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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Filipe Cordeiro de Souza ALGATÃO “Os tropeiros no século XXI e o sentido contemporâneo dessa atividade: estudos de caso em duas localidades no Vale do Paraíba e Serra da Mantiqueira” MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Filipe Cordeiro de Souza ALGATÃO

“Os tropeiros no século XXI e o sentido contemporâneo dessa atividade: estudos

de caso em duas localidades no Vale do Paraíba e Serra da Mantiqueira”

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo

2015

2  

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Filipe Cordeiro de Souza ALGATÃO

“Os tropeiros no século XXI e o sentido contemporâneo dessa atividade: estudos

de caso em duas localidades no Vale do Paraíba e Serra da Mantiqueira”

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob orientação da Profª. Drª. Rosemary Segurado.

São Paulo

2015

 

 

 

3  

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

___________________________________

______________________________________ 

 

 

 

 

 

4  

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus, por me conceder sabedoria, discernimento e

sensibilidade, para que pudesse chegar ao dia de hoje com a convicção de que esses

anos de estrada até aqui, em que sigo estudando o tema tropeirismo em seus vários

aspectos, tenham me possibilitado uma aprendizagem imensa, não apenas do ponto

de vista do formalismo escolar, como lições preciosas sobre a vida.

Agradeço à minha família, especialmente ao meu pai e à minha mãe pelo apoio

para que fosse possível prosseguir meus estudos em nível de mestrado, pela

compreensão de minhas ausências nos momentos em que foi necessário estar em

campo e pela ajuda de sempre durante a minha caminhada.

Registro aqui meu reconhecimento e minha gratidão à Profª. Drª. Rosemary

Segurado, minha orientadora, pela paciência, segurança e direcionamento, nessa

nossa parceria que já dura há alguns anos, cuja relação de troca de experiências foi

sempre tão rica.

Agradeço à minha namorada, Emili, pela parceria, pelo apoio incondicional e

por todo o amor e carinho.

Aos amigos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, companheiro(a)s

de caminhada, pelo privilégio de termos começado juntos nossa trajetória profissional,

pelas discussões desde a época do abacateiro, que o tempo proporcionou que

continuássemos juntos, dessa vez no Mestrado, na PUC, e mais uma vez juntos!

Destaco nestas linhas meu carinho e reconhecimento às minhas amigas e

companheiras intelectuais Natalia Negretti, Tathiana Senne Chicarino e Christina

Marchiori Borges, pelo apoio, carinho e torcida mútuos, o que nos permitiu chegar

juntos ao término desta etapa. Também dedico aos meus amigos muito queridos Lilian

Severo, Regina Barbosa e Washington Oliveira – ainda que não estejamos tão

próximos, raras vezes a vida nos concede amizades tão enriquecedoras.

À minha grande amiga, Profª. Drª. Irene Maria Ferreira Barbosa, a quem devo

tanto do ponto de vista intelectual, pela amizade e paciência com que tem estado

comigo, acompanhando e vibrando a cada nova conquista.

À querida Profª. Drª. Mariza Martins Furquim Werneck, pela leitura competente

e enriquecedora deste trabalho, além das boas e agradáveis conversas e trocas de

experiências. À Profª. Drª. Olga Rodrigues de Moraes Von Simson agradeço pela

paciência e pela dedicação em me orientar, pela leitura e sugestões sempre tão

5  

pertinentes nos meus trabalhos, além do incondicional apoio para que o campo na

região de Visconde de Mauá (RJ) fosse realizado a contento.

Ao meu amigo José Adão, aquele que, mesmo na brincadeira, sempre me

incentivou e deixou claro o quanto valorizava a minha trajetória de pesquisa e

apreciava o amadurecimento deste trabalho.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES) pela concessão da bolsa de mestrado, cujo apoio financeiro possibilitou a

execução da pesquisa.

Agradeço à Profª Kely Muller Ledoino, pelo auxílio na realização da pesquisa

de campo em Campos Novos de Cunha, juntamente com Sr. Jair de Amorim, Prof.

Márcio Muller e Prof. Gilson Alves Bernardino.

Aos tropeiros Jair, Paulo, Gezuel e Natal, grandes amigos que fiz nessa

pesquisa, onde foi possível observar que a cultura caipira resiste, embora esteja cada

vez mais circunscrita aos lugares mais afastados do interior.

Ao Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas, pelo apoio

quanto à utilização da metodologia História Oral.

Deixo meu carinho, consideração e reconhecimento às vinte e duas pessoas

que se dispuseram a, pacientemente, doar um pouco do seu tempo para contar um

pouco de suas experiências e reflexões sobre esse mundo fascinante que circula o

assunto tropeirismo, que tanto enriqueceram os dados desta pesquisa quanto a minha

formação enquanto pesquisador.

Por fim, dedico esta pesquisa à minha avó Maria de Lourdes e à minha

mãezinha do coração Georgina, ambas falecidas no ano de 2013, época em que esta

pesquisa já se encontrava em curso e, infelizmente, não foi possível que assistissem

ao seu final.

 

 

 

6  

RESUMO

Esta pesquisa tem o objetivo de analisar a atividade tropeira nos dias atuais, na

região do Vale do Paraíba, levantando uma reflexão sobre o sentido contemporâneo

de se desempenhar, em pleno século XXI, um ofício usualmente vinculado a um

tempo em que não havia grande disponibilidade de recursos e outros meios de

transportes, como ocorre atualmente.

Partindo de referenciais teóricos, aliados a estudo etnográfico e entrevistas

com informantes selecionados em campo, à luz do método biográfico da história oral,

pelo qual coletamos depoimentos de pessoas que ainda desempenham atividade

tropeira e de ex-tropeiros, além de seus descendentes diretos, buscamos analisar a

influência das tropas nas dinâmicas sociais das comunidades retratadas, sua

importância para a economia local e suas perspectivas de continuidade.

Palavras – Chave: Tropeirismo, Vale do Paraíba, Oralidade, História Oral, Cultura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7  

 

ABSTRACT

This research has the goal to analyze the tropeira activity on current days in the

region of Vale do Paraíba (Paraíba Valley), guided by the contemporary sense of

having an occupation in the 21st Century that is linked to a time that there was not great

resources available and other means of transportation, like today.

Coming from theoretical references, allied with an ethnographic study and

interviews with informers selected in the field, on the light of the biographical method –

Oral History, where we collected testimonials of people that still do the tropeira activity,

ex-tropeiros that perform this occupation and changed their field of work, and also

direct descendants of the tropeiros, seeking to analyze the influence of the troops on

social dynamics of the communities pictured, as well as its importance to local

economy and its perspectives of continuity. 

Key-Words: Tropeirismo, Vale do Paraíba (Paraíba Valley), Orality, Oral History, Culture.

8  

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................ 9

1. Dos tropeiros históricos aos tropeiros contemporâneos:

teoria e método para investigação........................................ 17

1.1 - Contribuições metodológicas qualitativas............................. 17

1.2 - História oral: percursos e contribuições para pesquisas

sociológicas............................................................................................ 26

1.3 - Do processo colonizador surge o tropeiro............................ 34

1.4 - Portrait dos entrevistados..................................................... 44

2. Vale do Paraíba e Serra da Mantiqueira: regiões de tropa

arreada...................................................................................... 50

2.1 - Influências histórica e cultural das tropas de mula na

zona Valeparaibana.................................................................. 50

2.2 - O Tropeirismo e o Ciclo do Café no cenário

regional...................................................................................... 58

2.3 - O ocaso do Tropeirismo clássico: a estrada de

rodagem....................................................................................

67

3. Evolução dos espaços de morada no interior do Brasil: do

bairro rural ao rancho de tropa.............................................. 76

3.1 - O bairro rural como espaço de sociabilidade.................... 76

3.2 – Campos Novos de Cunha................................................. 85

3.3 – Fragária e Serra Negra..................................................... 94

4. Reflexões sobre a importância da atividade tropeira

remanescente nos dias atuais................................................ 102

4.1 - A noção de espaço e tempo e o cotidiano da tropa nos

dias atuais.................................................................................. 102

4.2 - Percepções sobre a influência tropeira remanescente

nos dias atuais........................................................................... 120

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................ 139

BIBLIOGRAFIA............................................................................... 144

ANEXO I – Tópicos – Guia norteadores das entrevistas................ 148

ANEXO II – Arquivo em mídia digital contendo o áudio de todas

as entrevistas e a transcrição na íntegra das entrevistas utilizadas

na pesquisa.....................................................................................

156

9  

INTRODUÇÃO

A ideia desta pesquisa surgiu ainda durante a graduação na Escola de

Sociologia e Política de São Paulo, quando detinha uma bolsa de iniciação científica

da FAPESP para investigar a presença histórica do fenômeno tropeirismo na região do

Vale do Paraíba Histórico, com foco na cidade de Silveiras. Nessa pesquisa, busquei

articular a evidência histórica com a investigação empírica, com a finalidade de

observar em hábitos, valores e crenças, se havia uma herança manifesta do ciclo das

tropas na cultura local e se essa era objeto de orgulho ou de vergonha para os

moradores.

Como consequência, partimos para outras cidades onde a atividade tropeira foi

desempenhada como parte importante do desenvolvimento econômico regional, caso

da região do Vale Histórico compreendendo cidades que outrora foram o berço da

cafeicultura paulista, conheceram o fausto e a opulência, graças aos milhares de

cafeeiros cuja produção era transportada em lombo de mulas pela Serra do Mar rumo

à exportação e que sucumbiram graças a marcha do fruto em busca de novas terras

no Oeste Paulista.

Essas localidades, Bananal, Areias, São José do Barreiro, Silveiras e Queluz,

foram profundamente marcadas em suas relações sociais pela presença das tropas de

mula que garantiam o sucesso do ciclo do café e a prosperidade dos barões. Quando

cessou a produção, a região mergulhou em um ciclo de declínio econômico e

populacional, descrito por Monteiro Lobato na obra “Cidades Mortas”, escrita quando

de sua passagem por Areias, exercendo o cargo de Promotor da Comarca.

A partir desse exercício, uma segunda etapa daquela pesquisa envolveu

atividades de campo em localidades históricas identificadas com o tropeirismo nos

estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, onde pudemos coletar em

campo dados de cenários diversos para observar semelhanças e disparidades no

tratamento dado aos vestígios materiais e imateriais legados pelos tropeiros às

cidades por onde passavam. Nessa etapa, surgiu a questão que originou a pesquisa

ora apresentada.

Identificamos, em pesquisa de campo, a existência de atividade tropeira

sobrevivente nos dias atuais em algumas comunidades no interior do Brasil. Esses

locais têm por característica serem áreas cujo relevo se mostra fortemente acidentado,

em meio a regiões serranas e de preservação ambiental permanente, o que força a

10  

utilização de meios de produção e de transporte típicos de épocas passadas, quando

a disponibilidade de tecnologias era precária.

O início do processo que levou à pesquisa ora apresentada se deu com as

incursões a campo, para identificar localidades onde fosse possível observar a

recorrência da atividade tropeira. Para isso, recuperamos dados da pesquisa anterior e

aprofundamos os exercícios de campo na região do Vale do Paraíba e da Serra da

Mantiqueira, espaço originalmente delimitado para o estudo. Chamou-nos a atenção,

já no primeiro momento, que houvesse essa ocorrência na região teoricamente mais

bem servida de modernos meios de transporte do país, considerando que ela está

geograficamente localizada entre os dois principais centros urbanos e entre os três

estados com a maior concentração de desenvolvimento socioeconômico no País: São

Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Na abordagem do tema, há que se considerar, primeiramente, o processo

histórico regional. As correntes povoadoras que se estabeleceram no Vale do Paraíba

buscaram sempre a proximidade com o Rio Paraíba do Sul, determinando, assim, o

itinerário do desenvolvimento. Na Serra da Mantiqueira, os adensamentos

populacionais mais antigos estabeleceram-se à beira dos caminhos que ligavam São

Paulo às jazidas de ouro mineiras. Com o advento das tropas e a necessidade surgida

a partir da instalação de paradas para pouso das diligências, é que se observou o

início do processo de consolidação de núcleos populacionais em localidades mais

afastadas dos eixos São Paulo/Minas acima mencionados.

Com exceção feita a Cunha, cidade localizada no caminho do porto de Paraty,

buscando a boca do Sertão, em uma antiga via de penetração, utilizada pelas antigas

tribos indígenas para comunicação do litoral com o planalto, as outras localidades

situadas fora do traçado do rio surgiram a partir do século XVIII. Nesse momento, o

tropeirismo na região vivia sua fase de maior sucesso, pois, com o declínio da

produção de minerais preciosos nas Minas Gerais, as tropas se concentraram na

realização de jornadas menores, abastecendo as cidades do Vale do Paraíba e,

assim, seus proprietários conheceram período de grande sucesso econômico a

reboque da primeira fase do ciclo do café em terras paulistas, pois faziam o transporte

da produção regional para os portos de Paraty e Mambucaba.

Com a chegada da estrada de ferro, a tropa sofreu um abalo. No entanto, por já

haver uma considerável rede de municípios, cujo traçado a ferrovia não alcançaria, as

tropas cumpriram a função de conectá-los às estações ferroviárias mais próximas,

realizando jornadas menores, mas ainda lucrativas.

11  

Com a decadência da produção de café, a região do Vale do Paraíba passou

por um processo de retração econômica, que afetou não apenas a geração de

riquezas, como determinou um fluxo migratório das famílias da região para cidades

maiores, marcando, assim, o início do esvaziamento das cidades mais afastadas.

Posteriormente, já no século XX, há a abertura da estrada de rodagem entre São

Paulo e Rio de Janeiro, com ela surgiram na região os automóveis e pequenos

caminhões, ligando outra rede de cidades não contempladas pelo trem, que passaram

a ser servidas por linhas de ônibus. Assim se acentuou o processo de decadência, que

teria sua coroação com a abertura da Rodovia Presidente Dutra, já com pista dupla,

nos anos 1950.

As tropas de mula sobreviveram a todos esses acontecimentos históricos,

graças às condições particulares que as localidades pesquisadas guardaram em

relação ao contexto mais amplo em que estão inseridas. São localidades que, embora

estejam bastante próximas aos polos de desenvolvimento regional, como São José

dos Campos, Taubaté, Guaratinguetá, Lorena e Resende, permaneceram, em seus

aspectos culturais, mais voltadas aos antigos hábitos típicos da cultura caipira. Ainda

preservam manifestações culturais, artísticas e laborais herdadas de seus ancestrais,

porém, observam a gradativa entrada de novos elementos da cena contemporânea na

vida dos seus habitantes.

Esta pesquisa, inicialmente desenvolvida no campo da Sociologia, mostrou-se,

ao longo do tempo, também multidisciplinar, envolvendo discussões não apenas

sociológicas, como alcançando a Historiografia, a Antropologia, a Geografia e, em

menor escala, a Literatura. Todas essas influências foram contribuições muito

positivas, visto que, para melhor apreensão dos argumentos apresentados, tais

ligações permitem que o cenário, os atores e as regras se evidenciem de forma quase

tangível, para maior fruição do leitor.

As questões norteadoras da proposta que buscamos pesquisar são, em

primeiro lugar, compreender qual o sentido de sobrevivência em pleno século XXI

(época em que a circulação de pessoas, mercadorias e informações é um imperativo)

dessa atividade laboral típica de um tempo marcado pela precariedade dos caminhos

e por uma tecnologia rudimentar. Ou seja, com a oferta de novos meios de transporte

e considerando que se trata de uma região com alto índice de desenvolvimento

econômico, quais as causas da utilização, ainda hoje, de tropas de mula para o

transporte de mercadorias? Soma-se a este questionamento principal o desejo de

pesquisar a relação de ensino e aprendizagem do ofício de tropeiro, buscando

12  

compreender como se dá essa transferência de conhecimento, em que ambiente ela

acontece e com quais recursos os mais velhos transmitem aos jovens a sabedoria

adquirida ao longo do tempo de exercícios desse ofício. E, por fim, buscaremos

analisar se há, por parte dos descendentes desses tropeiros, o desejo ou necessidade

de continuar com essa prática, tomando novamente os recursos disponíveis na região

como base e observando a disponibilidade que demonstram para aprender e para

desempenhar a mesma função de seus pais e avós.

Dividimos as etapas do processo investigativo em três: a primeira delas,

quando realizamos uma pesquisa bibliográfica em que levantamos as obras de

referência a respeito do assunto tropeirismo, seguida de articulações com leituras

históricas, teóricas e metodológicas que fornecessem subsídios para a compreensão

do tema. Para isso incorporamos trabalhos sobre a história da região do Vale do

Paraíba, abordagens teórico-metodológicas e obras clássicas da Sociologia Brasileira

que tratam, em maior ou menor grau, da abordagem da cultura caipira que nos

interessa.

Em seguida, incorporamos ao material bibliográfico algumas informações

coletadas a partir de fontes primárias (registros cartoriais, eclesiásticos e

documentação institucional) sob custódia do Instituto de Estudos Valeparaibanos

(Lorena/SP), do Museu Frei Galvão (Guaratinguetá/SP), da Biblioteca Municipal Oracy

Nogueira (Cunha/SP) e do Arquivo Histórico Municipal de Resende/RJ. Limitamo-nos

a agregar à pesquisa apenas material relativo aos traçados percorridos entre as

regiões de Campos Novos de Cunha, Fragária, Serra Negra e Visconde de Mauá, que

nos interessa nesta etapa.

Depois de reunir esse capital prévio de informações, partimos para a fase de

pesquisa de campo, com a finalidade de observar a ocorrência de atividade tropeira

nos dias atuais, e para a realização de entrevistas com pessoas que ainda

desempenham essa função ou com pessoas que foram tropeiros e mudaram de ofício,

além de descendentes de tropeiros. O intuito era de captar, a partir de seus

depoimentos, como cada um desses grupos reflete a presença das tropas no

cotidiano; se há um “imperativo geográfico” nessa sobrevivência ou se há desejo de

continuidade dessa prática.

Para a seleção das pessoas, cujos depoimentos seriam contributivos ao

esforço da pesquisa, estabelecemos como recorte temporal o início dos anos 1970,

pois diversas modificações no cenário dessas comunidades impactaram diretamente a

vida de seus moradores. Nesse período, a região do Vale do Paraíba já se encontrava

13  

industrializada e chegavam às cidades mais afastadas algumas melhorias, como a

abertura de estradas e a eletricidade, ambos argumentos facilitadores no processo de

migração para as cidades maiores.

Privilegiamos a escolha de pessoas que, desde essa época, já lidavam com

tropas ou cuja dinâmica familiar incluía tal aspecto, devido a algum parente próximo,

como pai ou tio, exercer esse ofício. Buscamos, também, entrevistar pessoas que

exerceram anteriormente atividade tropeira e mudaram de ofício ou, ainda,

descendentes de tropeiros, captando, assim, suas opiniões e reflexões acerca da

profissão dos seus ancestrais.

Como aporte metodológico, nos apoiamos na construção teórica da pesquisa

dos recursos acima mencionados e, em campo, realizamos etnografias em localidades

onde a utilização de tropas ainda se mostra frequente, para captar as dinâmicas

sociais presentes, observar o impacto que a atividade tropeira produz nessas

comunidades e observar se há diferenças entre o tropeirismo de outrora e o praticado

atualmente.

Para a realização das entrevistas, aplicamos as técnicas inerentes à história

oral, para a coleta de depoimentos, tanto dos mais velhos, como dos mais jovens,

captando suas percepções quanto à presença do tropeirismo na formação cultural da

localidade em que vivem e o determinismo dessa influência na manutenção da

atividade tropeira, para, assim, dimensionarmos a centralidade, nos dias atuais, dessa

atividade para as comunidades selecionadas.

Os locais eleitos como casos paradigmáticos à compreensão do tema são os

bairros rurais de Campos Novos, no município de Cunha/SP, e Fragária e Serra

Negra, ambos pertencentes ao município de Itamonte/MG. Essa escolha se deu a

partir da avaliação de alguns elementos, como o fato de ambas as regiões

apresentarem relevo bastante escarpado, o que dificulta o acesso de veículos

automotores, principalmente os de grande porte, como caminhões. Elas são redutos

históricos do tropeirismo na região do Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira,

devendo à atividade tropeira grande parte do desenvolvimento local. Todas pertencem

administrativamente a municípios que possuem acesso à Via Dutra, mas tais

povoações ainda permaneceram marginais à onda de desenvolvimento econômico da

região.

Outro fator que merece reflexão quanto à permanência da atividade tropeira

nessas localidades deriva do fato de que todas se encontram em áreas próximas a

14  

Parques Nacionais: Parque Nacional da Serra da Bocaina, em Campos Novos, e

Parque Nacional do Itatiaia, em Fragária e Serra Negra, cuja legislação proíbe a

realização de obras de infraestrutura viária e novas construções de moradia, forçando

os moradores a conviverem apenas com as estradas e as residências já existentes,

sendo permitido apenas reparos, vetando-se, inclusive, o exercício de atividades

econômicas mais sofisticadas.

O primeiro capítulo está estruturado em quatro partes; a primeira trata da

questão do tropeirismo em uma perspectiva histórica mais ampla, recuperando as

circunstâncias de seu aparecimento no Brasil, sua relevância para a atividade

comercial colonial e posteriormente para a nação já independente, assim como as

principais contribuições teóricas sobre o assunto e sua contribuição para a história

econômica do país.

A segunda parte apresenta-se como uma reflexão necessária a respeito da

metodologia e das estratégias utilizadas na investigação. Há um especial destaque

para o papel das etnografias, visto que, por abordarmos regiões periféricas, dentro do

universo rural do Vale do Paraíba, há pouca disponibilidade bibliográfica específica

sobre a história e o desenvolvimento desses bairros, ou mesmo sobre a própria cidade

que os abriga. Campos Novos de Cunha possui pequena bibliografia que trata de sua

criação e da importância de sua existência, dentro de trabalhos maiores, visto que o

município de Cunha foi bastante estudado em trabalhos acadêmicos no âmbito das

ciências humanas. Entretanto, quase nada foi escrito sobre a região de Fragária e

Serra Negra, não havendo bibliografia disponível sobre a região, por isso as

descrições etnográficas constituirão importante parte do trabalho.

A terceira parte é dedicada à discussão das contribuições da história oral para

a pesquisa e os limites de sua aplicação. Em perspectiva mais ampla, observamos o

emprego dessa metodologia em outras pesquisas que esbarrem na falta de

documentação disponível ou de uma bibliografia já sistematizada. Portanto, a

valorização do relato oral tem-se como indispensável para a recuperação histórica das

localidades selecionadas, considerando-se também a percepção dos moradores em

relação à dinâmica social em que vivem.

A quarta parte é dedicada á composição de um portrait de cada entrevistado,

situando sua idade, local de nascimento, escolaridade e profissão declarada, com a

finalidade de qualificarmos os informantes cujos dados fornecidos compõem esta

investigação.

15  

O segundo capítulo dedica-se a uma abordagem mais específica da presença

histórica das tropas no Vale do Paraíba. Delimitamos alguns aspectos para

complementar a parte do capitulo anterior que trata da história do tropeirismo,

tratando, na primeira parte do capítulo em questão, de sua influência no cenário

regional mais amplo. Por ser uma zona cuja tropa tinha por característica ser

“arreada”, ou, em outras palavras, as mulas eram o meio de transporte, não o produto

a ser transportado, como ocorria na região sul do país, iniciamos o capítulo tratando

dessa diferenciação e privilegiando, na abordagem, a tropa arreada, objeto da

presente pesquisa.

O capítulo também está estruturado em três partes; na primeira delas nos

dedicamos em compreender a influência cultural das tropas na região do Vale do

Paraíba e da Serra da Mantiqueira, mencionado contribuições históricas e culturais à

vida sociocultural do Vale do Paraíba legadas pelos tropeiros. Na segunda parte,

propomos uma discussão específica sobre a relação do tropeirismo com o ciclo do

café, considerando que essa foi a fase de maior esplendor e opulência regional,

quando houve grande alteração no modo de vida nessas cidades, e nos detivemos

sobre a participação dos tropeiros nesse contexto. Tratamos, na terceira parte, do

declínio da atividade tropeira após a disseminação das estradas de rodagem e sua

sobrevivência nas localidades mais afastadas. A bibliografia proposta para esse

capítulo privilegia abordagens de cunho mais especificamente valeparaibano, além de

obras de referência que tratem do tema.

O terceiro capítulo versa sobre a formação dos bairros rurais enquanto espaços

de preservação da cultura caipira e da influência que a manutenção dessa cultura

tradicional exibe nas localidades onde ainda hoje se pratica atividade tropeira. A partir

da bibliografia utilizada, que leva em conta trabalhos clássicos da Sociologia sobre tais

espaços, como os de Antonio Candido e Maria Isaura Pereira de Queiroz, pois os

ranchos de tropa, surgidos entre os séculos XVIII e XIX e que ainda sobrevivem em

localidades afastadas, possuem características que nos permitem considerá-los

bairros rurais. A intenção da primeira parte do capítulo é refletir sobre o bairro rural

enquanto espaço de sociabilidade, considerando as circunstâncias de surgimento, as

relações com demais bairros vizinhos e explicitando a necessidade da atividade

tropeira, enquanto forma de abastecimento e de comunicação entre esses locais e

entre eles e os centros maiores da região.

A segunda e a terceira parte são dedicadas respectivamente à construção

histórica e social dos bairros de Campos Novos de Cunha e de Fragária e Serra

16  

Negra, considerando as particularidades de ambos os casos. Pontuamos as

semelhanças e as diferenças entre eles, com o intuito de verificar se há

homogeneidade no exercício da prática tropeira, na forma como foi transmitido esse

ofício, quanto ao material transportado, a finalidade do transporte e as jornadas

percorridas.

Nossa percepção, em campo, é objeto de discussão no quarto e último capítulo

da dissertação, cuja proposta se inicia a partir da discussão sobre a questão do

espaço e do tempo para o cotidiano das tropas, considerando que essa relação

permeia toda a prática da atividade tropeira, mencionando reflexões a partir das

entrevistas, bem como descrições etnográficas sobre o caminho percorrido pelas

tropas contemporaneamente e abordando o contexto de algumas entrevistas, com

informantes que tiveram destacado papel durante o processo investigativo.

Analisamos as informações extraídas das entrevistas, divididas por eixos

temáticos e por falas-síntese mencionadas no texto. Apontamos, dentre as entrevistas,

algumas questões que serviram como objeto de análise, tendo por principal tema a

questão central desta investigação: o sentido contemporâneo de desempenhar

atividade tropeira, relativo a suas causas e impactos produzidos.

Discutiremos também o papel que alguns entrevistados tiveram diretamente

para que a pesquisa lograsse êxito, abordando o percurso desempenhado pelos

tropeiros para que conseguissem comercializar o material transportado e, por fim,

discutiremos a perspectiva de continuidade na utilização das tropas para o transporte

de mercadorias e as prováveis novas formas de utilização desse modal, notadamente

quanto à exploração de sua vocação turística.

 

17  

1. DOS TROPEIROS HISTÓRICOS AOS TROPEIROS CONTEMPORÂNEOS: TEORIA E MÉTODO PARA INVESTIGAÇÃO.

1.1 - Considerações metodológicas fundamentais.

A questão metodológica da pesquisa foi objeto de reflexão constante em todas

as fases de seu desenvolvimento. Pela abordagem proposta, que o próprio título do

trabalho sugere, apoiamo-nos em um viés qualitativo quanto à investigação

sociológica e tomamos como premissa as proposições de autores que dialogam com

as técnicas de investigação que privilegiam as atividades e os dados coletados em

campo acerca das comunidades retratadas.

De acordo com Teresa Haguette (1987), as teorias devem ser empregadas

como forma de explicar determinados aspectos da realidade, considerando que não há

uma única capaz de explicar todos os prismas da vida social e que o papel do

pesquisador reside em analisar a vida e as interações sociais dos indivíduos, os

verdadeiros protagonistas das transformações estudadas.

Para fugir de uma leitura estrutural e mecânica dos grupos sociais, geralmente

vinculados a uma visão quantitativa, imprimimos uma abordagem que reconheça a

sociedade como multiplicadora de processos sociais que constituem os alicerces para

orientar as ações sociais. Infere-se disso que metodologias qualitativas se prestam à

análise de questões sociais com base na urgência de refleti-las como algo dinâmico,

pois não há dúvida de que as estruturas existem e devem ser conhecidas, mas é a

ação humana, a interação social, que constitui o motor da história”. (HAGUETTE,

1987, p.17)

Os métodos qualitativos são empregados em situações cuja especificidade de

fenômenos seja manifesta. Há algumas situações em que seu emprego se faz mais

indicado;

Situações nas quais a evidência qualitativa substitui a simples informação estatística [...], situações nas quais a evidência qualitativa é usada para captar dados psicológicos que são reprimidos ou não facilmente articulados [...] ou situações nas quais simples observações qualitativas são usadas como indicadores do funcionamento complexo de estruturas e organizações que são difíceis de submeter a observação direta. (HAGUETTE, op.cit. p.55-56).

Na pesquisa que desenvolvemos, o tipo que nos presta contribuição mais

efetiva é o terceiro, porque nos permite analisar comunidades rurais a partir da

existência de uma atividade laboral considerada obsoleta, mas que ainda se revela

ordinária na ordem dos costumes e relevante para a economia local. Uma

18  

complexidade nas relações sociais se mostra evidente e, por isso, não seria possível,

sem prejuízo, um estudo que captasse a realidade e o contexto da comunidade

através de uma estrutura estanque e meramente estatística.

As metodologias qualitativas nas Ciências Sociais derivam da noção de que o

indivíduo é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto das ações sociais. Os trabalhos que

levavam em conta esse pressuposto despontaram no cenário acadêmico, conforme

Miriam Goldemberg (2001), entre o final do século XIX e início do século XX, na

Universidade de Chicago (EUA), primeiro centro de pesquisas voltado à investigação

empírica. Esse estudo parte da leitura de que o indivíduo, enquanto agente social,

reproduz signos e significados dos grupos com os quais se relaciona e, através dessas

reproduções, observam-se as transformações sociais. Ainda segundo a autora

mencionada, com os trabalhos desenvolvidos em Chicago e sua orientação

empiricista, surgiram novas formas de pesquisa qualitativa, incorporando fontes

primárias para a compreensão da vida social e as pesquisas de campo passaram a

ser desenvolvidas mais frequentemente no âmbito da Sociologia.

Outra contribuição que consideramos relevante à construção da pesquisa vem

da noção fenomenológica, ao preconizar que os indivíduos constroem seu universo de

relações de acordo com as experiências vividas no grupo que as estabelece. As

pessoas partem do mundo em que vivem como algo dado. Disso decorre uma visão

interpretativa quanto aos costumes e às normas do contexto em que se encontra

inserido. Alfred Schutz (1979), ao deter-se sobre essa questão, considera que “o

mundo da vida” deve ser visto através da análise do cotidiano em que os Homens se

firmam e como suas atitudes refletem a realidade.

Em sua perspectiva, o mundo da vida cotidiana é, antes de tudo, um mundo

organizado anterior ao nascimento dos indivíduos, no entanto, presta-se a constante

interpretação, por parte dos que nele habitam. Toda essa análise é feita a partir do

acúmulo que representa a vida vivida das pessoas, derivada do conhecimento que

reúnem e de suas experiências de vida, além daquilo que é transmitido pela família,

pela escola, o que representa a formação desse mesmo indivíduo.

O ambiente físico e cultural que os homens frequentam determinam seu status,

bem como seus hábitos, valores e crenças. O espaço em que se pode considerar tais

ações é a vida cotidiana, por isso incorporamos brevemente essa discussão no seio

das comunidades estudadas, pois ela influencia diretamente na ordem dos costumes

locais. A reminiscência da tropa é fruto direto das relações sociais que estão postas na

comunidade. Captamos, através das entrevistas, que a profissão de tropeiro está

19  

diretamente ligada à ancestralidade dos indivíduos, por isso a tropa imprime grandes

marcas na cultura local, seja pelos hábitos, valores e crenças já mencionados, seja

pela própria frequência com que cruzam as comunidades.

O tropeiro, nesse caso, seria um arquétipo desse homem do cotidiano, pois a

partir do cabedal de conhecimentos que reúne de sua experiência, reelabora seu

papel na dinâmica social, considerando eventuais contradições de acordo com a vida

que leva, as influências externas que recebe, sua posição social e seus interesses.

Para tanto, faz-se necessário considerar os indivíduos em seus próprios termos e

observar o nível de envolvimento que possuem nas comunidades e qual a importância

real de sua atuação contemporaneamente.

No processo investigativo, por ser uma pesquisa de campo, realizamos

etnografias para compreender as dinâmicas sociais presentes nas comunidades

retratadas. De acordo com Michael Angrosino (2009), a Etnografia representa a

descrição de um povo, uma forma de estudar indivíduos em relação a grupos sociais

que podem ser comunidades ou sociedades, considerando as particularidades

constitutivas de sua cultura, instituições, hábitos e crenças.

Conforme Angrosino (2009), a Etnografia, enquanto método, concentra-se na

coleta de dados sobre a vida vivida das comunidades baseada na pesquisa em

campo, envolvendo pesquisador e pesquisados em relação direta com o dia a dia de

ambos, buscando compreender, no máximo possível, traços culturais dos grupos

retratados, e pode ser aliada com outras técnicas de investigação. Dentro desse

universo qualitativo, despontam estratégias de investigação que auxiliam a constante

revisão bibliográfica que fazemos, ao processo que leva à execução das atividades de

campo, à forma como coletamos os dados e ao tratamento que damos a eles

posteriormente.

Concomitantemente à elaboração de etnografias em campo desses grupos

sociais, realizamos entrevistas com indivíduos identificados diretamente, ou não, com

as questões em torno da presença da atividade tropeira, ainda existente na região.

Valorizamos o olhar dos entrevistados e suas reflexões sobre o mundo em que vivem.

Nossa intenção se colocou em extrair dessa interação a percepção dos indivíduos a

respeito da atividade que desempenham (no caso dos tropeiros), da importância da

sua figura para a constituição de uma identidade local e dos traços culturais inerentes

a essa presença histórica de tropas de mula nos cenários em questão.

20  

As entrevistas nos servem para compreender o processo de interações sociais

na qual os agentes retratados estão inseridos. Elaboramos um roteiro de questões que

previam a participação de depoentes em três níveis: tropeiros contemporâneos, ex-

tropeiros e descendentes de tropeiros que podem guardar alguma memória da tropa,

não sendo requisito ter tido uma vivência direta do assunto. Atribuir relevância ao

depoimento oral, segundo Jean-Claude Kauffman (2013), é uma tendência dos

pesquisadores no campo das Humanidades e, no caso desta investigação, o esforço

se dá à medida que extraímos da fala dos entrevistados percepções muito ricas sobre

o que o fenômeno tropeirismo representa para o universo em que vivem.

Durante a entrevista, as fontes de informação se mostram presentes não

apenas na fala do depoente, mas também em fatores externos, como o próprio roteiro

de questões ou na relação entre pesquisador e pesquisado. Tudo isso interfere na

obtenção dos dados e na forma como eles serão interpretados posteriormente. De

acordo com Haguette (1987), o pesquisador deve diferenciar as informações obtidas

em caráter objetivo das subjetivas. Há que se reconhecer a relevância de ambas,

embora se lembre de que a fala do depoente corresponde à forma como ele elabora

aquilo que apreende de sua própria vida e rede de relações.

As afirmações subjetivas devem ser interpretadas considerando a pertinência

da questão que se busca conhecer, o sentimento que o entrevistado esboça ao tratar

do tema proposto, a forma como reage ao refletir sobre a questão e a eventualidade

de conflitos nas falas dos depoentes, durante a sistematização das mesmas. Para a

realização das entrevistas que compõem os dados dessa pesquisa, procuramos fazer

um levantamento prévio da condição sócio-histórica regional, para que esse

conhecimento facilitasse a interlocução com os entrevistados e, assim, melhor

compreender as informações fornecidas.

O conjunto de dados obtidos em campo produz, assim, um estudo de caso

sobre a realidade retratada. Apoiando-nos em Goldemberg (2001), tomamos essa

modalidade como sendo uma análise que considera o grupo social estudado em sua

totalidade, sendo possível captar suas interações coletando a maior quantidade de

informações disponíveis.

A autora cita que não é viável estabelecer um manual de procedimentos,

quando se emprega essa estratégia, dada a percepção de que cada trabalho nesse

sentido é único, assim como a coleta de dados não segue um padrão e há

possibilidade de surgirem situações que forcem o pesquisador a redimensionar seu

trabalho, como a imposição pelo entrevistado de questões não previstas originalmente

21  

ou pelo fato de questões que se supunham centrais se tornarem secundárias ou

deixarem até de ser relevantes para a pesquisa.

Escolhemos a metodologia utilizada nesta pesquisa considerando reflexões

com base na leitura de Maria Isaura Pereira de Queiroz ao apontar que a seleção das

técnicas de coleta e interpretação do material levam sempre em conta as questões

nas quais o pesquisador se baseou para estudar o objeto da pesquisa, considerando

que os indivíduos interpretam e dão significado aos seus valores e crenças com base

no grupo social. Todo indivíduo encerra uma parte que é particularmente sua e uma

parte que foi insuflada pelo seu meio: partes que se interpenetram, mas que ora estão

em harmonia, ora em oposição. (PEREIRA de QUEIROZ, In: LUCENA et al, 2008, p.

16)

Tal reflexão admite que o objetivo de interesse do pesquisador, embora se

concentre em uma questão presente no imaginário coletivo, não será uma regra de

que haja consenso entre os entrevistados, quanto à questão que se pretenda

esclarecer.

Nesta pesquisa, nos apoiamos no princípio defendido por Pereira de Queiroz

(2008) em que a metodologia qualitativa tem por função evidenciar os traços culturais

de uma sociedade, expondo pontos de conflito ou coesão, possibilitando estudos de

natureza comparativa que permitam verificar intercorrências. Nossa contribuição se

concentra em averiguar, em campo, a ocorrência de tais fenômenos e considerarmos

se as semelhanças ou diferenças em relação ao histórico de ocupação territorial, de

localização geográfica e de formação cultural decorrentes produziu um tropeirismo

residual, com características comuns ou se cada localidade representa um

particularismo em si.

Um estudo qualitativo foi condição, de primeira hora, no desenvolvimento da

investigação. Entendemos que o recorte proposto atinge relevância, ao abordar o

universo dos praticantes da atividade tropeira e de seus familiares ou demais

membros do grupo em que convivem em seus aspectos socioculturais, captando,

dessa forma, o papel da referida profissão na economia local com base na fala desses

indivíduos e na produção de etnografias das localidades onde residem e praticam

relações comerciais.

As comunidades eleitas como caso paradigmático à realização da pesquisa

são os bairros rurais de Fragária e Serra Negra, localizados na Serra da Mantiqueira,

em área rural do município de Itamonte, Minas Gerais; e o bairro rural de Campos

22  

Novos de Cunha, região da Serra da Bocaina, área do município de Cunha, São

Paulo. As comunidades apresentam alguns elementos comuns, como o relevo

escarpado, que inviabiliza em várias áreas a chegada de veículos automotores; a

existência em suas franjas de dois parques nacionais, que vetam a construção de

estradas ou propriedades novas, exigindo de seus residentes que apenas façam

algumas manutenções nos caminhos já consolidados, em grande medida as mesmas

picadas na mata utilizadas desde o ciclo do ouro e a localização geográfica dos

bairros, todos eles em região de divisa interestadual entre Minas Gerais e Rio de

Janeiro ou entre este e São Paulo.

Todas as localidades são remanescentes históricas do tropeirismo na região do

Vale do Paraíba. A ocupação territorial de Fragária e Serra Negra têm raízes no século

XVII. As Bandeiras paulistas com destino a Minas Gerais, após cruzarem a

Mantiqueira, na Garganta do Embaú, seguiam por trilha até as margens do Rio

Aiuruoca, cujas nascentes ficam no bairro Serra Negra, e percorriam caminhos junto

ao curso d’água em direção às jazidas de minério.

A ocupação territorial de Cunha, onde se insere Campos Novos, tem roteiro

semelhante ao anterior, pois, com a descoberta do ouro nas Minas, consolidou-se um

antigo caminho indígena que foi autorizado pela coroa portuguesa para o transporte do

material até o porto mais viável onde fosse possível embarcar os minerais para o Rio

de Janeiro e, posteriormente, para a metrópole lusitana. No mesmo século, foi aberto

o referido caminho, ligando Vila Rica (atual Ouro Preto) ao porto de Paraty, criando

paradas de tropa que deram origem a bairros rurais e, posteriormente, a novas

cidades, consolidando os adensamentos populacionais já existentes que estivessem

às suas margens, dentre eles a antiga vila do Facão, atual município de Cunha.

Campos Novos de Cunha começaria a surgir nos registros de época apenas no início

do século XIX; no entanto, já se verificaria no cenário regional uma complexa rede de

caminhos que seriam utilizados em larga escala, propiciando o desenvolvimento do

Vale do Paraíba posteriormente.

Com o ciclo do ouro, a experiência colonizadora interioriza-se, atraindo para as

regiões onde as lavras estavam em franca expansão, contingentes cada vez maiores

de indivíduos filhos do gentio da terra e portugueses em busca do enriquecimento

rápido. Os tropeiros foram peças fundamentais nesse processo, pois, ao transportar a

matéria extraída e garantir o abastecimento dessas localidades, já que toda a mão de

obra disponível estava à serviço do garimpo, em detrimento da produção de bens de

23  

consumo e gêneros alimentícios, o tropeiro foi indiretamente um dos responsáveis

pela viabilidade da vida no interior do território.

Suas paradas de descanso converteram-se em locais propícios à atividade

comercial e ao estabelecimento de famílias que buscavam maior contato com as

novas tendências. Os latifundiários começaram a residir no adensamento urbano e só

retornavam à propriedade rural em épocas específicas, como na colheita, e por

ocasião da venda da produção. Várias dessas localidades se tornaram, décadas mais

tarde, prósperas cidades.

A região do Vale do Paraíba e Serra da Mantiqueira serve-nos como caso

emblemático, pois, através de pesquisa anterior1, observamos que as cidades distam

entre si, uma média entre dezoito e vinte e quatro quilômetros, distância que

corresponde a uma jornada diária da tropa e perfaz o trajeto que uma tropa aguentava

percorrer, variando de acordo com o relevo da região, condições climáticas favoráveis

ou quantidade de carga transportada. A cada trecho percorrido, nota-se que, se não

há uma cidade, ao menos existe um bairro rural, o que indica indiretamente ser aquele

local uma parada para descanso dos tropeiros e viajantes.

A atividade tropeira na região iniciou seu processo de declínio ainda durante o

século XIX, com a chegada das estradas de ferro, cuja expansão se deu,

paulatinamente, com o leito ferroviário do Vale do Paraíba correndo próximo às

margens do rio, atraindo para essa órbita um novo ciclo de desenvolvimento, ao

consolidar algumas cidades como importantes entroncamentos ferroviários. Ficou a

cargo das tropas, a partir de então, a função de conectar os locais mais longínquos

com as estações de trem mais próximas, retomando uma de suas atribuições

precípuas de romper o isolamento a que eram submetidas localidades mais afastadas

e colocá-las em contato com as tendências vindas das cidades maiores e, no caso da

região em questão, da então capital do país.

A entrada do Brasil na era das rodovias, nos anos 1950, marco que a literatura

considera como uma das grandes fases do modelo desenvolvimentista, e cujas

estradas de rodagem – no caso do Vale do Paraíba, a Via Dutra – são os principais

expoentes. Esse desenvolvimento culminou com o encerramento da atividade tropeira

em muitas regiões do país, pois tornou possível a chegada de automóveis, pequenos

caminhões ou mesmo ônibus a muitos locais que até então só eram servidos por

                                                            1 Pesquisa de iniciação científica intitulada “O culto à memória e a memória negada: um estudo sobre os tropeiros do Vale Histórico”, que realizamos com financiamento da Fundação de Amparo À Pesquisa do Estado de São Paulo entre janeiro de 2009 e junho de 2010, sobre a presença do tropeirismo na região do Vale do Paraíba histórico e seu legado à cultura local.

24  

diligências em lombo de burro. No entanto, nas regiões mais escarpadas, onde não foi

possível a construção de estradas, o tropeirismo sobreviveu como, senão a única, uma

das poucas formas de contato entre a zona rural e a cidade, permanecendo em uma

relação de dependência entre esse modal considerado “obsoleto” e as comunidades

afastadas. Nosso foco de interesse são as características desse tropeirismo

sobrevivente na contemporaneidade.

Propomos, para fins elucidativos, um corte cronológico que melhor situe a

discussão sobre o tropeirismo, a partir de duas perspectivas: de um lado, o movimento

que se iniciou durante o período colonial, exercendo a primazia no transporte de bens

e, em menor escala, de pessoas, atravessou o século XIX até meados do século XX

como complementar à atividade ferroviária e só sucumbiu às estradas de rodagem – a

este chamamos de “tropeirismo clássico”. Em contrapartida, tem-se a atividade

tropeira típica de lugares afastados, que a ferrovia não alcançou, e cujas estradas são

bastante precárias. Trata-se de uma das hipóteses levantadas neste trabalho, que

confirmamos a partir da coleta de dados em campo aliada à compreensão da

bibliografia proposta, que diz respeito a um “tropeirismo residual”. É ele que descende

do tropeirismo clássico quanto à forma, mas não estabelece dependência quanto a

este, visto que o tropeiro contemporâneo, cuja figura o matuto das serras da

Mantiqueira e Bocaina seria seu maior expoente, está inserido em uma lógica de

mercado, algo inexistente em tempos anteriores. Esse formato é o que permanece até

os dias atuais.

Esse homem contemporâneo, que exerce atividade tropeira tal como a

consideramos, nos dias atuais, quase sempre herdou a profissão de um familiar

próximo ou de alguém com quem conviveu intimamente. Dessa relação surgiu a

transferência de conhecimentos básicos para o desenvolvimento dessa prática e a

habilidade necessária para atravessar os diversos tipos de caminho por onde

trafegavam.

O tropeiro de outrora, saído dos rincões do sertão rumo às estradas, sem

época certa de retorno, tendo consigo a confiança do fazendeiro em transportar a sua

produção agrícola e a dos moradores das localidades em serem abastecidos com

gêneros de sua necessidade premente, deu lugar ao tropeiro contemporâneo, que

hoje realiza jornadas mais curtas, em que a relação entre espaço e tempo se

confunde. Atualmente, há um dia certo de saída e de retorno, destinação certa para

compra e venda, fretes firmados por vizinhos que necessitam ainda dessa relação e

por turistas que, movidos pela lógica de consumo, tornaram-se fregueses das tropas

aos finais de semana em Visconde de Mauá (RJ).

25  

As cargas transportadas contemporaneamente também não são as mesmas

que proporcionaram o sucesso econômico de outrora. Hoje trata-se de uma atividade

de subsistência, fruto de um imperativo geográfico e de um grau de desenvolvimento

econômico local, em descompasso com relação ao cenário regional. Os minerais

preciosos e o café, largamente transportados em lombo de mula pela região, deram

lugar a pequenas cargas de madeira, colheitas de milho e feijão, além de materiais de

construção, na região da Serra da Bocaina. Em relação à Mantiqueira, somam-se a

essas tarefas, o transporte de queijos, mel, geleias e ovos aos turistas e comerciantes

do destino turístico de Visconde de Mauá, que aguardam a chegada das tropas, aos

sábados, para adquirirem seus produtos.

As comunidades escolhidas como casos paradigmáticos para compreensão do

tema proposto foram selecionadas considerando seus aspectos geográficos

(localizadas em terrenos escarpados, em meio a região de serra), históricos (bairros

cuja história remete ao tráfego intenso de tropas de mulas) e culturais (presença, nos

hábitos e costumes das populações, de traços legados pela passagem e instalação de

tropeiros na região).

Para a seleção de entrevistados, respeitamos a clivagem temporal e

consideramos o período do “tropeirismo residual” a partir do início dos anos 1970,

quando as rodovias da região já se encontravam consolidadas e o processo de

expansão industrial seguia a todo vapor, atraindo famílias de regiões mais remediadas

para as cidades à beira da Via Dutra – onde as indústrias se instalaram. Nos dias

atuais, o tropeirismo persiste de modo ressignificado, pois, apesar de se encontrar na

zona rural, utilizando-se de tecnologia típica do período colonial, está inserido dentro

de uma lógica de mercado, o que difere do tropeirismo dito clássico. Os informantes

selecionados em campo obedecem às seguintes categorias: pessoas que exerceram a

atividade tropeira e experimentaram as duas lógicas mencionadas; as que ainda

praticam essa modalidade nos dias atuais e os descendentes dos dois tipos. O intuito

dessa seleção foi identificar como era desempenhada antigamente a atividade tropeira

e como ela se transforma ao longo do tempo, captando as reflexões dos pesquisados

a respeito da função social desse ofício, tanto para as relações sociais como para o

desenvolvimento das localidades retratadas.

Se retomarmos o processo de evolução histórica dos homens, veremos que,

em grande medida, o conhecimento apreendido foi transmitido entre as diferentes

gerações através da oralidade. Isso demonstra a importância dos relatos orais na

configuração de fontes verossímeis de informação e que podem contribuir

26  

positivamente para as pesquisas no campo das Humanidades. O método empregado

em campo para a coleta de depoimentos de tropeiros contemporâneos, ex-tropeiros e

descendentes leva em conta a particularidade de que se trata de uma função laboral

cuja relação de aprendizagem se dá entre os sujeitos, a partir de conhecimentos

empíricos. Tanto para captar o olhar desses sujeitos para a prática desempenhada

nas comunidades, quanto à compreensão desse processo de transmissão de

conhecimentos entre os sujeitos, que podem ser do mesmo grupo ou não, nosso

aporte reside nos recursos metodológicos da história oral, das técnicas aliadas à sua

aplicação e ao modo como ela se articula com a Etnografia.

1.2 - História oral: percursos e contribuições para pesquisas sociológicas

Esta pesquisa, ao tentar compreender o sentido contemporâneo da atividade

tropeira, considerando particularidades como a situação geográfica das comunidades

onde tal ofício ainda é praticado, o contexto histórico local baseado na ocupação

territorial e os traços culturais presentes nos hábitos, valores e crenças, filia-se em

grande medida aos pressupostos presentes na história oral.

Utilizar o método biográfico ou da história oral envolve uma complexa gama de

leituras e interpretações. Considerando-a enquanto método de pesquisa, nos

baseamos na proposição de Verena Alberti:

A história oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. (ALBERTI, 2004, p.18)

Aplicamos esta influência no trabalho de campo à medida que observamos a

realidade vivida das comunidades e entrevistamos informantes selecionados, já de

posse das questões previamente elaboradas. Nas entrevistas abertas, o fato de

deixarmos os informantes falarem (dando voz e liberdade às suas expressões), levou

alguns dos depoentes a nos contar sua história de vida, algo que, por sua

espontaneidade e informalidade, emerge e que traz olhares muito ricos, cuja

contribuição à elucidação das questões propostas foi indispensável.

Haguette (1987) menciona que história oral pode ser tudo aquilo que advém da

oralidade, como gerações, discursos, conversas e demais tipos passíveis de

transcrição e cuja preservação, enquanto fonte primária, possa ser objeto de interesse

27  

e utilização futura pela comunidade acadêmica, conforme varie o interesse da

pesquisa sobre o objeto a ser pesquisado.

De forma complementar a essa abordagem, é a fala de José Carlos Sebe Bom

Meihy (1996) que frisa a importante contribuição metodológica da história oral, pela

possibilidade de estudar a experiência social de indivíduos ou de comunidades, com

base na elaboração de documentos que tenham por objeto sua utilidade prática, ou

seja, uma história viva. “Como método, a história oral se ergue segundo alternativas

que a privilegiam como atenção central dos estudos. Trata-se de focalizar os

depoimentos como ponto central das análises”. (MEIHY, 2000, p. 31)

O que significa dizer, com base na leitura acima, que as fontes orais, enquanto

método, devem ser o ponto central da investigação, considerando que os informantes

selecionados possuem algum tipo de ligação ou contato, seja pela vivência, seja pela

memória afetiva, com a atividade tropeira.

Por ser a história oral uma modalidade que abarca diversas especialidades, de

acordo com Thompson (1992), trata-se de uma técnica de pesquisa que advém da

História, mas que pode ser empregada em muitas áreas da mesma disciplina, como

História Econômica, História Política, História da Religião, História das Ciências ou

mesmo em auxílio a profissionais de outros campos do saber como sociólogos,

antropólogos, psicólogos ou jornalistas.

A história oral implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. (MEIHY, op. cit., p. 18)

A história oral presta valorosa contribuição para contar a história de pequenos

grupos, corporações e, neste caso, é possível enquadrar a figura dos tropeiros, pois

esses personagens, cujos registros escritos são limitados, justificam a aplicação dessa

técnica de investigação como estratégia para contar a história do tropeirismo na região

selecionada. Ela nos permite sair da posição de “desvantagem”, em relação aos dados

que figuram na história oficial e, assim, ampliar o rol de conhecimentos sobre o tema.

As evidências orais nos permitem retomar aspectos desses grupos que nem sempre

foram registrados, mas que persistem como traços culturais característicos ou que não

possuam documentação a respeito. Assim, as evidências orais vêm contribuir para

ampliar a discussão sobre suas práticas,

[...] o relato oral constituirá sempre a maior fonte humana de conservação e difusão do saber, o que equivale a dizer, foi a maior fonte de dados para as ciências em geral. (PEREIRA de QUEIROZ. 2008, p.37. In: LUCENA et. al, 2008 )

28  

Retornando a abordagem de Pereira de Queiroz (2008), foi quase sempre uma

constante na história da humanidade a utilização de fontes orais para a transmissão

de conhecimentos. As ciências modernas apoiaram-se largamente nesse recurso, cuja

coleta de depoimentos pode ser feita a partir de alguns modelos como história de vida

– que pode ser individual ou de um grupo; biografias ou autobiografias; entrevistas

abertas – que podem ou não ser controladas por tópicos-guia; conversas ou bate-papo

informal e questionários fechados. Para efeitos didáticos, nos deteremos às três

modalidades empregadas com maior recorrência: histórias de vida, entrevistas abertas

e conversas informais.

A história de vida, de acordo com Pereira de Queiroz (2008), foi utilizada pela

primeira vez, nas ciências modernas, no campo da Psicologia, partindo do social,

analisando a personalidade dos indivíduos e como esta é moldada conforme as

influências do grupo onde a pessoa se encontra inserida, quais interfaces existem

entre o indivíduo e o coletivo e suas reações diante de determinadas situações, se

consideramos que suas ações estão carregadas de significados, produzidos no

contato com o grupo.

Como na Sociologia, o ponto central é o ser social, que é estudado através dos

comportamentos visíveis e nas relações estabelecidas entre o grupo e os que dele

participam, assim, o interesse pela história oral só se consagrou quando se admitiu

que traços culturais não seriam algo estritamente individuais, mas sim produtos com

carga de valor coletivo, algo inerente à vida vivida dos seres humanos.

Os relatos de história de vida sugerem problemas sociológicos ou não. Com o

problema de pesquisa formulado, escolhe-se o método mais adequado ao universo da

investigação, dentre os quais a história oral e suas várias técnicas. Posterior a isso,

quando optamos pela história de vida, podem-se realizar entrevistas com esse caráter

e, a partir disso, dissociar o que é experiência coletiva, com base também nas

observações do campo e de conhecimentos anteriores sobre o tema.

Uma observação importante, quando se coletam histórias de vida de cunho

sociológico, é a formulação prévia de uma ou mais indagações que se quer esclarecer

já que, a partir do viés estabelecido entre a narrativa do depoente e a elucidação da

questão, é que se orientarão as fases da pesquisa: preparo do pesquisador, escolha

dos informantes, entrevistas e análise dos dados extraídos.

Toda história de vida tem de ser um depoimento, isto é, não apenas um relato cronológico de acontecimentos, mas trazer em si a riqueza

29  

de sentimentos, opiniões e atitudes da pessoa que a relata. (PEREIRA de QUEIRÓZ, op. cit., p. 86)

Ainda segundo Pereira de Queiroz (2008), para o sociólogo, os depoimentos e

os fragmentos de história de vida contribuem para o processo de pesquisa, à medida

que nos permitem situar as práticas que queremos conhecer, compreender ou

analisar, qual a quantidade de material, se é produto de um imaginário coletivo, se há

abundância de depoimentos, existência de pontos de conflito nas falas, se as mesmas

informações e impressões se repetem, em maior ou menor escala.

A experiência de campo, nesta pesquisa, foi ampliada com algumas entrevistas

que seguiram a temática da história de vida, já que, em algumas famílias, avaliamos

que falar a respeito do papel do tropeiro tem o mesmo sentido de referir-se à própria

história e contexto familiar. Nos bairros rurais que visitamos, a história da tropa se

confunde com a própria história local, pois os moradores atribuem o desenvolvimento

dos lugarejos ao transporte do que anteriormente era realizado, em lombo de mula.

A fim de que a coleta de dados possa dar conta dessas possibilidades, é

bastante recomendável que o problema de pesquisa seja claro e que diga respeito à

vida ou às relações sociais presentes na comunidade, até para otimizar a escolha dos

informantes e a seleção dos dados. Todo o processo de análise leva em conta as

questões levantadas que nortearam a pesquisa. Na análise, procura-se verificar

justamente a confiabilidade das informações obtidas, através dos depoimentos e

documentos coletados. Isso nos dá a capacidade de crivar a verossimilhança da

informação.

De acordo com Pereira de Queiroz (2008), até mesmo a “inverdade” com

relação a determinados acontecimentos torna-se um dado relevante, pois pode indicar

uma valorização exacerbada ou uma desvalorização social que o indivíduo voluntária

ou involuntariamente rejeita, ignora ou contradiz.

A história de vida aparece, nesta pesquisa, como uma escolha, a partir da

importância que o tema tem para a vida de determinados entrevistados. Apoiamo-nos

em tópicos-guia para a realização das entrevistas, mas, ao tratar de determinados

nuances, como a forma de transmissão de conhecimentos no seio da tropa, a memória

que cada entrevistado possui sobre a presença de tropeiros ou, mesmo, quando

refletem sobre os hábitos que ainda cultivam e que remetem a época do “tropeirismo

clássico”, alguns entrevistados acabaram nos contando sua própria história.

Apreendemos disso que há casos em que a história pessoal do indivíduo não se

dissocia da história da presença das tropas na região, como é o caso principalmente

30  

dos entrevistados da Fragária e Serra Negra, em que os tropeiros em atividade

atualmente descendem de grandes troncos familiares em que as tropas foram uma

constante na manutenção da família, sendo todos os homens praticantes do ofício de

tropeiro.

Considerando que nem sempre as condições para a realização dessa

modalidade de pesquisa em campo se mostraram ideais, seguimos o que preconiza

Pereira de Queiroz (2008), ao levarmos em conta a situação da entrevista, os

temperamentos do pesquisador e dos entrevistados e observarmos outros fatores que

poderiam influenciar na forma de condução da entrevista, como eventuais inter-

relações de um fato relembrado que leva a outro, por parte do depoente. Para evitar

essa ocorrência, elaboramos um perfil dos entrevistados, com algumas informações

relevantes a respeito dos depoentes, obtidas previamente, buscando pinçar dados

para a análise.

A técnica relacionada à história oral que nos dedicamos a analisar, tendo em

vista ser a modalidade aplicada na maior parte das entrevistas feitas em campo, são

as entrevistas abertas. Sua estrutura caminha no mesmo nível de complexidade das

histórias de vida, no entanto o pesquisador as realiza sem preocupação em pautar seu

argumento exclusivamente no imaginário coletivo. Nessa categoria, tratamos em

conjunto as conversas informais, pois, muitas vezes, surgem como desdobramento de

entrevistas, dada a frequência com que somos abordados por pessoas que não

necessariamente entrevistaríamos, mas que demonstram algum nível de

conhecimento sobre a questão central de nossa investigação e alguma disponibilidade

em nos dar informações.

Olhando a aplicação dessa técnica pelo viés sociológico, as primeiras

experiências que podemos considerar sobre sua utilização deram-se com os Estudos

de Comunidade, iniciados na Universidade de Chicago (EUA) a partir dos anos 1920

(Oliveira & Maio, 2011).O desenvolvimento dessa modalidade de estudo demanda

recursos de pesquisa em que o objeto da análise seja a vida social de uma

comunidade pesquisada in loco em todos os seus aspectos, social e economicamente,

em que o pesquisador estabelece comparações com o universo mais amplo do grupo.

A troca de olhares é a forma, por excelência, que os pesquisadores do campo

das ciências sociais utilizam na captação de dados, baseada em uma quantidade de

conversas entre o pesquisador e o entrevistado, em que se estabelece uma relação

que possibilita ou estimula a transferência de conhecimento entre eles, com base no

31  

interesse do primeiro em elucidar questões de sua pesquisa a partir das reflexões do

segundo.

Conduzimos as entrevistas a partir de uma sequência de três roteiros de

tópicos-guia, elaborados previamente, para que fosse possível extrair informações de

tropeiros atuais, ex-tropeiros e descendentes de tropeiros, traçando pontos a serem

esclarecidos e nos valemos, também, de depoimentos informais, além das histórias de

vida já mencionadas. Nesse caso, há que se ter cuidado redobrado, levando em

consideração que as questões problematizadas são do pesquisador e não do

depoente, portanto, sem um mínimo direcionamento, corre-se o risco de, ao final da

entrevista, não terem sido elucidados os questionamentos que norteiam a pesquisa.

De acordo com Pereira de Queiroz (2008), contribui para a otimização da

coleta de dados (entrevistas) em campo o esforço prévio de levantar o histórico da

comunidade através, não apenas da historiografia, como também de fontes primárias,

como recortes de jornais atuais ou antigos, documentação histórica, estatísticas e

dados governamentais que, apesar de terem sido pensados para outra finalidade,

representam um ponto de partida seguro para a investigação.

Em determinadas regiões, pode-se observar que a base da aproximação se

verifica quando o pesquisador, já na abordagem aos entrevistados, demonstra que

conhece minimamente a história do assunto a pesquisar ou da região retratada. Essa

estratégia costuma redundar em resultados bastante satisfatórios, principalmente

quando se está trabalhando com comunidades cujo acesso não será facilitado por um

informante preferencial ou conhecimento da dinâmica local.

O informante preferencial é o entrevistado que usualmente apresenta o campo

ou aponta outros depoentes que, no universo retratado, julga serem os portadores de

histórias que mais contribuirão com o pesquisador. Seu papel no processo da

pesquisa varia de acordo com a inserção que possui no grupo objeto de análise. Há

casos em que é um conhecedor tão apurado da realidade local, que a coleta de uma

história de vida desse indivíduo surge quase que naturalmente; em outros casos,

reúne conhecimentos não tão específicos e é preciso discernir até onde sua

participação é imprescindível no processo de investigação.

Enquanto nas histórias de vida é comum haver certa noção de descontinuidade

no intercurso do tempo (o que pode ser indicativo sobre a questão analisada), nas

entrevistas guiadas por tópicos ou conversas informais, o entrevistador deverá

32  

conduzir as perguntas de modo a abranger suas hipóteses de trabalho, fazendo

perguntas específicas em que o desvio cronológico pouco influirá.

Na coleta de depoimentos, conforme Pereira de Queiroz (2008), devemos nos

colocar como coordenadores do processo de entrevista, explicitando nosso objetivo,

buscando extrair do narrador os aspectos que contribuem para a pesquisa em curso,

evitando digressões desnecessárias e mantendo o depoente na medida do possível

dentro das questões que desejamos solucionar. Por termos um roteiro de questões já

estabelecido, essa foi a forma mais utilizada de conduzir as entrevistas. No entanto,

nas histórias de vida, até por sua característica de dar ao entrevistado o exercício da

liberdade da informação, procuramos interferir o mínimo possível na narrativa, dando

espaço para as impressões do entrevistado. As oscilações cronológicas se dão de

forma espontânea, já que o esforço, por parte do depoente, muitas vezes é revisitar

traços de sua memória e recuperar registros que não acessa com frequência, daí a

abundância de informações e riqueza de detalhes que se pode captar através dessas

informações, fazendo com que a coleta de dados revele traços até então ignorados,

como no caso de Fragária e alguns bairros vizinhos que compartilham a mesma

origem, tendo sido fundados por irmãos e pertencendo todos a um mesmo tronco

familiar.

Com a utilização da metodologia da história oral, pretendemos captar traços da

sociabilidade dos bairros rurais de Fragária, Serra Negra e Campos Novos de Cunha,

a partir da recuperação dos acontecimentos guardados na memória dos indivíduos. De

acordo com Halbwachs (1990), a memória não é algo exclusivamente individual, mas

sim um fenômeno coletivo e social. Pollak (1992) considera como elementos

constitutivos dessa memória, que pode ser individual ou coletiva, as experiências

pessoais e as experiências do grupo, em que também podem se enquadrar outros

personagens, de maneira indireta, ou acontecimentos que não necessariamente

tenham sido contemporâneos dos narradores do fato, mas que, por sua simbologia,

foram incorporados por gerações posteriores.

A história oral, por sua característica de captar percepções e contar a história

de grupos que não foram largamente explorados, pode ser considerada como um

recurso oportuno para analisar, no seio da comunidade, momentos de transformação,

seja cultural, econômica ou social. Para isso, considera-se na fala dos indivíduos

estilos diferentes que Pollak (1992) aponta como estilo cronológico, estilo temático e

estilo factual.

33  

O estilo cronológico, para o autor, consiste em pensar-se a si próprio como

uma continuidade, pressupondo-se que seja uma narrativa típica de pessoas com

alguma escolaridade, mas com elevado grau de inserção política dentro do grupo.

O estilo temático é quando o narrador seleciona os episódios que considera ser

mais representativos da história local. É pautado, sobretudo, em narrativas de pessoas

com alto grau de escolaridade que fazem uma reflexão apurada do que dirão. Nesses

casos, o pesquisador deve ficar atento a incongruências do discurso, que costumam

ser seguidas de omissões propositais ou não, eventuais indicativos de pontos

nevrálgicos nas relações sociais.

O estilo factual é marcado por ausência de linearidade no discurso.

Corresponde à leitura sobre os acontecimentos de pessoas com baixíssimo grau de

instrução, que narram fatos a partir de lembranças aparentemente desconexas, mas

que expressam grande riqueza de dados, cabendo ao pesquisador pinçar as

informações mais relevantes.

Para a realização de entrevistas, deve-se observar a importância do local onde

o encontro entre pesquisador e narrador se dá. Nos depoimentos orais, como

usualmente serão pautados por questões já delimitadas pelo pesquisador, o ambiente

não terá grande influência. No entanto, para a realização de histórias de vida, esta

seria quase um condicionante. Entrevistas nessa modalidade, feitas na residência do

indivíduo ou em lugares onde este habitualmente frequenta, se o pesquisador se

atentar para detalhes do ambiente, muitas vezes encontrará dados valiosos que

podem ser elucidativos de uma ou mais questões ou apontar contradições entre o

discurso e a forma como realmente se deram os fatos, possibilitando explorar esse

“descompasso” posteriormente ou incorporando-o à análise, caso a evidência do local

solucione alguma de suas questões.

Procuramos expor o formato metodológico que se revelou mais adequado ao

desenvolvimento da pesquisa, com base em leitura prévia do arcabouço teórico sobre

o tema e em atividades de campo amparadas por leituras metodológicas que

pudessem contribuir para a obtenção de informações. A história oral foi a metodologia

que privilegiamos, dada a centralidade que deve ter a fala dos depoentes para a

compreensão do objeto proposto, e por utilizarmos suas impressões pessoais em

grande medida para o esforço de reconstituição histórica da região.

Em síntese, revelando-se a paisagem de ambas as regiões com

particularidades históricas e geográficas que as aproximam, um estudo etnográfico

34  

comparativo entre as realidades observadas nas três localidades, através da aplicação

metodológica da história oral para a coleta de entrevistas e interpretação dos dados

obtidos, traz luz à questão principal desta investigação: qual o sentido, em pleno

século XXI, com a farta disponibilidade tecnológica presente, de se empregar uma

atividade laboral típica de uma época marcada pela precariedade de meios e vias de

transporte, utilizando tropas de mulas para o transporte de mercadorias? Dotados do

aporte teórico e metodológico expostos é que nos lançamos à coleta, interpretação e

análise do material obtido.

1.3 - Do processo colonizador surgem os tropeiros.

A reflexão central contida nesta pesquisa leva em conta o questionamento

sobre qual o sentido, em pleno século XXI - época em que a circulação de pessoas e

mercadorias constitui um imperativo - de localidades ainda lançarem mão de uma

prática de transporte típica do período colonial em regiões próximas aos centros

urbanos; qual a importância da atividade tropeira nos dias atuais; qual o sentido de

desempenhar essa função presente entre seus praticantes; como descendentes

refletem sobre a profissão de seus ancestrais; qual a função social da tropa nas

comunidades em que ainda se verifica sua permanência e se entre o grupo

pesquisado há o desejo de continuar no exercício da mesma prática, considerando os

aspectos geográficos e culturais na contemporaneidade.

Essas questões surgiram a partir de pesquisa anterior de iniciação científica

que realizamos sobre a presença histórica do tropeirismo no Vale do Paraíba Paulista,

sobretudo na sub-região do Vale Histórico, tendo como foco de análise o município de

Silveiras. Nas atividades de campo, havíamos observado que os hábitos e costumes

dos tropeiros foram incorporados aos traços culturais da comunidade e sua atividade

laboral, considerada imprescindível para o desenvolvimento regional. Dentre os

aspectos levantados, há evidências da existência contemporânea de atividade tropeira

em regiões próximas, principalmente em bairros rurais encravados nas serras da

Bocaina e da Mantiqueira e a investigação de tal ocorrência originou a pesquisa que

ora apresentamos.

A região do Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira – loci privilegiados

deste trabalho - possui uma ligação não apenas histórica como cultural com as tropas

de mulas, devido à sua localização estratégica no caminho das Minas Gerais. O

tropeirismo desenvolveu-se conforme se descobriam novas jazidas minerais e o

material extraído era transportado pelos caminhos reais que cruzavam a região, assim

como os gêneros de abastecimento que mantinham os mineradores. Nesse caso,

35  

consolidou-se o entendimento do tropeiro como um agente social que influenciou

fortemente a organização social da zona valeparaibana e possibilitou a emergência de

grandes fortunas a ele atreladas, como é o caso dos cafeicultores, tornando a região

um eixo econômico dos mais relevantes para o posterior desenvolvimento brasileiro.

O fenômeno do tropeirismo, se considerado enquanto uma categoria de seres

organizados socialmente, pode ser analisado a partir de suas ações sociais. Nesse

aspecto, sua atividade laboral aparece sendo desempenhada por grupos presentes

em regiões brasileiras que tiveram a finalidade de estabelecer um fluxo transportador e

comunicador entre os adensamentos populacionais do litoral e as vilas do interior do

Brasil, sendo esse um tipo humano que ocupou espaço privilegiado na dinâmica das

relações sociais e foi responsável pelo rompimento do isolamento geográfico entre as

várias regiões do território que se desenvolveram nos séculos XVIII e XIX.

Uma leitura detida sobre o tema permite a recuperação do tropeiro enquanto

agente social, a partir de uma perspectiva histórica, chegando à discussão sociológica

do papel por ele exercido. Importantes intelectuais brasileiros dedicaram-se, em certa

medida, a temas que chegam próximo à abordagem do tema do tropeirismo, embora

não tenham por finalidade analisá-lo isoladamente do processo sócio histórico mais

amplo.

O primeiro ponto a ser considerado diz respeito ao modo particular de

povoamento e ocupação territorial da América Portuguesa, ao sabor da natureza,

evitando-se, conforme Caio Prado Júnior (2004), o estabelecimento de núcleos

povoadores em locais cujas condições geográficas fossem desfavoráveis à efetiva

comunicação entre as terras além-mar e a metrópole. Inicialmente, por uma questão

logística, o sentido colonizador da colônia se deu ao longo da faixa litorânea, não se

registrando, ao menos no século do descobrimento, incursões de grande relevo ao

interior do território, exceção feita a São Paulo, que teve sua fundação no planalto,

atrelada à experiência jesuíta de catequização indígena, evitando, assim, influências

externas dos colonos lusitanos.

O povoamento disperso, sob esta ótica, foi uma marca presente no Brasil por,

ao menos, dois séculos, ressaltados, nas palavras do referido autor, três trechos da

costa onde os adensamentos populacionais desenvolveram-se com maior sucesso e

onde se verifica, até os dias atuais, relevante concentração demográfica: entre os

atuais estados de Alagoas e Rio Grande do Norte, a região do Recôncavo Baiano e a

Baixada Fluminense, em torno da Baía de Guanabara.

36  

O século XVII, conhecido como século das bandeiras, circunscreve-se como a

primeira empreitada em larga escala com vistas à exploração territorial do sertão. Os

bandeirantes saíam em busca de minerais preciosos, porém, o interesse pela mão de

obra indígena cativa era predominante. Embora tivessem percorrido quase todos os

pontos da América Portuguesa, os sertanistas apenas se portavam como preadores,

sem preocupação em fixar unidades de povoamento. Somente a partir do século XVIII,

de acordo com Prado Júnior (2004), é que afluíram para o interior do território

sucessivas correntes de povoadores, devido à descoberta das jazidas de minerais

preciosos nas Minas Gerais, em Cuiabá e em Goiás.

O litoral, entretanto, continuou a exercer primazia sobre o adensamento

populacional, já que era por via marítima que se davam as mais relevantes transações

comerciais até então. O autor acima citado aponta que, em vários trechos da costa, as

adversidades climáticas, de relevo ou de vegetação impediam o estabelecimento de

adensamentos consistentes. Os locais mais propícios à ocupação do solo foram

explorados à exaustão, entre o Nordeste, onde se desenvolveu a produção açucareira,

e o Rio de Janeiro. A região de São Paulo que, até então, compreendia também o

atual estado do Paraná, teve experiência diversa, devido a geografia dotar esse trecho

do litoral de uma relativamente pequena faixa de planície em comparação com as

regiões mencionadas ao norte e se encontrar afastada dos grandes centros

populacionais da época, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro. Isso fez com que

desde muito cedo a região paulista despertasse para um modelo de desenvolvimento

buscando uma relativa autonomia em relação à política reinol. Devido à incipiente

produção de açúcar, em comparação à do Nordeste, e à falta de mão de obra, os

paulistas lançaram-se prematuramente aos sertões como uma das poucas formas,

senão a única, de estabelecer um fluxo de mercadorias que pudesse abastecer seu

mercado interno.

O povoamento do interior ocorreu de modo mais significativo à medida que as

bandeiras encontravam as jazidas de ouro e se estabeleciam as primeiras lavras de

exploração. Inicialmente, os caminhos para as Minas Gerais partiam de São Paulo e

se consolidaram as estradas reais para o escoamento do material extraído. Regiões

intermediárias durante o trajeto, como é o caso do Vale do Paraíba, tiveram sua

primeira fase de desenvolvimento fortemente atrelada a essa dinâmica e à demanda

que esse ciclo produtivo gerava. Desse fato decorre o início da utilização, em larga

escala, das tropas de mula, com a finalidade de transportar os minerais entre as lavras

e o porto de mar, além do abastecimento das mesmas com os bens de consumo

necessários a manutenção da vida nas lavras.

37  

A corrente de povoamento do ciclo da mineração teve por característica

estabelecer uma rede de núcleos populacionais espalhados pelo território, cujas

distâncias entre eles ou entre a região e o litoral demandavam grandes jornadas para

alcançá-los, por isso o aprovisionamento destas é outro aspecto relevante; o relevo

acidentado e o solo extremamente rochoso mostravam-se hostis à prática agrícola,

cabendo a localidades mais distantes fornecerem alimentos e demais gêneros para a

zona mineradora. Nesse caso, conforme Prado Júnior (2004), outra prática marcante

na expansão de contingentes populacionais rumo ao interior do território foi à pecuária.

Além da população litorânea, também os habitantes do sertão eram abastecidos de

carne pelas diversas regiões, cuja criação de gado voltava-se ao abastecimento

colonial, caso do Médio São Francisco, que fornecia alimentos para as jazidas

mineiras, cuiabanas e goianas; o atual Piauí, que atendia o nordeste açucareiro e as

charqueadas do Sul do Brasil. Quanto ao gado cavalar, do qual se originam as mulas

que compõem as tropas, trataremos dessa relação em outro momento.

A região do planalto paulista, no contexto colonizador, afirmou-se como um

caso excepcional por sua localização entre a montanhosa região mineradora e os

campos sulistas; pela distância entre a então vila de São Paulo e o porto mais

próximo, embora fosse preciso vencer a Serra do Mar; pelo fato de que grande parte

dos rios de seu território, cujo Tietê é o maior expoente, ao invés de correrem para o

oceano, têm fluxo inverso, no sentido do vasto interior; ou seja, todas as

características se mostravam favoráveis à expansão territorial rumo aos mais remotos

rincões.

Iniciada a colonização, é por São Paulo que se farão as primeiras penetrações do continente: para o altiplano central (Minas Gerais), para a grande depressão interior do continente (Bacia do Paraguai), para os campos do Sul. Penetração exploradora e preadora de índios, a princípio; prospectora de minas e povoadora afinal. (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 65)

A partir das considerações do autor, observamos que, pelas condições únicas

apresentadas, São Paulo foi o ponto inicial ideal para as incursões rumo ao sertão

desconhecido da colônia, convertendo-se em região de passagem para toda a sorte

de expedições aventureiras e bandeirantes à procura de riquezas, fazendo com que

durante o período colonial não se desenvolvessem no adensamento urbano atividades

econômicas de vulto, sendo a base da economia paulista, ao menos durante os dois

primeiros séculos, o comércio de escravos indígenas, capturados durante as

bandeiras, e o abastecimento de gêneros alimentícios para as Minas Gerais, na

primeira fase da exploração aurífera. Conquanto não existissem caminhos mais curtos

ligando as lavras ao porto do Rio de Janeiro, apenas a partir do século XVIII é que a

38  

região de São Paulo, superada a fase das bandeiras, se lançará a atividades que

requisitem o sedentarismo de suas gentes, fornecendo as bases de seu

desenvolvimento ulterior.

Surge nessa fase o debate em torno dos tipos humanos presentes no período

colonial e imperial. O escravo2, personagem constante em quase todo o

desenvolvimento histórico do Brasil (exceção feita ao regime republicano), será neste

contexto uma “presença ausente”, pois se observará, em sua lacuna, o espaço em que

o homem livre comum surgirá nas relações sociais. De acordo com Maria Sylvia de

Carvalho Franco (1983), tratava-se de homens livres pobres que buscavam, ainda que

numa relação de dependência em relação aos potentados rurais, se afirmar na

sociedade, desempenhando serviços residuais. A autora trata de quatro tipos

humanos que foram trabalhadores a buscarem espaço em meio à hierarquização

social presente: sitiantes, agregados, vendeiros e tropeiros, sendo que o último

representou aquele que mais chances teve de ascender socialmente, por ser o único

que, em tese, estabelecia relação de dependência mútua com os fazendeiros, maiores

produtores de riqueza à época estudada.

A autora ressalta a importância do tropeiro para o escoamento da produção e

abastecimento das propriedades rurais, quando afirma que o traçado das estradas e a

precariedade crônica de sua conservação tornaram a besta de carga o único meio

possível de trânsito. (FRANCO, 1983, p.60). Ainda considera a autora que a figura do

tropeiro se enquadra entre a tecnologia rudimentar, presente no período colonial, e o

grande empreendimento mercantil atribuído à sua tarefa, já que, durante dois séculos,

cumpriu a função de transportador de cargas. Ele foi além, pois ficou a seu cargo

transportar notícias, informações, novas tendências, ou seja, em um período marcado

pela grande dificuldade de comunicação e circulação de mercadorias e pessoas, o

tropeiro levava aos rincões mais afastados do território as informações de caráter

político, as atividades sociais, além de novas dinâmicas culturais, contribuindo

diretamente para o incremento da sociabilidade e da cultura política entre os diversos

núcleos populacionais de serra acima.

                                                            2O regime escravista, de acordo com a literatura competente, foi o mais longo ciclo da vida econômica do Brasil. Inicialmente exercido sobre os indígenas que habitavam a América Portuguesa, foi paulatinamente substituído por contingentes trazidos da África à força, para a manutenção do desenvolvimento econômico colonial e, posteriormente, do Império. No entanto, tratamos nesta pesquisa justamente dos agentes inseridos na lógica do consumo e acumulação, na qual os escravos somente exerceriam participação efetiva após a abolição da escravatura, às portas da república. Não desconhecemos sob nenhuma hipótese sua participação nesse processo, porém, esta abordagem sobre a participação dos escravos em uma dinâmica que analisa as relações sociais e comerciais entre homens livres foge do escopo desta pesquisa e não será incorporada ao debate.

39  

A presença das tropas nas terras do Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira

decorre da abertura do caminho real entre Vila Rica e o Porto de Paraty para o

escoamento da produção aurífera. A região se converteu em polo produtor de gêneros

alimentícios para o abastecimento das lavras. Com o declínio da produção de ouro e o

início da agricultura cafeeira, a figura do tropeiro se afirma como elemento vital para a

manutenção econômica da região, pois, além de contribuir para a abertura de novos

caminhos, deu origem a novos adensamentos populacionais e consolidou o processo

de transporte da nascente lavoura de café.

Há no Brasil, quando tratamos do assunto tropeirismo, dois tipos humanos que

podem ser incluídos nessa categoria: um deles é o dono da tropa – negociante de

animais, que possuía certo número de muares e os levava às feiras e mercados

urbanos para venda em lotes ou às regiões de cultura negociando diretamente com os

proprietários de terra; o outro tipo é o condutor de tropas - aquele que seguia, muitas

vezes, com lotes variáveis, de acordo com a região geográfica, e era subordinado,

sendo por vezes conhecido como “tocador de burro”, é esse personagem o objeto de

reflexão neste trabalho.

Com base em Sérgio Buarque de Holanda (1994), consideramos que o

povoamento brasileiro se deu, inicialmente, a partir de pequenos povoados dispersos

em meio à costa litorânea, voltados quase exclusivamente ao comércio metropolitano,

e em detrimento do acesso ao sertão. No entanto, ainda no século XVI, com o

desbravamento de serra acima, na região do planalto de São Paulo de Piratininga, um

ambiente diverso do observado nas áreas litorâneas já tomadas pelo cultivo da cana

de açúcar, toma fôlego:

A sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso mantém-se, por longo tempo ainda, numa situação de instabilidade ou imaturidade, que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a população nativa. Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade rural que forma indivíduos sedentários. (HOLANDA, 2000, p. 11)

Por sua situação histórica, gerando uma relação íntima entre os portugueses

desbravadores e os nativos,, e geográfica, São Paulo converteu-se, desde os

primórdios da colonização da América Portuguesa, em ponto de passagem necessário

para aqueles que tomavam o rumo do sertão, seguindo a pé pelas trilhas indígenas

seculares. Dessa forma, consolidaram-se os primeiros caminhos a ligar diferentes

regiões do território brasileiro por via terrestre.

40  

Apenas a partir do século XVIII é que a utilização de animais cavalares começa

a ser percebida nos sertões da Colônia, mesmo assim em caráter restrito, servindo

apenas às localidades que já possuíam um adensamento populacional consolidado. O

uso regular de gado equino só ganharia espaço definitivo nos costumes da gente

paulista, a partir do decênio de 1730, com a abertura por terra do caminho entre a

Colônia Del Sacramento, os campos de Viamão e o planalto curitibano, inaugurando

uma estrada que serviria não apenas ao comércio de gado entre as terras do sul e

São Paulo, como também possibilitaria progressivo contato com os castelhanos, fato

que Holanda considera ser decisivo para a vida econômica e cultural do povo paulista,

pois permitiu estender sua influência até a região mineradora, pela grande

necessidade de mulas para o transporte dos minerais extraídos.

Conforme Holanda, a instalação da feira de muares na vila de Sorocaba marca

uma nova etapa do desenvolvimento social e econômico paulista, sendo que:

O tropeiro é o sucessor direto do sertanista e o precursor, em muitos pontos, do grande fazendeiro. A transição faz-se assim sem violência. O espírito da aventura, que admite e quase exige a agressividade ou mesmo a fraude, encaminha-se aos poucos para uma ação mais disciplinadora. (HOLANDA, 1994, p.133)

O autor busca ilustrar, ao dizer que uma ordem, distinta do ritmo empregado

pelo bandeirante, se impõe devido à nova lógica comercial. O tropeiro, por suas

condições laborais, substituiu o gosto predatório anterior pela conciliação, pelo

comércio, considerando-se ganhos e prejuízos. Ele deixa de ser aquele que se lança

como predador ao sertão, pois passa a exercer atividade mercantil, influenciado pela

moderna noção burguesa de negócio, exemplificada na figura do mascate, e converte-

se então em um “mascate a cavalo”.

Um traço que podemos apontar como avanço em relação ao errático

bandeirante é que, no século em questão, de acordo com Fernando de Azevedo

(1972), ocorrem as primeiras experiências eminentemente urbanas no Brasil. À região

mineradora se credita o protagonismo desse movimento em que se dá, nas palavras

do autor, a fase de maior sucesso no processo civilizatório brasileiro do período

colonial.

A riqueza produzida com a extração do ouro engendrou um estilo de sociedade

até então desconhecido na América Portuguesa. Observam-se as primeiras alterações

significativas no padrão de vida das localidades, que passaram a adotar hábitos até

então restritos à corte lisboeta, como o acesso a produções culturais – notadamente

os espetáculos teatrais e musicais, além do envio dos filhos desses potentados à

41  

Universidade de Coimbra, para concluírem os estudos. Esse processo é

posteriormente refreado com o declínio das jazidas e, ao alvorecer do século seguinte,

as consolidadas cidades planaltinas retornam à condição anterior, cedendo espaço

novamente ao desenvolvimento litorâneo. Entretanto, as marcas desse

desenvolvimento urbano permaneceram na estrutura social dessas localidades.

Nasceu, então, sob essa premissa, um modelo de operacionalização da tropa

que bebeu na influência de um capitalismo moderno. No entanto, por cultivar uma

herança bandeirante, manifesta na substituição do lastro monetário das negociações

pela palavra empenhada, a valorização do luxo em detrimento do ascetismo ou na

disposição para a vida em condições hostis, o tropeiro conserva, em grande medida, a

influência da ancestralidade bandeirante, compartilhando-a com grande parte dos

fazendeiros dos séculos seguintes.

O tropeiro pode ser enquadrado, sem prejuízo, como um tipo social transitório

entre o século das bandeiras e as novas formas de ocupação territorial e de

transações econômicas erigidas a partir do século do ouro. Do sertanista, carrega o

gosto pela aventura e a habilidade para percorrer os mais remotos rincões do território,

graças ao sólido conhecimento acerca das antigas trilhas indígenas, que também

foram amplamente utilizadas pelos bandeirantes. Porém, esse tropeiro já apresenta

alguns traços de sedentarismo, devido à necessidade de instalar ranchos de tropa

para descanso da comitiva durante a jornada, em lugares fixos e estratégicos, e uma

certa conexão com as práticas capitalistas de então, também por exigência da

profissão, pois as negociações comerciais se davam nos ranchos de tropa. Ao redor

desses, fixaram-se famílias que, posteriormente, exerceram funções contributivas à

dinâmica das tropas. Em contrapartida, intensificaram-se as relações comerciais entre

tropeiros e os habitantes dessas novas paragens, sobretudo após o apogeu do ciclo

do ouro, já que ficava a cargo das tropas abastecer de bens de consumo, tanto as

lavras de ouro, quanto as várias localidades à beira do caminho.

Os filhos dos tropeiros mais bem sucedidos, já formados, sob a orientação de

uma sociedade produtiva com vistas ao desenvolvimento econômico, comporiam

posteriormente uma parte considerável dos fazendeiros que dominarão as relações

sociais, econômicas e culturais dos povoamentos no interior do Brasil, estendendo sua

influência, inclusive, para a esfera política, principalmente durante o segundo reinado,

constituindo boa parte da elite dirigente da época.

Considerando o fenômeno tropeirismo, sob a perspectiva de um ciclo

econômico único – o ciclo do muar – admitimos, conforme Alfredo Ellis Junior (1950),

42  

tratar-se de uma prática surgida no final do século XVII, concomitantemente à

descoberta das jazidas mineiras de ouro, e que sobreviveu ao seu declínio, pois o

tropeiro permaneceu soberano no processo de transporte por, pelo menos, 150 anos –

se descontarmos o período em que concorreu com a atividade ferroviária.

O autor chama a atenção para a importância do uso de tropas, considerando o

ciclo do muar como o segundo mais longevo na história econômica do Brasil,

perdendo apenas para o açúcar e sendo indispensável, tanto para o transporte do

ouro das Minas Gerais, como para a produção açucareira paulista e para as primeiras

décadas da cafeicultura.

Sem o muar não teria sido possível o século do ouro. Depois, com o fim deste ciclo, o açúcar paulista precisava de transportar, não só a produção, mas ainda o que ela importava de alhures. Foi o muar o transportador. Sem o muar não teria sido possível a vida econômica no Planalto, de 1750 a 1850. (ELLIS JUNIOR, 1950. p. 73-74)

Além do Planalto Paulista, era função da tropa de muares abastecer as Minas

Gerais e todo o comércio de Goiás e Mato Grosso, considerando também regiões

como a Baixada Fluminense, grande produtora de gêneros alimentícios para as lavras

de ouro. Com o declínio das jazidas, a região, juntamente com o lado fluminense do

Vale do Paraíba, converteu-se na primeira área cuja plantação cafeeira deu-se em

larga escala e, nesse momento, era ainda o muar o elemento insubstituível para

carregar sacas de café, tanto na exportação desse produto, como na importação

acarretada pelas vendas. (ELLIS JUNIOR, op.cit. p. 74)

Ellis Junior (1950) considera que o muar, além de ser transportador de cargas,

foi também, indiretamente, o motor econômico da colônia, já que, em sua concepção,

o consumo demanda a necessidade de produção, fazendo com que as regiões

econômicas do centro-sul do território brasileiro se interligassem em torno do modal de

transporte em comum. Tanto as jazidas de Minas Gerais quanto a Baixada Fluminense

(produtora de alimentos), o açúcar paulista, o café do Vale do Paraíba e os rebanhos

criadores do Baixo Paraná e da Bacia do Prata estavam intimamente relacionados,

sendo fonte de renda para grande parte da população à época, permitindo uma troca

comercial substantiva entre o Brasil e o Vice-Reinado do Prata, sob domínio espanhol,

cujas regiões produtoras de mulas de carga de Buenos Aires, Montevidéu, Entre-Ríos,

Corrientes e mesmo do Paraguai, receberam influências do polo demandador

brasileiro.

Mafalda Zemella (1990) considera que, a partir da descoberta de ouro nas

Minas Gerais, empreitada de paulistas, cujas vias de acesso todas ligavam as vilas da

43  

Capitania de São Vicente às jazidas, criaram-se os laços comerciais que naturalmente

verteram em direção à Vila de Piratininga. Se as Minas Gerais assistiram a um

processo migratório sem precedentes na história do Brasil, as vilas paulistas lucraram

sobremaneira com esse fruto das expedições bandeirantes, sendo as responsáveis

pelo abastecimento comercial das lavras.

No outro extremo, os polos criadores de muares também contribuíram

decisivamente para a balança comercial paulista, já que estabeleceram na vila de

Sorocaba a grande feira de negócios onde se compravam e se vendiam as mulas que,

mais tarde, seriam utilizadas no transporte dos metais preciosos. Essa dinâmica

comercial, relacionando os paulistas com os criatórios de mulas do sul e as jazidas

minerais, permaneceu durante todo o ciclo do ouro, sendo posteriormente absorvida

pela cafeicultura.

A questão do trabalho é outro parêntesis na evolução econômica do planalto.

Os tropeiros, nesse quesito, desempenharam um inquestionável papel nas regiões por

onde trafegavam. Nas cidades cuja economia girava de algum modo em função da

tropa, todas as formas laborais destinavam-se a abastecê-la ou suprir suas

necessidades, afirmando celeiros, ferreiros, cangalheiros, comerciantes de secos e

molhados, agricultores cuja produção era vendida pela tropa, ou seja, estabeleceu-se

uma complexa rede de relações que influenciaram largamente o desenvolvimento de

comunidades rurais no interior do Brasil.

No cenário atual, a tropa mantém o aquecimento da economia das localidades

analisadas, visto que se coloca como uma incentivadora da produção local, pois

representa uma forma de escoar aquilo que é feito ou colhido pelos moradores e de

reverter a venda em valores, para adquirir aquilo que não possuem ou mesmo pagar

as despesas com contas ou insumos agrícolas.

A região que nos interessa, formada pelo Vale do Paraíba e pela Serra da

Mantiqueira, tem sua origem histórica vinculada às expedições bandeirantes rumo aos

sertões das Gerais e ao acesso às jazidas de ouro. Como considera Holanda (1994),

as primeiras vilas paulistas tiveram como marca a provisoriedade, servindo aos

sertanistas como posto avançado, durante suas expedições, e como moradia de suas

famílias, no intervalo entre uma viagem e outra.

As vilas valeparaibanas não fugiram a essa regra. Tal fato apresentou-se como

um facilitador, quando as primeiras tropas de muares passaram a trafegar pela região,

pois encontraram localidades que já dispunham de algum nível de organização social

44  

e de um mínimo de estrutura que tornassem possível fazer as paradas para o

necessário descanso dos animais, no percurso do caminho do ouro.

No capítulo seguinte, abordaremos com maior especificidade essa influência

tropeira no Vale do Paraíba e na Serra da Mantiqueira, a partir do estilo de tropa

utilizado, da presença histórica das tropas na consolidação da região, passando pela

contribuição das tropas para o sucesso da lavoura cafeeira – responsável pela fase de

maior desenvolvimento regional, surgimento de novos modelos mais sofisticados de

transporte, como o trem de ferro e, posteriormente, a estrada de rodagem, culminando

com uma ressignificação da atividade tropeira nos dias atuais.

1.4 – Portrait dos entrevistados.

  Em campo, realizamos vinte e duas entrevistas com moradores dos locais

mencionados, que contribuíram positivamente para a compreensão do problema de

pesquisa. Dessas entrevistas, algumas não foram transcritas, devido a dificuldades

técnicas ou de tempo hábil, porém constam em material anexo o áudio de todas as

entrevistas bem como a transcrição daquelas que subsidiaram de informações esta

pesquisa. Elaboramos um portrait de cada entrevistado, com um breve resumo de

seus dados pessoais, profissão e grau de instrução, a saber:

Jair de Amorim

Idade: 63 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 24/07/1950 – Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 5º ano ensino fundamental e 2ºgrau (ensino supletivo).

Profissão: motorista da Prefeitura Municipal de Cunha/SP.

Kely Cristina Muller de Amorim Fagundes Ledoino

Idade: 33 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 14/09/1980 – Guaratinguetá/SP, mas passou toda a vida em Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: superior completo.

Profissão: professora da rede municipal de ensino de Cunha/SP.

45  

Maria Aparecida Alves dos Reis (Maria Vergílio)

Idade: 88 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 15/01/1925 – Silveiras/SP, chegou a Campos Novos, município de Cunha/SP, no ano de 1954.

Grau de instrução: analfabeta.

Profissão: produtora rural; benzedeira.

Gilson Alves Bernardino

Idade: 47 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 07/11/1966 – Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: superior completo (professor de Educação Física).

Profissão: professor.

José Galvão Sobrinho

Idade: 93 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 10/071920 - Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 4º ano ensino fundamental.

Profissão: aposentado (ex-tropeiro).

Jurdelino Aires

Idade: 84 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 16/05/1930 – Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: semianalfabeto.

Profissão: produtor rural.

José Inácio da Silva (Zeca do Vardo)

46  

Idade: 54 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 12/05/1960 – Bairro da Taperinha, distrito de Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 4º ano ensino fundamental.

Profissão: fazendeiro.

José Carlos da Silva

Idade: 47 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 06/11/1966 – Bairro do Paiolzinho, distrito de Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 2º grau completo.

Profissão: agente de organização escolar.

Lucimar Lucrécio Vaz

Idade: 38 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 12/05/1976 – Bairro Bocaininha da Boa Esperança, distrito de Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: agricultor (tropeiro).

Hamilton Soares dos Santos

Idade: 76 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 14/08/1937 – Bairro Bocaina de São Roque, distrito de Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 2ª série do ensino fundamental.

Profissão: agricultor aposentado (ex-tropeiro).

Osmar Camargo de Freitas

Idade: 51 anos.

47  

Data de nascimento/local de nascimento: 20/12/1962 – Bairro Águas de Santa Rosa, distrito de Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: lavrador (tropeiro) e pastor evangélico.

José Alves de Carvalho (Zé Tolino)

Idade: 55 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 15/05/1958 – Bairro Serra do Indaiá, distrito de Campos Novos, município de Cunha/SP.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: carpinteiro (faz fretes como tropeiro ocasionalmente).

Gezuel Elzo dos Santos

Idade: 63 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 11/08/1950 – Bairro Serra Negra, município de Itamonte/MG .

Grau de instrução: 2º ano do Ensino Fundamental

Profissão: tropeiro.

Natanael Cristiani Ramos (Natal)

Idade: 56 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 05/09/1958 – Bairro da Serra Negra, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: analfabeto.

Profissão: lavrador (tropeiro).

Jair Fernandes da Fonseca

Idade: 62 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 09/03/1953 – Bairro da Fragária, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

48  

Profissão: lavrador (tropeiro).

Paulo Fonseca (Paulinho)

Idade: 44 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 08/10/1969 – Bairro da Fragária, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: agricultor (tropeiro).

Francisca Maria Fonseca (Chiquinha Fonseca)

Idade: 84 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 15/12/1929 – Bairro da Fragária, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: agricultora aposentada.

Geraldo Roque da Fonseca (Geraldinho)

Idade: 80 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 16/08/1933 – Bairro da Fragária, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: aposentado (foi tropeiro na infância, com o pai).

Geraldina Fonseca

Idade: 73 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 03/03/1941 – Bairro da Fragária, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 4ª série do ensino fundamental.

Profissão: agricultora aposentada.

49  

Ivair Fonseca Ramos

Idade: 35 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 28/12/1978 – sede do município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 3ª série do ensino fundamental.

Profissão: auxiliar de serviços gerais no Parque Nacional do Itatiaia.

Dalcir Paiva Fonseca (Darci Pinhá)

Idade: 76 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 28/03/1938 – Bairro do Campo Redondo, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 2ª série do ensino fundamental.

Profissão: aposentado (ex-tropeiro).

Maria da Silva

Idade: 66 anos.

Data de nascimento/local de nascimento: 15/08/1947 – Bairro Serra Negra, município de Itamonte/MG.

Grau de instrução: 3ª série do ensino fundamental.

Profissão: lavradora (acompanhou o pai, a mãe e o irmão Gezuel com as tropas).

50  

2. VALE DO PARAÍBA E SERRA DA MANTIQUEIRA: REGIÕES DE TROPA

ARREADA

2.1 - Influências histórica e cultural das tropas de mula na zona

valeparaibana.

As regiões tropeiras do Brasil podem ser divididas entre dois tipos, as que

predominam o transporte de muares como mercadoria em si e as que fazem uso das

mulas como transportadoras de outras cargas mais rentáveis, como é o caso do ouro

e demais gêneros de abastecimentos indispensáveis para a sobrevivência ou para a

movimentação comercial dos núcleos populacionais interioranos.

O primeiro tipo é retratado na literatura específica como sendo tropa de mula

xucra3, característica dos estados da região Sul e dos países vizinhos, como Uruguai e

Argentina. Seu ponto central se dava com as grandes jornadas rumo à feira de muares

organizada anualmente na cidade paulista de Sorocaba, onde os animais eram

vendidos. Em contrapartida, havia os homens que se dirigiam em sentido oposto,

vindos da própria vila de São Paulo, além de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e, em

menor escala, do Rio de Janeiro e Bahia, para comprar os animais e utilizá-los para o

transporte daquilo que produziam ou coletavam.

A região do Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira, por estarem

geograficamente localizadas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, à beira

do caminho do ouro, se consolidou com o emprego das mulas para o transporte de

cargas. Para que tal ação fosse possível, era necessário dotar as mulas de peças que

serviriam de suporte aos jacás4, ou seja, utilizavam arreios, disso decorre a expressão

“tropa de mula arreada”, que equivale dizer: tropa provida de apetrechos que

permitiam aos animais desempenhar transporte de cargas ou atividades de tração.

De acordo com José Alípio Goulart (1961), ficou a cargo das tropas atravessar

as mais adversas condições de relevo e clima, vencer as distâncias entre o litoral e o

sertão, para assegurar e manter a circulação de produtos e mercadorias, chamando a

atenção especialmente para a região do centro-sul, onde diversos cursos d’água

                                                            3 As tropas de mula xucra foram tão importantes quanto suas congêneres arreadas, sendo talvez até mais antigas, pois seu emprego no Brasil é registrado, ainda que em menor escala, anteriormente à descoberta de ouro e outros minerais preciosos em Minas Gerais em finais do século XVII. Entretanto, referem-se a um estilo diverso da abordagem que privilegiamos nesta pesquisa, por não ser característica da zona valeparaibana. Assim, optamos por concentrar esse estudo apenas a abordagem sobre as tropas arreadas, cujo ponto central na dinâmica do tropeirismo é o material transportado, não o animal em si. 4 Cesto trançado feito de taquara ou cipó, usado no transporte de cargas, sobretudo preso ao lombo de mulas. (fonte: Dicionário Houaiss 2012)

51  

convergem para o interior em detrimento do litoral, sendo o grupo de tropeiros

responsável por romper a imposição da natureza, conectando por terra os lugares

mais remotos do território, com os portos de mar.

O descobrimento das primeiras jazidas de ouro no final do século XVII

provocou o deslocamento de grandes contingentes populacionais para o interior do

Brasil. Com o intuito de enriquecimento rápido e sem intenção de se fixarem

definitivamente nas lavras de exploração, os homens que para lá se dirigiam não

tinham qualquer preocupação, inicialmente, em dotar a região, bastante distante e

isolada à época, de pouco mais do que o suficiente, em termos estruturais, para a

chegada de parcos recursos alimentícios e o escoamento dos minerais extraídos. Algo

que se altera posteriormente, quando são fundadas as primeiras vilas mineiras e o

fausto e a riqueza produzidos atraem crescentes contingentes e demanda melhor

estrutura, não só física como religiosa e cultural.

Ainda segundo o autor, o transporte de muares começou a aparecer nos

registros oficiais e inventários a partir do segundo quartel do século XVIII, quando:

Concentrada grande massa demográfica nos sertões de além Mantiqueira, logo convergiram para aquelas regiões importantes correntes comerciais, devido à natural demanda de gêneros alimentícios nos núcleos humanos ali instalados, que, a par da densidade, ofereciam alto poder aquisitivo. Mas, devido à aspereza dos caminhos que o acidentado do relevo tanto acentuava, só dois meios de transporte a ele se adaptaram: o carregador humano e o burro. (GOULART, 1961, p.36)

Verifica-se, a partir de então, o mesmo processo ocorrido nos Andes no século

anterior. A necessidade de transportar os minerais em quantidades crescentes

despertou, sobretudo nos paulistas, o interesse pelo gado cavalar e os fez se dirigirem

aos campos do Sul e posteriormente à feira de muares que, não por acaso, instalou-se

na região paulista, exercendo uma função intermediária entre os produtores sulistas e

os paulistas e mineiros que as utilizavam para a lida com o transporte de cargas.

Goulart (1961) ressalta que a finalidade primeira da existência das tropas era

levar as riquezas minerais para o litoral e trazer os bens de consumo para o interior,

sendo o ouro substituído posteriormente pelo café, o qual trataremos em separado.

Nessa dinâmica, São Paulo se afirmou, devido a sua localização, como o grande

ponto de convergência dos caminhos que interligavam por terra as diferentes regiões

da colônia;

Há razões geográficas, porém, que explicam essa posição de São Paulo no decorrer dos três primeiros séculos; é uma área de transição entre as altas serranias de Minas Gerais e os campos do

52  

Sul; da mesma forma, é o platô que se situa entre as regiões montanhosas e o litoral, apertado entre as serras do Mar e da Mantiqueira (GOULART, op. cit. p.48)

São Paulo, assim, converteu-se em um ponto importante, onde cruzavam

tropas de mulas, mas também viajantes e suas caravanas, as últimas incursões

bandeirantes e, posteriormente, os modais mais modernos, como ferrovias e estradas

de rodagem, interconectando o interior do Brasil.

As tropas foram fundamentais para o desenvolvimento econômico e cultural

dos locais onde trafegavam, dentre os quais a região que nos interessa: situada na

região de órbita paulista, o Vale do Paraíba é especial nesse universo, devido a sua

relativa proximidade com o Rio de Janeiro, à época a sede do vice-reinado e Minas

Gerais, sendo passagem obrigatória na travessia das tropas desde o ciclo do ouro,

aos que demandassem as lavras mineiras ou o litoral. A Serra da Mantiqueira,

presença constante quando se fala no Vale do Paraíba (que se acha encravado entre

esta e as serras do Mar e da Bocaina), tem sua influência igualmente marcada por

essa “zona de transição”, sendo a história e a cultura de ambas, fortemente

relacionadas.

A ocupação do solo valeparaibano é anterior ao ciclo das tropas, remete-se às

primeiras expedições bandeirantes com destino às Minas Gerais, passando pela

região, cruzando a Mantiqueira através da Garganta do Embaú5, seguindo no sentido

do Arraial do Rio das Mortes (atual município de São João Del Rei/MG), buscando

atingir as localidades de Vila Rica (atual município de Ouro Preto/MG) e Mariana, onde

se concentravam as principais zonas de exploração serra acima.

O pioneiro adensamento populacional a ser fundado e consolidado na região

foi Taubaté, nascida no século XVII, fruto das bandeiras; seguiu-se a fundação de

Pindamonhangaba, Jacareí, Guaratinguetá e Cunha. Dessas cidades, partiram as

primeiras tropas constituídas no Vale do Paraíba, com destino às jazidas de ouro. Seu

povoamento foi marcado inicialmente pela provisoriedade característica dos

sertanistas, em que núcleos permaneciam vazios durante boa parte do ano, enquanto

os homens estivessem nas expedições, retornando em determinados momentos para

recompor seu grupo e eventualmente trazendo mão de obra indígena aprisionada para

trabalhos forçados em suas terras ou comercialização com outros proprietários rurais.

                                                            5 Ponto mais baixo para a travessia da Serra da Mantiqueira, cujo ponto mais alto é a divisa dos atuais municípios de Cruzeiro (SP) e Passa Quatro (MG).

53  

Com a descoberta do ouro e dos diamantes, toda a capitania de São Paulo viu-

se esvaziada, pois os homens migraram em massa à busca de enriquecimento rápido

e, caso fossem bem sucedidos, possibilidade de regresso à metrópole portuguesa.

Transportar bens de consumo para a região mineradora foi característica de primeira

hora na constituição das tropas de mula da região. A literatura, que trata amplamente

sobre o ciclo do ouro e das mazelas decorrentes, cita as diversas crises de

abastecimento pelas quais passaram as vilas do ouro, para suprir essa necessidade,

quando as famílias valeparaibanas passaram a plantar e criar gêneros e víveres que

pudessem ser comercializados, tanto nos núcleos populacionais à beira do caminho,

quanto nas principais cidades. Dessa relação, surgem as primeiras tropas no cenário

regional.

A Serra da Mantiqueira, estrada natural para o desenvolvimento da região,

acompanhou o mesmo fenômeno. As vilas localizadas em sua área de abrangência,

embora igualmente fundadas durante as bandeiras, eram mais novas, mas possuíam

igual importância para a viabilidade das jornadas, como é o caso das cidades de

Campanha, Baependi, Aiuruoca, entre outras, todos pontos de parada das tropas e

intercâmbio entre tropeiros, viajantes, e a população local.

Com a consolidação do ciclo das tropas na economia da colônia, um impacto

bastante relevante para a gente valeparaibana foi o início do processo de fixação dos

homens à terra, algo que até então ocorrera esparsamente, em partes devido à

experiência das bandeiras, que convidavam mais ao caminho do que à sedentarizar-

se. As tropas gozavam de uma condição privilegiada nessa dinâmica, pois

aproveitaram o traçado das vias bandeirantes para expandir a exploração comercial de

serra acima e levaram consigo uma gama de costumes que terminaria por disseminar

um estilo cultural bastante próprio, marcado pelo modo de falar, de comer, de vestir e

também de morar.

Goulart (1961) considera que a tropa tinha como grande característica sua

liberdade. O tropeiro era um ser autônomo, como já foi descrito também por Franco

(1983), estabelecia uma relação com os fazendeiros, vendeiros ou mesmo com

pequenos consumidores, de forma que havia um elevado grau de liberdade. Sua

autonomia contrastava com o comprometimento que possuía com seus fregueses e

compromissos, com a palavra empenhada e com as cargas que transportava;

Pela importância, pelo valor imensurável do trabalho que realizavam, as tropas de muares se constituíram, sem sombra de dúvidas, no fator mais preponderante de permanência e fixação dos nódulos

54  

populacionais que se localizavam na hinterlândia do centro-sul, centro-oeste e extremo oeste. (GOULART, op.cit. p.66)

As tropas possuíam uma hierarquia quanto à sua formação, variando de acordo

com a quantidade de animais e de homens que a acompanhavam. Ainda em relação à

obra citada, os tropeiros, para designarem-se como tal, faziam-no de acordo com a

quantidade de mulas que possuíam, esse era o fator determinante de sua importância.

Essa distinção se fazia através do cabresto6 e pelos adornos de prata e fitas coloridas

colocadas na primeira mula da tropa (chamada de mula madrinha), além do peitoral7

repleto de guizos para indicar a direção a ser percorrida pelos demais animais.

Apenas as tropas com dez ou mais animais (ou cinco lotes) poderiam portar tal

distinção. As tropas compostas de três a cinco lotes (entre seis e dez animais) traziam

somente o peitoral com seus guizos; já a tropa com menos de três lotes (abaixo de

cinco animais) trafegava sem nenhum adereço que a diferenciasse, porém, eram

bastante raras, de acordo com a bibliografia, tropas com número muito baixo de

animais desempenharem jornadas maiores.

A partir da leitura de Maia (1981), podemos observar o quanto a dinâmica das

tropas estava intimamente ligada ao cotidiano das cidades da região e, em certa

medida, isso ainda continua perceptível, mesmo em locais onde os animais não mais

trafegam, mas influenciam a cultura local, determinando caminhos, fluxos migratórios e

hábitos tão particulares, como a reunião de amigos em volta de fogueiras nos bairros

mais próximos às saídas da cidade, onde geralmente se localizavam os ranchos.

Com a expansão do tráfego de tropas na região, surgiram diversos locais de

parada para o descanso de animais e de tropeiros, cujos nomes mais conhecidos são

rancho ou pouso de tropa. Esses locais eram fixados à beira das trilhas tropeiras, no

interior das propriedades ou anexos aos mercados públicos ou armazéns, a uma

distância média entre eles de dezoito a vinte e quatro quilômetros, ou entre três a seis

léguas (medida mais comum no interior do Brasil à época), o que compreendia uma

jornada diária percorrida pela tropa.

Outros caminhos foram surgindo e se ramificando à medida que novos arraiais

e vilarejos surgiam e propriedades eram divididas entre herdeiros ou passavam às

mãos de novos proprietários, que estabeleciam relações com tropeiros mais próximos                                                             6 Apetrecho feito de corda ou couro, cuja serventia é uma espécie de cabeçada ou embocadura, que serve para controlar a marcha do animal cavalar ou auxiliar em sua parada, amarrando-o em um tronco ou cerca. (fonte: Dicionário Houaiss 2012) 7 Conjunto de tiras de couro atadas próximas ao peito da mula, com guizos cujo barulho orienta a marcha das demais mulas da tropa e avisa aos moradores das localidades que a tropa está chegando ou partindo.

55  

ou lhes concediam pouso dentro de suas terras. Essa relação entre o proprietário rural

e o tropeiro, assinalada também por Franco (1983), se caracterizava por uma

dependência mútua e por um laço de extrema confiança de parte a parte: o fazendeiro

dependia do tropeiro para vender o que produzia e transportar valores ou informações

para outros lugares; o tropeiro, por sua vez, dependia do transporte dessas cargas

para sua própria manutenção e de seus animais.

Até o final do século XVIII, as principais rotas tropeiras na região eram o

caminho velho do ouro e a trilha entre São Paulo e o Rio de Janeiro. No entanto, com

a finalidade de encurtar o percurso entre a zona mineradora e o Rio de Janeiro, foi

aberta no último quartel do referido século uma trilha variante do caminho velho que, a

partir da então vila de Nossa Senhora da Piedade – atual município de Lorena (SP) –,

seguia inteiramente por terra, cruzando a Serra da Bocaina e do Piloto (já em território

fluminense), tendo por finalidade ligá-la com a Fazenda Santa Cruz, no Rio de Janeiro,

eliminando, assim, a necessidade de embarcar o material extraído no Porto de Paraty,

desembarcá-lo no Rio de Janeiro, para cobrança de tributos, e reembarcá-lo com

destino a Lisboa.

Como consequência dessa variação, passou-se a explorar uma parte do Vale

do Paraíba que, até então, não registrava a presença significativa de pessoas.

Surgiram novas cidades na região conhecida como “Fundo do Vale”, cuja proximidade

com a província do Rio de Janeiro facilitava a prosperidade desses lugares,

convertendo-se posteriormente em cidades como Cachoeira Paulista, Silveiras, Areias

e Bananal, no lado paulista, e Resende e São João Marcos (extinta na década de

1940, para a construção da Represa Ribeirão das Lages), ambas já existentes, mas

que conheceram significativo avanço de sua importância após a abertura desse

caminho, no lado fluminense.

Nas terras além Mantiqueira (Minas Gerais), outros caminhos também se

ramificaram a partir da trilha do ouro original, nessa fase. As pequenas povoações ao

redor dos núcleos herdados das bandeiras se expandiram e deram origem a cidades

da região que mantém ainda nos dias atuais intensa relação com a região

valeparaibana, como é o caso do antigo arraial do Itajubá Velho, atual Delfim Moreira

(MG), e outras cidades de povoação mais recente, como é o caso de Passa Quatro e

Pouso Alto, entre outras.

A dinâmica das tropas trouxe consigo uma forte alteração no modo de vida da

população regional, como a introdução um linguajar próprio. Essa manifestação, de

acordo com Maia (1981), se caracterizou em grande medida pela nomenclatura dos

56  

instrumentos utilizados na lida tropeira e pelas próprias profissões ligadas a essa

atividade enquanto meio produtivo, com a incorporação desses termos como jargões

pelos moradores, como o uso de bruaca8, que consiste em uma espécie de baú de

couro para carregar cargas, ou cabresto, que se refere a uma corda utilizada para

amarrar os animais.

Ainda em relação à fala, é bastante comum pela região, nos dias atuais,

ouvirmos nas ruas das cidades menores algumas expressões tropeiras como “quando

um burro fala, o outro abaixa a orelha”, ou “mula velha não pega marcha”, além de

cantigas que, em sua entonação, possuem influências do dialeto caipira e do

português erudito de séculos anteriores.

Mesmo o fazendeiro paulista, embora enriquecido, guarda ainda em muitos

pontos semelhanças com a cultura caipira. De acordo com Franco (1983), seus

hábitos alimentares tinham como base os mesmos elementos da alimentação do

caipira tradicional: fubá, feijão, mandioca, toucinho e açúcar; comumente utilizavam

para sair às ruas ou assistirem à missa dominical os mais ricos adornos e joias que

possuíssem; vestiam-se com calças de tecido grosso e grandes paletós e, no interior

das residências, camisolas de algodão cru; por parte das mulheres, saias de chita e

paletós menores. Trajes que eram comuns, não só para os fazendeiros, como para os

homens livres pobres e, até mesmo, para os escravos.

A culinária tropeira é outro ponto bastante forte de influência na cultura

regional. A base da comida, considerando-se a pouca disponibilidade de lugares

adequados para cozinhar e a quantidade reduzida de gêneros transportados para esse

fim, era a farinha de mandioca e de milho, o toucinho, o feijão, a canjiquinha (ou

quirera de milho) e o café. Sua rotina de preparo, durante a jornada, envolvia

principalmente o madrinheiro da tropa, ou seja, o tocador de burro que acompanhava

a primeira mula ao chegar no rancho. Ele dispunha de três pedaços de madeira ou

barras de ferro em forma de triangulo, amarrando-os com uma corrente com um

gancho na ponta, para segurar o caldeirão, e fazia o fogo. Em seguida, colocava o

toucinho para fritar e, abaixo, próximo do fogo, deixava uma chocolateira, ou chaleira

com água para fazer o café. Depois de frito o toucinho, escorria-se a gordura e

acrescentava-se o feijão, depois a farinha, e estava pronto o virado de feijão que

alimentava a tropa. A canjiquinha era utilizada conforme a condição da tropa,

geralmente as mais humildes usavam-na no lugar do feijão. O café, feito na chaleira                                                             8 Sacos ou malas rústicas feitas de couro cru, utilizadas para transporte de objetos, víveres e mercadorias sobre bestas, que se prendem às cangalhas ou são acomodadas na traseira das selas. (fonte: Dicionário Houaiss 2012).

57  

ao pé do fogo, era preparado colocando-se o pó para cozinhar na água e depois se

achegava um tição de fogo dentro da chaleira, para que o pó de café decantasse e o

café fosse servido.

Esse estilo de alimentação influenciou de tal forma a região, que até na

contemporaneidade, em alguns bairros mais afastados, ainda se encontram pessoas

que cultivam essas tradições em festas, notadamente as de cunho religioso, ou em

atividades coletivas em que é preciso servir uma comida que renda muitas porções e

que não saia cara ao bolso do patrocinador.

A vida no interior das tropas é um constante convite à caminhada, o tropeiro

passava a maior parte do tempo em jornadas, os assuntos e afazeres domésticos

eram legados à esposa ou demais membros da família que não lidavam diretamente

com a tropa. Os caminhos que percorriam foram aos poucos sendo habitados e essa

herança cultural também acabou influenciando na forma de morar, numa mistura dos

hábitos bandeirantes em aliança com a cultura caipira, observável até nossos dias.

A disposição dos núcleos populacionais surgidos na fase do tropeirismo leva

em consideração o rancho de tropa como eixo central do povoamento. Na região do

Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira, essa influência é perceptível a partir da

disposição das ruas em relação ao local onde se encontrava o antigo rancho. As

maiores ruas eram as que passavam na porta do rancho e as conectavam com a

saída das cidades. As moradias, em sua maioria, eram em volta do rancho ou no

trajeto entre o rancho e a igreja católica, considerando o forte sentimento de

religiosidade. Sua estrutura quase sempre compreendia a casa de morada, com um

quintal, onde a família plantava e criava alguns animais, e o paiol, onde a produção

para o sustento da família era armazenada e onde ficavam os pertences da tropa e os

animais.

Aventureiros, menos ambiciosos uns, cansados do nomadismo outros, vão sedentarizando-se pelos arraiais que se formam durante o Ciclo do Ouro, cuja febre de mineração eleva-se e se extingue no século XVIII. (MOTA SOBRINHO, 1967, p.20)

Enquanto perdurou o Ciclo do Ouro, essa configuração adquiriu contornos de

atividade complementar à economia mineradora. Com o declínio das jazidas na

passagem do século XVIII para o século XIX, a região das Minas sofre um efeito de

esvaziamento e muitas famílias retornam para a região, instalando-se principalmente

no sul de Minas Gerais. O movimento das tropas acompanha esse declínio, porém,

poucas décadas depois, surge na província do Rio de Janeiro e, posteriormente

adentra em solo paulista, exatamente no eixo já mencionado das cidades do Fundo do

58  

Vale, a cultura do café, que seria a fase de maior êxito das tropas na zona

valeparaibana.

2.2 – O tropeirismo e o ciclo do café no cenário regional.

Com o declínio da exploração aurífera, o café assume a primazia entre as

cargas transportadas no cenário regional. De acordo com Sérgio Milliet (1982),

A passagem do café pelo estado de São Paulo, com suas repercussões sobre a situação demográfica das zonas percorridas, constitui sem dúvida um dos estudos mais curiosos e importantes da história econômica paulista. (MILLIET, 1982, p. 11)

Nossa intenção, considerando esse cenário, é avaliar a importância da

participação dos tropeiros nessa etapa do desenvolvimento regional e os impactos que

a cultura cafeeira impôs não apenas à paisagem da região, como também alterou

profundamente a ordem dos costumes e a participação valeparaibana na balança

comercial brasileira, impulsionando o desenvolvimento regional e, por consequência,

do próprio país, visto que o café representava o principal produto de exportação do

Brasil naquela época.

O tropeiro, neste quesito, não é tratado com a mesma reverência do que outros

personagens do mesmo período cronológico. Sua contribuição para o

desenvolvimento político e econômico se deu tão ou mais evidente do que

bandeirantes, fazendeiros e/ou demais habitantes do Brasil rural, entretanto, sua figura

não aparece, ou quando o faz, surge de modo aquém do que se espera por uma

contribuição tão marcante e efetiva na história econômica do país.

Com a abundante produção cafeeira, não tardou que fossem fundados novos

núcleos populacionais na região, pautados pelo sucesso da rubiácea. Tão logo se

afirmaram, atraíram para sua órbita abastados fazendeiros, cujo lucro gerado na

lavoura serviria futuramente para financiar as primeiras grandes empreitadas

industriais do Brasil. As próprias cidades valeparaibanas, ainda que em menor escala,

foram testemunhas desse processo, já que a nova ordem de costumes trazidas com o

café trouxe também um refinamento de hábitos até então inédito, com a presença de

grandes companhias líricas e teatrais, pintores com técnicas europeias sofisticadas,

escolas para filhos dessa nova elite que os dotariam de uma cultura até então restrita

aos nobres europeus. Tudo isso contribuiu para uma ruptura com o sistema agrário

rudimentar presente até então, transferindo aos fazendeiros do Vale do Paraíba a

condução do processo político e econômico brasileiro posteriormente.

59  

Ainda segundo Milliet, a partir do início do século XIX, e durando pouco mais

de cem anos, o crescimento do Brasil mediu-se pelas terras tomadas pelos cafezais,

dele tudo emana e a ele tudo se destina: homens, animais, máquinas. A terra cansada

que ele abandona se despovoa, empobrece, definha; a terra virgem que ele deflora,

logo se emprenha de vida ativa, enriquece, progride. (MILLIET, op.cit., p.11).

Conforme Fernandes (2008), o café proporcionou uma onda de

desenvolvimento econômico e social à região do Vale do Paraíba, até então sem

paralelo no contexto histórico paulista, e devido à precariedade dos caminhos

existentes, que anteriormente ligavam as cidades da região às lavras de ouro e aos

portos de mar, os tropeiros exerceram regionalmente a primazia no transporte da

rubiácea.

De acordo com Alves Mota Sobrinho (1967), a cultura cafeeira foi introduzida

ao longo do Rio Paraíba do Sul quase ao mesmo tempo, tanto do lado fluminense –

onde a plantação foi introduzida primeiramente – quanto do lado paulista. O ritmo de

plantação de cafés e cidades, nessa lógica, seguiu a bacia hidrográfica em questão no

sentido oeste, iniciando-se o plantio na região próxima à Baixada Fluminense, subindo

a Serra do Mar e ampliando as lavouras em volta de cidades como Vassouras,

Valença, Barra do Piraí, Barra Mansa, Resende e, por fim, entrando em solo paulista

justamente pelas cidades lindeiras fundadas à beira do caminho novo do ouro.

Bastide (1971) afirma que o advento do café e sua cultura nas terras do

Centro-Sul promoveu uma modificação verdadeiramente sociológica, sendo o motor

da economia no período imperial, mantendo-se presente na balança comercial até boa

parte do século XX e, do ponto de vista cultural, alterando significativamente o modo

de vida da população da zona paulista, que durante três séculos ficou associada

apenas à figura do bandeirante e da mestiçagem, em comparação com o faustoso

nordeste dominado pela cana-de-açúcar, e que, com o sucesso no plantio da rubiácea,

atraiu para o sudeste o eixo econômico e transformou os até então remediados

fazendeiros locais na elite política dos séculos XIX e XX.

Com a expansão do café pela zona paulista, as divisas geradas impulsionam a

marcha colonizadora da região, novas cidades surgem como fronteira agrícola e o

dinheiro do café passa a ter também outra destinação: financiar o processo de

industrialização brasileiro. Tal ação encontra possibilidade real de sucesso devido à

extensa rede de transportes que o plantio da fruta requeria, ficando assim o caminho

aberto para que este capital se destinasse à instalação de fábricas, sem prejuízo à

lavoura.

60  

A modernização trouxe a reboque uma mudança de classe social entre esses

indivíduos. Os filhos dos ricos fazendeiros ou mesmo de tropeiros com maior sucesso,

além dos filhos da recém-chegada corrente imigratória da Europa e Médio Oriente que

foram atraídos para as novas formas de acumulação capitalista, rapidamente

ascenderam à condição de grandes empresários e suas indústrias foram responsáveis

pela consolidação de um parque fabril nas maiores cidades que, após o declínio do

plantio de café, foi responsável por garantir a sobrevida econômica dessas regiões,

evitando, assim, um êxodo populacional.

As primeiras plantações de café do lado paulista do Vale do Paraíba

despontaram a partir da terceira década do século XIX, inicialmente em cidades

fronteiriças, como Bananal e Areias, e espalhando-se paulatinamente pelo solo

valeparaibano em direção ao oeste da província. As tropas transportavam as sacas de

café em jornadas menores do que os tempos anteriores, em caminhos litorâneos

abertos ainda pelos indígenas e utilizados como variações dos caminhos do ouro,

servindo por vezes como rotas de contrabando ou de desvio de postos de cobraça de

impostos, por isso já eram amplamente conhecidos ao tempo dos cafezais.

Os tropeiros nesse período, já adaptados a nova rotina, passaram a ser

presença mais marcante no cotidiano das cidades, pois, com a redução das jornadas,

os serviços necessários à manutenção da tropa se concentraram nas próprias cidades

do Vale do Paraíba, ao invés de ficarem dispersos no meio do sertão. A alteração no

modo de vida se percebe com a introdução de técnicas de construção mais

sofisticadas do que a arquitetura típica paulista, calcada na taipa de pilão e no pau a

pique; os antigos povoados ganham novos contornos, sendo modernizadas as igrejas,

com a instalação de torres, sinos, sofisticação de altares e externamente com a

remodelagem de seus adros. Os fazendeiros, no rastro de seu sucesso na lavoura,

não tardaram a construir residências no centro das cidades, mudando-se para lá ou

conservando a propriedade urbana para ocasiões festivas, e cidades como

Pindamonhangaba e Lorena passaram a possuir verdadeiros palacetes e

infraestrutura comparada à da Corte.

Os tropeiros, ao adquirirem grandes somas de dinheiro com o transporte de

café, também se sofisticaram, passando a possuir propriedades para invernada de

gado, investiram em negócios na Corte e, com as divisas geradas, puderam bancar os

estudos de seus filhos, principalmente na Faculdade de Direito em São Paulo e na

Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro.

61  

Uma comparação inevitável diz respeito à origem dos nobres fazendeiros e dos

pequenos sitiantes. De acordo com Franco (1983), ambos possuem ancestrais

comuns, variando apenas o apego com que se fixaram à terra e o uso que fizeram do

plantio e da mão de obra. Nesse ponto, pode-se fazer um paralelo com a figura do

caipira: enquanto o fazendeiro é fruto direto do parente que, embora também fosse

filho das bandeiras, fixou-se na terra e empregou mão de obra escrava, o pequeno

sitiante, com o mesmo ancestral comum, rendeu-se ao estilo de vida em que plantava

apenas o suficiente para sua subsistência e contava apenas com a ajuda da família,

ou foi levado a essa situação devido à fragmentações das propriedades por motivo de

herança ou perda da posse de sesmarias ancestrais. O tropeiro encontra-se a meio

caminho de ambos. Compartilha da ancestralidade bandeirante e conserva de seus

antepassados o gosto pela aventura e pela caminhada. Ao contrário do fazendeiro

que, com o tempo, se sedentariza, o tropeiro só o fez tardiamente, e ao sitiante

assemelha-se pela estrutura mais simples e voltada à manutenção da vida, sem

grandes impulsos de acumulação de capital.

Outro ponto que merece destaque nessa discussão são as relações de poder

presentes na dinâmica social do ciclo do café, cujo impacto nas relações sociais das

cidades valeparaibanas se fez sentir fortemente. Com o sucesso da lavoura cafeeira,

os grandes latifúndios se consolidaram perante as pequenas propriedades rurais;

Os “intrusos”, até então pouco molestados, são repudiados pelos velhos proprietários, que lançam mão de todos os recursos administrativos e judiciais para defenderem sua propriedade. Dessa luta, a vitória coube aos senhores das sesmarias, definindo a cultura do café como empresa da grande propriedade, que a escravidão acentuou, impedindo a cultura pessoal do pequeno proprietário, por suas mãos. (FAORO, 2001, p. 467)

Essa influência, iniciada nos cafezais, ultrapassou as divisas da propriedade,

ou mesmo da cidade onde residiam ou da região valeparaibana, estendeu-se até a

capital do Império e promoveu os fazendeiros à condição de capitalistas, sendo

agraciados pelo Imperador com títulos de nobreza, alcançando a esfera de

dominação, uma dimensão não apenas econômica, como também política e cultural.

Franco (1983), frisa como se dá a modificação dos costumes regionais a partir

da sociedade do café, quando considera que;

A expansão dos negócios e da cultura do café trouxe consigo, por onde passou, uma considerável melhoria nas condições materiais de existência e também algum refinamento no trato e nos hábitos de vida. (FRANCO, op. cit., p. 179/180)

62  

E acrescenta-se a isso a influência cultural a partir do envio dos filhos desses

nobres brasileiros à Europa para se formarem não apenas bacharéis, como hábeis

condutores da política nacional, operando em diversos níveis ministérios e cargos de

confiança do Império. No âmbito educacional, retornavam trazendo as novas

tendências europeias não só para o país como para as cidades onde a família residia

e mesmo para o interior da propriedade rural, materializadas pelas pinturas, saraus e

jantares, pela utilização da língua francesa nas solenidades e em algumas ocasiões,

como as viagens da comitiva imperial à região.

Com a crescente importância do café na balança comercial, os fazendeiros

ganharam papel de destaque na região, a vida social das cidades passou a girar em

torno da “casa-grande” e da influência dos barões do café – que se impunham com

eminência nas grandes negociações do governo central e controlavam a política e a

distribuição de cargos no plano provincial e posteriormente estadual, o que servia

como sustentáculo para sua atuação e defesa de seus interesses.

Quando as plantações de café invadiram o Vale do Paraíba, tanto prosperou o antigo dono de engenho com foros de cortesão, quanto o tropeiro rude, o branco mercador de escravos, o esperto vendeiro de beira de estrada, o lavrador rústico, iluminados todos por projetos idênticos e realizáveis por um só meio: enriquecer, afazendando-se. (FRANCO, op.cit., p. 209)

O café, no contexto regional, foi o ciclo econômico que mais possibilitou a

mobilidade social dos homens livres da época, abrindo espaço para que pessoas de

diversas origens ascendessem socialmente. Com esse fluxo, acentuaram-se as

distinções sociais, como a própria atribuição dos títulos de nobreza sinalizava. O que

se viu foi antes a atribuição de honraria ao enriquecimento indiscriminado do que a

distinção valorativa de préstimos dos fazendeiros ao governo central ou à própria

população em geral.

Os principais caminhos percorridos, dos quais o ciclo cafeeiro amplamente se

serviu, conforme cita Mota Sobrinho (1967) e Maia (1981), compreendiam as rotas do

caminho velho do ouro, ligando as Minas Gerais com as cidades de Lorena,

Guaratinguetá, Cunha e Paraty; o caminho novo que, a partir de Lorena, ligava-se ao

Porto da Cachoeira (atual Cachoeira Paulista), Silveiras, Areias, São José do Barreiro,

Bananal e depois adentrava na província do Rio de Janeiro, no sentido da Corte; a

trilha da independência, ligando São Paulo a Mogi das Cruzes, Escada (atual

Guararema), Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba e encontrando-se com o caminho

velho em Guaratinguetá.

63  

Os mapas a seguir demonstram o traçado da Estrada de Ferro Central do

Brasil, principal ligação ferroviária da região, ilustrando com propriedade o caminho

percorrido, e nos dá a noção da distância entre as cidades atendidas pela via férrea e

aquelas que ficaram fora do traçado da linha.

Acima: Mapa ferroviário do trecho entre Mogi das Cruzes e Queluz, do Ramal de São Paulo da E.F. Central do Brasil no ano de 1927. Abaixo: Mapa da mesma ferrovia no trecho entre Guaratinguetá(SP) e Barra do Piraí (RJ), que compreende a região pesquisada. Fonte: http://vfco.brazilia.jor.br/Mapas.Ferrovias.shtml (acesso em 20/02/2015).

64  

Outras trilhas menores escoavam a produção de café diretamente aos portos

de mar, como entre São José do Barreiro (SP) e o porto de Mambucaba (RJ); entre

Bananal (SP), o extinto município de São João Marcos (RJ) e o porto de Mangaratiba;

entre Areias, Silveiras, Campos Novos de Cunha, bifurcando-se com o caminho de

São José do Barreiro para o porto de Mambucaba, entre Taubaté, Pindamonhangaba,

o sertão da catioca (pertencente ao município de Cunha), bifurcando-se com o

caminho velho rumo a Paraty, entre Taubaté, os campos de São Luiz do Paraitinga e

Ubatuba, ou entre a região de Jacareí, São José dos Campos e São Sebastião.

As tropas prestaram valorosa contribuição para o desenvolvimento econômico

regional e, mesmo nesse cenário, houve alterações em sua composição. O tropeiro,

devido à já mencionada relação estabelecida com os fazendeiros, em grande medida

desenvolveu-se a reboque do sucesso da propriedade rural. De acordo com Franco

(1983), o tropeiro foi, dentro de uma lógica que pressupunha a supremacia do

fazendeiro perante os demais tipos humanos livres, aquele que mais chances teve de

enriquecer, e o fez, sendo que grandes nomes da região à época como o Visconde de

Guaratinguetá e o Conde de Moreira Lima possuíam tropas no rol de seus bens.

A cultura do café, conforme Bastide (1971), guarda características comuns ao

ciclo econômico da cana-de-açúcar, como a necessidade de grandes latifúndios para o

seu plantio e a construção de uma aristocracia assentada na riqueza gerada, que foi

capaz de empreender uma transformação social, trazendo consigo, em certa medida,

o sentido do desenvolvimento econômico do Brasil.

A região paulista, se retomarmos seu processo histórico, era remediada em

relação ao nordeste e isso se refletia fortemente na questão da mão de obra.

Enquanto no nordeste abundavam cativos de origem africana, São Paulo dispunha

somente do contingente indígena que os sertanistas conseguiam apreender durante

as expedições. Apenas com a ascensão do café é que o afluxo de escravos de origem

africana se dirige à região e, mesmo assim, em um período relativamente curto,

comparado ao período do canavial, sendo boa parte desses escravos trazidos através

de contrabando, em alguns casos, posteriormente à proibição do tráfico negreiro.

O modo como as pessoas e mercadorias eram conduzidas na região ainda se

pautava pelo uso de montarias com animais cavalares e liteiras, além das tropas em

questão. As principais vias de escoamento das sacas de café e de comunicação com

a Corte e com a capital da província de São Paulo pouco se alteraram daquilo que já

era conhecido séculos atrás.

65  

A primeira inovação no transporte dos grãos surgiu com a navegação a vapor

no Rio Paraíba do Sul, cujo trecho navegável se estendia entre o Porto da Cachoeira

(atual Cachoeira Paulista) e a vila de Nossa Senhora da Escada (atual distrito do

município de Guararema), sendo sucedida por pequenos paquetes que transportavam

o carregamento dos pequenos portos litorâneos de Parati, Mambucaba e Angra dos

Reis, no Rio de Janeiro, e São Sebastião e Ubatuba, em São Paulo, para o grande

porto do Rio de Janeiro, onde era comercializado, principalmente com o mercado

norte-americano e europeu.

Como mencionado, embora os tropeiros garantissem o lucro dos fazendeiros, a

precariedade dos caminhos percorridos por eles representava um dificultador à

expansão mercantil, dada as intempéries que, por vezes, comprometiam parte da

carga, além da necessidade de maior conforto e economia de tempo por parte dos

cafeicultores, já nessa época agraciados com títulos nobiliárquicos concedidos pelo

Império e detentores do poder político regional.

Assim, foi autorizada pelo Governo Imperial a construção de uma estrada de

ferro que, partindo da Corte, se conectasse com os pontos mais convenientes das

províncias de Minas Gerais e São Paulo, estabelecendo um modelo mais eficiente de

transporte e em acordo com as novas tendências surgidas a partir da Revolução

Industrial. O traçado sugerido, de acordo com Mota Sobrinho (1967), previa que a

ferrovia sairia do Rio de Janeiro e, após transpor a Serra do Mar, faria uma bifurcação

com a linha tronco, esta seguindo no sentido da província mineira e um ramal para o

território paulista, tendo na cidade de Cachoeira Paulista seu entroncamento com

outra ferrovia, que seria construída entre essa cidade e a capital de São Paulo.

Tal empreitada, na fase que, de acordo com Milliet (1982), coincidia com a fase

de maior produtividade dos cafezais valeparaibanos, atingiu em cheio os tropeiros e a

rede de comércio e serviços instalada ao redor do fluxo das tropas, como os próprios

donos dos animais, além de comerciantes que viviam do comercio com estes, donos

de estalagens, criadores de mulas e demais profissões a eles vinculadas.

O traçado sugerido cortaria algumas das principais cidades da região e

possibilitaria incrementar o comércio com a capital da província e do império. Estariam

conectadas à estrada de ferro entre São Paulo e Rio de Janeiro as cidades de Mogi

das Cruzes, Guararema, Jacareí, São José dos Campos, Caçapava, Taubaté,

Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Lorena e Cachoeira Paulista, sendo esta o ponto

de intersecção da ferrovia paulista com a ferrovia fluminense, que cortava os

municípios paulistas de Queluz, Lavrinhas e Cruzeiro.

66  

Entretanto, as cidades históricas por onde o café penetrou em solo paulista

ficaram de fora do traçado dos trilhos e essa ausência marcou definitivamente a sorte

e o desenvolvimento ulterior dessas localidades. Em paralelo, após a década de 1860,

devido ao uso indiscriminado do solo e ao pouco conhecimento sobre as técnicas

ideais para o plantio de café, tem início o processo de declínio da produção regional.

A cidade de Bananal, uma das maiores produtoras de café da época,

conseguiu, por iniciativa de seus barões, construir um ramal férreo ligando-a à cidade

de Barra Mansa (RJ), onde cruzava a ferrovia principal, o que lhe garantiu sobrevida.

Porém, quando da inauguração dos trilhos ferroviários na região, a produção cafeeira

já se encontrava em franco declínio, tendo sido a maior parte das sacas de café

transportada serra abaixo nas penosas jornadas das tropas. O mesmo se verificou na

vizinha São José do Barreiro, cujos cafeicultores construíram uma ligação ferroviária

entre aquela cidade e a cidade de Resende (RJ), mas o ramal também não foi

suficiente para garantir à região o mesmo sucesso econômico das cidades à beira da

via principal.

As cidades do fundo do vale, de acordo com Mota Sobrinho (1967), foram

preteridas no traçado ferroviário devido ao relevo montanhoso dificultar a empreitada.

Localidades como Silveiras, Areias e São José do Barreiro, outrora berço de grandes

fazendeiros, definharam economicamente. Cunha, por ter sido preterida já a partir do

século XIX, com a drástica redução do transporte de mercadorias rumo a Paraty, além

de ser igualmente montanhosa, já havia retornado à condição de vila segregada.

Não tardou para que a região da Mantiqueira também fosse conectada por

trilhos às cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Partindo da cidade paulista de

Cruzeiro, uma estrada de ferro cruzou a serra em direção ao sul de Minas Gerais e

tragou para a orbita valeparaibana o desenvolvimento das cidades de serra acima,

cessando grande parte do comércio que até então era feito em lombo de mula.

A tropa, nesse período, sofreu um processo de ressignificação. Consideramos

tal hipótese devido ao fato de a localização geográfica em que se implantou a estrada

de ferro excluir de seu traçado boa parte das antigas cidades da região, o que forçou a

permanência das tropas, conectando as cidades e bairros rurais às estações

ferroviárias mais próximas. As jornadas de tropa foram novamente reduzidas, nesse

período; a produção cafeeira das cidades não atendidas pelo trem já era considerada

ínfima, se comparada com décadas atrás, então as tropas passaram a transportar

gêneros produzidos nas áreas rurais para o abastecimento das cidades maiores e da

capital paulista e fluminense.

67  

Essa configuração proporcionou a instalação de novos ranchos de tropa, com

estrutura para descarga de mercadorias e comércio com as cidades maiores e, em

contrapartida, os tropeiros levavam para os locais onde viviam aquilo que não era

produzido na região. A cidade de Cunha, por exemplo, converteu-se na principal

produtora de banha e carne suína do Vale do Paraíba e o que se produzia na zona

rural do município, principalmente na região de Campos Novos de Cunha, era

transportado pelas trilhas tropeiras em curtas jornadas, não ultrapassando dois dias de

jornada, para descarga nas cidades de Guaratinguetá, Lorena e Cachoeira Paulista.

Outra cidade paulista fora do traçado do trem, Silveiras, consolidou-se como

produtora de leite, verduras e frangos, que eram transportados, em um dia de viagem,

para as cidades de Cachoeira Paulista, Cruzeiro e Lavrinhas, onde os produtos eram

vendidos e embarcados nos trens. As tropas retornavam aos locais de origem levando

produtos, como sal, açúcar, pólvora, querosene e tecidos, em atividade semelhante à

dos mascates, que introduziram novos hábitos, como o apreço das mulheres pela

moda. Outro ponto de mudança pautou-se pela instalação dos postos telegráficos,

utilizados largamente para a comunicação ferroviária, e expandidos posteriormente

através de cabos em meio às montanhas para as cidades afastadas da via férrea,

fazendo com que o fluxo de informações também fosse acelerado, eliminando

parcialmente a função comunicadora das tropas.

2.3 – O ocaso do tropeirismo clássico: a estrada de rodagem.

Com o término do ciclo do café na região do Vale do Paraíba e da Serra da

Mantiqueira, a estrutura social e econômica sofreu forte abalo, os pés de café foram

suprimidos e a região observou novo afluxo migratório, dessa vez de famílias

descendentes de antigos troncos familiares paulistas, que seguiram rumo às jazidas

de ouro e, após malograda tentativa de enriquecer, fixaram-se nas cidades do Sul de

Minas. Com a relativa falência dos barões do café, adquiriram as antigas fazendas e

vislumbraram perspectiva de maior lucro, convertendo a lavoura cafeeira em campos

de pastagem para criação de gado leiteiro, como já faziam serra acima.

A região passou a pautar sua economia em função da bacia leiteira e as tropas

adaptaram-se a esse tipo de transporte até os entrepostos, localizados próximos às

estações ferroviárias, sem, no entanto, deixarem de transportar os demais gêneros

alimentícios e os bens de consumo necessários à manutenção da vida no sertão.

Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de há muito, em matéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante símbolo do viver colonial – o carro de boi.

68  

Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna, casarões que lembram megatérios donde as carnes, o sangue, a vida para sempre refugiram. (LOBATO, 1978, p. 03)

Esse triste cenário foi fortemente sentido pelas cidades opulentas de outrora,

principalmente na parte mais ao fundo do vale, que regrediram à condição de meros

vilarejos, com estrutura ainda momentaneamente independente9. Mesmo as cidades

cortadas pelo trem jamais voltariam a conhecer o esplendor e o sucesso econômico

dos tempos dos cafezais. Taubaté, a maior cidade da região à época, ainda na década

de 1910 começou a se industrializar; outras cidades, como Guaratinguetá e Lorena,

seguiram esse exemplo mais timidamente; São José dos Campos, só nos últimos 40

anos – recentemente - despontou no cenário regional; as demais cidades da região

permaneceram vinculadas ao gado leiteiro e à prestação de serviços aos viajantes e

funcionários da estrada de ferro.

Com os trabalhos para a abertura da estrada de rodagem entre São Paulo e

Rio de Janeiro, a economia regional parece tomar novo ânimo, entretanto, com a

entrada dos veículos automotores, seria o início do ocaso do modelo clássico de

tropeirismo a que a literatura competente normalmente se refere.

Com início das obras, a partir da passagem de Washington Luiz na presidência

do Estado de São Paulo e seguindo-se com sua ascensão à presidência da República,

recorreu-se às tropas de mula da região, tão conhecedoras dos caminhos por terra,

para a definição do melhor traçado nas cidades atendidas, de modo a reestabelecer a

região em importância no contexto estadual. Os tropeiros serviram-se de suas mulas

para a confecção do traçado e transporte de materiais, considerando que à época não

havia grande disponibilidade de maquinário que conseguisse desempenhar o mesmo

serviço.

As cidades atendidas passaram a ser interligadas, aproveitando em grande

medida as antigas trilhas tropeiras, adaptando os caminhos conforme os acidentes

geográficos dos terrenos. Pela disposição da antiga trilha tropeira entre São Paulo e

Rio de Janeiro de cortar o centro das cidades, essa situação foi aproveitada, fazendo

com que as diversas cidades às margens do caminho passassem a conhecer um fluxo

                                                            9 Algumas cidades da região do Fundo do Vale ou Vale Histórico, como é atualmente conhecida, teriam sua situação política e mesmo administrativa revista posteriormente, sendo extintas sedes de comarca, como foi o caso de Silveiras, que passou a ser subordinada a Cachoeira Paulista; transferência da sede da comarca para cidade próxima, como Areias, que perdeu a sede da comarca para Queluz; ou mesmo a perda da autonomia administrativa, como aconteceu com o antigo município de Pinheiros, que foi incorporado a Lavrinhas e Jataí, cujo território dividiu-se entre Silveiras e Cachoeira Paulista.

69  

de carros, ônibus e caminhões até então desconhecidos, competindo inclusive com a

então Estrada de Ferro Central do Brasil, responsável pelo leito ferroviário regional.

Na região mencionada do Fundo do Vale que ficou mais conhecida, a partir da

passagem do escritor Monteiro Lobato pelo município de Areias (SP), como “Cidades

Mortas”, a estrada de rodagem privilegiou a passagem por esse caminho, já

consolidado, em detrimento da região de Queluz (SP) e mesmo de Resende (RJ) que,

para não ficar completamente excluída da modernidade trazida com os motores a

combustão, construiu uma estrada vicinal até a localidade de Formoso, distrito de São

José do Barreiro (SP), à beira da divisa de estados, onde era possível acessar a

rodovia.

A expansão rodoviária, ao passo que oxigenou a já fragilizada economia local,

trouxe também um abalo significativo às tropas, pois possibilitou que pequenos

automóveis e caminhões avançassem sobre áreas até então dominadas pelo uso

regular das tropas de mula. A agropecuária leiteira que, cessado o ciclo do café na

região, assumiu a primazia na balança comercial do Vale do Paraíba e da Serra da

Mantiqueira, beneficiou-se largamente dessa ampliação, visto que, em primeiro

momento, tropeiros transportavam o leite até entrepostos localizados próximos às

estações ferroviárias, onde embarcavam, principalmente para São Paulo, nos trens da

Central. Com a chegada dos caminhões, esse processo tornou-se mais rápido,

eliminando boa parte do trajeto das tropas, que não mais iam para as estações de

trem, limitavam-se a trazer a produção rural dos Campos da Bocaina (Silveiras, Areias,

São José do Barreiro de Campos Novos de Cunha) e da zona rural próxima à Serra do

Mar e da Quebra-Cangalha – região dos municípios de Cunha, Lagoinha e São Luiz

do Paraitinga – para os locais no centro dessas cidades, onde os caminhões

passaram a acessar.

Com o aumento cada vez mais significativo das relações políticas e comerciais

entre o Rio de Janeiro, então capital federal, e São Paulo, já consolidada como o

grande centro econômico do país, demandou-se a construção de uma autoestrada,

mais moderna do que o antigo traçado da Estrada São Paulo – Rio, que tornasse

possível diminuir a distância entre as duas cidades.

O traçado delimitado da nova rodovia respeitou a proximidade com a estrada

de ferro, excluindo de seu trajeto a montanhosa região da Bocaina, menos propícia ao

tráfego de alta velocidade. Entretanto, em algumas cidades por onde passou, terminou

por segregar alguns bairros ou mesmo selar o destino de decadência de antigas sedes

70  

municipais que, ao se verem “isoladas” da rede de progresso, migraram para as áreas

mais próximas à ferrovia e à estrada de rodagem.

Com a inauguração da Rodovia Presidente Dutra, em 1951, uma rede de

outras estradas passou a conectar-se com o eixo principal, constituindo uma complexa

malha rodoviária nas décadas seguintes. As tropas de mula participaram, ainda que

como coadjuvantes, do processo de abertura, alargamento ou remodelagem dessas

novas estradas. Arouca (2007), que pesquisou os arquivos do Departamento de

Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo, afirma que havia no DER um número

elevado de mulas de carga a serviço das residências de conservação rodoviária,

sendo utilizadas para as obras necessárias à manutenção de via ou mais, à sua

modernização.

Há uma carência de estudos no campo das Humanidades que abarque os

impactos sociais e mesmo geográficos mais efetivos a partir da chegada das auto-

estradas. Com a abertura de rodovias, como a Via Dutra na região em questão, houve

uma mudança não apenas na paisagem, como também nas relações comerciais e

sociais das cidades cortadas por seu traçado. A tropa de mulas que, após a chegada

do trem de ferro, teve seu papel reduzido, com a pista expressa sofreria seu mais forte

abalo, pois, com automóveis em alta velocidade, deixou de ser viável que animais

atravessassem a pista para chegarem até o centro da cidade. A partir de então é que

o modelo clássico de tropeirismo é forçado a se ressignificar, passando a atender

apenas demandas menores, em estradas rurais no interior dos municípios.

Em entrevista, o Senhor Jair Amorim e o Senhor Gilson Bernardino, ambos

residentes em Campos Novos de Cunha, afirmaram que mesmo tropeiros da região

colocavam suas tropas a serviço da estrada de rodagem, sendo que alguns, como é o

caso do avô de Gilson, chegaram a transportar material para as obras de asfaltamento

do antigo leito do caminho velho do ouro, que deu origem à rodovia que liga a cidade

de Guaratinguetá a Cunha e Paraty (RJ).

As estradas vicinais continuaram a manter sua função nos bairros mais

afastados, como é o caso de Campos Novos de Cunha, que manteve sua atividade

tropeira ainda ativa, para o envio da produção de gêneros alimentícios locais. Porém,

a travessia para as maiores cidades ganhou um entrave, pois a tropa que recebia

autorização de tráfego para circular pela antiga São Paulo – Rio não tinha como cruzar

a Via Dutra para adentrar o centro das cidades e, em outros casos, como aconteceu,

por exemplo, com Guaratinguetá, o antigo pouso de tropa ficava em cima do atual leito

da rodovia, à beira do rio, no bairro São Gonçalo. Ou, como ocorreu em Lorena, onde

71  

a rodovia cortou a fazenda do haras Peixoto de Castro ao meio, originando um

loteamento que daria origem a bairros mais nobres posteriormente, e por ali as tropas

não poderiam trafegar. Foram essas imposições que forçaram a atividade tropeira a

ressignificar-se e a buscar nova estratégia para sua sobrevivência.

Em paralelo, na região da Serra da Mantiqueira, as estradas de rodagem

também foram influenciadas pela abertura da Via Dutra, porém, devido à grande

quantidade de localidades ainda distantes, tanto da ferrovia que cruzou a serra, quanto

da rodovia que levou além do desenvolvimento econômico o turismo à região do

Circuito das Águas, a tropa manteve-se em condição mais privilegiada, devido ao

relevo não permitir a abundância de rodovias, como ocorreu no Vale do Paraíba.

Na região de nossos estudos serra acima, a atividade tropeira constitui-se em

uma marca cultural. Tudo aquilo que produziam, frutas, queijos e mel, era

transportando em lombo de mulas por trilhas que só recentemente conheceram

melhorias ou asfaltamento, e isso em pequena escala, se compararmos com a região

de Campos Novos de Cunha, foco desse estudo no lado paulista.

A base da produção de Campos Novos de Cunha tinha como finalidade

abastecer os consumidores das cidades de Lorena, Guaratinguetá e Cachoeira

Paulista, com frangos, milho, carne suína, e a produção leiteira. Com a impossibilidade

de trafegarem pelas estradas maiores, as tropas continuaram a percorrer as trilhas até

os pontos de intersecção com caminhões ou o laticínio localizado no bairro da

Rocinha, em Guaratinguetá.

Em Fragária e Serra Negra, desde tempos mais remotos, a produção local era

voltada ao abastecimento da cidade de Resende, do atual município de Itatiaia, e de

alguns pequenos povoados como é o caso de Visconde de Mauá. Diferentemente do

cenário paulista, as trilhas tropeiras da Mantiqueira permaneceram preservadas,

sendo utilizadas até contemporaneamente para a venda dos produtos. Outra rota

bastante explorada por eles, essa vinculada à presença da rodovia, era com destino à

feira instalada na Garganta do Registro10, onde poderiam comercializar os queijos,

frutas, mel e geleias com os turistas e viajantes.

O caminho para Resende cruzava a área do Pico das Agulhas Negras e seguia

por entre a serra, até a Vila de Maromba (que compõe o distrito de Visconde de

Mauá), margeava o Rio Preto (divisor natural entre os estados de Minas Gerais e Rio                                                             10 Ponto mais alto da Rodovia BR-354, que liga a Via Dutra, na altura de Itatiaia (RJ), à região do Circuito das Águas, em Minas Gerais, cortando ao meio o município de Itamonte (MG). O local em questão marca a divisa entre os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro.

72  

de Janeiro), passando por pequenos povoados até a chegada ao bairro resendense de

Fumaça, onde se iniciava a descida da serra. Ao chegar à parte baixa, cruzava-se o

bairro da Vargem Grande, antigo reduto de fazendas de café, e seguia-se até o local

onde os tropeiros pousavam e, no dia seguinte, vendiam o material transportado, em

local próximo à atual Academia Militar das Agulhas Negras.

A partir dos anos 1970, o estilo de tropa passou por alterações, com a chegada

da estrada que liga o distrito de Campos Novos à sede do município de Cunha – este

já conectado à malha rodoviária regional. Os caminhões passaram a se deslocar até o

bairro, e a tropa passou a cumprir serviços residuais e em pequena escala. O número

de animais utilizados também foi reduzido, tropas com dez, doze animais, foram

substituídos por dois ou três burros, apenas o necessário para o pequeno volume

transportado.

Grandes famílias tropeiras modificaram seu ramo de atividade, conforme

depoimento dos entrevistados, pois o gado leiteiro passou a ser mais rentável do que

o uso de mulas. Os animais cavalares passaram a ser utilizados para serviços

residuais, como transportar o leite até o ponto aonde o caminhão chega, ou fazer

pequenos fretes nos bairros mais afastados, como verificamos na Bocaininha da Boa

Esperança e na Serra do Indaiá onde os tropeiros que permaneceram na profissão a

exercem levando cargas de madeira e material de construção para locais onde

automóveis não acessam ou desempenhando serviços de colheita dentro das

propriedades.

Atualmente, o uso de motocicletas tem-se ampliado nas zonas rurais do país

afora e na região onde se concentra essa pesquisa não é diferente, vemos que cada

vez menos os moradores dos bairros mais afastados se utilizam de cavalos e mulas

para sua própria locomoção, e mesmo para os serviços inerentes à propriedade rural.

Um caso exemplar se dá na localidade de Bocaininha, se dá ao vermos o filho de um

ex-tropeiro tocando as mulas que carregam as latas de leite montado em uma

motocicleta.

73  

Foto de Eduardo - filho do Sr. Tonho Mineiro, produtor leiteiro – Bairro Bocaininha da Boa Esperança – Campos Novos de Cunha, em março/2014.

Os tropeiros da Fragária e de Serra Negra adaptaram-se de forma diversa. A

natureza os favoreceu com uma localização que impediu o avanço significativo das

rodovias. O acesso dos bairros até a sede do município de Itamonte até hoje impõe

restrições, mesmo aos automóveis, sendo frequentes as quedas de barreiras em

épocas de grande volume de chuvas.

As tropas, compostas por quantidade menor de cargueiros, já vinham em um

ritmo diverso das utilizadas no ciclo do café. A região da Serra da Mantiqueira, devido

às baixas temperaturas, não foram propícias ao cultivo em larga escala, por isso a

região se consolidou como polo de abastecimento. As frutas que mais produziam eram

as de clima temperado, como pera, morango, pêssego e framboesa, além da produção

de mel e de hortaliças, os queijos foram vendidos apenas posteriormente.

Por essa característica, essas tropas já trafegavam em menor número quando

do declínio do modelo clássico do tropeirismo, e contou com a facilidade de cruzar em

boa parte de suas jornadas, por regiões com grande afluxo de turistas, o que garantia

uma dinamização das receitas em relação aos congêneres tropeiros da Bocaina, que

permaneceram afastados desse ciclo.

Podemos considerar que a tropa de mula sofreu um processo de requalificação

em sua função original, adaptando-se à nova realidade regional, suportando o

movimento cíclico da economia de mercado que proporciona acesso cada vez mais

74  

facilitado aos novos meios de transporte e circulação, mas sem perder sua

característica essencial, de transportar a produção de um determinado local, mais

isolado, a um ponto mais próximo de conexão com a realidade exterior. É essa

reelaboração da função primordial da tropa que ainda hoje permite que possamos

encontrar, em lugarejos afastados, pessoas que ainda desempenham essa atividade.

Uma das hipóteses levantadas por esta pesquisa versa sobre o motivo de se

continuar a desempenhar uma função típica de períodos em que não havia grande

diversidade tecnológica para o transporte de mercadorias. Como expusemos acima,

essa modificação na forma de desempenhar a atividade mostra que a mudança se deu

no espaço em que o transporte é realizado, com jornadas quilometricamente menores

e também em relação ao tempo, pois hoje não é gasto mais do que um dia inteiro de

viagem para se alcançar o destino final. Sua continuidade se assenta, portanto, na

necessidade de romper a barreira geográfica que inviabiliza a abertura de estradas em

lugares tão íngremes e nos diferentes estágios de desenvolvimento econômico, que

obriga os moradores mais remediados a permanecerem com os animais de tração,

pois não conseguem adquirir meios mais sofisticados de transporte adaptados à sua

realidade.

Durante a pesquisa de campo, observamos localidades em que a tropa ainda

cumpre essa função e a grande reflexão que se impõe sobre a sua utilização nos dias

de hoje é justamente sobre a precariedade dos caminhos em determinadas zonas cujo

grau de desenvolvimento ainda se apresenta aquém do esperado para uma região

onde se encontra o maior eixo econômico do país.

Emblemático é o caso de dois bairros localizados na Serra do Indaiá, próximos

à divisa entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Trata-se dos bairros

Capelinha e Sertão da Paca, onde não é possível chegar por estradas, apenas por

antigos caminhos de tropa. Os dois locais ficam às margens do ribeirão Guaripu, que

marca a divisa interestadual. Há algumas famílias cujas terras se situam na margem

fluminense, mas, por não haver qualquer tipo de comunicação com o Rio de Janeiro,

são atendidas como moradoras do município de Cunha (SP).

Na região da Serra da Mantiqueira, o caminho percorrido pelos tropeiros

também atravessa áreas de povoamento remoto e mesmo a área do parque nacional

não se pode alterar no sentido de grandes intervenções nas trilhas, o que obriga esses

usuários a buscarem estratégias para percorrê-las, como fizeram os tropeiros, ao

desviar um trecho do trajeto onde havia atoleiros, para minimizar o risco de perderem

as cargas ou os animais.

75  

Podemos inferir, sem prejuízo, que a utilização das tropas está presente no

universo e no imaginário da gente valeparaibana em diferentes níveis, variando desde

a presença histórica nas cidades mais antigas e consolidadas, até a presença

contemporânea nos bairros rurais mais afastados. O passo seguinte para

esclarecimento desse fenômeno deve ser compreender qual o espaço onde as

relações de sociabilidade entre as tropas e a população propiciaram o florescimento

da atividade, sua manutenção e contemporaneamente sua sobrevivência.

76  

3. EVOLUÇÃO DOS ESPAÇOS DE MORADA NO INTERIOR DO BRASIL: DO BAIRRO RURAL AO RANCHO DE TROPA.

3.1 – O bairro rural como espaço de sociabilidade.

A discussão sobre o processo colonizador do interior da América Portuguesa e

a entrada das tropas de mula na vida cotidiana do Brasil a partir do século XVIII

passam por uma questão necessária: quais eram e que grau de relevância tinham os

espaços onde as relações de sociabilidade se davam? Apresentam-se os bairros

rurais como locais privilegiados para o florescimento de núcleos populacionais sólidos,

em grande medida fundados a partir dos ranchos de tropa e facilitadores das

comunicações e transações comerciais no interior do território, sendo assim de vital

importância para a vida brasileira.

Os bairros rurais, no escopo deste trabalho, serão tratados também pelo viés

da geografia agrária que, de acordo com Larissa Bombardi (2004), são unidades

territoriais criadas a partir da noção de identidade que manifestam os membros do

grupo, em relação à porção territorial que ocupam, sendo o território, ainda segundo a

autora, fruto da relação entre espaço, tempo e relações sociais estabelecidas entre os

indivíduos.

A academia, até meados dos anos 1960, realizou estudos sobre o meio rural

observando uma perspectiva de cunho majoritariamente antropológico, destacando-se

alguns trabalhos de referência, como as pesquisas de Nice Lecocq Muller, Maria

Isaura Pereira de Queiroz e Antonio Cândido. Outros trabalhos também foram

desenvolvidos, alguns dos quais, buscavam analisar a “civilização” do interior através

de um olhar voltado ao folclore.

Nice Lecocq Muller, em suas pesquisas sobre a situação dos sitiantes em

algumas regiões do estado de São Paulo, dentre as quais o Vale do Paraíba, definiu

os bairros rurais como um conjunto de residências dispersas, mas com relativa

proximidade, possibilitando que houvesse relações periódicas entre seus habitantes.

De acordo com a autora, não se trata de uma unidade morfológica, mas uma

manifestação de comunidade, onde surgem alguns elementos que favorecem as

relações sociais, como parentesco ou vizinhança, além dos espaços de sociabilidade,

como a igreja, o armazém, a escola, pois, embora seu povoamento fosse

aparentemente esparso, o bairro representa um elemento de unidade entre os

moradores da região.

77  

A contribuição de Maria Isaura Pereira de Queiroz foi dar a esses estudos uma

amplitude diferenciada, problematizando as dinâmicas sociais nas quais estão

inseridos esses habitantes do meio rural. A figura do caipira11 e do matuto12 são

emblemáticas e, em seus trabalhos, encontramos outros personagens que se colocam

como sendo de suma importância à compreensão do universo retratado. Esse é o

caso do tropeiro – que nos interessa nesta pesquisa, mas também de outras figuras do

meio rural que participam das relações sociais estabelecidas nos bairros rurais, como

fazendeiros, sitiantes, vendeiros, agregados e camaradas, ou seja, homens livres

numa ordem escravocrata13.

No cenário contemporâneo, alguns desses tipos deixam a cena nos bairros

rurais, como é o caso dos agregados e camaradas, figuras que deixaram a região

buscando melhores condições de vida, pois não conseguiram adquirir sua própria

morada no meio rural. Foram esses, sobretudo, os migrantes da região para os

centros maiores a partir da metade dos anos 1960, com o processo de industrialização

no Vale do Paraíba.

As populações tradicionais brasileiras têm seus modos de vida, valores e

crenças permeados pela influência indígena, africana e portuguesa, manifestas na

culinária, na religiosidade, nas formas de morar e em sua organização social. O tipo

mais alinhado ao tropeiro é o caipira, pela sua própria composição étnica, pois é desse

agente social que as vilas e cidades nascidas e desenvolvidas em torno do ciclo do

tropeirismo receberam sua influência majoritária. Por isso, nos detemos a analisá-lo,

para compreender as dinâmicas sociais da gente interiorana, fornecendo, assim,

grandes subsídios para estudos sobre os tropeiros.

A forma de organização da sociedade dita rural produz um caminho privilegiado

de observação do que seriam as marcas culturais profundas trazidas por esse

habitante do universo rural. Nessa ótica, os tipos de povoamento se consolidaram de

tal forma que, ainda hoje, encontramos lugares que reproduzem o estilo de vida

genuinamente caipira, quanto à religiosidade e as relações comerciais.

                                                            11 Indivíduo natural de parte das regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, especialmente no estado de São Paulo e áreas com influência paulista. De origem rural, cujo grupo caracterizava-se por desempenhar agricultura de subsistência em caráter itinerante, por não terem a posse das áreas cultivadas. (Fonte: Dicionário Houaiss 2012) 12 Expressão derivada do termo “caipira”, simbolizando o habitante do interior do país, de hábitos rústicos, cujos costumes são próprios de áreas rurais pouco desenvolvidas. (Fonte:Dicionário Houaiss 2012). 13 Cf.: FRANCO, op. cit.

78  

De acordo com Antonio Candido (1972), apoiado em leituras de Rubens Borba

de Moraes, a fixação do homem paulista ao solo advém da descoberta das jazidas de

ouro e, por consequência, do interesse em explorar a terra, sendo que a criação das

vilas obedeceu a algumas correntes principais: a partir de desbravadores; resquícios

de aldeias indígenas, sesmarias14, instalação de capelas, pouso de tropas e viajantes

ou por fundação deliberada. Esse modelo pautou as relações de sociabilidade da

população, pois era o núcleo populacional o ponto de conexão da dinâmica rural que

se fazia dispersa através do comércio e dos serviços, sendo esse espaço, para onde

os moradores se dirigiam, algumas vezes por ano, o local onde se concentrava, ainda

que rarefeita, a influência metropolitana.

Por terem uma relativa dificuldade geográfica em acessar a vila, a partir de

localidades geralmente longínquas, criou-se no interior uma rede de solidariedade

entre os vizinhos, indistintamente da classe a que pertenciam. Assim, características

do modo de vida caipira são as relações de cooperação entre a vizinhança, o poder

calcado na figura do chefe da família e o instituto do compadrio para consolidá-los.

Essa relação de solidariedade, contudo, não isenta os moradores da

comunidade de possuírem entre si ou com vizinhos do mesmo núcleo ou mesmo entre

núcleos vizinhos rusgas e pontos de conflito. Uma outra marca da sociabilidade dos

habitantes da zona rural, fora a cooperação, é a questão da violência. São frequentes

as disputas por terras, direitos de herança, rivalidades familiares que, por vezes,

terminam com mortes ou grandes prejuízos financeiros. Esse traço acompanha as

relações sociais desde o período colonial e perdura até os dias atuais, sendo que há

nas estradas pequenas cruzes ou mesmo capelas que sinalizam o local onde o

confronto ou a morte transcorreram.

Dentro do estado de São Paulo e da região historicamente consolidada pelos

paulistas, a partir das bandeiras (Paraná, Minas Gerais e Goiás sobretudo), há

diferentes populações rurais em estágios distintos de sedimentação e adaptabilidade,

conforme a região geográfica em que se estabeleceram. De acordo com Maria Isaura

Pereira de Queiroz (1973), decorrem disso as grandes transformações pelas quais

passaram as terras paulistas e demais regiões por eles influenciadas. Somaram-se

aos caboclos da roça as grandes levas de imigrantes, que se concentraram

especialmente no espaço geográfico mencionado para o cultivo de café, trazendo

consigo novos elementos para a vida sociocultural no meio rural.

                                                            14 Porções de lotes de terra que os reis de Portugal cediam aos colonizadores que povoaram o Brasil no Período Colonial.

79  

Para Antonio Cândido, o bairro rural constituiu-se como a menor divisão

administrativa da freguesia ou da vila à qual se encontrava subordinado no período

colonial e imperial;

A Freguesia supunha um núcleo de habitação compacta e uma igreja provida de sacerdote, normalmente coadjutor do vigário da paróquia; o bairro era divisão que abrangia os moradores esparsos, não raro com sua capelinha e às vezes cemitério. (CANDIDO, 1972. p. 45)

Essa denominação (bairro rural), nas palavras do autor, é típica das regiões de

São Paulo e Minas Gerais, embora seja produto de um fenômeno característico do

processo colonizador do Brasil.

As características mais marcantes dessa forma de agrupamento social surgem

da forma dispersa de seu povoamento no território, em contraste com uma noção de

pertencimento existente no seio do grupo. O forte sentimento de localidade é salutar

para a construção de sua identidade e para o estabelecimento do grupo, tanto no

plano social, quanto geográfico:

Tradicionalmente, uma capela marcava o núcleo central, e a festa do padroeiro constituía um dos momentos mais importantes de reunião para os componentes dispersos pelas cercanias – momento em que se afirmava a personalidade do bairro em relação aos bairros vizinhos. (PEREIRA DE QUEIROZ, 1973. p. 04).

Além das missas, novenas e ocasiões festivas, o outro grande acontecimento

que reunia os membros dos bairros rurais era a organização de mutirões. Dada a

precariedade dos recursos disponíveis, era bastante comum o sentimento de

solidariedade entre os vizinhos. Nas palavras de Candido (1972), o mutirão era a

manifestação mais importante do universo caipira, pois tinha a dupla função de

resolver o problema da escassez de mão de obra disponível e também o de reforçar

os vínculos de amizade e religiosidade da comunidade. Uns doavam seus dias de

trabalho e de sua família aos outros com a finalidade de desempenhar ações como

roçar pasto, plantar, colher e construir moradias, afirmando-se essas ocasiões como

importantes pontos da vida cultural dessas localidades.

Nas localidades onde ainda há ocorrência de atividade tropeira, a realização de

mutirões foi prática constante. As famílias se organizavam em grandes grupos, o dono

do mutirão saía pela região convidando os vizinhos e oferecia a alimentação aos

participantes, no dia da ação. Geralmente matava-se um porco ou alguns frangos,

dependendo da quantidade de componentes, e serviam-se também broas de fubá e

café como acompanhamento. A esposa do dono do mutirão se encarregava de

preparar a refeição, junto com as esposas de outros participantes que viessem junto.

80  

As crianças eram divididas conforme a idade e a atividade do pai e da mãe, para os

acompanhar.

É no bairro rural que se dão, de maneira original, as relações de sociabilidade

do homem simples, pois este se desloca da propriedade rural apenas

esporadicamente, por motivo religioso ou para comprar aquilo que não produz. O

tropeiro, mesmo nos dias atuais, em certa medida mantém essa função. A autora cita

as escalas em que as relações ocorrem pelo seguinte viés: a) relações familiares, b)

relações de vizinhança, c) relações dos bairros entre si, d) relações com a região, e)

relações com grupos externos à região.

O bairro rural, enquanto unidade mínima de povoamento, concentrava as

relações mais íntimas entre os indivíduos e as interações fruto do cotidiano.

Entretanto, eles estavam subordinados politicamente ou religiosamente a uma

freguesia ou cidade maior, que reunia diversos outros adensamentos na mesma

condição, sob sua administração.

Outra marca da vida nessas localidades era a homogeneidade social presente

entre as famílias. De acordo com Antônio Candido, por participarem das mesmas

festas e atividades, por compartilharem o mesmo credo religioso, os mesmos hábitos e

possuírem um rol de atividades laborais restrito, não havia grandes discrepâncias no

usufruto de recursos. As relações se davam a partir da cooperação entre os

indivíduos, o que inviabilizava o surgimento de lideranças ou prevalência de grupos.

Essa relação, no entanto, não inviabilizou o surgimento de lideranças políticas

ou mesmo de relações de poder. Como já tratamos, o Vale do Paraíba e a Serra da

Mantiqueira concentraram, a partir do século XIX, as principais forças políticas e

econômicas do período imperial e da primeira fase republicana, o que repercutiu

fortemente nas relações de poder. Não nos debruçamos especificamente sobre as

relações de poder na região, mas consideramos a dimensão do debate e a sua

relevância para a compreensão do papel do tropeiro. Segundo Franco (1983), o

tropeiro gozou de situação privilegiada nessa dinâmica, conquanto não existissem as

estradas de ferro na região. Sob o lombo de suas mulas, toda a produção de café da

região seguia para o litoral, garantindo a riqueza regional e a autonomia do tropeiro,

que negociava com os grandes fazendeiros de uma forma mais isonômica do que os

demais homens remediados.

O desenvolvimento da vida cotidiana e das relações sociais no Planalto

Paulista representou um processo diverso do observado no nordeste açucareiro ou na

81  

região litorânea do Rio de Janeiro – áreas mais densamente povoadas. Os paulistas,

de acordo com Darcy Ribeiro e Antonio Candido, tiveram como grande traço cultural a

mobilidade em meio ao vasto território e a provisoriedade, quanto à sua fixação. Se,

por um lado, as frequentes incursões bandeirantes representaram um importante fator

da expansão geográfica brasileira, por outro demarcaram um certo modo de vida e de

sociabilidade que influenciou fortemente a região das terras de serra acima por, ao

menos, dois séculos.

A sociedade caipira, criada em torno desse legado, modelou-se com base no

nomadismo característico do estilo de vida sertanista e disponibilidade de recursos

naturais à beira dos caminhos exploratórios, pois;

A combinação dos traços culturais indígenas e portugueses obedeceu ao ritmo nômade do Bandeirante e do povoador, conservando as características de uma economia largamente permeada pelas práticas de presa e coleta, cuja estrutura instável dependia da mobilidade dos indivíduos e dos grupos. Por isso, na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório da aventura. (CANDIDO, op.cit., p.37)

A cultura caipira é fruto dessa provisoriedade, relacionada à subsistência e à

forma de vida baseada no minimalismo, sendo os adensamentos populacionais

dispostos de forma dispersa e dotados de pouco mais do que o suficiente para a

manutenção da vida, da ínfima estrutura administrativa e do acesso facilitado ao

sertão em épocas de expedições.

Outra marca desse estilo de vida planaltino aparece quanto ao estilo de

moradia de seus habitantes: em textos, referiam-se aos ranchos como local de pouso.

Aqui se apresenta a primeira semelhança entre o bandeirantismo, a sociedade caipira

e os tropeiros, igualmente descendentes dos desbravadores do sertão. O estilo de

construção dessas paradas era o mesmo: feito de armação de bambu, taipa e coberto

com palha entrelaçada. Essa forma de construção de habitação, herdada dos

bandeirantes, predominou na zona paulista pelo menos até o século XVIII, quando

começaram a surgir edifícios públicos construídos com pedra, cal e madeiramento,

que se disseminaram posteriormente. Entretanto, o caipira manteve seu estilo próprio,

nos moldes ancestrais, em regiões mais afastadas.

A vida do caipira tradicional assentava-se sobre um modo de vida em que

dispunha, na sua propriedade, de quase tudo que necessitava para a manutenção de

sua vida. Pode-se considerar, sem prejuízo, que se refere a um modo de vida

sustentável, já que dispõe dos elementos necessários à construção de sua moradia

(de pau a pique ou taipa de pilão e de mão), mantém um roçado que garante sua base

82  

alimentar, caso do milho e da mandioca, além de pequenas criações de galinhas,

porcos e esporádicas caçadas e pescarias, que lhe garantem o complemento da

alimentação e, assim, seu deslocamento se restringe às celebrações e festividades

religiosas e á compra de sal, pois o querosene é substituído pelo azeite de mamona,

que o rurícola extrai na própria residência, a partir da fervura das sementes de

mamona, que liberam na água um conteúdo oleoso, que abastece lamparinas e

candeeiros.

Nos bairros rurais de outrora, nos locais de residência e nas relações sociais

do caipira, tudo o que se utilizava e se consumia no cotidiano provinha da produção

caseira, desde as vestimentas e calçados, simbolizados pela alpercata15 (precata) até

os utensílios do dia a dia ou, mesmo, para defesa, como a fabricação de arapucas.

Em determinadas épocas do ano eram organizadas nas vilas algumas feiras16,

onde a população poderia adquirir as poucas coisas que não produziam, simbolizadas

pela literatura através do sal e da pólvora. Além disso, outros pertences que não mais

servissem a eles poderiam ser trocados pelo que necessitavam com os demais

moradores.

Consideremos que, a partir dessa estrutura, despontaram na região paulista as

primeiras vilas e fazendas mais abastadas, ligadas à produção açucareira, gozando de

melhores condições materiais e inserindo-se na vida econômica colonial. Antonio

Candido (1972) afirma que esses fazendeiros e, posteriormente, os de gado e de café

adentraram à lógica de mercado e os sitiantes se dividiram em dois grupos: os que

aderiram a essa mesma prática, em menor escala, e os que se mantiveram apegados

à excepcionalidade na comercialização do que produziam, pois estavam sujeitos ainda

ao sistema de trocas, fator determinante para a manutenção da cultura caipira e de

suas particularidades.

Tanto os pequenos proprietários rurais quanto os grandes latifundiários

descendem, na origem, dos mesmos troncos familiares, tendo suas terras inclusive

dimensões similares. Entretanto, o elemento que determinou o sucesso de uns em

detrimento dos outros foi o emprego da mão de obra servil, primeiramente assentada

no trabalho escravo e em um segundo momento nos trabalhadores imigrantes. Tal fato

                                                            15 Sandália de fibra de sisal que se prende ao pé por tiras de pano ou couro (fonte: Dicionário Houaiss 2012) 16 Na Região do Vale do Paraíba, esse costume de se organizarem feiras para “breganha” ou troca de mercadorias é algo tão enraizado, que até os nossos dias acontecem tais eventos, simbolizados pela Feira da” Breganha” de Taubaté, que acontece aos domingos, em frente ao Mercado Municipal da cidade. Pode-se considerar, sem embargo, que essas feiras são um traço constitutivo da identidade dos valeparaibanos.

83  

marcou, em essência, a diferença entre o sítio e a fazenda e o declínio da cooperação

e do mutirão, em favor da acumulação de capital, a partir da exploração da força de

trabalho de outrem.

O homem livre e remediado, ao não se submeter ao sistema do latifúndio,

rejeitando tanto a escravidão quanto o colonato, perdeu espaço no processo de

desenvolvimento econômico, mas manteve a cultura caipira em seus hábitos e

crenças. Enquanto isso, seu congênere latifundiário acompanhou o processo de

modernização e de urbanização, transformando-se em membro da elite capitalista e,

posteriormente, em dirigente. Quanto ao caipira, ao não se adaptar a essa nova lógica,

foi classificado como figura marginal, como um ser indolente, pouco afeito ao trabalho,

estereotipado na figura do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato.

Essa inadaptabilidade, ao contrario do que se considera, é fruto de uma

resistência por parte do caipira quanto à forma que o processo de modernidade

avançou sobre o campo a partir do último quartel do século XIX, impondo um estilo de

vida voltado ao desenvolvimento de caráter urbanizador, que influenciou o imaginário

social da época. Porém, trata-se sobretudo da valorização, por parte dessa figura

típica paulista, de sua independência, ainda que levasse uma vida de privações.

O escravo e o colono europeu foram chamados, sucessivamente, a desempenhar o papel que ele não pode, não soube ou não quis encarnar. E, quando não se fez citadino, foi progressivamente marginalizado, sem renunciar aos fundamentos da sua vida econômica e social. (CANDIDO, 1972, p. 82)

Pereira de Queiroz (1973) refuta a tese de que os caipiras tenham que ser

observados apenas enquanto marginalizados. É preciso considerar que o elemento

que os forçam a essa situação é o desaparecimento das relações sociais anteriores

que mantinham, pois, quando o mutirão e a camaradagem cedem lugar à servidão e

ao colonato, há um empobrecimento sociocultural que desconstrói o modo de vida das

populações tradicionais.

O fenômeno do tropeirismo segue trajetória similar. Surgido como resposta a

uma demanda de transporte no período em que a circulação pelo interior do território

se dava de forma precária, ele se torna secundário à medida que avançam a

modernidade e o modo de produção capitalista.

A leitura sobre o significado do bairro rural no contexto do desenvolvimento

brasileiro, particularmente quanto ao recorte que nos interessa nesta investigação,

parte do princípio de Maria Isaura Pereira de Queiroz, que, ao analisar os

adensamentos populacionais de mesmas dimensões em diversas regiões paulistas,

84  

propunha que se considerassem os núcleos populacionais quanto à sua composição

interna, mas também quanto as relações entre estes e o bairro com o meio externo,

considerando os bairros vizinhos, a sede municipal à qual o bairro pertence e cidades

maiores, de referência regional.

As povoações estudadas se converteram em cidades tradicionais da região de

influência paulista, sendo que as localidades eleitas como casos paradigmáticos para

o desenvolvimento desta pesquisa se afirmaram como fruto da expansão bandeirante

e da corrida do ouro aos sertões de Minas Gerais. Elas têm como característica

intrínseca o seu povoamento disperso, em território bastante escarpado e pouco

adensado, permanecendo como regiões isoladas e de acesso dificultado, condições

essenciais para a sobrevivência da atividade tropeira na contemporaneidade.

O bairro rural, se o considerarmos enquanto espaço de fixação de sitiantes

tradicionais caipiras, fruto da miscigenação entre portugueses e indígenas, tipicamente

bandeirante, e que incorpora contingentes africanos posteriormente, mostra-se como

local privilegiado à atividade tropeira, dada a necessidade que a disposição das

propriedades produzia de se interligarem para transportar a produção colhida para os

centros maiores, onde se dava sua comercialização; na outra ponta, aparece a

necessidade de abastecer essas regiões isoladas com os gêneros que não produziam,

notadamente o querosene, a pólvora e o sal, o que demandava a existência das tropas

que cumpriam a função de trazer tais bens de consumo e comercializá-los nos bairros

rurais por onde passavam.

Os locais onde os tropeiros faziam suas paradas ficaram conhecidos como

ranchos de tropa, uma das modalidades de construção típicas do universo caipira.

Eles congregavam, ao seu redor, boa parte da estrutura comercial reinante nos bairros

rurais. O tropeiro tinha função de destaque neste meio social, por ser o elo entre a

comercialização dos produtos e as trocas comerciais entre os moradores da região.

Por isso, na dinâmica da sociedade caipira, o tropeiro possui papel estratégico.

Os tropeiros eram também os portadores de correspondências, notícias e

difusores de informações, pois as traziam dos centros maiores para o bairro rural e

mantinham conectados os vários bairros que constituíam a região de sua origem. As

tropas eram esperadas por trazerem as novas tendências de moda e estilo, em voga

principalmente no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e as de cunho político e

econômico, já associadas ao grande centro econômico representado por São Paulo.

85  

A região do Vale do Paraíba apresenta-se, nessa ótica, como uma das áreas

mais antigas de ocupação do solo paulista e, por isso, guarda particularidades que

facilitam a permanência, mesmo no cenário contemporâneo, dos antigos bairros rurais

que ainda detém a influência cultural herdada de seus ancestrais. Pereira de Queiroz

considera o Vale do Paraíba como uma zona cujo desenvolvimento econômico

oscilante favoreceu essa permanência. Podemos considerar tal fato principalmente a

partir do processo de industrialização de cidades como Taubaté e adjacências, pois

além da conexão com a ferrovia e com a estrada de rodagem, que possibilitou um

processo de dinamização da economia das cidades situadas às suas margens, elas

mantiveram um ritmo de crescimento modesto nos núcleos populacionais localizados

fora do eixo logístico principal.

As comunidades de Campos Novos de Cunha, Fragária e Serra Negra são

casos exemplares dessa realidade regional. Os agrupamentos retratados nesta

pesquisa possuem as características típicas de seus congêneres situados na zona de

influência das bandeiras paulistas, tais como a reunião de diversos núcleos

populacionais dispersos, a relativa coesão social e o espírito de pertencimento,

embora geograficamente estejam localizados em um território bastante escarpado e

pouco adensado, sendo comumente retratados como regiões isoladas, algo essencial

para a sobrevivência da atividade tropeira na contemporaneidade.

3.2 - Campos Novos de Cunha.

Vista da sede do Bairro de Campos Novos de Cunha – fevereiro/2014

86  

De todas as regiões isoladas do estado de São Paulo, a mais velha, a maior e a mais famosa nos círculos acadêmicos, é o município de Cunha, que se estende na região Sul do Vale, no Alto Paraíba. Por causa de uma combinação de fatores históricos e geográficos, Cunha, até bem recentemente, permanecia uma das regiões mais isoladas e conservadas do Estado e um dos últimos centros conservadores da velha cultura Folk rural de São Paulo, o chamado “Caipira Paulista”. (SHIRLEY, 1977, p. 28)

A história do município de Cunha, onde o bairro de Campos Novos de Cunha

está inserido, remete ao início do povoamento da Região do Vale do Paraíba, no

século XVII, por localizar-se entre a vila litorânea de Paraty e as vilas nascentes de

Taubaté e Guaratinguetá. Seu nome primitivo era Facão, tendo localização estratégica

logo após o topo da Serra do Mar, pois, sendo o primeiro adensamento de Serra

Acima, era conhecido como “Boca do Sertão”.

Por sua posição geográfica estratégica e pelo seu contexto de fundação estar

vinculado à primeira onda povoadora dos desbravadores portugueses no Brasil

meridional, a história de Cunha;

está intimamente vinculada à história do transporte, à história das estradas, da migração dos povos e do embarque de muitas espécies de produtos. Cunha é e tem sido sempre uma região periférica. Ela foi sempre secundária e dependente dos grandes movimentos sociais e econômicos, que ocorreram no vizinho Vale do Paraíba e no imenso interior de São Paulo e Minas Gerais. (SHIRLEY, op. cit. p.35)

Com a abertura das jazidas auríferas nas Minas Gerais, a região do Facão

ganhou grande destaque, por sediar o registro das tropas onde se recolhiam os

tributos para a coroa portuguesa, no alto da serra, bem como o Pouso da Aparição, no

bairro homônimo, constituindo-se em parada obrigatória para descanso das tropas,

tanto vindas do litoral, quanto do Sertão. Algumas léguas à frente do ponto referido, no

alto do morro, foi erguida uma capela em louvor a Nossa Senhora da Conceição, que

deu nome a povoação de Nossa Senhora da Conceição do Facão, cujo nome posterior

seria Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha, simplificado para Cunha, como

conhecemos atualmente.

A parte do território cunhense que nos interessa é o Distrito de Campos de

Cunha, ou Campos Novos de Cunha, como é mais conhecido. De acordo com Shirley

(1977),

A parte nordeste do município de Cunha, formando um subdistrito, Campos Novos de Cunha, é isolada e povoada muito esparsamente. É linda, agreste, grande parte dela completamente desabitada e até inexplorada. (SHIRLEY, op.cit., p. 32).

87  

Localização do distrito de Campos Novos de Cunha (SP) em relação aos acessos rodoviários principais e ao Parque Nacional da Serra da Bocaina. Fonte: Google Maps fev.2015

A história do distrito remonta ao século XVIII, fruto das entradas de diligências

e tropas ao interior do território cunhense, para alcançar trilhas que levassem ao Porto

da Vila de Mambucaba (pertencente a Angra dos Reis), evitando-se, assim, o

pagamento de impostos na Barreira do alto da serra, no caminho de Paraty. De acordo

com João Veloso (2010), no decênio de 1850 foi erguida na região dos Campos de

Cunha uma paróquia em louvor de Nossa Senhora dos Remédios, dando origem ao

povoamento que seria anos mais tarde (através da Lei nº 5 de 8 de março de 1872)

elevado pela então Província de São Paulo à categoria de Distrito de Paz, tendo seu

nome simplificado para Campos de Cunha, através do Decreto-lei estadual nº 9073 de

31 de março de 1938.

O distrito de Campos de Cunha (nome oficial da localidade) está

geograficamente localizado entre as serras do Mar, Bocaina e Quebra-Cangalha,

fazendo divisa com os municípios paulistas de Guaratinguetá, Lorena, Silveiras, Areias

e São José do Barreiro e com o município de Paraty, no Rio de Janeiro. Sua

população é de cerca de 5 mil habitantes (fonte: IBGE 2010), distribuídos de acordo

com a historiadora Kely Muller (2005) em 142 adensamentos populacionais entre

capelas curadas, bairros rurais e a sede do distrito. Vale salientar que a região tem

vital importância para o abastecimento hídrico regional, pois o principal rio da região, o

Paraitinga, nasce na divisa dos municípios de Silveiras e Areias, mas recebe seus

principais afluentes na área do distrito. Esse rio junta-se ao Rio Paraibuna, na cidade

homônima, e juntos formam o Rio Paraíba do Sul, responsável pelo abastecimento da

88  

região do Vale do Paraíba Paulista e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro,

compondo, portanto, uma das principais bacias hidrográficas do país.

São poucas as fontes que dão conta da circunstância exata de criação dos

povoados e dos bairros rurais que circundam a região de Campos Novos de Cunha,

mas, de acordo com Veloso (2010), o bairro de Campos Novos surgiu, devido à sua

estratégica localização, entre o final do século XVIII e início do século XIX, pois a

região se encontrava entre o Caminho Novo de Nossa Senhora da Piedade (aberto em

meados do referido século como variante da Estrada Real entre Lorena, situada na

então capitania de São Paulo e a Fazenda Santa Cruz, no Rio de Janeiro) e o

Caminho Velho (ou Estrada Real do Sertão que, vindo das Minas Gerais, demandava

Paraty) e concentrava pequenas trilhas para contrabando de ouro para área do litoral

diversa do autorizado pela Coroa Portuguesa. Os Campos Novos de Cunha são uma

região cercada por montanhas de altitude elevada, algo que, no cenário regional,

acabou impondo um isolamento geográfico, tanto da sede do município, como das

cidades vizinhas, culminando na manutenção de suas características peculiares, com

elementos herdados dos primeiros moradores. Em síntese, ele é um bairro tradicional -

entendido como lugar onde as manifestações culturais foram preservadas.

De acordo com as informações coletadas em campo, sobre a presença das

tropas na região dos Campos Novos de Cunha, na percepção dos moradores, o

tropeirismo representou senão o único, o mais importante meio de vida da população.

A tropa era empregada para transportar produtos, como leite, banha (a localidade era

a principal produtora de derivados suínos da região), milho e candeia, para as cidades

vizinhas e, ao retornar, abastecia o povoado de bens de consumo que não eram

produzidos por eles como sal, açúcar, querosene, pólvora, fósforo e demais itens

indispensáveis à vida do homem do campo.

As vias tropeiras, como se pode observar em campo, influenciaram em grande

medida a cultura local. Encontramos diversas expressões típicas da tropa no

anedotário popular, no imaginário coletivo, nas brincadeiras das crianças, na

gastronomia regional, na arquitetura das antigas propriedades e na própria escolha do

local onde se fundou o povoado, notando-se, portanto, que a herança cultural dos

tropeiros está profundamente enraizada nos habitantes e nos costumes locais.

Administrativamente, o município de Cunha é dividido entre dois distritos: a

sede e Campos de Cunha, que congrega os bairros mais afastados, próximos à divisa

interestadual e a Serra da Bocaina. Para os habitantes do município, é frequente

referenciar-se a região de Campos de Cunha como sendo o “sertão”, traço indicativo

89  

do isolamento histórico em que se achava o bairro de Campos Novos de Cunha e os

povoados próximos, alguns dos quais esvaziados com a criação do Parque Nacional

da Serra da Bocaina, que restringiu o acesso da população residente a uma série de

coisas, como melhorias de infraestrutura e serviços, tornando a área quase inabitada.

Quando observamos o cenário local, é possível inferir que Campos Novos de

Cunha possui características de um bairro rural típico. Sua configuração espacial dá-

se a partir de duas ruas principais, que a população se refere como “rua de cima” e

“rua de baixo”, com algumas transversais, onde se localizam as residências e

estabelecimentos comerciais, uma praça principal na entrada do distrito (para os que

chegam de Cunha ou Silveiras), onde fica a igreja católica do bairro, erigida em louvor

a Nossa Senhora dos Remédios, além de uma outra praça no lado oposto desta, onde

se localiza um ginásio de esportes, uma agência dos correios, um posto do Banco do

Brasil desativado e o cartório local.

Quanto à atividade comercial do bairro, base de sua sustentação econômica,

há dois laticínios que recebem a produção leiteira local e produzem queijos e manteiga

para consumo regional, uma pequena rede comercial composta por uns poucos

supermercados, armazéns para venda de utensílios da roça e algumas lojinhas de

calçado e vestimentas.

Não há, no bairro, grande quantidade de casas antigas, como no centro de

Cunha ou nas demais cidades históricas do Vale do Paraíba, talvez um indicativo do

processo de desenvolvimento pelo qual a municipalidade vem passando nos últimos

tempos. Cunha é considerada pelo Governo do Estado de São Paulo como uma

Estância, possuindo um acesso diferenciado a linhas de financiamento de obras e

bens públicos que, supõe-se, devem ser empregadas em obras de melhorias de

infraestrutura.

O distrito, embora se encontre inserido em uma dinâmica cuja sede municipal é

contemplada com recursos turísticos estaduais, o que em tese atrairia uma onda

desenvolvimentista à região, devido à condição geográfica local, além da baixa oferta

de empregos, sofre com a constante migração de seus habitantes em busca de

melhores condições de trabalho em outras localidades mais desenvolvidas da região

do Vale do Paraíba, sendo Lorena o principal destino, seguido de São José dos

Campos, Taubaté e Guaratinguetá. Curioso ressaltar que há um bairro em Lorena em

que a maior parte da população é oriunda de Cunha, notadamente da região de

Campos de Cunha (objeto de análise neste trabalho) – o Bairro da Cruz.

90  

Campos Novos de Cunha, historicamente, esteve mais ligado a outros

municípios valeparaibanos do que à sede a qual pertence nos dias atuais. A estrada

que o liga a Cunha foi construída nos anos 1970 e pavimentada no projeto pró-

vicinais, durante a gestão Orestes Quércia à frente do governo paulista.

Anteriormente, as ligações de Campos Novos se davam através de caminhos

utilizados pelas tropas e posteriormente por caminhões. As rotas utilizadas eram uma

trilha que, saindo do distrito, seguia à esquerda da Serra da Quebra-Cangalha,

cruzando o Rio Paraitinga na altura do rancho dos Verreschi (atual bairro Jaguarão),

saindo na estrada Cunha - Guaratinguetá na altura do bairro do Cedro, próximo à

divisa entre esses dois municípios, onde demandava o Bairro da Rocinha que,

antigamente, abrigava um laticínio que absorvia a produção da bacia leiteira local.

Outra rota bastante utilizada, que, por função intrínseca, acabou determinando

o fluxo migratório local, sai do bairro a norte da praça principal, margeia o Rio

Gabirobas (que corta a sede do bairro), cruza o Rio Paraitinga na altura do Rancho

dos Gonçalves, passa pelo Bairro do Pedroso (já no município de Lorena) e sai na

altura do Jardim Novo Horizonte (às margens da Via Dutra); ao cruzá-la, chega-se ao

Bairro da Cruz, o mesmo onde há a maior concentração de cunhenses fora de sua

cidade, ou, como é costume referir-se na região, os “cunheiros”, cuja avenida principal,

chamada Sete de Setembro, conduzia ao antigo rancho da tropa, cuja localização se

dava próxima à sede do atual 5º Batalhão de Infantaria Leve do Exército Brasileiro.

Como terceira opção de rota para os tropeiros da região, saindo ao lado direito

da Igreja Matriz (situada ao sul do povoado), há a antiga estrada das tropas que

atravessa o Rio Gabirobas e segue até o bairro Monjolinho, distante 7 km da sede,

onde cruza o Rio Paraitinga. Após cruzá-lo, inicia-se o município de Silveiras,

passando pelo Bairro dos Macacos, Bom Jesus, onde as tropas pousavam, chegando

ao centro dessa cidade. De lá, os tropeiros seguiam para Cachoeira Paulista. Esse

trajeto, bastante consolidado, determinou um grande intercâmbio entre os moradores

de Campos Novos (Cunha) e Macacos (Silveiras). Há bairros rurais do distrito que,

pela proximidade geográfica, quase não têm contato com o centro de Cunha, sendo

diretamente influenciados por Silveiras e Cachoeira Paulista.

De acordo com as informações dos depoentes, há cerca de 18 bairros rurais

cujos territórios pertencem ao Distrito, com nomes variados e características próprias,

vários deles com paróquia e organização bastante similar ao que Antônio Candido

considera, em seus estudos, como a organização tradicional paulista do tempo das

bandeiras. Aparecem na linguagem dos locais algumas menções aos hábitos comuns

91  

aos paulistas dos séculos XVI e XVII, como a organização de mutirões para ajudar na

colheita, festejos que se constituem naquelas poucas ocasiões em que moradores dos

rincões vêm para a vila, a relação que possuem com a terra e o caráter reservado de

sua postura. Desses bairros, os mais conhecidos pela estrutura em questão são: Mato

Dentro, Bocaina de São Roque, Serra do Indaiá (já próximo à divisa com o Rio de

Janeiro), Águas de Santa Rosa, Assunção, Pedra Branca, Bocaininha da Boa

Esperança, Monjolinho, Barreira, Alto da Tenda, Taquaral, Capoeirinha e Sertão da

Paca.

A população de alguns desses bairros foi bastante impactada pela criação, nos

anos 1970, do Parque Nacional da Serra da Bocaina. Os habitantes do “sertão”

cunhense, devido à proibição de novas construções, benfeitorias em estradas e

precariedade de condição de abastecimento, deixaram as áreas originais e migraram

para áreas não afetadas pelo congelamento do território, ou, mesmo, migraram para

outras cidades. Atualmente a região conta com poucos moradores e a grande fonte de

renda é a exploração para fins turísticos da região do Vale do Paraitinga e Campos da

Bocaina (nos bairros próximos à divisa com Silveiras e Areias) e da antiga trilha do

ouro para Mambucaba (nos bairros delimitados pelo parque).

Os bairros subordinados ao distrito têm uma diferenciação geográfica singular:

de um lado, aqueles que se encontram à beira do Rio Paraitinga, nos Campos da

Bocaina; do outro lado, os que se encontram à beira do Rio Guarirobas, no sentido da

Serra do Indaiá, que marca a divisa com o Rio de Janeiro. Em ambas as direções,

ainda encontramos moradores que lidam com atividade tropeira, tanto como sua

principal ocupação, quanto desempenhado serviços residuais aos vizinhos e

conhecidos, na forma de fretes.

Em campo, encontramos pessoas que ainda possuem em suas propriedades

mulas para uso doméstico, para realizar tarefas como movimento de moenda17,

transporte de ferramentas e da própria produção leiteira, além de outros gêneros,

como milho e madeira. No bairro afastado de Bocaininha da Boa Esperança, próximo

da divisa do distrito de Campos Novos com o município de Areias e a três quilômetros

aproximadamente da nascente do Rio Paraitinga, há um morador que ainda possui

mulas e transporta a produção de seus vizinhos, das propriedades mais afastadas, até

o ponto onde é possível chegar de caminhão. O homem se chama Lucimar e possui

cinco burros, e transporta, na maior parte das vezes, a produção de milho e

                                                            17 O termo moenda refere-se a ao aparato utilizado para moagem de produtos, como o milho, uma das bases alimentares da população rural. (Fonte: Dicionário Houaiss 2012)

92  

carregamentos de madeira. Aprendeu esse ofício com o pai, e ainda o desempenha,

devido à dificuldade de acesso da região em que vive. Sobre a forma como aprendeu

o ofício, Lucimar descreve: “ah, ele me ensinou bem pequeno a sair a cavalo junto,

mexendo, me ensinou. Por isso que ele ensinou eu. Ele passou pra mim o que ele

sabia.” (VAZ, Lucimar. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital com transcrição integral

consta no Anexo II)

Em seu relato, emociona-se quando conta sobre a maneira como aprendeu o

ofício, dizendo que seu pai o chamava desde os oito anos de idade, para ver como

alceava18 um burro, como ajeitava a carga, como se faziam os utensílios, como jacás,

paus de cangalha, arreios, e assim aprendeu e desempenha até hoje as mesmas

tarefas do pai. No lado cunhense da Serra da Bocaina, ele é um tropeiro

remanescente, pois seus vizinhos quase todos abandonaram as mulas, em benefício

de motocicletas, restando somente em uso animais para alcançar as áreas

escarpadas das propriedades e os bairros de difícil acesso.

Na família de Lucimar, a tropa tem importância principalmente pelo que

representa para a história de sua família. Seu pai era um dos filhos caçula da família e

ficou órfão ainda pequeno. Seu irmão mais velho, que já acompanhava o pai na lida

tropeira, ficou com a tropa mondada, quando do falecimento deste. Foi com essa tropa

que o tio mais velho de Lucimar criou os irmãos e os iniciou no ofício. A tropa para

eles representa a sobrevivência da família. Lucimar mesmo considera que seu pai,

embora já não possa mais acompanhá-lo na atividade, sente falta da tropa, mas não

deixa de ajudar o filho. “Ele fala que tem saudade, tem vontade de fazer, mas só que

pelo problema de saúde ele não pode. Ele não pode fazer. Só que ele tá junto, alguma

coisa que falta na tropa principalmente. Ele faz, se eu preciso de uma cangalha, se

preciso de qualquer coisa. Ele tá junto, faz pra mim.” (VAZ, Lucimar. Entrevista.

mar.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II)

Em outro bairro rural visitado, Serra do Indaiá, distante três quilômetros em

linha reta da divisa entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, encontramos

outros dois senhores que ainda possuem mulas, o primeiro deles, senhor Osmar, vivia

no bairro de Águas de Santa Rosa e se mudou para a Serra há pouco mais de 20

anos. Seu pai era um dos tropeiros que transportava a produção de toucinho do bairro

em que residiam até o rancho de tropa, localizado no atual Bairro da Cruz, município

de Lorena. Atualmente possui quatro mulas e as utiliza em serviços domésticos e

                                                            18 Alcear um burro: é o ato de colocar no burro os paramentos que servirão de suporte para os balaios (cestos feitos com armação de bambu) onde são inseridas as cargas.

93  

quando algum vizinho solicita, esporadicamente, para algum tipo de frete (como ele

declara), normalmente madeira extraída de dois bairros que ficam às margens do

ribeirão Guaripu (divisa SP/RJ), denominados Sertão da Paca e Capoeirinha, já

situados dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina, onde não há estradas,

apenas trilhas utilizadas desde o tempo das tropas, que iam com destino ao litoral.

O outro morador que ainda possui mulas na região é o senhor José Tolino. De

sua propriedade, é possível avistar o topo do morro que marca a divisa estadual. No

interior de suas terras, passa o ribeirão que dá origem ao Rio Guabirobas e que corta

o distrito de Campos Novos sendo um dos principais afluentes da cabeceira do Rio

Paraitinga. Aprendeu o ofício com o pai, que era um tropeiro conhecido da região e,

em sua casa, às margens do referido rio, havia um rancho em que tropeiros e

viajantes pernoitavam, quando no rumo da vila de Mambucaba. Ele se utiliza dos

animais para a lida na fazenda e para transportar materiais de construção, dentro das

suas terras ou por solicitação de seus vizinhos, sendo essa constatação a confirmação

de uma das hipóteses da pesquisa, de que a atividade tropeira se encontra

ressignificada quanto à sua finalidade.

Ao fundo à direta vê-se a escarpa da Serra do Indaiá, cujo topo marca a divisa SP/RJ. À esquerda, o curso d’água formador do Rio Guabirobas – afluente do Rio Paraitinga.

94  

3.3 – Fragária e Serra Negra.

A região da Serra da Mantiqueira, conforme já exposto, guarda uma íntima

relação com a região do Vale do Paraíba, manifesta muito mais do que simplesmente

pela proximidade geográfica, estendendo-se a própria expansão da corrente

povoadora do interior do Brasil, com marcas profundas no processo histórico e na

cultura regional, determinando caminhos antigos e atuais, orientando o sentido

migratório das gentes e, do ponto de vista geográfico, assemelhando-se quanto ao

clima, relevo e vegetação. Por essas características, temos em Fragária e Serra Negra

semelhanças bastante significativas com Campos Novos de Cunha.

Os dois bairros rurais mencionados pertencem ao município mineiro de

Itamonte, cujo território fica às margens de uma importante rodovia que liga a Via

Dutra à região do Circuito das Águas. Tal fato, desde muito tempo, impulsionou a

presença de turistas à região, uma variável fundamental, se considerarmos que a base

da sobrevivência da tropa nesse lado da serra se pauta pelo comércio com turistas.

Localização dos Bairros Fragária e Serra Negra (MG) em relação aos acessos rodoviários principais e ao Parque Nacional do Itatiaia. Fonte: Google Maps fev.2015

As tropas da região começam a ser citadas ainda no período colonial, devido à

presença de entrepostos comerciais no caminho entre a Capitania de São Paulo e as

minas de ouro, estabelecendo-se invernadas e ranchos serra acima, com a finalidade

de estabelecerem ligações comerciais com os viajantes. Outro ponto comum entre as

localidades foi a ausência da estrada de ferro, que forçosamente obrigava os tropeiros

a se dirigirem à estação ferroviária mais próxima (em primeiro momento, Resende e,

posteriormente, Itanhandu), para comercializarem seus produtos.

95  

Acredita-se que a região tenha sido descoberta como consequência da

abertura do caminho para as Minas Gerais, pois o primeiro nome da localidade foi

atribuído graças a uma grande elevação montanhosa, em um dos pontos mais altos da

Serra da Mantiqueira, que ficou conhecido como Pico, ou “picu”. Para o descanso dos

viajantes e sertanistas, instalou-se nessa área um pouso que, pela referência

geográfica, passou a ser chamado de “Pouso do Pico”.

Com o declínio das lavras de ouro é que se acredita ter havido um impulso pela

fixação de famílias na região de Itamonte, justamente considerando o já exposto que

inúmeras famílias que migraram para a zona de extração mineral, com o declínio da

produção, fizeram o caminho de volta, fixando-se na área que hoje congrega as

cidades do Sul de Minas Gerais. Com o afluxo migratório, instalou-se uma capela em

louvor a São José e o povoado foi erguido com a nomenclatura “São José de

Itamonte”, situado à beira do rio Capivari que, assim como o rio Aiuruoca, foi usado

como via de penetração à zona mineradora.

Itamonte é um município administrativamente recente. Elevado a município por

força do Decreto-Lei estadual 148 de 17/12/1938, posteriormente foi elevado à sede

da comarca homônima, que abrange também a vizinha Alagoa. Sua configuração

territorial dá conta de diversos outros bairros, além daqueles que são objeto de nossos

estudos, como Capivara, Campo Redondo, Monte Belo, Conquista, Vargem Grande,

entre outros. A presença de tropeiros sempre foi uma marca da região, cuja

localização favorecia o comércio, tanto com as cidades de serra acima, quanto as

cidades do Vale do Paraíba, para onde grande parte da população migrou em busca

de melhores condições de vida.

Não há grande disponibilidade de bibliografia que aborde a origem ou

consolidação territorial de Itamonte. Para isso, privilegiamos a observação e o diário

de campo, como um amálgama de informações extraídas das entrevistas que,

agrupadas, ilustram a circunstância de chegada das primeiras famílias, da instalação

dos primeiros bairros e da consolidação da cidade.

O município é cortado pela Rodovia BR – 354, que faz a ligação do Circuito das

Águas mineiro com a região sul fluminense, atraindo para o trânsito regional um

elevado número de turistas. Os principais serviços da cidade encontram-se à beira

dessa via. Um bar às margens da estrada, próximo ao centro da cidade, é utilizado

como ponto de encontro e distribuição de caronas e fretes para os bairros rurais do

município, dentre eles Fragária e Serra Negra. Não há transporte coletivo oficial para

essas localidades, todo o transporte é feito em carros de passeio e pequenos

96  

caminhões, que se dirigem por estradas sem asfalto e pouco iluminadas, até as

propriedades.

A região interiorana do município, particularmente onde se encontram os

bairros de Fragária e Serra Negra, tem como característica o povoamento disperso em

meio ao vasto território; entretanto, trata-se de uma área de antiga ocupação. Seu

povoamento remonta ao século XVII, já que, pela região, passava o primeiro caminho

das bandeiras que tinham as Minas Gerais como destino, subindo a Serra da

Mantiqueira a partir da Garganta do Embaú, passavam pela área onde hoje se acham

os municípios de Passa Quatro, Itanhandu e Pouso Alto, atravessando a pequena

Serra do Papagaio, aonde chegavam próximo ao local em que se encontra Fragária,

daí seguindo pelas margens do Rio Aiuruoca, demandando o Arraial de Rio das

Mortes, atual São João Del Rei.

Fragária e Serra Negra ficam localizadas na parte leste do município, cujo

bairro rural mais desenvolvido é Campo Redondo, distante seis quilômetros do bairro

da Fragária e dez quilômetros do bairro Serra Negra. Uma particularidade mencionada

pelos moradores, nas entrevistas realizadas, diz respeito à origem das famílias locais.

Nos Bairros Campo Redondo, Fragária e Capivara, uma mesma família deu origem

aos três locais: os Fonseca. Esse sobrenome é o mais comum entre os habitantes da

região, sinalizando que quase todas as famílias possuem entre si algum grau de

parentesco.

A região possui povoamento disperso, há várias residências, mas são distantes

umas das outras. Os moradores se locomovem a pé, através de animais cavalares, de

moto ou em automóveis; por essas estradas não é frequente a presença de

caminhões e não há transporte coletivo oficial, sendo que os próprios moradores se

organizam em torno de um transporte particular para fazerem compras, irem ao banco

ou ao médico: uma Kombi, duas vezes por semana (segunda-feira e quinta-feira),

leva-os da zona rural até uma padaria no centro de Itamonte, ponto de encontro para

os moradores da serra, ou então utilizam o expediente de pedir carona a vizinhos que

possuem veículo próprio.

O primeiro dos bairros rurais da Serra da Mantiqueira retratados nesta

pesquisa é Fragária, distante aproximadamente 40 km da sede do município; seu

acesso se dá a partir da Rodovia LMG 881, que liga os municípios mineiros de

Itamonte e Alagoa, de onde se pega uma estrada de terra que leva aos bairros de

Fragária e outros mencionados, como Campo Redondo, Capivara, Monte Belo,

Arantes e Vargem Grande. O trajeto só é asfaltado nos primeiros 12 km da rodovia,

97  

seguindo-se a maior parte da viagem em estrada de terra, que compensa a

precariedade da viagem presenteando o viajante com belíssimas paisagens e com

abundância de mata nativa e água mineral.

Vista do adensamento de casas do bairro da Fragária, vindo da Serra Negra/Garganta do Registro.

O bairro está encravado no meio de uma grota (maneira como os antigos

moradores se referem a vales e depressões do solo), em uma das regiões mais altas

da Serra da Mantiqueira, próximo ao Pico das Agulhas Negras, um grande atrativo da

região, ao Parque Nacional do Itatiaia e às nascentes do Rio Aiuruoca, que corta o

bairro e proporciona um rico cenário. A paisagem do bairro é cortada pelo rio, pela

Serra, pelo pico, por fazendas, sítios e residências de produtores rurais, que

reproduzem um modo de vida ancestral, criando gado, galinhas, porcos, tirando leite,

fazendo queijos, colhendo frutas e fazendo geleias, da mesma forma que seus pais,

avós e demais.

A região é repleta de montanhas de altitude elevada e terreno escarpado,

sendo comum haver lugares onde ainda não é possível, nos dias atuais, obter acesso

com veículos automotores. A trilha percorrida pelos tropeiros retratados é um exemplo,

ela sai do bairro com destino ao distrito turístico de Visconde de Mauá (RJ), logo no

início da jornada é preciso vencer uma subida bastante íngreme, entrecortada pelo

morro através dos passos das mulas, não havendo traçado possível a qualquer outro

meio de transporte que não sejam animais cavalares.

As opções de trabalho na região são poucas, as oportunidades facultadas aos

moradores se resumem às tarefas de lavrador rural, empregado doméstico (caseiro)

de alguma pousada ou de turista que possua imóvel na região, ou trabalhos eventuais

98  

no Parque Nacional do Itatiaia que, nos últimos tempos, tem empregado boa parte da

mão de obra local. Esses contratos são firmados por períodos de seis meses,

respeitando intervalo de dois anos para nova contratação, assim, como as famílias da

região são numerosas, assegura-se que em cada período um componente da família

esteja empregado no parque, garantindo uma renda para sua manutenção.

Chama a atenção, no caso desses bairros, o fato de que não há um centro

comercial que congregue as famílias. No caso da Fragária, apenas recentemente foi

erguida uma capela em louvor a São Pedro e, em seu anexo, uma pequena escola

rural que, por força da localização, terminou indicando que ali possa ser um pequeno

centro. No bairro da Serra Negra, o mesmo fenômeno não se verifica, não há

construções identificadas com essa marca, ou locais de encontro e uso comum, senão

um pequeno bar no caminho para o topo da serra. Essa particularidade não permite

identificar o que seria um centro comercial do bairro, sendo que a referência mais forte

para essas famílias é o bairro vizinho de Vargem Grande.

O bairro da Serra Negra tem configuração parecida, seu acesso por veículos

pode se dar de duas formas: a primeira delas se dá pelo mesmo caminho percorrido

até a Fragária, percorrendo ainda cerca de quatro quilômetros adiante, para chegar às

primeiras propriedades do local; o caminho mais usual, no entanto, inicia-se na

Rodovia BR-354, no quilômetro zero, exatamente na divisa dos estados de Minas

Gerais e Rio de Janeiro, marcada pelo topo da Serra da Mantiqueira, onde uma

estrada leva à área do Parque Nacional e ao Bairro da Vargem Grande, que dá acesso

a Serra Negra.

Os tropeiros desse bairro possuem ligação mais íntima com as cidades de

Itatiaia e Queluz, devido a sua localização. Porém, também cruzam a serra em direção

a Visconde de Mauá, antigo trajeto que demandava a cidade de Resende (RJ),

cruzando igualmente a área do Parque Nacional e gozando da mesma influência da

Fragária.

O bairro da Serra Negra possui, na origem, o mesmo traço fundador da

Fragária, embora não tenha sido constituído pela mesma família Fonseca que chegou

ao vizinho, ao Campo Redondo e a Capivara. Pelo que pudemos observar, as famílias

que chegaram primeiramente ao local,vieram da região da Garganta do Registro e do

bairro da Vargem Grande, com o qual estes mantêm relacionamento mais estreito, e

se espalharam pelos altos morros e vales do local. Diferentemente da Fragária, lá não

há um centro ou igreja que reúnam em seu entorno as principais propriedades e

famílias do bairro. O que há são propriedades dispersas, algumas encravadas na

99  

região mais alta da serra, onde há convivência entre os moradores apenas nas festas

ou durante o ano escolar, além dos laços de parentesco.

Esse bairro carece de fontes que deem conta de seu surgimento; a partir da

fala dos entrevistados, entendemos seu povoamento como sendo a partir desse

recurso, no entanto, não foi possível aprimorarmos os dados de criação da Serra

Negra, dada a dificuldade de acesso a documentos que citassem formalmente a

origem e os primeiros moradores dessa localidade.

Os tropeiros da região, quatro ainda em plena atividade, semanalmente

percorrem a trilha tropeira, transportando os queijos tipo parmesão, da Mantiqueira,

que leva esse nome devido à semelhança no processo de fabricação e textura do

produto final, para venda aos turistas e comerciantes de Visconde de Mauá. Além dos

queijos, levam também ovos caipira, geleias, mel e frutas frescas. Todos já se

tornaram conhecidos na região como “tropeiros do parmesão”, sendo motivo, inclusive,

de reportagens de grandes emissoras, que impulsionam sua atividade.

A economia local é baseada na produção dos pequenos agricultores da região.

As propriedades são compostas por famílias que praticam a agricultura de

subsistência e vivem também da prestação de serviços esporádicos ao Parque

Nacional. Os tropeiros se afirmam como agentes importantes nessa dinâmica, pois,

além de produzirem parte do que comercializam, adquirem a produção de seus

vizinhos e levam nas mulas para vender em Visconde de Mauá. Essa ação atrai para a

região um capital restrito, mas suficiente para que a prática se torne lucrativa e

minimamente garanta o sustento das famílias.

Devido à aspereza da viagem, cada vez menos há interesse por parte dos mais

jovens em desempenhar essa função, porém todos reconhecem que a tropa

sobrevivente ainda é um elemento indispensável para a atração de divisas para os

bairros ao redor. O preparo anterior à partida dos tropeiros rumo à trilha é influenciado

por essa necessidade. No dia anterior à viagem, os tropeiros saem pela vizinhança

comprando a produção de seus vizinhos, se não totalmente, ao menos em parte, para

complementarem a sua própria e garantir a lucratividade da viagem. Ao chegar ao

destino final, entre o fim da sexta-feira e a manhã de sábado, vendem tudo o que

transportaram e garantem que, no fim de semana seguinte, novamente se ponham em

marcha rumo ao mesmo trajeto percorrido por seus ancestrais.

As ideias contidas nesse debate, sobre a questão dos bairros rurais e sua

articulação com a dinâmica social e o modo de vida característico dos tropeiros,

100  

suscita questões sobre a importância que a configuração do bairro rural possuiu para a

viabilidade das tropas. Em todos os lugares retratados nesta pesquisa, verificamos

que, na disposição dos locais, sempre há uma rua principal destacada, em detrimento

de praças principais, traço que remete ao tempo das bandeiras, indicativo de que a

tônica da localidade é o caminho, o deslocamento, uma característica que esses

bairros ainda conservam, embora estejam em outro contexto histórico e de

desenvolvimento.

As tropas que observamos nos dias atuais conservam no formalismo de suas

técnicas a mesma forma laboral de seus ancestrais, dão a mesma nomenclatura às

peças que constituem os paramentos dos muares, muitas vezes percorrem os

mesmos caminhos, embora grande parte das estradas que outrora eram apenas

picadas na mata, hoje já permitem a entrada, ao menos em alguns pontos, de

veículos; no entanto, o tempo de jornada mudou, os gêneros transportados hoje são

poucos e as tarefas ficam restritas a serviços menores.

No caso de Campos Novos de Cunha, essa transformação se dá de forma

mais evidente. Quando consideramos que a tropa atual sofreu um processo de

ressignificação, devemos considerar toda a gama de recursos disponíveis ao redor.

Com a instalação de laticínios na sede do distrito, caminhões e veículos pesados

avançaram pela zona rural do distrito, instalando pontos de coleta de leite em bairros

afastados. A tropa resiste nesses locais, em áreas cujo relevo impediu que estradas

fossem abertas e nas áreas lindeiras ao Parque Nacional da Serra da Bocaina, onde a

abertura de estradas é proibida.

Em relação a Fragária e Serra Negra, a transformação teve como diferença o

grau de desenvolvimento da região onde se encontram inseridos. Enquanto Campos

Novos de Cunha hoje possui uma economia até certo ponto dinâmica, conectada com

a sede municipal e com cidades vizinhas, em Itamonte, município ao qual pertencem

as duas localidades, o fenômeno da industrialização se deu de forma tímida e voltado

ao mercado meramente externo. A produção leiteira e de derivados nas áreas rurais

permanece artesanal, voltada para mercados pequenos; com isso, as tropas mantêm

uma característica ancestral, a de levar o que é produzido na região em lombo de

mula para um local cuja estrutura de comércio é mais desenvolvida: a região de

Visconde de Mauá.

O que se percebe é uma nova lógica quanto ao tempo de jornada das tropas e

o espaço percorrido, uma de nossas hipóteses iniciais. Verificamos que a tropa

permanece em um contexto diverso na aparência, mas essencialmente vinculado à

101  

dinâmica do bairro rural. Ainda se referem a lugares cuja mobilidade da população é

baixa, por isso as tropas, em certa medida, ainda cumprem a função comercial de

abastecimento das localidades, onde usualmente residem.

Trataremos, a seguir, dessa lógica espacial e temporal, além de considerarmos

a pratica tropeira nos dias atuais a partir da rotina desses tropeiros, do olhar que estes

e seus contemporâneos e descendentes têm a respeito de sua profissão, além de

avaliarmos, pelas evidências observadas e manifestas pelos entrevistados, se haverá

possibilidade de continuidade da prática tropeira, desempenhada por seus

descendentes.

102  

4. REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ATIVIDADE TROPEIRA REMANESCENTE NOS DIAS ATUAIS.

4.1 – A noção de espaço e tempo e o cotidiano da tropa.

Durante as atividades de campo, realizamos vinte e duas entrevistas, além de

descrições etnográficas e observações constantes sobre a rotina das tropas, os

hábitos, valores e crenças manifestos pela comunidade e as diferentes formas de

exercício da atividade entre Campos Novos de Cunha, Fragária e Serra Negra. O traço

de homogeneidade ao desempenhar atividade tropeira dessas comunidades refere-se

à situação geográfica e à forma de trabalho, desde os paramentos à forma como

transportam a carga; no mais, há diferenças significativas, como o valor da carga, o

tempo e o espaço de transporte, além da finalidade e impacto que produzem nas

comunidades ao redor.

Encontramos, durante a execução da pesquisa, pessoas que foram

indispensáveis para a viabilidade da coleta de entrevistas e depoimentos que

possibilitariam elucidar as questões norteadoras deste trabalho. Chamamos esses

depoentes de “informantes preferenciais”. Com essa terminologia, não queremos dizer

que seus depoimentos tenham sido preponderantes, mas que, a partir deles, um novo

olhar sobre as questões presentes nas comunidades foi possível. No caso de Campos

Novos de Cunha, o depoente foi o senhor Jair de Amorim, filho de um antigo tropeiro

da região dos Campos da Bocaina que, ao contar histórias sobre a região, abordando

as jornadas de tropa, foi indicando outros indivíduos que pudessem nos dar

informações sobre a influência tropeira ou mesmo que fosse possível chegar até os

tropeiros que ainda desempenham essa função na região da Serra da Bocaina e do

Indaiá.

Jair é testemunha viva das transformações pelas quais o bairro rural passou

nas ultimas cinco décadas, como a abertura da estrada de rodagem ligando o bairro à

sede municipal e a municípios vizinhos; a chegada da energia elétrica à localidade e o

processo de migração de inúmeras famílias do bairro para cidades como Lorena,

Guaratinguetá e Cachoeira Paulista.

Na região da Serra da Mantiqueira, o “informante preferencial” também se

chama Jair, Jair Fernandes da Fonseca. Tropeiro ainda em atividade no bairro da

Fragária, herdou a profissão de seu pai e do avô, cresceu em uma região onde tropas

foram uma presença constante devido a localização e topografia, sendo também

descendente direto da família povoadora do bairro. A partir de sua entrevista, surgiram

nomes de outros potenciais depoentes, com a curiosidade de terem alguns bairros

103  

vizinhos a Fragária a mesma origem, pois foram irmãos de uma mesma família que se

estabeleceram na região e fundaram os bairros de Fragária, Campo Redondo,

Capivara e Monte Belo; por isso quase todas as famílias carregam o mesmo

sobrenome ancestral: Fonseca.

Com relação aos moradores, quase todos têm, em certa medida, algum

parentesco com alguém que tenha sido tropeiro ou que ainda exerça essa profissão.

As transformações pelas quais passaram esses bairros são bastante semelhantes ao

observado em Campos Novos de Cunha e causaram impactos na mesma proporção:

a abertura da estrada de rodagem entre o povoado e a rodovia que liga os municípios

de Itamonte e Alagoa, a chegada da energia elétrica e a migração de grandes

contingentes em busca de melhores oportunidades de trabalho em cidades como

Resende (RJ), Cruzeiro (SP) e Pindamonhangaba (SP).

O sentido da migração, quando tratamos de Campos Novos de Cunha, é

semelhante. A população tem no Bairro da Cruz, em Lorena (SP), nas cidades de

Guaratinguetá (SP) e São José dos Campos (SP), seus principais destinos, quando

buscam melhores oportunidades de trabalho. Esse fenômeno verifica-se em quase

todas as regiões e nos mostra o quanto a vida no meio rural, embora conserve em

suas características traços culturais tradicionais, é posta em segundo plano em

relação aos atrativos que as grandes cidades oferecem.

Para quem estude temas relacionados à Sociologia Rural ou cuja temática

circule por esse ambiente, há que se considerar as interfaces desse ramo do

conhecimento com outros campos, como a Antropologia, a Geografia e a História. De

acordo com Henri Mendras (1969), a terra é o meio natural de subsistência do homem

rural, essa relação influencia desde o meio de produção e manutenção da vida até as

práticas culturais e formação da identidade desses indivíduos. Portanto, é a partir

dessa consideração que incorporamos ao estudo sobre atividade tropeira

contemporânea reflexões multidisciplinares, buscando melhor compreender o papel

dessa atividade e o contexto cultural e espacial em que ela se desenvolve atualmente.

A questão do espaço ocupa papel de grande relevância nessa discussão.

Pereira de Queiroz (1978) considera que a relação entre o espaço rural e o urbano

produz uma relação dialética, a cidade se afirma como espaço urbano, atrativo ao

desenvolvimento industrial, às modernas técnicas de produção e à acumulação de

capital, em contraposição ao meio rural, vinculado ao tradicionalismo quanto às

técnicas produtivas, à utilização de equipamentos menos sofisticados, porém,

adaptados à aspereza do ambiente e precariedade aparente de recursos.

104  

Mesmo nos dias atuais, essa diferenciação ainda se faz evidente. A sobrevida

da atividade tropeira é um exemplo marcante desse descompasso no ritmo de

desenvolvimento, em certas regiões interioranas, dentre as quais os bairros rurais

onde desenvolvemos nosso trabalho. A partir de algumas entrevistas realizadas para

esta pesquisa, cujas falas ilustram essa situação, percebemos qual é o sentimento que

populações rurais nutrem sobre a ideia do progresso que, na zona valeparaibana,

concentra-se, sobretudo, ao redor da Rodovia Presidente Dutra. O entrevistado Jair

Amorim, ao refletir sobre essa situação considera: “os mais ricos vão procurar gente

para trabalhar no Bairro da Cruz19, porque sabe que o cunheiro é bom pra

trabalhar”.(AMORIM, Jair. Entrevista. fev.2014. O arquivo digital com transcrição

integral consta no Anexo II)

A população do município de Cunha, notadamente aquelas oriundas de bairros

pertencentes ao distrito de Campos Novos, migrou para as cidades maiores da região;

devido à baixa qualificação de parcela do grupo, estes se empregam em atividades

braçais, como construção civil, serviços domésticos e limpeza pública. São pessoas

conhecidas regionalmente pela desenvoltura no trabalho, além de ser uma mão de

obra mais barata em relação a outras cidades, fazendo com que sejam requisitados

para trabalhar. O Bairro da Cruz, por ser o local de maior concentração de cidadãos

cunhenses, nas cidades à beira da Via Dutra, é o local onde esses trabalhadores são

geralmente recrutados.

Cidade e campo, nessa premissa, devem ser entendidos como formas sociais

em que se verifica que as transformações históricas apresentam continuidades e

descontinuidades, para que se possa compreender os motivos de sobrevivência de

algumas características, como na cidade de Lorena, às margens da Estrada de Ferro

Central do Brasil e da Via Dutra, simbolizando o desenvolvimento e melhores

oportunidades de trabalho, e na região de Cunha, por ser distante do eixo

rodoferroviário e, por isso, menos desenvolvida, permanecendo associada à imagem

de atraso.

Pereira de Queiroz (1978) considera que a migração da população de áreas

rurais para adensamentos mais desenvolvidos é um fato tradicional não apenas do

Brasil, como em toda a América Latina, ou mesmo das antigas nações Europeias.

                                                            19 Os habitantes do Distrito de Campos Novos de Cunha (SP) têm nesse bairro, situado no município de Lorena (SP), seu principal destino de fixação, quando migram. É comum a referência ao local, entre os moradores de Lorena, como sendo uma região de famílias humildes, oriundas da cidade de Cunha (SP), cuja baixa escolaridade favorece a contratação dessa mão de obra para serviços braçais. 

105  

Quase sempre, uma característica comum a esse processo é a formação de bairros

pobres, periféricos, ou mesmo bairradas ou favelas, locais onde se instalam os recém-

chegados em busca de alguma possibilidade de trabalho e para onde se dirigem

pessoas em busca de mão de obra barata e pouco especializada.

O espaço, que dita a rotina das famílias tanto no âmbito da vida privada quanto

das relações sociais, é algo entranhado na cultura local, perceptível desde quando

tratamos da jornada de tropas, dos caminhos percorridos, dos locais de pouso, até a

chegada da modernidade, orientando o sentido migratório da população. Ele é uma

categoria relevante, pois se refere inclusive a algo fortemente presente no imaginário

das localidades em que a atividade tropeira se deu de modo mais efetivo, visto que, a

tropa devido a sua dinâmica é um convite constante à caminhada.

A atividade tropeira diz respeito a um sistema da esfera domiciliar, pessoal.

Impõe certo nível de relação entre o transportador e o proprietário da carga, cujos

laços vão para além do fornecimento da mercadoria, estende-se pela relação de

confiança mútua, para a garantia do transporte correto e mesmo para a

comercialização dos produtos transportados.

Essa importância se verifica com o próprio caminho percorrido, a localização

estratégica das paradas, a configuração das residências de tropeiros, o material

transportado, entre outros, sendo um símbolo, nas palavras de Maia (2008), constituir-

se espaço aquilo que possibilita dar sentido às experiências sociais; o espaço não

seria simplesmente a representação física do lugar, mas também orientador das

relações sociais e fator determinante quanto sentido do desenvolvimento das

localidades. Exemplificamos, a partir dessa consideração, que ao tropeiro, enquanto

agente social, seria facultada a propulsão de desenvolvimento econômico e

propagação de um modelo cultural próprio, que influenciaria decisivamente essas

localidades.

Quando pensamos na noção de espaço no Brasil, esta é intrínseca a nossa

própria construção social, posto que estava ligado ao processo colonizador do

território e à novidade que isso representava para a expansão mercantil lusitana à

época. O sentido da colonização brasileira, conforme já tratamos em outro momento,

deu-se a partir da costa litorânea rumo ao sertão desconhecido, fazendo com que,

além dos nativos, posteriormente bandeirantes e tropeiros que, embora tivessem

objetivos e funções históricas e sociais diferentes, se lançassem aos confins do

território, dando origem a novos tipos de vida e práticas culturais, adaptadas devido à

provisoriedade que o caminho exigia.

106  

Com as tropas, essa relação se mantém. Descendentes dos sertanistas,

tropeiros se lançam em primeira hora aos caminhos que convidam ao desconhecido e

ao futuro incerto; suas maiores contribuições foram a consolidação dos caminhos

terrestres, que conectariam o país posteriormente, e a manutenção da vida econômica

e social dos locais onde trafegavam.

Maia (2008) considera que o processo formador brasileiro, por ter-se dado a

partir de uma noção territorialista, influenciou a experiência cultural de forma que os

estudos sobre imaginário, cultura e temas correlatos devem considerar essa dimensão

do debate. A noção espacial das tropas, evidenciada pela própria dinâmica dessa

atividade, influenciou as localidades por onde trafegavam, sendo perceptíveis até os

dias atuais alguns traços, como a disposição das cidades, nome das paragens,

estradas e formações geográficas cujos nomes fazem referência à passagem das

tropas como Serra da Quebra-Cangalha, Pouso Alto, Pouso Seco, Passa Três, Passa

Quatro, entre outros.

Nos dias atuais, embora a revolução tecnológica no campo tenha possibilitado

o acesso a formas mais modernas de plantio, colheita e transporte, ou mesmo à

mudança de ramo quanto à atividade econômica de muitas regiões, em localidades

como Campos Novos de Cunha, Fragária e Serra Negra

O espaço continua a impor suas submissões à sociedade rural, mas sua escala se modificou pela diminuição da densidade humana e pelo desenvolvimento dos transportes. Importa sempre ao rurícola o fato de ser de tal distrito ou de outro, e seu universo social fica limitado pelas fronteiras geográficas, mais que pelas sociais. (MENDRAS, 1969, p. 47)

Seria essa uma das grandes justificativas para a sobrevivência da atividade

tropeira contemporaneamente, que aparece ressignificada quanto ao conteúdo

transportado, mas conserva, em sua essência, o mesmo estilo e emprego de técnicas

no transporte.

Mendras (1969) coloca que a sociedade rural tem na família a base de sua

estruturação econômica. O pai – chefe da família – é também o responsável pela

empresa familiar e, por consequência, da aprendizagem dos filhos. À mãe cabe a

função contábil, de administrar o dinheiro, a rotina e os afazeres da propriedade. Os

filhos, criados sob essa dinâmica, identificam-se com o trabalho dos pais e, desde

cedo, partilham responsabilidades para a viabilidade desse intento.

Vemos, assim, representada a estrutura básica que rege também as relações

nas famílias de tropeiros. Esse ofício é transmitido do chefe da família ao filho, de

107  

modo tradicional, para que esse ciclo não se interrompa. Mesmo em regiões como a

que tratamos nesta pesquisa, inseridas na lógica de mercado típica da modernidade, a

atividade tropeira ainda se orienta nesse sentido.

A abordagem em torno do meio rural enquanto espaço físico teve seu lugar

também na literatura. Euclides da Cunha, na obra “Os sertões”, retrata o episódio da

Guerra de Canudos se valendo de expressivas observações quanto à importância da

terra e a figura do homem sertanejo. Nessa premissa, a história se desenvolve

considerando mais do que a concretude da terra, alcançando inclusive a

metalinguagem entre o lugar e a palavra. Neste estudo, consideramos a dimensão do

lugar, porém o enfoque se concentra no ato concreto dos preparativos para a jornada

tropeira, e a jornada em si.

Com a retração da agricultura e do próprio meio rural, a atividade tropeira viu

seu papel modificado espacial e também temporalmente. Quanto à questão do tempo,

variável constante na passagem das tropas, houve uma ressignificação devido à

diminuição das jornadas, da carga transportada e da urgência em estabelecer um

prazo para a realização dessa ação. A tropa de outrora saía do arraial e ficava longos

períodos afastada, percorrendo grandes caminhos. A partir do ciclo do café, as

jornadas diminuíram, mas igualmente demandavam períodos mais longos de viagem.

Apenas a partir da chegada das estradas de ferro é que houve uma retração

significativa no tempo de viagem; o mesmo se verificou com o avanço das rodovias

sobre as regiões mais afastadas, até o ponto em que nos encontramos atualmente.

A redução das jornadas da tropa se deve a causas temporais e espaciais. A

partir da chegada da autoestrada de rodagem, as tropas paulatinamente deixaram de

circular pelas cidades valeparaibanas cortadas pela rodovia, sendo que essa redução

do caminho impactou diretamente no tempo da jornada. As tropas passaram a

transportar menor quantidade de carga e a trazer o material apenas das áreas mais

afastadas ao centro mais próximo, onde veículos poderiam acessá-las em pontos de

coleta.

Com essa diminuição no fluxo das tropas, o tempo gasto para a utilização dos

animais, bem como sua própria disponibilidade foram otimizadas; também sofreram

modificação as ações que envolviam a prática tropeira nas áreas mais afastadas, fato

causado não apenas pela chegada dos automóveis, como também pela busca de

atividades agrícolas mais rentáveis.

108  

As tropas que outrora cruzavam a região e ficavam fora de suas residências

por dias passaram a realizar tarefas menores, cujo tempo de viagem raramente

ultrapassa um dia de jornada (aproximadamente oito horas), como transporte de

madeira, milho, materiais de construção. Mesmo no caso dos tropeiros que cruzam a

Mantiqueira, levando queijos, ovos, frutas, geleias e mel, sua jornada se situa nessa

referência temporal.

Após a década de 1970, automóveis passaram a chegar com maior frequência

tanto a Campos Novos de Cunha quanto a Fragária e Serra Negra; isso fez com que

as tropas retrocedessem à áreas onde o acesso automotivo permanecesse dificultado.

No primeiro caso, as tropas sofreram maior retração a partir da abertura da estrada,

ainda sem asfalto, entre a sede do distrito e a sede municipal de Cunha. A essa altura,

o bairro já havia se convertido, como em outras parte do Vale do Paraíba, em bacia

leiteira, assim os pequenos caminhões poderiam adentrar no distrito sem maiores

prejuízos. Como afirma em entrevista o senhor Jurdelino Aires, o leite passou a ser

mais lucrativo do que as tropas; com a construção de um laticínio na vila, as famílias

que tinham melhores condições aderiram a essa prática. “Tirar leite era muito mais

vantagem (...) lá por 1963 que eu passei a tirar leite”. (AIRES, Jurdelino. Entrevista.

fev.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

O número de pessoas que trabalhavam com mulas diminuiu sensivelmente,

inclusive, pois os animais envelheceram e não havia grande disponibilidade de novos

muares em substituição. A prática tropeira passou a ser a de transportar a produção

leiteira das propriedades afastadas aos pontos de coleta. Em paralelo, com a criação

do Parque Nacional da Serra da Bocaina, foi proibida a abertura ou mesmo

conservação das estradas, bem como realizar benfeitorias significativas ou construir

novas edificações, o que ocasionou um movimento migratório maciço na região;

entretanto, aos que permaneceram ficou facultada a utilização de mulas para serviços

domésticos e pequenos fretes contratados por vizinhos.

Conversamos com moradores de pequenos bairros vizinhos, que ilustram essa

necessidade, como os tropeiros Lucimar Vaz, de Bocaininha da Boa Esperança e José

Tolino, da Serra do Indaiá. Atualmente, cada um deles possui uma média de três a

cinco mulas e transportam a produção de suas propriedades, como leite, milho e

feijão, além de materiais de construção, quando solicitados. Em Fragária e Serra

Negra, devido à própria localização, em meio às áreas mais altas da Serra da

Mantiqueira, a tropa se mantém como elo socioeconômico desses bairros.

109  

Do ponto de vista hidrológico, ambas as regiões são privilegiadas pela

abundância dos cursos d’água, sendo alguns rios da região de importância não só

para o abastecimento local, como regional ou mesmo nacional, além de ter contribuído

historicamente com a ocupação do solo. Campos Novos de Cunha é servida em seu

território pelo Rio Paraitinga – um dos formadores do Rio Paraíba do Sul – e seus

afluentes. Fragária e Serra Negra são cortadas pelo Rio Aiuruoca – afluente do Rio

Grande – cujas margens serviram de caminho natural para as lavras de ouro desde o

século XVIII.

Assim como em Campos Novos de Cunha, Fragária e Serra Negra também

viram a chegada do gado leiteiro e a entrada de automóveis a partir da década de

1970, porém a precariedade estrutural dos adensamentos e seus caminhos de acesso

no interior da Mantiqueira impuseram maiores restrições ao tráfego de veículos do que

na área dos Campos da Bocaina. Uma diferença entre os dois casos se dá na escala

de produção quanto aos derivados de leite, comuns em ambos os bairros. Campos

Novos de Cunha possui dois laticínios, que produzem em escala industrial, enquanto

em Fragária e Serra Negra predomina a produção artesanal e caseira, assentada na

mão de obra familiar.

Um de seus principais produtos é o queijo fresco e, além deste, notabilizou-se

outro tipo cujo modo de preparo e aparência lembram o queijo parmesão e, por essas

características, fora batizado como “queijo parmesão da Mantiqueira”, que é

transportado nas tropas para Visconde de Mauá (RJ) ou vendido para uma

cooperativa rural do bairro vizinho de Campo Redondo, que o revende para

comerciantes da região do Circuito das Águas.

As tropas de Campos Novos de Cunha atualmente realizam trabalhos

pequenos, cujas jornadas levam entre vinte minutos e duas horas, restritas às áreas

mais escarpadas e afastadas, simbolizando que essa atividade na região dos Campos

da Bocaina permanece em locais chamados de “sertão”. As tropas de Fragária e Serra

Negra, embora sejam também utilizadas para os mesmos serviços residuais já

mencionados, destaca-se pela jornada semanal que transporta os gêneros produzidos

pela comunidade aos turistas e comerciantes, o que representa uma distinção quanto

aos congêneres paulistas.

O envolvimento dos tropeiros com essa prática é anterior à ida para a trilha,

começa ainda durante a semana, quando, em suas casas, realizam o preparo dos

queijos e, na véspera da viagem, vão até as propriedades vizinhas para adquirir outros

produtos que não possuem ou que possuem tem em menor quantidade, caso de

110  

queijos, ovos, frutas, geleias e mel. O caminho que utilizam é, de acordo com os

próprios tropeiros, uma rota bastante antiga e sempre foi a principal via de

comunicação entre os bairros rurais da região e o município de Resende, já no estado

do Rio de Janeiro, que era o centro mais próximo onde era comercializada a produção

local e as tropas eram abastecidas com os bens de consumo necessários à

manutenção da vida serra acima.

Todos os tropeiros ainda em atividade na região, que realizam a travessia entre

as Agulhas Negras e Visconde de Mauá (RJ), possuem uma rotina muito parecida

quanto à forma de aquisição das mercadorias e de preparo para a viagem.

Acompanhamos os dois tropeiros da Fragária, Jair e Paulo, que são primos e

descendem de uma numerosa família de tropeiros da região. O pai de Jair e o pai de

Paulo já eram tropeiros, antes destes o avô dos dois foi um lendário tropeiro da Serra

da Mantiqueira, o bisavô deles já era dono de tropas, sendo que a lida com animais

cavalares vem passando através das gerações até eles.

Os tropeiros saem na sexta-feira para a jornada até Visconde de Mauá,

acompanhamos o senhor Jair nos preparativos para percorrer a trilha. Ele levanta-se

diariamente as 5h30 da manhã para cuidar das vacas leiteiras, antes de organizar os

burros, faz a ordenha do leite que utilizará para a fabricação dos queijos, põe capim

para os animais, prende-os no curral e vai ao pasto buscar as mulas. Todos os dias

em que sai para a trilha repete o mesmo processo. Leva consigo uma mula de monta

e duas de carga com os queijos e ovos que produz na sua propriedade e o restante

que adquire de seus vizinhos. Acomoda tudo nos jacás (balaios de vime onde

transporta os pertences), equilibrando o peso, e coloca os ovos embalados um a um

em palha de milho num pequeno jacá próprio para esse transporte e coloca-o dentro

de um cesto maior, que vai pendurado proporcionalmente na mula.

111  

Acima: Jair embalando e acondicionando os queijos que levará para vender em Visconde de Mauá (RJ). Abaixo: As mulas de Jair, já carregadas, prontas para a travessia da Mantiqueira.

Cada peça de queijo é embalada em um saco plástico e colocada em caixas

feitas de tábua (conforme fotografia acima), em formato arredondado, que comporta

aproximadamente entre dez e doze unidades, sendo acondicionadas nos jacás de

forma a equilibrar o peso. Os tipos de queijo que eles transportam são o minas fresco

e o Parmesão da Mantiqueira (cujo nome é associado a eles) e tem essa designação

devido à semelhança no modo de preparo com o congênere italiano, mas

apresentando uma consistência mais cremosa que aquele. Somam-se a isso as

garrafas de mel e geleias, transportadas em garrafas pet, também no interior dos

jacás.

Depois da lida com os afazeres da propriedade, Jair traz as mulas até a porta

de sua casa, amarra-as em uma estrutura de madeira na varanda e coloca o suador

112  

(ou pelego) em cima de cada mula (essa peça vai logo acima da pele do animal para

diminuir a chance de machucá-los com a carga), em seguida coloca a cangalha, que é

o suporte feito de madeira para sustentar os balaios com os produtos, e os arreios e

sobrecargas para deixar a carga bem presa e não ter perigo de cair. A mula em que

vai montado já está devidamente encilhada e está pronta a pequena tropa para mais

uma jornada.

Na rota em questão, há quatro tropeiros que a percorrem semanalmente: Jair e

Paulo, que saem da Fragária, e Gezuel e Natanael (Natal), que saem da Serra Negra;

eles procuram percorrer o trajeto juntos, quando possível, e não raras vezes se

encontram no meio da trilha, pois assim, caso haja algum imprevisto, eles podem se

ajudar, considerando que a trilha atravessa trechos onde não há qualquer residência

ou tipo de comunicação.

Almoçamos às 11h00 da manhã e saímos com a tropa, Jair e eu, para

encontrar Paulo e seguirmos viagem. De todos os tropeiros da região, Jair é o que

percorre o maior trajeto e o único que cruza o Rio Aiuruoca, que corre nos fundos da

propriedade onde mora e demarca a divisa de suas terras com as de Paulo. Nós o

atravessamos no local denominado Passo do Aiuruoca, um trecho bastante raso e

cheio de pedras, onde é possível atravessá-lo em segurança; devido à grande seca

que assola a região sudeste do Brasil, as águas estão excessivamente baixas e a

passagem foi particularmente fácil, Jair me cedeu sua montaria e atravessou a pé, eu

atravessei a cavalo e, na outra margem, ao iniciar a subida, já entramos nas terras do

Paulo.

113  

Passagem da tropa cruzando o Rio Aiuruoca – curso d’água de vital importância para a região.

Paulo tem uma rotina semelhante à do Jair; quando chegamos à propriedade,

já estava arrumando a carga em suas mulas, tratando do gado leiteiro, deixando para

sua família a função de alimentar o gado enquanto estiver fora. Em sua casa,

diferentemente de Jair, há uma maneira de comunicação com os vizinhos e pessoas

de outros lugares: a Internet. Alguns grupos de moradores da Fragária e do bairro

vizinho Campo Redondo adquiriram um emissor no centro da cidade de Itamonte que

replica o sinal de Internet por alguns lugares no caminho e em algumas residências há

roteadores, que recebem o sinal e possibilitam que os moradores se comuniquem

através de programas como Skype e Facebook.

Podemos considerar que o fenômeno da modernização chegou ao campo, não

apenas pelos novos recursos, como motores a combustão e a eletricidade, ou veículos

automotivos, mas o próprio processo de comunicação sofreu uma ressignificação,

visto que, na região, há não muitos anos, apenas a correspondência escrita era

possível e restrita àqueles que fossem retirá-las na agência postal do centro da

cidade; atualmente, encontramos nas residências telefones via satélite e

computadores que permitem o acesso à informação com velocidade similar aos

grandes centros urbanos, embora encravados na zona rural.

Paulo terminou de arrumar a carga e trouxe o animal que eu montaria durante

a trilha, um cavalo da raça campolina chamado Tesouro. Saímos de sua casa ás

12h30 e nos dirigimos ao início da trilha, que passa pela propriedade do senhor

114  

Geraldinho, parente de ambos e que também foi tropeiro. O início do trecho é marcado

por uma porteira e, na sequência, há uma forte subida onde os animais caminham

sinuosamente por aproximadamente uma hora, compensando o desgaste quando se

atinge o topo da montanha, onde há uma linda vista da grota (vale) em que se localiza

o bairro.

Após essa primeira hora de subida, atravessamos um dos únicos pontos de

água da trilha e, depois de outra subida (menos íngreme), há uma grande árvore no

meio da trilha que marca a entrada na área do Parque Nacional do Itatiaia, do qual

Paulo é um dos brigadistas contratado temporariamente. Com a criação do parque,

práticas comuns outrora, como o uso de queimadas e desmatamento para pasto,

foram proibidas, além de algumas espécies de árvores endêmicas da região, como a

candeia (utilizada na fabricação de mourão para cerca e alicerces de construções)

terem seu corte proibido. Em contrapartida, o parque contrata em regime de rodízio a

mão de obra local, para a realização de serviços, como combate a incêndios, rondas

de segurança ou guias turísticos, o que possibilita alguma espécie de investimento na

região. Os contratos são feitos por períodos de seis meses; decorrido o tempo, o

morador somente poderá tornar a exercer alguma tarefa para o parque após dois

anos.

O Parque Nacional tem adquirido terras de moradores da região e incorporado

à sua área de domínio, os moradores contratados auxiliam os funcionários a demarcar

as terras em questão. Paulo declarou que ele mesmo ajudou a demarcar uma área

comprada pelo Parque que pertencia ao seu primo Geraldo. A trilha da tropa passa no

meio dessa gleba de terra e continua sendo utilizada pelos tropeiros devido à

antiguidade do caminho e há ciência do parque a esse respeito.

Logo que entramos na área de propriedade da União, atravessamos um trecho

de mata fechada, repleta de candeias e vegetação rasteira, com solo barrento; vencida

essa parte, chegamos a um local denominado “Morro Cavado”, o ponto mais alto da

travessia, com aproximadamente 2.500 metros de altitude. Seguimos adiante por um

grande descampado. Conforme relatos dos tropeiros, é comum nessa região

ocorrerem rajadas de vento. Mais adiante, chegamos a um ponto conhecido como

“Porteira Preta”, onde existiu um portão que separava a trilha e marca uma bifurcação

em que se encontram os caminhos para a Fragária e a Serra Negra. A partir desse

ponto, um dos tropeiros da Serra Negra (Gezuel) também passa a trafegar pela trilha.

115  

Tropeiros Paulo e Jair com suas respectivas mulas de carga atravessando a região próxima ao Morro Cavado – ponto mais alto da trilha, a cerca de 2.500 m de altitude.

Atravessa-se novamente um trecho de mata fechada, chama a atenção o fato

de que o tráfego das tropas, com o passar dos tempos, fez o nível do solo afundar,

cavando a trilha em meio aos morros ao redor. O terreno tem um solo escuro e

encharcado, dada a baixa incidência de luz sobre aquele trecho da mata, fazendo com

que seja muito difícil atravessar o local sem escorregar.

Ao rompermos esse ponto, chegamos a uma área onde as elevações altas da

Mantiqueira são avistadas pelo lado direito (Morro do Couto e Pico das Agulhas

Negras) e é possível avistá-los sem sair da trilha, que passa a alguns quilômetros de

distância. Logo à frente houve uma mudança no caminho que os tropeiros percorriam,

feita por eles próprios, pois o trecho original evitado era um dos piores de toda a

travessia, com muita lama e pedras escorregadias; entretanto, ao final chegava-se a

um dos poucos trechos com disponibilidade de água, com uma bica formando uma

pequena poça onde os animais e o próprio tropeiro poderiam matar a sede. Com o

intuito de reduzir o desgaste dos animais e da viagem em si, o novo traçado passa por

cima do morro e evita esse terreno, em detrimento do acesso à água.

Paulo me levou para conhecer esse trecho desativado, que já está coberto pela

mata, devido ao pouco uso, de solo ainda mais instável, sendo muito difícil cruzá-lo.

Mas, vencida essa etapa, chega-se à mina d’água, matamos a sede e seguimos ao

encontro do Jair, já do outro lado. Nós o encontramos mais à frente, em um trecho

onde o caminho atravessa o cume de uma montanha e permite avistar as vilas que

116  

compõem o distrito de Visconde de Mauá e, mais abaixo, algumas cidades do Vale do

Paraíba, principalmente Resende (RJ). O visual é dos mais belos de toda a trilha e

marca o início da descida da serra, cujo solo, apesar de diverso do que já havíamos

enfrentado, se mostrou igualmente hostil, pelas pedras muito lisas que, por vezes,

fazem os animais baterem no chão o balaio com a carga.

Após vencermos essa primeira etapa, chegamos a um platô onde os tropeiros

costumam parar para descansar e se alimentar. Cada um amarra seus burros mais

ariscos próximos à mata e deixa os mais mansos e os de montaria descansarem

livremente. Depois, sentam-se no chão para comer. Jair e eu levamos uma garrafa de

café e o tradicional bolão de fubá (feito por dona Nadir, esposa de Jair, na noite

anterior), Paulo levou uma grande vasilha com farofa de carne em pedaços grandes

(tipo virado), comemos com as mãos e tomamos o café em dois copos que Jair

trouxera consigo. Logo em seguida, chegou Gezuel (da Serra Negra), com suas

mulas, amarrou-as e juntou-se a nós com uma garrafa de refrigerante da região. Após

a refeição, todos pegamos as mulas, a montaria e voltamos à trilha. Nesse momento,

a tropa atingiu seu auge numérico: Jair com três mulas, Paulo com mais três mulas,

Gezuel com quatro mulas e eu, totalizando onze mulas na tropa, entre cargueiras e

montaria.

Um parêntesis sobre a alimentação durante a jornada de tropa diz respeito à

forma e ao conteúdo daquilo que eles comem, quando se dirigem a Visconde de

Mauá. Usualmente a refeição que realizam é um lanche e um suco ou café.

Entretanto, quando há falta de alimentos, como o pão, os tropeiros recorrem à antiga

forma de matula que, nessa jornada, foi simbolizada pelo bolão de fubá e pela paçoca

de carne. Essas são duas das mais tradicionais formas de alimentação da sociedade

rural de influência paulista e mineira. O ato de comer com as mãos remete a uma

tradição cultural indígena e africana, demonstrando que a marca da miscigenação se

faz fortemente presente na tropa.

117  

Parada para descanso dos animais e alimentação dos tropeiros. No cardápio: café, paçoca de carne e bolão de fubá. Na foto estão Jair (à esquerda), Gezuel (em pé) e Paulo (à direita).

As últimas duas horas da trilha são marcadas por descidas bastante íngremes,

com grande quantidade de pedras escorregadias, e os tropeiros, não raras vezes, já

percorrem esse trecho à noite; por isso, costumam descer juntos e com as mulas de

carga próximas a si, garantindo que não haja acidentes com os animais ou com os

balaios. Novamente entram na mata e atravessam um trecho longo em meio a um

bosque de candeia. Adiante, Paulo chama minha atenção um local onde as mulas

precisam passar perfiladas, conhecido como “Passa Um”, pois é possível apenas

trafegar um animal de cada vez. Terminando esse trecho, logo à frente, há a primeira

porteira de propriedade, sinalizando que já estamos fora da área do Parque Nacional e

próximos à vila de Maromba, onde começa a última parte da descida, nos mesmos

moldes do começo da trilha, ainda na Fragária.

118  

Tropeiros iniciando o trecho final da descida da Serra da Mantiqueira.

O terreno vai dando lugar a uma região cheia de pedaços escorregadios e as

mulas vão atravessando pelas diferentes fendas do caminho, fazendo zigue-zague

pelo morro e todos os tropeiros as acompanham. Jair vai na frente, amparando-as,

Paulo e eu vamos no meio e Gezuel, ao final, tocando as que, por ventura, ficaram

para trás. O término da descida chega aos fundos de uma pousada em Maromba, cujo

dono permite a passagem deles. Quando a trilha chega ao plano, passa-se uma

grande árvore e, após cruzar uma porteira que marca o fim da trilha, os tropeiros

iniciam o percurso por estrada; adiante há uma ponte por onde se cruza o Rio Preto

(divisa estadual entre Rio de Janeiro e Minas Gerais), próximo ao “Poção Da

Maromba”, e entramos no território fluminense. Passada a ponte, Jair começa a parar

todos os burros, tanto os seus quanto os dos demais que chegam na sequência, pois,

a partir daquele local, cada tropeiro deve amarrar seus burros uns aos outros, para

trafegarem com segurança pelas ruas do distrito. Nesse momento, os tropeiros se

separam de acordo com os clientes e o planejamento de cada um.

119  

Chegada das Tropas à Vila de Maromba (RJ) – próxima ao Poção da Maromba.

A jornada termina após cerca de sete horas cruzando a Serra da Mantiqueira.

Gezuel sai para vender seus produtos ainda no mesmo dia, pois tem muitos clientes

próximos à Cachoeira do Escorrega (ponto máximo, a oeste do distrito). Paulo tem

várias pousadas e hotéis como clientes fixos, na Maromba também; Jair, nessa vila,

costuma atender mais a restaurantes e turistas. Ambos preferem realizar apenas umas

poucas vendas na chegada e levar os animais para descansar, poupando-os para o

dia seguinte, nas ruas da vila de Maringá.

A partir da experiência de observação participante com os tropeiros da Serra

da Mantiqueira, em que estivemos juntos percorrendo a trilha, sentindo junto com eles

a dinâmica da travessia e vendo o ofício de tropeiro desempenhado na prática,

aliamos o conhecimento apreendido com as questões levantadas durante as

entrevistas, quando foi possível captar, na fala dos entrevistados e depoentes, suas

reflexões sobre a atividade tropeira, sobre a presença da profissão em seus contextos

pessoais e sobre a eventualidade de continuação do ofício.

Estruturamos, com base nos tópicos-guia norteadores das entrevistas, algumas

questões principais relativas à atividade tropeira, quanto à forma como os tropeiros

aprenderam ou herdaram o ofício, reflexões sobre a utilização contemporânea da

tropa, elementos culturais legados pelos tropeiros à população das localidades, bem

como evidências de continuidade no exercício da atividade tropeira, que serão

tratados no ultimo tópico.

120  

4.2 - Percepções sobre a influência tropeira remanescente nos dias

atuais.

  Os tropeiros dos dias atuais podem ser avaliados como remanescentes, à

medida que, com a passagem do tempo, sua profissão foi ressignificada do ponto de

vista econômico e social. Comumente associamos a imagem das tropas, limitando-a a

um tempo em que a precariedade do transporte exigia que a besta de carga fosse

amplamente utilizada, pois os trens e automóveis ou inexistiam ou encontravam-se

distantes dessas localidades. Ocorre que a existência contemporânea de tropas é um

indício de que há um descompasso na noção de modernidade que conhecemos, pois

o desenvolvimento econômico da região não foi capaz de romper definitivamente o

isolamento geográfico e a precariedade da vida material, o que força a existência das

tropas, como forma de garantir, em pleno século XXI, a viabilidade da vida das famílias

dessas áreas afastadas.

  Partindo das entrevistas realizadas na região das Serras da Bocaina e da

Mantiqueira, percebemos uma diferenciação entre os contextos de empregabilidade e

finalidade das tropas em Campos Novos de Cunha, se comparada a Fragária e Serra

Negra. É possível captar, na fala dos entrevistados, que, embora o sentimento de

pertencimento a esse universo, orgulho quanto ao desempenho da atividade tropeira e

o impacto gerado na comunidade sejam similares, as razões de sobrevivência, o

material transportado e a própria lógica da jornada são distintos.

Extraímos dos roteiros elaborados para auxiliar na realização das entrevistas

alguns eixos temáticos, que auxiliam na resposta à questão proposta originalmente.

Propusemos-nos a realizar entrevistas com tropeiros remanescentes, pessoas que,

em algum momento, lidaram com tropas e depois mudaram de ofício, e com

descendentes de tropeiros que tiveram experiências próximas ao ritmo das tropas ou

aos elementos por ela legados.

As questões abordadas com os tropeiros remanescentes, que nos servem de

objeto de análise, referem-se à sobrevivência em si dessa atividade: a forma como o

ofício de tropeiro lhes foi ensinada, a perspectiva de continuidade dessa prática, o que

transportam e para onde transportam e suas reflexões quanto à importância da tropa

para os locais onde residem atualmente.

Com relação aos ex-tropeiros, as questões que serviram como eixos de análise

se referem ao contexto em que desempenharam essa atividade (com quem

aprenderam o ofício e o que transportavam na época), por que trocaram de ramo e as

121  

reflexões que fazem sobre a perspectiva de continuidade da tropa, além da

importância da tropa para os locais que residem atualmente.

Quanto aos descendentes de tropeiros, as questões que são analisadas giram

em torno da presença das tropas em seus contextos familiares: quais parentes foram

tropeiros, o que transportavam, por que deixaram a profissão ou se ainda

permanecem desempenhando-a, além de reflexões sobre a importância da tropa para

os locais onde vivem.

Nos três perfis estabelecidos para a realização das entrevistas, uma indagação

se repete, aquela em que buscamos captar a importância contemporânea da tropa

para essas localidades. Essa é a grande questão que orienta esta pesquisa e que

analisamos a partir do material coletado. Nosso intuito é esclarecer qual o sentido

contemporâneo da atividade tropeira, a partir do olhar dos entrevistados, somando-se

as etnografias produzidas e a observação do pesquisador.

Quanto à forma como os tropeiros relatam ter aprendido a profissão, há quase

uma unanimidade em afirmar que foram ensinados pelos próprios pais, tratando-se de

uma transferência intergeracional de conhecimentos. Por tratar-se de um aprendizado

que não se caracteriza por acontecer no ambiente formal, as técnicas utilizadas são as

mais diversas, há desde aquele que foi ensinado em casa pelo pai até aquele que

aprendeu diretamente nas jornadas, sendo similar a forma de ensinar, inclusive entre

os dois campos realizados.

Os entrevistados, quando descrevem a forma como aprenderam o ofício de

tropeiro, exemplificam essa relação de ensino e aprendizagem a partir do contexto de

vida da família: o pai trabalhava sozinho com a tropa e,com o passar do tempo,

ensinou os filhos para que estes pudessem seguir com ele na jornada da tropa,

caracterizando uma experiência intergeracional, cuja marca no processo de ensino se

pauta por elementos descritos pelos entrevistados, como sendo uma profissão que foi

desempenhada por seus pais, avós e outros ancestrais, e que, agora, têm orgulho em

herdá-la.

Das entrevistas, extraímos exemplos sobre a forma como a profissão foi

ensinada pelos tropeiros antigos aos que desempenham essa função atualmente. Nas

palavras do entrevistado José Tolino, tropeiro da região da Serra do Indaiá –

pertencente a Campos Novos de Cunha – “(...) quando não tinha, umas vezes, outro

pra ajudar, aí, sempre eu ia com ele (...). Então você ia vendo como ele trabalhava e

122  

você ia prestando atenção ali.” (TOLINO, José. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital

com transcrição integral consta no Anexo II).

E para descrever a forma como seu pai transmitiu a ele o ofício de tropeiro,

acrescenta; “(...) aí ele pegou e falava, olha, você tem que fazer assim com o burro,

você tem que falar com o burro pra poder, mesmo que é um animal, eles entendem

também. Você vai alcear um cargueiro, você tem que deixar o peso tudo mais ou

menos igual, você tem que deixar o peso um pouquinho pra trás, aí você ajeita a

carga”. (TOLINO, José. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital com transcrição integral

consta no Anexo II).

Outro tropeiro entrevistado, Paulo Fonseca, morador do bairro da Fragária, que

cruza a Serra da Mantiqueira em direção a Visconde de Mauá, afirma que aprendeu a

profissão com seu pai: “Ele já mexia com tropa, eu não lembro quando eu comecei a

mexer com tropa, mas nesse mexer com tropa eu peguei o ritmo dele, que

antigamente tinha a mercadoria pra você levar pra um lado, levar pro outro, aí a gente

ajudava os pais e aprendia”. (FONSECA, Paulo. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital

com transcrição integral consta no Anexo II).

Isso revela, no exercício da profissão de tropeiro, um traço familiar quanto à

sua formação, e remete à história pessoal dos indivíduos, de seus núcleos familiares e

reflete também quão presente está a figura das tropas e do próprio tropeiro na vida

social desses grupos e na cultura das comunidades, em que se percebe, desde a

infância, que a presença das tropas era um fator marcante e, por ser uma das poucas

alternativas de trabalho nessas regiões serranas mais afastadas, tornava-se atrativa

para o futuro dos filhos.

A relação de ensino e aprendizagem dessas técnicas pode ser classificada

como uma experiência de educação não formal no ambiente do campo. Essa

modalidade de ensino prima pela transferência de conhecimentos de maneira não

obrigatória, fora do ambiente escolar, porém bastante assertiva quanto aos resultados

obtidos;

Para a educação não formal a transmissão do conhecimento acontece de maneira não-obrigatória e sem a existência de mecanismos de repreensão em caso de o aprendizado não ocorrer, pois as pessoas estão envolvidas no e pelo processo de ensino/aprendizagem e têm uma relação prazerosa com o aprender.(SIMSON, 2007, p. 22)

Essa pesquisa não pretende abordar de forma detalhada a questão do modelo

de ensino utilizado pelos tropeiros para ensinar seu ofício aos seus filhos, mas

123  

evidenciar que essa transmissão de conhecimentos ocorre a partir do princípio não-

formal, que tem como característica a oralidade, o que é bastante relevante se

consideramos que, na história da humanidade, a transmissão oral de conhecimentos

está presente em quase todas as culturas e que o método biográfico, ou da história

oral, foi o grande recurso metodológico presente nesta pesquisa.

O transporte de mercadorias é outra questão a ser lembrada em ambas as

regiões. Com a ressignificação da atividade tropeira, tanto em relação ao tempo das

jornadas, quanto às distâncias geográficas percorridas, os gêneros levados nas mulas

também se modificaram. Atualmente os tropeiros em atividade na região de Campos

Novos de Cunha trabalham com transporte de milho entre as plantações e o paiol,

transporte de eucalipto entre a mata e os pontos onde os caminhões coletam os

troncos, pequenos frentes de madeira e material de construção, além do transporte de

leite para os laticínios locais. Além desse transporte, as tropas ainda servem como

forma de comunicação nas localidades mais afastadas do distrito, situadas no

perímetro do Parque Nacional da Serra da Bocaina.

Algumas falas de entrevistados ilustram com propriedade essa forma de

transporte na região e sua importância para as comunidades: “Então, eu levo é milho,

às vezes você vai (...) cerca de arame, você precisa levar, você leva nele”. (TOLINO,

José. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo

II). E para descrever as últimas atividades que tem feito com o burro, o mesmo

entrevistado ainda considera: “Eu fiz assim, o rapaz estava com umas madeiras para

fazer cerca, aí ele tava precisando (...) aí eu fui lá e ajudei ele. Peguei o burro, fomos

lá, puxamos, eu ajudei a puxar o milho também”.

Os outros tropeiros da região também atuam com esse transporte específico na

região, pois devido à localização desses bairros, muito próxima à área do Parque

Nacional, não é permitido realizar obras que alterem a paisagem do local, o que passa

pela questão de melhorias quanto à infraestrutura, por isso as tropas são empregadas

no transporte em picadas na mata e trilhas antigas, onde, na maioria das vezes,

veículos automotores não chegam.

A atividade tropeira se transformou, na região em questão. Encontra-se

sobrevivendo em um ambiente restritivo, com pouca disponibilidade de fretes e cargas.

Extraímos da entrevista com o tropeiro Lucimar, do Bairro Bocaininha da Boa

Esperança, uma reflexão que ilustra a mudança sofrida pelo transporte em tropas na

região dos Campos da Bocaina: “Depois que parou, depois que acabou esse trabalho

de ir na cidade, a gente ficou trabalhando só aqui mesmo, pra gente mesmo, eu quase

124  

que não (...) trabalho pros outros se chegar uma pessoa aqui e chamar eu, eu vou

trabalhar pra aquela pessoa, chamar outra pessoa (...) aqui só eu que tenho.” (VAZ,

Lucimar. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no

Anexo II).

Em relação aos tropeiros da Serra da Mantiqueira, observamos uma forma

diversa, visto que, apesar de as tropas terem sofrido um processo de ressignificação,

as condições geográficas desfavoráveis à plena utilização de veículos automotores

forçou a sobrevivência da atividade tropeira de modo análogo à forma como a mesma

era desempenhada por seus ancestrais. Prova disso são as falas dos tropeiros da

região, quando expressam a facilidade ou dificuldade em lidar com tropas de mula nos

dias atuais. Em pelo menos duas entrevistas (realizadas com Gezuel dos Santos e

Paulo Fonseca), a fala “é igual” aparece, o que revela maior correspondência entre o

tropeirismo dito clássico e o que se verifica contemporaneamente nos tropeiros da

Mantiqueira que, inclusive, ainda utilizam a mesma trilha aberta por seus ancestrais, a

qual antigamente fazia a ligação entre a região das Agulhas Negras e o município de

Resende (RJ).

A região de Fragária e Serra Negra, por se localizarem próximas a antigos

caminhos de exploração, sempre conviveram com tropeiros e viajantes. Os tropeiros

que entrevistamos descendem de famílias em que essa profissão os fez ficarem

conhecidos, não apenas nos bairros próximos, como em outras localidades serra

abaixo, também abastecidas por tropas da região. Paulo e Jair são netos de um

tropeiro lendário da região, José Fonseca, conhecido como Zé Fragária; o pai de Jair e

tio de Paulo, Francisco Fonseca, conhecido como Chico Fragária, foi outro grande

tropeiro; juntamente com o pai de Paulo, João Fonseca Sobrinho. O pai de Natal e tio

de Gezuel, conhecido como José Ramos, também foi outro grande tropeiro. Todos

tinham em comum o transporte de queijos, frutas, ovos, mel geleias e doces para

lugares como a Garganta do Registro, Resende (RJ), Itatiaia (RJ), Queluz (SP) e

Itanhandu (MG), além de Visconde de Mauá, que já naquela época era abastecida

pelas tropas, por estar no caminho de Resende.

A partir dessa leitura, é possível compreender por que os tropeiros da Serra da

Mantiqueira consideram que ser tropeiro hoje é, se não igual, ao menos teve pouca

modificação; embora atualmente abasteçam apenas a região de Visconde de Mauá,

as mercadorias transportadas ainda são as mesmas que as trazidas pelos ancestrais,

a trilha também é a mesma por eles utilizada e a quantidade de animais empregada é

similar. Duas falas demonstram bem essa relação de aparente similitude entre a tropa

125  

antiga e a contemporânea: “Ah, não mudou, por que você pega a trilha do mesmo

jeito, não muda não (...) você pega o mesmo problema que tinha antes”. (FONSECA,

Paulo. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo

II). E a outra: “Ah, hoje seria (...) é a mesma coisa. Como se fosse antigamente. (...)

por que é aquela mesma coisa que já tem aquele costume (...) Muito pouca coisa que

mudou, por que daí já diminuiu, abriu estrada. (SANTOS, Gezuel. Entrevista. abr.2014.

O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Ocorre que, embora haja uma percepção quanto à permanência da tropa nos

mesmos moldes ancestrais, vemos que as alterações são percebidas principalmente

na carência de serviços para os tropeiros, ou seja, não se alteraram a forma de

transportar e o conteúdo embarcado, mas sim a quantidade de viagens necessárias

para desempenhar essa função, o tempo de viagem gasto para o percurso e os locais

adequados para servirem como ponto de parada para as tropas (pontos de coleta ou

de comércio).

O tropeiro Natal, do bairro Serra Negra, em sua fala, expõe essa questão: “pra

nóis aqui hoje já tá ficando mais complicado do que era, né (...) Era bom antigamente,

agora você não pode pará (...) antigamente tinha mais serviço, né”. (RAMOS,

Natanael. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no

Anexo II).

Atualmente, como já descrito, os tropeiros realizam uma viagem semanal para

Visconde de Mauá, levando não apenas o que produzem, como os gêneros que

adquirem dos vizinhos. Essa rotina se altera durante os feriados prolongados, em que

alguns chegam a fazer duas viagens, aproveitando o incremento de veranistas e

visitantes na região.

Os quatro tropeiros transportam em comum o queijo parmesão da Mantiqueira,

o queijo minas fresco e geleias. Alguns pertences são trazidos somente por alguns

deles, como é o caso de ovos de galinha caipira - trazidos por Paulo e Jair (Fragária) –

enrolados na palha de milho para evitar os impactos da travessia, doces caseiros de

leite e goiabada – trazidos por Gezuel (Serra Negra) e Paulo (Fragária), mel e trutas –

trazidas por Natal (Serra Negra) – fazendo com que tenham fregueses fixos, entre os

comerciantes locais, moradores e turistas.

Uma dimensão curiosa, que aparece na pesquisa, diz respeito a um traço

cultural do caipira já exposto anteriormente – sobre a ideia de negação do progresso,

ou melhor, da inadaptabilidade voluntária do caipira às novas e mais sofisticadas

126  

formas de produção, neste caso, do transporte. Consideramos com frequência que a

adoção, por parte dos indivíduos, de técnicas mais modernas se dá de maneira fluida;

no entanto, há também aqueles que permanecem com práticas mais rústicas por

preferência, como é o caso do tropeiro Jair, da Fragária, que, em seu depoimento,

quando questionado sobre o seu sentimento em ser tropeiro, aponta por que prefere o

transporte nas tropas: “Ah, até que não é muito ruim não. Serve. É um transporte até

bom, é melhor viajar de burro que de carro (...) por que é mais econômico, né?

(FONSECA, Jair. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral

consta no Anexo II). E ainda acrescenta: “E não precisa de petróleo, somente pasto.

Ferradura em qualquer lugar vai, em qualquer lugar passa”.

Essa questão nos faz refletir sobre o avanço das novas tecnologias no campo e

os impactos produzidos sobre a sociedade rural. Os moradores das áreas rurais são

tragados por essa nova lógica, em que a comunicação e a facilidade das máquinas

substituem o lugar dos trabalhadores, e a negação a essa lógica é vista como sintoma

de “atraso”. As culturas tradicionais vêm perdendo espaço à medida que a tecnologia

ofusca os traços do viver tradicional. Outro exemplo do choque entre a tradição da

região e a modernidade é a preferência dos jovens por motos, em substituição aos

cavalos. Acompanhamos um evento festivo na comunidade da Fragária, onde foi

evidente essa relação, havia centenas de motos e um ou outro animal de sela,

servindo àqueles que foram para a comemoração, vindos de bairros vizinhos.

Essa realidade traz à tona outra discussão, indispensável para este trabalho,

sobre a perspectiva de continuidade da tropa nessas localidades, visto que, além do

avanço da tecnologia, captamos na fala dos entrevistados o sentimento de que,

embora a tropa seja importante para a história das famílias e para o sucesso

econômico dos lugares onde residem, essa prática é vista pelos descendentes de

tropeiros como um trabalho pesado, que exige muito preparo físico e que os pais se

arriscam exercendo essa atividade.

Neste quesito, avaliamos as entrevistas dos próprios tropeiros e de alguns

descendentes e ex-tropeiros, cujas falas sinalizam suas percepções quanto à prática

tropeira e seu desejo de continuidade, além de observarmos nos depoimentos

algumas expressões que evidenciem a forma como valorizam a presença das tropas,

tanto ao nível histórico, quanto nos dias atuais.

As reflexões dos entrevistados variam entre considerar que a tropa é coisa do

passado, algo que não existe mais, e uma prática que ocorre atualmente e a incerteza

quanto ao seu futuro. Essa divergência é fruto, em grande medida, do fato de

127  

considerarem que o ofício de tropeiro, hoje, não poderia ser considerado como tal,

devido à baixa quantidade de animais na tropa e à pouca quantidade de produtos

transportados.

Um esclarecimento pertinente refere-se à diferenciação que antigamente se

fazia entre tropeiros e cargueiros. Pela convenção dessas populações rurais, somente

eram considerados tropeiros aqueles que possuíssem tropas com, ao menos, dez

mulas de carga; aos que tivessem menos do que essa quantidade, atribuía-se o nome

de cargueiro; atualmente a média de animais nas comitivas gira em torno de cinco,

entretanto a atividade segue rigorosamente os mesmos preceitos, a mesma forma de

composição, carregamento e trilha percorrida, variando somente a quantidade de

burros de carga devido à rarefação de serviço. Esse panorama nos permite, sem

prejuízo, inferir que se trata de fato da ocorrência de atividade tropeira, ainda que

ressiginificada, conforme já exposto.

Uma expressão representativa quanto a essa nova lógica na qual a atividade

tropeira contemporânea se encontra inserida partiu do entrevistado Jair de Amorim,

filho de tropeiro da região de Campos Novos de Cunha, ao afirmar: “Tropa era

compromisso (...) mudou tudo porque os esquemas são tudo diferente, mercadoria nos

caminhões, os carros de entrega, se você quer comprar alguma coisa, você vai na

cidade. É uma vida mais agitada, você está agora na agitação e antes era uma vida

mais cômoda. (AMORIM, Jair de. Entrevista. fev.2014. O arquivo digital com

transcrição integral consta no Anexo II).

Essa colocação demonstra com clareza que a lógica de mercado avançou por

sobre as comunidades rurais e alterou significativamente o modo de vida da

população. Antes viviam sob a lógica do bairro rural típico, em que produziam em suas

propriedades muito do que necessitavam e tanto o comércio quanto as idas à sede do

povoado se restringiam a comprar aquilo que não produziam, vender aquilo que

plantavam, a festas religiosas e a compromissos políticos esporádicos, fazendo com

que se dirigissem ao centro apenas umas poucas vezes ao ano. O que se verifica

agora é uma maior atração, por parte da população, aos adensamentos urbanos, pois

a plantação decaiu, hoje são assalariados, fazendo com que tenham que ir à rede de

comércio com maior frequência.

A região de Campos Novos de Cunha sofreu o impacto dessa alteração de

modo mais perceptível do que Fragária e Serra Negra. Embora ambas as regiões

apresentem características similares de geografia, desenvolvimento histórico e

128  

elementos culturais, no primeiro caso, a onda de progresso20 se fez mais sentida

devido à proximidade geográfica com cidades mais desenvolvidas, que ditaram

inclusive o fluxo migratório quando as melhorias de infraestrutura chegaram ao bairro.

O mesmo entrevistado, quando questionado sobre esse assunto, expôs seu

olhar quanto à chegada dessas obras, “A estrada foi o começo do progresso (...) É um

progresso que não trouxe progresso, entende? Carregou o povo do lugar. Aí o povo

largou mão de trabalhar na roça, aí já foi para a cidade”. (AMORIM, Jair de. Entrevista.

fev.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Essa ideia simboliza que, com a abertura da estrada ligando o distrito à sede

municipal e a chegada da eletricidade, que não fora mencionada nesse excerto, mas

aparece nas entrevistas, o êxodo populacional se intensificou e as pessoas foram em

busca de trabalho e melhores condições de vida em polos mais desenvolvidos, neste

caso os destinos mais comuns dos habitantes do distrito foram as cidades de Lorena

(SP), Guaratinguetá (SP) e São José dos Campos (SP).

Isso não significa que o mesmo fenômeno não tenha acontecido em Fragária e

Serra Negra, porém as melhorias que chegaram a Campos Novos de Cunha na

década de 1970 somente se dariam de forma correlata àquela região na década de

1990, e mesmo assim em menor escala, pois benfeitorias como asfaltamento e rede

telefônica são coisas que até os dias atuais ainda não foram implantadas naquela

área.

O êxodo populacional nessa região também aconteceu a partir da década de

1970 e tem casualidade idêntica a Campos Novos quanto à proximidade em relação

aos polos mais desenvolvidos, ressaltando cronologicamente que há concomitância

entre a saída dessas populações das áreas rurais menos desenvolvidas rumo às

cidades maiores devido à ocorrência de forte expansão industrial na região do Vale do

Paraíba, notadamente em localidades às margens da Rodovia Presidente Dutra (BR-

116). As cidades da região que receberam maior contingente populacional oriundo

dessa região são Resende (RJ), Cruzeiro (SP) e Pindamonhangaba (SP). Entretanto,

na parte alta da Serra da Mantiqueira, a cidade de São Lourenço (MG) – que seria o

adensamento mais próximo em situação mais favorável economicamente – também

recebeu moradores desses bairros, ainda que em menor grau em relação à região de

serra abaixo.

                                                            20 Neste caso, a ideia de progresso refere-se à noção de desenvolvimento local.

129  

Na região da Serra da Mantiqueira, as tropas mantêm uma dinâmica mais

próxima ao modelo clássico de atividade tropeira, em parte devido a dificuldades de

acesso nos trechos mais escarpados e à limitada disponibilidade de recursos mais

sofisticados, não apenas de transporte, como de comunicação, sendo que, no último

caso, apenas recentemente um grupo de moradores da Fragária se reuniu e adquiriu

um roteador coletivo, que permite a algumas famílias acesso à Internet, por onde

podem se comunicar com maior facilidade. Contudo, nas demais áreas do mesmo

bairro e da Serra Negra, isso não é possível.

Essa situação produz, como efeito, a manutenção de hábitos e costumes mais

arraigados tradicionalmente, se remete à experiência social desses indivíduos, pois

aquilo que foi transmitido dos mais velhos aos mais jovens, e não apenas a atividade

tropeira, mas também outras influências, como a culinária e a religiosidade,

sobrevivem em um nível mais perceptível do que o observado em Campos Novos de

Cunha que, a partir da melhora de infraestrutura, obteve maior acesso às tendências

externas à comunidade.

Uma questão explorada nas entrevistas, que nos faz refletir sobre a prática

tropeira, diz respeito à opinião dos entrevistados acerca do sentimento que eles

expressam por serem tropeiros. A maioria deles afirma que gosta de ser tropeiro e se

sente feliz com essa profissão, embora eles reflitam que é uma atividade difícil, que

envolve grande esforço físico, que os expõe às intempéries e que há cada vez maior

dificuldade em conseguir produtos para comercializar e fretes para vizinhos.

Algumas falas dos tropeiros em questão destacam suas opiniões a esse

respeito. Selecionamos duas, que julgamos serem mais representativas desse olhar

dos entrevistados quanto ao sentimento que têm por serem tropeiros; “Gosto! Eu sou

feliz. Eu tenho minha tropa, eu tenho meu trabalho, tenho meus amigos, né? E a gente

curte a vida, também”. (FONSECA, Paulo. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com

transcrição integral consta no Anexo II). Outro tropeiro acrescenta; “Ah, eu sinto feliz,

né. Sinto muito feliz (...) porque sempre a gente acostumou e agora tá aquele ritmo,

né. Acostuma todo final de semana... Sempre mexendo com os animal”. (SANTOS,

Gezuel. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no

Anexo II).

O exposto acima ilustra que, apesar dos sacrifícios, a profissão de tropeiro para

eles é motivo de orgulho. Quanto às dificuldades enfrentadas para desempenhar a

atividade tropeira, que atualmente são mais frequentes, outros dois entrevistados

expuseram sua opinião sobre essa situação: “(...) hoje mudou o sistema (...) nós lidava

130  

muito com lavoura, hoje tá lidando pouco... E hoje se ocupa pouco o animal para

carregar as coisas. Então sempre que tem alguma coisa, nós carrega o animal. E

quando é pra sair pra outro lugar agora, alguma coisa que a gente produz aqui na roça

a gente leva no carro”. (FREITAS, Osmar. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital com

transcrição integral consta no Anexo II). O outro acrescenta; “(...) eu até gosto, mas ai

eu falo o seguinte – pra você mexer com tropa, aí é aquela questão de tempo,

também, né? – Por que aí ninguém vai querer falar que tem uma coisa aqui, vai

precisar da tropa pra tirar daqui”. (TOLINO, José. Entrevista. mar.2014. O arquivo

digital com transcrição integral consta no Anexo II)

Cumpre mencionar que a reflexão quanto à maior dificuldade no exercício da

atividade tropeira se faz sentir mais incisiva na região de Campos Novos de Cunha do

que em Fragária e Serra Negra, devido à entrada mais significativa de veículos nessa

região, fazendo com que as tropas tenham seu sentido esvaziado na localidade. Já a

percepção de felicidade com a profissão que exercem é um fenômeno comum a

ambas as regiões, embora os tropeiros da Mantiqueira também apresentem

dificuldades na manutenção da tropa e obtenção de trabalho.

Pautados por essa questão, chegamos a um dos pontos centrais dessa

investigação, referindo-se à importância da existência de tropas de mula para

transporte de mercadorias nas regiões do Vale do Paraíba – aqui representado pela

Serra da Bocaina - e da Mantiqueira, nos dias atuais. Podemos entender, tanto a

sobrevivência da atividade, quanto sua importância contemporaneamente, a partir de

algumas chaves explicativas quanto aos seus motivos e causalidades.

O primeiro deles, já considerado anteriormente, diz respeito às condições

geográficas de ambas as regiões, que dificultam a abertura de estradas, devido ao

relevo bastante escarpado e acidentado presente nas localidades em questão. Esse

fator determinou que a atividade tropeira permanecesse como complementar ao

tráfego de veículos, já que, nos dias atuais, ainda há lugares em que não existe

acesso além da antiga trilha das tropas. Tal questão liga-se diretamente à segunda

causa de permanência dessa atividade, pois trata-se de áreas de abrangência dos

Parques Nacionais do Itatiaia e da Serra da Bocaina, cuja legislação impede a

realização de novas obras de infraestrutura e limita inclusive a manutenção daquela já

existente - o que, conforme os entrevistados, intensificou ainda mais o processo de

esvaziamento populacional nessas localidades.

No caso da região de Campos Novos de Cunha, esse panorama atingiu mais

fortemente os bairros vizinhos à divisa interestadual entre São Paulo e Rio de Janeiro.

131  

Na parte da Serra da Mantiqueira que tratamos, o fenômeno atingiu principalmente o

bairro da Serra Negra, que se encontra com mais da metade de seu território inserido

na área delimitada pelo parque. O entrevistado Natal, em sua fala, explicita a

interferência do parque na vida da comunidade; “você precisa puxar uma lenha, puxar

madeira mas agora está ficando difícil por causa do IBAMA, que não está deixando

mais. O IBAMA está pegando pesado, você praticamente tem que comprá tudo. Você

mora no meio da mata e não pode aproveitar nada”. (RAMOS, Natanael. Entrevista.

abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Essa situação impactou também a economia dessas localidades, pois

atividades agrícolas de outrora, como o cultivo de milho – base alimentar da população

caipira – foram desestimuladas, outras práticas igualmente antigas, como extração de

madeira para comércio ou utilizada na fabricação de carvão foram proibidas, em áreas

próximas ou dentro dos domínios do parque, o que acarretou um forte processo de

migração em busca de melhores oportunidades de trabalho.

Há nos dias atuais uma grande discussão em torno da preservação ambiental,

amparada por legislação especifica sobre os impactos gerados pelo uso

indiscriminado do solo, vegetação, recursos hídricos e mesmo a constituição de

Unidades de Preservação e Parques Nacionais, garantindo que haja, ao menos em

tese, a preservação do meio ambiente. Ocorre que populações tradicionais,

acostumadas com ações que hoje são consideradas prejudiciais ao meio, encontram

dificuldade de aceitação ou mesmo de adaptação às novas regras, como o

depoimento de Natal evidencia, pois práticas outrora corriqueiras nas comunidades,

também herdadas de seus pais, hoje são proibidas, como extração de madeira nativa,

fabricação de carvão e queimadas para renovação do solo.

Nesse caso, vemos também que a existência da tropa contemporânea obedece

a um imperativo econômico, visto que, com a restrição imposta pelos parques

nacionais e o relevo menos favorável ao desenvolvimento econômico regional, que

privilegiou áreas onde haveria maior facilidade de instalação, as famílias que

permaneceram nessas áreas, por não terem recursos materiais para acessar meios

mais sofisticados, permaneceram utilizando tropas para transporte.

Isso não significa que não possuam automóveis ou motocicletas, porém, se

utilizam desses modais, quando necessitam ir à sede municipal para compras maiores

ou deslocamentos de urgência, o fazem em menor quantidade. Em relação à atividade

laboral, os entrevistados, como já mencionado na fala do entrevistado Jair Fonseca,

preferem o uso da tropa, pois “os turistas adoram vê os burros, adoram! Nossa! Tanto

132  

é que a gente melhorou é por causa dos burros (...) se é de carro não querem o

produto não (...) De carro não é curiosidade onde eles moram, eles falam. Gostam de

sair pra ver os burros, pra ver os animais, porque é raro de ver as tropas hoje”.

(FONSECA, Jair. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral

consta no Anexo II).

Essa predileção tem a ver, não apenas com a questão econômica, mas

também enquanto um traço cultural dessas comunidades. Os tropeiros dos dias atuais

refletem sobre os percalços e desafios da atividade tropeira, ex-tropeiros e

descendentes de tropeiros também consideram em suas falas essa dimensão,

entretanto os tropeiros declaram que a tropa faz parte, não apenas de seu meio de

vida, como também de sua formação pessoal, demonstrando que esse apego

impulsiona a continuidade da profissão.

A tropa, hoje, tem um grande valor para as comunidades retratadas; em

Campos Novos de Cunha, esse valor é percebido com maior destaque nas áreas mais

afastadas do distrito e se remete, em grande medida, a experiências passadas. Com o

avanço da modernidade na região, as tropas de mula desempenham serviços em

menor quantidade do que as congêneres da Mantiqueira, porém são o principal meio

de locomoção e transporte em localidades como Capoeirinha e Sertão da Paca e a

região do Castelo – próxima a Bocaininha e a nascente do Rio Paraitinga, lugares

onde as famílias ainda dependem de tropeiros para transportar o que coletam e

produzem, além de materiais de construção.

Em relação a Fragária e Serra Negra, por estarem inseridas em uma dinâmica

mais remediada, os tropeiros têm uma importância para a economia local mais efetiva.

Naquela região ainda conservam, além do formato laboral tradicional, uma

característica herdada dos tropeiros passados, realizando transações comerciais

também como atravessadores. Com esse termo, queremos dizer que os tropeiros

ainda possuem a função de adquirir a produção de vizinhos para somar-se à sua

própria e a levarem para comercializar em Visconde de Mauá (RJ).

Dessa relação, resulta a importância das tropas para a manutenção da

economia local, pois encontram-se em uma zona cujas principais fontes de renda dos

moradores são trabalhos esporádicos no Parque Nacional e a agricultura familiar que,

nesse aspecto, tem na associação de produtores rurais, localizada no bairro vizinho de

Campo Redondo e na figura do tropeiro que cruza a serra as formas mais efetivas de

divulgação e venda dos produtos rurais.

133  

Os tropeiros da Serra da Mantiqueira têm uma diferenciação em relação aos

congêneres valeparaibanos, o turismo, que é uma variável de grande impacto em sua

atividade, enquanto no outro caso este se dá de forma ainda incipiente. Este é um

importante agente na reafirmação da tropa, enquanto atividade agregadora de valor.

A trilha por eles percorrida tem como destino uma localidade turística que

semanalmente atrai grande quantidade de visitantes vindos de grandes cidades

paulistas e fluminenses, aquecendo o comércio local e comprando os produtos

vendidos pelos tropeiros.

Seus principais clientes, entretanto, são os comerciantes locais (proprietários

de restaurantes, pousadas, lojas de artesanato e produtos rurais), sitiantes e turistas

sazonais, que disputam a quantidade de mercadorias trazidas por eles. Os

estabelecimentos, em grande parte, vendem produtos similares aos dos tropeiros,

como é o caso do queijo parmesão da Mantiqueira, porém os turistas preferem

comprar dos tropeiros, como explica o entrevistado Natal; “Esse negócio do queijo

mesmo (...) o pessoal chega pra comprar o queijo parmesão, comprar o queijo da

serra, o queijo da Mantiqueira. As vezes o pessoal aí do bar quer vender, mas eles

quer comprar direto do homem do burrinho, lá fora... eles quer comprar direto com o

tropeiro”.  (RAMOS, Natanael. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição

integral consta no Anexo II).

O elemento da tradição ainda encontra forte apelo na população, os turistas

buscam, ao adquirir os produtos trazidos pelos tropeiros, ainda que numa relação

distante, estabelecer um nexo com a cultura tradicional, que já não é mais presente

nos grandes centros urbanos. Com isso, elimina-se a figura do atravessador, pois os

tropeiros fabricam boa parte daquilo que vendem, só adquirem dos vizinhos aquilo que

não produzem e acessam diretamente o mercado consumidor, na figura dos

comerciantes locais e turistas, valorizando sua própria atividade.

A mídia teve um papel de destaque para a divulgação dos tropeiros da região e

dos produtos transportados. Duas matérias foram realizadas por uma conhecida

emissora de televisão do Rio de Janeiro, retratando o quotidiano desses tropeiros, os

produtos feitos por eles e transportados na tropa, além da forma de comercialização

no destino turístico. A série de reportagens foi batizada como “Os tropeiros do

parmesão”, devido à fabricação dessa especialidade de queijo, em modelo parecido

com o congênere italiano, na região onde estes residem. O clima da serra favorece a

fabricação desse tipo de queijo, que é comercializado juntamente aos outros produtos

trazidos, como ovos, geleias, mel e doces, pelas ruas do distrito turístico.

134  

Antes dessa série de reportagens, os tropeiros afirmam que as vendas

estavam muito fracas e, por vezes, pensavam até em desistir desse ofício. Após a

veiculação na grande mídia da existência desses tropeiros e da qualidade dos

produtos transportados, esse comércio foi fortemente beneficiado, fazendo com que

novamente a atividade tropeira se mostrasse rentável. A percepção dos tropeiros

acerca dessa questão fornece a dimensão do que essa divulgação em cadeia nacional

representou para o sucesso de suas vendas; “Ajudou muito a divulgar a mercadoria

(...) porque o pessoal comprava meio desconfiado e não tinha divulgação normal (...)

Hoje, depois que passou a reportagem na Globo, o pessoal comprou, gostou e fica

famoso no momento. Aí passou e provou, um vai contar pro outro”. (FONSECA, Paulo.

Entrevista. abr. 2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Outra reflexão, do tropeiro Natal, acrescenta: “Foi no Globo Rural, sobre tropeiro do

Parmesão (...) ele teve, lá, uma semana gravando os tropeiros no bairro, nas casas,

no curral (...) Pra nós foi bom. O pessoal comprou por causa disso aí”. (RAMOS,

Natanael. Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no

Anexo II).

Como se percebe, há uma nova tendência no meio rural, cujas atividades

tradicionais sofreram um processo de ressignificação, passando a creditar seu

sucesso ao turismo rural, que tem se mostrado um fator de grande geração de divisas

e propulsor de desenvolvimento local, ainda que em ritmo mais lento se comparado

aos grandes centros urbanos. Após a vinculação da imagem dos tropeiros aos

produtos transportados, as vendas foram aquecidas e a atividade tropeira voltou a ter

papel de destaque na economia local.

Quanto à perspectiva de continuidade da prática tropeira e do futuro das

comunidades onde os tropeiros vivem, essa questão leva em conta que, embora as

práticas e a paisagem sejam parecidas, o contexto regional tem um peso que parece

impor uma diferenciação de destinos entre Campos Novos de Cunha, Fragária e Serra

Negra.

No primeiro caso, a tropa não está associada ao mesmo fator atrativo ao

desenvolvimento, representado pelas divisas geradas com o turismo, contudo, o

distrito possui melhores condições de acesso a partir das cidades maiores, fazendo

com que a perspectiva de continuidade no exercício da atividade tropeira seja

questionada pelos próprios tropeiros entrevistados na região, não sendo uma

unanimidade a crença de que a tropa ainda terá sobrevida posteriormente.

135  

Lucimar Vaz, o único a ainda possuir tropa composta no bairro Bocaininha da

Boa Esperança, considera que a tropa na região vai ficar restrita, mas sobreviverá

apenas porque, em determinadas épocas, com alta pluviosidade, as estradas ficam

intransitáveis e apenas os animais cavalares conseguem trafegar. Embora perceba

que seu filho gosta do trabalho, se interessa, ele ensina ao menino o que sabe, mas

não tem certeza se ele se envolverá com o ofício.

Osmar, tropeiro da região da Serra do Indaiá, considera que tem vocação para

lidar com animais e que, devido a mudanças nos dias atuais, acha que não há mais

necessidade de trabalhar com tropa, mas declara: ”Não está tendo tanta necessidade

de pessoa ter uma tropa montada pra trabalhar. Exceto que na região de roça e

costeira, como nós mora nessa costeira, sempre a pessoa vai ter que ter um animal ou

dois pra serviço dele(...) num lugar como esse aqui retirado assim... Ele vai ter que ter

animal porque vai ter (...) tem caminho que ele vai ter que andar a cavalo porque

também tem o fato de ser reserva florestal, você não pode mexer, não pode fazer uma

estrada, então o cavalo vai andar na trilha sempre”. (FREITAS, Osmar. Entrevista.

mar.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Jurdelino, ex-tropeiro residente na sede do distrito, considera que a tropa hoje

já não é mais necessária: “Ah, hoje eu penso que foi bom naquele tempo, mas hoje

não tem mais jeito de fazer isso, eu falo porque hoje tudo navega no carro”. (AIRES,

Jurdelino. Entrevista. fev.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no

Anexo II).

José Tolino, tropeiro da região da Serra do Indaiá, faz uma relevante

consideração, tendo em vista a precariedade de acessos e recursos nas áreas mais

afastadas do distrito, dentre as quais, a região onde reside: “(...) não tem muito serviço

pra você trabalhar na tropa, mas você não pode desleixar da tropa também de tudo,

porque se você está morando no campo, você tem que ter um animal para o seu

trabalho, mesmo. Mesmo que você não faz muita coisa, mas você precisa dele

também”. (TOLINO, José. Entrevista. mar.2014. O arquivo digital com transcrição

integral consta no Anexo II).

No caso de Fragária e Serra Negra, considerando a ressignificação da tropa

enquanto atrativo turístico, cuja renda dos produtos permite aos tropeiros gozar de

uma situação mais confortável em relação aos congêneres valeparaibanos, há uma

unanimidade na avaliação, por parte dos entrevistados, quanto ao futuro da tropa e da

própria comunidade, em função do turismo. Nas falas dos quatro tropeiros daquela

região, há menção da importância do turismo para a continuidade da tropa. Eles

136  

também consideram a questão da dificuldade de acesso, principalmente em épocas

chuvosas, quando só as mulas conseguem chegar a determinados locais, mas

atribuem ao turismo o maior peso na sobrevivência da tropa.

Natal, apesar de considerar que o futuro da comunidade será pautado pelo

turismo, é o único dos quatro tropeiros ainda em atividade que manifesta preocupação

quanto ao futuro da tropa em si, porque: “(...) o dia que o rapaz veio fazer a

reportagem, mandou chamar os menino pra perguntar, né? Se queria continuar a

profissão de tropeiro, eles falô que não”. (RAMOS, Natanael. Entrevista. abr.2014. O

arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Jair acredita que a tropa continuará, e vê nos filhos do Paulo – que é seu primo

– aptidão para desempenhar esse ofício: “O filho do Paulinho disse que vai, tem

sentindo de ir pra frente (...) Eu acho que ele vai sair de descendência de tropeiros

também, é raça da mãe dele, é raça do pai, do avô, da mãe dele é tudo tropeiro

também. O pai do Paulo também foi, é descendência de tropeiro.” (FONSECA, Jair.

Entrevista. abr.2014. O arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Paulo nos disse que está ensinando os filhos e que os meninos gostam do

trabalho na tropa, que já o estão ajudando com o trabalho doméstico da fazenda,

quando ele sai para Visconde de Mauá ou para o trabalho de vigia no Parque

Nacional. Ele diz que está ensinando os filhos pois: “quem mora na serra, assim... as

pessoas têm que aprender o ritmo”. (FONSECA, Paulo. Entrevista. abr.2014. O

arquivo digital com transcrição integral consta no Anexo II).

Os quatro chamam a atenção para o acelerado processo de venda das terras

próximas às suas propriedades para veranistas, que as adquirem em lotes menores,

para construírem casas de campo. Quanto à continuidade do transporte de

mercadorias, todos creditam esse prosseguimento das tropas ao sucesso da venda de

seus produtos na região de Visconde de Mauá (RJ).

Seus descendentes demonstram pouco interesse em manter a profissão dos

ancestrais. Paulo afirma que seu filho tem atração pela tropa e gosta da ideia, porém,

considera que, hoje, a possibilidade de estudar está mais fácil e se preocupa que seus

filhos se afastem dos estudos, manifestando preferência que eles se formem a

trabalhar com tropas. Natal e Jair têm, cada um, um neto que tem vontade de

aprender, já os ajudam com alguma tarefa doméstica e pretendem ensiná-los

posteriormente, o que indica uma perspectiva, ainda que remota, de continuidade.

137  

A questão do futuro da tropa em relação ao futuro da comunidade apareceu

relacionada nas respostas dos entrevistados de maneira espontânea. Em suas

percepções, uma coisa aparenta estar diretamente vinculada a outra, numa alusão à

presença histórica e também contemporânea das tropas na formação cultural e no

cotidiano dessas localidades.

Pelas falas citadas e analisadas, observamos uma noção de incerteza quanto

ao futuro da prática tropeira nessas comunidades, entretanto, apesar dessa incógnita,

vemos que a situação geográfica e econômica dessas áreas continuará impondo a

existência e utilização das mulas cargueiras, conquanto a modernidade não avança

sobre as terras mais próximas, já protegidas pelos Parques Nacionais do Itatiaia e da

Serra da Bocaina.

A principal questão norteadora deste trabalho está, então, evidenciada. O

sentido contemporâneo da atividade tropeira tem por atribuição aliar o auxílio às

localidades, para que possam romper o isolamento geográfico, ao descompasso em

seu desenvolvimento econômico em relação às cidades mais desenvolvidas, sendo

um elemento gerador de renda para essas comunidades que possuem acesso

reduzido aos modais mais modernos de transporte e a investimentos mais efetivos

para o desenvolvimento local.

O turismo rural pode ser considerado um catalisador desse novo significado,

pois, embora os turistas avancem no processo de aquisição de terras anteriormente

voltadas para a agricultura familiar, são eles os principais consumidores dos gêneros

produzidos na zona rural e transportados na tropa, fazendo com que esse sentido

contemporâneo esteja vinculado também a essa prática.

Seus desdobramentos são incertos, mas depreendemos das entrevistas, dos

dados coletados em atividades de campo, das etnografias e observações realizadas,

bem como da bibliografia articulada para compreensão do tema proposto e análise do

material produzido que, enquanto houver dificuldade de acesso a essas regiões,

precariedade de recursos materiais, restrições à atividade agrícola ou à instalação de

novas alternativas econômicas, a tropa permanecerá com a importante função de

auxiliar na superação dessas adversidades. Não será a única, mas uma das mais

rentáveis e efetivas formas de transporte disponíveis na região do sertão da Serra da

Bocaina e desses bairros afastados da Serra da Mantiqueira.

138  

Paulo (montado) e Jair (a pé) – tropeiros da Fragária, cruzando a Serra da Mantiqueira em mais uma jornada.

139  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O meio rural tem sido, dentro das Humanidades, um campo de investigação

que presta contribuições as mais diversas para o saber científico. Conforme Mendras

(1969), geógrafos avaliam as relações entre os homens e o meio físico em que vivem,

a Economia Rural sofre grande influência da Economia Política, a História Social liga-

se a um passado em que a agricultura ditava a vida dos camponeses, antropólogos

estudam as condições ditas “arcaicas” da vida de populações, sociólogos se debruçam

sobre as relações sociais estabelecidas e pelas dinâmicas sociais produzidas a partir

desse contato, ou seja, o meio rural está fortemente presente nos estudos que

compreendam a história e a estrutura social das populações.

Chegamos ao fim dessa investigação, partindo da consideração acima,

tratando inicialmente do caráter multidisciplinar da pesquisa. Foram articuladas, tanto

para o desenvolvimento do problema de pesquisa apresentado, quanto para a seleção

de metodologia e estratégias empregadas no seu desenvolvimento, seleção de

entrevistados e depoentes, compilação e sistematização dos dados coletados, bem

como produção da análise do material obtido, considerando diuturnamente que não se

trata de uma abordagem apenas sociológica, mas que traz também em seu bojo

elementos geográficos, históricos, econômicos, políticos e antropológicos, caros ao

ambiente físico onde realizamos a pesquisa e às dinâmicas sociais observadas.

A escolha metodológica da história oral revelou-se acertada e inspiradora, à

medida que o relato oral permitiu que os entrevistados expressassem não somente

reflexões sobre a importância das tropas, como mostrassem que suas próprias vidas

revelam fatos curiosos e paradigmáticos para estudos sobre a atividade tropeira,

evidenciados quando relatam a transferência de conhecimentos de pai para filho, ou

mesmo de outro parente, caracterizando uma troca intergeracional, assentada, não

apenas nas relações sociais, como na garantia de que a manutenção da vida nessas

localidades afastadas e escarpadas se mostraria viável, graças ao transporte em

lombo de mula.

A recuperação histórica dos tropeiros a partir de leituras caras à história

econômica do Brasil revelou-se bastante profícua, pois permitiu que pudéssemos

enquadrar a participação do tropeiro, não apenas para consolidação territorial do

Brasil, como também refletir sobre seu papel enquanto agente propulsor de uma rede

viável de comércio entre a costa litorânea e o planalto, tendo como efeito a

manutenção da vida e a transferência de elementos culturais e novas tendências aos

habitantes do vasto interior da colônia e, posteriormente, da nação.

140  

Apoiados nessa recuperação histórica, reflexões abordando a influência

tropeira, especificamente na zona valeparaibana, tornaram-se necessidade premente,

para que se pudesse melhor compreender o estilo da tropa que mais influenciou o

cenário regional, suas contribuições culturais e econômicas, considerando as fases da

região para cujo desenvolvimento a figura do tropeiro se mostrou indispensável.

Falar sobre a questão do bairro rural se fez relevante para situar a articulação

deste com a dinâmica social e o modo de vida influenciado pela existência das tropas,

visto que muitos desses adensamentos populacionais surgiram em meio à

necessidade de abastecimento e manutenção das tropas, sendo os locais onde os

tropeiros se fixavam, ou mantinham suas famílias. Por sua configuração, os próprios

locais escolhidos como casos paradigmáticos para essa pesquisa enquadram-se na

categoria de bairro rural, o que é evidenciado quando falamos sobre os costumes, a

disposição geográfica que convida ao caminho – herança dos núcleos fundados por

bandeirantes – e pelas crenças dos tropeiros, em modo similar ao que se observava

nessas localidades.

Nossas hipóteses de investigação, objeto de análise na ultima parte da

pesquisa, foram sendo descritas conforme a pesquisa avançava, sendo que todas as

questões levantadas no processo investigativo tiveram por finalidade responder à

indagação principal, ou ao menos contribuir analiticamente para a elucidação do

proposto: o sentido contemporâneo da atividade tropeira, quanto às suas razões,

contexto, impacto produzido nas comunidades onde ainda há sua ocorrência e às

perspectivas de continuidade dessa prática.

Retomamos, aqui, uma formulação apresentada neste trabalho, que serviu a

esta pesquisa como uma chave analítica e poderá ter a mesma função em pesquisas

futuras, referindo-se ao que se pode considerar “tropeirismo clássico” e “tropeirismo

residual”. Como já exposto, o tropeirismo dito clássico diz respeito ao movimento

surgido no século XVIII, como única alternativa disponível para o transporte de

mercadorias e informações entre o litoral e o sertão, conquanto não surgissem modais

mais sofisticados, como a ferrovia – a partir da metade do século XIX - e a rodovia – a

partir do século XX.

O tropeirismo residual – aqui mencionado como “atividade tropeira”- sofreu

processos de ressignificações ao longo do tempo, primeiramente com a chegada da

estrada de ferro que, na zona valeparaibana, não penetrou as áreas mais afastadas do

leito do Rio Paraíba do Sul; em segundo momento, novo processo se deu após a

expansão rodoviária, passando as tropas a ficarem restritas às regiões isoladas, não

141  

atendidas nem pelo trem de ferro, nem pelos automotores. Essa é a tropa à qual nos

dedicamos a analisar, neste estudo, a que sobreviveu a esse processo de

modernização e permanece em áreas afastadas, garantindo a viabilidade da vida

nessas localidades.

Quanto à importância da tropa de mulas para essas comunidades atualmente,

podemos concluir que representam uma das poucas alternativas de transporte em

áreas mais afastadas do Vale do Paraíba, como os Campos da Bocaina e, no caso da

Serra da Mantiqueira, acrescenta-se a essa função, o impacto que o turismo possui

em Visconde de Mauá (RJ) – localidade para onde se destina a produção de Fragária

e Serra Negra – fazendo com que tudo aquilo que eles transportam encontre mercado

consumidor, convertendo novamente a atividade tropeira numa prática lucrativa.

Um fator curioso tem a ver com a localização geográfica desses bairros, todos

se encontram em região de divisa interestadual, seja entre São Paulo e Rio de

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais ou Minas Gerais e Rio de Janeiro, região retratada

como a faixa de maior nível de desenvolvimento econômico do país. Vemos que,

embora estejam próximos a essa realidade, ainda há determinadas áreas em que esse

processo não se verifica.

A prática tropeira persiste nessas regiões devido ao isolamento geográfico,

pelo descompasso econômico que dificulta o acesso dessa população aos meios de

transporte mais sofisticados, pela proximidade ou mesmo abrangência territorial dos

parques nacionais, cuja legislação que restringe determinadas alterações no ambiente

e também por uma afinidade cultural com esse ofício, manifesta na presença de uma

gama de hábitos legados pelos tropeiros que seguem cultivados pela população até os

dias atuais.

A questão da continuidade na utilização das tropas para o transporte de

mercadorias se coloca como uma incógnita, pois, embora os tropeiros acreditem na

continuidade desse ofício, devido à série de restrições naturais e ambientais, além do

baixo interesse econômico sobre as regiões, já há uma competição com outros modais

que acessam cada vez mais áreas como essas, caso dos carros e motocicletas.

A tropa permanecerá, principalmente em função da precariedade econômica

que dificulta o acesso de seus praticantes a esses modelos mais sofisticados; da

necessidade do emprego das mulas para percorrer caminhos em áreas como as dos

parques nacionais, onde não se podem abrir novas estradas; de locais que, pela

142  

disposição do relevo, seja inviável o tráfego de veículos; e enquanto o turismo

demandar a comercialização dos gêneros alimentícios transportados pelas tropas.

A atividade tropeira remanescente, além das questões já apresentadas quanto

à dificuldade de transporte e de acesso para chegar a determinadas regiões, também

é exercida como forma de trabalho ainda importante. Essa prática diz respeito ao

modo de vida dessas comunidades e é vista pelos entrevistados, conforme seus

depoimentos, como parte da preservação de sua cultura, herdada de seus ancestrais,

com elementos genuinamente caipiras.

Ressaltamos que o turismo rural na região da Serra da Mantiqueira contribuiu

sobremaneira para a recuperação da imagem dos tropeiros e elevação de sua

importância para a economia regional, o que suscita reflexões sobre a perspectiva de

continuidade dessa atividade, percorrendo a trilha entre a região das Agulhas Negras

– onde se localizam Fragária e Serra Negra – e Visconde de Mauá, em função do

abastecimento de turistas e comerciantes locais.

Há alguns caminhos que, para fins de pesquisas posteriores, poderão servir

como aportes seguros e contribuições necessárias à compreensão da participação do

tropeiro na história, cultura e economia, seja em âmbito local, regional ou mesmo

nacional. Assim, abrem-se novos rumos para pesquisas que, em muito, contribuirão

para o campo das Humanidades, situando a relevância da figura do tropeiro, das

tropas e dos outros ciclos econômicos a eles vinculados para a evolução das relações

sociais no Brasil.

A questão do turismo rural e da atividade tropeira enquanto manifestação de

uma nova forma de ruralidade, estando essa ressignificada quanto à sua função

original, poderá trazer uma discussão enriquecedora sobre as novas vocações e

potencialidades que o meio rural oferece, representando uma forma de dinamização

da economia e uma alternativa de desenvolvimento sustentável.

Consideramos, também, outros recortes passíveis de estudos futuros, como a

questão do papel da mídia na divulgação e impulso para que atividades típicas de

culturas tradicionais, como é o caso da tropa, sejam novamente conhecidas do grande

público e convertidas em atrativo turístico; a presença de mulheres como tocadoras de

burro, participando de jornadas tropeiras, informação que aparece nas entrevistas de

modo esparso, mas que poderia ser aprofundada em debates articulados com estudos

de gênero; estudos de cunho geracional ou educacional, detendo-se especificamente

sobre o processo de transferência de conhecimentos entre os mais velhos e os novos

143  

tropeiros, em referência aos filhos e netos desses homens que manifestam desejo de

prosseguir com a atividade dos pais e avós; a presença de uma cultura tropeira no

imaginário dessas populações, evidenciadas pelos hábitos, valores e crenças

mencionados nas entrevistas e estudos documentais sobre a presença das tropas,

com base em fontes primárias.

Todas as questões mencionadas surgiram durante a execução desta pesquisa,

não foram incorporadas de modo mais minucioso, não por desconhecimento, mas sim

por falta de tempo hábil para que pudéssemos abordá-las satisfatoriamente, ficando

esses estudos para desdobramentos futuros, em investigações posteriores.

Para quem estude os tropeiros, o Vale do Paraíba em São Paulo é região que apresenta interesse especial, por sua proximidade com Minas e Rio de Janeiro. Ainda há pelos montes da Mantiqueira e da Serra do Mar alguma tropa carregada com os gêneros da terra e fazendo suas jornadas de cidade a vila, de povoado a povoado. Acabaram os pousos e sua poesia. Não há mais viagens longas. Os tropeiros abastecem os carros da via férrea e os auto-caminhões. Eles só vivem ainda por que a montanha não se acaba, a montanha é de Deus. (ALMEIDA, op. cit. p. 69)

144  

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148  

ANEXO I – TÓPICOS – GUIA NORTEADORES DAS ENTREVISTAS

Abaixo estão descritos os roteiros de entrevistas utilizados nas atividades de

campo utilizados para coletas de entrevistas e depoimentos com tropeiros ainda em

atividade, pessoas que desempenharam essa função e mudaram posteriormente de

ofício e descendentes desses tropeiros e ex-tropeiros que ainda residem nos bairros

estudados nesta pesquisa.

Ressaltamos que se trata de questões norteadoras, ou seja, nem todas foram

empregadas nas entrevistas, considerando os diferentes contextos dos entrevistados,

mas forneceram subsídios seguros para a elucidação das questões em torno do

sentido contemporâneo da atividade tropeira e sua importância para as comunidades

no cenário atual.

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA OS TROPEIROS

A – Portrait dos Entrevistados

Nome completo; Idade; Data de Nascimento; Local de Nascimento; Grau de Instrução

OBS.: Se o entrevistado não nasceu na cidade, verificar como chegou ao local e há quanto tempo reside na cidade ou no bairro.

Questões

1) O senhor é tropeiro? Há quanto tempo?

2) Quem te ensinou esse ofício? Como foi ensinado (a prática de Tropeiro)

a você?

3) Alguém mais na sua família lida ou já lidou com tropa?

4) Que lembrança você tem da sua infância? Onde morou? Na cidade ou

na roça?

5) O que vocês transportavam na tropa naquela época?

6) E saíam de onde e iam até aonde?

7) Quanto tempo levava a jornada?

8) Quantas pessoas iam na tropa? Quantos burros tinham na tropa?

9) O senhor chegou a parar de lidar com tropa durante esse tempo?

SE SIM, o que passou a fazer? Por que voltou a mexer com tropa?

149  

10) O senhor chegou a se mudar para outra cidade?

SE SIM, para onde mudou? Por que mudou? Quanto tempo ficou por lá?

Quando e por que voltou?

11) Como o senhor foi parar na tropa?

“o que sente por ser tropeiro”

12) O que mudou, da época em que o senhor iniciou a vida na tropa para os

dias atuais?

13) O senhor tem filhos / sobrinhos?

SE SIM, o que eles pensam a respeito da profissão que você exerce?

14) Alguém já te procurou, interessado que o senhor ensinasse a profissão

de tropeiro a ele(a)?

15) Os mais jovens se interessam em aprender este ofício?

SE SIM, como acontece essa conversa (causos, estórias, fatos

relatados)

16) O senhor tem algum tipo de relação com os mais jovens?

(do tipo colheita, fabricação de produtos artesanais, embalagem,

exploração turística ou mesmo participação na tropa?)

17) O senhor acha que a tropa tem uma participação importante na

economia do bairro?

18) Como é a vida na comunidade? Vocês ainda praticam alguma atividade

que vem do tempo das tropas?

19) Acontece na comunidade alguma festa ou tradição como reza, comida

típica, artesanato, que seja herança do tempo das tropas?

20) Havia na cidade ranchos de tropa antigamente?

SE SIM, quantos haviam, sabe explicar ou mostrar o local onde

ficavam?

Sobrou algum rancho antigo ou vestígios dele atualmente?

21) Hoje em dia aonde a tropa se reúne para descanso, para carregar?

22) Os jovens acompanham esse processo?

23) Os jovens se interessam pela tropa?

24) A comunidade é unida em relação a presença de tropeiros?

25) Os moradores se envolvem com essa rotina da tropa?

26) De quem são as mercadorias transportadas na tropa? São apenas suas

ou dos outros moradores também?

150  

27) E como está a situação atual da comunidade em relação ao

Tropeirismo? O tropeiro continua sendo necessário para o transporte?

SE SIM, explorar o por que dessa necessidade

SE NÃO, o que substituiu a tropa e por que? (essa substituição agradou)

28) E os jovens têm permanecido na comunidade?

SE NÃO, por que eles saem? Para onde vão? Costumam voltar?

29) Ser tropeiro, hoje em dia, é mais difícil ou mais fácil? Por que?

30) O que você particularmente pensa de ser tropeiro?

31) E na comunidade? As pessoas gostam da presença da tropa?

32) Qual é o seu sentimento em relação a isso?

33) Você acha que a tropa vai continuar sobrevivendo?

SE SIM, nas mãos de quem?

SE NÃO, por que acha que não sobrevive?

34) Na sua opinião, o senhor acha que os jovens vão continuar participando

desse processo?

35) Como os mais velhos poderiam contribuir para isso?

36) O que o senhor acha que será o futuro dessa comunidade?

37) O senhor pretende parar de lidar com a tropa?

SE SIM, o que gostaria de fazer em substituição?

38) Se pudesse mandar algum recado sobre o que a profissão de tropeiro

significa na sua vida, o que diria?

39) E o que diria sobre isso para os mais jovens?

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA OS EX-TROPEIROS (pessoas que deixaram a atividade e passaram a dedicar-se a outra profissão).

A – Portrait dos Entrevistados

Nome completo; Idade; Data de Nascimento; Local de Nascimento; Grau de Instrução

OBS.: Se o entrevistado não nasceu na cidade, verificar como chegou ao local e há quanto tempo reside na cidade ou no bairro.

 

Questões

151  

1) O Senhor foi tropeiro? Por quanto tempo?

2) Quem te ensinou esse ofício? Como foi ensinado (a prática de Tropeiro)

a você?

3) Alguém mais na sua família lidou com tropa?

4) Que lembrança você tem da sua infância? Onde morou? Na cidade ou

na roça?

5) O que vocês transportavam na tropa naquela época?

6) E saíam de onde e iam até aonde? (Que caminho faziam, por onde

passavam?)

7) Quanto tempo levava a jornada?

8) Quantas pessoas iam na tropa? Quantos burros tinham na tropa?

9) Havia muitas tropas na cidade/bairro?

10) Havia na cidade antigamente ranchos de tropa? Quantos?

11) Sabe dizer em que lugares ficavam os ranchos? Ainda existe algum?

12) A tropa era muito importante para a vida (para a economia) da

comunidade?

13) Quando o senhor deixou de lidar com a tropa?

14) Por que deixou essa atividade? E foi trabalhar com o que depois disso?

15) As pessoas da cidade que trabalhavam com tropa pararam com essa

prática na mesma época? O senhor sabe por que pararam?

16) O senhor chegou a se mudar para outra cidade?

SE SIM, para onde mudou? Por que mudou? Quanto tempo ficou por lá?

Quando e por que voltou?

17) O que o senhor pensa a respeito da profissão de Tropeiro?

18) O que mudou, da época em que o senhor iniciou a vida na tropa, para os

dias atuais?

19) O senhor tem descendentes? (Filhos, netos, bisnetos...)?

SE SIM, o que eles pensam a respeito da profissão que o senhor

exerceu?

20) Algum dos seus descendentes (algum neto) se interessou em aprender

esse ofício? O senhor sabe por que?

21) Como é a vida na comunidade hoje? Vocês percebem nos costumes de

vocês alguma semelhança com o tempo das tropas?

22) Muita gente na comunidade é descendente de Tropeiro?

152  

23) Esse é um assunto frequente nas conversas na comunidade? (Vocês

conversam sobre esse assunto)

SE SIM, a respeito do que na tropa? (de que aspecto da tropa)

24) Acontece na comunidade alguma festa, comida típica ou reza,

artesanato, cantigas, enfim alguma manifestação que seja herança do

tempo das tropas?

25) Havia na cidade ranchos de tropa?

SE SIM, quantos haviam? Sabe explicar ou mostrar onde ficavam?

Sobrou algum rancho antigo de pé?

26) Há na comunidade alguma relação entre vocês e os mais jovens? Vocês

se dão bem?

(Do tipo da colheita de frutas, da fabricação de produtos artesanais, da

embalagem, na exploração turística)

27) Vocês conversam com os mais jovens sobre a lida de Tropeiro?

SE SIM, o que eles pensam a respeito?

28) As pessoas da comunidade tem uma boa lembrança da tropa?

SE SIM, como você vÊ a figura do tropeiro? (sua importância)

29) Vocês guardam “causos” do tempo das tropas? Tem alguma história

para contar?

30) E os jovens tem permanecido na comunidade?

SE NÃO, por que eles saem? Para onde vão? Costumam voltar?

31) O que o senhor pensa particularmente da profissão de Tropeiro?

32) O senhor acha que as pessoas ainda se lembram muito, do tempo da

tropa?

33) O que o senhor acha disso?

34) Que palavra o senhor tem para os mais jovens sobre o tempo da tropa?

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA OS JOVENS

A – Portrait dos Entrevistados

Nome completo; Idade; Data de Nascimento; Local de Nascimento; Grau de Instrução

OBS. 1: Se o entrevistado não nasceu na cidade, verificar como chegou ao local e há quanto tempo reside na cidade ou no bairro.

153  

OBS. 2: Essa pesquisa deve ser aplicada com jovens que possuem alguma ligação com a tropa.

Questões

1) Quem na sua família foi ou é tropeiro?

SE A RESPOSTA FOR NEGATIVA, perguntar se ele ainda tem alguma

ligação com alguém que tenha sido ou ainda seja tropeiro.

2) Vocês possuem uma ligação forte?

3) O que você pensa sobre a profissão de tropeiro?

4) O que você acha do seu parente/amigo exercer essa profissão?

5) Você já pensou em ser tropeiro também?

SE NÃO, o que você pensou ou pensa em ser, profissionalmente?

6) O que você faz atualmente (trabalha, estuda)?

SE TRABALHA, seu trabalho tem alguma coisa a ver com a tropa?

7) Você já quis aprender, alguma vez, o ofício de tropeiro?

SE SIM, alguém se dispôs a te ensinar? Como a pessoa te ensinou? –

“estimular a descrição”

SE NÃO, alguém já tentou te ensinar? Por que você não quis?

8) Você já participou de alguma jornada na tropa ou já teve alguma

experiência com a tropa?

SE SIM, conte como foi (de onde a onde, quanto tempo levaram, o que

levaram, há quanto tempo foi isso) – “estimular a descrição, extrair as

impressões pessoais”.

9) Você tem ligação (proximidade) com os mais velhos da sua família ou da

sua comunidade?

10) Você e os mais velhos conversam sobre esse assunto (vida de

tropeiro)?

SE SIM, como acontece essa conversa? (causos, estórias, fatos)

11) Você e os mais velhos tem alguma relação?

(do tipo colheita, fabricação de produtos artesanais, embalagem,

exploração turística ou mesmo participação na tropa?)

154  

12) Você enxerga na comunidade algum hábito ou costume antigo que

possa ter semelhança com o que você crê que seja costume dos

tropeiros?

13) Acontece na comunidade alguma festa ou tradição como reza, comida

típica ou outra manifestação que seja herança do tempo das tropas?

14) Você ainda vê a presença de tropas na cidade hoje em dia?

SE SIM, aonde eles se reúnem?

15) Você vê as tropas carregando ou descansando? (tipo nos ranchos de

tropa)

16) Você conversa com as pessoas da sua idade sobre a presença das

tropas, e a atividade do tropeiro?

17) As pessoas da comunidade se envolvem com a atividade dos tropeiros

de alguma forma? (Precisam dos serviços da tropa)?

18) Qual é a importância da tropa na economia local?

19) Como está a situação atual da comunidade em relação ao tropeirismo?

O tropeiro continua sendo necessário para o transporte de mercadorias?

SE SIM, explorar o por que dessa necessidade

SE NÃO, o que substituiu a tropa e por que? (Essa substituição

agradou?)

20) Você tem desejo de sair da comunidade e se mudar de cidade?

SE SIM, Por que? Quer ir para onde? Pretende voltar depois?

21) O que você particularmente pensa sobre a atividade de tropeiro?

22) E na comunidade as pessoas gostam da presença da tropa?

23) Qual é o seu sentimento em relação a isso?

24) Você acha que a tropa vai continuar sobrevivendo?

SE SIM, nas mãos de quem?

SE NÃO, por que acha que não sobrevive?

25) O que você acha que será o futuro dessa comunidade?

26) A tropa representa alguma coisa na sua vida?

SE SIM, o que representa e por que?

PARTE II – apenas para quem responder que tem ligação forte com a

tropa, que tem vontade de ser tropeiro e/ou aprender o ofício.

155  

- Explorar quando o jovem começou a manifestar essa vontade, se

manifestou.

- Se alguém se dispôs a ensiná-lo, quem é essa pessoa e por que quis

ensinar.

- Como se deu essa relação ensino/aprendizagem, onde as “aulas”

aconteciam, como foi ensinado, quais as impressões do entrevistados

sobre essa relação.

156  

ANEXO II – ARQUIVO EM MÍDIA DIGITAL CONTENDO O ÁUDIO DE TODAS AS

ENTREVISTAS E A TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA DE ALGUMAS ENTREVISTAS

UTILIZADAS NA PESQUISA

Neste anexo, constam, inseridas em mídia digital, o áudio de todas as

entrevistas realizadas em campo, de acordo com o indicado no portrait dos

entrevistados, constante do item 1.4 deste volume.

Quanto à transcrição das entrevistas, estão igualmente presentes na mídia

abaixo seus textos integrais, no entanto, foram transcritas neste formato somente as

entrevistas nominalmente citadas na pesquisa ou aquelas utilizadas como referência

para construção do argumento desta investigação.