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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Telmo Antonio Dinelli Estevinho (Re) Atando políticas: Sociedade, Estado e Cinema no Brasil Doutorado em Ciências Sociais (Política) São Paulo, 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Telmo Antonio Dinelli Estevinho

(Re) Atando políticas: Sociedade, Estado e Cinema no Brasil

Doutorado em Ciências Sociais (Política)

São Paulo, 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Telmo Antonio Dinelli Estevinho

(Re) Atando políticas: Sociedade, Estado e Cinema no Brasil

Doutorado em Ciências Sociais

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais (Política) sob orientação do Prof. Dr. Miguel Wady Chaia.

São Paulo 2014

Banca Examinadora

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_______________________________

Aos meus pais, Antonio e Tereza

Agradecimentos

Este trabalho não é resultado apenas de meu empenho, mas é antes de tudo tributário

de muitas influências, de diálogos e afetos a quem eu gostaria de nominar e agradecer:

- Miguel Chaia, mais que o orientador desta tese, é um amigo que soube

respeitar o tempo e o silêncio que me circundaram em muitas ocasiões;

- Para minhas irmãs: Maria Angélica, Ana Cláudia, Lúcia de Fátima, Priscila

Tereza e meu irmão Claudio Luciano, pois estamos todos juntos: é fogo

torcida brasileira!;

- Aos meus amigos de São Paulo e de outras terras: José Ewerton, Isabella,

Antonio Carlos, Junior, Syntia; pelos filmes, concertos, conversas;

- Aos amigos e colegas do Neamp, Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política

da PUC/SP;

- Randal Johnson e José Luiz Passos, pela orientação e apoio na Universidade

da Califórnia em Los Angeles;

- Aos meus colegas do Departamento de Sociologia e Ciência Política da

Universidade Federal do Mato Grosso;

- Minha amiga Maria Helena Braga, companheira de viagem em Los Angeles;

- Alexandre Miyazato e Adilson Mendes, pelo valioso apoio na Cinemateca

Brasileira;

- German Esparza, do International Institute, pelo suporte na UCLA;

- Kátia e Rafael, do Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais

da PUC/SP;

- À CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,

pelo apoio financeiro ao trabalho de pesquisa no Brasil e nos Estados Unidos;

- Aos entrevistados pelo tempo e atenção concedidos;

- Para todos aqueles que me ajudaram.

O prazer profundo, inefável, que é andar por estes campos desertos e varridos pela ventania, subir uma encosta difícil e

olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir directamente na pele a agitação furiosa

do ar, e depois compreender que não se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chão, estremecem, as nuvens

roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se em direcção ao mar, e o espírito entra numa espécie de transe,

cresce, dilata-se, não tarda que estale de felicidade. Que mais resta, então, senão chorar?

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

Resumo Autor: Telmo Antonio Dinelli Estevinho

Título: (Re) Atando políticas: Cinema, Estado e Sociedade no Brasil.

Esta pesquisa tem como objeto uma análise das políticas de cinema no Brasil entre os

anos de 1960 ao final dos anos 1990. Neste período foram criadas as principais

agências estatais de suporte à produção cinematográfica e o desenho da política foi

aqui concebido e permaneceu mais ou menos constante independente das mudanças

nos regimes políticos e das transformações econômicas. Para tanto utilizamos os

conceitos do neoinstitucionalismo histórico para demonstrar a relisiência de um

formato específico nas políticas de cinema implementadas no Brasil e explicar os

mecanimos que permitiram o seu desdobramento através do tempo. A centralidade

conferida a produção de filmes desvinculada de sua difusão ou circulação pública e a

implementação dessas políticas pelos setores educacionais e culturais do Estado

mantiveram-se constantes durante mais de trinta anos permitindo contínuas interações

entre as burocracias estatais e setores politicamente influentes do cinema brasileiro.

Constata-se assim a influência das instituições, sejam elas formais ou informais,

sobre o desenho das políticas de cinema e o seu respectivo processo de

implementação. Assim agências estatais como o Instituto Nacional de Cinema e a

Embrafilme foram importantes porque eram arenas abertas no interior do Estado para

que as interações entre cineastas, produtores e políticos pudessem ocorrer. Os

atributos culturais conferidos ao filme nacional também foram utilizados para a

manutenção e reprodução dessas interações. A pesquisa utilizou uma análise

sistemática da legislação cinematográfica, de estudos e relatórios produzidos por

associações de classe e entidades governamentais bem como entrevistas com

cineastas, produtores e políticos.

Palavras chaves: neoinstitucionalismo histórico, cinema brasileiro, políticas de

cinema, INC, Embrafilme.

Abstract Author: Telmo Antonio Dinelli Estevinho 

Title: (Re) Atando políticas: Cinema, Estado e Sociedade no Brasil. (Attaching

Policies: Film Industry, State and Society in Brazil)  

This work aim is to make an analysis of Film Industry Policies in Brazil from the

1960s to the late 1990s.  In this period, the main state agencies to support the

Brazilian movie production were created and this specific policy remained basically

constant regardless of political and economic changes in the country. For this, we use

the concepts of historical institutionalism to demonstrate the resilience of a specific

system in these policies and to explain the mechanisms that allowed its deployment

over time. The centralization of the movie production unlinked to its public

distribution, and the implementation of these policies by the educational and cultural

state agencies were constant during more than 30 years what enabled interactions

between the state and influent political sectors of Brazilian Film industry. This shows

the influence of formal and informal Brazilian institutions over the public policy

design and its respective implementation process. National agencies like Instituto

Nacional de Cinema and Embrafilme were important because they meant to be an

opened space in the state in order to make possible the interactions among

filmmakers, producers and politicians.  The cultural characteristics of the brazilian

movies were also used for the maintenance and reproduction of these interactions. 

The research used a systematic analysis of the film legislation, studies and reports

produced by professional associations and government institutes as well as interviews

with Brazilian filmmakers, producers and politicians.

Keywords: historical institutionalism, brazilian film industry, film policy, INC,

Embrafilme. 

Sumário

Apresentação 10

1. Políticas de cinema no Brasil: uma narrativa histórica 28

1.1. Políticas de cinema: contextos 30

1.2. Políticas de cinema no Brasil: um panorama histórico 40

1.3. “Paridade institucional” e o caso brasileiro 44

1.4. O neoinstitucionalismo histórico 53

2. Políticas de cinema no Brasil: atores, encaixes e identidades (1960-1970) 64

2.1. Explorando o território: as políticas antes do INC 70

2.2. Consolidando o território: a criação do INC 79

3. Adicionando camadas: a Embrafilme 91

4. Uma conjuntura crítica: os anos Collor (1990-1992) 110

4.1. Conjuntura crítica, instituições e atores 115

4.2. As políticas de cinema: reatando os elos 125

5. Os anos 1990: políticas do passado e do presente 133

5.1. O cinema brasileiro, entre Collor e Itamar 135

5.2. A lei do audiovisual 141

5.3. As políticas de cinema nos anos FHC 149

Considerações finais 166

Referências bibliográficas 171

Anexos 182

Entrevista com André Sturm 182

Entrevista com Carlos Augusto Calil 187

Entrevista com José Álvaro Moisés 190

Entrevista com Luiz Paulo Vellozo Lucas 198

Entrevista com Miguel Faria Jr. 211

Entrevista com Sara Silveira 222

Lista de tabelas, figuras e gráficos

Tabela 01 – Paridade institucional 47

Tabela 02 – Paridade institucional: políticas de cinema no Brasil 50

Tabela 03 – Dimensões da explicação institucional em ciência política 57

Figura 01 – Organograma do Projeto INC/1954 73

Figura 02 – Organograma do Instituto Nacional de Cinema/1966 83

Tabela 04 – Imposto sobre a remessa de lucros dos importadores de filmes 95

Tabela 05 – Lei 8.685/93 – Lei do Audiovisual 144

Tabela 06 – Padrões observados nas políticas de cinema no Brasil (1960-1990) 148

Gráfico 01 – Número de filmes por produtoras (1994-1998) 158

10

Apresentação

Uma narrativa da história do cinema brasileiro poderia se pautar em

descontinuidades, crises e rupturas radicais no modo de fazer filmes, pois desde o

início do século XX sua consolidação tem sido problemática entre nós. Em

decorrência desse fenômeno, os estudos e pesquisas sobre o assunto vêm

privilegiando a perspectiva dos diversos ciclos – o ciclo das chanchadas, da Vera

Cruz, do Cinema Novo, entre outros – e a forma como a produção de filmes no Brasil

estabeleceu-se de forma irregular. Durante os anos 1990 a produção do cinema

brasileiro foi caracterizada como de “retomada”, por ter emergido após a crise

enfrentada pelo setor no início daquela década. Tal termo foi incorporado e difundido

por meio de diferentes estratégias pelo governo, por cineastas e pela mídia.

Essa retomada foi decorrente de uma série de estímulos vindos do governo

para regularizar a produção de cinema e instituir um novo marco legal para o setor,

comemorando também a boa reação do público diante de um pequeno grupo de

filmes 1 . A perspectiva de uma “retomada” para o cinema brasileiro também

significava a possibilidade de renovação nas políticas culturais, de diversidade nos

estilos, gêneros e na própria autoria dos filmes, e de superação de problemas crônicos

que por longo tempo o afetaram.

O uso desse termo parecia sinalizar a emergência de outros tempos, em que o

cinema brasileiro iria traçar uma nova trajetória – mais equilibrada, estável e

sobretudo distanciada da tradicional e criticada relação construída com o Estado desde

os anos 1960. Não foram poucos os discursos e a retórica empregados por todo o setor

– cineastas, produtores, crítica e burocracia governamental – a ressaltar as virtudes do

novo modelo, centrado em leis de incentivo fiscal, que reforçava uma polarização

política, dificultando um debate mais aberto sobre os projetos anteriores. Esses –

identificados sobretudo com a Embrafilme, antiga agência estatal de produção e

distribuição de filmes nacionais – por vezes tratavam de temas incômodos, como o

clientelismo e o dirigismo historicamente vinculados às políticas de cinema, mas ao

1 O filme Carlota Joaquina (1993), de Carla Camurati, é considerado o marco inicial da “retomada”, celebrado pelo seu sucesso comercial e pela renovação do interesse do público pelo cinema brasileiro. O livro O cinema da retomada: depoimento de 90 cineastas dos anos 90, de Lúcia Nagib, publicado em 2002, ajudou a consolidar o termo.

11

mesmo tempo poderiam auxiliar bastante no debate, indicando trajetórias para a

“retomada”.

No decorrer da década, os novos modelos de produção e políticas culturais

trazidos pela “retomada” aproximavam-se das políticas anteriores: dos anos 1990 em

diante o cinema brasileiro parecia retomar seu curso tradicional e conformar-se em

sua feição histórica, seja nos seus modos de produção, seja em sua relação com a

sociedade. Os problemas estruturais, porém, permaneciam constantes, e a crise voltou

a se instalar: seria a “retomada” mais um ciclo a consolidar uma tradição no cinema

brasileiro?2

O ambiente eufórico da primeira metade dos anos 1990 cederia espaço a um

debate mais cauteloso acerca das técnicas de produção, das relações com o Estado e

possibilidades de difusão e circulação das obras. A crise que atravessava diferentes

eixos da produção cinematográfica brasileira permaneceu constante, e foi mobilizada

por vários dispositivos, seja para efeitos de pressão junto ao governo, seja para

deslocar as posições dos principais agentes do campo cinematográfico.

Outras instituições e políticas surgiram a partir da “retomada”, muito em

função dos debates, lutas e conflitos políticos que constituem o alicerce histórico do

cinema brasileiro em seus eixos de relação com o Estado e a sociedade. Mas a crise

parece ser invariante: nos últimos anos multiplicaram-se os textos, as análises e

diferentes discursos acerca de suas origens, características e possibilidades de

resolução. De acordo com tais relatos – geralmente formulados por produtores e

cineastas – a permanência de certos problemas estruturais, da dificuldade de exibição

dos filmes em salas de cinema ao modelo de produção e difusão da Globo Filmes,

anulava os resultados da política cinematográfica adotada pelo governo brasileiro nos

últimos vinte anos.3

2Ao analisar a trajetória do cineasta Humberto Mauro em diferentes momentos na história do cinema brasileiro, Sheila Schvarzman percebe os dispositivos que o atravessam no seu fazer fílmico: da incorporação discreta de um ideário industrialista próximo ao modelo de filme dos Estados Unidos nos anos 1920 para a atuação em um órgão governamental na produção de filmes educativos entre 1930 a 1960 até seu reconhecimento como cineasta fundador de um “genuíno” cinema brasileiro a partir dos anos 1950. A ideia de origem, fundação e renovação está aqui presente e incorporada na história do cinema brasileiro: “Dobra sobre dobra, o cinema brasileiro – que está em constante processo de fazer-se, impor-se e afirmar-se como forma de expressão necessária, tendo o Brasil como tema e justificativa – é, portanto, questionado, num ciclo infindável de começos e recomeços, de ciclos de produção que são também diferentes ciclos de identidade: identidade do próprio cinema e identidade nacional” (SCHVARZMAN, 2004: 349).3 Podemos acompanhar os desdobramentos deste debate através da mídia impressa, nos fóruns em festivais e mostras de cinema e em sítios de internet. Muitos dos problemas debatidos superam os argumentos econômicos e apontam a “irrelevância” da produção cinematográfica nacional, a sua

12

Um relatório produzido e divulgado pela ANCINE – Agência Nacional de

Cinema, com dados sobre a performance econômica e industrial do cinema brasileiro

em 2012, apontava uma diminuição na participação de filmes brasileiros no mercado

de salas de cinema e uma concentração do público em poucos filmes, a maioria

produzidos pela Globo Filmes. Os dados também indicavam que, sem a presença

desses filmes, a participação do filme brasileiro encolhia significativamente.4 Uma

pergunta incômoda era esboçada pelo jornal Folha de S.Paulo: “os cofres públicos do

Brasil devem financiar filmes comerciais, que faturam alto na bilheteria, ou obras

mais autorais, que sofrem para conseguir verba de produção e espaço em salas de

cinema?”5

Com a difusão desse debate, muitas questões – históricas e tradicionais no

cinema brasileiro – voltavam à tona: o embate entre cinema autoral e industrial, o

papel da televisão junto ao cinema no Brasil e especificamente a dificuldade de

distribuição. Para a produtora Sara Silveira, o problema estaria concentrado na forte

presença de filmes estrangeiros, fato que diminuía a visibilidade da produção

nacional; com argumentos semelhantes, o cineasta André Sturm abordava o tema da

diversidade cultural: se determinados filmes estrangeiros ocupavam mais de 70% do

circuito de salas de cinema no país, seria então redundante o esforço para aumentar o

número de casas exibidoras no Brasil. Silveira chamava a atenção para a produção de

filmes autorais, indispensáveis, em sua opinião, para a saúde da indústria

cinematográfica, argumento que em linhas gerais poderia ser também assumido por

Sturm.6

Ambos acreditavam no estabelecimento de regras legais para a livre circulação

do filme brasileiro no mercado e que a presença do similar importado não ameaçava a

diversidade da produção brasileira. Sturm argumentava:

Quem quer ir ao cinema é quase empurrado para ver um desses títulos. Não é o caso de pedir a ação dos órgãos que deveriam garantir a concorrência, que deveriam evitar o monopólio, a concentração? (...) Dois filmes podem ter 75% das salas? Nesse caso, ainda temos a questão da diversidade – afinal, mesmo sendo um negócio, o cinema envolve diversos aspectos culturais. (...)

invisibilidade pública e a ausência de legitimidade social e cultural, questões que em última instância retornam ao desenho da política de cinema implementada. 4 Informe de acompanhamento de mercado. Informe anual preliminar Filmes e bilheterias 2012. Superintendência de Acompanhamento de Mercado, Coordenação e Vídeo – CCV, ANCINE, 2013. 5 “Quanto vale ou é por quilo? Abismo entre investimento público e número de espectadores marca cinema do país em 2012”, Folha de S.Paulo, E1, 18 de janeiro de 2013. 6 “O problema é a distribuição”. Folha de S.Paulo, E1, 18 de janeiro de 2013.

13

É assistindo a filmes que muitos dos hábitos e costumes são formados. Foi através do cinema que os Estados Unidos, a partir dos anos 1950, impuseram os seus hábitos ao mundo, por exemplo, e isso obviamente tem implicações econômicas. Com os filmes, veio o “american way”. Todo mundo passou a usar jeans, comer hambúrguer e escutar rock.7

Em uma entrevista publicada na revista Caros Amigos em 2012, o cineasta

Beto Brant expressava sua insatisfação com os atuais modelos de produção e pela

forma como as grandes corporações cinematográficas – incluindo a Globo Filmes –

têm controlado o mercado, repelindo filmes com temáticas de direitos de minorias e

movimentos sociais, por exemplo. As posições de Silveira, Sturm e Brant estão

alinhadas a uma mesma perspectiva, na qual o problema principal continua sendo a

ocupação do mercado pelo filme estrangeiro; se a produção de filmes (ainda que com

os percalços apontados) mantém-se viável graças às medidas governamentais, o

mesmo não pode ser dito de sua difusão e circulação. De acordo com Brant, as

estruturas de produção encampadas pela Globo Filmes teriam modificado as

possibilidades de divulgação do filme brasileiro:

Eles são um negócio viável, porque a Globo tem o poder da comunicação, eles anunciam o filme, até dentro da novela uma personagem fala: “você não foi ver, ainda?”. Eles tem um poder de divulgação tremendo e fazem dinheiro com incentivo fiscal. (...) Eles têm o circuito na mão, têm a divulgação na mão, têm a produção na mão – porque geralmente fazem um subproduto, usam uma coisa que já deu certo na televisão – e ainda têm incentivo fiscal. Ainda fazem filme com apoio do Estado. A política pública trabalha para eles e aí a gente fica com a beirada.8

Na mesma entrevista, Brant relatava as dificuldades no lançamento de seu

último filme (Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, Brasil, 2012), que

envolveu desde uma tentativa de negociação mal sucedida com a Globo Filmes até a

retirada de circulação das cópias nos cinemas devido à presença de um grande

lançamento estrangeiro. Para Brant, uma solução possível seria a de produzir filmes

para poucos espectadores – em festivais de cinema ou em pequenas salas

especializadas – e obter financiamento para tal produção por meio de editais públicos.

7 “A ocupação das telas de cinema”. Folha de S.Paulo, A3, 14 de dezembro de 2012. 8 “A dor e a delícia de fazer cinema independente no Brasil. Entrevista com Beto Brant”. Caros Amigos, n. 185, agosto 2012.

14

Mas o que haveria de novo nessas falas? O que tais posições poderiam nos

revelar sobre as interconexões existentes entre Estado e cinema no Brasil? O que se

modificou com o transcorrer do tempo e o que tem permanecido? Ficam evidentes os

desdobramentos do passado, provavelmente um indício de que as políticas de cinema,

independentemente dos inúmeros ciclos de desativação e reativação da produção

ocorridos nos últimos cinquenta anos, parecem ser articuladas por dispositivos que

persistem mesmo com a alternância de governos e transformações econômicas.

A partir dos anos 1960, com a criação das primeiras agências estatais de

suporte ao cinema brasileiro, cresceram as pressões de cineastas e produtores para

regular e sanear o mercado a fim de que o filme nacional encontrasse seu público “de

direito”. A predominância de filmes estrangeiros, a ausência de um órgão fiscalizador

sobre o mercado e a criação de condições de concorrência consideradas justas são

temas que persistem e que indicam a possibilidade de uma estabilidade natural para o

cinema brasileiro por meio da ação governamental.

Mas voltemos a atenção para o que nos dizem, por exemplo, Cacá Diegues em

1988 e Florentino Llorente em 1952, respectivamente:

Se o Estado nos desse mercado não precisava Embrafilme nem de verbas do Minc. Eu não quero paternalismo do Estado. Eu quero é mercado. Agora. No dia em que o Estado agir no sentido que organizar este mercado, a Embrafilme será absolutamente desnecessária. Metade dos problemas são caso de polícia.9

Quando no Brasil os exibidores estiverem aliviados da enorme quantidade de filmes estrangeiros das mais variadas nacionalidades, e com grande vantagem, pois somente se importarão os melhores, os nossos próprios filmes deverão ser feitos em maior quantidade, ocupando com frequência os nossos cinemas, desenvolvendo-se assim, de maneira segura e brilhante, a indústria e o comércio do cinema brasileiro. E não tememos pela decadência da qualidade de nossos filmes pelo fato de seu aumento quantitativo uma vez que não haja interferência do poder público entre as relações do produtor e do exibidor.10

As falas de Diegues e Llorente apontam para uma tendência recorrente na

indústria cinematográfica brasileira ao solicitar do Estado a regulação do mercado

sem alterar as suas forças internas; asseguradas as condições justas de competição, o

filme brasileiro naturalmente ocuparia seu espaço e as trocas econômicas se

9 “Em Paris, Cacá Diegues prega o fim da Embrafilme”. Folha de S.Paulo, 24 de fevereiro de 1988. 10 “Entrevista com Florentino Llorente”. O Estado de S. Paulo, 15 de outubro de 1952.

15

acomodariam. Essas posições também refletiam uma confusão – deliberada ou não –

acerca do que seria uma intervenção justa por parte do governo nessa área, tema que

gradualmente viria a adquirir contornos mais precisos. Admitindo-se que a segunda

proposta – o estabelecimento de um limite para a importação de filmes estrangeiros –

possuía um formato mais radical e talvez por esse motivo não tenha sido efetivada

(seu autor a sugeriu durante os debates que antecederam a criação do Instituto

Nacional de Cinema nos anos 1950), a sua formulação, bem como a tese de Diegues,

poderiam muito bem constar nos argumentos sobre a sustentabilidade da indústria

cinematográfica brasileira, inscritos na Lei do Audiovisual em 1993.

Podemos recorrer novamente à história a fim de encontrarmos outras questões

que se desdobram e aparecem continuamente em propostas, manifestos e políticas. Ao

Estado cabe zelar pelo mercado e garantir as possibilidades de competição justa ao

filme brasileiro, mas ao lado desse projeto encontramos uma camada mais profunda,

que adiciona outros dispositivos às políticas governamentais, ampliando o seu escopo.

Vejamos o que dizem João Batista de Andrade em 1984 e José Álvaro Moisés em

2000, respectivamente:

Estamos prontos para negociar com o novo governo. Não estamos querendo somente liberação de verba. O cinema enquanto expressão audiovisual do País é uma aspiração nacional. Ou o governo assume o cinema brasileiro enquanto indústria cultural ou ele vai sucumbir. 11

O governo entende que o audiovisual tem um papel estratégico no desenvolvimento do país, particularmente no mundo globalizado, que, cada vez mais, comunica-se por imagens. Por isso quer ajudar a implantar uma indústria cinematográfica que assegure aos brasileiros o direito de afirmar sua identidade cultural nas telas e em outros meios.12

Considerando o conjunto das afirmações anteriores, cabe agora afirmar que a

pesquisa aqui desenvolvida tem como pressuposto central a ideia de que a história

importa; através dela podemos traçar uma densa trajetória temporal que permite

visualizar padrões recorrentes. Em um terreno tão pleno de significados como esse,

que envolve a feitura de um filme, ocupar-se das políticas de cinema é abrir

simultaneamente uma tela na qual observamos não apenas o lento desenrolar das

instituições estatais, mas sim uma rica interconexão construída entre elas e os agentes

11“Tancredo e cineastas reúnem-se em Brasília”. Folha de São Paulo, 17 de novembro de 1984. 12“Distorcer os fatos”. Folha de São Paulo, 02 de junho de 2000.

16

interessados em suas políticas. Ao examinar a forma como essas instituições foram

sendo criadas, fundidas e sobrepostas umas às outras ao longo do tempo, também

estamos selecionando um espaço privilegiado para observar o comportamento dos

agentes e as transformações pelas quais passaram para se ajustar às políticas estatais.

Assim, o objetivo dessa pesquisa está em acompanhar as mudanças ocorridas nas

políticas de cinema no Brasil desde os anos 1960 e fazer uma análise temporal linear,

a fim de obter padrões institucionais que se repetem ao longo do tempo e construir

uma narrativa histórica.

Desta maneira acompanhamos as políticas de cinema e procuramos observar

suas regularidades e padrões entre o início dos anos 1960 até o final da década de

1990. A produção de filmes no Brasil reforça a idéia de ciclos e períodos limitados

temporalmente mas as políticas que lhe deram suporte mantiveram seu desenho mais

ou menos inalterado no período citado acima. Estas, por sua vez, foram

implementadas através do Ministério da Educação e Ministério da Cultura e em

diversas ocasiões em conjunto com grupos de cineastas e produtores.

Duas observações são necessárias: primeiro, utilizamos a expressão “cinema

brasileiro”, tendo como referência um padrão histórico construído em torno do filme

de longa-metragem de ficção. A perspectiva de produzir um filme nesse formato foi e

ainda é um elemento aglutinador de tendências estéticas, de construção de propostas e

projetos por meio das associações de classe, de pressões advindas dos grupos

interessados e de debates e estudos formulados com base nos poderes executivo e

legislativo. Se nos anos 1960 o cinema brasileiro poderia ser descrito como um meio

de diversidade de modos de produção, os anos 1990 parecem encerrar essa

diversidade, justamente porque uma determinada tendência – ainda nos anos 1960 –

assumiu o Estado como interlocutor e ao mesmo tempo foi por ele capturado.

Podemos explicar esse processo por meio de outras variáveis, como as transformações

estruturais pelas quais passou a indústria cinematográfica nos últimos trinta anos, mas

acreditamos que o encaixe entre a burocracia cultural do Estado e esses setores do

cinema brasileiro foi o fator determinante. 13

13 Diferentes formas de produção cinematográfica coexistiam nos anos 1960, como as associações entre produtores brasileiros e distribuidoras estrangeiras; a antecipação sobre renda futura a partir de coprodução com o circuito exibidor; prêmios sobre renda e qualidade concedidos por diversos órgãos governamentais. Ao contrário, a produção cinematográfica a partir dos anos 1990 concentra-se em torno de incentivos fiscais induzidos por política governamental. Certamente, as transformações estruturais sofridas pela indústria cinematográfica nos últimos cinquenta anos podem explicar boa parte

17

Assim, “cinema brasileiro” significa muito mais uma categoria de análise,

com a qual procuramos sintetizar determinadas trajetórias e a forma como algumas

delas tornaram-se dominantes nesse desdobramento histórico e no jogo político

estabelecido a partir de relações de poder. Em outras palavras, é um recorte realizado

a partir de uma realidade antes plural – múltiplos cinemas brasileiros – que

historicamente foi se tornando cada vez mais homogênea. Mesmo que essa

demarcação tenha limites – manifestados pela diversidade estilística e de modos de

produção existentes – essa categoria nos oferece a dimensão histórica para

examinarmos os padrões de transformação e permanência no território construído de

forma simultânea pelo Estado e pelos atores sociais representados por esta categoria

de análise.14

O conceito de “políticas de cinema” pode parecer anacrônico e paradoxal, pois

o cinema tem sido incluído em uma unidade maior, o campo do audiovisual. A

utilização da expressão “políticas de cinema”, por outro lado, pode contemplar o

estudo de sequências históricas e sua comparação através do tempo: são “políticas de

cinema” porque atendem a determinados requisitos, seja a produção de um filme de

longa-metragem – independentemente da plataforma –, seja por sua difusão pública

ainda hoje determinada pela exibição em salas de cinema, seja por sua conformação

através de dispositivos legais.15

A ideia de “políticas de cinema” foi elaborada no decorrer da própria pesquisa, ao

se deparar com a recorrência das seguintes questões:

a) a ênfase na produção de filmes de longa-metragem;

deste fenômeno, mas a forma como a estrutura empresarial do cinema brasileiro reflui ainda é uma questão em aberto.14Tal delimitação tem objetivo analítico: ainda que dispositivos alternativos de produção e difusão possuam existência histórica (como exemplo podemos citar a produção da Boca do Lixo em São Paulo nos anos 1960/1970, do Beco da Fome no Rio de Janeiro no mesmo período, a produção em VHS nos anos 1980, o “cinema das bordas” dos anos 2000), foram poucos os modelos que utilizaram recursos públicos e elegeram o Estado como interlocutor. 15Esse conceito sinaliza a centralidade assumida pela exibição em sala de cinema, o que termina por conformar os outros mecanismos de difusão como os meios digitais, por exemplo. A meu ver a circulação pública de um filme ajusta-se aos mais variados dispositivos e formatos, mas a política que é objeto de análise nessa pesquisa preocupa-se com características afinadas com o modelo tradicional de exibição. A resiliência da política com tal desenho talvez corresponda a uma estrutura econômica que circunscreve o cinema brasileiro junto a espaços específicos no interior do campo do audiovisual. A criação da Agência Nacional de Cinema (ANCINE) em 2001 adiciona novas camadas às políticas tradicionais, preservando o seu núcleo. A legislação sobre o conteúdo nacional nas emissoras de televisão por assinatura, promulgada em 2011 pela ANCINE, não modifica as fronteiras no interior do campo do audiovisual, mas tende a hierarquizar as políticas.

18

b) preocupação com a ocupação do mercado pelo filme estrangeiro (associada ao

circuito de salas de cinema);

c) necessidade de uma indústria de cinema;

d) valorização do cineasta como autor da obra fílmica.

Apesar das intensas transformações sofridas pela indústria do cinema, esse

conceito tem sua utilidade, uma vez que, estritamente delimitado, nos dá condições de

observar os contornos, fusões e aproximações que gradualmente deslocaram esse

setor em direção ao complexo denominado audiovisual, e possui uma arquitetura

histórica, pois definiu as políticas que foram de fato implementadas.

Essas políticas de cinema são examinadas em um amplo leque temporal, que

vai da criação do Instituto Nacional de Cinema (INC) em 1966 aos primórdios da

ANCINE (Agência Nacional de Cinema) no início dos anos 2000. Esse período será

sistematizado em uma tabela a ser apresentada no último capítulo, onde estão

organizadas as diversas fases, políticas e suas características. Nele podemos encontrar

as principais formulações que estruturaram a legislação de suporte ao cinema no país

e conformaram sua principal clientela: cineastas e produtores; por sua vez, a dimensão

temporal nos permite ligar os elos entre as diversas políticas traçadas nesse período,

apontando muito mais para um equilíbrio estável, ao contrário das descontinuidades,

rupturas e ciclos característicos da história do cinema brasileiro.

O estudo das políticas de cinema, abordado aqui a partir de um quadro

conceitual das políticas públicas, – normalmente examinadas pelas premissas de

estudos da linguagem e comunicação – pode obter, com essa literatura, novas

perspectivas e hipóteses que ampliem o alcance dos estudos tradicionais.

Por exemplo, a partir de uma análise temporal, é possível perceber a forma

como os cineastas gradativamente se adaptaram à burocracia estatal e souberam

aproveitar os canais de relacionamento também abertos de forma gradual, o que

claramente aponta para um poderoso e bem-sucedido encontro entre a burocracia

cultural do Estado e uma difusa noção de cultura brasileira expressa nos filmes. E

ainda, que tal afinidade possa explicar a permanência da área cultural do Estado como

gestora das políticas de cinema durante todo este tempo.

Nesse estudo as políticas públicas são compreendidas como aquilo que o

governo faz ou deixa de fazer; essa área de pesquisa tem recebido atenção de forma

crescente no interior da ciência política e procura ampliar o escopo dos objetos sob

análise, tradicionalmente vinculados ao exame dos parlamentos, sistemas eleitorais,

19

partidos políticos, entre outros elegidos como canônicos pela disciplina. Uma

definição básica de política pública é suficiente para prosseguirmos no exame das

políticas de cinema:

Public policy is whatever governments choose to do or not to do. Governments do many things. They regulate conflict within society; they organize society to carry on conflict with other societies; they distribute a great variety of symbolic rewards and material services to members of the society; and they extract money from society, most often in the form of taxes. Thus public policy may regulate behavior, organize bureaucracies, distribute benefits, or extract taxes – or all these things at once. (DYE, 2008: 01) 16

Com essa definição retomamos nosso foco de análise, as políticas de cinema

em um determinado período histórico, e também seus aspectos próprios, como um

padrão de interações entre agências estatais, burocracias governamentais e suas

clientelas. Segundo Dye, uma política pública normalmente é autorizada,

determinada, implementada e reforçada por instituições estatais e são essas mesmas

instituições que a transformam em pública; portanto a análise de uma política

significa compreender o que os governos fazem – e o que deixam de fazer, pois é

evidente que não agindo o governo gera também um impacto – e que consequências

tal ação gera.

Estudar uma política pública implica estabelecer um debate mais intenso com

a ciência política, pois tal tarefa exige a descrição do seu conteúdo, o exame de causas

e consequências, a avaliação do seu impacto social e entender o jogo e as lutas

políticas daí decorrentes. Embora o estudo de uma política pública cujo objetivo final

seja viabilizar uma indústria de cinema, produzir filmes, democratizar o acesso a bens

culturais ou qualquer outra finalidade estabelecida tenha a ganhar com o uso de

ferramentas e instrumentos da ciência política, a observação não pode estar confinada

a fronteiras disciplinares estabelecidas:

Understanding public policy is both an art and a craft. It is an art because it requires insight, creativity, and imagination in identifying societal problems and describing them, in devising public policies that might alleviate them,

16 “Política pública é tudo o que os governos decidem fazer ou não fazer. Governos fazem muitas coisas. Eles regulam conflitos dentro da sociedade; eles organizam a sociedade nos conflitos com outras sociedades; eles distribuem uma grande variedade de recompensas simbólicas e serviços materiais para os membros da sociedade; e eles extraem dinheiro da sociedade, na maioria das vezes sob a forma de impostos. Assim, a política pública pode regular o comportamento, organizar burocracias, distribuir benefícios, ou coletar impostos - ou todas essas coisas ao mesmo tempo”. (Tradução livre).

20

and then in finding out whether these policies end up making things better or worse. It is a craft because these tasks usually require some knowledge of economics, political science, public administration, sociology, law, and statistics. Policy analysis is really an applied subfield of all of these traditional academic disciplines. (DYE, 2008: 08)17

Ao propor o diálogo entre estes dois campos procuramos superar uma lacuna

na literatura que examina as relações entre Estado e Cinema no Brasil, que aponta

com propriedade os problemas relativos à distribuição e circulação de filmes. Esse

elemento estaria ausente das políticas cujo foco é ocupar o mercado e ativar uma

produção regular capaz de garantir estabilidade à indústria. A meu ver, uma política

não pode se pautar apenas por critérios vinculados à eficiência e viabilidade

econômica, mas também pela possibilidade de ampliar e reforçar o debate público

acerca de sua importância para o desenvolvimento da comunidade à qual se dirige.

Não é algo estático, passa por interações contínuas que atravessam o tempo e

extrapolam o alcance previsto: nesse caso, a política vai além dos cineastas, do

mercado, da distribuição de filmes, e diz respeito às regras constituintes de uma

comunidade política, envolvendo valores como democracia, transparência e

cidadania.

O campo de estudo em políticas públicas é amplo, e dá origem aos mais

diversos estudos e análises. Certamente as políticas sociais costumam ser objeto de

maior interesse analítico, uma vez que lidam com público-alvo numeroso, burocracias

extensas e amplo aporte orçamentário. É evidente que políticas culturais também

podem ser abarcadas no campo das políticas públicas, mas esta pesquisa desloca seu

objeto para uma investigação mais sistematizada no interior da ciência política.

Assim, o exame se atém à interação entre atores estatais e não estatais ao redor de

uma política específica – no caso, políticas de cinema; essas são o instrumento

17 “Compreender a política pública é uma arte e uma habilidade. É uma arte, pois exige conhecimento, criatividade e imaginação em identificar problemas sociais e descrevê-los, e na elaboração de políticas públicas que possam atenuá-los, e, em seguida, em descobrir se essas políticas acabam melhorando ou piorando as coisas. É uma habilidade porque essas tarefas geralmente exigem algum conhecimento de economia, ciência política, administração pública, sociologia, direito e estatística. A análise política é, na verdade, um subcampo aplicado de todas estas disciplinas acadêmicas tradicionais”. (Tradução livre).

21

mobilizado para verificar a ocorrência de padrões regulares e como sua reprodução se

estabelece ao longo de um processo temporal.18

Também utilizamos o referencial teórico do chamado neo-institucionalismo

histórico para abordar as políticas de cinema, justamente por se vincular à história e

por privilegiar a dimensão temporal. Com isso, são dois os movimentos com que

procuramos nos desembaraçar das tradicionais amarras de pesquisa: primeiro as

políticas de cinema são incorporadas como política pública – ao invés do estudo

vinculado às políticas culturais e comunicacionais –, e depois inserimos o estudo

dessas políticas em um projeto teórico de ciência política, mais afeita a objetos de

investigação canônicos e com baixa predisposição ao debate de temas que envolvam

dimensões culturais ou simbólicas.

O ponto de partida do neo-institucionalismo histórico na ciência política está

ancorado em uma série de estudos envolvendo grandes dimensões temporais cuja

ambição teórica incluía as instituições estatais como as principais variáveis

explicativas. Inicialmente desenvolvidos nos anos 1960, muitos desses estudos

situavam-se na confluência entre a teoria política, a sociologia histórica e a história

econômica.19

18A literatura sobre políticas culturais no Brasil costuma enfatizar duas clivagens; uma primeira vincula os períodos autoritários com a extensão e alcance dessas políticas e o seu esvaziamento no retorno à democracia; a segunda opera através dos mecanismos nos quais tais políticas são financiadas, indicando a indução direta do Estado ao longo do século XX e o estabelecimento de incentivos fiscais de base indireta a partir do final dos anos 1980. Se a primeira clivagem aponta uma relação de instrumentalização da produção cultural por meio de políticas estatais em um movimento que as estrutura em torno de sistemas políticos (ditadura e democracia); a segunda dilui essas políticas nas relações econômicas contemporâneas. O primeiro governo Vargas (1930-1945) é o momento deflagrador de tais políticas, com a constituição de agências e institutos destinados à proteção e difusão da produção cultural brasileira, ao mesmo tempo em que especifica um grupo de atores cuja interlocução com o Estado será central daquele momento em diante. (ARRUDA, 2003; CALABRE, 2009; RUBIM, 2007). Durante o século XX as políticas culturais no Brasil seriam caracterizadas a partir de sua instabilidade institucional, por padrões autoritários de gestão e intensa relação com as elites culturais: “pode-se dizer, portanto, que ao longo dos séculos XIX e XX o estado brasileiro definiu para a sociedade o que reconhece como cultura e organizou em torno dela uma complexa e variada máquina administrativa. Nesse processo, criou uma burocracia interessada na reprodução desse aparato e, através de várias políticas, solidarizou artistas e intelectuais com os parâmetros que adotou para essa atividade pública”. (DORIA, 2003: 39). 19 Como modelos, temos os estudos de Barrington Moore (As origens sociais da ditadura e da democracia, publicado em 1967), Reinhard Bendix (Construção Nacional e Cidadania, publicado em 1964) e Charles Tilly (Coerção, capital e Estados Europeus, publicado em 1990), entre outros. A interseção dessas áreas tem sido comum nas pesquisas desenvolvidas pelo neo-institucionalismo histórico na ciência política a partir dos anos 1980. Tal convergência comporta princípios metodológicos comuns, pois ambas “focalizam macro objetos; levam em conta a contingencia histórica e a variedade cultural dos contextos estruturais e, assim, as visões de mundo dos atores; reconhecem a existência de racionalidades alternativas; fazem uso de uma multicausalidade contextual; reconhecem a importância para a mudança estrutural do cálculo empregado por atores em conflito, mas com base em

22

A partir dos anos 1980 essa perspectiva se fortalece no interior da ciência

política, graças à “virada histórica” ocorrida nas ciências sociais, dando impulso aos

estudos que privilegiavam uma análise contextual:

A social science sensitive to temporal context can thus strike a fruitful balance between the particular and the general. To a greater degree than traditional studies of a single case, it can both draw on and contribute to the broader social-scientific enterprise of generating usable, portable knowledge. Yet it can do so precisely by embracing and exploring the specific spatial and temporal relationships that environ and thus define particular processes that are of interest. (PIERSON, 2004: 176) 20

Essa revolução trouxe de volta ao repertório das ciências sociais um

vocabulário até então negligenciado nos debates e pesquisas: as ideias de tempo,

contexto, sequência e conjuntura foram retomadas para explicar fenômenos os mais

diversos, como os processos revolucionários ou padrões de mudança e permanência

nas políticas públicas. Afirmando que as instituições são dotadas de temporalidade,

seria então possível explicar resultados e processos políticos retornando ao passado

para inquirir a gênese de uma instituição, as forças que a sustentaram e que

possibilitaram mudanças ou reforçaram a resiliência de uma dada política.

Se as instituições delimitam os padrões de interação humana, também não o

fazem em um vazio: a temporalidade as resgata para uma investigação que privilegia

as lutas e conflitos políticos como determinantes na sua origem e permanência. Dessa

maneira, recorrer à historia nos possibilita compreender o processo de forma ampla,

observando as alternativas disponíveis para os atores naquele momento e as escolhas

realizadas, procurando responder por que foi assim e não de outra maneira, ou seja,

“a sensibilidade histórica auxiliaria na abertura de caixas pretas das decisões tomadas

no passado” (HOCHMAN, 2013: 237).21

interesses interpretados e construídos histórica e socialmente; consideram que grande parte dos resultados intencionais de estratégias sociais são desenvolvidos com base em efeitos sistêmicos” (THÉRET, 2003: 238-239). 20 “Uma ciência social sensível ao contexto temporal pode assim encontrar um equilíbrio fecundo entre o particular e o geral. Alcançando um grau maior do que os estudos tradicionais de um único caso, ela pode tanto desenhar como contribuir para o empreendimento científico-social mais amplo de gerar um conhecimento utilizável e portátil. No entanto, ela pode fazê-lo justamente por abraçar e explorar as relações espaciais e temporais específicas que a cercam e, assim, definir os processos específicos que são de interesse”. (Tradução livre). 21O estudo de políticas setoriais – saúde, educação, seguridade social, entre outras – tem sido mais privilegiado nesse enfoque (HOCHMAN, 2013: 236). No caso das políticas de saúde, o recurso a processos temporais de larga escala favoreceu uma análise mais acurada dos processos e atores envolvidos na implantação do SUS – Sistema Único de Saúde no Brasil. Mobilizando as categorias de

Formatado: Português (Brasil)

Formatado: Português (Brasil)

23

Segundo essa abordagem as instituições são centrais no estudo das políticas,

não apenas por envolverem ação do Estado, mas sobretudo porque podem conformar

o comportamento dos atores. Uma política, tendo sido instituída, vai criar toda uma

rede de apoiadores, muito devido ao processo de aprendizagem desta política por

parte da burocracia estatal, mas também pelos atores sociais interessados em sua

reprodução.

A definição de instituição é um tanto fluida e ambígua e não está isenta de

controvérsias: alguns autores empregam o termo para referir-se a regras informais,

como valores e normas culturais, por exemplo; outros preferem restringir o conceito

aos seus aspectos formais. Nesse trabalho, utilizamos o conceito de instituição sob

duas perspectivas: nas agências estatais (INC, Embrafilme etc.) que são resultado de

um processo temporal concreto e também em um conjunto de ideias sobre o papel do

cinema brasileiro na cultura nacional, divulgado por cineastas e apropriado pela

burocracia estatal. Com isso queremos reforçar o fato de que as instituições moldam e

são moldadas pelos seus agentes, em um processo complexo de interdependência.

Essas interconexões, construídas por um lado pela crescente participação de

um grupo especifico de atores no espaço público, por outro pelas instituições estatais

– com seus canais de acesso e influência possibilitados por determinadas conjunturas

históricas –, têm condições de afetar o padrão das políticas subsequentes. Assim:

Entende-se que a política constitui uma esfera caracterizada pela presença de relações de conflitos e, portanto, contendo permanentemente desestabilização e a ordem. Por isso, trata-se de uma área carregada de ambiguidades, ao se definir pelo entrecruzamento das práticas sociais com as instituições formais.

análise do neo-institucionalismo histórico, duas pesquisas recentes mostram a evolução dessa política ao longo do tempo: uma delas reforça o papel da sequência histórica nesse processo; outra aponta para uma mudança gradual no modelo. Assim, o SUS teria sido constituído por meio do legado do passado que formatou as bases para um sistema público e universal, convivendo com a provisão de serviços privados de saúde; o SUS seria então resultado de uma sequência histórica cujo ponto de partida estaria nos anos 1920, com a formulação das primeiras políticas sanitárias no Brasil, de base corporativa e não universal. As reformas posteriores reforçaram esse padrão: os primeiros esforços de universalização do serviço em 1969 não eliminaram os provedores privados; em 1988 eles haviam se transformado em atores politicamente importantes durante o processo de constituição do SUS (GERSCHMAN, 2006). Essa explicação mobiliza os processos dependentes de trajetória e as conjunturas críticas na formulação da política de saúde. A outra explicação valoriza a mudança gradual, em camadas, ao comparar a trajetória da política de saúde em diferentes momentos no tempo. A transformação de um sistema fechado, voltado ao atendimento dos trabalhadores regulares, para um sistema universal e descentralizado não ocorreu devido a uma conjuntura crítica (como a Constituição de 1988), mas pela interação entre instituições estatais e atores sociais. Nesse caso, médicos sanitaristas ocuparam postos burocráticos que não foram criados por eles e introduziram gradualmente as mudanças; o Estado foi permeável a grupos que introduziram pequenas medidas políticas que alteraram aos poucos o sistema de atendimento a saúde. (FALETTI, 2010).

24

Colocam-se, dessa forma, as possibilidades de atuação do artista no cenário político, delimitando um leque de atuações que vai da atuação política do artista agindo de forma independente no espaço público, de acordo com os ditames de sua consciência e de sua vontade, até a presença de práticas de artistas que se desenrolam em torno do poder, orientadas por valores externos a eles quando compartilham projetos ou programas coletivos. (CHAIA, 2007: 21-22)

O ponto de partida dessa pesquisa é a criação do INC – Instituto Nacional de

Cinema, em 1966, por ser a primeira instituição estatal com prerrogativas de fato e

que representava a abertura de um espaço no interior do Estado, gradualmente

partilhado entre as burocracias culturais e cineastas/produtores. As políticas anteriores

tinham solidificado o terreno para a constituição do INC e estabelecido um conjunto

de conhecimentos técnicos, jurídicos e institucionais para a proteção do cinema

brasileiro, como camadas que adicionadas ao longo do tempo facilitaram a instalação

dessa agência estatal. Mas as políticas e estruturas anteriores estavam imobilizadas na

forma de projetos e intenções políticas ou permaneciam isoladas no interior do Estado

como projetos setoriais. Indo no sentido oposto, a criação do INC foi um passo

fundamental, pois sinalizava que o Estado poderia atuar de forma sistêmica,

rompendo os limites das políticas até então vigentes, circunscritas ao campo

educacional ou ao esforço de produção presente em governos estaduais e municipais.

Assim, formulamos a hipótese de que, com a criação do INC, determinados

dispositivos entraram em operação, impedindo transformações estruturais na política

de cinema até a criação da ANCINE em 2001.

Um dos desdobramentos dessa iniciativa é a aproximação de instituições

aparentemente díspares – Embrafilme e Lei do Audiovisual, por exemplo – por meio

de processos de reforço, que aponta para um padrão de continuidade e equilíbrio ao

invés de rupturas. Ainda que os padrões e características da indústria cinematográfica

estejam sempre em transformação, há algo nas diferentes políticas adotadas que nos

induz a acreditar que determinados processos se reproduzem com regularidade com o

passar do tempo; ou seja, a utilização da dimensão temporal nos possibilita examinar

os mecanismos que sustentam tais políticas mesmo diante de mudanças, sejam elas

incrementais ou não.

25

Over time, processes are traced in order to discover the intersections of separately structured developments that often account for outcomes we wish to understand, whether they be revolutions, or their absence, strategies of labor union movements, or patterns of welfare state development. (SKOCPOL, 1995: 178).22

Inicialmente, essa pesquisa teria como tarefa principal a análise das políticas

de cinema durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e os

instrumentos utilizados para a reconstrução dessas em conjunto com o setor

cinematográfico. Uma primeira prospecção nos revelou que tais políticas eram muito

mais atravessadas historicamente do que seus gestores gostariam de admitir. A

literatura do neo-institucionalismo histórico nos forneceu a chave interpretativa para

“abrir” tais políticas e estudá-las em sua dimensão temporal. Os cursos “Análise de

políticas governamentais”, ministrado pela profa. Dra. Marta Arretche, e “Estado e

políticas públicas”, ministrado pelo prof. Dr. Eduardo Marques, por mim cursados no

Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo entre 2009 a 2010,

ajudaram a amadurecer essas ideias. Uma estadia de seis meses no International

Institute da Universidade da Califórnia em Los Angeles, UCLA, com a anuência do

Prof. Dr. Randal Johnson, entre o final de 2011 e os primeiros meses de 2012,

possibilitou a descoberta de ferramentas analíticas que se dispunham a examinar as

políticas de cinema a partir dos critérios erigidos pelos neo-institucionalistas,

reforçando a curiosidade sobre os resultados que poderiam ser gerados pela

combinação de campos de conhecimento tão distintos.

Ao analisar um extenso período de tempo, deparamos-nos com uma

recorrência de temas, propostas e objetivos na relação entre Estado e cinema no Brasil

dos anos 1960 até os dias atuais, como a ênfase dada aos mecanismos de produção ao

invés daqueles implicados na circulação pública dos filmes ou no aparte criado entre

arte e indústria, cultura e comércio. Com determinados temas em ascensão e

capturados pela política, outras alternativas são deixadas em segundo plano e

dificilmente voltam a ser foco de atenção. O objetivo centrado na construção de uma

indústria de cinema no país – perspectiva que aproximou as políticas governamentais

à classe cinematográfica – obscureceu qualquer discussão sobre a sua viabilidade de

fato. Essas questões continuam a desdobrar-se quando, atualmente, produtores e 22 “Através do tempo, processos são traçados a fim de descobrir as interseções de desenvolvimentos separadamente estruturados que muitas vezes são responsáveis por resultados que gostaríamos de entender, sejam eles revoluções ou a sua ausência, estratégias dos movimentos sindicais ou padrões de desenvolvimento do estado de bem-estar”. (Tradução livre).

26

cineastas recolocam o problema da circulação e difusão de seus filmes; na verdade

estão operando nas mesmas condições delimitadas em 1966.

A metodologia de trabalho utilizada levou em consideração o exame de uma

literatura nas áreas de ciência política, com enfoque nos conceitos centrais para o neo-

institucionalismo histórico e em estudos de cinema. Para o desenvolvimento da

narrativa histórica, da sequência temporal, da formulação e justificação da hipótese

central, foram utilizados uma análise sistemática da legislação cinematográfica a

partir dos anos 1960 e em base comparativa; o estudo de documentos produzidos por

associações de classe, agências governamentais e poder legislativo no período em

análise e entrevistas semiestruturadas. Os entrevistados foram selecionados de acordo

com sua inserção no campo cinematográfico, sua forma de atuação e interação com a

burocracia governamental e com as associações de classe: André Sturm foi presidente

da ABD – Associação Brasileira de Documentaristas em um momento crítico da

história do cinema brasileiro durante os anos Collor (1990-1992); Carlos Augusto

Calil foi o diretor-geral da Embrafilme durante os anos anteriores à extinção da

empresa no final dos anos 1980; José Álvaro Moisés foi o Secretário de Políticas

Culturais e Secretário do Audiovisual durante o governo FHC (1995-2002); Miguel

Faria Junior foi uma personalidade atuante durante o processo de reconstrução das

políticas de cinema nos anos 1990 e atua politicamente no cinema brasileiro desde os

anos 1970; Sara Silveira é uma produtora paulista vinculada ao cinema independente

e Luiz Paulo Velloso Lucas foi responsável pelas políticas de cinema durante o

governo Collor. As entrevistas serão utilizadas nos capítulos dois a cinco e constam

como anexo no final do trabalho.23

O texto está organizado de modo a reforçar uma correspondência entre a

divisão dos capítulos e períodos históricos específicos do cinema brasileiro. No

primeiro capítulo as políticas são dispostas em uma sequência temporal cujo ponto de

partida é a criação do INC e os processos de autorreforço da política que vem

ocorrendo desde então. O objetivo é montar uma narrativa histórica dessas políticas –

de 1960 até o final dos anos 1990 – utilizando conceitos como “encaixe”,

“instituição”, “dependência de trajetória”, “conjuntura crítica”, “autorreforço” e

“paridade institucional”, típicos do “neo-institucionalismo histórico”. Os capítulos

23Uma entrevista com Eduardo Escorel, diretor de políticas culturais na Embrafilme nos anos 1980, também foi realizada mas a dinâmica da conversa não permitiu sua utilização devido a insuficiência de informações.

27

seguintes enfocam as particularidades das diversas políticas: os processos de mudança

e equilíbrio e as relações travadas entre Estado e grupos de interesse, período que

vaida criação do INC até o surgimento da Embrafilme (capítulo 2); a consolidação da

Embrafilme e o fortalecimento do encaixe entre Estado e cineastas (capítulo 3); a

conjuntura crítica vivida pelo cinema brasileiro durante os anos Collor (capítulo 4), e

finalmente a a reconstrução dessas políticas nos anos FHC (capítulo 5). No último

capítulo apresentamos um quadro analítico contendo uma tipologia das relações entre

Estado e cinema no país, buscando uma visão panorâmica desse objeto de estudo. Na

conclusão examinamos os resultados da política de cinema instituída entre os

primórdios dos anos 1960 até o final dos anos 1990, apontando os impasses e

permanências que terminam por amalgamar políticas diversas em um conjunto

homogêneo.

Nos últimos anos o estudo das relações entre Estado e cinema no Brasil obteve

ganhos notáveis com o desenvolvimento de estudos plurais sistematizados, muito em

função do caráter multidimensional dos estudos e da expansão de uma área de estudo

multidisciplinar.24 Um elemento comum a todas essas pesquisas é a curiosidade dos

pesquisadores em torno desse território historicamente construído pelo Estado em

conjunto com o setor de cinema e pelo qual movimentam-se diversos atores, sejam

burocratas, cineastas ou críticos, muitos deles partilhando uma noção de cultura

pautada pela dicotomia entre arte e indústria.

Essa pesquisa não evita circular pelos complexos labirintos que envolvem as

justificativas estatais para o apoio ao cinema no Brasil, que ora apresentam

argumentos de fundo econômico, ora recorrem aos dispositivos culturais veiculados

pela obra fílmica, em um movimento circular que tende a imobilizar seus atores e

dificultar a visualização de possíveis saídas. Mais do que pensar exclusivamente no

funcionamento das instituições, estamos nos filiando a uma tradição que procura

observar o resultado de todos esses embates: o filme brasileiro, que por ser

atravessado pelas forças mais diversas – artísticas, políticas, econômicas – necessita

de um intenso debate público sobre sua permanência e história.

24 Ver por exemplo os trabalhos de Amancio (2000); Autran (2009); Estevinho (2007); Gatti (1999); Johnson (1987); Marson (2009); Silva (2009). Simis (1996), entre outros.

28

1 – Políticas de cinema no Brasil: uma narrativa histórica

“The local cinema needs to be worked for anew and presented to every new generation of critics, viewers, exhibitors,

distributors and politicians. National cinema activists and filmmakers have to think out, work at, legitimate, lobby for,

self-consciously articulate and market their difference from the dominant international cinema and each other”.

Film and nationalism. (Willians; O’Regan, 2002: 94)25

25 “O cinema nacional precisa ser trabalhado mais uma vez e apresentado a cada nova geração de críticos, espectadores, exibidores, distribuidores e políticos. Os ativistas e cineastas de um cinema nacional têm de pensar adiante, trabalhar, legitimar, fazer lobby, articular conscientemente e se diferenciar do cinema internacional dominante e uns dos outros.” (Tradução livre.)

Formatado: Inglês (EUA)

Formatado: Inglês (EUA)

29

Uma primeira observação a ser feita sobre as políticas de cinema

implementadas no Brasil nos últimos cinquenta anos refere-se à contínua sucessão de

instituições formais ou informais – cristalizadas em agências governamentais,

instrumentos e normas jurídicas, visões de mundo acerca dos destinos da cultura

nacional, práticas e comportamentos entre os principais atores envolvidos – que

evidencia o caráter fluido e provisório desses arranjos. Apenas o exame das principais

instituições governamentais criadas em poucas décadas – INC (1966), Embrafilme

(1969), Concine (1975), Fundação do Cinema Brasileiro (1987), Ancine (2001) –

confirma o mecanismo no qual as estruturas parecem atropelar-se umas às outras,

dificultando a estruturação de uma política menos variável à passagem dos governos e

transformações econômicas.

Caso a observação procure ser mais precisa, notamos de imediato a

persistência do Estado como uma instituição que estaria sendo solicitada em diversos

momentos históricos e cuja finalidade também pode variar: de árbitro dos conflitos

envolvendo o setor de cinema a indutor direto de regras; de salvaguarda da identidade

nacional ao papel de regulador da indústria, o Estado parece romper com a noção de

descontinuidade e variação descrita no parágrafo acima. Se a profusão de agências e

instituições dispostas a apoiar o filme brasileiro parece diversificar-se continuamente,

o mesmo não acontece com a presença do Estado nem com as políticas públicas, que

aparentam ser invariáveis. Acompanhando a sucessão das políticas de cinema através

do tempo, notamos que o Estado é uma variável chave não apenas por seus

dispositivos analíticos, mas também por gerar um tipo de resultado que pode ser

observado empiricamente:

a) no escopo de sua intervenção no setor de cinema;

b) pelos diferentes mecanismos com os quais foi solicitado a atuar;

c) pelos padrões, características e tipos de comportamento produzidos no

público alvo de suas políticas.

O objetivo desse capítulo é contar essa história ao agrupar as peças do quebra-

cabeça que emerge das relações entre política, sociedade e cinema no Brasil nos

últimos cinquenta anos. Para tanto, recorremos à tese de que a história importa e de

que as políticas implementadas também são dispositivos que geram um acúmulo de

conhecimento, de rotinas e padrões de auto-reforço com condições de manter essas

mesmas políticas em espaços delimitados. Ao recriar as condições para que essa

30

história seja narrada, podemos compor um todo com significado e ganhar uma nova

dimensão sobre o assunto.

1.1 - Políticas de cinema: contextos

O envolvimento gradual do Estado na defesa e na proteção do cinema

brasileiro, além de ajustar suas políticas aos interesses de grupos específicos, motiva

alguns agentes a reforçá-las – seja no interior das burocracias estatais, seja entre

integrantes de tais grupos. Nesse contexto, ideias emergem e produzem um encaixe

entre esses grupos distintos: atributos culturais ou eficiência econômica podem servir

para atar os elos entre Estado e sociedade. Todas essas questões não dizem respeito

especificamente às relações entre Estado e cinema no Brasil, mas foram produzidas

historicamente em oposição a um oponente poderoso: o filme estrangeiro, que no caso

brasileiro tomou a forma do filme norte-americano.26

Esse fenômeno pode ser encontrado em outros contextos: o projeto de um

cinema nacional pautou-se nessa oposição, mobilizando recursos variados para o seu

suporte. Também um processo histórico, a formação dos cinemas nacionais ativou

políticas estatais para a proteção de um produto considerado ora um herdeiro de

atributos de identidade nacional, ora um empreendimento econômico. O que é

caracterizado como algo natural apresenta-se muito mais como uma construção

histórica, ou seja, a criação dos cinemas nacionais no Ocidente durante o século XX

tem nessa oposição um componente fundamental. Assim:

The term is reserved by critics, filmmakers, policy makers, audiences and marketers for national cinemas other than that in the United States. For them, national cinemas provide a rubric within which cinema and television can be

26 O poder da indústria de cinema dos Estados Unidos não está ancorado apenas em estruturas de base econômica, política ou industrial, apesar de essas características serem centrais na exportação mundial do filme norte-americano. As características estéticas também foram fundamentais na difusão de um modelo de filme ao qual as diferentes indústrias de cinema tiveram que se adaptar: “the domination of Latin America domestic film markets by foreign products and distributors has been and continues to be a basic element affecting not only local production perspectives of quantitative growth, but also local producers choice of content and the overall organization of film as cultural form”. (SCHNITMAN, 1984: 08) “A dominação do mercado de cinema latino-americano por distribuidores e produtores estrangeiros tem sido e continua a ser um elemento básico que afeta não somente as perspectivas de crescimento quantitativo da produção local, mas também a escolha feita pelos produtores locais do conteúdo e de toda a organização do filme como objeto cultural.” (Tradução livre.)

31

differentiated from each other and from the dominant international Hollywood cinema. There is Hollywood, and there are national cinemas. Hollywood is an avowedly commercial enterprise. National cinemas are mixed-commercial and public enterprises. While the United States government assists Hollywood’s commercial ends, in other national cinemas there is a higher degree of formative government assistance involved in creating and sustaining them. (O’REGAN, 1992: 90)27

Se nos Estados Unidos o Departamento de Comércio é a instituição que afeta e

regula a indústria de cinema – e o filme é visto como um bem econômico no qual o

apoio estatal tem claros objetivos financeiros –, em outros contextos o significado

cultural do filme supera os imperativos de mercado. Uma evidência interessante é o

fato de que a estrutura governamental norte-americana não tem nada similar a um

Departamento ou Ministério da Cultura; em contraste, na França, a burocracia cultural

tem a prerrogativa sobre as questões ligadas à indústria cinematográfica:

Elsewhere in the world, in contrast, policy makers place filmmaking under the rubric of the “cultural industries”. State regulation incorporates broader, noneconomic goals that include a conception of film as art, culture, and to some extent, a public good. (FLIBBERT, 2007: 27) 28

A ascendência da indústria de cinema norte-americana sobre o mercado

mundial geralmente é explicada por meio das duas grandes guerras mundiais

ocorridas no século XX, fato que fragilizou as estruturas produtivas rivais. Assim, a

partir dos anos 1920 os Estados Unidos transformaram-se de importador em

exportador de filmes, papel reforçado após a Segunda Guerra Mundial. O tamanho do

mercado interno norte-americano é outro fator explicativo, porque permite à indústria

amortizar seus custos antes da exportação. O filme pode, então, ser exportado com

seus custos diluídos e diversificar suas fontes de receita e formas de comercialização

no restante do mundo; para os produtores e cineastas brasileiros o desafio é conseguir

27 “O conceito é reservado por críticos, cineastas, fazedores de políticas, espectadores e marqueteiros para os cinemas nacionais que não o dos Estados Unidos. Para eles, os cinemas nacionais proporcionam uma rubrica dentro da qual cinema e televisão podem ser diferenciados um do outro e do cinema internacional dominante em Hollywood. Há Hollywood e há cinemas nacionais. Hollywood é uma reconhecida empresa comercial. Cinemas nacionais são uma mistura de empresa pública e privada. Enquanto o governo dos Estados Unidos assessora Hollywood em termos econômicos, nos outros cinemas nacionais há um alto grau de assistência governamental para sustentá-lo e protegê-lo”. (Tradução livre.) 28 “Em outros lugares do mundo, por outro lado, fazedores de política colocam os cineastas sob a rubrica de indústria cultural. A regulação estatal incorpora objetivos amplos e não econômicos que incluem uma concepção do filme como arte, cultura e em extensão como um bem público.” (Tradução livre.)

32

explorar e obter a maior renda possível nos vários circuitos de difusão. A

compreensão histórica dessa cadeia econômica e suas inter-relações com a política

exigiu um longo aprendizado para o setor de cinema no país (AUTRAN, 2006: 178).

Portanto, fatores vistos como naturais e ligados ao funcionamento dos

mercados explicam a hegemonia do filme norte-americano sobre as demais

cinematografias: a tradicional autoridade conferida ao público – afinal esse prestigia

as obras que lhe interessam – completa esse círculo. Em um depoimento ao Senado

norte-americano em 1977, Jack Valenti, presidente da Motion Picture Export

Association (MPPA, atualmente MPA), afirmava:

We dominate world screens – not because of armies, bayonets, or nuclear bombs, but because what we are exhibiting on foreign screens the people of those countries want to see. In a strange way, though, American film sometimes so dominates in a country that this causes envy, distaste, and sometimes rebuttal in various forms by foreign governments. This is not because of our power but because the public prefers to see these films over the local product. (GUBACK, 1985: 112-113)29

A hegemonia norte-americana expressa a preferência do público em escala

global, apagando as conexões existentes entre o governo dos Estados Unidos, a

indústria cinematográfica norte-americana e as pressões econômicas exercidas

também em escala mundial. Os dispositivos que emanam dessas conexões podem ser

observados de forma concreta nas relações de poder e nas estratégias para controlar o

mercado mundial e dificultar a competição. 30

A Motion Pictures tem um escritório de representação no Brasil desde os anos

1940, exercendo pressão junto a setores do governo brasileiro para que o filme norte-

americano não tenha sua circulação restringida ou controlada. A hegemonia dessas

companhias data dessa época, controlando o mercado de filmes no país por meio das

conexões entre setores de distribuição e exibição, além das já mencionadas pressões

políticas. Para o filme brasileiro, a janela que se abria era exclusivamente vinculada à

29 “Nós dominamos as telas mundiais – não por causa de armas, baionetas ou bombas atômicas – mas porque o que nós estamos exibindo nas telas estrangeiras as pessoas desses países querem ver. De uma maneira estranha, porém, os filmes americanos algumas vezes são tão dominantes que provocam a inveja, o desgosto e algumas vezes sua refutação em várias formas pelo governo estrangeiro. Isso não é por causa de nosso poder mas porque o público prefere ver esses filmes ao invés da produção local.” (Tradução livre.) 30 Em sua pesquisa, Guback relata as conexões existentes entre a política externa norte-americana e a indústria de cinema.

33

produção de filmes, sendo ignorados – conscientemente ou não – os demais elos da

indústria.

As pressões da MPA são mais intensas nos períodos nos quais a política de

cinema é alterada visando maior controle sobre a presença do filme estrangeiro no

Brasil. Na segunda metade dos anos 1970, ocorreram conflitos políticos envolvendo

essa questão, especialmente devido ao escopo das políticas implementadas pela

Embrafilme e pelo Concine.31

Durante a gestação da Ancine, em 2001, novas disputas ocorreram: a MPA

fazia pressão contra a criação de contribuições obrigatórias a serem cobradas das

companhias dos Estados Unidos e sugeria a sua participação no debate do projeto em

discussão. O retorno desse tema causou polêmica junto a muitos setores do cinema

brasileiro, uma vez que historicamente a presença do filme norte-americano

representava uma ameaça para a sustentabilidade da produção nacional. Retomando

questões tradicionais na história do cinema brasileiro, Gustavo Dahl, um dos

formuladores da criação da Ancine, reagia à proposta da MPA:

A proposta da MPA, sob a pele de cordeiro de uma possível colaboração, terminava sendo a interferência de um país estrangeiro numa questão interna brasileira. Mas essa é uma posição antiga e sistemática da MPA que não admite, por princípio, nada que quebre o conceito de livre mercado. A questão de fundo é qual a porção do mercado de salas, vídeo e televisão necessária é suficiente para libertar ou pelo menos atenuar a dependência que o cinema brasileiro tem do Estado, ou seja, tornar-se autossustentável. 32

No contexto brasileiro, a presença do filme estrangeiro formatou por completo

o mercado e a indústria de cinema desde o início do século XX. Como já apontado, as

dificuldades foram variadas e envolviam da concepção estética da obra aos arranjos

ligados a distribuição, exibição e difusão do filme. Ainda que as dificuldades que o

cinema brasileiro tenha enfrentado em suas tentativas de consolidação não possam ser

creditadas exclusivamente à ocupação do mercado pelo cinema dos Estados Unidos, a

forma como ele se estabeleceu no país desde o início do século XX deu origem a

reações bastante diversas:

31 A indústria de cinema era vista como estratégica nos Estados Unidos: a MPA tinha diálogo permanente com o governo e reunia-se periodicamente com ministros e presidentes. Desde sua criação tem feito pressões junto ao governo brasileiro (SIMIS, 1996). 32 “Cinema no planalto”. Jornal do Brasil, 3 out2001. Ver também “Cinema dos EUA pede voz na política de FHC”, O Estado de S. Paulo, 22ago2001.

34

a) admiração pelo modo de produção – contínuo e de formato industrial;

b) tentativas de imitação desse modelo e sua equiparação com padrões de

qualidade;

c) adoção de um modo de produção que favorecia a alienação e deturpação da

realidade;

d) aparecimento de teses nacionalistas que visavam à ocupação do mercado.

Enquanto os dois primeiros tipos de comportamento foram mais comuns entre

produtores e cineastas até o início dos anos 1950, os dois últimos tornaram-se

recorrentes daquele momento em diante. Mas o corte temporal nem sempre é preciso,

pois as quatro posições podem ser observadas na produção de filmes e na política

governamental a partir dos anos 1990.33 A literatura produzida sobre o tema tem

descrito uma virada a partir do refluxo dos itens a e b, com a crise no sistema de

estúdio utilizado pela Companhia Vera Cruz em São Paulo e em seguida a discussão

sobre soluções alternativas para a construção de um modo de produção mais afeito à

realidade do país. Se até então o modelo hegemônico procurava mimetizar o filme

estrangeiro – seja pelos atributos de qualidade ou produção seriada –, a crise inverte

esses sinais; quais seriam as possibilidades econômicas de reprodução do cinema

brasileiro e quais ambições artísticas seriam viáveis, afastado o horizonte do filme

norte-americano?

Segundo essa literatura, a implosão do modelo tradicional possibilitou o

surgimento de duas aproximações: a primeira delas entre o filme brasileiro e o

conteúdo cultural expresso por ele; a segunda entre produtores e cineastas e o Estado.

Ainda que tais perspectivas nunca estivessem ausentes, elas representavam algo mais

homogêneo e sistematizado, resultado de debates ocorridos no interior da classe

cinematográfica e das transformações econômicas e políticas processadas naquele

momento. As solicitações de apoio e protecionismo dirigidas ao Estado podem ser

encontradas desde o início do século XX, mas a diferença é que nos anos 1950 tais

demandas foram acompanhadas de estudos detalhados sobre o funcionamento da

33 A criação da Companhia Vera Cruz em São Paulo em 1949 sintetiza os itens a e b, pois a empresa divulgava publicamente a sua tentativa em realizar um cinema de qualidade e em ritmo contínuo. Produtores como Ademar Gonzaga nos anos 1930 também se aproximavam dessa perspectiva, que era reforçada não apenas por determinados setores do cinema brasileiro, mas por jornais e revistas. A ideia de um cinema “de qualidade” ainda continua a ser enfatizada e a política de cinema nos anos 1990 favoreceu a produção de filmes com altos orçamentos como representativa deste modelo. A busca por continuidade na produção, o fortalecimento de produtoras e de um estilo industrial foram alvo das agências governamentais nesse período. Ver Autran (2006), Bernadet (1982) Johnson (1987), Simis (1996), Xavier (2001).

35

indústria cinematográfica no Brasil. O filme norte-americano retomava seu papel

catalisador, pois os estudos acerca da sobrevivência do produto brasileiro apontavam

que a ocupação do mercado ultrapassava os dispositivos econômicos, significando

muito mais um processo de descolonização cultural e reforço de critérios ligados à

identidade nacional.34

Processo semelhante no que diz respeito aos temas e à dimensão temporal

pode ser encontrado em inúmeros países; no Canadá, por exemplo, a ascensão da

questão cultural veiculada pelo cinema ocorre por volta dos anos 1960 e o Estado

torna-se então interessado na proteção e difusão dessa produção. Desde o início do

século XX o filme canadense era visto como uma mercadoria que circulava em um

mercado dominado pelo produto norte-americano, e deveria, portanto, submeter-se a

tais regras; apenas nos anos 1960 a questão do conteúdo cultural tornou-se um assunto

político: associações de cineastas apontavam os efeitos negativos da hegemonia do

filme norte-americano para a soberania nacional. Nesse contexto, foram ligados os

elos entre identidade cultural, cinema nacional e proteção estatal.

As políticas de cinema no Canadá são particularmente interessantes para o

contexto brasileiro, especialmente no que diz respeito ao timing: durante boa parte da

história, a indústria cinematográfica nesse país esteve vinculada a interesses privados

e associada ao capital norte-americano; nos anos 1960 uma mudança de atitude no

governo – muito em função da pressão das associações de cineastas – imprimiu ao

filme atributos de identidade e soberania nacional. A questão da remessa de lucros e

evasão de divisas, a possibilidade de criação de mão de obra para o setor e a difusão

de valores típicos do país junto à comunidade internacional também entraram em

circulação naquele momento.

Durante os anos 1960, o governo estabeleceu vários comitês e grupos de

estudo para analisar a indústria de cinema, culminando com a criação, em 1967, de

uma agência cujo objetivo era auxiliar cineastas e produtores na construção de um

cinema nacional. Mas esse processo não esteve distante de controvérsias e lutas

políticas: os grupos de estudo tinham demonstrado dúvidas acerca da viabilidade de

uma indústria de cinema no Canadá e sugeriram a adoção de uma política mais

34 O papel dos Congressos de Cinema, ocorridos nos anos de 1952 e 1953 reforçam a tese de “politização” do debate sobre cinema brasileiro e a ascensão do papel cultural do cinema. Ver Autran (op. cit.), Johnson (op. cit.) Simis (op. cit.).

36

cautelosa, na qual os fundos governamentais apoiassem filmes com perfil educacional

e cultural ao invés da produção industrial.

As conexões entre os diversos movimentos nacionalistas e grupos de cineastas

e as agências governamentais transformaram o filme em produto cultural e deram

corpo à ideia de soberania nacional, para além dos seus tradicionais alicerces

econômicos, inclusive no campo cultural. Apesar de o Estado canadense ter adotado

uma série de medidas de estímulo e proteção ao cinema nacional, foi relutante em

alterar de forma mais estrutural o mercado de cinema, fato que gerou instabilidade e

crises periódicas na produção de filmes no Canadá.35

A relação entre valores culturais e eficiência econômica também se refletiu

nas políticas de cinema na Argentina, ou seja, o Estado apoiava a indústria de cinema

de duas perspectivas: como um setor considerado incipiente e frágil diante da

concorrência estrangeira e como parte integrante do patrimônio nacional. As

administrações de Raul Alfonsín (1983-1989) e Carlos Menem (1989-1999)

utilizaram esse tipo de retórica na reprodução das políticas de cinema: enquanto o

primeiro subordinava as políticas para o filme de padrão cultural e voltado

basicamente para os festivais internacionais de cinema, endossando a tese de valores

democráticos em uma Argentina recém-liberta da ditadura militar–, o segundo

direcionou as políticas no fortalecimento da indústria e no diálogo com amplos

setores do público, enfraquecendo a ideia do filme como elemento constituinte da

identidade nacional.36

A indústria de cinema na Grã-Bretanha esteve envolvida com problemas

similares, na produção e circulação pública de seus filmes no mercado e também na

construção de uma imagem ou de uma ideia de cinema nacional. Se os estímulos

governamentais adotados aproximavam-se de um modelo básico no que diz respeito

às políticas de cinema – implantação de cotas para o produto nacional e auxílio

financeiro aos produtores – a presença do filme e das produtoras norte-americanas,

que caminhava lado a lado das questões de ordem linguística, tornou mais complexa a

implementação de uma homogeneidade no cinema nacional na Grã-Bretanha.37

35 Ver os estudos de Dorland (1998) e Magder (1985, 1993). 36 Ver por exemplo os estudos de Falicov (1999, 2007). 37 A resposta dos produtores britânicos em geral pode ser sistematizada em três categorias: associação com as companhias norte-americanas; a competição pelo mercado internacional; ou a ênfase em uma produção com conteúdo regional. Essas três políticas econômicas – aliança, competição ediferenciação de produto – respondem ao problema do controle norte-americano do mercado como um problema nacional. Mas a extensão do problema é, na verdade, internacional. A supremacia de Hollywood, na

37

Aqui, a ideia de nacional torna-se sem dúvida mais problemática, mas nos

direciona a atenção para um fenômeno que permeia a formação dessas diferentes

indústrias de cinema, uma característica multifacetada que envolve constantes

negociações entre identidades forjadas no local e a dinâmica internacional envolvida

no mercado de filmes:

A categoria do nacional é sempre uma construção ideológica e política, uma ilusão cuidadosamente fabricada, fundada em um arranjo de atividades mais ou menos consensuais. Ao mesmo tempo, mesmo enquanto certas atividades são promovidas, outras vêm a ser marginalizadas ou excluídas. Esse jogo de apoios e exclusões deve ser levado em conta quando se tenta delinear um cinema nacional. Apoios e exclusões funcionam tanto internamente, entre diferentes setores da atividade de cinema, como externamente, entre as indústrias cinematográficas e as estratégias políticas e econômicas de diferentes países (HIGSON; CATERER, 2007: 81).

O rápido exame das políticas de cinema nesses países nos revela que contextos

diversos também podem dar origem a tensões muito semelhantes quando se pensa nas

políticas e em questões como a identidade nacional, o patrimônio e a herança cultural,

que têm forte influência sobre esse setor. Mas apesar de tais tensões ecoarem por todo

o campo da produção cultural, a relação de um escritor ou de um artista plástico, por

exemplo, com seu modo de produção é completamente distinto daquele que cerca o

cineasta:

The film industry is neither simple commercial activity nor pure cultural expression, given the semiotic dimension of the most unapologetically commercial production and the financial requirements of even low-budget art film. (FLIBBERT, 2007: 17)38

A dificuldade em competir com o filme dos Estados Unidos em termos

financeiros – infraestrutura técnica, acesso ao mercado, entre outras questões – e

estéticos – afirmação de novas linguagens cinematográficas ou a imposição de um

padrão narrativo, por exemplo – torna as indústrias locais mais propensas a solicitar

medidas de proteção às autoridades estatais. Essas geralmente utilizam-se da retórica

maioria dos aspectos da indústria cinematográfica global, não se confina aos Estados-nações individuais e se fundamenta no controle tanto sobre o vasto mercado doméstico como sobre os numerosos mercados no exterior (HIGSON; CATERER, 2007: 69). 38 “A indústria de cinema não é uma simples atividade comercial nem uma pura expressão cultural, dada a dimensão semiótica da mais acrítica produção comercial ou até mesmo os requerimentos financeiros para um filme de arte de baixo orçamento.” (Tradução livre.)

38

acerca da identidade nacional e da herança cultural para a legitimidade e continuidade

das políticas de suporte, justamente porque o filme – diferentemente de outras

manifestações artísticas – tem esse potencial em ser tratado como cultura pelas

autoridades estatais.

Dessa maneira, o projeto acerca da viabilidade – econômica ou cultural – de

um cinema nacional tem sido construído em oposição ao filme norte-americano,

independentemente de contextos e nacionalidades:

Outside of the United States, direct government support of national film industries is the rule, not the exception. Industries in Europe, Africa, the Middle East, Asia, Latin America, as well as Canada and Australia, are supported in one way or another by the state. Even India, which has one of the largest and most successful commercial film industries in the world, producing over seven hundred films per year, has a government-sponsored enterprise, the Film Finance Corporation, which makes the production of alternative, experimental, or less commercially oriented films possible. (JOHNSON, apud KINDEM 2000: 258)39

Com uma grande recorrência histórica, o discurso sobre essa polaridade entre

o filme nacional e a indústria de cinema dos Estados Unidos tem sido utilizado para

várias finalidades, sendo a mais óbvia aquela que gira em torno do projeto de proteção

estatal. No caso brasileiro, há um contínuo alinhamento entre burocracias estatais,

cineastas e produtores, que mantém essa polaridade desde os anos 1960. Mesmo a

conjuntura crítica vivida pelo cinema brasileiro no início dos anos 1990 não alterou

tal alinhamento: a derrocada da área cultural do Estado na administração Collor

39 “Fora dos Estados Unidos, o apoio direto do governo para a indústria do cinema nacional é a regra, não a exceção. Indústrias na Europa, África, Oriente Médio, Ásia, América Latina, mesmo Canadá e Austrália são apoiadas de uma forma ou outro pelo Estado. Mesmo a Índia, que tem um doa maiores mercados de filmes comerciais do mundo, produzindo mais de setecentos filmes por ano, tem uma empresa governamental de apoio, a FilmFinance Corporation, que faz a produção de filmes alternativos, experimentais e menos comerciais possíveis”. (Tradução livre). A produção audiovisual contemporânea encontra-se muito mais vinculada a outras formas de difusão do que à exibição em salas de cinema e cadeias posteriores, como home-vídeo, televisão aberta e TV por assinatura, e que são objeto de interesse e regulação governamental. A produção veiculada nas redes on-line ou por meio de mecanismos diversificados representa a maior parte das imagens em circulação atualmente e que prescindem das formas de proteção estatal. Mas isso não significa que essa produção permaneça alheia ao universo com que se defrontam os filmes produzidos por meio de recursos públicos. A crise de um modelo de cinema – até então hegemônico em um grupo de países – significou a abertura para a produção em outras plataformas, como o caso da explosão do vídeo doméstico na Nigéria a partir dos anos 1980: “a importância da produção de vídeos na Nigéria, entretanto, não deve ser avaliada apenas em termos numéricos. A produção de vídeo é uma reação a um tipo de demanda e a uma situação específica. Uma enorme necessidade de imagens que refletissem a identidade nacional foi responsável pelo desenvolvimento da produção de vídeo como única forma possível de produção de imagens no contexto econômico do país” (BALOGUN, 2007: 198). O fenômeno da Nigéria não é algo isolado e parece apontar que os cinemas nacionais, produzidos por meio de iniciativas governamentais, estejam circunscritos hoje a um número delimitado de países.

39

(1990-1992) foi objeto de intensas negociações entre os vários agentes envolvidos. E

foi nesse momento que um filme brasileiro seria veiculado em uma rede de televisão

antes mesmo de sua estréia nos cinemas: Dias Melhores Virão, de Carlos Diegues, foi

exibido em rede nacional pela TV Globo no dia 16 de fevereiro de 1990, poucos dias

antes da posse de Fernando Collor na Presidência da República.

Diegues, um cineasta cujas origens remontam aos movimentos da esquerda

cinematográfica nos anos 1960, politicamente ativo nos debates sobre o destino do

cinema brasileiro desde então, apresentava um filme no qual adensava questões de

caráter sensível, ao mesmo tempo em que operava uma transição ao modelo

tradicional de subsídio estatal. O eixo central do filme está em Marinalva, uma

dubladora de séries americanas de televisão, que termina por identificar-se com uma

personagem de um seriado cômico sobre o cotidiano de uma família de classe média

nos Estados Unidos. Se o Rio de Janeiro retratado por Diegues no filme é áspero e

duro com seus habitantes, a comédia norte-americana situa-se em outro plano, quase

inatingível: Marinalva desdobra-se entre esses cenários e, decidida, termina por optar

pela imagem idílica veiculada pelo seriado. A forma como Diegues articulou essas

questões reflete muito o contexto vivido naquele momento: crise de produção,

acirramento dos conflitos entre os cineastas, seus filmes e o público e esgarçamento

das relações com o Estado; se o filme realizava um amplo inventário dos fracassos –

afetivos (o relacionamento de Marinalva com o diretor de dublagem, ele mesmo um

cineasta fracassado) mas também políticos e econômicos (o ambiente de inflação alta

e crise; um general aposentado saudoso da ditadura militar que, abandonado pela

família estava sob cuidados de uma vizinha de Marinalva) – procurava superá-los por

meio da assimilação dos dispositivos estéticos e econômicos veiculados pelo filme

norte-americano, opção feita por Marinalva.

Produzido entre os anos de 1988 e 1989 e lançado pela TV Globo em fevereiro

de 1990, Dias Melhores Virão surpreendeu pelo timing: foi exibido dias antes da

extinção da Embrafilme – a produtora principal – e sua exibição posterior nos

cinemas foi marginalizada. A síntese que Diegues realiza no filme não pode ser

descrita como algo novo: a presença do filme norte-americano inviabilizando a

produção nacional, a ascensão da televisão como principal veículo de entretenimento

e a almejada parceria entre os dois veículos já tinham sido motivo de discussão em

muitos filmes anteriores, incluindo alguns do próprio Diegues. A meu ver, o filme

tende a se construir historicamente, situado entre tempos distintos e agindo como um

40

transmissor: observa o esgotamento de um modelo estético e de um padrão de

políticas e desenha um projeto futuro mais pragmático politicamente (não só nas

escolhas feitas pela personagem principal, mas pela parceria realizada com a

televisão) que desaguaria na “retomada” na segunda metade dos anos 1990.40

1.2 - Políticas de cinema no Brasil: um panorama histórico

O marco inicial do apoio do Estado ao cinema no Brasil é um decreto

promulgado por Getúlio Vargas em 1932, que assegurava a exibição de um curta

brasileiro a cada oito filmes estrangeiros exibidos, entre outras medidas, e desenhava

os contornos de uma política que iria se firmar. As justificativas para a promulgação

do decreto ancoravam-se em questões educacionais e morais, e o cinema era objeto de

controle social via nacionalização da censura no governo federal e pelo entendimento

de que o filme teria um potencial cultural passível de normatização.

O timing aqui é interessante, pois a indústria cinematográfica ainda não tinha

desenvolvido todo o seu potencial comunicativo, o que ocorreria especialmente após

os anos 1940, mas o decreto já prenunciava essa possibilidade, além de abrir uma

janela de oportunidades para os principais atores envolvidos. As características

educacionais e culturais intrínsecas ao filme eram objeto de maior interesse estatal,

mas esse fato não anulava o esboço de uma orquestração realizada a partir do alto

sobre toda a indústria cinematográfica. O decreto respondia às reivindicações de

produtores cinematográficos e o Estado apresentava-se como interlocutor dos grupos

interessados, demarcando um espaço institucional no qual esses mesmos atores

podiam interagir: “o sentido interventor do decreto era trazer os conflitos expressos

para uma solução disciplinar, sem mediações e centralizadora” (SIMIS, 1996: 93).

Esse decreto foi o gatilho para novas investidas do Estado no setor de cinema,

propagadas para instituições mais afeitas ao controle social: em 1934 é criado o

40 O filme foi exibido pela Rede Globo de televisão no dia 16 de fevereiro de 1990. O valor fixado para a exibição foi equivalente a 1,5 milhão de ingressos nas bilheterias, o que cobriu os custos de produção do filme. Um artigo publicado em fevereiro de1990 reforçava a função da televisão em assegurar as condições econômicaspara a reprodução do cinema brasileiro: “a importância da iniciativa é que ela abre um novo horizonte para a produção cinematográfica nacional, que parecia condenada ao extermínio devido à falta de verbas do Estado e ao completo desinteresse da iniciativa privada. Dependendo do resultado, no futuro a televisão poderá desenvolver uma função democratizante, até então impensável”. (Cinemin, 61: 18).

41

Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) e em 1939 o Departamento

de Imprensa e Propaganda (DIP), com atribuições vinculadas à censura e à produção

de material cinematográfico ligado aos assuntos governamentais.

O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) foi criado em 1936 com

atribuições no campo da produção e difusão de filmes em escolas; a sua estrutura

poderia ter sido melhor utilizada por produtores e cineastas no desenvolvimento dessa

atividade, mas isso não ocorreu. A sua subutilização ressalta a ausência de uma

relação mais consistente entre o setor de cinema e a área educacional do Estado, ainda

que as políticas de suporte ao primeiro estejam abrigados nessa área.41

O discurso acerca da industrialização do cinema brasileiro e os imperativos

econômicos daí decorrentes sobrepuseram-se à exploração do potencial educacional,

o que impediu a utilização efetiva dos recursos do sistema escolar para reforçar a

indústria, por meio de programas que poderiam estimular a formação de mão de obra,

a produção e difusão de obras não ficcionais e históricas, por exemplo. Apesar de

compartilharem a mesma estrutura institucional, as agências governamentais de

educação e apoio ao cinema no país seguiram trajetórias muito distintas.

Provavelmente o alcance das teses sobre o estatuto da indústria e seus

desdobramentos envolvendo a autonomia do filme brasileiro obscuresceram as

possibilidades contidas no setor educacional do Estado.42

Se a utilização dos recursos educacionais foi obscurecida pelo projeto

industrialista, o mesmo não se aplica aos dispositivos culturais, recurso disponível a

ser mobilizado quando necessário e elemento fundamental de ligação entre diferentes

grupos no interior e fora do Estado.

A criação do Instituto Nacional de Cinema (INC), em 1966, parece ser crucial

nesse debate, não apenas por herdar uma legislação, projetos e experiências

consolidadas, mas por desenhar um formato de política que vai definir a estrutura

central da relação Estado e Cinema no país desse momento em diante. O período

anterior ao INC dispunha de uma legislação já estabelecida, comitês executivos,

41Simis (1996,p. 54) afirma que o INCE poderia ter capitalizado a indústria caso tivesse aproveitado a oportunidade na produção de filmes educativos. Desde então são poucos os projetos que articulam o cinema brasileiro ao setor educacional, prevalecendo uma visão econômica e industrial da atividade, apesar do controle ser feito por tais setores. 42 Essa relação é pouco explorada na literatura sobre Estado e Cinema no Brasil. Autran (2006) confirma a inexistência de um discurso anti-industrial na história do cinema brasileiro, com exceção de um curto período durante o Cinema Novo. O mesmo autor reconhece a continuidade desse discurso independente das crises e dos ciclos de produção.

42

estudos sistemáticos e políticas de estímulo em diferentes áreas que, somados a uma

experiência construída desde o início da indústria de cinema no país, prepararam as

bases para o surgimento das principais instituições de apoio estatal.43

A meu ver, a estrutura criada pelo INC instaura um padrão que foi

reproduzido através do tempo, acionando os seguintes dispositivos:

01) a centralidade conferida à produção de filmes;

02) a limitação de circulação dessa produção;

03) a eleição do Estado como ator hegemônico;

04) a gradual invisibilidade de experiências e instituições alternativas;

05) o predomínio da área educacional/cultural do Estado.

Com diferentes desenhos institucionais e características mais ou menos

distintas, as políticas posteriores ao INC podem variar no alcance, na complexidade,

nos objetivos particulares, mas mantêm os cinco itens acima como invariáveis. Ou

seja, padrões de política persistem e se reproduzem. A criação da Embrafilme em

1969 e sua fusão com o INC em 1975 mantiveram o padrão inalterado: ainda que o

projeto de cada instituição seja um tanto diverso do seu objetivo final, essas

características permanecem as mesmas. O estabelecimento de metas de produção ano

a ano, tendo o circuito de salas de cinema como depositário final, permaneceu

instituição após instituição, política após política, limitando o alcance – comercial e

cultural –do cinema brasileiro. Ao Estado cabia zelar pelo setor, com justificativas

que coubessem no espectro cultural ou econômico, dependendo do êxito do encaixe

entre as burocracias estatais e a área de cinema.44 As experiências de produção,

difusão e exibição alternativas ou mesmo aquelas sem chance de ser contempladas

nesse processo permaneceram isoladas e tiveram os canais de acesso e interlocução

com o Estado gradualmente interditados.45

43Para Autran (2006) e Johnson (1987), a base do suporte do Estado foi formada no período anterior ao INC; Simis (1996) afirma que as experiências anteriores em diversas instâncias – governos estaduais e municipais, por exemplo – têm importância, mas a criação do INC abre perspectiva para o Estado atuar diretamente na área, em vez de apenas propor ou regular indiretamente. Schvarzman (2004) detalha os conflitos existentes entre as agências no interior do Estado,tendo em vista o controle dos assuntos referentes ao cinema: o Ince consolidou-se mesmo diante das investidas das agências de controle e propaganda oficial nos anos 1930/1940, sobretudo pela sua ênfase na questão educacional; é bastante elucidador o fato de que o INC surgiu a partir desta estrutura. 44 As resoluções emitidas pelo INC nos anos 1960 fazem pouca menção às possibilidades que as redes de televisão poderiam oferecer ao cinema; quando feitas, reforçam a polarização entre cinema com potencial cultural e televisão com características de entretenimento e alienação. 45As experiências da Boca do Lixo em São Paulo, do Beco da Fome no Rio de Janeiro e o cinema marginal na passagem dos anos 1960-1970, através dos seus diferentes formatos, diálogos com a

43

Como geralmente ocorre, há aqui uma disputa política – entre diferentes grupos

no interior do cinema brasileiro – para selecionar um conteúdo específico para uma

política, bem como interlocutores dentro da arena estatal: as instituições moldam, mas

também podem ser moldadas. Ou seja, a criação do INC transformou a capacidade

estatal e habilitou grupos para a reprodução de determinadas políticas.

Mesmo nos anos 1990, após o breve interregno das políticas de cinema no

governo Collor (1991-1992), os termos não se alteraram de forma drástica: a Lei do

Audiovisual, promulgada em 1993, confirma essa hipótese. O objetivo da legislação

era proporcionar sustentabilidade ao cinema brasileiro, mas o resultado tem sido o

oposto, ao torná-lo mais dependente dos subsídios públicos; apesar da ideia de

audiovisual estar presente no conceito da lei, a sua estrutura delimita os espaços nos

quais o filme pode circular, inviabilizando a sua reprodução econômica enquanto

indústria. Podemos supor que os primeiros anos da década de 1990 representariam um

marco zero nas políticas de cinema, findo o aporte estatal para a produção de filmes;

essa conjuntura crítica teria condições de gerar um debate renovado acerca das

relações entre Estado, sociedade e cinema no Brasil, mas os resultados confirmam o

impacto das políticas do passado sobre as escolhas subsequentes:

O cenário que se estabelece na década de 90 reafirma uma tendência dos próprios agentes da atividade cinematográfica de um pensamento voltado com demasiada ênfase na produção. Assim, mesmo com a criação de um novo mecanismo de financiamento para o setor, os recursos estão concentrados no custeio da atividade de produzir filmes e não provocam melhorias significativas nas atividades de distribuição e exibição. É, portanto, o restabelecimento do axioma clássico do cinema brasileiro – produzir filmes, mas não ter como fazer com que esses filmes cheguem às telas, enquanto o filme norte-americano ocupa o mercado – emoldurado por um novo cenário. (SILVA, 2009: 92).

A criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em 2001 foi resultado de

quase uma década de experiências com a Lei do Audiovisual, com o setor de cinema

propondo uma visão mais sistêmica do assunto, depois de enfrentar várias crises

relativas à produção e exibição de filmes. Inicialmente a agência foi concebida como

uma matriz envolvendo vários setores do governo, mas sua efetivação de fato ocorre

no Ministério da Cultura. Propostas com essas características têm sido recorrentes

desde os anos 1960, são projetos de criação de agências e estruturas com perfil mais

sociedade e com os mecanismos de produção, foram aos poucos sendo incorporadas pelo discurso oficial. Aqueles que permaneceram distantes do abrigo estatal não sobreviveram.

44

horizontal e com possibilidade de superar o isolamento de uma repartição

governamental singular, mas terminam alocados na área educacional e cultural do

Estado; se as instituições que gerenciam o cinema brasileiro estão assim localizadas,

qual seria o efeito daí decorrente? Ou seja, os arranjos institucionais afetam os

resultados das políticas?

1.3 - “Paridade institucional” e o caso brasileiro

O que essas pesquisas sobre políticas de cinema em contextos diversos nos

informam diz respeito a uma complexa interação que ocorre entre diferentes áreas da

burocracia estatal. Ao estudar a indústria de cinema em dois países – Egito e México

– o cientista político norte-americano Andrew Flibbert notou a importância dessa

variável, ou seja, a burocracia responsável por gerir a política de cinema projeta no

filme valores culturais ou dispositivos econômicos. Desenvolvendo seu argumento, o

autor relata que nos anos 1970 uma poderosa burocracia instalada no Ministério da

Cultura no México, dotada de recursos e autoridade para implementar as políticas de

cinema, permitiu que a indústria local ganhasse autonomia diante das pressões do

mercado. Uma década depois, as posições se inverteram e a área econômica do Estado

passou a gerir tais políticas, dificultando a sobrevivência da indústria. Um processo

semelhante aconteceu no Egito, quando nos anos 1960 o Ministério da Cultura tinha a

prerrogativa das políticas de cinema, proporcionando maior liberdade aos cineastas;

uma década mais tarde ocorreu o desmantelamento do aparato estatal para a área de

cultura, mudança que afastou essa burocracia do setor de cinema, culminando com a

ascensão de interesses comerciais (FLIBBERT, op. cit: 130).

Ao observar essa variação institucional, o autor desloca sua análise para um

estudo de caso de base comparativa entre as indústrias de cinema nos Estados Unidos

e na França, casos emblemáticos não só pela recorrência de modelos também

observados em outros países, mas sobretudo como cotejo bastante elucidativo acerca

dos contrastes das políticas de cinema. Como já observado no início desse capítulo, as

instituições capazes de afetar a indústria de cinema nos Estados Unidos estariam

localizadas no Departamento de Estado e Departamento de Comércio; a regulação

estatal é operada a partir de critérios econômicos, como um assunto desenvolvido no

contexto da indústria de entretenimento. Na França, ao contrário, o Ministério da

45

Cultura tem atribuições, autoridade e prerrogativas legais para produzir e implementar

as políticas de cinema:

The institutional variation that distinguishes French and American approaches to film regulation is significant: It reveals whether regulatory bodies are responsive only to economic criteria, or if their “social purpose” is to promote cultural goals even when doing so entails economic costs. (FLIBBERT, 2007: 27).46

O que o autor ressalta é a importância dessa variável: qual é a instituição

chave para produzir as políticas e quais são suas prerrogativas de fato? Mesmo que as

pressões comerciais sejam intensas, se a instituição estatal cultural gozar de

autonomia, as políticas de cinema com perfil mais ativo tendem a prevalecer,

independentemente dos custos econômicos.

Para tornar seu modelo mais crível, o autor desenvolve um conceito para

explicar as variações nas políticas de cinema, que a seu ver independem do próprio

setor de cinema e dizem mais respeito às interações ocorridas no interior das

burocracias estatais: “institutional parity”, expressão traduzida neste trabalho como

“paridade institucional”.

O conceito procura explicar o relacionamento entre as burocracias econômicas

e culturais, que a partir da estrutura do Estado produzem as políticas de cinema;

assim, quanto maior o grau de “paridade institucional” entre essas burocracias, mais

autonomia da área cultural do Estado para implementar suas normas.

Assim, as políticas são selecionadas independentemente de seu grau de

eficiência econômica, porque os atores considerados estratégicos estariam no

Ministério da Cultura ou em uma arena similar. Ao contrário, em condições de baixo

grau de “paridade institucional”, as instituições estatais culturais são subordinadas às

econômicas, que tendem a definir o conteúdo das políticas, normalmente submetendo-

as aos ditames dos interesses privados.47

O conceito de “paridade institucional” reforça as teses de que as instituições

têm grande peso nos processos das políticas de cinema e de que o relacionamento

46 “A variação institucional que diferencia a abordagem francesa da americana na regulação da indústria do cinema é significativa: isso revela se os órgãos reguladores são sensíveis apenas a critérios econômicos ou se sua “função social” é promover objetivos culturais mesmo que isso signifique ter grandes custos econômicos.” (Tradução livre.) 47 (FLIBBERT, op. cit: 7-10). O conceito de “paridade institucional” serve para examinar a relação entre instituições estatais e a forma como as burocracias operam na produção de políticas.

46

burocrático entre diferentes instâncias do Estado é um elemento importante para

analisá-las.

Dessa maneira, questões como o financiamento público de uma indústria de

cinema, sem a avaliação das condições de sua viabilidade econômica, a criação de

cotas para o filme nacional ou mesmo a possibilidade de influenciar o conteúdo da

produção cinematográfica podem indicar que os fazedores de política com

prerrogativas de fato estão no setor cultural do Estado. Em determinadas situações e

contextos, os atores estatais podem travar relações com os interesses culturais dos

cineastas, isolando o filme dos constrangimentos econômicos:

Officials in state cultural institutions usually advocate an activist role in the oversight of the film sector, while their economic counterparts tend to favor treating filmmaking like all other industries. Much of the institutional story in this account finds high-level leaders wrestling with institutional constraints to achieve their desired policy objectives. (FLIBBERT, 2007: 102) 48

Podemos transpor o conceito de “paridade institucional” para melhor

visualizar as políticas de cinema no Brasil, apontando suas origens e localizações no

interior da burocracia estatal, em uma primeira aproximação com esse panorama

histórico. Ressaltamos que o conceito, assegurado a sua utilidade ao apontar os nexos

entre burocracias, padrões de políticas e conjunto de ideias, apresenta algumas

deficiências: determinados atores estatais podem ser os responsáveis por uma política,

reforçando caracteres econômicos ou culturais, mas nada indica que tal burocracia

consiga implementá-la, pois outras variáveis podem impactar este processo. A

agência governamental pode dispor de recursos e autoridade para implementar seus

projetos, mas outras arenas, seja no interior ou fora do Estado, também podem

dificultar sua execução.

O modelo de Flibbert pode ser visualizado na tabela abaixo:

48(“Funcionários de instituições culturais estatais geralmente defendem um papel ativo na supervisão do setor de cinema, enquanto seus homólogos econômicos tendem a favorecer o tratamento do setor de cinema como outra indústria qualquer. Muito da história institucional nessa narrativa encontra líderes de alto escalão lutando com as limitações institucionais para alcançar as condições de políticas desejadas”). Tradução livre.

47

Tabela 01 – “Paridade Institucional”

a) Baixa “paridade institucional”

“Autoridade Executiva”

Ministério da Economia

Ministério da Defesa

Ministério da Justiça

Ministério das Relações Exteriores

Escritório de Importação e Exportação de Filmes

b) Alta “paridade institucional”

“Autoridade Executiva”

Ministério da Cultura

Ministério da Defesa

Ministério da Justiça

Ministério da Economia

Divisão de Importação & Exportação de

Filmes

Financiamento

Promoção cultural e cooperação internacional

Fonte: FLIBBERT, 2007: p. 98. (Tradução livre.)

A despeito das deficiências apontadas acima, o conceito de “paridade

institucional” permite:

a) identificar uma sequência histórica nas políticas de cinema no Brasil;

b) apontar a localização das agências encarregadas de implementá-las;

c) reforçar os nexos entre as burocracias estatais e os grupos interessados na

reprodução das políticas;

d) indicar um padrão característico e/ou um mecanismo de reprodução das

políticas.

O tipo de autoridade estatal que delibera sobre a política é relevante na medida

em que afeta o comportamento dos atores, indicando a eles uma posição a ser ocupada

e um conjunto de ideias e valores a serem incorporados e difundidos. Como exposto

na tabela 02, a hegemonia do campo cultural do Estado nos assuntos de cinema afetou

historicamente esta indústria. Frequentemente incorporado pelos principais atores do

setor, sejam eles burocratas ou cineastas e produtores, o projeto de industrialização –

48

e como decorrência a autonomia do filme brasileiro dos subsídios estatais – raramente

circulou de forma efetiva junto ao setor econômico/empresarial do Estado.

Muitas das políticas foram planejadas para serem alocadas e gerenciadas pela

burocracia econômica, o que na visão dos gestores poderia imprimir um ritmo

empresarial ao cinema brasileiro, apesar de paradoxalmente serem implementadas

pela área cultural. Desde o começo dos anos 1960 sucessivas políticas e agências são

constituídas por meio de uma interação entre cineastas, como grupo de pressão, e os

setores econômicos e culturais do Estado, mas são as forças do último que acabam

prevalecendo:

The institutional balance reflects historical struggles over the scope and domain of legitimate state authority. It has a decisive effect because it determines the very basis on which policy choices are made, and it creates conditions for the perpetuation of one set of interests over all others. (FLIBBERT, 2007:142) 49

Conforme enfatizamos acima, a criação do INC não ocorreu num vazio

institucional, pois herdou práticas, rotinas e padrões anteriores: a novidade é a forma

como o Estado assimilou a questão da industrialização do cinema de forma mais

efetiva e, a meu ver, tardia em relação à história econômica do cinema mundial. O

INC surgiu incorporando o INCE, o que denota a impregnação ou sobreposição de

burocracias estatais, ainda que a concepção original do segundo tenha perdido

validade no debate industrialista que se fazia naquele momento.

Não podemos afirmar que a política desenhada a partir do INC seja

incremental em relação ao INCE e mesmo ao primeiro decreto formulado em 1932.

Se este último procurou sistematizar uma cadeia inteira no plano cinematográfico,

constituindo o Estado como interlocutor principal, por sua vez o INCE abriu de fato

uma nova janela para a atuação de cineastas e produtores.50 O novo instituto, por

outro lado, expandiria a a atuação do Estado em direção a novos caminhos e a tornaria

mais efetiva daquele momento em diante.

49 “O equilíbrio institucional reflete lutas históricas sobre o alcance e domínio da autoridade estatal legítima.Isso tem um efeito decisivo pois determina a própria base sobre a qual as escolhas acerca das políticas são feitas e cria condições para a perpetuação de um conjunto de interesses sobre todos os outros.” (Tradução livre.) 50 O INCE não era apenas mais um órgão burocrático em meio à modernização administrativa deslanchada pela Era Vargas, mas tinha uma atuação intensa: centenas de escolas possuíam aparelhos de exibição em 16mm; produziam e difundiam seusfilmes; treinavam técnicos e formavam mão de obra. As verbas destinadas à produção de material audiovisual com finalidades educativas poderia ter capitalizado produtoras caso investissem neste tipo de filme (SIMIS, 1996).

49

Se a idéia de um cinema educativo produzido por uma agência governamental

tinha se tornado anacrônica e a tendência apontava para as perspectivas de

industrialização, ocupação de mercado e comunicação com um público de massa, os

propósitos educacionais não foram inteiramente descartados, mesmo porque o

Ministério da Educação continuou abrigando as agências de suporte ao cinema. E a

resiliência da estrutura do INCE durante trinta anos (o instituto foi criado em 1936 e

incorporado ao INC em 1967) apresenta um forte indício de uma alta paridade

institucional no caso brasileiro:

Os anos iniciais do Ince colocam em questão os limites de sua atuação no interior do próprio governo e, por extensão, as fronteiras entre o repertório educativo e a propaganda. Nesse sentido, é necessário observar que o Instituto, ao contrário dos congêneres italiano e alemão, não foi absorvido pela propaganda, mantendo-se conforme a diretiva original, o que parece indicar não apenas o prestígio de Gustavo Capanema e seu Ministério, ou o carisma de Roquette-Pinto, mas as faces múltiplas do Estado Novo, já que num regime autoritário seria de esperar que a propaganda levasse a melhor. Que isso não tenha acontecido no Brasil, ao longo dos anos decisivos posteriores ao golpe de 1937, e apesar das pressões de Lourival Fontes, chama atenção não apenas para as fraturas do poder central, mas também para a crença partilhada pelo próprio presidente nos poderes modeladores da educação e no respeito pelo saber consagrado, ao contrário do desprezo que devotam à cultura, por exemplo, os nazistas. (SCHVARZMAN, 2004: 243).51

O INCE evitou transitar em outras áreas do Estado, uma vez que os assuntos

de cinema envolviam diversos ministérios e especialmente o setor ligado à

propaganda oficial. A ênfase do Instituto na produção de filmes educativos atendia à

necessidade de autonomia e independência diante de outros setores no interior do

Estado dispostos a controlá-lo, mas também indicava uma gradual habilitação da

burocracia educacional em gerenciar os assuntos ligados ao cinema brasileiro. A

incorporação do INCE ao recém-criado Instituto Nacional de Cinema em 1967

apontava para o declínio do projeto de um cinema educativo, embora o Ministério da

Educação continuasse a abrigar as agências de cinema recém-criadas.52

51 Para a autora o Ince, mesmo durante o Estado Novo, evitou produzir filmes de propaganda enfatizando o seu caráter exclusivamente educacional; por meio dele o Ministério da Educação e Saúde reforçava sua vocação modernizadora. 52 Alberto Cavalcanti foi convocado durante o segundo governo Vargas para produzir um estudo sobre a viabilidade da industrialização do cinema brasileiro; Humberto Mauro, na época dirigindo o INCE, não acreditava na produção de filmes no modelo industrial (SCHVARZMAN, 2004: 232).

50

Tabela 02 – “Paridade Institucional”: políticas de cinema no Brasil.

Agência Ano de criação Localização prevista Localização efetiva

Geicine 1961 Presidência da

República

Ministério da

Indústria e Comércio

INC 1966 Ministério da

Indústria e Comércio

MEC

Embrafilme 1969 MEC MEC

Concine 1975 MEC MEC

FCB 1987 Ministério da Cultura Minc

Lei do Audiovisual 1993 ------- Minc

Gedic 2000 Casa Civil da

Presidência da

República

Minc

Ancine 2001 Ministério do

Desenvolvimento, da

Indústria e Comércio

Minc

Fontes: Geicine – Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (Decreto 50.278, 17/02/1961); INC –

Instituto Nacional de Cinema (Decreto Lei n. 43, 18/11/1966); Embrafilme – Empresa Brasileira de

Filmes (Decreto Lei n. 862, 12/09/1969); Concine – Conselho Nacional de Cinema (Decreto Lei n.

77.299, 16/03/1976); FCB – Fundação do Cinema Brasileiro (Lei n. 7.624, 05/11/1987), Lei do

Audiovisual (Lei n. 8685, 20/07/1993); Gedic – Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria

Cinematográfica (Decreto, 13/12/2000), Ancine – Agência Nacional de Cinema (MP 2.219,

05/09/2001).

A hegemonia do Ministério da Educação e Ministério da Cultura na gestão das

políticas de cinema sugere a existência de um emparelhamento entre essas burocracias

e o setor de cinema: podemos notar que, se a instituição tem a possibilidade de moldar

os atores, esses vão reagir a partir de um conjunto determinado de regras ou valores.

A prevalência de argumentos culturais para a justificativa de apoio estatal ao filme no

Brasil adequa-se a essa estratégia, seja por parte das burocracias, seja por parte dos

cineastas.

A ocorrência desse ajuste nos permite observar:

a) seu desdobramento histórico, uma vez que tal argumento é mobilizado em

diferentes períodos e contextos políticos e econômicos. Apesar de sua origem

remontar aos anos 1960, esse dispositivo continua a operar depois dessa

época: por exemplo, nos anos 1990, quando a iniciativa privada participava do

51

processo por meio das leis de incentivo fiscal, justificativas culturais eram

recorrentes entre cineastas e gestores da política, reforçando o ajuste;

b) a política que foi organizada – desde os anos 1960 – em torno da produção

regular de filmes, esquema que foi cristalizado e propagado, induziu os atores

a responder a essa política, dificultando a ascensão de temas alternativos nesse

debate. A meta de produzir uma quantidade específica de filmes ano a ano tem

estado presente nos projetos que envolvem todos esses atores,

independentemente de critérios como viabilidade econômica e capacidade de

circulação pública dessa produção. Essas características podem ser

encontradas na Embrafilme dos anos 1980, bem como entre os gestores da Lei

do Audiovisual nos anos 1990.

Essa circulação entre vetores culturais e econômicos na indústria do cinema

não se restringe ao caso brasileiro, conforme notamos na discussão inicial deste

capítulo. A meu ver, a ênfase no aspecto cultural deve-se sobretudo a essa interação

entre instituição e cineastas, e o eixo articulador foi o interesse de ambos os polos na

manutenção desse argumento. Durante os últimos cinquenta anos, diversos relatórios,

documentos e propostas foram elaborados com o propósito de industrializar o cinema

brasileiro e abrir possibilidades para a sua sustentabilidade sem o suporte estatal.53 O

que de imediato nos aparenta ser paradoxal pode ser explicado pelas características

estruturais da indústria de cinema, que exige investimentos constantes para a sua

reprodução, mas a permanência do cinema brasileiro foi garantida por meio do acordo

referido acima. Ou seja, com a criação da primeira agência governamental nos anos

1960 cria-se também uma demanda para a continuidade e consolidação de suas

políticas, tanto entre o público interno como entre seus beneficiários imediatos. A

política também tem um modelo de organização para o setor de cinema que

gradualmente é incorporado pelos cineastas.

A “paridade institucional” nesse caso induziu a indústria de cinema no Brasil a

privilegiar as justificativas culturais e o ajuste foi realizado uma vez que tais

argumentos – o filme como portador de características ligadas à identidade da cultura

nacional – já estavam em circulação. Dos anos 1960 em diante os argumentos

econômicos ligados à industrialização e à sustentabilidade do filme brasileiro seriam

53 Como exemplo podemos citar o Projeto Brasileiro de Cinema (1973), a Política Nacional de Cinema (1986), o Relatório Embrafilme/BNDES (1987), o documento final do III Congresso Brasileiro de Cinema (2000), o projeto do GEDIC em 2001, entre outros.

52

debatidos de forma contínua, mas o encaixe fundamental já tinha sido realizado e a

arena selecionada para tal ajuste foi a área cultural do Estado.

Essa relação entre o setor de cinema e o Estado no Brasil tem um histórico

mais amplo, se levarmos em consideração o ano do primeiro ato legal de proteção ao

filme brasileiro (1932) e a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (1936),

medidas legais que indicavam um ajuste entre ambas as partes. Uma perspectiva

“culturalista” percorria as instâncias burocráticas do Estado e encontrava ressonância

no setor de cinema desde os anos 1930; tal fenômeno valorizava os elementos

educativos e de propaganda que poderiam ser difundidos pelo filme.

No primeiro governo Vargas, os assuntos de cinema eram subordinados ao

Ministério da Educação e Saúde e aos departamentos envolvidos com o controle

social e censura, que se mantiveram ao longo dos anos seguintes como as instâncias

dotadas de prerrogativas para atuar nesse setor. A reprodução desse modelo e a

valorização da perspectiva “culturalista” indicavam que o Estado não tinha interesse

no desenvolvimento econômico da atividade, mantendo o cinema brasileiro em um

território com fronteiras delimitadas e adaptado aos interesses industriais e

econômicos dos cineastas.54

A possibilidade de independência e autonomia do filme brasileiro seria

decorrente de sua industrialização. Tal tese unificou a maior parte dos setores do

cinema no país. O Estado teria um papel fundamental como elemento indutor desse

processo, impulsionado por questões como a evasão de divisas produzida pelo filme

estrangeiro no país, pela formação de mão de obra e acesso à tecnologia, propostas

encaminhadas por cineastas e produtores. A ocupação do mercado pelo produto

nacional pode ser balizada por critérios econômicos, mas no caso do filme os

dispositivos culturais também são mobilizados: educação, identidade, descolonização

cultural são recorrentes no caso brasileiro desde os anos 1950, mas o amálgama entre

cultura e economia nem sempre foi atingido:

Ocorreu um verdadeiro curto-circuito ideológico na atividade cinematográfica brasileira nos anos de 1970, pois ao se afirmar o domínio do mercado interno como principal objetivo a ser alcançado, não se justificava tal domínio por motivos eminentemente econômicos mas sim pelos culturais, até porque os resultados naqueles termos muitas vezes ficavam aquém do

54 Arthur Autran chama a atenção para a presença da perspectiva “culturalista” desde os anos 1930. A reivindicação de medidas de cunho protecionista para a indústria de cinema levou os cineastas e produtores a aproximarem-se do Estado e incorporar esse dispositivo (AUTRAN, 2007).

53

esperado; porém, quando se tratava de discutir o valor cultural da produção, isto era interdito, pois ela valia pela conquista do mercado; destarte, não há discussão possível sobre o cinema brasileiro, pois suas principais justificativas giram em torno de si mesmas, o que, de um ponto de vista mais geral, impedia a renovação do diálogo com a sociedade. (AUTRAN, 2009: 62).

Na medida em que a estrutura estatal se tornava mais complexa nos anos

1960, era obrigada a lidar com dois fatos: o crescente prestígio cultural do cinema

brasileiro – reforçado pela repercussão internacional do cinema novo – e uma

legislação incapaz de arrefecer a presença do filme importado no mercado. Nesse

contexto, o filme brasileiro não poderia ser viável economicamente e os argumentos

de base “culturalistas” tendiam a prevalecer; nesse caso a argumentação econômica é

mantida para a manutenção de uma autoimagem projetada pelo setor de cinema,

indicando que em um futuro próximo a indústria poderia ser viável, desde que fossem

atendidos determinados requisitos, mas enquanto isso não ocorresse valeria o

dispositivo cultural emanado pelo filme. Muito mais do que um “curto-circuito

ideológico” entre economia e cultura, o ajuste dos anos 1960 serviu para consolidar

essa posição.

Mas por que então as políticas de cinema no Brasil enfatizaram tão fortemente

os mecanismos de produção e não os de circulação, debate e difusão?

Por que, mesmo apoiado majoritariamente por recursos públicos, o Estado e o

setor de cinema não se preocuparam com o resultado final da política, seja em termos

de rendimento econômico, seja em possibilidades culturais ou educacionais?

1.4 - O neoinstitucionalismo histórico

O neoinstitucionalismo tem despertado muita atenção nas ciências sociais e

em especial na ciência política desde os anos 1980, fenômeno que à primeira vista

aparenta ser redundante, pois o estudo das instituições tem uma longa trajetória

histórica no pensamento político, sobretudo na análise dos aspectos formais do

governo e nos dispositivos jurídicos que o sustentam. Por que então esse súbito

interesse que as teorias neoinstitucionalistas despertam? Evidentemente, tal atenção

reflete o crescimento e a complexidade do Estado e das agências responsáveis por

implementar políticas públicas e a forma como esses fenômenos formatam a vida

contemporânea, mas acreditamos que outros fatores também sejam importantes para

54

explicar a virada institucionalista que ocorreu nos anos 1980.55

Esse interesse renovado pelo institucionalismo tem seu marco inicial em um

artigo publicado em 1984 por James March e Johan Olson; nele, os autores

reforçavam as complexas interações existentes entre Estado, suas instituições e os

processos sociais, um fenômeno cujo estudo demandaria um esforço multidisciplinar.

Esse institucionalismo proposto pelos autores conferia um novo status às instituições

políticas enquanto processos autônomos e permeados por diversos dispositivos, dando

destaque às regras informais que modelam o comportamento humano.56 Em um texto

escrito cerca de vinte anos após a publicação do primeiro, os autores beneficiavam-se

da difusão de suas teses, refinando os conceitos originais: a vida institucional tem

uma lógica própria e é sobretudo endógena, mas adensada por sua trajetória histórica.

Nesse caso, os atores não seriam os indivíduos racionais e calculistas da teoria

econômica então prevalecente, nem simples executores de tarefas e regras

institucionais; a ideia de interação e plasticidade seria algo recorrente entre instituição

e indivíduo, reforçando um padrão já consolidado nos estudos neoinstitucionalistas

(MARCH & OLSEN, 2006).

55Se as instituições são o tema clássico da ciência política, estudado por sucessivas gerações de pensadores como Hobbes, Montesquieu, Rousseau, Maurice Duverger e Weber, por que todo este barulho em torno do neo-institucionalismo? Essa pergunta é feita por, THELEN, STEINMO & LONGSTRETH (1992) endossando uma discreto questionamento existente na disciplina com o retorno de um tradicional objeto de pesquisa. Guy Peters confronta o velho institucionalismo – esse projeto tinha pressupostos normativos ao indicar a engenharia institucional apropriada a um específico sistema de governo com o novo, preocupado com as complexas formas de interacão entre instituição e sociedade. (PETERS, 2003). A crise das instituições políticas a partir dos anos 1970 é outro fenômeno indicado como deflagrador dos estudos neo-institucionalistas.56 De Césaris (2009) ressalta que a publicação do texto de March & Olsen em 1984 foi fundamental para o nascimento do neoinstitucionalismo, procurando superar as abordagens “comportamentalistas” e marxistas na ciência política; Peters (2003) afirma que os autores procuraram fundar uma nova teoria política de base empírica e nomearam esse projeto teórico. O texto é considerado um clássico da teoria política contemporânea ao incorporar questões acerca da complexidade da vida política e a incerteza quando aos resultados produzidos: “In recent years, however, a new institutionalism has appeared in political science. It is far from coherent or consistent; it is not completely legitimate; but neither can it be entirely ignored. This resurgence of concern with institutions is a cumulative consequence of the modern transformation of social institutions and persistent commentary from observers of them. Social, political, and economic institutions have become larger, considerably more complex and resourceful, and ‘prima facie’ more important to collective life. Most of the major actors in modern economic and political systems are formal organizations, and the institutions of law and bureaucracy occupy a dominant role in contemporary life” (MARCH & OLSON, 1984: 734) “Em anos recentes um novo institucionalismo tem aparecido na ciência política. Está longe de ser coerente ou consistente e não é completamente legítimo; mas nem por isso pode ser inteiramente ignorado. Essa ressurgência de questões com instituições é uma consequência cumulativa das modernas transformações de instituições sociais, e o comentário persistente a partir de sua observação. Instituições sociais, políticas e econômicas têm se tornado grandes e consideravelmente mais complexas e poderosas, e “prima facie” mais importante na vida coletiva. A maioria dos principais atores do sistema econômico e político moderno são organizações formais e as instituições legais e a burocracia ocupam um papel dominante na vida contemporânea.” (Tradução livre.)

55

Cerca de um ano após a publicação do texto de March & Olsen, um novo livro

sumarizaria o debate então aberto: Bringing the State Back In (SKOCPOL, EVANS ,

RUESCHEMEYR, 1985), que realiza um panorama nos diversos campos de estudo

no interior do neoinstitucionalismo e incorporava de forma mais intensa a atuação do

Estado, de suas políticas e burocracias e o papel da história no resultado dos arranjos

políticos. Não só as crises econômicas e políticas que ocorreram na virada dos anos

1960 e 1970 traziam o Estado para o centro da análise, mas pesquisadores, sobretudo

na Europa continental, manifestavam seu desagrado com os modelos teóricos então

utilizados na ciência política. Raramente incorporado nas análises anteriores, o Estado

era redescoberto como importante ator que afetava a cultura política e a constituição

de identidades sociais, encorajando grupos e desestimulando outros, tornando possível

o debate de determinados assuntos e marginalizando temas específicos.

A consolidação desse novo projeto teórico envolveu a construção de uma

narrativa que dispunha no tempo sucessivas escolas de pensamento na qual a

supremacia de um modelo implicava automaticamente a superação do anterior: a

literatura que endossa o neoinstitucionalismo geralmente o explica por blocos

cronológicos, ativando uma trajetória linear e cumulativa.57 Dessa maneira podemos

argumentar que uma dimensão lógica foi incorporada pela literatura

neoinstitucionalista para explicar o seu surgimento, construindo uma justificação

linear a partir de uma dimensão histórica compartimentalizada: ao velho

institucionalismo presente na teoria política sobrepõe-se uma revolução

comportamental ocorrida nos anos 1940, que por sua vez é superada pelas teses do

novo institucionalismo. Podemos sumarizar esses argumentos na tabela 03.

Argumentos como a crise econômica dos anos 1970, a expansão das agências

governamentais por meio do “Welfare State”, a emergência da diversidade política

nos anos 1960, a crise das políticas públicas na resolução dos problemas sociais, uma

nova geração de pesquisadores origináriosda Europa continental – e menos afeita às

tradições de uma sociedade civil forte, a exemplo dos Estados Unidos e da Inglaterra

– são mobilizados para explicar a emergência do neo-institucionalismo nas ciências

sociais contemporâneas. A vertente histórica dessa escola é uma consequência do

57 “Todos nós somos institucionalistas agora”, afirmaram Paul Pierson e ThedaSkocpol em 2002, confirmando o renovado interesse dos pesquisadores no estudo das instituições políticas e seu amplo escopo de influência, indo do legislativo aos movimentos sociais. Essa formulação, para além de reforçar os méritos desse projeto teórico, também delimita espaços metodológicos no interior da ciência política (PIERSON; SKOCPOL, 2002: 706).

56

interesse pelo Estado e pelos mecanismos de formatação dos resultados políticos. 58

Criticando o padrão interpretativo do comportamentalismo, visto como

anacrônico e incapaz de explicar a real distribuição de poder em uma dada

comunidade política, o novo institucionalismo também afastava-se das leituras

neomarxistas dos anos 1970; embora esses últimos tenham sido importantes por

deslocar o interesse da análise para a atuação do Estado, a explicação continuava a ser

considerada como insuficiente e por demais estruturante. Se a instituição era o

elemento ausente nas explicações anteriores, a literatura neoinstitucionalista surgia

buscando entender as disparidades nos resultados políticos tanto entre países distintos

quanto no interior de um único caso, ampliando o nível de análise.59

58O neoinstitucionalismo tem sido compartimentalizado em três núcleos: um deles diz respeito às teorias de base econômica que vinculam o comportamento dos atores a critérios utilitaristas e estratégicos (neoinstitucionalismo de escolha racional); outro ligado às práticas e normas culturais que explicam o comportamento dos atores a partir da forma como as instituições reproduzem e essas mesmas práticas (neoinstitucionalismo sociológico); e o institucionalismo histórico, que procura explicar as decisões políticas como resultado das escolhas realizadas no passado. (DE CESARIS, 2009; HALL, 2003; PETERS, 2003). O renovado interesse pelas instituições estatais recebe também um tratamento cronológico: há um primeiro momento dessas teorias que é denominado “state-centered”; nesse caso o Estado recebe um foco analítico privilegiado, capaz de explicar a natureza das políticas governamentais; um segundo momento, denominado de “policy-centered”, apresenta uma interpretação mais equilibrada na relação entre Estado e sociedade. Essa segunda abordagem também é conhecida como “Tocqueviliana”, e ocupa-se da cultura política e dos mecanismos pelos quais o Estado produz e habilita poderes em determinados grupos sociais. Na primeira abordagem havia um debate entre a sociologia histórica e a literatura neomarxista dos anos 1970; no segundo, uma revalorização dos estudos de Max Weber.59 Os primeiros estudos neoinstitucionalistas enfatizavam a variação no comportamento político e na distribuição de recursos, indicando que a explicação solicitava um escopo maior de entendimento a partir de um nível de análise institucional. O Estado não era um árbitro neutro dos interesses em jogo, como pensavam os comportamentalistas, e nem mero suporte para expressão de classe, como enfatizava a literatura neomarxista: “explaining this persistence of cross-national diferences despite common challenges and pressures was a central theme in the work of the early new institutionalists, and this implied a shift in emphasis on both na empirical and a theoretical level. Criticizing the ahistorical approach of traditional interest-groups theories and Marxist analysis alike, these theorists wanted to know why interest groups demanded different policies in different countries and why class interests were manifested differently cross-nationally.” (THELEN; STEIMMO, 1992: 05). “Explicar a persistência de diferenças dentro do espectro nacional, a despeito de desafios e pressões comuns, foi um tema central na obra dos primeiros neo-institucionalistas e isso implicava uma alteração na ênfase seja no nível teórico quanto no nível empírico. Criticando a abordagem ahistórica da tradicional teoria dos grupos de interesse e também a análise marxista, esses teóricos procuraram saber porque grupos de interesse demandavam políticas diferentes em diferentes países e porque interesses de classe eram expressos de formas diferentes em nível nacional”. (Tradução livre.)

57

Tabela 03 – Dimensões da explicação institucional em Ciência Política

Velho institucionalismo Comportamentalismo Novo institucionalismo

Ocorrência temporal

Até 1940 1940-1970 A partir de 1980

Disciplinas envolvidas

Filosofia política, Direito Psicologia, Ciência Política Sociologia, Antropologia, Economia, Ciência Política

Principais linhas de argumentação

Ênfase nos atributos formais das instituições políticas para explicar resultados obtidos. Indicação de engenharia política apropriada para cada sistema de governo.

Ênfase no comportamento político observável dos atores. Microprocessos, pressupostos individualistas. Estado é neutro e coordena os diferentes interesses presentes na sociedade. Abordagem centrada na sociedade.

Explicação centrada no Estado. Estado formata interesses que não são mero reflexo da sociedade. Interação complexa entre atores sociais e instituições estatais. Decisões refletem normas e valores. Macroprocessos com valorização da história.

Metodologia e técnicas de pesquisa

Exame de regras, leis e atos administrativos do Estado; abordagem normativa.

Técnicas de análise estatística e computacional. Método dedutivo via hipóteses testáveis.

Método indutivo a partir da observação histórica. Método comparativo com pequeno número de casos.

Capacidade explicativa

Dificuldade em explicar fenômenos políticos do século XX: democracia de massas, nazismo, totalitarismo.

Perda da unidade disciplinar. Diversidade política e crise econômica/social nos anos 1960 indicavam desigualdade de poder entre grupos.

Determinismo estrutural; dificuldade em explicar a autonomia dos atores.

Elaborado a partir de: DE CÉSARIS (2009); HALL (2003); IMMERGUT (1998); MARCH & OLSEN (1984); MARCH & OLSEN (2006); PERES (2008); PETERS (2003); PIERSON & SKOCPOL (2002); ROCHA (2005); THELEN (1999).

Se foi reconhecida a relevância do papel das instituições – e o

reconhecimento de tal fato não seria mais somente uma batalha no interior do campo

da ciência política contemporânea – era necessário avançar além do pressuposto que

objetivos e estratégias dos atores seriam o objeto a ser moldado, mas também o

ambiente político que os circundava também seria alvo de mudança.

A partir dessas duas premissas básicas – o peso das instituições e a ação do

Estado na produção de assimetrias de poder – estrutura-se a corrente histórica do neo-

institucionalismo. Surgida nos anos 1980 ao redor de pesquisadores vinculados como

state-centered, essa abordagem tinha como fundamento central a análise das lutas

políticas e os dispositivos com os quais os grupos ganham e perdem poder. Dessa

maneira, não é somente relevante o papel das instituições, mas principalmente a

forma como ocorrem as interações políticas entre diversos atores localizados em uma

58

longa escala temporal, e não apenas em um ponto isolado no tempo.60

Podemos sumarizar as teses principais do neoinstitucionalismo histórico em

cinco grandes eixos61, conforme disposto abaixo:

01) Dinâmica do tempo e da história: considerado um ponto consensual entre

os pesquisadores, a dimensão temporal e o peso atribuído a ela têm

caracterizado as pesquisas. Dessa maneira, o estudo de uma instituição ou

política não pode ser desvinculada de seu desdobramento temporal e de

uma ampla descrição histórica. O pressuposto básico afirma que as

decisões políticas tomadas na criação de uma instituição ou política têm

efeitos que se prolongam no tempo. Dessa afirmação desdobram-se dois

enunciados: a importância da história e persistência de um legado de

políticas prévias com efeitos subsequentes. Isso ocorre porque a

capacidade estatal transforma-se a partir da instauração de uma dada

política, habilitando grupos, afetando a identidade social, distribuindo

poder e acesso ao processo decisório. Dessa maneira, o estudo não pode

apenas prescindir de uma densa descrição histórica, recurso utilizado para

investigar o processo formativo da instituição/política e dos dispositivos

que são mobilizados com o passar do tempo, gerando mais estabilidade e

equilíbrio do que rupturas. O pesquisador deve estar disposto a um

constante movimento no tempo: a opção pela descrição histórica não

significa olhar para fatos isolados no passado, mas observar o

desenvolvimento de um processo e os efeitos políticos dele resultantes.

60 O neoinstitucionalismo histórico agrega de início os pesquisadores vinculados à perspectiva “state-centered” (Theda Sckopol, Perry Anderson, Michael Mann, entre outros) com uma sociologia macro-histórica: “the first of theses authors tended to be historians and sociologists, but they were soon joined (and sometimes preceded) by numerous political scientists in comparative politics and international relations. Over time, their self-identification changed from state-centered structuralists to historical institutionalists”. (LEVI, 2002: 37) “Esses primeiros autores tendiam a ser historiadores e sociólogos, mas eles logo foram seguidos (e em algumas vezes precedidos) por numerosos cientistas políticos em política comparada e relações internacionais. Com o passar do tempo, a sua autoidentificação mudou de estruturalistas ‘state-centered’ para institucionalistas históricos.” (Tradução livre.) 61Apesar da diversidade metodológica e da plasticidade na utilização de conceitos centrais, entre os neoinstitucionalistas históricos há um consenso acerca dessa estrutura de pesquisa. (PETERS, KING 2005; MAHONEY, SCHENSUL, 2006; SANDERS, 2006; THELEN, 1999; STEINMO, THELEN, LONGSTRETH, 1992; PIERSON, SKOCPOL, 2002; PIERSON, 2000; PIERSON, 2004; SKOCPOL, 1992; IMMERGUT, 1998);

59

Assim, uma perspectiva temporal está no centro da análise.62

02) Dependência de trajetória: a tese sobre a importância da história culmina

no processo denominado dependência de trajetória: uma política, quando

instituída, gera determinados efeitos que se prolongam no tempo,

dificultando o retorno para as alternativas preteridas no momento

formativo de políticas e instituições. Encontramos nessa definição outro

ponto consensual na literatura do neoinstitucionalismo histórico: a

dependência de trajetória é um elemento importante na vida política, com

ocorrência regular. As divergências se dão nos mecanismos e dispositivos

elencados para explicar a ocorrência desse fenômeno, que podem ser

muito variados. Geralmente o ponto de partida da análise situa-se em um

momento crítico (ou conjuntura crítica), no qual as oportunidades estão

abertas para a mudança institucional. Escolhida a política, dado o passo

em uma direção particular, fecham-se as alternativas e uma dinâmica de

autorreforço tende a ocorrer, dificultando o retorno ao ponto inicial.

Admite-se uma lógica de equilíbrio e estabilidade institucional com a ideia

de mudança incremental: mudam-se as condições, mas as instituições

ganham novas camadas, sem alterar drasticamente suas formas.63

62O tempo e sequência dos fatos são relevantes para sabermos não apenas o que ocorreu, mas quando e como: “historical institutionalis taddress big, substantive questions that are inherently of interest to broad publics as well as to fellow scholars. To develop explanatory arguments about important outcomes or puzzles, historical institutionalists take time seriously, specifying sequences and tracing transformations and processes of varying scale and temporality. Historical institutionalists likewise analyze macrocontexts and hypothesize about the combined effects of institutions and processes rather than examining just one institution or process at a time. Taken together, these three features – substantive agendas, temporal arguments, and attention to contexts and configurations – add up to a recognizable historical-institutional approach that makes powerful contributions to our discipline’s understandings of government, politics, and public policies” (PIERSON, SKOCPOL, 2002: 695-696). “Institucionalistas históricos direcionam questões grandes e substantivas que são de interesse inerente para grandes públicos, bem como para outros estudiosos. Para desenvolver argumentos explicativos sobre os resultados importantes ou quebra-cabeças, institucionalistas históricos levam o tempo a sério, especificando seqüências e transformações de rastreamento e processos de escala variável e temporalidade. Institucionalistas históricos também analisam macrocontextos e formulam hipóteses sobre os efeitos combinados das instituições e processos ao invés de examinar apenas uma instituição ou um processo de cada vez. Juntas, essas três características - agendas substantivas, argumentos temporais e atenção aos contextos e configurações - somam-se a uma abordagem histórico-institucional reconhecível que faz contribuições poderosas para a nossa disciplina no entendimento do governo, da política e de políticas públicas.” (PIERSON, SKOCPOL, 2002: 695-696). (Tradução livre.)63Apesar das divergências sobre os processos do passado que afetam o futuro, há um alto grau de consenso sobre a ocorrência de dependência de trajetória na vida política: “in political Science and sociology, path-dependent researches have questioned prominent modes of explanation that assume “large” outcomes necessarily have “large” causes, that ignore issues of timing and sequence, and that assume rational actors will select outcomes that are optimal for their long-run interests. Research on path dependence has thus sought to put historical analysis on a firmer social-science footing, and in doing so it has focused attention on a host of new explanatory concerns, such as the role of chance,

60

03) Definição e papel da instituição: se há consenso sobre a influência que a

instituição exerce no jogo político e sobre elas serem produto de processos

históricos concretos, o mesmo não se aplica às suas definições, que são as

mais amplas possíveis: por exemplo, as agências podem ser as

responsáveis por implementar uma determinada política, as regras podem

ser formais ou informais, ou até os acordos podem ser verbais; pode haver

muita variação nas regras de conduta, nas regras do jogo, nos padrões de

comunicação humana, nas convenções, legislaturas, códigos de

linguagem, etc. Para a literatura do neoinstitucionalismo histórico, as

instituições podem servir como filtros, providenciando um vocabulário,

modelos morais e cognitivos e uma estrutura de ação para determinados

atores políticos. 64

04) Ideias: a literatura enfatiza o papel das ideias no mundo político: políticas

não envolvem apenas poder e vantagens materiais, mas sobretudo ideias.

Elas servem para mobilizar grupos em torno de uma política, criam

sistemas discursivos que enfatizam os problemas e instrumentos para sua

solução, envolvem um aprendizado social e sua reprodução junto aos

integrantes de um determinado grupo político. As ideias estão em um

fluxo contínuo entre Estado e sociedade, atuando nas duas direções.65

agency, timing, particular events, and the overall methodology of temporality” (MAHONEY, SCHENSUL, 2006: 458). “Em ciência política e sociologia, os pesquisadores de dependência de trajetória têm questionado os modos de explicação hegemônicos que consideram que os grandes resultados têm necessariamente grandes causas e ignoram questões de tempo e sequência, concluindo que os atores racionais devem selecionar resultados que são ótimos para seus interesses de longo-prazo. Pesquisadores de “path dependence” têm procurado colocar a análise histórica em fundamentos mais firmes na ciência social e fazendo isso têm focado a atenção a novas questões explicativas, tais como o papel do acaso, da agência, do tempo, de eventos particulares e de toda uma metodologia de temporalidade.” (Tradução livre.) 64 Outro papel atribuído às instituições diz respeito ao contexto no qual atuam os atores políticos: “for historical institutionalists the idea that institutions provide the context in which political actores define their strategies and pursue their interests is unproblematical. Indeed, this is a key premise in historical institutional analysis as well. But historical institutionalists want to go further and argue that institutions play a much greater role in shaping politics, and political history more generally, than that suggested by a narrow rational choice model” (THELEN, STEINMO 1992: 07). “Para os institucionalistas históricos a ideia de que as instituições fornecem o contexto em que atores políticos definem suas estratégias e propõem seus interesses não é problemática. De fato, esse também é um pressuposto fundamental na análise institucional histórica. Mas os institucionalistas históricos querem ir adiante e argumentam que as instituições desempenham um papel muito maior, moldando as políticas e a história política mais geral, do que o sugerido por um estreito modelo da escolha racional”. (Tradução livre.)65 Peter Hall desenvolveu o conceito de aprendizado social ao analisar o declínio do keynesianismo na Inglaterra nos anos 1970/1980. O keynesianismo foi perdendo coerência interna diante de sua incapacidade em formular resposta aos problemas econômicos e sociais (altas taxas de inflação e

61

05) Metodologias e estratégias de análise: os institucionalistas históricos, a

exemplo da definição de instituição, também não compartilham a mesma

opinião. Podemos esboçar algumas regras utilizadas pela literatura sobre o

tema: as pesquisas em geral são de base comparativa, seja entre países,

seja no interior de um único país por meio da comparação no tempo; têm

como base um suporte interpretativo, ainda que alguns autores procurem

criar modelos aplicados a diversos casos; privilegiam uma metodologia

qualitativa a partir de longas descrições comparando instituições, políticas

e estruturas estatais em uma escala temporal. A ideia de uma narrativa

histórica construída a partir da observação empírica induz a uma

multicausalidade de base contextual.

Os cinco pontos discutidos acima apenas sumarizam dispositivos analíticos

que a meu ver podem ser utilizados para a compreensão das políticas de cinema no

Brasil em uma longa escala temporal. Como ressaltamos, a literatura do

neoinstitucionalismo histórico não se restringe a tais itens; apenas elencamos

elementos comuns que podem ser encontrados na teoria e que alcançam um padrão

mínimo de consenso. Acreditamos que essa literatura nos ajuda a pensar o papel do

tempo e da história na análise social, ampliando as fronteiras da ciência política e de

seus objetos de estudo. O ir e vir no tempo confere à pesquisa um sentido de

movimento; a produção de identidades sociais e o fluxo de ideias demonstram as

interconexões entre Estado e sociedade; a permanência das instituições – formais ou

informais, fluidas ou não – nos estimula a pensar na plasticidade da vida política:

We think the answer is obvious: without historical institutionalism, our discipline would be shorn of much of its ability to tackle major agendas of concern to all political scientists. And without historical institutionalists, political science would have much less to say about questions of great import to people beyond as well as within the ivory tower. (PIERSON; SKOCPOL, 2002: 721)66

desemprego). O modelo monetarista prevaleceu, não devido à eleição de Margaret Thatcher em 1984, mas porque estava sendo intensamente debatido na sociedade naquele momento. O aprendizado social ocorreu nessa interação entre forças sociais e grupos políticos. (HALL, 1993).66 “Nós pensamosque a resposta é óbvia: sem o institucionalismo histórico, a ciência política seria despojada de grande parte de sua capacidade em enfrentar as grandes agendas que preocupam todos os cientistas políticos. E sem os institucionalistas históricos, a ciência política teria muito menos a dizer sobre questões de grande importância para as pessoas bem comopara aquelas na torre de marfim.” (Tradução livre.)

62

Como pensar essa estrutura conceitual nas políticas de cinema no Brasil? Seria

esse objeto de estudo passível de entendimento a partir das categorias elencadas

acima? A meu ver a resposta é afirmativa, pois a permanência histórica e o

desdobramento temporal das políticas de cinema no Brasil apresentam uma forte

evidência das relações travadas entre Estado e um grupo politicamente ativo. Se as

instituições são produto de um processo temporal concreto, torna-se possível observar

empiricamente a ocorrência de sucessivos encaixes entre o Estado e cineastas na

criação de agências, políticas e esquemas discursivos.67 O ponto de partida desta

pesquisa é a criação do Instituto Nacional de Cinema em 1966 e os mecanismos

acionados a partir de sua instauração que mantiveram as políticas de cinema em

espaços delimitados: tendo isso em mente é possível pensar que o desenvolvimento

posterior esteja condicionado a esse ponto inicial. Se a premissa do institucionalismo

histórico estiver correta, as políticas de cinema no Brasil podem ser explicadas a

partir de um encaixe entre as estruturas de acesso e influência inseridas em esfera

estatal – a criação do INC foi um espaço privilegiado nesse sentido – e a constituição

de uma identidade social entre o público-alvo dessa política; a forma como esse

fenômeno ocorreu, o formato institucional desenhado e o fluxo de ideias daí

decorrentes impediram que as “estradas não rodadas”68 constituíssem uma alternativa

no futuro:

Once instituted, policies have feedback effects in two main ways. In the first place, because of the official efforts made to implement new policies using new or existing administrative arrangements, policies transform or expand the capacities of the state. They therefore change the administrative possibilities for official initiatives in the future, and affect later prospects for policy implementation. In the second place, new policies affect the social

67Aqui utilizo a noção de encaixe (fit) a partir do trabalho de SKOCPOL (1992). Ao estudar as formas de emergência do Estado de bem-estar social nos Estados Unidos, a autora encontra um encaixe entre grupos politicamente ativos e mecanismos de acesso e influência disponíveis na estrutura estatal. A criação de um sistema de creches e proteção à maternidade surgiu nos Estados Unidos no final do século XIX antes mesmo do seu aparecimento nos modelos clássicos de bem estar social (Europa); a explicação estaria nesse encaixe entre estrutura estatal e grupos de mães espalhados pelos Estados Unidos: os legisladores estaduais eram mais sensíveis a valores morais e o poder judiciário mais aberto a aceitar a regulação do trabalho feminino do que masculino. Os grupos de mães souberam aproveitar essa “janela de oportunidade” e reproduzir a política. 68“Roads not chosen” tornam-se com o passar do tempo cada vez mais distantes, ou seja, criada uma política pública, selecionados os seus dispositivos internos, realizado o seu desenho institucional, fecham-se as alternativas disponíveis num momento inicial, tendo início então um processo de autorreforço. (PIERSON, 2004: 62).

63

identities, goals, and capabilities of groups that subsequently struggle or ally in politics. (SKOCPOL, 1992: 58).69

A política constituída em 1966 com o INC estimulou grupos e alianças

políticas para defender sua continuidade e expansão? E o desenho institucional da

agência delimitou o espaço de atuação do cinema brasileiro daquele momento em

diante? Muitos dos problemas com os quais se defronta atualmente o cinema

brasileiro – a dependência do Estado, a dificuldade de consolidação da indústria, a

polaridade entre indústria e arte, a fraca inserção social – eram também motivo de

debate e reflexão no momento de criação do INC.

Isso nos sugere que as respostas para muitas dessas questões estão na história

e na instituição: o trabalho é histórico porque reconhece que o desenvolvimento

político deve ser mais bem entendido como um processo que se desdobra sobre o

tempo; e é institucionalista porque reforça que muitas das implicações políticas

contemporâneas desse processo temporal estão incorporadas às instituições.

(PIERSON, 2000: 265). Os capítulos a seguir procuram manter essa orientação.

69“Uma vez instituídas, políticas tem efeitos de “feedback” de duas maneiras principais. Em primeiro lugar, por causa dos esforços oficiais feitos para implementar novas políticas usando arranjos administrativos novos ou já existentes, políticas transformam ou expandem as capacidades do Estado. Elas, portanto, alteram as possibilidades administrativas para iniciativas oficiais no futuro e afetam perspectivas posteriores para a implementação da política. Em segundo lugar, as novas políticas afetam as identidades sociais, as metas e capacidades de grupos que posteriormente lutam ou aliam-se nas políticas.” (Tradução livre.)

64

2 - Políticas de cinema no Brasil: atores, encaixes e identidades (1960-1970)

Então, o que acontece é o seguinte: o cinema novo, como alguém já disse no Brasil, é como os Beatles, quer dizer,

separaram-se, mas podem a qualquer momento aparecer e cantar juntos. O movimento do cinema novo, nos anos 60, é

feito por pessoas com vinte anos, hoje esses cineastas têm de 38 a 50 anos. Os princípios do cinema novo em relação à

manutenção da indústria cinematográfica brasileira, ao desenvolvimento da Embrafilme, à luta política pela conquista

de mercados ou pela política de proteção a indústria cinematográfica – em relação a tudo isso existe uma tática de

caráter econômico e político que une todos, até hoje. Glauber Rocha, Sintra, Portugal, 08 de abril de 1981. Publicado

em O Século do cinema, p. 327.

65

Neste capítulo vamos analisar a emergência das políticas de cinema no Brasil

durante os anos 1960. As principais agências estatais de suporte ao filme nacional

foram criadas nesse período, que por sua vez também foi politicamente importante,

pois o país vivenciou a passagem de um sistema democrático para o regime

autoritário. As políticas de cinema foram afetadas por tais arranjos políticos? Como as

relações entre cineastas e atores estatais foram estruturadas ao longo desse período e

quais foram os impactos dos diferentes regimes políticos nessas interações?

Conforme sustentamos no capítulo anterior, as políticas de cinema no Brasil

foram estruturadas a partir de características instituídas em processos de autorreforço,

independentemente do sistema político vigente. Dessa maneira, os cineastas tiveram

de lidar inicialmente com um regime autoritário na conformação das primeiras

agências estatais de suporte, ou seja, suas estratégias foram matizadas por esse

modelo, que ao se reproduzir ganhou uma espécie de continuidade na democracia no

Brasil durante os anos 1980.

Não afirmamos que as instituições postulam um determinismo estrutural que é

invariante ou incapaz de alterações, mas que os processos envolvendo cineastas e

atores estatais – sempre mediados por instituições – são suficientemente flexíveis, não

apenas para sustentar a sobrevivência institucional, mas também para acomodar novos

interesses e atores. Conforme adiantado no capítulo precedente, as instituições aqui

examinadas variam em termos de agências estatais em um plano mais formal – como

o Instituto Nacional de Cinema ou a Embrafilme –, regras e acordos informais e até

mesmo valores acerca da cultura brasileira. Sem dúvida, tais instituições não são

estáticas, mas as mudanças, quando ocorrem, são sempre graduais, e muitas vezes

realizadas por meio de adição de novas camadas.70

Um dos postulados centrais na literatura sobre políticas públicas é que essas

envolvem processos de autorreforço, ou seja, reverter o curso da ação é difícil.

Normalmente esse esforço analítico é empregado para explicar políticas de longa

duração temporal, como aquelas que envolvem os programas de seguridade social,

por exemplo. Mas as políticas de cinema no Brasil também vêm se desenvolvendo em

uma longa trajetória temporal e têm sido marcadas por um intenso e duradouro debate

70 As instituições podem ser formais, ao delimitar o comportamento dos atores por meio de regras e códigos estabelecidos, ou informais, ao regular a conduta através de regras de fundo moral. Se a instituição tem a capacidade de reduzir a incerteza e produzir estabilidade, por outro lado não inviabiliza sua transformação (NORTH, 2006).

66

com as instituições estatais. O que queremos demonstrar diz respeito à instauração de

uma política específica e à forma como os atores envolvidos ajustam suas estratégias

aos padrões estabelecidos. Tais políticas são gestadas em ambientes específicos por

atores estatais com identidades e recursos de poder próprios; o público-alvo dessa

política, por sua vez, orienta as suas estratégias e as questões que serão objeto de

deliberação nessa interação institucional.

A intenção é mover-se entre esses dois polos, Estado e sociedade, apontando

as interações e a forma como cada um deles é moldado nesse processo. Como já

exposto no capítulo precedente, mobilizamos os instrumentos analíticos da Ciência

Política e das políticas públicas para efetuar a análise:

Political Science is also the study of public policy – the description and explanation of the causes and consequences of government activity. This focus involves a description of the content of public policy; an analysis of the impact of social, economic, and political forces on the content of public policy; an inquiry into the effect of various institutional arrangements and political processes on public policy; and an evaluation of the consequences of public policies on society; both expected and unexpected (DYE, 2008: 04).71

O ambiente específico no qual as políticas de cinema no Brasil foram gestadas

e implementadas formou-se na estrutura educacional e cultural do Estado. Os

cineastas e interessados na reprodução dessas políticas iriam constituir-se como grupo

de pressão, seja adaptando-se ao padrão instituído, seja transformando as políticas

dentro de um escopo delimitado. O Estado constitiu-se como a principal arena onde

grupos de cineastas e produtores interagiam com políticos e técnicos governamentais.

Muitos destes atores detinham posições contrárias ao modelo político e econômico

vigente no país, mas a possibilidade de um amplo desenvolvimento do cinema

brasileiro apagava boa parte das posições dissidentes. Assim não somente os

integrantes do cinema novo aproximaram-se gradualmente do Estado a partir dos anos

1960, mas também cineastas vinculados a outras tendências estéticas ou projetos

políticos.

71“A Ciência Política é também o estudo das políticas públicas – a descrição e a explicação das causas e consequências da atividade governamental. Esse foco envolve a descrição do conteúdo da política pública; uma análise dos impactos sociais, econômicos e políticos sobre o conteúdo dessas políticas; uma investigação sobre o efeito dos vários arranjos institucionais e processos políticos sobre a política e uma avaliação das consequências das políticas públicas sobre a sociedade, efeitos esperados e aqueles inesperados.” (Tradução livre.)

67

Podemos então ressaltar a relevância das instituições, porque selecionam os

problemas e os seus mecanismos de resolução e produzem interlocutores e um

público específico; esses, por sua vez, adaptam sua agenda às questões colocadas

pelas instituições.

Podemos analisar essas questões desdobrando-as em quatro mecanismos

explicativos:

01) distribuição de poder de forma desigual pelas instituições, que impacta a

identidade dos grupos e as suas estratégias de ação;

02) interações entre instituições e atores; eses últimos respondem a um conjunto

de regras e normas que emanam das instituições, mas o comportamento e as

estratégias podem ser reorientadas, e de fato frequentemente o são;

03) as ideias estabelecem um alicerce para que grupos criem ou transformem

instituições;

04) o contexto é crucial, uma vez que instituições emergem em ambientes

específicos.72

As políticas de cinema no Brasil foram estruturadas basicamente entre os anos

1960 e 1980, num processo que envolveu quatro grandes transformações:

a) criação do INC – Instituto Nacional de Cinema, em 1966;

b) criação da Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes, em 1969;

c) incorporação do INC pela Embrafilme em 1975;

d) reformulação da Embrafilme em 1987.

Uma observação inicial sobre a cronologia descrita acima indica que o núcleo

central das políticas de cinema no país foi constituído durante o regime autoritário,

impedindo seu debate no interior da sociedade civil e nas diferentes instâncias

legislativas. A última reformulação da Embrafilme ocorreu durante o processo de

redemocratização do país, o que associou as políticas a um contexto de instabilidade e

crise institucional.

Restou aos cineastas uma única arena disponível para o debate, produção e

difusão de políticas de apoio: o Executivo federal. Os padrões de desenvolvimento e

expansão do Estado brasileiro também conheceram nesse período processos intensos

de transformação: neonacionalismo, nacional-desenvolvimento, Estado regulador e

72A literatura do neoinstitucionalismo histórico costuma ressaltar que uma política, ao ser instituída, modifica os processos políticos, em parte pela ideia de aprendizado que essa política provoca no interior da burocracia estatal e porque novas políticas reestruturam as identidades, os objetivos e capacidades dos grupos sociais envolvidos nelas.

68

neoliberalismo são características que definiram as formas de interação entre Estado e

sociedade no período em análise. Como interlocutores e demandantes de políticas, os

cineastas foram obrigados a negociar sob regimes e padrões de governo distintos: a

expansão do setor estatal da economia acentuou-se durante o regime autoritário, com

prevalência do Executivo federal e de uma burocracia estatal com componentes

nacionalistas, mas ao final dos anos 1970 a situação estava sendo modificada

rapidamente na direção contrária.73

A primeira possibilidade de interação mais efetiva entre cineastas e Estado

ocorreu durante o regime autoritário através da criação do Instituto Nacional de

Cinema, em 1966, que a meu ver tornou-se uma espécie de cunha aberta no interior da

arena governamental, gradualmente ocupada por alguns setores do cinema brasileiro.

Que tal fato tenha ocorrido durante o regime autoritário levantou diferentes hipóteses

acerca da natureza das relações entre Estado e cineastas junto à literatura que

investigou esse assunto.

Parte dessa literatura mobiliza conceitos como cooptação, politização,

despolitização e hegemonia para explicar a formulação das políticas de cinema em

plena ditadura militar. A explicação reside no fato de que o cinema brasileiro anterior

à instauração da ditadura ganhara prestígio interno e externo com filmes que

valorizavam a autonomia do cineasta e elencavam temas em sintonia com o

desenvolvimento autônomo da economia e sociedade brasileira. Esse cinema, por ser

portador de um determinado conjunto estético e temático, diretamente vinculado a

uma concepção de identidade e cultural nacional, estaria predisposto à proteção

estatal diante de um processo de descaracterização em curso pela importação de

filmes estrangeiros.74

As instituições estatais criadas pelo regime autoritário – INC e Embrafilme –

foram o mecanismo que aproximou dois polos aparentemente opostos: cineastas com

73A oscilação entre uma política econômica de base nacionalista e outra que privilegiava a associação com capitais internacionais foi uma marca da história econômica do Brasil durante o século XX. A partir dos anos 1960 o polo internacional acentuou-se ao mesmo tempo em que o nacionalismo encontrava um espaço renovado no interior da burocracia estatal e entre políticas específicas como as de energia nuclear e recursos minerais, por exemplo (IANNI, 1971).74O movimento denominado Cinema Novo alterou as relações de força no interior da cultura brasileira, atraindo atenção para o tipo de filme que se fazia então: “o que a gente pode ver hoje é que esse resultado principal foi a afirmação cultural do cinema brasileiro. Assim, o Cinema Novo conseguiu transformar o cinema brasileiro, ou melhor, deu ao cinema brasileiro essa categoria de manifestação, de expressão de nossa cultura. Hoje, o diretor de cinema está no mesmo nível de qualquer outro intelectual integrado no processo cultural brasileiro, o que não acontecia antigamente, ou mesmo há dez anos”. Nelson Pereira dos Santos. Cinema Novo: origem, ambições e perspectivas, Revista Civilização Brasileira, ano I, março de 1965, n. 1, p. 189.

69

trajetória na esquerda política e a burocracia militar incrustada no executivo. Dessa

maneira, o cinema brasileiro representado por esse conjunto de cineastas teria sido

cooptado pelas agências estatais, diluindo elementos políticos presentes em seus

filmes; por outro lado, o regime não era questionado, pois no campo cinematográfico

era um aliado poderoso contra os tradicionais opositores do cinema brasileiro:

exibidores e distribuidores de filmes estrangeiros.75

Outra vertente dessa literatura procura analisar os matizes da relação entre

Estado e cinema no Brasil: observa seus desdobramentos históricos e o caráter

relacional que envolve as duas instâncias, ou seja, o cinema brasileiro vem mantendo

uma interlocução duradoura com as instituições estatais e as alterações ocorridas nos

anos 1960 foram uma herança desse histórico. Políticas e instituições construídas

antes dos anos 1960 teriam constituído um terreno favorável para aquelas que as

sucederam.

A discussão sobre uma possível utilização do prestígio cultural do cinema

brasileiro por parte do regime autoritário parece ser secundária para essa literatura;

mais importante seria a transformação do Estado ao incorporar as reivindicações

presentes nesse campo e os resultados obtidos. Oscilando entre uma posição mais

econômica ou mais cultural, a intervenção do Estado respondeu às demandas

constituídas desde as primeiras décadas do século XX. A criação do INC e da

Embrafilme seria um desdobramento natural das experiências anteriores e do acúmulo

de conhecimento fomentado pelas políticas públicas. O Estado nunca deixou de

intervir, regular e mediar os interesses entre cineastas, mercado e instituições

governamentais, mas nos anos 1960 incorporou uma atuação mais sistêmica e

complexa.76

75A relação entre cineastas e regime autoritário fez com que os primeiros abandonassem sua liberdade formal e estilística, caracterizando o cinema brasileiro naquele momento como instância em um desenvolvimento dependente do Estado. Se os cineastas acreditavam que a Embrafilme teria sido um desdobramento natural do Cinema Novo – de suas aspirações, projetos e luta política –, o inverso é que efetivamente teria ocorrido: a empresa teria capitalizado culturalmente ao incorporar esse movimento (JORGE, 2005). Por sua vez o nacionalismo cultural era mobilizado pelo regime autoritário com a finalidade de diluir a oposição nos setores médios e urbanos da sociedade brasileira (RAMOS, 1987). Essa polarização entre projeto político e projeto cultural, politização e despolitização, reaparece na descrição das políticas de cinema dos anos 1990: o chamado cinema da retomada, ao valorizar a diversidade estilística e temática,na verdade ocultaria a ausência de um projeto coletivo e de uma proposta política mais abrangente para o país e para o cinema brasileiro (MARSON, 2009: 105).76 A trajetória do INCE, criado em 1936, reflete em parte um duradouro diálogo entre Estado e cineastas; o Instituto poderia ter fortalecido a indústria caso fosse efetivamente utilizado pelas produtoras (SIMIS, 1996). A autora também insiste no fato de que desde os anos 1930 o Estado produziu políticas a partir das reivindicações dos cineastas e produtores. Outros autores endossam a tese de que o apoio do Estado ao cinema brasileiro tem início nos anos 1930; as agências criadas nos

70

Independentemente da construção de hegemonia por parte do regime

autoritário, da cooptação ou não de setores da cultura brasileira por setores da

burocracia estatal ou da utilização do cinema brasileiro a fim de estabelecer um

diálogo com os segmentos médios da sociedade, importa reter o fato de que a drástica

mudança de contexto nos anos 1960 redimensionou os dois campos de análise: seja no

Estado, com a criação de novas políticas e um aprendizado que se ergue com a

intervenção no mercado cinematográfico, seja no plano do cinema, que vai ser instado

a lidar com um novo padrão de reivindicação, intervenção e diálogo.

Como as instituições afetam os comportamentos dos atores e suas decisões?

Quais são os processos e mecanismos mobilizados? Qual é o padrão de política que

emerge a partir de uma transformação na conjuntura política? A criação do INC teria

representado efetivamente uma conjuntura crítica para o cinema brasileiro, cujo

impacto desdobrou-se no tempo? Essas perguntas são o objeto da próxima seção.

2.1 - Explorando o território: as políticas antes do INC

O Instituto Nacional de Cinema foi criado em 1966, durante o regime

autoritário, mas seu desenho incorpora muitas das experiências anteriores na

formulação das políticas de cinema. Podemos elencar aquelas consideradas mais

relevantes, seja por sua tramitação no interior dos poderes Legislativo e Executivo,

seja pelo alcance proposto originalmente:

01) projeto de criação de um Conselho Nacional de Cinema (CNC)

pelo deputado federal Jorge Amado, do Partido Comunista

Brasileiro, PCB, em 1947;

02) incorporação e revisão deste projeto pelo deputado Brígido

Tinoco, do Partido Social Democrático, PSD, em 1952;

03) criação do Projeto INC em 1954; incorporação do Conselho

Nacional de Cinema ao Projeto INC em 1957;

04) criação do Grupo de Estudos da Indústria Cinematográfica/GEIC,

em 1958;

anos 1960 seriam então um desdobramento natural do alicerce constituído antes (AUTRAN, 2009); (JOHNSON, 1987).

71

05) criação do Grupo Executivo da Indústria

Cinematográfica/GEICINE, em 1961.77

O primeiro projeto, de autoria do deputado Jorge Amado, propunha uma

ampla intervenção governamental na indústria cinematográfica do país ao apoiar a

produção de filmes, facilitar a importação de equipamentos e material técnico,

compilar dados estatísticos, expandir e nacionalizar o circuito exibidor, e fortalecer a

exibição obrigatória de filmes brasileiros; o Conselho seria formado basicamente por

representantes de classe e repeliria representantes das distribuidoras de filmes

estrangeiros.

Como executor das normas e regulamentos nos termos propostos pela lei, abrangeria todas as atividades cinematográficas com poder de fiscalização, orientação e incremento de todos os setores ligados à cinematográfica nacional, bem como a fiscalização e o controle sobre a importação, distribuição e exibição de filmes estrangeiros em território brasileiro. Na verdade, propunha-se um órgão abrigado nas estruturas do Estado sob o controle do setor produtor, corporativizando a política a ser implementada, subordinando e coordenando todos os outros setores ligados às atividades cinematográficas (SIMIS, 1996: 140).

O primeiro texto do Conselho Nacional de Cinema teve uma longa tramitação

no Congresso Nacional e recebeu redações distintas até ser incorporado ao projeto

que criava o Instituto Nacional de Cinema em 1957. Podemos ressaltar as

possibilidades de interação entre setores do cinema brasileiro e o poder legislativo, ou

seja, a arena disponível para a formulação de políticas, o Congresso Nacional, estava

aberta aos problemas difundidos por cineastas e produtores naquele momento.78

No item 2, o projeto original foi incorporado pela Comissão Especial de

Cinema, Rádio e Teatro, de autoria do deputado Brígido Tinoco em 1952. A

Comissão estabeleceu como prioridades o diálogo com a classe cinematográfica e o

incentivo à produção de filmes com caráter educativo. O Conselho Nacional de

Cinema seria submetido ao Ministério da Educação e Saúde, mas incorporava 77As cinco propostas listadas acima foram selecionadas a partir de sua antecedência direta com a criação do INC. Seu desenho institucional deve muito a essas propostas, discutidas no Legislativo e no Executivo, que estimularam um intercâmbio de ideias, práticas e rotinas burocráticas que culminaram nas agências dos anos 1960. Ainda que as primeiras políticas de apoio ao cinema brasileiro remontem aos anos 1930 e dialoguem diretamente com a classe cinematográfica, acreditamos que as cinco elencadas acima são tentativas, com erros e acertos, que possibilitaram a estrutura institucional dos anos 1960. 78 O projeto previa a possibilidade de intercâmbio entre os países produtores de filmes; assim, países que exportassem filmes para o Brasil também deveriam importar filmes brasileiros. Tentou-se implementar políticas como essa inúmeras vezes, sempre sem sucesso e com oposição do governo norte-americano. Esta política foi utilizada pela Itália, Argentina, Espanha e França (SIMIS, 1996).

72

representantes dos distribuidores e exibidores. O Artigo 6o propunha que os

importadores fossem obrigados a comprar filmes de produtoras nacionais na

proporção de dez por cento do que fosse importado. De acordo com o Artigo 24, o

Conselho poderia apoiar financeiramente filmes com temática histórica e caráter

educativo.79

O projeto avançava um pouco mais na articulação entre Estado e cinema e

previa: a criação de uma distribuidora de filmes nacionais; subsídio para a produção

com ênfase em filmes de caráter educativo e temática histórica; instituição de regras

para o funcionamento do mercado e a manutenção de um padrão mínimo de

comercialização do filme brasileiro.

No terceiro item inicia-se a tramitação do projeto do Instituto Nacional de

Cinema, que incorporou os projetos anteriores referentes ao Conselho. O INC teria

quatorze competências, prevendo a atração de capitais para o setor, a concessão de

prêmios, a formação de mão de obra e a fiscalização do mercado, entre outras

atribuições. O projeto prevê o controle e a fiscalização da importação do filme

estrangeiro, mas paradoxalmente não avança na questão da produção nacional, nem

indica as possibilidades de exibição e difusão disponíveis ao produto brasileiro.80

Aquela primeira versão previa a centralização das atividades relativas à

indústria cinematográfica no INC, incluindo as agências e órgãos de cinema

vinculados aos outros ministérios, bem como a censura federal. A instância decisória

estaria concentrada no Ministério da Educação, setor do Estado ao qual o INC seria

vinculado. Os assuntos de cinema teriam como competência última a burocracia

educacional do Estado, independentemente da origem e da vinculação do tema a ser

normatizado. Se a criação das instituições pressupõe um processo de aprendizado das

79 Diário do Congresso Nacional, julho de 1951, p. 5.375-5.377. 80 Projeto INC. Diário do Congresso Nacional, Seção II, 20 de janeiro de 1954, p. 27. Projeto de Lei da Câmara, n. 1, de 1954. O projeto INC é produto de uma comissão liderada pelo cineasta Alberto Cavalcanti, que, convocada por Getúlio Vargas, estudou os problemas do cinema brasileiro. Vargas pretendia incentivar a indústria cinematográfica nacional, mas ignorou a presença de uma agência de cinema educativo no interior do Estado, o INCE, dirigida por Humberto Mauro. Esse último condenou o projeto do INC proposto por Cavalcanti pois não acreditava na produção de filmes em ritmo industrial. (SCHVARZMAN, 2004: 232). Nesse sentido há um gradual abandono do projeto do INCE em favor de um modelo com perfil econômico mais industrial para a produção cinematográfica brasileira: “a partir de 1961, o cinema educativo começa a extinguir-se. O advento da televisão e as mudanças na educação e na própria concepção sobre o papel do cinema nacional faziam do Instituto, aos olhos daqueles que se ocupavam do cinema brasileiro, um lugar anacrônico que deveria ser mais bem aproveitado. O produtor e cineasta paulista Flavio Tambellini passa a dirigir o INCE. Ele se encarrega de remover do Instituto o seu caráter exclusivamente educativo, preparando a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC) em 1967, no mesmo ano em que Humberto Mauro se aposenta”(SCHVARZMAN, 2004: 234).

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74

mínimo de comercialização para o filme brasileiro. Os produtores nacionais teriam o

direito de acionar o instituto para verificar as rendas e impostos recolhidos por cada

sala de cinema no país.81

O Instituto estaria vinculado ao Ministério da Educação e sob controle direto

da Presidência da República: são duas fortes burocracias com legitimidade política e

administrativa já asseguradas. As políticas de cinema recebem então um desenho

institucional mais matizado dos diferentes setores da indústria de cinema, ainda que

com graus distintos de controle: os setores ligados à produção devem ser estimulados,

mas aqueles diretamente envolvidos na distribuição e na exibição – justamente por

sua vinculação ao filme importado – devem ser mais fiscalizados.

O envolvimento direto da Presidência da República no controle do Instituto

reforça os elos – já tradicionais – entre Estado e cinema brasileiro. Cabe ressaltar que

os primeiros anos da década de 1950 foram marcados por uma série de estudos,

encontros e congressos para investigar as causas do precário desenvolvimento da

indústria cinematográfica brasileira. A circulação desses temas alimentava não

somente as políticas mas também os debates entre cineastas, produtores e políticos: a

polarização entre produtores nacionais e exibidores/distribuidores de filmes

estrangeiros; a precariedade econômica e a dificuldade na comercialização; a evasão

de divisas e o atributo cultural atribuído ao filme brasileiro gradualmente moviam o

setor em direção ao Estado.

Devido ao elevado custo das operações financeiras a eleição do Estado como fonte suprema de recursos era uma via natural. Por outro lado, alçando-se o cinema brasileiro à condição de causa nacional, nas mesmas alturas do petróleo, passava o Estado a ter mais uma razão para o defender. Assim, estava não só em jogo o patrimônio de uma indústria nacional como também a nossa cultura, elo mais fraco da oposição à colonização imperialista (SOUZA, 2005: 22).

Por fim, o quarto e quinto item listados acima referem-se às políticas

imediatamente anteriores à efetivação do INC: o GEIC – Grupo de Estudos da

Indústria Cinematográfica foi estabelecido em 1958 sob a presidência de Juscelino

81 O projeto previa uma articulação entre os três níveis de governo – União, estados e municípios – para a construção de um circuito de cinema em cidades com população superior a dez mil habitantes. O instituto poderia assegurar os equipamentos e o suporte técnico para esse projeto. Apesar de essa indicação não estar vinculada a nenhuma justificativa específica, podemos especular que os debates no congresso envolvendo representantes da classe cinematográfica, do governo e parlamentares davam conta do exíguo espaço de difusão do cinema brasileiro. Essa preocupação iria retornar em momentos posteriores, mas em uma posição marginal nos debates.

75

Kubitschek. Apesar de ter sido incluído entre os chamados grupos executivos de

desenvolvimento da economia brasileira, o GEIC tinha caráter consultivo e estava

alojado no Ministério da Educação.82 Em 1961 foi criado o Grupo Executivo da

Indústria Cinematográfica, Geicine, durante o curto mandato do presidente Jânio

Quadros.83

O Geicine foi pensando como uma agência multissetorial, vinculada

diretamente à Presidência da República mas composta por representantes de vários

ministérios e agências estatais: Educação e Cultura, Justiça, Relações Exteriores,

Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, Superintendência da Moeda e do

Crédito, da Política Aduaneira, do Comércio Exterior, entre outros. Essa articulação

no interior do Estado também dispunha a política formulada pelo Geicine em uma

caracterização mais complexa, sintetizando um longo período no qual as discussões

sobre a viabilidade do cinema brasileiro envolviam não apenas aspectos culturais, mas

também aqueles ligados ao funcionamento do mercado e à sua relação com o filme

importado.

Diferentemente das políticas imediatamente anteriores, o Geicine contava

apenas com um representante do Ministério da Educação, e de seu conselho

consultivo constavam oito integrantes da indústria cinematográfica, sem poder de

veto. Apesar das muitas atribuições do Geicine replicarem os objetivos das políticas

anteriores – como a formulação de planos para o desenvolvimento da indústria; a

coleta de dados estatísticos sobre o mercado; o estímulo às atividades culturais; a

coordenação dos assuntos de cinema espalhados entre inúmeras agências estatais e

diferentes níveis de governo –, busca-se respaldar um conhecimento mais objetivo

sobre as reais condições de funcionamento do mercado. Por exemplo, a agência

procurou investigar as tarifas de importação e exportação de filmes e obter um

conhecimento mais sólido sobre a política aduaneira, instrumentos que já instigavam

setores do cinema brasileiro desde o início dos anos 1950 mas que agora são

institucionalizados em uma política estatal. Ou seja, encontramos no Geicine uma

deliberada política de mapeamento da atividade cinematográfica no país para

82 O GEIC foi criado através do Decreto 44.853, de 13 de novembro de 1958, sendo o terceiro grupo executivo estabelecido pelo governo federal, atrás da indústria automobilística e da naval (PEREIRA, 1973). O projeto do INC continuou em tramitação no Congresso Nacional. Em 1963 foi enviado ao Ministério da Indústria e Comércio, que o remeteu ao Ministério da Reforma Administrativa, retornando ao Congresso no início do regime autoritário em 1964. O presidente Castelo Branco promulga o INC por meio de decreto-lei em novembro de 1966. 83O Geicine foi criado por meio do Decreto 50.278, de 17 de fevereiro de 1961.

76

transformar esses dados em uma política de apoio mais objetiva: qual seria

possibilidade de rentabilidade do filme brasileiro? Quais seriam as condições

suficientes para tornar a indústria de cinema viável? Qual seria a dimensão exata da

evasão de divisas causada pela exploração do filme estrangeiro?84

Apesar da busca de um conhecimento mais objetivo do funcionamento do

mercado, o Geicine estimulou políticas de cooperação entre distribuidoras de filmes

importados e produtoras nacionais, seja por meio da coprodução ou através da

distribuição compulsória de filmes nacionais. A política sinalizava então para

questões que no fundo não alteravam a correlação de forças e penalizavam o produto

brasileiro, ou seja, reforçou-se a crença de que a equiparação nas condições de

concorrência entre o filme importado e o filme brasileiro bastaria para que este se

impusesse ao mercado:

Em nenhuma dessas medidas, entretanto, o Geicine fixou quotas de importação ou estabeleceu restrições de mercado, mas, simplesmente, propôs aos importadores um sistema regulador de suas atividades, do qual são os próprios árbitros. Saneando condições de concorrência, o Geicine procurou, ao mesmo tempo, integrar um mercado de capitais para o cinema nacional, transformando o concorrente em aliado numa tarefa comum, de benefícios mútuos. E, assim, procurou imprimir, no plano do cinema, a um capitalismo competitivo uma dimensão social, levando-o a participar da promoção do desenvolvimento brasileiro.85

As medidas citadas acima previam a distribuição compulsória de um filme

brasileiro a cada dez estrangeiros, além da aplicação do imposto de renda devido

pelas distribuidoras na produção ou coprodução de filmes nacionais. Os resultados

esperados pela política implicavam o aumento da competitividade do filme brasileiro

em seu próprio mercado, uma vez que, estimulados pelo capital estrangeiro e por seu

84 O cineasta e produtor Flávio Tambellini foi o Presidente do Geicine durante sua existência, entre 1961 e 1966. Foi o primeiro presidente do INC. Também articulou e tomou assento em diversas agências estatais de fomento ao cinema. Sua posição na literatura o situava entre as vertentes industrialistas e universalistas e mais afastado dos grupos culturalmente hegemônicos no cinema brasileiro. Suas posições permitem observar sua capacidade de atuação diante do aparelho estatal, muitas vezes abrindo as estruturas para que determinadas questões fossem objeto de políticas. Sua ênfase na constituição de uma indústria de cinema no Brasil por meio das rendas obtidas no interior da própria indústria delimitava o espaço entre a subvenção para afirmação econômica do subsídio simples: “o estabelecimento de uma subvenção – vamos dizer – e a exemplo de vários países – na base de uma percentagem sobre a renda nacionalmente obtida por uma película, seria medida de apoio a uma indústria que, no Brasil, em geral, encontra-se ainda em fase primária. Este é o seu caráter: a subvenção não deve ser considerada um prêmio, mas sim uma base de renda para a colocação de um negócio. Não é este ou aquele produtor que deve ser subvencionado, mas sim uma indústria para que ela possa sobreviver, desenvolver-se e afirmar uma vontade de progresso”. Diário da Noite, 06 de julho de 1954. 85 Revista do Geicine, 1961, p. 13

77

conhecimento técnico, poderiam capitalizar a incipiente indústria cinematográfica

nacional.86

Com tais medidas, o Geicine acreditava não estar infringindo as regras

naturais do funcionamento do mercado nem restringindo a presença dos filmes

importados no país. Mesmo que as estatísticas coletadas pelo próprio grupo

comprovassem que a quantidade de filmes importados estava além da capacidade de

absorção do mercado, o Geicine acreditava na possibilidade de regulação natural do

mercado com as medidas adotadas.87

As relações com a televisão, que naquele momento ainda eram bastante

embrionárias, foram alvo de debates no interior do grupo. Uma análise inicial

concluiu que as regras legais aplicadas ao cinema não valiam para o novo veículo, e

que esse não teria condições financeiras de subsidiar a produção de filmes: a exibição

compulsória de filmes brasileiros nos cinemas atendia a “motivações diferentes” que

não poderiam ser adotadas na televisão. A política natural seria aquela capaz de

onerar em parte a importação de filmes para a televisão, pois indiretamente estaria

contribuindo para uma futura produção cinematográfica nesse veículo. 88

Paradoxalmente, três anos mais tarde o grupo alertava para a evasão do público das

salas de cinema e as possibilidades de expansão das redes de televisão.

Cai em todo mundo o número de espectadores de cinema e o de filmes produzidos em face, basicamente, da seríssima concorrência que a televisão exerce sobre as salas exibidoras, entrando a economia do cinema, baseada na exibição de filmes de espetáculo, em nítido processo de desgaste.89

86O Artigo 45 da Lei 4.131, de 3 de setembro de 1962, normatizava a remessa de lucros pelas distribuidoras estrangeiras; essas deveriam pagar 40% do imposto de renda devido sobre tal remessa, mas poderiam aplicar esse recurso na produção ou coprodução de filmes nacionais. Essa medida – que mais tarde seria incorporada ao INC com nova interpretação – gerou intensa polêmica no cinema brasileiro com o temor de que, ao ser implementada, poderia desnacionalizar a indústria brasileira: “em pouco tempo, com o bloqueio de parte dos rendimentos remetidos para o exterior, concentrou-se nas mãos das distribuidoras de filmes internacionais grande volume de capital, deduzido do imposto de renda devido à União, transferindo-se para os escritórios da Columbia, Metro, United, Fox, Rank, entre outras, o poder decisório de grande parte da indústria brasileira de filmes (PEREIRA, 1973: 254).87Em 1962, o Geicine foi reestruturado e passou a ser vinculado ao Ministério da Indústria e Comércio; seu conselho deliberativo contava com membros da área empresarial do Estado e a Secretaria da Indústria assessorava a equipe geral do Grupo. No conselho consultivo, sem direto a voto, estavam representantes da classe cinematográfica. 88Revista do Geicine, 1961, p. 50. 89Revista do Geicine, 1964, p. 15. Mais de vinte anos depois, o cineasta Gustavo Dahl, um dos principais articuladores da relação entre Estado e cinema no país, comentava as possibilidades que a televisão poderia oferecer ao cinema: “eu acho que as televisões estatais educativas e culturais é que seriam o ponto de contato natural com o cinema brasileiro (...) Esta questão de cinema está ficando complicada, pois há um enorme estreitamento econômico do cinema brasileiro, pela relutância do governo em investir na atividade, pelo fato de a televisão ter passado a divulgar a imagem brasileira no

78

Em síntese, essas foram as políticas imediatamente anteriores ao surgimento

do INC: propostas e projetos com um teor mais consultivo, outras com possibilidades

efetivas de alterar as regras do jogo, que sucessivamente ajudaram a consolidar a

criação do Instituto em 1966. Não negamos a influência da comunidade

cinematográfica e as intensas pressões exercidas por ela sobre as instituições estatais,

sejam os parlamentos, governos estaduais e municipais ou a Presidência da República.

A consciência dos problemas que envolviam toda a cadeia necessária para a produção

e difusão do filme nacional já estava articulada havia pelo menos uma década. Se o

Estado permaneceu como interlocutor e mediador entre cineastas e mercado durante

boa parte do século XX e algumas medidas adotadas poderiam ter fortalecido a

indústria, ainda permanece em aberto a questão da entrada um tanto tardia dos

interesses estatais no setor de cinema.

Ao longo do tempo, o Estado brasileiro exerceu esse papel de mediador de diferentes formas. Nas décadas de 1930 e 1940, o Estado se limitou a outorgar uma pequena proteção ao cinema brasileiro, proteção esta que permitiu a sobrevivência da produção, mas de maneira bastante rudimentar, sem nenhuma possibilidade de industrialização efetiva. Já a partir dos anos 1950, especialmente com a experiência grandiosa e traumática da Vera Cruz, houve, em diversos momentos, promessas dos diferentes governantes de atender as reivindicações do meio cinematográfico, o qual se organizou em congressos e comissões de maneira a empreender estudos sobre os entraves para o desenvolvimento industrial. No entanto, tudo se limitou à continuidade da proteção irrisória por parte do Estado, quando comparada às necessidades do cinema brasileiro. Entretanto, bem outro seria o papel do Estado após o golpe de 1964 e da implantação da ditadura militar. De maneira ascendente, com especial papel para o INC (Instituto Nacional de Cinema) – criado em 1966 – e a Embrafilme – criada em 1969 – o Estado passou a proteger a produção, financiá-la, garantir parte do mercado via “cota da tela” e até buscou o seu controle ideológico (AUTRAN, 2010: 25).

As políticas anteriores produziram resultados bastante questionáveis, pois o

debate foi monopolizado por fundamentos econômicos e questões relativas à

sobrevivência da indústria, mas a herança trazida por todas elas surpreende ao

exterior, lugar que era tradicionalmente ocupado pelo cinema. Por outro lado, vejo um grande interesse de profissionais de cinema pela TV, mas uma prática relativamente pequena. O cinema brasileiro está perdido entre correr a aventura de um mercado que deteriora e se impor culturalmente a um meio maior de difusão. Se é para fazer cultura, vamos direto à antena: você vai encontrar certas limitações, como presença da publicidade ou a latitude do público, mas vai realizar este lado importante que é a comunicação” (Filme Cultura, 41/42/1983, p. 3). Que as televisões públicas e educativas pudessem ter sido um ponto de apoio ao cinema brasileiro indicava uma reflexão tardia e talvez até mesmo não muito consciente da trajetória errática seguida pelas políticas de cinema desde os anos 1960.

79

constatarmos a estabilidade institucional das políticas, difundidas em maior ou menor

grau em todos os governos desde os anos 1930. Mas tal constatação não oblitera o

fato de que o Estado entrou tardiamente nos assuntos de cinema: apesar das políticas

anteriores, uma estrutura mais complexa e poderosa apareceu apenas em 1966 com a

criação do INC. Por que essa política foi tardia? Os elementos educacionais e

culturais não teriam limitado a atuação do Estado, dificultando uma inserção mais

ampla no mercado? Será que os sucessivos governos não acreditavam na

possibilidade de uma indústria de cinema autossustentável no Brasil?

2.2 - Consolidando o território: a criação do INC

Criado por um decreto-lei nos primeiros anos do regime autoritário, o Instituto

Nacional de Cinema (INC) ocupava-se de muitos temas que o cinema brasileiro viria

a discutir e rediscutir nos trinta anos seguintes: todos os conflitos, as contradições e os

supostos consensos estavam ocupando posição na interação entre Estado e cinema,

dispostos a se autorreproduzir daquele momento em diante.

E por que o INC seria o elemento estruturante das políticas de cinema no país?

Quais as distinções que o afastariam das políticas anteriores? A meu ver, a criação da

agência modificou o funcionamento da burocracia estatal, que já vinha acumulando

experiências e rotinas com as políticas anteriores; mobilizou grupos que

reconheceriam a legitimidade de suas reivindicações ao escolher o Estado como

interlocutor; assim, as oportunidades políticas abertas têm a capacidade de moldar os

interesses dos vários grupos interessados na reprodução dessas políticas. Todas essas

características se verificaram em um contexto no qual o Parlamento e os partidos

políticos eram atores secundários, o que concentra o jogo político diretamente no

poder executivo, seja por meio da burocracia estatal, seja por políticos alinhados entre

essa última e os grupos de cineastas. Diferentemente das políticas anteriores, o

Instituto abriu uma janela de oportunidade no Estado; cabia aos grupos interessados a

ocupação desses espaços.90

90Muitas evidências acumuladas nos últimos anos pela ciência política questionam a prevalência dos grupos de interesse na produção de políticas. Assim as políticas ocorrem primeiro, fornecendo um padrão particular para que os grupos se mobilizem. Também criam incentivos para organizar as mobilizações em caminhos muito particulares; políticas também distribuem recursos para grupos específicos, sejam subsídios financeiros diretos ou indiretos, informações importantes ou infraestrutura. (PIERSON, 2005: 125).

80

A própria constituição do INC em 1966 nos leva a crer em uma sucessão de

paradoxos difíceis de serem explicados:

01) ocorre em um regime autoritário;

02) deu-se em um momento de transição entre uma economia focada nas salas de

cinema e a difusão eletrônica por meio das redes de televisão;

03) a própria atividade cinematográfica nacional não representava naquele

momento um setor econômico expressivo.

Diante dessas questões, podemos elencar algumas hipóteses sobre o que levou o

regime autoritário a criar uma agência estatal de apoio ao cinema brasileiro:

a) cooptação dos cineastas e de um setor da cultura brasileira que detinha

prestígio internacional;

b) consequências dos projetos e políticas anteriores; a agência apenas teria

centralizado institucionalmente o que já estava diluído no interior do próprio

Estado;91

c) expansão da atividade estatal para setores diferenciados através da criação de

agências e autarquias.

A primeira hipótese nos leva a indagar sobre a intensidade da interação entre

cineastas e burocracias estatais, que se fortaleceria nos anos seguintes. Mas se o

regime autoritário cooptou de fato os cineastas, esses por sua vez também

“cooptaram” o Estado que vai gradualmente incorporar as suas reivindicações.

A segunda e a terceira hipótese nos parecem mais factíveis, uma vez que o regime

autoritário expandiu os setores dispostos a serem regulamentados e normatizados pelo

Estado. Durante as fases mais repressivas do regime, diferentes políticas sociais foram

executadas por agências estatais interessadas não apenas no controle de seu público-

alvo – abrandando o radicalismo de alguns movimentos sociais –, mas também em

um esforço para controlar e penetrar a sociedade. Este é o caso verificado nas

91 Já descrevemos nas páginas precedentes padrões legais que poderiam ser aplicados no desenvolvimento da indústria de cinema no país. Assim, a fundação do INC nos parece ser o desaguadouro natural de uma série de normatizações que se acumulam desde os anos 1930: “a major problem throughout the history of Brazilian Cinema has been that at least until the creation of the Instituto Nacional de Cinema in 1966, such laws had been neither obeyed nor strictly enforced, creating a situation whereby existing laws are theoretically satisfactory for the development of a national film industry, but in practice are virtually useless”(JOHNSON, 1987: 52).“Um grande problema que atravessa a história do cinema brasileiro foi que, pelo menos até a criação do Instituto Nacional de Cinema em 1966, essas leis não foram obedecidas nem rigorosamente aplicadas, criando uma situação em que as leis existentes são teoricamente satisfatórias para o desenvolvimento de uma indústria cinematográfica nacional, mas na prática são inúteis”. (Tradução livre.)

81

políticas de saúde e na seguridade social, especialmente junto ao campesinato, objeto

de políticas de transferência de renda.

A intenção dos militares em penetrar a sociedade e estender o alcance do Estado para territórios localizados na periferia territorial do País é particularmente importante para o processo de transformação do Estado e da sociedade durante o período autoritário. Como outros regimes autoritários de direita, os militares brasileiros avançaram em reformas sociais “progressistas” como forma de cooptar e controlar a população e evitar radicalização. O movimento sanitário percebeu as oportunidades abertas e reorientou as reformas em direção a novos objetivos (FALLETI, 2010: 262).

Esse jogo entre cooptação, controle e penetração atuava em múltiplas

direções: se os militares tinham interesse em cooptar setores da classe média

insatisfeitos com o regime e utilizaram dispositivos culturais para tanto, cineastas e

produtores aproveitaram as oportunidades abertas no interior do Estado para

fortalecer suas posições. Por outro lado, o crescimento da burocracia estatal naquele

período mobilizou novas clientelas para a planificação de diversos setores da vida

social: se as relações eram antes travadas no Legislativo, passaram a ocorrer no

interior dos ministérios, das autarquias, nas relações entre os funcionários do Estado e

o público-alvo de determinadas políticas.92

A formação de um padrão de Estado do tipo regulador remonta aos anos 1930,

quando várias agências estatais de coordenação e planejamento especializaram-se na

regulação de amplos setores da economia brasileira. O resultado foi que o setor

privado desenvolveu-se em conexão direta com o setor produtivo estatal: a

polarização não se dava entre sociedade civil e Estado, mas sim entre grupos sociais

disputando os canais de acesso do controle da máquina estatal.

De fato, a formação da burocracia estatal brasileira e a expansão do processo de criação de empresas estatais estiveram diretamente associadas a uma relação de subordinação, ou de aliança, dos tecnocratas com a burguesia representante do capitalismo local e multinacional. E esta relação teria se

92O cineasta Nelson Pereira dos Santos alertava para a possibilidade de recriar uma autarquia do Estado Novo pelo INC. Receoso do controle da indústria de cinema pelo regime autoritário, Santos pressionava pelo retorno ao padrão dos Grupos Executivos anteriores; sua tese evocava a originalidade atribuída ao cinema independente e sem vínculo industrial: “o primeiro projeto foi sucessivamente modificado, daquela época para cá, através de contribuições, por exemplo, do deputado Brígido Tinoco, da comissão Cavalcanti, da comissão federal de cinema, até transformar-se no atual projeto apresentado pelo GEICINE. Mesmo com todas as inovações, o projeto de hoje conserva, no fundamental, as características de uma autarquia estadonovista”. Produtor desafia Tambelini a provar que INC não vai burocratizar o cinema. Jornal do Brasil, 07 de junho de 1966.

82

intensificado e se sofisticado com a chegada de uma nova classe social ao poder: os militares associados aos tecnoburocratas (TODESCAN, 2006: 142).

O planejamento do Estado durante o regime militar ocupou-se menos em

nacionalizar empresas e mais em centralizar os canais de circulação política ao redor

de determinadas áreas, como a Presidência da República, alguns ministérios e

autarquias, responsabilizando-se pela formulação de políticas públicas. Como

diversas arenas de negociação com a sociedade civil estavam interditadas, manteve-se

então a constituição de determinadas estruturas institucionais – sejam elas canais, elos

ou anéis – nas quais circulavam os grupos de interesse em comunicação com as

burocracias estatais.

A centralização e concentração de poder transformavam a capacidade estatal

em direção a um controle mais efetivo da sociedade; a cooptação, por exemplo, pode

ser uma explicação fraca para o súbito interesse do regime militar pelas atividades

cinematográficas. Parece-nos que este estava mais preocupado em estender seu

domínio sobre a vida social através de um planejamento técnico das atividades.

Dada a posição central que, no processo de acumulação, as empresas estatais conquistaram, seria extremamente prejudicial tentar desalojá-las, e os militares também tinham razoes positivas para apoiá-las. Sua abolição teria significado um menor controle da economia, que teria contrariado diretamente a estratégia governamental. Apesar das convicções favoráveis ao laissez-faire de muitos dos que apoiaram inicialmente os militares, o principal impacto de sua subida ao poder foi a centralização do poder econômico. Os controles de preços e os regulamentos tornaram-se mais difíceis de ser evitados. Uma parcela crescente das receitas publicas ficou com o governo federal. Até mesmo as reações dos militares a problemas como habitação e seguro social tiveram como resultado a centralização dos recursos financeiros nas mãos do Governo. O Banco Nacional de Habitação (BNH), o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e o Programa de Integração Social (PIS) proporcionaram ao governo central vastos recursos para investimentos e empréstimos. Um maior papel para as empresas estatais era perfeitamente coerente com a estratégia geral dos militares de aumentar a centralização política e econômica. Em lugar de diminuir, sob os militares, o numero de empresas estatais cresceu mais rapidamente do que em qualquer outro período (EVANS, 1982: 193).

Podemos então começar a identificar os processos e mecanismos que podem

ter contribuído para que o regime autoritário criasse uma estrutura institucional de

apoio e proteção ao filme nacional. Se a hipótese da cooptação aparenta ser

autoexplicativa, isso não vale para as características de centralização e concentração

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84

O Conselho Deliberativo era composto por seis integrantes, representantes dos

Ministérios da Educação, Justiça, Indústria e Comércio, Relações Exteriores,

Planejamento e Banco Central, que em duas reuniões mensais era assessorado por

uma Secretaria Executiva e produziria resoluções legais. O Conselho Consultivo era

composto por cinco integrantes, representando os setores da distribuição, exibição,

produção, crítica e diretores. Estes últimos eram indicados pelo Ministro da Educação

a partir de listas fornecidas pelas associações de classe. O papel do Conselho

Consultivo era indicar políticas ao Conselho Deliberativo, que poderia ou não aprová-

las. Nota-se que o Conselho Deliberativo exclui a representação dos interesses da

classe cinematográfica, alojados no Conselho Consultivo.

O alcance do Instituto estava alocado em quinze competências, que iam de

medidas de caráter mais efetivo – como a possibilidade de fiscalização e punição das

salas de cinema; o estabelecimento de critérios para a divisão da renda do filme

nacional entre produtor, distribuidor e exibidor; o estímulo à produção de filmes; a

obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros em uma quantidade de dias

estabelecidos anualmente – àquelas vinculadas à produção de filmes educativos e

culturais e de estímulos para o desenvolvimento da indústria de cinema no país.95

Entre as fontes de renda do instituto estava a tradicional contribuição para o

desenvolvimento da Indústria Cinematográfica, cobrada por metro linear de todo

filme impresso a ser exibido em salas de cinema ou em televisão, e posteriormente um

imposto sobre a venda de ingressos padronizados. O Instituto incorporou uma política

instituída pelo Geicine na qual a distribuidora estrangeira poderia utilizar 40% do

imposto de renda devido sobre a remessa de lucros na coprodução de filmes

nacionais. Mas a política redesenhada pelo INC obrigava a distribuidora a utilizar esse

incentivo fiscal; se em 18 meses não o fizesse o valor seria incorporado à receita do

Instituto.96

um dos articuladores do projeto do INC e seu primeiro presidente confirma ser esse tipo de formato o mais adequado: “simplesmente seria impossível cuidar de desenvolver as atividades de cinema do país sem dotar o governo federal de um órgão com a suficiente instrumentação legal, administrativa e financeira. O INC foi elaborado na dimensão de uma autarquia porque, apenas nessa escala, poderá dispor de indispensável flexibilidade e autonomia para poder exercer a sua tarefa”. Flavio Tambellini presta informações sobre o INC. O Estado de S. Paulo, 13 de setembro de 1966.95 O INC incorporou o INCE e o Geicine.96 Poucas distribuidoras utilizaram o Artigo 45 do Geicine: foram produzidos os seguintes filmes: Columbia Pictures (O Corpo Ardente, de Walter Hugo Khouri, 1966; O Quarto, de Rubem Biafóra, 1968; As Amorosas, de Walter Hugo Khouri, 1968); Condor Filmes (Os Cafajestes, de Ruy Guerra, 1962; El Justicero, de Nelson Pereira dos Santos, 1967); Fox Filmes (O Mundo Alegre de Helô, de Carlos Alberto de Souza Barros, 1966).

85

Entre 1967 a 1972 o Instituto baixou 76 atos normativos, a maioria deles sobre

correção de valores pagos pelos importadores de filmes; concessão de prêmios sobre

renda e qualidade dos filmes; quantidade de dias para a cota da tela; fiscalização do

uso dos ingressos padronizados; seleção de filmes para festivais, entre outros

assuntos. As resoluções do Instituto circulavam em torno de questões imediatas do

funcionamento da indústria de cinema, numa direção que na maioria das vezes

implicava em uma dimensão interna, não explorando as possibilidades de interface

com o sistema escolar ou universitário; formação de plateias para o cinema brasileiro

ou com as redes de televisão.

Se o Instituto beneficiou-se das políticas anteriores e poderia atuar

institucionalmente a partir de um território já bem estabelecido no interior do Estado,

também incorporava as contradições desse mesmo legado, ou seja, a dificuldade em

explicitar um modelo de indústria ao lado do apoio a uma produção de caráter

educativo e cultural. Um amplo arco atava indústria e arte no projeto do INC,

desenvolvendo um processo de autorreforço que as políticas posteriores iriam

reproduzir.

Três pontos na política do INC devem ser melhor explicitados:

01) O apoio à produção de longas-metragens;

02) A reserva de mercado por meio do estabelecimento de um número mínimo de

dias para a exibição de filmes brasileiros;

03) A sala de cinema como um espaço privilegiado de difusão;97

O INC é criado em um contexto no qual diversas propostas de políticas

circulavam – seja no interior das burocracias estatais como entre os próprios cineastas

e produtores. Podemos citar algumas delas aqui:

a) lei do contingente, cujo objetivo era o controle da importação de filmes

estrangeiros a partir da capacidade de absorção do mercado brasileiro;

b) lei de reciprocidade, estabelecida entre a importação de filmes estrangeiros e a

exportação de filmes nacionais, por meio de uma política de cotas

intercambiáveis;

c) instituição de um prêmio de qualidade e de um adicional de renda para o

circuito exibidor, favorecendo a difusão do filme brasileiro;98

97 Um dos temas discutidos pelo Geicine ressaltava a necessidade de estimular a criação de um circuito de exibição de filmes brasileiros. Este circuito seria financiado pelo governo federal, mas tal proposta não foi adiante. Casas exibidoras de filmes nacionais será a solução. A Hora, 21 de março de 1961.

86

d) programas de coprodução com emissoras de televisão de caráter comercial e

educativo;

e) utilização da rede escolar pública – básica e universitária – para a difusão do

filme brasileiro e formação de plateia;

A proposta descrita no item c foi alvo de debates entre os exibidores e o INC. Em

1969 os representantes dos exibidores chegaram a propor ao instituto uma política de

subsídio às salas de cinema, tendo consciência de que o setor caminhava para uma

crise progressiva com o declínio da frequência nos cinemas. Propunham uma

compensação aos cinemas de bairro e de pequenas cidades do interior: caso esses não

conseguissem atingir um patamar mínimo de remuneração com a exibição de filmes

nacionais, teriam direito a um adicional sobre a bilheteria. Esse subsídio teria origem

em um fundo no qual todos os cinemas contribuíam com três por cento de sua renda

bruta: “a verba de premiação de filmes nacionais paga aos exibidores terá o sentido de

uma subvenção a esses cinemas, justa e até necessária para a sua sobrevivência. O

cinema nacional, através do INC, poderá ter o papel de salvador de um número

considerável de casas exibidoras, importantes sob o aspecto global do cinema como

atividade industrial e cultural”. Os cinemas de grande porte e instalados nas capitais

não teriam direito a esse subsídio. O documento é elucidativo de um processo de

gradual elitização do público das salas de cinema. O INC não levou adiante essa

discussão.99

Muitas dessas políticas foram implementadas em diversos países, mesmo

diante das pressões da indústria de cinema e do governo norte-americano. A meu ver,

a escolha de políticas a serem adotadas e implementadas é um processo marcado pela

contingência, ainda que possamos reduzir a incerteza por meio dos limites impostos

pelos padrões da indústria de cinema ao eleger o filme de longa-metragem como

98A relação entre os produtores e cineastas e os exibidores nunca foi pacífica: os primeiros acusavam os segundos de boicote, que por sua vez acusavam os diretores de pouca sensibilidade comercial. Nesse contexto seria difícil a implementação de políticas que favorecessem o circuito exibidor ou formas alternativas de difusão do filme brasileiro: “É possível entender, dessa forma, o porque do Cinema Novo em geral ter se descuidado da reflexão sob formas alternativas de exibição: pela sua importância para o estabelecimento de uma cinematografia brasileira nacional, industrial e popular, o setor de exibição era imprescindível, mas na medida em que defendia o capital estrangeiro ele era pernicioso, devendo ser cooptado – obviamente com o recurso da lei – para o lado do capital nacional. Na medida em que uma cinematografia defendesse os interesses ‘populares’, não haveria problemas em consolidá-la industrialmente, utilizando-se do setor de exibição justamente para articular o contato com o público.” (JORGE, 2005: 25). Durante os anos 1980, um grupo de cineastas fundou uma cooperativa de cinemas que fortaleceria a difusão do filme nacional; esse circuito exibidor foi constituído graças a um empréstimo da Embrafilme, mas não avançou devido à crise econômica. 99Arquivo Geraldo Santos Pereira, Cinemateca Brasileira.

87

instrumento básico. Mas a opção pelas três primeiras políticas listadas acima – o

apoio estatal à produção de filmes de longa-metragem; sua difusão e circulação

pública em salas de cinema e a prerrogativa legal da cota de tela –, uma vez

instituídas tendem a produzir padrões de autorreforço e reproduzir-se temporalmente.

Com o passar do tempo, as alternativas preteridas dificilmente retornam.100

Como esse processo ocorre? Um acontecimento crítico em um determinado

momento – como a criação do INC em 1966 e a seleção de um conjunto específico de

políticas – muito provavelmente induz a uma situação de lock-in – ou fechamento –

na qual as alternativas disponíveis e preteridas tornam-se, com o passar do tempo,

cada vez mais fora de alcance. As políticas selecionadas seriam desenvolvidas e

novos passos na direção escolhida seriam efetuados, dificultando, portanto, o retorno

às condições iniciais. Ao mesmo tempo, as políticas criam grupos de apoiadores que

ajustam suas preferências a seu conteúdo, mesmo que inicialmente manifestassem sua

reserva crítica em relação à trajetória escolhida. As instituições geralmente distribuem

o poder de forma desigual, sendo assim, toda política mobiliza atores que tendem a

ganhar com sua reprodução, e mesmo aqueles inicialmente contrários tendem a

ajustar suas preferências no futuro. A esse processo denominamos dependência de

trajetória. 101

Processos dependentes de trajetória implicam dinâmicas de autorreforço, pois

a instituição de uma política cria apoiadores tanto no interior do Estado quanto em seu

público alvo; não somente a inércia institucional induz a esse processo, mas os

benefícios que a política proporciona asseguram sua reprodução. Assim, uma vez

dado um passo é muito difícil reverter o curso; as políticas que poderiam ter sido

plausíveis na ocasião tornam-se então cada vez mais distantes.102

100 A lei do contingente foi alvo de ampla discussão pelo Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica em 1971; para o sindicato seria necessário estudar o limite de absorção dos filmes estrangeiros no mercado brasileiro a fim de assegurar a reprodução dos frutos da indústria nacional: “A lei do contingente não é medida pioneira ou inédita. Ela foi e vem sendo adotada, internacionalmente, como corolário de uma série de medidas de sentido protecionista. Juntamente com a reserva de mercado, a contingenciação é providência que reflete a soberania nacional”. Assembleia do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica, 1971. Arquivo Geraldo Santos Pereira, Cinemateca Brasileira.101 Uma definição básica de dependência de trajetória: o que aconteceu num ponto inicial no tempo deve afetar os resultados possíveis de uma sequência de eventos, ocorrendo em um ponto futuro. (PIERSON, 2000: 252) 102 There are strong theoretical grounds for believing that self-reinforcing processes are prevalent in political life. Once established, patterns of political mobilization, the institutional rules of the game, and even citizens basic ways of thinking about the political world will often generate self-reinforcing dynamics. (PIERSON; SKOCPOL, 2002: 700). “Existem fundamentos teóricos fortes para acreditar que os processos de autorreforço são prevalentes na vida política. Uma vez estabelecidos, os padrões de mobilização política, as regras institucionais do jogo político, e até mesmo o modo como os

88

Assim estaria criada a primeira linha de dependência de trajetória nas políticas

de cinema no Brasil: ao estabelecer como prioritária a produção de filmes em longa-

metragem; sua difusão pública em salas de cinema através de mecanismos do tipo

cota de tela inviabilizou arranjos políticos alternativos. A política instituída em 1966

elegeu os principais interlocutores – burocracia estatal e cineastas/produtores;

constituiu um terreno específico para resolução dos problemas e reprodução das

questões – a arena estatal – e fechou – lock-in – o encaminhamento por meios

alternativos ainda disponíveis naquele momento.103

Apesar de afirmarmos ser a implantação do INC um momento crítico na

história das políticas de cinema no país ao instaurar um padrão no qual as

transformações iriam ocorrer muito mais em forma de camadas do que em rupturas,

observamos também que no momento inicial os grupos interessados na política

demarcavam suas posições. Um grupo de produtores protestava contra a criação do

Instituto por meio de um decreto da Presidência da República:

Os produtores do cinema brasileiro abaixo assinados estranham o andamento e envio ao Congresso do projeto que cria o Instituto Nacional de Cinema, uma vez que nenhuma consulta oficial ou mesmo privada tenha sido feita aos homens e empresas que têm feito o cinema no Brasil. Solicitamos que assim sendo, seja sustado qualquer andamento do mesmo até que os interessados sejam ouvidos a respeito, pois acreditamos que o Instituto Nacional de Cinema só poderá realmente beneficiar o cinema brasileiro se for feito dentro da realidade da nossa indústria cinematográfica. Assinam Carlos Diegues, Glauber Rocha, Herbert Richers, Jarbas Barbosa, Jece Valadão, J. B. Tanko, Joaquim Pedro, Luis Augusto Mendes, Luís Carlos Barreto, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Porto, Paulo Cesar Sarraceni, Roberto Farias, Roberto Santos, Rui Santos, Vitor Lima e Walter Lima Jr.104

cidadãos pensam o mundo político, podem frequentemente gerar dinâmicas de autorreforço.” (Tradução livre.) 103Os institucionalistas históricos enfatizam os caminhos pelos quais instituições são refeitas através do tempo. Por causa dos fortes efeitos de path dependence, instituições não são facilmente demolidas quando as condições mudam. Na verdade, instituições frequentemente têm uma disposição em camadas (layered). Novas iniciativas são introduzidas e direcionadas para demandas contemporâneas, mas elas adicionam ao invés de mudar as formas das instituições preexistentes. Assim, as velhas instituições devem persistir, mas podem estar modificadas por usos diferentes e por novos grupos ascendentes. Em ambos os casos, as escolhas originais estão prontas para trabalhar com as atuais funções das instituições. (PIERSON; SKOCPOL, 2002: 709) 104 Cinema: produtor protesta contra criação do INC. Correio da Manhã, 02 de setembro de 1966. O manifesto foi lido no Senado e encaminhado para as comissões técnicas. Outro grupo de cineastas e produtores solicitava a implantação do Instituto o mais rápido possível, enviando a proposta aos Ministros da Indústria e Comércio, Educação e Planejamento sua demanda. Assinavam Fernando de Barros, Oswaldo Massaini, Walter Hugo Khouri, Lima Barreto, Rubem Biáfora, Jaime Coimbra,

89

A primeira agência estatal de apoio ao cinema nascia com grande repercussão,

e diversos jornais publicaram na íntegra o decreto de criação do INC.105 A meu ver,

esses momentos críticos permitem delinear com nitidez as posições, embates e

articulações que caracterizam um conflito político em torno dos recursos assegurados

pelo Estado. Enquanto Flávio Tambellini negociava com os ministros Roberto

Campos, Paulo Egydio Martins e Raimundo Moniz a aprovação do projeto no interior

do Executivo, grupos no cinema brasileiro demarcavam suas posições. A conjuntura

anterior também produzia elementos que instigavam a polêmica e o conflito, mas

estavam delimitados em projetos de lei, comissões, grupos executivos sem grande

capacidade reguladora. Com o INC era diferente, e o passo estava dado.

Identificamos três grupos no interior do cinema brasileiro, que naquele

momento procuraram influir no debate, seja por meio da imprensa ou através de

negociações no Executivo: o primeiro grupo fazia pressão pela consolidação do INC e

era formado basicamente por cineastas e produtores com base em São Paulo; o

segundo e terceiro grupo dispunham-se de forma crítica, mobilizando suas

associações de classe no intuito de barrar um projeto formulado sem consulta anterior

às bases. Eram formados pelos exibidores e pelos cineastas abrigados em torno do

Cinema Novo; os primeiros eram penalizados com uma série de normatizações que

iam da obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens ao controle da contabilidade

privada; os segundos temiam uma possível descaracterização artística do cinema em

favor de uma industrialização comandada pelo Estado.106

Conforme vimos acima, os mecanismos mobilizados pelo INC eram de amplo

escopo e pela primeira vez o Estado assumia um papel central no desenvolvimento da

indústria de cinema, fato que naturalmente teve impacto considerável no campo

cinematográfico. A forma como são estruturadas as instituições políticas tem a

capacidade de liberar ou não o acesso e a influência para determinados grupos;

Alberto Salva, Rogério Duprat, entre outros. Cineastas querem que INC ainda funcione em 66. Correio da manhã, 20 de setembro de 1966.105 O INC em questão. Jornal do Brasil, 28 de setembro de 1966; O Estado de S. Paulo, 29 de novembro de 1966. 106 O grupo paulista era formado pelos cineastas Walter Hugo Khoury; Luis Sergio Person, Ruben Biáfora, Carlos Hugo Christensen, Jece Valadão, Lima Barreto, entre outros, mas cineastas ligados ao Cinema Novo, como Joaquim Pedro de Andrade e Gustavo Dahl apoiavam sua fundação. Glauber Rocha, Luis Carlos Barreto e Roberto Farias tinham posições críticas ao INC. Esses últimos acreditavam na legitimidade de uma agência estatal apenas se essa fosse previamente debatida com a classe cinematográfica.

90

estimular alianças entre setores e induzir atores a seguir determinadas trajetórias. O

ponto de partida das políticas de cinema investigadas tem uma origem específica: o

Ministério da Educação; na mesma dinâmica histórica, vemos determinados grupos

no interior do cinema brasileiro dotados de prestígio cultural. Parece que um encaixe

entre as instituições governamentais e a identidade social de grupos específicos teve

início nesse processo. Aos cineastas, interessavam o acesso e a influência no interior

do aparato estatal; para a burocracia governamental, a imagem cultural difundida por

um determinado segmento do cinema brasileiro seria determinante: com a arena

parlamentar fechada e com a inviabilização dos governos estaduais e municipais, o

grupo de atores procurou se adaptar ao espaço disponível naquele momento, a

burocracia educacional/cultural do Estado.107

Dessa forma, as políticas constituídas reestruturaram o processo político

subsequente: “as politics creates policies, policies also remake politics”. 108

107 Isso não inviabiliza as teses sobre autonomia e independência econômica do cinema brasileiro nem suas possibilidades de industrialização. Esses argumentos ainda são mobilizados e permanecem legítimos pelos custos e infraestrutura exigidos pela indústria de cinema. Mas o encaixe a qual me refiro permanece intocável desde os anos 1960, ou seja, a dimensão cultural ligou os dois polos, cineastas e Estado, possibilitando a reprodução institucional da área mesmo sob diferentes tipos de regime político. 108 “Assim como o sistema político cria políticas, as políticas também refazem o sistema político.” (Tradução livre.) (SKOCPOL, 1992: 58)

91

3. Adicionando camadas: a Embrafilme

Não as ideias, mas os interesses (materiais e ideais) é que dominam diretamente a ação dos homens. O mais das vezes, as

“imagens de mundo” criadas pelas “ideias” determinaram, feito manobristas de linha de trem, os trilhos nos quais a ação

se vê empurrada pela dinâmica dos interesses. Max Weber, Ensaios de Sociologia, 1989, p. 101.

92

Apenas dois anos se seguiram à criação do INC para que o regime autoritário

lançasse mão de outra agência para regular o cinema brasileiro: a Empresa Brasileira

de Filmes, Embrafilme, criada em 1969, cujo conteúdo principal previa a divulgação e

difusão dos filmes brasileiros no exterior. 109 Seu surgimento também criou

controvérsias, especialmente pelo fato de que as políticas anteriores propostas pelo

INC ainda estavam sendo consolidadas e a criação de uma agência focada na

divulgação do filme brasileiro no exterior era vista como um contrassenso.

A categoria cinematográfica, principalmente os cinemanovistas, reagiu com indignação à sua criação. Apesar dos projetos industriais-institucionais alimentados durante a década de 1960, a possibilidade de que eles viessem a ser encampados pelo regime que havia interrompido o ideal de independência nacional e desenvolvimento autônomo era perturbadora. O governo militar dispensou a consulta aos segmentos envolvidos na atividade cinematográfica, como produtores, distribuidores, exibidores e cineastas, o que valeu à EMBRAFILME severas críticas destes profissionais, que não concordavam com os procedimentos unilaterais que levaram à sua implementação (JORGE, 2005:18).

A exemplo do INC, a empresa foi criada sem consulta à classe

cinematográfica, o que acirrava os ânimos e dificultava uma leitura mais nítida de seu

real significado. Assim o seu surgimento também indicava alguns paradoxos:

a) a Embrafilme foi constituída apenas dois anos após a efetivação do INC;

b) consequentemente, esse último não poderia ser utilizado como critério ou

justificativa para a criação da empresa, pois suas políticas ainda estavam

em fase de implementação;

c) o INC tinha como objetivo não somente estimular e desenvolver a

indústria cinematográfica nacional como também promover o filme

brasileiro no exterior.110

109Art 2º. A EMBRAFILME tem por objetivo a distribuição de filmes no exterior, sua promoção, realização de mostras e apresentações em festivais, visando à difusão do filme brasileiro em seus aspectos culturais artísticos e científicos, como órgão de cooperação com o INC, podendo exercer atividades comerciais ou industriais relacionadas com o objeto principal de sua atividade. Decreto-lei 862, de 12 de setembro de 1969.

110 Art. 1º. É criado o Instituto Nacional de Cinema (INC), com o objetivo de formular e executar a política governamental relativa à produção, importação, distribuição e exibição de filmes para o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, seu fomento cultural e sua promoção no exterior. Decreto-lei n. 43, de 18 de novembro de 1966.

93

Podemos seguir uma hipótese já aventada no que diz respeito às intensas

transformações sofridas pelo Estado brasileiro durante o regime autoritário, como a

criação de agências e sobreposição de burocracias, seja para o controle e penetração

da sociedade como também para alocar possíveis beneficiários das políticas.111

A divulgação do filme brasileiro no exterior já havia sido alvo de um conflito

político envolvendo o Itamaraty, INC e setores do cinema nacional dois anos antes da

criação da Embrafilme. A disputa envolvia dois setores da burocracia estatal – o

Ministério das Relações Exteriores através do Itamaraty e o Ministério da Educação

por meio do INC – sobre a primazia dessa política: o primeiro reivindicava

historicamente seu papel na seleção e difusão do filme nacional nos festivais

internacionais; o segundo, por sua vez, pretendia abrir uma filial em Paris, França,

para divulgar e comercializar o mesmo produto. Vale à pena observar que nos dois

casos o tipo de filme selecionado seria aquele com maior prestígio cultural, ou seja,

cujos autores pertenciam ao chamado Cinema Novo. Assim reforçava-se o encaixe

entre a dimensão cultural expressa no filme brasileiro e os interesses de setores do

Estado na sua apropriação.

O Itamaraty chegou a realizar encontros com cineastas, produtores e técnicos

do INC para estabelecer planos e um cronograma de ação. Nesses encontros criou-se

uma comissão cujo objetivo era propor uma estrutura capaz de alavancar um público

internacional para o cinema brasileiro. 112 De imediato, dois fatores devem ser

observados:

01) a associação entre um tipo específico de filme – com conteúdo autoral e

artístico melhor definido – e setores do Estado, indicando que o cinema

brasileiro já tinha consolidado seus interlocutores no interior da burocracia

estatal, independentemente do tipo de regime político;

02) a sobreposição entre as burocracias estatais: tanto o INC quanto o Itamaraty

reivindicavam a autoria da política e sua execução.113

111Ver por exemplo FALLETI (2010); EVANS (1982); TODESCAN (2006). 112A comissão era formada pelo Chefe de Gabinete do Ministro das Relações Exteriores e pelos cineastas Domingos de Oliveira; Oswaldo Massaini e Jece Valadão. Interlocutores frequentes nessa política eram o produtor Luíz Carlos Barreto e os cineastas Carlos Diegues, Arnaldo Jabor e Gustavo Dahl. Cinema foi ao Itamarati. O Estado de S. Paulo, 13 de julho de 1967. Ver também: Comissão fará plano para lançar cinema brasileiro no mercado internacional. Jornal do Brasil, 13 de julho de 1967. 113 Cineastas almoçam com o ministro que promete expansão. Correio da Manhã, 13 de julho de 1967; INC abrirá agências para aumentar a venda de filmes brasileiros aos europeus. Jornal do Brasil, 15 de agosto de 1967.

94

Podemos entender a criação da Embrafilme como um indício de que o regime

autoritário estaria tentando disciplinar os conflitos que ocorriam no interior da própria

burocracia estatal, ao mesmo tempo em que oferecia aos setores influentes do cinema

brasileiro uma disposição para ampliar as políticas até então estabelecidas.114

É interessante observar que a política desenhada pelo Geicine em 1962 que

normatizava a remessa de lucros das distribuidoras estrangeiras era incorporada pela

Embrafilme em uma contradição direta com principal atribuição, que seria a difusão

do filme brasileiro no exterior. Ou seja, a Embrafilme não somente confrontava-se

com a política anterior – proposta pelo INC – como também retirava seu principal

recurso financeiro. A política instituída pelo Geicine estipulava que as distribuidoras

estrangeiras fossem taxadas em 40% do imposto de renda devido na remessa de lucros

ao exterior; a opção oferecida seria aplicar esse recurso na produção ou coprodução

de filmes brasileiros. Caso contrário, os recursos seriam destinados ao Tesouro

Nacional. Por sua vez, o INC incorporava esse recurso, mas eliminava seu caráter

voluntário, pois caso a distribuidora não apresentasse um projeto de produção, o

montante arrecadado seria destinado integralmente ao Instituto. Dois anos mais tarde,

a Embrafilme recuperava esse recurso, dando-lhe também o caráter vinculatório.115

Vemos aqui o desdobramento de uma política de cinema e como sucessivas

camadas lhe são adicionadas, sem necessidade de rupturas. Se na concepção original

proposta pelo Geicine a política deveria estimular a parceria entre dois setores

considerados antagônicos – a indústria nacional e os distribuidores estrangeiros – em

que o elemento mais forte poderia capacitar o mais fraco, equalizando as condições de

competição no mercado em uma estrutura institucional em que o importador tem a

opção de implementar ou não a política; nas camadas subsequentes da política o

caráter voluntário é suprimido. A tabela 3 sumariza essa discussão.

114 Com o aumento da repressão política, a Embrafilme foi criada em um contexto politicamente delicado. O produtor Luiz Carlos Barreto conta que a projeção internacional do cinema novo impediu que a repressão ficasse insuportável sobre o setor: “então, para nós, a ditadura não foi uma coisa tão grave”(COHN, 2010: 51).115 O Artigo 45 da Lei 4.131, proposta pelo Geicine, continha a seguinte proposta: “Os rendimentos oriundos da exploração de películas cinematográficas, excetuados os dos exibidores não importadores, ficarão de 40% (quarenta por cento), mas o contribuinte terá direito a optar pelo depósito no Banco do Brasil, em conta especial, de 40% (quarenta por cento) do imposto devido, podendo aplicar esta importância, mediante autorização do Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (GEICINE)”.

95

Tabela04–Impostosobrearemessadelucrosdosimportadoresdefilmes

GEICINE INC EMBRAFILME

Lei 4.131, 03/09/1962,

Art. 45 .

Decreto-lei 43,

18/11/66, Art. 28.

Decreto-lei 862,

12/09/69, Art. 9 o.

Caráter impositivo 40% sobre a remessa

de lucros ao exterior

40% sobre a remessa

de lucros ao exterior

40% sobre a remessa

de lucros ao exterior

Aplicação dos

recursos

Coprodução de

filmes de forma

voluntária.

Coprodução de

filmes; caso contrário

aplicado conforme

disposto no estatuto.

Aplicado conforme

disposto no estatuto.

Agência estatal

encarregada

Geicine, Tesouro

Nacional.

INC Embrafilme

Elaborado pelo autor a partir dos projetos de lei.

Uma instituição é criada com um objetivo específico que se altera com o

passar do tempo: seus apoiadores também são outros, e as forças que a sustentam

também mudam. Em um período de quase uma década, a política manteve sua

estrutura original intacta, mas a forma como distribuiu os recursos alterou a posição

de grupos no interior do cinema brasileiro, e provavelmente transformou suas

identidades sociais e políticas.

A criação de duas agências estatais em um curto espaço de tempo, INC em

1966 e Embrafilme em 1969, provavelmente induziu amplos setores do cinema

brasileiro a acreditar que a presença do Estado como formulador e implementador de

políticas tenderia a modificar a relação de forças não só na indústria cinematográfica

mas no próprio mercado como um todo. Como vimos, a interlocução entre cinema

brasileiro e Estado remonta ao início do século XX, quando as reivindicações do setor

começaram a tomar forma no interior da burocracia estatal. O contexto em análise

observa um padrão de interação completamente novo entre esses dois polos, com

efeitos de aprendizado, coordenação e adaptação entre eles; as políticas estimularam

os grupos a desenvolverem determinadas identidades e conhecimentos, que por sua

vez são partilhados entre Estado e cineastas. O funcionamento burocrático das duas

96

agências e o início dos programas de financiamento aos projetos de longas-metragens

aproximou ainda mais os dois setores.116

O que nos chama a atenção neste momento específico do regime autoritário

são os mecanismos pelos quais determinados grupos interagiam com a burocracia

estatal. Excluídos partidos políticos e parlamento como alternativas, o regime militar

abriu frestas ao incorporar setores cujo objetivo seria a resolução de problemas e a

constituição de políticas específicas para tanto. Há uma literatura que endossa o

conceito de anéis burocráticos ao observar esses mecanismos políticos de circulação

entre Estado e sociedade; os anéis circundariam burocratas e especialistas na

resolução de um problema específico integrando grupos sociais nos processos

decisórios:

Noutros termos, a ser verdadeiro, como eu penso, que a articulação por intermédio destes anéis (que em outra oportunidade chamei de “burocráticos” para sublinhar a necessária localização de sua sede no aparelho do Estado) é a forma que o regime adotou para permitir a inclusão dos interesses privados em seu seio, e para criar instrumentos de luta política burocrática no aparelho do Estado, mesmo a ideia de corporativismo parece inadequada para caracterizar a relação entre Estado e classe (CARDOSO, 1975: 208-209).

As relações entre uma elite civil-militar e setores do cinema brasileiro dotados

de prestígio cultural é bastante significativa da existência desses elos ou anéis que aos

poucos vão adicionando novas camadas às políticas de cinema: as reformulações que

ocorreriam no processo de fusão entre Embrafilme e INC a partir de 1975 e o modelo

daí derivado foram discutidos no interior dessas estruturas. Os militares Jarbas

Passarinho, ministro da Educação entre 1969 a 1974; Ney Braga, ministro da

Educação entre 1974 a 1978, e João Paulo dos Reis Velloso, ministro do

Planejamento entre 1969 a 1979, foram figuras chaves nesse contexto. Luís Carlos

Barreto afirma:

A Embrafilme foi criada no governo Médici, no pior período do governo militar. O ministro da Educação e Cultura era o Jarbas Passarinho, um cara oriundo do Partido Socialista do Pará, um militar intelectual. Ele tinha muito

116 Não é o objetivo desta pesquisa um exame histórico minucioso e completo das operações do INC e da Embrafilme, mas sim acompanhar as políticas desenhadas e implementadas e os diferentes padrões de interação entre cinema brasileiro e Estado. A narrativa histórica aqui privilegiada como método significa observar tais políticas em seus mecanismos de autorreforço e reprodução institucional.

97

respeito pela questão cultural, pelo cinema. Apesar de o Jarbas Passarinho ter projetado uma imagem muito autoritária, na questão cinematográfica ele foi muito correto conosco. Quando chegou o governo Geisel, a coisa desanuviou. O Geisel foi muito importante para o cinema brasileiro e também para a nação brasileira. Em uma audiência com ele, mais Nelson e Roberto Farias ele disse que faria o melhor para a cultura e o cinema nacional, inclusive com recursos econômicos. O presidente falou dos interesses contrários à cultura brasileira, ele tinha consciência disso, mas na cultura não pode fazer concessões porque ela é o setor que vai fazer a gente voltar a ser o que a gente é (COHN, 2010: 51-52).117

As articulações entre esses setores estimularam um ambiente no qual as

propostas de políticas eram adicionadas aos problemas encontrados no

desenvolvimento da indústria de cinema no país:

O apadrinhamento por parte de segmentos militares mais sensíveis à questão cultural foi fundamental para o estreitamento das relações entre os setores da atividade cinematográfica e o Estado. Tanto o coronel Jarbas Passarinho quanto ao coronel Ney Braga, que o sucedeu no Ministério da Educação e Cultura, lideravam grupos de pressão bastante influentes junto aos órgãos encarregados do planejamento dos recursos da união. E ambos foram os autores de inúmeras iniciativas na área cultural (AMANCIO, 2000: 39).

117 Barreto continua: “em 1969 o grupo do Cinema Novo defendia uma posição contrária à do imposto de remessa das co-produtoras. Nós achávamos que deveria ser criado um outro sistema em que esse imposto revertesse para algum fundo, enfim, pensava-se no assunto quando o pessoal que estava no INC, aproveitando-se de um estado de anomalia, conseguiu do triunvirato militar o decreto que criou a Embrafilme. Ela foi criada com a única e exclusiva finalidade de incentivar a exportação do filme brasileiro, ou seja, um cabide de empregos para uma agência de viagens. Nós, diante do fato consumado, agimos com realismo e travamos uma luta que durou meses, contando, já no governo Médici, com o ministro Jarbas Passarinho, que montou uma comissão com algumas pessoas de sua confiança, entre elas o Walter Graciosa, para fazer um estudo sobre a transformação da Embrafilme em uma empresa de cinema, de fomento à produção” (Jornal da Tela, Embrafilme, edição especial, 1990). Para Carlos Augusto Calil, diretor geral da Embrafilme entre 1986 a 1987 “o Ney Braga era um homem muito interessante, que as pessoas costumam esquecer, o Ney Braga era muito simpático, gostava de arte, teatro, e, claro, com o aval do Golbery se estabeleceu um arco de alianças muito interessante do governo militar nacionalista tendente à abertura e tolerância com os artistas de esquerda, tanto de teatro quanto de cinema”. (apud JORGE, 2005: 39). A influência de João Paulo dos Reis Veloso é comentada pelo cineasta Miguel Borges: “em 1976 o financiamento do meu filme não saía. Foi quando procurei me aproximar do João Paulo, ministro do Planejamento, que era o cara que arranjava dinheiro extra para a Embrafilme nessa época. Ele possibilitava os chamados aumentos de capital, sempre para tirar a empresa do buraco. Eu liguei para o Ministro, que me atendeu muito bem. Ele marcou uma data, fui à Brasília e mostrei a ele o filme. Ele gostou e logo depois o financiamento saiu (NETO, 2008: 210). O cineasta Carlos Diegues, confirmando a interação entre cineastas e Estado: “a Embrafilme nasceu em 1969, sob a Junta Militar que então governava o país, um dos piores momentos da ditadura. Depois, a partir de 1974, ela foi democratizada pelos próprios cineastas que, acreditando na política de abertura do governo de então, enfiaram uma cunha cultural para ajudar a escancará-la”. (Jornal da Tela, Embrafilme, edição especial, 1990).

98

Dessa maneira, os anéis faziam circular e atavam políticas, interesses,

identidades e posições no interior do campo cinematográfico e na própria burocracia

estatal. Na época, o ministro do Planejamento Paulo Reis Velloso explica:

De 74 a 78, o Planejamento teve uma contribuição que eu considero relevante para o fortalecimento da Embrafilme, além de todas as medidas que foram adotadas para a proteção e apoio do cinema nacional. Acho que foi uma fase de grande vitalidade para o cinema brasileiro. A Embrafilme tinha realmente verba, podia financiar muitos filmes simultaneamente. Muitas vezes eu me empenhei pessoalmente para complementar os fundos do MEC. Creio que, praticamente, naquele período a Embrafilme teve os recursos que ela solicitou. (...) Eu sempre mantive as minhas convicções pessoais liberais. Minha posição sempre foi eclética. Todos sabiam do meu interesse muito honesto pelo cinema, pela cultura, e às vezes eu até ajudei alguns que tinham problemas com a censura. Acho que havia uma base de confiança muito grande, de modo que o fato deles fazerem restrições políticas ao governo nunca criou qualquer dificuldade ao nosso relacionamento. E eles sabiam muito bem que sempre houve uma garantia plena de liberdade criativa. Nunca se tentou exigir nenhum condicionamento para aquele auxilio que era dado através da Embrafilme. (...) O Nelson tinha assim uma espécie de delegação implícita dos outros para até negociar em alguns assuntos, chegar a conclusões. Embora, nos momentos de grandes decisões, nós realmente reuníssemos pelo menos seis a oito diretores, para discussões informais, geralmente na minha casa em Brasília (SALEM, 1987: 320-321).118

No início dos anos 1970, a aproximação entre os dois setores se deu durante a

gestão do cineasta Roberto Farias na direção geral da Embrafilme, entre 1974 a 1979.

A literatura aponta esse período como a consolidação das relações entre Estado e

cinema no Brasil e a consequente expansão do mercado para o filme brasileiro; na

gestão de Farias a empresa torna-se a produtora principal dos filmes, inibindo a

participação das companhias privadas. Dessa maneira, os anéis tinham confirmado

sua função ao dinamizar a circulação de teses e políticas entre burocratas e artistas.119

118Na passagem dos anos 1960 para os anos 1970 o contexto sofre uma alteração: apesar da repressão política e da censura às artes, cineastas – em geral herdeiros da tradição do Cinema Novo e seus seguidores – consolidam a interlocução com o Estado que já vinha ocorrendo desde o início do regime autoritário. A criação do INC e depois da Embrafilme consolida esse ambiente: “o reconhecimento deste empenho por parte de alguns representantes da área cinematográfica faz selar simbolicamente um pacto firmado entre o cinema e o Estado, deixando entrever um canal sólido para a manutenção das conversações e a possibilidade de concretização de um horizonte para o cinema brasileiro” (AMÂNCIO, 2000: 39). 119Os resultados das políticas adotadas neste momento variam muito: a literatura afirma que a entrada do Estado como principal produtor no interior da indústria cinematográfica brasileira dinamizou o mercado para filmes nacionais mas em contrapartida incorporou os conflitos e lutas políticas existentes no cinema brasileiro. Se a gestão de Farias ampliou o escopo de atuação do Estado ao produzir, distribuir e fiscalizar o mercado criando um ambiente no qual a consolidação da atividade parecia tornar-se algo mais concreto em comparação com a precariedade histórica que caracterizava a produção de filmes no país; por outro lado ampliou em demasia os conflitos políticos. Já ressaltamos

99

Os primeiros anos da década de 1970 foram caracterizados por esse debate

sobre o que fazer e quais possibilidades as políticas adotadas poderiam oferecer ao

filme brasileiro. A duplicação e a sobreposição das estruturas de apoio ao filme

brasileiro incomodavam diversos setores do campo cinematográfico que articulavam

em conjunto com a burocracia estatal a reformulação das políticas de cinema. De fato,

uma nova agência foi aventada naquele contexto, a Cinebras, uma articulação

realizada entre o ministro Jarbas Passarinho e cineastas e produtores: o diagnóstico

feito sobre as políticas existentes não era integralmente positivo, indicando que a

duplicação de recursos e funções estava inviabilizando a indústria de cinema.

A inserção direta do Estado na distribuição de filmes era um dos temas

cadentes, sendo que a Cinebras cumpriria essa função ao fundir as duas agências

existentes até então. Trabalhavam no projeto os ministros da Educação e do

Planejamento: um comando unificado poderia racionalizar os assuntos do cinema no

interior do Estado através de duas estruturas, uma de caráter normativo, com a criação

de regras e leis, e outra de caráter executivo e operacional. A Cinebras viria a atuar

com departamentos autônomos em direção a setores específicos da indústria do

cinema, abarcando desde o longa-metragem de exibição comercial aos setores

culturais, educativos e de patrimônio.120

O diretor do Departamento de Assuntos Culturais do MEC, Manuel Diegues

Junior, solicitado pelo ministro Ney Braga, fiscalizou o projeto de criação da

Cinebras; seu parecer naturalizava o cinema como produto industrial e expressão

artística, reforçando um encaixe já formalizado nos anos anteriores.

O cinema brasileiro tem hoje repercussão internacional, não apenas pela contínua exibição de filmes brasileiros no exterior, como também pelos êxitos do trabalho realizado pela Embrafilme. Agora chegou o momento de uma atuação mais enérgica e mais agressiva por parte do Estado, incentivando o que constitui não apenas uma expressão da cultura nacional, mas uma indústria de amplas perspectivas. Com a extinção do INC, a Cinebras seria o organismo centralizador e executor único da politica

que as instituições distribuem o poder de forma desigual e os grupos preteridos podem articular-se para minar as políticas adotadas. Ver por exemplo Amancio (2000) e Johnson (1987; 1989; 1993). 120 Cinebras também distribuirá filmes. O Estado de S. Paulo, 10 de outubro de 1973; Projeto agrava divergências na área de cinema. O Estado de S. Paulo, 23 de abril de 1974. A fusão do INC e da Embrafilme em uma nova agência já estava sendo discutida desde o começo dos anos 1970.

100

nacional de cinema. Cabera a Cinebras ou a Embrafilme, ocupar, na cultura brasileira, a posição que na economia geral do país é reservada a Petrobrás.121

Em 1972, o INC promovia o I Congresso da Indústria Cinematográfica

Brasileira para uma avaliação completa do setor. As políticas posteriores já estavam

sendo gestadas nas reuniões e plenárias do congresso entre representantes do Estado e

produtores e cineastas: maior controle do mercado por meio de uma fiscalização

extensa sobre os exibidores, a fim de evitar a evasão de rendas e um diagnóstico do

funcionamento das políticas de cinema até então implementadas pelo INC e

Embrafilme.122

Nessa ocasião, os produtores e cineastas apresentaram um documento

intitulado Projeto Brasileiro de Cinema, que propunha uma ampla reformulação da

área, com a transformação do INC em um órgão fiscalizador do mercado e a

Embrafilme como empresa de produção e distribuição de filmes. O INC seria

transformado em um Conselho Nacional de Cinema, composto por representantes dos

Ministérios da Educação, Planejamento, Indústria e Comércio, Justiça, Relações

Exteriores, Fazenda e Banco Central, ao lado de representantes da indústria. No

desenho da política, o Conselho articularia vinte atribuições, dentre elas a

normatização da indústria como um todo, prevendo padrões mínimos para o aluguel

de filmes; cota de tela; controle da importação; regras para o preço dos ingressos nas

salas de cinema; formação de mão de obra técnica; premiações.

Por sua vez, a Embrafilme manteria o status de empresa pública, com três

diretores gerais, uma secretaria geral e departamentos culturais e do filme educativo.

O Concine estabeleceria as regras para o funcionamento da indústria e a Embrafilme

aplicaria tais normais, propondo desenvolver o cinema brasileiro em seus aspectos

industriais e culturais. O projeto foi desenvolvido por Roberto Farias, Walter Hugo

Khouri, Luiz Carlos Barreto, Oswaldo Massaini e Alfredo Palacios. A ambição de

abarcar todo o escopo de uma indústria de cinema e além disso estimular o

121 Cinema pode ter novos órgãos. O Estado de S. Paulo, 06 de março de 1974. O Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica – fundado em 1952 – era um interlocutor secundário nessas questões, apesar de atuarem em seu interior nomes representativos do cinema brasileiro, como o produtor Luiz Carlos Barreto e o cineasta Roberto Farias. Para o sindicato, que apoiava o projeto,“a importância do cinema para o país não resulta apenas na possibilidade de desenvolvimento industrial, mas de sua representatividade cultural, o que implica em refletir a realidade social do povo brasileiro. É preciso um cinema nacional integrado aos valores humanísticos da cultura brasileira”. 122Filme Cultura, 22, novembro/dezembro 1972. RJ: INC.

101

desenvolvimento cultural e educativo através do filme brasileiro poderia ser vista

como manifestação de uma confusão habitual entre arte e indústria como

características intrínsecas do produto cinematográfico, mas a meu ver reproduzia uma

identidade construída historicamente no interior do cinema brasileiro e reforçada

pelas políticas de cinema após 1966. Na justificativa do projeto, lemos:

Além de sua missão de realizar filmes de entretenimento, os produtores têm a consciência da responsabilidade que os aguarda nos próximos anos: a produção de filmes educativos, didáticos e científicos para a rede escolar e universitária; filmes de treinamento não escolar, de preparação de mão de obra especializada; filmes de documentação cultural e social, de treinamento de técnicas agrícolas, industriais e comerciais, e que constituem material áudio visual destinado a abastecer o grande sistema de comunicação social que será instalado no país, o qual não poderá ser abastecido e ocupado apenas por material importado, sob pena de intensificar-se o processo de colonização cultural (PEREIRA, 1973: 272).

O projeto foi encaminhado ao Ministro Jarbas Passarinho, que decidiu nomear

uma comissão para reformular por completo a área de cinema no interior do Estado. O

cineasta Nelson Pereira dos Santos foi escolhido como representante do cinema

brasileiro e os demais membros da comissão eram: Manuel Diegues pelo MEC;

Antonio Augusto dos Reis Velloso, da Secretaria de Planejamento da presidência;

Octavio de Faria, do Conselho Federal de Cultura; Claudio Antonio Fontes Diegues,

do Departamento de Assuntos Culturais, e Leandro Gomes Tocantins, da Embrafilme.

A comissão funcionou durante cinco meses até janeiro de 1975. Propunha a extinção

do INC, ampliação das funções da Embrafilme e a criação de um órgão de

fiscalização. Nota-se que a maior parte dos membros da Comissão eram integrantes

da burocracia cultural e educacional e nenhum deles integrava a área

econômica/empresarial do Estado.123

A política sugerida pela Comissão propunha três estruturas interdependentes:

01) Concine, subordinado ao MEC com orientação normativa e capacidade de

fiscalização;

02) Embrafilme, como uma empresa de economia mista, tendo o governo como

acionista majoritário. Sua atuação seria ampliada para abranger coprodução,

distribuição, financiamento para a indústria e aquisição de equipamentos;

123 Portaria do MEC n. 454, de 27 de julho de 1974.

102

03) Centrocine, uma fundação vinculada ao MEC, cujo objetivo era incorporar as

questões culturais e educativas do cinema. Seu presidente seria indicado pelo

ministério com um Conselho Deliberativo com integrantes do Departamento

Universitário, das cinematecas e dos cineastas.124

A comissão propunha criar uma rede exibidora em cidades nas quais o exibidor

tradicional não tinha interesse em exibir o filme nacional nem construir salas de

cinema. Mesmo assim, medidas mais restritivas na circulação do filme importado não

foram adotadas: “apesar de numerosas soluções a Comissão rejeitou qualquer medida

restritiva ao livre comercio cinematográfico, mantendo abertas as fronteiras

comerciais e culturais do país”:

A Embrafilme, poderia, então, associada à iniciativa privada, estimular esse tipo de rede exibidora, com muito proveito para a indústria cinematográfica brasileira, além de constituir elemento de integração nacional, desde que, em todos os quadrantes de nosso território, as populações ouvirão a nossa língua, entrarão em contato visual com os valores brasileiros, diversificados pela pluralidade regional e cultural, mas unificados pelo mesmo sentimento político de Nação. A comunicação direta do cinema poderá influir decisivamente para estreitar os laços nacionais.125

A proposta continha uma equação difícil de ser resolvida, pois ao mesmo

tempo em que afirmava o direito do filme nacional ao seu próprio mercado, não

oferecia restrições na circulação do filme importado: a comissão assegurava a

importância do papel desempenhado pelo filme estrangeiro e a política apenas

ressaltava uma “faixa de mercado” não especificada à qual o cinema brasileiro teria

direito. A criação do Centrocine introduzia parcerias com o sistema educacional e

universitário, deixando a Embrafilme liberada para as atividades de características

mais comerciais, mas essa proposta não foi adiante. Na ocasião da reforma das

políticas de cinema, em 1975, a empresa incorporou ambas as atividades.

Mas diferentemente das políticas anteriores, expressas no INC e na

Embrafilme, a nova estrutura institucional incorporava os cineastas nos conselhos

deliberativos e no interior do processo decisório. Aqui verificamos que há uma

124 A fundação abrigaria as partes de pesquisa, conservação, produção de filmes educativos e culturais, formação profissional, e estabeleceria parcerias com universidades. Para tanto, quinze por cento do orçamento da Embrafilme seria destinado à manutenção do Centrocine. Segundo a Comissão a fundação “deveria assimilar a maneira brasileira de fazer cinema, o que deve fortalecer a personalidade cultural brasileira”. 125 Relatório da Comissão INC Embrafilme. MEC, 1975, p. 8.

103

equiparação entre as burocracias econômicas e culturais no interior do Estado,

indicando um quadro de paridade institucional alto em favor da segunda. O Artigo 5o

do anteprojeto de lei proposto pela comissão indicava:

As atribuições do INC passam à Embrafilme ou ao MEC. Compete ao Ministério da Educação e Cultura a formulação e a expedição de normas e resoluções sobre a atividade cinematográfica brasileira, bem como a aplicação das sanções pelo descumprimento de disposições legais e de normas e resoluções.126

Essas discussões culminam em 1975 com a promulgação da lei 6.281, de 9 de

dezembro de 1975. A estrutura criada fundia o INC à nova Embrafilme, que incluía

também atribuições adicionais:

a) no campo comercial, a empresa seria coprodutora, distribuidora e exportadora

de filmes nacionais, além de financiamento à indústria cinematográfica;

b) no campo cultural, seria responsável pela pesquisa, recuperação e conservação

de obras fílmicas, produção de filmes educativos e culturais, formação

profissional, documentação e publicação de livros e revistas;

c) a Criação do Conselho Nacional de Cinema, o Concine, cuja função seria

propor leis, aplicar multas e fiscalizar o mercado, além de promulgar a

extensão da cota da tela.127

O Concine incorporou os Conselhos Deliberativo e Consultivo do INC,

transformando-os em uma instância única de caráter decisório. Se a divisão anterior

estabelecida pelo INC ainda delimitava o espaço do cinema brasileiro no interior do

governo – de caráter consultivo – a nova formulação apresentada pelo Concine

significava um ganho de poder: dos treze conselheiros apenas três representavam a

classe cinematográfica, mas agora com poder de fato.

Assim, o Concine foi transformado no órgão forte do cinema nacional, responsável pela formulação, controle e cumprimento das normais e leis regentes do segmento cinematográfico, além da politica de comercialização e regulamentação do mercado, incluindo

126 Relatório da Comissão INC Embrafilme. MEC, 1975, p. 8.127 O cineasta Roberto Farias foi o primeiro diretor geral da Embrafilme reestruturada em 1975. Luiz Carlos Barreto teria sido o nome indicado pela classe cinematográfica, mas foi vetado pelo regime autoritário; Farias tornou-se então um nome de consenso. Foi sucedido em 1979 pelo diplomata Celso Amorim, uma tentativa do regime em reassegurar o controle da empresa. Os cineastas retomam as indicações para a Embrafilme em 1986, quando elegem Carlos Augusto Calil como diretor-geral.

104

filmes publicitários. No entanto, a conquista de um espaço significativo nas esferas da articulação politica pelo setor produtor foi paradoxalmente contraposta pela força do cinema norte-americano (SIMIS, 2008: 41).

O cineasta Roberto Farias implementou a reforma das políticas de cinema; foi

alçado ao posto por indicação dos setores mais influentes do cinema brasileiro, ainda

que vozes discordantes se fizessem ouvir em um contexto no qual o Estado atendia de

forma integral as reivindicações da classe. Em carta endereçada ao cinema brasileiro

como um todo, Farias justificava:

Da cadeira de diretor da Embrafilme, tenho visto e ouvido de tudo: os que dizem ter liderado movimento para me colocar no cargo, os que me confidenciam terem sido solicitados a liderar movimentos para me tirar de lá. (...) Mas, embora falem em nome da classe, mesmo arvorando-se em arautos de uma causa coletiva, será sempre fácil identificá-los. São arrivistas, carreiristas e imediatistas, que fazem reivindicações em causa própria, esquecidos de que o Cinema Brasileiro é um todo, cuja emancipação e cujo progresso só serão possíveis, em definitivo, quando todos souberem colocaram o interesse geral acima do particular.128

Sua indicação e a possibilidade de ampliação das políticas de cinema de certa

forma faziam submergir as vozes dissonantes; naquele contexto, um bloco

homogêneo se sobrepunha ao dissenso, pois tinha como principal aliado um poderoso

ator, o Estado. Farias continua:

Temos uma oportunidade rara em nossas mãos e uma responsabilidade enorme sobre nossos ombros. Precisamos aproveitar a oportunidade e honrar a responsabilidade. (...) O importante é fazer o melhor filme. Como de um bom roteiro nem sempre resulta um bom filme, a Embrafilme elaborou as normas, através das quais procura escolher bons projetos. Cada cineasta tem seu conceito particular quanto ao cinema brasileiro que deve ser financiado pela Embrafilme. E, geralmente, dentre uns poucos nomes, inclui o seu próprio. Para mim, Cinema Brasileiro se faz representar por (...)129

128 Carta de Roberto Farias à classe cinematográfica. Documento mimeografado. Arquivo Roberto Farias, Cinemateca Brasileira. 129 Ele elenca dezenas de nomes que vão de Arnaldo Jabor, Antonio Calmon, Alex Viany, Ana Carolina, Bruno Barreto, Carlos Diegues, Carlos Coimbra, Carlos Manga, Aníbal Massaini, Carlos Reichenbach, David Neves, Denoy de Oliveira, David Cardoso, Eduardo Escorel, Eduardo Coutinho, Flávio Tambellini, Geraldo Sarno, Gustavo Dahl, Jarbas Barbosa, Joaquim Pedro, Jece Valadão, Luís Sérgio Person, Rosemberg Cariry, Miguel Farias, Nelson Pereira dos Santos, Oswaldo Candeias, Olney

105

O aporte de recursos do Estado nas agências de suporte ao filme brasileiro, os

instrumentos de controle disponíveis para normatizar o mercado como um todo e as

possibilidades abertas para a produção cinematográfica reforçavam paradoxalmente

não uma indústria de cinema que pudesse ser viável a longo prazo mas exatamente o

oposto, a dimensão cultural, que a meu ver endossava ainda mais um encaixe entre

esse tipo de argumento e a burocracia estatal. Continua Farias:

E dimensionamento (da Embrafilme, com o aumento de recursos da empresa e convênios com governos estaduais) implica não só preocupar-se com os vários tipos de financiamento que a empresa oferece, com o todo necessário à manutenção da atividade cinematográfica, mas também com um planejamento de profundidade, visando a uma ação capaz de modificar os hábitos de consumo de cinema no país em favor da nossa história, dos nossos escritores, do nosso folclore, das nossas raízes, daquilo que somos.130

Dessa maneira, a estrutura transformada em 1975 nos leva à segunda linha de

dependência de trajetória nas políticas de cinema no Brasil. Já sugerimos que as

políticas conhecem processos de autorreforço, e que, uma vez instituídas, dificilmente

retornam ao ponto original e às opções então disponíveis. Tal mecanismo ocorre

porque as políticas geram retornos crescentes para seu público alvo, que se adequa ao

seu conteúdo. Dessa maneira, a estrutura institucional recriada em 1975 não altera as

linhas gerais das políticas de cinema no país, apenas essas recebem novas camadas:

a) focadas na produção de filmes;

b) cuja difusão ocorre em um ambiente específico, as salas de cinema;

c) articuladas ao redor de dois polos: burocracia estatal e cineastas/produtores;

d) ausência de mecanismos de responsabilização pública.

Com o declínio do regime autoritário e o processo de redemocratização

política do país nos anos 1980, a empresa entra em um processo de decadência

acirrado pelas lutas internas, pela crise econômica e pelo desinteresse dos governos. A

crise econômica dos anos 1980 solapa a capacidade do Estado em continuar

expandindo suas atividades, e as empresas estatais, fundações e autarquias, que

São Paulo, Ody Fraga, Paulo César Saraceni, Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Sylvio Back, Walter Lima Junior, Zelito Viana. Curiosamente, Glauber Rocha não está na lista. Carta de Roberto Farias à classe cinematográfica.130 Idem.

106

detinham um razoável grau de autonomia econômica e administrativa, são as

primeiras a sofrer esses impactos. Os ajustes governamentais recaíram basicamente

sobre esses setores do Estado. O modelo de expansão pautado em uma lógica

desenvolvimentista conhecia seus limites nos anos 1980 com a crise da dívida e o

fechamento das fontes de financiamento. Ao mesmo tempo a oposição ao regime

autoritário tornava-se crescente por parte de uma sociedade civil cada vez mais

complexa que questionava a expansão do Estado e seu suposto dirigismo. O modelo

econômico alterava-se em direção a uma lógica neoliberal que projetava um Estado

capaz de administrar apenas questões básicas; a sociedade civil seria o elemento mais

adequado para a resolução de assuntos coletivos.131

Nesse contexto a Embrafilme sofreu diferentes tipos de contestação: dos

próprios cineastas insatisfeitos com a administração da empresa e a dificuldade em

produzir novos filmes; da própria estrutura governamental disposta a poupar outras

áreas dos cortes orçamentários e especialmente da sociedade civil. Durante a gestão

de Carlos Augusto Calil (1986-1987), tentou-se reanimar a empresa com um projeto

denominado “Política Nacional de Cinema”, organizado no recém-constituído

Ministério da Cultura. Para estudar os problemas da área e redigir o documento com

as propostas, uma comissão foi formada com dez integrantes, sendo que cinco deles

eram ligados ao cinema brasileiro.

Diante de um cenário econômico que minava qualquer possibilidade de êxito

para o filme nacional – alijado das redes de televisão pública e privada e dissociado

das instituições educacionais e culturais –, pouco restava ao cinema brasileiro naquele

momento. E as propostas do documento insistiam na capacidade do Estado em

normatizar setores historicamente afastados do desenvolvimento do cinema brasileiro:

o circuito exibidor e as televisões. O financiamento do setor ficaria a cargo das

empresas estatais, das emissoras de televisão, do sistema publicitário e dos bancos

oficiais.

Quais foram as justificativas elaboradas pela Comissão para que o aporte de

recursos estatais fosse mantido e o subsídio à produção de filmes não fosse

131O Estado desenvolvimentista é uma modalidade especial de intervencionismo estatal, orientado não para evitar as fases depressivas do ciclo econômico capitalista, mas para impulsionar a industrialização em países de desenvolvimento tardio. Uma aliança entre capitais locais e estrangeiros foi realizada para atender o mercado interno e substituir as importações (SALLUM, 1996).

107

interrompido? A julgar pelo documento, o cinema brasileiro acreditava que os termos

do encaixe ocorrido nos anos 1960 ainda estariam sob validade:

A decisão do governo de adotar uma política para o cinema parte do pressuposto de que, no esforço de retomar o caminho da democracia e do desenvolvimento econômico, cultural, social e político, o país não pode prescindir de uma moderna indústria de comunicação social na qual o cinema ocupa posição de destaque, por ser: a) manifestação cultural e artística de consumo eminentemente popular e que promove a integração social das populações, b) capaz de refletir, de forma ampla e pluralista, as realidades regionais do país, c) importante instrumento de valorização, resgate e fixação da memória nacional, pela durabilidade do seu registro, d) uma indústria nacional.132

Qual foi a recepção do documento junto ao Ministro da Cultura Celso

Furtado? Sobre esse fato Calil, diretor geral da Embrafilme na época e presidente da

Comissão, relata:

A minha experiência lá foi longa, mais longa do que deveria ser. Primeiro diretor cultural, depois diretor de produção, depois diretor geral. Como diretor-geral durei 1 ano apenas, a empresa estava já falida, conseguimos uma verba do ministro João Sayad que permitiu que a empresa continuasse por mais algum tempo. Mas não foi Collor que extinguiu a empresa, ela já estava falida há muito tempo. O ministro Celso Furtado não gostava da empresa, a achava ilegítima, fruto do regime militar. Ele tinha outras ambições, outros ministérios, então não tinha interesse na empresa e praticamente não seguiu os nossos conselhos. A fila de credores tinha que organizar, tentava pagar os pequenos, houve o problema com o governo, até a organização com a posse do Sarney, era preciso organizar o caixa, organizar os pagamentos, então o Sayad nos socorreu. Sim, o Celso Furtado não tinha interesse. Ela não pode continuar, é ilegítima. Ele nem chegou a ler projeto da Comissão. Não é verdade que quem tenha acabado com a Embrafilme era o Collor, ele apenas assinou, quem acabou com a empresa foi Celso Furtado. Ele tinha bloqueios com a Embrafilme. Queria transformar a Embrafilme numa fundação, eu falei que isto ia acabar com a Embrafilme distribuidora, que era rentável. Mas Furtado dizia que ela não era legítima e eu pedi demissão. Eu tentei de alguma maneira abrir o horizonte da Embrafilme, mas ela já estava acabada por Celso Furtado, que liquidou a empresa. Ele ignorou o projeto de lei elaborado pela Comissão. Perguntei para ele, “caso o senhor fosse Ministro em 1947 teria acabado com o IPHAN, que foi criado no Estado Novo?” (Depoimento ao autor).

O terreno no qual aportaram as propostas da Política Nacional de Cinema não

poderia ser mais hostil: a redemocratização brasileira tendia a condenar a estrutura

estatal como centralizadora, autoritária, impeditiva da livre iniciativa e da capacidade

132Proposta para uma política nacional de cinema. Jornal da Tela. Edição Especial, março, 1986. RJ: Embrafilme, Minc.

108

de organização da sociedade. De posse do documento, o jornal Folha de S.Paulo

condenou as medidas, acusando o cinema brasileiro de viver do protecionismo estatal.

Em diversos editoriais o jornal afirmava que o papel do Estado cabia apenas na

manutenção de escolas de cinema e na preservação, não na produção direta de filmes.

Naquele momento o jornal iniciava uma campanha intitulada “Este Milhão é Meu”,

questionando as políticas da Embrafilme na distribuição de recursos e o fato de que

cineastas não estavam honrando suas dívidas com a empresa.133

Isolado no interior da cultura brasileira e cada vez mais distante do apoio de

seu principal interlocutor, pouco restava ao cinema brasileiro a não ser a decadência

comercial até a extinção de fato das agências estatais em 1990.

Sempre submetida à órbita cultural, seja vinculada ao Ministério da Educação ou na Nova República ao Ministério da Cultura, a Embrafilme era o alicerce da luta política do cinema brasileiro. Tal fato delimitava o desenho das reformas no campo cinematográfico: ainda que o horizonte fosse a vinculação do cinema como atividade industrial tentando-se ligar ao setor empresarial do Estado, o alicerce era a perspectiva cultural através da lógica do subsídio ao filme. Assim, a visão empresarial era apenas uma miragem presente no discurso do campo cinematográfico, porque a lógica recorrente era a do filme enquanto valor cultural à qual estavam acostumados desde os anos 1960, ainda que tal temática tenha sido eclipsada nos anos 1970 em virtude da expansão crescente do filme brasileiro no mercado (ESTEVINHO, 2007: 241).

Uma última reforma foi realizada na Embrafilme, separando a área cultural da

comercial; a primeira constituiu-se na Fundação do Cinema Brasileiro (FCB),

incorporando as políticas de premiação; promoção de festivais; edição de livros e

revistas; recuperação de acervo e coprodução de filmes educativos; a segunda

transformou-se na Embrafilme Distribuidora, voltada para o segmento comercial.134

Em 1989 a Embrafilme comemorou duas décadas de existência; no ano

seguinte, poucos dias antes da posse do presidente Fernando Collor, a empresa

publicava um jornal comemorativo no qual realizava uma retrospectiva da empresa

desde sua fundação até aquele momento, com depoimento dos diversos diretores,

cineastas e produtores contemplados com suas políticas. Em um editorial publicado

133A campanha do jornal fazia referência ao filme de Carlos Manga, Este milhão é meu (Brasil, 1959). Ver por exemplo ESTEVINHO (2007). Entre 1986 a 1987, dezenas de artigos críticos à empresa foram publicados na imprensa brasileira. Apenas no ano de 1986 a Folha de S.Paulo publicou quatro editoriais críticos à Embrafilme: Cinema fora do Estado (26 de janeiro de 1986); Burocratas do cinema (22 de fevereiro de 1986); Cine catástrofe (20 de março de 1986) e Maquiagem na Embrafilme (05 de novembro de 1986). 134Lei n. 7.624, de 05 de novembro de 1987.

109

no mesmo número, ao lado do inventário e dos feitos passados, a empresa

surpreendentemente apontava em direção ao futuro:

O cinema brasileiro é basicamente pluralista, e com isso também contribui (tem contribuído ao longo de sua história) para o aprimoramento do convívio social. Diferentes entre si, os nossos filmes são também agentes de diferentes ordens de pensamento. Em toda a sua história, o cinema brasileiro teve quase sempre uma visão crítica, e o seu caráter profundamente pluralizado coloca-o em condições de veicular os novos projetos de reestruturação nacional. E é essa nova realidade do país que o nosso cinema certamente haverá de veicular nos próximos anos.135

O presidente Fernando Collor tomou posse no dia 15 de março de 1990. Entre

seus primeiros atos estava a liquidação definitiva da Embrafilme. Estava realmente

encerrado mais um ciclo nas políticas de cinema no Brasil? Os elos foram

efetivamente desatados e os vínculos rompidos? Ou será que o encaixe aqui

mencionado em diversas ocasiões permaneceu, ainda que submerso, pronto para

emergir em um contexto apropriado?

135Jornal da Tela, edição especial, março de 1990, p. 2

110

4. Uma conjuntura crítica: os anos Collor (1990-1992)

...fazer cinema sem dinheiro é possível, o que é bem mais difícil é fazer cinema sem um país. Guilherme de Almeida Prado, Revista Usp, 19, 1993, p. 26.

111

O processo de redemocratização no Brasil envolveu uma transformação no

padrão da relação entre Estado e sociedade e na superação de uma estrutura político-

institucional que remontava aos anos 1930. O chamado Estado desenvolvimentista foi

o artífice cuja capacidade de conectar sociedade, governo e capital privado foi posta à

prova nesse processo, que ocorreu em conjunto com uma série de fenômenos – como

a globalização econômica e financeira –, dificultando as tentativas de estabilização

política nos anos 1980.

As ideias hegemônicas nas instituições econômicas internacionais também

haviam se alterado em direção ao modelo neoliberal, cuja proposta básica consistia na

restrição do gasto público e na internacionalização dos fluxos financeiros. O espaço

para políticas econômicas mais autônomas reduzira-se drasticamente nos anos 1980,

minando as bases do modelo de desenvolvimento adotado pelo Estado brasileiro: as

propostas de industrialização associada ao capital internacional e às empresas estatais

não encontravam mais grupos que as sustentassem. Desregulamentação das atividades

privadas, rígido controle na atuação das empresas públicas e internacionalização da

economia tornaram-se os fundamentos que estruturaram as relações entre Estado e

sociedade desde o início dos anos 1980.

A eleição de Fernando Collor em 1989 e sua posse em março de 1990

consumaram a institucionalização desse debate que ocorria em larga medida em

diversas instituições da sociedade e o internalizaram na própria burocracia estatal: o

modelo desenvolvimentista pautado na industrialização por meio da substituição das

importações pela produção nacional seria substituído por um novo modelo.136

136 Luiz Paulo Vellozo Lucas era o diretor do Departamento de Indústria e Comércio do governo Collor e técnico de carreira do BNDES: “tinha o edifício institucional montado no pós-guerra em torno da substituição das importações. E que contaminou toda a economia, positivamente, negativamente, independente se valeu à pena ou não, a opção do nacional-desenvolvimentismo, os pontos favoráveis são maiores ou menores, isto é controverso, se o veredicto é condenação ou absolvição, havia um consenso de que havia se esgotado enquanto força orientadora do processo de desenvolvimento, de investimento da economia (...) Então era preciso que o paradigma de substituição de importações, que era produzir internamente coisas que a gente importava, fosse substituído por um novo paradigma, que é produzir internamente produtos e serviços com padrões internacionais de preço e qualidade. Era esta a expressão (...) Não é uma ruptura no sentido de desfazer tudo o que havia sido feito mas era saltar para uma nova etapa, de superação epistemológica, de uma nova etapa para um outro período em que uma série de mecanismos tinha perdido finalidade, novos mecanismos teriam que ser colocados, o novo objetivo seria passar a ganhar competitividade. O que é ser competitivo? É ter capacidade de padrão internacional de preço e qualidade. Esta competitividade depende de coisas que estão dentro dos muros da empresa e fora dos muros da empresa. Que é sistêmico, depende do funcionamento da economia como um todo. Foi neste ambiente que nós chegamos no início dos anos noventa. Nos vários setores, no final de 1989, para abrir qualquer empresa no Brasil era preciso uma série de autorizações. (...) Isto tudo era chamado institucionalidade velha da substituição de importações, que precisava ser

112

Ao mesmo tempo, a sociedade civil estava mais ativa, por meio de um novo

padrão de associação presente em diversos grupos, e apontava para uma autonomia

crescente em relação ao Estado, que tradicionalmente a atendia de forma controlada.

Este perdeu o ímpeto articulador entre os diversos setores sociais e no interior da

própria atividade governamental e se defrontou com novos e múltiplos centros de

poder: nas atividades legislativas, nos executivos municipais e estaduais e no interior

da própria burocracia estatal.137

O cinema brasileiro chega ao processo de redemocratização fortemente atado

ao Estado e em especial ao regime autoritário que lhe deu o principal suporte por

meio das políticas implementadas pelo INC e depois pela Embrafilme. Enfrentando

um ambiente econômico instável, que por um lado restringia a performance comercial

dos filmes e por outro levava o governo a eleger prioridades que não o investimento e

manutenção do campo cultural, o cinema brasileiro – e seus setores mais influentes

politicamente – não tinha muitas opções a não ser ressaltar as conexões entre filme,

cultura e nacionalidade, buscando a continuidade dos investimentos públicos na área.

No final dos anos 1980, com mercado restrito às salas de cinema – dominadas pelo

filme importado – e sem acesso à televisão, a sobrevivência econômica dependia

basicamente dos recursos estatais; mesmo um cineasta de uma geração posterior ao

cinema novo, como Roberto Gervitz, continuava a reproduzir os mecanismos

instaurados pela política:

Não há e não houve setor da atividade econômica no Brasil que tenha se viabilizado sem a elaboração e a implantação de uma política governamental. Em um país como o nosso, onde reinam as competentes, porém convencionais, mídias eletrônicas, associadas aos grandes interesses econômicos, o cinema representa um espaço independente de reflexão, criação e renovação de que uma sociedade que se pretende dinâmica não pode prescindir. Tal importância exige que ele seja assumido pelo conjunto da sociedade e seus representantes.138

substituído por uma nova institucionalidade, para um novo paradigma da integração competitiva.” (Depoimento ao autor). 137 A sociedade civil confrontou o Estado em diversas ocasiões, tornando muito mais difícil de ser cooptada e absorvida pelos seus mecanismos tradicionais de atuação. As teses neoliberais estavam sendo difundidas no país desde o começo dos anos 1980, mas se tornaram politicamente hegemônicas apenas na década seguinte. Ver SALLUM (2004; 2006). 138 Cinema brasileiro – desaparecimento ou viabilização. Artigo de Roberto Gervitz. Folha de S. Paulo, 03 de maio de 1988.

113

A sociedade reivindicada por Gervitz naquele momento ainda se batia contra a

herança do regime autoritário, e setores mais específicos – representados pela

imprensa – faziam campanha aberta contra a Embrafilme e as políticas de subsídio ao

cinema brasileiro. O fim da empresa em 1990 representava um catalisador de todas

essas tendências: sociedade civil mais atuante; crise econômica e consolidação do

neoliberalismo; eleição do primeiro presidente por voto direto; transformações na

indústria do cinema e especialmente o fechamento dos horizontes para o filme

brasileiro.

A última assembleia geral da Embrafilme ocorreu em 25 de maio de 1990,

cuja pauta era efetuar sua própria dissolução por meio de um representante do

governo federal, Adnor Pitanga, responsável por essa função. Como o governo

respondia pela maior parte das ações da empresa, a assembleia foi considerada

encerrada. 139 Os votos contrários à dissolução da empresa vieram dos acionistas

minoritários – cineastas e produtores –, que também registraram em ata depoimentos

críticos a tal medida. Curiosamente, o governo estadual do Paraná – um dos acionistas

minoritários da Embrafilme –,proferiu voto contrário por meio de seu representante e

solicitou que a liquidação da empresa não afetasse a continuidade das produções nem

que a distribuição dos filmes brasileiros sofresse algum tipo de prejuízo.140

Entre os argumentos mobilizados para a continuidade da empresa, os cineastas

enfatizaram sobretudo a presença do filme importado; a evasão de divisas e a

desnacionalização do setor: para Roberto Farias, somente no ano anterior (1989),

quarenta milhões de dólares tinham sido remetidos ao exterior pelas distribuidoras

estrangeiras. O cineasta Neville de Almeida afirmou:

A Embrafilme tem vinte anos e produziu mais de 300 longa metragens, mais de 400 curta metragens e ganhou mais de 500 prêmios. Quem vai produzir esses filmes, quem vai distribuir esses filmes, pra onde é que vai isso? Nós do cinema estamos numa luta de Davi contra Golias. Quem vai ganhar com isso, quem lucra com isso, quem neste momento vai abrir uma garrafa de champanhe para comemorar a extinção da Embrafilme? E a resposta é clara. Quem lucra com isso são os grandes monopólios internacionais, que têm o mercado brasileiro totalmente aberto para entrar aqui. Espero que o Governo

139 A dissolução da Embrafilme ocorreu de acordo com a lei 8.029 de 12 de abril de 1990. 140 O governador do Paraná naquele momento era Álvaro Dias, do PMDB, partido que não compunha a coalizão que sustentava o governo no Parlamento. Também manifestaram voto contrário a dissolução da Embrafilme os seguintes cineastas e produtores: Carlos Hugo Christensen, Neville de Almeida, Paulo Thiago, Arnaldo Jabor, Susana de Moraes, Roberto Farias, Teresa Trautman, entre outros. Ata da Assembleia Geral Extraordinária, Embrafilme, 25 de maio de 1990.

114

Collor faça pelo cinema brasileiro mais do que as ditaduras militares anteriores fizeram.141

A produtora Mariza Leão, acionista minoritária, também relatava seu voto

contrário:

Declaro voto contrário à extinção da empresa. Apesar de em todas as assembleias a minoria não ser suficiente para fazer valer seu ponto de vista, uma vez que a União Federal é majoritária, essa minoria, na verdade, é o cinema brasileiro. Então, é uma minoria que não se tornou acionária por interesses patrimoniais em relação à empresa, mas por interesse em construir o que foi construído, e que a Embrafilme extinta não fará com que essa minoria se extingua. Acho que o cinema brasileiro, através da Embrafilme, deu provas suficientes de seu poder. Eu coloco uma questão importante. Se o projeto do presidente Collor passou pela extinção da Embrafilme, é preciso que a Secretaria da Cultura diga qual é o seu projeto positivo, porque o projeto negativo era extinguir. Fica a pergunta: qual é o projeto positivo?142

Conforme relata Mariza Leão, o projeto positivo ainda não tinha sido

vislumbrado e o impacto das primeiras medidas anunciadas por Collor – extinção do

Ministério da Cultura e transformação de sua estrutura em uma Secretaria da Cultura

ligada à Presidência da República e às autarquias, fundações e empresas da área

cultural – foi devastador para o cinema brasileiro, não apenas por seu impacto

econômico mas sobretudo por sua dimensão simbólica: o retorno à democracia

política abandonava um setor da cultura brasileira no qual a reflexão sobre autonomia

estética, independência autoral e autoconsciência nacional tinha sido central.

O objetivo deste capítulo é retomar essa história, ao observar os mecanismos e

processos que resultaram no esgarçamento dos elos entre Estado e cinema no Brasil

no início dos anos 1990, e como as políticas foram reconstruídas: apesar da

conjuntura crítica enfrentada pelo cinema brasileiro naquele contexto, as conexões

entre cineastas e burocracia estatal continuavam ativas.

141 Idem. 142 A assembleia declarou extintos todos os cargos e fixou em seis meses o prazo para a liquidação integral da empresa. Ata da Assembléia Geral Extraordinária da Embrafilme, 25 de maio de 1990.

115

4.1 Conjuntura crítica, instituições e atores

Um dos primeiros atos assinados pelo presidente Fernando Collor em março

de 1990 transformava radicalmente a estrutura institucional das políticas de cinema no

Brasil: por meio de uma medida provisória foram dissolvidas a Embrafilme, a FCB e

o Concine, entre outras agências de apoio estatal à cultura.143

Com esses passos uma conjuntura crítica foi constituída, abrindo novamente

as oportunidades para o cinema brasileiro; se por um lado as medidas privavam

produtores e cineastas de um suporte para a reprodução institucional de suas

atividades, por outro os liberava para modelos de políticas inteiramente novos ou

distintos daqueles adotados nos trinta anos precedentes. Uma conjuntura crítica é um

momento no qual a estabilidade institucional está rompida e alternativas políticas

antes obstruídas podem estar novamente disponíveis: nesse contexto de mudanças

drásticas os atores têm diante de si um terreno aberto a ser explorado.144

Nesse processo muitas propostas foram debatidas pelo cinema brasileiro,

prevalecendo a reedição de políticas adotadas no passado e posições que revelavam a

ausência de um projeto que renovasse a interlocução com o Estado. Muitos cineastas

já propunham a privatização da Embrafilme nos anos anteriores ao decreto emitido

por Collor, mas uma política compensatória a tal processo nunca foi esboçada

claramente: Nelson Pereira dos Santos apostava no encerramento das atividades

governamentais no cinema e se declarava contrário as medidas intervencionistas; para

ele a solução seria o estabelecimento do livre mercado nos assuntos do cinema.

143 A MP 150, de 15 de março de 1990 alterava o status do Ministério da Cultura, transformando-o em Secretaria vinculada à Presidência da República. Lei 8.028, de 12 de abril de 1990. A MP 151, de 15 de março de 1990 dissolvia diversas fundações e empresas estatais, como a Embrafilme. Lei n. 8.029, de 12 de abril de 1990. 144 Na análise institucional histórica uma conjuntura crítica pode ser descrita como uma situação na qual a ação política está aberta e as escolhas disponíveis aos atores expandem-se significativamente. Um processo político caracterizado como dependente de trajetória tem em um processo de conjuntura crítica seu ponto inicial: “In the context of the study of path-dependence phenomena, we define critical junctures as “relatively” short periods of time during which there is a “substantially” heightened probability that agents’ choices will affect the outcome of interest”. (CAPOCCIA; KELEMEN, 2007: 348). (No contexto dos estudos dos fenômenos de dependência de trajetória, nós definimos uma conjuntura crítica como um período de tempo “relativamente” curto no qual existe um aumento considerável na probabilidade de que as escolhas dos agentes possam afetar os resultados de seu interesse”. (Tradução livre.) O conceito de conjuntura crítica no interior do neoinstitucionalismo é utilizado de forma ampla, no sentido de auxiliar a análise de políticas cujo processo é dependente de trajetória mas também é mobilizado para explicar alterações de amplo escopo na política: por exemplo, a implementação do plano Real no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso teve o significado de uma conjuntura crítica, pois alterou profundamente os mecanismos de distribuição de poder entre os atores políticos, afetando suas posições e preferências (ABRÚCIO; COUTO, 2003).

116

O mercado deve ficar aberto às importações e à livre competição entre os filmes. O acesso dos filmes às telas deve ser igual para todos, até porque nenhum filme se exibe por força de lei, mas por negociação livre entre o produto, o distribuidor e o exibidor.145

Para o produtor Roberto Farias, a privatização da Embrafilme poderia ser uma

solução mais estratégica se adotada em conjunto com um adicional de renda destinado

ao produtor e exibidor e uma parceria com as redes de televisão.

Nos últimos dez anos foram gastos US$ 50 milhões em despesas de manutenção e produção de filmes. O retorno da aplicação desses recursos na produção de filmes não atingiu 10% do investimento. Se a produção brasileira fosse vendida inédita para a televisão brasileira, mesmo com prejuízo essas vendas teriam proporcionado um retorno de no mínimo 40% dos recursos empregados.146

O ciclo Embrafilme também estaria encerrado para o cineasta Walter Lima

Junior e os resultados não teriam sido positivos: os anos de intervenção estatal na área

do cinema teriam induzido a classe cinematográfica à passividade e à complacência

com as medidas adotadas. A exemplo de outros colegas, acreditava na possibilidade

de negociação do acervo da Embrafilme junto às emissoras de televisão, e um

“retorno às origens” significava (re)inserir o cinema brasileiro nas leis econômicas de

livre mercado.

O que fazer? Aproximar de uma trading a viabilização do projeto? Voltar a operar com os pés fincados no chão da indústria cinematográfica? Acho que é por aí mesmo que a coisa poderá andar, enfrentando as leis do mercado. Esta simples questão nos remete ao que faz com o outro cinema brasileiro. Não o da Embrafilme porque este já acabou, mas o cinema que iremos fazer certamente caso ainda exista juízo. Não é preciso muita imaginação para sentir que precisamos tirar o cinema brasileiro da bolha nacionalista onde tem sobrevivido e levá-lo ao convívio da comunidade cinematográfica internacional.147

145 Abaixo a reserva de mercado. Jornal do Brasil, 13 de março de 1990. 146 Roberto Faria defende privatização da Embrafilme. Folha de S.Paulo, 13 de março de 1990. 147 Vícios da Embrafilme devem ser superados. Folha de S.Paulo, 08 de abril de 1990. O “retorno às origens” voltava a atenção às políticas do INC de coprodução com as distribuidoras de filmes; seriam elas que deveriam decidir a melhor aplicação dos recursos obtidos por meio do imposto sobre a remessa de lucro ao exterior; Walter Lima continua: “tudo o que ali foi estudado e decidido é o principal material de análise para a existência de um cinema brasileiro moderno em sintonia com as leis do mercado. Evidente que há que atualizá-lo, mas as realidades são as mesmas e a primeira lição que salta aos olhos é de que as distribuidoras estrangeiras devem recuperar a possibilidade de decidir o que querem (ou não) fazer com o dinheiro congelado da remessa de lucros. Caso não queiram investir em produções cinematográficas, perderiam o acesso ao dinheiro após um prazo X. O fundamental disso

117

Quais seriam as saídas para a crise e a conjuntura crítica vivida pelo cinema

brasileiro naquele momento? As transformações ocorridas no interior do próprio

Estado com o encerramento de agências, de políticas e de restrições orçamentárias

impactavam diretamente cineastas e produtores pela sua vinculação íntima com o

setor. Nesse contexto, muitos reexaminavam o passado em busca de respostas sobre o

que fazer e quais políticas poderiam emergir nesse quadro caótico.

Em um texto publicado logo após a dissolução da Embrafilme, o crítico Jean

Claude Bernardet ressaltava a inabilidade das políticas até então vigentes em gerir um

ambiente autônomo para o cinema brasileiro; o cenário conturbado vivido naquele

momento poderia ser positivo porque instigava os atores a experimentar novos

modelos. Dessa maneira, os sinais da crise não poderiam ser localizados em apenas

um polo.

Mas será que os dados da crise encontram-se apenas do lado do governo? A cirurgia sem anestesia, sucedendo a morosidade do pouco estimulante governo anterior e as gestões pouco instigantes dos seus vários ministros da cultura parecem ter provocado nos produtores culturais, em particular nos cineastas, um estado de melancolia, uma espécie de inércia. Se a crise tem um pé no governo federal, com certeza tem outro nessa melancolia que toma a forma quer de agressão ao mau pai que seria Collor, quer saudosista em relação à estrutura anterior (é verdade, sabemos, não funcionava, mas era pelo menos alguma coisa), quer de simples desalento e inatividade.148

Para o autor a saída da crise não seria o retorno ao Estado; aliás, os

mecanismos implementados pelas políticas de cinema teriam minado a autonomia,

dificultando soluções alternativas. Nesse diagnóstico, o modelo autoral difundido pelo

Cinema Novo nos anos 1960 e sua incorporação pelo Estado impeliram uma

determinada trajetória ao conjunto das políticas de cinema, sendo que a situação

vivida trinta anos mais tarde já teria eliminado as alternativas viáveis ao alcance dos

cineastas. Assim Bernardet propunha o fortalecimento da figura do produtor de

tudo é reimplantar a livre negociação com essas forcas produtoras, eliminando a intermediação do pai-patrão-Estado, superando definitivamente o complexo de Peter Pan em que afundamos e aceitando as regras do diálogo para enriquecê-lo com nossa criatividade”. 148 A crise do cinema brasileiro e o plano Collor. Folha de S.Paulo, 23 de junho de 1990.

118

cinema como aquele intermediário entre cineastas e sociedade; aqui, o Estado aparece

muito mais como uma possibilidade do que como destino final.149

Quase quarenta anos antes, Flavio Tambellini também associava a recorrência

das crises de produção sofridas pelo cinema brasileiro à ausência de produtores

profissionais: ele, produtor e responsável direto pela implementação de muitas

políticas de cinema no país, já antecipava uma trajetória que seria percorrida por

segmentos importantes do cinema brasileiro ao reforçar o atributo cultural do filme:

Uma das mais sérias lacunas existentes em nosso cinema é a ausência quase total de produtores. Não produtor entendido no fato acidental da pessoa que arranja dinheiro para fazer um filme, mas sim produtor entendido como intermediário lúcido entre o financiamento e a realização de uma fita.150

Entre o texto de Tambellini, escrito em 1954, e o de Bernardet, publicado em

1990, temos quase quarenta anos de gestão e implementação de políticas de cinema

em que o produtor gradualmente deslocou-se para o campo estatal: seja ele lúdico ou

intermediário, parceiro ou apenas investidor, esse personagem reivindicado e expresso

por meio de sua ausência teve seus traços apagados pela prevalência do filme na sua

dimensão cultural e da utilização desse fenômeno pelo Estado. Isso revela a

continuidade do encaixe realizado nos anos 1960 e os mecanismos pelos quais as

instituições foram sustentadas pelos seus apoiadores; as saídas para a crise e “o que

fazer” reforçava entre cineastas e produtores um movimento pendular: Estado ou

mercado, cultura ou comércio; representavam duas dimensões que não poderiam ser

facilmente combinadas, porque as políticas tinham percorrido uma trajetória histórica

específica.

Os primeiros anos da década de 1990 enfatizaram sobretudo o segundo item

da polarização descrita acima, e as políticas de cinema esboçadas pelos agentes

estatais conformaram-se a tal modelo. Conforme vimos acima, muitos cineastas e

produtores incorporaram essa estrutura de ideias na sua argumentação sobre um tipo

149 No mesmo texto Bernardet continua: “esse modelo – o cinema de autor – vem desde os tempos do cinema mudo e foi levado ao apogeu pelo Cinema Novo e o Cinema Marginal, e a sua dependência do Estado consolidado nos anos 70 não parecem oferecer saída. Isso não quer dizer que esporadicamente não aparecerá um ou outro filme belíssimo. Mas quer dizer que por aí não há saída estrutural, isto é, uma produção que tenha público e consiga repor seus meios de produção”. A crise do cinema brasileiro e o plano Collor. Folha de S.Paulo, 23 de junho de 1990. 150 Artigo de Flávio Tambellini. Diário da Noite, 26 de janeiro de 1954; Diário da Noite, 19 de outubro de 1954.

119

de projeto para a reprodução econômica do cinema brasileiro. A dimensão cultural do

filme refluía momentaneamente em favor de uma análise na qual o livre

funcionamento do mercado assumia a centralidade na explicação seja do insucesso

econômico da atividade seja de um projeto viável para o futuro imediato. Assumimos

aqui a persistência de uma interação complexa entre as instituições, as ideias e a

capacidade de ação dos atores individuais; ideias podem ser importantes na luta

política pela inserção de um tema específico na agenda de questões a serem

solucionadas, mas uma explicação completa reside nessa relação.151

A meu ver, dois atores foram fundamentais no início dos anos 1990 para a

difusão de um conjunto de ideias sobre o perfil das políticas de cinema adequados

naquele contexto: Ipojuca Pontes, Secretário de Cultura no primeiro ano do governo

Collor, e Luiz Paulo Vellozo Lucas, diretor do Departamento de Indústria e Comércio

do Ministério da Economia e responsável pelo desenho de tais políticas.152

Em março de 1991, Pontes apresentou o projeto “Política para o complexo

audiovisual”, e logo a seguir desligou-se do governo. O projeto foi formulado em

conjunto com o Ministério da Fazenda com as seguintes características:

redução na cota de tela para filmes nacionais em salas de cinema e em

vídeo doméstico;

151 O neoinstitucionalismo histórico tem sido visto como uma abordagem teórica que enfatiza os resultados macropolíticos em detrimento da ação individual. As instituições seriam estruturas capazes de desenvolver sistemas de recompensas e sanções que movimentariam os atores. Outra crítica frequente discorre sobre o sucesso da teoria em explicar o processo de institucionalização e reprodução de uma política através do tempo, mas não teria o mesmo êxito ao explicar os processos de mudança e transformação. Assim, os efeitos das decisões iniciais teriam a capacidade de constranger as escolhas posteriores. Mas ao afirmar que as instituições distribuem o poder de forma desigual, empoderando alguns grupos e discriminando outros, a teoria já estaria explicando a possibilidade de ação dos atores. Outro importante aspecto na abordagem do neoinstitucionalismo histórico diz respeito ao papel das ideias junto ao comportamento dos atores: essas podem ser programas políticos, padrões de justiça ou a dimensão cultural presente no filme. Mais do que “filtros cognitivos”, as ideias possibilitam então blocos de ação no qual os atores trabalham, incorporando assim elementos de constrangimento e criatividade na política. (HAY; WINCOTT, 1998); (PETERS; PIERRE; KING, 2005). 152 Ipojuca Pontes foi Secretário de Cultura, órgão criado em substituição ao Ministério da Cultura e vinculado diretamente à Presidência da República. Luiz Paulo Vellozo Lucas foi presidente da comissão especial de Regulamentação da Atividade Cinematográfica, criada por meio de uma portaria emitida pelo Ministério da Fazenda. A comissão ficou encarregada de elaborar a reforma nas políticas de cinema. Pontes permaneceu no governo por quase um ano, demitindo-se no início de março de 1991. No primeiro ano do governo Collor a gestão das políticas culturais foi alvo de disputa entre a Secretaria da Cultura, então dirigida por Pontes, e o Gabinete da Presidência da República, sob o comando de Marcos Coimbra. Pontes foi o assessor de um grupo que preparou um pré-projeto para a área cultural antes da posse de Collor. Entre as propostas estava a manutenção da Embrafilme, que seria focada na distribuição e comercialização de filmes com privatização parcial da empresa; as atividades culturais e sem finalidade lucrativa seriam geridas por um fundo mantido com recursos oriundos de incentivos fiscais. Essas propostas foram descartadas pela equipe econômica do futuro governo. “Documento previa manutenção da lei Sarney”. Folha de S.Paulo, 8 de abril de 1990.

120

financiamento da produção por meio de uma bolsa de Cinema, com cotas

de filmes comercializadas em instituições financeiras;

renovação tecnológica por meio da aquisição de equipamentos através de

uma linha de crédito no BNDES.

O projeto foi formulado por uma comissão coordenada por Vellozo Lucas,

cujos integrantes eram nomes indicados pela Secretaria da Cultura, pelo Ministério

das Relações Exteriores e pelo Departamento do Comércio Exterior. O núcleo da

política proposta residia na equiparação das políticas de cinema às políticas industriais

e de comércio exterior planejadas pelo governo Collor e o financiamento público ao

setor implicava em contrapartidas obrigatórias, tais como a apresentação de contratos

antecipados de compra de direitos da produção por distribuidoras ou emissoras de

televisão e de ativos das empresas produtoras.

Nesse contexto, a paridade institucional contava a favor do setor empresarial

do Estado, o que tornava as políticas de cinema dependentes do aval dos técnicos da

área econômica. Para Vellozo Lucas:

Inicialmente nós nos reunimos para discutir uma nova legislação para o cinema brasileiro, mas acabamos optando por uma discussão mais abrangente. Agrupamos o cinema, o vídeo e a televisão num complexo audiovisual e passamos a olhar para ele como um segmento da indústria do entretenimento. É preciso não confundir política cultural com subsídios paternalistas para a indústria do entretenimento. Comercializar bens culturais é um comércio como outro qualquer.153

A política equiparava o cinema brasileiro aos outros setores da economia,

procurando dotá-lo de competitividade sem alterar as regras de funcionamento do

mercado; a comissão acreditava que o setor possuía importância estratégica na nova

configuração de forças econômicas internacionais em ascensão, mas ao mesmo tempo

descartava qualquer medida com perfil protecionista. A indústria de cinema seria um

setor de ponta e inovação no interior de uma economia internacionalizada, sendo

necessário introduzir a cultura brasileira nesse novo cenário; o problema continuava a

ser a equação cultura, indústria e comércio e as tentativas em equipará-las. Velloso

Lucas expõe essa contradição:

153 Mercado é o único critério da nova legislação. O Estado de S. Paulo, 23 de outubro de 1990. Este projeto foi encaminhado ao Congresso Nacional, mas nunca foi votado. Com a saída de Pontes, o embaixador Sérgio Paulo Rouanet assumiu a Secretaria da Cultura e a proposta foi reformulada.

121

O grande conceito era que os setores tecnológicos de ponta e a inovação precisam e merecem incentivos, na nossa visão era implementar a economia de mercado. Agora os setores de ponta e inovadores precisavam de incentivos sim, e não queria dizer que estes incentivos fossem a proteção, que nós íamos criar uma produção nacional e tal, encarecendo e dificultando o produto estrangeiro ou criando reservas de mercado. Nós nunca concordamos com cotas de exibição, reservas de mercado e mesmo conceitos como produto nacional. O que é um filme nacional? Se o diretor for estrangeiro? E uma coprodução? Nós já estávamos na globalização mas queríamos ter a presença da cultura brasileira, queremos ter a presença do Brasil como locação, queremos a indústria, queremos o entretenimento. (Depoimento ao autor.)

Nesse contexto a burocracia econômica sobrepunha-se às tradicionais

estruturas culturais, alterando a paridade institucional no interior do Estado. Já vimos

que o conceito refere-se ao relacionamento entre as instituições econômicas e

culturais e os mecanismos pelos quais se estrutura a prevalência de um interesse sobre

outro, afetando o grau de atuação dos fazedores de política. Assim, quando esses

consideram apenas critérios econômicos, uma política de livre mercado é

implementada no setor de cinema e os interesses culturais são fracamente

representados.154

Ao estruturar as políticas de cinema no campo econômico, a Comissão não

somente as incorporava ao novo modelo como também excluía qualquer possibilidade

de associação com recomendações fundadas em tradições culturais; desse modo, para

Velloso Lucas não havia problemas em inserir o filme brasileiro no contexto político

e econômico em ascensão:

(...) Ao lidar com o cinema como um bem econômico eu não estou dando menos importância. Eu estou dizendo que este é um setor da economia como qualquer outro. Não é igual porque ele é mais importante pelos impactos que ele tem como portador de inovação, de indutor de atividades econômicas em

154 “In Mexico of the 1980s and 1990s, calls went out for renewed state aid to the cinema; yet, new institutional arrangements simply reinforced the rising dominance of a particularly overt form of commercialism. Low institutional parity defined film as a commercial product, meaning that state leaders were less likely to expend resources on promoting a cultural revival in filmmaking”. (FLIBBERT, 2007: 132). “No México dos anos 1980 e 1990, os pedidos para uma renovação na ajuda estatal cessaram; assim, novos arranjos institucionais simplesmente reforçaram o domínio crescente de uma forma particularmente evidente de comercialismo. A baixa paridade institucional definiu o filme como um produto comercial, o que significa que os líderes estatais estavam menos propensos a aplicar recursos na promoção de um renascimento cultural no cinema.” (Tradução livre.) Catani nota a ocorrência de um “rebaixamento institucional” do setor cultural durante o governo Collor representado pela transformação do Ministério da Cultura em Secretaria e na revogação da legislação de suporte e amparo à produção cultural (CATANI, 1994).

122

outros setores, desenvolver de marca própria, é um setor de inovação, por isto é muito importante economicamente. Mas o bem cultural? Eles não têm que ser viáveis economicamente nem precisam acabar, mas é uma outra coisa, um outro problema. Política cultural é outra coisa, tem folclore, cultura erudita, musica clássica, tem coisas que não têm vocação nenhuma para ser bem de mercado. Isto não era minha responsabilidade, lidar com as ferramentas e os mecanismos da política cultural. Naquele momento a gente sabia que isto era um pedaço do trabalho, não era o trabalho todo, o que me interessava era que no âmbito da economia a gente não criasse distorções econômicas supostamente para atender a valores não econômicos ou culturais ou nacionais ou o que for. Na época da ditadura militar era comum chamar de segurança nacional porque era de interesse nacional. Hoje o governo adora dizer que é estratégico, para encher de subsídio. Conosco não era assim, queremos crescer, sermos competitivos, aumentar o máximo possível a produção de bens e serviço com padrões de preço e qualidade. (Depoimento ao autor.)

Enquanto a comissão trabalhava na sua proposta, os produtores brasileiros

também se articulavam, pressionando o governo com um projeto focado no caráter

industrial da atividade e na imersão do cinema nacional na economia de mercado.

Apesar de a justificativa da proposta ancorar-se no modelo neoliberal apregoado pelo

governo Collor, muitas das medidas eram de caráter retrospectivo, ou seja, já

circulavam desde os anos 1960 e substituíam o financiamento estatal direto à

produção pela autorregulamentação do mercado. Entre as propostas do documento,

estavam:

a criação de um sistema de controle das bilheterias das salas de cinema,

gerenciado e mantido por produtores, distribuidores e exibidores;

o retorno ao modelo de adicional de renda de acordo com a performance

do filme;

a instituição de carteiras de financiamento bancário na rede privada com

juros condizentes com as atividades.

Muitas das medidas propunham controle e intervenção governamental para

estimular um setor da economia nacional cuja concorrência com o produto estrangeiro

era vista como desigual, mas os caminhos percorridos pelo governo e pelo cinema

brasileiro naquele momento eram muito diferentes: o primeiro propunha ampla

abertura da economia e o segundo mantinha reivindicações tradicionais da categoria,

ou seja, o mercado funciona normalmente quando protege o produto nacional da

concorrência estrangeira, tese naturalizada entre cineastas e produtores.155

155 Carta aberta ao Presidente da comissão especial de Regulamentação da Atividade Cinematográfica. Associação Brasileira dos Produtores Cinematográficos. Rio de Janeiro, 24 de julho de 1990.

123

Como vimos acima, o núcleo central das políticas de cinema no governo

Collor estava disposto sobre o Departamento de Indústria e Comércio e, em última

instância, no Ministério da Economia. Qual teria sido então o papel da Secretaria da

Cultura e mais especificamente do secretário Ipojuca Pontes? A paridade institucional

empoderava as burocracias econômicas desde o início do governo Collor, e mesmo a

transformação institucional da área cultural, com a extinção do Ministério e demais

fundações e autarquias, representava uma forte evidência deste fato, ou seja, da baixa

representativa deste setor no interior da administração estatal.156

A posição de Pontes no interior do governo Collor não era satisfatória do

ponto de vista da composição e distribuição interna de poder; por outro lado, o

secretário era alvo constante de críticas dos setores culturais por ter sido responsável

pelo encerramento de agências de fomento e estímulo a esta área. Podemos intuir que

sua presença tinha um significado para a administração cotidiana do governo, ao

amortecer o impacto das críticas ao mesmo tempo em que incorporava o potencial

negativo das medidas anunciadas, e preservava o setor responsável pelas reformas das

políticas de cinema.

Durante sua curta gestão, Pontes não estimulou um debate sobre o conjunto de

reformas propostas e políticas a serem implementadas, e também nunca divulgou um

projeto mais bem delineado sobre a gestão estatal da cultura; provavelmente o

governo Collor preocupava-se de forma mais ampla com as questões

macroeconômicas que impactavam fortemente a sociedade brasileira naquele período.

Assim, não havia muito espaço para propostas mais ousadas ou políticas de longo

prazo para a cultura, a não ser o encerramento dos subsídios oficiais, que ocorreu em

conjunto com outros setores do Estado.

Encontramos nos escritos de Pontes um conjunto de teses que expressavam

muito mais uma reprodução básica do ideário neoliberal em difusão naquele momento

em setores estratégicos da sociedade brasileira do que propriamente um conjunto

coerente de questões acerca da cultura nacional. Em artigos publicados na imprensa

antes da posse de Collor, Pontes produzia uma associação entre a consolidação da

democracia política e a democracia econômica, polarizando Estado e liberdade de 156 Pontes não tinha interlocução com a classe cinematográfica nem prestígio interno no governo, o que dificultava a coordenação das políticas de cinema. Portanto para Vellozo Lucas era natural que a área econômica incorporasse esse debate: “o que justificava a coordenação disso ser feito pelo Ministério da Economia na época era que realmente não havia nenhuma capacidade, o pessoal da indústria de cinema não sentava com o Ipojuca e não havia na área da cultura ninguém com uma visão econômica mais estratégica porque era tudo ideologizado” (Depoimento ao autor.)

124

comércio. Esse último conteria os princípios democráticos ao propor a liberdade de

negociação e a igualdade nas trocas econômicas e o Estado, ao contrário, seria uma

instituição capaz de ameaçar uma democracia política recentemente conquistada:

De fato, hoje em dia, nada do que acontece de ruim no país deixa de ter por trás o dedo contaminado da máquina estatal. Inflação, privilégios insensatos, corrupção e fraudes abusivas, violência, censura, empreguismo, gastos irracionais, incompetência administrativa, em suma, qualquer coisa que possa tornar a vida do indivíduo ou da população um inferno – tudo passa obrigatoriamente pela ação ou omissão – deletéria do Estado.157

Para Pontes, a cultura brasileira teria sido cooptada pelo Estado em um

processo histórico que remontava ao período colonial; desde então, artistas e

produtores culturais sobreviveriam por meio do mecenato oficial, cujo resultado seria

uma arte elitista e pouco adequada ao processo democrático. Sendo assim, apenas a

instauração da livre concorrência entre artistas, público e sociedade poderia romper

esse padrão deletério que impedia a democratização plena da cultura no país. O

Ministério da Cultura era, na visão de Pontes, uma estrutura burocrática mais

preocupada em atender sua clientela e compor com aliados do que com seu objetivo

final na democratização da cultura. Estruturava-se aqui um quadro que seria efetivado

institucionalmente poucos meses depois através dos primeiros atos do governo Collor

para a gestão da cultura.158

As regras do livre mercado, que corresponderiam à verdadeira democracia

política e econômica, teriam validade para todos os agentes do campo cultural,

incluindo não apenas o artista consagrado e capaz de atrair recursos privados para a

sua atividade como aqueles artistas envolvidos com a vanguarda e a experimentação

estética. Ao avaliar os trabalhos da comissão presidida por Vellozo Lucas, Pontes

recuperava políticas do passado – como o adicional de renda – e não avançava além

de propostas que associavam liberdade artística, produção cultural e livre mercado:

157 Inimigo público. Artigo de Ipojuca Pontes. O Estado de S. Paulo, 18 de janeiro de 1990. 158 A questão da cultura oficial. O Estado de S. Paulo, 8 de fevereiro de 1990. Segundo Pontes: “o resultado do crescente intervencionismo do Estado na nossa vida cultural não poderia ter sido mais desastroso. Em torno do gigantismo burocrático alastrou-se uma verdadeira ’casta de serviço’, composta por artistas e intelectuais, particularmente empenhada no desfrute do mecenato estatal. É criminosa, e contradiz a democracia, a pretensão de fomentar ou criar cultura a partir do ministério ou qualquer tipo de repartição centralizadora.”

125

Para o governo incentivar a cultura, é preciso que a cultura demonstre capacidade de criar. A política de estímulos, então, será adotada a partir de resultados. Na área de cinema, por exemplo, uma comissão vai examinar como ressuscitar, de forma mais ampla, a velha política do adicional (dinheiro agregado à bilheteria de um determinado filme, à medida que esse filme conseguisse boa performance na bilheteria). Esse método do adicional foi responsável, no passado, pela vitalidade e diversidade da produção cinematográfica brasileira. O governo pensa que democracia é voto na urna, e democracia em cinema é ingresso na urna da portaria.159

O setor cultural durante a administração Collor envolveu uma interação entre

instituições, ideias e atores na tentativa de produzir um novo encaixe entre Estado e

cinema no país que fosse capaz de assegurar o seu desenvolvimento. Novas ideias

sobre a gestão estatal desse setor foram apropriadas por segmentos da cultura

brasileira historicamente associados com outras tradições, que incluíam o filme

nacional como portador de uma dimensão cultural a ser valorizada. As agências

oficiais de suporte seriam liquidadas, enquanto as instituições informais eram

ajustadas ao novo modelo. Os atores – cineastas e agentes do governo – criavam

soluções, saídas e reformas, mas também enfrentavam o legado das políticas do

passado.

Com a saída de Ipojuca Pontes do governo e a vinda de Sérgio Paulo Rouanet

como Secretário da Cultura, em março de 1991, a breve conjuntura crítica enfrentada

pelo cinema brasileiro foi encerrada. As relações entre Estado e cinema nunca foram

efetivamente rompidas nesse período, e com o novo secretário outras possibilidades

se abriam.

4.2 - As políticas de cinema: reatando os elos

O diplomata Sérgio Paulo Rouanet assumiu a Secretaria da Cultura em março de

1991, tendo à frente uma série de questões herdadas da gestão anterior:

01) a área cultural exercia forte pressão junto ao governo federal e procurava

interlocutores no interior da burocracia estatal;

02) os cineastas e produtores formulavam propostas de suporte ao filme nacional

que circulavam nas suas representações e associações de classe, e também no

Parlamento;

159 Ipojuca anuncia política de prêmios culturais. O Estado de S. Paulo, 05 de julho de 1990. Ver também: Uma torneira fechada. Jornal do Brasil, 24 de março de 1990.

126

03) o Ministério da Economia e Fazenda já tinha elaborado uma proposta para o

setor e boa parte do encaminhamento das questões dependia desse setor.160

A mudança de comando na Secretaria de Cultura procurava pacificar um setor

conturbado com as reformas propostas, e mesmo setores da imprensa anteriormente

hostis ao investimento estatal na área de cinema suavizavam sua oposição. A tese de

que o mercado seria o principal mecanismo avaliador das políticas culturais começava

a ser questionada, seja no interior da burocracia cultural como na sociedade em geral:

a paridade institucional entre as burocracias econômicas e culturais começava a

mover-se em nova direção. Além disso, a ausência de filmes brasileiros nas salas de

cinema e a paralisação da atividade tinham sensibilizado esses setores.161

A possibilidade de conciliação, pacificação e mesmo distensão entre o cinema

brasileiro e o governo Collor estava sendo anunciada pela imprensa, e o novo

Secretário teria o perfil adequado ao cargo justamente por sua formação universitária

e especializada em filosofia política com enfoque no Iluminismo europeu do século

XVIII. Ao antigo gestor as críticas avolumavam-se com a adição de avaliações pouco

positivas realizadas pela imprensa; ao novo Secretário concedeu-se a oportunidade de

reatar os elos entre cultura brasileira, Estado e identidade nacional, mesmo diante de

um cenário econômico adverso a tais teses. Para Rouanet, o mercado não podia

estruturar os produtos culturais e o governo precisava assumir um papel nessa

questão.

Não penso que o mercado seja a solução definitiva para todos os problemas intelectuais e artísticos. É obvio que o Estado tem responsabilidades diretas, indelegáveis e intransferíveis em vários setores da atividade cultural brasileira, sobretudo no que diz respeito ao patrimônio. Também é responsabilidade intransferível do governo promover e encorajar de todas as maneiras possíveis as manifestações artísticas, porque tudo isso está contido na Constituição. 162

160 Vellozo Lucas relata que com a entrada de Rouanet o jogo muda muito e a correlação de forças se altera: “quando Itamar recria o Ministério da Cultura, recria todos os Ministérios, voltava tudo. O Collor gerou muito descontentamento, mas outras avançaram. Os cineastas queriam, a sociedade queria, havia um ambiente favorável. Algumas coisas são aproveitadas, outras não para a Lei do Audiovisual, e de certa maneira o cinema volta para a esfera cultural com alguns mecanismos de mercado, algumas ideias neste sentido.” (Depoimento ao autor.) 161 Ver por exemplo: Sai Ipojuca, entra Rouanet, Jornal do Brasil, 9 de março de 1991; “Luz na cultura”, Jornal do Brasil, 12 de março de 1991; Rouanet é o novo secretário da cultura, O Estado de S. Paulo, 9 de março de 1991; Ipojuca sai da Cultura, Collor nomeia Rouanet, Folha de S.Paulo, 9 de março de 1991; Rouanet substitui Ipojuca na Cultura, O Globo, 9 de março de 1991; Rouanet abre diálogo e deixa esperança no ar, Jornal da Tarde, 29 de abril de 1991. 162 A nova cara da cultura oficial. Jornal do Brasil, 17 de março de 1991, p.13.

127

E a possibilidade de conversão dos termos das políticas culturais até então

anunciadas era realizada; assim Rouanet afirmava:

Eu conheço as dificuldades que o Brasil está atravessando, tenho um compromisso muito grande com o Brasil, com a promoção social das camadas mais desfavorecidas. E eu sinto que a cultura é um instrumento importante de promoção social, de autoafirmação e formação de identidade de uma sociedade.163

Como o ambiente institucional mudou tão drasticamente? Ou as ideias

anteriores não tinham força suficiente para difundir-se além de um determinado

conjunto de setores da sociedade – especialmente aqueles interessados na

globalização econômica e privatização de funções públicas –, demonstrando a

resiliência das políticas de cinema, ou o governo Collor retirou-se estrategicamente de

um conflito que não agregava nada à sua reprodução institucional.

As instituições culturais oficiais fazem uma intermediação entre os fazedores

de política - que podem estar entre a própria burocracia estatal, técnicos ou políticos -

o público alvo e uma concepção particular acerca dos valores expressos pelo filme

nacional. A forma como esses elos são constituídos impacta diretamente no padrão

das políticas: as instituições têm bastante relevância nesse processo, pois o Ministério

da Educação e Cultura e o Departamento de Indústria e Comércio tendem a estruturar

as questões de formas muito distintas.

Seja em alta ou baixa paridade institucional entre as burocracias cultural ou

econômica do Estado, os atores são constrangidos pelos arranjos institucionais

resultantes de escolhas feitas no passado: “through the intervention of political

leaders, that interest can evolve and be transformed over time, but only in tandem

with suitable institutional changes. Cultural policy proves to be surprisingly

persistent and costly to change.” (FLIBBERT, 2007: 142)164

163 Constituição manda Estado apoiar cultura. O Globo, 10 de março de 1991, p.10. Os termos da conversão eram aqui enfatizados: “Eu acho que não se pode dizer, a priori, que se deve deixar a cultura à mercê do mercado. Há certas coisas, certas atividades culturais, que funcionam muito bem no mercado. Há certos tipos de filme, de maior sucesso comercial, que não necessitam de apoio do Estado, que são atividades auto-sustentáveis. Em outros casos não. (...) O que não se pode fazer é deixar que o único critério para saber se determinadas coisas devem ou não devem ser feitas, do ponto de vista cultural, é saber se existe uma demanda para isso. Você não pode medir esse tipo de produção cultural por critérios simplificados de custo-benefício, lucro-produtividade. O bem cultural é um produto também, não é só isso”. 164 Através da intervenção dos líderes políticos, estes interesses podem desenvolver-se e serem transformados através do tempo, mas somente em consonância com transformações institucionais

128

Durante a gestão de Rouanet na Secretaria da Cultura, dois projetos em

circulação propunham o redesenho das políticas de cinema: resolvido o impasse com

a área econômica e dissolvido o encaixe provisório entre livre mercado e indústria de

cinema – ainda que esse tema não tenha desaparecido por completo –, concepções

tradicionais ao campo cinematográfico recuperavam sua primazia.

O primeiro deles envolvia uma nova associação, a RAIS – Associação de

Realizadores e Autores da Imagem e do Som, criada um ano antes por cineastas e

produtores, com sede no Rio de Janeiro. A entidade propunha ser uma interlocutora

da classe cinematográfica nacional junto às instâncias governamentais e aos setores

privados ligados à indústria de cinema.165

Com a saída de Collor, a associação enviou à Secretaria da Cultura um

anteprojeto propondo uma nova política para o setor. Em linhas gerais, o projeto

desenhava uma articulação institucional entre o cinema brasileiro, a Secretaria da

Cultura e o Ministério da Economia e Fazenda:

a) o Ministério da Economia é a instituição responsável por assegurar condições

justas de competição entre o filme brasileiro e o similar importado; estimular a

associação entre capitais nacionais e estrangeiros via conversão da dívida

externa;

b) deve também fomentar a produção e difusão do filme brasileiro através de

incentivos fiscais;

c) cabia à Secretaria da Cultura criar estruturas para fiscalizar o mercado, seja no

controle das receitas globais como na coleta de dados; estimular a pesquisa e

mão de obra especializada; assegurar a preservação e recuperação do acervo

histórico do cinema brasileiro; apoiar a realização de festivais; premiar os

filmes por meio de padrões de excelência artística e aprovar projetos para

utilização de recursos de incentivo fiscal.166

adequadas. A política cultural prova ser surpreendentemente persistente e com altos custos para sua transformação (Tradução livre.) 165 A associação contava com mais de trezentos associados, entre eles os cineastas Carlos Diegues, Fábio Barreto, Nelson Pereira dos Santos, Tizuka Yamasaki, Eduardo Escorel e produtores como Roberto Farias, Mariza Leão, Carlos Alberto Diniz, entre outros. 166 No artigo 5o o projeto previa: “o Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, em conjunto com a Secretaria da Cultura da Presidência da República, estabelecerá linhas de crédito, em condições especiais de garantias, prazos de carência e pagamento, compatíveis com as características econômicas de cada segmento da atividade, através de entidades financeiras, oficiais e privadas para o financiamento da produção de obras audiovisuais cinematográficas brasileiras, bem como para a implantação de projetos de infraestrutura técnica e de exibição.” O Anteprojeto da RAIS foi escrito em

129

Nessa proposta, a associação procurava recuperar o controle sobre o

desenvolvimento do cinema brasileiro, criando uma estrutura no interior do Estado

para esse propósito: a regulação intervinha na programação das salas de cinema, no

mercado de vídeo doméstico e nas emissoras de televisão, com cotas mínimas para o

produto nacional e horários específicos para a exibição nas redes de televisão. Essas

últimas teriam que alocar dois por cento de seu faturamento para a coprodução de

filmes brasileiros. Também mantinha o sistema de ingresso padronizado introduzido

pelo INC nos anos 1960, bem como o imposto de remessa de lucro sobre o filme

estrangeiro.

A Embrafilme ainda encontrava-se em processo de liquidação, mas o projeto a

incorporava ao reproduzir suas principais linhas de atuação. Para a produção de

filmes, a associação propunha a criação de um programa de fomento com autonomia

administrativa e financeira, tendo como receita os impostos geridos na própria área e

dotação orçamentária da União. A administração dessa estrutura seria entregue a um

colegiado de composição paritária entre técnicos da Secretaria da Cultura e setores do

cinema brasileiro.167

O segundo projeto era apresentado no Congresso Nacional pelo deputado federal

Álvaro Valle, mas na realidade era um prolongamento da proposta feita pela RAIS. A

primeira versão do projeto contemplava integralmente as reivindicações dos cineastas

apresentadas antes, que incluíam as condições justas de competição, a fiscalização do

mercado, o desenvolvimento e formação de mão de obra, linhas de crédito

apropriadas para a atividade, instituição do Programa Fomento e demais itens listados

anteriormente.168

assembleias realizadas durante os meses de agosto a outubro de 1991, e depois encaminhado à Secretaria da Cultura. Arquivo Carlos Augusto Calil, Cinemateca Brasileira. 167 A proposta da RAIS envolveu uma ampla articulação no interior do cinema brasileiro e desse com setores do Estado. Em diversos documentos encontramos evidências dessa articulação, seja na troca de cartas e projetos como em contatos pessoais entre integrantes do Estado e da Secretaria da Cultura e cineastas e produtores. Em carta dirigida a Rouanet em outubro de 1991, a associação afirmava que o projeto era produto de assembleias com centenas de nomes: “o resultado do nosso trabalho reflete o positivo interesse em estabelecer faixas de articulação para a mais urgente restauração da produção cinematográfica no Brasil”. O cineasta Carlos Diegues, em carta para Rouanet em outubro de 1991, também reforçava a interação: “arrisco afirmar que uns 60 a 70% de consenso foram alcançados, às vezes até para surpresa minha. Isso foi o resultado de exaustivos debates, em encontros que até recentemente seriam inimagináveis, com muitas e múltiplas renúncias. Venceu, portanto, o desejo de consenso, como pregávamos desde o início desse processo”. Acervo Cinemateca Brasileira, pasta D354. 168 O projeto do deputado Valle, do antigo Partido Liberal/RJ, tinha sido redigido pelo produtor Luiz Carlos Barreto e pelo cineasta Miguel Faria Jr. O Estado de S. Paulo, 10 de janeiro de 1992.

130

Nessa versão do projeto, o deputado apresentava uma novidade nas políticas

de cinema: a inclusão do filme brasileiro nas emissoras de televisão pública com

espaço equivalente a quinze por cento da programação mensal. O projeto, no entanto,

não avançava para além disso nem propunha estímulos à coprodução entre os dois

setores.

Entre a primeira versão do projeto e sua aprovação na Câmara dos Deputados

foram realizadas algumas modificações importantes: na primeira delas as emissoras

de televisão privadas estavam isentas de qualquer medida de proteção ou investimento

no cinema brasileiro; outra medida relevante foi a criação do Procine, Programa

Nacional de Cinema, uma estrutura com capacidade de executar as políticas de

cinema anunciadas no projeto. A agência, a exemplo de suas congêneres anteriores,

teria autonomia administrativa e financeira, mas seu conselho curador incluía, além

dos representantes do cinema brasileiro, técnicos da burocracia econômica do Estado.

Enquanto sociedade e Estado reorganizavam suas relações a partir de um novo

paradigma econômico, que dificultava a circulação de temas conectados a padrões de

identidade nacional e herança cultural, o projeto do deputado justificativa sua

apresentação no Congresso, recuperando tais questões:

Mais do que nacionalistas, são universais as inspirações de Nelson Pereira dos Santos, quando nos traz Graciliano; de Walter Lima Jr, quando nos apresenta José Lins do Rego; de Jabor quando representa a alma universal de Nelson Rodrigues; e até de Glauber Rocha, quando se inspira no mundo de Guimarães Rosa; ou de Joaquim Pedro, quando expõe em Macunaíma o só aparente nacionalismo antropofágico de Mário de Andrade.169

Em um contexto no qual as atividades ligadas ao cinema estavam sendo

inseridas em um complexo maior e que incluía a difusão das imagens por diferentes

plataformas, o projeto procurava tratar especificamente do cinema e de sua circulação

em um ambiente específico: as salas de cinema. Para o deputado, o cinema brasileiro

representava uma expressão artística consagrada desde os anos 1930, e a televisão e

consequentemente a difusão de imagens por meios eletrônicos ainda não tinham

encontrado sua identidade:

169 Projeto de Lei do Deputado Alvaro Valle, aprovado na Câmara dos Deputados em 11 de dezembro de 1991. Arquivo Carlos Augusto Calil, Cinemateca Brasileira. Em seguida o projeto foi sancionado pelo presidente Collor em 08 de janeiro de 1992, mas com onze vetos, inclusive todo o artigo referente ao PROCINE.

131

Se aceitarmos a divisão moderna entre artes e ofícios, artistas e artesãos, na televisão encontraremos apenas o ofício menor de ser um instrumento da comunicação, que se socorre muito mais das máquinas bem controladas por técnicos, que dos sonhos ou da criatividade artística. (...) No teatro ou no cinema, o material de trabalho é a imaginação, que apenas se decodifica pelas máquinas.170

Ambos os projetos mantinham as características centrais da interação ocorrida

entre cineastas e Estado décadas antes, acrescentando a possibilidade de utilização de

incentivos fiscais na produção de filmes, o que não era propriamente uma política

original, pois já tinha sido implementada no início dos anos 1960 através do INC.

Ambas as propostas articulavam o cinema brasileiro com os setores econômicos do

Estado – e a justificativa para a isonomia entre produto nacional e importado no

mercado necessariamente envolvia tais setores – e fortaleciam os mecanismos de

produção. Quanto às possibilidades de difusão e circulação do filme, tanto nas

estruturas do mercado como por meio de mecanismos alternativos, as propostas não

avançavam.

Mesmo sancionado por Collor, o projeto tinha sido desfigurado com o veto

integral ao artigo que previa a constituição do Procine. Com isso, os debates

retornavam e Rouanet propunha novas medidas: a Lei do Audiovisual, aprovada dois

anos depois, já estava sendo articulada neste contexto.

A breve experiência do governo Collor representou uma possibilidade de

aprendizado ao cinema brasileiro, abrindo novas trajetórias em direção a políticas

nunca antes experimentadas. Foram duas as principais tendências encontradas nesse

contexto:

01) A associação entre cinema, arte e mercado em uma estrutura de livre

concorrência. A proposta apresentada pela área econômica do governo não

avançou além de ignorar as possibilidades de autossustentabilidade da

indústria cinematográfica naquele momento e a presença hegemônica do filme

importado. Mas dispôs na estrutura institucional do cinema brasileiro um

novo conjunto de ideias que poderiam alavancar essa área em direção a uma

trajetória mais autônoma.

170 Projeto de Lei do Deputado Alvaro Valle, aprovado na Câmara dos Deputados em 11 de dezembro de 1991. Arquivo Carlos Augusto Calil, Cinemateca Brasileira. Para o produtor Luiz Carlos Barreto o objetivo da lei “era colocar o Cinema Brasileiro dentro da economia de mercado, preparar terreno para tornar a indústria competitiva e liberar a atividade do paternalismo estatal”. O Estado de S. Paulo, 10 de janeiro de 1992.

132

02) A restauração do encaixe entre instituições, atores e Estado ocorrida na gestão

de Rouanet. Apesar de novos temas terem sido introduzidos, as questões

centrais continuaram impermeáveis à mudança.

Como os governos seguintes ao de Fernando Collor lidaram com essa estrutura e

que mecanismos foram mobilizados para reproduzir a articulação e a estrutura

institucional do cinema brasileiro serão os temas do próximo capítulo.

133

5. Os anos 1990: políticas do passado e do presente

“Se a ação dos grupos privados pauta-se pela lógica de interesse, como é natural, a moderna burocracia pública deve comportar-se em obediência a duas lógicas, freqüentemente conflitantes: por um lado, deve minimizar os conflitos entre o governo – isto é, o Executivo –, e poderosos grupos de pressão; por outro, deve obedecer ao interesse público e maximizar os ganhos sociais”. Wanderley Guilherme dos Santos. Ordem burguesa e Liberalismo político, p. 116.

134

Uma narrativa do cinema brasileiro durante os anos 1990 provavelmente deve

descrever os fracassos seguidos de uma retomada, deixando atônitos os observadores

pelo tamanho e alcance dessa oscilação: como as condições institucionais

transformaram-se tanto em tão curto espaço temporal? Do sentimento de “terra

arrasada” vivido no governo Collor ao processo de “retomada” nos anos FHC, o

cinema brasileiro foi obrigado a se confrontar com as transformações que ocorriam

simultaneamente na sociedade brasileira e nos padrões de estruturação do Estado.

Esse deslocamento radical também poderia abrir novas possibilidades de ação,

conformar um outro patamar de políticas e instigar os atores a retomar antigas

propostas ou buscar outros modelos.

Vimos no capítulo anterior como o processo de redemocratização impactou o

desenvolvimento do cinema brasileiro e suas relações com o Estado. Nos anos 1990

esse processo continua, uma vez que as ideias difundidas na década anterior são agora

incorporadas em governos e rotinas burocráticas, afastando definitivamente o modelo

herdado do regime autoritário e um padrão de desenvolvimento econômico associado

ao nacional-desenvolvimentismo. Não apenas a globalização financeira interditava o

retorno dessas teses, mas as ideias em circulação estimulavam outro modelo de

articulação entre o setor público e o setor privado.

Nessa leitura, o Estado não poderia conformar-se ao papel de agente

implementador e articulador dos interesses. Pelo contrário, deveria atuar como um

mecanismo de mediação e regulação. Para o cinema brasileiro, cujas experiências

com o INC e a Embrafilme ainda eram muito recentes, a adaptação ao novo modelo

foi conturbada e marcada pela desorientação. As estruturas construídas pelas antigas

agências de fomento ainda serviam como mapas mentais para muitos setores do

cinema brasileiro, e as diversas propostas de políticas nos anos 1990 tinham como

características fundantes mecanismos utilizados em momentos anteriores.

Nos anos 1990, os elos entre cinema e Estado pareciam estar definitivamente

rompidos e o horizonte imediato não apresentava possibilidades de renovação. O

decorrer da década inviabilizou esse diagnóstico, pois políticas cujo objetivo seriam a

retomada da produção cinematográfica logo foram implementadas e todos os

governos, inclusive o de Collor, mantiveram atados os elos entre cinema e Estado.

As políticas de cinema nos anos 1990 foram constrangidas pelo legado do

passado? As relações entre Estado e cinema sofreram impactos a partir de uma nova

135

correlação de forças na economia e na sociedade? Essas questões serão objeto deste

capítulo.

5.1 - O cinema brasileiro, entre Collor e Itamar

O secretário de cultura na fase final do governo Collor, Sérgio Paulo Rouanet,

procurou construir mecanismos para subsidiar o cinema brasileiro, uma vez que o

presidente tinha vetado os principais artigos do projeto de lei do deputado Álvaro

Valle aprovado na Câmara dos Deputados no final de 1991. Mesmo sancionado por

Collor em janeiro de 1992, o projeto – elaborado em conjunto entre o deputado,

cineastas e suas associações – teria de ser mais uma vez reescrito para posterior

aprovação.

Com o impasse gerado pela aprovação de uma lei considerada disfuncional, os

cineastas e produtores atuaram diretamente sobre o Ministério da Economia para

destravar o processo legal. O Ministério e a Receita Federal não sinalizavam apoiar as

medidas reivindicadas pelo setor, especialmente as que previam a conversão da dívida

externa na produção de filmes, incentivos fiscais para a indústria e o controle e a

fiscalização das salas de cinema. Os elos mantinham a circulação aberta entre

cineastas e Estado mesmo que as propostas fossem divergentes.171

Enquanto o novo desenho legal estava sendo planejado, o governo Collor

acenou com a possibilidade de utilização dos recursos retidos pela Embrafilme por

meio do imposto de renda sobre a remessa de lucros das importadoras de filme. Esses

recursos, que teriam como destino final o Tesouro, foram alocados em um fundo para

a produção de filmes. Uma comissão de cinema foi criada no interior da Secretaria

para avaliar os projetos a serem subsidiados; os critérios de escolha seriam balizados

pelo valor cultural ou social do filme a ser produzido.172

171 Reuniões foram realizadas entre os cineastas e técnicos da burocracia econômica do Estado, mas os resultados foram vistos como decepcionantes. Carlos Augusto Calil, em carta dirigida aos cineastas Carlos Diegues, Arnaldo Jabor, Nelson Pereira dos Santos e ao produtor Luiz Carlos Barreto relata: “sugeri que o Rouanet aja politicamente para destravar. Ainda assim acho recomendável uma gestão política dos cineastas junto à Economia. Amanhã, no encontro que Barreto, Nelson e Cacá vão ter no Ministério da Economia seria bom frisar os componentes políticos do nosso projeto e, se mantidas as dificuldades, pedir a eles que nos ofereçam alternativas”. Arquivo pessoal Carlos Augusto Calil. Cinemateca Brasileira.172 O Decreto Lei 573 de 27 de abril de 1992 formalizava o repasse das verbas da Embrafilme para a Secretaria da Cultura. O Decreto Lei 575, de 23 de junho de 1992, cria a Comissão de Cinema para

136

Essa medida gerou uma nova cisão no interior do cinema brasileiro: um grupo

acreditava na utilização desses recursos em poucos filmes, com orçamentos elevados

e associação direta com as companhias americanas; outro grupo defendia a

possibilidade de um maior número de projetos que seriam selecionados pela

Comissão. Para o primeiro grupo, a política proposta pela RAIS e contida no projeto

do deputado Valle seria a mais adequada para o contexto político e econômico vivido

pelo país, porque desvincularia o Estado do financiamento direto de filmes. Segundo

Carlos Diegues:

Depois de tanta discussão pública e privada sobre um novo modelo para a economia do cinema brasileiro, está de volta a velha política de concentração de recursos num guichê único controlado pelo Estado, com toda a sua parafernália burocratizante e paternalista, com suas confrarias e comissões, fontes inesgotáveis de cartorialismo, conflitos, injustiças e escândalos. A força conservadora dos costumes políticos e culturais desse país derrota, mais uma vez, o prazer do novo, o gosto da experiência e o exercício da imaginação, nos isolando mais ainda do que se passa na economia cinematográfica do resto do mundo. A produção de cinema no Brasil volta a ser uma questão de habilidade política e não de inspiração artística ou viabilidade comercial. Esse filme todos nós já vimos e nos traumatizamos com ele.173

Conforme vimos no capítulo anterior, a proposta da RAIS previa a utilização

da verba da Embrafilme por meio de coproduções com distribuidoras de filmes

importados, além do investimento na produção pelos mecanismos de incentivos

fiscais. Os filmes de tendência autoral e experimental contariam com dotação

orçamentária do Estado e aqueles com potencial comercial buscariam os critérios

acima. Em assembleia realizada na RAIS para avaliar o decreto, os cineastas

divulgaram uma carta endereçada ao Secretário da Cultura e ao Presidente:

avaliar os projetos. A Comissão de Cinema tinha 14 integrantes, com representantes da Secretaria da Cultura, da Cinemateca Brasileira, do Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, do Departamento de Indústria e Comércio e das associações de classe, incluindo produtores, distribuidores, diretores, exibidores. Esse Decreto também disponibiliza o acervo e recursos da Embrafilme para a Secretaria da Cultura. 173 Luz, câmera, ação. Jornal do Brasil, 25 de maio de 1992. Ver também Produtor de cinema agora quer apoio fiscal. Folha de S.Paulo, 29 de abril de 1992. Luiz Carlos Barreto posicionou-se contrário à Comissão de Cinema e defendia o uso da verba em filmes de vocação comercial. O cineasta Miguel Faria Jr., na época presidente da RAIS, também discordava da política adotada: “levamos um ano para obter um projeto modernizante e consensualmente aceito por todos os integrantes do processo cinematográfico e agora nos acenam com a volta a um sistema antigo, superado e daninho”. O grupo que propunha a distribuição mais equânime dos recursos da Embrafilme tinha composição heterogênea, agregando cineastas baseados em São Paulo e aqueles de tradição autoral, como Júlio Bressane, além de documentaristas e diretores de curtas-metragens.

137

Contrariando frontalmente esse espírito, o decreto-lei assinado no dia 27 de abril pelo presidente da República remete o cinema brasileiro de volta a um impasse, pondo em risco a sua própria sobrevivência, já que a ausência desses mecanismos de mercado e o paternalismo de sempre farão do Brasil o maior produtor de filmes inéditos do mundo. Infelizmente, o governo brasileiro perdeu a oportunidade de modernizar a estrutura cinematográfica do país para o que contava com o entendimento entre todos os representantes da atividade, que ele mesmo tratou de romper com este decreto retrógado, que repudiamos veementemente.174

Prevaleceu o grupo cuja proposta previa a realização de um maior número de

filmes para contemplar novos realizadores, curtas-metragens e documentários. Pouco

mais de dois anos tinham se passado após o encerramento das atividades da

Embrafilme e o governo já sinalizava com apoio financeiro ao cinema brasileiro,

optando pela diversificação da produção e por critérios culturais. Ou seja, a primeira

política de cinema realmente implementada depois do fechamento da Embrafilme a

recuperava diretamente e demonstrava a resiliência das políticas de cinema e das

instituições culturais. O cinema brasileiro tinha construído uma história e uma

narrativa que se tornava crível e mais difícil de se alterar com o passar do tempo. Ao

Estado, cabia reafirmar o encaixe.

Outra hipótese que explicaria a mobilização em nome do cinema nacional é a ideia de que ele representaria certa resistência em relação à produção da indústria cultural. O cinema brasileiro se definiu, a partir de 1955, como independente em relação à produção direcionada para o mercado de massa. Ou seja, o cinema seria um refúgio para a reflexão, um meio de comunicação capaz de promover a disseminação de valores nacionais, bem como a síntese dos problemas. Mesmo em períodos de forte repressão política, mesmo sob censura, o cinema nacional continuou a produzir. E, de certa forma, o Estado supriu o setor com verbas de legislação protecionista (BASTOS, 2004: 229).

Com o impeachment de Collor, em setembro de 1992, assumiu o vice-

presidente Itamar Franco, que mudou a equipe do governo e conferiu status de

Ministério à Secretária de Cultura. O novo ministro, Antônio Houaiss, substituiu

Rouanet e retomou o contato com os cineastas em busca de uma solução para as

verbas da Embrafilme.175 A política que prevaleceu deu origem ao “Prêmio Resgate

do Cinema Brasileiro”, realizado em três edições entre 1993 a 1994, financiando

174 Carta da RAIS – Associação de Realizadores de Som e Imagem, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1992. Assinada por Miguel Faria Jr., presidente. 175 O Ministério da Cultura foi criado em 15 de março de 1985 e transformado em Secretaria por Collor em 15 de março de 1990. Itamar Franco o recria em outubro de 1992 ao lado de um Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual, SDAv no interior do Ministério.

138

cinquenta longas, nove médias e vinte e cinco curtas. Mas o grupo preterido

continuava organizado e ativo na defesa das suas ideias para a indústria de cinema no

Brasil: imediatamente após a posse de Houaiss o produtor Luiz Carlos Barreto

publicava um artigo reiterando as propostas veiculadas anteriormente.

Para Barreto, a globalização seria um processo inevitável e apenas uma

indústria cultural forte poderia nos proteger de um processo de desconstrução da

cultura e dos valores nacionais, tendo a sociedade e o Estado como instrumentos de

proteção. Ao mesmo tempo, recuperava um encaixe ocorrido na época do governo

Collor entre cultura, indústria e arte, numa formulação similar àquelas enunciadas por

Vellozo Lucas em 1991. Barreto afirmava:

É possível, com alguma dose de criatividade, tratar o “produto” cinema sob a ética de outros produtos (chamados “ativos”) existentes no mercado financeiro. Essa seria uma abordagem não apenas engenhosa, mas moderna, capaz de criar para a área cinematográfica condições efetivas de desenvolvimento estável e livre de qualquer espécie de paternalismo.176

A ideia de negociar cotas de filmes através de instituições financeiras já estava

estabelecida no cinema brasileiro, e Barreto apenas a reiterava. Mas o legado do

passado ainda marcava suas posições: a utilização de incentivos fiscais para produzir

filmes devia sua justificação a uma demanda por imagens gerada pelo mundo

globalizado. Em sua opinião, o Estado brasileiro teria gasto o equivalente a vinte por

cento da dívida externa para constituir o parque de telecomunicações no país, cujas

“imagens e sons importados deformam e modificam os hábitos da população

brasileira”. Assim, querendo se desatar do Estado, Barreto terminava por apertar os

laços.

Por sua vez, a Comissão de Cinema era novamente constituída para distribuir

fundos estimados em torno de treze milhões de dólares para dar prosseguimento ao

“Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro”. Foram instituídos critérios para a concessão

do subsídio que incluíam uma análise do currículo do cineasta, do roteiro e da

viabilidade financeira e técnica do projeto. A utilização das verbas da Embrafilme na

produção cinematográfica novamente a fundo perdido mobilizavam os grupos no

interior do cinema brasileiro: modelo de filme, capacidade técnica, tamanho do

176 A hora e a vez do cinema. Artigo de Luiz Carlos Barreto. Jornal do Brasil, 22 de outubro de 1992.

139

orçamento, experiência artística, entre outros temas, eram motivo de controvérsia.177

Produtores como Barreto e Roberto Farias procuravam influenciar a comissão por

meio de regras que excluíssem os novos cineastas, e apostavam nos grandes

orçamentos para recuperar a imagem e o mercado para o filme brasileiro. Farias

continua:

Nos 40 filmes que já produzi, dos quais só cinco pela Embrafilme, nunca procurei fazer filmes baratos. Colocar filmes pobres na tela é um risco de desmoralização. Temos que ter o Pelé em campo, o melhor do cinema brasileiro, e com uma boa produção. Sou contra o teto, cada filme é um filme, e acho que desta verba não podem sair recursos para cineastas estreantes. Continuando a comparação futebolística, nós não podemos colocar o Canto do Rio para jogar contra o Flamengo. Precisamos realizar filmes bem produzidos para disputar o mercado interno, que é uma selva, e o externo.178

Os trabalhos da Comissão incluíam diversos segmentos do cinema brasileiro,

dos documentaristas aos grandes produtores, e o Ministério da Cultura predominava

como a arena central na produção e implementação das políticas. Segundo André

Sturm, presidente da ABD naquele momento:

A gente percebeu que era fundamental ter uma entidade nacional porque a articulação com o governo Itamar, que abriu a discussão com o setor do cinema, pediu para o ministro Antônio Houaiss fazer o projeto do cinema, de emergência (o Resgate do Cinema Brasileiro). Então a gente criou a ABD nacional. Eu fui o primeiro presidente e consegui um assento na comissão que assessorou o Ministério da Cultura, primeiro no que seria um grande edital sobre o que fazer com o dinheiro da Embrafilme, que foi muito importante, porque nesta medida o cinema brasileiro recomeçou. E a gente conseguiu com muita luta – estavam todos os interesses, todos os interesses disputavam aquele dinheiro (Depoimento ao autor).

Mesmo representativa e inclusiva, a Comissão foi alvo de pressões e conflitos

semelhantes aos ocorridos na ocasião da explicitação dos critérios de seleção adotados

pelas antigas agências de fomento, como o INC e a Embrafilme. Nesse sentido,

continua Sturm:

177 A Comissão era formada pelo Secretário do Audiovisual, Ruy Solberg, e mais três nomes do Minc; dois produtores (Gláucia Camargo e Anibal Massaini); André Sturm e Giba Assis Brasil da ABD; Marco Altberg da ABRACI; Hermano Penna, da APACI; dois representantes dos exibidores e distribuidores, dois representantes do setor técnico e seis nomes da sociedade civil (José Louzeiro, Ruy de Almeida, Wally Salomão, Moacyr Oliveira, Cesar Leal e Salim Miguel). Comissão decide destino dos US$ 13 milhões do cinema. O Estado de S. Paulo, 23 de julho de 1993. 178 Mariachis x Dinossauros. Jornal do Brasil, 21 de agosto de 1993.

140

Havia uma briga que a gente batalhou, isto não quer dizer que nós defendíamos o cinema cultural como oposição ao comercial, o que não dá para aceitar é que a turma do cinemão representada pelo Barreto, Gláucia Camargo e Aníbal Massaini, e eles defendiam na reta final do edital a forma como iríamos julgar os processos. E eles inventaram uma posição objetiva: vamos dar uma nota para o curriculum do cineasta, da produtora e para o cineasta. Como isto é objetivo? Como é que se pode atribuir uma nota? E as notas tinham peso e eles queriam que a nota maior fosse para a produtora e o curriculum e o roteiro tinham peso menor. Eu fui contra porque um roteiro em branco do Khouri com a produção do Massaini já estaria aprovado. O cineasta e o produtor com mais filmes feitos então já estava com o dinheiro. Foi uma reunião exaustiva e eu conseguiu convencer. O ministro Houaiss foi muito criativo, uma comissão grande com quinze pessoas com representantes de diversos setores do campo, cineastas, trabalhadores, curtas, e ele colocou cinco intelectuais, entre eles Moacir Scliar e Márcio Souza. Foi bom porque eles não tinham interesses corporativos e serviam como anteparo quando a coisa pegava fogo. A minha proposta era que se o projeto fosse bom seria aprovado, sim ou não. O projeto é bom ou não, e por um voto a minha proposta foi aprovada na votação. Porque esta proposta de nota iria favorecer as grandes produtoras. Concentraria a produção no Rio (Depoimento ao autor).

O estímulo à produção por meio do “Prêmio Resgate” retomava, mesmo que

involuntariamente, as antigas regras e critérios da Embrafilme a respeito do

financiamento direto aos cineastas e incorporava suas posições e conflitos no interior

de uma arena estatal. Essa política tinha sido desenhada na Secretaria da Cultura

ainda comandada por Rouanet entre 1991 a 1992; certamente ele não agiu sozinho,

tendo sido assessorado tanto pelos técnicos da área cultural como também pela

Presidência da República, que em última instância tinha liberado o acesso aos

recursos. A meu ver, quem formulou a política estava atado ao passado, sendo

orientado por mapas mentais que dispunham as opções; essas últimas, por sua vez,

eram produto de capacidades institucionais construídas muito tempo antes.

Pouco tempo após o fechamento das agências estatais, novas janelas de

oportunidade estavam sendo abertas ao cinema brasileiro em diversas instâncias e

com diferentes modelos: o “Prêmio Resgate” talvez tenha sido o mais importante por

ter alavancado a produção de filmes, mas outras medidas foram adotadas em governos

estaduais e municipais. Mesmo assim, o governo federal mantinha a primazia no

desenho, controle e implementação das políticas.179

179 A Prefeitura do Município de São Paulo sancionou em 1990 a Lei n. 10.923, conhecida como Lei Mendonça, que previa o estímulo às atividades culturais via incentivos fiscais; a Prefeitura do Rio de Janeiro criou em 1992 a Riofilme, distribuidora e produtora de filmes nacionais; o governo do Distrito Federal criou o Polo de Cinema e Vídeo em 1991. Boa parte dessas políticas auxiliou produtores e

141

5.2 - A Lei do Audiovisual

As articulações entre cineastas e governo continuaram durante a presidência

de Itamar Franco e o antigo projeto 205, apresentado por Ipojuca Pontes em março de

1990, ainda sob o mandato de Collor, seria reescrito até culminar na Lei do

Audiovisual, aprovada em 1993.180

O Ministério da Cultura priorizou a reescrita dos vários projetos apresentados

desde 1990 no Parlamento e no Executivo como o caminho mais rápido para a

retomada da produção após a edição do “Prêmio Resgate”. O projeto de lei foi

encaminhado em junho de 1993 à Câmara dos Deputados e, após um acordo entre os

líderes partidários, teve seu conteúdo aprovado no mês seguinte, dando origem à Lei

n. 8685, conhecida como Lei do Audiovisual.181

A Lei do Audiovisual recebeu um tratamento privilegiado no interior do

Ministério da Cultura e do próprio governo federal; em menos de um ano foi escrita e

aprovada no Congresso Nacional. Mesmo considerando que boa parte dos artigos

remetesse ao projeto sancionado por Collor um ano antes – em 1992 – o processo

todo pode ser considerado como eficaz na formulação, desenho e aprovação nas

instâncias específicas. O governo enviou em 9 de junho de 1993 o anteprojeto da lei

em regime de urgência ao Congresso, que, em um acordo entre os líderes partidários,

o aprovou um mês depois, sem a necessidade de tramitação nas Comissões de

Educação, de Cultura, ou mesmo naquelas envolvidas com a área fiscal.182

cineastas na produção e finalização de seus filmes, mas o governo federal continuou como o principal indutor nessa questão. 180 O Projeto 205 ficou conhecido como a “Política para o complexo audiovisual”, apresentada por Ipojuca Pontes em março de 1991. Essa desdobrou-se no substitutivo apresentado pelo deputado Álvaro Valle (que por sua vez tinha como referência o projeto da RAIS), sancionado por Collor em janeiro de 1992 sob a Lei 8.405/92, mas com vários artigos vetados devido à inconstitucionalidade dos mesmos. Os vetos inviabilizaram a implantação da lei. 181 Pelo fim do exílio de nossos filmes. Jornal do Brasil, 01 de novembro de 1992; Houaiss vai escrever a nova lei do audiovisual. Folha de S.Paulo, 14 de novembro de 1992; Solberg quer volta de incentivo ao cinema. Folha de S.Paulo, 01 de dezembro de 1992. O secretário do audiovisual, Ruy Solberg, foi encarregado de negociar com o Congresso a aprovação da Lei. Com a aprovação da lei, Solberg desliga-se e asume Geraldo Moraes (1993-1994), sucedido por Miguel Faria Jr. (janeiro a abril de 1995), Vera Zaverucha (1995-1996), Moacir de Oliveira (1996-1998) e José Álvaro Moisés (1998-2002). 182 Anteprojeto n. 3.908/93, encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo em 9 de junho de 1993.

142

O texto da lei era conciso e dizia respeito especificamente à produção de

filmes por meio de incentivos fiscais: com apenas quinze artigos a, norma elencava as

regras básicas para que o investidor aplicasse uma parte do imposto de renda devido

na atividade cinematográfica. Mas na exposição de motivos o Ministério da Cultura

elencava os valores tradicionais: o governo tinha assumido um compromisso com o

cinema brasileiro, o que se fazia necessário em um contexto de globalização

econômica, mas cinema também diz respeito aos valores ligados à identidade

nacional.

As teses que estruturavam a Lei do Audiovisual circulavam em torno de

argumentos econômicos cujo objetivo final seria a autossustentabilidade da indústria

de cinema no país e sua viabilidade técnica e comercial como atividade privada.

Ainda que os argumentos fossem fundamentados nessa perspectiva, o setor

encarregado de gerir a lei seria o Ministério da Cultura, o que deslocava a

argumentação para as ideias de identidade e cultura nacional. Vimos no capítulo

anterior que um grupo de cineastas tinha se aglutinado ao redor de um projeto

formulado por sua associação, a RAIS, e a Lei enfim aprovada é uma reapropriação

daquelas ideias. O encaixe entre globalização, arte e indústria inicialmente gestado no

governo Collor entrava em cena novamente, agora sob o comando da burocracia

cultural do Estado.

O anteprojeto da lei foi discutido no Congresso no dia 23 de junho de 1993 e

tramitou sem obstruções; para o deputado Artur da Távola, do PSDB-RJ, o projeto

resgatava uma dívida que o Estado teria com o cinema brasileiro, uma indústria já

consolidada no país e com capacidade de gerar imagens para a cultura nacional. A

relatora do projeto, deputada Ângela Amim, do PPB-SC, recomendava sua aprovação

para “retomar o caminho da valorização, da preservação e do reconhecimento da

memória e da identidade nacional”. Além disso, o projeto estimularia a associação

entre capitais nacionais e estrangeiros sem abrir mão da natureza cultural intrínseca ao

filme.183

183 Diário do Congresso Nacional, seção 1, 2 de outubro de 1993, p. 21.319-21.320. Para o deputado Artur da Távola: “justamente uma das poucas indústrias na qual este país já se afirmou, que é o bem cultural que se expressa pela imagem de um país continente, fabuloso, justamente esta imagem que gera cultura em todos os seus mais diversos rincões, justamente uma indústria dessa natureza que desaguou no talento, com o qual se faz no País hoje televisão, no talento que caracterizou a dimensão do nosso cinema desde os pioneiros do mesmo ao princípio do século, porque o Brasil é um dos países pioneiros no mundo da indústria do cinema, fato, aliás, pouco sabido que se deve à iniciativa de um ilustre cineasta brasileiro, solitário pioneiro no Brasil”.

143

O projeto foi aprovado a partir dos pareceres dos deputados Artur da Távola,

Ângela Amim e Francisco Dornelles (PPB-RJ), sem a necessidade de inclusão nas

Comissões responsáveis pela área abordada pela política. O único parlamentar

contrário à aprovação do projeto foi o deputado Eliel Rodrigues (PMDB-PA), que

questionava o regime de urgência e ausência de debates em torno da nova lei. Em um

momento no qual o governo anunciava cortes nos orçamentos de Ministérios da área

social, seria incoerente a aplicação de recursos na produção de filmes: “por que tal

urgência urgentíssima para um projeto que não trata nem de calamidade pública, nem

do problema da seca, da desertificação, nem do problema nuclear? Olhem a

incoerência, o contrassenso: enquanto se corta de um lado, abre-se a torneira de outro,

para a produção de filmes”.184

Não há registro de discussões sobre a viabilidade econômica e industrial da

atividade cinematográfica no país, nem sobre os resultados previstos a partir da

implementação da lei, apenas reafirmava-se o valor cultural do filme sem implicações

sobre a capacidade de democratizar o acesso aos bens gerados pela política.

A Lei do Audiovisual está estruturada em dois artigos: o 1o e o 3o, que dizem

respeito à aplicação de recursos na produção cinematográfica por meio da dedução no

imposto de renda e na coprodução via imposto de renda retido pelas importadoras de

filme, respectivamente. A aplicação dos recursos é possível apenas na produção

audiovisual independente, ou seja, aquela cuja produtora principal não está vinculada

às emissoras de televisão.185

Podemos sintetizar os pontos principais da lei na tabela abaixo:

184 Diário do Congresso Nacional. Seção I, quarta, 30 de junho de 1993, p. 13.963. Depois de aprovado na Câmara o projeto foi ratificado sem alterações no Senado em 19 de julho de 2003. 185 Lei 8.685, de 20 de julho de 1993. A dedução do imposto de renda está limitada a um por cento para pessoas jurídicas e três por cento para pessoas físicas; esses limites foram ampliados para três e cinco por cento, respectivamente. Os projetos precisam de uma contrapartida de quarenta por cento sobre o valor total do orçamento, posteriomente reduzido para vinte por cento. Essas alterações ocorreram por meio da lei 9.323, de 05 de dezembro de 1996.

144

Tabela 05 – Lei 8.685/93 - Lei do Audiovisual

Objetivo Estimular a autossustentabilidade da indústria de cinema no país; aumentar a participação do produto nacional no mercado.

Órgão Gestor Ministério da Cultura

Origem dos recursos Renúncia fiscal exercida por pessoas físicas e jurídicas; aplicação do imposto de renda sobre remessa de lucro das importadoras de filmes na coprodução de filmes.

Aplicação dos recursos Produção de obras audiovisuais cinematográficas brasileiras de produção independente; infraestrutura; projetos de exibição e distribuição.

Resultados esperados Produção de filmes e infraestrutura técnica para a indústria cinematográfica

Mecanismos de controle Projetos devem ser cadastrados e aprovados no Ministério da Cultura. Os projetos precisam comprovar viabilidade técnica, comercial e artística com prazo para conclusão. Os investidores devem depositar os recursos em conta-corrente no Banco do Brasil sob o controle do Minc.

Elaborado pelo autor. Fonte: Lei 8.685.

A ideia de financiar a produção de filmes no país por meio de incentivo fiscal

remonta aos anos 1960 e foi defendida com maior ênfase durante a crise da

Embrafilme, quando projetos e propostas de políticas propunham sua implementação.

Os mecanismos mobilizados em sua defesa previam o fortalecimento das capacidades

empresariais entre produtores e cineastas e o afastamento do cinema brasileiro de seu

principal investidor, o Estado.186

186 Ver por exemplo as “Propostas para uma Política Nacional de Cinema”, de 1986, que previam a implantação do Funcine – Fundo Nacional de Cinema, para apoiar a produção de filmes por meio de incentivos fiscais, desonerando o Estado e atribuindo a ele funções de caráter estritamente cultural. Jornal da Tela, edição especial, 1986.

145

O governo Collor aglutinou essas ideias em torno de um projeto de política

que gradualmente avançou em direção aos governos que o sucederam; para o cineasta

Miguel Faria Jr., na época presidente da RAIS e um dos autores do texto da lei, há

uma continuidade que atravessou diferentes gestões:

Mas o Collor, o próprio Collor tentou fazer uma lei de mercado com incentivo fiscal que começou a ser discutida. Esta lei começou a ser coordenada por Vellozo Lucas, um cara do Espírito Santo. O Ipojuca saiu, puseram o Rouanet e começou a coordenar esta possibilidade. O Collor saiu e assumiu o Itamar e já não se fazia filmes há dois anos e a gente montou uma associação de cineastas, eu era o presidente, para tentar unir a classe, que a esta altura estava muito desunida, para tentar ver o que fazia para o cinema voltar a existir. Esta associação era a RAIS. A partir da RAIS e com o Itamar e o Houaiss começou a se bolar esta possibilidade de incentivo. Isto foram meses, conversas técnicas, elaboradas, Receita Federal, Ministério da Fazenda, até que chegou a este modelo de lei. Eu participei diretamente, eu estava trabalhando nisto (Depoimento ao autor).

A tramitação da lei no Congresso tinha sido favorável, e o cinema brasileiro

não encontrava grandes obstáculos institucionais no interior da burocracia estatal,

tampouco resistência da sociedade civil. As ideias que geraram a Lei do Audiovisual

já estavam sedimentadas há pelo menos uma década, mas outras possibilidades

poderiam ser testadas, uma vez que o contexto estava aberto. Mas a lei foi desenhada

na tentativa de suplantar o passado, conforme afirma Faria Jr.:

Em primeiro lugar a Embrafilme virou palavrão. O cinema brasileiro não poderia viver sem dinheiro do Estado, falar em financiamento direto para o cinema brasileiro era palavrão. Uma das coisas que fez a gente procurar outras opções era isto. Não era mais possível o financiamento direto. Em segundo lugar a classe estava traumatizada neste processo de escolha de filmes, que fez todo mundo brigar, esta coisa do investimento direto sem critérios específicos, o que tem hoje de novo. Então como é que se escapa disto? Por várias razões, como é que poderia, o cinema nesta época era feito por muitos poucos produtores e a grande maioria eram cineastas que queriam fazer filmes e eram obrigados a produzir. Poucos produtores e empresários no sentido capitalista. Uma das coisas era isto, como é que se atrai, além do problema do Estado, investimentos empresarial e capitalista para o cinema que precisa de subsídio, então foi neste sentido que a gente chegou nesta lei. Com esta lei, na época, eu imaginava que fossem surgir produtores de cinema, interessados em produzir (Depoimento ao autor).

A implementação da Lei do Audiovisual teve como mérito estabelecer a

normalidade na produção de cinema no país, mas o seu desenho, calcado na lógica do

incentivo fiscal, ignorou vários atributos das políticas públicas que naquele momento

146

estavam sendo discutidos em diversos contextos: nas agências multilaterais, no

interior da burocracia estatal e entre organizações da sociedade civil. Com a restrição

do gasto público, imposto por fatores externos, como a globalização, e internos, como

o redesenho das atividades estatais, propunha-se às políticas públicas um padrão

pautado na eficiência junto à alocação dos recursos e uma maior responsabilização

dos agentes estatais.

Pautada pela urgência do tema e pela pressão do público interessado na

política, a Lei do Audiovisual foi estabelecida sem critérios claros acerca do resultado

final a ser obtido, e com instrumentos pouco eficazes na fiscalização e transparência

dos recursos utilizados. Para os gestores que desenharam a lei, o diagnóstico era claro

naquele momento: as políticas anteriores não tinham sido bem sucedidas em prover

um território autônomo para o cinema brasileiro, e indiretamente acirraram os

conflitos entre diferentes grupos. Ao alocar o processo decisório junto às empresas e

setores da sociedade civil, acreditava-se que uma parte dos problemas seria enfim

resolvida.

Em linhas gerais podemos analisar a Lei do Audiovisual a partir das seguintes

premissas:

o processo decisório é dividido entre o Ministério da Cultura, instância que

condiciona a aprovação prévia dos projetos, e a sociedade, que decide a

alocação dos recursos;

esses últimos são então descentralizados, impedindo a lógica de um “balcão

único”, que para o cinema brasileiro teria inviabilizado a Embrafilme;

a aplicação da Lei depende basicamente da interação entre cineastas e

sociedade, ocultando a ação do Estado nesse processo.

Mas a Lei do Audiovisual é realmente um processo original? Aqueles que a

formularam atuaram em um contexto no qual as condições sociais e econômicas

interditavam uma intervenção direta do Estado, mas será que as políticas do passado

não determinaram as opções disponíveis aos agentes?

Dispostos entre a burocracia cultural do Estado e a sociedade, os cineastas

atuavam como agentes intermediários e em posição privilegiada naquele momento,

mas não podemos descrever esse processo apenas como uma interação por meio de

pressões de um setor sobre o outro. As interações entre a sociedade e o Estado

ocorrem também por fluxos de ideias, e os atores tendem a operar sob o discurso

147

dominante naquele momento. Já vimos que as teses de inspiração neoliberal estavam

incorporadas nas rotinas administrativas no interior da burocracia estatal. Um encaixe

tinha sido efetivado no governo Collor entre cineastas e esses setores, porém não foi

suficiente para romper os elos, uma vez que:

no governo Itamar o Ministério da Cultura empoderou os cineastas;

durante a tramitação da lei o Congresso Nacional não exigiu contrapartidas;

elementos de cultura e identidade nacional continuavam valorizados.187

Aqui temos a terceira linha de dependência de trajetória nas políticas de

cinema no Brasil, pois a Lei do Audiovisual enfatizou:

01) a produção de filmes e não sua circulação ou difusão;

02) a interface com o público-alvo da política, no caso, os cineastas e produtores,

e não o público final;

03) valores culturais de forma implícita, ao não definir a indústria nem estabelecer

possibilidades de comercialização junto aos resultados da política.

Podemos afirmar que o texto legal é apresentado de forma concisa no que diz

respeito a seus objetivos, mas isto se deve muito mais às alternativas preteridas nos

anos 1960 do que ao contexto social e econômico vivido naquele momento, ou seja,

determinadas questões de fundo normativo e cognitivo tornaram-se ao longo do

tempo instituições não formalizadas e de difícil transformação, que sedimentaram-se

ao redor dos projetos de apoio à produção e de uma ideia difusa de cultura expressa

no filme brasileiro.

Nesse caso, a sequência de eventos também foi fundamental, pois a política

criada em 1966 enfatizou a produção de filmes e as políticas posteriores apenas

adicionaram camadas: em 1975 foi incorporada a distribuição dos filmes, e em 1987

ocorreu a separação entre os aspectos culturais e comerciais da indústria, que

permaneciam até então em estado latente. Se em 1990 o jogo foi zerado, a lei criada

em 1993 retomava a posição original com o mesmo escopo, arena e atores. Podemos

sumarizar essa discussão na tabela abaixo:

187 Podemos descrever esse processo como um aprendizado social (social learning) que ajusta os objetivos e técnicas da política em resposta não somente aos legados do passado como também às novas informações. O modelo de aprendizado social envolve múltiplos atores, seja no Estado ou na sociedade, que são atravessados por fluxos de ideias (HALL, 1993).

148

Tabela 06 – Padrões observados nas políticas de cinema no Brasil (1960-1990)

Dimensão

temporal

1960 1970 1980 1990

Agência,

Política

INC/Embrafilme Embrafilme

Concine

Embrafilme

Fundação do

Cinema

Brasileiro

Lei do

Audiovisual

Argumentos

mobilizados

Evasão de divisas,

industrialização

Evasão de

divisas,

proteção da

cultura

Evasão de

divisas,

proteção da

cultura

Auto

sustentabilidade,

industrialização

Arena Executivo federal Executivo

federal

Executivo

federal

Executivo

federal,

Parlamento

Burocracia

responsável

Indústria e

Comércio, MEC

MEC MEC, Minc Minc

Atores

envolvidos

Burocracia estatal,

cineastas

Burocracia

estatal,

cineastas

Burocracia

estatal,

cineastas

Burocracia

estatal, cineastas,

parlamentares

Mecanismos

de

financiamento

Associação com

capital

estrangeiro,

incentivos fiscais

Dotação

orçamentária,

impostos sobre

o filme

importado

Dotação

orçamentária,

impostos sobre

o filme

importado

Incentivos fiscais

Padrões e

perfil

Industrial

dependente

Cultural estatal Cultural estatal Industrial

independente

Elaborado pelo autor a partir da legislação respectiva.

Alguns mecanismos são invariantes, como a função do Executivo federal

como indutor das políticas e a presença das burocracias cultural e educacional na sua

administração. Outros elementos variam, como os argumentos mobilizados para a

produção da política, dependentes do contexto social e econômico: a evasão de

149

divisas faria todo o sentido nos anos 1960, mas não trinta anos mais tarde em um

processo de globalização econômica; aqui, justificativas com base na

autossustentabilidade da indústria teriam apelo mais forte. Os mecanismos de

financiamento também apresentam distinções no seu formato, ainda que o Estado seja

o principal elemento de fundo.

Um esboço de tipologia de padrões e perfis nas políticas de cinema pode ser

observado na última linha da tabela 05:

01) industrial dependente nos anos 1960 porque articulou-se uma vinculação

entre o cinema brasileiro e produtoras estrangeiras com capacidade de

decisão;

02) cultural estatal nos anos 1970 e 1980, não porque a tese de industrialização

refluiu, mas porque o encaixe entre Estado e cinema ocorreu por meio dos

atributos culturais do filme brasileiro;

03) industrial independente nos anos 1990 porque a legislação de incentivo

fiscal estimulou a associação entre cinema, sociedade e mercado, ocultando a

ação do Estado.

Podemos avançar a análise e discutir as formas de interação entre cineastas e

Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso. A implementação da Lei do

Audiovisual efetivamente ocorreu em seu governo, e inovações importantes nas

políticas também tiveram seu foco nesse contexto. Estes serão os temas da próxima

sessão.188

5.3 - As políticas de cinema nos anos FHC

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2001) recuperou as teses e

ideais sobre a transformação das relações entre Estado, sociedade e mercado. O

“modelo varguista”, baseado na substituição das importações por meio de um

desenvolvimento econômico mais autônomo e endógeno, deveria ser desmontado, e

188 Durante os anos 1990 o cinema brasileiro utilizou dois mecanismos de financiamento: o primeiro deles foi a Lei do Audiovisual já comentada nesse capítulo; o outro foi a Lei Rouanet (Lei 8.313/91). O funcionamento do mecanismo é semelhante ao da primeira lei, mas ao contrário desta, a legislação prevê auxílio a diversas formas de produção artística. O artigo 3o da Lei Rouanet previa o incentivo a projetos culturais por meio da dedução do imposto de renda; cineastas e produtores utilizavam esse mecanismo em conjunto com a Lei do Audiovisual.

150

os instrumentos requeridos para tal tarefa implicavam na privatização das empresas

estatais, no controle do gasto público e na primazia da estabilidade monetária no

interior das atividades governamentais. Mesmo em tal configuração, a administração

FHC nunca elencou um projeto pronto e coerente sobre o novo modelo a ser adotado,

levando o governo a ser administrado de forma cotidiana e sem perspectivas de longo

prazo que não aquelas envolvidas na estabilização da economia.

Muito dessa atuação é devida às divisões internas na administração e na

coalização partidária que sustentava o governo. A diversidade de respostas aos

problemas encontrados torna difícil uma caracterização precisa do governo FHC: em

determinados casos foi adotada uma lógica próxima do ideário neoliberal – como na

administração econômica –, em outros as políticas envolveram outras configurações,

como no caso da saúde (ABRÚCIO, COUTO, 2003).

No plano econômico as ideias que sustentavam o modelo neoliberal já

circulavam na sociedade antes mesmo do governo Collor, e este iniciou um processo

de desmonte da estrutura nacional-desenvolvimentista, rearticulando as relações entre

Estado, mercado e sociedade civil. Se as ideias já estavam presentes, faltava apenas o

Estado incorporá-las e difundi-las: “com isto, desistia-se de construir no país uma

estrutura industrial completa e integrada, em que o Estado cumpria o papel de redoma

protetora em relação à competição externa e da alavanca do desenvolvimento

industrial e da empresa privada nacional” (SALLUM, 1999: 28).

Se o governo Collor significou uma ruptura com o antigo modelo, foi no

governo de FHC que tal estrutura foi desenhada e implementada. Assim, o liberalismo

econômico foi uma característica central do governo FHC, pois o Estado não cumpriu

funções empresariais que foram gradualmente transferidas para a iniciativa privada.

Esse conjunto de ideias circulava entre parlamentares, em setores da mídia, na

burocracia estatal e no empresariado. O objetivo do governo FHC, além de preservar

a estabilidade, seria mudar o padrão de desenvolvimento brasileiro, ainda ancorado na

Era Vargas.

Assim, um novo consenso foi construído nos anos 1990, não apenas na função

de assegurar a estabilidade econômica, mas também em modificar a estrutura de

relações entre Estado e sociedade: a internacionalização da economia brasileira, a

redução das tarefas coordenadas pelo Estado e o controle do déficit público foram

questões que se tornaram consenso em um grupo de atores que incluía parlamentares,

mídia, burocratas e empresariado.

151

Se a pretensão do governo FHC era de desmontar a estrutura do Estado

nacional-desenvolvimentista, tal ação esbarrou no cotidiano da administração pública

e na resposta dada aos problemas encontrados de forma recorrente. Por outro lado, o

novo modelo não poderia ser implementado a partir do zero:

De fato as pressões derivadas do mercado podem desafiar as instituições preexistentes, mas novas formas de regulação não são criadas no vazio, como meras adaptações às necessidades do mercado. Os processos por meio dos quais surgem os novos arranjos institucionais são moldados pelo contexto social e institucional preexistente. Assim, os complexos de valores e normas e a estrutura social legados pelo passado contribuem decisivamente para moldar o campo de visão dos que criam os novos quadros de regulação (SALLUM, 2006: 134).

Assim, o governo, ao mesmo tempo em que adotava medidas econômicas de

inspiração neoliberal, procurava compensações aos resultados dessas mesmas

políticas. Essas iniciativas de caráter compensatório afastaram o governo FHC de uma

adesão completa ao ideário neoliberal. A planificação também retorna, ainda que

reorientada, pois nesse modelo o Estado apenas planeja, regula e supervisiona os

projetos, não intervindo de forma direta.

A saída do governo na administração direta das políticas de cinema foi vista

como a consolidação de um novo modelo, já que evitaria os problemas atribuídos às

agências anteriores. A decisão sobre o que financiar, e com quais mecanismos,

poderia transformar-se em um fardo considerável para um novo estilo de gestão cuja

característica central era regular e não intervir. Além disso, a experiência da

Embrafilme ainda era muito recente e seus traços negativos eram ressaltados pelos

gestores do governo FHC: as práticas clientelistas e a ausência de transparência na

utilização dos recursos públicos atribuídos à empresa criavam uma espécie de

fronteira cuja transposição ou a simples observação das experiências passadas

estavam interditadas.189

A Lei do Audiovisual foi implementada nos primeiros anos do governo FHC.

Os bons resultados atribuídos à sua operação deram origem ao chamado “cinema da

retomada”, cujas características principais seriam a diversidade estilística, a 189 A globalização e a desregulamentação dos processos econômicos atuavam na política cultural como um “divisor de águas” entre o passado e o presente. Assim, os gestores dessa área no governo FHC colocavam-se como marcadores de um novo tempo. O Ministro da Cultura, Francisco Weffort, buscava inspiração na gestão de Gustavo Capanema durante o Estado Novo (1937-1945) e associava os anos 1990 a mudanças tão importantes quanto aquelas realizadas nos anos 1930. Tal fato obscureceu experiências inovadoras em modelos recentes, como a Embrafilme e a Funarte (ARRUDA, 2003).

152

renovação autoral e a ampliação dos polos de produção ainda concentrados entre São

Paulo e Rio de Janeiro. Os primeiros anos de sua operação foram encarados com

otimismo, já que a produção de filmes tinha sido retomada e o governo sinalizava

com apoio contínuo. Os gestores da lei acreditavam que a sociedade estava assumindo

o seu papel na operação desses mecanismos, que por um lado descentralizavam o

processo decisório e por outro impediam o retorno das políticas anteriores – e

consequentemente a possibilidade de um exame mais isento sobre os resultados

alcançados. Desse modo, associou-se um padrão de políticas implementadas pelo

governo FHC cujo formato pressupunha a descentralização e a parceria com a

sociedade, com a retomada na produção cinematográfica.190

No decorrer dos anos 1990 podemos destacar três mecanismos que suportaram

o funcionamento da Lei do Audiovisual em um processo que envolveu sucessivas

interações entre cineastas, produtores e burocracia governamental:

01) a ênfase na diversidade, representada por um conjunto de filmes, em

mecanismos de financiamento e em caracteres da cultura nacional;

02) a globalização econômica e a forma como introduz temas tradicionais do

cinema brasileiro;

03) a constituição de uma indústria de cinema a partir de políticas com origem no

Ministério da Cultura.

Quanto ao primeiro item, podemos observar que durante os anos 1960 um

encaixe entre o Estado e cineastas foi ativado ao redor dos valores culturais expressos

pelo filme brasileiro; essa operação mostrou-se resiliente ao longo dos anos, e no

governo Collor, sob um ambiente econômico aparentemente hostil a tais ideias, novas

camadas foram adicionadas, combinando então eficiência econômica ao modelo

original. Nos anos FHC, o encaixe permaneceu ativo, mas seus termos foram

reorientados, valorizando a diversidade e a cultura plural existente no país. Com a

nova política em funcionamento, acionava-se a diversidade existente na sociedade por

meio de regras de financiamento, também vistas como diversificadas, o que impedia a

lógica do “balcão único” prevalecente na Embrafilme. Caso o Estado optasse pelo

190 Para Moacir de Oliveira, secretário do Audiovisual (1995-1998), a retomada ampliou o terreno institucional do cinema brasileiro, já que foi “um cinema que incorporou o Brasil, não apenas na temática que, de resto, já o fazia antes, mas sobretudo pela expansão da produção para outras regiões além do tradicional eixo Rio-São Paulo, abrindo caminho para novos realizadores e novos universos de expressão e representação (...) Um cinema que busca a pluralidade formal, de linguagem, a variedade de gêneros e olhares”. Cinema Brasileiro: um balanço dos 5 anos da retomada do cinema nacional. 1994-1998. Brasília, Ministério da Cultura, SAV, 1998.

153

modelo anterior, teria como consequência um padrão único na expressão cultural, ou

seja, o modelo adotado nos anos FHC combinou democracia com diversidade cultural

por meio de políticas cujos mecanismos de financiamento seriam os mais plurais

possíveis. José Álvaro Moisés, Secretário do Audiovisual (1998-2002), analisa o tema

da seguinte forma:

Assim imaginar que a decisão do patrocínio leva em conta apenas interesses comerciais é minimizar o significado das diversas etapas pelas quais o projeto passa e não perceber que no sistema vigente ele é democraticamente negociado entre Estado, artistas, produtores e empresas. Nunca é demais insistir em no quanto isto é adequado a uma sociedade democrática, na qual, ao invés de prevalecer uma única orientação de política cultural, o processo de criação e de desenvolvimento cultural resulta de sólida interação entre sociedade civil e Estado, o que exige, por definição, a intervenção de uma pluralidade de agentes que, como é natural que seja, tem diferentes concepções sobre a cultura. 191

Um desdobramento dessa ideia pode ser encontrado neste contexto e diz

respeito à proteção e à garantia da função de espelhar a sociedade brasileira atribuída

ao cinema nacional. Comentando as políticas do governo Collor e as denúncias

envolvendo as operações da Lei do Audiovisual, Moisés reiterava:

Se automóveis produzidos na época foram tratados como “carroças,” o cinema foi desprezado como expressão artística pelo Estado e sua função de gerar sonhos “permanentes e poderosos” foi descartada, sem ter sido jamais compreendida pelo governante de turno. Dez anos depois, apoiado primeiro pelo Premio Resgate e, depois, pela modernização das leis de incentivo a cultura do governo FHC, o cinema voltou a afirmar o direito do povo brasileiro de trabalhar no espelho da tela as suas múltiplas identidades culturais. Apesar da má vontade da imprensa, o talento e a sensibilidade artística de uma nova geração de diretores propiciou reflexão inovadora sobre

191 Os efeitos das leis de incentivo. José Álvaro Moisés. Ministério da Cultura, Brasília, 1998, p. 444. Em diversos textos publicados pelo Ministério da Cultura, Moisés reiterou a associação entre democracia, diversidade cultural da sociedade brasileira e os novos modelos adotados pelas políticas de cinema. Em “Democracia e financiamento da cultura no Brasil”, Moisés afirmava que o modelo adotado teria ampla compatibilidade com a democracia porque distribuiria as fontes de financiamento entre governo e sociedade civil. Ao mesmo tempo, repele as políticas anteriores ao rejeitar os modelos pautados em fontes únicas de decisão e financiamento pois “políticas culturais, no plural, têm de ser desenvolvidas pela sociedade e não apenas pelos governos”. Assim, o governo FHC “reforça a importância da interação (e da negociação) entre o Estado, a iniciativa privada e a própria comunidade cultural. É a política de parceria fomentando a cultura”. Essas concepções, muito difundidas nos anos 1990, impediram um diagnóstico amplo do modelo Embrafilme, de suas falhas e eventuais acertos.

154

quem somos e o que queremos ser como povo e como nação e convidou-nos a sonhar de novo a exigir mais de nossa própria humanidade.192

Para o Ministro da Cultura, Francisco Weffort, a tese do espelho reforça a

presença de um Estado que protege e assegura a manutenção e reprodução das

identidades culturais do povo brasileiro:

Nas condições de uma indústria que não existe, e que tem que competir com a indústria americana, das duas uma: ou você tem subsídios do Estado ou não vai ter cinema. Tem que ter cinema. Sabe por quê? Porque o povo quer ver sua cara na tela. Tem de ter cinema pela mesma razão que tem de ter televisão, novela, porque o folhetim, o romance e o cinema são narrativas típicas da construção da sociedade moderna.193

Durante os trabalhos da subcomissão de cinema no Senado Federal, criada em

1999 para debater os problemas relativos à produção e circulação de filmes no Brasil,

o produtor Luiz Carlos Barreto afirmava:

Tenho um bordão, que venho usando de um ano para cá, que é o seguinte: o país sem cinema, sem produção de imagem, é como uma casa sem espelho. Se tirarmos todos os espelhos de casa e, durante um mês não tivermos onde nos olharmos, onde nos mirarmos de manhã, para saber como está o cabelo, como estamos vestidos, vamos perdendo nossa referência, nossa própria imagem. É o que ocorre hoje no Brasil. Se não fosse essa produção das televisões brasileiras, das novelas, a situação estaria muito pior.194

No segundo item, acompanhamos a forma como a globalização econômica

induz os agentes do campo cinematográfico e os atores estatais a vincular uma

temática tradicional ao cinema brasileiro. Se nos anos 1960 o temor que atravessava o

campo cultural dizia respeito a uma possível descaraterização da cultura pela presença

192 O que deve mudar na indústria cinematográfica. O Estado de S. Paulo, 17 de agosto de 2001. Os relatórios produzidos pelo Minc enfatizaram a relação entre uma produção de cinema supostamente plural e as novas políticas implementadas. Assim, seria preciso expandir o público dos filmes brasileiros para que ele os reconhecesse como expressão da diversidade cultural. O Minc e os filmes procuram divulgar os temas básicos da formação social, cultural e histórica do Brasil, permitindo que muitos brasileiros se reconheçam nos filmes. Cinema Brasileiro: um balanço dos 5 anos da retomada. Ministério da Cultura, 1988, p. 51-52. Ao comentar os resultados da política de cinema implementada com aumento no número de filmes produzidos e interesse do público, Moisés reiterava: “a função de espelho, própria do cinema, voltou a revolver as nossas identidades culturais”. Cinema, mídia e democracia. Folha de S.Paulo, 6 de fevereiro de 2000. 193 Cinema depende de leis de incentivo. Folha de S.Paulo, 12 de fevereiro de 2000. 194 Depoimento de Luiz Carlos Barreto. Senado Federal, 12 de novembro de 1999. A subcomissão de cinema foi criada em 1999 e durou um ano e meio, realizando sete audiências públicas com a presença de cineastas, produtores e técnicos governamentais. A iniciativa foi do senador Francelino Pereira, do PFL/MG.

155

do filme importado – posição justificada pelo nacionalismo então hegemônico em

diversos segmentos da sociedade brasileira –, nos anos 1990 a globalização traz de

volta algumas destas características. Se a diversidade cultural é um bem a ser

assegurado pela parceria Estado e sociedade civil, evitando então a ideia de uma

cultura única e homogênea, a globalização poderia minar essas capacidades ao

difundir um modelo uniforme. Segundo Moisés:

Para que cumpra funções de defesa da diversidade cultural, um valor de que as sociedades não podem prescindir, o cinema precisa contar com políticas de Estado desenhadas para assegurar a existência de condições favoráveis ao seu desenvolvimento como arte e como indústria. O Estado deve consolidar o cinema como veículo de identidade cultural e autoestima dos brasileiros, assegurando a singularidade da cultura brasileira, sua diversidade, para que não sejam ameaçadas pela globalização.195

O fenômeno da globalização também retornava com outro tema presente em

diversos períodos históricos do cinema brasileiro: o filme importado não somente

ameaçaria a identidade e a cultura nacional como também a própria economia do país

por meio da evasão de divisas. Para conter esse processo seria necessário incrementar

a produção de filmes e estimular o público a apreciar as imagens geradas pelo cinema

brasileiro. A globalização seria um mecanismo capaz de impor uma cultura

homogênea, que em contrapartida ampliava a demanda por imagens, cabendo então

ao cinema brasileiro – apoiado pela dinâmica entre sociedade e Estado – ocupar esse

espaço e impedir a consolidação deste modelo único.196

Nesse conflito de imagens a indústria cinematográfica norte-americana

obtinha posição vantajosa, potencializada agora pelos processos de globalização e

eliminação de barreiras entre os países. O otimismo dos primeiros anos da Lei do

195 Cinema e diversidade cultural. Folha de S.Paulo, 24 de maio de 2002. Em outro artigo, Moisés retomava a argumentação: o modelo adotado por Collor privilegiou a livre-circulação dos filmes importados e o domínio de um modelo cultural único comprometia o pluralismo cultural. Para ele, o cinema brasileiro conteria elementos nos quais o espectador se reconheceria automaticamente, fortalecendo uma reflexão sobre o que somos e o que queremos ser como nação. Existe política para o cinema? Folha de S.Paulo, 4 de junho de 1999. Em outro artigo Moisés reiterava: “em um mundo cada vez mais globalizado e condicionado pela comunicação e por imagens, a capacitação do país para competir em seu próprio mercado audiovisual e, assim abrir novas fronteiras culturais e econômicas supõe que esses avanços estratégicos sejam assegurados pelo Estado”. Cinema, mídia e democracia. Folha de S.Paulo, 6 de fevereiro de 2000. 196 Nos dados do Minc o país importava em média 300 filmes ao ano importando cerca de US$ 700 milhões. O que deve mudar na indústria cinematográfica. O Estado de S. Paulo, 17 de agosto de 2001. Em 1999, durante o 11o Fórum Nacional do BNDES, o Ministério da Cultura divulgou que o país tinha importado em 1998 cerca de 640 milhões de doláres em filmes.

156

Audiovisual refluía diante da expansão e controle do mercado brasileiro pelo produto

importado e dos próprios mecanismos da lei que, como vimos, estimulavam a

produção mas não a circulação dos filmes. Para o cineasta Paulo Thiago, a identidade

nacional estaria em jogo com a supremacia do filme americano nas salas de cinema e

nas redes de televisão:

A responsabilidade dessa tarefa ficou até agora com os cineastas. Cabe ao Estado brasileiro, a sociedade que precisa tomar ciência dos riscos que corre, ao poder político seja governo ou oposição que deve urgentemente se posicionar diante do “poder de dominação e destruição” da indústria cultural neste final de milênio, fazendo com que nossos jovens saibam mais sobre o “Rei Leão”, os “Aliens” e o naufrágio do “Titanic” do que sobre “Tiradentes”, a “Bossa Nova” ou o golpe de 1964. Que a metáfora de “Central do Brasil” sirva de chama que ilumine os líderes desta nação, para impedir o colapso de uma nova geração de imagens, que espelhe a história e a vida do nosso povo, devolvendo-lhe a fé e a confiança na construção do seu destino.197

Os atores interessados nas políticas de cinema implementadas nos anos 1990

recorriam aos resultados esperados da globalização – como a tese da homogeneidade

na produção e recepção das imagens – para assegurar sua continuidade. Nesse sentido

a Secretaria do Audiovisual reiterava que o governo estaria controlando as ameaças à

identidade e cultura nacional por meio da legislação e programas específicos: se a

globalização intensificou a circulação de filmes importados e dificultou o seu

controle, restava aos governos nacionais a adoção de medidas de proteção, que no

Brasil alavancaram a produção de filmes. Em relatório divulgado em 1998, a

Secretaria estimava ter aplicado cerca de R$ 650 milhões na produção de filmes pelos

mecanismos de renúncia fiscal.

No fluxo de ideias entre cineastas e Estado, encontramos uma interpretação

particular da história que enfatiza determinados temas e ignora outros; elenca

interlocutores e marginaliza os demais. Assim, durante os anos 1960 um encaixe entre

cineastas e Estado privilegiou os atributos culturais presentes no filme brasileiro,

reproduzindo nas décadas seguintes os principais mecanismos desse fenômeno. A

partir dos anos 1990, os dois polos afinam os discursos em torno de um debate

197 Crise audiovisual. Jornal do Brasil, 1 de fevereiro de 1999. Para o cineaste, a economia global implicaria em uma hegemonia audiovisual: “o que está em pauta é a hegemonia audiovisual do planeta, o uso indiscriminado dessa linguagem como instrumento de dominação psicossocial da humanidade e a extinção das culturas dos países periféricos”. Qual é o projeto cultural e político atual do cinema brasileiro? Folha de S.Paulo, 12 de fevereiro de 2000.

157

econômico então prevalecente no início da década; com o governo FHC o encaixe

permanece, acrescido do impacto da globalização sobre a cultura nacional. Se a

demanda por imagens cresce, estimulando a produção de filmes, o processo tende a

ameaçar a diversidade cultural por meio da hegemonia de um modelo único.

Cineastas e atores estatais respondem a esse novo contexto adaptando o encaixe

original: para o cineasta Gustavo Dahl, “o cinema é uma atividade cultural que no

mundo contemporâneo tornou-se importantíssima para a própria identidade de uma

nação”, já para Moisés, “o governo entende que o audiovisual tem um papel

estratégico no desenvolvimento do país, particularmente no mundo globalizado, que,

cada vez mais, comunica-se por imagens”.198

Admitindo que a sociedade – por meio das empresas privadas – participasse

do processo decisório com plena capacidade de impor um determinado modelo de

filme, o Ministério da Cultura ainda tinha a prerrogativa na aprovação prévia dos

projetos e na moldagem da Lei do Audiovisual de acordo com as circunstâncias.

Assim:

In regulating film, state institutions were active in ways that included defining the limits of the state interest in culture, structuring decision makers’ policy choices, legitimating state action, providing criteria by which to allocate public resources, and helping authorities to understand outcomes. In so doing, they encapsulated the values of dominant social actores, reflecting earlier political choices and privileging the powerful (FLIBBERT: 2007, 151).199

Quanto ao terceiro item, podemos afirmar que a constituição de uma indústria

de cinema permaneceu como um elemento central nos anos 1990, dispondo de forma

desigual ao longo da década os atores que poderiam sustentá-la. Com o governo

Collor a ideia foi abrigada no interior do segmento econômico do Estado; a partir do

governo Itamar a burocracia cultural retomou a prerrogativa de definir esse tipo de

198 Os conceitos fundamentais do programa. O Estado de S. Paulo, 23 de julho de 2001; Distorcer os fatos. Folha de S.Paulo, 02 de junho de 2000. 199 Ao regulamentar o filme, as instituições do Estado foram ativas de modo que incluíram a definição nos limites do interesse do Estado na cultura, estruturando o processo de decisão das escolhas políticas, legitimando a ação do Estado, fornecendo critérios pelos quais se alocam recursos públicos e ajudando as autoridades a entender os resultados. Ao fazê-lo, eles encapsularam os valores dos atores sociais dominantes, refletindo as escolhas políticas anteriores e privilegiando os mais poderosos (Tradução livre.) Para o cineasta André Sturm: “é um discurso esquizofrênico. Quando tinha o Collor a coisa era neoliberal, a indústria vence. Quando tem um governo mais nacionalista a cultura é mais importante. O país mudou, passou de ser um país de mercado para uma questão nacional, aí a lei foi adulterada” (Depoimento ao autor).

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pelos próprios cineastas. O “cinema de produtor” aventado como uma solução por

Jean-Claude Bernardet alguns anos antes permanecia como um ideal distante. Assim,

quando a produção de filmes retornou aos padrões considerados aceitáveis por

cineastas e agentes estatais, a lógica contida no encaixe prevaleceu.

Os conflitos retornaram no final da década de 1990, quando uma crise de

produção despontou como possibilidade: não somente os recursos captados

diminuíam como também as empresas privadas apresentavam baixo interesse na

produção de filmes. Vários fatores eram mobilizados para explicar a crise: a demora

na finalização de um projeto cinematográfico; orçamentos elevados e acima das

possibilidades do mercado, e escândalos envolvendo diversos filmes. Os conflitos

envolvendo cineastas e atores estatais, até aquele momento controlados, retornavam

numa contenta pública sobre os rumos que a política deveria assumir.

Paradoxalmente, os anos 1990 começaram estabelecendo um novo padrão nas

políticas de cinema, que no decorrer da década, porém, foi conformando-se ao legado

herdado do passado.201

O jornal Folha de S.Paulo, que tradicionalmente manteve uma linha editorial

contrária aos investimentos públicos junto ao cinema brasileiro, manifestava cautela

diante das denúncias de desvio de recursos e propunha a continuidade das políticas.

Em editorial, o jornal comentava o caso “Chatô” e outros projetos problemáticos, mas

afirmava:

É razoável que o cinema brasileiro goze de alguma forma de incentivo. Vários países do mundo adotam políticas similares, o que talvez seja até mesmo uma condição de sobrevivência quando se tem de concorrer com uma indústria do poder como a de Hollywood, com produções de várias dezenas de milhões de dólares e que, por alguma razão não muito clara, determinam o gosto do público. (...) Seria profundamente injusto se o labéu que pesa sobre algumas produções contaminar a totalidade de uma indústria que parecia finalmente ter encontrado um caminho.202

201 O chamado escândalo “Chatô” envolveu a produção de um filme nunca finalizado. O projeto chegou a captar mais de oito milhões de reais e envolvia a realização de uma super-produção histórica por um cineasta que nunca antes tinha realizado um longa-metragem, Guilherme Fontes. Além de “Chatô” outros projetos apresentaram problemas, seja na finalização ou na prestação de contas. Ver: O novo round de Chatô. Folha de S.Paulo, 04 de maio de 2001; Crise, privatização e Chatô derrubam o cinema nacional, Folha de S.Paulo, 03 de fevereiro de 2000; Ministério prepara resgate de Chatô, Folha de S.Paulo, 11 de março de 2000; Filme de R$ 500 mil repete a novela de Chatô, Folha de S.Paulo, 16 de junho de 2000; CVM prepara relatório sobre Chatô, Jornal do Brasil, 07 de fevereiro de 2000; Minc quer filme finalizado, Jornal do Brasil, 25 de janeiro de 2000; Chatô puxa lista de 15 filmes inacabados, Jornal da Tarde, 20 de dezembro de 1999. 202 A sombra da suspeita. Folha de S.Paulo, 07 de fevereiro de 2000, p.1.

160

A meu ver. a variável chave para entender esse processo não repousa

exclusivamente nos mecanismos intrínsecos ao funcionamento da Lei do Audiovisual,

mas está ligada sobretudo à capacidade de ação de cineastas e produtores.

Estabelecida a lei e mantida a normalidade na produção de filmes, segmentos

importantes do cinema brasileiro tensionaram a relação com o Estado para que a

política fosse ampliada, procurando deslocar a centralidade que a Secretaria do

Audiovisual detinha nesse processo. A origem da Ancine – Agência Nacional de

Cinema –, que seria criada em 2001, está contida no interior desse conflito entre os

atores estatais e o cinema brasileiro.

Com a troca de comando na Secretaria do Audiovisual em 1998, quando

assumiu José Álvaro Moisés, o governo procurava manter o controle das políticas

iniciando um processo de reformas e fiscalização. Moisés relata:

(O ministro) Weffort queria reorganizar a secretaria, criar a Comissão de Cinema que não existia e adotar procedimentos mais cuidadosos no que diz respeito à prestação de contas nesta área. Eu vinha de outras áreas no Ministério onde tinha um desempenho em várias coisas, principalmente a atualização, modernização e efetivação das leis de incentivo que estavam completamente paradas. Elas existiam e não eram usadas, com algumas dezenas de empresas. Em menos de um ano de trabalho pulou para mais de duas mil empresas. Eu fiz um trabalho grande de mobilização de produtores culturais, artistas, de empresas para utilizarem as leis de incentivo. Por causa disso eu fiquei muito marcado com esta imagem de ter feito funcionar leis que estavam paradas. No meu período como Secretário de apoio à cultura eu adotei uma série de procedimentos mais republicanos, alguns chamaram de mais duros ou mais rígidos, mas na minha opinião foram mais republicanos. Quando o ministro pensou em reorganizar a Secretaria do Audiovisual, em certo sentido redimensionando, iria se chamar Secretaria do Desenvolvimento do Audiovisual. Ele me pediu para assumir esta função, por um lado adotar os mecanismos que pudessem estimular o uso da lei do audiovisual, por outro lado adotar mecanismos semelhantes que adotei em outra secretaria para o controle das prestações de contas e ao mesmo tempo a criação da comissão de cinema com representantes de todas as áreas. Eu criei a comissão, começou a funcionar e foi no âmbito dela que começamos a discutir a reforma da lei (Depoimento ao autor).

A entrada de Moisés foi uma resposta à crise que se anunciava e também à

possibilidade de reformas na legislação e no interior da Secretaria. Várias propostas

de políticas foram anunciadas, acirrando os conflitos:

os projetos cinematográficos teriam de incluir de 1,5 a 3% do orçamento total

no recurso a uma auditoria externa na prestação de contas;

161

os procedimentos de renúncia fiscal não incluiriam apenas as produtoras

independentes, mas também as redes de televisão;

seria criado um fundo de investimento com a comercialização de títulos

dedutíveis do imposto de renda para projetos considerados viáveis

comercialmente.203

Essas propostas acirravam os ânimos, e segmentos importantes do cinema

brasileiro se articulavam para criar uma nova estrutura, desvinculada do Ministério da

Cultura. No interior do governo, o Ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias, era

o interlocutor privilegiado; para o produtor Luiz Carlos Barreto seria preciso criar

uma nova agência com capacidade de gestão interministerial:

O Ministério da Cultura não tem, por assim dizer, a cultura econômica nem gerencial suficiente para administrar uma atividade com a importância estratégica do cinema. (...) Neste momento é discutir se o cinema é importante para o Estado brasileiro ou não. Senão, ficamos num terreno baldio, discutindo os alfinetes e não o essencial.204

Para Barreto, o Ministério da Cultura teria competências articuladas com os

setores culturais como a preservação, a documentação e a produção experimental, mas

não teria capacidade para uma ação planificada para tornar a indústria de cinema

competitiva. O diagnóstico de Barreto fazia menção ao isolamento do Minc no

interior da estrutura governamental. Os cineastas, já consolidados em sua posição

cultural, procuravam agora avançar em direção a outros setores do Estado.

203 Um dos autores da última proposta, Andrea Matarazzo, Secretário de comunicação do governo afirmava que “o cinema tem de ter viabilidade econômica. Hoje não é viável porque o incentivo é feito de uma forma que não estimula a viabilidade. Se tiver lucro, muito bem, se não tiver, morreu. Assim nunca vai se viabilizar uma indústria de cinema. Por que dar incentivo fiscal para um longa metragem que não tem viabilidade? Se não é viável é porque é ruim, normalmente”. Governo quer incentivar só a cultura que dá lucro. Folha de S.Paulo, 27 de março de 2000. Ver também: Depois do “Oscar”, governo muda regras do cinema. Folha de S.Paulo, 14 de fevereiro de 2000; Governo quer entregar cinema nacional às TVs, Folha de S.Paulo, 03 de maio de 2000. 204 Cineastas querem a criação de uma nova agência. O Estado de S. Paulo, 30 de março de 2000. Barreto e um grupo de cineastas reuniram-se com o presidente Fernando Henrique Cardoso procurando convencê-lo a criar uma nova estrutura de apoio ao cinema brasileiro, vinculada não mais à pasta da cultura, mas à área empresarial do Estado. Folha de S.Paulo, 10 de março de 2000. Ver também Barreto quer uma Embrafilme privada. Jornal da Tarde, 22 de março de 2000. David Zilberstajn, diretor da Agência Nacional do Petróleo, foi outro interlocutor do cinema brasileiro. No período que antecedeu a criação do GEDIC, cineastas e Zilberstajn reuniram-se, conforme relata Barreto: “após algumas reuniões informais de um grupo de cineastas com David Zilberstajn, chegou-se à elaboração de um pré-projeto, ou melhor, um plano de reordenamento institucional para o setor audiovisual, levado ao conhecimento do Presidente, que logo convocou uma reunião no Palácio do Alvorada, da qual participaram os Ministros Francisco Weffort e Pedro Parente, Carlos Diegues, Gustavo Dahl e eu”. Ata da constituição do III Congresso Brasileiro de Cinema, 2000. Arquivo Cinemateca Brasileira.

162

A burocracia cultural do Estado reagia a uma provável perda de poder e status

no interior do governo, reforçando o argumento de que o cinema brasileiro não teria

capacidade empresarial nem industrial, sendo que a opção disponível estaria

confinada ao Minc. Weffort afirma:

O Minc conseguiu o ano passado 80 milhões no BNDES para o programa Mais Cinema. Assim Barreto está equivocado quando diz que o Minc não tem capacidade gerencial. A dificuldade que temos sentido não é de falta de capacidade gerencial do ministério, mas de falta de capacidade empresarial dos cineastas. Eles têm uma dificuldade econômica para assumir empréstimos tais como esse. É um problema de natureza econômica, de natureza empresarial da produção cinematográfica. (...) Eu não concordo que não haja capacidade gerencial. Se há um problema, tem raiz no fato de que muitas produtoras não são verdadeiramente empresas, são pequenos aglomerados de pessoas em torno de um produtor, ou diretor, ou artista. Resultado da precariedade organizacional do setor.205

A ideia de uma agência multissetorial já estava avançada entre os cineastas, e

o Minc procurava apenas retardar o seu surgimento. Em março de 2000 os cineastas

discutiram uma proposta que Gustavo Dahl formulou em 1998 visando à criação de

uma Secretaria Nacional de Política Audiovisual. Seria uma agência interministerial

ligada à Presidência da República com a finalidade de formular políticas e coordenar

as ações governamentais. No esboço de Dahl, a agência recuperava o escopo de

atuação da Embrafilme, já que previa o acompanhamento de dados do mercado,

assessoria legislativa, controle dos mecanismos de produção e atividades culturais,

entre outras dezenas de atribuições.

A ideia é botar todo o governo para funcionar em prol do cinema. Descentralizar e não repetir uma organização vertical, autárquica como era a Embrafilme, que duplicava em si mesmo, num modelo reduzido, as várias competências e ações do Estado. A Embrafilme era uma autarquia, com receitas próprias, cuja atuação ia da cultura cinematográfica ao mercado externo, passando pela produção e distribuição de filmes, pelas informações que possibilitam o conhecimento e controle do mercado, praticamente o arco inteiro da atividade cinematográfica. A Secretaria Nacional de Política Audiovisual não é um órgão regulador, mas de formulação de politicas, o que os anglo-saxões chamam de “policy-maker”. É um órgão de inteligência e não de intervenção direta na produção ou no mercado. O cinema é diferente e não há um grande país sem cinema.206

205 Ministro vê “interesses estranhos” em agência. O Estado de S. Paulo, 01 de abril de 2000. 206 Cineastas querem a criação de uma agência. O Estado de S. Paulo, 30 de março de 2000.

163

Alguns meses mais tarde, em junho de 2000, o cinema brasileiro realizava o

III Congresso Brasileiro de Cinema em Porto Alegre, com a participação das

principais entidades de classe, cineastas e produtores, setores ligados à distribuição,

exibição e emissoras de televisão, entre outros segmentos.207 O Congresso foi mais

um passo em direção à desvinculação do cinema brasileiro com o Minc, procurando

espaço em outros segmentos do Estado. Tal estratégia não implicava em abandonar

um ponto de suporte tradicional, mas sim em expandir o escopo de atuação, uma vez

que a dimensão cultural já estava legitimada novamente. A paridade institucional

movia-se outra vez em nova direção, sem abandonar a estrutura de suporte habitual:

The persistence of even the most dysfunctional and ineffective state institutions speaks to their ongoing significance. History does not necessarily erase all signs of failed institutions, which often continue to have ongoing if diminished influence. For this reason, the historical origins of variables like institutional parity should be explored more systematically208 (FLIBBERT, 2007:150).

Criado no dia 13 de setembro de 2000, o GEDIC – Grupo Executivo de

Desenvolvimento da Indústria de Cinema no Brasil tinha o objetivo de formular a

nova estrutura institucional de apoio ao cinema brasileiro. O presidente Fernando

Henrique tinha indicado o grupo composto pelos ministros Pedro Parente (Casa

Civil); Pimenta da Veiga (Comunicações); Alcides Tápias (Desenvolvimento);

Aloysio Nunes Ferreira (Secretário Geral da Presidência); Francisco Weffort

(Cultura); Amauri Bier (Fazenda); Andrea Matarazzo (Chefe da Secretaria de

Comunicação), mais os cineastas Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto, Gustavo Dahl

e Rodrigo Saturnino Braga (distribuição) e Evandro Guimarães (televisão). 209

207 As principais entidades estavam representadas no Congresso, incluindo a ABRACI, APACI, ABD, Fórum dos Festivais, SOCINE, Cinematecas, entre outras dezenas de associações. Ata de constituição do III Congresso Brasileiro de Cinema. Arquivo Cinemateca Brasileira. 208 A persistência de até mesmo as mais disfuncionais e ineficazes instituições estatais dialoga com o seu significado em curso. A história não necessariamente apaga todos os sinais das instituições falidas, que muitas vezes continuam a ter influência em curso mesmo que pequena. Por esta razão, as origens históricas de variáveis como paridade institucional deveriam ser exploradas de forma mais sistemática (Tradução livre). 209 Para Barreto o presidente Fernando Henrique orientou o grupo a desenvolver um plano estratégico para estruturar a indústria de cinema, a exemplo do setor automobilístico e siderúrgico. Entre as metas do GEDIC, depois incorporadas pela Ancine, estavam a ocupação de ao menos 30% do mercado de salas de cinema para o filme brasileiro, 25% do mercado de home vídeo e 5% nas emissoras de televisão. A indústria de cinema poderia tornar-se autossuficiente com a implementação dessas medidas e a regulação dos investimentos públicos e privados. Ata da primeira reunião do GEDIC, 26 de setembro de 2000. Arquivo Cinemateca Brasileira.

164

Os trabalhos do grupo deram origem um ano depois à Ancine. A Agência

significou um novo passo para o cinema brasileiro, que conseguiu articular vários

setores do Estado em torno das propostas debatidas nos anos anteriores. A agência

seria vinculada à Casa Civil durante o tempo de maturação, até ser transferida para o

Ministério do Desenvolvimento, Comércio e Indústria. Os cineastas e produtores

teriam direito a assento em seu conselho deliberativo e Gustavo Dahl foi indicado

como o primeiro diretor da Agência. Entre as principais medidas, estavam:

criação de um Conselho Superior de Cinema, composto pelos Ministros das

Relações Exteriores, Justiça, Fazenda, Cultura, Desenvolvimento e Casa Civil,

mais cinco representantes do cinema brasileiro. O Conselho tem como

objetivos definir a política de cinema a ser implementada pelo Estado.

A Agência tem como recursos a taxa sobre a remessa de lucros dos filmes

importados (CONDECINE). Estes podem obter um desconto de 70% caso

invistam em coproduções nacionais. Caso contrário, recebem um adicional de

11% no imposto.

A lei impede que as emissoras de televisão utilizem os incentivos fiscais,

destinados apenas aos produtores independentes.

A Secretaria do Audiovisual ficará responsável pelo setor cultural.210

Na avaliação de Moisés, a criação da Ancine partiu de um diagnóstico interno

do Ministério da Cultura que indicava os problemas decorrentes da sobreposição entre

funções culturais e comerciais exercidas no âmbito de uma única estrutura

institucional:

A Ancine foi uma decisão do governo, foi uma decisão nossa. Esta interpretação apareceu na imprensa, completamente equivocada. Foi proposta pelo governo FHC. Foi proposta pelo Grupo Executivo que nós criamos, que nós propusemos. Foi o Ministro Weffort que mediante um documento que eu preparei fez a proposta de constituir um Grupo Executivo porque a coisa era a seguinte: a grande demanda deste segmento cultural, um segmento politicamente forte, com muitas relações com governos diferentes desde a ditatura militar, com um interlaço muito forte, a grande demanda deles era retomar o que tinha acontecido com a extinção da Embrafilme no governo Collor. O governo diz: nós não vamos recriar a Embrafilme, nós vamos criar uma agência, a exemplo de outras agências existentes, que seja capaz de por um lado estimular a produção mas ao mesmo tempo controlar e ter mecanismos de regulação para controlar. E a Ancine foi esta criação. Quem propôs a Ancine fomos nós, foi o Ministério da Cultura, que foi ao

210 A Ancine foi criada em 05 de setembro de 2001 pela Medida Provisória n. 2.219.

165

Presidente, que por sua vez propôs a constituição de um grupo no âmbito da Casa Civil para constituir a Ancine (Depoimento ao autor).

Independentemente do conflito de versões, a Ancine modificou a estrutura

institucional das políticas de cinema, ao criar uma nova organização no interior do

Estado, com articulação interministerial e capacidade de fiscalização e normatização.

Sem se desvincular inteiramente do Ministério da Cultura, a estratégia que prevaleceu

naquele momento foi atar-se aos segmentos econômicos do Estado, procurando

ampliar o raio de atuação do cinema brasileiro. Para Gustavo Dahl, a nova estratégia

fortalecia a inserção institucional do cinema brasileiro no interior de seu principal

parceiro:

A ideia é que desde o governo Geisel, nos anos setenta, o cinema brasileiro não conseguia qualificar tanto sua interlocução. Vamos atuar e desenhar um projeto de planejamento estratégico que contemple a meta de autossustentabilidade da atividade cinematográfica a médio prazo, bem como a superação de algumas deficiências conjunturais.211

Os anos 1990 estavam encerrados e a vertigem experimentada pelos cineastas

nessa década terminou por obscurecer os encaixes que estabilizaram as políticas de

cinema: a queda na produção de filmes e a posterior retomada não fez desaparecer por

completo os sinais e os legados herdados das instituições do passado.

211 Ata da primeira reunião do GEDIC, 26 de setembro de 2000. Arquivo Cinemateca Brasileira.

166

Considerações finais

Durante mais de cinquenta anos as políticas de cinema no Brasil foram

submetidas a um padrão específico com poucas variações, mesmo considerando as

lacunas quando observamos mais detalhadamente a produção de filmes. As políticas

nunca foram interrompidas de fato, e mesmo durante o governo Collor, no início dos

anos 1990, os elos podem até ter sido esgarçados, mas foram rapidamente refeitos. Se

muitos cineastas foram preteridos ou não tiveram seus projetos contemplados; se

modelos de produção alternativos como aqueles representados em torno da Boca do

Lixo em São Paulo ou se um formato de filme encaixou-se com maior ou menor

êxito, isso não invalida o fato de que as políticas de cinema atravessaram um longo

período de tempo selecionando temas, interlocutores e constituindo uma agenda.

As políticas implementadas a partir dos anos 1960 incorporaram gradualmente

uma agenda de questões presentes no interior do cinema brasileiro cujos temas

principais envolviam identidade, cultura e soberania nacional, que, expressas no

filme, requeriam a presença de um ator com poder disponível para assegurar sua

proteção e reprodução. Assim, o Ministério da Educação e depois o Ministério da

Cultura foram fatores relevantes para a consolidação desse mecanismo: ter o filme

brasileiro como portador de caracteres culturais fez a diferença e assegurou a

continuidade das políticas durante todos esses anos.

Conforme ressaltamos acima, as instituições de fato têm bastante peso, não

são apenas mecanismos formais, mas operam por meio de dispositivos informais,

sejam eles mapas mentais, estruturas de discurso ou um conjunto de ideias acerca do

que seria a cultura brasileira. Portanto um encaixe entre o conjunto dessas instituições

e um grupo de atores politicamente poderoso ocorreu a partir do momento em que o

Estado permitiu acesso e influência no interior de suas burocracias. As políticas de

cinema implementadas desde os anos 1960 estimularam os cineastas e alianças

políticas foram constituídas entre estes e a burocracia estatal para defender a sua

continuidade e expansão.

A criação do Instituto Nacional de Cinema em 1966, no interior do Ministério

da Educação, acionou uma política cujas prerrogativas fundamentais seriam a

produção de filmes e a ocupação do mercado. Desde então, a política capacitou os

atores envolvidos e a própria burocracia estatal, mobilizando recursos, gerando

estabilidade e reproduzindo um padrão que dificultou o retorno ao ponto de origem ou

167

a projetos alternativos. Assim, nenhum ator relevante teria motivos para alterar de

forma ampla os mecanismos da política vigente: o importante era a continuidade da

produção de filmes por meio do subsídio público, independentemente de seus

resultados. Quando no final dos anos 1990 o cinema brasileiro, então fortalecido

politicamente, propunha um novo desenho institucional para as políticas, estas não se

distanciavam do modelo implementado muitos anos antes. Se valia a pena ter

começado a partir de uma indústria de cinema, essa questão nunca foi cogitada

seriamente nos anos 1960 nem durante a fundação da Ancine, décadas mais tarde. A

agência, formulada originalmente para ocupar o espaço econômico do Estado,

terminou alojada na burocracia cultural: as capacidades estatais já tinham sido

constituídas orientando os atores ao redor da política. Além disso, o encaixe

continuava a fazer sentido e a política de cinema proposta pela Ancine seria melhor

abrigada nesse setor.

Durante todo esse tempo, cineastas e atores estatais preocuparam-se

basicamente com a produção de filmes e com as taxas de ocupação do mercado

cinematográfico, enfatizando os valores ligados à eficiência e efetividade das

políticas, recuperando ideias como diversidade, identidade e cultura nacional. Difusão

ou circulação pública do produto final da política – os filmes em última instância –

não aparecem no desenho das políticas a não ser marginalmente. Se as políticas

prévias condicionam as que as sucedem, podemos afirmar então que há nelas um

déficit de democracia, pois nos anos 1960 a arena estatal estava aberta apenas a um

público muito específico, ou seja, cineastas e produtores. Na ocasião da reconstrução

dessas políticas, já na vigência do regime democrático nos anos 1990, não somente os

elos estavam sendo reatados como a arena mantinha-se impermeável aos outros atores

da sociedade civil, que não ligados ao cinema brasileiro.

Quando os problemas foram definidos nos anos 1960 – a ocupação do

mercado pelo filme importado; a evasão de divisas; a descaracterização da cultura

nacional, entre outros – também definiu-se um espaço para que sua solução fosse

desenhada por um grupo específico de atores. Estes acionaram dispositivos

econômicos – a produção regular de filmes e a industrialização do cinema brasileiro –

sob o manto protetor da burocracia cultural do Estado, restringindo as alternativas

disponíveis. Ao público – objetivo final da política adotada – caberia reconhecer-se

nas imagens assumidas como um espelho da identidade nacional. Mas esse público

168

nunca foi convidado a deliberar sobre as políticas de cinema historicamente adotadas

no Brasil.

Durante os anos 1980 em diante acentuaram-se as críticas à capacidade do

Estado em formular e implementar políticas públicas de forma a contemplar padrões

de equidade e justiça social. Ideias como descentralização e participação ganharam

ímpeto sob uma estrutura estatal vista como anacrônica e incapaz de produzir

políticas sem que estas fossem capturadas por grupos de interesse. Assim a sociedade

civil tornou-se um mecanismo importante na implementação das políticas a partir da

redemocratização brasileira.

Um processo similar ocorreu na formulação e implementação das políticas de

cinema: as agências estatais de suporte ao filme nacional a exemplo da Embrafilme

foram examinadas criticamente e este tipo de modelo rapidamente abandonado; o

formato que emergiu atribuiu a sociedade civil um novo papel na seleção e difusão

dessas políticas. Neste momento as alternativas estavam disponíveis e o cenário

encontrava-se aberto para a inovação e a busca por políticas até então nunca utilizadas

para a proteção do filme brasileiro.

No período anterior as políticas tinham sido desenhadas em um regime

político autoritário que dispunha o executivo federal como a única arena disponível

para o sua discussão; ao contrário, nos anos 1990, os governos democráticos detinham

a capacidade em ampliar o debate e incluir outros atores que não o público alvo

tradicionalmente habilitado.

Se as políticas públicas impactam diretamente na qualidade da democracia e

estimulam padrões elevados de cidadania, as políticas de cinema implementadas

durante os anos 1990 mantiveram intacta a estrutura histórica de mediação entre

cineastas e Estado. Ao formular e implementar uma política pública, um governo

democrático deve ampliar os canais de informação, corrigir as desigualdades de poder

e criar arenas para que estas políticas sejam amplamente discutidas. Ou seja, há uma

forte conexão entre democracia e desenho de políticas pois as arenas precisam estar

abertas para que todos os interesses e pontos de vista sejam ouvidos.

A robust democracy requires open public forums in which citizens can and should be asked to confront policy problems that affect them direclty. In such forums people are encouraged to face policy problems not solely as clients or interest groups, but as citizens who can incorporate the view of others in their own “civil discovery” of what constitutes the collective welfare. Whether or

169

not such arenas emerge is at least in part a function of policy framing and design (INGRAM; SCHNEIDER, 2006: 174).212

O debate sobre políticas de cinema no Brasil necessita ser deslocado para um

contexto no qual critérios como ocupação do mercado, eficiência, viabilidade

econômica e quantidade da produção não ocupem uma centralidade historicamente

atribuída a eles, estimulando a emergência de novos valores ligados a difusão pública

do filme nacional.

Desde os anos 1960 que as políticas de cinema permanecem em estado de lock

in, ou seja, reproduzem dispositivos vinculados à produção de filmes, certamente uma

característica estrutural da indústria cinematográfica em qualquer parte. Mas a forma

como os assuntos foram construídos naquele momento indicou também uma saída, ou

seja, quem define o problema também controla o desenho da solução: problems do

not just happen. They are constructed through the interaction of a variety of political

phenomena including existing public policies.213

O problema foi definido nos anos 1960 a partir dos seguintes termos:

o mercado, formado basicamente pelas salas de cinema, estaria ocupado pelo

filme importado;

produzindo uma evasão de divisas regular;

restringindo o alcance do filme brasileiro junto ao seu público “natural”;

acarretando problemas ligados à identidade cultural.

Definidas as linhas de argumentação do problema, o desenho da solução

estimulou uma política cujos principais termos versavam sobre:

produção regular de filmes para ocupar o mercado;

controle do mercado por meio de medidas legais;

prevalência das salas de cinema como espaço de difusão.

212Uma democracia robusta requer fóruns públicos abertos nos quais os cidadãos podem e devem ser instados a enfrentar os problemas das políticas que os afetam diretamente. Nesses fóruns as pessoas são encorajadas a enfrentar problemas das políticas não apenas como clientes ou grupos de interesse, mas como cidadãos que podem incorporar o ponto de vista de outras pessoas em sua própria "descoberta civil", o que constitui um bem-estar coletivo. Se essas arenas vão emergir ou não é, pelo menos em parte, uma função da formulação das políticas e seu desenho (Tradução livre) 213Problemas não apenas acontecem. Eles são construídos através da interação de uma variedade de fenômenos políticos incluindo políticas públicas existentes. (Tradução livre). (INGRAM; SCHNEIDER, 2006: 174).

170

Não foram apenas os técnicos governamentais que desenharam as políticas

com intenção de corrigir as distorções apontadas acima, mas incluiam cineastas

filiados a diferentes trajetórias estéticas e vinculações políticas. A política que

resultou desse diagnóstico terminou por corresponder aos termos impostos pela

indústria dominante, a do filme importado. Assim foram eliminadas opções e

alternativas capazes de oferecer uma outra dinâmica ao desenvolvimento do cinema

brasileiro desde os anos 1960.

As políticas também ocorreram em espaços delimitados, seja no período

autoritário quanto nos governos democráticos: a arena estatal foi o ambiente no qual

interagiam diferentes atores trabalhando em soluções para os problemas apontados

acima em um processo de aprendizagem social que desdobrou-se sobre o tempo.

Quando outros atores são instados a participar terminam por acatar as soluções e

ideias já estabelecidas anteriormente pelos grupos de interesse, delimitando a

autonomia dos novos participantes. Vários parlamentares atuaram durante os anos

1990 em defesa do cinema brasileiro mas as articulações e propostas apresentadas

nada diferiam daquelas sedimentadas historicamente no interior do cinema brasileiro:

a atuação dos deputados Álvaro Valle e Artur da Távola durante o início dos anos

1990 correspondia aos interesses dos principais grupos do cinema brasileiro; no final

da década a subcomissão do cinema brasileiro criada no Senado Federal ocupou-se

em encontrar novas fontes de financiamento para a produção e aumentar a ocupação

do mercado. 214

Nos anos 1960 um padrão de políticas de cinema foi instituído habilitando

grupos ao mesmo tempo em que estruturava a capacidade estatal; este padrão passou a

ser reproduzido com o transcorrer do tempo. Trinta anos depois esse padrão manteve-

se inalterado mesmo em um contexto político e econômico distinto do anterior: se o

horizonte estava liberado para inovações, o legado do passado – incorporado nas

instituições formais e informais – ocupou-se em reatar as políticas de cinema no

Brasil.

214A subcomissão temporária de estudo do cinema brasileiro foi instalada em 29 de julho de 1999. Em abril de 2001 transformou-se em Comissão de Cinema, Comunicação Social e Informática. Os trabalhos da subcomissão tinham como objetivo propor soluções para a crise de financiamento enfrentada pelo cinema brasileiro naquele momento.

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Latin American Cinema, vol. 2: Studies of national cinemas. Detroit: Wayne State

University, 1997.

XAVIER, Ismail. “Eldorado como inferno: Cinema Novo, pós-cinema novo e as

apropriações do imaginário do descobrimento”. In Sexta-feira, 03, 1999, pp 158-171.

XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 1990”. In Revista Praga, 9, 2000.

XAVIER, Ismail. “São Paulo no cinema: expansão da cidade máquina, corrosão da

cidade arquipélago”. In Sinopse: Revista de Cinema. V. 11, 2006.

XAVIER, Ismail. “Humanizadores do inevitável”. In Sinopse, 10, dezembro, 2004,

pp. 6-15.

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. SP: Paz & Terra, 2001.

Instituições pesquisadas:

Biblioteca Nadir G. Kfouri – PUC/SP

Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes/USP

Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP

Arts Library, University of California, Los Angeles, UCLA.

Charles E. Young Research Library, University of California, Los Angeles, UCLA.

Powell Library, University of California, Los Angeles, UCLA.

Southern Regional Library, University of California, Los Angeles, UCLA.

Centro de Documentação da Cinemateca Brasileira.

181

Relatórios:

Relatório da Comissão INC/Embrafilme. Ministério da Educação, 1975.

Propostas para uma política nacional de cinema. Embrafilme, Jornal da Tela, 1986.

Relatório Preliminar Embrafilme, 1986

Relatório Embrafilme/BNDES: Cinema Brasileiro, diagnóstico e política para o setor.

Grupo de trabalho Embrafilme/BNDES,1987.

Cinema Brasileiro: um balanço dos 5 anos da retomada do cinema nacional 1994-

1998. Secretaria do Audiovisual/Minc.

Na busca da tela (o povo do cinema). Senado Federal. Senador Francelino Pereira.

Comissão de Educação e Cultura. Subcomissão do Cinema Brasileiro, Brasília, março

de 2001.

Cinema, Som e Vídeo: 1995-2002. Relatório de atividades da Secretaria do

Audiovisual, Minc. 2002.

Relatório Final, III Congresso Brasileiro de Cinema, Porto Alegre, maio 2000.

Relatório Ancine: informe anual de acompanhamento de mercado. Minc, 2012.

182

Anexos

Entrevista com André Sturm. Cineasta, presidente da Apaci – Associação Paulista

de Cineastas e ABD – Associação Brasileira de Documentaristas, entre os anos 1980

e 1990; diretor do Museu de Imagem e do Som de São Paulo (2011-2014). Entrevista

concedida ao autor no MIS – Museu da Imagem e do Som de São Paulo em

10/11/2011.

Pergunta: Você poderia comentar a sua atuação na Apaci, na ABD, a forma como se

organizaram para produzir a Lei do Audiovisual, num momento conturbado nos anos

1990?

André Sturm: Eu estava na ABD no começo dos anos 1990. Foi importante a criação

da ABD nacional, porque tinha várias estaduais. No começo dos anos 1980 no

congresso nacional da ABD, juntava as regionais e não saia nada. A gente percebeu

que era fundamental ter uma entidade nacional porque a articulação com o governo

Itamar, que abriu a discussão com o setor do cinema, pediu para o ministro Antonio

Houaiss fazer o projeto do cinema, de emergência (o Resgate do Cinema Brasileiro).

Então a gente criou a ABD nacional, eu fui o primeiro presidente e consegui um

assento na comissão que assessorou o Ministério da Cultura, primeiro no que seria

um grande edital sobre o que fazer com o dinheiro da Embrafilme, que foi muito

importante, porque nesta medida o cinema brasileiro recomeçou. E a gente conseguiu

com muita luta – estavam todos os interesses, todos os interesses disputavam aquele

dinheiro. Tinha uma luta para conseguir o dinheiro para o curta-metragem e o mais

importante foi garantir que no longa-metragem uma cota para quatro estreantes, que

gerou “Os Matadores”, “Carlota Joaquina”, “Baile Perfumado” e mais um. Nós

acertamos porque foram filmes muito importantes e com os veteranos fizemos uma

seleção que com longas muito importantes, filmes com uma pegada mais comercial,

mais cultural, filmes que foram importantes como “O Quatrilho”, “Como Nascem os

Anjos”, “Ed Mort”. Havia uma briga que a gente batalhou, isto não quer dizer que nós

defendíamos o cinema cultural como oposição ao comercial, o que não dá para aceitar

é que a turma do cinemão representada pelo Barreto, Gláucia Camargo e Aníbal

Massaini, e eles defendiam na reta final do edital a forma como iríamos julgar os

processos. E eles inventaram uma posição objetiva: vamos dar uma nota para o

curriculum do cineasta, da produtora e para o cineasta. Como isto é objetivo? Como é

183

que se pode atribuir uma nota? E as notas tinham peso e eles queriam que a nota

maior fosse para a produtora e o curriculum e o roteiro tinham peso menor. Eu fui

contra porque um roteiro em branco do Khory com a produção do Massiani já estaria

aprovado. O cineasta e o produtor com mais filmes feitos então já estava com o

dinheiro. Foi uma reunião exaustiva e eu conseguiu convencer. O ministro Houaiss

foi muito criativo, uma comissão grande com quinze pessoas com representantes de

diversos setores do campo, cineastas, trabalhadores, curtas, e ele colocou cinco

intelectuais, entre eles Moacir Scliar e Márcio Souza. Foi bom porque eles não tinham

interesses corporativos e serviam como anteparo quando a coisa pegava fogo. A

minha proposta era que se o projeto fosse bom seria aprovado, sim ou não. O projeto

é bom ou não, e por um voto a minha proposta foi aprovada na votação. Porque esta

proposta de nota iria favorecer as grandes produtoras. Concentraria a produção no

Rio.

Pergunta: Há muitos documentos da Apaci dirigidos a Embrafilme nos anos 1980, no

qual relatam dúvidas sobre a produção de filmes e a seleção que contemplava mais

alguns setores que outros. Você acha que as associações de classe são importantes,

tem algum impacto na política de cinema?

André Sturm: Sim, são importantes para despersonalizar. Eu não estava lutando pelos

meus interesses mas pela minha categoria. A partir daí surge o projeto da Lei do

Audiovisual. Foi um momento antiestatal, então era um projeto para aproximar as

empresas, tirar o cinema do Estado, as empresas vão trazer dinheiro, vai gerar renda e

isto gerou a Lei do Audiovisual.

Pergunta: O senhor não acha que a Lei do Audiovisual lembra um pouco a

Embrafilme?

André Sturm: A Embrafilme era o oposto. Era um diretor que dizia: você filma ou

não. O poder era centralizado e a lei inverte o processo, joga para qualquer empresa

do país a decisão sobre quem filma ou não. O chato é o resultado, é o primeiro

momento da lei, é um excesso de liberalismo porque o Minc não cumpriu sua

obrigação de fazer uma peneira. A lei tirava do Estado a decisão de quem ia filmar

mas não tirava da mão do Estado o papel de regulador, que habilitava os projetos a

receber o dinheiro. Assim um projeto chegava no Minc, um estreante, que nunca

produziu nada, que propõe um projeto de oito milhões de dolares e cabia ao Minc

barrar. Ali estava o erro. A lei tomou uma atitude “laissez-faire” e deixou o mercado

resolver. Isto gerou uma crise. Uma crise não muito pública: em 1997 tinha tanto

184

projeto na rua que tudo que entrava era aprovado. O teto da Lei do Audiovisual era

R$ 1.700 milhões, depois dobraram para R$ 3.400 milhões, depois no mês segunte

todos os filmes foram para quatro milhões de orçamento. Isto permitiu que entrassem

no mercado aventureiros associados a duas corretoras – tipo Sudene e Sudam – , que

cobravam pedágio. Eu recebi propostas de intermediários que cobravam quarenta por

cento do orçamento. Isto gerou um problema, uma competição desleal porque a gente

não conseguiu captar.

Pergunta: Depois entra o Moisés e acaba com esta prática, quer dizer, é uma segunda

etapa na Lei do Audiovisual?

André Sturm: O Moisés faz isso e o mercado começa a se organizar um pouco. O

outro problema que permanece é que na hora que os orçamentos são elevados deixa

de existir qualquer compromisso com o resultado.

Pergunta: Mas a formulação da Lei não levou em conta toda a cadeia?

André Sturm: Quando foi criada a lei, foi criada com este discurso ao aproximar estas

empresas com o cinema com previsão de distribuição de lucros, pessoas que podiam

captar com resultados na bilheteria e com o tempo as empresas iriam investir dinheiro

próprio porque ia dar lucro. Mas a lei foi desvirtuada, porque os orçamentos subiram

muito e as empresas passaram a ver apenas como marketing e não como investimento.

Em vez de encarar os filmes como negócios mas como marketing, sai do

departamento financeiro das empresas para o departamento de marketing no final dos

anos 1990.

Pergunta: O senhor acha que a lei ignorou a possibilidade real de sustentabilidade do

cinema brasileiro no seu mercado?

André Sturm: Este papo não existe, não existe indústria cinematográfica auto

sustentável. Só nos EUA porque o Estado investiu dinheiro e sua força política para

dominar os canais no mundo inteiro, porque chegou a este ponto porque o Estado

investiu todo o seu poderio.

Pergunta: Não seria mais fácil os cineastas deixarem claro que o cinema não é

sustentável economicamente, que o dinheiro é a fundo perdido? Há um discurso que

gira entre indústria e entre cultura?

André Sturm: É um discurso esquizofrênico. Quando tinha o Collor a coisa era

neoliberal, a indústria vence. Quando tem um governo mais nacionalista a cultura é

mais importante. O país mudou, passou de ser um pais de mercado para uma questão

nacional, aí a lei foi adulterada. A outra falha, com o Moisés, um problema do Minc,

185

do governo FHC, a lei do audiovisual era um mecanismo, não podia ser a política

pública para o audiovisual, você colocou na mesma calha todo o cinema brasileiro, o

Bressane junto com o Barreto por exemplo. Disputava o Beto Brant com o Barretão,

todo mundo junto. A Lei do Audiovisual fez o meu dentista ser igual a mim. Ele

aprova no Minc e se tem um amigo em uma empresa capta dinheiro.

Pergunta: E os critérios são ambíguos da mesma maneira como na embrafilme.

André Sturm: O erro é que na Embrafilme era uma calha só, era o Czar, dizia filma ou

não filma, centralizado no Estado por um modelo completamente descentralizado. Eu

acho bom a lei mas o Estado tinha que criar outros mecanismos de intervenção na

atividade cinematográfica que fizesse que a lei estimulasse a produção mais

comercial, mais possibilidade no mercado e criar outros mecanismos para os filmes

mais culturais, mais arriscados, com alta relevância e que pudessem ser finalizados.

A lei poderia aos poucos criar exigências que tirariam o dentista, o aventureiro, que

nem o campeonato brasileiro, primeira divisão, segunda divisão.

Pergunta: Por que os cineastas não fizeram isto no começo da Lei?

André Sturm: Um dos problemas é que um monte de aventureiro conseguiu fazer

filmes. A lei quando foi criada tinha que favorecer todo mundo.

Pergunta: As associações tinham muito diálogo com o governo naquele momento.

Isto me faz perguntar porque a lei foi criada desta maneira e não de outra?

André Sturm: Foi criada de forma bem racional com espaço para todo mundo. Mas na

gestão do Weffort tinha que ter criado outros mecanismos em paralelo a lei, para

atender os cineastas mais culturais e que a lei tivesse uma entrada mais rígida, não

entra estreante, filme arriscado, etc. Faltou isto, então a lei perdeu seu caráter de

fortalecer as empresas, as produtoras com mais perspectivas, tornou-se um balcão

para os diretores de marketing.

Pergunta: O debate sobre política cinematográfica é forte com pessoas dos anos 1960,

Barreto, Diegues. Porque não houve renovação, porque os novos cineastas não

participaram, não tomaram a frente?

André Sturm: Pega os anos 2000, quem aparece: Diegues, Barretão, estas duas

pessoas tem capacidade de articulação, de tomar frente, o que é muito admirável,

poucas pessoas tem esta capacidade, disposição, habilidade para se contrapor a eles.

Então estas pessoas permanecem, porque tiveram impacto na política. A classe

ocupou este espaço mas estes tem mais visibilidade. As pessoas não se interessam por

fazer política. Os anos noventa a ABD tinha mais presença que a APACI e a

186

ABRACI. A gente teve mais influência. A gente fez a lei do curta no final dos anos

1980, eramos contra todos e vencemos. E depois contra a nata do cinemão colocamos

os filmes de curta. Eles ficaram com tanta raiva que fizeram o Resgate 2, porque tinha

sobrado mais um dinheiro. Alguns cineastas muito conceituados não ganharam o

primeiro resgate e então tentaram desqualificar o resultado. O resultado na minha

opinião foi muito eclético: ganhou Beto Brant e ganhou “O Cangaceiro”. Mas eles

forçaram a fazer um segundo edital sem curta ou estreante e não deixaram a gente

participar. Mas a gente gritou e abriu. Um cineasta muito famoso declarou que o curta

metragem atrapalha, para que passar no cinema, atrapalha o cinema brasileiro.

Pergunta: Qual é a sua opinião sobre estes cinquenta anos de política cinematográfica,

qual o resultado de tudo isto? Os cineastas são os grandes interlocutores do Estado?

André Sturm: Eu acho que é hoje um momento particular, de um lado as bilheterias,

os números totais, o cinema brasileiro está bombando, com três ou quatro filmes com

grande bilheterias, participação no mercado crescente, uma pesquisa com a população

mostra que é simpática ao filme brasileiro. Nos anos 1980 noventa por cento diria que

odeia o filme brasileiro. Mas se você olha mais de perto, assim como cinco ou seis

filmes que fazem milhões, tem 60 filmes que fazem 20 mil pessoas. Tem

concentração de recursos em poucos filmes cada vez mais caros, lei que descapitaliza

as produtoras e não capitaliza os meios, mas não dá para dizer que não é bom. É um

cenário favorável, o Estado teria que buscar soluções para estas questões com

políticas públicas de intervenção de Estado, cabe a ele equilibrar o mercado não

substituir. É obrigação do Estado em um mercado oligopolizado garantir que acha

livre competição. Menos filmes ocupam mais telas, o próprio consumidor sai

prejudicado.

Pergunta: Mas as associações de classe não propõem soluções para isto?

André Sturm: O cara lança o filme, o nome dele aparece no jornal durante 15 dias e

pronto. Mas olhando o quadro tem algumas empresas buscando trabalhar o

audiovisual de maneira empresarial – O2, Total, Conspiração, etc – estão a fim de

fazer projetos, construidos na perspectiva de projetos. Isto é positivo, começa a ter

uma visão mais empresarial, mas ainda não é predominante mas é importante.

Empresas que fazem projetos, projetos de produtoras. Eu acho que tem gente então

procurando este caminho.

187

Entrevista com Carlos Augusto Calil. Diretor-geral da EMBRAFILME (1986-

1987); diretor de operações culturais da EMBRAFILME; Secretário Municipal de

Cultura da Prefeitura de São Paulo (2005-2012). Entrevista concedida ao autor no

Gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em 18/11/2011.

Pergunta: como foi a sua experiência na Embrafilme e qual o signficado da empresa

hoje?

Carlos Augusto Calil: É impossível a experiência da Embrafilme nos nossos dias

devido a Constituição de 1988 que impede a lógica do balcão, que amarra as questões

que a empresa se envolvia. A Riofilme é inviável, é bobagem, porque o Estado está

afastado da atividade comercial. A minha experiência lá foi longa, mais longa do que

deveria ser. Primeiro diretor cultural, depois diretor de produção, depois diretor geral.

Como Diretor geral durei 01 anos apenas, a empresa estava já falida, conseguimos

uma verba do ministro João Sayad que permitiu que a empresa continuasse por mais

algum tempo. Mas não foi Collor que extinguiu a empresa, ela já estava falida há

muito tempo. O ministro Celso Furtado não gostava da empresa, a achava ilegítima,

fruto do regime militar. Ele tinha outras ambições, outros ministérios, então não tinha

interesse na empresa e praticamente não seguiu os nossos conselhos. A fila de

credores tinha que organizar, tentava pagar os pequenos, houve o problema com o

governo, até a organização com a posse do Sarney, era preciso organizar o caixa,

organizar os pagamentos, então o Sayad nos socorreu.

Pergunta: nos anos 1980 ocorreram tentativas de reformas na Embrafilme, já no

regime democrático. Como foi este processo? O ministro Furtado tinha interesse na

empresa?

Carlos Augusto Calil: o Celso Furtado não tinha interesse. Ela não pode continuar, é

ilegítima. Ele nem chegou a ler projeto Pimenta Sarney. Não é verdade que quem

tenha acabado com a Embrafilme era o Collor, ele apenas assinou, quem acabou com

a empresa foi Celso Furtado. Ele tinha bloqueios com a Embrafilme. Queria

transformar a Embrafilme numa fundação, eu falei para isto ia acabar com a

Embrafilme distribuidora, que era rentável. Mas Furtado dizia que ela não era

ilegítima e eu pedi demissão. Eu tentei de alguma maneira abrir o horizonte da

Embrafilme, mas ela já estava acabada por Celso furtado, que liquidou a empresa. Ele

ignorou o projeto de lei (Pimenta Sarney). Perguntei para ele, caso o senhor fosse

Ministro em 1947 teria acabado com o IPHAN, que foi criado no Estado Novo? Ele

diz: não é a mesma coisa. A Embrafilme é um fenômeno de uma época, não é

188

possível ser recriada, caso seja, seria uma Riofilme com dezenas de filmes nas

pratelereiras e incapaz de distribui-los. A Riofilme não tem operacionalização

nenhuma.

Pergunta: como diretor geral a empresa sofreu muitas transformações, que acredito

tenham influência no processo posterior, na ideia da Lei do Audiovisual?

Carlos Augusto Calil: Eu não tenho nada a ver com a Lei do Audiovisual, inclusive

sou contra. Mas acontece que o Jabor, o Barreto, pediram para o ministro na época do

Collor a criação desta lei. Eles queriam uma lei para eles, os grandes produtores e

ignorar os pequenos, produtores independetes e pequeninos. Eles reclamavam da

Embrafilme, que fazia muitos filmes de estreantes e culturais, diziam que a Embra é

uma empresa, não pode fazer isto, etc. Mas a Embrafilme era ligada ao MEC, então

havia uma justificativa do filme cultural que não poderia ter sido eliminada. O grande

problema da Embrafilme é que era um guichê só, para a cultura e para o filme

comercial. Então alguém ganhava, entrava e alguém perdia, saia. O cara que ganhava

saia da empresa e já lá fora, com algum repórter fazia um monte de críticas para que

os perdedores não o massacrassem. As polêmicas no jornal Folha de São Paulo, não

eram justas, não correspondiam a realidade, eram notícias plantadas por Bressane e

Santeiro, por exemplo. Por exemplo, em 1986, em 100 filmes nacionais realizados, 70

eram pornográficos. E havia uma luta com os exibidores, porque eles aproveitavam os

prêmios de renda para realizar filmes eróticos e ao mesmo tempo tinham alguns

deputados no Congresso que iam a tribuna ler os títulos dos filmes produzidos com

dinheiro público e sob o custeio do MEC. A Lei do Audiovisual se parece muito com

a Embrafilme no que tem de pior, porque a lei do audiovisual aumenta a dependência,

a Embrafilme criava uma dependência de 70% do cineasta com a empresa, mas ele

tinha que se virar para conseguir os 30% restantes. Hoje a dependência é de 150%. Ou

seja, tudo ao contrário do que se pensava originalmente para a lei. Não é possível

retirar o dedo da cultura da produção de cinema, mas é preciso retirar a dependência

dele do Estado. Minha crítica é que hoje não há nenhum artista independente no

Brasil. Lembro que quando era diretor do Centro Cultural São Paulo e veio um

jornalista da Coréia entrevistar para discussão de políticas cinematográficas. Eu

expliquei como era a Lei do Audiovisual, porque a Coréia na época discutia suas leis

de cinema, e o jornalista disse isto não dá certo, não é este o caminho.

Pergunta: porque o debate sobre políticas de cinema foi conduzido pela geração do

Cinema Novo?

189

Carlos Augusto Calil: Você acha que um novo cineasta chega no Congresso Nacional

e consegue abrir a porta de algum gabinete? Por isto o Jabor, o Diegues, o Barretão.

Tudo mundo acha que tendo dinheiro para o cinema, todos vão ter alguma verba. O

problema da Lei do Audiovisual é que ela acabou sendo o único caminho, não há

outras políticas para filmes, junta os grandes e os pequenos. E hoje temos todas as

estatais produzindo filmes, Petrobrás, Eletrobrás, etc. Imagine o pessoal do Tesouro

recebendo estas deduções todas. Imagine a cena: Petrobrás apresenta um filme, em

nenhum lugar do mundo uma petroleira patrocina e apresenta um filme. Tudo isto

feito com o nosso dinheiro, não é dinheiro de patrocínio, é dedução fiscal. Mas

ninguém quer mexer porque todo mundo tem medo do grau zero do pós Embrafilme.

Dizem que a última direção geral da Empresa tinha assinado as vésperas do Collor

assumir cerca de 40 contratos sem condições de viabilizar. Assim os cineastas podiam

cobrar do novo governo, porque os contratos estavam assinados. Assim isto era um

golpe contra a empresa, a sua liquidação definitiva. Canibalizaram a empresa, tudo

mundo tirou o que pode, todo mundo tinha um contrato para cobrar do novo governo.

Eu acompanhei um pouco o processo de liquidação, porque as pessoas que

trabalhavam na empresa ligavam para mim. Mas a Constituição de 1988 eliminou

qualquer possibilidade de uma atividade da forma como a Embrafilme praticava.

Porque é preciso licitação, contrato, etc. E a empresa estava financeiramente quebrada

e politicamente desacreditada. E eu acho que a distribuidora é comercial, tem que ser

privada. A Embrafilme tinha várias virtudes, o Babenco por exemplo tinha uma conta

corrente com a empresa, então ele produzia Lúcio Flávio ganhava a empresa e ele mas

um fracasso ele também perdia. Hoje não, a Lei do Audiovisual socializou o prejuízo

e privatizou o lucro. O Estado paga toda a conta. Se o Daniel Filho tem lucro fica com

todo ele, se tem prejuízo, tudo bem, não há problema.

Pergunta: o senhor acredita que a sua gestão na Embrafilme tenha estimulado depois a

Lei do Audiovisual?

Carlos Augusto Calil: A Lei Rouanet, foi a primeira lei. Mas há um rascunho anterior,

na época do Collor, com o Rouanet, um projeto de lei que procurava eliminar tudo,

laboratórios, etc, e os filmes poderiam nem falar português. Eu falei se a gente fechar

os laboratórios, perde tecnologia. E os grandes cineastas, com aquela visão

tradicional, os laboratórios roubam a gente, etc. Eu não estou de acordo que a lei

transfira o poder para as empresas decidirem, eu não estou de acordo que as empresas

entrem apenas como renúncia fiscal e não como patrocínio. E isto mais uma vez foi o

190

Jabor, o Barreto, fazer lobby atropelando o ministro Weffortt, indo direto com o FHC,

fora de qualquer racionalidade.

Entrevista com Jose Álvaro Moisés. Secretário do Audiovisual do Ministério da

Cultura (1999-2002); Secretário de Política Cultural (1995-1998). Cientista político,

professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.

Entrevista concedida ao autor em 20/09/2012, no Núcleo de Pesquisa em Políticas

Públicas, USP, São Paulo.

Pergunta: O que levou o senhor a assumir a Secretaria do Audiovisual?

José Álvaro Moisés: Foi um convite do Ministro Weffort, na passagem de 1998 para

1999, no segundo mandato do FHC. Ele queria reorganizar a secretaria, criar a

Comissão de Cinema que não existia e adotar procedimentos mais cuidadosos no que

diz respeito a prestação de contas nesta área. Eu vinha de outras áreas no Ministério

onde tinha um desempenho em varias coisas, principalmente a atualização,

modernização e efetivação das leis de incentivo que estavam completamente paradas.

Elas existiam e não eram usadas, com algumas dezenas de empresas. Em menos de

um ano de trabalho pulou para mais de duas mil empresas. Eu fiz um trabalho grande

de mobilização de produtores culturais, artistas, de empresas para utilizarem as leis de

incentivo. Por causa disso eu fiquei muito marcado com esta imagem de ter feito

funcionar leis que estavam paradas. No meu período como Secretário de apoio a

cultura eu adotei uma série de procedimentos mais republicanos, alguns chamaram de

mais duros ou mais rígidos, mas na minha opinião foram mais republicanos. Quanto

o ministro pensou em reorganizar a Secretaria do Audiovisual, em certo sentido

redimensionando, iria se chamar Secretaria do Desenvolvimento do Audiovisual. E le

me pediu para assumir esta função, por um lado adotar os mecanismos que pudessem

estimular o uso da lei do audiovisual, por outro lado adotar mecanismos semelhantes

que adotei em outra secretaria para o controle das prestações de contas e ao mesmo

tempo a criação da comissão de cinema com representantes de todas as áreas. Eu criei

a comissão, começou a funcionar e foi no âmbito dela que comecamos a discutir a

reforma da lei. Uma outra razão: nós queríamos, naquele momento, com base na Lei

do Cabo que tinha sido votada no congresso e promulgada por FHC, nós queríamos

criar uma televisão do Ministério da Cultura. A lei prevê que na concessão de

empresas a cabo ao mesmo tempo o Estado cria no nível federal para a área da cultura

e da educação uma televisão a cabo no nível do estado e do município e ninguém usa.

191

Nós usamos e o Ministro pediu para fazermos um projeto e criar a TV Cultura e Arte,

com padrão de qualidade de apresentação de material artístico bastante reconhecida

na época. O governo Lula vinha com algumas visões muito radicais sobre a questão

da cultura no período FHC e fechou a TV Cultura e Arte. Não teve uma explicação

pública sobre o que ocorreu com os programas da televisão. O dinheiro foi gasto,

prestamos contas, mas nada foi explicado. Eu estive na comissão de transição para o

governo Lula para a área da cultura. Nesta transmissão nós entregamos todas as

prestações de contas, o que foi feito, o que tinha sido gasto, todos os produtos. Tem

que ter uma explicação pública, você gasta dinheiro numa coisa, o outro governo vem

e acaba com tudo. Informalmente a explicação é que não estava no projeto deles. O

projeto era basicamente para a ideia da diversidade cultural, as pessoas não conhecem

a diversidade cultural brasileira, não conhecem a cultura remanescente dos povos

indígenas, conhecem pouco da cultura negra – o samba basicamente – a TV Cultura e

Arte era um espelho da diversidade com resultados muito positivos. Pela Lei do Cabo

as operadoras privadas têm que colocar o cabo, foi uma briga para a Globo colocar e

nós ganhamos a briga e também nas TVs por satélite. No interior do Brasil as pessoas

que tinham antenas captavam. A estimativa é que a TV atingia 30 milhões de

espectadores.

Pergunta: o Senhor atua em um momento no qual muitas coisas estavam acontecendo:

a reforma do Estado, a implementação da Lei do Audiovisual, há uma espécie de

junção entre estas coisas todas. O senhor acreditava nesta estrutura?

José Álvaro Moisés: Acreditamos no seguinte sentido: quando você está em função

pública, de realizar, os dilemas que se colocam foram os seguintes, se você for parar

para reformar tudo você paralisa todas as atividades. O que nós fizemos foi estimular

os usos da Lei e ao mesmo tempo com a Comissão de Cinema, com base num

procedimento que daria legitimidade, discutir a reforma da lei, ou seja, o que eu fiz

como Secretário, foi fazer todo o esforço possível para que a Lei fosse utilizada

buscando apoio de empresas que pudessem entender que elas se tornariam co-

proprietárias dos filmes em certo sentido com a Lei e ao mesmo tempo no espaço

adequado, com a Comissão de Cinema, com a representação deste setor cultural, era

discutir a reforma da lei. Qual era a minha linha? Tive várias polêmicas com o

Barretão. Eu dizia na Comissão: minha perspectiva era republicana, e a perspectiva

que presidiu a existência desta lei, na origem desta lei, nao é propriamente

republicana porque permite que as empresas invistam 100% e se beneficiam

192

aproximadamente 120% com a despesa operacional, isto não é republicano, nós

precisamos fazer a reforma. Houve uma enorme resistência pilotada pelo Barreto e

esta reforma nunca passou. Não faz sentido num governo que se propunha

democrático decretar reforma ou decidir a reforma sem consultar a comunidade

específica, eu não podia fazer isso nem o Ministro queria isto. A orientação, do

presidente Fernando Henrique era: vamos fazer a reforma desde que discutisse com a

comunidade. Isto significa criar consenso e este não foi criado. Ou seja, eles não

abriram mão em nenhum momento da idéia que a reforma da lei pudesse garantir

investimento privado mas sem dar para a empresa que investia além do 100% que ela

colocava como dedução, como despesa operacional, mas pelo fato dela participar dos

lucros, quem colocou 100% recebia de volta 120%. Em nenhum momento eles

admitiram isto. Foi uma polêmica que durou praticamente dois anos. Eles tentaram

em vários momentos me derrubar. Fizeram pressão governamental, na imprensa, mas

não conseguiram me derrubar, mas também eu não consegui fazer a reforma da lei

naquele momento. A nossa estratégia foi colocar o avião andando e ao mesmo tempo

fazer a reforma necessária em parte do avião. Se você quisesse retomar a produção

cinematográfica, e o objetivo era este, e o governo estava focado neste objetivo,

enquanto você utiliza os mecanismos existentes e eram mecanismos legais, aprovados

no Congresso, nós não podíamos passar por cima disso. Mas enquanto faz funcionar,

vamos implementar, discutir, criar consenso para reformar. O primeiro caso foi bem

sucedido – a questão da produção, o segundo não.

Pergunta: O senhor comenta que os embates políticos foram fortes, entre a Secretaria

e os cineastas, especialmente na criação da Ancine, que foi resultado dessa pressão.

José Álvaro Moisés: A Ancine foi uma decisão do governo, foi uma decisão nossa.

Esta interpretação apareceu na imprensa, completamente equivocada. Foi proposta

pelo governo FHC. Foi proposta pelo Grupo Executivo que nós criamos, que nós

propusemos. Foi o Ministro Weffort que mediante um documento que eu preparei fez

a proposta de constituir um Grupo Executivo porque a coisa era a seguinte: a grande

demanda deste segmento cultural, um segmento politicamente forte, com muitas

relações com governos diferentes desde a ditatura militar, com um interlaço muito

forte, a grande demanda deles era retomar o que tinha acontecido com a extinção da

Embrafilme no governo Collor. O governo diz: nós não vamos recriar a Embrafilme,

nós vamos criar uma agência, a exemplo de outras agências existentes, que seja capaz

de por um lado estimular a produção mas ao mesmo tempo controlar e ter

193

mecanismos de regulação para controlar. E a Ancine foi esta criação. Quem propôs a

Ancine fomos nós, foi o Ministério da Cultura, que foi ao Presidente, que por sua vez

propôs a constituição de um grupo no âmbito da Casa Civil para constituir a Ancine.

Então esta interpretação não bate, é furada. O que ficou com a Secretaria do

Audiovisual? Ficou a parte documental, a parte de filmes com perfil mais cultural,

média, curtas, documentários, produtos para a televisão educativa mais o centro

técnico do Rio de Janeiro com alguns elementos que poderiam ser designados como a

infra-estrutura necessária para a manutenção do audiovisual cultural. Não do

audiovisual inserido no mercado, de natureza comercial. Se você pensar friamente,

tomando dois passos de distância em relação ao governo, foi uma racionalização, foi

uma maneira racional de organizar uma atividade muito importante do ponto de vista

do segmento cultural. Não tinha nada disso, então criamos programas específicos do

tipo para filmes de baixo orçamento, o Mais Cinema, o apoio para comercialização e

exibição.

Pergunta: Qual era o diagnóstico do Ministério da Cultura para criar a Ancine?

José Álvaro Moisés: Numa atividade que tem uma interface muito forte com o

mercado capitalista, com o mercado comercial, você tem determinadas formas de

organização e demandas que podem e deveriam ser aglutinadas numa agência

específica para cuidar desta parte da produção que estava totalmente voltada para o

mercado e faz todo sentido que esteja. O cinema é um produto cultural no mercado

cultural, compete com produtos internacionais. Com isto é preciso organizar com

condições próprias, diferentes daquelas condições que dizem respeito ao apoio e

eventualmente subsídio para a atividade de natureza estritamente cultural que

geralmente não vai ao mercado. A ideia é que isto tem peculiaridades próprias, são

setores com menos recursos, menos tecnologia, são micro-empresas – não são

empresas como as do Barreto e de outros produtores – e que tinham que ter apoio do

Estado. A ideia é que a Secretaria do Audiovisual e a Lei Rouanet continuariam

voltadas para este produto de estatura menor do ponto de vista comercial mas não

menor do ponto de vista cultural. Este setor deveria ficar localizado na Secretaria,

enquanto o cinema mais comercial deveria estar localizado em uma agência estatal

com estatura e dimensão semelhante a de outras agências que regulam

telecomunicações, saúde, etc. Foi esta intenção, isto foi uma política de governo, foi

discutido, foi pensado. A iniciativa foi do Minc, do Ministro Weffort. Estas coisas são

engraçadas. Vou contar uma coisa que não tem nada a ver. Nos anos setenta, criamos

194

o CEDEC, conseguimos muitos projetos com a Fundação Ford. Como tínhamos sido

do CEBRAP, qual foi a interpretação que apareceu na esquerda: muita gente dizia que

nós eramos o CEBRAP do B. Tinhamos que explicar, o CEDEC nasceu assim, é

diferente, etc. Com a criação da Ancine foi parecido, não foi uma coisa contra a

Secretaria, foi a Secretaria que propôs. Nós do Ministério propusemos ao governo, o

ministro Weffort levou ao Presidente, que para a criação da Ancine fosse constituído

um grupo executivo no âmbito da Casa Civil para dar a devida importância. São

muitos fatores e nem sempre colocamos tudo na mesa. A área cultural, eu diria que

em qualquer governo, de direita ou esquerda, têm sempre uma luta para ser

reconhecida, para ser reconhecida significa para ter legitimidade, para receber

recursos. Então uma maneira de valorizar, de dizer que nós não queremos uma coisa

localizada, no nível do Ministério da Cultura, tem que mudar de patamar a área do

cinema comercial, tem que ir para uma outra alocação no Estado brasileiro, ocupar

um outro espaço no Estado brasileiro. Qual a estratégica para isso? Nós discutíamos,

eu, o Weffort e outras pessoas, vamos propor no nível da Casa Civil. Imediatamente

próximo do presidente, para ficar claro que se trata não de um órgão que vai nascer

dentro do Ministério da Cultura e ali ficar, mas como um órgão que vai ter status

paralelo ao de outras agências. Para fazer isto você tinha que abrir para fora, em outro

âmbito. Qual foi a nossa proposta? Que tivesse representantes da Casa Civil, da

Fazenda, Relações Exteriores, que tivesse também produtores, cineastas, o Grupo

Executivo ganhou outra dimensão e gerou a Ancine. Uma coisa é pensar uma politica

de Estado para o petróleo, para certas áreas de exportação, para o pre-sal, outra coisa

é pensar para uma área que já vinha e continua lutando para ser reconhecida, a

cultura. No Brasil você têm um consenso em torno da educação, ninguém vai negar

que é preciso dinheiro para a educação, direita, esquerda, trabalhadores, empresários.

Não é a mesma coisa com a cultura. Ainda tem no Brasil este problema, dela ser

reconhecida pela sociedade porque ela diz respeito a questões de identidade da nação,

dos brasileiros, e de qualidade de vida e isto não está reconhecido e você têm que

brigar por isto. O Ministério ter que brigar por isto e colocar uma área comercial

dentro, é uma luta.

Pergunta: O Ministério tentava impulsionar a questão empresarial no cinema

brasileiro ao mesmo tempo que enfatizava a ideia de identidade cultural. Como o

cinema era visto no interior do governo FHC?

195

José Álvaro Moisés: Têm um caderno que nós fizemos, com três artigos do presidente

Fernando Henrique, Weffort e eu. Ali está a posição do governo, têm exatamente a

nossa posição. O governo entendia que o cinema tem uma dimensão cultural que está

muito ligada a identidade e diversidade cultural e ao mesmo tempo tem uma interface

com o mercado, é um produto cultural que para poder se qualificar no mercado têm

que ganhar qualidade propriamente de produto competitivo. Então estas coisas não

estão em contraposição, veja, nós podemos gostar ou não do cinema americano, mas é

inegável que o cinema americano teve durante todo o século XX um inegável efeito

de apresentar a identidade do “american way of life”, isto vale para dentro e vale para

fora, de apresentar a sociedade americana para outros países, e também de apresentar

a identidade americana para eles próprios, para os americanos se olhar no espelho e se

identificar. Nós víamos o cinema assim, é um espelho de identidade, de formação de

identidade, de complementação, de elaboração da identidade, mas ao mesmo tempo é

um produto comercial, tem que ter características comerciais, tem que ser um bom

filme, tem que ter um bom roteiro, tem que entender o que as pessoas estão falando na

tela. A minha grande defesa do que nós fizemos foi a retomada do cinema, a retomada

foi bem sucedida. Nós pulamos de um ou dois filmes produzidos no período Collor

por ano para mais de trinta quando acabamos o mandato. Acho que isto por si só,

trinta foi o número histórico do período da Embrafilme, é o resultado. Na democracia

têm que se mostrar o resultado. O problema é que não foi só produzir trinta filmes, foi

uma política que tinha esta visão. Por outro lado o cinema é uma chave de elaboração

de identidades culturais numa perspectiva de diversidade, não é uma identidade

cultural mas trabalhar com diferentes identidades culturais. Por outro lado o cinema

tinha uma inserção de mercado como um setor cultural inserido no mercado que teria

que ter características de produto de mercado, “timing”, precisão do produto,

qualidade. Eu criei um programa que era para fazer “workshop” de roteiros:

chamamos roteiristas americanos e europeus para dar aula, alguns funcionaram, as

pessoas perceberam que era uma oportunidade para aprender, depois isto parou. O

programa Mais Cinema também foi uma decisão do governo. Em certa altura, eu e o

Weffort fomos ao presidente: o cinema está tendo uma série de problemas, nós

tivemos o plano resgate antes e não tivemos nenhum programa semelhante depois,

nós não queremos fazer a mesma coisa – porque no caso do Resgate foi dado dinheiro

sem nenhuma contrapartida – não teve muita contrapartida por parte dos cineastas,

porque você dar dinheiro simplesmente não é uma boa política pública, de natureza

196

republicana. Nós quisemos criar um programa que desse o recurso mas tivesse

condicionalidades, entre as quais o produto depois que circulou no mercado, depois

de um certo período, pudesse ser exibido nas televisões públicas. Nós criamos um

programa que naquele ano, em 2000, de 80 milhões de reais. Qual era a lógica? O

dinheiro não era só produção, tinha que envolver também coisa que normalmente os

produtores não previam nos seus programas: distribuição para favorecer a

comercialização e coisas desta natureza, roteiro, preparo de atores, ou seja, o objetivo

era inserir melhor o produto cinema no mercado mas ao mesmo tempo fazer um

esforço deliberado de aumentar a qualidade. Isto não é uma coisa que se toma uma

iniciativa de um ou dois mesmo de quatro anos e o resultado aparece, demora para

aparecer. Algumas coisas foram mantidas e acho que este resultado progressivamente

foi aparecendo.

Pergunta: Não parece que a ideia de identidade cultural acoplada ao cinema implica

em procurar uma legitimidade para a continuidade do investimento estatal na área?

José Álvaro Moisés: A lógica não é esta, pegar um produto e inventar uma

justificativa para ele. A lógica é indagar qual o sentido que isto têm culturalmente e

qual o sentido culturalmente que isto têm para o país, para a cidadania, para a

identidade. Você está fazendo o raciocínio inverso, como se este discurso fosse para

justificar o apoio ao cinema. Nossa lógica era outra. O cinema está aí, tem maior ou

menor grau de mercado, mas nós queremos estimular o pólo cultural do cinema, a

face cultural, a dimensão cultural que neste caso significava fazer a conexão com o

conceito de cultura no sentido mais profundo, cultura como todos nós sabemos é uma

linguagem, é uma forma de expressão, de identidade, de identificação, de formação de

identidade, de exploração de diversidade, isto é o foco central, a partir deste foco vale

a pena jogar mais água neste moinho ou não. Eu acho que a nossa lógica, pelo menos

tal como nós pensamos, discutíamos, a lógica era esta. Por isto o Caderno, ninguém

pensou, ninguém sentou junto, mas os três textos, do Presidente, do Ministro e o meu

têm muita coisa em comum e discutem este assunto: o papel do cinema. Se você olhar

a identidade dos três é muito grande.

Pergunta: a Lei do Audiovisual tinha um prazo para ser encerrada, mas o mercado de

cinema era dominado pelo filme estrangeiro e o filme nacional não era lucrativo. Não

se pensava nesta equação?

José Álvaro Moisés: Por um lado, do ângulo dos atores que propuseram a Lei do

Audiovisual, a Lei ia servir como uma alavanca para capitalizar o setor. A Lei era

197

para isto. Isto entrou em interação com algumas áreas da burocracia do Estado,

especialmente da área econômica, foi a burocracia econômica, do Ministerio da

Fazenda, que impôs a periodicidade da lei, que algum momento ela seria revista. É

para você avaliar se o resultado produzido foi adequado ou se deveria abolir o

instrumento ou criar outra coisa em seu lugar. Do ponto de vista de uma gestão

racional faz sentido: você cria um incentivo mas você data e depois vamos examinar o

resultado em dez anos. Como a realidade do cinema, não só no Brasil, é uma

realidade de uma indústria hegemonizada pelas empresas norte-americanas, o esforço

do Estado para produzir tem que ser maior. Isto explica que a Lei, ao invés de a cada

dez anos quando termina seu período, ao invés dela ser finalizada e dar origem a outra

coisa, ela continua. Em certa maneira a Ancine já é uma tentativa de criar uma outra

realidade que vai substituir a Lei do Audiovisual. Só que isto num contexto em que se

têm o apoio do Estado, que durante muito tempo foi pequeno e quando foi grande no

período da Embrafilme ele foi abolido. Têm estes altos e baixos, a relação do Estado

com o setor, é natural que demore mais tempo. Progressivamente o cinema brasileiro

tem ganhado características comerciais. Têm hoje muito mais filmes que circulam e

fazem bilheterias do que antes. Estou tratando especificamente do setor comercial, da

alocação no mercado, mudou o patamar, de fixação nas salas comerciais, está

melhorando, está capitalizando, eu acho que isto vai ter um período mais longo do

que se previa antes.

Pergunta: Mas os filmes não são lucrativos, quer dizer, é impossível pelas condições

do mercado que eles sejam auto-sustentáveis. Por que então os cineastas continuam

propondo a indústria, a reprodução deste mecanismo e não justificam o investimento

do Estado apenas pela questão cultural?

José Álvaro Moisés: Porque é indústria, porque tem um lado de indústria, isto seria

conflitar com a realidade. O cinema tem uma dimensão comercial, eu não sei dizer se

atualmente continua o mesmo perfil dos filmes produzidos, que entram no mercado e

são incapazes de pagar o investimento original, eu não tenho estes dados. Não é a

impressão que eu tenho dos filmes bem sucedidos de bilheteria, que circulam com

mais salas, em maior tempo e pelo país. Eu tenho a impressão que estes filmes, como

o do Padilha, conseguem recuperar. E preciso uma série histórica, dez anos por

exemplo, de filmes diferenciados, para saber se permanece o mesmo patamar em que

o investimento não tem retorno. Eu tenho dúvidas sobre isto. E por que separar?

Comércio e indústria, produto cultural, há uma interpenetração. Estado brasileiro e

198

justificativa? Tem responsabilidade, em financiar, garantir a sobrevivência do cinema

industrial, competição é muito acentuada. É preciso criar infra-estrutura para ser

competitivo. É a mesma responsabilidade que teve com a indústria automobilística, é

preciso a entrada do Estado com políticas.

Pergunta: Mas no caso do automóvel, o importado não pode entrar mas o filme sim.

José Álvaro Moisés: Apoiamos a OMC na questão da exceção cultural. É preciso

dotar e apoiar o cinema e tomar outras atitudes também. A politica adotada tentou

contemplar as duas faces do produto cinema, que é multidimensional. A Lei do

Audiovisual e mais a Agência tentam contrabalancear isto tudo. Não é mais possível

uma saída a maneira da Embrafilme, centralizada e autoritária.

Pergunta: Como o senhor avalia sua experiência com os cineastas, com as pressões?

José Álvaro Moisés: Os cineastas têm interrelações com setores do Estado que são

antigas, têm contatos com a burocracia e o governo. O Estado voltou a se

responsabilizar com a área e isto tem um significado cultural e um significado

comercial. Reorganizar a produção, uma postura republicana de prestação de contas,

todos foram chamados. Isto criou um mal-estar do grupo mais tradicional que acha

que a sociedade e o Estado deve algo a eles. Não tinham preocupação em organizar as

suas contas e a cultura politica era que os recursos públicos não necessitavam de

prestar contas. E também não aceitavam que as televisões publicas exibissem seus

filmes.

Entrevista com Luiz Paulo Vellozo Lucas. Diretor do Departamento de Indústria e

Comércio e presidente da Comissão Especial de Regulamentação do setor de cinema

no governo Collor (1990-1992); prefeito de Vitória (1998-2005). Entrevista

concedida ao autor no gabinete do Senador Aécio Neves em 26/09/2013, Brasília, DF.

Pergunta: O senhor era um técnico de carreira do BNDES, foi para a área de cinema,

que é uma área com muito lobby, muita luta politica. Por que o senhor entrou, uma

vez que poderia ter continuado no BNDES e pela própria formação como engenheiro?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: poderia falar da minha veia artística escondida, mas não

vou fazê-lo. O que aconteceu foi que no governo Collor tivemos para todos os efeitos

práticos uma hiperinflação aberta que não chegou a fazer todo o trabalho de desmonte

que faz uma hiperinflação aberta por causa do bloqueio da poupança, mas nos

chegamos a 85% ao mês. Precisou que o bloqueio fosse feito três dias antes da posse

199

dada a fuga dos ativos líquidos. Então o bloqueio da poupança protegeu a liquidez e o

processo de devolução da poupança. Mas estava subjacente toda uma discussão em

paralelo com o controle da hiperinflação aberta, um debate sobre a mudança de

paradigma do desenvolvimento econômico do pais. Que é o fim do paradigma de

substituição das importações por um novo paradigma. Este eu gosto de chamar de

integração competitiva, porque foi esse o nome que foi utilizado no plano estratégico

do BNDES. E foi por isto que eu virei diretor de Indústria e Comércio no governo

Collor. Eu chefiava o departamento de planejamento do BNDES na segunda metade

dos anos oitenta, que foi o período que no BNDES as ideias foram ruminadas e

gestadas não exclusivamente dentro do BNDES mas o banco era um dos nós de um

debate que ocorria na sociedade, foi na época que foi criado o IEDI, mas este debate

estava dentro do INPI, estava nas universidades.

Pergunta: entre os proprios cineastas este era um debate forte, de mudar o modelo.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: este era um debate na economia. Depois eu falo como o

cinema chega nele, este é um debate do setor produtivo brasileiro. Tinha o edifício

institucional montado no pós-guerra em torno da substituição das importações. E que

contaminou toda a economia, positivamente, negativamente, independente se valeu a

pena ou não, a opção do nacional desenvolvimentismo, os pontos favoráveis são

maiores ou menores, isto é controverso, se o veredito é condenação ou absolvicão,

havia um consenso de que havia se esgotado enquanto força orientadora do processo

de desenvolvimento, de investimento da economia, então seria necessário uma

reestruturação, era exatamento isso que na época nós defendiamos no BNDES, um

processo de reestruturação competitiva da economia brasileira. Então era preciso que

o paradigma de substituição de importações, que era produzir internamente coisas que

a gente importava fosse substituído por um novo paradigma, que é produzir

internamente produtos e serviços com padrões internacionais de preço e qualidade.

Era esta a expressão. No plano estratégico do BNDES, 1987-1990, tinha lá como

objetivo número um, trabalhar para que a bem sucedida passagem da paradigma

esgotado de substituição de importações para o novo paradigma da integração

competitiva. Nao é uma ruptura no sentido de desfazer tudo o que havia sido feito

mas era saltar para uma nova etapa, de superação epistemológica, de uma nova etapa

para um outro período em que uma série de mecanismos tinha perdido finalidade,

novos mecanismos teriam que ser colocados, o novo objetivo seria passar a ganhar

competitividade. O que é ser competitivo? É ter capacidade de padrão internacional

200

de preço e qualidade. Esta competitividade depende de coisas que estão dentro dos

muros da empresa e fora dos muros da empresa. Que é sistémico, depende do

funcionamento da economia como um todo. Foi neste ambiente que nos chegamos no

inicio dos anos noventa. Nos vários setores, no final de 1989, para abrir qualquer

empresa no Brasil era preciso uma serie de autorizações, para ter acesso a importação

era preciso pedir autorização ao CACEX, tinha programa de importação, tinha reserva

de mercado na informática, tinha programa nacional petroquímico, programa nacional

de fertilizantes, todas as fábricas tinham que estar dentro destes programas que

viravam leis, isto tudo era chamado da institucionalidade velha da substituição de

importações que precisava ser substituído por uma nova institucionalidade, para um

novo paradigma da integração competitiva.

Pergunta: o senhor estava dentro da estrutura do BNDES, havia um conjunto de ideias

e um encaixe.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: isto antecedeu o governo Collor, os quatro candidatos a

presidente da República mais competitivos, com chance de ganhar a eleição, todos

foram ao BNDES, pegaram os estudos, não foi uma coisa que o Collor tirou da

cachola e colocou, isto estava presente. Talvez ele por ter menor estrutura foi o que

copiou mais os documentos mas de alguma maneira ele estava presente em todo o

debate. Eu fui nomeado diretor de indústria e comércio que era o antigo Ministério da

Indústria e Comércio, que foi extinto e fazia parte do Ministério da Economia,

Fazenda e Planejamento. O que antigamente era indústria e comércio, política

industrial, era feito no departamento de indústria e comércio e nós tinhamos a

proposta que nos fizemos isto atravês dos GEPS, Grupos Executivos de Política

Setorial, nos utilizamos este nome. Nesta época o governo promoveu uma

reestruturação radical da política industrial do Brasil, sempre no sentido da

simplificação, da desburocratização, da eliminação de autorizações, em todos os

setores, isto foi feito com o impacto em todos os setores da economia, mais de duas

mil regras de funcionamento da economia brasileira foram alteradas em 1990, da

borracha, regras de equalização de preços, de normatização, de funcionamento do dia

a dia da economia, de imposto, de acesso a importação, etc. Esta mudanca estrutural

das instituições, da política industrial brasileira foram todas amarradas num

documento Politica Industrial e Comercio Exterior, PICI, que foi lançado em julho de

noventa. No entanto, várias medidas foram tomadas imediatamente junto com a posse

porque tinha o lance de bloqueio dos depósitos, a hiperinflação acontecendo, estas

201

questões de dimensão conjuntural estavam acontecendo em paralelo em uma

revolução de curto prazo que era a própria hiperinflação, era difícil separar as duas

coisas. Este movimento de reorientação da política industrial e comércio exterior

tinha um foco no longo prazo.

Pergunta: eu fico me perguntando como o senhor entra no setor de cinema, porque o

senhor tem todo uma trajetória na política industrial e o cinema é uma área marginal

no governo, sempre foi.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: nesta reestruturação do organograma do Estado foi extinta

a Embrafilme. A visao predominante que havia no governo era que o setor de cinema

era de se organizar por conta própria, o problema era dele, era igual a qualquer outro

setor da economia, mas o que nos fizemos no sentido de remontar as politicas

publicas e estratégias de governo em cada setor foram os GEPS, que depois o nome

mudou para câmaras setoriais que foi uma proposta do congresso quando o governo

mandou o projeto de lei, depois mudou o nome, mas era a mesma coisa, eu era o

secretário executivo destas Câmaras, tinha o da indústria automotiva, tinha o da

indústria textil, do complexo agro industrial, tinha vinte e tantas camaras setoriais em

que se discutia as regras de jogo em que se discutia o ambiente seja de pequeno,

quanto médio e longo prazo daquela atividade. O governo tinha uma visão muito clara

de que não deveria proteger toda a cadeia produtiva de uma atividade, por exemplo,

no setor textil, tinham regras, o algodao, os produtores, nao podiam exportar, tinham

que destinar toda a produção ao mercado interno, os produtores de teares eram

protegidos pela regra de similar nacional, as confeções não podiam importar teares

porque havia um similar nacional, um setor era protegido do outro e a cadeia

produtiva em si, no conjunto, perdia enormemente a competitividade, então com a

mudança e o desmonte desta institucionalidade ficaram todas elas submetidas a algum

nivel de concorrência, desde a confeção da roupa pronta até o produtor do algodão,

então houve uma exposição a concorrência internacional em todos os elos da cadeia,

isto estava acontecendo em 1990 e com o cinema não havia aboslutamente nada. O

secretário era o Ipojuca e o sub-secretário, Miguel Borges. Produtor de filmes da Boca

do Lixo, ele tem uma passagem controversa. Me lembro dos dois e começou a chegar

ao governo toda uma demanda do setor cultural por falta de interlocução.

Pergunta: o que me chama a atencão, pois primeiro a extinção da Embrafilme e logo

em seguida o senhor se torna o presidente da comissão especial de regulamentação da

atividade cinematografica. Me parece que o governo Collor não tratava o cinema

202

como perfumaria porque logo criou-se esta comissão. O governo poderia bem dizer

não vamos mexer, é uma atividade marginal.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: sim, a Embrafilme foi extinta, dentro de todo um contexto,

com outras estatais. O governo começou a ser procurado por vários caminhos e para

dizer que a atividade do audiovisual era uma atividade econômica de alta relevância e

que teria impacto enquanto atividade econômica. Os cineastas não tinham

interlocução, não gostavam do Ipojuca. Ele não tinha prestigio algum no governo.

Acho que o Collor quis se vingar da classe artistica que não o apoiou colocando o

Ipojuca, que não tinha prestigio nenhum no governo. No ministério da Economia

ninguém votou no Collor, só a Zelia. Abaixo da Zélia ninguém tinha participado da

campanha do Collor.

Pergunta: a classe artistica se mostrou favoravel ao candidato do PT, mas quando

Collor assina a extinção já era algo antevisto, já havia um historico muito conturbado.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: a EMBRAFILME foi extinta, não foi a EMBRAFILME,

foi todo um grupo de estatais e autarquias, só no ministerio da industria e comercio

eram onze. Já havia um questionamento em relação a EMBRAFILME. Nas

discussões de politica de comercio, os cineastas foram ao governo, e pediam nao nos

tratem de forma diferente, mas igual aos outros setores da economia.

Pergunta: há um registro de algumas reuniões do senhor com os cineastas.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: sim, eu me reuni no Rio, em São Paulo, eu fiquei

entusiasmado com este trabalho, fui chamado pela ministra, que era minha chefe, que

disse: nós temos esta demanda dos cineastas, o que você acha? Eu acho que eles estão

cobertos de razão, o setor de audiovisual é um de intensivo em informação e portador

de inovação, tecnologicamente intensivo e acha que deve ser dado o mesmo

tratamento da quimica fina, um setor que impacta a produtividade e a inovação na

industria como um todo, as coisas que ele produz contamina a economia como um

todo.

Pergunta: e este tratamento implicava no que?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: eu fui encarregado e fui presidir a comissão do

audiovisual, que ia ter um prazo para produzir um relatório. Era uma comissão

interministerial, tinha representantes da Cultura, do Itamaraty, da Economia.

Começamos a ouvir, eu tinha muitos conhecidos no setor que ajudaram a montar esta

comissão, o Barreto foi um deles, fizemos inúmeras reuniões, demos um tratamento

de setor econômico, como é o padrão de concorrência, como é o mercado

203

internacional de cinema, a estrutura do México, da India, quais os mecanismos de

produção nacional, de não producao nacional, proteção. De cara eramos contra

reservas de mercado, produto nacional, começamos a desenvolver uma

nomemclatura, nós, a comissão junto com o setor, com os cineastas, de todos os elos

da cadeia, tanto dos produtores nacionais quanto dos importados, na época era o

famoso Harry Stone que representava a Motion Pictures, eles reuniram com a gente e

discutimos uma politica, qual deveria ser a politica brasileira. Chegamos a conclusão

consensual que era um setor que tinha efeitos multiplicadores na economia como um

todo e não era um setor igual a de tomadas, bananas e abacaxis. Era um setor

prioritário como eram setores inovadores, tecnologia de ponta, quimica fina,

farmaceuticos, software.

Pergunta: esta comissão tinha uma boa interlocução com a presidencia da republica?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: a presidência da republica, no governo Collor, quem

mandava era o ministério da Economia, a Secretaria da Cultura, que era o Ipojuca, ele

não tinha poder nenhum e tambem não tinha visão econômica das coisas, o Miguel

era o representante na comissão, discutia, tinha alguma experiência. O relatório foi

apresentado para todos os que foram ouvidos, teve por parte do setor uma esperança

muito grande e foi bem acolhido. Isto levou noventa dias, alguns meses.

Pergunta: este relatório foi o que se transformou na Política para o Complexo

Audiovisual?

O produto da comissão foi este relatório que se transformou nesta politica, que foi o

último ato do Ipojuca, que sai e entra o Rouanet. O grande conceito era que os setores

tecnológicos de ponta e a inovação precisam e merecem incentivos, na nossa visão era

implementar a economia de mercado. Agora os setores de ponta e inovadores

precisavam de incentivos sim e não queria dizer que estes incentivos fossem a

proteção, que nos iamos criar uma produção nacional e tal, encarecendo e dificultando

o produto estrangeiro, ou criando reservas de mercado. Nós nunca concordamos com

cotas de exibição, reservas de mercado e mesmo conceitos como produto nacional, o

que é um filme nacional? Se o diretor for estrangeiro, se o ator for, e uma co-

produção? Nós ja estavamos na globalização mas queriamos ter a presença da cultura

brasileira, queremos ter a presença do Brasil como locação, queremos a industria,

queremos o entretenimento.

Pergunta: as ideias hegemônicas eram estas, mas o setor de cinema sempre foi muito

nacionalista.

204

Luiz Paulo Vellozo Lucas: mas a eleição do Collor foi um choque liberal na economia

brasileira, o setor estava sob impacto, entao quando a comissão foi criada foi vista

como um alento, como uma janela de oportunidade e ai toda a minha ideia como

coordenador do processo foi dar ao setor o tratamento que estava sendo dado a

economia brasileira como um todo. Disse para eles que não era nem mais nem menos,

não era privilegio nem desprivilegio, era o que era necessário sim e que nós tinhamos

que produzir. O que é ser competitivo? E produzir produtos com padrões de preço e

qualidade, entao as discussões eram muito grandes com relação a isso. Fazer um filme

comercial e colocar um filme no circuito não é a mesma coisa que sustentar uma

orquestra sinfônica. Produzir um filme para colocar na televisão, isto é um negócio,

um business, tem que ser lucrativo. Agora é um business importante para economia

brasileira, porque gera um star-system, que gera inovação, entretenimento, parques

temáticos, royalties, etc. Nós defendiamos, porque isto passou a ser a política do

governo, a linha que o governo assumiu. Quando o Ipojuca saiu e entrou o Rouanet,

isto representou um outro momento, eu sai, entregamos a relatório, a comissão se

desfez e passou a ser conduzido pela secretaria da cultura.

Pergunta: o relatório da comissão se transformou no projeto 205, que foi a gênese da

lei do audiovisual?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: mas a partir dai passou a ser conduzido pelo Rouanet, que

passou a coordenar, e claro, tudo era debatido com as outras áreas do governo. O que

justificava a coordenação disso ser feito pelo ministério da economia na época era que

realmente não havia nenhuma capacidade, o pessoal da industria não sentava com o

Ipojuca e não havia na área da cultura ninguém com uma visao econômica, mais

estratégica, porque era tudo ideologizado, era uma discussão de maluco. Aqui era

ministério da economia, não queremos obrigar ninguém a ver filme que não quer ver,

nós vamos acabar com a reserva de mercado.

Pergunta: houve pressão do legislativo, com os deputados?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: nós fizemos reunião com o Artur da Tavola, com vários

deputados. Um dos meus amigos era o Marco Aurelio Marcondes, que me ajudou

muito, que montou as reuniões com os cineastas e me apresentou as pessoas em São

Paulo e no Rio, Barreto, Cao Hamburguer. Era um pessoal que não queria voltar para

a Embrafilme, pelo menos da boca para fora, estavam querendo incentivos de

mercado, que quando lançadas as cotas dos filmes o lucro não fosse tributado. Foi

meu colega de cineclube, de partido comunista. Foi uma batalha grande que eu tive na

205

receita sobre a isenção do imposto de renda sobre o lucro operacional da fita, da cota,

você lança em Bolsa a cota do filme e depois o lucro apurado, este lucro não é

tributado.

Pergunta: o governo comprou esta idéia, havia apoio na receita, na economia?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: o governo não funciona como uma comunidade, a Receita

era contra, tinha que ser quebrada a espinha dorsal dela, mas o governo em seu

conjunto adorou este trabalho, gostou muito, a Zélia.

Pergunta: esta ideia tinha prestigio inclusive na Presidencia da Republica?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: sim, o presidente Collor adorou, vibrou com esta ideia, ele

apanhou muito tempo deste pessoal e parecia uma coisa inusitada, bota o pessoal da

economia para lidar com a cultura, e nos tratamos, fizemos um trabalho bom, correto

e foi reconhecido por eles como relevantes.

Pergunta: o senhor acredita que este trabalho é a gênese da Lei do Audiovisual?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: não tenho nenhuma dúvida, tivemos algumas medidas

práticas como coisas que dificultava a importação do filme virgem, tinha muita

burocracia, uma lei que complicava o borderô, muita regulamentação interna, arcaica

do setor que a gente limpou e considerou prioritário o financiamento para a

construção de novas salas de cinema, de importação de equipamento de projeção com

aliquota zero de importação.

Pergunta: no projeto havia a integração entre produção, distribuição e exibição?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: havia esta preocupação. Exatamente, não se pensa na parte

comercial, no público. O que aconteceu com o setor de animação, hoje tem um setor

novo, como o de games, altamente competitivos. Eu voltei para o BNDES depois que

perdi a eleição para a prefeitura de Vitoria, e me envolvi no projeto de industria

criativa que eu sou apaixonado por este setor. Entao eu revi muitas destas coisas e

alguns retrocessos que aconteceram. O BNDES criou um departamento dentro da

industria criativa e acho que o Brasil neste setor tem vantagens competitivas e não faz

o que tem que fazer. Que podia fazer se desse ao setor as ferramentas de mercado para

que eles conquistem a competitividade, de forma sustentável. Estas questões de

reserva de mercado nas televisões a cabo, eu era deputado na época, acho um horror

este negócio, o que tinha de ser feito era obrigar as produtoras de televisão a tercerizar

para as produtoras independentes não tiveram a coragem de enfrentar. Foi um conluio

das televisoes com as empresas de telecomunicacoes, que não são produtoras de

conteudo.

206

Pergunta: no projeto que o senhor apresentou, o produtor de cinema tinha que

apresentar um contrato de distribuição ou venda para a TV para ter acesso ao

financiamento do BNDES.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: tinha que ter mercado, tinha uma visão de integração do

complexo, tanto que o titulo era complexo do audiovisual. Por que estava

considerando toda a atividade, desde as salas, todas as formas de divulgação, que é

uma abordagem de politica industrial, que nós faziamos na industria textil.

Pergunta: a ideia era então equiparar as atividades de cinema com as outras?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: sim, era equiparar. A metodologia utilizada para fazer este

relatório foi a mesma utilizada na politica industrial de comércio exterior e nos outros

setores da economia.

Pergunta: a comissão é criada, feito o projeto, vocês estavam em um território virgem,

não havia um modelo prestabelecido, tinha acabado o subsidio estatal direto, havia

uma janela de oportunidade, vocês poderiam fazer o que bem entender. Foi este o

caminho que voces seguiram?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: exatamente. Nós ouvimos todo mundo, eu coordenava

mais de trinta Câmaras Setoriais, a do Complexo Automotivo tinha mais de 130

membros, num setor que produzia carroças, em quatro empresas. Imagina o caos que

era. Fizemos, podem reclamar de tudo, o processo de abertura foi feito no Brasil, teve

gente que saiu do mercado, mas foi negociado, então o setor audiovisual foi tratado

desta maneira, como petroquimica, complexo textil, agroindustrial.

Pergunta: havia clareza sobre o que era o filme enquanto produto, que esta indústria

seria sustentável? Por que naquele momento o mercado estava em crise. Havia um

diagnóstico de que a possibilidade de retorno não seria adequada?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: a gente achava o seguinte, por que o Brasil é tão

competitivo na música e ninguém fala em reserva de mercado em música, não tem o

Sambabrás, garota de ipanema é a segunda musica mais tocada. Em uma das reuniões

que fizemos na casa do Barreto eu comentei isto, havia esta percepção, de que o

Brasil tinha muito talento, isto estava no filme publicitário, isto estava nas novelas, o

star-system da Globo era competitivo.

Pergunta: o modelo da Globo é auto-suficiente, mas olhando a produção de cinema

naquele momento não havia nada que assegurasse a autosustentabilidade?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: mas não havia produção, acabou a EMBRAFILME,

ninguém sabia mais nada, ninguém sabia para onde ir.

207

Pergunta: havia esta crença de que se a política fosse implementada esta produção

conseguiria ser auto-sustentável?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: havia, a minha visão, eu acho que houve muito retrocesso,

muito populismo, paternalismo recriado, melhorou, sim, temos produção, mas tem

falhas, tem problemas, voltou o conceito de cotas, que eu acho um horror, reserva de

mercado, produto nacional, nada disso ajuda a ser competitivo, mas estamos ai com

bons filmes, atores brasileiros no exterior, produções estrangeiras rodadas aqui, é isto

que interessa ao Brasil e a economia brasileira. Este é o cinema que a gente precisa.

Pergunta: mas havia percepção de que seria possível uma produção auto-sustentável?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: sim, eu achava que era possível. Que a industria

automotiva ia se reestruturar, como se reestruturou. Hoje o Brasil tem inúmeras

marcas, naquela época tinha quatro. Teve coisas certas, outras erradas, mas não era

proibido importar, mas teve uma reestruturação competitiva, como eu acho que teve

no cinema tambem, acho que deram passos importantes.

Pergunta: esta comissão, este projeto, foi esta então a alternativa escolhida?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: no grosso modo, sim.

Pergunta: podia-se ter escolhido outra alternativa, por exemplo, levar o cinema

brasileiro ao MEC, produzir filmes educativos. Cinema é educação e cultura,

contentava-se o setor de cinema neste sentido. Esta alternativa foi levada em

consideração?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: nem cogitou-se. Nem se considerou. Primeiro porque o

Estado naquele momento estava quebrado, no MEC nem se imaginava em patrocinar,

o Estado fazer filmes em educacão.

Pergunta: também não se pensou em levar isto para as televisões educativas?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: nem se pensou nisso.

Pergunta: então foi esta a alternativa abraçada e vamos em frente?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: Sim, isto dentro do governo caia bem. E entre os cineastas

caia bem, eles olhavam e a gente dizia: querem fazer uma Bollywood? Não! Quer

fazer Mexico? Um pouquinho mas não muito. Na verdade, existia um imaginário de

setor da economia, de atividade criativa, respeitada, que tivesse os incentivos que a

atividade merece ter, precisa ter, para ser competitivia no setor em que não se tem

concorrência perfeita. Nesta época eu conversei muito com o Harry Stone, eu

compreendi o papel e a importância que o cinema tem para a politica americana, para

208

a doutrina americana. Eu nunca entendia muito bem como esta coisa era, a

importância que tem para eles.

Pergunta: este é um argumento que os cineastas levantam desde os anos 1960, que o

mercado é muito desigual, que o Estado deveria agir para assegurar regras de uma

competição justa. Que tipo de politica pode ser feita?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: na época tinha saido o Jurassic Park e os franceses

produziram a versão francesa e quando fazia pesquisa de opinião os franceses diziam

que gostavam mais da versão francesa, mas o filme americano foi muito mais visto.

Isto é o seguinte: quem decide é o mercado, não sou eu que falo, isto é antipatriotico

ver filme de Hollywood. Não vou fazer isto. Não queremos que o consumidor

brasileiro, nesta coisa de integração competitiva, temos que produzir produtos

competitivos para o mundo, importar os produtos do mundo, o consumidor brasileiro

tem que ter acesso aos produtos do mundo e nós temos que ser capazes de oferecer ao

mundo e aos brasileiros produtos competitivos e disputar a preferência deles. A

preferência do consumidor, a referência do mercado ela completa, não vou dificultar

nem encarecer para o consumidor nacional para beneficiar o produto brasileiro. Não

era nunca imaginado.

Pergunta: o senhor tem uma afirmação muito polêmica na época quando diz que os

produtos culturais devem ser equiparados ao bem econômico.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: o que eu não acho que isto tenha diminuido ou denigra, ao

lidar com o cinema como um bem econômico eu não estou dando menos importância

a ele, eu estou dizendo que este é um setor da economia como qualquer outro. Nao é

igual porque ele é mais importante pelos impactos que ele tem como portador de

inovação, de indutor de atividades econômicas em outros setores, desenvolver de

marca própria, é um setor de inovação, por isto é muito importante economicamente.

Mas o bem cultural? Eles não tem que ser viáveis economicamente, nem precisam

acabar, mas é uma outra coisa, um outro problema. Politica cultural é outra coisa, tem

folclore, cultura erudita, musica clássica, tem coisas que não tem vocação nenhuma

para ser bem de mercado. Isto não era minha responsabilidade, lidar com as

ferramentas e os mecanismos da politica cultural. Naquele momento a gente sabia que

isto era um pedaço do trabalho, não era o trabalho todo, o que me interessava era que

no âmbito da economia a gente não criasse distorções econômicas supostamente para

atender a valores não econômicos ou culturais ou nacionais ou o que for. Na época da

ditadura militar era comum chamar de segurança nacional, porque era de interesse

209

nacional. Hoje o governo adora dizer que é estratégico, para encher de subsídio.

Conosco não era assim, queremos crescer, sermos competitivos, aumentar o máximo

possivel a produção de bens e serviço com padrões de preço e qualidade.

Pergunta: naquela época os cineastas tinham um projeto industrial para o cinema

brasileiro, que previa a conversão da divida externa para a produção, mas também

pensavam em medidas protecionistas que outras industrias recebiam.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: isto não chevava nem na porta. A gente desqualificava.

Desculpe, mas nós estamos acabando com o protecionismo dos outros setores. A

substituição de importações acabou, quem beijou, beijou, que não beijou não beija

mais porque fechou o caixão. Isto foi no pós-guerra na minha opinião foi uma boa

escolha que o Brasil fez.

Pergunta: os cineastas apresentaram esta proposta?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: Sim. Na verdade eles vieram pensando, o governo não está

querendo mercado, eles não estavam se achando, eles pediram que o assunto não

fosse tratado no âmbito da cultura, esta ideia não foi do governo, esta ideia veio dos

cineastas, tratem-nos da mesma maneira como tratam os outros setores.

Pergunta: esta ideia é antiga, os cineastas querem que os assuntos sejam tratados de

forma empresarial mas sempre termina na cultura ou em áreas do Estado que não são

da Indústria e Comércio.

Luiz Paulo Vellozo Lucas: É verdade. Eu me lembro que o Itamaraty tinha uma

influência muito grande, o cinema brasileiro era mostrado, o Celso Amorim falava

muito isto. Depois eu não tive uma boa relação com o Rouanet, eu passei tudo, e

nunca mais ouvi falar e fique cuidando das Câmaras setoriais.

Pergunta: o senhor acha que a politica não foi implementada por causa do processo

politico?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: mesmo internamente, com a co-relação de forças que havia

na sociedade os grupos de interesse vao atrás do que lhes interessa. Quando Itamar

recria o Ministério da Cultura, recria todos os Ministérios, voltava tudo. O Collor

gerou muito descontentamento, mas outras avançaram. Os cineastas queriam, a

sociedade queria, havia um ambiente favorável. Algumas coisas são aproveitadas

outras não para a Lei do Audiovisual, de certa maneira o cinema volta para a esfera

cultural com alguns mecanismos de mercado, algumas ideias neste sentido.

Pergunta: então havia uma politica de cinema, um projeto de cinema por parte do

Collor?

210

Luiz Paulo Vellozo Lucas: não havia para setor nenhum! Havia uma ideia de

reconstrução, de que estavamos encerrando um ciclo e comecando um novo

momento. A hiperinflação fez a sua parte no desmonte, mas não tinha nada claro, eu

acho que a decisão do governo de criar esta comissão naquele momento, a interação

do governo com esta comissão, com os cineastas, foi uma boa resposta.

Pergunta: havia legitimidade politica dentro do governo para esta comissão?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: foi visto como um gol, com as pessoas do setor felizes com

o resultado, com esperanças sobre o futuro.

Pergunta: os cineastas procuravam o senhor e o legislativo para tratar de assuntos do

cinema?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: o Ipojuca também participava da comissão com seu

representante de cinema. O cineasta Miguel Borges. A comissão era do governo, era

interna, os cineastas eram ouvidos, a gente consultava, eles pediam as reuniões, a

gente ia ouvir, quando a gente terminou o relatório, a gente assinou. A ministra Zélia

concordou com tudo, inclusive com os incentivos fiscais, ai veio o Rouanet e

terminou.

Pergunta: havia um debate sobre o que fazer com a Embrafilme, com reforma ou sua

privatização?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: eu não participei disso, isto foi no governo de transição.

Quando eu cheguei no governo, depois da posse.

Pergunta: o que o senhor achava desta ideia?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: ela tinha que ser extinta mesmo, podia ser recriada uma

outra coisa qualquer, acho que muito mais como mecanismo de indução, um fundo de

private equity, se eu quisesse hoje incentivar a industria, eu criaria um tipo de fundo

neste sentido para produções audiovisuais. O BNDES administra mais de 30 fundos

deste tipo, o banco estatal pode criar um fundo deste tipo e com tratamento fiscal,

acho melhor isto do que o imposto de renda devido, que receita tributária na veia.

Pergunta: a Lei do Audiovisual vai um pouco neste caminho, não?

Luiz Paulo Vellozo Lucas: se o investidor é remunerado vai ter nova sequência de

outros produtos. Em termos de eficácia da alavancagem da atividade vai acontecer

quando formos grandes produtores de cinema, competitivos, vamos ter o market

share. Veja o Netflix, veja como mudou completamente o mercado.

211

Entrevista com Miguel Faria Jr. Cineasta e produtor cinematográfico; Secretário

para o desenvolvimento do Audiovisual (1993-1995). Entrevista concedida ao autor

em 11/11/2012, no Rio de Janeiro.

Pergunta: O senhor tem vários filmes produzidos pela Embrafilme, como “Stelinha”,

“Para viver um grande amor”. Como era a sua relação com a empresa?

Miguel Faria Jr.: Com a Embrafilme fiz um filme chamado Na Ponta da Faca”, “Para

Viver um grande amor” e “Stelinha”. Eu participei muito da criação da Embrafilme,

ali que foi - as datas eu não lembro - 1975. Não era acionista da empresa. Esta historia

da Embrafilme começou com o Instituto Nacional de Cinema e a lei de

obrigatoriedade para se fazer filme no Brasil, este modelo antes da Embrafilme era o

INC, uma regulação muito incipiente, mas com esta lei de obrigatoriedade criava o

mercado compulsório aonde havia poucas distribuidoras privadas, basicamente a

Difilm que reunia o pessoal do cinema novo, com o Barreto, em São Paulo a

Cinedistri, do Massaini, a Ipanema Filmes do Roberto Farias. Era esta a situação e

financiamento privado. Um dia o Reis Velloso, que era ministro do Planejamento, por

coincidência encontrou a mim e o Nelson Pereira dos Santos em Paris e pediu para

explicar como era a situação do cinema brasileiro. Então foi ele quem bolou este

esquema de fazer um monopólio de distribuição de filme brasileiro que pudesse

enfrentar as distribuidoras americanas. Esta empresa teria um aporte de recursos do

governo e através de avanços de distribuição dava para fazer filme. Era isto, com

Roberto Farias, Luíz Carlos Barreto. Mas na realidade a Embrafilme sempre

dependeu de dinheiro todo ano. Não era viável economicamente então vivia de

dotação orçamentária. E acredito eu que o final da Embrafilme se deve basicamente a

duas coisas: primeiro a falta de critério objetivo para a escolha de filmes, problema

que existe até hoje no financiamento estatal. No sistema capitalista têm o lucro, os

americanos escolhem o que vai dar dinheiro, no Estado não. Isto começou gerar brigar

e por pressão de lobby americano na época começaram a fuxicar e começou uma

campanha de denúncias na imprensa paulista, especialmente influenciadas por lobby

americano e pela própria falência do modelo e a dependência de recursos. Até que a

historia que você conhece veio o Collor e acabou. Mas estava muito ruim, as dotações

foram diminuindo, as brigas, foram aparecendo muita mais gente, cineastas, o troço

foi agravando. O “Stelinha” foi o último, um dos três últimos filmes feito pela

Embrafilme. Quando a Embrafilme fechou o filme tinha acabado de ficar pronto e ela

não fez a distribuição. Ficou três dias em cartaz porque o sistema tinha sido

212

desmontado. Fui a vitima do Collor e nestes dois anos o hábito de se ver cinema

brasileiro foi para o espaço porque não se lançava mais filmes e eu pessoalmente

fiquei numa situação de ter outra profissão, o que eu ia fazer, se eu ia fazer filmes de

publicidade. Mas o Collor o próprio Collor tentou fazer uma lei de mercado com

incentivo fiscal que começou a ser discutido. Esta lei começou a ser coordenada por

Vellozo Lucas, um cara do Espirito Santo. O Ipojuca saiu, puseram o Rouanet e

começou a coordenar esta possibilidade. O Collor saiu e assumiu o Itamar já não se

fazia filmes há dois anos e a gente montou uma associação de cineastas, eu era o

presidente, para tentar unir a classe, que esta altura estava muito desunida, para tentar

ver o que fazia para o cinema voltar a existir. Esta associação era a RAIS. A partir da

RAIS e com o Itamar e o Houaiss começou a se bolar esta possibilidade de incentivo.

Isto foram meses, conversas técnicas, elaboradas, Receita Federal, Ministério da

Fazenda, até que chegou a este modelo de lei. Eu participei diretamente, eu estava

trabalhando nisto. Eu e muita gente.

Pergunta: O projeto do Vellozo Lucas quando o Ipojuca é demitido continua no

congresso. E o senhor e o Luíz Carlos Barreto tentam reformular ele, ainda com o

Collor, no Congresso.

Miguel Faria Jr.: Minha participação eu não lembro. Talvez. Eu ia ao Congresso.

Pergunta: Como era a relação com o Congresso, os cineastas participavam, tinha

interlocução com os deputados?

Na época do Collor eu não me dava com o Ipojuca então eu não participei. Pode ser

que eu tenha ido ao Congresso com o Barreto.

Pergunta: Há declarações suas com o Barreto no Congresso em 1991, negociando o

projeto 205.

Miguel Faria Jr.: É possível. Eu não lembro direito, posso ter ido ao Congresso, mas

com o Executivo não.

Pergunta: Este projeto foi o embrião da lei do audiovisual?

Miguel Faria Jr.: Sim.

Pergunta: Ele era focado nos incentivos fiscais, o Collor vetou e o Rouanet depois

tentou recuperar.

Miguel Faria Jr.: Eu me lembro do Rouanet, então foi Collor.

Pergunta: O projeto chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados em 1991 e no

mês seguinte o Collor veta alguns artigos e a lei fica incompleta.

Miguel Faria Jr.: Era isto. Me lembro de tentar aprovar a lei no Congresso.

213

Pergunta: O Congresso era favorável às reivindicações? Porque até então os últimos

anos da Embrafilme foram difíceis, a imprensa era muito crítica. Como era no

Congresso, havia uma boa relação entre cineastas e deputados?

Miguel Faria Jr.: Evidentemente que sim com alguns deputados, o próprio Fernando

Henrique Cardoso, o Aloísio Mercadante, Álvaro Valle, tinha alguns, mas nossa

relação era com poucos.

Pergunta: Quando se começou a pensar uma lei para o cinema ela era pautada em

incentivos fiscais. Era isto o que vocês pensavam, não havia outras possibilidades,

além dos incentivos fiscais, não havia outro modelo?

Miguel Faria Jr.: Primeiro lugar a Embrafilme virou palavrão. O cinema brasileiro

não poderia viver sem dinheiro do Estado, falar em financiamento direto para o

cinema brasileiro era palavrão. Uma das coisas que fez a gente procurar outras opções

era isto. Não era mais possível o financiamento direto. Em segundo lugar a classe

estava traumatizada neste processo de escolha de filmes, que fez todo mundo brigar,

esta coisa do investimento direto sem critérios específicos, o que tem hoje de novo.

Então como é que se escapa disto? Por várias razões, como é que poderia, o cinema

nesta época era feito por muitos poucos produtores e a grande maioria eram cineastas

que queriam fazer filmes e eram obrigados a produzir. Poucos produtores e

empresários no sentido capitalista. Uma das coisas era isto, como é que se atrai, além

do problema do Estado, investimentos empresarial e capitalista para o cinema que

precisa de subsidio, então foi neste sentido que a gente chegou nesta lei. Com esta lei,

na época, eu imaginava que fossem surgir produtores de cinema, interessados em

produzir. Porque tinha-se um subsidio de 100% e na minha cabeça iria aparecer

empresários mas até hoje não aparece. Na época uma das razões era esta. Segundo,

tinha uma coisa que era muita discutida era o incentivo dado aos americanos, da

remessa de lucros, isto até hoje é muito discutido. Na época eu fui completamente a

favor. Porque achava que com este incentivo as distribuidoras americanas iam lançar

filmes brasileiros e iam entrar no mercado. Então estas e outras razões.

Pergunta: Hoje tem-se a percepção de que a Lei do Audiovisual contempla a produção

e não a distribuição. Quando foi feita a Lei não se pensou nisto?

Miguel Faria Jr.: Estava no horizonte sim, mas com a consciência de que só se podia

entrar em qualquer tipo de avanço de negociar filmes se tivesse os filmes. Este

modelo desenhado no papel a gente não tinha nenhuma força ou possibilidade de

fazer. Tinha uma lei de obrigatoriedade que continuava e precisava de dinheiro que a

214

partir dos filmes e baseado na lei, por exemplo, as distribuidoras americanas iam ficar

donas de filmes brasileiros, elas iam distribuir, então foi uma primeira etapa. Isto foi

sempre consciente, não havia possibilidade ideal de montar esquema do cinema

brasileiro todo, como agora não tem. Não havia clima ou possibilidade. Até hoje não

existe, está igual.

Pergunta: Há filmes produzidos e distribuidos pelas grandes companhias americanas

e outros, a grande maioria, que tem dificuldades na distribuição.

Miguel Faria Jr.: Estes filmes são produzidos pelo artigo 3o da Lei e bancados pelas

majors. O que tem até hoje foi pensado na época priorizando a produção através deste

tipo de melhoria. Eu acho, como defendo estas leis até hoje, como vive o cinema

brasileiro. Temos incentivos que fazem uma porção de filmes e uma tentativa de criar

um novo fundo de investimento direto do Estado, a volta do outro modelo,

convivendo juntos. Eu acho ótimo, mas não tem nada de novo.

Pergunta: Não se avançou na distribuição e comercialização. Mas mudou muito a

distribuição com os cinemas estilo “multiplex” e o próprio cinema americano. Mas o

cinema brasileiro não criou nenhuma alternativa a isto, a não ser pensar a produção e

fazer filmes.

Miguel Faria Jr.: É o que temos até hoje mas eu defendo a lei. Hoje em dia, nestes

vintes anos da lei, nunca vi se produzir tanto filme, tão diversificado e o mercado

querendo filmes brasileiros. O problema da garganta realmente está radical mas no

mundo inteiro está assim. De noventa filmes que o cinema brasileiro faz oito dão

dinheiro. Este é o modelo do negócio, pode estar mais radical mas o princípio é assim.

Este modelo eu defendo. A minha pergunta é porque o capital brasileiro não se

interessou em produzir cinema com 100% de incentivo, esta é uma pergunta. Aí eu

acho que tem questões mais complexas. Jovens que querem ser produtores de cinema,

ao invés de abrir uma fabrica de manteiga porque tinha dinheiro sem risco para tanto.

Então é uma situação que não ocorreu, o que ocorreu foi um aumento brutal das

pessoas querendo dirigir filmes.

Pergunta: Isto não seria uma herança dos anos 1960, ou seja, todo mundo quer ser

diretor e autor porque produtor não dá status?

Miguel Faria Jr.: Não sei, pode ser um pouco mas ao mesmo tempo o cara que tem

desejo e talento para ser diretor de cinema é pouco provável que ele queira ser

produtor. Agora é raro fazer as duas coisas. Uma das coisas que o desenho da lei

idealizava era que pudesse criar produtores de cinema e as pessoas que iam fazer

215

filmes, diretores, eletricistas, e então começasse a separar e que não fosse aquele

modelo do produtor francês autoral independente.

Miguel Faria Jr.: Mas isto não é uma característica das políticas de cinema no Brasil,

do apoio ao produtor independente?

Miguel Faria Jr.: Sim. Na época esta discussão foi muito grande, até no Congresso.

Por que o Estado vai financiar a TV Globo para fazer filmes? Então sempre há uma

contradição, sempre era vendido pelo cinema, pelo pessoal do cinema no Congresso,

as leis eram feitas, sempre houve um discurso dúbio, complicado, de que este dinheiro

era para a cultura ou era para a indústria. Esta confusão tem até hoje, isto é complexo.

Eu mesmo não sei resolver isto. Tinha horas que era conveniente usar o discurso da

cultura, tinha horas o da indústria era o mais conveniente. Até hoje isto é utilizado, é

um nó. Eu não sei como se resolve. E também isto foi limitado corporativamente com

o medo do avanço das televisões sobre o incentivo fiscal. Esta discussão tinha um

limite na época porque tinha que se fazer, bom então não pode a Globo e esta

discussão foi muito aberta, não ficou entre nós, porque na hora que entrou o Álvaro

Valle e os partidos a discussão ficou entre eles. A lei era muito mais absurda no

começo, o filme só podia ter maquiador brasileiro. Quem tirou isto foi o Congresso. A

lei era muito corporativa e também era a formação da gente. Eu me lembro deste dia o

Álvaro Valle com a gente, porque que só pode maquiador brasileiro, se for fazer um

filme no Chile tem que levar o maquiador brasileiro? Era a formação nossa.

Pergunta: Outro ponto polémico com a televisão: porque nunca se conseguiu incluir a

televisão neste modelo como coprodutora ou na compra de filmes?

Miguel Faria Jr: Vamos falar disto mais tarde se não eu me perco nisto. Eu estou

falando a minha participação primeiro neste modelo. Eu me lembro que com o Itamar,

com o Luiz Roberto Nascimento Silva, que me chamou para ir lá e trabalhei lá como

Secretário do audiovisual para a lei sair e regulamentar e fiquei este tempo dedicado a

isto.

Pergunta: Já havia um esboço da lei que era o anteprojeto do deputado Álvaro Valle?

Miguel Faria Jr.: Sim, depois o Houaiss trabalhou nela. A regulamentação foi feita

pelo Itamar. A lei do audiovisual é o resultado destes projetos todos. No governo

Itamar, quando eu estava lá, mais que regulamentar a lei o governo fez foi priorizar a

produção com o Prêmio Resgate. Estas duas coisas colocaram o cinema brasileiro em

movimento. No meio dos anos 1990 para o final já havia muitos filmes e retomou

uma coisa que estava morta. Foi o ideal? Não, mas foi o possível, o vislumbrado no

216

momento. Eu acho que foi o que fez a Retomada. Começou com “Carlota Joaquina”,

com “Orfeu” do Cacá, então os empresários começaram a procurar. Eu me lembro

que eu fiz o “Xangô” para a Skylight. Era um filme muito caro e que me chamaram

para dirigir. “Canudos”, por exemplo, que todo mundo queria, não era as empresas

estatais mas as empresas privadas. Com o “Xangô” teve o artigo 3o. E também muito

dinheiro privado, teve um interesse que depois morreu.

Pergunta: Este declínio no investimento privado é devido ao caso “Chatô”, do

“Guarani” e problemas específicos na finalização de filmes brasileiros? As empresas

colocaram o pé no freio?

Miguel Faria Jr.: Pode ter assustado, mas acho que não é só isto. Em toda atividade

isto existe, o cara que rouba, não faz. A transição com o governo Lula também

atrapalhou porque eles não queriam a lei, o pessoal que está aí, noventa por cento

trabalham para restaurar o fundo, eu não acho ruim. Eu me lembro na época do

Fernando Henrique Cardoso no último momento dele em criar a Ancine havia uma

sinalização para os empresários que era para fazer, depois começou o contrário, a

burocracia aumentou. A Ancine parece que se transformou numa Embrafilme sem a

razão primeira da Embrafilme que era distribuir. A Embrafilme concentrava a

distribuição então ela podia agir como uma major. Mas a Embrafilme em termos de

mercado, alguns filmes davam muito dinheiro e com isto empurrava 20 filmes

brasileiros na cola. Isto não temos mais. Por outro lado hoje as circunstâncias de

distribuição e exibição mudaram muito. E hoje todo ano temos um filme, tipo

“Carandiru”, que batem com filmes produzidos com 150 milhões de dólares. Eu acho

uma façanha e independente da lei de obrigatoriedade. “Tropa de Elite” tem a

exibição que você quiser, pelo filme e não pela lei de obrigatoriedade. Isto é uma

coisa nova. Hoje em dia tem problemas que ninguém está encarando: o Brasil pode

produzir 100 filmes, 40 documentários?

Pergunta: Mas este não seria o momento dos cineastas criarem mecanismos

alternativos de exibição?

Miguel Faria Jr.: Hoje tem a produção financiada pelo Estado porque a lei é

disfarçada, oitenta por cento é Petrobrás e não está funcionando como uma lei de

incentivo. Como é que se diz não? É muito delicado, que tipo de filme fazer, o Estado

não pode dizer isto. Quando eu trabalhei em Brasília, eu achava e até hoje acho que o

cinema não cabe dentro do Ministério da Cultura.

217

Miguel Faria Jr.: Esta é uma antiga disputa dentro do cinema brasileiro, em qual

segmento do Estado o cinema deve ficar.

Miguel Faria Jr.: Desde que sai de lá eu achava que devia dividir em três ministérios.

A parte cultural – filme experimental, primeiro filme, etc, devia ficar na Cultura, vai

para um edital porque não tem jeito, está alijado do mercado. Filme que tem alguma

possibilidade de público querer ver é Ministério da Industria e Comercio. É o sistema,

distribuição, exibição. E o Ministério das Comunicações vai ser a ligação com as

televisões. Então o cinema está na horizontal com as três áreas. Se colocar na Cultura

é mentira porque nem o ministro e ninguém entende de indústria, porque a formação

não é esta. A formação é basicamente do mecenato, isto era assim e isto nunca se

resolveu.

Pergunta: Eu lembro de um projeto do Eduardo Escorel quando diretor de operações

da Embrafilme em 1986 que tentava fazer esta divisão. E na gestão do Calil outros

projetos também tentaram separar.

Miguel Faria Jr.: Eu acho que tem que ter as duas coisas.

Pergunta: O conflito entre setores comercial e cultural do cinema brasileiro é antiga,

vem desde os tempos do INC.

Miguel Faria Jr.: Eu acho esta discussão hoje em dia está completamente

ultrapassada. Eu não sei o que é filme cultural, sei que existe filme bom e filme ruim.

E na produção de cinema o que dá certo normalmente é a originalidade, a invenção,

coisas que o publico nunca viu. Como se sabe o que é cultural ou comercial? O que

quer dizer isto? Cinema cultural porque trata de temas nobres? Pode se chamar de

cinema experimental, enquanto ensaio.

Pergunta: Mas eu chamo cinema cultural e cinema comercial enquanto modelo de

produção.

Miguel Faria Jr.: É isto. Um modelo que desse chance a mim autor. Mas tem que ser

um modelo radical que o cinema brasileiro conseguiu. Tem um modelo no Ministério

da Cultura com uma carteira e você tem as leis funcionando. O meu próximo projeto,

eu autor ou eu produtor, se eu colocar este projeto nas majors, nas companhias

privadas ninguém quer, então eu vou para o Ministério da Cultura. Então quem tem

que ser uma coisa radical e eu não sou produtor. Direitos patrimoniais são do Minc.

Eu vou no Minc, faço um filme, ganho um salário. Mas é uma coisa que nunca

conseguiu se resolver. As tentativas disso, o Barreto vai fazer um filme, ele vai

218

colocar nos dois polos, você vai dizer que não pode? Como é que separa as duas

coisas? É muito difícil, eu não tenho clareza.

Pergunta: A Lei do Audiovisual foi desenhada para dar um caráter empresarial ao

cinema brasileiro, de auto-sustentabilidade.

Miguel Faria Jr.: A auto-sustentabilidade não é, porque o congresso aprovou cem por

cento. Vamos pensar no mercado de automóveis, a indústria consegue cem por cento

e quando começa a funcionar, em 04 anos este incentivo cai para oitenta por cento e

assim sucessivamente. E até acabar o incentivo. Então a ideia do incentivo é esta, ter

um prazo. Isto não é dito, não é pensado, a lei poderia ter isto, ter prazo. Ninguém

montou a indústria de carros em dez anos de incentivos. A indústria brasileira é muita

atada a incentivos, 70% das atividades são incentivadas quando se quer montar um

fábrica. A partir do governo Lula isto começou a ser considerado dinheiro publico, e

se isto é considerado dinheiro público você melou a lei. Por que isto não é dinheiro

público, isto é uma discussão que juridicamente não se resolve e é uma discussão

política e ideológica. Por um simples detalhe: a Constituição separa isto, quando você

tem renúncia, você vai pagar o seu imposto de renda e o governo diz para você: se

você não quiser você não me paga e você vai e monta o seu negócio com incentivo.

Isto é o espirito da lei. Então este dinheiro não entrou. O governo abre mão de receber

então não é dinheiro público. Poderia ser público. Isto hoje é considerado dinheiro

público pelo governo, pela imprensa e pelos próprios cineastas.

Pergunta: Você acha que desvirtuou o sentido original da Lei do Audiovisual?

Miguel Faria Jr.: Sim. E uma das razões porque o empresariado não entra é porque

considera-se dinheiro público. E em outras áreas da economia brasileira está todo

mundo usando mas no cinema brasileiro não. Do jeito que está constituído não. Eu

tenho obrigações com o governo porque estou deixando de pagar o imposto de renda?

As obrigações devem ser de comprovar que você realizou aquele projeto mas não

como dinheiro publico. Se eu faço um filme com este mecanismo você tem a Ancine

controlando até a primeira cópia. Por que este dinheiro público, até que estágio é isto?

É uma confusão. Tem um produtor, pega o dinheiro de uma major com o artigo 3o., se

o projeto morrer, parar no meio, de quem é o dinheiro? Não se sabe. Ou o artigo 1o.

Compra ação em bolsa, ele investiu, aquela ação é dele, se o produtor não levar a cabo

o filme, aquela ação é dele, porque é do governo? O governo tá controlando a ação

pelo empresário. Então são detalhes que vão criando uma série de distorções, isto não

é meu, isto está juridicamente muito mal pensado.

219

Pergunta: Quando a lei foi pensada no começo dos anos 1990 tinha clareza deste

formato?

Miguel Faria Jr.: Eu acho que sim.

Pergunta: A lei é bem enxuta e uma critica que se fez inicialmente é que ela seria um

modelo para todos, seja para o estreante seja para o Barreto e portanto não seria justa.

Miguel Faria Jr.: Se não é dinheiro publico, se existe um mercado o sujeito vai

escolher o que quiser. Não tem balcão.

Pergunta: Mas o Barreto sairia na frente e o estreante não. Pensaram em alguma

compensação?

Miguel Faria Jr.: Esta lei tinha o espirito de jogar o cinema dentro do capitalismo de

mercado.

Pergunta: Então ela atenderia os produtores já estabelecidos?

Miguel Faria Jr.: Como tudo, como tudo na vida. Claro que um ganha mais dinheiro

que o outro. Isto é o normal, como a Elizabeth Taylor vale mais do que uma atriz que

não fez nada. Este era o espírito. E o Minc faz o cinema de autor, de ensaio, de

estreante. Qualquer um de nós pode trabalhar com as duas pernas e isto nunca

conseguiu se desenhar. Chegou uma hora que foi interpretada como dinheiro publico

e então vamos logo fazer um fundo. Ai criou com esta lei, tem mais dinheiro,

inventou-se este tributo sobre a publicidade. Ai juntou e fez uma Embrafilme sem

distribuição. Fez um Fundo de fomento direto, eu acho legal trabalhar com as duas

pernas, mas não pode ir brigando com uma e outra. Se é dinheiro público este

esquema não dá certo porque o governo tem que fazer os filmes da cultura, o que ele

quiser. Quem quiser vai lá e entra. Mas ele não pode sabotar a lei, querer abarcar o

filme do Barreto por exemplo. Esta separação nunca se conseguiu fazer e é muito

complicado, depende da visão de quem está no governo. E a produção de filmes

depende: se você faz no governo ela vai ser determinada pelo governo, para mim não

existe esta liberalidade. Quem ganha? Quem escolhe? O cineasta quer ser escolhido e

vai fazer o projeto de que o cara do governo mais gosta. A Embrafilme tem uma série

de filme histórico ou literário. Porque no mundo todo hoje só existe o filme de grande

risco somente nas franjas de uma indústria porque senão não tem.

Pergunta: O anteprojeto do Valle tinha uma proposta de exibição de filmes brasileiros

na TV. Na Lei do Audiovisual este tema não entra.

Miguel Faria Jr.: Eu participei do começo da Embrafilme nestas conversas com o

Veloso. Ele fez um estudo tentando ver que modelo era, chegou-se a fazer um projeto

220

de montagem de cinemas populares no Brasil. Um projeto bem pensado mas o custo

era muito alto e a viabilidade pequena. Já se começava a viver naquela época o que se

tem hoje, o preço do ingresso é caro. Não se consegue manter um cinema em Ipanema

só com filme brasileiro. Naquela época achou-se mais interessante ter uma

distribuidora forte, e os cinemas fossem uma outra etapa. Mas a realidade é que os

cinemas foram fechando. Acho o projeto de cinemas populares muito interessante,

mas está longe de resolver o problema da economia do cinema brasileiro. Estamos

vivendo um momento em que nunca vivemos: nunca se teve tanto dinheiro, tem os

frangalhos da lei do audiovisual e tem o dinheiro do Estado. Desde o começo o

cinema se dividiu. Tem um ponto que com clareza hoje além da renúncia ser

considerada dinheiro publico a lei aprova projeto a projeto. Desde aquela época

alguns economistas alertavam que iria acontecer o que está acontecendo. Não ia

fortalecer produtora e nem ia atrair produtor. Porque dependia de um projeto, eles

queriam que fossem aprovados cartelas de projeto. Isto até hoje é impossível passar

pela classe cinematográfica. Uma coisa por um lado seria assumir um modelo

capitalista e por outro o modelo de produção estatal, eles teriam que conviver, a área

cultural e a área comercial.

Pergunta: A lei do audiovisual tem um sentido de urgência, de produzir filmes de

imediato mas não contempla estas questões. Por exemplo, beneficiar uma cartela de

filmes. Então quer dar uma visão empresarial mas contempla o cinema filme a filme,

por projeto.

Miguel Faria Jr.: É a visão da cultura. São duas contradições que se vive hoje, têm a

renúncia fiscal que é considerada dinheiro público e tem esta coisa que reduz a obra

por obra.

Pergunta: Este caráter contraditório vai ser dado então ao longo do funcionamento da

lei ou foi desenhado com este perfil específico?

Miguel Faria Jr.: Tem os choques, esta coisa da cartela de filmes perdeu no

Congresso, perdeu no Minc. Era um problema muito técnico, na prática foi assim. No

que diz respeito a presença da televisão, na França, por exemplo, tem modelos que

foram se adaptando com o tempo. Aqui se tem uma televisão muito poderosa. Que

não quer se obrigar filme por cota, por príncipio, por ideologia, eles são contra a

reserva de mercado e eles são fortes. A relação no Brasil com a televisão vai ser

construída de outra forma, não por meio do Estado.

221

Pergunta: Quando a Lei do Audiovisual foi planejada a questão da televisão nem

entrou?

Miguel Faria Jr.: Não dava para mexer. Foi dito e na própria Ancine assinada no final

do governo FHC ou tira a televisão ou não vou assinar. Não vai passar no Congresso,

então tira a televisão. Na Europa eles tem uma televisão estatal forte. Mas aqui não

tem poder político para isto, para impor uma cota para a televisão. E agora com esta

administração da Ancine, resolveu assumir a Ancinav no peito, de surpresa e muita

gente reclamou. Não é assim, nos vamos perder e ao mesmo tempo nós estávamos

construindo uma relação com a TV Globo. Nesta época a Globo tinha chamado

alguns produtores - eu não fui - no sentido de criar esta lei que foi aprovada agora.

Eles tinham interesse nisto, no cabo eles topavam. Quando eles começaram a aceitar,

o governo chegou com a proposta da Ancinav.

Miguel Faria Jr.: Qual a sua opinião sobre este histórico, sobre este aparte entre

cinema e televisão no Brasil?

Miguel Faria Jr.: O modelo da TV Globo, eles passam filme, das distribuidoras

americanas – para passar um filme forte tinham que comprar um pacote. Isto supre o

horário por um preço que os americanos podem vender e aqui nós não conseguimos.

Mas isto está acontecendo, os filmes que eles querem eles compram. Mas de obrigar,

a família Marinho não aceita. E na época da ditadura nem pensar em falar na

associação com a televisão.

Pergunta: O senhor acredita que haja pontos de ligação entre a Embrafilme e a Lei do

Audiovisual?

Miguel Faria Jr.: Acho que têm. A Embrafilme e a Lei do Audiovisual, o que junta,

no fundo, é o dinheiro do governo. Não tem mais a distribuição, isto é fundamental.

Mas isto por exemplo, o José Padilha foi distribuir sozinho o filme dele, o fato de se

ter uma distribuidora encarando este cartel de filmes. “Tropa de Elite”, “Carlota

Joaquina”, a distribuição é dos autores, e mudou com a questão digital. Têm

continuidade porque hoje também não se financia a empresa mas o projeto. Não se

tem garantia para se estabelecer mas tem garantias para fazer um filme.

Pergunta: Na cultura brasileira os cineastas são um grupo com interlocução forte com

o governo. Como o senhor avalia esta relação com o Estado nestes anos todos?

Miguel Faria Jr.: Muito chato. Eu sou brasileiro e no meu país o mercado não é meu.

Então o Estado começou para intermediar esta relação e você depende disto, porque

sem subsídio não tem cinema brasileiro. Eu acho que a lei do audiovisual remeteria a

222

isto. Se garantisse prazo razoável, o espirito que é dado a outras indústrias para

diminuir o incentivo a relação com o Estado era outra. Agora como o dinheiro é

publico você explica estes funcionários todos da Ancine. A lei de incentivo previa

outra coisa e se você quiser filme autoral sem ligar para o risco tem que ir ao Minc.

Não tem nada a ver com a indústria.

Pergunta: Não seria mais fácil na época da lei do audiovisual justificar apenas pelo

lado cultural?

Miguel Faria Jr.: Mas não é um produto cultural, é também um produto comercial.

Isto divide sempre, se é para o lado cultural não vai haver produtora, ninguém vai

ganhar dinheiro com isto. O que eu proponho são as duas coisas: quem quiser vai

viver como artista ou como escritor, vai ganhar por direito autoral, descolar uma

grana para pagar o teu aluguel. Por exemplo, no caso do “Tropa de Elite”, ninguém

queria financiar porque o tema era ligado a favela, violência. Ai ele vai até o Minc e

recebe o dinheiro. De quem é este filme? Acho que tem que jogar para o produtor o

risco. Eu defendo e é fundamental para o cinema brasileiro a questão do direito

autoral para o diretor. Ele não tem que ser produtor. Se eu fizer um filme, tem que ser

como um livro, uma música. Diretor de cinema brasileiro só tem na lei. Isto é um

modelo, a lei de renúncia fiscal para o risco, um balcão para o cineasta que faça o

filme cultural. A divisão só se caracteriza para o produtor: se ele quiser fazer o filme o

Estado é o produtor. Ele faz o que quiser, igual ao Papa. Pinta a Capela Sistina, quem

gosta faz isso. Outro é para quem quer investir e precisa para a lei avançar descosturar

este negócio do filme a filme e ter direito autoral para o diretor viver disso, não

precisar ser produtor. Nunca se conseguiu sair da área cultural, por exemplo.

Entrevista com Sara Silveira. Produtora. Entrevista concedida ao autor em

12/12/2012 na Dezenove Produções em São Paulo.

Pergunta: A Dezenove foi fundada em 1991, entre o fim da Embrafilme e a gestação

das novas leis de apoio. Como foi este processo?

Sara Silveira: Viviamos no desespero mas decidimos abrir a Dezenove para fazer os

filmes do Carlão e também neste meio do caminho eu falei para ele: vamos fazer os

nossos filmes mas também podemos fazer os filmes destes novos talentos que estão

aí. A gente estava muito decepcionado com o cinema, sofremos muito para juntar o

dinheiro do “Alma Corsária” que a gente estava fazendo e que resolvemos fazer

223

porque não tinha nada, por que o Collor desmanchou tudo, toda a estrutura

cinematográfica que tinha na época. Mas mesmo assim nós fundamos a empresa para

fazermos os nossos projetos e com isso conseguimos fazer o filme com o dinheiro do

Pólo de Cinema de Brasília, com o dinheiro da Marilena Chauí, da Secretaria da

Cultura de São Paulo e um empréstimo do FINEP que terminei de pagar três anos

atrás. Depois a Dezenove aos poucos foi deslanchando, com a saída do Collor e com o

advento da Lei em 1993. Só que ninguém entendia esta lei, nós ficamos um ano

tentando entender a lei, como era o processo até a estabilização das empresas para

entender a lei. Como era imposto de renda era bem complicado e no Brasil imposto de

renda é sempre um bicho de sete cabeças. A gente conseguiu desenvolver trabalhos,

depois fomos fazendo mais filmes. E a Dezenove acabou se estabelecendo e temos 21

anos de produtora e com 23, 24, 25 filmes. Mas foi um período muito difícil para todo

mundo, foi muito difícil fazer o “Alma Corsária”, filme de 200 mil dólares na época,

era muito barato mas o Carlão tinha quatro ou cinco funções, eu tinha mais umas três,

eu era diretora de produção, produtora, a Maria era a produtora executiva, o Carlão

era roteirista, diretor, fotográfo, fez toda a escolha do cast. Com o esforço de todo

mundo conseguimos fazer. Mas foi uma época muito chata até que a lei começasse a

funcionar. Depois que ela deslanchou melhorou mas o Brasil não tem condições para

viver de bilheteria. Por que a distribuição é um buraco negro.

Pergunta: A senhora participou das discussões da Lei, entre 1991 a 1993, que

envolvia um grupo de cineastas do Rio, como o Barreto, o Miguel Faria Jr.?

Sara Silveira: Não participei. Naquele momento foi uma reação ao nada que ficou e os

cineastas como o Barreto, que é o produtor mais importante deste país com os 70

filmes que fez, são pessoas fortes e que na época podiam liderar isto. Os Congressos

de Cinema, que foram os movimentos de reconstrução do cinema brasileiro depois

que o maluco tirou todas as coisas, foi ali e foram as pessoas mais fortes, como era

muito centrado, tinha o Barreto. Eu não me lembro do grupo todo, eu estava

começando a minha carreira, eu era técnica, eu fiz mais de 100 filmes. Como

assistente de produção, diretora de produção e depois me tornei produtora com Carlão

em 1991.

Pergunta: A questão do Rio, até recentemente as politicas de cinema eram feitas pelo

grupo do Rio, pela geração do Cinema Novo ou a geração imediatamente seguinte.

Por que São Paulo não tem apreço pela politica de cinema e porque os novos cineastas

paulistas não tem interesse na questão das politicas?

224

Sara Silveira: O Rio tradicionalmente encampou a questão do cinema brasileiro, até

mesmo antes de Collor. Lá estava centrada uma maior quantidade de produções e São

Paulo era mais tímida neste ritmo, o Rio produzia mais, tem o cinema novo, tem

Glauber, tem uma concentração muito maior de produções e cineastas interessados, o

Rio era um núcleo cinematográfico, aliás, é um núcleo e um pólo na política de

cinema brasileiro. Eu posso falar: eu começo a minha carreira em 1983, 1984, como

técnica, vou firmando durante sete ou oito anos como técnica, até me transformar

como produtora com a Lei do Audiovisual. Esta lei vem criar um número muito maior

de produtoras. Eu Sara Silveira, sou fruto da Lei do Audiovisual. Eu consegui me

estabelecer como produtora com a Lei do Audiovisual. Assim como que eu, que

estou em São Paulo estes anos todos, houve um movimento maior em São Paulo com

a lei de fomento ao cinema, eu mesmo filmei muito, fiz vários filmes, nos

estabelecemos, podemos dizer que hoje temos uma voz um pouco maior. Mas o Rio

ainda é o comando do cinema brasileiro porque lá estão as produtoras mais antigas e

tradicionais e isto sem eliminar as de São Paulo – Raiz, Anibal Massaini – mas a

politica era centrada no Rio de Janeiro. A capital do Brasil era o Rio, ali tinha uma

concentração muito grande tanto do funcionalismo público como de ideias criativas,

pelo desenvolvimento maior das produções artísticas. Embora São Paulo seja um

grande pólo financeiro acho que teve maiores dificuldades talvez com esta espécie de

centralização do Rio em avançar nas políticas cinematográficas mais fervorosamente

como o Rio de Janeiro agiu e o Rio tinha vozes fortes, fortíssimas, Barretão e outros

produtores, Cacá, Nelson, Glauber antes, tinha um núcleo produtivo maior, um

pensamento maior sobre a politica cinematográfica. Eu acho que São Paulo sempre

foi mais tímida nesta política cinematográfica e vem se tornar mais presente com a

Lei do Audiovisual. Eu que comecei a trabalhar no ano de 1983, quando faço o meu

primeiro filme eu tinha 33 anos de idade e quando eu monto a minha produtora eu

tenho 40 anos de idade. Hoje eu tenho 66 anos e quase 25 filmes, veja o que a Lei fez.

Hoje existe a Agência, está aberta, existe as normativas, que são abertas para todos

darem a opinião. Hoje a classe se fortaleceu enormemente. E o Rio é o comandante

ainda e eu não falo isso de mágoa embora haja rivalidade entre os dois estados. Por

que eu compreendo a participação do Rio e seu histórico na produção, mas eu não

estou eliminando o Sergio Luis Person, filmes fantásticos realizados em São Paulo. Se

você pensar em filmes brasileiros eu vou com “Vidas Secas”, do Rio e também “São

Paulo Sociedade Anônima”, que é de São Paulo. Eu acho que politicamente São Paulo

225

mesmo com a tradição nunca foi tão forte nesta participação. Eu não posso afirmar

com categoria porque meu passado cinematográfico vem de 1983 para cá, que é um

momento de declínio que vem ser coroado com as ações absurdas de Collor. Eu tenho

um pouco de receio de falar do momento anterior, o cinema novo, em comparação

com o cinema marginal de São Paulo que já existia, porque quando eu chego em São

Paulo eu vou trabalhar na Boca do Lixo. Ela estava no início de sua decadência mas

ainda existia um núcleo cinematográfico e eu faço como assistente de produção

“Filme Demência” e “Anjos da Arrabalde”. Eu saio de “Anjos” para fazer um projeto

na Boca que nunca existiu, do Galileu Garcia com a Cinedistri, do Oswaldo Massaini

com o filho Anibal e era uma produção deles e trabalhei mais de um ano na Boca. Eu

fiquei amiga de todas as putas, traficantes, lá eu trabalhava até de madrugada porque

tinha que fazer muita coisa para os filmes. Tinha uma vivência, um núcleo

cinematográfico ali, eu já pego a Boca nos anos 1980 em declínio. Mas se você pega

os anos 1980 para trás, você vai ver que o cinema marginal teve um papel importante

na cinematografia brasileira. Ao dizer para você que eu vejo o Rio como comandante

porque o Rio sobressaia mais na questão politica e São Paulo foi mais tímida.

Pergunta: Os cineastas paulistas não participaram muito da elaboração da Lei do

Audiovisual. E aqui em São Paulo, quando havia crises na produção, como o fim do

PIC por exemplo, quase não vemos reações. Em comparação com o grupo do Rio, os

cineastas paulistas não se mobilizam muito, não procuram pressionar deputados,

Congresso. Por que?

Sara Silveira: São Paulo não tem os grupos unidos neste sentido. Eu acho que talvez

por ser uma cidade maior, o Rio é um lugar menor, geograficamente o Rio se sai

melhor, veja bem geograficamente. Eu acho também que intelectualmente os grupos

eram mais unidos, era uma cabeça mais unida e o Rio sempre foi um expoente na

questão cinematográfica. E São Paulo andou com outra força. Com a Lei concentrada

no Rio neste momento São Paulo está bastante dispersa, com comandantes em

secretarias, políticos, sem achar que o cinema era um grande trunfo para a cidade,

coisa que o Rio encarava de maneira melhor, inclusive pela sua questão geográfica,

pela sua beleza. Agora falar em São Paulo, sou sócia de Carlos Reichenbach, que é

um dos maiores expoentes do cinema de São Paulo, que sempre defendeu e lutou este

cinema desde que existiu e então se colocar um grupo que vai de Andrea Tonacci, os

mais antigos, todos, mas o Rio sempre teve um grupo grande, mais importante, que

fazia filmes, até o Pedro Rovai que era um grande produtor, e São Paulo era mais

226

tímido neste aspecto. Eu acho que a gente começa a participar mais do processo de

elaboração de leis após a Lei do Audiovisual. Eu posso estar cometendo injustiças,

historicamente eu não estou afirmando. Estou lendo dois livros sobre cinema

marginal, como era importante este movimento, existia um núcleo, tinha um pulsar do

cinema, mas se restringia ali. Fazia um filme, ia para o Marabá e para o Ipiranga,

enchia a sala, voltava, arrecadava, ganhava o prêmio Embrafilme e já filmava de novo

e ali ficava naquele núcleo. Eu acho que o Rio de Janeiro tinha uma abrangência mais

nacional enquanto que em São Paulo tenha ficado preso ao seu pequeno grande

território.

Pergunta: A senhora como mesmo diz é uma herdeira da Lei do Audiovisual. Mas a

lei contemplou apenas a produção, não pensou outros mecanismos. Na sua opinião,

por que razões isto se deve?

Sara Silveira: A lei resolveu realmente a produção, nós estamos produzindo quase 100

filmes por ano já há alguns anos. Ela resolve a produção mas não resolveu a

distribuição. A distribuição como eu chamo de um buraco negro ela é muito difícil,

ela envolve empresas mais poderosas, interesses comerciais mais poderosos. Eu acho

que é uma seara um tanto mais difícil de se arvorar. O que aconteceu? Nós, os

produtores que estamos enfrentando as distribuidoras. Hoje a lei já está começando a

olhar para os distribuidores que precisam de incentivos para desenvolver o trabalho

deles. Eles reclamam que nós da produção temos o incentivo para produzir enquanto

que eles na distribuição não tem os incentivos para distribuir. Claro que existe o

prêmio adicional de renda, algumas ações, mas o distribuidor é ele, eu chego até ele:

senhor distribuidor, aqui está meu filme, que é um patinho feio – mas um belo filme –

que eu gostaria de dar para o senhor e ele me diz hoje: quando é que você vai me dar

para eu distribuir este filme? E eu digo, eu sou produtora, não sou distribuidora, mas

ele me diz: eu sei, mas você arrecada dinheiro eu não. Se o seu filme der nada o meu

prejuízo é global, enorme.

Pergunta: Eu acho interessante pensar a Lei do Audiovisual neste contexto, havia uma

vontade em produzir naquele momento.

Sara Silveira: Eu acho que no primeiro momento foi correto. Estamos hoje há quase

20 anos da Lei e estabelecemos a produção. O que não está estabelecido é que o

cinema não conseguiu gerar renda para ser auto-suficiente. Isto é impossível porque o

Brasil não tem uma indústria, o cinema brasileiro ainda é artesanal, embora estejamos

no século XXI. E neste momento, para mim, este pensamento indústria ainda não se

227

resolveu nem mesmo a Agência, que está começando a pensar nisso. Você pode

pensar na produção, ela é o item numero um da indústria para fazer filmes, o item

numero dois para fazer filmes ele não anda, ainda está engatinhando. Segundo os

distribuidores, eles não tem incentivo para isto como nós temos incentivo para

produzir, que o risco dele é muito grande. Eu acho que esta conversa hoje, eu espero

que seja uma data, que já está existindo um movimento de aproximação com estes

produtores, mas ainda é muito, muito pequeno. Você convencer o distribuidor para

pegar o seu filme, é muita luta e muita conversa. Eu principalmente, que faço o filme

de autor, eu não estou na linha comercial poderosa, a linha comercial até já está

começando a se estabilizar e o distribuidor está abraçando esta linha comercial porque

vê retorno nela. No meu filme autoral será que ele consegue o retorno? Veja os vinte

anos, qual é o retorno do filme autoral? O filme autoral eu não acho que ele tenha que

ter retorno pecuniário forte, ele tem que ter retorno histórico, porque ai que se forma a

trajetória e a cinematografia e é ai que se forma a cinematografia. Um país que não

conta suas histórias, que não tem uma cinematografia não é um pais, é um país sem

história. O cinema é importantíssimo para contar uma história. Se as nossas

autoridades pelo menos chegaram a esta conclusão porque os filmes de autor estão

cada vez mais difíceis de captar, eu cada vez capto menos porque a minha

concorrência é cada vez maior, porque o núcleo produção com o núcleo distribuição

está indo muito bem, mas o núcleo produção de filme de autor está fazendo um

caminho de linhas tortas.

Pergunta: Você acha que o cinema autoral teria que ter uma legislação especifica?

Sara Silveira: Talvez tivesse que ter uma legislação para incentivo do distribuidor,

uma proteção a ele para os filmes de autor porque estes filmes fazem a história de um

país. Eu não abrirei mão, mesmo que fique pobre, de fazer filmes de autor. Eu tenho

lutado, tenho buscado como meta fazer o filme de autor com público e é possível.

Vou te dar um exemplo, “O Palhaço”. Foi feito como filme de autor mas alguma coisa

o povo identificou não só como entretenimento. Não estou dizendo que é um filme

profundo, mas é um filme com mais cabeça, mais estabilidade cultural do que os

filmes que estão fazendo três milhões de espectadores, que eu entro na sala, vejo e

esqueço no dia seguinte. Este padrão Cinemark, porque eu sou produtora com 25

filmes e três filmes de sucesso, “Bicho de Sete cabeças”, com 450 mil espectadores,

eu nunca tive um filme que bateu um milhão, “O Pai Ó”, com 500 mil espectadores e

“Cinema, Aspirinas e Urubus” que fez 160 mil espectadores. Se eu tivesse dinheiro

228

para lançar o “Cinema, Aspirinas e Urubus” eu poderia ter feito um milhão. Eu não

tinha dinheiro porque no cinema de autor é muito difícil alguém apostar, por isso o

distribuidor vem para mim, arruma teu dinheiro, porque ele não arruma de maneira

nenhuma. Eu que tenho que me virar para arrumar o dinheiro da distribuição. Então

está errado, eu não posso produzir e pensar na minha distribuição, são setores

diferentes, são setores que tem que caminhar paralelamente, mas quando eu começo

meu projeto com o distribuidor, ele diz que é muito cedo, espera o filme pronto para

ver se vai dar alguma coisa e se o público poderá aceitar.

Pergunta: Algo que se pensou poucas vezes no cinema brasileiro é a ideia de um

circuito exibidor para filmes nacionais ou salas populares.

Sara Silveira: É uma ideia, um circuito de salas populares, talvez um percentual do

ingresso de cinema para a distribuição, o cinema custa 20 reais, pegasse 1 ou 2% para

ir fazendo um fundo para a distribuição dos filmes autorais, os que necessitam de

apoio para chegar. Por que se você fizer um filme com todas as estrelas globais e um

filme de simples gestão e você tendo um milhão de reais, porque você tem um cast,

elenco que vai chamar gente para a sala é diferente de mim que tenho um filme

autoral. Como é que faz esta divisão com o percentual do ingresso? Por que o filme

comercial tem o próprio apelo dele mesmo, o investimento é maior, porque quem vai

investir neste filme sabe que vai ter um retorno enquanto no filme de autor sabe que

não vai ter, então é necessário um subsídio. Não adiante ter um “Cinema, Aspirinas e

Urubus” e lançar com 100 mil reais. Por isso que você faz 100 mil espectadores. Mas

como você consegue convencer o distribuidor, o artigo 3o., que só é utilizado para

filmes comerciais, este artigo dificilmente vai para os filmes de autor. Quem se

beneficia deles são as major e dificilmente elas vão se interessar por um filme de

autor embora elas estejam em nosso país, podendo agir e usufruir da lei.

Pergunta: Estes impasses na relação com o público, a maioria dos filmes não chega ao

público. Isto não estava claro no começo da Lei, que seria muito centrada na produção

e poderia produzir estes impasses?

Sara Silveira: No momento em que se fez a lei se pensou realmente em voltar a

produção de cinema no Brasil e foi o que aconteceu. Por exemplo, a Argentina faz

filmes magníficos, porque faz cinema há anos. Por que a Argentina faz muitos filmes

por ano há muito tempo e com co-produção com a Europa, este dado nós não temos,

porque o português é falado em quatro, cinco países. Se produz durante trinta,

quarenta anos, faz cinquenta, sessenta filmes, ao cabo destes anos você vai ter muitos

229

filmes bons. Se você passar anos sem produzir ou produzir um filme por ano você não

tem filme bom. Se você fizer cinco filmes por ano você também não vai ter filme

bom. Se você fizer 100 filmes por ano durante 20, 30 anos, o resultado daqui para a

frente se aperfeiçoa. A minha esperança é que ao cabo de vinte anos de lei a gente

estabeleceu a produção, agora é hora de dar o passo maior, talvez a nossa Agência

possa entrar neste circuito de distribuição que é ainda a grande dificuldade do cinema

brasileiro. Veja a grande quantidade de filmes que estão na prateleira porque não

conseguem sala ou distribuidor. Temos poucas salas, a concorrência é enorme e o

cinema comercial e o cinema hegemônico americano toma conta de tudo.

Pergunta: A senhora acredita em uma Embrafilme distribuidora novamente?

Sara Silveira: E porque não? A Embrafilme não funcionava? Nos não tivemos todos

os cinemas lotados, a própria Boca do Lixo? O Carlão tem um filme com mais de um

milhão. Por que não se pensar numa Ancine distribuidora? Um braço Ancine

distribuição, por que não? Eu acho que aí que mora o grande problema do cinema

brasileiro. Eu que sou produtora, eu sou ativa, os meus filmes são muito mais vistos

no exterior do que no Brasil. Eu vendo para cinco, seis países um filme que eu faço

doze mil espectadores no Brasil. Ou seja, eu faço cinquenta mil espectadores no

exterior e doze mil no meu país. A média do cinema brasileiro – tirando as grandes

bilheterias, tirando o cinema comercial brasileiro – deve ser ridícula.

Pergunta: O cinema autoral brasileiro tem dificuldade em se estabelecer no próprio

circuito de arte.

Sara Silveira: O brasileiro tem que ser ensinado de novo a ir ao cinema. Existe

algumas ações mais educativas, tipo Programadora Brasil, existe algumas ligadas ao

Cinema na Praça, que é justamente para tentar trazer o espectador de volta. Claro que

você diz que o roteiro brasileiro, as historias brasileiras são muito fracas, ainda mais

quando comparado ao cinema argentino, pode ser. Mas pode ser que seja mas eu

tenho uma gama de vinte filmes aqui, com dois deles em Cannes, quatro em Veneza,

um em Berlin, Sundance, Roterdã, Locarno, San Sebastian e vai embora. Eu tenho

filmes em todos estes festivais. O que quer dizer que os roteiros não são todos tão

péssimos, mas tem esta nuvem que perambula em cima da gente mas acho que

também podemos aperfeiçoar melhor com mais incentivos aos roteiristas. Estes

“blockbusters” – Abbas Kiarostami, Von Trier, eles poderiam nos ajudar na nossa

formação mas mesmo estes só vem os “blockbusters”, não vem mais o cinema que

vinha para gente, autoral, europeu, porque depois estes homens todos foram ficando

230

velhos. Buñel, Visconti, eu assisti estes filmes todos em minha juventude. O Brasil

não produz mais isto, o Brasil traz o vencedor de Cannes, Veneza, Berlin, ele não vai

trazer o filme autoral num festival magnífico de Amien: lá vai o filme autoral do que

um dia vai ser o Kiarostami, o autor que está começando sua carreira. Só vem para cá

o cinema autoral que ganha os grandes festivais, mesmo o cinema autoral estrangeiro

ajudaria bastante a nova formação do Brasil. O Brasil é um país que tem trinta anos da

anistia, é um país sem cabeça, liderado pelos militares e depois pelos ilustres políticos

corruptos de nosso país que nunca mais se interessaram por uma educação. Eu sou

formada por escola pública, minha formação é “update”, eu fui para a Sorbonne fazer

uma tese que eu nunca terminei mas eu tinha condições para isto porque eu tive uma

boa formação no meu país. Os meus filhos tem colégio de merda hoje porque

ninguém no Brasil está interessado em um homem chamado Cristovam Buarque, que

é um homem que poderia ajudar a pensar a educação do pais. Nós viemos de dois

governos do PT que até fizeram um pouco para a educação, mas é um nada perto de

se fazer a educação de um povo a ponto de o país estar importando a mão de obra que

aqui nós não temos.

Pergunta: O cinema brasileiro tem uma interface com o Estado com mais de 50 anos.

Qual a sua avaliação destes anos todos de política cinematográfica?

Sara Silveira: O cinema brasileiro antes tinha uma coisa do som ruim, as pessoas

reclamavam, hoje nós temos tecnologia. Todos temos condições de chegar a um

estágio de tecnologia similar. As políticas tentam mas as políticas de Estado para o

nosso cinema, se colocassem as políticas de educação na obrigação de saber sobre

cinema brasileiro seria super importante. Eu tenho sobrinhos que dizem: eu não vou

ao cinema brasileiro porque só tem filme ruim. Eu digo: você já foi ao cinema

brasileiro? Não. Hoje aqui na produtora, o office-boy, eu dou ingresso para ir ao

cinema, eu dou DVD, para poder formar. Porque não tem formação. Se não tem

educação formal, imagina educação para o cinema num país que está interessado em

desmanchos, desvios. O Brasil tinha tudo para dar certo mas não está preocupado,

com este comando politico que também é de uma formação muito baixa.

Pergunta: Você vê nas politicas de cinema no Brasil nestes últimos cinquenta anos

traços de continuidade?

Sara Silveira: A lei do audiovisual, que foi super bem vinda, cumpriu o papel dela

nestes vinte anos. Eu gostaria, se pudesse ser uma voz única, com um microfone falar

para o meu país, agora país, vamos a luta para a distribuição. Está na hora do que nós

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estamos produzindo e gastando com dinheiro público chegue até o seu público e para

chegar ao público eu preciso de você, meu Estado, assim como você me fez produtor,

assim faça o meu filme ser visto, porque esta política também não tem. Temos

prêmios para a produção mas não temos prêmios para a distribuição, quando tem é no

máximo cem mil. Nós não temos nenhum apoio para colocar um anúncio no jornal,

que é a coisa mais antiga. Vai comprar espaço na internet, os distribuidores te

mandam conta de oitenta, cem mil, que você nem vê, mas as contas chegam. E você

não sabe onde seu filme foi e onde foi o dinheiro. Controle, ter controle, ter realmente

subsídio e agora nos dedicarmos a distribuição, que é a coisa mais capenga e ridícula

do país. Fazer severamente um controle a todos que distribuem e como usaremos este

dinheiro, para o benefício do espectador. Abertura de novas salas, cumprimento de

cota da tela, o real cumprimento da cota de tela, a fiscalização do cumprimento da

cota de tela, quem fiscaliza, quem nos dá os nossos DVDs, quem fiscaliza? Vendeu

dez, trinta, só Deus sabe e o distribuidor, tem que depender dele, se não tem que ficar

batendo em cada loja, perguntando quantos foram entregues e foram vendidos.

Pergunta: Eu vejo nos produtores um esforço muito grande em produzir mas não há

interfaces com outras políticas.

Sara Silveira: Concordo, faz falta uma política mais ampla. É uma política de Estado

incluir o cinema ou as artes visuais no currículo para formar as novas crianças, é

claro, antes de tudo, dar escolas para estas crianças. Nós não temos esta articulação,

eu espero que este amadurecimento da produção que nós tivemos nos últimos anos

nos proporcione isto. Eu espero que o próximo foco seja a formação e a distribuição.

A formação é importante: não adianta eu fazer filme brasileiro porque o cara vai ver

“O Homem Aranha”. Este apelo está dentro da cabeça dele, está na televisão, está na

esquina que ele passa, está na farmácia que ele entra, está no supermercado que ele

vai. O meu filme não está em nenhum desses, está em uma sala de circuito alternativo

com pouquíssima promoção por falta de dinheiro e falta de engajamento na politica de

distribuição.