 1869, além dos fascículos publicados, referentes aos meses de janeiro
a março, já estava no prelo o número de abril do mesmo ano, ao qual ele mesmo redigiu integralmente, passando
os demais, a partir de maio, à responsabilidade direta de seus continuadores, tendo à frente, pelo Comitê de
Redação, o Sr. Armand Théodore Desliens, na qualidade de Secretário-gerente da Revista Espírita.
102
suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritual,
espiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os
termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que,
por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando
ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina
espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os
Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas,
ou, se quiserem, os espiritistas. (KARDEC, LE: Introdução: I)
Um dos principais pontos de divergência entre essas doutrinas era a questão da
reencarnação ou a pluralidade das existências, que, segundo Kardec, teve dificuldades de ser
abraçada pelo Espiritualismo Americano, pois o pensamento deles estava fundado na cultura
escravagista norte-americana, que não aceitaria a possibilidade da reencarnação na forma que
era apresentada no Espiritismo francês. Kardec afirma que a “idéia (sic) de que um negro
pudesse tornar-se um branco; de que um branco poderia ter sido um negro; de que um senhor
tivesse sido um escravo poderia parecer de tal forma monstruosa que seria suficiente para que
o resto fosse rejeitado.” (KARDEC, RE: Abr/1862, p. 152). Há, por outro lado, também, a
concordância com alguns pontos importantes no que tange ao nosso trabalho, que é a
concordância com a existência do divino, com a importância da transformação moral do homem
e de que os milagres e curas são atribuídos a divindades por falta de entendimento da ciência
(KARDEC, RE: Abr/1869, p. 145 a 146).
No final do século XIX, a partir de 1880, surgem também além dos já existentes espíritas
e espiritualistas um movimento que se autodenominava de Ocultismo, cujos seguidores
alegavam ser “os novos árbitros do invisível”, como trataremos à frente (SHARP, 2006, p. 164).
O Ocultismo foi o mais importante entre muitos movimentos espiritualistas que seguiram
depois do que foi chamado de espiritismo clássico. Ele se baseava nas tradições da alquimia e
do hermetismo renascentista, adaptados e desenvolvidos por grupos de pensadores da França
dos séculos XVIII e XIX. Os ocultistas fundaram várias organizações, escreveram
prolificamente e se promoviam à condição de magos. A filosofia desse movimento por ironia
foi consequência do prestígio intelectual da psicologia científica que parecia dever mais ao alto
escolasticismo que ao pensamento moderno. Muitos pensadores do século XIX se afastaram do
estudo da metafísica, mas as pessoas comuns continuavam atentas aos eventuais mistérios da
providência e do futuro, o que fomentava a manutenção de livros e periódicos com conteúdos
“longos, obscuros e confusos, cheios de personificações e metáforas.” (MONROE, 2008, p.
233).
Na obra de John Warne Monroe Laboratories of Faith - Mesmerism, Spiritism, and
Occultism in Modern France, ele descreve e reforça a existência de uma série de movimentos
espiritualistas, inclusive o Mesmerismo que surgiu antes mesmo do fenômeno das mesas
103
girantes, e cita mais alguns importantes movimentos, que são conhecidos até os dias de hoje e
que se relacionam com a manifestações metafísicas no século XIX:
O engajamento entusiasmado com as preocupações intelectuais do momento, de fato,
contribuiu fortemente para o apelo do Ocultismo durante o fim do século. A partir de
meados de 1880, obras de escritores como Joséphin Péladan transformaram a magia
e o esoterismo em elementos-chave [...]e, em 1892, o ocultismo havia se tornado uma
presença notável na cena cultural francesa. Naquele ano, Encausse94 editou uma
edição especial de uma importante revista literária simbolista, La Plume, enquanto
Péladan - que diferia em pontos-chave de doutrina, mas compartilhava uma atitude
semelhante - organizou o primeiro Salon de la Rose-Croix, apresentando obras de
artistas que usaram imagens tiradas de tradições esotéricas “para arruinar o realismo,
reformar o gosto latino e criar uma escola de arte idealista”. Essa crescente marca
cultural levou à expansão constante das várias organizações que Encausse e seus
colegas ocultistas coordenaram, que incluíam três grandes as sociedades, a Ordre
Martiniste, a Ordre Kabbalistique de la Rose-Croix, e o Groupe indépendant d’études
ésotériques. Os adeptos desses grupos e outros como eles receberam uma atenção
desproporcional de jornalistas em busca de temas fascinantes e novos. (MONROE,
2008, p. 234, tradução nossa95)
3.6. Espíritas, Espiritualistas e Ocultistas e a questão das religiões
Na introdução de nosso trabalho, fizemos referência às dificuldades que o movimento
espírita brasileiro enfrentava no plano ideológico com a tendência de cisão entre os chamados
laicos ou científicos, liderados pelo professor Afonso Angeli Torteroli de um lado e os
religiosos ou místicos, liderados pelo Dr. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti do outro.
(QUINTELA, 1973). Essa tendência de cisão não se deu por acaso, pois as mesmas discussões
estavam acontecendo no Espiritismo Europeu96. Nessa época também crescia o movimento
liderado pelos ocultistas que, “[...] como a ciência, ofereciam explicações alternativas para os
fenômenos espíritas. Os ocultistas, como os psicólogos, afirmavam ser os novos árbitros do
invisível, que eles insistiam não ser necessariamente tão sobrenatural quanto os espíritos
alegavam.” (SHARP, 2006, p. 164, tradução nossa)97. Esse movimento acabou por colocar lado
94 Gérard Encausse proeminente líder ocultista que adotava o pseudônimo “Papus”. 95 Enthusiastic engagement with the intellectual concerns of the moment, in fact, contributed strongly to
Occultism’s appeal during the fin de siècle. Beginning in the mid-1880s, works by writers such as Joséphin
Péladan transformed magic and esotericism into key elements […], and by 1892, Occultism had become a
notable presence on the French cultural scene. That year, Encausse edited a special issue of a leading Symbolist
literary magazine, La Plume, while Péladan—who differed on key points of doctrine but shared a similar
attitude—organized the first Salon de la Rose-Croix, featuring works by artists who used images drawn from
esoteric traditions “to ruin realism, reform Latin taste, and create a school of idealist art.”80 This ever-increasing
cultural cachet led to the steady expansion of the various organizations Encausse and his fellow Occultists
coordinated, which included three major societies, the Ordre Martiniste, the Ordre Kabbalistique de la Rose-
Croix, and the Groupe indépendant d’études ésotériques. Adherents of these groups and others like them
received a disproportionate amount of attention from journalists in search of glamorous and novel subject matter. 96 Nesse ponto falamos Europeu e não francófono, pois nos referimos também ao Espiritualismo. 97 […] like science, offered alternative explanations for spiritist phenomena. Occultists, like psychologists, claimed
104
a lado os espíritas e os espiritualistas apesar de suas divergências, pois chegou a ameaçar a
continuidade do Espiritismo/Espiritualismo. No Congres de Psychologie no ano de 1900,
Gabriel Delanne e León Denis ambos defensores do Espiritismo e, de certa forma, herdeiros da
liderança de Kardec98, se pronunciaram na condição de principais líderes do Espiritismo
Francês (apesar de suas divergências com relação ao aspecto religioso do Espiritismo), contra
as colocações depreciativas que vinham sendo feitas a respeito da intervenção dos espíritos no
mundo corporal. Mais à frente, nesse mesmo ano, no Congres spirite et spiritualiste
international, o ocultista Gérard Encausse Papus proferiu discurso, elogiando a defesa notável
que foi feita por Delanne e Léon Denis a respeito do Espiritualismo. No livro Secular
Spirituality. Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-Century France, Lynn L. Sharp
descreve tais eventos da seguinte forma:
Em 1900, a comunidade científica em geral havia rejeitado as explicações dos
espíritas sobre os fenômenos mediúnicos. No quarto Congres de Psychologie, em
Paris, em 1900, espíritas e ocultistas tiveram sua última chance de participar do
diálogo público com os cientistas que começaram a estudar os mesmos fenômenos.
Em uma seção intitulada "Psicologia e Hipnotismo", os espíritas foram "autorizados"
a apresentar sua opinião. Os líderes das ciências heterodoxas se apresentaram em peso.
Gabriel Delanne falou sobre a clarividência e a telepatia; e seu colega e líder espírita
Léon Denis falou da captura por foto ou outros aparelhos de "radiações" humanas.
Isso provou a manifestação dos espíritos. Uma figura ocultista líder, Dr. Encausse
(Papus), apresentou medições elétricas de médiuns para provar que eles adquiriram
mais energia (implícita ser extra-humana) quando funcionavam como médiuns. M.
Dariex, editor do Annales des sciences psychiques, apresentou evidências sobre
telecinese e Paul Gibier sobre as materializações dos fantasmas. O Dr. Grasset, ao
descrever a conferência, gabou-se do caráter de mente aberta dos cientistas, mesmo
diante de evidências tão pouco convincentes. (SHARP, 2006, p. 135, tradução nossa)99
Havia nessa época uma tentativa de desmerecer os fenômenos espíritas, tentando
atribuí-los à histeria e ao transe hipnótico com mensagens que eram trazidas do subconsciente
dos médiuns. (SHARP, 2006, p. 136).
A tentativa de desacreditar os eventos metafísicos produzidos nos fenômenos espíritas
to be the new arbiters of the invisible, which they insisted was not necessarily as supernatural as the spirits had
claimed. 98 Dizemos aqui de certa forma porque não era desejo de Kardec deixar uma liderança individual e sim uma
comissão central como foi tratado no item 3.4. (KARDEC, OP: Projeto 1868 – Comissão Central). 99 By 1900, the scientific conununity in general had rejected spiritists' explanations of mediumistic phenomena.
At the fourth Congres de Psychologie in Paris in 1900, spiritists and occultists had their last chance to participate
in public dialogue with the scientists who had begun to study the same phenomena. In a section titled
"Psychology and Hypnotism," the spiritists were "allowed" to present their view. The leaders of the heterodox
sciences turned out in force. Gabriel Delanne spoke on clairvoyance and telepathy; fellow spiritist leader Leon
Denis on the capture by photo or other apparatus of human "radiations" that proved the workings of the spirits.
A leading occult figure, Dr. Encausse (Papus), presented electric measurements of mediums to prove that they
acquired more energy (implied to be extra-human) when they functioned as mediums. M. Dariex, editor of the
Annales des sciences psychiques, presented evidence on telekinesis, and Paul Gibier on the materializations of
phantoms. Dr. Grasset, in describing the conference, boasted of the open-minded character of the scientists, even
in the face of such unconvincing evidence.
105
não era novidade, pois desde a época das mesas girantes e de sons de pancadas nas paredes
(rappings sounds) atribuídas aos espíritos, tais fenômenos eram, para alguns cientistas, nada
mais que fraudes, atitudes de autoilusão. Eles defendiam que os movimentos das mesas girantes
se tratavam de movimentos involuntários causados pelos participantes de forma inconsciente.
Em 1853 William Faraday publicou o relato de uma sessão na qual ele observou que os
participantes moviam a mesa com as mãos, embora não tivessem consciência disso. Em 1853,
o Journal des debats republicou um artigo de 1834 da Revue des deux mondes detalhando
estudos de Leon Chevreul, o qual provou que indivíduos poderiam causar os movimentos
apenas com seu pensamento sem, contudo, terem intenção ou consciência de fazê-lo. Em 1854,
o respeitado cientista Jacques Babinet também argumentou, na Revue des deux mondes, que o
movimento involuntário era a causa do fenômeno das mesas girantes. Mesmo com a alegação
dos espíritas de que as mesas se moviam sem serem tocadas, os cientistas argumentaram que
isso era simplesmente autoilusão por parte de praticantes ávidos. A comunidade científica
estava de acordo e o assunto parecia fechado. (SHARP, 2006, p. 131).
No período compreendido entre 1860 a 1870, o interesse pelos fatos espíritas por parte
da comunidade científica foi muito pequeno, mas os fenômenos mediúnicos cresceram e não
mais se limitavam a mesas ou objetos que se movimentavam. Começaram a surgir fenômenos
muito mais complexos, como a materialização de flores, doces e até espíritos inteiros com a
manipulação de ectoplasma100. Os fenômenos se multiplicaram e muitos eram apresentados
como verdadeiros shows enquanto outros eram objeto de estudos científicos sérios. Entre eles
Daniel Dunglas Home, viajou pela Europa fazendo apresentações públicas, incluindo uma para
Napoleão III, os irmãos Davenport trouxeram grandes audiências para salas em Paris e Londres.
Os mesmos fenômenos foram relatados por sociedades espíritas e pesquisas científicas de
observadores respeitados, como o físico William Crookes, na Inglaterra. Esses fenômenos
despertaram na década de 1870 um crescente interesse dos cientistas na Inglaterra; a década de
1880 viu aumentar a participação em grupos espíritas na França, junto com um aumento no
número de periódicos, o que tornou o movimento mais visível. (SHARP, 2006, p. 132).
Os espíritas se afastaram do meio científico tradicional e passaram a se autoentitular
cientistas, atuando em diversas frentes invandindo o território de diversas ciências:
Astrônomos encontraram espíritas ocupados descrevendo os mundos plurais do
cosmos. Curadores espíritas, fazendo curas nas pessoas através do conselho de
espíritos, ameaçavam a autonomia profissionalizante dos médicos alopatas101. Os
100 Segundo o Espiritismo, o ectoplasma é uma substância viscosa, branca ou clara que sairia das bocas e narizes
de pessoas e seria manipulada pelos espíritos no processo de materialização de si mesmos. 101 Essa prática no Brasil inclusive determinou a criação do artigo 157 do Código Penal de 1890, que dizia que era
106
espíritas também afirmaram que o mundo espiritual era a fonte dos fenômenos que os
psiquiatras argumentavam que vinham do subconsciente. Tanto em Paris como em
Marselha, leigos com inclinação para a ciência criaram sociedades para estudar
fenômenos mediúnicos. Em 1878 P.-G. Leymarie e Gabriel Delanne fundaram a
Sociedade Científica de Estudos Psíquicos (Société scientifique des etudes
psychologiques) para atuar em conjunto com a Sociedade de Estudos Espíritas
(Societe des etudes spirites), mais moralmente inclinada. Este grupo envolveu os
espíritas mais elitistas de Paris. Delanne convidou cientistas da Inglaterra e da França
para participar de sessões e para testemunhar por si mesmos as habilidades
sobrenaturais dos melhores médiuns; alguns de seus convites foram respondidos. (SHARP, 2006, p. 132, tradução nossa102)
O afastamento que se deu entre os espíritas e os cientistas tradicionais de sua época fez
com que os próprios espíritas fizessem ciência à sua maneira. Isso aconteceu exatamente no
período que vai de 1860 a 1870, que, não por coincidência, esteve sob a batuta de Kardec, no
auge de sua produção. Entendemos que isso se deu pelo fato dele ter dado uma abordagem
científica para o Espiritismo particularmente pela influência positivista em suas análises dos
fenômenos espíritas. Apesar disso, a própria mentalidade positivista, recurso amplamente
utilizado pelos cientistas de seu tempo, foi usada para “combater as concepções idealistas e
espiritualistas da realidade, concepções que os positivistas rotulavam como metafísicas”
(REALE; ANTISERI, 2005, p. 298). Mas isso não afetou Kardec, pois ele afirmou que o
Espiritismo “amplia, [...] o domínio da Ciência, e é nisto que ele próprio se torna uma ciência;
como, porém, a descoberta dessa nova lei traz consequências morais, o código das
consequências faz dele, ao mesmo tempo, uma doutrina filosófica.” (KARDEC, OE: Cap I:
Segundo Diálogo). Ao ampliar o conceito de ciência, Kardec passa a analisar o fenômeno
metafísico de forma positiva, já que, como demonstramos anteriormente na discussão das
hierofanias e do sagrado, o sobrenatural não existiria. Isso reforça a ideia de que Kardec não
era positivista como afirma Dora Incontri (INCONTRI, 2001, p. 67-71), uma vez que, para o
positivismo, a priori, o sobrenatural não existe, estando assim em contradição com o próprio
positivismo, o que para Araujo ficaria caracterizada uma espécie de positivismo espiritualista
para ser aplicado ao metafisico. (ARAUJO, 2014, p. 95).
crime praticar o Espiritismo. Teoricamente, a intenção da lei era de resguardar o monopólio do exercício da “arte
de curar”, pois estava associado aos artigos 156 e 158 que se referiam à prática ilegal da medicina. (GIUMBELLI,
2003, p. 254) 102 Astronomers found spiritists busy describing the plural worlds of the cosmos. Spiritist healers, curing people
through the advice of spirits, threatened the newly professionalizing autonomy of allopathic doctors. Spiritists
also claimed the spirit world was the source of phenomena that psychiatrists argued came from the subconscious.
Both in Paris and in Marseilles, scientifically inclined lay people created societies to study mediumistic
phenomena. In 1878 P.-G. Leymarie and Gabriel Delanne founded the scientific leaning Societe scientifique des
etudes sychologiques (Scientific Society of Psychical Studies) to act alongside the more morally inclined Societe
des etudes spirites (Society of Spiritist Studies). This group involved the most elite spiritists in Paris. Delanne
invited scientists, from England as well as France, to participate in seances and to witness for themselves the
supernatural skills of the best mediums; few of his invitations were answered.
107
Nessa ampliação do espectro da ciência feita por Kardec, vamos ver o nascedouro de
uma enorme fonte de discussões, que inclusive dura até hoje, como, por exemplo, quando
vemos Araujo afirmar que é apologética a posição de Dora Incontri quando esta fala da posição
científica de Kardec (ARAUJO, 2014, p. 96). Não queremos nesse ponto entrar no mérito da
discussão em si, se Espiritismo é ou não ciência, ou se Kardec era de fato positivista. O que
queremos chamar a atenção é para a discussão que isso gerou e como que dividiu os espíritas e
espiritualistas do século XIX e divide até hoje. Por consequência desse conceito expandido de
ciências, encontraremos três vertentes: 01) aqueles que seguiram Kardec em sua nova forma de
ciência e se mantiveram como espíritas; 02) os que vão afirmar que o Espiritismo era
pseudociência e rejeitaram o Espiritismo, pois não aceitavam associar a ciência ao sobrenatural;
03) os que vão ver no Espiritismo um aspecto místico ou religioso e que vão, como veremos à
frente, fazer do Espiritismo/Espiritualismo uma religião, aspecto esse que nem mesmo os
positivistas deixaram de lado:
Os mais proeminentes líderes espíritas, Gabriel Delanne e Léon Denis, representavam
as duas principais respostas do movimento. Delanne lutou para obter reconhecimento
científico, enquanto Denis promoveu o lado espiritual, até mesmo místico, do
movimento espírita. Os espíritas nunca desistiram de sua pretensão de ser científicos,
mas isso mudou no fim do século para ser uma explicação minoritária (incorreta na
opinião de muitos) dos fenômenos científicos comumente aceitos. No final, foi a visão
de espiritualidade, reencarnação e um papel crítico contínuo de Denis para o
espiritismo, que permaneceu como características duradouras do movimento.
(SHARP, 2006, p. 164, tradução nossa)103
A discussão sobre o aspecto científico versus o aspecto místico/religioso do Espiritismo
é complexa, Araujo (2014, p. 51 a 53) destaca que o astrônomo Camille Flammarion (1842-
1925) teria se afastado da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, da qual era membro desde
1861, por não admitir que o Espiritismo tomasse os contornos de uma religião, pois entendia
que esse devia ser estudado primeiramente como ciência antes que uma filosofia religiosa. Essa
questão entre o aspecto científico e o religioso da doutrina era tão acirrada que no discurso
promovido por Camille Flammarion no túmulo de Kardec, na ocasião de sua morte, ele trouxe
à tona as questões que vinham sendo discutidas sobre o aspecto religioso do Espiritismo:
Quantos corações foram consolados, de início, por esta crença religiosa! Quantas
lágrimas foram enxutas! [...] Não será nada ter trazido ao espiritualismo tantos seres
que vacilavam na dúvida e que não mais amavam a vida física, nem a intelectual?
Allan Kardec era o que eu denominarei simplesmente “o bom-senso encarnado”.
103 Gabriel Delanne and Leon Denis, represent the two main responses of the movement. Delanne struggled to gain
scientific recognition, while Denis promoted the spiritual, even mystical, side of the spiritist movement. The
spiritists have never given up their claim to be scientific, but it changed in the fin de siecle to be a minority
explanation (incorrect in the opinion of many) of commonly accepted scientific phenomena. In the end it was
Denis' vision of spirituality, reincarnation, and a continuing critical role for spiritism that remained the lasting
characteristics of the movement.
108
Razão reta e judiciosa, aplicava sem cessar à sua obra permanente as indicações
íntimas do senso comum. [...] O ponto de partida era aplicar-lhes a razão firme do
simples bom-senso e examiná-las segundo os princípios do método positivo.
Conforme o próprio organizador deste estudo demorado e difícil previra, esta
doutrina, até então filosófica, tem que entrar agora num período científico. [...] Esse
método experimental, a que devemos a glória dos progressos modernos e as
maravilhas da eletricidade e do vapor, deve colher os fenômenos de ordem ainda
misteriosa a que assistimos para os dissecar, medir e definir. Porque, meus Senhores,
o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o
abecê. Passou o tempo dos dogmas. [...] O sobrenatural não existe. As manifestações
obtidas com o auxílio dos médiuns, como as do magnetismo e do sonambulismo, são
de ordem natural e devem ser severamente submetidas à verificação da experiência.
Não há mais milagres. Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida. [...]
Doravante, o mundo é regido pela ciência e, Senhores, não virá fora de propósito,
neste discurso fúnebre, assinalar-lhe a obra atual e as induções novas que ela nos
patenteia, precisamente do ponto de vista das nossas pesquisas. (KARDEC, RE:
Mai/1869, p. 198, grifos nossos).
O discurso de Camille Flammarion deixa claro que, do seu ponto de vista, entendia que
Kardec posicionava o Espiritismo como religião, ou pelo menos agia como tal. Ele fala
claramente que essa doutrina se tratava de uma crença religiosa e até então filosófica, tinha sua
real vocação para ser uma ciência. O autor do artigo O Espiritismo em seu tríplice aspecto:
científico, filosófico e religioso, Silvio Chibeni (2003b, p. 357), problematiza a questão do
aspecto científico do Espiritismo, discordando do que Flammarion afirmava. Para Chibeni, se
for feita uma análise do Espiritismo sem um viés apologético, avaliando sua estrutura e
desenvolvimento, verificar-se-á que se trata de uma ciência genuína, se forem levadas em conta
as características apontadas pela filosofia da ciência contemporânea. Chibeni afirma que a:
[...] ciência autêntica consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico principal,
formado por leis fundamentais, introduzidas a título de hipóteses. Esse núcleo é
circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com
os dados empíricos. Essa estrutura teórica mais ou menos hierarquizada faz-se
acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu
desenvolvimento. De um lado, há a regra “negativa”, que estipula que nesse
desenvolvimento os princípios do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser
mantidos inalterados. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as
observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais
da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas” sugerem
ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser
efetuadas. Essa é uma descrição sucinta e simplificada daquilo que o filósofo da
ciência contemporâneo Imre Lakatos chamou de programa científico de pesquisa.
(CHIBENI, 2003b, p. 356)
Dessa forma, pode-se falar em uma Ciência Espírita104, pois o método científico
104 Quando se fala em Ciência Espírita, Kardec diz que a ciência comum não está apta a avaliá-la e por esse sentido
deixa de ser positivista, pois uma das características fundamentais do positivismo era, segundo Comte, ter uma
unidade de métodos para todas as ciências (ARAUJO, 2014, p. 100). Embora não seja objeto de nosso trabalho
o aspecto científico do Espiritismo, Kardec afirma de forma direta sobre essa impossibilidade da ciência natural
“comum” de analisar o Espiritismo: “As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode
experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de
vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As
observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de
109
baconiano aplicado por Kardec, herdado da influência positivista de Comte, se aplicava
perfeitamente à definição abordada acima. Chibeni afirma ainda que Kardec se antecipa às
conquistas recentes da filosofia da ciência, segundo ele
seus escritos, correspondem efetivamente à visão que os filósofos da ciência têm hoje.
Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de
fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que
lhe possibilitou a implantação de uma verdadeira ciência do espírito. (CHIBENI,
2003b, p. 357)
Baseados nesses relatos, podemos concluir que não era somente a Igreja Católica que
encarava o Espiritismo como religião, tanto os cientistas e estudiosos da época, como algumas
correntes dos espíritas e dos espiritualistas alimentavam essa ideia com forte relacionamento
com o Iluminismo.
3.7. Os inter-relacionamentos do Espiritismo com o Iluminismo
Os defensores da reencarnação do século XIX, particularmente da década de 1850,
segundo Lynn Sharp (2006), entendiam que a alma humana estava em processo de evolução,
era perfectível e que não deveria estar sujeita às desigualdades sociais de sua época. Ao abordar
esse entendimento, a autora relaciona o Espiritismo com Rousseau, mas deixa entender que esse
relacionamento seria fortuito, sem uma ligação mais direta com o pensador. Ele diz que: “Os
espíritas, sem nunca apontar para Rousseau, no entanto, argumentaram com essa visão
iluminista da desigualdade social, substituindo uma visão diferente de perfectibilidade, que
levou a uma crescente igualdade e justiça social” (2006, p. xv). Entendemos que essa visão de
Sharp é equivocada, pois que esse fato guarda uma relação direta e perfeitamente compreensível
se levarmos em conta, que Rousseau, como citamos no capítulo primeiro, foi fonte de inspiração
para Pestalozzi e, por consequência, para Kardec.
Os inter-relacionamentos do Espiritismo com o Iluminismo vão além dos pensamentos
de Rousseau, na verdade, entendemos que não só o Espiritismo Francês de Kardec, como o
Espiritualismo Americano e o Ocultismo e em todas as suas correntes, sejam elas científicas ou
místicas, tinham relações como o movimento iluminista. Entendemos que inclusive as vertentes
religiosas do Espiritismo têm muito mais a ver com o Iluminismo do que se imagina. Os adeptos
do conceito de reencarnação imaginavam que o ser humano seria portador de uma alma
partida. Querer submetê-las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A
Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo:
não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá
ter.” (KARDEC, LE: Introdução: VII).
110
evolucionária e perfectível, longe da desigualdade. Nessa visão, à medida que os seres humanos
progredissem em direção à perfeição, eles se tornariam menos egoístas, mais capazes de criar
uma sociedade que reconhecesse as necessidades, direitos e interesses de todos, incluindo a
classe trabalhadora e as mulheres que na época não tinham seus direitos assegurados. Essa visão
de uma sociedade melhor ofereceu um grande atrativo para as pessoas ao Espiritismo (SHARP,
2006, p. xv).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como dissemos no primeiro
capítulo, fazia um contraponto ao Absolutismo Monárquico e a certos preceitos religiosos da
época, e era revolucionária no real sentido da palavra, pois procurava um ponto de equilíbrio
entre a estreita religiosidade da Igreja Católica e a materialidade iluminista, mas sem abandonar
uma visão religiosa do mundo quando declara que seus termos são postos “na presença e sob
os auspícios do Ser Supremo” (Ver a Declaração completa no Anexo C). Sharp afirma que o
Espiritismo ofereceu na época uma alternativa aos iluministas, já que permitia a defesa de
reformas sociais, mudanças políticas e uma mudança de visão de gênero sem abandonar a ideia
de religiosidade, ele argumenta que:
[...] ao invés de o pensamento iluminista substituir a tradição religiosa católica na
cultura francesa do século XIX, a relação da razão com a religião era mais complicada.
As linhas do pensamento espiritualista no século XIX, especialmente o espiritismo,
criaram novas combinações de espiritualidade, razões e pontos de vista românticos
que se recusavam a dar primazia absoluta à materialidade iluminista ou à estreita
religiosidade da Igreja Católica. A reencarnação e o espiritismo ofereceram uma
versão secular da espiritualidade popular entre aqueles que talvez quisessem rejeitar
o catolicismo em favor da ciência, mas definitivamente queriam manter uma visão
religiosa profunda do mundo. [...] A reencarnação, para os socialistas românticos, para
os livre-pensadores, e especialmente para os espíritas, era atraente porque promovia
um ideal de progresso iluminista sem sacrificar a religiosidade. A espiritualidade
secular rejeitava uma dicotomia tradicional entre religião e o Iluminismo. (SHARP,
2006, p. xii, tradução nossa)105
Os adeptos do pensamento espírita estavam conscientes do momento em que viviam,
sabiam que havia o incentivo para o uso da razão associada a questões de ordem moral para
compreender o mundo em que viviam. O império de Napoleão contou de forma significativa
com a filosofia prática de August Comte, usando de engenheiros e pensadores que viam no
positivismo uma forma de viver. Um positivismo que pregava a separação entre a ciência
105 rather than Enlightenment thought replacing Catholic religious tradition in nineteenth century French culture,
the relationship of reason to religion is more complicated. Lines of spiritualist thought in the nineteenth century,
especially spiritism, created new combinations of spirituality, reason, and romantic outlooks that refused to give
absolute primacy to either Enlightenment materiality or to the narrow religiosity of the Catholic church.
Reincarnation and spiritism offered a secular version of spirituality popular with those who may have wanted to
reject Catholicism in favor of science but definitely wanted to retain a deep-seated religious outlook on the world.
[...] Reincarnation, for the romantic socialists, for freethinkers, and especially for the spiritists, was attractive
because it promoted an ideal of Enlightenment progress without sacrificing religiosity. Secular Spirituality
rejects a traditional dichotomy between religion and the Enlightenment.
111
factual e a espiritualidade supersticiosa.
Por outro lado, os adeptos do Espiritismo encontravam nele uma saída para essa
dicotomia. Essa doutrina podia adotar esse entre lugar e atuar nessas duas áreas tornando-se, ao
mesmo tempo, uma ciência e uma religião. As manifestações diversas, como psicografia,
materializações espirituais, forneceram base empírica e científica para a prova da sobrevivência
da alma (SHARP, 2006, p. 59). Defendemos inclusive, com base neste ponto, que podemos
concordar que, como apregoado no meio espírita, o Espiritismo possui um tríplice aspecto de
filosofia, ciência e de religião, como defende Silvio Chibeni:
Tornou-se comum no meio espírita afirmar-se que o Espiritismo é ciência, filosofia e
religião, ou tem um “tríplice aspecto”, englobando as três áreas. Essa caracterização
não pode ser encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. É, porém,
correta e, em sua essência, está presente no pensamento do criador do Espiritismo e
de seus mais lúcidos continuadores. (CHIBENI, 2003, p. 315)
Kardec combinou uma forte fé na ciência e uma prova científica da sobrevivência da
alma, fortalecendo as formas mutáveis de prova aceitas como válidas no século XIX. O poder
explicativo da Igreja diminuía à medida que a observação científica crescia, mas a ciência não
conseguia explicar o sobrenatural, ou ainda a agitação da alma que pedia algo além da realidade
material. O Espiritismo empenhou-se em responder a ambas as necessidades: a recusa
positivista a acreditar sem prova e o impulso religioso de saber que a alma continua após a
morte.
Não só o Espiritismo francês trazia essa tendência de tornar-se religioso, visto que
existia espaço em outros movimentos desse entre lugar entre a tradição cristã e “um ideal de
progresso iluminista sem sacrificar a religiosidade. A espiritualidade secular rejeitava uma
dicotomia tradicional entre religião e o Iluminismo (SHARP, 2006, p. xii). É nessa linha que o
pai do positivismo Augusto Comte vem a fundar sua própria religião: a Religião da
Humanidade ou Positivismo Religioso, a qual apresenta algo que guarda alguma semelhança
com a espiritualidade laica dos dias de hoje. O Espiritualismo americano, em uma linha de
pensamento Ocultista, também procurou identificar sua forma de religião. Em 1875 foi fundada,
em Nova York, a Sociedade Teosófica pela imigrante russa Helena Petrovna Blavatsky, mais
conhecida como Madame Blavatsky, e o advogado Henry Steele Olcott. Os membros dessa
sociedade tinham uma pretensão de descobrir nada menos que a essência da própria religião.
Eles pretendiam desenvolver um corpo unificado de conhecimento esotérico que pudesse
unificar as aparentes irreconciliáveis crenças de todo o mundo. Acreditavam que os
espiritualistas eram ingênuos, mas não descartavam completamente os fenômenos
sobrenaturais (MONROE, 2008 p. 235). É essa mesma Sociedade que vai desembarcar na
112
França em 1879 para fundar a Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses.
Com o crescimento do Ocultismo e do Espiritualismo tanto norte-americano como
europeu, o Espiritismo Francês tomou contornos muito tímidos no final do século XIX, as obras
de Kardec continuaram sendo encontradas em algumas lojas especializadas e o movimento
espírita foi absorvido no Brasil a partir do ano 1870, onde inclusive as mesmas discussões a
respeito do seu aspecto místico e científico se tornaram objeto de disputas intelectuais. Tanto
Lynn Sharp (2006, p. 202), como Monroe (2008, p. 261) entendem que, a partir da morte de
Gabriel Delanne e Léon Denis no começo do século XX, ocorre um obscurecimento do
Espiritismo, que renasce fortemente no Brasil com um viés religioso, resultante da vitória dos
místicos liderados por Bezerra de Menezes, em 1889, quando este assume a liderança da
Federação Espírita Brasileira.
113
CONCLUSÃO
Como pisar em terreno minado sem que se detone uma bomba? É assim que me sinto
ao iniciar a conclusão desse trabalho. Discutir o aspecto religioso do Espiritismo não é tarefa
fácil, aliás trabalhar com o conceito de religião também não o é, por isso a sensação de campo
minado. De um lado, a indefinição sobre o aspecto religioso do Espiritismo em meio a uma
disputa de ideias que perfazem mais de um século e meio, do outro, a dificuldade de tratar o
conceito de religião. O objeto desse trabalho, como estabelecemos na introdução, não era
responder se Espiritismo é ou não religião, embora o assunto orbite nossa discussão todo o
tempo. O que pretendíamos era entender se o conceito de religião considerado pelo Espiritismo
foi influenciado pelos pensadores e teólogos do século XIX, a ponto de Kardec negar o
surgimento de uma nova religião. E se ao negar o surgimento dessa religião ele teria entrado
em contradição ao afirmar que o Espiritismo é “uma doutrina filosófica de efeitos religiosos”.
A hipótese que havíamos postulado era que, sim, Kardec foi influenciado pelos
pensadores da época, particularmente os positivistas e iluministas, mas que não havia
contradição em seu raciocínio, pois ele considerou, para sua conclusão, os conceitos de sua
época que eram ditados pela religião dominante, fazendo do conceito de religião do Espiritismo
um contraponto com o entendimento tradicional.
Concluímos, portanto, que a questão estava no entendimento de que Kardec fazia acerca
do conceito de religião. Dessa forma, a verdadeira questão de nosso trabalho não é se o
Espiritismo é ou não é uma religião, ou se ele tenha negado o surgimento de uma nova religião,
mas sim compreender qual era o conceito de religião para Kardec. Diante dessa visão
poderíamos entender a intenção dele ter feito um contraponto entre as religiões ocidentais
tradicionais e o Espiritismo. Como vimos no decorrer do trabalho, o desejo de Kardec era de
estabelecer um “uma reforma religiosa, [...] com a intenção de chegar à unificação das crenças.”
(LACHÂTRE, 1867, p. 199), esse desejo teve tamanha força que alcançou inclusive os
Espiritualistas e Ocultistas como abordamos no capítulo três.
Para atingir esse objetivo, estudamos a formação, as influências teológicas e as escolas
científicas em que Allan Kardec se inspirou para desenvolver os seus trabalhos como pensador
e cientista e contextualizamos o ambiente social legado pela Revolução Francesa. Trabalhamos
o conceito de religião segundo o ponto de vista de alguns autores e entendemos que, embora
obviamente o assunto não se esgote definitivamente, era necessário estabelecer um ponto de
partida. A definição desse conceito foi por si só um desafio, já que essa é uma das mais difíceis
tarefas da ciência das religiões. O ponto de partida histórico foi traçado a partir de Lactâncio e
114
Cícero, depois passamos pela visão antropológica de Benson Saler, com a ajuda dos jogos de
linguagem de Wittgenstein e algumas pontuações de Greschat, para em seguida dialogar com
os pontos de vista de Cliford Geertz. Discorremos também sobre as hierofanias de Eliade e
visitamos o sagrado na visão de Rudolf Otto. Com todos esses autores estabelecemos um
diálogo de seus conceitos com os pontos de vista de Kardec, para tentar aproximar ou distanciar
seu pensamento de cada um deles, particularmente para estabelecer se estão presentes no
Espiritismo as seguintes características definidoras: 01) a presença de um templo religioso; 02)
a liderança de um Sumo-Sacerdote e seus sacerdotes; 03) a existência de cultos; 04) e a presença
de ritos; pois que segundo Kardec esse eram pontos centrais para a caracterização da existência
de uma religião.
Resultante desses diálogos, percebemos que os limites estabelecidos para dizer o que é
ou não religião passam por um vasto leque de concepções, navegando inicialmente entre duas
etimologias possíveis, o relegere e o religare, uma de origem romana, voltada para a adoração
de diversos deuses, e a outra reconceituada como cristã. A religião não ficou, porém, somente
entre essas duas concepções, passou, com o decorrer do tempo, por outros pensamentos que
poderiam se dizer intermédios ou, como disse Benson Saler (2000, p. xiv), com “características
típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião”, estabelecendo lugares mais ou
menos religiosos. Praticamente todos esses conceitos puderam ser englobados na afirmação de
Geertz (1978, p. 67) de que todas as religiões se revestem de uma aura de fatualidade, dada por
rituais que seriam, segundo ele, sua motivação central.
No século XIX, para a maioria dos europeus, isso tudo parecia correto e acertado,
bastando apenas situar as religiões entre o relegere ou o religare. Quando se destacaram os
fenômenos espiritistas, a começar com os eventos de Hydesville nas américas e pouco tempo
depois as mesas girantes na França. Com as análises feitas por Kardec, uma nova visão veio à
tona, considerando a existência de “provas positivas da existência da alma, ou antes, da
existência post-mortem de uma alma”, como afirma Eliade (1989 p. 61).
Apesar da existência de diversos fenômenos dessa ordem antes de Hydesville e das
mesas girantes, como foi relatado por Arthur Conan Doyle, foi com Allan Kardec que surgiu
uma perspectiva científica baconiana e principalmente secular do que, até aquele momento, era
apenas do domínio das religiões ditas tradicionais no mundo europeu. Respondendo a um anseio
Iluminista, o Espiritismo, como afirma Sharp (2006, p. xii), apontou com novas combinações
de espiritualidade que se recusavam a dar primazia absoluta à materialidade iluminista ou à
estreita religiosidade da Igreja Católica. O Espiritismo, principalmente por causa do conceito
da reencarnação, ofereceu uma versão secular da espiritualidade, o que abordamos no capítulo
115
dois, dando a opção aos que quisessem rejeitar a Igreja Católica ou Protestante em favor da
ciência, mas que quisessem manter uma visão religiosa do mundo (SHARP, 2006, p. xii). O
pedagogo francês propôs, em meio às revoluções do pensamento moderno iluminista, que o
metafísico, outrora assunto das religiões ou da Filosofia, passasse a ser assunto da Ciência ou
pelo menos da razão. A “fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em
todas as épocas da humanidade.”, afirmava Kardec (2016, p. 232).
Esse pensamento que situava o Espiritismo num entre lugar entre os pensadores
materialistas, passando pelos Iluministas e a religiosidade da igreja, abria uma possibilidade
para um pensamento secular nascente. A aparente contradição que apontamos em Kardec se
deu porque os próprios pensadores de seu tempo estavam passando por um processo de
transição da tradição para o pensamento secular, assunto esse tratado no capítulo três. Os
defensores da reencarnação passaram a ver no mundo metafisico um caminho para defender
reformas sociais, políticas e uma mudança de visão sobre o gênero. A reencarnação era a
oportunidade de confirmar as reinvindicações de igualdade entre todos os seres humanos sem
abrir mão de uma espiritualidade que também não estivesse submetida à tradição cristã.
O próprio posicionamento de Kardec se transformou com o tempo e passou por uma
fase que foi nomeada por Araujo (2014, p. 218) como um período religioso, particularmente
quando publicou O Evangelho Segundo o Espiritismo. Segundo Araujo, as afirmações de
Kardec, com o tempo, passaram por modificações, inclusive chegando a afirmar que o
Espiritismo era uma religião em termos filosóficos. Tal afirmação corrobora com a ideia de
Benson Saler, em cuja definição existem características definidoras que permeiam a religião:
A religião, na minha forma de ver, é uma categoria graduada cujas instâncias estão
ligadas por semelhanças de família. Além disso, defendo que reconhecemos
explicitamente que, para a maioria dos estudiosos ocidentais, os exemplos mais claros
da categoria religião, os exemplos mais prototípicos dela, são as famílias de religiões
que chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias exibem
os maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião. E, claro,
essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela primeira
vez com o termo religião. Bem cedo na vida aprendemos a afastar a religião de outras
coisas, embora de forma imperfeita. [...] Como estudiosos, procuramos refinar e
aprofundar tais entendimentos de maneira sistemática. Usamos nossos entendimentos,
de fato, para buscar no mundo outras religiões. Identificamos várias afirmações
verbais e outros comportamentos em sociedades não ocidentais como "religiosas" por
analogia com o que encontramos no Ocidente. (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).
Assim sendo, as religiões seriam compostas de um conjunto de características, das quais
cada uma tomaria para si um pequeno subconjunto dessas e, por assim dizer, existiriam áreas
periféricas que são menos comuns às religiões tidas como as maiores referências ocidentais de
religião. Para Kardec, a Igreja Católica e a Igreja Protestante foram suas maiores referências de
religião, já que, como descrevemos no capítulo um, ele entendia que o Cristianismo era o que
116
existiria de melhor modelo para religião (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 206). Dessa forma, o
Espiritismo não possuindo tais características típicas, não poderia ser, portanto uma religião, já
que o Cristianismo já ocupava esse lugar. Se o Espiritismo não era religião, por sua vez seria
outra coisa. Assim, o hibridismo apontado por Araujo no Espiritismo (ARAUJO, 2010, p. 132),
que seria, segundo ele, um entre lugar, uma ponte entre a ciência e a filosofia com a religião
tida como referência, nada mais é, ao nosso modo de ver, uma área periférica do conjunto de
características das religiões apontadas por Saler, que diz por definição que essa outra coisa
possuía semelhanças familiares com outras religiões106.
Por isso, não obstante tenha dito ao Abade de Chesnel em 1859 que a doutrina espírita
não fosse uma religião propriamente constituída e que serviria como elemento aglutinante às
diversas religiões, Kardec (2016, p. 232), anos depois, em seu discurso em reunião pública, na
noite de 1° de novembro de 1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, afirmou:
O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois,
essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as
aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à
vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito.
O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como conseqüência
da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a
indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a
religião da amizade, a religião da família. Se é assim, perguntarão, então o
Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o
Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina
que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre
uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.
(KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491, grifos nossos)
Se fizermos uma análise desse discurso de forma pormenorizada, tomando as definições
de Benson Saler, verificaremos que se mostram presentes algumas importantes características
definidoras das religiões, segundo o pensamento de Kardec, que por sua vez corroboram o
pensamento de alguns autores que citamos no capítulo dois. Quando ele afirma que “o laço
estabelecido por uma religião [...] é, pois essencialmente moral que liga os corações, que
identifica os pensamentos, as aspirações” seu pensamento se alinha com a visão de religare de
Lactâncio, que aborda a questão da moralidade em detrimento “das fórmulas que falam mais
aos olhos do que ao espírito”, em oposição ao relegere de Cícero. O senso de totalidade
abordado por Greschat (2005, p. 24-25) que analisa as religiões nas perspectivas de
comunidade, como sistema de atos; como conjunto de doutrinas e como sedimentação de
experiências, está presente na afirmação de que se estabelece uma união “como conseqüência
106 Essa extrapolação é nossa, Benson Saler não associa essa ideia diretamente ao Espiritismo em seu texto, ele
fala de maneira geral sobre religiões quando usa o pensamento de Wittgenstein. Explicaremos mais à frente de
forma explícita essa questão.
117
da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a
benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da
família.” E finalmente, quando Kardec afirma que “é a Doutrina que funda os vínculos da
fraternidade e da comunhão de pensamentos”, ele se alinha com Geertz (1978, p. 67) que
apresenta em sua definição a “formulação de conceitos de uma ordem geral [...]e disposições e
motivações parecem singularmente realistas.” (GEERTZ, 1978, p. 67).
Há também que se analisar a afirmação “No sentido filosófico, o Espiritismo é uma
religião”, a qual possui grande importância, por ser uma afirmação literal de Kardec e dizer
que, de alguma forma, o Espiritismo é uma religião porque estabelece um dos fundamentos
básicos que é a questão da moral, e que completaremos mais à frente.
Podemos observar que, se tomadas as definições de Benson Saler, essa definição de
Kardec possui algumas características definidoras, mas não todas as que comumente são
associadas às religiões, porém, que seriam suficientes pelo conceito semelhanças familiares de
Wittgenstein estabelecer o relacionamento do Espiritismo no grupo das coisas chamadas de
religião.
Quando Kardec (KARDEC, RE: Mai/1859, p. 196-208), em 1859, responde ao artigo
do Abade de Chesnel, rechaçando a ideia de que o Espiritismo fosse uma religião, o que ocorreu
em diversas outras oportunidades, Kardec não acreditava na possibilidade de poder desvincular
certas características definidoras que para ele seriam fundantes para a existência de uma
religião. Esse pensamento está de acordo com o de Geertz, que dizia não ser possível, em termos
de religião, desvincular “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens” de uma “formulação de
conceitos de uma ordem geral” (GEERTZ, 1978, p. 67). Por essa razão, pelo menos naquele
momento, Kardec não acreditava que o Espiritismo pudesse ser uma religião, pois os ritos, os
símbolos e os sacerdotes seriam características que estariam sempre presentes na religião,
segundo seu pensamento. Essa ideia de que essas características fossem fundantes são citadas
por ele de forma textual em 1868:
Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de
não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião
geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente
uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma
religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser,
dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de
hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo
e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou. Não tendo o
Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra,
não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se
118
teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.
(KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491, grifos nossos)
Fica muito claro aqui o pensamento de Kardec quando ele fala que “a palavra religião é
inseparável da de culto” e que “uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de
cerimônias” são características fundantes de uma religião, ou seja, ele definitivamente entende
que os cultos, ritos, templos e sacerdotes são características definidoras de uma religião, e como
diz textualmente, o Espiritismo não possui “nenhum dos caracteres de uma religião”.
Observemos, porém, que ele diz que o Espiritismo não possui nenhuma das
características definidoras de uma religião, porque no século XIX não havia ainda espaço
definitivo para o que era secular e o que valia era somente a tradição. Mas, por outro lado, é
importante observar que ele já admitia a possibilidade de uma variante de entendimento para a
palavra religião, pois complementa a frase “Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de
uma religião” com o aposto “na sua acepção usual da palavra”, dessa forma, deixando claro que
existiam concepções não usuais. Com isso, o Espiritismo se enquadraria na classe das
“doutrinas filosóficas e morais”, que poderia ser uma outra forma de se ver a religião, como foi
abordado anteriormente quando analisamos a afirmação de que “no sentido filosófico, o
Espiritismo é uma religião.”
Assim, entendemos que Kardec fez das famílias do Cristianismo (a Igreja Católica e a
Igreja Protestante) como suas referências de religião e que isso está de acordo o pensamento de
Saler que entendia que, pelo menos para os ocidentais, essas religiões são (ou foram) suas
maiores referências de religião. Dessa forma, em contraponto, Kardec afirmou que o
Espiritismo não era uma religião, já que não possuía, ritos, símbolos ou sacerdotes. Concluímos
que isso se deu por dois motivos: primeiro, porque se para ele, de todas as doutrinas, o
Cristianismo era a mais esclarecida e a mais pura, não haveria, portanto, necessidade de se criar
nova religião, e sim agregar as revelações dos espíritos ao Cristianismo (ou a outras religiões
que aceitassem as concepções do Espiritismo); e segundo, porque Kardec não tinha a ideia de
fundar uma nova religião, mas sim fornecer elementos para fazer “uma reforma religiosa, [...],
com a intenção de chegar à unificação das crenças.” (LACHÂTRE, 1867, p. 199).
A questão acerca de uma aparente contradição no pensamento de Kardec sobre a religião
se dá porque as avaliações que têm sido feitas sobre esse tema são de um ponto de vista
moderno. A questão temporal aqui é extremamente relevante, pois estamos fazendo um recorte
do pensamento do Espiritismo no século XIX, época em que o conceito de religião estava
fortemente atrelado à Religião Católica e à Protestante, já que o pensamento secular ainda
estava começando a surgir. Por essa razão a relevância de entender o pensamento de Kardec
119
situando-o no século XIX, de acordo com as ideias que eram correntes na época. É necessário
compreender, como afirma Greschat (2005, p. 24-25), que as religiões passam por um processo
de transformação contínuo e que a visão do que era religião no século XIX já vinha passando
por modificações desde a idade média.
Todos sabem que a religião era, anteriormente, uma questão coletiva e que se tornou
uma questão individual [...]. Mas se concluirmos que esta mudança está
correlacionada com o nascimento do Estado moderno [...]. Avancemos um pouco
mais: a religião medieval foi um grande manto [...]. Uma vez que ela se tornou uma
questão individual, perdeu sua capacidade totalizante e se tornou apenas um dentre
outros fatores em aparente pé de igualdade [...]. Cada indivíduo pode, é claro, e talvez
o faça, reconhecer na religião (ou na filosofia) a mesma capacidade totalizante com
que antes ela era dotada socialmente. No entanto, no nível do consenso social ou da
ideologia, a mesma pessoa migrará para uma configuração de valores distinta, na qual
valores autônomos (religiosos, políticos, etc.) são aparentemente justapostos, assim
como os indivíduos estão justapostos na sociedade. (DUMONT, 1971, p. 32)
A transformação a que Dumont se refere diz respeito particularmente à possibilidade de
tornar a religião objeto de poder de algumas tradições, que começaram a perder, como afirma
o autor, a sua capacidade totalizante. Particularmente a Igreja Católica passaria, com o
nascimento do Estado moderno, a não mais exercer esse poder em diversos setores da
sociedade, como foi o caso exemplificado no Auto de Fé de Barcelona (KARDEC, OP: Auto
de Fé de Barcelona), citado no capítulo três deste trabalho, em que a Igreja fiscalizava o
conteúdo das obras literárias. Assim como “essa separação entre religião e poder é uma norma
Ocidental moderna, produto de uma singular história pós-Reforma” (ASAD, 2010, p. 264),
inicia-se nas religiões um processo de transformação rumo à secularização. Dessa forma,
entendemos que não se pode aceitar o que Kardec afirmou naquela época ser uma verdade
absoluta nos dias de hoje, visto que ele mesmo afirma: “Caminhando de par com o progresso,
o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar
em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se
revelar, ele a aceitará.” (KARDEC, AG: Cap. I: 55). Acreditamos, portanto, que se a ideia
secular de religião de hoje fosse corrente àquela época talvez ele concordasse que o Espiritismo
assumisse esse papel. Por isso que dizemos que não é objeto deste trabalho saber se o
Espiritismo é ou não uma religião, mas sim entender o que era religião para Kardec e o qual
objetivo ele queria atingir ao dizer que não era. Inclusive a questão de como o Espiritismo
encara o conceito de religião nos dias de hoje será objeto de trabalhos futuros, já que como
Sharp (2006, p. 202, tradução nossa) declara que depois dos diversos reveses que sofreu “o
Espiritismo sobreviveu, mas em silêncio, até reviver nas décadas de 1980 e 1990, quando foi
120
reimportado do Brasil, onde floresceu desde a década de 1870.”107
Não queremos com nossas reflexões causar polêmica e nem fechar questões, mas sim
trazer uma reflexão a respeito do assunto buscando as próprias palavras de Kardec que diz: “Por
que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão
uma palavra para exprimir duas idéias (sic) diferentes [...]” (KARDEC, RE: Dez/1868, p. 491).
Há no termo religião um sem número de ideias e pensamentos associados, por isso mesmo a
dificuldade de definir o termo mesmo entre os cientistas da religião. Por isso adotamos no nosso
trabalho a visão de Benson Saler que traz um vasto leque de opções dizendo que “alguns
acadêmicos, [...] propuseram rótulos como ‘quase-religiões’ ou ‘semi-religiões’ para indicar
que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma forma, mas não o
suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de religião" (SALER, 2000, p.
xiv). O que nos conduz ao ponto central de nossa conclusão.
Embora Allan Kardec tenha entendido que cultos, ritos, templos e sacerdotes são
características definidoras inseparáveis de uma religião, a presença de outras características
definidoras, em se usando o conceito de semelhanças familiares de Wittgenstein, pode incluir
o Espiritismo no hall das religiões, já que nem todas as religiões possuirão todas e as mesmas
características.
Como bem descreve Eliade (2008, p. 8), as religiões possuem uma enorme diversidade
de fatos sagrados, que se manifestam através de uma vasta e longa série de ritos, mitos, formas
divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias, teologúmenos, homens
consagrados, animais, plantas e lugares sagrados, que apesar de não serem os mesmos em todas
elas ainda serão consideradas religiões. Nessa linha de raciocínio, não importa a explicação que
seja dada aos fatos sagrados, sejam eles miraculosos ou fenômenos naturais como Kardec os
definia, serão fatos religiosos, metafísicos ou sobrenaturais, não importando o nome que se dê,
uma vez que, para seu fiel, ele representa uma realidade.
Concluímos, portanto, que Kardec foi de fato influenciado pelos pensadores de sua
época, particularmente os positivistas e iluministas, mas que essa influência só o ajudou a tirar
suas próprias conclusões e que não havia contradição em seu raciocínio, pois que sua ideia de
uma reforma religiosa combinada com o seu conceito de religião fazia com que ele tivesse uma
ideia bem clara a respeito do Espiritismo. Todavia, seu conceito de religião se aplica tão
somente à sua época. Por fim, podemos entender que: 1) Kardec entendia que a doutrina espírita
não era religião, pois não poderia se designar essa palavra a duas ideias diferentes, já que, na
107 spiritism survived, but quietly, until reviving in the 1980s and 1990s as it was reimported from Brazil, where it
had flourished since the 1870s
121
opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto, ritos mitos e sacerdotes e ao
Espiritismo esses caracteres não eram aplicáveis; 2) Se o Cristianismo era, em termos de
religião, a doutrina mais pura e esclarecida, não havia necessidade de fundar outra, bastando
agregar a ela os conceitos do Espiritismo para explicar o que ainda estava obscuro ou por ser
revelado; 3) Os milagres e revelações nada mais são do que fenômenos naturais ainda não
compreendidos, fazendo com que as relações entre o sagrado e o profano percam sentido; 4)
Kardec não tinha a intenção de fundar uma religião porque, ao invés de congregar as pessoas,
ele as iria separar ainda mais, já que, se o Espiritismo se arrojasse à condição de uma religião,
o público em geral não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, dos princípios
absolutos em matéria de fé, não o separando das ideias de misticismo e dos abusos contra os
quais tantas vezes a opinião se levantou; 5) O Espiritismo é uma doutrina de fundamentação
moral e filosófica e, alinhada como o pensamento de Lactâncio, de religação com Deus; 6)
Mesmo no século XIX, os germens da secularização nascente ampliaram o conceito de religião
abarcando as outras espiritualidades possíveis, de forma que, apesar de o Espiritismo não
possuir todos os caracteres tradicionalmente aceitos à religião, ele possui caracteres suficientes
para tal associação, se levarmos em conta os princípios de secularização nascentes junto com o
Iluminismo.
Ficam dessa forma estabelecidos nossos pontos de vista sobre o pensamento de Kardec
e o Espiritismo, assuntos que ainda estão longe de serem esgotados, principalmente por que não
temos a pretensão de pôr fim a uma discussão que perfaz mais de um século e meio.
122
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TÉTAZ, Jean-Marc; GISEL, Pierre. Théories de la religion. Genève: Éditions Labor et Fides,
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WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
128
ANEXOS A
Seguem neste anexo as Certidões de Nascimento, Casamento e Óbito de Hippolyte Léon
Denizard Rivail e suas respectivas transcrições em francês e português.
Certidão de Nascimento:
129
Transcrição em Francês:
Du douze vindémiaire de l'an treize.
Acte de naissance de Denisard, Hypolite Leon Rivail, né hier soir à sept heures, fils de
Jean Baptiste Antoine Rivail, homme de loi, demeurant à Bourg de L'Ain, et actuellement à
Paris, et de Jeanne Louise Duhamel son epouse. Le sexe de l'enfant a été reconnu masculin.
Témoins majeurs Syriaque Frederic Dittmar, Directeur de L'Établissement des eaux minérales,
susdite rue Sala, et Jean François Turge demeurant même rue. Sur la réquisition de Pierre
Rodamel, médecin, demeurant rue Saint Dominique, n° 78. Lecture faite, et ont signé. Constaté
par moi maire soussigné / de présent à Lyon, rue Sala, n° 74. Renvoy approuvé
Transcrição em Português:
Aos doze, vindemiário ano treze.
Certidão de Nascimento de Denisard, Hypolite Leon Rivail, nascido ontem à noite, às
sete horas, filho de Jean Baptiste Antoine Rivail, homem de lei, morador em Bourg de L'Ain, e
atualmente em Paris, e de Jeanne Louise Duhamel, sua esposa. O sexo da criança foi
reconhecido como masculino. Testemunhas principais, Syriaque Frederic Dittmar, diretor do
estabelecimento de águas minerais na rua Sala, e Jean François Turge, morador na mesma rua.
Por requisição de Pierre Rodamel, médico, morador à rua Saint Dominique n° 78. Leitura feita,
e por todos assinada. Constatada por mim, prefeito, abaixo assinada /Atualmente em Lyon, rua
Sala, n° 74. Nota aprovada
130
Certidão de Casamento:
131
Transcrição em Francês:
Reconstitution des Actes de L'État Civil
Dépôt Central
Préfecture du Département de La Seine
L'an mil huit cent trente deux, le neuf Février è Paris.
Acte de Mariage de Hippolyte Léon Denizard Rivail, chef d'Institution, demeurant rue
de Sèvres n° 35, fils de Jean Baptiste Antoine Rivail et de Jeanne Louise Duhamel, son épouse
- et de Amélie Gabrielle Boudet, demeurant rue de la Planche n° 10, fille de Julien Louis Boudet
et de Julie Louise Saigne son épouse décédée.
Le membre de la Commission
Assinatura
Transcrição em Português:
Reconstituição dos Atos de Estado Civil
Depósito Central
Prefeitura do Departamento de La Seine
Ano mil oitocentos e trinta e dois, nove de fevereiro, em Paris.
Certidão de casamento de Hippolyte Léon Denizard Rivail, diretor de instituição de
ensino, morador na rua de Sèvres, n° 35, filho de Jean Baptiste Antoine Rivail e de Jeanne
Louise Duhamel, sua esposa; e de Amélie Gabrielle Boudet, moradora na rua de la Planche, n°
10, filha de Julien Louis Boudet e de Julie Louise Saigne, sua esposa falecida.
Membro da Comissão
Assinatura
132
Certidão de Óbito:
133
Transcrição em Francês:
343 Rivail
Agé de: soixante cinq ans
Du premier avril mil huit cent soixante neuf à dix heures et demie du matin
Acte de Décès de Léon Hippolyte Denisart Rivail, décédé hier à deux heures du soir, en
son domicile à Paris, rue Ste Anne n° 59 né à Lyon (Rhône), homme de lettres, fils de Rivail,
et de Duhamel son épouse, décédés. Marié à Amélie Gabrielle Boudet, agée de soixante treize
ans, son épouse, sans profession. Le dit décès dûment constaté par nous, François Ernest
Labbel, adjoint au Maire et officier de l'État Civil du Deuxième Arrondissement de Paris; Le
tout fait sur la déclaration de Armand Théodore Deslien, employé, agé de vingt cinq ans,
demeurant Boulevard du Prince Eugène n° 110 et de Alexandre Delorme, négociant, agé de
trente neuf ans, demeurant passage Choiseul n° 39 & 41, non parents, témoins qui ont signé
avec nous après lecture de l'acte.
Transcrição em Português:
343 Rivail
Idade: sessenta e cinco anos de idade.
Ao primeiro de abril de mil oitocentos e sessenta e nove, às dez horas e meia da manhã.
Certidão de óbito de Léon Hippolyte Denisart Rivail, falecido ontem às duas horas da
tarde em seu domicílio em Paris, rua S'e Anne no 59', nascido em Lyon (Rhône), escritor, filho
de Rivail, e de Duhamel sua esposa, falecidos. Casado com Amélie Gabrielle Boudet, de setenta
e três anos de idade, sua esposa, sem profissão. O dito óbito devidamente constatado por nós,
François Ernest Labbé, adjunto do prefeito e oficial do estado civil no Segundo Distrito de
Paris; totalmente feita conforme declaração de Armand Théodore Desliens, empregado, de
vinte e cinco anos de idade, morador no Boulevard du Prince Eugène no 110 e de Alexandre
Delanne, negociante, de trinta e nove anos de idade, morador na passagem Choiseul no 39 &
41, não parentes, testemunhas que assinaram conosco após leitura da certidão.
134
Foto atribuída a Kardec.
Não há referências a respeito de sua idade na ocasião da fotografia.
135
ANEXOS B
Wantuil e Thiesen (1984a, p. 182 a 187) destacam a contribuição de Rivail à educação
relacionando parte das obras publicadas por ele, e ressaltam que certamente há outras obras que
não foram por eles identificadas:
i. Curso Prático e Teórico de Aritmética; (Cours pratique et théorique
d'arithmétique) - 1824
ii. Curso Completo Teórico e Prático de Aritmética; (Cours complet théorique et
pratique d'arithmétique) - 1845
iii. Escola de Primeiro Grau; (École de premier degré) - 1825
iv. Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública; (Plan proposé pour
l'amélioration de l'education publique) - 1828
v. Os Três Primeiros Livros de Telêmaco108; (Les trois premier livres de
Télémaque) - 1830
vi. Gramática Francesa Clássica em um novo plano; (Grammaire française
classique sur un nouveau plan) - 1831
vii. Memória sobre a Instrução Pública; (Mémoire sur l'instruction publique) - 1831
viii. Qual o Sistema de Estudos mais em Harmonia com as Necessidades da Época?
(Quel est le système d'études le plus en harmonie avec le besoins de l'époque) -
1831 - Premiada pela Academia de Arrás
ix. Discurso Pronunciado por Ocasião da Distribuição dos Prêmios de 14 de agosto
de 1834; (Discours prononcé à la distribuition des prix du 14 août 1834) - 1834
x. Programa dos Estudos segundo o Plano de Instrução de H.L.D. Rivail;
(Programme des études selon le plan d'instrution de H.L.D. Rivail) - 1838
xi. Manual dos Exames para os Certificados de Capacidade; (Manuel des examens
pour le brevets de capacité) - 1846
xii. Soluções dos Exercícios e Problemas do Tratado Completo de Aritmética;
(Solution des exercices et problèmes du "Traité complet d'arithmétique" de
H.L.D. Rivail) - 1847
xiii. Projeto de Reforma referente aos Exames e aos Educandários para Mocinhas;
(Projet de réforme concernant les examens et le maisons d'éducation des jeunes
personnes) - 1847
108 Em alemão, com tradução literal dos dois primeiros e o texto francês e alemão do terceiro, com notas acerca
das raízes das palavras, para uso nas casas de educação.
136
xiv. Catecismo Gramatical da Língua Francesa; (Catéchisme grammatical de la
langue française) - 1848
xv. Gramática Normal dos Exames; (Grammaire normale des examens) - 1849
xvi. Ditados Normais dos Exames; (Dictées normale des examens) - 1849
xvii. Ditados da Primeira e da Segunda Idade; (Dictées du premier et du second âge)
- 1850
xviii. Ditados da Primeira e da Segunda Idade, volume dois; (Dictées du premier et du
second âge) - 1850
xix. Curso de Cálculo Mental; (Cours de calcul de tête) - Ano não identificado pelos
biógrafos, mas afirmam que pode ter sido publicada antes de 1845
xx. Programa dos Cursos Usuais de Física, Química, Astronomia e Fisiologia;
(Progremme des cours usuels de physique, de chimie, d'astronomie) - Segundo
os biógrafos, foram encontradas referências109 à obra, mas não foram
encontrados exemplares.
xxi. Programa dos Estudos de Instrução Primária; (Programme des études
d'instruction primaire) - Segundo os biógrafos, foram encontradas referências110
à obra, mas não foram encontrados exemplares.
xxii. Tratado de Aritmética (Traité d'arithmétique) - 1847
É interessante notar que Rivail assinava suas obras, mas destacava o fato de ser discípulo
de Pestalozzi e de seguir o seu método, conforme demonstra a contracapa de um de seus livros
na imagem abaixo:
109 Citado por J.-M. Queránd no tomo VI de La Littérature Française Contemporaine e no tomo XII de La France
Littéraire. 110 Citado por J.-M. Queránd no tomo VI de La Littérature Française Contemporaine e no tomo XII de La France
Littéraire.
137
138
ANEXOS C
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO
Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL,
considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as
únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em
declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta
declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem
cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder legislativo e do Poder
executivo, a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações
dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à
conservação da Constituição e à felicidade geral.
Por consequência, a ASSEMBLEIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e
sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:
Artigo 1º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais
só podem fundar-se na utilidade comum.
Artigo 2º - O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão.
Artigo 3º - O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma
corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não emane expressamente.
Artigo 4º - A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem:
assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que
asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas
podem ser determinados pela Lei.
Artigo 5º - A Lei não proíbe senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que
não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
Artigo 6º - A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de
concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser
a mesma para todos, quer se destine a proteger quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a
seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus
talentos.
139
Artigo 7º - Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados
pela Lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam
ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser castigados; mas qualquer cidadão convocado
ou detido em virtude da Lei deve obedecer imediatamente, senão torna-se culpado de
resistência.
Artigo 8º - A Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e
ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito
e legalmente aplicada.
Artigo 9º - Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar
indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário a guarda da sua pessoa, deverá ser
severamente reprimido pela Lei.
Artigo 10º - Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões
religiosas, contando que a manifestação delas não perturbe a ordem pública estabelecida pela
Lei.
Artigo 11º - A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir
livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.
Artigo 12º - A garantia dos direitos do Homem e do Cidadão carece de uma força
pública; esta força é, pois, instituída para vantagem de todos, e não para utilidade particular
daqueles a quem é confiada.
Artigo 13º - Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração, é
indispensável uma contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos de acordo com
as suas possibilidades.
Artigo 14º - Todos os cidadãos têm o direito de verificar, por si ou pelos seus
representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o
seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.
Artigo 15º - A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua
administração.
Artigo 16º - Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos,
nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
Artigo 17º - Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode
ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir
evidentemente e sob condição de justa e prévia indemnização.
CONSEIL CONSTITUTIONNEL DA FRANÇA. Déclaration des Droits de l'Homme
140
et du Citoyen de 1789. Disponível em: <https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-
constitutionnalite/declaration-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-1789>. Acesso em: 04
out. 2018. (site oficial)