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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Maria Aparecida de Paula Vieira Freitas Imagem e expressividade poética em Florbela Espanca PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Maria Aparecida de Paula Vieira Freitas

Imagem e expressividade poética em Florbela Espanca

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO

2008

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Maria Aparecida de Paula Vieira Freitas

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profª. Drª. Maria Aparecida Junqueira

SÃO PAULO

2008

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Banca Examinadora: ............................................................................................. ............................................................................................. .............................................................................................

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Especialmente a “Deus”, pela dádiva da vida.

Aos meus pais, Adão e Terezinha, pela transmissão dos

verdadeiros valores, eternamente!

Às minhas filhas, Dirliane e Drielle, pelo amor!

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AGRADECIMENTOS

À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pela Bolsa de

Estudos concedida.

Á minha orientadora Profª Drª Maria Aparecida Junqueira, pela

objetividade, paciência e compreensão. Pelos momentos que ela não foi a

profissional, mas o Anjo que me iluminou e me ensinou a cultivar as flores e os

frutos da superação.

Ao Prof. Dr. Fernando Segolin, pela participação no Exame de

Qualificação, e pela preciosa contribuição em minha vida acadêmica e pessoal.

Á Profª Drª Jussara Neves Rezende, por aceitar meu convite para

o Exame de Qualificação, pelas observações e valiosa contribuição.

A todos os professores e funcionários do Programa de Estudos

Pós Graduados em Literatura e Crítica Literária.

Ao anjo Dirney, pelo espírito elevado.

Ao meu esposo Ismael, em outro plano espiritual.

Aos meus irmãos Imaculada, Mauro e Fátima, pela fraternidade e

apoio. Às minhas sobrinhas, e todos da minha família.

Aos amigos e colegas de trabalho, que oraram por mim ou de

alguma forma me otimizaram nos momentos mais difíceis.

Especial: Patrício: pela serenidade!

Kátia: pelo carinho!

Lívia: pela objetividade!

Cris: pela sabedoria!

Prof. Sandro: por plantar a semente!

Márcia: pela amizade, paciência e maturidade!

Gisele: pela paciência, amizade, superação e otimismo

Marilda: amizade e força, sempre!

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“Meu olho sonha continuamente imagens

mais belas que qualquer realidade.”

Georg Trakl

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é estudar o processo de construção de

imagens poéticas em alguns sonetos, do livro Charneca em flor, de Florbela

Espanca. A poeta portuguesa é cronologicamente inserida no Modernismo, no

entanto, sua poesia se apresenta com elementos híbridos que nos direcionam

para as várias vertentes estético-literárias. Florbela Espanca é uma poeta “sui

generis”, ou seja, possui um gênero próprio. A partir dessa oscilação de estilo,

nos deparamos com a indagação: Como Florbela Espanca esculpe a imagem

em sua poesia? Para responder a esta questão, formulamos a hipótese de que

a imagem na poesia de Florbela Espanca, dialoga com as várias vertentes

estético-literárias, configurando um estilo híbrido, que aponta para uma

expressividade singular. Nosso estudo foi fundamentado nas propostas de

Octávio Paz, Maurice-Jean Lefebve. Quanto á fortuna crítica muitos são os

estudiosos, apoiamo-nos nos estudos realizados por Maria Lucia Dal Farra,

Claudia Pazos Alonso, Natália Correia e José Régio, entre outros. Essa

dissertação compõe-se de três capítulos: O primeiro situa Florbela Espanca na

Literatura Portuguesa, com apontamentos biográficos da mulher e da poeta e,

em seguida, situa a poeta, por meio da crítica. O segundo aborda a imagem,

como recurso que se configura nas estéticas literárias, especialmente na

poesia, da poeta. O terceiro capítulo é dedicado à análise dos sonetos:

Realidade, Versos de Orgulho, Ser poeta e A voz da tília. Verificamos que a

imagem na poesia de Florbela Espanca dialoga com várias tendências

literárias, configurando um estilo híbrido, que aponta para uma expressividade

singular.

Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Florbela Espanca, imagem,

metáfora, sonetos.

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ABSTRACT

The purpose of this thesis is to study the process of building of poetical

images in some sonnets, of the book Charneca em flor , of Florbela Espanca.

The Portuguese poet is chronological inserted in the Modernism, however, its

poetry if presents with hybrid elements that direct in them for some aesthetic-

literary sources. Florbela Espanca is a poet “sui generis”, that is, it possess a

proper sort. From this oscillation of style, we come across in them with the

investigation: How Florbela Espanca sculptures the image in its poetry? To

answer to this question, we formulate the hypothesis of that the image in the

poetry of Florbela Espanca, dialogues with some source aesthetic-literary,

configuring a hybrid style, that points with respect to a singular expressiveness.

Our study was based on the proposals of Octávio Paz, Maurice-Jean Lefebve.

How much the critical richness many are the scholars, support in the studies

carried through for Maria Lucia Dal Farra, Claudia Pazos Alonso, Natália

Correia and Jose Régio, among others. This thesis is composed in three

chapters: The first one points out Florbela Espanca in Portuguese Literature,

with biographical notes of the woman and of the poet and, after that, it points

out the poet, by means of the critical one. As it approaches the image, as

resource that if configures in aesthetic the literary ones, especially in the poetry

of the poet. The third chapter is dedicated to the analysis of the sonnets:

Realidade, Versos de Orgulho, Ser Poeta and A voz da tília. We verify that the

image in the poetry of Florbela Espanca dialogues with some literary trends,

configuring a hybrid style, that points with respect to a singular expressiveness.

Palavras-chave: Portuguese Literature, Florbela Espanca, image,

metaphor, sonnets.

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SUMÁRIO Introdução .................................................................................................. 11

Capítulo I – Florbela Espanca: As vozes da Crítica ................................. 15

1.1 Biografia: breves considerações sobre a mulher Florbela Espanca ....... 16

1.2 A poeta Florbela Espanca ...................................................................... 21

1.3 Florbela e a crítica de seu tempo .......................................................... 28

1.4 Razões da crítica florbeliana .................................................................... 32

Capítulo II – A configuração da imagem poética ...................................... 36

2.1 Considerações sobre a imagem poética .................................................. 39

2.2 Diferentes traços estéticos na poesia florbeliana ..................................... 44

2.2.1 Traços trovadorescos ............................................................................ 45

2.2.2 Traços clássico-camonianos ................................................................. 46

2.2.3 Traços neobarrocos ............................................................................... 47

2.2.4 Traços neo românticos .......................................................................... 47

2.2.5 Traços do decadentismo simbolista ..................................................... 48

2.2.6 Traços da expressividade moderna ...................................................... 50

Capítulo III - Essência poética transfigurada pelas imagens .................. 53

3.1 Duplo espelho .......................................................................................... 54

3.1.1 Realidade: reflexo do eu no outro ....................................................... 54

3.1.2 Versos de Orgulho: entre o desdém e o amor ..................................... 59

3.2 Poética metafórica conceitual ................................................................. 63

3.2.1 Os desígnios de Ser Poeta................................................................... 63

3.2.2 Canto poético: poeta-tília ..................................................................... 67

Conclusão ................................................................................................... 73

Bibliografia ................................................................................................. 77

Anexos ....................................................................................................... 81

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Florbela Espanca - 1925

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INTRODUÇÃO

A poesia de Florbela d’ Alma da Conceição Espanca (1894-1930)

desperta, com sua sensibilidade e ousadia, o encantamento de seus leitores e

o interesse de críticos de sua época até a contemporaneidade.

Essa poeta portuguesa tem recebido destaque especial por sua

produção literária, tornando-se uma das mais significativas do Modernismo

português, sobretudo, no que diz respeito à voz lírica feminina. É o que nos

afirma Massaud Moisés (1997, p.253):

Florbela Espanca tem sido considerada muito justamente a figura feminina mais importante da Literatura Portuguesa. Sua poesia, mais reveladora de seu talento que os contos, é produto duma sensibilidade exacerbada por fortes impulsos eróticos, corresponde a um verdadeiro diálogo íntimo onde a autora extravasa as lutas que travam dentro dela tendências e sentimentos opostos.

Entre os estudos realizados acerca de Florbela Espanca, encontramos

os seguintes livros publicados: Sonetos de Florbela Espanca com prefácio de

José Régio (1946); A vida e a obra de Florbela Espanca, de Agustina Bessa

Luís (1979); Afinado Desconcerto (contos, cartas, diário) e Florbela: um caso

feminino e poético, de Maria Lucia Dal Farra (2000); Diário do último ano com

prefácio de Natália Correia (1998); Uma estética da teatralidade de Renata

Soares Junqueira (2002); Entreretratos de Florbela Espanca: Uma leitura

biofremática, de Luzia Machado R. de Noronha (1999) e Imagens do eu na

poesia de Florbela Espanca, de Claudia Pazos Alonso (1997).

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A grande estudiosa, no Brasil, da obra de Florbela é Maria Lúcia Dall

Farra, que nos apresenta um panorama da crítica florbeliana, refletindo a

biografia e a evolução crítica até a atualidade.

A temática abordada, nesta dissertação, volta-se para o estudo das

imagens nos sonetos dessa poeta. Procura-se refletir sobre a imagética

presente na produção literária florbeliana, buscando assinalar as imagens

concernentes ao seu fazer poético. Mais precisamente, nosso trabalho tratará

de sua obra Charneca em flor.

Cronologicamente, Florbela Espanca é estudada no Modernismo

português, no entanto, não podemos enquadrar sua poesia em um único

período literário. É uma poeta sui generis, ou seja, encarna em si um gênero

próprio. Não podemos rotulá-la unicamente ao movimento do Modernismo,

porém desejamos aproximá-la das características modernistas e das de outros

movimentos antecedentes, assim como demonstrar seu caráter híbrido.

A poesia de Florbela parece configurar-se por imagens vinculadas às

sensações que nos remetem diretamente à poética do Simbolismo. No

entanto, se lermos sua poesia com atenção, perceberemos também

características de outros movimentos. É a partir dessa oscilação entre os

movimentos que nos deparamos com a seguinte pergunta: Como Florbela

Espanca esculpe a imagem em sua poesia?

Para responder a esta indagação, selecionamos a seguinte hipótese:

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A imagem, na poesia de Florbela Espanca, dialoga com várias

tendências literárias, configurando um estilo híbrido, que aponta para uma

expressividade singular.

A seleção dos poemas está embasada em temática amorosa e

conceitual, voltada para o caráter imagético, já que pretendemos estudar a

construção de imagens na poesia de Florbela Espanca. Serão analisados, em

especial, os sonetos: Realidade, Versos de Orgulho, Ser Poeta e A voz da

Tília. Esses sonetos estarão no ítem “Anexos”, junto com outros que foram

utilizados apenas para exemplificação teórica. Florbela Espanca constrói sua

poesia embasada em símbolos. Por isso estaremos expondo, no ítem

“Anexos”, alguns símbolos comuns, encontrados nos poemas analisados no

capítulo 3 dessa dissertação. Não foi feita a transcrição total desses símbolos,

somente o que se julgou necessário para o entendimento das análises.

Considerando que o objeto de pesquisa é o texto poético, mais

especificamente, a imagem na poesia de Florbela Espanca, fundamentaremos

nosso trabalho nas propostas de Octávio Paz e Maurice-Jean Lefebve. Quanto

à fortuna crítica, apoiar-nos-emos nos estudos realizados por Claudia Pazos

Alonso, Natália Correia, José Régio, Maria Lúcia Dal Farra e Renata Soares

Junqueira, entre outros.

Esta dissertação compõe-se de três capítulos: O primeiro situa

biograficamente a mulher Florbela Espanca e a poeta da Literatura Portuguesa.

Em seguida trata da crítica, tentando apreender diferentes leituras sobre sua

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produção poética. O segundo capítulo aborda a imagem poética, buscando

apreender como este recurso se configura nas estéticas literárias,

especialmente na produção florbeliana. O terceiro é dedicado à análise de

alguns sonetos florbelianos, de modo a provar as considerações que estamos

empreendendo.

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CAPÍTULO I

Florbela Espanca: As vozes da Crítica

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Antes de considerarmos o posicionamento da crítica sobre a poesia de

Florbela Espanca, tracemos primeiro alguns apontamentos sobre a mulher e a

poeta, tentando apreender a existência de um conflito que parece dar vigor à

sua poesia.

1.1 Biografia: breves considerações sobre a mulher Florbela Espanca

No dia 8 de dezembro de 1894, nasce uma menina batizada pelo nome

de Flor Bela Lobo. Nasceu em Vila Viçosa. Era chamada afetuosamente pela

família por Bela. Filha muito desejada pelo pai João Maria Espanca que era

casado com Mariana do Carmo Inglesa Espanca. Como desse casamento não

pudessem ter filhos, dada à esterilidade de Mariana, o casal estabelece um

acordo fazendo uso de um velho costume medieval que permitia que um

homem tivesse filhos fora do casamento, caso sua mulher fosse estéril, desde

que a mulher escolhida fosse humilde e permitisse que o pai trouxesse a

criança para sua casa quando nascesse. Desde modo João Espanca após sete

anos de casamento infecundo, vai procurar Antonia da Conceição Lobo.

Romanticamente instala-a em outra casa para que passe o período da

gravidez. Após o nascimento de Florbela, Antonia da Conceição vai para a

casa dos Espancas para amamentá-la. A menina é criada pela mãe legítima,

pelo pai e por Mariana que se torna madrinha e é carinhosamente chamada de

Mãe Mariana. Em 1897 nasce Apeles, irmão de Florbela fruto da mesma

ligação extraconjugal entre João e Antonia.

Florbela D’Alma da Conceição Espanca, nome que adotou depois de

tornar-se poeta, deve ter influência paterna, pois seu pai foi uma das pessoas

mais importantes de sua vida. Foi alguém cuja jovialidade marcou seus

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primeiros anos e é o destinatário de muitas de suas cartas, durante os 36 anos

em que ela viveu. Antonia, a mãe legítima, falece quando Florbela tinha 13

anos.

A data de seu nascimento, estranhamente, coincide com a data de seu

primeiro casamento em 1913 e também com a de seu suicídio planejado e

realizado na noite de 7 para 8 de dezembro, quando falece em 1930, com 36

anos de idade.

Ao atingir a idade escolar, Florbela freqüenta o estabelecimento de

ensino Dona Ana Locádia, em Vila Viçosa. Ao concluir a 4ª série, transita para

a escola secundária do professor Romeu que freqüenta até concluir o 3º ano, o

que acontece até 1907. Em 1911, no 4º ano vai para Évora, com toda a família.

Lá, Florbela começa a namorar André de Gouveia, o colega do liceu,

estabelecimento de ensino que ambos freqüentavam. É um namoro feliz, talvez

a única experiência amorosa que não lhe deixou marcas e feridas.

O acesso da mulher a estabelecimentos de ensino secundário era

muito mal visto na época. Florbela foi das primeiras mulheres a freqüentar o

liceu eborense, o que não agradava, sobretudo aos professores. Foi aluna do

Liceu de Évora até 1912.

Em 8 de Dezembro de 1913 (o dia dos seus 19 anos), casa-se

civilmente com Alberto Moutinho, seu colega de liceu. Mais tarde, vai estudar

em Lisboa, freqüentando a Faculdade de Direito.

Numa carta datada de 16 de Junho de 1916, a poeta escreve:

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Sou triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir [...] Tenho dias em que as pessoas me dão a impressão de pequeninas figuras de papel sem expressão e sem vida [...] Eu sou insaciável, mal um desejo surge, outro desponta e em mim há sempre latente a febre do sonho e do desejo.

Noutra carta, a Júlia Aves, escreve: "Eu não sou boa nem quero sê-lo;

contento-me em desprezar quase todos, odiar alguns, estimar raras vezes e

amar um". (Carta a Júlia Alves)

Em 1918, ainda com seu marido, sofre um aborto espontâneo,

experiência que a traumatiza prejudicando ainda mais sua saúde tão debilitada

e frágil.

O primeiro casamento fracassou, segue-se um segundo casamento em

1921 com António Guimarães, que teve a mesma sorte. Ele é um jovem alferes

miliciano, com 25 anos, e devido às suas obrigações militares, são forçados a

ir morar em Matosinhos. Florbela estava muito apaixonada e ainda muito

doente e enfraquecida é visitada por um médico, o Dr. Mário Pereira Lage.

O marido, extremamente violento, surra-a, maltrata-a e é totalmente

insensível às veias poéticas de Florbela. Em novembro de 1923, ela tem um

novo aborto. Novamente a benção da maternidade é negada pelo destino

trágico da poeta. Dado seu estado físico e psicológico tão abalado, cansada

de sofrer, vai para Lisboa em tratamento, onde é visitada novamente pelo

médico Mário Lage. Neste mesmo ano, quando Florbela anuncia, para seu pai

e irmão Apeles, o rompimento de seu segundo casamento, tem uma nova

desilusão. Ambos cortam relação com ela durante dois anos, pois não aceitam

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suas atitudes por julgarem levianas e inconseqüentes seus fracassos

matrimoniais. Isso tem uma reflexão extremamente nociva à sua vida,

entristecendo-a e a debilitando mais ainda.

Em Outubro de 1925, então com 31 anos, casa-se civilmente pela

terceira vez, em Matosinhos, com Mário Lage. Volta a ter contato com sua

família.

A sua relação com Mário Lage degrada-se também. Chegou ainda a ter

uma ligação com Luís Maria Cabral, médico e pianista, mas já não deu em

casamento.

No meio dessa vida conturbada, uma pessoa teve uma grande

importância na vida de Florbela Espanca: foi o seu irmão Apeles Espanca. Da

numerosa correspondência que a poeta nos deixou, fica a idéia de que o

grande amor da sua vida era o irmão. Numa das cartas que lhe escreveu,

Florbela diz: "Peço-te que te lembres que sem ti não posso ser feliz nunca

mais".

Em 6 de junho de 1927, Apeles morre, quando o avião em que viajava

despenca nas águas do Tejo. A partir daí, a poeta já não voltou mais a ser o

que era. Numa carta que escreve ao pai desabafa: “Não me sinto nada bem e

estou magríssima... Estou uma velha cheia de cabelos brancos e sem vontade

para nada”.

Em agosto de 1928, cerca de um ano depois da morte do irmão,

Florbela Espanca tenta suicidar-se. Segue-se uma segunda tentativa de

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suicídio em novembro de 1930. No dia 8 de dezembro, desse mesmo ano, no

dia de seu aniversário, foi encontrada morta num quarto em Matosinhos.

Debaixo do colchão foram encontrados dois frascos de Verona, ou seja, do

fármaco que tomava para conseguir dormir.

O amor foi a principal tragédia de Florbela Espanca, mas não foi a

única. A doença agravada pelo drama amoroso, foi outro doloroso calvário que

a poeta teve de percorrer, e que, se outro bem não teve, lhe inspirou, pelo

menos, versos sublimes, embora repassados de pessimismo e desalento.

Florbela soube fazer da sua dor um poema! Essa neurastenia, com forte dose

de histerismo, agravou-se e, por sua vez, agravou a doença pulmonar,

manifestada aos 14 anos, em 1908 e da qual nunca se curou totalmente. O Dr.

Celestino David observa que: "Os nervos agravaram-lhe a doença; a doença

afina-lhe os nervos".

Florbela já fazia versos aos oito anos! E fê-los até à morte. Foi a sua

vocação e paixão literária. Houve quatro fontes de inspiradora fecundidade

poética de Florbela Espanca: a natural propensão para a poesia; a dor; a

paisagem alentejana e, sobretudo, o Amor.

No dia do funeral, a vila de Matosinhos é varrida por uma tempestade.

Não foi possível fazer o enterro, porque desaba sobre o cemitério uma chuva

torrencial. Florbela fica durante a noite na capela. Pálida, as pequenas mãos no

peito, o vestido de seda preto iluminado pelas velas, ela expressa um ar calmo.

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Florbela só é reconhecida como poeta importante na Literatura

Portuguesa, após a sua morte.

1.2 A poeta Florbela Espanca

Quando falamos em Florbela Espanca, parece-nos impossível não

associar o nome dessa mulher à poesia lírica, uma vez que a afinidade do ser e

da escritura juntam-se no mesmo jogo identificador, as pulsões desejantes de

uma decifração estão presentes em toda a sua vida e produção literária.

Aos 8 anos, Florbela começa a escrever. Seu primeiro poema

conhecido é intitulado “A vida e a morte”. O próximo é um soneto, cujo primeiro

verso é “A bondade o som de Deus”.

Assim, surge a artista Florbela. Menina, ainda, já tem insônias. Com

grande sensibilidade percebe coisas que machucam profundamente seu ser,

que a fazem chorar; sua alma vagueia num tempo que não lhe é próprio,

compartilha da incompreensão recíproca de uma sociedade que não a

entende.

Florbela como poeta é dotada de um dom singular e muito à frente de

seu tempo, pois com toda dificuldade poética que apresenta a fatura de um

soneto, ela já enfrentava o desafio de compô-lo. O soneto sintetiza em catorze

versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, uma temática. Há, além

disso, o ritmo e o metro. Para se compor um soneto, é preciso mais que

apenas talento, é preciso, também, um grande conhecimento dessa forma fixa

de poesia. Florbela, apesar de menina e de ainda não ter essas habilidades, já

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se mostrava propensa à poesia. Optou pelo soneto e dedicou sua vida à

expressão de seus sentimentos através de uma vasta produção de sonetos.

A afirmação de Anatol Rosenfeld ( 1997, p.22) expressa a qualidade

dessa emoção:

A manifestação verbal ‘imediata’ de uma emoção ou de um sentimento é o ponto de partida da Lírica. Daí, segue, quase que necessariamente, a relativa brevidade do poema lírico. A isso se liga, como traço estilístico importante, a extrema intensidade expressiva que não poderia ser mantida através de uma organização literária muito ampla.

Os anos passam e Florbela cresce também como poeta, aprimorando

dia-a-dia seus poemas, inserindo neles uma temática universal, aonde

confidencia os mais profundos e íntimos segredos do “eu lírico” feminino,

reprimido, incompreendido, fragilizado, fadado a um destino de inferioridade

biológica, social, cultural, pois evolução e privilégios lhe são negados. Um “eu”

repleto da ânsia de perfeição, libertação e compreensão humana.

Florbela realiza muitas leituras de autores diversos como: Alexandre

Dumas, Camilo Castelo Branco e Guerra Junqueiro. Essas leituras desvendam-

lhe novos horizontes que lhe proporcionam grande sensibilidade e expressão.

Aos 19 anos, casa-se movida por uma paixão intensa e devastadora,

expressando sempre, em seus textos, os seus sentimentos mais íntimos e

profundos. Seu matrimônio é desfeito e Florbela se desintegra, e desilude-se,

como cita em seu diário “meu coração, assim despedaçado para sempre”.

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No período dessa união, a poetisa vive a mais intensa criatividade

poética. Em meados de 1916, se confidencia com a grande amiga, que nem

chegou a conhecer pessoalmente: Júlia Alves – subdiretora da revista Modas e

Bordados, que publica as suas composições, desde o início desse ano.

Florbela escreve várias cartas à confidente amiga, nas quais se despe e

enquanto mulher sensível e desiludida diante da vida: “ O meu (coração) anda

à solta, tão grande, tão ambicioso, tem sempre frio, está sempre só... Ninguém

sabe andar com ele” (Citação da carta de 21/10/16).

Em 1918, vai para Lisboa ingressar na Faculdade de Letras, no

entanto, matricula-se na Faculdade de Direito. Freqüenta essa faculdade

durante os próximos três anos. O tempo vai passando e a poeta, no meio de

suas mágoas e dores, continua a escrever evidenciando a incompreensão e

solidão de sua existência.

De acordo com A Poética de Aristóteles, a poesia, ou melhor, “a arte é

uma imitação da realidade a mimesis”. Florbela demonstra essa imitação em

seus sonetos, à medida que expressa neles temáticas que se tornam conflitos

não só de seu eu individual, mas também adquirem uma verossimilhança

externa e, com o passar dos tempos, tal temática se identifica cada vez mais

com a realidade, transformando-se em um “eu universal”.

Sobre essa relação com o real vivido, Alfredo Bosi (1997, p. 112)

afirma:

Mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua expectativa de homem de hoje entre os homens de hoje, ele o faz, quando poeta, de um modo que não o é do senso comum, fortemente

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ideologizado; mas de outro, que ficou na memória infinitamente rica da linguagem. [...] Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico puro – o dos tempos já mortos -, mas de um passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente.

Visando ainda à imitação da realidade definida por Aristóteles, Anatol

Rosenfeld (1997, p. 22) nos convence, quando declara:

No poema lírico uma voz central exprime um estado de alma e o traduz por meio de orações. Trata-se essencialmente da expressão de emoções e disposições psíquicas, muitas vezes também de concepções, reflexões e visões, enquanto intensamente vividas e experimentadas. A Lírica tende a ser a plasmação imediata de vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo.

Apesar do fracasso de seu casamento e de sua saúde debilitada, em

junho de 1919, a poetisa tem seus sonetos editados no Livro de Mágoas, seu

primeiro volume de obra poética, que passa quase despercebido pela crítica.

Neste mesmo ano, matricula-se pela última vez na Faculdade de Direito da

Universidade Clássica de Lisboa, onde conhece Américo Durão, um admirador

que passa a publicar seus sonetos no jornal O Século.

A poeta continua escrevendo, como numa tentativa de grito de

libertação. Em 10 de março de 1922, termina um novo livro de sonetos que dá

o nome inicialmente de Claustro das Quimeras. Todavia, como na época

Alfredo Pimenta havia publicado um livro intitulado Livro de Quimeras, Florbela

altera o título para Livro de Sóror Saudade, que somente será publicado em

janeiro do ano seguinte e tem a mesma sorte do primeiro em matéria de crítica.

Devido ao fato da poeta ofertar um exemplar deste livro ao Dr. Mario, ela é

considerada totalmente leviana, pois ainda era casada nessa época. Ela

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defende-se, expressando que há entre eles uma afinidade de pensamento e

sensibilidade poética.

Nessa época, Florbela está passando por momentos difíceis, a

separação do segundo marido leva sua família a romper relações com ela por

dois anos. Está doente e, apesar de se casar em 1925 com o médico Mario

Lage, muitas coisas ruins continuam a acontecer. Além de tudo, perde seu

irmão em 1927. Por isso, no período de 1924 a 1928, quase não produziu nada

em matéria de poesia.

Profissionalmente está passando por dificuldades financeiras. Começa

a trabalhar na tradução de livros franceses para a Livraria Civilização, no Porto.

Afastada das produções poéticas, suas traduções são assinadas como

Felisbella Espance Lage, já que não desejava ser conhecida como tradutora.

Seu marido estava bem financeiramente, mas a poeta era independente e

trabalhava dessa forma não pelo prazer de traduzir, mas pela necessidade de

publicar o novo livro intitulado Charneca em Flor, e outras produções literárias

como os contos intitulados O Dominó Negro e Máscaras do Destino.

Este objetivo de Florbela fica evidente na carta que envia a José

Emidio Navarro, diretor do jornal D. Nuno, de Vila Viçosa: “ Tenho ultimamente

virado toda a minha atenção para traduções e para um livro de prosa em que

trabalho e que queria pronto para o ano em outubro”. Esse livro, no entanto,

nunca seria publicado.

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Logo em seguida, em 1927, morre seu irmão Apeles. O corpo do irmão

não foi encontrado, mas Florbela guardou consigo até a morte dois pequenos

discos metálicos do avião encontrado entre os destroços do acidente.

No final do ano de 1927, quando publica seu livro Máscaras do Destino,

ela o dedica ao irmão com a seguinte nota: “Ao meu Irmão, ao meu querido

Morto”. Isso dá indícios de que a morte de Apeles precipita a morte da poetisa,

que não se recupera nunca mais de um golpe tão fatal.

Florbela, dilacerada em sua dor, escreve ao pai: “Até me repugna dizer

o ‘que Deus quiser’, pois se houvesse decerto não permitiria crimes destes.

Criar-se um pequenino, educar-se, fazer-se homem para ir ao fundo dum rio

aos 30 anos! Parece um pesadelo.” (carta de 02/05/1928).

Em conseqüência dessa dor irrecuperável, a poeta nunca mais se

mostra a mesma; recorre a soporíferos, a remédios para dormir, calmantes que

a destroem lentamente. Veste-se de luto até a morte, seu semblante incorpora

uma tristeza infinita.

Em 1928 tem a saúde abalada. Fuma compulsivamente e sua relação

matrimonial termina novamente. A mulher Florbela ainda ama uma vez mais,

expressando isso em dois sonetos Chopin e Tarde de música. O objeto desse

amor é o médico, pianista e concertista Luís Maria Cabral. Ficam apenas os

frutos poéticos desse amor que não foi correspondido, dada talvez à resistente

armadura de que a poeta se reveste, impedindo que qualquer outra experiência

fosse vivida. Florbela estava cansada de sofrer... Cansada de viver...

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Assim Florbela vai vegetando mais do que vivendo, perde totalmente o

sabor pela vida. A cada dia que passa, vai se auto-destruindo. Sua melancolia

lhe serve pequenas doses de seu próprio veneno. Fuma desenfreadamente,

toma do fármaco excessivamente para conseguir descansar um pouco de suas

desilusões. Consome-se diante da solidão, sendo sua vida sugada de gota em

gota, secando para sempre sua existência.

No entanto, Florbela continua a escrever solitariamente as mais íntimas

e profundas confidências a seu diário. Num monólogo cruel, a poeta expressa

seus sentimentos a um amigo mudo e insensível. “A morte definitiva ou a morte

transfiguradora? Mas que importa o que está para além? Seja o que for, será

melhor que o mundo! Tudo será melhor do que esta vida!”

Desse modo, Florbela vai premeditando seu suicídio. Confidencia com

amigas, dizendo que se suicidaria no dia de seu aniversário, por acreditar que

essa seria a oferta do melhor presente de si mesma. Escreve também sobre

suas últimas vontades e a despedida às amigas que só receberão este envio

após sua morte.

Termina assim a vida física de Florbela Espanca, a mulher que amou

intensamente e tentou modificar as regras convencionais que a insatisfaziam

na sociedade. Foi ousada e sofreu as conseqüências de sua ousadia,

traduzindo toda sua sensibilidade feminina de forma universal e humana.

Ainda foram publicados postumamente em 1931, os livros de poesia

Reliquae e Charneca em Flor (2ª edição) e os livros de contos As máscaras do

Destino e Dominó Negro.

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Fica viva para sempre a poeta que melhor e mais sublimamente soube

traduzir e lapidar o soneto, expressando a alma feminina. Soube ainda conciliar

a métrica rigorosa diante da dificuldade poética do soneto enquanto estrutura.

Massaud Moisés ( 1999, p. 253-255), avaliando sua produção poética,

afirma:

Seus sonetos atingem agora um refinamento raro e uma imediata força comunicativa, própria duma sensibilidade que subtilizou o amor a pouco e pouco até assumir uma olímpica resignação de quem traz ‘no olhar visões extraordinárias’, e só tem ‘os astros, como os deserdados...’, passando por efêmeros momentos de realização amorosa, numa plenitude que a leva a confessar ao Outro: ‘Dentro de ti, em ti igual a Deus!...’. Em matéria poética expressa em vernáculo, outra voz feminina igual não se ergueu até hoje.

Como vemos, Florbela foi capaz de verbalizar o sentimento de uma

mulher que se depara com as angústias da existência humana diante dos

conflitos e situações impostas, muitas vezes, pelo próprio destino.

Diante das considerações que fizemos, é lícito afirmar que a poesia de

Florbela é o retrato de mulher, a qual procura mostrar-se sensível e ousada,

quase que num movimento paradoxal, mas em busca de afirmar-se como,

acima de tudo, um ser humano consciente do seu “aqui” e do seu “agora”,

extrapolando tempo e espaço, levando-nos a refletir sobre o nosso estar no

mundo.

1.3 Florbela Espanca e a crítica de seu tempo

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A obra de Florbela Espanca nem sempre foi valorizada como na

atualidade. Florbela foi severamente atacada por vários críticos, como Câmara

Lima e Vitorino Nemésio, que respectivamente diziam: “Outra poetisa. (...) Meu

Deus, todas fazem sonetos. (...) que tortura. “ (...) Não vai mal com a arte

generalizada de se despir em público inventada por cocottes para uso de

senhoras honesta.”(Alonso, 1997. p.29-30). Inicialmente, era vista apenas

como uma escritora de salão que fazia parte de uma geração de mulheres

poetas1.

Em sua época, a produção de poemas por mulheres passou a ser uma

prática constante, contudo, a crítica não tecia bons comentários. Florbela viveu

o descaso da crítica como nos afirma Dall Farra (1999, p.IX):

Ignorada por completo pelo público leitor e pela crítica, sua obra tinha sido vagamente saudada na altura, pelos comentaristas de plantão, como mais uma das (abundantes e inexpressivas) flores do galante ramalhete das poetisas de salão, onde, logo mais, se iniciaria o fulgurante e hoje absolutamente esquecido reinado de Virgínia Victorino. Deveras, o Correio da Manhã parabenizava alegremente, através de Florbela, o “contingente de senhoras” poetisas que “cresce dia a dia”, aclamando-as e considerando-as serem sempre “benvindas quando, como esta, saibam versejar.

Essas críticas negativas repetiam-se continuamente em jornais e

revistas da época. Até mesmo em artigos femininos, como o parecer de

Thereza Leitão de Barros, na publicação Escritoras de Portugal em 1927,

quando assinala esse tipo de crítica. Assim observa Dall Farra (1999, p.XI),

1 A expressão “geração de mulheres poetas” foi utilizada pelos críticos no primeiro quartel do século XIX, período em que houve uma vasta produção de poemas escrito por mulheres em Portugal.

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Thereza Leitão de Barros [...] enquanto se comprazia em comentar, com fartos elogios, a obra de Virgínia Victorino, restringia-se em reparos inócuos sobre o estranho nome da poetisa, dedicando-se sobretudo ao que julgava serem seus defeitos: o “exagerado subjetivismo elegíaco”, o “egocentrismo por vezes fatigante”, embora surpreendesse nos versos de Florbela uma “qualquer coisa”, que não sabia bem definir, mas que lhes imprimia “rara amplitude e elevação lírica”.

Essa opinião de Thereza Leitão de Barros modifica-se somente depois

da morte de Florbela. Aliás, essa escritora é uma das primeiras a articular e

tentar provar a qualidade da poética florbeliana, como também nos relata Dall

Farra (1999, p.X):

O parecer de Thereza Leitão de Barros vai se modificar e muito, depois do suicídio de Florbela... Já então porque será filtrado pela admiração ao póstumo Charneca em Flor quanto pelo testemunho da tácita e distante convivência que ambas mantiveram na Portugal Feminino – revista na qual Florbela colaborara no último ano de vida, que reunia uma facção do extinto Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas.

Em vida, Florbela só obteve compreensão de poetas como Boto

de Carvalho e Américo Durão. Além de publicações positivas sobre sua

poesia, Durão (apud Guedes, 1985a: p. 125), também dedicou-lhe o

seguinte soneto, editado em janeiro de 1923:

À poetisa D. Florbela Espanca

Irmã, Sóror Saudade... ah, se eu pudesse

Tocar de inspiração a nossa vida

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Fazer do mundo a Terra Prometida,

Que ainda em sonhos às vezes me aparece!

Mas em vão, tua boca empalidece,

E em teus olhos a sombra dolorida

Alarga mais cavada, ungida,

Por um sucesso místico de prece.

Tão perto o sonho foi!... Bastava erguer,

Ao alto, as nossas mãos, para colher

O fructo de um amor quase intangível...

E se hoje as nossas mãos erguidas colhem

Apenas rosas mortas... que as desfolhem

As sombras espectrais de um impossível!

Florbela e Américo Durão foram amigos. Ambos mantinham a mesma

temática em suas produções poéticas.

José Régio, um dos grandes críticos da obra de Florbela, vem nos

proporcionar uma visão da poeta e de sua poesia, modificando na época as

críticas dirigidas que apenas olhavam o biográfico. Régio (1981, p. 12) nos fala

da singularidade e feminilidade da poesia florbeliana:

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Florbela Espanca pode ser considerada uma das maiores poetas da literatura portuguesa. A poeta nos evidencia sua singularidade e talento, por meio de uma produção de extrema beleza, que explora a poesia de forma ímpar e admirável. Mulher de temperamento forte e escritora de sensibilidade muito rara, Florbela criou um campo temático próprio, foi alvo de críticas e ousou uma estética independente diante de outros escritores e poetas.

Em Florbela não há fingimento poético. A poeta é um exemplo de “poeta

lírico acabado”, pronto, completo. Ela vive, sente intensamente suas emoções,

e assim as exterioriza por meio da verbalização poética de seus sonetos.

1.4 Razões da crítica florbeliana

Bellodi (2005 p. 21) afirma que “A poesia de Florbela Espanca é, em

primeiro lugar, algo de valor indiscutível, que se constrói sobre alguns

elementos fundamentais”. A poeta tem como tema principal em suas poesias:

a expressão da dor. Bellodi ainda nos declara que

[...] seu grande tema é a expressão da dor em várias situações, e com nuances diversificada, expressão da dor que se dá no confronto eu-outros. Há como que uma dificuldade instransponível nesta relação, que gera o sofrimento. Essa questão da dor, e seus correlatos, [...] constituem o cerne de sua poesia.

Como correlatos da expressão da dor, Bellodi explica os significados das

palavras e o uso por Florbela dos seguintes sentimentos: dor, mágoa, solidão,.

amargura, frustração, busca incessante e intensa, entrega irrestrita, medo e

recusa de encontrar.

Ainda sobre a importância poética de Florbela, ALONSO (1997, p. 13)

faz as seguintes considerações:

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A imagem de Florbela Espanca que actualmente predomina nos manuais de história de literatura portuguesa é a de uma escritora, precursora das outras escritoras que iriam surgir ao longo do nosso século. [...] Com efeito faz sentido reconhecer que a extraordinária poetisa que Florbela foi (e é) não poderia de forma alguma surgir num vácuo, mesmo se a posteriori o seu invulgar talento nos permite distingui-la das suas contemporâneas.

Florbela tem sua obra reconhecida somente após sua morte. Claudia

Pazos Alonso (1997) demonstra, em sua pesquisa, a evolução crítica da obra

de Florbela, desde o tempo em que a poeta viveu até nossos dias.

A partir das modificações estéticas e poéticas da virada do século XIX,

nota-se que Florbela Espanca é uma escritora em transição e tem consciência

das conquistas dos melhores poetas em voga, na Europa. Sem vínculo ou

compromisso com os estilos de época, Florbela passa ao largo dos

movimentos de vanguarda portugueses como o Orfismo, Paulismo,

Interseccionismo, Sensacionismo e Presencismo.

Para compreendermos o momento histórico vivido por Florbela, como

contribuição fundamental para a tessitura de qualquer leitura crítica,

apropriamo-nos do discurso de Maria Luiza Leal, proferido no Congresso sobre

Florbela Espanca, realizado na Universidade de Évora de 7 a 9 de dezembro

de 1994, quando do centenário de nascimento da poeta. LEAL, (1997)

confronta o pensamento de Nuno Júdice ao de Jorge de Sena, pois, há quase

50 anos, Jorge de Sena separava a escrita literária de Florbela dos

modernistas, LEAL, (1997, p. 33) lembra que

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O momento histórico em que a leitura crítica se exerce é, também, de importância decisiva. Adequação histórica e formação pessoal do crítico explicam que Nuno Júdice ilumine a área da ligação de Florbela à modernidade, enquanto, noutras épocas, se pôs em destaque a distância que a separava dos modernistas. É notável que um Jorge de Sena tenha aproximado Florbela Espanca de Mário de Sá-Carneiro por partilharem a mesma "condição trágica de poeta", e não tenha reconhecido nas suas obras nenhuma afinidade temática. [...] A obra de Florbela Espanca era vinculada a uma corrente de romantismo tardio.

Percebe-se, na atualidade, uma igualdade entre críticos da obra

florbeliana quanto à existência de um Sujeito em crise e sua anulação e

projeção num Outro, índices denunciadores de tragicidade na escrita de

Florbela e de Mário de Sá Carneiro, ambos modernistas.

Dal Farra (1999, p. X) salienta também essa proximidade entre os dois.

Compreende, entretanto,

[...] a despersonalização" como insistente temática que percorre a poesia da autora alentejana, por se constituir parte integrante de sua condição feminina, comprometedora da objetividade poética e do fingimento literário. Esses excessos de personalidade - provavelmente nada mais sejam do que forma de ultrapassagem dos limites morais, geográficos e de gênero, aprisionadores da mulher Florbela -, encontra-se uma proximidade estética de "Sóror Saudade" com seus contemporâneos Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Os modernistas de Orpheu, na leitura do poeta de Presença, também deixam que suas personalidades extravasem. Sá-Carneiro “enraíza o gênio poético nessa quase física sensação do duplo; às vezes do múltiplo ou do impessoal.” Reconhece tanto em Florbela quanto em Sá-Carneiro, uma "natural" sensação de impessoalidade, despersonalização e dispersão que os aproxima.

Podemos perceber, por meio dessa citação de Maria Lucia Dall Farra, a

valorização e amadurecimento da crítica em relação à poética florbeliana.

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Nota-se também uma aproximação dos temas da estética modernista, aos

desenvolvidos pela poeta.

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CAPÍTULO II

A configuração da imagem poética

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Sabemos que o poeta trabalha com uma matéria-prima: a palavra. No

entanto, a palavra em si não basta para se obter um bom texto, é necessário

que ela seja trabalhada num processo de seleção e ordenação discursivo-

poético. JAKOBSON (1988, p. 160 - 161) nos revela que, “em poesia, a forma

interna de uma palavra, vale dizer, a carga de semântica de seus constituintes,

recobra sua pertinência”. Ainda sobre o discurso poético, afirma que

[...] a poeticidade não consiste em acrescentar ao discurso ornamentos teóricos, implica antes, numa total reavaliação do discurso e de todos os seus componentes, quaisquer que sejam. (...) em poesia, qualquer elemento verbal se converte numa figura de discurso poético.

Logo, quando pensamos no estudo da poesia, temos de contrapô-lo às

várias vertentes teóricas que existem. Podemos começar, por exemplo, pelas

mais subjetivas e/ou parciais até as mais objetivas e/ou completas. Johannes

Pfeiffer (1954, p. 96 e 98) declara que

[...] a poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento [...]; na poesia não importa a forma ‘bela’, mas a forma ‘significativa’; [...] é isto que nos oferta a poesia moderada iluminação do ser e poetização imaginativa do ser no âmbito da linguagem plasmadora.

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Florbela possui uma linguagem figurada, conotativa. A conotação está

sempre presente nos poemas de Florbela, pois a poeta insere muitos símbolos,

além de linguagem extremamente figurada, apresentando muitas metáforas,

sinestesias, antíteses, prosopopéias etc. Recursos utilizados para expressar

sua temática ligada diretamente aos sentidos, procurando causar no leitor

sensações diversas, de acordo com a temática que desenvolve em cada um de

seus poemas.

Podemos perceber claramente essa linguagem conotativa e figurada nos

fragmentos dos sonetos a seguir:

[...] Ah! Arrancar as carnes laceradas

Seu mísero segredo de consciência [...]

(Não Ser – Florbela Espanca)

[...] De tornar em silêncio, o que em mim canta

Sobem-me roucos bardos à garganta[...]

(Interrogação – Florbela Espanca)

A poeta, apesar de não estar preocupada com a construção dessa

linguagem figurada, ou mesmo com o artesanato da poesia, procura a

perfeição do soneto e produz imagens, figuras, símbolos significativos

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2.1 Considerações sobre a imagem poética

Na definição do que é a imagem literária e de como podemos perceber

esses recursos na poesia, Tavares (1966, p.379) nos diz que: “A imagem é um

tropo de linguagem, por similaridade, que se apresenta por meio de palavras

ou expressões em sentido figurado e não-próprio”. Relata-nos ainda que

As imagens ordinariamente se assentam numa componente visual. Não que isso queria dizer, porém, que toda imagem seja visual. É interessante relembrar a classificação imagética feita por Charles Bally que, reconhecendo ser inexeqüível uma catalogação rigorosa e exata dentro dos fatos da linguagem, resumiu-as em três grupos principais:

a) Imagens concretas: Exemplo: O mar lança com suas ondas beijos à praia. Os elementos personificados tornam-se facilmente perceptíveis à imaginação.

b) Imagens abstratas ou mortas exemplo: O dólar baixou. Aqui dá-se apenas uma operação mental, não havendo imagem evocadora nem substrato de afetividade.

c) Imagens afetivas. Exemplo: “Ela há de me pagar”, isto é hei de vingar-me – construção essencialmente calcada no elemento afetivo. Tavares (1966, p.380)

Podemos evidenciar a presença de imagens concretas e em também

afetivas em seus sonetos, como segue neste exemplo, em que são

personificadas noite e pedras:

[...]A noite os olhos brandos lhes fechou... [...]

O coração das pedras a bater.

(Noitinha – Florbela Espanca)

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Tavares (1966, p.379) ainda considera a imagem sob dois aspectos na

arte literária:

o Sentido amplo, em que há a representação da realidade, sendo portanto toda ficção uma imagem. o Sentido restrito, em que há uma representação verbal e estética de uma realidade que se faz por analogia clara ( a comparação) ou subtendida ( a metáfora). (Tavares 1966, p.379)

Quando considerada em aspecto amplo, a imagem pode conter em si as

mais diversas figuras e tropos de linguagem. Enquanto que, em sentido restrito,

para se representar estética e verbalmente uma realidade, serão usados como

recursos as analogias, mais precisamente a metáfora e a comparação. É por

isso que, em sentido restrito, muitos autores não diferenciam a imagem da

metáfora.

Para se ter a imagem estética e literária, devemos tirar dela um valor

expressivo, é o que nos afirma Tavares (1966, p.380):

As imagens, no sentido mais amplo e geral, consubstanciam os fatos da linguagem humana. E tão impregnadas estão uma da outra, que nem mais sentimos como imagens as contrações verbais de que nos utilizamos no nosso falar ou escrever diários. Assim quando dizemos: você é um amor, uma anjo; - isto é uma droga; - minha boa estrela [...]; já não percebemos no automatismo desses modos expressionais a essência imagética que os originou, a não ser quando somos tomados do propósito de uma análise intencional e reflexa. Daí também muitas imagens evoluírem para a frase feita ou lugar comum, despojando-se de qualquer valor estético ou literário, pois em relação à arte (rigorosamente falando) só haverá imagem quando dela se tira um valor expressivo.

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Florbela produz imagens com os mais diferentes tipos de tropos e

figuras tanto em sentido amplo, quanto restrito. As imagens produzidas em

seus sonetos nos manifestam um valor expressivo. Vejamos fragmentos

isolados de alguns sonetos:

[...] Sob urzes queimadas nascem rosas... (paradoxo)

(Charneca em flor – Florbela Espanca)

[...] erguer ao sol o coração dos montes (hipérbole)

(Não Ser – Florbela Espanca)

[...] ouve-se mais o gargalhar das fontes (sinestesia)

(Alvorecer – Florbela Espanca)

[...] Tenho o perfil moreno, lusitano,

E os olhos verdes, cor do Oceano (comparação)

(Lembrança – Florbela Espanca)

[...] Os meus gestos são ondas de Sorrento (metáfora)

(Contos de fadas – Florbela Espanca)

A imagem pode, portanto, ser definida como vulto, representação, figura

real ou irreal produzida pela imaginação. Essa virá carregada de significações

dentro da poesia. As palavras e/ou expressões, utilizadas para a produção de

imagens, manifestam também valor psicológico. Paz (2003, p.37) alerta:

Convém advertir, pois, que designamos com a palavra imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema. Estas expressões verbais foram classificadas pela retórica e se chamam comparações, símiles, metáforas, jogos de palavras, paranomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc. Quaisquer que sejam as diferenças que as separam, todas têm em comum a preservação da pluralidade de significados da palavra sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases.

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Sobre a produção das imagens na poesia e como se constituem em

discurso poético, Bosi (1997, p. 28) revela que

[...] a imagem final, a imagem produzida, que se tem do poema, a sua forma formada, foi uma conquista do discurso sobre sua linearidade; [...] Toca-se aqui um ponto essencial o da “imagem” frásica como um momento de chegada do discurso poético.

Podemos então dizer que a palavra imagem é, pois, uma representação

mental, uma imitação pictural, uma cópia da realidade, também é uma

metáfora.

A imagem literária é um fenômeno que implica interrogação sobre a

realidade. Lefebve (1980, p. 136) define imagem literária como imagem

fascinante e nos explica que “A imagem fascinante consiste, pois, no fenômeno

pelo qual o objeto de nossa consciência, seja qual for, se vê subitamente posto

em dúvida na sua realidade e na sua presença.” Lefebve expõe ainda que “Na

imagem fascinante, a realidade ( perceptiva ou psíquica) que passava

despercebida, torna-se problema e surge assim presentificada. Essa

presentificação é que faz nossa fascinação.” A imagem é então ambígua, pois

admite várias significações, dependendo do momento em que é lida ou

interpretada pelo leitor.

Lefebve (1980, p. 138-141) divide a imagem em:

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a) imagem espontânea: duas sensações que nos vêm do mesmo objeto

habitualmente coincidem desajustadas uma em relação à outra;

b) autômato, máscara, fantástico. Entende-se por autômato a imitação

nunca perfeita; por máscara o domínio do oculto, desajuste entre uma

presença e uma ausência, o que nos é dado ver (sabemos que é falso) e o que

devemos imaginar por detrás disso; e por fantástico, o domínio da arte. É uma

figura respeitante ao referente, é uma metáfora de certa maneira objetiva. O

que parece produzir-se. É irrealidade material que se altera (objeto

monstruoso) ou simples imagem de um sonho (alucinação que adquire

caracteres reais e se torna objeto visível, palpável);

c) quadro: domínio da arte, imagem-tipo, figura, linguagem icônica (

linguagem que se assemelha à linguagem propriamente dita).

A imagem é metáfora, representação, não apenas imitação, ela sempre

gera ambigüidade. Para Paz (2003, p.38-39), “ O poema não diz o que é, e sim

o que poderia ser. Seu reino não o do ser, mas o do ‘impossível verossímel’ de

Aristóteles. [...] Em suma, também para a dialética, a imagem constitui um

escândalo e um desafio, também viola as leis do pensamento.”

O poeta constrói suas imagens e cabe ao leitor entendê-las ou muitas

vezes recriá-las. Paz (1980, p. 44-45) ainda afirma que

Cada vocábulo possui vários significados, mais ou menos conexos entre si. Esses se ordenam e se precisam de acordo com o lugar da palavra na oração. [...] Assim a unidade da imagem deve ser algo mais que meramente formal que se dá nos contra-sensos e em geral em todas as proposições que

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não significam nada ou que constituem simples incoerências.[...] o poeta faz algo mais do que dizer a verdade, cria realidades que possuem uma verdade, a da sua própria existência [...] esta verdade estética da imagem só vale dentro de seu próprio universo.

2.2 Diferentes traços estéticos na poesia florbeliana

Florbela Espanca, cronologicamente inserida no movimento do

Modernismo, apresenta uma poética inovadora para sua época. Isso nos faz

refletir, porque essa poeta é considerada tão especial na atualidade. As

características que aproximam sua poesia de vários movimentos literários,

pode ser devido aos conflitos que ela viveu enquanto pessoa e poeta. DAL

FARRA (1999, p. XXIX), refletindo sobre a poética florbeliana, afirma:

[...] E desde aqui, desde a nascente poesia de Florbela, ficam definitivamente seladas e imbricadas as suas mais significativas constantes: a condição feminina e a marginalidade. Tanto a morte quanto o sonho abrem a vida, para esta jovem poetisa, em um espaço intervalar, revertem-na num universo de exceção, num mundo-fora-da-existência que, gratificantemente, descobre uma brecha na ordem inabalável e convencional. Aí, a vida se desloca do curso habitual e as regras se tornam outras. Há uma suspensão do tempo real e do espaço físico, que contraria o princípio de realidade – visto por Florbela como prerrogativa masculina – e que instaura, ao contrário o princípio do prazer, atribuição feminina.

A poeta viveu na época em que o Modernismo se consolidava em

Portugal. Porém, ao analisarmos sua poesia, percebemos que Florbela

apresenta elementos híbridos, ou seja, de diversas escolas literárias.

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Ressaltando alguns traços que evidenciam essa oscilação estética na

escritura poética de Florbela Espanca, BELLODI (2005, p.19-20), declara:

Sua poesia é modernista pela época em que foi produzida, é romântica, na medida em que se funda na expressão do eu, não necessariamente um eu histórico, transparecendo nela a crença de que o sentimento é primordial e aquele que comanda a vida do ser humano; é clássica pelo primor na execução da forma soneto, na criação de alguns tão bons quanto os dos grandes sonetistas, embora, eventualmente, ela altere a posição da rima da primeira para a segunda quadra, introduza uma outra rima tanto nas quadras quanto nos tercetos e, até faça duas quadras com a mesma rima, o que contraria a teoria, mesmo que ela seja suficientemente plástica, permitindo liberdades formais; é simbolista na medida em que, como toda grande poesia, valoriza a sonoridade da palavra, sua musicalidade, explorando todos os recursos sonoros que ela possa oferecer.

2.2.1 Traços trovadorescos

As cantigas dos trovadores medievais foram os primeiros documentos

literários de que se tem conhecimento. Mais precisamente as cantigas de

amigo que evidenciavam um eu-lírico feminino, embora na época cantadas por

homens, já que a mulher não era alfabetizada.

Essas cantigas tiveram suas origens nas zonas rurais, dando maior

importância à função da mulher na sociedade. Elas eram expressas por

homens, porém falavam dos sentimentos mais íntimos da mulher.

Florbela em seus sonetos apresenta essas características retratando o

mundo interior feminino. Ela extravasa suas emoções e universaliza, de certa

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forma, esses sentimentos. Para ilustrar os traços trovadorescos na poesia

florbeliana, selecionamos um fragmento do soneto Conto de Fadas:

[...]

Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez! -- Eu sou Aquela de quem tens saudades, A princesa do conto : "Era uma vez..."

(Contos de fadas – Florbela Espanca)

2.2.2 Traços clássico-camonianos

Florbela escreve sonetos, próprios do classicismo, quando essa forma

fixa de poesia passou a ser muito utilizada, principalmente por Camões na

poesia lírica.

No entanto, não é só na forma que a poeta se assemelha ao grande

sonetista português. Florbela também como Camões produz um eu-lírico que

universaliza os sentimentos, isso faz com que o leitor muitas vezes se

identifique com sua poesia.

Florbela também nos apresenta uma estética que nos proporciona a

imagem facial do eu-lírico. Em muitos de seus sonetos, apesar do erotismo,

quase sempre presente e latente, encontramos por meio da imagem um retrato

do rosto do eu-lírico.

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2.2.3 Traços neobarrocos

Percebemos como característica constante na poesia florbeliana o jogo

de opostos, que é um dos recursos muito utilizados pelo barroco. Florbela

apresenta em sua poesia antíteses e, por vezes, paradoxos que nos levam a

uma característica muito próxima do barroco: uma certa fragmentação e

encenação do eu-lírico. Apresenta também algumas inversões da oração,

muitas vezes utilizados para que obtenha a rima e o ritmo perfeitos no soneto.

2.2.4 Traços neo românticos

Florbela é romântica nas evidências de que sonha com um mundo ideal

e transcreve esse desejo para sua poesia. Expressa em suas poesias uma

espécie de neo romantismo2 português. Apresenta o transbordamento de suas

emoções, por meio de um sentimentalismo exacerbado. Por outra faceta,

também demonstra um apego muito grande à sua pátria, principalmente na

produção dos sonetos do livro Charneca em Flor, nos quais procura sempre

retratar a natureza e beleza alentejana. Ela abandona um pouco o pessimismo

dos outros livros e procura recuperar e/ou expressar as origens do ser, ora se

apresenta como um eu-lírico pessoa, ora como um eu-lírico poeta.

2 O Neo Romantismo foi o movimento de recuperação de alguns princípios estéticos românticos que marca o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX português. Rejeitando as tendências realistas e naturalistas, ligando-se ao historicismo e a um fundo sebastianista nacional marcado pelo desejo de regresso às origens, de vivência do castiço e do que se considerava ser autenticamente português. O neo-romantismo tem frequentemente, uma marca de sentimentalismo. Alguns dos autores influenciados pelo decadentismo e pelo simbolismo têm, simultaneamente, características neo-românticas. Entre os autores ligados a esta corrente, contam-se Henrique Lopes de Mendonça, D. João da Câmara, Carlos Malheiro Dias e Teixeira de Pascoaes.

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2.2.5 Traços do decadentismo simbolista

A escritura de Florbela Espanca, em alguns sonetos, revelam traços da

poética simbolista, como o pessimismo do ser diante do mundo em transição.

Alonso (1997, p. 155) ressalta sobre a imagem contida nos sonetos que,

[...] vários sonetos indicam que o seu sofrimento pode ser convertido em fonte de poder e grandeza. Simultaneamente, os seus sonetos sobre o amor tornam-se cada vez mais aguerridos, convertendo-a num mito, numa deusa com atributos únicos.

Seu estilo reúne vários elementos do decadentismo, entre eles, a

obsessão de viver até a exaustão de todos os sentidos, o naturalismo por meio

de seu erotismo e sensualismo, o realismo psicológico, pela introspecção e a

linguagem imagética, alegórica, metafórica e rebuscada.

O Simbolismo foi um movimento literário caracterizado pelo subjetivismo.

Simbolistas acreditavam na limitação da ciência e perceberam que a linguagem

artística não conseguia representar a realidade, mas somente sugeri-la. A

literatura desse período passa a representar o mundo por meio de uma nova

forma, evidenciando o inconsciente humano, a dor existencial e a morte. Passa

a exprimir um mundo interior, de modo subjetivo e não mais objetivo.

Acreditamos que o mundo interior que Florbela expressa é adquirido da

vertente simbolista por meio de uma linguagem poética e musical, visto que

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Aproximando a linguagem poética da musical, o simbolista desejava diminuir o grau de descontinuidade, produzida num discurso que fosse a voz mesma da interioridade. (GOMES, 1989, p. 56)

A poeta produz uma poesia musical, no sentido formal da linguagem,

pois opta pelo soneto com todos os seus recursos estruturais. A forma, as

rimas, o ritmo. A estrutura do soneto exprime seus profundos estados d’alma.

Quando observamos algumas características do Simbolismo, como a

fluidez da linguagem, que mais sugere que nomeia; e de temas como a

angústia, a dor da existência, percebemos que a poesia de Florbela Espanca é

construída com imagens significativas e híbridas.

Também é próprio do Simbolismo apresentar uma poética do vago e da

sugestão, Guimarães (s/d p. 17) procura explicitá-la ao dizer :

A criação duma poética da própria poética parece ter sido uma das conquistas mais significativas do Simbolismo. Poderemos mesmo ver nele especial momento em que se pôs em questão uma estética da representação, que através da longa tradição que remonta Aristóteles da Poética, subordinava a arte a um desígnio de imitação, à mimese.

Nessa linha de pensamento, GUIMARÃES (s/d p. 17 e 18) faz também

considerações sobre a imagética textual da Antiguidade ao Simbolismo, ao

declarar:

Poderíamos dizer que até então o texto tendia a apresentar-se como o lugar privilegiado onde as figuras que revelavam a sua

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especificidade estética acabavam por depositar-se, esgotando-se, portanto, no espaço desse texto; acontece que, com o Simbolismo, o próprio texto acabará por se transformar, ele mesmo, numa figura inesgotável. Os simbolistas, com efeito, apostaram na substituição duma estética da representação por estética da figuração – isto é, da produção de figuras – de modo que cada texto tende para um universo de imagens que encontram o seu princípio organizador numa dimensão que ultrapassa o texto presente e se reporta, como tantas vezes se referiu Mallarmé [...]”.

2.2.6 Traços da expressividade moderna

A descoberta das ligações temáticas da obra de Florbela com a

modernidade é fato recente. Florbela apresenta características do Modernismo

como universalismo, linguagem culta, traduzidos em uma poesia que provoca o

leitor de sua época e gera críticas, “uma poesia alucinada, ousada” (MOISÉS,

1999, p. 239).

Nesse universo de significação, a partir dos recursos utilizados,

encontramos a poeta que opera sensivelmente o sentir e, por meio de seus

versos, procura expressar todo o seu mundo interior, suas sensações através

de imagens: metáforas, sinestesias. Porém, não podemos confundir os

sentimentos da poeta com a expressão do eu-lírico de seus sonetos.

Percebemos na poética de Florbela, a expressão radical das sensações,

uma maior pessoalização e poder de enfrentamento do eu-lírico, e,

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conseqüentemente, maior poder de luta com as tradições sócio-culturais de

seu meio. Com base nessas características, é importante apontar, descrever e

analisar as temáticas recorrentes, bem como suas oscilações, feitas pelo eu-

lírico, a fim de podermos entender sua poesia e compreender a complexa

produção literária de fin de siècle que tanto modificou o panorama da poesia

portuguesa.

Para ilustrar e exemplificar os traços modernistas na poesia de Florbela,

vejamos um fragmento do soneto Rústica, que nos remete ao poema A pobre

ceifeira de Fernando Pessoa:

Ser a moça mais linda do povoado, Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, [...] Um vestido de chita bem lavado, Cheirando a alfazema e a tomilho... [...] Ser pura como a água da cisterna, [...] Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! Dou por elas meu trono de Princesa, E todos os meus Reinos de Ansiedade.

(Rústica – Florbela Espanca)

Percebemos o desejo do eu-poético de ter a simplicidade da moça

simples do campo, que não tem consciência de seu estar no mundo, enquanto

que a poeta é consciente de seus conflitos. O mesmo acontece com o poema

de Fernando Pessoa, também ilustrado com um fragmento do poema:

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Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; [...]

Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, [...] Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, [...]

(Ela canta pobre ceifeira – Fernando Pessoa)

Nessa comparação, percebemos a questão da consciência do

poeta e de seu fazer poético. O querer descobrir-se enquanto identidade.

A preocupação da poesia como artesanato da palavra.

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CAPÍTULO III

Essência poética transfigurada pelas imagens

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Neste capítulo, analisaremos alguns sonetos da poeta. As análises

procuram evidenciar as imagens presentes, visando demonstrar a

expressividade ímpar da produção florbeliana, buscando evidenciar as imagens

presentes nos textos e o poder de expressividade que elas manifestam.

3.1 Duplo espelho

3.1.1 Realidade: reflexo do eu no outro

No soneto Realidade, podemos observar inicialmente que o título mostra

a consciência do eu-lírico. Essa consciência é evidenciada pelo título e é

confirmada na primeira estrofe, em que nos é sugerida a vivência de um amor

com intensidade:

Em ti o meu olhar fez-se alvorada E a minha voz fez-se gorjeio de ninho... E a minha rubra boca apaixonada Teve a frescura pálida do linho...

Um relacionamento amoroso é evidenciado pela expressão “Em ti”, logo

no início do primeiro verso. Conhecemos então o eu-lirico feminino e o outro. O

eu-lírico traça um retrato de si no amado, pois se caracteriza em três partes do

rosto no momento em que se integra no amado: olhar, voz e boca.

Retrata apenas partes do rosto, que é uma característica da poesia

clássica. Podemos perceber a presença de substantivos que proporcionam

uma força adjetiva. Para caracterizar o olhar surge o substantivo “alvorada”

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como força concretizadora de luz pura, sem manchas, do amanhecer. Esse

substantivo torna-se então um adjetivo e nos induz à imagem da manhã.

No segundo verso: “E a minha voz fez-se gorjeio de ninho”, evidencia-

nos a imagem do gorjear. Isso também produz uma força adjetiva e concreta. O

termo gorjeio – expressa uma sonoridade quase audível e táctil por meio da

inocência e alegria sem limites dos pássaros no ato de cantar.

Toda adjetivação nos demonstra a beleza do eu-lírico. A voz

representada por gorjeio de ninho, expressa aconchego, amor, sensualidade,

algo que se torna palpável, táctil.

Encontramos também uma antítese entre as expressões “rubra boca

apaixonada” e “frescura pálida do linho”, que nos sugere o sentimento amor tão

contraditório e, ao mesmo tempo, tema constante em muitos poemas. Essa

contradição produz uma tensão.

Sua boca apaixonada se transforma em algo puro como a frescura do

linho. Enquanto sua boca é suavizada pelo frescor alvo do linho, sua paixão se

satisfaz. Esse branco simboliza algo puro e positivo.

Todos esses predicativos que vêm materializar seu olhar – a alvorada,

sua boca – rubra apaixonada, alva e fresca como o linho, sua voz – o gorjeio

são substantivos que adjetivam, que concretizam sua imagem no amado, um

espelho transformador sensorialmente quase táctil.

Na segunda estrofe,

Embriagou-me o teu beijo como um vinho Fulvo de Espanha, em taça cinzelada... E a minha cabeleira desatada Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

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ainda percebemos o eu-lírico consciente da realidade, porém, embriaga-se com

o beijo que é comparado a um vinho “fulvo de Espanha” - um vinho especial

amarelo cor de ouro. Revela uma dualidade, pois o eu-lírico está consciente,

mas começa a fugir do real. As reticências evidenciam esses momentos.

Há uma relação de embriaguez com o outro, de calor, diante da cor

amarelada do vinho. O beijo é que a embriaga e que a transforma. A taça

cinzelada por sua forma tão desenhada nos remete à boca do amado, pode

representar o contato íntimo com o amante, algo sedutor.

Se na primeira estrofe, o eu-lírico nos remete à figura feminina delicada,

meiga, as estrofes seguintes nos revelam a sedução depois de uma

transformação embriagadora pelo vinho.

O eu-lírico agora possui os cabelos desarrumados em “cabeleira

desatada”, já não possui a serenidade de antes. Em contrapartida, esse

contato tão dinâmico e avassalador, encaminha-se novamente para a calma e

segurança de estar com o amado. Surge o termo “sombra” que vem

representar o aconchego, a direção. O eu-lírico se guia pelo amado, é

transformados por ele e nele.

Esses dois quartetos em que o eu-lírico se transforma no amado,

remete-nos ao soneto de Camões Transforma-se o amador na cousa amada,

no qual o amador se transforma na coisa amada. As metáforas são

comparações dela refletida no amado:

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Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

[...]

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

[...]

Como a matéria simples busca a forma.

(Transforma-se o amador na cousa amador – Camões )

No primeiro terceto, do poema florbeliano:

Minhas pálpebras são cor de verbena, Eu tenho os olhos garços, sou morena, E para te encontrar foi que eu nasci...

fica mais evidente a feminilidade do eu-lírico. A percepção de um eu-lírico

feminino só se confirma nessa terceira estrofe quando se diz “morena”. Nessa

estrofe, o eu-lírico faz uma descrição de seus olhos e cútis. “Minhas pálpebras

são cor de verbena” e “Meus olhos são garços, sou morena”. Essa descrição já

não é reflexo dela no amado, porém ressalta seus próprios aspectos físicos ,

não se vê no espelho do amado.

Mostra o uso de um adjetivo abstrato, pois o substantivo “pálpebras”

recebe uma locução adjetiva “cor de verbena”. Coloca a cor de verbena em

seus olhos, torna-se uma concretização de seus olhos, é o querer materializar.

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Isso nos retrata a imagem de uma mulher muito bela e cheia de amor. Há uma

espécie de neo romantismo, nesse fragmento.

Introduz um argumento adversativo “E para te encontrar foi que eu

nasci”. Esse verso tem continuidade de idéia no próximo que é o primeiro verso

da última estrofe “Tens sido vida fora o meu desejo”. Esses dois versos nos

denunciam duas marcas psíquicas, evidenciando o pensamento do eu-lírico, ou

seja, “Nasci para me fundir a ti e o meu desejo é isto”. Esse é o desejo do eu-

lírico, fundir-se no amado. É um desejo real, que ela sente e vive nesse

instante.

Entretanto, na última estrofe,

Tens sido vida fora o meu desejo E agora, que te falo, que te vejo, Não sei se te encontrei...se te perdi...

expressa seu desejo de fusão no amado no primeiro verso “Tens sido vida fora

o meu desejo”, enquanto que no segundo verso: “E agora, que te falo, que te

vejo”, há a quebra do plano ideal para o real, com a adição do termo “agora”

que representa o momento presente. Esse termo marca a passagem, a

mudança do plano ideal para o plano real.

O eu-lírico encontra-se em conflito e frustração. Deseja o homem

amado, porém não consegue mantê-lo ao seu lado com uma dúvida “não sei se

te encontrei... ou se te perdi...” O último verso mostra a realidade do eu-lírico,

que se manifesta como o porta-voz da poeta.

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O eu-lírico se retrata como transformada num espelho, que é o amado e

que causa essa mudança. É uma fotografia dela no amado, integrada nele.

Esse retrato dela é submetido a uma transformação radical do que ela é.

A propósito da temática do poeta decadente, ressaltamos que se situa

no movimento Simbolista, o qual trata o poeta em conflito, como nos ressalta

BELLODI (2005, p.30):

Ser poeta, é pelo menos em princípio, atividade masculina. Ser poeta é ser reflexivo, ser intelectualizado, é dar valor e importância especiais aos sentidos, aos sentimentos, e refletir sobre eles. Cabia ao homem, tradicionalmente, fazer essa reflexão. Florbela Espanca assume a persona da poeta, vivendo-a intensamente. Isso cria conflitos e dificuldades.

Notamos, nesse soneto, que o eu-lírico tem consciência e depois a

perde na embriaguez da bebida. O poeta mostra-se em conflito com as coisas

do mundo, principalmente, as frustrações com o “outro”.

3.1.2 Versos de Orgulho: entre o desdém e o amor

No soneto Versos de orgulho, o título denuncia como o eu-lírico se

coloca como poeta diante do mundo. Notamos, no poema, um conflito do eu-

lírico em relação ao mundo.

Na primeira estrofe,

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O mundo quer-me mal porque ninguém Tem asas como eu tenho! Porque Deus Me fez nascer Princesa entre plebeus Numa torre de orgulho e de desdém.

surge a imagem de alguém especial. Evidenciamos claramente a imagem do

poeta como ser diferenciado, especial em seu ofício do trabalho com a

linguagem.

Percebemos também sendo delineada a imagem de um ser superior:

uma princesa, e não é uma princesa qualquer, mas uma princesa diferenciada

que possui asas, no sentido de vôo, de liberdade. Nesses versos, o eu-lírico

assume o sexo feminino. O eu-lírico evidencia um sentimento de exclusão

diante do mundo, porém de amor, privilégio diante de Deus. Inicia uma

explicação com o termo porque. A imagem é construída por meio de duas

antíteses: entre Princesa e plebeus; e entre orgulho e desdém.

Na segunda estrofe,

Porque o meu Reino fica para além... Porque trago no olhar os vastos céus E os oiros e clarões são todos meus! Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

o eu-lírico explica os “por quês” dessa diferença: um ser singular com poderes

de posse de coisas preciosas e luminosas “oiros, clarões”. A palavra Reino,

retrata o mundo da fantasia, do imaginário do poeta, que fica para além... O

uso das reticências especifica o poder do poeta e de seu poder de imaginação

diferenciado dos seres comuns.

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Demonstra também um grande poder de percepção na personificação

de seu olhar. O sentido da visão poderosa que abriga e vê o mundo com um

olhar diferenciado: “Porque trago no olhar os vastos céus”. A expressão vastos

céus, sugere o infinito. Há também a repetição da palavra “porque” que explica

sua especialidade diante do ofício de ser poeta. No último verso dessa estrofe,

deparamo-nos com os pronomes “eu”, índice de 1ª pessoa e “alguém”,

indefinido. Ambos grafados com letra maiúscula, como a indicar que o eu-lírico

se impõe como ser superior.

Percebemos, pelos termos Eu e Alguém, que é produzida a imagem de

um duplo espelho.

Nos dois quartetos, o mundo representa o coletivo, que exclui o poeta.

Observamos, nos tercetos, a voz poética que desdenha o mundo que lhe

é hostil. Por ser poeta, pode ignorar o mundo e construir por meio da poesia

um mundo ideal.

Na terceira estrofe,

O mundo? O que é o mundo, ó meu Amor? -- O jardim dos meus versos todo em flor... A seara dos teus beijos, pão bendito...

o eu-lírico realiza um questionamento do que possa ser o mundo: “O mundo? O

que é o mundo meu Amor?”. Na resposta, é dada a voz ao poeta: “_ O jardim

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dos meus versos, todo em flor...”, em que as reticências indicam continuidade.

A voz poética continua explicitando e produzindo uma gradação de

importância: “A seara dos teus beijos, pão bendito...”

O vocábulo Amor, insere o outro. Esse outro, que é o seu amor,

amado, transforma o mundo agora em algo bom, pois na confiança e junção

desse relacionamento, o eu-lírico se completa, funde-se ao amado.

Na última estrofe continua:

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços... -- São os teus braços dentro dos meus braços, Via Láctea fechando o Infinito.

evidencia uma plena relação com o amante, esquecendo-se do mundo e

transformando-o em algo muito maior no Universo – A Via Láctea.

Há, nos últimos versos, uma metonímia e personificação diminuída de

mundo, atribuindo-lhe braços. Coloca-se maior que o mundo como que

abraçando-o: “_ São os teus braços dentro dos meus braços”. Já no verso

final, sugere a imensidão, tal qual a Via Láctea, do seu êxtase, do seu sonho,

do seu cansaço.

Florbela não apresenta um trabalho apurado, de artesanato com a

palavra, como fazia os grandes modernistas. Nesse soneto, demonstra a

preocupação com a produção poética e com as dificuldades de se fazer poesia.

Trata-se, ainda, de um poema voltado à temática amorosa, que os conflitos da

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relação a dois, é fonte de inspiração para a construção da poesia. Demonstra

expressividade na construção das imagens, mesmo sem estar preocupada com

isso. Por seu estilo híbrido, esculpe imagens por símbolos, muito utilizados

pelos poetas simbolistas. O poema, apesar de falar sobre a poesia, trata da

temática amorosa.

3.2 Poética Metafórica conceitual:

3.2.1 Desígnios de Ser Poeta

Observamos, no soneto “Ser Poeta”, que o eu-lírico expressa uma das

características do Simbolismo: acreditar que o poeta é um ser elevado, capaz

de perceber e sentir os problemas humanos, pois para eles não são todas as

pessoas que têm essa capacidade.

Esse soneto produz a imagem que o poeta tem de si. O título

Ser Poeta evidencia uma possível definição. Na primeira estrofe, podemos

evidenciar esse possível conceito:

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

Há uma antítese entre mendigo e rei, que eleva mais ainda o

poeta, pois ele, apesar de não parecer ter nada, pode dar muito à humanidade,

pode proporcionar o sonho, a fantasia. No verso: “É ser mendigo e dar como

quem seja” e “ Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!”, observamos um

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contraste entre mendigo e rei, duas oposições que organizam a idéia principal

do poema.

Percebemos então que a poeta utiliza-se de jogos de palavras,

mais especificamente de oposições entre elas, evidenciando características do

barroco. Retrata o poeta como ser contraditório na expressão “Morder como

quem beija”. Também há contradição no quarto verso: “Rei do Reino de Aquém

e Além Dor”.

Note-se que as palavras escritas em letras maiúsculas,

expressam a grande importância do que o poeta oferece, pois ele tem poder de

transcender entre o que há além da vida, além dos próprios sentidos e

sentimentos humanos. Logo, o poeta torna-se diferenciado e um ser capaz de

ir além das compreensões humanas. Essa transcendência se dá por meio da

linguagem e percepção poética.

Na segunda estrofe,

É ter mil desejos de esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!

o “eu lírico” continua definindo o ser poeta, declarando o que é ser poeta nos

quatro versos da estrofe. Nos versos: “É ter cá dentro um astro que flameja,” e

“É ter garras e asas de condor!”, encontramos a palavra astro, que pode

assumir várias conotações, entre elas a luz, a sabedoria, o calor.

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Observamos, aqui, novamente a superioridade do poeta diante das

pessoas comuns, em cada palavra há uma elevação maior ainda do ser poeta.

Por exemplo, podemos observá-la na palavra “condor”, poder infindo de

manipular a natureza. Desta ave são escolhidas as garras e asas, ambas com

uma simbologia muito especial: leveza espiritual, alívio. Porém as duas

palavras são contrárias, o que nos evidencia, mais uma vez, a natureza

contraditória do poeta. O poder de ter um astro dentro de si que brilha e que vê

além do visível, o poder de voar como um pássaro e ver acima, como quem vê

de longe.

Na terceira estrofe,

É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito!

as metáforas continuam elevando ainda mais o poeta como ser em busca da

plenitude, da perfeição, como fica expresso no verso “ È ter fome, é ter sede de

infinito”. Faz referência ao infinito, à eternidade. Na simbologia da palavra

infinito, demonstra o desejo do poeta de se imortalizar por meio de sua poesia.

Nos versos: “ Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...” / “É condensar

o mundo num só grito!”, expressa o poder da palavra, da poesia escrita pelo

poeta, do poder de chegar até o outro e mostrar-lhe os conflitos e as

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necessidades humanas, o poder de denúncia social, como podemos evidenciar

em dois símbolos: elmo e ouro.

O “eu lírico” retrata em “elmo” os pensamentos, as inspirações dos

poetas nas manhãs preciosas “de ouro e de cetim”. Vale entender a simbologia

de ouro como algo caro e precioso. Também cetim como algo fino, macio e

belo. Ambos nos evidenciando a beleza das manhãs inspiradoras e poéticas.

No contexto do poema, o grito torna-se algo poderoso e é a

personalização da mensagem do poeta à humanidade, como algo sublime, ao

mesmo tempo, poderoso e intenso.

Na última estrofe,

E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue e vida em mim E dize-lo cantando a toda a gente!

adiciona-se a idéia do amor, expressa no verso: “E é amar-te, assim,

perdidamente...”. No verso, “É seres alma, e sangue e vida em mim”, retrata o

desejo da plenitude, um ser completo essencialmente corpo e espírito, capaz

de transcender. Nesse verso, vale ainda ressaltar as simbologias de alma e

sangue, nas quais podemos confirmar a ênfase da imortalidade do ser poeta

por meio da verbalização dos conflitos e sentimentos humanos. Completa, no

último verso, retratando a beleza e poder da poesia e de seu compositor o

poeta: “E dize-lo cantando a toda gente!”.

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A expressividade neste soneto se faz por meio da

conceituação. O eu-lírico define metaforicamente o que é ser poeta, lembra o

estilo camoniano em que primeiramente define, e depois vai expondo suas

idéias e universalizando o tema da poesia.

O processo de organização da imagem conceitual – poeta – é

construída pela similaridade, pois o eu-lírico usa o verbo ser na 3ª pessoa do

singular “é” e define o que é ser poeta. Por outra faceta, há muitas antíteses

que nos direcionam às características do Barroco. Reforça o ser poeta, por

meio de elementos díspares.

Aproxima-se da vertente modernista pelo tratamento intensivo

da expressão.

3.2.2 Tília e poeta: canto poético

Examinando esta poesia de Florbela, percebemos um eu-lírico voltado

às sensações. Ele passa a voz para tília e funde suas próprias emoções,

evidenciando seu conflito. Nesse poema, a poeta já nos demonstra sua

expressividade poética dentro do modernismo, até mesmo em um dos

movimentos de vanguarda português: O Sensacionismo. Apoiamo-nos em seu

fundador, Fernando Pessoa ( 2005 p. 431), que o define ao afirmar: “A única

realidade da vida é a sensação. A única realidade da arte é a consciência da

sensação”.

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O título do soneto, “A voz da tília”, nos sugere que eu-lírico passa sua

voz a outro referente, no caso a tília. O que é tília?

Tília é uma espécie de árvore muito grande, que pode chegar a 20 metros de altura, com uma copa ramificada de folhas grandes e flores brancas e amarelas. É de origem européia, mas atualmente é cultivada em outros continentes também.Na Europa ela é cultivada em parques e ruas, porque produz uma boa sombra e muito bonita. É considerada uma árvores sagrada pelas antigas civilizações germânicas. Suas folhas, flores ou as cascas dos troncos são utilizadas pela indústria fitoterápica, na produção de chás por seus poderes medicinais, ou seja, possui poder calmante, para insônia, stress, resfriados, depressão, etc. Na área da cosmética, também é usada para a confecção de produtos como emolientes para a pele.http://www.chi.pt/Extras/plantas_medicinais/tilia.htm

A tília é personificada e ganha voz, não para falar, mas para algo mais

sublime: cantar. A imagem da árvore tília que vai se formando é bela, artística e

sensorial. O eu-lírico nos aguça não só o sentido da audição para ouvir o que a

tília canta, mas também o sentido da visão. Ocorre a fusão das sensações:

falar, ouvir, ver e sentir. A imagem que se cria é táctil, auditiva e visual.

Nossa imaginação passa a criar a imagem da árvore que dança, à moda

de “la bayedere”, que tem a silhueta da bailarina que é a atriz que representa

seu próprio caso de amor oriental e místico.

Na primeira estrofe,

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera, Eu sou isto que vês: o sonho, a graça; Deu ao meu corpo, o vento, quando passa, Este ar escultural de bayadera...

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a tília expõe suas qualidades: “Eu sou sincera,”, “Eu sou isto que vês: o sonho,

a graça”. Nos dois primeiros versos, os verbos são conjugados no presente:

“diz” e “sou”.

No segundo verso, nos convida a vê-la como “sonho” e “graça”, dois

substantivos abstratos que se adjetivam para concretizar, materializar a relação

poeta/tília.

No terceiro verso: “Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,”, o verbo

vai para o pretérito “deu”. Mais um elemento da natureza é evocado: o vento,

que proporciona à tília um ar feminino, ao tornar seu corpo escultural. Há uma

inversão sintática na oração que, em ordem direta, deveria ser “O vento,

quando passa, deu ao meu corpo” e completa seu sentido no quarto verso:

“Este ar escultural de bayadera”

A poeta se apropria do termo bayadera3, que como bayadere em

inglês: é um termo para Devadasi (uma prática religiosa Hindu) - uma dança

feminina originária da Índia, em que as bailarinas se vestem frequentemente

com trajes orientais típicos e confortáveis” . Esse tipo de dança, um ballet

indiano, é praticado até hoje na índia e tem valor artístico e folclórico. Começa

a apresentar algumas modalidades da Arte como o canto e a dança.

3 Bayadera em ingles:“ bayadère is a European term for Devadasi (a Hindu religious practice) – a female dancer in Índia, often clothed in loose Eastern costum”. (tradução livre).

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Na segunda estrofe,

E de manhã o sol é uma cratera, Uma serpente de oiro que me enlaça... Trago nas mãos as mãos da Primavera... E é para mim que em noites de desgraça

Há, no primeiro verso, uma conjunção aditiva que nos trás idéias novas

de como a tília é tratada pelo sol. O Sol é como uma cratera, como uma

serpente de oiro que a envolve. No terceiro verso, “Trago nas mãos, as mãos

da primavera”, há também a comparação dos galhos da tília com mãos. Em

suas mãos, “as mãos da Primavera”, ou seja, sugere flores, e a fusão com a

estação da primavera. O último verso dessa estrofe: “E é para mim, que em

noites de desgraça”, anuncia uma espécie de argumento adversativo, pois

apesar de toda essa beleza e exaltação da natureza para tília, há também

“noites de desgraça”, de tristeza. Completa-se esse sentido, no primeiro verso

do primeiro terceto.

Assim, no primeiro terceto:

Toca o vento Mozart, triste e solene, E à minha alma vibrante, posta a nu, Diz a chuva sonetos de Verlaine...

tem-se ressaltada essa melancolia, embora serenizada pela música de Mozart

e a poesia de Verlaine. A poeta/tília evoca novamente o vento que, triste e

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solene, toca Mozart4. A música como Arte é novamente explorada, mais

precisamente a música clássica de Mozart.

No último verso desta estrofe: “Diz a chuva sonetos de Verlaine” é

inserida a poesia, como forma artística.

Para a “alma vibrante” da tília, a chuva é evocada para dizer sonetos de

Verlaine5. A chuva, se, por um lado, representa o alimento para a árvore dar

continuidade à sua beleza, por outro, representa os sonetos recitados ao eu-

lírico como fonte de inspiração para dar continuidade à sua poesia.

Na quarta estrofe:

E, ao ver-me triste, a tília murmurou; "Já fui um dia poeta como tu... Ainda hás-de ser tília como eu sou..."

No primeiro verso, “E ao ver-me triste, a tília murmurou”, parece haver

um questionamento do eu-lírico sobre a função de ser poeta.

4 Wolfgang Amadeus Mozart foi um grande músico da música erudita austríaco, na Europa, no século XVIII. Fenômeno da música universal, apresenta uma música triste em suas melodias pertencentes às Artes, mais ou menos na época dos movimentos Romantismo e Simbolismo.

5 Paul Verlaine foi um poeta francês que inovou a poesia. Sua poética se compõe de versos melancólicos, mas de muito valor. Viveu no século XIX e foi inspiração para outros poetas franceses.

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Nos dois últimos versos: “Já fui um dia poeta como tu” e “Ainda hás de

ser tília como eu sou”, a tília conclui que já foi poeta e que agora não é apenas

uma bela árvore, porém uma árvore especial como a tília.

A tília canta suas características do primeiro verso ao décimo primeiro e

depois nos dois últimos. A voz do eu-lírico só nos aparece no primeiro verso e

no décimo segundo verso.

Esse desfecho evidencia o conflito da poeta em querer ser

reconhecida viva. Demonstra sua consciência e evidencia seus conflitos quanto

à verdadeira situação desse ato, principalmente em sua época e por sua

condição feminina.

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CONCLUSÃO

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Florbela Espanca, poeta da Literatura Portuguesa, possui uma

produção poética de extrema beleza. Cronologicamente a poeta vive na época

de Orpheu, no Modernismo. No entanto é uma voz isolada. Na mesma época,

Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro criaram os

movimentos de vanguarda portugueses e se preocupavam, com um projeto

experimental de produção poética. Principalmente Fernando Pessoa com seus

heterônimos na produção poética nos movimentos lusitanos: Orphismo,

Presencismo, Sensacionismo, Interseccionismo e Paulismo. Esses

movimentos apresentaram-se como novos projetos de poesia experimental, no

qual o poeta cria, inventa, controla e projeta; nesse sentido surge o fingimento

poético.

Florbela apresenta-se como atriz de suas próprias emoções, pois

encena seu caso particular, a partir do transbordamento de seus sentimentos.

Porém, em Florbela Espanca, não há fingimento poético, ela é um exemplo de

poeta lírico “acabado”, pronto, completo. A poesia florbeliana é sentida,

vivenciada intensamente, por meio da manifestação de suas emoções. A poeta

não finge, ela se desnuda, extravasa seus sentimentos, por meio de sua

verbalização poética. Ela escreve seus poemas, como forma de terapêutica.

Utiliza da palavra para purificar sua alma. A poesia torna-se um remédio para

seus conflitos, para expor seus sentimentos mais íntimos e sublimes.

Densamente imagética, verbalmente elimina suas toxinas psíquicas, por meio

de uma transbordante expressividade singular.

Florbela Espanca reúne em sua poética elementos e características

que nos direcionam às várias vertentes literárias. Por meio das análises e

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também da fortuna crítica acerca de Florbela, pudemos evidenciar, ora

elementos que nos conduzem aos diferentes traços na poesia florbeliana. A

poeta apresenta traços trovadorescos, mais especificamente ligados às

cantigas de amigo. Ora se expressa por meio das contradições e

complexidades barroquinas, ora evidencia elementos vinculados ao clássico

camoniano por meio de uma poesia universalizante e a forma rígida do soneto.

Percebemos que a poeta percorre, de certa maneira, com singularidade, todas

essas vertentes e chega a uma espécie de neo-romantismo, na exaustiva

vivência do poeta. Configura-se por seu pessimismo existencial, linguagem

rebuscada e simbólica à vertente do simbolismo e decadentismo até chegar à

expressividade transbordante do Modernismo.

Florbela não é consciente do artesanato com a poesia, como Fernando

Pessoa e seus amigos de vanguarda modernista, e não tem a intenção de

realizar um projeto experimental em poesia, uma poética ficcional, pensada e

inventada em todos os aspectos. No entanto, a poeta consegue, por meio de

seu caso particular, viver e expressar suas emoções. Seu estado de alma é

latente e ela o transforma em pura sensibilidade. Universaliza esses

sentimentos sem perceber, consegue produzir uma poesia imagética, plena de

recursos que manifestam uma expressividade singular. A poeta não se

preocupa com o artesanato poético, apenas extravasa seu íntimo, desnuda-se

sem pudor, ousa e com isso provoca a sociedade lusitana tão tradicionalista.

A partir dessa oscilação de estilos de expressão literária formulamos e

concluímos a hipótese que norteou nossa pesquisa e análises de alguns

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sonetos de Florbela Espanca. Verificamos e constatamos que a imagem na

poesia florbeliana dialoga com várias tendências literárias, configurando um

estilo híbrido, que aponta para uma expressividade singular.

Assim, podemos dizer que, Florbela vivenciou todos os seus

sentimentos com muita intensidade. E a partir do transbordamento dessas

emoções atingiu a expressividade ímpar e singular, por meio de uma imagética

textual magnífica.

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ANEXOS

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REALIDADE Em ti o meu olhar fez-se alvorada E a minha voz fez-se gorjeio de ninho... E a minha rubra boca apaixonada Teve a frescura pálida do linho... Embriagou-me o teu beijo como um vinho Fulvo de Espanha, em taça cinzelada... E a minha cabeleira desatada Pôs a teus pés a sombra dum caminho... Minhas pálpebras são cor de verbena, Eu tenho os olhos garços, sou morena, E para te encontrar foi que eu nasci... Tens sido vida fora o meu desejo E agora, que te falo, que te vejo, Não sei se te encontrei...se te perdi...

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VERSOS DE ORGULHO O mundo quer-me mal porque ninguém Tem asas como eu tenho! Porque Deus Me fez nascer Princesa entre plebeus Numa torre de orgulho e de desdém. Porque o meu Reino fica para além... Porque trago no olhar os vastos céus E os oiros e clarões são todos meus! Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém! O mundo? O que é o mundo, ó meu Amor? -- O jardim dos meus versos todo em flor... A seara dos teus beijos, pão bendito... Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços... -- São os teus braços dentro dos meus braços, Via láctea fechando o Infinito.

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SER POETA Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!

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A VOZ DA TÍLIA Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera, Eu sou isto que vês: o sonho, a graça; Deu ao meu corpo, o vento, quando passa, Este ar escutultural de bayadera... E de manhã o sol é uma cratera, Uma serpente de oiro que me enlaça... Trago nas mãos as mãos da Primavera... E é para mim que em noites de desgraça Toca o vento Mozart, triste e solene, E à minha alma vibrante, posta a nu, Diz a chuva sonetos de Verlaine..." E, ao ver-me triste, a tília murmurou; "Já fui um dia poeta como tu... Ainda hás-de ser tília como eu sou..."

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NOITINHA A noite sobre nós se debruçou... Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora! O luar, pelas colinas, nesta hora, É água dum gomil que se entornou... Não sei quem tanta pérola espalhou! Murmura alguém pelas quebradas fora... Flores do campo, humildes, mesmo agora, A noite os olhos brandos lhes fechou... Fumo beijando o colmo dos casais... Serenidade idílica das fontes, E a voz dos rouxinóis nos salgueirais... Tranquilidade...calma...anoitecer... Num êxtase, eu escuto pelos montes O coração das pedras a bater...

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CHARNECA EM FLOR Enche o meu peito, num encanto mago, O frémito das coisas dolorosas... Sob as urzes queimadas nascem rosas... Nos meus olhos as lágrimas apago... Anseio! Asas abertas! O que trago Em mim? Eu oiço bocas silenciosas Murmurar-me as palavras misteriosas Que perturbam meu ser como um afago! E, nesta febre ansiosa que me invade, Dispo a minha mortalha, o meu burel, E já não sou, Amor, Soror Saudade... Olhos a arder em êxtases de amor, Boca a saber a sol, a fruto, a mel: Sou a charneca rude a abrir em flor!

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RÚSTICA Ser a moça mais linda do povoado, Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, Ver descer sobre o ninho aconchegado A bênção do Senhor em cada filho. Um vestido de chita bem lavado, Cheirando a alfazema e a tomilho... Com o luar matar a sede ao gado, Dar às pombas o sol num grão de milho... Ser pura como a água da cisterna, Ter confiança numa vida eterna Quando descer à "terra da verdade"... Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! Dou por elas meu trono de Princesa, E todos os meus Reinos de Ansiedade.

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CONTO DE FADAS Eu trago-te nas mõas o esquecimento Das horas más que tens vivido, Amor! E para as tuas chagas o unguento Com que sarei a minha própria dor. Os meus gestos são ondas de Sorrento... Trago no nome as letras duma flor... Foi dos meus olhos garços que um pintor Tirou a luz para pintar o vento.... Dou-te o que tenho: o astro que dormita, O manto dos crepúsculos da tarde, O sol que é de oiro, a onda que palpita. Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez! -- Eu sou Aquela de quem tens saudades, A princesa do conto : "Era uma vez..."

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EU Até agora eu não me conhecia. Julgava que era Eu e eu não era Aquela que em meus versos descrevera Tão clara como a fonte e como o dia. Mas que eu não era Eu não o sabia E, mesmo que o soubesse, não o dissera... Olhos fitos em rútila quimera Andava atrás de mim...e não me via! Andava a procurar-me -- pobre louca! E achei o meu olhar no teu olhar, E a minha boca sobre a tua boca! E esta ânsia de viver, que nada acalma, É a chama da tua alma a esbrasear As apagadas cinzas da minha alma!

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LEMBRANÇA Fui Essa que nas ruas esmolou E fui a que habitou Paços Reais; No mármore de curvas ogivais Fui Essa que as mãos pálidas pousou... Tanto poeta em versos me cantou! Fiei o linho à porta dos casais... Fui descobrir a Índia e nunca mais Voltei! fui essa nau que não voltou... Tenho o perfil moreno, lusitano, E os olhos verdes, cor do verde Oceano, Sereia que nasceu de navegantes... Tudo em cinzentas brumas se dilui... Ah!quem me dera ser "Essas" que eu fui, "As" que me lembro de ter sido...dantes!...

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MENDIGA Na vida nada tenho e nada sou; Eu ando a mendigar pelas estradas... No silêncio das noites estreladas Caminho, sem saber para onde vou! Tinha o manto do sol...quem mo roubou?! Quem pisou minhas rosas desfolhadas?! Quem foi que sobre as ondas revoltadas A minha taça de ouro espedaçou? Agora vou andando e mendigando, Sem que um olhar dos mundos infinitos Veja passar o verme, rastejando... Ah! quem me dera ser como os chacais Uivando os brados, rouquejando os gritos Na solidão dos ermos matagais!...

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ALVORECER A noite empalidece.Alvorecer... Ouve-se mais o gargalhar da fonte... Sobre a cidade muda, o horizonte É uma orquídea estranha a florescer. Há andorinhas prontas a dizer A missa de alva, mal o sol desponte. Gritos de galos soam monte a monte Numa intensa alegria de viver. Passos ao longe...um vulto que se esvai... Em cada sombra Colombina trai... Anda o silêncio em volta a querer falar... E o luar que desmaia, macerado, Lembra, pálido, tonto, esfarrapado, Um Pierrot, todo branco, a soluçar...

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NOSTALGIA Nesse País de lenda, que me encanta, Ficaram meus brocados, que despi, E as jóias que plas aias reparti Como outras rosas de Rainha Santa! Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta! Foi por lá que as semeie e que as perdi... Mostrem-me esse País onde eu nasci! Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta! Ó meu País de sonho e de ansiedade, Não sei se esta quimera que me assombra, É feita de mentira ou de verdade! Quero voltar! Não sei por onde vim... Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra Por entre tanta sombra igual a mim!

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INTERROGAÇÃO Neste tormento inútil, neste empenho De tornar em silêncio o que em mim canta, Sobem-me roucos bardos à garganta Num clamor de loucura que contenho. Ó alma da charneca sacrossanta, Irmã da alma rútila que eu tenho, dize para onde eu vou, donde é que venho Nesta dor que me exalta e me alevanta! Visões de mundos novos, de infinitos, Cadências de soluços e de gritos, Fogueira a esbrasear que me consome! Dize que mão é esta que me arrasta? Nódoa de sangue que palpita e alastra... Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

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NÃO SER Quem me dera voltar à inocência Das coisas brutas, sãs, inanimadas, Despir o vão orgulho, a incoerência: -- Mantos rotos de estátuas mutiladas! Ah! Arrancar às carnes laceradas Seu mísero segredo de consciência! Ah! Poder ser apenas florescência De astros em puras noites deslumbradas! Ser nostálgico choupo ao entardecer, De ramos graves, plácidos, absortos Na mágica tarefa de viver! Ser haste, seiva, ramaria inquieta, Erguer ao sol o coração dos mortos Na urna de oiro duma flor aberta!...

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SOU EU! A Laura Chaves Pelos campos em fora, pelos combros, Pelos montes que embalam a manhã, Largo os meus rubros sonhos de pagã, Enquanto as aves poisam nos meus ombros... Em vão me sepultaram entre escombros De catedrais de uma escultura vã! Olha-me o loiro sol tonto de assombros, E as nuvens, a chorar, chamam-me irmã! Ecos longínquos de ondas...de universos... Ecos de um mundo...de um distante Além, De onde eu trouxe a magia dos meus versos! Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas Prendeu da vida, assim como ninguém, Os maus espinhos sem tocar nas rosas!

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Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Não tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pode descansar, Pois consigo tal alma está linda. Mas esta linda e pura semidéia, Que, como o acidente em seu sujeito, Assim com a alma minha se conforma, Está no pensamento como idéia; [E] o vivo e puro amor de que sou feito, Como a matéria simples busca a forma. (Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p.46)

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Ela canta pobre ceifeira ... (Fernando Pessoa) Ela canta pobre ceifeira... Ela canta, pobre ceifeira Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz à o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p'ra cantar que a vida. Ah! canta, canta sem razão! O que em mim sente 'stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai!

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CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, Dicionário de Símbolos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio. 2007.

ALMA (p.31-36) “A palavra alma evoca um poder invisível: ser distinto parte de um ser

vivente ou simples fenômeno vital; material ou imaterial, mortal ou imortal;

princípio de vida, de organizações, de ação; salvo fugazes aparições sempre

invisível manifestando-se somente através de seus atos. Por seu poder

misterioso sugere uma força super supranatural, um espírito um centro

enérgico”.

ASAS ( p. 90)

“As asas são, antes de mais nada, símbolo de alçar vôo, do

alijamento de um peso (leveza espiritual, alívio), de

desmaterialização, de liberação – seja da alma ou de espírito -

passagem ao corpo sutil.”.

ASTRO (p. 95) “Em geral, participam das qualidades de transcendência e de luz que

caracterizam o céu, com um matiz de regularidade inflexível, comandada por

uma razão natural e misteriosa ao mesmo tempo. São inanimados por um

movimento circular que é o sinal da perfeição. Os astros são símbolos do

comportamento perfeito e regular, como também de uma imarcescível e

distante beleza”.

ELMO – capacete (p. 184)

“O capacete, elmo é um símbolo de invisibilidade, de invulnerabilidade,

de potência. [...] O simbolismo do capacete relaciona-se ao da cabeça, que é

por ele diretamente coberta. A esse respeito, pode-se dizer que o capacete

protege os pensamentos, mas que também os oculta: símbolo de elevação

passível de perverter-se em dissimulação”.

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ETERNIDADE (p. 409)

“A eternidade simboliza aquilo que é privado de limite na duração. [...]

A eternidade é a ausência ou a solução de conflitos, o ultrapassamento de

contradições, tanto no plano cósmico quanto no plano espiritual. É a perfeita

integração do ser em seu princípio; é a intensidade absoluta e permanente da

vida, que escapa a todas as vicissitudes das mutações e, particularmente, às

vicissitudes do tempo. Para o homem, o desejo de eternidade reflete sua luta

incessante contra o tempo e, talvez ainda mais, sua luta por uma vida que, de

tão intensa, possa triunfar para sempre sobre a morte. A eternidade não

reside no imobilismo, nem tampouco no turbilhão: ela está intensidade do

ato.”

GRITO (p. 478-479)

“Nas leis irlandesas, o grito tem valor legal de protesto. È

preciso, porém, para isso, que ele seja soltado em condições de lugar e

tempo geralmente determinadas com grande precisão.”

OURO (p. 669)

“O ouro é “considerado na tradição como o mais preciosos dos

metais, o ouro é o metal perfeito. [...] O ouro é uma arma de luz.”

PRIMAVERA – estações do ano ( p. 401)

“As estações foram representadas de modo diverso nas artes: a

primavera, por um cordeiro, um cabrito, um arbusto, guirlanda de

flores.(...) a primavera é consagrada a Hermes, o mensageiro dos

deuses. A sucessão das estações, assim como a das fases da lua,

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marcam o ritmo da vida, as etapas de um ciclo de desenvolvimento:

nascimento, formação, maturidade, declínio/ciclo que se ajusta tanto

aos seres humanos quanto a suas sociedades e civilizações. Ilustra,

igualmente, o mito do eterno retorno. Simboliza a alternância cíclica e

os perpétuos reinícios.”

REI (p.774)

“O rei é segundo o Islã, um Nome divino que corresponde

essencialmente à função do julgamento. [...] O rei é também concebido

como uma projeção do eu superior, um ideal a realizar.” Percebemos

que o poeta é comparado a algo superior como o rei”.

SANGUE (p. 800-801)

“Simboliza todos os valores solidários como o fogo, o calor e a vida.

Que tenha relação com o sol. A esses valores associam-se tudo que é belo,

nobre, generoso e elevado. Também participa da simbologia geral do

vermelho. O sangue corresponde, ao calor vital e o corporal, em oposição a

luz, que corresponde ao sopro e ao espírito. Dentro da nessa perspectiva, o

sangue- principio corporal - e o veículo das paixões. O sangue pode ser

considerado por certos povos o veículo da alma.”

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