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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP
Letícia Felix da Silva
Comunicação nas redes de criação: a cor em processo nas cartas de Van Gogh.
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo 2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP
Letícia Felix da Silva
Comunicação nas redes de criação: a cor em processo nas cartas de Van Gogh.
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profª. Drª. Cecília Almeida Salles.
São Paulo
2011
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais por terem me apoiado incondicionalmente mesmo
quando não entendiam muito bem o que ou porque eu estava fazendo, e por toda a
ajuda oferecida.
À Cecília Salles por ter acreditado no meu projeto e me tranqüilizado com
carinho nos momentos de maior agonia.
Aos meus amigos que tiveram paciência para me ouvir e para dialogar sobre
o meu projeto. À Camila, Patrícia e Vanessa, pelos gestos de carinho, atenção e
energia positiva. Em especial ao Henrique pela contribuição com as ilustrações, ao
Carlos por me ajudar a organizar as palavras e ao Flávio pelas contribuições
idiomáticas.
Ao grupo de pesquisas em crítica genética da PUC-SP, pelas sugestões
preciosas, inclusive, o nome deste trabalho.
À CAPES pela ajuda financeira.
Sobretudo agradeço a Deus, por ter me concedido esta oportunidade, por ter
sempre me guiado e me amparado.
RESUMO
A proposta desta pesquisa é analisar as cartas de Van Gogh como um ato
comunicativo necessário ao artista ao longo do percurso criativo. Partindo da
abordagem da criação como rede, as cartas são documentos de processo, que
registram vestígios do caminho percorrido pelo artista em seu processo de criação.
O corpus da pesquisa é o total de 819 cartas de Van Gogh, escritas no período de
1872 a 1890, disponíveis no site da Fundação Van Gogh, que apresenta a
transcrição de todas os documentos originais, as traduções para o inglês e o fac-
símiles. Sob o ponto de vista metodológico foi dado um tratamento empírico aos
documentos a partir de uma leitura crítica, estabelecendo relações entre as questões
significativas do projeto do artista. As recorrências nos levaram a dois aspectos mais
relevantes: a necessidade de interação comunicacional e a importância da cor em
seu trajeto artístico. Deste modo, estes se tornaram os recortes da pesquisa,
buscando compreender as cartas como meio comunicativo e o modo como a cor é
construída ao longo do percurso do artista. Essa construção é discutida não apenas
sob o viés da materialidade e da manipulação de tintas, mas também sob o aspecto
subjetivo de sua busca pela cor.
Este trabalho está fundamentado na teoria de processo como rede em construção,
proposta por Cecília Salles em diálogo com a semiótica Peirciana e com o conceito
de rede de Pierre Musso. São também estabelecidas aproximações com o conceito
de rizoma de Deleuze e Guattari. Os aspectos comunicativos das cartas são
abordados nas perspectivas de Flusser e Foucault.
Palavras chave: Comunicação, processo de criação, redes da criação, cartas, cor,
Van Gogh.
ABSTRACT
The purpose of this research is to analyze Van Gogh's letters as a communicative act
necessary to the artist along his creative path. Starting from the approach of creation
as network, the letters are document of process, which record traces of the way
traveled by the artist in his creative process.
The body of the research is a total of 819 Van Gogh letters, written in between 1872
and 1890, available on Van Gogh's Foundation site, which presents the transcript of
all the original documents, translations into English and the fac-símiles. Over the
methodological point of view, it was given an empirical treatment to the documents
from a critical reading, establishing relationships among the significant issues of the
project by the artist. The recurrences led us to the two most relevant aspects: the
need for communicational interaction and the importance of color in his artistic path.
Thus, these became the research cut, seeking to understand the letters as a
communicative way and the way as the color is built along the artist route. This
construction is discussed not just over the bias of the materiality and the paint
manipulation, but as well over the subjective aspect of his color quest.
This work is based on the process theory as construction network, proposed by
Salles Cecilia in dialog with the semiotic Peirciana and with Pierre Musso's network
conception. There are as well established approaches with Deleuze and Guattari's
rizoma concept. The communicative aspects of the letters are approached on Flusser
and Foucault's perspectives.
Keywords: Communication, Creation process, Creation Network, Letters, Color, Van
Gogh.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
1 – Millet – O semeador, 1850. Museu de Boston. Óleo sobre tela...................
2 – Van Gogh – O semeador, 1882...................................................................
3 – Van Gogh - O semeador, segundo Millet, 1889...........................................
4 – Van Gogh - O semeador, 1888....................................................................
5 - Van Gogh - O semeador. 1888.....................................................................
6 – Fragmento da carta nº 777...........................................................................
7 – Exemplos de cartas de Van Gogh...............................................................
8 – Escala de cores quentes e frias...................................................................
9 – Exemplo de Matiz.........................................................................................
10 – Exemplo de Valor.......................................................................................
11 – Exemplo de Croma.....................................................................................
12 – Prismas invertidos......................................................................................
13 – Círculo cromático criado por Goethe.........................................................
14 – Wassily Kandinsky - Rosa decisivo, 1932. G.............................................
15 – Exemplo de relação entre cores e formas.................................................
16 – Círculo Cromático de Itten..........................................................................
17 – Círculo Cromático em três dimensões.......................................................
18 – Estrela Cromática.......................................................................................
19 – Josef Albes - Homenagem ao quadrado: Com raios, 1959 e Homenagem ao quadrado: Fala suave, 1969....................................................
20 – Exemplo de ilusão cromática – Influência da cor de fundo........................
21 – Georges Seurat - Tarde de domingo na ilha de Grande Jatte, 1884.........
22 – Triângulos cromáticos................................................................................
23 – Círculo Cromático baseado no arco-íris.....................................................
24 – Releitura do círculo cromático de Klee......................................................
25 – Natureza morta com bíblia, 1885...............................................................
26 - Sorrow, 1882. Parte da carta nº 216, de 10/04/1882..................................
27 - Van Gogh - Tecelão, visto da esquerda, com roda de fiar.........................
28 - Van Gogh - Tecelão, visto da direita. 1884.................................................
29 - Van Gogh - Tecelão organizando fios, 1884..............................................
30 - Van Gogh – Cabeça de velha camponesa com touca branca, 1884..........
31 - Van Gogh – Cabeça de camponesa com touca branca, 1884...................
32 - Van Gogh – Cabeça de camponês com cachimbo, 1885...........................
33 – Van Gogh – Os comedores de batata, 1885..............................................
34 - Desenho na carta nº 148 de 13, 15 ou 16/11/1878....................................
35 - Desenho na carta nº 172............................................................................
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36 - Nuvens de tempestade sobre campo, 1881...............................................
37 – Desenho na carta nº 173............................................................................
38 - Van Gogh - Escavador, 1881.....................................................................
39 - Desenho na carta nº 200............................................................................
40 – Van Gogh - Campos perto de Schenkweg, 1882.......................................
41 - Desenho na carta número 251...................................................................
42 – Van Gogh - Telhados, 1882.......................................................................
43 - Van Gogh – Avenida de álamos no outono, 1884......................................
44 - Detalhe da carta número 253.....................................................................
45 - Van Gogh – Paisagem de outono com quatro árvores, 1885.....................
46 - Van Gogh – Vista dos telhados em Paris, 1886.........................................
47 - Van Gogh – Interior de restaurante, 1887..................................................
49 - Van Gogh - A ponte sob a chuva (depois de Hiroshige), 1887...................
50 - Van Gogh – A cortesã (depois de Eisen), 1887..........................................
51 - Van Gogh – Retrato de Pére Tanguy, 1887...............................................
52 - Van Gogh – Jarra com gladíolos vermelhos, 1886.....................................
53 - Van Gogh – Jarra com cravos e outras flores, 1886..................................
54 - Van Gogh – Jarra com Malvas-Rosas, 1886..............................................
55 - Pessegueiro rosa em flor, 1888..................................................................
56 - Pereira em flor, 1888...................................................................................
57 - O pomar branco, 1888...............................................................................
58 - Van Gogh – Paisagem marítima em Saintes-Maries, 1888........................
59 - Van Gogh – O café noturno na praça Lamartine em Arles, 1888...............
60 - Desenho na carta nº 691...........................................................................
61 - Van Gogh – Noite estrelada sobre o Ródano, 1888...................................
62 - Van Gogh – A noite estrelada, 1889...........................................................
63 - Van Gogh – Lembrança do jardim de Etten, 1888......................................
64 - Van Gogh - A casa amarela, 1888..............................................................
65 - Van Gogh – Ciprestes com duas figuras femininas, 1890..........................
66 - Van Gogh - Mulheres colhendo azeitonas, 1889........................................
67 - Van Gogh - Mulheres colhendo azeitonas, 1889........................................
68 - Van Gogh - Mulheres colhendo azeitonas, 1889........................................
69 - Retrato de Eugene Bock (O poeta), 1888...................................................
70 - Van Gogh – A cadeira de Vincent com o seu cachimbo, 1888...................
71 - Van Gogh – A cadeira de braços de Paul Gauguin, 1888..........................
72 - Van Gogh - Retrato do Dr. Gachet, 1890...................................................
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................
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CAPÍTULO 1 – ASPECTOS COMUNICATIVOS DA CRIAÇÃO............. 16
1.1 – Processo de criação ............................................................. 16
1.2 – Processo de criação como rizoma ....................................... 25
1.3 – Cartas: Documentos de processo ........................................ 27
1.4 – Aspectos comunicativos das cartas .....................................
30
CAPÍTULO 2 – A COR NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA................................. 36
2.1 - Cor ........................................................................................ 37
2.1.1 – Classificação e características da cor ...................... 39
2.1.2 – Pigmento ................................................................... 41
2.2 – Um esboço da teoria da cor ................................................. 44
2.3 – Estudo da cor na Bauhaus . ................................................. 52
2.3.1 – Kandinsky ................................................................. 53
2.3.2 – Itten ........................................................................... 57
2.3.3 – Albers......................................................................... 62
2.3.4 – Klee ...........................................................................
66
CAPÍTULO 3 – A BUSCA DE VAN GOGH PELA COR.......................... 73
3.1 – Van Gogh: Um retrato linear em preto e branco .................. 74
3.2 – A luz do norte ....................................................................... 77
3.2.1 – Religião e arte............................................................ 79
3.2.2 – Os amores ................................................................ 81
3.2.3 – Sociedade ................................................................. 84
3.2.4 – Olhar de artista: percepção e descrição ................... 88
3.2.5 – Estudos – Técnicas e materiais ............ ................... 90
3.2.6 – Pesquisas e reflexões sobre arte e teoria da cor...... 97
3.2.7 – Descoberta sensível da cor ...................................... 99
3.3 – A luz da cidade luz................................................................ 101
3.3.1 – A ida para Paris......................................................... 102
3.3.2 – O impressionismo...................................................... 104
3.3.3 – A conquista da pincelada .......................................... 106
3.3.4 – A cor dos japoneses.................................................. 108
3.3.5 – Em busca da cor ....................................................... 111
3.4 – A luz do sul ........................................................................... 113
3.4.1 – Encontro com a cor .................................................. 114
3.4.2 – Cores noturnas.. ....................................................... 118
3.4.3 – Casa amarela: prelúdio da loucura .......................... 122
3.4.4 – Recursos criativos: experimentações e restrições ... 126
3.4.5 – Percepção e expressão ............................................ 131
3.4.6 – Arte e loucura: o fim ..................................................
135
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................
141
REFERÊNCIAS........................................................................................
146
ANEXOS................................................................................................... 150
Anexo 1 – Cronologia .................................................................... 151
Anexo 2 – Variação cromática ...................................................... 152
Anexo 3 – Mapa do projeto poético .............................................. 153
11
IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução
12
INTRODUÇÃO
Meu primeiro contato com Van Gogh ocorreu em 1998, durante a XXIV
Bienal de arte de São Paulo, que expôs apenas alguns trabalhos do artista.
Contudo, o que tinha diante dos olhos foi o suficiente para despertar o desejo
de conhecê-lo melhor. Observando a exposição fiquei intrigada como as obras
pareciam tão distintas devido ao uso da cor. As telas iam do escuro mais
profundo aos amarelos vibrantes. Essa diversificação no uso das cores jamais
saiu de minha lembrança.
Anos depois, e já conhecendo um pouco do artista, chegou às minhas
mãos um livro de bolso das cartas de Van Gogh ao irmão Théo. E quão
apaixonantes eram essas cartas! Pouco tempo depois, cursando uma
especialização em teorias da comunicação e estudando a comunicação não
verbal, me propus a analisar a Noite estrelada de Van Gogh, dentre outras
obras. Nessa empreitada percebi que não era possível compreender uma obra
isoladamente. No entanto, era preciso mais do que contextualizá-la num
momento histórico ou da vida do artista, era preciso conhecer o percurso do
artista até a produção daquela obra, refazer seus passos em busca de um
pouco de luz sobre o processo criativo.
Esta vontade de melhor compreender a obra de arte me conduziu até o
conceito de Processo de criação, conforme proposto por Cecília Salles. Foi a
partir da minha experiência pessoal de deslumbramento diante das cores de
Van Gogh que aos poucos surgiu a idéia de tentar compreender a variação
cromática do artista sob o viés da crítica genética.
Este trabalho busca através dos índices do processo de criação iluminar
a compreensão do modo como o artista vê e se relaciona com a cor. As cartas
trocadas com seu irmão por um período de quase vinte anos fornecem os
índices necessários para que possamos identificar recorrências e tentar
vislumbrar o caminho percorrido pelo artista. Conforme pontua Salles (2004, p.
17): “Não temos, portanto, o processo de criação em mãos, mas apenas alguns
índices desse processo. São vestígios vistos como testemunho material de
uma criação em processo”.
13
No primeiro capítulo deste trabalho veremos de forma mais abrangente
o que é a crítica genética, como surgiu e o conceito de processo de criação em
rede proposto por Salles e fundamentado na semiótica Peirciana e no conceito
de rede de Musso, bem como uma proposta de diálogo com o conceito de
rizoma de Deleuze e Guattari. Ademais, este capítulo compreende uma análise
dos aspectos comunicativos das cartas à luz de Foucault e Flusser.
Durante o desenvolvimento desta pesquisa algumas necessidades foram
se delineando. Não era possível analisar as cartas de Van Gogh com foco na
cor sem conhecê-la um pouco mais. Deste modo, no segundo capítulo,
trouxemos uma breve pesquisa sobre as teorias da cor, que nos servirá de
base para entender as reflexões sobre cor contidas nas cartas.
Não obstante a pesquisa sobre cor e pigmentos, ainda sentíamos a
necessidade compreender de que forma os artistas lidam com o aprendizado
da manipulação da cor. Buscamos esta compreensão na Bauhaus, estudando
de que maneira os mestres – que também eram artistas – conduziam o ensino
das teorias da cor e, também, das habilidades práticas. Embora a Bauhaus
tenha surgido décadas depois da morte de Van Gogh, sua metodologia do
ensino das artes também serviu de base para que pudéssemos tentar entender
um pouco melhor o modo dos artistas lidarem com a cor.
Os capítulos I e II formam as bases conceituais de que necessitamos
para adentrar na leitura crítica das cartas, como faremos no capítulo III.
Partindo do ponto de vista da crítica genética, as cartas de Van Gogh
compõem os documentos que registram o seu processo criativo. No terceiro
capítulo buscamos analisar estas cartas com um olhar crítico para as relações
com a cor. Assim, através da observação das recorrências e estabelecendo
diálogo com as obras, dividimos o modo de o artista ver e se relacionar com a
cor em três grupos. O primeiro chamamos Luz do norte, pois abrange o período
em que o artista viveu no norte europeu e corresponde ao período em dá os
primeiros passos como artista e é também o mais escuro de sua obra. O
segundo é o período parisiense da descoberta da cor, que chamamos Luz da
cidade luz. Por fim, o período de sua busca pela cor e luz ideais, que
denominamos Luz do sul.
14
Estes três grupos são delimitados por grandes e substanciais mudanças
que observamos em sua obra e na abordagem do assunto “cor” em seus
documentos de processo. Conforme veremos, dentro destes três grandes
grupos, trazemos alguns aspectos marcantes da vida do artista que
acreditamos ser parte integrante do processo criativo e apontamentos de
recorrências que identificamos através das cartas.
Seguindo o percurso desta análise, buscamos compreender de que
forma se deu o processo de desenvolvimento da relação do artista com a cor
em seu projeto poético.
15
Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1 Aspectos comunicativos da criaçãoAspectos comunicativos da criaçãoAspectos comunicativos da criaçãoAspectos comunicativos da criação
16
1. ASPECTOS COMUNICATIVOS DA CRIAÇÃO
A obra não é, mas vai se tornando, ao longo de um processo que
envolve uma rede complexa de acontecimentos
Cecília Salles1
Para que possamos cumprir nossa proposta de analisar os documentos
de processo de Van Gogh com foco em sua relação com a cor, é preciso
percorrer um caminho teórico que irá munir nosso olhar com as bases
fundamentais para a leitura crítica das cartas. É preciso que compreendamos
as cartas em si, antes de seu conteúdo.
Neste primeiro capítulo, portanto, apresentamos o conceito de processo
de criação que norteará o desenvolvimento desta pesquisa, bem como
adentraremos na reflexão dos aspectos comunicativos das cartas que
perfazem o corpus deste trabalho.
1.1 Processo de Criação
Diante de uma obra de arte que se nos revela com suas formas e cores,
a crítica genética vem propor outra possibilidade de aproximação – uma
abordagem capaz de discutir alguns aspectos sobre o modo como foi
construída, através da leitura crítica dos documentos que registraram o
processo de sua criação.
A crítica genética busca conhecer, justamente, a criação artística, a obra
por dentro, todas as camadas que a constituem, o que há por detrás daquilo
que foi entregue ao público. Segundo Cecília Salles (2008, p. 34): “Essa crítica
refaz, assim, os diferentes momentos do percurso construtivo da obra, com a
intenção de reconstituí-lo e compreendê-lo”.
1 SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: Fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. São Paulo: Ed. Educ, 2008, p. 25.
17
A crítica genética surgiu na França, no fervente ano de 1968, quando a
Biblioteca Nacional da França recebeu manuscritos do poeta alemão Heinrich
Heine que precisavam ser organizados e analisados. Pouco tempo depois
outros grupos passaram a estudar outros autores e acabaram todos
enfrentando problemas metodológicos para o desenvolvimento da pesquisa
com os manuscritos. Então surge um laboratório próprio para o estudo desses
manuscritos, o ITEM – Institut des textes et manuscrits modernes.
No Brasil, a crítica genética chegou pelas mãos de Phillipe Willemart,
que organizou o I Colóquio de Crítica Textual: O Manuscrito Moderno e as
Edições na Universidade de São Paulo.
Apesar de, inicialmente, a crítica genética estar voltada somente a
manuscritos literários, sempre foi inerente a possibilidade de ir além daqueles
limites e explorar a criação em outras manifestações artísticas. Assim, o campo
de estudos da crítica genética foi-se expandindo e abarcando o processo de
criação em diversos meios de expressão.
O ato criador sempre afetou sensivelmente o receptor, criando uma
espécie de fascínio que reporta ao mito do artista gênio que cria quase sob um
impulso divino. A crítica genética vem revelar que a obra não foi criada num
momento de incrível inspiração – ela é fruto de um processo de criação que,
muitas vezes, desenrolou-se por um longo período, com estudos, esboços,
erros e acertos, processo esse que exige, do artista, disciplina e muita
dedicação. Existe uma vontade de fazer que é permeada por decepções,
satisfações, medos, inseguranças, ansiedade. Todas essas ações e
sentimentos nos afastam do mito do gênio, mostrando-nos que, por detrás da
obra, há muito esforço e determinação. Portanto, o trabalho do artista não se
dá somente no campo do sensível como se imagina devido ao mito em torno
do artista gênio, mas depende, também, do intelecto, e ainda fazem parte deste
processo tudo o que o cerca e suas escolhas conscientes e inconscientes.
O estudo do processo de criação de um artista se dá na coleta e análise
dos vestígios deixados – por menores que sejam – em documentos. O objeto
de estudo do crítico genético é, portanto, o documento de processo. Esses
documentos contêm os registros do artista acerca de seu fazer, podendo ser
esboços, ensaios, maquetes, cartas ou anotações.
18
O crítico não tem acesso direto ao pensamento criador, entretanto, os
documentos são índices desse processo. “Cada uma das pegadas deixadas
pelo artista fornece ao crítico informações diversas sobre a criação e lança
luzes sobre momentos diferentes da criação” (Salles, 2007, p. 18).
Neste trabalho, propomos a análise da correspondência de Van Gogh,
com foco crítico nas relações do artista com a cor. As cartas de Van Gogh,
documentos de processo, são vestígios do caminho percorrido pelo artista em
seu fazer artístico, interessando-nos particularmente seus escritos sobre cor –
experimentações, pesquisas, indagações, anseios – permitindo-nos
estabelecer relações que nos levem ao ato criador.
Para Cecília Salles, o processo criativo se dá em rede, em permanente
movimento, ou seja, associando o conceito de rede e aquele de semiose
(semiótica Peirciana). Para Peirce, a ação dos signos é chamada de semiose,
que se caracteriza por contínuas interpretações. A semiose pode, portanto, ser
descrita como uma série de interpretantes sucessivos: a interpretação de um
signo sempre será outro signo e assim sucessivamente.
Devido ao constante movimento do signo, a rede da criação não pode
ser vista como linear ou fechada, está sempre integrada e em construção, pois
um signo sempre está ligado a outro e em transformação. Conforme esclarece
Santaella (2004, p. 9):
Todo pensamento se processa por meio de signos. Qualquer pensamento é a continuação de um outro, para continuar em outro. Pensamento é diálogo. Semiose ou autogeração é, assim, também sinônimo de pensamento, inteligência, mente, crescimento, aprendizagem e vida.
Toda mensagem emitida remete a signos e a semiótica é a linguagem
dos signos, é a ciência de todas as linguagens, objetivando analisar como se
estrutura a linguagem dos fenômenos – tudo o que se apresenta à mente e a
percepção.
A semiótica nos permite compreender a que os signos se referem, o que
transmitem, como funcionam, como são emitidos e como são produzidos (o
que nos interessa, especialmente, nesse estudo). A abordagem semiótica
19
permite, também, que compreendamos o que as cadeias signicas são capazes
de provocar no receptor.
A partir do conceito de semiose, o crítico genético poderá pensar o
processo de criação como um processo contínuo de ação do signo, em
constante movimento. Nas palavras de Salles (2002, p. 185):
A semiose, ou ação do signo, é descrita como um movimento falível com tendência, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para o mecanismo de raciocínio responsável pela introdução de idéias novas. Um processo onde a regressão e a progressão são infinitas.
Para sustentar a teoria do processo de criação em rede, além da teoria
Peirciana, Salles dialoga com Pierre Musso, que conceitua a rede como “uma
estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e
cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento”. (Musso, 2004, p.
31).
Musso descreve três abordagens de rede que foram o ponto de partida
para a sua construção do conceito de rede:
Michel Serres aborda a noção de rede de maneira negativa, por diferença da linearidade da seqüência dialética; Henri Atlan constata que a rede é um ser intermediário entre a racionalidade formalizada do cristal e o caos da fumaça; e Anne Cauquelin toma o caráter intermediário da rede como a própria natureza desse conceito produtor de passagem, de mediação e de ligação. O primeiro autor define a rede contra uma racionalidade linear, o segundo a define como intermediário entre uma racionalidade formalizada e a incerteza do caos, e a terceira define o conceito de rede como uma ferramenta de produção da passagem, entre ordem e desordem ou entre várias ordens diferentes. (Musso, 2004, p. 31).
Nessa perspectiva, Musso estabelece que a rede pode ser
compreendida considerando-se que é composta por elementos em constante
interação; é uma estrutura dinâmica e instável no tempo; e sua estrutura segue
determinadas regras de funcionamento.
Assim, para Musso, a rede é composta de elementos em interação
responsáveis por formar os picos ou nós da rede e, devido à constante
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interação, é um conjunto instável e dinâmico. A rede é um organismo onde tudo
é vínculo, num estado permanente de transição.
De acordo com Cauquelin (2005a, p. 59), as conexões da rede podem
ser comparadas às sinapses do nosso sistema de neurônios, haja vista tratar-
se de um sistema composto por ligações que podem servir de partida para
outras redes, sempre interconectadas, o que possibilita à rede um processo de
contínua extensão.
Salles também dialoga com os conceitos de interação e cultura de
Edgard Morin defendendo que o paradigma da complexidade – um ambiente
de interações, laços e relações – “se opõe claramente àquele apoiado em
segmentações e disjunções” (2008, p. 24).
Para compreendermos a essência do conceito de complexidade de
Morin, apresentamos, abaixo, uma citação que nos permite pensar processo de
criação como cognição:
Todo acontecimento cognitivo necessita da conjunção de processos energéticos, elétricos, químicos, fisiológicos, cerebrais, existenciais, psicológicos, culturais, lingüísticos, lógicos, ideais, individuais, coletivos, pessoais, transpessoais e impessoais, que se encaixam uns nos outros. O conhecimento é, portanto, um fenômeno multidimensional, de maneira inseparável, simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural e social. (Morin, 2005, p. 18)
Sobre a cultura, Morin nos diz que ela está sempre aberta para o
conteúdo do mundo exterior, e as informações migram entre as culturas. As
idéias se movem, mudam e o conhecimento se transforma, evolui, progride.
Todo conhecimento inclusive o científico, está enraizado e dependente de um
contexto sócio-histórico-cultural. Contudo, não é possível detectar quais são
essas inscrições e dependências, bem como não é possível saber se há uma
certa autonomia e emancipação do conhecimento e da idéia.
Para Morin, conhecimento, cultura e sociedade estão intimamente
ligados. E as convenções sociais geram nas pessoas de uma sociedade o que
o autor chama de imprinting cultural: tabus, normas, preconceitos, interdições.
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É interessante dar atenção ao fato de que todos esses pontos estão
presentes nas redes do processo de criação dos artistas, segundo Salles
(2008, p. 32):
Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações do artista com a cultura, na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca.
A rede da criação é composta por tudo o que cerca o artista, pontos
interligados e muitas vezes se completando. Constantemente novos pontos são
agregados a rede, tornando-a mais complexa.
Estes pontos da rede são aspectos do processo, como a percepção que
o artista tem das obras, suas relações com a matéria-prima ou as relações
culturais que mantém. Por exemplo, a relação do artista com a cor é um desses
pontos, logo, é um aspecto do processo de criação.
Em Redes da criação – Construção da obra de arte, Salles destaca
algumas características da rede como dinamicidade, inacabamento, interação,
transformação, continuidade.
O princípio de dinamicidade proposto por Salles é caracterizado pela
flexibilidade, englobando as alterações efetuadas pelo artista. Este princípio
também compreende as séries de rascunhos e esboços; além de apropriações
que o artista faz do ambiente que o cerca que de alguma forma acabam
aparecendo na obra em construção. A memória do artista também deve ser
entendida como parte criadora, pois não se trata, apenas, de um dispositivo de
armazenamento de lembranças, mas de informações em um processo
dinâmico de interações (Salles, 2008, p. 19).
Nesse horizonte, dentre tantas outras possibilidades, podemos
considerar, como exemplo, as cópias das obras de Millet, nas quais Van Gogh
trabalhou em diferentes momentos da sua vida. Como autodidata, Van Gogh
iniciou seu aprendizado de arte sozinho, através de cópias das obras dos
artistas que admirava, em especial Millet. A figura do semeador, baseado em
Millet, será um tema constante em sua obra (Coli, 2006, p. 77).
22
1 – Millet – O semeador, 1850. Museu de Boston. Óleo sobre tela. 2– Van Gogh – O semeador, 1882. P. e N. de Bouer Foundation.Lápis, pincel e tinta
indiana.
Especialmente em 1888, Van Gogh retoma o tema do semeador,
período em que aprende a pintar a partir da memória e da imaginação,
incentivado por Gauguin, como veremos mais detalhadamente no terceiro
capítulo deste trabalho. Na carta nº 680, de 11/09/1888, Van Gogh comenta
com o irmão que a idéia do semeador continua a lhe assombrar.
Em 1889, já internado em Saint-Rèmy, Van Gogh inicia uma série de
cópias dos mestres que admirava e, novamente, retoma o semeador. Sobre
essas cópias, comenta com Théo, na carta nº 816, de 03/11/1889, que he
parece mais que está traduzindo a obra para uma outra linguagem do que
simplesmente copiando. Na carta nº 805, de 20/09/1889, diz que escolhe uma
gravura em preto e branco como motivo e depois improvisa as cores, tentando
se recordar das pinturas, da harmonia de cores, porém, sob a sua própria
interpretação.
23
3 – Van Gogh, O semeador, segundo Millet, 1889. Coleção Stavros S. Niarchos. Óleo sobre tela.
Van Gogh também se apropria da figura do semeador em outras
composições:
4– Van Gogh, O semeador, 1888. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela. 5- Van Gogh, O semeador. 1888. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela
É a dinamicidade que leva ao conceito de inacabamento, pois a
sistemática das interações é contínua. De acordo com Salles (2008, p. 21), “O
objeto dito acabado pertence, portanto, a um processo inacabado”.
A interação é explicada por Salles (2008, p. 24) como os nós que
compõem a rede, numa condição de influência mútua, em que um elemento
age sobre o outro ao mesmo tempo em que é influenciado pela ação de outros
elementos.
24
A dinamicidade do processo se dá através de tendências e acasos,
estabelecendo interações que, muitas vezes, direcionam o artista por
determinados rumos. Essas questões podem ser observadas ao longo dos
processos de criação de uma maneira geral. Tomando nosso objeto de
estudos, vemos Van Gogh chegando em Paris com uma noção ainda vaga do
que seria o trabalho dos impressionistas, mas conhecê-lo a fundo acabou por
determinar um novo rumo ao seu fazer artístico: a descoberta da técnica e do
uso da cor impressionista que estabeleceram novas tendências e novos
objetivos. Neste caso, as interações motivadas pela dinamicidade do percurso
criador do artista permitiram uma transformação em seu modo de perceber e
utilizar as cores.
Salles (2008, p. 34) esclarece que as transformações podem ser
observadas “na percepção do artista, nas estratégias da memória, nos
procedimentos artísticos agindo sobre seus materiais e na força da
imaginação”.
Não seria possível pensar num processo dinâmico de criação artística
sem considerarmos um princípio de continuidade, pois, como vimos, o percurso
da criação não tem um ponto inicial ou final, estando sempre em movimento e
sendo constantemente renovado.
O processo de criação em rede é um “ambiente dos inúmeros e
infindáveis cortes, substituições, adições ou deslocamentos” (Salles, 2008, p.
19), que evidencia o estabelecimento de relações e vínculos que devem ser
observados pelo crítico de processo. Assim, o estudo de um artista para a
criação de uma obra é um processo dinâmico, não apenas caminhando rumo
ao acabamento, mas com retrocessos, pequenos avanços, alterações e
abandonos.
Sobre o ato de criar, Van Gogh escreveu em carta para o irmão (2007, p.
159):
Muitas vezes ainda quebro a cabeça para começar, mas assim mesmo as cores se sucedem como que sozinhas, e ao tomar uma cor como ponto de partida, me vem claramente à cabeça o que deduzir e como chegar a dar-lhe vida.
25
1.2 Processo de criação como rizoma
Nesse horizonte do processo de criação em rede, amplo e aberto a
interações e expansões, partindo do princípio da conexão, Salles (2008, p. 24)
sugere que seria interessante um diálogo com o conceito de rizoma de Gilles
Deleuze e Félix Guattari. Instigados por essa proposta, buscamos relações
entre as teorias e trouxemos alguns apontamentos acerca da possibilidade de
pensarmos processo de criação como rizoma.
O conceito de rizoma está apresentado no primeiro livro da obra Mil
Platôs, no capítulo intitulado “Introdução: Rizoma”. Contudo, essa primeira
parte foi publicada separadamente alguns anos antes e no livro Mil Platôs
Deleuze e Guattari retomam a idéia.
O termo rizoma vem da botânica e denomina um tipo de caule, raiz ou
ramo de algumas plantas verdes que cresce horizontalmente, normalmente
subterrâneo, mas podendo ter erupções aéreas.
Segundo os autores a imagem da árvore ou da raiz ligada à reflexão
clássica não compreende a multiplicidade, pois necessita de uma forte unidade
principal, tornando-se estática, binária, hierarquizada. Surge aí a necessidade
de um modelo que fuja do tradicional modelo da árvore.
O rizoma é um sistema aberto que propõe um novo modo de se abordar
a cognição, pois “não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio,
entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (2000, p. 37). O rizoma se constitui e
reconstitui ininterruptamente, não tendo configurações ou modelos a seguir.
Segundo os autores, tal sistema pode ser chamado de rizoma, pois (2000, p.
32):
Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. (...) Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidade.
26
A fim de tornar o modelo mais claro, os autores elencaram seis
princípios característicos do rizoma sendo eles: conexão, heterogeneidade,
multiplicidade, ruptura a-significante, mapa e decalque.
Colocando de forma sucinta – um pensamento um tanto quanto
imbricado – para Deleuze e Guattari o rizoma não deve ser estático ou ter um
ponto fixo, deve estar sempre se conectando a qualquer outro ponto de
qualquer natureza (cadeias biológicas, econômicas, políticas remetendo às
artes, às ciências, às lutas sociais). Num rizoma não há formas ou conceitos
prévios; ele é aberto e as conexões se dão todo o tempo de forma
heterogênea.
O rizoma não tem pontos, mas linhas. As multiplicidades são planas,
preenchem e ocupam todas as suas dimensões. Multiplicidade não é sinônimo
de múltiplo e não está relacionada a multiplicação de elementos. “As
multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem
às outras” (Deleuze e Guattari, 2000, p. 17).
Visto que o rizoma está sempre se conectando e se transformando, ele
também pode ser rompido e então retomado por alguma de suas linhas em
qualquer ponto, o que permite que linhas fujam e retornem ou o reorganizem.
Por fim, os autores propõem que o rizoma é cartográfico, pois faz mapa
e não decalque. O mapa constrói e o decalque, todavia, reproduz. O mapa
permite a conexão dos campos, contribui para a abertura do rizoma, se
expande por todas as dimensões, modifica-se, adapta-se e se transforma
constantemente.
Segundo os autores o decalque aprisiona e cristaliza um momento do
mapa, como numa foto. “O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma são
os impasses, bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação”
(2000, p. 23).
Poderíamos dizer que o momento da criação, a seqüência de esboços e
estudos elaborados pelo artista, o processo de criação em si é o mapa e o
registro cristalizado em uma pagina é um decalque.
27
Com esse exemplo fica mais fácil compreender porque mapa e decalque
se completam. Se pensarmos esse conceito relacionando-o ao processo de
criação, podemos dizer que o momento da criação, o momento em que os
pensamentos se articulam e geram uma idéia ou desembocam no ato criador –
mapa – não pode ser apreendido, se não através dos documentos que
registram momentos desse processo – decalques.
Poderíamos dizer, portanto, que o artista faz mapas, mas o pesquisador,
o crítico de processo, tem acesso aos decalques. No entanto, no momento em
que se debruça sobre esses decalques e tenta resgatar o mapa traçado pelo
artista, o crítico genético está traçando seus próprios mapas. Segundo Kastrup
(2010, p. 83), “com a estratégia inversa, ou seja, começando pelo decalque,
torna-se possível encontrar explicação para o movimento criador”.
Cauquelin (2005b, p. 108 – 109) descreve processo de criação ou
processo de produção, como um percurso feito pelo artista repleto de rupturas,
imprevistos e descontinuidades, num sentido rizomático.
De acordo com Kastrup (2010, p. 84 – 85), o rizoma pode ser entendido
como o embrião do conceito de redes, pois a rede é uma “versão empírica e
atualizada do rizoma”, e como ele é composto por elementos heterogêneos dos
mais diversos níveis, interagindo e se expandindo.
1.3 Cartas: Documentos de processo
O crítico genético busca conhecer a obra a partir de sua construção e
para tal conta apenas com alguns fragmentos, vestígios de um momento
criativo que permaneceu cristalizado no tempo, índices do artista em ação. A
partir da análise desses fragmentos as lacunas vão sendo preenchidas, as
respostas vão se revelando e o pesquisador pode desvendar o percurso da
construção da obra.
Como vimos, a relação do artista com a cor pode ser vista como um
aspecto de seu processo de criação. Para alguns artistas esse é um aspecto
28
fundamental de sua arte, conferindo-lhe grande destaque em seus documentos
de processo.
Os documentos de processo são registros do processo de criação que
permanecem mesmo após a concretização da obra, guardando informações
capazes de permitir que se vislumbre o percurso de criação.
Ao longo do processo de criação de um artista, os documentos registram
hipóteses que são formuladas, testadas e suas conclusões, experimentações,
possibilidades de obras, reflexões, enfim, tudo o que possa ter contribuído de
alguma forma com a criação da obra. As cartas de Van Gogh registram seu
processo de criação desde antes de se considerar um artista; elas registram o
caminho percorrido desde o desenho até a descoberta da cor. Não temos em
mãos os registros de processo de uma obra ou de um determinado período,
mas o registro de toda uma trajetória artística.
Van Gogh deixou um legado de 819 cartas, das quais 651 foram
destinadas ao irmão Théo e 7 a Théo e à esposa Jô. Muito do que se sabe hoje
a seu respeito se deve a intensa troca de correspondência com seu irmão
Théo, que ao longo de quase vinte anos (1872 a 1890) guardou as cartas
recebidas. Théo também era o destinatário da última carta que Vincent
escreveu e que não chegou a enviar.
As cartas de Vincent Van Gogh são caracterizadas pela troca com um
interlocutor. O documento é, portanto, sistematizado para a comunicação com
o outro, no caso, seu irmão. Embora a finalidade das cartas seja estabelecer
um diálogo com o receptor, percebe-se que muitas das cartas escritas por
Vincent adquirem o tom de um diário. Em alguns períodos chegou a escrever
mais de uma carta por dia, com relatos de sua angústia, dor, expectativas,
interações culturais e de que forma seu fazer artístico se desenvolvia.
Gombrich (1999, p. 545) diz que as cartas “foram escritas por um artista
humilde e quase autodidata, que não fazia idéia nenhuma da fama que iria
conquistar, estão entre as mais comoventes e excitantes de toda a literatura”.
Salles (2008, p. 39), aponta dois papéis fundamentais desempenhados
pelos documentos no processo de criação, armazenamento e experimentação.
As cartas de Van Gogh armazenam informações que o artista queria
29
compartilhar com o interlocutor, sejam notícias corriqueiras ou as reflexões
mais íntimas. Ainda que tais documentos tenham sido escritos com o objetivo
de compartilhamento, são um retrato de seu subjetivismo e apresentam um
vasto registro da experimentação empreendida pelo artista ao longo de seu
processo criativo.
Nos documentos de processo é possível que coexistam diversas
linguagens, pois muitas vezes os artistas utilizam informações verbais, visuais
ou sonoras. “As linguagens que compõem esse tecido e as relações
estabelecidas entre elas dão singularidade a cada processo.” (Salles, 2008, p.
44).
Van Gogh recorreu diversas vezes a recursos visuais em suas cartas.
Costumava desenhar um esboço das obras nas quais estava trabalhando e
ainda descrevê-las detalhadamente para que seu irmão pudesse compreender.
Também retratou, algumas vezes, locais onde esteve, também utilizando do
recurso verbal para uma descrição minuciosa, uma linguagem
complementando a outra. Na carta número 777, Van Gogh escreve ao irmão do
sanatório em Saint Rémy pedindo pincéis e especifica o tamanho através do
uso da imagem, dizendo: “Mais ou menos deste tamanho:”
6– Fragmento da carta nº 777
Para a realização deste trabalho consultamos as cartas no site da
fundação Van Gogh, que disponibiliza todas as cartas originais, a tradução
para o inglês e o fac-símile, como nos exemplos abaixo:
30
7 – Exemplos de cartas de Van Gogh. Fonte: vangoghletters.org
Neste trabalho, através das leituras dos documentos de processo de
Van Gogh, estabelecendo relações entre os assuntos abordados e as
recorrências, observamos que o artista atribuiu à cor um papel fundamental em
seu trajeto artístico. Desse modo o estudo do papel da cor no processo criativo
tornou-se nosso objeto de estudos e neste viés o modo como o artista percebe
a cor, como se relaciona com ela e o que espera comunicar com o uso de
determinada cor.
1.4 Aspectos comunicativos das cartas
Por séculos a carta foi o principal meio de comunicação à distância e na
segunda metade do século XIX, embora já existissem outros meios, como
telegrafo e telefone, a carta ainda era o mais popular. Devido à distância os
irmãos Van Gogh adotaram uma constante troca de correspondência, que os
manteve sempre próximos.
Para Flusser (2007, p. 90), a comunicação humana codificada, como
conhecemos, não é uma forma de comunicação natural. Trata-se de um código
inventado pelo homem essencialmente solitário a fim de aplacar sua solidão:
“O objetivo da comunicação humana é nos fazer esquecer desse contexto
31
insignificante em que nos encontramos – completamente sozinhos e
‘incomunicáveis’”.
Assim, segundo Flusser, o homem se comunica para escapar da solidão
e não por ser sociável ou político.
A escrita, por sua vez, Flusser (2010, p. 20 – 21) entende como uma
maneira de ordenar o pensamento, pois a escrita pressupõe a reflexão,
forçando o homem a se voltar ao seu interior para então alcançar o exterior. No
entanto, o grande objetivo do ato de escrever não é orientar os pensamentos,
mas dirigir-se a um outro; é atingir um receptor. Deste modo podemos
compreender que a escrita também tem o objetivo de atenuar a solidão.
No caso de Van Gogh é comum encontramos em suas cartas pedidos
por resposta rápida, nem sempre pelo dinheiro que as cartas costumavam
acompanhar, denotando se tratar de uma necessidade de sentir-se menos
solitário.
Para compreendermos melhor as cartas trocadas entre Vincent e Théo,
propomos um diálogo com os conceitos de Escrita de si e Parrhesía de Michel
Foucault.
Foucault entende a escrita de si mesmo como atenuante da solidão, pois
o ato de escrever desempenha o papel de um companheiro, suscitando o olhar
do outro ao expor seus pensamentos. O autor recorre a Antigüidade, dividindo
o conceito de escrita de si em duas vertentes distintas: os hypomnemata e a
correspondência (Foucault, 2002, p. 130).
Os hypomnemata podiam ser livros contábeis, notariais ou cadernos
pessoais que funcionavam como agendas, onde se anotavam citações, trechos
de discursos ouvidos, lembranças que vinham à memória. Estes cadernos
pessoais não são diários e nem mesmo uma narrativa de si mesmo; tratam-se
de cadernos de notas de tudo que, de alguma maneira, seja importante para o
sujeito e, de acordo com Foucault (2002, p. 137), contribuem para a
constituição de si.
A correspondência constitui uma maneira de cada um se manifestar para
si próprio e para outros. Segundo Foucault (2002, p. 149 - 150), a carta é capaz
de tornar o escritor “presente” para quem a recebe, “presente de uma espécie
32
de presença imediata e quase física”, tornando o ato de escrever cartas um ato
de se mostrar, de se permitir ver, de se oferecer pelo que diz de si mesmo,
estabelecendo uma reciprocidade do olhar, do exame e do conselho ou ajuda.
De acordo com Foucault (2002, p. 152), as cartas são o instrumento
para a narrativa de si, pois apresentam o sujeito em ação.
A partir da análise das cartas de Sêneca, Marco Aurélio e Plínio,
Foucault identificou dois pontos comuns às cartas e os considerou estratégicos
para a escrita de si.
O primeiro ponto engloba as interferências da alma e do corpo e os
lazeres. Foucault observa que as notícias sobre saúde tradicionalmente
compõem as correspondências e, em alguns casos, escreve-se até mesmo
sobre as sensações e impressões corpóreas.
O segundo ponto trata do corpo e os dias. Para Foucault (2002, p. 155),
através da carta pode-se relatar, ao correspondente, a vida cotidiana. Relatar o
dia apresenta ao outro “a qualidade de um modo de ser”. As cartas que narram
dias comuns também têm a função de permitir um exame de consciência,
avaliando as faltas e comportamentos, como um inspetor de si mesmo.
Ainda sobre o exame de consciência, Foucault diz que (2002, p. 157):
Parece pois ter sido na relação epistolar – e por conseqüência, para se colocar a si mesmo sob o olhar do outro – que o exame de consciência foi formulado como um relato escrito de si próprio: relato da banalidade cotidiana, relato das ações corretas ou não, do regime observado, dos exercícios físicos ou mentais aos quais cada um se entregou.
O termo parrhesía pode ser entendido como um “franco-falar”, um falar
francamente com a coragem da verdade. A noção de parrhesía Foucaultiana
parte da idéia de um sujeito responsável por dizer a verdade a outro, no
sentindo de orientá-lo. De acordo com Foucault (2004, p. 458), o sujeito que
fala dirige-se ao outro de um tal modo que o outro possa sentir-se autônomo,
independente e satisfeito. Seu objetivo é, justamente, que o outro, em dado
momento, não necessite mais do discurso. Esse objetivo só pode ser
alcançado quando o discurso é realmente verdadeiro.
33
Foucault (2004, p. 492) relaciona o conceito de parrhesía à palavra do
mestre / diretor – aquele que assume a função de mentor. Embora sua palavra
seja livre deve ser comedida de acordo com a situação e às particularidades do
outro. Suas palavras, ao atingirem o outro, estabelecem um elo que “vale como
comprometimento” e “constituem um certo pacto entre o sujeito da enunciação
e o sujeito da conduta”.
Consideramos que seria possível pensar as cartas dos irmãos Van Gogh
à luz do conceito de correspondência como escrita de si proposto de Foucault.
Através da análise das cartas de Vincent observamos que o fantasma da
solidão é constante para o artista, que acaba encontrando nas cartas uma
forma de atenuar a solidão, pois permite que o outro se torne presente.
Em alguns momentos a correspondência de Van Gogh chega a ser
diária e o artista relata minuciosamente o dia, inclusive com fatos corriqueiros,
contando sobre sua alimentação, horas de sono, leituras, angústias, sonhos
etc, assumindo, assim, o caráter do exame de consciência proposto por
Foucault.
Nesse sentido, entendemos que o papel do outro na correspondência,
exercido por seu irmão Théo, poderia assumir, em certa medida, o caráter de
parrhesía proposto por Foucault. Consideramos que Théo acaba atuando para
Vincent como um mentor, além de ser seu mantenedor, pois apesar de Vincent
o ver como um confidente e amigo, ele espera a palavra do irmão, ainda que
fosse, apenas, para anuência à suas decisões.
A escrita de cartas pressupõe um ato introspectivo, um estar alheio ao
redor, voltando-se somente a escrita da correspondência. O próprio traço da
escrita e o estilo de linguagem do escritor contribuem para torná-lo “presente”,
como propõe Foucault.
As epístolas de Van Gogh ao irmão são carregadas de subjetividade,
versando sobre o que sentia e sobre o que se passava em seu dia-a-dia em
cartas quase diárias, imprimindo-lhes um tom autobiográfico.
Segundo Bakhtin (2003, p. 139), os textos autobiográficos apresentam
elementos que os caracterizam como tal: “podem ter caráter confessional,
34
caráter de informe prático puramente objetivo sobre o ato (o ato cognitivo, do
pensamento, o ato político, prático, etc), ou por último, o caráter de lírica”.
A densa correspondência de Van Gogh nos oferece todos esses
elementos. Apresenta em todo o período que compreende um caráter
confessional, haja vista que o artista relata ao irmão o que provêm de seu
âmago, angústias, paixões e os segredos mais íntimos.
O caráter de informe prático aparece com as informações de sua rotina,
do dia-a-dia, pensamento político e intelectual, bem como controle dos gastos e
pedidos de material.
Por fim, suas cartas são completamente permeadas por lirismo, escritas
com paixão e ardor e carregadas de sentimento.
Para Hebert Read (1968, p. 110), as cartas de Van Gogh são o “relato
mais revelador do eu mais íntimo de um artista que se pode encontrar em
qualquer língua”.
A proposta de analisar as cartas de Van Gogh acabou nos direcionando
por caminhos necessários à sua reflexão. Investigar os aspectos comunicativos
das cartas mostrou-se fundamental e lançou luzes sobre seu modo de se
relacionar com a escrita de cartas. Ademais, a própria leitura crítica do material
suscitou a necessidade de compreender melhor a questão da cor, assunto que
exploraremos no capítulo seguinte.
35
Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2
A Cor na Criação ArtísticaA Cor na Criação ArtísticaA Cor na Criação ArtísticaA Cor na Criação Artística
36
2. A COR NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA
“O colorido é um fenômeno que apenas requer o sentimento e,
portanto, também pode ser produzido por meio do sentimento, por
assim dizer, instintivamente”.
Goethe2
Para que pudéssemos mergulhar no universo da cor presente na rede
de criação de Van Gogh, consideramos que seria primordial um diálogo com a
teoria da cor. A fim de atender essa necessidade, apresentamos um breve
mapeamento do estado da arte dos estudos da cor.
Observamos nas cartas de Van Gogh uma forte preocupação em
conhecer as teorias sobre cor, indo do conhecimento instintivo dos grandes
mestres – como Delacroix – às comprovações científicas de Newton.
No entanto, ainda nos restava uma curiosidade sobre o modo como os
artistas, de um modo geral, desenvolvem seu conhecimento sobre as cores.
Assim, fomos buscar nos mestres da Bauhaus formas de estudar e conhecer
as cores. Embora a Bauhaus seja posterior a Van Gogh, tratava-se de um
conhecimento necessário para que pudéssemos vislumbrar de forma mais
ampla as relações entre artistas e cor, especialmente no que concerne a
aprendizagem. Nesta perspectiva, trouxemos quatro mestres da escola que
desenvolveram pesquisas e metodologias de ensino da cor e que,
primordialmente, eram artistas.
Nosso principal objetivo com este capítulo é tentar vislumbrar a
importância do conhecimento teórico da cor para a arte e para os artistas, ou
seja, sua relevância no processo criativo. Para tanto, este capítulo apresenta
um breve panorama da história da teoria da cor e iniciaremos buscando
compreender o que é a cor através das informações que a ciência nos
apresenta.
2 GOETHE, J. W. Doutrina das cores. São Paulo: Nova Alexandria, 1993, p. 172.
37
2.1 Cor
A cor não tem materialidade; é uma sensação, produzida pelo olho,
quando provocado pelo estímulo da luz, ou seja, o aparecimento da cor só
ocorre com a combinação dos dois elementos: Luz e olho. Pedrosa (2009,
p.17), esclarece que a luz age como estímulo e o olho decifra o fluxo luminoso,
como um receptor.
Estes estímulos capazes de provocar a sensação cromática se dividem
em cor-luz e cor-pigmento. A cor-luz é uma radiação luminosa perfeitamente
visível, como a luz solar, que sintetiza as cores do espectro na luz branca. A
cor-pigmento é uma substância material que pode absorver, refratar ou refletir
os raios luminosos que se difundem sobre ela, de acordo com as suas
propriedades. (Pedrosa, 2009, p. 20).
As cores-pigmento são divididas em opacas e transparentes. Conforme
Pedrosa (2008, p. 30 - 32), as cores-pigmento opacas são as cores das
matérias químicas e são as mais utilizadas pelos artistas. As transparentes são
propriedade de corpos químicos, como ocorre nos processos de impressão
gráficos. Para Guimarães (2000, p. 12):
Quando a sua fonte é formada por luzes coloridas emitidas, naturais ou produzidas pela filtragem ou decomposição da luz branca, o estímulo recebe o nome de cor-luz; quando é formada por substâncias coloridas ou corantes que cobrem os corpos, e a luz que age como estímulo é obtida por refração, recebe o nome de cor-pigmento.
De acordo com Pedrosa (2009, p. 76), a Óptica Fisiológica embasada
em diferentes campos da ciência, como a Física, a Fisiologia, a Histologia e a
Química, fornece os esclarecimentos a respeito da sensação cromática. A
Óptica Fisiológica é um ramo da Óptica, parte da física que estuda as
propriedades da luz e da visão, que também se divide em Óptica Física – que
estuda a natureza da luz, e Óptica Geométrica – responsável pelos estudos da
trajetória de propagação da luz.
Conforme Pedrosa (2009, p. 20), a palavra cor pode designar tanto a
sensação cromática, como o estímulo que a provoca (o pigmento capaz de
38
refleti-la). Esse estímulo é denominado matiz e a sensação provocada por ele é
que recebe o nome de cor.
Quando a luz atravessa a córnea e a pupila atinge o cristalino que age
como uma lente produzindo imagem invertida que é corrigida pelo cérebro.
Então a luz atinge a retina onde, devido as células fotorreceptoras ou células
fotossensíveis, é transformada em impulsos eletroquímicos. As células
fotorreceptoras se dividem em “Bastonetes”, sensíveis à luz, mas incapazes de
distinguir cores, e os “Cones”, que são sensíveis às cores. Os cones se
dividem em três tipos e cada grupo responde a uma cor, sendo a vermelha, a
verde e a azul. A partir daí o cérebro é capaz de reconhecer todas as outras
cores.
Os nervos ópticos transmitem essas informações até o córtex occipital,
na parte posterior do cérebro, onde é processada a sensação cromática.
Com as imagens ocorre o mesmo processo e é somente no cérebro que
as informações serão tratadas. Conforme esclarece Guimarães (2000, p. 43),
“A construção final da imagem ocorrerá apenas com a atuação da função
integrativa do sistema nervoso, que irá processar a informação visual, gerando
pensamentos e emoções, interpretando-a, criando significado”.
No Caso do pintor Daltônico, Sacks conta a história de superação de um
artista – cujo trabalho era primordialmente colorido – que perdeu a capacidade
de perceber as cores. Sua visão era perfeita, não havia problemas em seus
olhos que pudessem justificar a perda da visão das cores. Assim, concluíram
que a acromatopsia fora causada por uma lesão no cérebro. O pintor perdeu
também a memória da cor, não era mais capaz de lembrar como elas eram,
nem mesmo seus sonhos tinham mais cor. As cores não passavam de palavras
abstratas. Ele sabia que a banana é amarela, mas não tinha idéia de como era
a cor amarela. Descobriram mais tarde que a lesão havia atingido o córtex
secundário. Nas palavras de Sacks:
Essas áreas são muito pequenas, mesmo no homem; não obstante, toda a nossa percepção da cor, nossa capacidade de imaginá-la ou relembrá-la, todo o nosso sentido de viver num mundo em cores depende crucialmente de sua integridade. (1995, p. 47)
39
2.1.1 Classificação e características da cor
Ao longo da história da teoria da cor muitos estudiosos propuseram
matizes primárias que seriam capazes de dar origem a todas as outras
tonalidades. Atualmente as cores são classificadas de acordo com suas
características, mas ainda seguindo o princípio de cores primárias e
complementares.
As cores primárias são as cores indecomponíveis que misturadas em
determinadas proporções geram as demais cores do espectro, e são vermelho,
verde e azul (violeta). Segundo Pedrosa (2009, p. 22), para os artistas que
usam substâncias corantes, como tintas, as cores primárias são vermelho,
amarelo e azul. Assim como nas artes gráficas são magenta, amarelo e ciano.
As secundárias são formadas pela mistura de duas cores primárias e
sendo o laranja, resultado da mistura do vermelho com o amarelo; o violeta,
resultado da mistura do azul com o vermelho e o verde que resulta da mistura
do amarelo com o azul.
As cores terciárias são geradas pela mistura de uma cor primária com
mais uma ou duas cores secundárias.
As cores complementares são aquelas que apesar de opostas se
complementam, estando em equilíbrio perante o olho. As cores que compõe os
pares complementares quando misturadas geram branco ou cinza neutro. As
cores complementares geralmente aparecem diametralmente opostas nos
círculos cromáticos.
Arnheim (2000, p. 333) divide as cores complementares em geradoras e
fundamentais. As geradoras, como na física, são as que somadas produzem
branco e as fundamentais são as que se precisam e se completam, como
vermelho e verde, amarelo e azul e verde e vermelho rosado.
As cores também são dividas em quentes ou frias, de acordo com a
sensação que transmitem, de excitação ou tranqüilidade. Nas cores quentes
predominam o amarelo e o vermelho, enquanto nas cores frias têm-se o
predomínio do azul.
40
8 – Escala de cores quentes e frias. Fonte: Pedrosa, 2008.
Segundo Guimarães (2000, p. 54), existem três parâmetros praticamente
universais para a definição das cores, que são Matiz, Valor e Croma. O
primeiro é a coloração definida pelo comprimento da onda luminosa,
popularmente chamado de cor (azul, vermelho, amarelo e as demais cores
obtidas com a mistura destas). É o que determina a exata posição da cor no
espectro. Valor, luminosidade ou brilho, designam o índice de luminosidade da
cor ou o quanto se aproxima do branco ou do preto. Croma trata da saturação
ou grau de pureza da cor, ou seja, a intensidade da cor.
9– Exemplo de Matiz. Fonte: Pedrosa, 2008.
10– Exemplo de Valor. Fonte: Pedrosa, 2008.
41
11 – Exemplo de Croma. Fonte: Pedrosa, 2008.
Os estudiosos das cores e os artistas da visualidade sempre buscaram
uma teoria de harmonização das cores. Observa-se que para a forma existem
regras de proporção e geometria desde a antiguidade norteando o desenho.
Contudo, não há, para o uso da cor, verdades absolutas. Para Guimarães
(2000, p. 76), a harmonia cromática pode ser entendida como uma combinação
agradável de cores e “uma construção harmoniosa está sempre em equilíbrio”.
2.1.2 Pigmento
Desde a pré-história o homem já conhecia e utilizava pigmentos naturais
para pintar. Com o passar do tempo descobriu-se que era preciso misturar o
pigmento com alguma substância aglutinante, capaz de agir como uma cola,
para aumentar a durabilidade da pintura. Na pintura a óleo, o aglutinante é um
óleo secativo, enquanto na pintura à têmpera utilizava-se uma emulsão à base
de gema de ovo. Atualmente existe, também, a pintura acrílica, cujo aglutinante
é um material industrializado. Chamamos de tinta a substância obtida da
mistura do aglutinante com o pigmento. Existem, também, os corantes, contudo
não são tão utilizados na pintura quanto os pigmentos; sua principal utilização é
têxtil.
Os pigmentos podem ser de origem vegetal, mineral, animal, compostos
através de diversas matérias-primas ou sintéticos.
Ao longo do tempo foram surgindo novos pigmentos, especialmente a
partir do século XVIII, com o desenvolvimento da química, e alguns foram
caindo em desuso devido ao custo ou a dificuldade de utilização, conforme
42
observamos na tabela abaixo, que apresenta os pigmentos mais utilizados na
pintura:
Pigmento Período de utilização Pigmentos brancos
Barite Antiguidade – presente Branco de chumbo Antiguidade – presente Cré Antiguidade – presente Gesso Antiguidade – presente Branco de zinco 1834 – presente Litopone 1874 – presente Branco de titânio 1918 – presente
Pigmentos azuis Azurite Antiguidade – Séc. XIX Ultramarino natural Séc. XI – Séc. XIX Esmalte 1584 – Séc. XIX Azul da Prússia 1704 – presente Azul de cobalto 1804 – presente Ultramarino francês 1826 – presente
Pigmentos verdes Malaquite Antiguidade – Séc. XVIII Verdete Antiguidade – Séc. XIX Terra verde Antiguidade – presente Verde de óxido de crómio 1809 – presente Verde esmeralda 1814 – Séc. XX Viridian 1838 – presente Verde de crómio 1850 – presente
Pigmentos vermelhos e alaranjados Ocre vermelho Antiguidade – presente Siena Antiguidade – presente Vermelhão Antiguidade – presente Vermelho de chumbo Antiguidade – Séc. XIX Vermelho de cádmio 1907 – presente
Pigmentos amarelos Ocre amarelo Antiguidade – presente Massicote Antiguidade – presente Amarelo de chumbo e estanho
Antiguidade – cerca de 1750
Auripigmento Antiguidade – Séc. XIX Amarelo de Nápoles Séc. XVII – presente Amarelo de crómio 1818 – presente Amarelo de cádmio 1829 – presente
Pigmentos castanhos Ocre castanho Antiguidade – presente Úmbria Séc. XVI – presente Betume Séc. XVII – presente
Pigmentos negros Negro vegetal Antiguidade – presente Negro de osso Antiguidade – presente
Principais pigmentos utilizados em pintura. Fonte: Cruz, 2000.
43
Segundo Cruz (2004), o desenvolvimento de novos pigmentos e a
invenção dos tubos de tinta (em 1841), foram cruciais para o surgimento do
Impressionismo, pois permitiram maior velocidade de produção e a pintura ao
ar livre. Por outro lado, Cruz sugere que a invenção da tinta em tubo causou
uma maior separação entre o artista e seus materiais, pois não existe mais o
processo de preparo do pigmento no ateliê.
Durante muitos séculos os pigmentos eram moídos pelo próprio artista,
sobre uma pedra de pórfiro. Para a obtenção de um melhor resultado, alguns
pigmentos precisavam ser moídos até que se obtivesse um pó muito fino,
outros deveriam ser menos finos, dependendo de suas características. Após a
moagem o pigmento era misturado ao aglutinante, tomando cuidado para que
se obtivesse uma mistura o mais homogênea possível. Vale lembrar que
alguns pigmentos são tóxicos, principalmente devido ao uso de componentes
metálicos. Segundo Cruz (2004), o pigmento verde esmeralda leva arsênio em
sua composição e já foi, inclusive, utilizado como inseticida. Alguns pigmentos
muito utilizados na pintura são constituídos por chumbo, como o amarelo de
Nápoles, o branco e o amarelo de chumbo, o amarelo e o verde de cromo. O
vermelhão, pigmento largamente utilizado, apresenta grandes quantidades de
mercúrio.
Atualmente com as tintas preparadas e vendidas em tubos o risco de
intoxicação é muito pequeno, devendo-se evitar somente a ingestão do
produto. Os artistas do passado sofriam com a inalação do pó ao triturarem o
pigmento, o que os levou a utilizarem máscaras feitas de bexigas (Cruz, 2004).
Trazendo para o diálogo o nosso objeto de estudos, observamos, nas
cartas de Van Gogh que, muitas vezes, a decisão final sobre os pigmentos a
serem utilizados dependia essencialmente do preço. Em muitos momentos
observa-se o artista pedindo tintas ao irmão, dizendo que, apesar de preferir o
azul da Prússia, caso esteja sem dinheiro, Théo pode comprar ultramarino ou
cobalto, que custam três vezes menos. Embora Van Gogh usasse tinta em
tubo, na carta nº 668, de 23 ou 24/08/1888, pede ao irmão que sugira ao
vendedor Tasset que moa o pigmento por menos tempo para terem cores mais
vivas e talvez com efeitos mais duradouros.
44
2.2 Um esboço da teoria da cor
O fenômeno da percepção da cor sempre intrigou o homem, levando
alguns dos maiores estudiosos da história a se dedicarem a compreender suas
propriedades. Neste hall podemos elencar Aristóteles, Da Vinci, Newton,
Goethe, entre outros notáveis.
Desde o início dos tempos o homem tem contato com a cor, começa a
distinguir as cores presentes na natureza e, posteriormente, passa a utilizá-las
para ornamentar utensílios, o corpo e para pintar as paredes das cavernas. A
arte rupestre foi criada a partir de cores que se obtinham com a terra, criando
tons de vermelho, marrom, ocre.
Nas civilizações antigas as cores não costumavam ser usadas somente
para embelezamento estético, conforme Goldman (1964, p. 100), “eram
adoradas, porque se lhes atribuía valores esotéricos, além de representarem
símbolos das superstições sociais e religiosas”.
O simbolismo atribuído às cores costuma variar em cada sociedade de
acordo com hábitos culturais.
Ao longo de séculos estudou-se as propriedades físicas e simbólicas da
cor, além da estrutura fisiológica do nosso instrumento de percepção da cor: o
olho.
Um dos primeiros a pensar sobre a cor foi o filósofo grego Aristóteles,
que concluiu que a cor era uma propriedade dos objetos, assim como peso,
textura, matéria. Aristóteles definiu que havia sete cores principais, sendo que
o preto e o branco podiam compor qualquer outra cor.
Plínio Segundo, ou O Velho, foi um pensador romano, responsável pela
organização da primeira enciclopédia de que se tem notícia. Em um dos
volumes, voltado à pintura, Plínio trata da cor, reduzindo as cores principais de
Aristóteles a apenas três: Vermelho vivo, ametista e outra que chamou de
conchífera, que é uma cor semelhante a um rosa perolado. Não incluiu o
amarelo, pois era uma cor muito associada às mulheres.
45
Na Idade Média, muitos acreditavam que as cores eram apenas mais um
mistério divino. Vale lembrar que, nessa época, houve um período de
estagnação da ciência devido à forte influência da igreja e da fé cega.
O Renascimento, por sua vez, foi um período de muitas descobertas,
resultado da crescente curiosidade e espírito de busca pela ciência, pela
verdade e pela perfeição. Este clima de busca pela perfeição e pelo equilíbrio
também se refletia nas artes e a pintura caminhou ao seu apogeu mimético.
Da Vinci foi uma das personalidades mais importantes do período,
desenvolvendo importantes estudos em diversas áreas do saber, como a
matemática, engenharia, ciências e nas artes.
Leonardo tornou-se admirado e respeitado em todo o mundo,
especialmente por sua habilidade artística, capaz de criar as maiores obras-
primas da humanidade, com maestria na aplicação da tinta, detalhes
anatômicos antes inimagináveis, perfeito uso de luz e sombra e total domínio
da perspectiva. Escrevia sobre cor de forma essencialmente voltada aos
pintores, porém não sem esbarrar na química, física e óptica.
Segundo Pedrosa (2009, p. 45), Leonardo Da Vinci também foi um dos
primeiros a pensar a respeito da cor, deixando anotações sobre as cores que
foram reunidas após sua morte no livro Tratado da Pintura e da Paisagem –
Sombra e Luz. Graças aos seus profundos estudos de anatomia, discordava
dos antigos na teoria de que a cor fosse inerente ao objeto e concluiu que o
olho é responsável por levar a percepção da cor ao cérebro e poeticamente
descreveu o olho como sendo a janela da alma: “O olho, janela da alma, é a via
principal pela qual o cérebro pode simples e magnificamente julgar as infinitas
obras da natureza”. (Da Vinci, apud Pedrosa, 2009, p. 51).
Da Vinci entendia a pintura como o principal objetivo da ciência, pois era
onde aplicavam todos os conhecimentos adquiridos em seus estudos e por isso
a considerava mais importante que a literatura e a poesia.
Em seus manuscritos, além de fazer clara apologia à pintura, enfatiza
que a perfeição na arte da pintura depende de apurada percepção visual: “O
grande amor nasce do profundo conhecimento das coisas amadas, e se tu não
46
as conheceres, pouco ou nada poderás amar”. (Da Vinci, apud Pedrosa, 2008,
p. 68)
Desde jovem, Leonardo domina o desenho e conclui que, embora seja
essencial à pintura, o verdadeiro espírito da pintura é a cor.
No mesmo sentido pensava Leon Battista Alberti, um grande pensador
italiano da época, que escreveu três célebres livros sobre arte (sobre escultura,
arquitetura e pintura).
Segundo Pedrosa (2009, p. 47), Alberti e Leonardo tinham pensamentos
semelhantes em relação à pintura. Ambos concluíram que havia cores básicas
na natureza que poderiam, de acordo com a luz ou através de misturas, dar
origem a todas as outras cores. Além disso, entendiam o branco e o preto
como cores diferenciadas. Estudando o contraste simultâneo de cores
perceberam a beleza das oposições e que o claro tende a parecer mais claro e
o escuro mais escuro quando vistos lado a lado.
Após o período do Renascimento, o estudo das cores ganhou novas
abordagens e estudos cada vez mais precisos, até se tornar objeto de estudos
da física, mais especificamente da Óptica.
Em 1665, Newton começa a estudar os efeitos da luz utilizando um
prisma e com o auxilio de uma câmara escura que permitia controlar a
intensidade da luz nos experimentos. Seus estudos sobre cor se deram em
conseqüência dos estudos da luz, pois entendia as cores como propriedades
da luz.
Newton se debruçou sobre as teorias de outros que estudaram a luz,
como Descartes, Boyle, Hooke e Kepler, tomando-os como ponto de partida
para a sua teoria, culminando com a publicação de Óptica – ou um tratado
sobre a Reflexão, a Refração e as Cores da luz, publicado em 1704.
Através das experiências com prismas decompôs a luz branca em sete
cores (vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta), e identificou
diferentes graus de refração para cada uma. Ao utilizar dois prismas, sendo
uma lente convergente, observou que a luz branca se recompõe. Daí conclui
que a luz branca contém as sete cores principais.
47
12 – Prismas invertidos. Fonte: Pedrosa, 2009.
Newton também defendeu que os objetos não têm cor própria. Apenas
podem absorver e refletir os raios luminosos que podem lhes conferir cores
permanentes desde que sob a iluminação correta (Guimarães, 2000, p. 9).
A Doutrina das Cores publicada por Goethe em 1810 discorda das
teorias de Newton.
Goethe dedicou-se por mais de trinta anos à teoria das cores, contudo
não obteve o êxito esperado, pois pretendia produzir uma verdadeira história
da cor, mostrando que seu estudo deve ir muito além da física, dando conta do
efeito sensível-moral das cores, a partir da recepção pelo homem.
Embora recusada pelos físicos e muito questionada por sua abordagem
fenomenológica, a teria das cores de Goethe abriu as portas para a fisiologia e
a psicologia das cores.
O estudo de Goethe sobre os princípios cromáticos e sua utilização
estética exerce grande influência sobre os intelectuais e artistas
contemporâneos (Pedrosa, 2009, p. 62). Ser útil ao artista era um de seus
objetivos: “Abordando a doutrina das cores a partir da pintura, prestamos um
serviço ao pintor, pois procuramos determinar os efeitos sensíveis e morais da
cor, aproximando-os de uma aplicação artística” (Goethe, 1993, p. 49).
A Doutrina das Cores relaciona discurso científico e poético, o que o
torna uma obra singular, tendo recebido maior reconhecimento no século XX.
O interesse de Goethe pelas cores teria surgido justamente por causa da
pintura, quando em sua juventude praticava pintura e desenho. Após um
intenso contato com os clássicos em viagem pela Itália, viu despertar o objetivo
48
de pesquisar as sublimes obras produzidas pelo homem e tudo o que as
compunham.
Para Pedrosa (2009, p. 64) é muito nítido o contraste em seu interesse
pelos clássicos em detrimento da pintura de sua época, pois costumava exaltar
os clássicos, qualificando-os como arte sã.
Em oposição a Newton, Goethe não considerava possível que a luz
branca contivesse as sete cores do espectro, alegando que as outras cores
eram mais escuras que o branco. Goethe acreditava que, embora a cor
dependesse da luz para se revelar, não era a própria luz:
As cores são ações e paixões da luz. Nesse sentido podemos esperar delas alguma indicação sobre a luz. Na verdade, luz e cores se relacionam perfeitamente, embora devamos pensá-las como pertencendo à natureza em seu todo: é ela inteira que assim quer se revelar ao sentido da visão. (1993, p. 35).
Para Goethe existem três cores fundamentais, capazes de gerar as
demais: vermelho, verde e azul.
Goethe se preocupou em compreender de que forma a natureza
humana nos faz responder à cor e acabou chegando a três grupos distintos de
cores: as cores fisiológicas, as cores físicas e as cores químicas. Qualificou as
primeiras como fugidias, as segundas como passageiras, embora apresentem
certa permanência, e as terceiras como duradouras.
De acordo com Pedrosa (2009, p. 65), as cores fisiológicas são
produzidas pelo olho a partir de um estímulo externo, ou seja, é a cor como
sensação que se transforma em percepção. Usaremos o próprio texto de
Goethe para melhor esclarecer:
Trataremos dessas cores em primeiro lugar, pois pertencem, no todo ou em grande parte, ao sujeito, ao olho. São o fundamento de toda a doutrina e nos revelam a harmonia cromática, que deu origem a tantos conflitos. Foram até agora consideradas supérfluas, contingentes, como ilusão e deficiência. Os fenômenos dessas cores já eram conhecidos em tempos remotos, mas como não se conseguia captar seu caráter evanescente, foram banidos ao domínio dos espectros inoportunos, tendo, neste sentido, diferentes denominações. (...) Nós as chamamos de fisiológicas, pois pertencem ao olho saudável e são consideradas condições necessárias à visão;
49
indicam uma viva alternância interna e externa ao olho. (1993, p. 51).
As cores físicas, segundo Goethe são:
Aquelas cuja origem se deve a certos meios materiais, incolores, que podem ser transparentes, turvos e translúcidos, ou completamente opacos. Tais cores são assim produzidas no olho mediante causas externas determinadas ou, se de algum modo já se produziram fora de nós, são refletidas no olho. Embora lhes atribuamos um tipo de objetividade, nelas ainda persiste a característica de serem fugidias e difíceis de fixar. (1993, p. 82).
Voltando a teoria de que o meio agindo como refrator modifica a luz
branca, como um prisma.
As cores químicas remontam à idéia da cor como propriedade dos
objetos, segundo Goethe:
Denominamos químicas as cores estimuladas em certos corpos, mais ou menos fixas, que neles se intensificam, deles podem ser extraídas e transmitidas a outros corpos, às quais por essa razão, atribuímos uma certa qualidade imanente. Em geral, caracterizam-se pela durabilidade. (1993, p. 95).
Atualmente as cores são dividas em três campos de estudos que
correspondem à divisão de Goethe: Óptica fisiológica, Óptica física e Óptica
físico-química.
Goethe não atingiu o seu objetivo maior que era provar que Newton
estava equivocado através de uma completa teoria das cores, contudo, de
acordo com Pedrosa (2009, p. 66), Goethe conseguiu acertar em alguns pontos
sobre a sensação da cor, mas sem invalidar a teoria de Newton, ainda acabou
por enriquecê-la, adicionando novas possibilidades. Para Wittgestein (2009, p.
61), uma análise fenomenológica, como a proposta por Goethe, não daria
conta de confirmar ou contradizer a física.
De acordo com Pedrosa (2009, p. 72) a parte da Doutrina das Cores que
trata dos efeitos sensíveis e morais da cor serviu como fundamento para os
estudos psicológicos e para a simbologia cromática espiritualista.
50
Para Goethe as cores podem ser utilizadas para os mais diversos fins
estéticos, pois causam grande prazer nas pessoas (1993, p. 128):
Vale lembrar o rejuvenescimento que se sente, num dia nublado, ao ver o sol iluminar uma parte isolada da paisagem, tornando as cores visíveis. As virtudes terapêuticas atribuídas às pedras preciosas coloridas podem ter surgido do sentimento profundo desse prazer indescritível. (...) O mesmo se passa com a alma. A experiência nos ensina que cores distintas proporcionam estados de ânimo específicos.
Contudo, segundo Goethe, para se sentir esse efeito é necessário estar
envolto numa única cor, como num quarto pintado de determinada tonalidade,
e então o olho e o espírito entram em sintonia com a cor. As cores não apenas
produziriam estados de espírito como, também, se adequariam a eles. Afirma,
ainda, que as cores das roupas refletiriam o caráter da pessoa.
O autor faz uma sucinta análise de algumas cores, explorando seus
princípios sensíveis-morais, como vemos a seguir:
13 – Círculo cromático criado por Goethe. Fonte: Barros, 2006.
Goethe identifica o amarelo, amarelo-avermelhado (laranja) e vermelho-
amarelado como cores positivas, que são as estimulantes vivazes e ativas. As
negativas são o azul, azul-avermelhado e vermelho-azulado, que produzem
sentimento de inquietação, ternura e nostalgia.
51
Para Goethe, o amarelo é a cor mais próxima da luz, da claridade;
possui um aspecto sereno, animado e ligeiramente estimulante. Produz
impressão calorosa e agradável, estando relacionado à parte iluminada e mais
ativa das pinturas. No entanto, se o amarelo tender para cores negativas,
perdendo sua intensidade, torna-se desagradável. Quando passa a um
amarelo-avermelhado, a cor ganha mais energia e parece mais forte e
esplêndida. Proporciona, também, sensação de calor e de contentamento,
“representa a cor tanto da incandescência, quanto do suave reflexo do poente”.
(1993, p. 131).
No vermelho-amarelado, o amarelo exprime sua mais intensa energia,
intensificando-se até se tornar insuportável. Homens brutos, selvagens e
energéticos se deleitam com essa cor (Goethe, 1993, p. 131).
O azul, por sua vez, embora tenda ao escuro também é associado à luz,
assim como o amarelo. O azul é capaz de nos causar sensação de frio e nos
lembra sombra. Podendo ser vista como uma contradição entre o claro e o
escuro, entre estímulo e repouso. Goethe nos diz que o azul produz um efeito
especial e quase indescritível, pois “como cor, é uma energia, mas está do lado
negativo e, na sua mais alta pureza, é por assim dizer um nada estimulante”
(1993, p. 132).
O azul tende a se intensificar suavemente para o vermelho, despertando
inquietude. A sensação de inquietude tende a aumentar no vermelho-azulado,
até se tornar insuportável. Por isso, é empregado sempre de modo atenuado e
difuso (Goethe, 1993, p. 133).
O vermelho, dependendo do tom, tende ora para o negativo ora para o
positivo. “Proporciona tanto uma impressão de seriedade e dignidade quanto
de benevolência e graça” (Goethe, 1993, p. 134). Sendo que a primeira
impressão é possível quando a cor for apresentada em seu lado mais escuro e
condensado, e a segunda quando claro e diluído.
Já o verde surge da combinação do azul com o amarelo e proporciona
real satisfação. É o resultado do equilíbrio perfeito da mistura remetendo ao
simples. Proporciona satisfação real ao olho quando resulta da mistura
equilibrada do azul com o amarelo. “O olho e a alma repousam nessa mistura
52
como se fosse algo simples. Não se deseja, nem se pode ir além” (Goethe,
1993, p. 134).
“Todos os princípios foram deduzidos da natureza humana e das
relações observadas nos fenômenos”, afirma Goethe (1992, p. 140). E conclui
dizendo que as cores podem ser utilizadas para os mais diversos fins
pressupondo seus efeitos sensíveis, morais e estéticos (Goethe, 1992, p. 154).
2.3 Estudo da cor na Bauhaus
A Bauhaus, tida como a maior escola de design, arquitetura e artes-
plásticas aplicadas da história, através de seu pensamento de vanguarda
sempre a frente de seu tempo, possibilitou que artistas como Kandinsky,
Albers, Itten e Klee, explorassem as relações entre cor, percepção, efeitos
visuais, aspectos psicológicos e espirituais.
Consideramos que, num trabalho que trata das relações de um artista
com a cor, seria interessante conhecer um pouco os estudos sobre cor
desenvolvidos na Bauhaus, pois os mestres que conduziam estes estudos e
que ali lecionavam eram, antes de tudo, artistas.
A Bauhaus foi fundada em 1919, por Walter Gropius, um renomado
arquiteto alemão, com a missão de criar novos estilos que refletissem o
contexto do período, que era um período de transformações e avanços
tecnológicos, além de preparar artistas que também fossem artesãos, criando
objetos funcionais e belos. No entanto, em 1933 a escola foi fechada pelos
nazistas que rechaçavam o estilo moderno, considerado degenerado. A
Bauhaus valorizava muito o estilo livre, a ousadia na criação artística, a
percepção do novo. Os alunos recebiam aulas de desenho, forma, estilo, cor, e
eram constantemente incitados a criar. Somente após esse período recebiam
aulas de história e as teorias ao longo da história, pois se acreditava que assim
não seriam influenciados pelo passado.
53
A teoria de Goethe é retomada na Bauhaus exercendo forte influência
sobre os notáveis mestres que se aplicavam em compreender para melhor
ensinar o universo da cor. Cada um, a sua maneira, buscou desenvolver
sistemas de harmonização, esquemas e escalas de tons e valores.
Embora a Bauhaus tenha existido por um pouco mais de uma década,
muitas divergências internas aconteceram, culminando em algumas alterações
nas diretrizes da escola que, durante um período, abriu mais espaço para os
estudos sobre cor.
2.3.1 Kandinsky
Em Do Espiritual na Arte (2009, p. 65), Kandinsky diz que, quando o
olhar pousa sobre uma paleta de cores, ocorre um duplo efeito. Primeiro do
ponto de vista físico, o olho sente a cor. Segundo, a cor provoca uma vibração
psíquica.
Kandinsky foi precursor do abstracionismo e professor da Bauhaus de
1922 a 1933. Já havia publicado Do Espiritual na Arte dez anos antes de ser
convidado a lecionar na Bauhaus. Kandisky trabalha com formas geométricas,
como círculos, triângulos, quadrados, linhas, pois, para ele, as formas e as
cores exercem uma função psíquica, que geram significados no observador da
obra.
De acordo com Barros (2006, p. 163), a prática da pintura e a reflexão
teórica foram, aos poucos, levando-o a deixar de lado a representação das
formas do mundo real e a se dedicar a um universo muito mais profundo e
inexplorado de cores e formas.
Kandinsky elaborou uma complexa teoria sobre a natureza da cor. Em
primeiro lugar divide as cores em duas categorias básicas: o quente e o frio.
Explica que as cores quentes tendem para o amarelo e as frias para o azul,
devido ao movimento do amarelo se aproximar do observador enquanto o azul
se distancia, mas dirigi-se ao lado espiritual. Em Do Espiritual na Arte,
Kandinsky desenvolve uma simbologia psíquica das cores, mergulhando em
54
cada cor isoladamente e interpretando seus movimentos, temperatura, sons
musicais e sensações, conforme veremos a seguir:
O amarelo e o azul compõem o primeiro grande contraste, e o
movimento excêntrico ou concêntrico. Como vimos, o amarelo se irradia em
direção ao observador, enquanto o azul faz o movimento contrário. “O amarelo
é uma cor tipicamente terrestre”, segundo Kandinsky (2009, p. 92), material e
sem profundidade. No entanto, é no azul que está a profundidade, pois seu
movimento o guia para uma “ação interior”, atraindo o homem para o infinito e o
sobrenatural.
O amarelo, representando o estado interior da alma, seria a cor da
loucura, da cólera, do delírio e do acesso de loucura furiosa.
O azul desperta, no homem, o desejo de pureza; ele apazigua e acalma.
O som do amarelo poderia ser um trompete agudo ou uma fanfarra
estridente.
O som do azul, por sua vez, varia de acordo com a intensidade. Assim, o
azul-claro remete a flauta, o azul-escuro ao violoncelo e quanto mais escuro
lembra um contrabaixo.
O verde é o ponto de equilíbrio entre o amarelo e o azul; os movimentos
horizontais se anulam, levando ao repouso e a calmaria. O excesso de verde
torna-o tedioso e passivo. Kandinsky compara o verde absoluto à burguesia:
“um elemento imóvel, sem desejos, satisfeito, realizado” (2009, p. 94). O verde
apresenta ação benéfica sobre quem precisa de repouso.
O verde poderia ser associado ao som do violino, por ter uma gravidade
média e emitir sons amplos e calmos.
O vermelho é uma cor sem limites, sem direção, agitada e que pode ser
quente ou fria, pois é muito rico e diverso, podendo se apresentar nos mais
extremos tons, conservando, sempre, uma grande força potencial. O vermelho
quente está relacionado à força, decisão, energia, triunfo. Seu som, como o
amarelo, remete a uma fanfarra, porém uma fanfarra em que domina o som de
uma trombeta obstinada, inoportuna e forte. O vermelho frio também pode se
55
tornar uma cor mais profunda; possui a veemência da paixão e dos sons
médios graves de um violoncelo.
O vermelho, quando misturado ao amarelo, torna-se mais intenso,
resultando no laranja – seria o amarelo levando o vermelho à expansão. O
laranja aparece quando o vermelho é atraído na direção do homem. Para
Kandinsky é como “um homem seguro de sua força e que dá a impressão de
saúde” (2009, p. 99). Soa como uma viola “entoando um largo” (1996, p. 99).
Todavia, quando o vermelho de distancia do homem, sendo incorporado pelo
azul, surge o violeta, representando algo doentio e triste. Seus sons são
vibrações surdas e os tons graves do fagote.
O segundo grande contraste é constituído pelo branco e o preto, assim
como o amarelo e o azul, um tende a ir em direção ao expectador e a outro ao
contrário. O branco também anima o claro e o preto o escuro. “O branco age
em nossa alma como o silêncio absoluto” (2009, p. 95), embora também
apresente um movimento excêntrico, não age ativamente como o amarelo.
Kandinsky vê o branco como a cor das possibilidades, repleto de vida,
exatamente ao contrário do preto, que é morto; é “como uma fogueira extinta,
consumida que deixou de arder, imóvel e insensível como um cadáver” (2009,
p. 96).
Kandinsky também associa o branco à pureza sem máculas e à alegria e
o preto ao luto e o coloca como símbolo da morte.
Ambos são silenciosos e, portanto, não foram associados a
instrumentos.
Após a experiência didática na Bauhaus, escreve “Ponto e linha sobre o
plano”, onde estrutura um sistema de composição com os elementos
geométricos e as cores, buscando uma linguagem. De acordo com Barros
(2006, p. 178): “A origem dessas associações entre cores e formas
geométricas abstratas está na busca de Kandinsky por uma linguagem plástica
autônoma, desvinculada da representação da natureza”.
O período em que lecionou na Bauhaus é também conhecido como o
período frio de sua obra, pois foi quando os elementos geométricos passaram a
dominar sua produção.
56
14 – Wassily Kandinsky, Rosa decisivo, 1932. Guggenheim Museum – Nova York. Óleo sobre tela.
Assim, Kandinsky tentou encontrar relações universais entre linha,
ponto, plano, cor e movimento, desenvolvendo uma teoria elementar para a
concepção de uma obra.
Kandinsky estudou a correspondência entre as cores e as formas,
concluindo que o amarelo corresponde a forma de um triângulo, pois seus
ângulos avançam em todas as direções. O azul corresponde ao círculo por ser
profundo e de caráter espiritual voltado ao centro do homem ou à alma. O
vermelho, que pode adquirir tons quentes ou frios, corresponde ao quadrado,
que é uma figura intermediária entre o triângulo e o círculo.
15 – Exemplo de relação entre cores e formas. Fonte: Barros, 2006.
57
Assim, de acordo com Barros:
Enquanto Kandinsky busca uma teoria da criação válida para todas as culturas (que sensibilizem o homem na sua necessidade interior), a Gestalt investiga o processo inverso, ou seja, como o homem percebe a mensagem visual. Após sistemáticas pesquisas, os psicólogos da Gestalt apresentaram uma nova teoria da percepção identificando forças internas de organização inerentes à nossa estrutura cerebral. Essas forças internas, comprovadas pela Gestalt, responsáveis por nossa capacidade de perceber relações entre grupos de formas, bem como de segregar formas isoladas, entre tantas leis da configuração, provaram-se espontâneas, independentes do nosso aprendizado e da nossa vontade. Nesse sentido, pode-se dizer (...) que a teoria da Gestalt de certa maneira vem confirmar alguns aspectos sobre o poder de comunicação das formas e das cores explorados por Kandinsky. (2006 p. 170)
2.3.2 Itten
Johannes Itten, além de artista, estudou e dedicou-se ao magistério,
criando sua própria escola de arte em Viena, de onde sairia para lecionar na
Bauhaus, após ter ministrado a palestra inaugural da escola a convite de
Gropius.
Desde o período em que lecionava em Viena, Itten trabalhava com
métodos próprios de ensino, baseado na didática reformista proposta por
Montessori, Russeau e Pestalozzi. Entretanto, seus métodos eram
considerados muito inovadores para a época e muitas vezes não eram bem
aceitos.
Tornou-se famoso por iniciar as aulas com técnicas de respiração e
relaxamento, o que considerava primordial para que as idéias pudessem fluir
mais facilmente durante a aula.
Itten contribuiu ativamente no período da formação da Bauhaus, sendo,
inclusive, responsável pelo curso preliminar da escola. Porém, era intolerante a
idéias divergentes das suas e não aceitava o rumo industrial que a escola
propunha às criações, vendo-se num dilema “já que se tratava de relegar a um
58
segundo plano o artista e de servir de mediador entre a arte livre e a criação de
formas funcionais” (Wick, 1989, p. 161). Tal insatisfação que o levou a se
desligar da escola em 1923. Somente em 1961 publica A arte da cor onde
exprime suas idéias e experiências sobre as cores.
Considerava que o verdadeiro mestre é aquele que estimula os talentos
a aflorarem, e assim poderia trabalhar da maneira mais adequada os pontos
fortes e os pontos fracos de cada aluno.
O grande foco de suas aulas é a descoberta do estilo de cada um; é a
expressão individual. Através de técnicas de auto-conhecimento, carregadas
de filosofias orientais, ele propõe a integração de corpo e espírito, visando à
unidade. Sendo que é no âmago deste ser uno que está o verdadeiro artista
que há em cada indivíduo.
Para Itten era essencial que o aluno praticasse exercícios em casa, tanto
para forçar a assimilação quanto para forçar a reflexão, pois considerava que o
trabalho reflexivo individual é tão importante quanto os estudos realizados em
grupos, em sala de aula.
Itten declarou, em seu plano de aula, três objetivos para o curso
preliminar da Bauhaus, conforme discorre Barros (2006, p. 64 e 65):
1. Libertar as forças criativas para o trabalho genuíno e autônomo. A idéia de Itten era fazer com que os alunos atingissem aquilo que ele chamou de trabalho genuíno por meio de suas próprias experiências e percepções. Ele acreditava que a confiança necessária para desenvolver um trabalho deveria ser conquistada pelos estudantes, de modo que se libertassem gradualmente de convenções mortas. 2. Incentivar a orientação vocacional por meio de exercícios. Itten percebe, nos exercícios com materiais e texturas, uma forma de tornar a escolha da carreira mais fácil para os estudantes. Os materiais que despertassem maior interesse no aluno (madeira, metal, vidro, pedra, argila, etc.) trariam maior estímulo à sua atividade criativa. 3. Integrar os princípios objetivos e subjetivos dos elementos do design.
O cerne de sua didática estava realmente no despertar da criatividade
dos alunos, em suas qualidades subjetivas e Itten acredita que somente
59
despertando suas reais qualidades é que poderiam se encaminhar
profissionalmente.
Naturalmente em relação à cor mantinha-se na mesma linha de
pensamento e encorajava os alunos a desenvolverem a harmonia subjetiva.
Para isto, os alunos deveriam identificar – através do auto-conhecimento –
suas preferências cromáticas. A partir daí era possível conhecer mais sobre
suas personalidades, temperamentos, tendências. Cada aluno elaborava sua
própria paleta, com as cores de sua preferência, o que Itten chamava de timbre
subjetivo.
De acordo com Barros (2006, p.77) cerca de vinte anos depois a
psicologia passou a utilizar este recurso em estudos, relacionando as cores a
estados emocionais.
Portanto, segundo Barros (2006, p. 68), a metodologia de Itten consistia
em despertar, liberar a imaginação e a criatividade e depois introduzir técnicas
e práticas, para, por fim, tornar o projeto funcional para ser industrializado.
Itten compartilhava com Kandinsky a idéia da correspondência entre
forma e cor, e acreditava que as formas geométricas também podem transmitir
emoções.
Na Introdução de A arte da cor (1969, p. 11, tradução nossa), Itten diz
que a teoria por ele proposta provém da experiência e da intuição de um pintor
e, ainda, de forma poética, diz que os segredos mais profundos e verdadeiros
da cor são vistos com o coração.
Itten apostava em exercícios com contrastes para expandir a percepção
dos alunos e, ainda, na observação e análise das obras dos grandes mestres
da pintura. Ao iniciar a parte teórica do curso, discorria sobre os aspectos
físicos da cor, sobre a história dos estudos sobre cor e, depois, sobre os dois
sentidos distintos atribuídos a cor: a cor como agente (pigmento) e os efeitos
que a cor causa no indivíduo.
Itten apoiava a criação de trabalhos em que a cor fosse o grande
protagonista e, para isso, acreditava que o artista precisava desenvolver
apurada sensibilidade cromática, além do domínio dos pigmentos, possível
apenas com a experiência.
60
Através de suas pesquisas sobre cor, Itten concluiu que o conceito de
harmonia varia de acordo com julgamentos subjetivos individuais e, por isso,
defendeu veementemente uma abordagem objetiva da harmonia das cores,
que buscasse o equilíbrio perante o olho humano, um equilíbrio psico-
fisiológico. Assim, segundo Itten (1969, p. 23, tradução nossa) podemos
chamar de harmonia grupos de cores cujo efeito seja agradável e postulou
harmonia = ordem.
Com base em seus estudos sobre contrastes, combinações e harmonia
elabora o círculo cromático de 12 cores, a partir das primárias, que considerou
a base fundamental de sua teoria da cor.
16 – Círculo Cromático de Itten. Fonte: Barros, 2006.
O diâmetro apresenta as cores complementares posicionadas
opostamente e sua mistura resulta em cinza neutro. As cores primárias estão
nos triângulos centrais e também no círculo, nos espaços indicados pelos
triângulos.
As combinações que não resultem no cinza neutro podem ser
expressivas ou discordantes, causando um efeito excitante e provocante.
O círculo permite, também, as combinações harmônicas através de
formas geométricas que podem ser sobrepostas ao triângulo e cada um dos
vértices apontarão para as cores que se harmonizam. Segundo Itten (1969,
p.23, tradução nossa):
As combinações harmoniosas podem variar de diversas maneiras. As figuras geométricas usadas – triângulos eqüiláteros e isósceles, quadrado e retângulo – naturalmente podem ser desenhadas a partir de qualquer ponto do círculo.
61
Eu posso girá-los no círculo, substituindo assim o triângulo amarelo-vermelho-azul pelo triângulo amarelo-laranja/vermelho-violeta/azul-verde ou pelo triângulo laranja/violeta/verde, ou o triângulo vermelho-laranja/azul-violeta/amarelo-verde. Posso fazer o mesmo com as outras figuras geométricas.
Avançando ainda mais em seus estudos sobre a cor, utiliza a esfera
cromática, criada por Philipp Otto Runge, que permite visualizar as misturas
entre os matizes, os tons e os contrastes.
17 – Círculo Cromático em três dimensões. Fonte: Barros, 2006.
Itten propõe dois cortes ao meio, na horizontal e na vertical, que
permitem visualizar o interior da esfera. Nas extremidades tem-se o branco e o
preto e as cores vão se degradando em tons de acordo com a luminosidade, e
em seu núcleo há a cor cinza, que é mistura das cores puras.
Posteriormente, a partir da idéia da esfera, cria a estrela cromática, que
se tornou a marca de seu período na Bauhaus. O extremo branco da esfera
passa a ser o centro na estrela e o extremo preto passa para as pontas da
estrela.
62
18 – Estrela Cromática. Fonte: Barros, 2006.
2.3.3 Albers
Antes de ser professor, Josef Albers foi aluno na Bauhaus. Quando
ingressou na inovadora escola para dar continuidade aos seus estudos sobre
arte, já possuía experiência como educador do ensino elementar. Foi aluno de
Itten no curso preliminar, que, mais tarde, viria a assumir. Assim como o
mestre, fia-se na metodologia de incentivar a experiência antes do
conhecimento teórico, incentivando os alunos a conhecer os materiais através
de exercícios de experimentação.
Somente em 1963 publicou Interação das cores, após vasta experiência
no ensino da cor, na Bauhaus e na Universidade de Yale, nos Estados Unidos,
considerado um compêndio de suas aulas em Yale. Sobre o livro disse: “O
objetivo desse estudo é desenvolver – através da experiência – por tentativa e
erro – um olho para a cor.” (Albers, 1975, p.1)
Albers não acreditava que a figura tradicional do professor, autoritário e
disciplinador, fosse capaz que obter os melhores frutos dos alunos. Por isso,
apostava em uma postura oposta, incentivando os alunos, encorajando-os em
livres descobertas através da manipulação dos materiais e das cores. Assim,
63
os próprios alunos identificavam as propriedades da matéria-prima e
compartilhavam suas impressões, sendo corroborados ou corrigidos pelo
mestre conforme o caso.
Somente após muitas experiências com a cor e já dotados de um olhar
mais apurado para as possibilidades cromáticas, os alunos poderiam começar
a analisar as obras dos grandes mestres da cor. Faziam exercícios
reproduzindo as cores utilizadas, tentando capturar a impressão geral da obra,
normalmente com papéis coloridos.
Embora não tenha ministrado um curso específico sobre cor na
Bauhaus, em suas aulas abordava a importância da percepção das cores e
suas interações, os efeitos ópticos, o contexto cromático, sempre a partir da
experimentação. Nas palavras de Barros (2006, p. 219): “Com a percepção das
interações cromáticas, a cor se revela um mecanismo autônomo, que funciona
independentemente das formas”.
19 – Josef Albes, Homenagem ao quadrado: Com raios, 1959 e Homenagem ao quadrado: Fala suave, 1969. The Metropolitan Museum of art. Óleo sobre masonite.
Para Albers não é possível compreender a cor em todos os seus spectos
analisando-a isoladamente; é preciso compreender sua relatividade e as inter-
relações entre as cores. Daí a importância do contexto cromático. Se uma cor
aparecer com outra cor em plano de fundo, a percepção da primeira será
sensivelmente afetada pela segunda.
Em uma imagem é preciso analisar as proporções entre as áreas
coloridas, a adequação da cor ao tema proposto e o objetivo da imagem – no
âmbito da comunicação visual. Albers considerava que o poder de
comunicação das cores perde forças se analisado fora de seu contexto,
64
contudo, com a sensibilidade aflorada, é possível utilizar ou perceber os efeitos
desejados com o uso da cor na concepção da imagem.
Albers instigava os alunos a brincarem com as ilusões cromáticas,
fazendo exercícios com recortes, sobrepondo cores e formas a fim de obter
efeitos ópticos.
No exemplo abaixo podemos observar como o fundo altera a percepção
da cor dos retângulos centrais. O fundo escuro faz com que a cor central
pareça mais clara do que no primeiro quadrado (que tem fundo de cor clara).
20 – Exemplo de ilusão cromática – Influência da cor de fundo. Fonte: Barros, 2006.
Segundo Albers, muitos fatores podem alterar a percepção da imagem,
como a intensidade da luz, textura ou o entorno. Barros (2006, p.250), diz-nos
que Albers concluiu que não é possível que um modelo de harmonia ou
combinações seja capaz de compreender todas as possibilidades de fatores
variáveis.
65
Albers também utiliza o recurso da transparência para trabalhar, com
seus alunos, as misturas cromáticas.
Um efeito muito interessante que atraiu Albers foi a mistura óptica, onde
duas cores ou mais, posicionadas de acordo com o tamanho, são percebidas
simultaneamente pelo olho, causando a sensação de uma terceira cor.
Portanto, as cores originais desaparecem e o olho percebe apenas uma nova
cor. Efeito explorado pelo pontilhismo, técnica nascida do impressionismo,
onde pequenos pontos de cor justapostos provocam um efeito óptico para o
observador. Na época, os adeptos do pontilhismo alardearam que haviam se
baseado nas teorias de Chevreul3 para desenvolverem a técnica.
21 – Exemplo de Pintura Pontilhista. Georges Seurat, Tarde de domingo na ilha de Grande Jatte, 1884. Art Institute of Chicago. Óleo sobre tela.
Albers deixa para o fechamento do livro “Interação da cor” a
apresentação de seu Triângulo Cromático, formado por nove pequenos
triângulos que abrangem os acordes cromáticos, conforme podemos observar
na figura número 22.
O triângulo é composto pelas cores primárias, secundárias e
complementares.
3 Chevreu foi um químico francês que estudou minuciosamente as teorias de Da Vinci sobre cor e publicou Da lei do contraste simultâneo das cores.
66
Embora os acordes cromáticos tratem essencialmente da harmonia e
das escalas de cores, Albers identificou combinações às quais atribuiu estados
sensíveis, como combinações serenas, impositivas e melancólicas.
22 – Triângulos cromáticos. Fonte: Barros, 2006.
2.3.4 Klee
Quando foi convidado a lecionar na Bauhaus, Klee já era um artista
consagrado, possuía domínio sobre a cor e, portanto, tinha o intuito de
transmitir seus conhecimentos aos alunos, tornando mais fáceis seus caminhos
no universo da cor.
Em 1920, Klee foi convidado a lecionar na Bauhaus, convite considerado
inusitado, pois Klee era conhecido no meio por praticar a “arte pela arte”, sem
nenhuma outra preocupação, enquanto a Bauhaus era conhecida por seus
67
objetivos ligados à produção industrial. Ainda assim, Klee lecionou na Bauhaus
durante onze anos.
Segundo Wick (1989, p. 316), Klee assim como Itten, acreditava que o
artista era feito à imagem e semelhança de Deus, e dessa premissa deriva a
força criativa do artista. Destarte, Klee entendia a arte como metáfora da
criação, portanto, não poderia ser inteligível a todos.
Assim, utilizando as próprias palavras de Wick (1989, p. 316 – 317), para
Klee a tarefa da arte é:
...contrapor com seus meios próprios uma realidade distinta, invisível, à realidade visível deste mundo, podendo assim, chamar a atenção para a realidade do visível, para a limitação do elemento telúrico. Para Klee a função da arte (...) é a criação de uma ordem nova, cósmico-transcendental. Assim, Klee entende a arte como um instrumento através do qual se torna possível transcender ao aqui e agora, desviar-se da realidade cotidiana, do “cinza dos dias úteis” e levar um consolo aos homens.
Assim como os demais professores da Bauhaus que vimos neste
trabalho, Klee incentivava a liberdade na criação, o uso da imaginação, incitava
os alunos a encontrarem seus próprios caminhos.
Segundo Gombrich (1999, p. 578), Klee acreditava que:
A própria natureza cria através do artista; é o mesmo poder misterioso que gerou as fantásticas formas dos animais pré-históricos e o reino feérico e sobrenatural da fauna dos mares abissais que está ainda ativo no espírito do artista e faz suas criaturas crescerem.
Após, aproximadamente, quatro anos lecionando na Bauhaus, Klee
passou a reunir suas anotações sobre as aulas e os estudos de preparação
das aulas, que seriam publicados em 1964 sob o título Pedagogical
sketchbook: The thinking eye.
Em seus documentos nota-se uma preocupação principal com a forma e
somente a parte final do livro é dedicada à cor. Conforme Barros (2006, p. 48),
Klee mostrava-se mais preocupado com relações entre tons do que com as
propriedades de cada cor.
68
A mesma escrita poética que se apresenta em seus diários permeia
suas anotações como mestre da Bauhaus.
Klee também compartilhava com Kandinsky – grande amigo desde
período anterior a Bauhaus – as idéias sobre as ligações entre cor e sons.
Poderíamos conjecturar que esta idéia pode ter sido especialmente alimentada
pelo fato de Klee também ser músico, tendo inclusive vivido um grande dilema
sobre qual carreira seguir.
Não obstante o desejo de transmitir aos alunos suas impressões e
experiências, Klee faz referência a outros teóricos que, de alguma maneira,
influenciaram seu pensamento. Dentre eles cita Kandinsky, pelas noções de
movimento da cor e pela associação da cor com os sons, e Goethe pela
doutrina das cores.
Para ele as cores não são elementos estáticos, possuem movimento,
estando em constante transformação. E o artista deve mergulhar neste
universo buscando os elementos geradores das cores. Trata-se de um
processo individual e introspectivo.
Klee e Kandinsky não tiveram formação em pedagogia, como Itten e
Albers, e, por isso, acabaram desenvolvendo metodologias mais interessadas
no conteúdo teórico do que no método educativo. Ainda que sem formação
específica, Klee foi um professor bastante dedicado e preocupava-se com o
aprendizado dos alunos, buscava sempre desenvolver técnicas que
facilitassem a compreensão da teoria, chegando a desenvolver modelos
gráficos para orientar na aplicação de tinta. Devido ao fato de não ter formação
específica em pedagogia e a timidez para falar em público, sentia-se forçado a
preparar detalhadamente suas aulas, pois assim sentia-se mais seguro. Foi
essa sua preocupação em pensar minuciosamente as aulas que permitiu a
publicação de The thinking eye.
O contato com a natureza é considerado primordial por Klee. Ele
incentivava seus alunos a contemplarem a natureza além de libertar a intuição.
O ensino da arte de Klee engloba três principais aspectos: primeiro, a
relação entre arte e natureza, depois a questão do movimento e, por fim, mas
69
não menos importante, a função primordial da intuição e do intelecto na
criação.
Klee baseou sua metodologia em sua própria experiência como artista,
buscando transmitir aos alunos suas experimentações e descobertas. Para ele
as leis que regem as artes são deduzidas das leis da natureza, por isso
acreditava que o olhar atento, guiado pela intuição, e com a contribuição do
intelecto, era a essência do aprendizado do artista.
Nesse sentido, diz-nos Barros:
Sua intenção, ao indicar o ponto de partida – a origem da expressão –, por meio da interpretação das forças geratrizes da natureza, não era estabelecer normas, e sim incentivar os alunos a percorrer seus próprios caminhos interpretativos, na direção das suas descobertas individuais. (2006, p. 117).
Klee não aceitava a prisão das cores num modelo de círculo cromático
estático, pois entende que as cores precisam de movimento. Por isso, o círculo
cromático de Klee não pode ser “representado como um sistema estático, pois
nele está presente o conceito de movimento” (Barros, 2006, p. 118). Para Klee,
o arco-íris é o mais incrível fenômeno natural cromático, justamente por ser
uma escala de cores puras entre o céu e a terra. No entanto, considerava o
arco-íris um aprisionamento linear para as cores. Assim, numa visão
transcendental, propõe que o arco-íris seja dividido em seis cores e não em
sete, pois as cores das laterais (violeta e azul) podem ser unidas, dando origem
ao seu círculo cromático.
23 – Círculo Cromático baseado no arco-íris. Fonte: Barros, 2006.
“O violeta e o azul-índigo – que significam os limites da nossa visão das
cores – são interpretados por Klee como duas metades”, dessa maneira Klee
70
conclui o círculo cromático que é onde “o conceito cósmico das cores puras
encontra sua representação apropriada” (Barros, 2006, p. 123).
Para o encadeamento das cores primárias, Klee dá o nome de cadeia da
totalidade cromática, onde cada uma das três cores age como uma voz num
cântico a três vozes, fazendo uma analogia com a música.
A satisfação visual depende, em grande parte, do equilíbrio entre as
cores primárias. Em suas ilustrações o cinza costuma aparecer no centro,
como um ponto de totalização. Nas palavras de Klee (1969, p. 499-500, apud
BARROS, 2006, p. 139):
A relação de contraponto entre o azul, o amarelo e o vermelho, o fato de elas formarem uma totalidade balanceada, foi reconhecida há muito tempo. Ouvimos dizer que nenhuma das três vozes deve estar ausente, que não deve haver nem muito nem pouco de qualquer uma. Essa lei é de grande valor quando entendida com o coração. Por que é preciso defender-se contra o esquematismo que tenta colocar a lei nua dentro do trabalho verdadeiro. (...) A simplificação pode levar a tremendos absurdos, ao empobrecimento definitivo, ao fim da vida.
Klee costumava salientar para os alunos que a lei da totalidade
cromática é um conceito de plenitude e não uma regra a ser
inquestionavelmente seguida (Barros, 2006, p. 139).
No tradicional círculo cromático de doze cores, Klee faz uma
representação de acordo com uma escala de importância das cores,
diferenciado-as pelo tamanho da área preenchida.
71
24 – Releitura do círculo cromático de Klee. Fonte: Barros, 2006.
E para concluir recorremos às palavras de Argan (2004, p. 450):
Naturalmente, Klee não projetou casas, móveis ou objetos; com seu ensino, forneceu modelos não de coisas, e sim de comportamento. Ensinou que o projetista, embora projete e deva projetar para uma finalidade específica, projeta sempre para a vida, devendo ter sempre presente a totalidade da vida, com todos os seus estratos e níveis. Na verdade, a finalidade do projetista é eliminar das coisas que projeta qualquer caráter de estranheza, para ambientá-las não mais num espaço-tipo, abstrato ou geométrico, mas no espaço real da existência.
72
Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3
A bA bA bA busca usca usca usca de Van Gogh pela cde Van Gogh pela cde Van Gogh pela cde Van Gogh pela corororor
73
3. A BUSCA DE VAN GOGH PELA COR
“A cor em si fala uma linguagem simbólica” Van Gogh4
Movidos pelo desejo de conhecer a cor em todas as suas possibilidades,
muitos artistas empreenderam viagens para terras distantes buscando a luz
ideal para liberar todas as nuances cromáticas. Van Gogh, após descobrir a
potencialidade das cores, também parte em busca da luz e da cor.
Seguindo a proposta deste trabalho, de um estudo da relação de Van
Gogh com a cor, vamos dedicar este capítulo à análise dos documentos de
processo com foco na cor. No entanto, consideramos que a relação do artista
com a cor não se dá, apenas, na viagem que realiza para o sul da França em
busca de luz, mas ao longo de todo o seu processo de criação artístico.
Conforme vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a rede do processo de
criação de um artista é composta por tudo o que o cerca e, naturalmente, sua
própria história de vida. Por este motivo, iniciaremos este capítulo com uma
apresentação da vida do pintor, para que, assim, possamos compreender
quem era Vincent Van Gogh, sua relação com a arte e, conseqüentemente,
com a cor. Selecionamos alguns fatos da vida do artista que consideramos
relevantes para compreendermos seu percurso através das cartas.
Após esta introdução a Van Gogh, propomos compreender sua relação
com a cor considerando-se três períodos distintos. O primeiro período é o mais
escuro de sua obra, o período em que começa a pintar e que reside a maior
parte do tempo no norte europeu; o segundo período é o período parisiense,
quando o artista se aproxima e recebe influência impressionista e, ainda,
quando conhece as gravuras japonesas; consideramos que o terceiro período é
o da verdadeira busca pela cor, quando Vincent se muda para a região do
Mediterrâneo, buscando luz, cor e características semelhantes às que
propiciaram as gravuras coloridas japonesas. Destarte, este capítulo está
4 Van Gogh. Carta nº 634, de 28/06/1888.
74
divido em uma breve biografia do artista, a luz do norte, a luz da cidade luz e a
luz do sul.
Van Gogh, hoje considerado um dos maiores gênios da arte e um
expoente no uso da cor, pintando com ímpeto e paixão muitas vezes doentia,
não descobriu seu talento ainda na infância, como muitos artistas consagrados.
Ao contrário, já era adulto quando começou a pintar. Dedicou-se ao ofício por
menos de uma década, no entanto, trabalhou de forma tão intensa que
produziu 879 obras.
As cores que Van Gogh usava eram escolhidas minuciosamente, as
pinceladas eram carregadas e extremamente expressivas, o movimento faz a
tela transbordar em energia e provocar sensações. Criou sua própria
linguagem artística, não aceitava normas e regras estéticas, pois, para ele, o
fazer artístico era uma válvula de escape emocional. Sempre foi muito
perturbado emocionalmente, instável, sofria de crises de depressão e
momentos de êxtase, alternando ciclos de internações, crises e trabalho árduo,
culminando no suicídio.
3.1 Van Gogh: Um retrato linear em preto e branco
Vincent William Van Gogh nasceu em 1853 e recebeu o mesmo nome
de seu irmão mais velho, que nascera em mesmo dia e mês, 30 de março, mas
falecera com apenas seis meses de vida.
Vincent nasceu em Groot Zundert, na província de Brabante
Setentrional, na Holanda, em uma família extremamente tradicional e religiosa;
seu pai era pastor de uma comunidade holandesa da Igreja Reformada, como
há muitas gerações os Van Gogh costumavam ser. Era o mais velho de seis
irmãos, contudo, sendo mais próximo de dois deles, apenas: Théo e Willemina.
Sobre sua infância sabe-se que seu lar era tranqüilo e pairava uma espécie de
atmosfera sacra. Enquanto seu pai era pastor, seguindo a tradição religiosa da
família, outra veia da família era ligada a arte. Aos 16 anos, em 1869, Vincent
começou a ter contato com a arte, trabalhando em uma loja de arte de seu tio,
75
em Haia. Funcionário aplicado e confiável, foi transferido para Londres a título
de promoção. No entanto, o período em Londres não foi bom ou produtivo e ele
acabou sendo transferido para Paris e, posteriormente, demitido. Tais eventos
provocaram fortes transformações na personalidade do jovem. Suas cartas ao
irmão Théo apresentam um tom mais melancólico e pesado. Foi em Londres
que sofreu sua primeira rejeição amorosa, fato que o afetou devastadoramente.
Segundo Walther e Metzger (2006, p. 20): “Do homem até então aberto,
animado e liberal passou a ser um excêntrico e solitário taciturno que preferia a
leitura noturna da Bíblia ao contato com semelhantes”.
Vendo sua carreira no mercado de arte degringolar, surge no artista um
intenso sentimento religioso. De vendedor de obras de arte tornou-se pregador
leigo com o auxílio do pai, no Borinage, região de minas na Bélgica.
Van Gogh acreditava que, para praticar a religião com sinceridade, era
preciso compartilhar da vida dos mineiros, vestir-se, comer e beber como eles.
Somente estando em condição miserável seria digno de pregar religião para
eles. Segundo Coli (2006, p. 61), seus superiores chegaram a alertar a família
sobre uma possível “loucura mística”. Vincent acaba sendo desligado de suas
funções.
E, assim, sentindo-se perdido e infeliz com o rumo que a vida tomara,
decidiu dedicar-se a arte, conforme nos descrevem Walther e Metzger (2006, p.
56-57):
O seu primeiro espírito religioso, que implicava uma imitação evangélica de Cristo e que era expressa nos cuidados com o próximo, não ajudava a dominar o seu incessante descontentamento consigo próprio e com a vida em geral. A partir da altura em que ele começou a ver os dogmas da doutrina num sentido mais abstrato, como uma forma de ver o mundo, tornou-se possível uma nova aproximação à arte.
Van Gogh se dedicou à arte com a mesma intensidade com que se
dedicou à religião. Matriculou-se na academia de arte, estudava e praticava
constantemente. Muito do que aprendeu se deve às cópias que fazia dos
grandes mestres e de um livro de exercícios de desenho de Bargues.
76
Entretanto, pouco tempo depois via sua vida desmoronar novamente.
Apaixonou-se por uma prima que acabara de ficar viúva, que recusou as suas
investidas. Segundo Coli (2006, p. 55): “Quer casar-se com ela, mas não tem
emprego, vivendo na casa dos pais e na dependência dos seus. Além disso,
nessa época, seu caráter estranho (...) já provocava a desconfiança da família”.
Vincent não conseguia se conter e suas demonstrações de amor
constrangiam a toda a família, resultando em sua expulsão da casa do pai.
Vincent retornou à Haia e passou a estudar arte com Mauve, um pintor
que era casado com sua prima. Neste período apaixonou-se por Sien, uma
prostituta que lhe servira de modelo, que tinha uma filha e estava grávida.
Viveram juntos em seu pequeno estúdio por quase dois anos, numa situação
de completa miséria. Devido à falta de dinheiro, Van Gogh optou por deixar de
lado a pintura e dedicou-se com afinco ao desenho e as aquarelas, que
custavam menos.
Com o fim do relacionamento, em dezembro de 1883, decidiu retornar
para a casa dos pais, em Nuenen, onde permaneceu pelos dois próximos anos.
A morte de seu pai, em 1885, tornou insustentável sua permanência na casa
da família e, por isso, mudou-se para Paris, onde também passaria dois anos
vivendo com Théo.
O período em Paris foi extremamente valioso para o artista em sua
busca pela cor e luz, especialmente pelo contato com a técnica impressionista,
o que o impulsionou a procurar um lugar onde pudesse encontrar ainda mais
condições climáticas para pintar ao ar livre observando as cores da natureza.
Em 1888, Van Gogh se mudou para o sul da França, onde encontrou um
clima primaveril e as cores que tanto desejava. Estava tão encantando com as
possibilidades que o sul lhe oferecia que decidiu montar uma espécie de
colônia de artistas, onde poderiam viver em comunidade, compartilhando uma
vida comum, trocando experiências e dividindo as despesas. Nascia, assim, a
Casa Amarela, fruto de um sonho que acabou fracassando. O único pintor que
se mudou para lá foi Gauguin, meramente atraído pelas vantagens financeiras,
como veremos mais adiante. A convivência dos dois não foi harmônica,
culminando com o episódio em que Van Gogh cortou o lóbulo da própria
77
orelha, que seria apenas o início de um período de crises, internações e
trabalho intenso.
Após duas curtas internações, em abril de 1889, Vincent decide se
internar num sanatório em Saint-Rémy, para que possa ter um pouco de
tranqüilidade e tentar evitar as crises, que lhe assombravam.
Em 1890, vende sua primeira e única tela. Neste período também foi
publicado o primeiro artigo sobre o pintor. Acreditava que finalmente o
reconhecimento estava chegando e, ao mesmo tempo em que se sentia feliz
por isso, também se sentia apreensivo. Pouco tempo depois e estando mais
animado, Van Gogh mudou-se para Auvers-sur-Oise, uma pequena cidade
próxima a Paris, para tratar-se com o afamado Dr. Gachet. Todavia, sua
estadia na cidade seria de apenas dois meses, encerrando-se com sua morte
em 29 de julho de 1890, aos 37 anos. Théo não suportou perder o irmão, e
iniciou um processo de loucura e doenças, falecendo cerca de seis meses
depois de Vincent.
Johanna Bonger, esposa de Théo, reuniu todas as cartas que encontrou
e efetuou a primeira publicação em 1914.
3.2 A luz do norte
A primeira fase da obra de Van Gogh é caracterizada por questões
sociais e cores escuras, marcas do trajeto que sua própria vida percorreu. Esse
foi um período de conflitos emocionais intensos, decepções amorosas, dúvidas
vocacionais entre arte e religião, entre ser ou não ser artista. Trata-se de um
período de descobertas – não apenas de técnica, mas, também, descobertas
pessoais.
Para facilitar a compreensão do processo criativo do artista, elaboramos
um mapa de seu projeto poético. No entanto, a visualização de um único mapa
comprometia o entendimento devido ao excesso de informações. Assim,
consideramos melhor dividir o mapa em três partes, obedecendo aos mesmos
78
critérios da divisão deste capítulo, ou seja, a influência da luz do norte, a luz da
cidade luz e a luz do sul.
Sobre projeto poético, recorremos à definição de Salles (2004, p. 37):
“São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista; estamos,
portanto, no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que
regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único”.
Naturalmente, sabemos que sua rede é composta por muitos pontos, no
entanto, trouxemos os principais pontos em relação ao desenvolvimento de sua
cor.
79
3.2.1 Religião e arte
A religião era um tema muito presente na vida dos Van Gogh. Foram
gerações de pastores e Vincent cresceu num lar em que arte e religião
convivam lado a lado. Inicialmente, escolhe seguir a carreira de seu tio Cent,
sendo comerciante de obras de arte na galeria do tio, em Haia, posteriormente
em Londres e em Paris.
Pouco a pouco começou a sentir que estava aflorando a vocação para
pastor bem como a vontade de trabalhar como missionário, desenvolvendo
uma compulsão religiosa, que Walther e Metzger definem como uma fuga de si.
Seu fascínio pela religião era tão grande que seu pai acabou
concordando em conseguir-lhe uma colocação como pregador leigo, no
Borinage, uma região de minas muito pobre na Bélgica que, segundo Coli
(2006, p. 61): “O lugar é terrível. Salários baixíssimos, epidemias, acidentes de
trabalho cotidianos”.
Na carta número 151 de 16/04/1879, fala sobre uma visita que fez a uma
mina chamada Marcasse, onde passou 6 horas a 700 metros de profundidade
observando as pessoas, o local e o trabalho. Sobre as pessoas, que mais tarde
retrataria repetidas vezes, escreveu:
É um local sombrio e à primeira vista tudo em volta tem algo de sinistro e mortal. Os trabalhadores são normalmente pessoas magras e abatidas, que parecem exaustos e famintos, castigados pelo sol e prematuramente envelhecidos e as mulheres geralmente pálidas e mirradas. (...) São pessoas muito incultas e ignorantes, a maioria é analfabeto, contudo são astutos e ágeis em seu difícil trabalho.
Tudo o que Vincent fazia era com ardor, fixação e intensidade. Uma
paixão tão profunda que sempre esteve no limiar entre a razão e a loucura. Em
seu afã doentio pela religião desenvolveu um espírito de auto-sacrifício,
acreditando que somente assim seria digno de praticar a religião, pois para ele
o amor ao próximo não pode ter limites. Doou suas roupas, mudou-se para
uma cabana em ruínas, dormia no chão de pedra ao lado da cama e se
alimentava de pão e água. Após seus excessos, o conselho religioso optou por
destituí-lo da função de pregador. Ao buscá-lo, seu pai o encontrou em
80
profunda miséria, dormindo sobre uma palha e sem ter nada para comer (Coli,
2006, p. 61).
Decidir ser artista não foi uma decisão fácil e Van Gogh passou alguns
meses em profunda melancolia, sem se corresponder com o irmão, refletindo
sobre o assunto. Inicialmente entendia a arte como uma forma de praticar
religião, colocando a beleza ao alcance do homem. Na carta número 155 de 22
ou 24/06/1880, diz que Deus está no artista quando ele cria uma obra-prima.
De acordo com Coli (2006, p. 62), esse ardente sentimento de
religiosidade de Van Gogh desaparecerá aos poucos à medida que for
encontrando na pintura “a verdadeira vocação para a qual nascera”.
A partir daí começou a se dedicar a arte com afinco, com a mesma
paixão intensa com que se entregou à religião. “Então veja que eu estou
avançando com força total, as coisas não são assim tão fáceis, requerem
tempo e, além disso, um pouco de paciência”. (Carta nº 160, 1/11/1880).
Matriculou-se na academia de arte em Bruxelas, recebendo o apoio da família.
Após um período em Nuenen, mudou-se para Haia onde estudava arte
no estúdio de Mauve, um artista casado com sua prima, e onde começou a
estudar o uso da cor, que pretendia dominar. Vincent não poderia imaginar que
por mais que progredisse e que conhecesse a cor venderia apenas uma obra
enquanto estava vivo e que seria mantido por seu irmão até o fim da vida.
Embora Van Gogh não tenha encontrado êxito nos estudos formais –
tendo abandonado a escola e não considerado a hipótese de freqüentar uma
universidade – sempre foi autodidata. Seu aprendizado de arte não foi
diferente. O pintor não conseguia manter-se por muito tempo nas academias:
“Sua visão original, sua independência, sua concepção particular de arte
opunham-no ao ensino professorado nas escolas de pintura, nas academias de
Belas-Artes” (Coli, 2006, p. 73). Devido a sua natureza autodidata, estudou
muito autores de técnicas de pintura e cor, como Bragues, Blanc, Cassagne e
Bracquemond; e de anatomia, como Marshall, cujo livro Anatomia para artistas,
Van Gogh considerava que seria útil por toda a vida.
81
Em 1880, Van Gogh comentou com o irmão sobre a sua natureza
autodidata. Na carta nº 155 diz ter uma paixão praticamente irresistível por
livros, e ler é uma necessidade, assim como se alimentar.
Sobre suas primeiras pinturas, Tersteeg, um negociante de obras de arte
que fora seu gerente na Goupil, disse que pareciam mais uma alucinação
causada pelo ópio que Vincent deveria tomar para superar a dor de não
conseguir pintar aquarelas. Esse comentário deixou Vincent extremamente
magoado, abatido e frustrado, mas não o impediu de continuar. Sua
enlouquecida ânsia por pintar o impedia de desistir e ele persistia, superando
os obstáculos. Conforme Coli (2006, p. 75):
Etapa por etapa, ele vence as dificuldades: primeiro o desenho da figura humana, dos objetos isolados; depois os conjuntos, e o espaço, a perspectiva; enfim as cores. Nenhum passo é dado sem que o terreno anterior esteja perfeitamente firme, sem que a dificuldade precedente esteja perfeitamente dominada.
25 – Natureza morta com bíblia, 1885. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
3.2.2 Os amores
No período em que trabalhou em Goupil de Londes, Vincent morou na
casa de uma solícita família formada por uma senhora viúva e sua jovem filha.
82
Segundo Fell (2007, p. 39), Vincent invejava o relacionamento afetuoso e
cúmplice entre mãe e filha, teria nutrido esperanças de se casar com a jovem
Loyer e assim fazer parte da família, mas foi rejeitado.
De acordo com Walter e Metzger (2006, p. 35), foi após esta rejeição
amorosa que seu comportamento mudou completamente e o excelente
funcionário recém promovido tornou-se ainda mais introvertido e até mesmo
mais ríspido com os clientes. Ainda para os autores, relações perturbadas e
infelizes com as mulheres iriam sempre devastá-lo emocionalmente.
Em 1881, ao retornar para a casa dos pais, por motivos financeiros,
Vincent se apaixonou por sua prima Kee Vos, que era recém viúva, tinha um
filho pequeno e estava passando um período com sua família. Algumas vezes
Kee acompanhou Vincent quando ele saia para desenhar, mas ele entendeu
que seria por um interesse romântico e não apenas por interesse pela arte. Kee
recusou todas as suas investidas e retornou para Amsterdã, pois seus avanços
desmedidos tornaram a situação insustentável.
A família de Vincent sentia-se profundamente envergonhada com sua
postura, o que trouxe ainda mais conflitos familiares até culminar na sua
expulsão da casa do pai. O casamento entre primos era proibido por lei na
Holanda naquela época, bem como ia contra os ensinamentos religiosos (Fell,
2007, p. 21).
Dizendo-se perdidamente apaixonado e incapaz de amar novamente
outra mulher, foi procurar Kee em Amsterdã. Sem conseguir vê-la, colocou a
palma da mão direita no fogo de uma lamparina e ameaçou só tirar quando
conseguisse falar com ela. Seu tio apagou a chama, enfaixou sua mão e o
ajudou a encontrar uma hospedaria.
Finalmente Vincent entendeu a recusa e decidiu esquecê-la.
No período que estava em Haia, apaixonou-se por Sien, uma prostituta
que posou de modelo, estava grávida e tinha uma filha. Vincent os acolheu em
seu minúsculo ateliê. Sua família não aprovou o relacionamento o que agravou
a crise com seus pais. Mauve e Théo também não aprovaram sua decisão e
mantiveram um certo distanciamento. Théo tentou não enviar mais dinheiro ao
83
irmão, mas acabou cedendo às suplicas desesperadas de um homem que
precisava sustentar uma família sem ter nem ao menos o que comer.
Vincent fez com que Sien deixasse a prostituição, ofereceu-lhe
casamento, acolheu sua família. Contudo, ele teria que sustentá-los. Para isso
passou a trabalhar freneticamente, investiu na pintura, manteve os desenhos,
esforçava-se ao máximo que sua saúde lhe permitia. Mas, ainda dependia
exclusivamente do irmão para sobreviver.
Por um período de aproximadamente um ano, Vincent afastou-se da
pintura – que aumentava muito seus gastos – e dedicou-se aos desenhos e
aquarelas, que considerava mais vendáveis. Baseados nas análises das
cartas, consideramos que este período vai de setembro de 1882 a agosto de
1883.
Independente do quanto Vincent se dedicasse à arte, os problemas
financeiros continuavam presentes, tornando inviável a tão desejada vida em
família. Diante de tantas necessidades e das condições precárias em que
viviam, Sien voltou a se prostituir, algo inaceitável para Vincent, porém ele não
conseguia abandoná-los. Sentia-se responsável pela família.
Entretanto, acabou convencido pelo irmão a partir em busca de se
dedicar completamente à sua arte. Por mais penosa que fosse a separação,
Vincent seguiu para Drente e depois para Amsterdam, um período marcado
pela melancolia e sentimento de culpa por não ter conseguido cuidar da família.
Os vinte meses que passou com Sien foram de extrema pobreza e de
trabalho árduo e intenso, por isso Vincent sentia uma identificação ainda maior
com as classes mais pobres de trabalhadores, tendo em comum, também, a
velocidade de produção.
Nos três meses seguintes, em Drente, expressou pictoricamente a
solidão, a melancolia, a frustração, embalado pelas condições climáticas do
local que ele considerava soturno e extremamente chuvoso. Van Gogh
experimentava novamente a solidão. Em dezembro de 1883 decidiu retornar
para a casa dos pais, em Nuenen, onde permaneceu pelos dois próximos anos.
Sobre esse processo, Walther e Metzger nos dizem que (2006, p. 103):
84
Tinha derramado a sua mania religiosa e o amor desinteressado pelo próximo, e voltara as costas tanto ao sonho de uma vida familiar como ao seu fascínio pelo isolamento; nesse processo adquirira um robusto sentido de autonomia que iria ser a base de uma arte independente dos fatos da vida cotidiana. Dali a pouco em Nuenen, começava a delinear a primeira das suas obras-primas.
26 - Sorrow, 1882. Parte da carta nº 216, de 10/04/1882.
3.2.3 Sociedade
Van Gogh iniciou seu aprendizado na arte a partir de estudos de obras
dos artistas que admirava como Breton, Coubert e Millet. Profundamente
tocado pelas penúrias que viu na região das minas e inspirado pelos realistas,
passou a retratar repetidamente as questões sociais. Conforme Fell (2007, p.
21): “Desenhava rostos marcados pelo trabalho e pelas intempéries, humildes
85
cabanas de sapê e terrenos pantanosos onde famílias de camponeses
ganhavam a vida a duras penas, cultivando batatas”.
Também devido às tradições religiosas de sua família e a função de seu
pai como pastor em pequenos povoados, Van Gogh sempre foi um homem
solidário e nunca esteve alheio às questões sociais a sua volta. Tal
característica tornou mais intenso seu interesse pelo realismo.
Quando iniciou seu aprendizado artístico, dedicou-se a copiar gravuras
de Millet, como o semeador, tema a que recorre muitas vezes. De acordo com
Gombrich (1999, p. 508), Millet queria pintar a vida no campo como realmente
era, queria retratar a verdade e assim como Coubert sua pintura era sincera.
Para Coli (2006, p. 81):
Neste período holandês, é a condição dura dos operários, a miséria dos trabalhadores – temas presentes no realismo de então em Daumier, Millet e na escola de Haia – que ele explora de modo pessoal, muito além da imitação. Van Gogh não desenvolveu ainda suas capacidades de colorista, e é justamente essa ausência da maestria cromática, essas cores feias, sujas, escuras, que lhe permitem figurar, com violência, o mundo dos oprimidos.
Van Gogh nunca soube manter uma distância impessoal dos modelos.
Para Walther e Metzger (2006, p. 72), é uma “proximidade emocional que
resulta de uma imediata identificação com todas as coisas”.
O período do norte também é marcado pelo trabalho em série. Van
Gogh acreditava que, trabalhando o mesmo tema diversas vezes, teria mais
chance de se harmonizar com ele. Para Walther e Metzger, Van Gogh teria se
inspirado nas idéias de empatia afetiva de Carlyle:
A alma e o consciente precisavam ser despertados dentro de nós, o diletantismo era expulso em favor do esforço honesto, o coração de pedra era substituído pelo coração vivo em carne e sangue; e, uma vez isso atingido, um número sem fim de coisas seriam percebidas, coisas que estavam à espera de ser feitas. E assim que a primeira estivesse feita (sentia Thomas Carlyle), a segunda seguir-se-lhe-ia, depois a terceira e por aí adiante até o infinito. (Walther e Metzger, 2006, p. 134)
Abaixo, exemplos da série dos tecelões e de estudos de cabeças:
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27 - Van Gogh, Tecelão, visto da esquerda, com roda de fiar. 1884, Museu de Boston, Óleo sobre tela.
28 - Van Gogh, Tecelão, visto da direita. 1884,. Coleção particular. Óleo sobre tela sobre painel.
29 - Van Gogh, Tecelão organizando fios, 1884. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela sobre painel.
30 - Van Gogh – Cabeça de velha camponesa com touca branca, 1884. Coleção particular. Óleo sobre tela sobre cartolina.
31 - Van Gogh – Cabeça de camponesa com touca branca, 1884. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela sobre painel.
32 - Van Gogh – Cabeça de camponês com cachimbo, 1885. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela
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Vincent, pinta Os comedores de batata aproximadamente um mês após
a morte de seu pai e após uma série de estudos e pinturas de cabeças,
mostrando conhecimento da técnica e do contraste entre claro e escuro, obra
que ele mesmo considerou a melhor que já pintara.
Sobre essa obra Walther e Metzger (2006, p. 163 – 164) trazem uma
pequena análise:
A labuta diária é visível em seus rostos; mas seus olhos indicam confiança, harmonia e satisfação pela sua vida em conjunto, articulando um amor que também é visível nos seus gestos. É como se não houvesse um mundo lá fora para perturbar sua reunião tranqüila com barulho e alvoroço. O próprio Van Gogh luta com o sabor idílico da cena. As figuras ainda têm algo das poses em que as pôs quando lhes fez os retratos. A sua comunicação quase imperceptível, que parece tão eloqüente, de uma atmosfera de harmonia sem palavras, é, em alguma medida, o resultado de uma capacidade insuficiente de transferir os estudos individuais para uma composição de grupo. As pessoas estão a olhar para lá de cada uma delas, pela simples razão de que o pintor nunca os viu juntos. Também o posicionamento nem sempre é muito feliz; Van Gogh colocou as cinco figuras como se estivesse a compor uma natureza morta, mas a ilusão espacial entra em conflito com uma sensação de mera sobreposição cumulativa.
33 – Van Gogh, Os comedores de batata, 1885. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
Van Gogh estava muito satisfeito com os avanços conquistados neste
período, e os sentia afirmados na obra Os comedores da batata.
88
3.2.4 Olhar de artista: percepção e descrição
Arte era um tema sempre presente na correspondência dos irmãos Van
Gogh, pois ambos sempre estiveram ligados a ela. Em janeiro de 1874, na
carta nº 17 enviada de Londres, Vincent entusiasmou-se porque Théo
demonstrava também gostar de arte:
Eu vi em sua carta que você tem a arte no sangue, e isso é uma coisa boa, meu velho. (...) Como eu gostaria de falar com você sobre a arte de novo, mas agora só podemos nos escrever sobre isso muitas vezes. Ache as coisas belas, tanto quanto puder, a maioria das pessoas acha muito poucas coisas belas.
Vincent demonstra, desde as primeiras cartas, um olhar apurado para
arte. De certa forma sua visão do mundo sempre perpassou por algum ponto
da história da arte. Segundo Coli (2006, p. 64), Vincent era pintor mesmo sem
o saber, quando tal ofício ainda não lhe passava pela cabeça ou quando
tentava evitá-lo, como observamos na carta nº 148, de 13, 15 ou 16/11/1878:
Eu gostaria de começar a fazer esboços rústicos de algumas das muitas coisas que se encontra pelo caminho, mas considerando que eu não faria isso muito bem e isso provavelmente me afastaria do meu verdadeiro trabalho, é melhor eu não começar.
Porém, na mesma carta envia um esboço do café “Au Charbonnage”,
dizendo que não é um bom desenho, mas que precisava fazê-lo para mostrar
ao irmão o local onde os mineiros costumam ir em seu tempo livre para beber
um pouco de cerveja.
34 - Desenho na carta nº 148 de 13, 15 ou 16/11/1878
89
Sobre sua percepção, Salles (2008, p. 75), diz que através das cartas de
Van Gogh é possível conhecer as imagens que o atraíam na história da arte.
As conexões que faz com os grandes mestres “funcionam como filtros do
olhar”.
Havia neve nos últimos dias, os dias sombrios antes do Natal. Então, tudo lembrava as pinturas medievais de Bruegel, o camponês, entre outros que foram tão bons em expressar o efeito singular do vermelho e do verde, do preto e do branco. Vez por outra, o que se vê aqui me lembra do trabalho de Thijs Maris ou Albrecht Dürer, por exemplo. (...) Aqui existem caminhos rebaixados, cobertos de espinheiros e de velhas árvores retorcidas com raízes torcidas, que se parecerem exatamente com aquele caminho na gravura de Dürer: O cavaleiro e a morte. (Carta nº 149, de 26/12/1878) Ao redor da mina há miseráveis casas de mineiros, com algumas árvores mortas, completamente negras, cercas de espinho, montes de estrume, lixo, montanhas de carvão inutilizável, etc. Maris teria feito uma bela pintura disso. (Carta nº 151, de 1-16/04/1879) Era tudo uma questão de cores e tons, os matizes das cores do céu, primeiro uma névoa lilás, o sol vermelho está meio encoberto por uma nuvem roxa escura com uma delicada borda vermelho brilhante; ao lado do sol, reflexo de um vermelhão, mas acima uma faixa amarela se torna verde e mais ao alto azulada, o chamado azul cerúleo, e aqui e ali nuvens lilases e acinzentadas recebendo reflexos do sol. O terreno era uma espécie de tapeçaria verde – cinza – marrom, mas cheio de diferentes tons e movimento – a água da vala brilha nessa terra tonal. É o tipo de coisa que Émile Breton, por exemplo, pintaria. (Carta nº 257, de 14/08/1882)
Fica claro desde as primeiras cartas que Vincent se mostra sensível ao
aspecto visual do mundo, as cores, aos detalhes. As descrições que enchem
as suas cartas denotam um olhar de artista, como observamos na carta nº 118
de 31/05/1877:
A costa holandesa estava oculta por faixas de dunas que privam o viajante da vista das águas. Depois de uma longa e árdua escalada até estes montes de areia, levantei os olhos e lá estava o mar! (...) O fato é que esta costa é tempestuosa, e sua cor é variável, em primeiro plano é um fraco amarelo que parece água suja; mais longe, um verde fraco, e à distância, um azul desbotado que se mistura com a linha do horizonte.
90
3.2.5 Estudos – Técnicas e materiais
Através das cartas Vincent relata seus estudos, as descobertas que faz
através de erros e acertos e reflete sobre o seu fazer artístico.
Em setembro de 1881 envia uma carta (nº 172) emocionada ao irmão,
contando sobre seus progressos e que finalmente começou a trabalhar com a
cor, conforme observamos nos trechos da carta e nas figuras, a seguir:
Eu também estou começando a trabalhar com o pincel e com esfuminho. Com um pouco de sépia ou nanquim agora, e depois com um pouco de cor. É certo que os desenhos que eu tenho feito ultimamente não se assemelham muito a qualquer coisa que eu fiz até agora. (...) Assim, o que me parecia ser desesperadamente impossível agora gradualmente torna-se possível, graças a Deus.
35 - Desenho na carta nº 172
36 - Nuvens de tempestade sobre campo, 1881. Coleção particular.
91
E depois, em outubro de 1881 (Carta nº 173), os primeiros passos com a
cor:
37 – Desenho na carta nº 173 38 - Escavador, 1881. Museu Van Gogh. Lápis, giz e aquarela.
Nesse mesmo mês escreveu ao amigo Rappard que, até aquele
momento, estava trabalhando com sépia e aquarela e embora não possa dizer
se há uma melhora em seus desenhos certamente pode dizer que há uma
mudança.
Para Salles (2007, p. 128), o artista se relaciona com a matéria de forma
muito íntima: “Artista e matéria vão se conhecendo, sendo reinventados e seus
significados são, conseqüentemente, ampliados”.
Na carta nº 177, de 17 /10/1881, conta entusiasmado ao irmão que
Mauve lhe dera de presente uma caixa de pintura, contendo pincéis, paleta,
espátula, todos os acessórios necessários para que pudesse começar a pintar.
“Estes dias estão muito bonitos na cor e no tom, quando eu tiver mais
compreensão da pintura eu vou dar uma volta e pintar ao ar livre pra expressar
um pouco isso. Mas, temos que perseverar”.
Sob a tutela de Mauve, em Haia, Vincent começa a aprender as técnicas
da aquarela e a perceber as possibilidades que o uso da cor oferece: “Theo,
que magníficos que são a cor e o tom!” (Carta nº 193, 23/12/1881). E nesse
mesmo período começa a sentir a angústia causada pelo desejo de dominar a
cor: “Agora estou passando um período de luta e desânimo, de paciência e
92
impaciência, de esperança e desolação. Mas eu devo trabalhar de qualquer
maneira, pois daqui a um tempo vou entender mais sobre aquarelas” (Carta nº
199, de 9/01/1882).
Na carta de nº 200, de 14/01/1882, desenhou a vista de sua janela, que
logo depois pintou em aquarela:
39 - Desenho na carta nº 200
40 - Campos perto de Schenkweg, 1882. Coleção privada. Aquarela.
Agora, o que tenho feito ainda não está bom e está longe de ser, mas é algo diferente, tem cores mais fortes e mais vivas e não tem cores opacas. (...) Sinto que estou progredindo e eu vou dominar a arte da aquarela, e não vai levar muito tempo até que meu trabalho seja vendável. (...) Eu vou fazer o que eu puder, vou trabalhar duro e assim que eu tiver dominado o pincel, mais do que sou capaz agora e se eu avançar com vigor e energia, não vai demorar muito para você não precisar mais me mandar dinheiro. (Vincent, Carta nº 201, 21/01/1882)
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As figuras abaixo revelam um avanço no uso da cor. Vincent comenta na
carta nº 250, de 23/07/1882, que suas obras continuam bem delineadas,
desenhadas, mas agora há também a cor: “O verde suave dos campos em
contraste com o vermelho dos telhados, a luz do céu compensando os tons
mate do primeiro plano, um quintal com terra e madeira úmida”.
41 - Desenho na carta número 251
42 - Telhados, 1882 – Coleção particular. Aquarela.
Vincent dedica-se à aquarela e, aos poucos, vai adquirindo mais
habilidade e destreza na execução dos trabalhos. Cada pequeno passo que dá,
cada descoberta, cada estudo é relatado ao irmão em suas cartas. Ou seja, as
94
cartas registram o percurso da descoberta da cor pelo artista, como podemos
ver nas cartas do período:
Você sabe que agora estou lutando para fazer aquarelas, e se eu me tornar especialista em aquarelas, elas serão vendáveis. Mas você pode estar certo Théo, que quando eu fui pela primeira vez até Mauve com meus desenhos feitos à pena e Mauve me disse: Você deve tentar trabalhar com carvão, pastel, pincel e esfuminho – foi muito difícil para mim trabalhar com este novo material. Eu fui paciente e isto parecia não ajudar em nada, e às vezes perdi a paciência a ponto de pisotear o meu carvão e ficar extremamente desanimado. E então, um tempo depois eu te mandei desenhos feitos com pastel carvão, e pincel, e voltei a Mauve com uma série de desenhos, que naturalmente, ele criticou, e com razão, e você também, mas eu já tinha dado um passo adiante. (Carta nº 199, de 08 ou 09/01/1882) Mauve diz que estou indo bem, mas isso não altera o fato de que as aquarelas que estou fazendo ainda não são exatamente vendáveis. E, experiências e estudos com aquarelas são bastante caros. Papel, tinta, pincéis, e modelo, e tempo, e todo o resto. (Carta nº 203, de 26/01/1882) Quanto à pintura, há duas linhas de raciocínio, como não fazê-lo e como fazê-lo. Como fazê-lo: com muito desenho e pouca cor. Como não fazê-lo: com muita cor e pouco desenho. (Carta nº 214 de 02/04/1882)
Em Drente, novamente mergulhado na cor, nos estudos e nos testes
com uso da cor, diz ao irmão, na carta 395 de 13/10/1883, que não basta olhar
para a cor em si, mas deve-se considerar a cor local em relação ao tom do céu.
O principal benefício deste período para sua obra foi a possibilidade de
comprar tintas a óleo, o que antes era um luxo muito caro para os padrões de
um pobre chefe de família (no período em que viveu com Sien). E assim,
Vincent pôde dar continuidade aos seus estudos:
No que diz respeito a minha própria cor, no trabalho que estou fazendo aqui, você não encontrará tons prateados, mas sim tons de marrom (por exemplo betume e bistre); não tenho dúvidas de que algumas pessoas me condenarão. Mas quando você vier verá por si mesmo como são as coisas aqui. Tenho estado tão ocupado com a pintura ultimamente que não fiz um único desenho estes tempos. (Carta nº 446, de 12 ou 15/05/1884) Há muito tempo me incomoda, Théo, ver que os pintores atuais estão deixando de usar o bistre e o betume, afinal coisas magníficas foram pintadas com seu uso – se usados
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corretamente fazem um colorido exuberante e generoso – e ainda são nobres. E possuem qualidades notáveis e singulares. Contudo, também exigem esforço para que se aprenda a utilizá-los, pois tem que ser utilizados de forma diferente das tintas comuns, e acho bem provável que muitas pessoas tenham se assustado com as experiências que é preciso fazer no início, e que, naturalmente, não dão certo logo quando se começa a usar. (Carta nº 450, de meados de junho de 1884)
A obra do período em Nuenen é marcada pelas séries, pelas pinturas
sem desenho anterior e pela influência das condições climáticas e das
estações do ano, conforme descrevem Walther e Metzenger (2006, p. 144 –
145):
Dificilmente haverá outro artista que se harmonize tão completamente com o ciclo das estações como Van Gogh. (...) Raramente nos deixa qualquer dúvida quanto a um trabalho ter sido criado quando a floração da Primavera despontava, ou as colheitas do Verão estavam a ser feitas, ou as folhas do Outono a cair, ou o frio do inverno atacava tão duramente que o pintor tinha de ir para casa, para o seu estúdio. As cartas documentam tudo isso, mas também as indicações da estação do ano que Van Gogh gostava de incluir nos seus quadros.
No período em Nuenen – na verdade em todo o seu período no norte
europeu – observa-se o uso de tons escuros, sóbrios e pesados. Segundo
Palhares (2009, p. 97) “enquanto estava profundamente envolvido com o
ambiente camponês do norte europeu, em especial da Holanda, sua paleta é
escura e densa, quase monocromática”.
Pois eu mesmo uma vez ouvi dizer que em alguns quadros de Corot existem tons no céu vespertino, por exemplo, que eram muito luminosos e na verdade, considerados em si mesmos, eram tons de cinza relativamente escuros. (...) Uma cor escura pode parecer clara – ou melhor, produzir claridade. Isto é realmente uma questão de tom. (...) Muitas vezes pensei que quando se fala de cor, na verdade se está falando de tom. E talvez atualmente haja mais tonalistas do que coloristas. Não são a mesma coisa, embora facilmente andem juntos. (Carta nº 499, de 06/06/1884) Acho que em um ano – se continuar esse ano pintando muito e constantemente – mudarei muito mais minha forma de pintar e minhas cores, as tornarei ainda um pouco mais escuras ao invés de claras. (Carta nº 467, de 25/10/1884)
96
43 - Van Gogh – Avenida de álamos no outono, 1884. Museu Van Gogh. ÓIeo sobre tela sobre painel.
Neste período Van Gogh diz estar mais preocupado com a forma do que
com a cor. Ainda desejava obter o domínio do desenho e da pintura. Por mais
que a cor o encantasse, era à forma que deveria se dedicar. Na carta 483, de
fevereiro de 1885, Vincent fala sobre o tom de azul do linho fabricado pelos
tecelões que ele pintava, e, então, interrompe o assunto como se buscasse não
se perder nas possibilidades da cor:
Mas esta é uma questão de cor e a questão da forma é o que mais importa no ponto em que me encontro. Para expressar a forma – eu acho – funciona melhor um esquema de cores quase monocromático, com tons que variam essencialmente em intensidade e valor. (...) Mas é preciso estudar cada cor individualmente e em relação as suas oposições, para que se possa ter certeza de ser harmônico.
Contudo, dois meses depois Vincent escreve seis páginas sobre cor. É
possível depreender da análise das cartas que enquanto em alguns momentos
ele tenta se afastar da cor e em outros momentos ele mergulha nas questões
da cor, como observamos neste trecho: “Ano passado eu estava um pouco
97
desesperado com o uso da cor, mas agora estou trabalhando muito mais
confiante” (Carta nº 505, de 28/05/1885).
3.2.6 Pesquisas e reflexões sobre arte e teoria da cor
Em diversos períodos, Van Gogh se mostra entusiasmado com a cor;
escreve muitas vezes sobre as observações que faz da cor na natureza.
Vincent começa a conhecer a cor que tanto deseja dominar. Em suas palavras,
as primeiras observações de teoria da cor (Carta nº 252 de 31/07/1882):
Quanto ao preto na natureza, estamos de pleno acordo. Preto absoluto não ocorre de fato. Porém, como o branco, ele está presente em quase todas as cores e infinitas variedades de cinza – diferentes em tom e intensidade. (...) As cores primárias são vermelho, amarelo e azul e as secundárias laranja, verde e violeta. A partir destas cores são obtidas as infinitas variações de cinza adicionando preto e algum branco. (...) É impossível dizer quantos verdes-acinzentados existem, por exemplo – a variação é infinita. O colorista é aquele que vendo uma cor na natureza é capaz de analisá-la friamente e dizer, por exemplo, que o verde-acinzentado é amarelo com preto e quase nenhum azul. Em suma, saber como fazer os cinzas da natureza na paleta.
Observamos que, nesta época, começa a se preocupar mais com sua
paleta, chegando a comentar com o irmão sobre a compra de uma caixa
dobrável que também pode ser usada como paleta, o que considerou ideal
para pinturas ao ar livre. Na carta número 253, de 05/08/1882, faz um desenho
da sua paleta indicando as cores que está usando por considerá-las
essenciais, tanto em aquarela quanto em tinta a óleo. São tons de ocre
(vermelho, amarelo e marrom), azul cobalto e da Prússia, amarelo Nápoles,
terra Siena, preto e branco. Em tubos menores, que não ficavam na paleta,
possuía tons carmin, sépia e azul ultramarino.
98
44 - Detalhe da carta número 253
Van Gogh sempre foi muito interessado por cultura, literatura e línguas.
Acompanhava os autores que efervesciam na época, como Émile Zola. E no
campo das artes dialogava com Delacroix, Millet, Corot, Rembrandt, dentre
outros. O que mais o fascinava em Delacroix era o uso da cor, fascínio que o
impulsionou a estudar a teoria da cor, conforme relata ao irmão na carta
número 494, de 18/04/1885, onde disse ter incluído algumas grandes verdades
da teoria da cor em que Delacroix acreditava:
Os antigos aceitavam apenas três cores primárias, amarelo, vermelho e azul, e os pintores modernos não aceitam outras. Essas três cores, na verdade, são as únicas irredutíveis. O mundo todo sabe que os raios solares dividem-se em sete cores que Newton chamou-as de primárias: violeta, anil, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho. Mas é claro que o termo “primário” não caberia a três dessas cores, que são compostas, visto que o laranja é feito com amarelo e vermelho – verde com amarelo e azul – violeta com azul e vermelho. Quanto ao anil não pode ser considerado uma cor primária, já que há uma variedade de azuis. Devemos, portanto, reconhecer com a Antiguidade que na natureza existem apenas três cores verdadeiramente fundamentais, que misturadas de duas em duas criam três cores compostas, chamadas secundárias: laranja, verde e violeta. Esses fundamentos, desenvolvidos por estudiosos modernos, levaram à noção de certas leis, que formam a brilhante teoria das cores – uma teoria que Delacroix dominou científica e completamente, depois de ter conhecido-a instintivamente. Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria – não considero de forma alguma inútil. E acredito que o que se sente ou pressente instintivamente, torna-se certo e claro quando se tem um guia realmente prático. (Carta nº 450, de meados de junho de 1884)
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Nesta carta, o artista também comenta sobre algumas regras de
harmonia e sobre a lei do contraste simultâneo. Diz que, através da mistura do
amarelo com o vermelho, obtém-se um belo laranja e se colocá-lo perto do
azul, ele alcançará seu brilho máximo. Do mesmo modo que o violeta se
intensificará perto do amarelo e o verde próximo ao vermelho. Assim, ele
conclui que a cor primária não utilizada na mistura para a obtenção da
secundária é a sua complementar.
Mais cedo ou mais tarde eu deveria estudar a técnica e a cor de Millet, Delacroix, Corot, entre outros. (Carta nº 506, de 02/06/1885) Existem regras, princípios ou valores fundamentais, tanto para o desenho quanto para a cor, que se comprova quando se encontra algo de verdadeiro. (Carta nº 495, de 21/04/1885)
3.2.7 Descoberta sensível da cor
No período englobado pelas cartas 249 a 266, de julho a setembro de
1882, observamos um crescente interesse no uso da cor. O artista se mostrava
instigado e ao mesmo tempo satisfeito com os avanços que conquistara. E
quanto maior a satisfação, mais instigado ficava, lançando-se num ritmo
alucinante de trabalho.
Vincent estava vivendo um momento da descoberta sensível da cor. Em
suas cartas observamos descrições minuciosas – e até poéticas – de imagens
a partir do ponto de vista da cor. Consideramos que esta é a época da
descoberta das possibilidades da cor. Vincent começa a perceber que é
possível expressar, através das cores, possivelmente mais do que através da
forma. No futuro, já em Arles, comenta com o irmão que a cor em si expressa
muito mais do que os artistas do norte podem imaginar.
Eu só queria te dizer que eu sinto que há coisas de cor que surgem em mim enquanto eu pinto, coisas que eu não possuía antes, coisas importantes e intensas... (Carta nº 252, de 14/08/1882)
100
Existe algo de infinito na pintura – eu não consigo explicar – mas especialmente para exprimir um estado de espírito, é uma maravilha. Existem, nas cores, harmonias e contrastes ocultos que contribuem para sua própria harmonia, e sem isso não poderíamos aproveitá-las. (Carta nº 259, de 26/08/1882) Como você vê, estou mergulhado na pintura, com todas as minhas forças – estou mergulhado nas cores. (Carta nº 260, de 03/09/1882)
Como vimos, durante um período de aproximadamente um ano, Vincent
optou por se dedicar ao desenho e somente então volta a se dedicar ao
conhecimento da cor. Na carta nº 371, de agosto de 1883, Vincent diz ao
irmão:
Uma certa sensibilidade para a cor despertou em mim ultimamente enquanto pintava, mais forte e diferente de tudo que já senti. (...) Algumas vezes fiquei muito preocupado, por não estar progredindo no uso da cor, mas agora tenho esperança novamente. Vamos ver o que acontece. (...) O tempo dirá, mas no momento eu vejo algo diferente na cor e no tom em vários estudos.
45 - Van Gogh – Paisagem de outono com quatro árvores, 1885. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela.
101
3.3 A luz da cidade luz
Sobre o período em Paris não se tem tantas informações quanto nos
demais, pois cessaram as cartas ao seu principal interlocutor, Théo, visto que
estavam morando juntos. Deste período são conhecidas apenas nove cartas
que enviou a amigos e à irmã. Deste modo, a maioria das informações a que
se tem acesso provém das biografias do artista.
Tentamos elaborar esta parte do mapa do projeto poético do artista com
base nessas informações. É importante sempre termos em mente que as
partes do mapa estão completamente interligadas, apresentamos
separadamente devido a melhor visualização.
102
3.3.1 A ida para Paris
Após a morte de seu pai a relação com a família degringolou a ponto de
levá-lo a alugar um quarto para viver sozinho. Contudo, a vida na pacata
Nuenen também tornou-se gradativamente mais tensa, a população não
simpatizava com Vincent, consideravam-no desajustado e preferiam não tê-lo
por perto. Vincent sentia-se completamente incompreendido e rejeitado.
Tentara a vida em vários lugares, sempre sem sucesso. Talvez apenas fosse
excêntrico demais para as cidades provincianas por onde passou, por isso se
convenceu de que teria mais sorte numa cidade grande. Antes de se mudar
para Paris passou um curto período de três meses na Antuérpia de onde
tentava persuadir o irmão a recebê-lo em sua casa. Nesse período, matriculou-
se para mais aulas de arte, mas ele tinha dificuldade em se encaixar nas
turmas como os demais alunos, e tudo isso acabou acelerando sua ida para
Paris.
Paris estava ocupando um lugar central na arte que, durante muitos
séculos, tinha sido privilégio da Itália. Paris assumia a posição de vanguarda da
Europa. Para Walther e Metzger (2006, p. 222-223), a palavra ‘moderno’ “no
século XIX era uma espécie de artigo de fé, pateticamente repetida por artistas
frenéticos por uma identidade. À frente encontrava-se Paris.”
Para Salles (2008, p. 40), os artistas, de modo geral, necessitam estar
em contato com a efervescência cultural, possibilitando diálogo com outras
culturas, idéias, técnicas.
Vincent mudou-se repentinamente para Paris em fevereiro de 1886, o
que não agradou ao seu irmão. Théo não temia somente pelas despesas, mas
por não acreditar que o convívio pudesse ser agradável.
Vincent ficava, a cada dia, mais encantado com a cidade. As poucas
cartas do período são o suficiente para percebermos a dimensão de seu
fascínio por Paris e de sua influência sobre o artista, como observamos no
detalhe da carta 569 de setembro/outubro de 1886, destinada ao amigo de
Antuérpia, Horace Mann Livens:
103
E lembre-se meu caro amigo, Paris é Paris, só existe uma Paris, e por mais difícil que possa ser viver aqui e ainda que se tornasse pior e ainda mais difícil – o ar francês limpa a mente e faz bem – muito bem.
Ao chegar a Paris matriculou-se numa escola privada de arte, onde
conheceu Émile Bernard e Toulouse-Lautrec, todavia, com seu espírito
excêntrico e temperamental, não suportou muito tempo de aula. Depois, fez
amizade com Signac e Gaugin (estas amizades e também Bernard, durariam
até o fim de sua breve vida).
Durante o período em Paris pintou, aproximadamente, 230 quadros.
(Walther e Metzger, 2006, p. 241). No início de 1886 ainda se preocupava em
dar toques finais nas obras que trouxera de Nuenen. Ainda estava preso ao
estilo de pintura que usara até ali, como podemos observar na figura 46.
Para Walther e Metzger (2006, p. 257), traços de sua produção do
período holandês permaneceram em sua obra. Esses traços eram o realismo,
cuja bandeira levantou e oficializou com Os Comedores de batata:
Van Gogh deixou suas paisagens tal como o motivo exigia que fossem pintadas. Um pintor plein ar da espécie mais purista, confiava nos efeitos fundamentais da luz e do ar e trabalhava oxs elementos atmosféricos com as cores que enchiam as suas telas.
46 - Van Gogh – Vista dos telhados em Paris, 1886. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
104
Durante os primeiros meses em Paris sua pintura ainda estava muito
presa a regras miméticas sobre a forma e a cor. Somente depois de algum
tempo em contato com pintores impressionistas e recebendo a influência do ar
vanguardista que ali se instaurara, sua obra toma um novo rumo, muito mais
leve e colorido e Vincent tornou-se capaz de captar a fugacidade do motivo
com um olhar poético. Conforme Walther e Metzger (2006, p. 253), “Agora (...)
descobria o poder expressivo do momento fugaz, do fluxo da vida”.
3.3.2 O impressionismo
Somente em Paris Vincent conhece o Impressionismo, tido como
primeiro movimento moderno, que não ia completamente contra as tradições
da arte, pois os impressionistas também queriam pintar a natureza como viam.
Segundo Gombrich (1999, p. 536): “A exploração impressionista dos reflexos
das cores, suas experiências com o efeito do trabalho mantendo solto o pincel,
visavam à criação de uma réplica ainda mais perfeita da impressão visual”.
O objetivo era pintar a impressão do momento, as cores e o movimento
que os olhos eram capazes de flagrar.
Nas palavras de Palhares (2009, p. 63):
Isto quer dizer que a atitude dos pintores impressionistas partiam do pressuposto de que o pintor deveria pintar o que o olho vê, porém eles exploraram a idéia de que o mundo visível se mostra aos nossos olhos em função da luz que incide sobre ele, e que a variação dessa luz, em função da hora do dia ou da estação do ano, altera não só a cor, mas também a própria forma visível do mundo.
Embora tenha conhecido a técnica dos impressionistas e as cores
tenham surgido em sua paleta nesta época, Van Gogh nunca se sentiu
realmente pertencente ao movimento, como nos aponta Jorge Coli (2006, p. 86
– 87): “As experiências cromáticas dos impressionistas contribuem para que
sua pintura se torne cada vez mais clara e luminosa, mas imediatamente, ele
sabe que os caminhos não são os mesmos”.
105
Para Palhares (2009, p. 64), Van Gogh nunca se alinhou ao projeto dos
impressionistas, guiando-se sempre pela emoção e por suas referências
pessoais: “A luz e a cor quando explodem em suas telas, não acontecem por
causa da luz natural que incide sobre o mundo, mas elas brotam de um estado
de espírito, de suas emoções internas que afetam sua percepção”.
Na carta nº 569, de setembro ou outubro de 1886, Van Gogh diz ao
amigo Horace Mann Livens que somente agora pôde conhecer o verdadeiro
impressionismo e tem se admirado muito com algumas obras, citando os nus
de Degas e as paisagens de Monet. Contudo, ele diz que não faz parte do
clube, embora lá seja possível encontrar amigos. Van Gogh teve a
oportunidade de conhecer muitos artistas em Paris, mas Gauguin era o que
mais apreciava, pois o considerava brilhante (Fell, 2007, p. 83).
Vincent costumava dizer que havia os artistas dos Grands Boulevards –
Monet, Degas, Renoir, Sisley e Pissarro – e os artistas do Petit Boulevard,
onde incluía além de si próprio, os amigos Bernand, Signac, Toulouse-Lautrec,
Gauguin e ainda Seurat, Guillaumin, Anquetin e Angrand. No fim do ano
organizou uma exposição com mais de cem obras do Petit Boulevard, o que o
aproximou ainda mais dos amigos. Na carta nº 575, de dezembro de 1887,
enviada a Bernard, fala sobre o pontilhismo e tenta persuadir o amigo a se
despir de preconceitos e perceber a beleza daquelas obras.
Van Gogh estava muito entusiasmado com as cores dos impressionistas
e admirado com as composições que faziam utilizando cores complementares
em justaposição, criando brilhos intensos e efeitos de névoa, chuva, neve
caindo ou o movimento do vento (Fell, 2007, p. 80). Algumas obras do período
sofrem forte influência do pontilhismo – Interior de restaurante é uma das
primeiras com essa inspiração (vide figura 47).
106
47 - Van Gogh – Interior de restaurante, 1887. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela.
No ano de 1887, Vincent estabelece foco na cor e no pincel. Percebe-se
que começa a se entregar a uma abordagem única, subjetiva, com o uso de
cores fortes e pinceladas expressivas.
3.3.3 A conquista da pincelada
Cecília Salles (2008) nos fala sobre a conquista processual de
procedimentos experimentado pelos artistas e nos traz uma observação sobre
a pincelada de Van Gogh. É importante termos em mente que o estilo do artista
não é algo inato, mas é uma conquista ao final de um processo de
experimentações, estudos, progressos.
Van Gogh buscava trabalhar como Millet, pintando o motivo diretamente
sem esboços, pois somente com agilidade seria possível capturar a fugacidade
107
do instante. “Ele precisava pintar rapidamente e as figuras foram energéticas e
únicas.” (Salles, 2008, p. 89).
Após Théo criticar-lhe as pinceladas espessas, Vincent justifica
esclarecendo que o excesso de tinta pode ser raspado e a cor ainda seria
muito mais intensa do que se fosse levemente pintada.
Em novembro de 1885, Van Gogh comenta com o irmão sobre uma
crítica que leu a respeito de Gainsborough, dizendo que ele pintava de uma só
vez, buscando o efeito geral e não se prendendo a pequenos detalhes, que seu
toque arrebatador e a espontaneidade de sua impressão lhe conferiam efeito.
Para Salles, estes dados constituem a síntese de sua pincelada, “surge
assim, a utilização de um procedimento sustentada por reflexões que envolvem
questões técnicas relacionadas às suas buscas pictóricas.” (Salles, 2008, p.
90).
Não obstante, foi através das obras de Monticelli – pintor provençal –
que Vincent realmente começou a descobrir o poder das pinceladas
impetuosas e carregadas de tinta. Monticelli usava as pinceladas e os
excessos de tinta para causar a impressão de relevo e textura.
Para Fell (2007, p. 86), Monticelli foi a maior influência de Van Gogh.
Além de admirar suas obras, Vincent admirava o homem, conhecido por pintar
enquanto tivesse tinta sem se preocupar com nada além de sua arte, sem
fome, sede ou cansaço. Vincent se identificava com a maneira de Monticelli de
ver a arte e, no fundo, o considerava seu mentor.
Em diversas cartas torna-se notória a influência do estilo de Monticelli
sobre a pincelada de Vincent, como na carta 703 em que fala do impasto, que
é caracterizado por camadas grossas de tinta marcadas pelo pincel: “As
carruagens foram pintadas no estilo de Monticelli, com impastos”. Ou ainda na
carta 689, em que vai mais além, mostrando que a admiração por Monticelli
não se resume à pincelada: “Sem querer eu sou forçado a fazer uma pintura
mais espessa, à la Monticelli. Às vezes eu realmente acredito que estou
continuando o trabalho dele, só ainda não fiz figuras de casais como ele”.
108
Para Santaella (2005b, p. 218), as inconfundíveis pinceladas de Van
Gogh são sua marca gestual, logo, são qualidades singulares do gesto do
artista.
Para Coli (2006, p. 38), a pintura de Van Gogh nos dá a impressão de
ser uma superfície rugosa tátil, como se fosse modelada pelas próprias mãos
do artista.
Numa perspectiva de processo, essas informações são fundamentais
para que possamos compreender a pincelada de Van Gogh, de que forma ela
foi trabalhada até atingir seu apogeu.
3.3.4 A cor dos japoneses
Já sabemos que diversos elementos passaram a alimentar a rede do
projeto poético de Van Gogh em Paris – diferentes movimentos artísticos,
estilos de pinceladas, vanguarda intelectual – mas um elemento foi muito
marcante em seus últimos meses em Paris e ainda propulsor de sua ida para o
Sul: as gravuras japonesas.
48 - Adolphe Monticelli, Vaso com flores silvestres, 1870 ou 1880. National Gallery. Óleo sobre tela.
109
As figuras japonesas eram uma espécie de febre em Paris, aliás,
tendências japonesas eram moda, o Japão estava em voga. As gravuras
espalharam-se pela cidade e custavam pouco, assim Vincent as colecionava e
as copiava para estudar as técnicas japonesas de pintura e perspectiva (vide
figuras 49 e 50) e criava sob esta influência, como podemos observar na figura
51.
De acordo com Walther e Metzger (2006, p. 292): “A arte japonesa
oferecia uma linguagem universal de formas que poderia ser usada para
exprimir novas coisas que não estavam gastas – coisas modernas. “
Os estudos das obras japonesas ajudaram-no a avançar no
conhecimento de perspectiva e na divisão espacial, mas os japoneses não
davam grande atenção à questão da luz, ao contrário dos impressionistas, e
Vincent soube encontrar sua própria maneira de lidar com a luz. As gravuras
japonesas também corroboraram sua idéia de velocidade ao pintar, pois
acreditava que os japoneses também trabalhavam rapidamente “como um
relâmpago”.
Acerca dos retratos que pintou de Tanguy, o segundo vemos na figura
51, Walther e Metzger (2006, p. 297) colocam que “Van Gogh tenta
arrojadamente nada menos que uma síntese da arte oriental e ocidental, e
nesta já está muito para além do sincretismo do seu primeiro período.”
Encantou-se de forma tão avassaladora que as chamadas
“japonesarias” o influenciaram para além das telas. O artista queria encontrar
condições de luz, clima e ambiente semelhantes às do Japão para pintar.
Esses trabalhos marcam o fim de seu período em Paris.
110
49 - Van Gogh - A ponte sob a chuva (depois de Hiroshige), 1887. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
50 - Van Gogh – A cortesã (depois de Eisen), 1887. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
51 - Van Gogh – Retrato de Pére Tanguy, 1887. Museu Rodin. Óleo sobre tela.
111
3.3.5 Em busca da cor
O período em Paris foi determinante para sua evolução na liberdade de
usar a cor. Para tentar dominar a cor concentrou-se numa série de naturezas-
mortas com flores (produziu mais de quarenta). Segundo Walter e Metzger
(2006, p. 260): “As naturezas-mortas representavam uma fase de transição no
fim da qual iria ficar profundamente consciente da força dos diferentes tons.
Depois era, realmente, capaz de criar usando apenas a paleta.”
Na carta 569 de setembro/outubro de 1886, escreve ao amigo Horace
Livens:
Eu fiz uma série de estudos da cor simplesmente pintando flores. (...) Rosas brancas e vermelhas, crisântemos amarelos – buscando oposições de azul com laranja, vermelho e verde, amarelo e violeta, buscando tons neutros para harmonizar os fortes extremos.
52 - Van Gogh – Jarra com gladíolos vermelhos, 1886. Coleção particular. Óleo sobre tela. 53 - Van Gogh – Jarra com cravos e outras flores, 1886. Museu Kreeger. Óleo sobre tela. 54 - Van Gogh – Jarra com Malvas-Rosas, 1886. Museu Kunsthaus Zurich. Óleo sobre tela.
Em Paris, elementos fundamentais para a descoberta e para as
experimentações no uso da cor passam a compor a rede do artista em seu
processo de criação. Como Coli nos diz (2006, p. 94):
112
Paris havia dado a Vincent o conjunto completo dos meios necessários ao seu trabalho de pintor, integrando nele o último elemento ausente: a cor. Em Paris, ele havia descoberto também as novidades trazidas pelas estampas japonesas ao tratamento do espaço e da composição, assim como as teorias óticas de Seurat – pontilhismo e contraste das complementares, que vão marcá-lo, mas que ele por assim dizer “digere”, assimilando-as no seu modo de fazer personalíssimo.
Observamos desde a carta 569 de setembro/outubro de 1886, enviada a
Livens, que Van Gogh já tinha planos de partir para o sul, onde acreditava que
finalmente encontraria a luz e a cor em sua mais esplendida intensidade: “Na
primavera – digo fevereiro ou ainda mais cedo – eu posso estar indo para o sul
da França, a terra dos tons de azul e das cores alegres.”
Na carta 574 de outubro de 1887 para a irmã Willemien, reforça esta
idéia: “Tenho planos de ir para o sul por um tempo, tão logo eu possa, é onde
há ainda mais cor e ainda mais sol.”
Mais tarde as gravuras japonesas também o motivariam a ir para o sul,
pois Van Gogh acreditava que no sul encontraria condições semelhantes às do
Japão, em termos de luz e cor, para pintar.
E, assim, decidiu mudar-se para o sul, para a região do Mediterrâneo, ou
Midi como dizem os franceses, a fim de encontrar as condições ideais de luz
para trabalhar.
Entendemos que neste período realmente começa a sua procura pela
cor, e essa busca vai além da técnica ou do conhecimento intelectual sobre as
cores; é uma busca pela luz ideal, pela intensidade das cores, pelos tons
puros. É uma busca singular e com caráter poético. Van Gogh escolheu buscar
a cor no sul, pois já ouvira muitos outros contarem sobre a riqueza de luz e cor
que havia no sul. Além disso, a Provença era a terra de Monticelli, Zola e
Cézane. Para Van Gogh, a Provença era o símbolo maior do sul.
Segundo uma carta enviada por Théo à irmã Willemien, em 26 de
fevereiro de 1888, Vincent partira para o sul procurando por cores mais claras
do que poderia encontrar no norte, e permaneceria em Arles por pouco tempo,
para então se mudar para Marselha.
113
3.4 A luz do sul
Nesse período Van Gogh atinge o apogeu da coloração. Tudo em seu
trabalho é cor, como ele queria quando se mudou para a região do
Mediterrâneo. Para o nosso foco – cor –, consideramos esta como a fase final
de seu trabalho, visto que não é nossa pretensão considerar alterações
plásticas, gráficas ou em sua pincelada. Entendemos que a cor conquistada no
sul permanecerá até o fim, ainda que sofra modificações de tonalidade ou
intensidade, como se observa especialmente no período em Auvers-sur-Oise.
Apresentamos, abaixo, o mapa do projeto poético do artista neste período.
114
3.4.1 Encontro com a cor
Van Gogh chegou em Arles em 20 de fevereiro de 1888 e encontrou a
cidade coberta de neve. No dia seguinte, em sua primeira carta ao irmão
(número 577), compara-a as paisagens de inverno feitas pelos japoneses. No
entanto, poucas semanas depois de chegar em Arles, Vincent foi presenteado
com um clima primaveril – os pomares começavam a brotar e as flores a
nascer. Nada lhe parecia mais próximo do Japão: “Meu querido irmão, você
sabe, eu sinto que estou no Japão” (Carta 585 de 16/03/1888).
Sentia-se realmente realizado em Arles, como observamos na carta 587
(de 18/03/1888) enviada ao amigo Bernard:
Esta parte do mundo me parece tão bonita quanto o Japão, pela claridade e os alegres efeitos cromáticos. (...) O pôr-do-sol de um laranja pálido faz os campos parecem azuis – Gloriosos sóis amarelos. Contudo, eu ainda mal vi esta parte do mundo no seu esplendor do verão.
Nesse mesmo ano Mauve, seu mentor em Haia, morre e Vincent lhe
dedica a obra “Pessegueiro rosa em flor” (vide figura 55). E comenta na carta
590, enviada à sua irmã Willemien: “Os campos do sul não podem ser pintados
com a paleta de Mauve, que pertence ao norte e é e sempre será o mestre do
cinza”. E na carta 591, diz ao seu irmão que esta é a melhor paisagem que já
produzira.
Na carta nº 707, de 17/10/1888, diz ao irmão que os pintores do norte
jamais saberão o que são os efeitos causados pela luz do sol e o que a cor em
si pode expressar.
Finalmente Vincent estava no sul, como desejava há tempos, e agora
não precisava mais copiar as flores das gravuras; tudo o que precisava para
trabalhar a natureza do sul lhe oferecia. Dedicou-se num ritmo vertiginoso à
série dos pomares em flor. Dizia que era preciso trabalhar o ferro enquanto
quente. . Nessa série é possível perceber a influência impressionista, mas
Vincent já possuía um estilo próprio. De acordo com Walther e Metzger (2006,
p. 333), os pomares retratam uma variação entre o impressionismo e um estilo
totalmente individual.
115
Em Arles, Vincent sente despertar o desejo de se expressar através das
cores. Encontra, também, certa urgência em trabalhar o máximo possível, em
pintar freneticamente a natureza, a beleza idílica, o que via.
55 - Pessegueiro rosa em flor, 1888. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela. 56 - Pereira em flor, 1888. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
57 - O pomar branco, 1888. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
116
No apogeu do verão em Arles, quando as flores e o sol resplandeciam,
Vincent escreveu à irmã:
Eu não preciso de gravuras japonesas aqui, porque estou sempre a dizer-me que aqui estou no Japão. E como resultado eu só tenho que abrir meus olhos e pintar o que está na minha frente, o que causa alguma impressão em mim. (Carta nº 678, de 9 ou 14/09/1888)
Escreveu muito e muitas vezes sobre o sul, descreveu a beleza e os
encantos do lugar para diversos correspondentes, deixando claro o quanto
estava encantado com a região, como vemos em alguns trechos de cartas
abaixo:
A natureza aqui é de uma beleza extraordinária. Tudo e todos os lugares. O céu é de um azul maravilhoso, o sol tem um brilho pálido de enxofre, e é suave e encantador. Eu não consigo exprimir toda a beleza que vejo, mas isso me absorve de uma maneira que eu me deixo pintar livremente sem pensar em nenhuma regra. (Carta nº 683, de 18/09/1888) Meu Deus, se eu soubesse desse lugar aos 25 em vez de conhecê-lo aos 35 – naquela época eu estava entusiasmado com o cinza, ou melhor, a ausência da cor. (Carta nº 628, de 19/06/1888) Sobre permanecer no sul, mesmo que seja mais caro, veja, nós amamos pintura japonesa, sofremos sua influência – todos os impressionistas tem isso em comum – e não iríamos ao Japão, em outras palavras, ao seu equivalente, o sul? Então eu acredito que o futuro da nova arte está no sul, afinal. (Carta nº 620, de 05/06/1888)
Na carta nº 682, de 18/09/1888, Vincent justifica ao irmão a importância
de ir ao sul para os coloristas, explicando que até mesmo o maior colorista de
todos, Delacroix, julgava importante ir ao sul e até mesmo à África, para
conhecer as verdadeiras cores e seus possíveis contrastes.
Somente em junho de 1888 Van Gogh conheceu o tão sonhado
Mediterrâneo e sobre o encontro com o mar escreveu nas cartas 619 e 620:
Escrevo-lhe de Saintes-Maries, à beira do Mediterrâneo enfim. O Mediterrâneo tem uma cor igual à das cavalas, ou seja, mutante; nunca se sabe se é verde ou violeta, nunca se sabe se é azul, porque um segundo depois o reflexo mutante assume um tom rosa ou cinza.
117
Agora que vi o mar aqui, realmente sinto a importância que há em permanecer no sul e sinto que é preciso exagerar ainda mais a cor – a África não está longe daqui. (...) Gostaria que você passasse um tempo aqui, você sentiria isso – depois de algum tempo sua visão muda, você vê com um olho mais japonês, sente a cor de um modo diferente. Eu também estou convencido de que justamente através de uma longa permanência aqui, eu libertarei minha personalidade.
58 - Van Gogh – Paisagem marítima em Saintes-Maries, 1888. Museu Pushkin. Óleo sobre
tela.
Seu interesse por Arles foi além das comparações com o Japão. O
artista descreveu por várias vezes as cores do lugar, demonstrando-se
encantado com o que via:
No momento, temos aqui um glorioso calor forte e sem vento, o que eu aprecio. Um sol, uma luz, que por falta de uma palavra melhor só posso chamar de amarelo – amarelo enxofre pálido, limão pálido, ouro. Como o amarelo é belo! (Carta nº 659, de 12/08/1888)
No sul tudo era cor para Van Gogh. Até mesmo a beleza das mulheres
locais poderia ser ressaltada pelas cores do sul. Na carta nº 686 (23 ou
24/09/1888), comenta que a cor desempenha um papel imenso na beleza das
mulheres, papel muito maior do que a forma, pois não é na forma que o charme
local se encontra. E admite que será custoso conseguir retratá-las da forma
que sente.
118
Em setembro de 1889, já internado em Saint-Rémy, escreve ao irmão
que é de seu conhecimento o que o motivou a ir ao sul e se atirar ao trabalho:
era seu desejo ver outra luz, observar um céu mais luminoso que lhe permitisse
ter uma idéia mais precisa das cores dos japoneses, e, acima de tudo, queria
ver o forte sol do sul, pois sabia que, sem conhecê-lo, não poderia
compreender as pinturas de Delacroix a partir do ponto de vista da execução e
da técnica e porque sentia que as cores do prisma são veladas no norte. (Carta
801).
3.4.2 Cores noturnas
No mesmo sentido de sua busca pela cor, é notável seu interesse pelas
cores noturnas. A partir da análise das cartas observamos que no período de
agosto a outubro de 1888, existe um maior interesse pelas cenas noturnas,
com um ápice no mês de setembro. Suas cartas ficam repletas de descrições
de cenas noturnas, reflexões – até mesmo emotivas – sobre as estrelas e a
busca por condições de iluminação para retratar seus motivos noturnos.
Também preciso de uma noite estrelada com ciprestes, talvez sobre um campo de trigo. Há noites muito bonitas aqui. (Carta nº 594, de 09/04/1888)
Van Gogh observou as cores do litoral também durante a noite, como
descreve na carta 619 de 04/06/1888:
Dei um passeio à beira mar uma noite, na praia deserta. Não foi alegre nem triste: Foi belo. O céu de um azul profundo estava salpicado por nuvens de um azul ainda mais profundo do que um azul primário, um cobalto intenso, e por outras que eram de um azul mais claro, como o azul esbranquiçado de vias lácteas. Contra o fundo azul estrelas cintilavam brilhantes esverdeadas, brancas, rosa claro – mais brilhantes, mais reluzentes, mais como pedras preciosas – opalas, esmeraldas, lápis-lazúli, rubis, safiras.
Fascinado pelo brilho das estrelas e pela bela luz noturna escreveu ao
amigo Bernard na carta 596, ainda em 12/04/1888, que adoraria pintar o céu
noturno, mas que não conseguia trabalhar a partir da imaginação, teria que
119
retratar a cena, mas não sabia como resolver o problema da pouca luz para
poder trabalhar.
Mais tarde retoma o assunto em carta a Bernard:
Mas quando vou fazer o céu estrelado, esta pintura que não sai da minha cabeça? Ai, ai é como diz o nosso excelente amigo Cyprien: “As pinturas mais belas são aquelas com as quais se sonha enquanto fuma um cachimbo em sua cama, mas que não se faz. (Carta nº 628, de 19/06/1888)
Porém, pouco tempo depois relata ao irmão que prendeu velas acesas
no chapéu de palha e assim poderia trabalhar com alguma luz.
Em julho de 1888 diz ao irmão:
Eu confesso que não sei por que, mas a visão das estrelas sempre me faz sonhar, me lembrando dos pontos negros representando cidades e aldeias num mapa geográfico. Por que, digo a mim mesmo, os pontos luminosos do firmamento nos seriam menos acessíveis que os pontos pretos do mapa da França? (Carta nº 638, de 09 ou 10/07/1888)
Em setembro de 1888, Van Gogh conclui o quadro O café noturno na
Praça Lamartine, sobre o qual oferece ao irmão uma minuciosa e apaixonante
análise:
Ás vezes me parece que a noite é muito mais viva e suas cores mais intensas do que as do dia. Tentei expressar as terríveis paixões humanas através do vermelho e do verde. A sala é de um vermelho-sangue e amarelo sem vida, com uma mesa de bilhar verde no centro e quatro candeeiros amarelo-limão, que oferecem um brilho laranja e verde. Em toda parte há conflitos e antíteses dos verdes e vermelhos mais diferentes, nas pequenas figuras de personagens noturnos, na sala triste, no violeta e no azul. (Carta nº 676 de 08/09/1888) Eu tentei expressar a idéia de que o café é um lugar onde uma pessoa pode se arruinar, onde pode enlouquecer ou cometer crimes. (Carta nº 677 de 09/09/1888)
120
59 - Van Gogh – O café noturno na praça Lamartine em Arles, 1888. Galeria de arte da universidade de Yale. Óleo sobre tela.
De acordo com Arnheim (1994, p. 348), provavelmente Van Gogh se
inspirou em Delacroix “que freqüentemente usava o contraste de vermelho e
verde como símbolo de violência e terror”.
Em setembro escreve à irmã que quer definitivamente pintar um céu
estrelado e reforça a idéia de que a noite pode ter cores mais intensas que o
dia. E ainda lhe fala sobre a observação das estrelas:
Se você observar cuidadosamente verá que algumas estrelas são amarelo-limão, outras tem um brilho rosa, verde, azuis como miosótis. Fica claro que pintar um céu estrelado não é só colocar pontos brancos sobre fundo azul ou preto. (Carta nº 678, de 9 ou 14/09/1888)
Pouco tempo depois Van Gogh começa a trabalhar nos esboços de um
céu estrelado com um casal passeando à beira do rio Ródano, cena que
descreve ao irmão na carta nº 691, de 29/09/1888, e que mais tarde seria
reconhecida como uma de suas obras primas:
Incluo nesta carta estudo de um céu estrelado, finalmente, pintado a noite, sob uma lâmpada a gás. O céu é verde azulado, a água é azul Royal, os campos são malva. A cidade é azul e violeta. A luz a gás é amarela e os reflexos são ouro e vermelho, e remetem a um verde, bronze. Em contraste com o
121
verde azulado do céu, a Ursa Maior brilha verde e rosa, cuja discreta palidez contrasta com o outro da luz a gás.
60 - Desenho na carta nº 691
61 - Van Gogh – Noite estrelada sobre o Ródano, 1888. Museu D’Orsay. Óleo sobre tela.
Em junho de 1889, na carta nº 782, internado no hospital em Saint-
Rémy, o artista retoma o tema, dizendo ao irmão que fez outra paisagem com
oliveira e outra noite estrelada. E, em seguida, diz: “Mesmo não tendo visto as
últimas telas de Gauguin e de Bernard, tenho certeza de que estes dois
estudos que eu mencionei são de um sentimento similar”.
122
A outra noite estrelada a que ele se refere é hoje considerada uma das
suas maiores obras primas, contudo o artista não nos deixou maiores detalhes
sobre sua execução.
62 - Van Gogh – A noite estrelada, 1889. MoMA. Óleo sobre tela.
3.4.3 Casa Amarela: Prelúdio da loucura
No início do verão em Arles, Van Gogh precisou economizar as tintas e
as telas, pois seu irmão estava procurando conter os gastos. Théo gastava
praticamente metade do que ganhava mantendo o irmão e tal despesa o
estava incomodando, especialmente porque estava planejando se mudar para
a América e era preciso poupar. Por sua vez, Vincent também pensava em
poupar, porém queria economizar para tornar real seu sonho da Casa Amarela,
que seria uma espécie de colônia de pintores associados. Vincent queria
convencer os amigos a irem a Arles, conhecer a luz, a cor e os encantos locais.
Assim, poderiam viver num sistema de cooperativa artística, tendo Gauguin
como líder, devido a sua experiência como marinheiro. Apenas Gauguin
aceitou seu convite – pois visava benefícios econômicos.
Théo ofereceu a Gauguin uma determinada quantia mensalmente para
que pudesse morar em Arles e lá continuar produzindo os quadros que Théo
123
venderia em Paris. Para Gauguin era uma troca clara: ele receberia uma
espécie de mesada e teria um bom marchand para vender suas obras e o
preço a pagar era conviver com Vincent. Gauguin aceitou a situação por ser um
homem prático, contudo sentia-se incomodado com a sua posição, como relata
ao amigo Émile Schuffenecker em carta de outubro de 1888:
Mesmo que Théo Van Gogh estivesse apaixonado por mim, não seria pelos meus lindos olhos que iria me sustentar no sul. Ele é um holandês frio e já viu como funcionam as coisas. Tenciona, tanto quanto possível, tomar todos os assuntos a seu cargo, e este exclusivamente.
Van Gogh alugou a casa amarela em maio de 1888, mas apenas em
setembro foi possível habitá-la, pois por falta de recursos para a reforma, a
casa servia apenas de depósito para suas obras. Foi a morte de um de seus
tios mais estimados que propiciou a reforma, pois Théo recebeu uma parte da
herança e enviou uma parte a Vincent.
Van Gogh era muito intenso e depositava seus mais sinceros
sentimentos na utopia da casa amarela, ao passo que para Gauguin a
passagem por Arles era apenas um bom negócio para sua carreira.
Os dois artistas partilhavam de uma admiração mútua e inicialmente
consideravam que aprenderiam muito um com o outro, porém, ao chegar,
Gauguin mostrou-se arrogante e insatisfeito com os rumos pictóricos de Van
Gogh tentado convencê-lo a mudar seu estilo. Naturalmente, a experiência não
foi simples ou fácil. Embora a convivência tenha sido curta, apenas 63 dias, é
tida por muitos historiadores da arte como um dos principais acontecimentos da
arte moderna, resultando em obras de altíssimo nível (Fell, 2007, p. 134).
Para sua irmã Willemien, na carta nº 720 de 12/11/1888, Van Gogh
confidenciou que Gauguin insistia muito para que pintasse de memória e assim
libertasse sua imaginação. Nesta mesma carta comenta sobre Lembrança do
jardim de Etten, tela que pintou a partir das memórias do jardim da casa da
família em Etten, retratando a mãe, a irmã e uma criada. Diz, ainda, que sabe
que as figuras não estão muito semelhantes, porém transmitem o caráter
poético que ele sentia. “Não sei se você entenderá que podemos fazer uma
124
poesia somente com uma combinação de cores, assim como se pode dizer
coisas reconfortantes com uma música”.
Conforme Walther e Metzger (2006, p. 454), esta obra é um marco do
período em que Van Gogh conviveu com Gauguin, pois sinaliza o
desenvolvimento da habilidade de pintar de memória. Embora se alinhe com o
estilo de Gauguin, a obra está carregada de sentimento e simbolismo, ao
contrário do que buscava Gauguin.
63 - Van Gogh – Lembrança do jardim de Etten, 1888. State Hermitage Museum. Óleo sobre
tela.
Gauguin não estava feliz em Arles, não gostava do ar provinciano da
cidade, queria seguir para os trópicos buscando o “primitivismo”. Van Gogh, por
sua vez, não suportava a idéia da partida do amigo e tentava fazer o possível
para dissuadi-lo da idéia de partir. Sujeitava-se aos caprichos de Gauguin,
“cujas ordens iam tomando conta da sua vida da mesma forma que se
apoderavam da sua arte” (Walther e Metzger, 2006, p. 443).
Vincent comenta na carta nº 724 de 11/12/1888: “Eu mesmo acho que
Gauguin se desanimou um pouco com a boa cidade de Arles, com a casinha
amarela onde trabalhamos e sobretudo comigo”.
125
64 - Van Gogh - A casa amarela, 1888. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
Na noite anterior a véspera de natal, a tensão entre os dois atingiu seu
ápice e após uma discussão Van Gogh cortou a orelha, embrulhou e entregou
a Rachel, uma prostituta conhecida e a favorita de Gauguin. Depois, voltou
para casa e se deitou. A prostituta avisou a polícia que o procurou em sua casa
encontrando-o desacordado e se esvaindo em sangue.
No dia 24 de dezembro Gauguin enviou um telegrama a Théo contando
o ocorrido e na mesma noite Théo partiu para Arles para visitar o irmão.
Gauguin deixou a cidade juntamente com Théo, logo após o natal, e nunca
mais tornou a ver Vincent. Van Gogh permaneceu internado até o dia 07 de
janeiro de 1889 para se recuperar fisicamente.
Posteriormente, em fevereiro, sofre com a insônia e com graves
episódios de alucinações e é internado por alguns dias. Entretanto, a
população arlesiana estava muito preocupada com a presença do excêntrico
pintor e semanas depois organizaram uma petição para que ele fosse
internado. Novamente ele é levado pela polícia e sua casa amarela lacrada.
Esta última internação em Arles causou-lhe um sofrimento muito maior
que as demais, pelo motivo de terem restringido a pintura. Os médicos
consideravam que deveria pintar com moderação e nas primeiras semanas não
pôde sequer desenhar. Na carta número 750 de 19 de março, Vincent conta ao
irmão em tom emocionado sobre a internação e lhe pede que nada faça, que
126
não tente intervir, pois sabe que qualquer exaltação pode piorar seu estado
emocional. Portanto, racionalmente optou pela resignação.
3.4.4 Recursos criativos: Experimentações e restrições
Recursos criativos, segundo Salles (2007, p. 104), são os meios que o
artista encontra para a execução da obra. Portanto, compreendem a
manipulação da matéria, técnicas e procedimentos.
À medida que Van Gogh produzia, mais aprendia, através das
experimentações, das tentativas, erros e acertos, tornando-se mais seguro e
confiante, como podemos apreender dos trechos abaixo:
Estou começando a me sentir bem diferente do que era quando cheguei aqui. Não tenho mais dúvidas, não hesito em começar um tema. E sei posso mudar ainda mais. (Carta nº 683, de 18/09/1888)
Antes eu me sentia menos pintor, a pintura está se tornando uma distração para mim, como a caça aos coelhos é para os malucos que fazem isso para se distrair. Minha atenção está se tornando mais intensa e a mão mais firme. É por isso que eu ouso dar-lhe praticamente certeza de que minha pintura ficará melhor. Pois isso é tudo o que me resta. (Carta nº 645, de 22/07/1888)
Van Gogh também escreve muitas vezes sobre seus progressos, quanto
à técnica e a aprendizagem do uso correto da cor numa tentativa de dominá-la:
Eu gostaria muito que fosse possível controlar a cor como controlo a pena e o papel. Muitas vezes por medo de desperdiçar cores acabo errando e estragando um estudo. (Carta nº 638, de 09 ou 10/07/1888) Você poderia pedir a Tasset a sua opinião sobre a seguinte questão? Parece-me que quanto mais fina for moída uma cor, mais ela ficará saturada de óleo. Não é preciso dizer que não apreciamos óleo tanto assim. (...) Se moêssemos as cores apenas o tempo necessário para torná-la manipulável, sem nos preocuparmos tanto com a espessura do grão, teríamos cores mais frescas, que talvez escurecessem menos.
127
(Carta nº 668, de 23 ou 24/08/1888) Estou começando a cada vez mais procurar uma técnica simples, que talvez não seja a impressionista. Eu gostaria de pintar de tal modo que, se isso acontecer, qualquer pessoa que tenha olhos possa entender. (Carta nº 666, de 21 ou 22/08/1888) Trabalhar com rapidez não significa trabalhar menos seriamente, isso depende da confiança e da experiência que se tenha. (Carta nº 630, de 23/06/1888)
Logo que chegou ao sul, Van Gogh descobriu o mistral, um vento forte e
frio comum na região do Mediterrâneo. A ação do mistral muitas vezes o
impedia de trabalhar ou o restringia, contudo, em muitos momentos, persistia e
tentava trabalhar ao ar livre amarrando o cavalete ou apenas desenhando.
Eu já tive a oportunidade de descobrir o que é o mistral. Eu estive caminhando ao redor aqui, mas este vento tornou impossível fazer qualquer coisa. (Carta nº 583, de 09/03/1888) Nem todos teriam a paciência para se deixar ser devorado pelos mosquitos e lutar contra esse incômodo constante que é o insuportável mistral, para não mencionar que eu passei dias inteiros fora de casa apenas com um pouco de pão e leite. (...) Estou cansado dos desenhos. Comecei uma pintura, mas não tem condições de pintar com o mistral, é completamente impossível. (Carta nº 639, de 13/07/1888) É muito vento, um vento muito desagradável, irritante até. O mistral geralmente é um grande problema quando eu tenho que pintar ao ar livre, eu coloco a tela no chão e tenho que trabalhar ajoelhado, porque o cavalete não fica firme. (Carta nº 653, de 31/07/1888) Ah, aqueles que não acreditam no sol aqui no sul estão comentendo um equívoco. Infelizmente, junto com o sol, meu Deus, por 3/4 do tempo há o diabo do mistral. (Carta nº 663, de 18/08/1888) Você fez muito bem ao pedir cores e tela, porque o tempo está excelente, magnífico. O mistral ainda está lá, mas há intervalos de calmaria, e então é maravilhoso. Se tivéssemos menos mistral, esta parte do país seria realmente tão bonita e se prestaria tanto à arte, quanto o Japão. (Carta nº 682, de 18/09/1888)
128
Em Saint-Rémy, comenta que o mistral é menos intenso, pois é uma
região bastante montanhosa: “Aqui o mistral é muito menos irritante”. (Carta nº
777, de 31/05 ou 06/06/1889).
Contudo, o artista aprende a dialogar com os acasos, os erros, as
incertezas, se apropriando das restrições ou obstáculos e, muitas vezes,
valendo-se deles positivamente. Sobre os erros e acasos Salles (2008, p. 132 -
133) esclarece que:
Pode-se observar, porém, que ambos nos oferecem uma porta de entrada para pensar formas de desenvolvimento de pensamento criador. São entradas de elementos que causam ramificações do pensamento, desestabilizando a aparente estabilidade no percurso em direção às tendências. Erro e acaso interagem com o processo que está em curso, propondo problemas que provocam a necessidade de solução.
Em suas reflexões sobre o fazer artístico, Van Gogh acaba atribuindo ao
mistral o efeito selvagem das telas: “Creio que o vento contínuo daqui deva ter
alguma influência no fato de os estudos pintados terem essa aparência
selvagem. Porque em Cézanne também se vê a mesma coisa” (Carta nº 644,
de 17 ou 20/07/1888).
Além de aprender a manipular a matéria para obter os efeitos desejados,
Van Gogh também precisou aprender a conhecer o tempo da matéria.
Conforme o artista emprega pinceladas mais carregadas, mais tempo o
material demorará para secar. Na carta nº 583 (de 09/03/1888) diz que as
áreas de impasto demorarão mais para estarem completamente secas. Assim,
observa que da mesma forma que cada tipo de pigmento tem suas próprias
características para manipulação, também tem seu próprio tempo de secagem.
Por exemplo, na carta nº 591 (de 01/04/1888) comenta que o branco de zinco
que está usando não seca, forçando-o a deixar algumas telas secando na
cidade de Saintes-Maries onde esteve passeando por poucos dias. A
necessidade de deixar telas secando aconteceu também em sua partida de
Arles e em sua partida de Saint-Rémy. Posteriormente, na carta nº 636 (de
05/07/1888), diz que a grande desvantagem do branco de zinco é que seca
muito lentamente, porém é ótimo para o preparo de misturas (carta nº 631 de
25/06/1888).
129
Devido ao pouco dinheiro, Van Gogh enfrentava muitas restrições na
construção de suas obras. Em diversas cartas observam-se comentários sobre
tentativas de economizar material, não desperdiçar tinta ou telas. Em alguns
momentos, nos pedidos de material, sugere ao irmão que substitua as tintas
mais caras por outras mais baratas. Outro problema causado pela falta de
dinheiro era a impossibilidade de pagar modelos. Para poder praticar retratos, o
artista se viu obrigado a se auto-retratar. Comprou um bom espelho e passou a
trabalhar sua própria imagem, que ele considerava bastante difícil de colorir:
“Se eu conseguir pintar a coloração da minha própria cabeça, o que não é
tarefa simples, certamente serei capaz de pintar a cabeça de outros homens e
também mulheres” (Carta nº 681, de 16/09/1888).
Através de sua aguçada percepção e seu olhar de artista, Van Gogh
sente-se atraído pelos ciprestes da região provençal, e comenta que ninguém
os vê da mesma maneira que ele os vê e, no entanto, ele mesmo não
conseguiu pintá-los como os percebe. Desta forma, os ciprestes tornaram-se
um tema recorrente em suas cartas, bem como em sua obra, como vemos em
alguns exemplos abaixo:
Os ciprestes sempre me preocupam, gostaria de fazer com eles algo como as telas de girassóis, pois me surpreende que ninguém ainda os tenha feito como eu os vejo. Quanto às linhas e proporções é tão lindo quanto um obelisco egípcio. E o verde é de uma qualidade tão distinta. É uma mancha negra em uma paisagem ensolarada, é um dos tons escuros mais interessantes e o mais difícil de fazer corretamente, que eu possa imaginar. (Carta nº 783, de 25/06/1889) Espero que eu me acostume a trabalhar no frio, de manhã há um efeito muito interessante causado pela geada e pelo nevoeiro, e eu ainda tenho o grande desejo de fazer com as montanhas e com os ciprestes o que eu acabei de fazer com as oliveiras. (...) Então vou atacar os ciprestes e as montanhas. (Carta nº 823, de 26/11/1889) O cipreste é muito característico aqui na paisagem provençal. Até agora eu não consegui fazê-los como eu os sinto. O meu problema é que as emoções são tão fortes, tomam conta de mim de tal forma, que me exaurem e passo uns quinze dias sem conseguir trabalhar. No entanto, antes de partir daqui, vou trabalhar novamente nos ciprestes. (Carta nº 853, de 09 ou 10/02/1890, a Albert Aurier)
130
Van Gogh pediu ao irmão que desse a tela Ciprestes com duas figuras
femininas de presente a Aurier, quando voltou a abordar o tema.
65 - Van Gogh – Ciprestes com duas figuras femininas, 1890. Museu Kröller-Müller. Óleo sobre tela.
Outro motivo muito abordado em sua obra e em suas cartas são as
oliveiras. Assim como ocorreu com os ciprestes, Van Gogh atribui às oliveiras
um caráter de coloração e simbolismo quase mítico. Na carta nº 763 (de
28/04/1889), diz ao irmão: “Ah meu caro Théo, se você pudesse ver as
oliveiras nesta época do ano... (...) É muito diferente do que se imagina no
norte, é algo muito delicado, muito refinado”.
O artista se mostra em consumição por não conseguir representar as
oliveiras como gostaria: “As oliveiras são muito peculiares e estou lutando para
conseguir capturar isso” (carta nº 806, de 28/09/1889). Van Gogh também diz
que a oliveira é muito variável e pitoresca como os salgueiros típicos do norte
(carta nº 823, de 26/11/1889).
Em maio de 1890, já instalado em Auvers, Van Gogh escreve para
Isaäcson (carta nº RM21), artista e escritor, e lhe diz que os efeitos de luz
permitem muitas maneiras de se explorar as oliveiras, como ele tenta fazer
131
através da série de mulheres colhendo azeitonas, como observamos nas
imagens a seguir.
3.4.5 Percepção e expressão
Como vimos ao longo deste trabalho Van Gogh sempre se preocupou
com as questões da cor, mesmo quando tentava desviar-se deste interesse
que nos parece inato. Contudo, ao chegar ao sul, esse interesse cresceu e
atingiu seu ápice. Passou a se interessar mais pela cor do que pelo desenho e
nutria um profundo desejo de se expressar mais através da cor do que da
forma, como relata no trecho da carta 673, de 03/09/1888, transcrito abaixo:
66 - Mulheres colhendo azeitonas, 1889. Coleção particular. Óleo sobre tela.
67 - Mulheres colhendo azeitonas, 1889. The Metropolitan Museum of art. Óleo sobre tela.
68 - Mulheres colhendo azeitonas, 1889. National Galery of art. Óleo sobre tela.
132
Então eu ainda estou entre duas correntes de idéias. Primeiro, as dificuldades materiais, lutando para se sustentar. A segunda, o uso da cor. Eu continuo a ter esperanças de encontrar aí mais alguma coisa. Para expressar o amor de dois namorados usando o casamento de duas cores complementares, suas combinações e contrastes, as vibrações misteriosas de tons justapostos. Exprimir o pensamento de uma cabeça através do brilho de um tom claro sobre um fundo escuro. Exprimir a esperança através das estrelas. O ardor de um ser vivo através dos raios do sol. Certamente não se trata aqui de uma ilusão realista, mas não são coisas que realmente existem?
Na carta nº 663, de 18/08/1888, Van Gogh diz ao irmão que não quer
apenas representar o que tem diante dos olhos, mas quer usar as cores de
uma forma arbitrária a fim de se expressar
melhor. Exemplifica comentando sobre um retrato
no qual estava trabalhando, um artista que tem
grandes sonhos e que trabalha da mesma
maneira que um rouxinol canta, ou seja, por ser
da sua natureza. Ele diz que esse homem é loiro,
mas na pintura o loiro de seus cabelos tem que
ser ressaltado com tons de laranja, cromo e
amarelo-limão. No fundo ele não poderia pintar a
parede do aposento, ele pintaria o infinito. “Faço
um fundo simples, porém do azul mais rico e mais
intenso que eu puder preparar.” E com essa
combinação simples pode obter um efeito que julga misterioso: “Uma estrela no
azul profundo”.
Assim, temos o relato de como o artista quer pintar além do que
simplesmente vê; ele quer imprimir em suas obras os elementos que estão
além da sua percepção visual. Trata-se de exprimir sentimentos, sensações e
impressões subjetivas.
Ao longo da leitura das cartas de Van Gogh encontramos observações,
análises e reflexões acerca da arte – dos caminhos percorridos e do futuro. O
artista, mesmo com toda a sua paixão, era capaz de elaborar críticas lúcidas e
embasadas.
69 – Retrato de Eugene Bock (O poeta), 1888. Museu D’Orsay.
Óleo sobre tela.
133
Van Gogh não poupa elogios a Delacroix, para ele o maior colorista que
houvera até aquele momento. Traça críticas e observações sobre os
impressionistas e os pontilhistas. No campo do desenho, sua maior referência
é Millet. E outra figura muito presente nas cartas e também merecedor de
muitos louvores é Monticelli.
Quanto à cor, Van Gogh, estava certo de que não poderia jamais ser
encontrada no norte. Por isso acreditava que num futuro breve, os grandes
coloristas partiriam para o sul em busca da luz ideal e, assim, o futuro da arte
estaria no sul.
Eu acredito que uma nova escola colorista terá origem no sul, vendo cada vez mais os do norte procurarem mais a habilidade com o pincel e o efeito dito pitoresco, que o desejo de expressar algo através da cor em si. (Carta nº 707, de 17/10/1888)
Van Gogh também comentava muito sobre os impressionistas e o que
ele esperava da cor.
...Os pontilhistas descobriram algo novo e eu gosto muito deles. Mas eu digo – digo-o francamente – que vou voltar para o que eu estava procurando antes de ir a Paris, não sei se antes de mim alguém falou sobre cores sugestivas, mas Delacroix e Monticelli, apesar de não terem falado sobre isso, as fizeram. (Carta nº 683, de 18/09/1888) Certamente a cor está progredindo, precisamente através dos impressionistas, mesmo quando eles se desviam, se perdem. Mas Delacroix já era mais completo do que eles são. E meu Deus, Millet que quase não tem cor, que obra! Eu não me arrependo de ter desejado conhecer um pouco melhor a questão da teoria das cores. (...) E assim vamos sempre manter uma certa paixão pelo impressionismo, mas eu sinto que estou voltando mais e mais para as idéias que eu tinha antes de ir a Paris. (Carta nº 768, de 03/05/1889) Eu acho que o que eu aprendi em Paris está desaparecendo e eu estou retornando às idéias que eu tinha antes de conhecer os impressionistas. E eu não ficaria muito surpreso se logo os impressionistas encontrassem o que criticar em minha maneira de fazer, pois foi fertilizada muito mais pelas idéias de Delacroix do que pelas deles. Porque em vez de tentar representar exatamente o que tenho diante dos meus olhos, eu uso a cor mais arbitrariamente para me expressar com mais força. (Carta nº 663, de 18/08/1888)
134
Sobre a obra O café noturno ainda comenta com o irmão:
Não são cores verdadeiras, do ponto de vista do realismo, mas são cores que sugerem emoção, uma espécie de temperamento ardente. (...) Pois bem, se fizéssemos cores muito fiéis ou desenhos muito realísticos, não poderíamos criar estas emoções. (Carta nº 676, de 08/09/1888)
De acordo com os últimos trechos citados, seria correto dizer que
embora Van Gogh tenha conhecido a técnica impressionista em Paris, o que
ele realmente almejava era expressar emoções através das cores, indo,
portanto, além da proposta impressionista. Van Gogh buscava meios para
expressar, indo além da simples representação.
70 - Van Gogh – A cadeira de Vincent com o seu cachimbo, 1888. National Gallery. Óleo sobre tela.
71 - Van Gogh – A cadeira de braços de Paul Gauguin, 1888. Museu Van Gogh. Óleo sobre tela.
135
3.4.6 Arte e loucura: O fim
Cabe ressaltar que não é objetivo deste trabalho tentar compreender a
doença de Van Gogh, aliás, um tema bastante explorado, porém, até o
momento, não há resultados conclusivos sobre o assunto. Entretanto, não há
como não passarmos pelo tema, especialmente em virtude de sua direta
ligação com as obras.
Após as internações contra sua vontade em Arles, Vincent decide se
internar em Saint-Rémy, compreendendo que será melhor para sua saúde.
Assim, em abril de 1889, dizendo-se incapaz de recomeçar ou de viver
sozinho, Vincent manifesta ao irmão o desejo de ser internado em um hospital
psiquiátrico em Saint-Rémy. De forma objetiva diz a Théo na carta 760:
Provisoriamente desejo ficar internado tanto para minha própria tranqüilidade quanto para a dos outros. O que me consola um pouco é que estou começando a considerar a loucura como uma doença qualquer, e aceito a coisa como ela é, enquanto que, durante as crises, parecia-me que tudo o que eu imaginava era real. Enfim, justamente eu não quero nem pensar e nem falar nisso. Poupe-me das explicações.
Muitas vezes ficava assustado diante de suas próprias crises, mas
sempre encarou e descreveu a loucura de forma lógica e profunda. Após sua
internação em Saint-Rémy comenta algumas vezes que o medo da loucura
diminuiu muito, especialmente após ver os outros loucos em casos muito mais
graves, como na carta 776 de 23 de maio: “...O medo da loucura diminuiu
consideravelmente ao ver de perto as pessoas por ela afetadas, como eu
facilmente poderia ficar futuramente.”
Desde as primeiras internações, impedido de sair para pintar ao ar livre,
iniciou uma série de cópias de seus próprios quadros, como a série de cópias
dos girassóis.
No período em Saint-Rémy pintou muitas vistas das janelas, os jardins,
cenas internas – como as enfermarias – e as paisagens, quando tinha
permissão para sair para pintar sob vigia. Também usou muito o recurso da
memória além das cópias de obras de grandes pintores.
136
Em Saint-Rémy se distraia lendo – nessa época leu a obra completa de
Shakespeare, entre outros – e pintando de forma frenética. (Coli, 2006, p. 107).
Neste período observa-se em sua obra uma nova característica, um
traçado em movimentos contorcidos, sobre o qual Coli diz (2006, p. 107):
A festa colorida de Arles se atenua. (...) Aqui o brilho perdido da cor se converteu em energia gráfica. E é verdade: convulsos, em plásticas contorções, seus quadros não são desordenados, pois, se tudo gira em turbilhões, está agora mais presente do que nunca o contorno firme que modela, sinuoso, que não apenas limita, mas constrói.
Em janeiro de 1890, foi publicado o primeiro artigo sobre Van Gogh, no
Mercure de France, escrito por Albert Aurier, que conheceu as obras de
Vincent através de Bernard. Théo imediatamente enviou o artigo a Vincent que
ficou muito feliz, mas não deixou de lembrar que outros artistas eram, de certa
forma, responsáveis por seu êxito, especialmente Monticelli.
O pintor, nas palavras de Aurier (APUD Walther e Metzger, 2006, p. 566
– 567):
Uma espécie de gigante intoxicado, mais bem equipado para arrastar montanhas do que para brincar com velharias, um cérebro em erupção que derrama a sua lava para dentro de todas as fendas da arte, um gênio terrível e meio louco, normalmente sublime, por vezes grotesco, e sempre quase doentio. (...) Vincent Van Gogh é demasiado simples e demasiado sutil para o espírito burguês dos seus contemporâneos. Ele só será totalmente compreendido pelos seus irmãos, por aqueles que são verdadeiros artistas.
Van Gogh escreve uma carta a Aurier em agradecimento (carta nº 853
de 9 ou 10/02/1890), dizendo-se bastante surpreso com o artigo. No entanto,
diz que após refletir muito sobre as palavras do crítico não se sentiu à vontade
por receber sozinho aquele reconhecimento; considerava que ele era muito
mais devido a outros artistas que vieram antes dele, em especial Monticelli.
Defendendo seu ponto de vista diz que considera Monticelli o único pintor que
realmente percebe a coloração das coisas em toda a sua intensidade, nuance
e qualidade. E ainda salienta que até onde sabe não há outro colorista que
tenha se alinhado tanto com Delacroix.
137
Nesse período Vincent vende sua primeira tela, A vinha vermelha, em
uma exposição em Bruxelas. No Salão dos Independentes, realizado em março
de 1890, Van Gogh expôs dez telas e Théo avisou-lhe, através da carta 862,
que Monet disse que eram as melhores da exposição.
Parecia que, finalmente, Vincent seria reconhecido e isso lhe animava e
causava temor ao mesmo tempo. Tinha medo de não saber lidar com o
reconhecimento ou de acabar se iludindo e sofrendo ainda mais.
Ainda em agosto de 1888 escrevera sobre o sucesso:
Tanto melhor se o sucesso vier, tanto melhor se um dia pudermos viver melhor. O que mais me toca na obra de Zola é aquele personagem Bongrand-Jundt. É tão verdadeiro o que ele diz: “Vocês acreditam, almas infelizes, que quando o artista conquistou seu talento e sua reputação, passa a estar melhor? Pelo contrário, a partir de então ele não tem permissão para produzir uma coisa que não seja realmente boa. Sua própria reputação o obriga a cuidar muito mais de seu trabalho ou suas vendas podem diminuir. Ao menor sinal de fraqueza o mundo cai sobre ele e destrói toda essa reputação e a fé que um público volúvel e traiçoeiro tinha nele”. Mas ainda mais forte que isso é o que Carlyle diz: “Você sabe que os vaga-lumes no Brasil são tão luminosos, que à noite as mulheres os espetam com alfinetes em seus cabelos. A fama é muito boa, mas, veja, ela é para o artista o mesmo que o alfinete é para os vaga-lumes”. “Você deseja ter sucesso e brilhar; você sabe realmente o que você quer?” Agora eu tenho horror ao sucesso, receio a ressaca de um sucesso dos impressionistas, os dias já difíceis de hoje nos parecerão mais tarde ter sido “os bons tempos”. (Carta nº 666, de 13/08/1888)
Neste período, Pissarro informa Théo a respeito do Dr. Gachet, um bom
médico que apóia os artistas e também pinta como hobby, e que vive em
Auvers-sur-Oise, uma pequena cidade próxima a Paris. Auvers fica na margem
do rio Oise, conserva o ar provinciano, extensos campos de trigo e encantou
diversos artistas, entre eles Daubigny, que comprara lá um terreno e depois foi
seguido por Daumier e Corot. Gachet também foi o motivo de Cézanne morar
um tempo em Auvers.
138
Estando com boa saúde e em boas condições mentais, Vincent resolve
que é chegada a hora de partir e procurar o famoso doutor em Auvers. Antes,
visita o irmão em Paris, aproveitando para conhecer sua cunhada e seu
sobrinho, recebe a visita de alguns amigos artistas e então parte para a
pequena cidade que seria sua última parada.
Quando o artista deixou o hospital em Saint-Rémy, o Dr. Peyron, médico
chefe, anota em sua ficha (APUD Coli, 2006, p. 105 – 106):
Doente calmo na maior parte do tempo. Teve durante sua estada, vários acessos que apresentaram uma duração de quinze dias a um mês; durante esses acessos o doente fica exposto a terrores aterradores (terreurs terrificantes); tentou várias vezes se envenenar, seja engolindo a tinta de que se servia para pintar, seja absorvendo querosene que surrupiara do empregado enquanto este enchia as lâmpadas (...). No intervalo dos acessos, o doente é perfeitamente tranqüilo e lúcido e se entrega com ardor à pintura.
Nos dois meses que morou em Auvers pintou mais de 80 quadros, o que
daria em média mais de um por dia, enquanto em Saint-Rémy a média era de
um quadro a cada dois dias.
Vincent simpatizou com o médico e o sentimento foi recíproco. Mas tudo
o que envolve Van Gogh é impetuoso, até mesmo as amizades, e apesar do
carinho, é uma convivência instável. No curto, porém intenso período, Van
Gogh pinta diversos retratos de Gachet e de sua filha. Cem anos depois – em
1990 – a primeira versão do famoso retrato do Dr. Gachet foi vendida pelo valor
recorde de 75 milhões de dólares.
139
72 - Van Gogh - Retrato do Dr. Gachet, 1890. Coleção particular. Óleo sobre tela.
No dia 27 de julho de 1890, Van Gogh disparou um tiro contra o próprio
peito. Não se sabe onde e como conseguiu a arma. Sabe-se, apenas, que
retornou de mais um dia de trabalho à pensão onde estava morando, abatido e
cambaleante. Avisado pelo Dr. Gachet, poucas horas depois, seu irmão estava
ao seu lado e permaneceu em sua cabeceira durante os dois dias em que
agonizou.
Van Gogh não deixou uma carta de despedida e não se sabe ao certo o
motivo do suicídio. Segundo Bernard (APUD Walther e Metzger, 2006, p. 692),
no velório, o Dr. Gachet teria dito: “Foi um homem honesto e um grande artista.
E, para ele, existiam apenas duas coisas: compaixão e arte. A arte era a coisa
mais importante de todas para ele e é nela que ele ficará sempre vivo”.
140
Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo destas páginas pudemos acompanhar a conquista processual
da cor de Van Gogh. Tal oportunidade de deve ao conteúdo singular de suas
cartas. A propósito, cartas tão ricas em detalhes e tão poéticas que Walther e
Metzger chamam de “A outra arte de Van Gogh”, e as entendem como formas
paralelas de um desejo de auto-expressão (2006, p. 21 e 25).
Como vimos, em alguns períodos as cartas chegam a ser quase diárias
e apresentando conteúdo semelhante. Vincent costumava discorrer sobre sua
saúde, sobre questões financeiras, assuntos corriqueiros e sobre sua arte.
Muito do que se sabe sobre suas obras é o que registrou em suas
correspondências.
Devido ao conteúdo e freqüência, entendemos que as cartas assumem o
caráter de um diário, inclusive com tom autobiográfico. Sob a perspectiva de
Foucault e Flusser podemos dizer que a escrita de cartas era para Van Gogh
uma forma de atenuar a solidão.
A partir da leitura crítica das cartas e de reflexão sobre as recorrências
encontradas, identificamos três fases no que tange a relação do artista com a
cor. Tais fases são marcadas por formas muito distintas de ver e se relacionar
com a cor, como se formassem ciclos perceptivos. Daí a divisão de seu
percurso cromático em luz do norte, luz da cidade luz e luz do sul. A variação
tonal de sua paleta está representada nos anexos deste trabalho (vide anexo
dois).
No entanto, observamos que estas fases não são caracterizadas apenas
pela forma como o artista percebia a luz local, havia, também, outros fatores
que compunham seu projeto poético.
No período do norte, Vincent possuía uma paleta repleta de tons escuros
e pesados, bem como os mestres que admirava, em destaque Millet. Era
adepto do estilo realista, que objetivava retratar da forma mais fiel possível a
realidade. Foi aluno de Mauve, que definiu como mestre do cinza (Carta nº
590). Van Gogh também tinha verdadeira fixação pelas classes trabalhadoras
menos favorecidas, que gostava de retratar em seu cotidiano, ou seja, em
142
locais mal iluminados, úmidos e sombrios, condição que requeria o uso de tons
sóbrios e escuros. Tais pontos justificam facilmente os tons de sua paleta.
Contudo, fatores subjetivos também podem ter contribuído para a
constituição desta paleta quase monocromática. Ainda estava profundamente
ligado à religião, o período como pregador nas minas do Borinage ainda estava
muito vivo em sua lembrança, e era patente sua preocupação com as questões
sociais. Ademais, estava envolvido em graves crises familiares, sentia-se
rejeitado por praticamente todos à sua volta, inclusive pelas mulheres que lhe
interessavam.
Não obstante, no período estudava teorias da cor e já admirava
Delacroix, que considerava o maior colorista de todos os tempos (Carta nº
682). Como observamos no desenvolvimento deste trabalho, neste período,
em que dava seus primeiros passos como pintor, Van Gogh já demonstrava o
desejo de progredir no uso da cor, no domínio da técnica e já falava que sentia
uma certa sensibilidade que estava despertando para o uso da cor (Carta nº
371). No entanto, Van Gogh ainda não conhecia técnicas de coloração como
aprenderia em Paris com os impressionistas e ainda não era capaz de explorar
a cor em toda sua potencialidade, como faria em Arles. Portanto, concluímos
que o uso dos tons mais escuros, além de ser uma representação realista das
condições de luz e cor locais, era devido, também, as técnicas de coloração
que o artista conhecia na época.
O período em Paris foi fundamental para o desenvolvimento das
habilidades coloristas de Van Gogh. O contato com a técnica impressionista
despertou-lhe para uma nova forma de percepção da luz e da cor. Foi também
tocado pelo pontilhismo e pelas gravuras japonesas, que lhe ofereceriam novas
técnicas de perspectiva e coloração. Estes conhecimentos foram
determinantes para sua nova fase, a busca pela cor em todas as suas
possibilidades.
No sul, tudo era cor para Van Gogh. E passa a ver o norte como a
ausência da cor (Carta nº 628). Ao observarmos as obras que produziu em
Arles, é possível perceber como as cores vão se tornando, aos poucos, mais
vibrantes e intensas. Van Gogh estava descobrindo novas perspectivas para o
143
uso da cor: A possibilidade de se expressar através da cor em si (Carta nº
707).
No terceiro capítulo deste trabalho vimos, através das palavras do
próprio artista, que procurava mais do que simplesmente representar as cores
com as quais o sul estava lhe presenteando. Ele queria exprimir algo além do
que a sensação cromática que os olhos vêem; e relata a angústia por algumas
vezes não conseguir exprimir as coisas como ele as vê ou sente. Em alguns
momentos diz que para expressar as coisas da forma que gostaria é preciso
exagerar no uso da cor e fugir um pouco das cores reais (Carta nº 663), é
preciso usar cores sugestivas capazes de criar emoções (Cartas nº 683 e 676).
Para corroborar esta idéia, Signac escreveu sobre o sul em seu diário
em 1894 (APUD Walther e Metzger, 2006, p. 319):
Nesta área tudo é branco. Os contínuos reflexos de luz engolem todas as cores locais e fazem com que as sombras pareçam cinzentas. As pinturas de Van Gogh executadas em Arles são extraordinariamente impetuosas e intensas. Mas não transmitem, de nenhuma forma, a luz do sul.
Deste modo, concluímos que ao longo de todo o seu percurso artístico
Van Gogh buscou a cor. Porém, a cor que procurava não era a cor como os
olhos vêem, era uma cor permeada de subjetivismo. Mesmo quando ainda
estava no norte e não tinha plena consciência disso, essa tendência já era
latente. De acordo com Salles o processo de criação artístico possui um trajeto
com tendência, que é o elemento direcionador do percurso do artista (2004, 28
– 29):
O artista é atraído pelo propósito de natureza geral e move-se inevitavelmente em sua direção. A tendência é indefinida mas o artista é fiel a essa vagueza. O trabalho caminha para um maior discernimento daquilo que se quer elaborar. A tendência não apresenta já em si a solução concreta para o problema, mas indica o rumo. (...) A tendência mostra-se como um condutor maleável, ou seja, uma nebulosa que age como bússola. Esse movimento dialético entre ruma e vagueza é que gera o trabalho e move o ato criador.
Através desta pesquisa vislumbramos seus interesses, estudos,
pesquisas, bem como progressos e hesitações. Tivemos acesso ao universo
de um artista que buscava mais das cores do que, simplesmente, o que os
144
olhos podem ver. Em Paris, Van Gogh realizou a descoberta da cor, porém,
não estava satisfeito, essa tendência indefinida e vaga o impulsionava a
encontrar a cor ideal e, para isso, partiu para o sul em busca de luz.
Desta viagem ao universo criativo de Van Gogh resta-nos compreender,
também, que ele não buscava pertencer a nenhum movimento artístico. Tudo o
que queria era poder exprimir sensações.
145
ReferênciasReferênciasReferênciasReferências
146
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www.vangoghmuseum.com http://www.vangoghsstudiopractice.com Demais http://www.bauhaus.de http://www.vangoghgallery.com/ http://ciarte.no.sapo.pt/index.html
150
AnexosAnexosAnexosAnexos
151
Anexo 1 – Cronologia 1853 – Em 30 de março nascimento de Vincent Wilhelm Van Gogh, em Groot
Zundert, na Holanda. 1857 – Em 1º de maio nascimento de Theodorus Van Gogh (Théo). 1869 – Vincent vai trabalhar na Goupil em Haia, a trabalho viaja para Bruxelas,
Londres e Paris. 1872 – A troca de correspondência entre os irmãos se inicia após a visita de
Théo a Vincent em Haia. 1873 – Vincent é transferido para Londres como promoção devido ao seu bom
trabalho. A solidão e a desilusão amorosa sofrida em Londres contribuem para que Vincent se torne depressivo e seu desempenho cai consideravelmente no trabalho.
1875 – É transferido para Paris como uma tentativa de que Vincent volte a ser
o empregado competente de outrora. 1876 – É demitido da Goupil e passa por vários locais sem sucesso em
nenhum novo trabalho. 1878 – Decide se dedicar à religião, muda-se para a região de Borinage, onde
atuou como pregador. 1880 – Abandona a região das minas e a idéia de ser pregador, e passa a se
dedicar a arte. Muda-se para Bruxelas para estudar arte. Neste período Théo passa a auxiliá-lo financeiramente.
1881 – Retorna à casa dos pais em Etten. É rejeitado pela prima Kee Vos.
Começa a estudar aquarelas e pintura a óleo. Depois de muitos conflitos familiares se muda para Haia.
1882 – Estuda arte em Haia com o apoio de Mauve e acolhe Sien – uma
prostituta – e seus filhos, utilizando-a como modelo. 1883 – Diante da impossibilidade de sustentar a nova família parte para
Drenthe e perto do fim do ano retorna à casa dos pais, dessa vez em Nuenen.
1885 – Trabalha na série dos tecelões e pinta Os comedores de batatas. Neste
ano seu pai falece e Vincent decide partir, inicialmente para Antuérpia e depois para Paris.
1886 – No início do ano, em Antuérpia, estuda na academia de arte. Em
fevereiro muda-se para Paris, onde conhece o impressionismo. Se relaciona com Bernard, Lautrec, Signac e Gauguin.
152
1887 – Fortalece a amizade com Bernard, conhece melhor o pontilhismo e se as figuras japonesas. Se encanta com as cores e suas possibilidades. A relação com o irmão degringola.
1888 – Em fevereiro parte para Arles. Perto do fim do ano recebe o amigo
Gauguin com quem pretendia montar uma colônia de artistas no sul, a sonhada casa amarela. O convívio tumultuado culmina com a auto-mutilação de Vincent, que corta a orelha.
1889 – Sofre diversas crises de alucinação e acaba sendo internado mais
vezes. Cansado do desgaste provocado pelas crises decide se internar num hospital psiquiátrico em Saint-Rémy, onde espera poder se recuperar com tranqüilidade.
1890 – Publicado o primeiro artigo sobre Van Gogh, no qual Aurier enaltece o
artista e sua obra. Vende sua primeira tela, a Vinha Vermelha. Em maio se muda para Auvers-sur-Oise, onde será paciente e amigo do Dr. Gachet.
Em 27 de julho dispara um tiro contra seu peito, morrendo no dia 29. 1891 – Théo morre no dia 25 de janeiro. 1914 – Primeira publicação das cartas dos irmãos.
153
Anexo 2 – Variação cromática
154
Anexo 3 – Mapa projeto poético