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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Joselene Gomes de Souza A REINVENÇÃO DA EXISTÊNCIA: HISTÓRIAS DE VIDAS E O CONFRONTO DA PROTEÇÃO E DESPROTEÇÃO SOCIAL NA REALIDADE DE MANAUS/AM MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Joselene Gomes de Souza

A REINVENÇÃO DA EXISTÊNCIA: HISTÓRIAS DE VIDAS E O

CONFRONTO DA PROTEÇÃO E DESPROTEÇÃO SOCIAL NA

REALIDADE DE MANAUS/AM

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

São Paulo

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Joselene Gomes de Souza

A REINVENÇÃO DA EXISTÊNCIA: HISTÓRIAS DE VIDAS E O

CONFRONTO DA PROTEÇÃO E DESPROTEÇÃO SOCIAL NA

REALIDADE DE MANAUS/AM

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Serviço Social sob a orientação da professora doutora Maria Carmelita Yazbek.

São Paulo

2012

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

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DEDICATÓRIA

À jovem que tive a honra de conhecer em 2010 quando fui sua professora.

Não tinha noção da sua história de vida, mas logo percebi o seu potencial. A vida

sempre colocou no meu caminho pessoas maravilhosas, como você. Temos tantas

coisas em comum, e muitos desafios a superar. Como mulheres cidadãs do

Amazonas, temos o compromisso de lutar para a efetivação dos direitos.

A você, minha linda guerreira Apurinã.

Semente do Amanhã

Ontem um menino que brincava me falou

que hoje é semente do amanhã...

Para não ter medo, que este tempo vai passar...

Não se desespere não, nem pare de sonhar

Nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs...

Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar!

Fé na vida, fé no homem, fé no que virá!

Nós podemos tudo,

Nós podemos mais

Vamos lá fazer o que será.

(Música de Gonzaguinha)

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AGRADECIMENTOS

À vida, que nunca permitiu que eu me acomodasse diante das situações

que, a meu ver, eram imutáveis.

À Fundação Ford e toda a equipe da Fundação Carlos Chagas. Vocês me

mostraram que, mesmo diante de uma realidade de exclusão, ainda era possível.

Quero que saibam que serão sempre muito importantes em minha vida. Tenho

orgulho de ser bolsista e da convivência de aprendizados que sempre me

proporcionaram.

À minha querida professora e orientadora, doutora Maria Carmelita Yazbek,

que, além do aprendizado transmitido, me presenteou com sua simplicidade digna

dos sábios. Obrigada pela paciência, incentivo e por fazer parte para sempre da

minha vida. E principalmente por ter me proporcionado conviver com tanta

dedicação.

À doutora Aldaíza Sposati. Antes de conhecê-la pessoalmente, a admirava

pelos livros, como escritora e colega de profissão. Durante o mestrado, tive a honra

de conviver com você durante as aulas e posso dizer: sempre será um exemplo a

ser seguido, não apenas como profissional, mas principalmente como pessoa.

À doutora Maria Lucia Martinelli. Eu a vi pela primeira vez no dia da minha

entrevista no programa, quando chegou cumprimentando a todos que ali estavam, e

eu pensei: Não pode ser a Martinelli do livro, ela não seria tão simples assim. E,

para minha felicidade, era você, linda e simples, exemplo que deve ser seguindo por

muitos profissionais da nossa área.

À doutora Marta Campos. Nunca vou esquecer a força e os ensinamentos

transmitidos.

Ao doutor Ademir Alves da Silva, pelo aprendizado.

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A toda a equipe do programa de pós-graduação da PUC-SP e,

especialmente, a Vânia. Realmente, vocês fazem a diferença.

À minha querida família do coração. Vocês sabem a importância de cada um

em minha vida.

À minha querida amiga, Janaína Pires Barbosa, que no momento em que

todas resolveram pensar individualmente, você pensou coletivamente. A vida sem

você, em São Paulo, não seria tão agradável.

Aos meus amigos, Alba dos Andrades e Emanuel Silva, que contribuíram

para a concretização deste trabalho.

Aos meus filhos, Thaynah, Thayanne e Lucas. Vocês são minha força,

minha alegria, e meu presente divino.

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SOUZA, Joselene Gomes de. A reinvenção da existência: histórias de vidas e o confronto da proteção e desproteção social na realidade de Manaus/AM. 2012. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

RESUMO

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa qualitativa, que se apoia na história oral e na compreensão do contexto sócio-histórico brasileiro, suas complexidades e contrastes nas relações sociais observadas nas práticas cotidianas de resistência a dominação. Objetivou-se conhecer a versão dos sujeitos sobre períodos e fatos, que estão relacionados com a Proteção Social brasileira, durante o século XX, especialmente a partir da década de 1970. Buscou-se construir uma trajetória a partir da história oral, com narrativa de vida, mediada pela memória e pela subjetividade, tendo como base a realidade vivenciada por duas mulheres nascidas, em décadas diferentes, na cidade de Manaus. Apresentou-se um estudo desvinculado do discurso institucional, ao mesmo tempo em que foram valorizadas a memória, a fala, a individualidade e as subjetividades de sujeitos reais e suas formas de resistência cotidiana, com vistas à contribuição para o entendimento da condição da criança e do adolescente no Brasil e da importância da proteção social, especialmente em Manaus/AM, que caracteristicamente vivencia um processo de jogo político, assim como para importante reflexão sobre o sistema de proteção social brasileiro. Haja vista que se apresentou um cenário permeado de injustiças sociais, que constrói a história de milhares de pessoas, que lutam para validar o acesso à proteção social, com equidade. Revelou-se a inoperância do Estado e a segmentação imposta pela sociedade capitalista, mediante a exclusão do acesso a bens e serviços, constituindo-se como desafios para a efetivação do sistema de proteção social brasileiro frente aos seus recentes avanços.

Palavras-chave: História; Proteção Social; Pobreza.

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SOUZA, Joselene Gomes de. The reinvention of existence: life stories and the confrontation between social protection and helplessness in the reality of Manaus, AM. 2012. Dissertation (Master’s degree in Social Service) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

ABSTRACT

This work is the result of qualitative research, based in oral histories and the understanding of the Brazilian social-historical context, its complexities and contrasts in the social relationships observed in daily practices of resistance to domination. The research aims at coming to an understanding of the subjects’ versions of the time periods and facts related to the Brazilian social protections during the 20th century, especially since the 1970’s. The work seeks to construct a trajectory starting with oral histories, with life narratives, mediated by memory and subjectivity, based on the life experiences of two women born in the city of Manaus in different decades. It presents a study that is detached from institutional discourse while at the same time values the memory, speech, individuality and subjectivity of real subjects and their forms of daily resistance, with the intention of contributing to the comprehension of the daily lives of children and adolescents in Brazil and the importance of social protections, particularly in Manaus, AM, which by nature finds itself mired in a political game, as well as reflecting on the Brazilian social protection system. It can be seen that a scenario permeated by social injustices which have constructed the history of thousands of people who struggle to validate equitable access to social protections. The study reveals the inefficiency of the State and the segmentation imposed by a capitalist society, mediated by the exclusion of access to goods and services, which constitute the challenges to making the Brazilian system of social protection, even when faced with recent advances.

Key words: History, Social Protections, Poverty

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BPC - Benefício de Prestação Continuada

CF - Constituição Federal

CLT - Consolidação das Leis do Trabalho

CMM - Casa Mamãe Margarida

CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social

CNCC - Comissão Nacional Criança e Constituinte

CT - Conselho Tutelar

CUNL - Centro Universitário Nilton Lins

ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente

Enem - Exame Nacional do Ensino Médio

FCP - Fundação Casa Popular

FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

Fies - Fundo de Financiamento Estudantil

Fuam - Fundação Alfredo da Matta

Funabem - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor

Funabem - Fundação Nacional do Bem-Estar Social

Funrural - Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural

Iapas - Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social

IAPB - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários

IAPC - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários

Iape - Instituto de Aposentadoria e Pensão da Estiva

Iapetec - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em

Transporte e Cargas

Iapi - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários

IAPM - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos

IBGE - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Inamps - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

INPS - Instituto Nacional de Previdência Social

INSS - Instituto Nacional do Seguro Social

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Ipase - Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores do

Estado

LBA - Legião Brasileira de Assistência

LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Lops - Lei Orgânica da Previdência Social

OIT - Organização Internacional do Trabalho

PBF - Programa Bolsa-Família

PDT - Partido Democrático Trabalhista

PIB - Produto Interno Bruto

PIM - Polo Industrial de Manaus

PJ - Pastoral da Juventude

Pnabem - Política Nacional do Bem-Estar do Menor

Prouni - Programa Universidade para Todos

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

PSE - Proteção Social Especial

PUC-RIO - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

PUC-RS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SAM - Serviço de Assistência ao Menor

Sares - Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social

senac - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

Senai - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SUS - Sistema Único de Saúde

UEA - Universidade Estadual do Amazonas

Ufam - Universidade Federal do Amazonas

UNB - Universidade de Brasília

Uninorte - Centro Universitário do Norte

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Cidade flutuante que existiu em Manaus na década de 1960.............

Figura 2: Embarcação regional conhecida como recreio ou barco dos

regatões. Transporta pessoas e mercadorias pelos rios do Amazonas..............

Figura 3: Criança cuidadora................................................................................

Figura 4: Histórico escolar do ensino fundamental.............................................

Figura 5: Escada de acesso à parada de ônibus do Parque Florestal................

Figura 6: Margem do Rio Madeira, em Porto Velho............................................

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Leis previdenciárias, trabalhistas e sociais de 1923 a 1993..............

Quadro 2: Governadores do Amazonas e prefeitos de Manaus.........................

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Resumo do plano de governo do Presidente José Saney................... 81

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................

1 A PROTEÇÃO SOCIAL E OS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL..................

2 MEMÓRIA, AUSÊNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO DA VIDA: O INÍCIO DA

MINHA HISTÓRIA...............................................................................................

2.1 Nascimento: Herança, Identidade e Continuidade?...................................

2.1.1 Mergulhando na minha história de vida...............................................

2.1.2 A “infância” e o lugar estabelecido ......................................................

2.2 De Casa em Casa......................................................................................

2.3 Adolescência/ Juventude...........................................................................

2.4 O Casamento.............................................................................................

2.5 A Universidade...........................................................................................

2.6 A Assistente Social....................................................................................

2.7 O Emprego.................................................................................................

2.8 O Mestrado................................................................................................

3 ESTADO DE DIREITOS: PERSONAGENS DIFERENTES E UMA

HISTÓRIA SEMELHANTE, 15 ANOS DEPOIS..................................................

3.1 A Origem: O Nascimento de uma Guerreira..............................................

3.2 A Infância em Porto Velho.........................................................................

3.3 O Retorno a Manaus..................................................................................

3.4 A Luz que Faltava......................................................................................

3.5 Direitos Protegidos e a Vida de Abrigada..................................................

3.6 A Universitária e a Vida Fora da Casa Mamãe Margarida.........................

3.7 A Vida Depois da Graduação.....................................................................

4 CONSIDERAÇOES FINAIS: O ENTRECRUZAR DAS HISTÓRIAS...............

REFERÊNCIAS....................................................................................................

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa qualitativa, que se apoia

na história oral. Segundo Lang (2000, p. 123), essa construção metodológica

permite conhecer as realidades passada e presente, pela experiência e voz

daqueles que a viveram.

Conforme Martinelli (1999, p. 24-25), importantes pressupostos

fundamentam o uso das metodologias qualitativas. Contidos no uso da história oral,

o primeiro refere-se ao reconhecimento da singularidade dos sujeitos; o segundo,

traz que essas pesquisas partem do reconhecimento da importância de conhecer a

experiência social dos sujeitos; e o último implica reconhecer que o modo de vida do

sujeito pressupõe saber como ele elabora sua experiência social cotidiana.

Desse modo, a história oral permite conhecer a realidade de sujeitos a partir

dos significados que lhes são atribuídos. (MARTINELLI,1999, p. 23). O relato oral e

a técnica de história de vida permite trazer fatos, sentimentos, registro de lembrança

pessoal privada, silenciosa, para converter-se em experiência social, quando sobre

eles se reflete politicamente. (ROJAS, 1999, p. 88).

Para tanto, faz-se necessário entender o contexto histórico brasileiro,

realidade esta repleta de incertezas, complexidades e contrastes, que dificultam a

compreensão das relações sociais contraditórias, observada nas práticas cotidianas

de resistência à dominação. A contribuição da história de vida, por esse motivo,

proporciona o conhecimento da vida social.

São realidades anônimas, repletas de experiências diversas, vivenciadas em

situações semelhantes, que podem identificar o pertencimento do sujeito, suas

representações, e os fatos, ricos de significados. Permitem compreender o

comportamento dos indivíduos em suas relações sociais, expressando o movimento

individual/coletivo (YAZBEK, 2007, p. 25).

Este trabalho foi elaborado no intuito de conhecer a versão dos sujeitos

sobre períodos e fatos relacionados com a Proteção Social brasileira, durante o

século XX, especialmente a partir da década de 1970. Buscou-se construir uma

trajetória a partir da história oral, com narrativa de vida, mediada pela memória e

pela subjetividade, tendo como base a realidade vivenciada por duas mulheres

nascidas em décadas diferentes, na cidade de Manaus/AM.

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Nesse sentido:

A história que se constrói no chão social é tão rica de meandros e significados que precisamos compreender um número cada vez maior de fatos para explicar em profundidade processos que envolvem subjetividades em confronto dentro do movimento geral da História. (WHITAKER, 2000, p.147).

Como locus deste estudo, foi escolhida a cidade de Manaus/AM, pois foi

nesse território que as histórias das personagens que dão voz a este trabalho se

entrecruzaram e apresentaram suas distintas relações com a proteção social.

Buscou-se apresentar um estudo desvinculado de um olhar pautado no discurso

institucional, ao mesmo tempo em que valoriza a memória, a fala, a individualidade e

as subjetividades de sujeitos reais e suas formas de resistência cotidiana.

A cidade de Manaus, de acordo com o Censo de 2010 (IBGE, 2010), possui

atualmente 1.802.014 habitantes. É sede do Distrito Industrial, que possui indústrias

modernas, com tecnologia de ponta, e a coloca no ranking das seis cidades

brasileiras com maior Produto Interno Bruto (PIB), e em primeiro lugar1 na Região

Norte (IBGE, 2008).

O município está classificado na 864a posição, entre todos os municípios

brasileiros, no que se refere à renda familiar per capita. A distribuição de renda em

Manaus expressa as contradições historicamente cristalizadas, variando de acordo

com as unidades espaciais locais. Desta forma, os 20% mais pobres ficam com

1,6% da renda produzida e os 20% mais ricos ficam com 68%. É importante

destacar que os 10% mais ricos são donos de 52% da renda, ou seja, mais da

metade de riqueza produzida (SCHERER, 2009, p.141).

O estudo foi realizado por meio da recuperação da memória expressada em

narrativa, pelo primeiro sujeito, e do relato oral, de outro sujeito, que foi denominado

aqui de Apurinã2 e é o personagem dessa história. O interesse pela temática surgiu

a partir da história de vida da autora, que, durante seu desenvolvimento, presenciou

diversas formas de aviltamento dos direitos da criança e do adolescente pobre na

cidade de Manaus, assumindo, desde os seis anos de idade, as responsabilidades

por seu próprio destino, suas formas de sobrevivência e resistência.

1Disponível em: <http://acritica.uol.com.br/manaus/PIB>. Acesso em: 27 ago. 2012

2 Apurinã significa “aquele que corre”.

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A opção pela história oral tem como perspectiva dar voz aos personagens,

deixar que os acontecimentos sejam contados por eles, mostrar suas memórias e a

forma de encarar uma realidade que os exclui. Assim como as formas de

desproteção da família, que, historicamente, vem sendo alvo do descaso e da

exploração, pois seus membros são individualmente obrigados a arquitetar diversas

formas de sobrevivência e resistência em um ambiente insalubre marcado pela

desigualdade e desproteção social.

Nesse sentido, Silva (2004, p. 44, apud Azevedo e Guerra) explica:

Refere-se às consequências da desigualdade social e da pobreza que teriam como resultado a “produção social de crianças vitimadas pela fome, por ausência de abrigo ou por morar em habitações precárias, por falta de escolas, por doenças contagiosas, por inexistência de saneamento básico”. Essa situação de vulnerabilidade é denominada vitimação de crianças, sendo que “a questão principal que consolida o argumento da vitimação é seu caráter desencadeador da agressão física ou sexual contra crianças, tendo em conta que a cronificação da pobreza da família contribui para a precarização e deterioração de suas relações afetivas e parentais. Nesse sentido, pequenos espaços, pouca ou nenhuma privacidade, falta de alimentos e problemas econômicos acabam gerando situações estressantes que, direta ou indiretamente, acarretam danos ao desenvolvimento infantil.

A realidade de pobreza material não explica com profundidade o fenômeno

da violação dos direitos da criança e do adolescente, pois nem todas as famílias

pobres vivenciam situações de violação dos direitos de seus membros, assim como

nem todas as famílias das classes detentoras de mais poder aquisitivo estão isentas

de maus-tratos e violação de direitos cometidos por seus familiares (SILVA, 2004, p.

44).

Não é intenção afirmar que a pobreza não tenha qualquer relação com a

violação dos direitos, mas é necessário destacar que existem inúmeros fatores de

risco que podem contribuir ou determinar situações de violação dos direitos da

criança e do adolescente e da família como um todo.

A pobreza é insuficiente para explicar todas as formas de manifestação da violência no âmbito da família. A relação entre pobreza e vitimação de crianças e adolescentes por parte de seus responsáveis não é direta, pois existem outras mediações que refutam o caráter natural e fatalista com frequência atribuído a essa associação. Entretanto, como bem observa Faleiros, não é possível

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dissociar o padrão de convivência familiar das questões mais amplas de frustração, humilhação, redução dos direitos sociais e privação causadas pelo desemprego e pela diminuição do papel do Estado na garantia da sobrevivência das famílias por meio da provisão de políticas sociais. A tese aqui defendida, portanto, é de que a pobreza, ao aumentar a vulnerabilidade social das famílias, pode potencializar outros fatores de risco, contribuindo para que crianças e adolescentes mais pobres tenham mais chances de ver incluídos na sua trajetória de vida episódios de abandono, violência e negligência. A condição socioeconômica precária das famílias, ao impor maiores dificuldades para a sobrevivência digna do grupo familiar, funcionaria como um elemento agravante e desencadeador de outros fatores de risco preexistentes. (SILVA, 2004, p. 45).

Mesmo que grande parte de crianças e adolescentes abrigadas seja oriunda

de famílias pobres, pois a pobreza também é falta de oportunidade, de sobrevivência

digna; é desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano, ou seja, de qualidade

de acesso a bens e serviços garantidos constitucionalmente (SILVA, 2004, p. 58).

A falta é que vai determinar o lugar dos sujeitos na sociedade. Viver sem o

básico necessário é remar contra a maré, pois sobreviver dignamente requer

garantias de acesso. É romper com a herança colonial e a escravidão prolongada,

que colocaram para os trabalhadores a responsabilidade por sua própria

sobrevivência. (YAZBEK, 2012, p. 08).

Diante do exposto, este trabalho objetivou realizar, pela mediação da análise

das histórias de vida de duas mulheres, uma reflexão sobre o sistema de proteção

social brasileiro, destacando os avanços constitucionais e retrocessos que

historicamente são evidenciados no Brasil. Mesmo diante de um cenário de

desmontes dos direitos sociais, é possível afirmar que a proteção social vem

ganhando espaços e concretizando os direitos sociais no Brasil.

Assim, foi escolhida, como categoria central norteadora deste estudo, a

noção de proteção social, que, segundo Sposati (2009, p. 21),

Supõe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruição, sua alteração. A ideia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida –, supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista é que exige tanto a noção de segurança social como a de direitos sociais. (SPOSATI, 2009, p.21).

Contém, ainda, um caráter de justiça, na perspectiva do enfrentamento das

desigualdades sociais. A proteção social é, inegavelmente, um fator de justiça social

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e, nesse sentido, também um fator de paz, conforme coloca o preâmbulo da

Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT). (EUZÉBY, 2004,

p.11).

A pobreza, outra categoria que se destaca, é abordada, nesta dissertação,

em uma perspectiva multidimensional. Conforme Yazbek (2012, p. 289):

A pobreza como uma das manifestações da questão social3, e dessa forma como expressão direta das relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito de relações constitutivas de um padrão de desenvolvimento capitalista, extremamente desigual, em que convivem acumulação e miséria. Os “pobres” são produtos dessas relações, que produzem e reproduzem a desigualdade no plano social, político, econômico e cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. Um lugar onde são desqualificados por suas crenças, seu modo de expressar-se e seu comportamento social, sinais de "qualidades negativas" e indesejáveis que lhes são conferidas por sua procedência de classe, por sua condição social. Este lugar tem contornos ligados à própria trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos valores culturais das classes subalternas e de seus interlocutores na vida social. Assim sendo, a pobreza, expressão direta das relações sociais, ‘certamente não se reduz às privações materiais’. É uma categoria multi-imensional, e, portanto, não se caracteriza apenas pelo não acesso a bens, mas é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de informações, de possibilidades e de esperanças. (MARTINS, 199, p.15).

Nessas configurações, este trabalho está dividido em três capítulos. O

primeiro capítulo traz o resgate histórico da constituição do sistema de proteção

social brasileiro, seus avanços e retrocessos.

O segundo capítulo trata da história de vida da primeira mulher, nascida em

1974, na cidade de Manaus/AM, filha de regatões. A princípio, perde o contato com

o pai e, a partir dos seis anos de idade, é deixada pela mãe, passa toda infância e

adolescência trabalhando como doméstica. Aos 16 anos de idade, consegue

matricular-se em uma escola pública para cursar Educação Integrada, e sua vida é

marcada pelo trabalho e a vontade de chegar a uma universidade.

3A questão social resulta da divisão da sociedade em classes e da disputa pela riqueza socialmente

gerada, cuja apropriação é extremamente desigual no capitalismo. Supõe, desse modo, a consciência da desigualdade e a resistência à opressão por parte dos que vivem de seu trabalho. Nos anos recentes, a questão social assume novas configurações e expressões e “as necessidades sociais das maiorias, as lutas dos trabalhadores organizados pelo reconhecimento de seus direitos e suas refrações nas políticas públicas, arenas privilegiadas do exercício da profissão sofrem a influência do neoliberalismo, em favor da economia política do capital”. (IAMAMOTO, 2007, p.107).

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Contudo, a necessidade de sobrevivência adiava a todo o momento o sonho

de estudar. Aos 20 anos de idade, casou-se e desistiu novamente da escola, para

cuidar dos filhos que chegavam. Aos 28 anos, terminou o ensino fundamental; um

ano depois, o ensino médio, na modalidade acelerado e, aos 30 anos de idade, com

três filhos pequenos ela, finalmente, vê seu sonho se tornar realidade, quando inicia

o curso de Serviço Social, em uma universidade privada, na cidade de Manaus.

Logo depois, finaliza um curso de especialização e ingressa, como docente

do curso de Serviço Social, no Centro Universitário do Norte. Diante das exigências

da profissão, o mestrado vai se tornando uma nova necessidade. E, no primeiro

semestre de 2011, inicia o mestrado em Serviço Social na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo.

O terceiro capítulo apresenta a história de vida da segunda mulher, Apurinã,

nascida em 1989, em Manaus/AM, filha de uma prostituta de 15 anos de idade, que

aos 16 anos vai morar em Porto Velho/RO para trabalhar no Garimpo de

Ariquenes/RO. Apurinã, mesmo nascida em uma década de conquistas e efetivação

dos direitos sociais, teve sua infância marcada por todas as formas de agressão e

desrespeito ao direito da criança e do adolescente.

Cedo, é obrigada a lutar pela sobrevivência e, como a maioria das crianças

pobres deste País, busca formas para se desenvolver e estudar, direitos esses

garantidos pela Constituição Federal de 1988. E diante de uma realidade

infelizmente ainda comum para grande parcela das crianças pobres do Brasil e

especialmente da cidade de Manaus, Apurinã, mesmo vivenciando situações de

violência, consegue a inclusão escolar logo em seus primeiros anos de vida, pois

tem acesso à escola infantil, depois ao ensino fundamental, sonhando, a cada dia,

chegar a uma universidade. E é na escola que conhece o Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA) e, assim, percebe a situação de violação dos direitos da criança

e do adolescente que vivenciava.

Aos 10 anos, Apurinã resolve voltar para Manaus e inicia nova fase de

violação de seus direitos. Mas é o conhecimento dos mecanismos legais de

proteção à criança e ao adolescente que transforma a vida daquela pequena menina

desamparada.

Dessa forma, o trabalho será desenvolvido a partir da história real dessas

mulheres e as reinvenções das suas experiências cotidianas. Memórias contribuirão

para o entendimento da condição da criança e do adolescente no Brasil e da

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importância da proteção social, especialmente em Manaus, que caracteristicamente

vivencia um processo de jogo político, assim como para importante reflexão sobre o

sistema de proteção social brasileiro.

Entende-se que a relevância social deste estudo consiste na contribuição

para a discussão a respeito do sistema de proteção social brasileiro, ampliando o

debate e o conhecimento sobre as formas de enfrentamento da pobreza material,

diante das estratégias arquitetadas pelos sujeitos, na ausência do Estado.

A cientificidade deste estudo consiste na ampliação do conhecimento na

área do Serviço Social, possibilitando, dessa forma, o debate sobre a construção do

sistema de proteção social. Busca-se subsidiar novos conhecimentos basilares na

construção de propostas que atentem para as arestas contidas no processo histórico

de formulação da proteção social brasileira, a partir de vivências dos sujeitos, com

uma abordagem singular e ascendência ao genérico.

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1 PROTEÇAO SOCIAL E OS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL

Em todas as sociedades humanas foram desenvolvidas formas de proteção

aos seus membros mais vulneráveis, todas variáveis no tempo e no espaço.

(YAZBEK, 2009, p.2, apud GIOVANE, 1998, p. 9). O sistema de proteção social

brasileiro vem historicamente ganhando espaço, a partir da emergência dos

processos de industrialização e das lutas dos trabalhadores por melhores condições

de vida, de reprodução social, e econômica.

Esse processo vai culminar com a expansão da cidadania, requerendo

dessa forma uma abrangência maior, no que diz respeito aos direitos conquistados,

direitos estes que passam de civis e políticos, apenas, e adquirem abrangência no

âmbito da Proteção Social.

Acerca da emergência do sistema de proteção social no País, Yazbek (2009,

p. 3) destaca:

As desigualdades sociais não apenas são reconhecidas, como reclamam a intervenção dos poderes políticos na regulação pública das condições de vida e trabalho desses trabalhadores. Nesse contexto, e com o desenvolvimento da industrialização e urbanização são institucionalizados no âmbito do Estado mecanismos complementares ao aparato familiar, religioso e comunitário de proteção social, até então vigente, configurando a emergência da Política Social nas sociedades industrializadas.

Somente após a crise de 1929 é que, em meio às transformações de ordens

política, econômica e social, e de mudanças do modelo de produção, que o Estado

amplia seu grau de autonomia na tomada das decisões, passando a intervir mais

fortemente na economia. (SARTORI, 2012, p. 24). Nesse sentido, esta autora

destaca os anos de 1930, 1964, 1985 e 1994 como marcos relevante para as

transformações sociais ocorridas no País.

Ainda para Sartori (2012), depois da revolução de 1930, em meio às

transformações da economia agrária para urbano-industrial, o Estado passa a

participar da acumulação e centralização para resolver a independência dos Estados

da Federação.

A partir dessa década é que tem início, no Brasil, a construção da proteção

social, seguindo o modelo previdenciário, pois a questão social ganha visibilidade e

21

estatuto político. Estando, os trabalhadores formais, cada dia mais organizados para

lutar por seus direitos, aos pobres sem trabalho formal, segundo Sartori (2012, p. 26,

apud POCHMANN, 2004, p. 69-70), restava:

Aos despossuídos do regime do assalariamento formal foi disponibilizado o assistencialismo circunstancial e imediatista, que produziu a desigualdade e a tutela por meio da regulação de favores e da relação politico-eleitoral de tratar os excluídos como massa de manobra. O principio da subsidiariedade que se construiu entre o estatal e o privado possibilitou ao Estado repassar à rede de filantropia e benemerência a responsabilidade pela execução das ações emergenciais do assistencialismo regulado.

Conforme Silva (2008, p. 40), o sistema de proteção social no Brasil remonta

aos anos de 1930 e 1943, período de grande transformação socioeconômica,

mudança no modelo de produção e reordenamento nas funções do Estado. Este,

por sua vez, passa a gerir e prover diretamente a assistência. Porém, a base para a

proteção social e cidadania era marcada pelo trabalho e os trabalhadores deveriam

estar devidamente enquadrados no mercado formal.

Ser cidadão significava ter carteira assinada e pertencer a um sindicato, ou seja, forjou-se uma cidadania regulada, restrita ao meio urbano, numa sociedade marcada pela fragilidade de disputa entre interesses competitivos. (SANTOS, 1987, apud SILVA, 2008, p. 26).

Nessa mesma direção, Telles (2006, p. 89) afirma que foi a partir da década

de 1930 que se criou, no Brasil, o sistema de proteção social que retirou os

trabalhadores do arbítrio do patrão para o poder do Estado. Porém, a herança do

atraso social e do conservadorismo é característica marcante da formação do

mercado de trabalho brasileiro. Diante da abundância de mão de obra, em

competição, os salários desvalorizavam e contribuíam para a concentração de

renda.

Contudo, Yazbek (2012, p. 09) afirma que já é possível observar iniciativas

de proteção social no Brasil, em 1923, com a Lei Eloy Chaves, uma legislação

precursora de sistema protetivo, na esfera pública, com as Caixas de

Aposentadorias e Pensões (CAPs).

Em 1923, inspirado por indústrias com as quais mantinha contatos estreitos, segundo pertence à historia, o deputado paulista Eloy

22

Chaves apresenta projeto logo transformado, em 24 de janeiro, no Decreto-Lei n. 4.682, criando a Caixa de Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários. Tipicamente, ela se destinava à criação de um fundo, mediante a contribuição dos empregadores, dos empregados e do Estado (este através de recursos extraídos do público), com o objetivo de garantir parte do fluxo da renda normalmente auferida pelo empregado, no momento em que ele se desligasse da produção – por velhice, invalidez ou por tempo de serviço – ou a seus dependentes, em caso de morte, além da assistência médica. (SANTOS, 1998, p.78).

Porém, a Lei Eloy Chaves era um acordo realizado entre patrões e

empregados, em que estes poupavam, para reaver no futuro diante de uma

fragilidade; não se tratava de um direito de cidadania, inerente a todos os membros

da comunidade (SANTOS, 1998).

Sposati (1991, p. 15) acrescenta que:

É o contrato de trabalho que define, imediatamente, as condições de reprodução do trabalhador no mundo da previdência ou no da assistência, cabendo à última “como mecanismo econômico e político, cuidar daqueles que aparentemente ‘não existem para o capital’”.

Yazbek (2012) elenca que, somente na década de 1930, a questão social

ganha legitimidade, trazendo ao cenário político a classe trabalhadora e seu

reconhecimento enquanto tal, num contexto de industrialização e emergência de

problemas urbanos.

Nesse sentido, a autora destaca também que o sistema de proteção social

no Brasil desenvolve-se de forma diferente do europeu, haja vista as

particularidades da formação e a história da sociedade brasileira, que demonstra o

mix de elementos determinantes combinados com a repressão e a benemerência.

Sobre essa questão, Pereira (2008, p. 125) destaca:

Diferente, pois, das políticas sociais dos países capitalistas avançados, que nasceram livres da dependência econômica e do domínio colonialista, o sistema de bem-estar brasileiro sempre expressou as limitações decorrentes dessas injunções. (PEREIRA 2008, p.125).

Assim, a organização dos trabalhadores e a iminência da “desordem” da

sociedade salarial, no que diz respeito à luta pelos bens socialmente produzidos,

23

obriga ao reconhecimento da questão social e ao desenvolvimento de mecanismos

de amparo e proteção social para responder às demandas urbanas. Porém, esses

são fragmentados e desiguais, e objetivam estabelecer o controle do Estado e

defender a lucratividade do capital. De acordo com Yazbek (2012, p.10).

O Estado brasileiro desenvolvendo acordos de interesse do capital e

dos trabalhadores nos mais diversos setores da vida nacional, opta,

pela via do Seguro Social. O sistema de proteção nesse período é

seletivo e distante de um padrão universalista.

E, a partir do Estado Novo (Getúlio Vargas – 1937-1945), as políticas sociais

se desenvolvem, de forma crescente, como resposta às necessidades do processo

de industrialização e às pressões sociais.

Mas o Estado Protetivo expande-se a partir da contribuição dos

trabalhadores do mercado formal, restando aos informais, e aos pobres de modo

geral, a filantropia, a benemerência. Portanto, o que se observa é que,

historicamente, a Proteção Social no País vai se estruturando acoplada ao conjunto

de iniciativas benemerentes e filantrópicas da sociedade civil.

Cria-se, desse modo, uma dualidade entre os trabalhadores reconhecidos e

os desajustados na sociedade.

A inserção seletiva no sistema protetivo, segundo critério de mérito vai basear-se numa lógica de benemerência, dependente e caracterizada pela insuficiência e precariedade, moldando a cultura de que para pobre qualquer coisa basta. (YAZBEK, 2012, p.11).

Assim, é diante de um contexto de grandes transformações econômicas que as

pressões dos trabalhadores brasileiros são legitimadas pelo Estado brasileiro, originando as

políticas de proteção social, direcionadas ao trabalhador formal, pois, para o trabalhador

pobre, sem carteira assinada, ou desempregado, restou a benemerência e a filantropia.

(YAZBEK, 2012, p. 297).

Dessa forma, no Brasil, a partir da década de 1930, segundo Sartori, (2012, p. 27),

o sistema protetivo brasileiro inicia seu desenvolvimento com a “criação de vários órgãos,

como, por exemplo, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Departamento

Nacional do Trabalho”.

Jaccoud (2009, p. 58) acrescenta que:

24

A ideia da instituição de um sistema de proteção social público nasceu no século XIX com a industrialização e a constatação de que a vulnerabilidade e a insegurança social vinham se ampliando à medida que se expandiam as relações de trabalho assalariadas. Até então, as sociedades vinham garantindo a proteção social de seus membros por meio de solidariedades tradicionais de base familiar ou comunitária. Com a industrialização e a urbanização das sociedades modernas, ampliou-se o risco de as famílias de trabalhadores caírem na miséria em decorrência da impossibilidade de obter um salário no mercado de trabalho. As causas poderiam ser múltiplas − doença, velhice, desemprego, morte – e passaram a ser chamadas de “risco social”.

Contudo, a autora lembra, ainda, que a criação do Ministério do Trabalho

possibilitou também claro controle e repressão da classe trabalhadora e a busca do

atendimento das necessidades mais amplas da industrialização, que, diante das

transformações imediatas, outras regulamentações foram necessárias: do trabalho

feminino, dos menores na indústria, fixação da jornada de trabalho de oito horas

para o comerciário e industriário, criação das convenções coletivas, das férias, as

normas reguladoras dos acidentes de trabalho, além da instituição da carteira

profissional de uso obrigatório (Quadro 1).

Quadro 1: Legislações previdenciários, trabalhistas e sociais de 1923 a 1993

Legislações e programas previdenciários, trabalhistas e sociais de 1923 a 1993

1923 Caixas de Aposentadoria e Pensão. Lei Eloy Chaves. Conselho Nacional do Trabalho; Decreto 16.027.

1926 Estendeu-se o regime da Lei Eloy Chaves aos portuários e marítimos.

1927 Instituto de Previdência para os funcionários da União. Decreto legislativo 5.128.

1928 Código de Menores. Estendeu-se o regime da lei Eloy Chaves aos trabalhadores dos serviços de telégrafos e radiotelégrafos.

1930 Criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Início da discussão centralizada no Movimento Escola Nova.

1931 Criação do Departamento Nacional do Trabalho. Primeiro decreto sobre sindicalização.

1932

Decretada jornada de trabalho de 8 horas no comércio e na indústria. Regulamentação do trabalho feminino, proibição do trabalho noturno e estabelecimento de salário igual para homens e mulheres. Regulamentação do trabalho de menores. Criação da carteira de trabalho.

1933-1934 Regulamentado o direito a férias para comerciários e industriários. Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPM).

1934

Decreto que estabelece a autonomia dos sindicatos. Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC). Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários (IAPB). Constituição Federal de 1934 consagra o direito à previdência.

1936 Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (Iapi),

25

Lei 367, de 31/12/1936, em execução em janeiro de 1938.

1937-1945 Estado Novo, Getúlio Vargas.

1938

Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em Transportes e Cargas (Iapetec). Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão da Estiva (Iape). Criação do Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores do Estado (Ipase). Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS).

1940 1o de maio – Lei fixa o salário-mínimo para todo o País.

1941 Criação da Justiça do Trabalho.

1942 Criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).

1943 Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

1946

Constituição Federal manteve as conquistas sociais do período anterior e garantiu os tradicionais direitos civis e políticos. Criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac); Fundação Casa Popular (FCP).

1951-1954 Segundo mandato de Getúlio Vargas. Alteração da denominação do Ministério da Educação e Saúde Pública para Ministério de Educação e Cultura. Ministério da Saúde.

1955 Criação do Serviço Social Rural.

1956-1960

Governo de Juscelino Kubitscheck; Jânio Quadros e João Goulart – Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (Transporte, Energia, Comunicação, Petróleo, Saúde e Educação). Único setor abordado foi a educação. Crise Financeira. Promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social (Lops).

1961 Aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social (Lops). Ampliação da cobertura previdenciária dos profissionais liberais. Aprovação da Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB).

1963 Promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. Inclusão do trabalhador rural que não contribui diretamente para a Previdência Social – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural).

1964 Fundação Nacional do Bem-Estar Social (Funabem).

1966 Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Lops é transformada em Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

1968-1973 Milagre econômico. Governos de Costa e Silva e Médici.

1974 Criação do Ministério de Previdência e Assistência Social.

1977 O INPS é desmembrado em três órgãos: Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), Iapas e o Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (Inamps).

1988 Constituição Federal – Constituição Cidadã: Seguridade Social: Assistência Social, Previdência Social e Saúde.

1989 Criação do Ministério de Bem-Estar Social.

1990

O INPS foi refundido com o Iapas, passando a se chamar INSS e, no mesmo ano, o Inamps foi absorvido pelo Ministério da Saúde. A proteção social estendeu-se aos trabalhadores que não contribuíram diretamente com a Previdência Social. Institui-se o Beneficio de Prestação Continuada (BPC). Crise e reforma da Previdência Social. Primeira redação da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), vedada pelo Congresso Nacional. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

1993 Aprovação da Loas; Criação do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e extinção do CNSS.

Fonte: Esquematização nossa (2012), com base em levantamento bibliográfico.

26

Sartori (2012, p.27) afirma que, durante 34 anos (1930-1964), a base da

política social brasileira não sofreu grandes modificações, mesmo considerando o

contexto de luta social e da mudança de autoritarismo (1937-1945), para a chamada

democracia (1945-1964), caracterizando, assim, o período popular.

As modificações institucionais levadas a efeito pelo Estado a partir de 1930 estabeleceram fundamentalmente dois caminhos para conduzir o processo que havia sido deflagrado. De um lado, apresentam-se as medidas de centralização que – através da superação das taxas que incidiam sobre comercio inter-regional, do controle politico das unidades regionais e da criação de órgão que iriam traçar diretrizes centrais para as questões relativas á economia nacional – tiveram como objetivo a construção de um “espaço econômico integrado”. De outro lado, foi implementada uma politica de regulamentação dos fatores de produção: os institutos econômicos já mencionados atuaram no sentido de buscar uma maior racionalidade do fator capital; e a legislação trabalhista teve por objetivo disciplinar o fator trabalho. (SARTORI, 2012, apud BARCELLOS, 1983, p.85).

Até a década de 1970, prevaleceu o sistema de previdência social, em que

apenas os trabalhadores formais podiam contar com certa proteção do Estado. Mas

as lutas sociais vão impulsionar avanços democráticos progressivos.

Contudo, essa proteção não ocorreu de forma linear e desinteressada, pois

representava vários interesses, disputas e unificações conflituosas. Enfatizava,

dessa forma, as estratégias de atendimento e aplicação dos recursos em setores

específicos da produção, que liga o sistema previdenciário com a economia.

Restava aos trabalhadores não formais, desempregados e ao trabalhador rural a

benemerência e exclusão da proteção social.

Segundo Jaccoud (2009, p. 58):

A proteção social pode ser definida como um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e benefícios sociais visando enfrentar situações de risco social ou privações sociais. [...] Seus objetivos são amplos e complexos, podendo organizar-se não apenas para a cobertura de riscos sociais, mas também para a equalização de oportunidades, o enfrentamento das situações de destituição e pobreza, o combate às desigualdades sociais e a melhoria das condições sociais da população.

O que se percebe é que o Estado brasileiro esteve sempre preocupado com

a questão econômica e com o lucro, a qualquer preço, enquanto que o trabalhador,

mesmo resistindo, é visto apenas como mão de obra barata, força de trabalho que

27

se vende por qualquer bagatela, e ainda deve ser agradecido por ter essa força para

trabalhar, visto que a maioria não consegue essa forma de inclusão.

E é por causa de um Estado repressor, centralizador e populista, que os

trabalhadores são expulsos de suas terras e obrigados a superlotar os grandes

centros urbanos, habitar os mais insalubres lugares, em busca de melhores

condições de vida e de trabalho, sedentos por seus direitos que, historicamente, são

desrespeitados e/ou simplesmente ignorados, em nome do chamado

desenvolvimento.

No entanto, Pereira (2008, p. 144) mostra o movimento nacional da

sociedade organizada em torno dos pleitos por democracia, obrigando o governo a

reorganizar-se estrategicamente, fazendo da política social uma via de aproximação

entre Estado e Sociedade. Porém, a autora lembra que essa aproximação não era

coerente com as necessidades sociais, tornando a pobreza alvo prioritário, pois não

era mais possível negá-la.

Diante das questões apresentadas, é possível entender que a proteção

social brasileira resulta do movimento histórico da luta dos sujeitos sociais para

inclusão de suas demandas na agenda pública. Mas, como afirma Sposati (2007, p.

443), no Brasil, desde a década de 1930, o acesso do cidadão foi subordinado à

inclusão formal na legislação social do trabalho e não à condição genérica de ser

brasileiro.

Tornando visível a predominância do aspecto econômico sobre a condição

de cidadania, mostra o retardo no reconhecimento dos direitos e explicita que a

pobreza resulta de estruturação da emergente sociedade capitalista (YAZBEK, 2009,

p. 3). E para quem não consegue inserir-se no mercado formal de trabalho, resta

esperar as formas estigmatizantes e assistencialistas e de caridade da classe

detentora de poder aquisitivo.

Diante do exposto, destacam-se a complexidade e as incertezas que

envolvem a construção histórica do sistema de proteção social brasileiro,

configurando fortes características conservadoras e excludentes. Todavia, para

melhor exemplificar essa construção, no capítulo que segue, a história será contada

pelo colonizado, ou seja, este terá uma abordagem factual da realidade singular com

ascendência ao genérico.

28

2 MEMÓRIA, AUSÊNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO DA VIDA: O INÍCIO DA

MINHA HISTÓRIA

2.1 Nascimento: Herança, Identidade e Continuidade?

Nasci no dia 20, uma terça-feira qualquer do mês de agosto. O ano era

1974, em plena ditadura militar, momento de muita repressão e com todas as formas

de aviltamento dos direitos humanos, sociais, políticos e econômicos, no Brasil.

Sou natural do Estado do Amazonas4, fruto dos rios e da floresta

amazônicos, região que se encontrava em plena expansão migratória e integração

econômica, expressas nos grandes projetos historicamente trazidos para a região.

O Estado do Amazonas possui, atualmente, 62 municípios, totalizando uma

área de 25.335 quilômetros quadrados. Segundo a Fundação Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE, 2012), na década de 1970, o Estado do Amazonas

era o segundo mais rico da Região Norte, com 314.197 habitantes. A capital,

Manaus, nessa década já abrigava o Distrito Industrial, segundo ciclo de

desenvolvimento e expansão implementado na região.

Contudo, a capital havia passado por outro período de grande

desenvolvimento econômico, a partir do comércio internacional, e do ciclo da

borracha (primeiro ciclo de desenvolvimento), no início do século XX. Momento de

grande êxodo rural, oriundo das transformações econômicas e da integração da

região.

A Região Amazônica registra dois importantes momentos econômico e social: o primeiro entre a última década do século XIX e a primeira do século XX e durante a 1ª Guerra Mundial, quando a borracha natural, principal produto da pauta de exportação do Estado do Amazonas, alcançou elevada cotação no mercado internacional; e o segundo, a partir de 1964, com a implementação da Zona Franca de Manaus. A riqueza gerada pela economia monoextrativista da borracha natural, fez de Manaus uma cidade cosmopolita, um grande centro de comércio internacional. Manaus foi a primeira cidade

4 O nome Amazonas foi originalmente dado ao rio, que banha o Estado, pelo capitão espanhol

Francisco de Orellana, quando o desceu em todo o seu comprimento, em 1541. Afirmando ter encontrado uma tribo de índias guerreiras, com a qual teria lutado, e associando-as às Amazonas da mitologia grega, deu-lhes o mesmo nome. Segundo etimologia alternativa defendida pelo historiador Karl Lokotsch, o nome Amazonas é de origem indígena, da palavra amassunu, que quer dizer "ruído de águas, água que retumba”.

29

brasileira a instalar um serviço de bondes elétricos e em 1896 inaugurou um teatro que surpreendeu o mundo com seu luxo, requinte e beleza. Em 1909, criou a primeira universidade brasileira – a Universidade Livre de Manaós. (BARBOSA, 2007, p. 54).

A partir de 1910, a borracha tem sua semente pirateada, iniciando, segundo

Barbosa (2007), um período de decadência na região, pois, com a economia em

declínio, como consequência, a cidade promissora torna-se uma cidade sem

horizontes. Com o início da Zona Franca de Manaus, em 1967, a capital do

Amazonas rompe com 50 anos de estagnação econômica.

A Zona Franca de Manaus é criada pelo Decreto-Lei 288, de 28/2/1964, e,

segundo Barbosa (2007, p. 55) objetivava formar uma zona de livre comércio de

importação e exportação e de incentivos fiscais que atraíram para a cidade mais de

300 empresas multinacionais e nacionais, atrás de mão de obra e que foram

responsáveis também pelo êxodo rural de toda a Região Amazônica. Nas décadas

de 1970 e 80, chegam a somar quase 90 mil trabalhadores.

A modernização capitalista chega, portanto, ao espaço regional afetando todas as esferas da vida social amazonense. Manaus deixou para trás a cidade porto de lenha e seu velho passado extrativista. Modificaram-se as relações de produção e as forças produtivas se desenvolvem. Formam e redefinem-se novas classes sociais e novas formas de sociabilidade configuram-se na nova dinâmica do capital na região. (SCHERER, 2004, p.129).

Essa Zona Franca, articulada à economia internacional, contribui para mais

um ciclo de mudanças significativas, crescimento tecnológico e populacional. Esse

processo teve grande contribuição da mídia, que difundia as possíveis facilidades de

uma nova vida a partir de um modelo de desenvolvimento promissor, ou seja, a

panaceia da pobreza, estratégias para atrair mão de obra barata e cativa.

A cidade de Manaus registrava momentos de pleno crescimento econômico,

com os produtos produzidos pela Zona Franca de Manaus divulgados em todo o

país, no intuito de atrair mais venda e investimentos, somados ao crescimento

populacional e à urbanização acelerada. Contudo, Scherer (2004, p. 127) destaca

que:

Nos anos dourados da Zona Franca de Manaus (1970-1980), ela absorveu um número expressivo de trabalhadores em seu parque industrial, mas deixou de fora outros tantos, que foram obrigados a

30

inserir-se no trabalho informal. Isso significa dizer que o desemprego e o trabalho precário não se constituem numa novidade histórica assim como sua interface com a exclusão.

Desse modo, em meio às transformações nacionais e às estratégias

políticas de dominação, que compreendem as práticas de mando historicamente

desenvolvidas na Região Amazônica, a cidade de Manaus, em curto espaço de

tempo, apresenta altos índices de crescimento desordenado.

E a pobreza material da maioria fica cada dia mais difícil de ser escondida

ou ignorada, pois a cidade de Manaus é originada do processo de ocupação

irregular ao qual estavam sujeitas as famílias de trabalhadores, pois necessitavam

estar nas proximidades do local de trabalho, como descrito abaixo.

A urbanização da cidade de Manaus, nos anos 60, o grande êxodo rural impulsionou a ocupação desordenada. Na expectativa do anunciado milagre econômico e sem casa, muitas famílias se fixaram na orla do Rio Negro, formando a Cidade Flutuante. Essas famílias foram retiradas da área a partir de 1964, pelo governador Arthur Cezar Ferreira Reis, O governo também entregou algumas casas, porém não abraçava nem 1/3 das pessoas. Elas então se dirigiram para as localidades mais próximas à orla do rio, como os bairros de Educandos, São Raimundo, Raiz, Petrópolis, mas principalmente para o terreno pertencente à família Borel. O bairro foi batizado primeiro como Vila de Sapé, porque as casinhas eram cobertas de palhas, depois passou a ser chamado de Cidade das Palhas, porque a ocupação já havia crescido bastante, e por último o atual nome de Compensa, referência a uma antiga serraria que produzia lâminas de compensado5.

5 Disponível em: <http://jmartinsrocha.blogspot.com.br/2008/09/bairro-da-compensa.html>. Acesso

em: 25 jul. 2012.

31

Figura 1: Cidade flutuante que existiu em Manaus na década de 1960

FONTE: <http://www.google.com.br/flutuante+manaus>.

Diante da realidade de urbanização acelerada, a cidade de Manaus e o

estado do Amazonas, de modo geral, apresentam particularidade histórica na

situação política e legitimidade do poder público, constituído a partir de arranjos

políticos e forças dominantes, caracterizadas pelo discurso populista, práticas

paternalistas e clientelistas com as classes subalternas. (PEREIRA, 2004, p.97).

Emerson (apud Scherer, 1989, p. 218) elenca que:

Particularmente no Amazonas, a dominação politica sobressai-se enquanto mecanismo utilitário da manutenção das elites no poder. Os governantes locais instituem relações de mando e buscam sua legitimidade junto as massas populares, sobretudo com a pratica do clientelismo tutelar. Essa forma de tratamento vulnera as classes dominadas e personifica as relações de poder, dificultando sua capacidade de organização politica, induzindo-as a se contentar com a ilusão do falso paternalismo. (PEREIRA, 2004 apud SCHERER, 1989, p. 218).

32

Manaus, na década de 1989, tinha, segundo a Fundação IBGE (2012)6 uma

população de 642.492 habitantes, era governada por Amazonino Mendes do Partido

Democrático Trabalhista (PDT) e o prefeito era Arthur Virgílio Neto do Partido da

Social Democracia Brasileira (PSDB) e, na época, José Sarney assume a

Presidência da República, sob o slogan: “Tudo pelo Social”. Para melhor

compreensão desse processo histórico da composição política do Estado do

Amazonas, ver Quadro 2.

Quadro 2: Governadores do Amazonas e prefeitos de Manaus

Governadores do Amazonas

Gilberto Mestrinho (PMDB) Vice: Manuel Ribeiro

1983 1987

Amazonino Mendes (PDT) Vice: Omar Aziz

1987 1990

Gilberto Mestrinho Vice: José Melo

1991 1995

Amazonino Mendes Vice: Alfredo Nascimento

1995 1999

Amazonino Mendes Vice: Eduardo Braga

1999 2003

Eduardo Braga (PMDB) Vice: Alfredo Nascimento

2003 2007

Eduardo Braga Vice: Omar Aziz

2007 2010

Omar Aziz (PSD) 2010 2011

Omar Aziz Vice: José Melo

2011 Atualidade

Prefeitos de Manaus

Amazonino Mendes (PDT) 1983 1986

Manuel Ribeiro (afastado) (PTB)

1986 1988

Alfredo Nascimento (interventor) (PR)

1988 1988

Manuel Ribeiro 1988 1989

Arthur Virgílio neto (PSDB) 1989 1993

Amazonino Mendes Vice: Eduardo Braga

1993 1994

Eduardo Braga Vice: Omar Aziz

1994 1997

Alfredo Nascimento (renunciou)

1997 2004

Luís Alberto Carijó (PFL) 2004 2005

6 Disponível em: <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=CD79>. Acesso em: 5 jun.

2012.

33

presidente da Câmara Municipal

Serafim Correa (PSB) 2005 2009

Amazonino Mendes (PDT) Vice: Carlos Souza

2009 Atualidade

Fonte: Organizado de acordo com referência bibliográfica pesquisada.

2.1.1 Mergulhando na minha história de vida

Nesse contexto de transformação, declínio e bonança, meus pais

trabalhavam como regatões7 e, por isso, moravam dentro de um barco, e eu

aproveitei que eles estavam passando pela cidade de Manaus/AM para vir ao

mundo.

Então, nesse exato momento, minha mãe sentiu as dores e meu pai atracou

o barco no bairro de Educando, zona sul de Manaus, e foi para terra buscar uma

parteira, porém, minha mãe conta que, quando ele voltou com a parteira, eu já

estava no mundo. Talvez não quisesse esperar para nascer e o barco foi a minha

maternidade.

Sou filha de Raimundo Miranda de Souza, do qual tenho o sobrenome em

registro, e, quando criança, tinha uma foto 3X4 sua, que guardei por muito tempo,

mas perdi. Não sei a sua naturalidade ou qualquer outra informação familiar. Sei

apenas que é negro, analfabeto e trabalhava como regatão, vendendo estivas pelos

7 O Regatão, herói atípico da Amazônia, no século XIV, já batia à porta dos consumidores medievais

da Europa oferecendo alimentos a retalho. Comprava no campo, mais barato, para vender em miúdo e caro na cidade. Era um comerciante ambulante, um mascate. Durante a colonização do Brasil, ele apareceu nas emergentes metrópoles brasileiras com a mesma atividade medieval. E no início do século XIX, a atividade foi dominada por jovens judeus marroquinos, que migravam para o País. Na segunda metade desse século, atraídos pela economia da borracha, os jovens mascates árabes migraram em massa para a Amazônia, onde passaram a ser chamados de regatões. Historicamente, o regatão da Amazônia é o pequeno comerciante que entra nos rios e igarapés com sua pequena embarcação carregada de miudezas, oferecendo esses produtos aos moradores dos rincões da região. Troca – mais do que vende – produtos industrializados por espécies valiosas da floresta. De fato, além de armas e munições, querosene, sal, açúcar, sabão e charque - essenciais para a subsistência do seringueiro, - o regatão oferecia deslumbramento para sua alma: eram cortes de lamê e tafetá, coloridos e macios, os perfumes baratos de cheiro ativo, as brilhantinas, as chitas estampadas e as rendas, as pulseiras e brincos, as linhas e agulhas, os cintos, os sapatos, os batons e pós de rosto, os biscoitos e bombons, os sabonetes, as anáguas. Impunham-se, através do regatão, um gosto e uma tolerância amazônicos por excelência, quebrando a lógica do capital e do lucro.

34

rios do Amazonas. Se não fosse o seu nome na minha certidão de nascimento,

poderia dizer que sou filha do boto8.

Minha mãe, Terezinha Gomes de Souza, é natural do Amazonas. Nasceu no

interior chamado Coari, no médio Amazonas, aproximadamente 360 quilômetros

distante de Manaus. Na década de 1980, eram aproximadamente 40 horas de barco,

atualmente, são 28 horas. Terezinha também é analfabeta, não conviveu com seus

pais e nem chegou a conhecer a própria mãe, que foi retirada do convívio familiar

porque tinha hanseníase; o pai dela casou-se novamente e entregou a filha para

parentes.

Terezinha sempre contava histórias de muito trabalho e espancamento em

sua infância. Na adolescência, resolveu trabalhar como empregada doméstica em

Manaus. Aos 18 anos, conheceu Raimundo, casaram-se e tiveram três filhas,

Rosimar, eu e Silvanes, respectivamente.

Viveram por dez anos juntos, sempre trabalhando como regatões nos

interiores do Amazonas. Terezinha dizia que a vida não era fácil, pois sempre teve

que trabalhar muito para ajudar o marido. Porém, depois de tantos anos juntos, ela o

flagrou com outra mulher, e mesmo com todas as dificuldades, que talvez nem

tivesse noção que passaria, por ser mulher, mãe e sem marido, ela não aceitou a

situação.

8 A lenda do boto tem sua origem na Região Amazônica (Norte do Brasil) e ainda hoje é muito popular

e faz parte do folclore amazônico e do brasileiro. De acordo com a lenda, um boto cor-de-rosa sai dos rios nas noites de festa junina. Com um poder especial, consegue se transformar num lindo jovem vestido com roupa social branca. Ele usa um chapéu branco para encobrir o rosto e disfarçar o nariz grande. Com seu jeito galanteador e falante, o boto aproxima-se das jovens desacompanhadas, seduzindo-as. Logo após, consegue convencer as mulheres para um passeio no fundo do rio, local onde costuma engravidá-las. Na manhã seguinte, volta a se transformar no boto. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/folclorebrasileiro/lenda_boto.htm>. Acesso em: 8 ago. 2012.

35

Figura 2: Embarcação regional conhecida como recreio ou barco dos regatões. Transporta pessoas e mercadorias pelos rios do Amazonas

Fonte: Valter Calheiros (2012).

Eles brigaram muito, partiram para a agressão física, pois minha mãe falava

com muito orgulho da coragem que tinha para enfrentar meu pai, e com essa briga

que, segundo ela, foi muito feia, se separam. Ela ficou em Manaus, sem parentes,

sem casa para morar, ou qualquer outra ajuda, apenas três filhas pequenas, pois

Silvanes havia acabado de nascer.

Como havia ficado extremamente decepcionada com o marido, resolveu se

vingar, impedindo que ele visse as filhas, então, Raimundo a procurou algumas

vezes, mas ela não quis saber de contato, e também não aceitou a ajuda oferecida

por ele, pois Raimundo chegou a levar mantimentos para as filhas, mas Terezinha

não recebia. Depois de alguns meses, Raimundo simplesmente não a procurou

mais, e sumiu sem deixar pistas.

2.1.2 A “Infância” e o Lugar Estabelecido

Depois da separação, minha mãe ficou com as três filhas para sustentar,

sem casa, emprego ou parente na cidade (Manaus). Analfabeta e sem condições

financeiras, teve que realizar trabalhos domésticos para manter as filhas e pagar o

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aluguel. Por causa das dificuldades, resolveu entregar a filha mais velha (Rosimar)

para morar com o avô materno em Coari/AM, ficando apenas com as duas filhas

mais novas, eu e Silvanes. Como eu era a mais velha, fiquei com a obrigação de

cuidar de tudo em casa e da minha irmã três anos mais nova.

Lembro-me perfeitamente do lugar onde morávamos, uma casa grande de

madeira, cujos cômodos são alugados para diversas pessoas (chamávamos de

estância). Era um quarto muito pequeno, com banheiro comum para todos os

moradores. Situado no bairro da Compensa II, zona oeste, região localizada próximo

ao Rio Negro, na cidade de Manaus, neste local tinha muitas crianças e famílias

pobres, como a minha, e todos participavam da vida um do outro. Mudávamos

constantemente, mas apenas de casa, o bairro sempre era o mesmo.

Tínhamos apenas algumas roupas, e dormíamos no chão debaixo de um

mosquiteiro, mas minha mãe estava cheia de esperança com a nova vida. Com o

tempo, ela conseguiu entregar almoço para os feirantes, pois morávamos perto de

uma feira, e com esse dinheiro ela foi conseguindo nos manter, tirou seus

documentos e iniciou a busca por trabalho no Distrito Industrial de Manaus.

A mulher era muito requisitada para trabalhar nas indústrias de montagens,

por causa da sua destreza manual, submissão e sensibilidade ao lidar com os

componentes. Essas características favoreciam o modelo japonês, implantado nas

fábricas, porém, elas também precisavam ter boa saúde e, às vezes, saber fazer as

quatro operações. Praticamente eram essas as exigências para serem admitidas

(BARBOSA, 2007, p. 20).

Acredito que, nesse momento, eu já deveria ter entre três e cinco anos de

idade, e consigo lembrar-me de alguns relatos feitos por minha mãe sobre a vida,

suas experiências e, entre elas, lembro-me perfeitamente quando ela falava: “Tu

pode ser preta, feia e pobre mais tem que ter estudo, com ele tu entra em qualquer

lugar e consegue ser respeitada”.

Lembro-me também das suas panelas. Ah! estas tinham que estar sempre

brilhando! E sabe quem era responsável por arear? Eu! Peguei muita panela na cara

para aprender a lavar direito. E ainda tinha o pote9! Esse eu não me esqueço! Era o

local onde ficava a água para beber. Certo dia, minha mãe me mandou lavá-lo, e

9 Consiste em uma vasilha de barro.

37

como era muito grande, comparado com minha altura, eu não consegui lavá-lo

direito.

Nesse dia, ela esfregou meu rosto no pote, e só parou quando percebeu que

eu estava sangrando. Ainda tenho a cicatriz, acima da sobrancelha. Lembro-me

também que eu e minha irmã ficávamos trancadas em casa o dia todo, enquanto

Terezinha trabalhava. Às vezes, ela deixava alguma comida pronta, outras vezes, eu

tinha que fazer, cuidar da minha irmã e da limpeza do quarto onde morávamos.

Como eu era muito pequena, necessitava de um banco, para alcançar o

fogão, e tinha que fazer, principalmente, o mingau da Silvanes, porém, este era de

massa de macaxeira e quando começava a ferver as bolhas pulava em minha

barriga, por isso tenho várias cicatrizes de queimaduras nessa região.

Quando ela chegava do trabalho, as coisas tinham que estar sempre prontas

ou eu apanhava muito, na verdade, eu sempre apanhava por tudo, os vizinhos já

estavam acostumados a me ver invadindo suas casas para pedir ajuda. Tanto é que

tenho várias cicatrizes no corpo e no rosto, das surras que eu levava, toda vez que

ela me batia, eu ficava acamada, às vezes não conseguia andar, por causa dos

hematomas, ficava muito machucada mesmo, principalmente na alma.

Não me lembro de carinhos, de afeto, ou brincadeiras, contudo, lembro-me

de trabalho, este substituiu as brincadeiras e o estudo, assim como o

espancamento, sofrido praticamente todos os dias, substituía o carinho materno.

Hoje vejo que era a única forma conhecida por minha mãe para educar e

talvez me mostrar um caminho diferente do percorrido por ela. Lembro-me também

que minha mãe sempre falava de um irmão paterno que ela tinha e que também

morava em Coari.

Ela sempre dizia que ele era muito inteligente, estudioso, trabalhava nos

melhores lugares da cidade do interior onde morava. Mesmo não tendo muito

contato com a família, era perceptível o orgulho que ela sentia ao falar do meio-

irmão, e eu pensava: Um dia ela vai falar assim de mim, vou ser igual ao meu tio.

Então, conhecer esse tio era um dos meus sonhos, ele era o pai que sempre sonhei

em ter e um modelo a ser seguido.

Mas continuei cuidando da minha irmã e aguardando a chegada de mais um

irmão. Agora teria que cuidar de mais uma criança, e minha mãe já estava

trabalhando no Distrito Industrial de Manaus. Meu irmão chegou, mas Terezinha

38

havia brigado com o namorado e resolve vingar-se dele entregando a criança, na

hora em que nasceu, para adoção; não quis nem ver a criança.

Porém, logo depois, ela conheceu outro namorado, engravidou novamente,

e nove meses depois outro menino veio ao mundo. Recebeu o nome de David, e

como ela sempre trabalhou, eu cuidei da criança, praticamente desde a hora em que

nasceu, até o dia em que ela foi embora e o entregou para ser criado pela madrinha.

Terezinha é analfabeta, contudo, sabia assinar o nome com muita

dificuldade, mesmo assim, estava dento dos critérios para a contratação, pois, nessa

época não era tão exigido o grau de instrução, apenas deveria executar com

destreza o seu trabalho. Essa habilidade lhe garantia uma Carteira de Trabalho

assinada, direitos trabalhistas e reconhecimento de “cidadania”.

Porém, minha mãe não ganhava o suficiente para pagar uma pessoa que

ficasse com os filhos, então, nesse período, ela passou a trabalhar no turno da noite

e eu ficava sozinha em casa com meus irmãos. Tinha que cuidar durante a noite e

de dia, pois ela precisava dormir.

Lembro-me de uma vez em que um ladrão entrou no quarto em que

morávamos e roubou tudo o que tínhamos, enquanto eu dormia com meus irmãos.

Acordei com minha mãe chegando do trabalho e perguntando pelas coisas. Nossa,

que susto!

Na mesma hora, Terezinha passou a mão em uma faca e correu atrás de

mim, pois ela dizia que eu era irresponsável, que tinha culpa do roubo. Então, saí

correndo, pedindo socorro para os vizinhos, e eles, com muito custo, conseguiram

acalmá-la. Ela dizia que ia me matar, mas felizmente consegui escapar, muito

machucada, porque apanhei bastante.

Como nossa casa possuía apenas um cômodo, ou seja, um quarto alugado

em uma Estância, eu sempre presenciava a intimidade da minha mãe e seus

namorados, assim como todos eles me assediavam, me perseguiam durante a noite,

ou na ausência dela. Algumas vezes, cheguei a contar-lhe, mais não adiantava, ela

não acreditava.

Minha mãe também gostava de festas, bebidas e cigarros e nos fins de

semana ela chegava bêbada, junto com seu namorado, brigavam na rua, em casa e

eu e meus irmãos presenciávamos. Ela sempre sofria violência física e já estávamos

acostumados com aquela realidade.

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Terezinha é uma mulher muito forte, trabalhadora, mas a vida não foi muito

generosa para com ela. Acredito que o sofrimento a fez uma mulher muito dura, pois

tinha uma vida de desencontros, de luta pela sobrevivência. Buscava sempre viver

melhor, queria condições dignas, contudo, infelizmente, seu salário não lhe garantia

sucesso e, às vezes, não tínhamos o que comer, vivíamos com muito pouco, sempre

com o salário dela, que mal dava para pagar o aluguel.

Porém, a pobreza, juntamente com a fé, designava a aceitação de sua

condição, fazendo um mix de força e conformismo, expressados assim: “Foi Deus

que quis assim, ele vai dar o jeito, ele sempre olha por nós. Os pobres devem

esperar em Deus”.

Quando não tínhamos perspectiva de obter alimentos para o dia seguinte,

ela sempre falava: “Não devemos nos preocupar com o dia de amanhã, Deus dará o

jeito, isso está na Bíblia”.

Terezinha também me apresentou este Deus que cuida e que protege, mas

pune, caso a escolha seja errada, ou não esteja dentro dos seus planos, ou seja, ela

dizia que às vezes queremos mais do que merecemos. Ela também esperava em

Deus um homem bom para dividir a vida tão complicada, desagregadora, queria

alguém para ajudá-la a sobreviver, e enfrentar a luta cotidiana.

O estigma de ser uma mulher com filhos e sem marido era forte e além de

tudo Terezinha também não tinha o apoio da família. Na verdade, também não tinha

família. Talvez por isso o marido fosse o apoio necessário. Mas suas escolhas

sempre a faziam sofrer muito. E sempre um namorado novo chegava à nossa casa.

Depois de algum tempo, ela conheceu outro namorado, que logo passou a

morar conosco, porém também não tinha estudo e trabalho formal, vivia de

pequenos “bicos”, mesmo assim, ele queria “assumi-la”, e passou a morar conosco.

E ela logo aceitou, pois não era fácil encontrar alguém que se interessasse por uma

mulher com três filhos.

Mas as coisas não eram bem assim, porque o homem, além de bater muito

em minha mãe, ele transformou minha vida num inferno, pois na madrugada ele

sempre vinha, e me passava a mão. Eu tentava me esconder, mas não conseguia.

Os outros namorados da minha mãe também faziam a mesma coisa, então,

eu acabava pensando que tinha culpa, e fazia de tudo para não ficar sozinha com

ele, tinha muito medo da falar, pensava na reação da minha mãe, mas, certo dia,

acabei contando.

40

Ela, porém, não acreditou e disse que era para eu ficar longe dele. Eu sabia

que não tinha o direito de estragar a vida da minha mãe, por isso tentava de todas

as maneiras escapar daquele homem tão nojento, e minhas noites eram muito

difíceis, eu tinha muito nojo de tudo isso, mas o que eu poderia fazer, diante daquela

situação? E a vida seguia sem mais novidades.

Minha mãe engravidou novamente e teve uma menina. Eu já estava ali,

pronta para cuidar de mais uma criança e tinha mais um motivo para apanhar, caso

não desse conta de tudo, da melhor forma possível. Eu dizia que queria ir para a

escola e ela me respondia: “Eu nunca estudei e estou viva. Eu não tenho tempo para

dormir na porta da escola, é muito difícil conseguir uma vaga”.

E eu tinha que me conformar com alguns livros velhos que apareciam na

minha casa, gostava de olhar as figuras e tentar ler alguma coisa. Lembro-me de

uma vez em que estávamos, eu e meu irmão David, em frente da vila em que

morávamos. Ele deveria ter aproximadamente dois anos de idade, era um dia após a

noite de São João e ainda tinha uma fogueira com brasas, na rua, então, eu me

distraí vendo um livro chamado Caminho Suave, foi quando ouvi os gritos do meu

irmão, ele estava caminhando sobre as brasas.

Minha mãe veio louca de raiva. Eu saí correndo, entrei nas casas dos

vizinhos, pedindo socorro, mas não teve jeito, eu apanhei muito, tanto que, no outro

dia, não conseguia andar. Ela só parou de me bater quando percebeu que tinha me

furado com um espeto de churrasco. Às vezes, pensava que ela se arrependia da

violência cometida, mas não conseguia controlar a raiva.

Terezinha e seu companheiro sempre brigavam, chegavam a agressões

físicas. Certa vez, ele cortou os dedos da mão dela com uma garrafa. Às vezes, um

agredia o outro com faca, eram sempre brigas feias. Recordo-me de uma vez que

minha mãe quase foi cortada com um facão, e isso para mim era um terror, tinha

muito medo, chorava muito.

Esse homem também enganava a minha mãe, roubava dinheiro dela e

gastava com outras mulheres. Ele passava tempo sumido, minha mãe fazia de tudo

pra ele voltar, e eu sempre pedia a Deus para que ele desaparecesse, mas ele

voltava e começava tudo novamente.

Com aproximadamente seis anos de idade, com três irmãos para cuidar, e

uma realidade doméstica de muito sofrimento, trabalho, falta de alimentos, abuso

sexual, espancamento e infância roubada, eu ainda tinha sonhos. Entre eles, queria

41

estudar, sentia que era o certo a ser feito, visto que nossa vida estava sempre em

declínio. Mas que tempo eu teria para dedicar aos estudos, visto que trabalhava dia

e noite?

No início da década de 1980, minha mãe estava desempregada, agora não

era mais uma trabalhadora formal, com direitos garantidos em lei, porém, não podia

se dar ao luxo de escolher trabalho, e a necessidade a obrigou a vender frutas e

verduras na feira do bairro onde morávamos.

Minha irmã mais nova tinha meses de vida e, além de cuidar das crianças,

tinha também a função de fazer a comida e levar até a feira para minha mãe. Certa

vez, saí de casa para levar o almoço, uma mão com a panela e o prato, e, no outro

braço, minha irmã mais nova. Então, tropecei na rua e caímos no chão. A comida

estragou, eu cortei o joelho e a criança rasgou o rosto. Nossa, apanhei tanto!

Figura 3: Criança cuidadora

Fonte: Valter Calheiros (2012).

Nesse mesmo ano, Terezinha, já cansada da vida na cidade, de anos de

luta para não deixar faltar alimentos para os filhos, e fazendo malabarismo para

pagar aluguel, somava desilusões e fracassos e, sem perspectivas na cidade,

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chega o dia da sua grande decisão! Ela resolveu morar no interior do Estado, um

lugar bem distante, chamado Copear/AM. Para chegar nesse local, eram dias de

viagem, e lá estavam os familiares do seu atual marido.

Terezinha inicia o percurso de volta para o interior. Como não conhecia o

local, optou por não levar todos os filhos, e foi então que decidiu me deixar para

trabalhar como doméstica na casa de uma vizinha e meu irmão David com a

madrinha dele. Ela voltaria alguns anos depois, com muita história de sofrimento

para contar, mais filhos e mais pobre ainda.

Ficar, para mim, foi a melhor notícia que recebi na vida! Significava me

salvar dos assédios, dos espancamentos, e ter a possibilidade de estudar. Ou seja,

eu estava nascendo novamente, em outra década, cheia de esperanças e direito à

escola. Talvez não fosse tão ruim, ficar sem mãe, ou não teria diferença nenhuma.

Então, ela seguiu viagem com minha irmã Silvanes, e com a filha mais nova,

de aproximadamente 7 meses de idade. E fiquei com uma vizinha, sentindo grande

alívio, pois agora estava livre, não apanharia mais, porém continuaria trabalhando.

Eu acreditei que seria minha única chance de estudar, e estava livre dos assédios.

Fiquei com saudade da minha mãe e irmãos, mas pensava que um dia teria

condições para ajudá-los. E assim continuei minha vida de adulto em miniatura, mas

agora sem mãe, sozinha no mundo, naquele mundo tão restrito para mim, que

nunca tinha me apresentado alternativa de vida.

Acredito que minha mãe estava tentando fugir da pobreza que a cercava e,

mesmo trabalhando diariamente, ela não conseguia mudar aquele quadro de

necessidades econômicas. Mas minha família não era uma exceção de pobreza, no

Amazonas e principalmente no Brasil, que vinha de décadas de opressão e altos

índices de desigualdade social. Essa pobreza também obrigava o rompimento dos

poucos vínculos que tinham sido construídos até aquele momento.

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2.2 De Casa em Casa

De que são feitos os dias?

De pequenos desejos, vagarosas saudades,

silenciosas lembranças. Entre mágoas sombrias,

momentâneos lampejos: vagas felicidades, inatuais

esperanças.

(Cecília Meireles)

Depois que minha mãe foi embora, passei a morar na casa da dona Lúcia,

que tinha apenas uma filha pequena. Em princípio, eu teria que cuidar da criança e

de algumas coisas da casa. Mas minha alegria durou pouco. O tempo passou,

minhas tarefas aumentaram, ela me cobrava mais responsabilidade, e como não

consegui corresponder fui muito espancada, então comecei a perceber que o

período de sofrimento não tinha acabado, ou seja, agora é que estava se iniciando.

Como não era minha mãe, resolvi fugir. Aproveitei que ela assistia tevê,

peguei algumas roupas e saí pelas ruas em busca de lugar para morar. Cheguei à

casa de uma senhora que tinha conhecido minha mãe e me acolheu, levando-me

para trabalhar na casa do filho dela. Lá, apanhei novamente, pois não tinha a

responsabilidade necessária para cuidar das coisas da forma que era exigido. E

também aprontava algumas travessuras.

Então, resolvi sair de lá também. Encontrei outra senhora, de mais ou menos

60 anos, chamada Tiúca, e fui morar com ela. Esta senhora vivia com um homem

bem mais novo, que trabalhava como pedreiro. Eles eram muito pobres e eu, às

vezes, ia trabalhar com ele, como ajudante de pedreiro.

Quando não tinha dinheiro para comprar comida, eu acompanhava dona

Tiúca à feira, para pedir peixe. Nessa casa não apanhei, a violência era outra, pois

passei muita fome. Em alguns dias, nós tínhamos apenas um pão francês que era

dividido para três pessoas.

Não sei ao certo quanto tempo morei nessa casa; acredito que uns dois

anos, aproximadamente. E, mais uma vez, tive que sair. Além da fome, lá eu

também sofria com as investidas do marido dela; as perseguições ficaram mais

fortes, à medida que eu ia crescendo. Quase não conseguia dormir as noites

tentando me esconder dele.

44

Sei que, em 1985, novamente fui às ruas, em busca de trabalho. Foi quando

encontrei uma mulher, que morava no mesmo bairro e tinha oito filhos; a mais nova

com dois meses de idade. Fui contratada para cuidar ela. Nessa casa nunca tive

problemas com assédio ou espancamento, a violência novamente se modificou.

A casa era uma “boca de fumo”, ou seja, vendiam drogas, e descobri quando

a policia passou a invadir a casa constantemente, quebrando tudo. Durante o tempo

que passei nessa casa, tive muito medo, convivi de perto com as drogas, os via

fazendo os papelotes, vendendo ou trocando droga por roubo, também presenciava

a vida dupla da minha patroa, sabia de seus amantes.

Nessa casa comecei a assistir tevê e programas próprios para crianças.

Lembro-me do Balão Mágico, de alguns desenhos como os super-heróis e outros

que me mostravam que o bem sempre vence e renovava as minhas esperanças.

Lembro-me quando Xuxa iniciou seu programa, eu era apaixonada por ela,

foi com a Xuxa que aprendi várias coisas. Ela era minha educadora, pois todos os

dias me dizia que valia a pena acreditar nos sonhos, que eu ia conseguir. Ouvir isso

era a força que eu necessitava.

Foram essas pequenas grandes coisas que me faziam continuar e acreditar

em tempos melhores. Sempre sonhei com o futuro, mas o importante era sobreviver

aquele presente tão difícil. Nessa época fiquei sabendo pela tevê as notícias sobre a

morte de Tancredo Neves. Lembro-me da decepção nas pessoas que queriam um

País melhor, mas não sabia por que aquele homem era tão importante.

Lembro-me do Hino Nacional cantado pela Fafá de Belém, e do luto que

envolveu o País. Contudo, não fazia ideia do movimento nacional, das diretas já, e

toda a efervescência do momento. Meu mundo era tão mais urgente e restrito que

se resumia à rua em que eu morava. Não tinha noção dos acontecimentos daquela

década e muito menos das anteriores. Mas a luz um dia chegaria.

O bairro em que eu morava ainda era o Compensa II, o mesmo do passado

com minha mãe. Nesse tempo, era um local considerado muito perigoso, com muito

tráfico de drogas, furtos e violência de modo geral. Foi durante o tempo em que

morei nessa casa que iniciei minha vida na igreja católica, frequentando a catequese

aos domingos, e conheci vários amigos.

De loucuras, de crimes, de pecados, de glórias - do medo que encadeia todas essas mudanças. Dentro deles vivemos, dentro

45

deles choramos, em duros desenlaces e em sinistras alianças...

Conheci na igreja um catequista que me chamava a atenção; gostava de vê-

lo palestrando, participando das coisas da igreja, achava bonito falar em publico,

saber palestrar, falar corretamente. E ele passou a ser o homem dos meus sonhos.

Eu já deveria ter uns 11 ou 12 anos e ele foi meu primeiro “amor”. Fiz a

primeira eucaristia e não fui mais à igreja, mas sempre via o rapaz bonito passar à

tarde na frente da casa em que eu morava, às vezes ficava na janela só pra vê-lo

passar. Tinha vontade de frequentar a igreja só para ficar perto dele.

O tempo passou e a constância de policia na casa só aumentava, até o dia

em que meus patrões foram pegos em flagrante e presos. Tive que encontrar outra

casa. Morei em vários bairros, na cidade de Manaus, sempre trabalhando em casa

de família. Como diz a musica do Legião Urbana, Já morei em tanta casa que nem

me lembro mais...

Com o tempo, fui aprendendo a cozinhar e fazer os trabalhos domésticos,

porém, na grande maioria das casas, trabalhava só pela comida e moradia. Por ser

muito pequena, sofri várias queimaduras, ao lidar com fogão, mas continuava

trabalhando. O assédio sexual dos patrões continuava.

Brincadeiras de forma alguma, estudar continuava sendo apenas um dos

meus sonhos. Na verdade, eu sempre tive muitos sonhos, queria conhecer meu pai,

reencontrar minha mãe e irmãos, queria muito encontrar meu avô materno e minha

irmã que era criada por ele, e também conhecer meu tio. Nunca esqueci esse tio.

Ah! Queria me casar com o rapaz da igreja; queria pelo menos que ele

percebesse a minha presença. Tinha muita vontade de voltar para a igreja, queria

participar dos grupos de jovens, queria ser vista pelo rapaz. Mas como tive que

mudar de bairro várias vezes, a igreja ficava distante, mas ele estava presente nos

meus sonhos de menina.

Nunca gostei de festas, mas adorava ouvir rádio, gostava muito de músicas

nacionais e internacionais, passava as noites ouvindo essas músicas e sonhando

com uma vida melhor, em ser uma pessoa melhor, para ser vista e respeitada, ou

seja, eu me encontrava dentro de um contexto de invisibilidade social. Tinha

vergonha de ser empregada doméstica, de ser comparada com índia, de não ter

família, de ser canhota, ou seja, de ser ninguém.

46

Quanto mais eu crescia e ganhava corpo de mulher, mais eu ficava

preocupada, porque sabia como os homens me viam e o que eles queriam de mim.

Talvez por isso sempre sentisse muita vergonha de mim mesma.

Adorava olhar os livros e, aos poucos, fui conhecendo as letras e

conseguindo juntar as sílabas, com aproximadamente 12 anos de idade já sabia ler

muito pouco. Como não tinha muito tempo livre, pois o trabalho doméstico me

consumia, eu pegava os livros de literatura dos filhos dos patrões, escondia na

descarga do meu banheiro e sempre que tinha um tempo livre corria para o banheiro

e tentava ler.

Só tinha uma certeza: estava só no mundo, não sabia da minha mãe e meu

pai simplesmente desapareceu. Não tinha direito a saúde, educação, moradia, a

família e, principalmente, a ser criança, ou seja, a ter direito. Acredito que, todos os

dias, me lembrava da minha mãe e irmãos, e tentava imaginar o que tinha

acontecido com eles.

Será que estaria melhor com minha mãe? E inúmeras perguntas me faziam

refletir sobre a minha vida. E outra fala da minha mãe me fazia de certa forma

aceitar muitas coisas e pensar que estava destinada àquele sofrimento, ou que a

vida era só isso mesmo: “Quem nasce no mês de agosto, só tem, ou causa,

desgosto, e ainda é canhota! Nossa, é contra Deus”. Demo (2005, p. 174) afirma

que:

Há diferença entre ver-se pobre e “saber-se” pobre. Para saber-se pobre, o pobre precisa de consciência crítica capaz de desconstruir sua exclusão e entendê-la como dinâmica histórica cultivada, mantida, manipulada, não como sina ou desígnio. Precisa portar-se como sujeito, não como objeto.

Sentia-me um ser diferente, talvez destinada ao sofrimento, a cuidar das

coisas dos outros. Ficava muito feliz e agradecida quando minhas patroas diziam

que eu era quase da família. O mínimo de atenção era tudo, ou seja, queria ter uma

família, ser alguém que não servisse apenas para obedecer, queria fazer as

refeições na sala de jantar, com todos, mas sempre ficava na mesa da cozinha. Em

algumas casas, eu já recebia meu prato feito, às vezes com a comida do dia

anterior. Mas era melhor do que passar fome.

Enquanto minha rotina de trabalho e patrões diferentes seguia, o amor pelo

rapaz ficava mais forte. Consegui coragem para participar da igreja, do grupo de

47

jovens. Queria muito participar, mais tinha medo/vergonha de me apresentar para os

demais. Eu já estava com 14 anos, a cada dia me transformava numa linda jovem, e

isso não era bom, pois eu chamava a atenção dos meus patrões e muitas vezes tive

que sair do trabalho porque estava sendo perseguida por eles.

Nunca tive acesso a dentista ou qualquer tipo de tratamento odontológico

preventivo, e talvez por isso, com 13 anos de idade (1987), por causa das inúmeras

dores, infecções e problemas dentários de modo geral, minha patroa me levou ao

dentista e mandou extrair todos os meus dentes superiores, pois as dores me

atrapalhavam no trabalho. Como diz a música do Zé Ramalho: “Essa dor doeu mais

forte...” (cidadão). E ainda dói, pois acredito que, de todas as minhas cicatrizes, essa

é a maior.

2.3 Adolescência /Juventude

Ainda com 14 anos de idade (1988), com uma gripe muito forte, necessitei

de atendimento médico. Busquei no Sistema Único de Saúde (SUS) e, no momento

da consulta, me lembrei de uma mancha dormente que sempre tive no joelho, mas

nunca tinha falado a respeito.

Então, mostrei para o médico e vi a preocupação em seu rosto. Logo me

pediu vários exames e os resultados confirmaram que eu tinha hanseníase e deveria

fazer tratamento em um hospital especializado durante um ano. Nesse período, o

governador de Manaus era Amazonino Mendes e o prefeito era Manuel Ribeiro10.

A notícia me deixou sem chão, pois não sabia ao certo do que se tratava,

mas já tinha visto pessoas sem membros e excluídas do convívio coletivo por serem

vítimas da hanseníase (em Manaus, na década de 1940, as pessoas eram isoladas

no leprosário, no interior do Estado, e hoje existe um bairro na capital habitado, na

sua maioria, por hansenianos). Como não tinha família, logo entendi que não

poderia contar para ninguém, ou com alguém, além da vergonha, do medo de ficar

10

Manoel Henriques Ribeiro, mais conhecido como Manoel Pracinha, é um político brasileiro que foi eleito vice-governador do Amazonas (PMDB), em 1982, na chapa de Gilberto Mestrinho e prefeito de Manaus em 1985, porém, uma intervenção decretada em junho de 1988, pelo governador Amazonino Mendes, o afastou e, em seu lugar, assumiu interinamente Alfredo Nascimento, por seis meses. Terminado o mandato, foi morar no Rio de Janeiro, onde trabalhou durante a administração de César Maia, retornando ao Amazonas apenas em 2009. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_Henriques_Ribeiro>. Acesso em: 30 ago. 2012.)

48

sem os membros e impossibilitada de trabalhar, então tinha que fazer o tratamento e

não podia falar da doença.

Fiz tudo escondido, tomava remédios diários e, uma vez por mês, teria que

tomar um medicamento no próprio hospital. Lembrei-me que Terezinha havia

contado que sua mãe tinha sido isolada do convívio familiar, logo que ela nascera,

por causa da hanseníase11.

Então, fui encaminhada para a Fundação Alfredo da Matta (Fuam), lá o

atendimento era específico e fui acompanhada por uma assistente social, que me

explicou quais cuidados deveria tomar durante o tratamento. Orientou-me de modo

geral e disse-me que a doença já tinha cura. Essa era a parte boa.

O tratamento também envolve os familiares, mas onde estavam os meus?

Como eu saberia se na minha família teria a doença? Consegui fazer o tratamento,

contudo, sempre inventava algo para sair da casa onde trabalhava, pois não podia

falar para meus patrões a respeito da doença, fui orientada sobre o preconceito que

a envolvia, etc.

Assim, como não tinha documentos, durante o tempo em que estava

fazendo o tratamento médico, aproveitei para tirá-los e, de posse deles, queria

procurar emprego nas empresas do Polo Industrial de Manaus (PIM). Tinha o

objetivo de trabalhar com Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS)

assinada; queria ser cidadã.

No dia 1o de agosto de 1989, faltando 20 dias para o meu aniversario de 15

anos, consegui trabalhar em uma fábrica do PIM. Nossa! Como fiquei feliz e

11

Lepra, hanseníase, morfeia, mal de Hansen ou mal de Lázaro é uma doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae (também conhecida como bacilo-de-hansen) que afeta os nervos e a pele e provoca danos severos. O nome hanseníase é devido ao descobridor do microrganismo causador da doença, Gerhard Hansen. O termo hanseníase foi introduzido no Brasil pelo professor titular da Universidade Federal de São Paulo, Abrahão Rotberg. É chamada de "a doença mais antiga do mundo", afetando a humanidade há pelo menos 4 mil anos e sendo os primeiros registros escritos conhecidos encontrados no Egito, datando de 1350 a.C. É endêmica (específica de uma região) em certos países tropicais, em particular na Ásia. O Brasil inclui-se entre os países de média endemicidade de lepra, no mundo. Isso significa que apresenta um coeficiente de prevalência médio superior a um caso por mil habitantes (dado desatualizado) (MS, 1989). Os doentes são chamados leprosos, apesar de que este termo tende a desaparecer, com a diminuição do número de casos e dada a conotação pejorativa a ele associada. A lepra é uma doença contagiosa, que passa de uma pessoa doente, que não esteja em tratamento, para outra. Demora de 2 a 5 anos, em geral, para aparecerem os primeiros sintomas. O portador de hanseníase apresenta sinais e sintomas dermatológicos e neurológicos que facilitam o diagnóstico. Pode atingir crianças, adultos e idosos de todas as classes sociais, desde que tenham um contato intenso e prolongado com bacilo. Pode causar incapacidade ou deformidades, quando não tratada ou tratada tardiamente, mas tem cura. O tratamento geralmente é fornecido por sistemas públicos de saúde. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lepra>. Acesso em: 23 mar. 2012.)

49

orgulhosa. Agora não passaria mais por tantas humilhações, tinha um emprego

valorizado. Era cidadã! E o processo de invisibilidade social em que me considerava

inserida.

Essa situação reforça os dados das pesquisas realizadas:

82% das mulheres do Polo Industrial de Manaus vêm do interior do Estado e seus primeiros empregos são como empregada doméstica, trabalhando sem carteira assinada. Geralmente trabalham durante o dia e estudam à noite. O PIM é o grande sonho. (BARBOSA, 2007, p. 86).

Trabalhar em uma fábrica, naquele momento, também me fez, de certa

forma, esquecer um pouco do meu aniversario de 15 anos, que passei sozinha em

casa, chorando porque ninguém sabia daquele dia tão importante para mim. Nessa

época, eu já estava participando ativamente do grupo de jovens, a Pastoral da

Juventude (PJ), e tinha contato com o rapaz tão querido.

Mas, para ele, meu aniversário não tinha importância. Sempre ouvi minha

mãe falar da importância do trabalho, percebia o orgulho que ela demonstrava de

trabalhar em uma fábrica, porém via também seu desgaste físico provocado pelo

trabalho.

Então, com meu primeiro salário, eu aluguei um quarto, em uma vila, no

bairro da Compensa II, e fui morar sozinha. Só tinha meus objetos pessoais, (uma

mala pequena, uma rede e um rádio relógio), mesmo assim, estava firme e forte.

Acordava todos os dias as 5 horas da manhã, pegava o ônibus da empresa e só

voltava as 17 horas, para meu quartinho. Quando eu tinha dinheiro, comprava

comida pronta para jantar, quando não, dormia para passar a fome. Às vezes, eu

comprava enlatado e farinha, comia frio mesmo, pois eu não tinha fogão.

Nesse período, eu continuava participando do grupo de jovens e ficava mais

próxima do rapaz que me encantava tanto, até o dia em que ele se aproximou de

mim, o homem dos meus sonhos me viu em um baile da igreja, e me beijou. Nossa,

aquele momento foi muito especial, porém, logo ele me convidou para ir à casa dele,

queria o que sempre queriam de mim: sexo! E eu falei que era virgem, ele disse:

“Virgem?”.

Uma menina sem família, que mora sozinha, nunca! E riu da minha cara.

Essa foi a minha primeira decepção amorosa. Nossa, chorei a noite toda, ouvindo as

50

minhas músicas no meu rádio relógio, mas a vida continuava. E com o coração

partido continuei trabalhando.

No mesmo ano, no grupo de jovens conheci três irmãs e logo a família toda.

Eles me ajudavam com comida, nos fins de semana, visto que não tinha fogão e só

comia quando estava na fábrica. Era uma família muito grande, todos vindo do

interior do Estado.

A casa era de madeira em estado precário, tinha três cômodos, para 11

pessoas, a mãe dona Nena (analfabeta) é doméstica, o pai Joaquim (analfabeto),

por coincidência, trabalhava na mesma fábrica que eu, ele era jardineiro. As filhas

mais velhas trabalhavam em fábricas e/ou como domésticas para garantir as

despesas da casa. Era uma família muito unida e me sentia bem convivendo com

eles.

E assim fui seguindo minha vida. Continuei morando sozinha, e em 1990 fiz

minha matrícula na Educação Integrada, iniciando meus estudos a noite. Estava

encantada com as aulas, queria aprender tudo ao mesmo tempo, mas logo vi que

era difícil trabalhar o dia todo e estudar a noite. Às vezes, dormia preocupada em

acordar na hora determinada para o trabalho, pois não poderia perder o ônibus.

Muitas vezes, cheguei a acordar no meio da noite, pensando que estava na hora do

ônibus da empresa e saía na rua até perceber que ainda era cedo.

51

Figura 4: Histórico escolar do ensino fundamental

Fonte: documento pessoal.

A década de 1990 foi marcada, na história do Brasil, pois, de acordo com

Scherer (2004, p.128)

O esgotamento do pacto desenvolvimentista e com a reestruturação do capitalismo brasileiro na economia global, ocorreu uma retração no emprego formal, bem como ampliou o desemprego e o subproletariado no mercado informal. A Zona Franca de Manaus, neste contexto, é profundamente afetada, sobretudo pela política de liberação comercial para o exterior e pelos limites de importação de insumos impostos pelo governo Collor de Mello.

O contexto amazônico sofre diretamente os impactos da recessão e crise

econômica e das novas formas de flexibilização produtiva que se instalam em todo o

País a partir da efetivação da ideologia neoliberal, sendo, o PIM o termômetro para a

medição desse processo (IBGE, 2012).

Contudo, o governador do Amazonas, Amazonino Mendes, como o grande

gestor “preocupado” com as classes subalternas, acredita que é chegada a hora de

um novo ciclo de desenvolvimento a ser implementado na região. E, assim, nascia o

Terceiro Ciclo de Desenvolvimento. Nessa década, a população de Manaus somava

1.010.544 habitantes (IBGE, 2012).

52

Justamente por causa dessas transformações, fui demitida da empresa e

novamente tive que trabalhar e morar em casa de família. Consegui trabalhar na

casa de uma amiga da igreja, mas não deu certo e ela me mandou embora depois

de aproximadamente dez meses de muito trabalho, mesmo sabendo que eu não

teria lugar para morar.

Então, um amigo do grupo de jovens me acolheu, mas a família dele era

muito pobre, não tinha comida, estavam todos desempregados, e eu era mais uma

boca na casa. Também fiquei pouco tempo com eles, pois certo dia um pessoal

invadiu a casa e bateu em todos, esfaqueou meu amigo, foi muito feio e tive muito

medo.

Depois desse episódio, encontrei um novo emprego em casa de família, e só

vinha no bairro da Compensa II nos fins de semana para participar do grupo de

jovens. Minha maior alegria era quando, no domingo, encontrava meus amigos do

grupo. Amava participar da PJ12.

Porém, essa relação com os outros jovens, no início, não foi muito tranquila

para mim. Eu tinha dificuldade de convivência, vergonha, não sei ao certo, mas não

era fácil, principalmente quando necessitava desenvolver atividades exigidas dentro

e fora dos grupos, ou seja, falar em público para mim era impossível, explicar uma

passagem da bíblia, fazer a leitura na missa eram outras coisas difíceis. Mas com o

tempo e a paciência dos meus amigos, fui perdendo o medo e aceitando a

convivência.

12

A história da Pastoral da Juventude começa pelos anos 70 ou, até, com a Ação Católica Especializada (JAC, JEC, JOC, JUC), nos anos 60. Não podemos negar que aprendemos muito da Ação Católica, da Teologia da Libertação, da Pedagogia do Oprimido. No final da década de 70 e no início dos anos 80, a Igreja vivia um período de grandes expectativas, pois Medellín e Puebla trouxeram novos ares para a ação pastoral com a opção concreta pelos pobres e pelos jovens. Esta opção possibilitou ampliar o trabalho que vinha sendo desenvolvido com a juventude em movimento, para a construção de uma proposta mais orgânica. As dioceses passaram, então, a organizar a evangelização dos jovens em pequenos grupos (entre 12 a 25 jovens) e, para melhor acompanhar a organização e formação dos jovens, iniciou-se a articulação de encontros nacionais com o propósito de melhorar a comunicação e proporcionar o intercâmbio e a sistematização de experiências. A PJ, no seu todo, foi valorizando e incluindo em sua caminhada novas experiências de trabalho com a juventude, a partir de seu meio específico: juventude rural, juventude estudantil, juventude universitária e juventude dos meios populares – o que lhe foi exigindo uma nova forma de se articular e se organizar. Os encontros e assembleias tornaram-se momentos ricos de refletir sobre o acompanhamento dos jovens para a vida em grupo. Aí a Pastoral da Juventude iniciava seus famosos Seminários para Assessores, que serviram como laboratório e espaços de reflexões importantes como: o Processo de Formação na Fé, a Metodologia de Trabalho com Jovens, o mundo do trabalho, a cultura, as Políticas Públicas de Juventude, o Planejamento da Ação Pastoral, a Missão, e tantas outras discussões. (Disponível em: <www.pj.org.br/historia-da-pastoral-da-juventude>. Acesso em: 20 jul. 2012.)

53

Nesse período, comecei a passar os fins de semana com a família de

amigos, mas não tinha lugar para mim, gostava de todos da casa, mas ficava muito

incomodada por não ter meu próprio lugar, não ter basicamente lugar para dormir.

Dividia uma cama de casal com mais duas pessoas, mas fui muito feliz nesse

período. Dentro das possibilidades, tinha um lugar para morar, porém sentia que

deveria construir algo meu.

Mesmo sendo querida pelos amigos, sentia grande necessidade de construir

minha própria família, já estava cansada de fazer tudo sozinha. Minha vida

doméstica continuava, era demitida de um lugar, conseguia outro. O local em que

era permitido estudar eu fazia a transferência, quando não era, eu desistia. Tive

alguns namoricos, mas quando eu me interessava, o rapaz não me queria, e assim

eu vivi a minha juventude.

A pastoral foi meu refúgio, o grupo de jovens, o teatro, foi lá que eu me senti

valorizada, realizava-me no teatro, lá colocava para fora minhas emoções mais

ocultas, vivia situações diferentes, tirava de dentro de mim aquela menina

envergonhada. Na igreja, tive conhecimento dos movimentos sociais e a cada dia

sentia que aquele era o meu mundo.

Minha vida agora era voltada para estudar a noite, trabalhar durante o dia e

sonhar, quando tinha um momento só meu na casa. Ainda pensava naquele rapaz,

mas ele casou-se com uma “moça de família”, também participante da igreja

católica. Eu sofri muito por isso, tinha a ilusão de obter a felicidade a partir do

casamento, a imagem da família perfeita, ou seja, queria ser incluída socialmente

por meio do casamento.

Depois de casado, esse rapaz resolveu me procurar, percebi que, como

esposa, eu não servia, porém seria uma amante ideal, mas nunca tivemos nada

além de um beijo, eu sabia que ele não prestava, mas não conseguia finalizar

aquela história - finalizar esse ciclo. Certo dia, a esposa dele quase nos flagrou

juntos. Mesmo não tendo visto nada além de uma conversa, ela me esperou na rua

da igreja da qual eu participava e tentou me bater. Nossa, foi uma grande confusão.

Fiquei com muita vergonha, pois toda a rua ficava comentando e me

chamando de “puta”. Era muito fácil falar mal de mim, eu não era ninguém e estava

errada, pois ele é homem. Nesse dia, tomei uma decisão: nunca mais chegaria perto

dele e daquelas pessoas que falaram mal, acusaram-me e me fizeram sentir tão mal.

Prometi para mim que gostaria de outra pessoa, casaria e teria a minha família.

54

No mesmo ano, conheci um rapaz também da PJ. Vou chamá-lo aqui de

FV. Ele também me chamou a atenção, ficamos juntos acredito que um mês, mas

logo me falou que não dava pra continuar. Sofri novamente com a rejeição, não

conseguia entender a situação e meus conflitos pessoais se tornavam uma

constante na minha vida cotidiana.

Pois eu sempre chamava muito a atenção dos homens, as pessoas me

diziam que eu era bonita, mas eles não queriam nada sério comigo, e essa situação

repetiu-se algumas vezes, a ponto de me fazer desistir de namorar ou continuar

tentando encontrar alguém legal.

Nesse período, eu já participava de alguns desfiles, organizados pela escola

onde eu estudava e a associação de moradores do bairro em que eu morava. Essa

atividade me deixava muito feliz, pois eu adorava desfilar e relembrar dos meus

sonhos de criança. Adorava assistir os programas de miss Brasil, ficava me

imaginando. Na verdade, eu tinha, apesar de tudo, grande vontade de viver e de ser

feliz.

Com 18 anos de idade, conheci outro rapaz da PJ. Esse foi meu namorado

e me apresentou para a família dele. Mesmo sentindo que eles não gostavam de

mim, ou simplesmente não queriam na família uma empregada doméstica. A irmã

dele me chamava de “criança esperança”. Eu sempre ouvia uma gracinha nesse

sentido.

Nesse mesmo ano, 1992, durante meu horário de trabalho, (estava

passando roupas), como eu sempre gostei muito de música, sempre fazia as coisas

ouvindo um walkman, porém, nesse dia, eu estava sem pilhas e resolvi ligar uma

tevê muito velha que tinha no meu quarto, então, coloquei num programa local,

chamado Horário do Povo, e fiquei ouvindo e passando roupas, quando ouvi o

apresentador perguntar o nome de um senhor que estava procurando emprego.

E o senhor falou: “Eu me chamo Raimundo Gomes” E então, eu fiquei louca,

comecei a gritar pela minha patroa e dizia: “Dona Suely, o meu avô está na tevê,

corre, liga para lá, é meu avô, eu sei, é ele!”. Dona Suely não acreditava, falava para

eu me acalmar, dizia que era só um nome, que poderia ser qualquer outro Raimundo

Gomes. Mas eu sabia que era ele, então, insisti muito e ela ligou para o programa.

Depois de um tempo, ele retornou, e era meu avô, pai da minha mãe e do tio que eu

sempre quis conhecer e que criou Rosimar.

55

E foi aí que eu marquei um encontro para conhecê-los. Ele me levou à casa

da minha irmã, ela era casada, já tinha três filhas. Fui também à casa do meu avô,

conheci meu tio mais novo, mas não cheguei a conhecer o tio que tanto queria, pois

ele era casado e morava em outro bairro, mas fiquei sabendo também que ele

sempre quis me conhecer. Minha irmã me contou que meu tio tão adorado não era

bem o que minha mãe falava.

Na verdade, ela também não sabia da vida dele, depois que a família passou

a morar em Manaus. E fiquei sabendo que meu tio tinha assassinado um homem,

que foi preso por muitos anos, que ele, na cadeia, passou a usar drogas e etc.

Soube também que meu avô vendia picolé na rua e vendeu tudo que tinha para

pagar o advogado para tirar meu tio da cadeia, e, mais uma vez, eu me decepcionei.

Fiquei dias tentando entender onde estava aquele homem que eu queria ser igual,

porque a vida dele tinha chegado a esse ponto?

Mas não o conheci ainda. Meu tio mais novo também não tinha no seu perfil

indicação de boa conduta, minha irmã vivia com um traficante e foi só decepção.

Depois de um ano, meu avô faleceu e, no velório dele, eu conheci meu tio, mas já

estava desencantada. Depois da morte do meu avô, eu não tive mais contato com

ele, e mais uma vez percebi que estava sozinha no mundo. Não tinha mesmo com

quem contar e, às vezes, me perguntava o sentido da vida. Meu avô morreu tão

cedo, nem tive tempo de ser neta, não tinha sido filha, irmã, sobrinha, prima, ou seja,

quem eu era?

No mesmo ano (final de 1994), encontrei dentro de um ônibus a minha irmã

Silvanes, que tinha ido para o interior com minha mãe. Ela estava grávida, falamos

rapidamente, e ela também estava trabalhando em casa de família e não sabia da

minha mãe. Dei o número do telefone do meu trabalho para ela. Em seguida, saí

dessa casa porque consegui um emprego, novamente, em uma fábrica do PIM.

Continuei namorando e queria casar, mas um casamento tradicional. Ele

estava desempregado, eu ganhava muito pouco, R$ 0,56 por hora, então, não dava

pra fazer o casamento dos meus sonhos. A mãe dele não queria casamento

nenhum.

No ano de 1994, voltei a trabalhar no PIM, e passei a morar direto com

aquela família de amigos que me ajudavam anteriormente, mesmo não tendo

estrutura física para comportar mais uma pessoa na casa, eles me acolheram e me

56

possibilitaram convivência família, passei a participar da rotina daquela família, seus

problemas, alegrias, etc..

Contudo, sempre ouvia uma crítica aqui e outra ali sobre minha presença na

casa, mas sabia que seria temporário, que eu conseguiria minha própria casa. Sabia

também que aquela família tinha sido escolhida por mim, eu quis fazer parte dela, e

hoje, com muito orgulho, é a minha família do coração.

2.4 O Casamento

No dia 2 de dezembro de 1994, casei-me no civil com Lúcio. Ele com 23

anos de idade, desempregado, e cursando o ultimo ano do ensino médio, e eu com

20 anos, cursando a 8a série do ensino fundamental, e nesse momento trabalhando

em um fábrica do PIM.

Então, passei a morar na casa da mãe do meu esposo, e a dormir no quarto

junto com a avó dele. Na casa, moravam os avós maternos, a mãe e o padrasto.

Lúcio é filho de pais separados, tem apenas uma irmã mais nova, que na época já

era casada. Ele foi criado com os avós maternos, pois sua mãe trabalhava como

costureira. Sua família é muito grande e unida, oriundos do Município de

Eirunepé/AM.

E aí se inicia a minha vida de mulher casada. Estava muito feliz, via nesse

casamento a solução da minha vida. A construção da minha família, a possibilidade

de fazer o diferente, ou seja, eu estava finalmente protegida. Em fevereiro de 1995,

fiquei sabendo que estava grávida. Naquele momento, era tudo o que eu queria,

mas a gravidez foi interrompida e com 3 meses tive um aborto espontâneo. Fiquei

muito triste, mas a vida continuava e talvez soubesse o porquê do aborto.

No dia 21 de junho desse mesmo ano, recebi um telefonema, na fábrica em

que eu trabalhava. Era a Silvanes, e ela estava prestes a dar à luz no meio da rua,

então, peguei um táxi e fui ao encontro dela. Levei-a para a maternidade Ana Nery,

mas como não tinha feito o pré-natal, encontrei dificuldades para conseguir a

internação. A médica que a atendeu suspeitou que ela tinha doença sexualmente

transmissível e me informou a respeito.

Então, nesse mesmo dia, às 21 horas, nasceu, com quase 2 quilos, a

Thaynah, nome escolhido pela mãe. Naquele momento, queria cuidar daquela

57

criança tão desnutrida e sem proteção alguma. Minha irmã não tinha uma camisola,

e consegui comprar algumas coisas para ela e a criança.

Também fiquei sabendo que Silvanes não tinha lugar para morar, que

minha mãe já estava em Manaus, morava em um sítio, trabalhava como caseira,

mas as duas estavam brigadas, por causa do meu padrasto, que tinha vida dupla

entre minha mãe e minha irmã, entre outras coisas.

Como eu trabalhava o dia todo, não podia ficar com a criança. Contudo,

Silvanes também falou, na maternidade, que não daria a criança para ninguém, pois

algumas famílias a queriam. Ela conseguiu um lugar para passar o pós-parto.

Depois de aproximadamente 15 dias, ela voltou a ligar, disse que a criança estava

doente, fui até lá, levei ao médico, comprei a medicação e voltei para casa.

Continuei trabalhando. Mais ou menos um mês e meio, eu cheguei em casa

e a criança estava em cima da minha cama. Então, a Silvanes disse que não podia

cuidar da criança, que não daria para ninguém, só pra mim! Por mim eu ficaria, mas

meu marido e minha sogra não a queriam.

Então, depois de pensar muito e acreditar que eu poderia oferecer uma vida

melhor para aquela criança tão indefesa, tão vítima de tudo, resolvi ficar com a

menina. Minha irmã sumiu no mundo, e a criança apresentava vários problemas de

saúde, além da falta de documentação, ou seja, registro de nascimento. Dentro

desse contexto, senti a necessidade de registrá-la para vinculá-la à cobertura do

meu plano de saúde empresarial.

Como Silvanes tinha sumido, eu resolvi ir ao cartório e dizer que a criança

tinha nascido em casa, para poder registrar e não foi difícil. Eu consegui levá-la ao

médico, descobri que tinha uma criança cheia de problemas de saúde e que teria

muito trabalho pela frente. Como nunca tive medo de trabalho!

Mas estava gostando de ser mãe. Aí se inicia a minha vida de mãe, Thaynah

chorava a noite toda, eu trabalhava durante o dia, minha sogra tentava ficar com ela

para eu trabalhar, mas não conseguiu cuidar de tudo sozinha. Pedi apoio à minha

mãe e ela me mandou uma irmã mais nova para me ajudar, mas também não deu

certo. Eu estudava a noite, estava na 8a série do ensino fundamental e mais uma

vez tive que desistir.

Minha vida mudou novamente, parei de trabalhar, estudar, passei a viver

com apenas R$ 0,77 por hora, do salário do meu marido. Thaynah tinha vários

58

problemas de saúde e necessitava cuidados especiais, mesmo assim sempre o

ajudava em casa com alguns trabalhos informais.

E o sonho de concluir o ensino médio, para me possibilitar o ingresso em

uma universidade, ficava cada vez mais impossível. A busca dessa realização, em

alguns momentos, parecia estar adormecida. Eu não era mais alegre, a rotina me

excluía das necessidades do universo feminino, minha vaidade estava sendo

esquecida, diante dos problemas domésticos.

Toda dedicação estava voltada para atender às necessidades da minha filha

e do meu marido. Meus sonhos pessoais, minha juventude e alegria deram lugar à

mãe de família, que se desdobrava para consegui contornar as dificuldades.

Lúcio, meu marido, era um homem “bom” (dava casa comida e sabão para

lavar roupas). O tempo codificado em convivência demonstrava que aquela relação

não me fazia bem, não me sentia amada e respeitada, pois ele me agredia

verbalmente todos os dias. Fiquei tão desnorteada que não percebia que estava

dentro de um ciclo de violência. Acredito que perdi a vontade de ser feliz ou até de

continuar a minha luta.

Tudo contribuía para a minha entrada em um estágio vegetativo. Até hoje

não sei explicar com exatidão aquele período. Na verdade, não entendo porque

consigo lembrar coisas da minha infância, mas apaguei completamente momentos

da vida conjugal.

Minha vida seguia de forma rotineira, já não tinha perspectivas. Cuidava da

minha filha, do marido e da casa. Em 1996, exatamente no dia do aniversário de um

ano da Thaynah, descobri que estava grávida de 3 meses.

Aquele momento foi uma mistura de alegria e apreensão, pois já tinha uma

filha pequena, que necessitava de muitos cuidados, e as despesas eram muitas.

Acima de tudo isso, existia um grande desejo de ter o meu primeiro filho biológico,

mas a gravidez foi muito conturbada, devido ao acúmulo de tarefas.

Em 1997, um domingo, às 10 horas da manhã, veio ao mundo uma menina,

com quatro quilos, linda, cheia de saúde, nascida de parto cesáreo na maternidade

Beneficência Portuguesa, em Manaus. Era minha primeira filha biológica, chamei-a

de Thayanne, que hoje tem 15 anos. Minha filha nasceu exatamente como eu

imaginei: em um momento de muita felicidade.

Após um mês do nascimento da minha filha, voltei a trabalhar como

empregada doméstica. Minha rotina consistia em deixar Thaynah na escola e levar

59

Thayanne para o trabalho comigo, durante um ano. Para além das dificuldades no

transporte público, tinha que me desdobrar para cumprir as atividades domésticas, e

também cuidar de Thayanne, que exigia atenção.

Essa realidade, a cada dia, me fragilizava, gerando a impossibilidade de

cumprir diversas obrigações impostas. Não estava conseguindo sobreviver à rotina.

Agora, estudar, para mim, era apenas uma vaga lembrança. Tinha desistido na 8a

serie do ensino fundamental e a cada dia ficava mais distante o retorno.

Sabia que não podia mais, pois agora a vida apresentava-me outras

prioridades, e, entre elas, tinha o sonho da casa própria, visto que passava por

várias situações conflituosas com a família do meu esposo, o qual demonstrava

imparcialidade diante dos acontecimentos.

Para continuar no trabalho como doméstica, convidei uma moça, vinda do

interior do Estado, para morar comigo e cuidar das crianças. Thayanne estava com

um ano e Thaynah ainda apresentava diversos problemas de saúde, que exigiam

muito cuidado.

Contudo, em 1998, novamente sou surpreendida com outra gravidez, já

estava com dois meses, e descobri na mesma semana em que Lúcio foi demitido da

empresa em que trabalhava. Fiquei muito triste, pensei em fazer um aborto, mas não

tive coragem. Então, peguei R$ 1.500,00 da indenização dele e aproveitei para

comprar um terreno em uma ocupação irregular, distante do centro da cidade, na

zona norte de Manaus.

Apesar das dificuldades, foi um momento de muita felicidade, pois teria

minha própria casa, porém, Lúcio não queria sair da casa de sua mãe, e mesmo

grávida, tomei a frente de todo o processo de construção. Como o dinheiro era

pouco, só foi possível levantar dois cômodos, e o local não possuía saneamento

básico, energia elétrica, água encanada e apresentava difícil acesso, devido ao

desnivelamento do território.

Esse período está no âmago da minha memória, pois recordo-me da luta

para conseguir água potável. Tínhamos que carregar da casa dos vizinhos mais

antigos, que tinham poço artesiano, a energia era obtida por “gato” (ligação

clandestina). Comprávamos rolos de fios, para ligar a casa com o ponto mais

próximo de energia, localizado a um quilômetro de distância.

Para pegar um ônibus, tínhamos que subir por um barranco no meio da

mata. Era tudo muito difícil, mas havia uma linda visão da mata e dos macacos

60

Sauim de Coleira que habitam aquele local, estando hoje em iminência de extinção,

devido ao crescimento desordenado, bem como ao processo de urbanização da

cidade.

E assim, no dia 13 de junho de 1999, mudei para a minha casa. Estava com

sete meses de gravidez, com aquele barrigão, e já tinha caído do barranco13 várias

vezes, pois, quando chovia, o solo (barro) ficava escorregadio.

Para construir os dois cômodos ficamos completamente endividados. Lúcio

conseguiu outro emprego, ganhava pouco, mas estava trabalhando. Thaynah ainda

exigia muitos cuidados, mas melhorava a cada dia. Agora eu estava na minha casa,

e orgulhosa por ter participado daquela construção. É difícil descrever o sentimento

de realização de um sonho, e de, pela primeira vez, construir algo meu.

Naquele momento, estava muito preocupada com o nascimento do meu

filho, pois não tinha dinheiro para comprar as coisas necessárias para a chegada de

uma criança, porém, acabei ganhando enxoval das pessoas que trabalhavam com

meu marido, e meu filho veio cheio de saúde.

Nasceu de parto cesáreo, com quase 5 quilos, numa sexta-feira, às 19 horas

do dia 13 de agosto de 1999, numa noite linda de lua cheia. Lucas veio ao mundo

para me fazer voltar para a realidade. Ele era a luz que eu estava necessitando.

Sempre fiz de tudo para cuidar muito bem dos meus filhos, tinha plano de

saúde, por causa da empresa em que Lúcio trabalhava, e eles sempre foram ao

médico/pediatra, dentista e iniciaram a vida escolar no tempo certo, mesmo com

todas as dificuldades cotidianas.

Logo depois do nascimento do Lucas, iniciei um processo de

adoecimento. Tinha um problema na garganta que só piorava, cheguei a ficar várias

vezes internada, pois não conseguia engolir nada. E passei por consultas com vários

otorrinolaringologistas.

No dia do nascimento do Lucas, decidi que seria meu último filho, então, aos

24 anos de idade, fiz uma laqueadura. Continuei o tratamento com o

otorrinolaringologista, entre melhoras e recaídas. Estava cada dia mais estressada,

com meus filhos e as obrigações conjugais; não via mais motivos para continuar

casada.

13

Ribanceira de rio. Encosta íngreme não coberta de vegetação; escarpa. Despenhadeiro, precipício. Ravina entalhada em certos cones vulcânicos. (Disponível em: <http://www.dicio.com.br>. Acesso em: 24 jul. 2012.)

61

Era constantemente agredida verbalmente por Lúcio, que nunca me ajudava

com as crianças ou qualquer serviço doméstico. Percebi que continuava sozinha,

não tinha com quem contar. Às vezes, me sentia cansada de lutar, tinha a sensação

de que estava carregando um fardo muito pesado.

Tinha desistido de muitas coisas, principalmente de ser mulher, de ser feliz,

de amar e ser amada, de viver. Estava gorda, doente, envelhecida e cansada. Em

consultas ao médico, fui diagnosticada com um problema de origem emocional, que

necessitava urgentemente de um psicólogo.

Então, não falei nada em casa e fui em busca da cura. Tinha medo do

preconceito das pessoas, de pensarem que eu estava “louca”. Entretanto, encontrei

dificuldade de iniciar o tratamento, devido ao plano de saúde empresarial na época

não ter cobertura para tratamento psicológico.

Mais uma vez, recorri aos amigos e ao conversar sobre o problema com

uma cliente do salão de beleza em que estava trabalhando como manicure e

pedicuro, ela se disponibilizou a me atender em seu consultório psicológico.

Quando cheguei ao consultório, não sabia o que falar, não entendia o motivo

do encaminhamento do médico, para o tratamento psicológico, se meu problema de

saúde era na garganta. Fui apenas a quatro sessões e desisti, pois tinha que

trabalhar.

A partir daí, consegui voltar pra vida. Pois, na verdade, com o tratamento

psicológico, eu desvendei minhas reais dificuldades, mas talvez, pela primeira vez

na vida, eu não tinha coragem para encarar os fatos e mudar a situação que me

fazia muito mal. Tinha meus filhos, que influenciavam as minhas escolhas, pois os

colocava acima de tudo.

Aquela vida não me satisfazia, tinha direito de buscar a minha felicidade.

Contudo, meus filhos tinham o direito de conviver com o pai. Eu sabia muito bem

como era a vida sem referências, sem pai e mãe, sem família. Além de toda a carga

religiosa que me fazia acreditar em parte na perseverança, no perdão e na família

“tradicional”.

Esse foi o grande conflito que perdurou por muito tempo, fazendo com que

ocorresse um adiamento da minha vida como mulher livre e com direito de buscar

melhores condições de existência. E aí iniciei uma briga interna a superar.

Ao chegar ao meu limite, percebi que voltar a estudar e trabalhar poderia

possibilitar uma vida melhor para mim e meus filhos. Nesta busca, deparei-me com

62

uma nova exigência do mercado de trabalho, o ensino médio completo, a exigência

mínima para trabalhar nas empresas do PIM.

Voltei a pensar nos estudos e, no início do ano de 2001, resolvi voltar a

estudar, matriculei-me para terminar a 8a série do ensino fundamental, e quiçá o

ensino médio, para conseguir trabalho em uma fábrica e ajudar nas despesas da

casa.

Nesse período, eu não tinha roupas para sair de casa, andava sempre com

a mesma roupa e um chinelo de dedo, por causa do excesso de peso e da falta de

dinheiro. Mesmo assim, fui buscando estratégias de sobrevivência, além de

manicure, vendia cosméticos, fazia bolos para vender na porta da minha casa, etc..

Minha vida começou a mudar, em todos os sentidos; parte do problema de

saúde sumiu, voltei a cuidar de mim. Aquela menina alegre e vaidosa começou a ser

chamada à vida novamente, agora uma mulher, que tinha esquecido como é bom

viver, sentir-se viva.

E, aos 27 anos, terminei o ensino fundamental e me matriculei no ensino

médio, porém, por causa da idade, não fui aceita no ensino regular. Novamente, só

me restou o ensino na modalidade acelerado. Aos 28 anos, conclui o ensino médio.

Nesse período, eu também já estava separada de Lúcio, pois a família dele não

acreditava que eu estivesse realmente estudando e começaram as críticas e

calúnias.

Até um dia em que minha sogra me disse: “Papagaio velho não aprende a

falar, tu tá querendo é encontrar homem pra te comer, quando meu filho descobrir e

encher tua cara de pancada, e tu for para a delegacia das mulheres, eu vou abrir a

minha boca...”.

Fiquei muito chocada com a situação, pois ela falou na frente de várias

pessoas. Meu marido ficou calado e quando chegamos em nossa casa, ele quebrou

minhas coisas. Ele preocupava-se com o que as pessoas iriam comentar e, em

momento algum, me defendeu das calúnias de sua família.

Naquele dia, confirmei que não possuía um marido, um companheiro, vi que

ele não entendia a importância que os estudos tinham na minha vida. Ele não me

conhecia, não acreditava em mim, não valorizava todo o esforço que tinha feito até

aquele momento para ajudá-lo. Na verdade, eu continuava sozinha, e não tinha

mesmo com quem contar. Então, pedi que ele saísse da minha casa, e continuei

sozinha, com meus filhos. Optei por continuar estudando e pedi a separação.

63

No ano de 2002, terminei o ensino médio com 28 anos. O difícil era, tarde da

noite, descer a escada que dava acesso à minha casa. O barranco no meio da mata,

que mencionei anteriormente, foi se transformando em uma escada de 76 degraus e

continuou na mata, já tinha luz elétrica, mas insuficiente para realizar a cobertura do

território. Era um lugar perigoso e sem policiamento. A escada era ponto de venda e

consumo de drogas, “a boca”.

Em 2004, uma equipe da Prefeitura de Manaus foi até a minha casa para

realizar cadastramento para o Programa Bolsa-Família14. Como eu não estava,

minha vizinha informou à equipe a situação em que eu vivia: trabalhadora informal e

separada, três filhos, com vacinação em dia, matriculados e frequentando a escola

pública. Ou seja, tinha o perfil e atendia às condicionalidades do programa.

A equipe, então, deixou a lista de documentos necessários para o

cadastramento com a própria vizinha. Como eu estava dentro dos critérios

necessários para ser beneficiária do Programa Bolsa-Família, deixei cópia dos

documentos e ela mesma realizou o cadastro.

Pela primeira vez, fui incluída em um programa social do governo federal, e

depois de alguns meses passei a receber R$ 120,00 por mês. Naquele momento,

era a minha única renda fixa. O dinheiro me ajudava com as despesas de

alimentação, pois, mesmo trabalhando como manicure, não auferia o suficiente para

a minha sobrevivência.

Sabia da existência desse programa e até mesmo de outros, do governo

estadual e do municipal, mas nunca tinha ido a uma secretaria para inscrever-me

para receber qualquer outro benefício. Sempre pensei que era um desrespeito para

com as pessoas terem que ficar noites em filas para conseguir “ajuda” do governo.

14

O maior e mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil. O Bolsa-Família nasce para enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que é o de combater a fome e a miséria, e promover a emancipação das famílias mais pobres do País. Através do Bolsa-Família, o governo federal concede mensalmente benefícios em dinheiro para famílias mais necessitadas. Bolsa-Família pauta-se na articulação de três dimensões essenciais à superação da fome e da pobreza: promoção do alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda à família; reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de Saúde e Educação, por meio do cumprimento das condicionalidades, o que contribui para que as famílias consigam romper o ciclo da pobreza entre gerações; coordenação de programas complementares, que têm por objetivo o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários do Bolsa-Família consigam superar a situação de vulnerabilidade e pobreza. São exemplos de programas complementares: programas de geração de trabalho e renda, de alfabetização de adultos, de fornecimento de registro civil e demais documentos. O Bolsa-Família integra o Fome Zero, que visa assegurar o direito humano à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome. (Disponível em: <www.mds.gov.br/programas/transferencia-derenda/>. Acesso em: 25 maio 2012.)

64

Às vezes, não conseguia trabalhar, pois não tinha com quem deixar meus

filhos, não podia pagar alguém e não havia creches públicas para deixá-los. No

bairro, a escola mais próxima ficava há aproximadamente 30 minutos da minha casa

e cada criança era matriculada em um horário: Lucas pela manhã, Thayanne no

intermediário e Thaynah à tarde, ou seja, era o dia todo levando e pegando criança

na escola.

E, assim, manter meus filhos na escola pública era um verdadeiro sacrifício.

Além da distância, sempre tive problemas relacionada à qualidade do ensino

recebido, principalmente por meus dois filhos menores, pois eles eram

considerados, pelos professores, crianças com índice de aprendizagem superior ao

dos colegas, e por isso estavam sempre repetindo o conteúdo.

A turma não acompanhava o desenvolvimento deles, e a escola não podia

fazer nada, por causa da idade. Minha filha mais velha tem, até hoje, problemas de

aprendizagem e, na época, a escola também não podia fazer nada. Ela sempre foi

encaminhada para a série seguinte, devido à escola não reprovar, por exigência do

Ministério da Educação e Cultura.

Mesmo assim, cumpria com as condicionalidades, pois elas já faziam parte

da minha rotina e me transformei em estatística de atendimento do programa.

Como não tinha dinheiro para pagar uma pessoa para me ajudar com as

crianças, pensei em pedir a ajuda para minha mãe, mas ela não aceitou cuidar dos

meus filhos. Porém, na tentativa de ajudar, pediu para minhas duas irmãs mais

novas que viessem morar comigo e cuidassem dos meus filhos, enquanto eu

trabalhava e estudava. Como elas também não tinham onde morar, eu aceitei e,

mesmo sem condições, pagava para elas, pois era também, uma forma de ajudar

minhas irmãs.

Porém, depois de um tempo, fiquei sabendo que elas batiam em meus

filhos, faziam várias coisas escondidas, em minha casa; levavam bebidas, drogas,

homens, torturavam meus filhos para que não me contassem nada. Meus vizinhos

sabiam e, um dia, acabei descobrindo, então pedi que as duas fossem embora da

minha casa, e voltei a ficar sozinha com meus filhos.

Então, saí do salão e comecei a fazer manicure em domicílio, pois teria

autonomia nos meus horários, para conciliar com a escola das crianças. Pedia ajuda

para minha vizinha e aos amigos, pois descobri que jamais poderia contar com

minha família. Mas, na verdade, que família?

65

Meus irmãos têm uma vida de sofrimentos, e ainda passam por diversas

dificuldades. Silvanes é analfabeta, tem quatro filhos criados por terceiros. Depois

que minha mãe foi para o interior, Silvanes passou a ser violentada constantemente

por meu padrasto. Ela nunca foi à escola, assumiu meu lugar nos trabalhos

domésticos e no cuidado com as outras filhas que minha mãe teve no interior.

Rosimar tem quatro filhas, vive uma vida de brigas, violência doméstica e

tráfico de drogas. Nunca tive muito contato com ela, mas sei das suas dificuldades.

Terezinha, minha mãe, também não tem casa própria, de tempos em tempos, com

os filhos, ou sozinha, às vezes, trabalha como doméstica, em outras, com vendas.

Sei que ela se sente desprezada por mim, mas infelizmente não tenho

condições financeiras para ajudá-la, como ela acredita que eu deveria. Também não

me sinto obrigada a ter que subsidiá-la.

Os outros irmãos vivem na linha da pobreza e da criminalidade. Os dois

irmãos homens estavam presos por tráfico de drogas. As três irmãs mais novas só

estudaram até a 5a série do ensino fundamental, tiveram filhos, e as crianças sofrem

com a realidade de violência doméstica, prostituição e drogas. Algumas crianças

foram entregues a outras famílias.

Mesmo Terezinha não tendo casa própria, ela nunca quis morar comigo

porque não gostava da forma como eu entendia as coisas, pois discordava de

muitas escolhas dela. Conforme estudava, mais percebia que não pertencia àquela

realidade, e que, de alguma forma, o abandono foi uma forma de me proteger da

violência social que sobrepujava aquela família.

O tempo passou, eu terminei o ensino médio e voltei a trabalhar como

manicure em atendimento domiciliar. Lúcio me ajudava com muito pouco, se antes

eu tinha R$ 500,00 do salário dele, agora ele me dava R$ 100,00, R$ 200,00. Tal

situação pressionava-me a trabalhar muito.

Um dia, em sala de aula, ainda no ensino médio, o professor perguntou se

alguém tinha vontade de fazer um curso superior. Falei que queria ser assistente

social e ele perguntou: Por quê? E eu disse: Quero ter conhecimento, quero

conhecer, aprender e contribuir com as pessoas que necessitam de orientações de

uma assistente social. No momento não tinha noção da grandiosidade dessa

profissão, apenas recordava da profissional que me atendeu quando fiquei doente.

Um ano depois, uma amiga que estudou comigo no ensino médio e estava

na sala de aula, quando falei do meu sonho, me encontrou por acaso na rua e me

66

convidou para fazer Serviço Social, em uma universidade particular, curso que ela já

frequentava. Sem dinheiro, com uma realidade de muita luta, cansada, não queria

mais ilusões, não queria mais arriscar, me encontrava ferida e mergulhada em

sofrimentos. Mas ela insistiu bastante, e resolvi tentar.

2.5 A Universidade

No mistério do sem-fim equilibra-se um

planeta. E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um

canteiro; no canteiro uma violeta, e, sobre ela, o dia

inteiro, entre o planeta e o sem-fim, a asa de uma

borboleta.

(Cecília Meireles)

Em 2004, com muito esforço e com a ajuda da minha amiga (Rocineia), fiz o

processo seletivo do Centro Universitário Nilton Lins, mas, quando vi meu nome na

listra dos aprovados, senti que tudo estava tão próximo e, ao mesmo tempo, tão

distante. Não tinha dinheiro para fazer a matrícula e pagar as mensalidades. Então,

lembrei-me de um dinheiro que minha mãe havia recebido e mandado guardar no

banco, mas ela iria necessitar desse dinheiro, em breve.

Eram aproximadamente R$ 400,00, que estavam numa poupança. Peguei o

dinheiro e fiz a matrícula, minha amiga continuou me ajudando, me deu roupas,

sapatos e carona de moto (estava com 30 anos de idade).

Todos os dias, andava aproximadamente 30 minutos para chegar à casa

dela, e de lá íamos juntas para a universidade. Rocineia também me ajudava com as

cópias do material didático, e me repassava os textos já usados. Paguei o dinheiro,

para minha mãe, depois que terminei o curso de Bacharelado em Serviço Social.

Nunca vou me esquecer do primeiro dia de aula (primeiro semestre de

2004), pois fiquei muito emocionada. Porém, tinha a certeza de que jamais teria

condições financeira e intelectual para continuar e romper com o ciclo da pobreza e

do analfabetismo enraizado em minha família.

Porém, um mês em sala da aula foi o suficiente para entender que não podia

abrir mão, mais uma vez, do meu sonho. A cada dia de aula me apaixonava pela

67

profissão e a vontade de continuar me fez distribuir panfletos nos semáforos para

conseguir custear o primeiro semestre. Cheguei a levar para a universidade os meus

três filhos. Tinha que pegar três ônibus, para ir e para voltar, mas não me importava

com isso.

Minha amiga já estava no segundo semestre e eu conseguia ajudá-la em

alguns trabalhos. E ela sempre me dizia: “Você é inteligente, você vai longe”. Mas eu

não acreditava nisso, porém queria continuar a qualquer custo. Às vezes, deixava

meus filhos sozinhos em casa. Outras vezes, pedia para uma vizinha cuidar.

Como eu não tinha computador, era muito difícil fazer os trabalhos, visto que

não podia passar o dia inteiro na biblioteca da universidade e, às vezes, eu escrevia

a mão e pedia para um rapaz que conheci no ensino médio para digitar.

Esse rapaz me ajudou muito, foi quem me apresentou um computador, criou

meu primeiro e-mail, ensinou-me a utilizar a Internet. Às vezes, ele ficava até tarde

da noite, digitando os meus trabalhos, que ditava pelo telefone. Então, ele levava

para o seu trabalho e imprimia, escondido do seu chefe, assim como copiava e

encadernava livros da biblioteca, tudo isso escondido.

Foi esse amigo que me apresentou, no segundo semestre, ao Fundo de

Financiamento Estudantil (Fies)15, pela Caixa Econômica Federal. Essa seria a única

condição de concluir o curso de Serviço Social. Consegui o financiamento parcial de

70%, mesmo assim ficava difícil pagar a outra parte, que correspondia, naquele ano,

a R$ 80,00. Às vezes, usava o dinheiro do Bolsa-Família para pagar esse valor.

Esse empréstimo será pago até setembro de 2013.

No período em que consegui o financiamento, a Caixa Econômica não

estava exigindo o fiador, mediante uma liminar, por isso consegui com mais

facilidade, mas logo depois voltou a ser necessário. Como não conhecia ninguém

que ganhasse, no mínimo, o dobro do valor da mensalidade da faculdade, pouco

15

O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) é um programa do Ministério da Educação destinado a financiar prioritariamente estudantes de cursos de graduação. Para candidatar-se ao Fies, os estudantes devem estar regularmente matriculados em instituições de ensino não gratuitas cadastradas no programa, em cursos com avaliação positiva no Sinaes. O Fies é operacionalizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Todas as operações de adesão das instituições de ensino, bem como de inscrição dos estudantes, são realizadas pela Internet, o que traz comodidade e facilidade para os participantes, assim como garante a confiabilidade de todo o processo. (Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=198&Itemid =303>. Acesso em: 16 jul. 2012)

68

mais de R$ 400,00, esse amigo conseguiu falsificar o contracheque dele e foi meu

fiador.

Então, continuei sendo manicure e vendendo cosméticos. No 4o período, já

tinha certeza da dimensão e importância da profissão, mas estava muito preocupada

com a qualidade do ensino que estava recebendo. Resolvi mudar de universidade, e

fui para o Centro Universitário do Norte (Uninorte). Porém, por causa da diferença de

grade curricular, estudei no período da tarde e da noite, para completar os créditos e

concluir o mais rápido possível.

Nesse mesmo período, consegui um estágio remunerado (R$ 300,00), em

um projeto do governo do estado (Projeto Cidadão), no período da manhã, das 8 às

12 horas. Então, para conseguir conciliar toda essa nova rotina, acordava às 4 horas

da manhã, para fazer todas as minhas tarefas domésticas e deixar tudo pronto para

meus filhos. Sabia que eles sentiam a minha ausência e sofriam muito com esse

processo, mas eu não tinha escolhas. Era a nossa sobrevivência.

Como não tinha computador, aproveitei para comprar um, parcelado em seis

vezes. No dia em que iniciei o estágio, percebi que não seria fácil continuar. A

assistente social, que seria minha supervisora de campo, não quis ficar comigo,

porque não tinha prática em digitação, então, ela me encaminhou para outra. Logo

depois, passei a ser estagiária de uma psicóloga maravilhosa, chamada América.

Nossa, ela me ensinou tanto!

Naquele momento, percebi que o mercado de trabalho é cruel com quem

não tem a qualificação exigida, por isso procurei fazer um curso básico de

informática, pois precisava garantir espaço de trabalho.

Fiquei no estágio até o último período e foi uma sólida experiência, tanto

profissional como pessoal. No campo de estágio comecei a entender que, às vezes,

o discurso não condiz com a prática de muitos profissionais e isso me deixa muito

revoltada, pois via profissionais atendendo mal as famílias; fazendo vistoria nas

casas para saber com que a família gastou o dinheiro recebido do projeto. Sentia o

distanciamento entre os profissionais e as famílias, estas eram tão próximas a mim,

e não sabia ao certo por quê.

Nesse período, tinha uma amiga, que morava no mesmo bairro, era

dependente química, vivia sozinha e quando não estava drogada, ajudava-me nas

atividades domésticas. O semestre foi de muita luta, assim como os seguintes.

Apesar de todos os obstáculos e contratempos consegui finalizar minha graduação.

69

Durante o curso, conheci várias pessoas maravilhosas, que também

contribuíram de forma positiva na minha vida. Foi na instituição que tive a honra de

conhecer Sara, Amanda, Joelma e a professora Lilian Gomes. Essas pessoas

acreditavam que eu tinha um potencial e me premiaram com sua amizade. Elas me

fizeram entender que, se não cheguei antes ali, foi por falta de oportunidade.

Às vezes, penso que a vida tentou me compensar, de alguma forma, quando

colocou pessoas maravilhosas no meu convívio. Sempre fui muito agradecida por

isso. Também acredito que a própria vida tentou acelerar alguns processos vividos,

pois uns dos motivos que me fizeram trocar de universidade foi justamente o tempo

do curso, troquei três anos e meio por quatro anos.

Naquele momento, havia discussões a respeito da graduação com um

semestre a menos. Então, na nova faculdade, eu não teria mais essa preocupação.

Enganei-me! No último ano de curso, o Centro Universitário do Norte resolve

diminuir o tempo de curso e acabei ficando com os três anos e meio, novamente.

2.6 A Assistente Social

No dia 9 de agosto de 2007, aos 33 anos de idade, consegui chegar à minha

colação de grau. Aquele momento, para mim, deveria ser muito festejado, mas, sem

condições financeiras, paguei apenas a colação de grau, pois não tinha dinheiro

para custear o baile, as fotos e comprar roupas adequadas para que meus filhos

participassem.

Terezinha, minha mãe, estava em Manaus e com o pouco dinheiro que

tinha, priorizei a participação dela. Levei-a para minha colação de grau. Descrever

aquele momento não é fácil, ela chorou do início ao fim, não teve condição alguma

de me entregar o diploma.

Encontrava-me em estágio de felicidade plena. Era a concretização de um

sonho e da oportunidade de crescimento qualitativo. Nesse momento, no meu

entorno, estava a minha família do coração representada por Cilene, que já era

formada em pedagogia, e Gracineia, estudante de ensino médio.

Na família biológica, de oito irmãos, sou a única, até a presente data, a

concluir o ensino fundamental. Acredito que sou a única, de toda a minha família

biológica/desconhecida, a sentar-me na cadeira de uma universidade. Talvez jamais

70

consiga explicar com exatidão o que isso significa para mim e como tudo isso mudou

a minha vida. Percebi que não foi apenas o grau de instrução que mudou.

No final de 2007, agora devidamente registrada no conselho, sou assistente

social. Juntamente com a graduação, surgiram inúmeras dúvidas e inseguranças.

Uma delas consistia em como conseguir emprego, visto que não é tão fácil para

alguém sem experiência, sem sobrenome e/ou indicação. A outra pairava sobre a

minha habilidade/competência para desenvolver a prática profissional da melhor

forma possível.

Durante toda a graduação, sempre fiquei muito preocupada com a qualidade

do ensino recebido, pois ouvia comentários negativos sobre o ensino superior

privado em Manaus. Diante dessa realidade, a cada dia, meus questionamentos

tornavam-se mais densos, e superavam as dúvidas iniciais.

Assim, só me restava uma certeza: Mesmo que não conseguisse um

emprego, ou que não pagasse a Caixa Econômica Federal, meu sonho estava

realizado, e de certa forma é mais do que um sonho.

2.7 O Emprego

Meu primeiro emprego como assistente social veio praticamente um mês

após a conclusão da graduação, pois fui contratada pelo mesmo projeto em que

estagiei. Aprovada na entrevista passei a ser assistente social do Projeto Cidadão,

criado pelo governo do Estado do Amazonas. O trabalho tinha como objetivo atender

famílias em situação de vulnerabilidade social residentes em áreas de risco na

cidade de Manaus/AM.

Recebia salário de R$ 2.300,00, por mês, para trabalhar das 8 às 18 horas.

Minha conta bancária nunca tinha recebido um terço desse valor e senti uma grande

alegria, pois isso gerou sementes de mudança. Percebi que estava entrando em

outro estágio de minha vida e esse seria bem diferente. Com esse salário, fiz parte

do acabamento e o banheiro da minha casa; busquei oferecer melhor qualidade de

vida e educação para meus filhos.

Porém, eles ainda tinham que conviver com minha ausência diária, pois,

muitas vezes, quando eu chegava em casa, já estavam dormindo e, quando eu saía,

ainda não estavam acordados. Assim, controlava tudo pelo telefone. Contudo, na

71

medida do possível, pagava uma pessoa para me ajudar com as atividades

domésticas; mesmo assim a vida ainda era muito difícil. A vontade de mudar a

infância dos meus filhos fortalecia-me a cada momento.

Nesse projeto, tive a oportunidade de conhecer e aprender muitas coisas

importantes e necessárias, que talvez só a prática profissional pudesse me

possibilitar. Foi nesse cotidiano de trabalho que questionamentos diversos sobre o

fazer profissional passaram a me inquietar.

Nesse local, a correlação de forças, de poder e, infelizmente, a cultura do

favor, eram predominantes e me fazia entender na prática as contradições do

sistema e da própria profissão, o que me instigava a buscar mais conhecimento

histórico, teórico, metodológico e prático para responder efetivamente às demandas.

Em 2008, no turno noturno, iniciei um curso de Pós-graduação Lato Sensu,

com Especialização em Ética e Política, no Serviço de Ação, Reflexão e Educação

Social (Sares). Essa pós é direcionada para as pessoas que fazem parte dos

movimentos sociais. É uma parceria entre a igreja católica, a Universidade Federal

do Amazonas e a Universidade Federal de Pernambuco.

Em 2009, devido a problemas de saúde fiz uma cirurgia (histerectomia

abdominal total), e por causa de complicação na cirurgia, necessitava de três meses

de repouso, segundo prescrito pela médica. Porém, tinha plena consciência de que

não poderia ficar muito tempo sem trabalhar, devido ao meu enquadramento na

Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e as ameaças advindas do coordenador

do projeto. Por causa dessa realidade desumana, voltei a trabalhar com 15 dias de

convalescência, colocando minha saúde em risco.

Nesse período, uma grande amiga da faculdade (Sara), informou que a

universidade onde concluímos a graduação estava selecionando professores para

seu quadro de docência. Então, Sara incentivou-me a levar meu curriculum e

concorrer à vaga de professora universitária, mas eu não acreditei que minha amiga

estava pensando que eu poderia ser professora de ensino superior. Ela dizia que

sim, e eu que não! Mas reconheço que fiquei tentada com a ideia.

Depois de muitas dúvidas, coloquei duas cintas, para proteger bem a cirurgia

e, contrariando as orientações médicas, resolvi ir à faculdade. Mas, para tomar o

ônibus, teria que subir a escada de 76 degraus (Figura 5) que me dava acesso ao

bairro. Então, levei horas pra conseguir realizar essa proeza. Morava na zona norte

e a universidade estava localizada na zona sul.

72

Figura 5: Escada de acesso à parada de ônibus do Parque Florestal

Fonte: Sousa, J. G., 2011.

Submeti-me ao processo seletivo e foi aprovada pela banca avaliadora, que

me agraciou, ao dizer que eu tinha o dom para a docência, e, assim, passei a

desempenhar, também, a docência. Nunca imaginara que chegaria tão longe, mas

cada degrau alcançado me mostrava que a responsabilidade aumentava

gradativamente, juntamente com a vontade e a necessidade de mais conhecimento.

Quando adentrei na sala de aula, pela primeira vez, na turma do 4o período

do curso de Serviço Social. A disciplina de Política Social, pensei: “Não sou capaz,

não tive uma formação que me possibilitasse chegar até aqui, ainda tenho muito

para aprender. O que eu poderia ensinar àquela turma? ”.

Minha sorte foi que sempre gostei muito dessa disciplina, mesmo assim,

“matava um leão por dia”. Cada dia eu vencia uma luta interna; passava quase a

noite toda buscando livros e me preparando para as aulas, pois ainda trabalhava o

dia inteiro no Projeto Cidadão, e, mais uma vez, estava inserida na rotina tripla de

trabalho.

O exercício diário na docência levou-me a refletir sobre a necessidade de

manter a qualificação profissional, mesmo sem ter planejado estar professora,

incorporei e trouxe essa vivência como prioridade na minha formação. Cada dia que

73

materializava minhas aulas sentia-me uma pessoa completa; a possibilidade de

trocar conhecimento, mesmo que fosse o mínimo possível, me encantava a cada

momento.

E o mestrado foi se tornando minha mais nova necessidade, porém, no meu

entendimento, isso poderia demorar muito tempo, visto que não podia deixar de

trabalhar para estudar. Sabia que não seria fácil, principalmente pelo fato de ter

estudado em universidade privada (sem experiência em pesquisa, etc.). Mas a vida

novamente me mostrou alternativas.

2.8 O Mestrado

Em 2009, por um amigo (Josafá), fiquei sabendo da existência da Fundação

Ford16, busquei informações no site da instituição, observei que teria que elaborar

um projeto de pesquisa, bem como outros pré-requisitos. Não sabia, ao certo, como

iniciar a produção desse documento. Não disponibilizava de tempo durante o dia,

então, passei a acordar todos os dias às 4 horas da manhã e tentava ler e escrever

alguma coisa para o projeto de pesquisa.

Encontrar um tema não foi difícil, pois já havia pensado na questão da

assistência social desenvolvida pelo Estado do Amazonas direcionada às famílias

16

A Fundação Ford é uma organização privada, sem fins lucrativos, criada nos Estados Unidos para ser fonte de apoio a pessoas e instituições inovadoras em todo o mundo, comprometidas com a consolidação da democracia, a redução da pobreza e da injustiça social e com o desenvolvimento humano. Criada em 1936, a Fundação Ford já contribuiu com US$ 13,3 bilhões em doações e empréstimos para auxiliar a produção e divulgação do conhecimento, apoiando a experimentação e promovendo o aprimoramento de indivíduos e organizações. Atualmente, não possui ações da Companhia Ford e sua diversificada carteira de investimentos é administrada para ser uma fonte permanente de recursos para custear seus programas e suas atividades. O Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford foi introduzido no Brasil, em 2001, após estudo preliminar encomendado pelo Escritório do Brasil da Fundação Ford aos professores Luiz Alberto Oliveira Gonçalves (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e Marco Antonio Rocha (Fulbright do Brasil), que indicaram a Fundação Carlos Chagas como instituição brasileira a ser parceira do International Fellowships Program (IFP). O Programa IFP foi lançado, no Brasil, em contexto bastante peculiar, quando comparado ao cenário dos parceiros internacionais: intenso debate sobre ação afirmativa no ensino superior (graduação); pós-graduação brasileira institucionalizada, em expansão e adotando procedimentos de seleção e avaliação formalizados. Porém, enfrentamos, como os demais parceiros internacionais, os desafios de um sistema de pós-graduação que também privilegia segmentos sociais identificados com as elites nacionais, sejam elas econômicas, regionais ou étnico-raciais. Essas características contextuais orientaram a adequação do design e dos recursos na implementação do programa. (Disponível em: <http://www.programabolsa.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2012.)

74

consideradas em situação de vulnerabilidade social; o difícil foi sistematizar as ideias

e fundamentá-las.

A partir da minha experiência profissional e dos meus questionamentos a

respeito dos objetivos estabelecidos na proposta do Projeto Cidadão e do governo

estadual, que desenvolvia ação assistencialista e repressora às famílias atendidas,

uma vez que, na maioria das vezes, são usadas como população-alvo de políticas

eleitoreiras e massa de manobra.

Depois que consegui escrever sobre o assunto do meu interesse, fiz o

projeto e o enviei, junto com a documentação necessária, para a Fundação Carlos

Chagas, representante, no Brasil, da Fundação Ford. No mesmo período, fui

dispensada do Projeto Cidadão, pois o coordenador, ao saber que eu estava

trabalhando como professora universitária, concretizou a minha demissão.

Assim, fiquei trabalhando apenas na universidade. Como estava no meu

primeiro semestre, repassaram-me apenas duas turmas e o salário diminuiu de

forma considerável, chegando a auferir R$ 800,00 mensais.

Como decorrência dos acontecimentos, fui levada a tomar algumas

providências, no intuito de adequar-me à nova realidade. Continuei ministrando

aulas e esperando a resposta do processo seletivo da Ford. Tinha plena consciência

de que não seria facilmente selecionada, considerando o número de inscritos em

todo o território nacional.

Nessa conjuntura, pensei em um plano B e fiz inscrição como aluna especial

na disciplina do mestrado em Sociedade e Cultura, na Universidade Federal do

Amazonas (Ufam), no período da tarde e cursei.

Em setembro de 2010, durantes as aulas do mestrado, na Ufam, reencontro,

depois de 20 anos, uma pessoa que tinha sido muito importante para mim, no

passado (FV).

E nesse período de espera pela resposta da Ford, a correria do meu

trabalho, a disciplina do mestrado e a educação dos meus filhos, a vida resolveu me

mostrar que, às vezes, ela pode ser mais bonita, quando estamos ao lado de

pessoas especiais. Talvez existam anjos, e eles sempre estiveram ao meu lado, e

eu percebi apenas essa presença.

Em dezembro de 2009, recebi a resposta da Ford e, para minha total

perplexidade, eu estava entre os 77 selecionados e teria que viajar a São Paulo para

participar da segunda etapa eliminatória da seleção. Comecei a perceber que minha

75

vida poderia dar um grande giro, e que isso mudaria tudo para sempre. Eu sabia que

o esforço e risco eram imensos, mas resolvi tentar.

Cheguei a São Paulo, pela primeira vez, participei de todas as atividades

propostas pela Fundação Carlos Chagas e retornei a Manaus para aguardar a

resposta definitiva, que chegou no dia 24 de dezembro de 2009. A emoção tomou

conta de mim, completamente, pois assim estava escrito no meu e-mail: VOCÊ É

BOLSISTA ELEITA DA FORD FOUNDATION FELLOWSHIPS PROGRAM! Pela

primeira vez, na vida, eu realmente tive a certeza de que tudo valera a pena.

No início de 2010, necessitava estudar para conseguir um bom resultado

nos processos seletivos de que participaria. Foi aí que resolvi alugar minha casa

para morar mais perto da faculdade onde trabalhava, pois precisava ganhar tempo,

visto que só seria bolsista plena da Ford se fosse aprovada em um programa de

pós-graduação. Teria que me submeter a quatro seleções, que correspondem ao

número de oportunidades no decorrer do ano.

A Ford também ajudaria, no processo denominado pré-acadêmico. Isso me

garantia livros, aulas de inglês e português, as viagens e estadas nas cidades onde

faria as provas. Escolhi as universidades e comecei a estudar as bibliografias

sugeridas.

Na universidade em que trabalhava, fui chamada para assumir 40 horas

semanais, em sala de aula, (já estava ganhando quase R$ 4 mil). Como ainda não

podia parar de trabalhar, tentei conciliar tudo e minha rotina tornou-se: estudar

Inglês, português e as literaturas indicadas para os processos seletivo da Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do SUL (PUC-RS), da PUC-RIO, PUC-SP e

Universidade de Brasília (UNB) (todas escolhidas por mim), cuidar dos meus filhos,

ajudá-los com as tarefas escolares, fazer o trabalho de casa, e trabalhar na

universidade no período da tarde e da noite. A carga estava pesada, mas a vontade

de passar foi maior.

Na verdade, acredito que não tinha a noção exata da mudança que estava

prestes a acontecer em minha vida. Sabia que era uma oportunidade única e que,

por isso, teria que me esforçar, pois muitas pessoas gostariam de estar no meu

lugar. Aquela seria a minha especial oportunidade para cursar o mestrado.

Tive muito apoio de amigos próximos, porém, fui muito criticada, por pensar

na possibilidade de deixar meus filhos com o pai, algumas pessoas me diziam que

estava louca, que meus filhos, na fase da adolescência, necessitavam da minha

76

presença em suas vidas, que essa presença era mais importante do que qualquer

outra coisa.

Mas, em nenhum segundo pensei em desistir; no fundo sabia que meus

filhos poderiam sofrer muito com a mudança, contudo, acreditava na força individual

de cada um, sabia que eles, no futuro, entenderiam a minha opção.

E, assim, fiz a primeira prova na PUC-RS e fui aprovada. Não acreditei no

resultado. Foi uma mistura de alegria, autoconfiança e alívio que demorei bastante

tempo para me recuperar da explosão de emoções. Depois, passei na PUC-SP,

minha primeira opção. Então, a felicidade estava completa.

O ano de 2010 trouxe-me muitas alegrias e emoções. Estava com o coração

transbordando e minha vida pessoal, pela primeira vez estava maravilhosa. Depois

de tantos desencontros, aquele anjo ora reencontrado me apresentava a cada dia à

felicidade, e, em aproximadamente cinco meses de convivência, passei por todas as

fases nunca antes vividas, fui criança, adolescente, jovem e uma mulher adulta

muito feliz, estado que nunca pensei que chegaria a conhecer um dia.

Mas, como nem só de alegrias vive o homem, logo vieram às renúncias: na

universidade em que trabalhava, fui vítima de assédio moral, e obrigada a pedir

minha conta, mas não tive medo, e assim o fiz. Vendi todas as minhas coisas e

como minha casa já estava alugada, só me restava entregar o apartamento onde

morava com meus filhos, depois que eles fossem para a casa do pai.

E, nesse momento, o mais difícil seria deixá-los. Quem cuidaria deles? Meu

filho Lucas é asmático e muito alérgico, necessitando de muitos cuidados. Como

ficaria a escola deles, as tarefas e todos os cuidados tão necessários ao bem-estar

de cada um?

Na semana em que estive em São Paulo/SP, para fazer a prova da PUC,

perdi a primeira eucaristia da minha filha, e ela me disse assim: Mãe, tu não vai estar

presente no momento mais importante da minha vida? Eu tentava disfarçar de todas

as formas e naturalizar a situação; não queria que ela percebesse que meu coração

estava em pedaços e, de certa forma, muito culpado.

Eu, mais do que ninguém, sei o que é não ter a mãe por perto para

compartilhar esses momentos importantes, e não queria fazer o mesmo com meus

filhos. No entanto, sabia que os próximos dois anos mudariam para sempre as

nossas vidas.

77

Assim como também sabia a falta que faria aquela pessoa que alegrou a

minha vida tão intensamente. Mais uma vez a vida estava nos separando. E a

distância o tirou de mim. Tentava obter forças de onde não havia para enfrentar a

situação e sofrer menos.

Sabia que, ao retornar para Manaus/AM, seria necessário recomeçar, ou

seja, minha vida, em qualquer território, seria retomada após o mestrado. Meus

filhos poderiam ser os mais prejudicados com minha ausência, porém, à vontade e a

necessidade de enfrentar mais esse desafio foram maiores do que o medo.

Fiz muita força para não deixar transparecer minha aflição e tentei

demonstrar para meus filhos que estava bem, firme e forte, mas meu coração estava

tão desprotegido e abandonado que evitava falar sobre o assunto com medo de

fraquejar.

E, assim, saí de Manaus no dia 1o de fevereiro de 2011, depois de uma

semana de muito choro, durante as noites, quando estava sozinha, com o coração

do tamanho de um grão de areia, cheia de saudade, mas com muita vontade de

continuar e começar tudo novo de novo. Entendi que recomeçar é simplesmente

acordar todas as manhãs disposta a enfrentar um novo dia.

Cheguei a São Paulo para ingressar no Programa de Pós-graduação em

Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dei início ao

primeiro semestre do mestrado, ainda sem muita noção da mudança ocorrida e com

bastante expectativa a respeito da nova vida que se iniciava. Logo, percebi que

poucas assistentes sociais de Manaus haviam chegado a essa universidade, e

entendi a importância do momento e a transformação do meu futuro, a partir da

oportunidade.

Durante os semestres de 2011, com o apoio da minha orientadora (doutora

Maria Carmelita Yazbek), fiz as disciplinas obrigatórias, me preparei para a

qualificação e para ouvir as observações sobre o meu projeto de pesquisa.

No entanto, no momento da qualificação, em março de 2012, a banca,

composta pelas professoras doutoras Aldaíza Sposati e Maria Lúcia Martinelli,

direcionou-me para um novo estudo. A partir do memorial apresentado, nesse novo

estudo, eu seria meu objeto da pesquisa.

E novamente estava diante de mais um desafio: trabalhar com história oral e

escrever detalhadamente a minha história de vida, intitulando, assim, a minha

dissertação. E aí era tudo novo de novo.

78

O desafio foi aceito, por isso estou aqui, com muito orgulho, finalizando, até

este momento, a história de vida tão real e comum, a milhões de brasileiros(as),

desconhecida ou desvalorizada.

Diante do exposto, acredito que minha identidade já seja conhecida, mesmo

que não a tenha revelado explicitamente durante os relatos. E, assim, acredito que é

chegada a hora de confirmar o nome da personagem protagonista desta história

real, que, com muita alegria e medo, aceitou mais esse novo desafio.

Contudo, penso que é importante falar um pouco de sobre a minha pessoa

na atualidade, exatamente no momento em que finalizo esta parte da minha história,

pois ainda terei muita história de vida para contar.

Joselene Gomes de Souza. Considero-me uma pessoa muito feliz e

abençoada, extremamente responsável, amiga e muito enjoada, além da

personalidade forte e, devido a essa característica, alguns problemas de

relacionamento são frequentes, pois muitas pessoas não estão acostumadas a

conviver com indivíduos de personalidade forte.

Acredito também que minha experiência de vida contribui imensuravelmente,

de forma benéfica ou não, para tudo o que faço. Sei também que consigo enganar

muito bem as pessoas, pois elas sempre dizem que sou uma mulher forte e

corajosa, mas, na verdade, acredito que sou apenas uma sobrevivente.

E para sobreviver, tenho que prosseguir, apesar do medo, da insegurança e

da falta, pois, como diz o poema de Cecília Meireles: “A vida só é possível

reinventada”, e foi reinventando essa vida de exclusão, vulnerabilidade e carência de

tudo que consegui buscar alternativas e enxergar nos lugares mais improváveis

oportunidades de crescimento.

Para me reinventar, precisei entender que tudo dependia das minhas

escolhas, e errei muito, porém acertei também, no entanto, quando acertei, perdi, e

quando ganhei fiquei sem, mas hoje sei que, diante de todas as perdas, sempre

ganhei muito e posso dizer que, mesmo com as incertezas e desafios, viver é

arriscar e o risco é o cotidiano.

Mas escrever minha história de vida foi apenas a primeira parte do desafio,

pois, para completar os objetivos deste trabalho, foi me dado uma segunda missão.

Deveria encontrar outra mulher amazonense, nascida depois de mim, para conhecer

sua história de vida, narrá-la e apresentar-lhes. E assim segue a história de Apurinã.

79

3 ESTADO DE DIREITOS: PERSONAGENS DIFERENTES E UMA HISTÓRIA

SEMELHANTE, 15 ANOS DEPOIS

3.1 A Origem: O Nascimento de uma Guerreira

Todas as famílias felizes se parecem entre

si; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.

(L. Tolstoi)

A década de 1980 foi marcada por profundas transformações, momentos de

avanços, retrocessos e lutas sociais. Década importante no que diz respeito às

conquistas de direitos e das lutas sociais em todo o País. Decênio marcado também

pelo recrudescimento da pobreza e piora dos índices de desigualdades sociais no

Brasil. (SARTORI, 2012, p. 61).

Com a estagnação econômica e a alta da infração, o emprego formal tem

quedas alarmantes, motivado pela desvalorização dos salários e aumento da

informalidade, resultando em altos índices de pobreza, analfabetismo e trabalho

infantil, em nível nacional, como informa Sartori (2012, p. 61 apud HENRIQUE,

1998, p. 85):

Com a deterioração das condições de emprego e renda, houve um crescimento absoluto e relativo da pobreza nessa década, especialmente no meio urbano. Foram expressivos os custos sociais associados à crise e ao ajuste econômico. Menor dinamismo econômico, piores condições ocupacionais e queda da renda passaram a condicionar a reprodução da pobreza, dificultando o recurso à utilização do trabalho de vários membros da família para a ampliação da renda e ampliando as demandas sociais.

Nesse processo de transformação, Sartori (2012) elenca que as discussões

sobre a política social ganham espaço, em todo o País, pois a população pobre e os

novos agentes sociais, politicamente organizados, representados pelos movimentos

sociais e sindicais, fazem ecoar a voz e as lutas por melhores condições de vida,

trabalho e democracia.

No entanto, a autora lembra que, paradoxalmente, existem outras lutas

urgentes, que podem deixar à margem a questão da política social, visto que outros

80

temas ganham mais visibilidade nesse período; entre eles, se destaca a discussão

sobre reforma agrária e dívida externa. Contudo, os novos movimentos sociais

(classe média, funcionalismo público, os profissionais autônomos), ajudam na

difusão dos valores democráticos.

Ainda segundo essa autora, é nesse momento que eclodem os movimentos

sociais ligados à igreja católica, os movimentos por demandas específicas, que

pressionam os governos eleitos em 1982, para efetivar as demandas emergentes,

sedentas de justiça social. Sartori (2012, p. 62) acrescenta que os partidos de

oposição, em um contexto de grandes lutas travadas, articulam as diretas já, que

validavam a democracia e o Estado de direitos sociais.

Com uma maior participação da população na área política, difundiu-se uma visão das políticas sociais como elemento estratégico na construção de uma sociedade democrática e justa. Estava colocada a nova agenda social – de transição – com um forte viés democrático, tendo como enfoque a descentralização e a melhor adequação dos gastos sociais. A partir de então, apostava-se numa nova estrutura e regime que combinassem desenvolvimento, expansão do emprego, aumento do nível salarial e políticas sociais universais e mais efetivas. (SARTORI, 2012, p. 62).

E é diante desse processo de transformação, e reivindicação pelas diretas

já, que, em 21 de abril de 1985, José Sarney foi confirmado como Presidente da

República, porém as propostas e os desafios para o novo presidente foram bem

maiores do que realmente conseguiu se efetivar, pois foram criados programas

emergenciais de combate à fome e à pobreza (SARTORI, 2012), para fazer “tudo

pelo social”, como mostra a Tabela 1, que traz um resumo do plano de governo do

Presidente José Sarney.

81

Tabela 1: Resumo do plano de governo do Presidente José Saney

Biênio 1985-1986

Plano Real

Plano de metas, concebido como

sustentação do crescimento e de

combate à fome

Política emergencial de alimentação

Desenvolvimento por meio do

programa nacional de alimentação

escolar (Programa de Suplementação

Alimentar - Pnae)

Criação do Ministério de Reforma e

Desenvolvimento Agrário (MIRAD)

Instituição do seguro-desemprego

1986-1987

Plano de Controle

Macroeconômico, conhecido como

Plano Bresser

Redução do poder de compra dos

trabalhadores Reprodução das

desigualdades

Política do arroz com feijão Seguia a ortodoxia liberal, operando

cortes nos gastos públicos,

especialmente sociais

Fonte: Organizado para estudo a partir de pesquisa bibliográfica.

Naquele momento, o País passava por uma reorganização constitucional

que teve como consequência a instalação da Assembleia Nacional Constituinte

(1986), culminando com a aprovação da Constituição Federal de 1988, que,

historicamente, renova as esperanças de dias melhores para o povo brasileiro,

agora em um país democrático.

A Constituição Federal brasileira de 1988, ao afiançar os direitos humanos e sociais como responsabilidade pública e estatal, operou, ainda que conceitualmente, fundamentais mudanças, pois acrescentou na agenda dos entes públicos um conjunto de necessidades até então consideradas de âmbito pessoal ou individual. Nesse caminho, inaugurou uma mudança para a sociedade brasileira ao introduzir a seguridade como um guarda-chuva que abriga três políticas de proteção social: a saúde, a previdência e a assistência social. (SPOSATI, 2009, p. 13).

82

A Constituição Federal de 1988 rompe com anos de repressão e, em seu

artigo 6o, estabelece os direitos sociais, que é sabido de sua evolução a partir dos

direitos dos homens, dos direitos civis e políticos. Assim, os direitos sociais são

distintos dos direitos jurídicos, pois, estes, buscam estabelecer e garantir uma

igualdade real e o bem-estar das pessoas, e estabelecem a obrigatoriedade do

poder público a desenvolver ações políticas públicas para sua efetivação numa nova

relação entre o Estado e a sociedade civil. Agora, a democracia é participativa e não

apenas representativa (FERREIRA, 2001, p.7).

E, assim, acrescenta em seu artigo 6o, são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a participação, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. E no artigo 1o da CF 88, estabelece que: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição. (FERREIRA, 2011, p. 07).

Nessa perspectiva, é importante não esquecer o contexto brasileiro e o da

América Latina, dentro de suas especificidades, pois, a partir da década de 1990, o

Brasil sede às pressões neoliberais e aos mandos do Consenso de Washington.

Com isso, os princípios efetivados e defendidos na CF de 1988 ganham novas

roupagens, esvaziam-se e precarizam-se cotidianamente.

O Brasil possui uma particularidade que o caracteriza como país que apresenta um dos maiores índices de desigualdade social do mundo, quaisquer que sejam as medidas utilizadas. A desigualdade social ganha expressão concreta nas relações sociais cotidianas nas diferentes regiões do país e nos territórios internos das cidades, nos quais as condições de desigualdade se reproduzem. (SIQUEIRA, 2007, p.19).

Dessa forma, a implantação da ideologia neoliberal data-se a partir da

primeira eleição presidencial da nova República, em 1989, no contexto de pressão

internacional e sucateamento do Estado brasileiro advindo do processo de ditadura

militar. O neoliberalismo já era visto, nas economias ditas desenvolvidas, como a

panaceia da pobreza.

Segundo Pereira (2004, p.185),

83

O Plano de Reconstrução Nacional, instituído no governo de Fernando Collor (1990-92), delineia a forma como irão se caracterizar as relações com o Estado e as políticas sociais nos anos 90. Nesse plano os governos assumiu com rigor o ideário neoliberal, promovendo uma redução drástica no orçamento destinado a essas políticas, além de realizar alterações e reformas de conteúdo claramente regressivo em relação aos direitos sociais formalmente assegurados na Constituição recentemente promulgada.

E, com isso, o Brasil, além da instabilidade econômica, passa a viver o

momento dos desmontes dos direitos, conservando a redução das políticas sociais,

a sustentação das privatizações e da responsabilidade social. O sistema de proteção

social brasileiro que, até a década de 1980, era direcionada a partir de seguros

sociais para pessoas formalmente empregadas pertencentes a algumas

corporações.

E é nesse cenário de muitas transformações, construção e efetivação dos

direitos sociais, pós-ditadura militar, momentos de muita expectativa e avanços e

também de retrocessos em níveis local e nacional, que vinha ao mundo o segundo

personagem desta história.

É uma menina e nasceu aos 26 dias do mês de março, no ano de 1989, no

Bairro da Betânia, em Manaus/Am. Vou chamá-la aqui de Apurinã17. É filha de

Cunhã-Porãe18 e Cauré19, ambos naturais do Amazonas.

Mas Cunhã-Porãe era uma prostituta, de 15 anos de idade, nascida em

Manaus, em 1973. Cauré era casado e ganhava a vida cantando músicas brega no

Estado do Amazonas. A jovem mãe era filha caçula de uma família de migrantes do

interior do Amazonas, e desde muito nova sofria assédio sexual por parte do irmão

mais velho.

Seu pai morreu muito cedo e sua mãe casou-se novamente com um

alcoólatra, que passou a abusar sexualmente da moça. Cunhã-Porãe chegou a

contar, a respeito do abuso, para a mãe, mas não obteve confiança e ainda chegou

a apanhar por causa da denúncia.

Por causa dessa situação, Cunhã-Porãe saiu de casa para se livrar do

padrasto e das desconfianças de sua mãe, que não acreditava que o marido fosse

17

Apurinã significa “aquele que corre”. 18

Cunhã-Porãe, em Guarani, significa “mulher bonita”. 19

Cauré, em Nheengatu, significa “espécie de gavião”.

84

capaz de fazer o que a moça relatava. Com 14 anos, a moça tinha algumas amigas,

e estas a apresentaram à prostituição.

E assim, com 16 anos de idade, ela tem a primeira filha, Apurinã, que não

chega a ser registrada pelo pai. Cauré já tinha seus filhos com a esposa e não quis

assumir a filha de uma prostituta, além do mais, ele não tinha certeza da

paternidade.

Cunha-Porãe, portanto, continua com sua vida de prostituição e em 1990,

para esconder Apurinã do pai, ela resolve morar em Porto Velho/Ro, levando a filha

com um ano de idade.

3.2 A Infância em Porto Velho

É importante destacar que, falar de infância no Brasil é também falar das

formas como a proteção social da sociedade brasileira é efetivada. E

especificamente a proteção à criança e ao adolescente, que não pode ser

esquecida.

Prestada pela igreja, por meio das Santas Casas de Misericórdias, sem a

participação do Estado, apenas em 1922 surge o primeiro local público para

atendimento ás crianças e aos adolescentes. Logo depois, em 1942, tem início o

Serviço de Assistência ao Menor (SAM), ligado ao Ministério da Justiça, como um

modelo de penitenciária para o menor. (SILVA e MELLO, 2004, p.23).

Ainda de acordo com esses autores, o SAM perdura por 30 anos. Durante o

regime militar, em 1964, é instituída a Política Nacional do Bem-Estar do Menor

(Pnabem), pela Lei 4.513/64. Com proposta assistencialista, deveria ser executada

pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), integrante do

Ministério da Justiça, e transferida depois para a Previdência Social (1972 a 1986),

objetivando nacionalizar a política de bem-estar da criança e do adolescente.

No entanto, em 1979, é aprovado o Código de Menores, Lei 6.697/1979,

que, segundo Silva e Mello (2004, p. 24),

[...] tratava da proteção e da vigilância ás crianças e aos adolescentes considerados em situação irregular e se constituía num único conjunto de medidas destinadas, indiferentemente, a menores de 18 anos autores de ato infracional, carentes ou abandonadas.

85

Ainda no final dessa década surgem movimentos sociais que buscam

mostrar uma nova visão da criança e do adolescente, considerando-os sujeitos de

direitos e de sua história, vítimas do processo de perversidade e confinamentos

ineficazes, tendo em vista os maus-tratos sofridos historicamente.

Contudo, a década de 1980, como já citado, é um marco histórico no que diz

respeito aos avanços constitucionais, em nosso país, e, assim, a legislação

direcionada aos “menores” passa a ser vista como representativa do arcabouço

autoritário do período anterior. Ao mesmo tempo, meninos e meninas de rua tornam-

se a figura emblemática da situação da criança e do adolescente no Brasil (SILVA e

MELLO, 2004, p. 24).

A luta da sociedade organizada e as discussões em nível nacional avançam

para a criação, em 1986, da Comissão Nacional Criança e Constituinte, e, em 1988,

essa luta ganha força com a CF de 88, que representa a garantia dos direitos da

criança e do adolescente, ao estabelecer, em seu Artigo 227, que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CF, 1988).

Rompendo com as várias concepções a respeito do entendimento dos

direitos da criança e do adolescente, que variava de correcional, irregular, à

proteção da sociedade contra essas crianças, que se apresentavam como ameaças.

Alheia às transformações nacionais, a vida de Cunhã-Porãe segue sem

grandes novidades e com a intenção de esconder Apurinã do pai, que chega a

procurá-la. Além do instinto de sobrevivência, ela toma uma séria decisão em sua

vida.

Vai trabalhar como prostituta em um garimpo, na cidade de Ariquemes/Ro. E

assim tem início a infância de Apurinã, em Porto Velho. A jovem mãe passava

meses no garimpo, e durante esse tempo deixava a filha com famílias vizinhas e

evangélicas. Ela se comprometia a mandar alimentação e dinheiro, mas isso não

acontecia sempre.

86

No entanto, felizmente, as duas, mãe e filha, já podiam contar com seus

direitos garantidos em lei, pois, em 13 de julho 1990, no Brasil, era editada a Lei

8.069, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Essa lei é fruto da luta organizada da sociedade em movimentos nacional e

internacional para fazer valer os artigos 227 e 228 da CF de 88 que, pela primeira

vez no Brasil, contempla a proteção integral e garante o direito da criança e do

adolescente. “Além de introduzir no arcabouço legal brasileiro o conceito de

seguridade social, agrupando as políticas de assistência, previdência social e

saúde.” (SILVA e MELLO, 2004, p.24).

O ECA é fruto da luta histórica para fazer valer o direito da criança, que até

esse momento não era vista como sujeito de direitos. Rompe com o Código de

Menores e moderniza a legislação, marcando profundamente a mudança da política

pública voltada para esse segmento, ao assim apresentar:

Art. 1o Dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Art. 3o A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (ECA, 1990).

Assegura que todas as crianças e os adolescentes, independentemente de

cor, etnia ou classe social, sejam tratados como pessoas que precisam de proteção,

atenção e cuidados especiais para que se desenvolvam e sejam adultos saudáveis.

Mas Cunhã-Porãe não conhecia os mecanismos de proteção social e os

avanços constitucionais, e muito menos a luta para concretizá-los diante da nova

realidade brasileira; ela estava preocupada em trabalhar e ganhar o dinheiro para

seu sustento. E, dessa forma, seguia vivendo. Às vezes, ficava meses; outras, ficava

mais tempo no garimpo; aí voltava para Porto Velho, entregava a filha para outra

família e seguia novamente.

Como nem sempre cumpria o acordo de mandar dinheiro e alimento para a

família cuidadora, esta se recusava a ficar com a criança. Em 1992, Apurinã ganha

uma irmã para dividir a saga (vou chamá-la aqui de Potyra20). Esta também não

20

Em Tupi, significa “flor”.

87

obteve o reconhecimento civil do pai e, às vezes, as duas irmãs ficavam na mesma

família, outras vezes não. E assim o tempo vai passando para essas crianças.

O Art. 4o do ECA enfatiza que:

[...] é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (ECA, 1990).

A mãe, quando voltava, ficava dois ou três meses, no máximo, com elas, e

seguia novamente para o garimpo, deixando-as para serem cuidadas por outra

família. Porém, Apurinã também realizava alguns serviços domésticos, aprendera

muito cedo a fazer café, entre outras tarefas.

Em 1993, o Brasil, depois de muita luta social, presencia a chegada ao

mundo de outra menina21 que, como as meninas desta história, busca formas para

sobreviver e espaço para se desenvolver. Vem ao mundo concretizar os direitos

sociais historicamente conquistados, reforçando os artigos 203 e 204 da CF de

1988.

Contudo, esses direitos, amiúde, são negados, e ela já tinha sido abortada

uma vez, pois não havia interesse político em elevar seu status de política pública, o

que supõe controle social, equidade e universalização dos serviços sociais.

(SPOSATI, 2010;TORRES, 2002, p.100).

Estou me referindo aqui à Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), que é

aprovada pelo Congresso Nacional, em 1989, e vetada pelo então Presidente da

República, Fernando Collor de Melo.

Sposati (2010, p.08) destaca que:

A assistência social não nasce como política no mesmo dia do nascimento da Loas. Ela é bem mais velha. É mais um caso de atraso de registro de nascimento. [...] Fazer o registro de nascimento em data atrasada pode ser vontade de fazer coincidir com o dia de padroeiro mas, em geral, é situação de mãe solteira que fica esperando a coragem do pai, em pôr seu nome no registro da criança já nascida e crescida. É bom lembrar que o pai da Loas é o Estado brasileiro.

21

Termo criado por Sposati (2010).

88

Mesmo tendo essa linhagem, foi muito difícil para a Loas se estabelecer e

efetivar os direitos sociais e a proteção social na realidade brasileira. Nesse

contexto, o País passava por momentos de avanços e retrocessos, que incitam a

luta dos movimentos sociais sedentos pela efetivação dos direitos.

Esses defenderam nas ruas o direito da pequena, para que ela crescesse e

aparecesse. No entanto, é apenas mais uma menina, desse imenso Brasil de

contrastes históricos, de desrespeito aos direitos sociais. E a Loas estabelece a

Assistência Social como direito do cidadão e dever do Estado.

O Art. 5o, que trata da organização da assistência social, tem como base as

seguintes diretrizes:

I - descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; III - primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo. (FERREIRA, 2011, p. 246).

Todavia, a década de 1990 também é marcada pela crise fiscal e pela opção

de aceite, por parte do governo brasileiro, do projeto neoliberal. Essa realidade

impõe limites à efetiva universalização dos direitos sociais, seguida ao desmonte

dos direitos conquistados a partir da CF de 1988. (SILVA, 2008, p.20).

Em 1994, Apurinã contava apenas com a compaixão das famílias cuidadoras

a quem sua mãe a direcionava, e, nesse momento, estava sendo cuidada por uma

família de classe média, que matriculou a menina, com cinco anos de idade, em uma

escola particular chamada Gente Inteligente, e cuidou dela por um período.

Estas famílias cuidadoras também se preocupavam com a parte religiosa,

pois Apurinã e a irmã foram inseridas brevemente na igreja evangélica, com a qual

elas sempre contaram, nesse período. Mesmo estando estabelecido no ECA (1990)

que:

Art. 7o A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

89

A vida dessas crianças era vivida por períodos, pois sempre mudavam de

casa e de família cuidadora. Assim como também ora estavam com a mãe, ora sem

ela. Em 1995, Cunhã-Porãe retorna do garimpo, dá à luz outra criança sem pai (uma

menina que será chamada aqui de Jassy22), e passa a morar de aluguel em Porto

Velho com as três filhas.

Apurinã estava com seis anos de idade e se sentia totalmente responsável

pelas irmãs; cuidava da casa e das irmãs, enquanto a mãe continuava a vida de

prostituição e iniciava a venda de drogas. A família da Cunhã-Porãe já tinha um

histórico de venda de drogas, e ela também passou a frequentar lugares de venda e

consumo de drogas na cidade.

Ela conhecia os fornecedores, comprava a droga e levava para casa, para

fazer as embalagens com a ajuda das duas filhas mais velhas. As crianças eram

responsáveis pelo processo de secagem e embalagem da cocaína. Apurinã, por ser

a mais velha, sempre ajudou mais, e participava de tudo, além de cuidar das irmãs.

A pequena menina sempre foi uma garota esperta e toda vez que a mãe era

presa, pegava toda a droga que estava em casa e enterrava no quintal, sabia que

tinha que cavar um buraco bem fundo, pois a polícia levava cães para procurar o

esconderijo. Quando não dava para enterrar a droga, ela subia nas pernas mancas

da casa para esconder em local seguro, pois sabia da importância desse trabalho.

Sua mãe poderia ser presa em flagrante, caso a droga fosse encontrada. Mas o

ECA (1990) elenca que:

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Contudo, como assegurar esse direito, visto que toda a família tem histórico

de envolvimento com entorpecentes? Porém, não era só a droga que preocupava

aquela pequena, ainda tinha uma arma, que deveria também ser escondida em local

seguro. Recaía sobre essa criança a responsabilidade de manter sua mãe em

liberdade, pois, sem flagrante, Cunhã-Porãe era solta e Apurinã desenvolvia bem o

trabalho de sua responsabilidade. Mas ela relata muito emocionada que:

22

Em Tupi, significa “lua”.

90

Eu recordo-me bem que sempre fiz a associação do trabalho como algo digno e honesto... Daí a minha revolta, já na infância, com a forma que minha mãe, e também toda a minha família, utilizava para sustentar a si e seus filhos. Eu lembro que, em vários momentos, eu questionava a minha mãe, porque ela não trabalhava como todas as nossas vizinhas, vendendo alimentos nas ruas, como domésticas, como lavadeiras, que, naquela época, em Porto Velho, muitas mulheres que não tinham formação ou alguma especialização para o trabalho, ganhavam a vida “lavando roupas para fora”. Eu cheguei a dizer à minha mãe que, se ela fizesse salgados, bolos, pastéis, eu a ajudava a vender na rua; era muito comum as pessoas andarem nas ruas com bacias de alumínio ou outros vasilhames, vendendo algo, pamonha, salgados ou doces. E todas as vezes em que eu via a minha vizinha saindo de casa com suas duas filhas para ir vender pamonha na rua, eu me perguntava: Por que minha mãe não faz o mesmo? (Pesquisa de campo, 2012).

Como afirma Eduardo Galeano (2012), o convite ao consumo é um convite

ao delito. E, por absoluta falta de alternativa, pessoas pobres, sem trabalho e sem

renda, ficam à mercê das várias formas de exploração, especialmente pelo chamado

crime organizado.

Quanto aos questionamentos que eu fazia à minha mãe, por que ela não procurava um trabalho honesto, digno... ela me dava a seguinte resposta: Não podia conseguir um emprego formal, porque não tinha os seus documentos, visto que ela havia perdido todos num naufrágio de um barco em que ela viajava de Manaus para Porto Velho, quando era muito nova. E dizia que vender comida na rua não dava dinheiro suficiente para sustentar nós, as filhas, como ela queria. Confesso que essas respostas nunca me convenceram, ao contrario, só me indignavam ainda mais. Porque, no fundo, eu sabia que eram só desculpas. Para mim, ela sempre gostou de vida fácil, sem pessoas que a controlassem, ganhar dinheiro rápido. Hoje sei que, de vida fácil, a venda de drogas e a prostituição não têm nada. Mas sei que esse tipo de trabalho dá à pessoa a sensação de poder, de superioridade. Porque, de certa forma, brinca com a vida de outras pessoas, e detém a vida delas sob o seu “domínio”. Mesmo minha mãe dizendo que não gostava de se prostituir, eu não conseguia acreditar nela... Pois muitas vezes a presenciei conversando com uma amiga, que também fazia programas, dizendo que tinha deixado o homem “assado, cozido e frito”, mas... contando com prazer, com satisfação. Não sei bem o que ela sentia, mas devia fazer bem a ela aquela sensação. (Pesquisa de campo, 2012).

Com o dinheiro do tráfico, Cunhã-Porãe conseguiu comprar uma casa, onde

passou a morar com as filhas. Nessa rotina, ia presa várias vezes, e saía em

seguida. Apurinã lembra que, às vezes, a mãe passava de três dias com seus

91

amantes, deixava as crianças sem dinheiro e sem comida, e elas pediam ovo fiado

na venda para não morrer de fome.

Porém, assim está disposto no ECA (1990):

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Apurinã vive essa maternidade e luta para proteger as irmãs. Mas era difícil

conseguir proteger-se, porque essas crianças estavam entregues à própria sorte,

mesmo com um arcabouço de direitos garantidos em lei. Estando sob a “proteção da

própria mãe”, elas viviam uma realidade de pobreza e violação de direitos, e a

situação ainda podia ficar pior.

Em 1998, Cunhã-Porãe é pega em flagrante com entorpecentes e usando

um nome falso. Ela vai para a cadeia feminina de Porto Velho, tendo sido julgada e

condenada a 8 anos de detenção. Agora, as crianças estavam novamente sem a

mãe, e a rotina de abandono estava apenas se iniciando. Pois o Estado, que serviu

para punir um crime, não foi capaz de proteger inocentes de uma vida de violência.

E Apurinã desabafa:

Não posso ser hipócrita e dizer que não sentia vergonha da minha mãe, quando era criança, pela forma como ela ganhava a vida. É claro que sentia vergonha, mas eu lembro que esse era um sentimento que eu guardava comigo, pois para as pessoas eu a defendia, dizia que ao menos ela não estava roubando ninguém. Mas, no fundo, era apenas uma forma de defesa que eu tinha. Porque eu morria de vergonha na escola, quando havia atividades em que a professora perguntava qual a profissão dos nossos pais. Porque eu nunca sabia o que dizer e, claro, acabava mentindo. Todo esse sentimento de vergonha e raiva do que minha mãe fazia só veio realmente me atingir com toda a força na adolescência, quando comecei a ter mais noção do que realmente significava vender drogas, como ela fazia mal a muitas pessoas, e mesmo a nós, filhas. Porque eu, que era a filha mais velha, ajudava diretamente no processo da secagem e embalagem da droga. Comecei a lembrar de quantas vezes eu fui dormir drogada, anestesiada com o cheiro da droga. Isso me causava nojo, raiva, revolta da minha mãe. (Pesquisa de campo, 2012).

92

E Jurema23, também traficante, Irmã de Cunhã-Porãe, assume a casa e as

crianças. Porém, esta era dependente química, e foi com essa tia que Apurinã viveu

momentos de muita violência doméstica, exploração do trabalho infantil, assédio

sexual e todas as formas de desrespeito aos direitos da criança.

Diante do exposto, partimos da seguinte questão norteadora: O que

acontece com uma criança que tem seus pais ou, no casa acima elencado, a mãe

presa? Qual providência deveria ser tomada, com base no ECA, para acolher, de

forma segura, as crianças inseridas nesse ciclo de violência?

Apurinã era muito espancada, por qualquer travessura de criança.

Presenciava a tia e os amigos usando drogas. Ficava até às 23 horas lavando

louças na chuva. Além da responsabilidade de cuidar das irmãs, e agora das primas

gêmeas, de 3 anos de idade, filhas da Jurema.

Além da obrigação de fazer o processo de embalagem da droga. Assim ela

lembra: “A gente fazia todo o processo de dentro de casa, (secagem e etc.), em

Porto Velho, é conhecido como mela, que é a pasta de cocaína mesmo”.

Na realidade, a maior parte de violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziram esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que conhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. (COUTO, 2012, p.01).

Foi com essa tia, também, que Apurinã e Potyra viveram um dos piores

momentos de suas vidas. Num dia de domingo, quando a tia estava usando drogas

com vários amigos e o namorado, as crianças chegam da igreja e encontram o

amigo de Jurema no quarto da casa, então, muito emocionada, ao lembrar-se dos

momentos de horror, relata:

[...] Esse cara abaixou a calcinha da minha irmã e começou alisando

a vagina dela (choro...), aí eu empurrei ele (ele era muito grande e forte), e saí correndo do quarto, fui para o outro quarto e comecei a chorar... Meu primo foi lá, me deu um tapa e disse que era pra eu voltar para o quarto, que era para eu ficar lá que ele queria ver até onde ia, então eu voltei para o quarto (choro, silêncio), então, eu cheguei no quarto, a minha prima Patrícia tinha saído já do quarto e

23

Jurema, em Tupi, significa “espécie de planta”.

93

depois eu fiquei sabendo que ela tinha ido contar para o meu tio que estava na sala; aí, quando eu entrei no quarto, ele deixou a minha irmã de lado e mandou eu deitar na cama (silêncio, choro), aí, eu olhava lá para cima, onde meu primo estava (choro...) para ver se ele ia intervir, se ele ia chamar a polícia; eu estava esperando que a polícia estivesse lá, porque ele disse assim: “A gente vai chamar a polícia, ele vai ser pego em flagrante”, aí eu olhava lá para cima e meu primo fazia sinal para eu ficar calada, como quem diz assim: “Deixa ele fazer, né?”. Aí eu fiquei lá, deitada, e ele começou a me beijar (choro) nas costas, ele tinha uma barba grande, começou a dar aquela coceira (repúdio), aquele mal-estar, ele me beijava no pescoço, aí ele continuou, ficou me alisando, passando a mão pelo meu corpo, aí eu não aguentei, eu saí correndo do quarto, eu gritei e saí correndo. (choro..). (Pesquisa de campo, 2012).

Apurinã ainda teve forças para procurar uma delegacia e prestar queixa.

Nesse dia, as crianças ficaram horas nessa delegacia esperando o delegado

encontrar a tia responsável por elas, o homem foi preso e elas o viram apanhando

dos policiais.

Porém, quando a responsável pelas crianças foi encontrada, ela

simplesmente retirou a queixa. Jurema não queria prejudicar a irmã, que já estava

presa. Depois do acontecido, as crianças voltam para casa, com a tia, e o agressor é

solto. Mas os Arts. 5o e 13 do ECA (1990) enfatizam que:

Art. 5o Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

Depois dessa situação, Apurinã sabia que não podia mais permanecer

naquele lugar; temia coisa pior, mas ela não sabia o que fazer, não tinha outro lugar

e era apenas uma menina de seis anos de idade que se sentia completamente

responsável pelas irmãs.

Jurema, depois de uns dias, em uma briga, deu várias facadas em um

homem e foi presa. E as crianças, novamente, ficaram sozinhas, mas elas tinham

outra tia na cidade e foram em busca de abrigo na casa da tia Moema24, outra irmã

24

Moema, em Guarani, significa “aurora”.

94

da Cunhã-Porãe, que também vendia drogas. O tempo foi passando, as meninas

crescendo, e Apurinã sempre cuidando das irmãs.

A infância dessas crianças foi marcada por um ambiente de drogas,

prostituição e violência. Ou seja, o direito delas, a todo o momento, era violado.

Apurinã ainda morou com Zeneide (mulher de um tio alcoólatra). Zeneide tinha

muitos filhos, morava numa ocupação, tudo muito precário. A família passava muita

fome, e o tio trocava o leite das crianças por bebida alcoólica.

Mas, mesmo assim, aceitaram ficar com mais crianças. Apurinã lembra-se

da fome, e relata: “Quando a gente começou a ter que catar resto de banana do

lixão para ter o que comer, eu disse que eu não ficava mais em Porto Velho”.

Mesmo com todas as dificuldades vivenciadas, a menina nunca deixou de ir à

escola. Com sete anos de idade, iniciou a vida escolar no ensino público e enfatiza,

emocionada: “Escola, para mim, sempre foi um refúgio”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro em atribuir, como valor universal, a proteção integral a toda criança e adolescente como seres em desenvolvimento. É preciso estender essa noção aos diferentes momentos do ciclo de vida e às contingências que neles ocorrem. Sob essa perspectiva a proteção social não é demandada pelo fato de serem essas crianças e adolescentes, pobres ou ricas, mas como valor de uma sociedade que se quer justa, solidária e voltada para o avanço social em seu futuro. (SPOSATI, 2007, p. 28).

Mas o futuro pode ser apenas uma utopia, diante da realidade de pobreza e

miséria, de toda a desproteção social que, historicamente, se evidencia para a

maioria das crianças, em nosso país. Mas a escola era o lugar em que Apurinã se

sentia livre, protegida, respeitada; era a esperança de dias melhores, a luz que

mudaria para sempre sua realidade.

Essa criança que estava sendo violada em seus direitos fundamentais

conseguia ver e acreditar na importância da escola e na mudança em sua vida a

partir da educação; conseguiu acreditar em um mundo melhor e, acima de tudo, teve

forças para resistir e romper com o ciclo de violência que se estendia em sua família.

95

3.3 O Retorno a Manaus

Com 10 anos de idade e uma realidade de muita violência, cansada de lutar

contra tudo, Apurinã toma uma decisão. Queria voltar para Manaus, e só tinha uma

saída; ligar para outra irmã da Cunhã-Porãe, e assim fez; ligou para a tia Itacira25.

Pediu socorro, mas a tia que morava em Manaus disse que não poderia

cuidar das irmãs mais novas. E então, com toda sua coragem e instinto de

sobrevivência, a pequena menina assustada se comprometeu a cuidar das irmãs

para não atrapalhar o trabalho da tia. E assim o fez.

Do tempo que passou em Porto Velho, ela guarda várias lembranças, mas

pretende esquecer as que lhe trazem muito sofrimento, porém, também se lembra

dos poucos momentos felizes, em que conseguia ser criança e fazer algumas

travessuras; lembra-se do pôr do sol de Porto Velho e relata a beleza que lhe é

peculiar. Como segue a Figura 6, no intuito de reforçar sua memória.

Figura 6: Margem do Rio Madeira, em Porto Velho

Foto: Valter Calheiros, 2011.

E, em 1999, Apurinã chega a Manaus com suas duas irmãs. Itacira

providenciou os registros de nascimento das crianças mais novas e foi em busca de

25

“itá-syra”, em Tupi, significa “pedra cortante, afiada”.

96

escola para elas. Então, finalmente, as crianças estavam a salvo de toda a violência

vivida até aquele momento.

Apurinã também gostava muito dessa tia, pois sentia que elas tinham uma

melhor aproximação. Era a mãe que ela tanto necessitava. Mas a vida mostra que a

luta ainda estava no início. E muito decepcionada relata:

No primeiro ano em que nós chegamos em Manaus, era tudo muito perfeito, muito maravilhoso, né? Roupa nova, calçado novo, não faltava nada, nós tínhamos uma vida muito boa, não apanhávamos, mais depois de um ano tudo mudou, o problema com a bebida (todo mundo da minha família tem problemas com bebidas), e aí minha tia quando bebia ficava louca, louca! E aí ela começou a espancar, não era bater não, ela espancava mesmo! (Pesquisa de campo, 2012).

Então, inicia-se outra fase, na vida das três irmãs. Elas mudam de bairro e

de escola. A tia também era traficante de cigarros importados, possuía um depósito

onde armazenava o produto traficado e trabalhava revendendo-o. Apurinã agora

tinha a função de cuidar da casa e arrumar o depósito de cigarros e só era liberada

do trabalho no horário da escola.

E assim sua vida é envolvida com trabalhos domésticos e várias

responsabilidades extras, além de zelar pelas irmãs. Todos os dias deixava as duas

pequenas no ponto do ônibus, transporte coletivo que as levava para a escola

integral Casa Mamãe Margarida (CMM)26, onde foram matriculadas.

Aí foi quando eu comecei a ser explorada, porque não tinha uma pessoa para arrumar o depósito, eu arrumava o depósito, carregava

26

A Casa Mamãe Margarida nasceu com uma proposta educativa e formativa para favorecer a cidadania a meninas em situação de risco pessoal e social, através do protagonismo juvenil, segundo o estilo salesiano. É uma instituição de caráter filantrópico, social, educacional e religioso, sem fins lucrativos, dirigida pelas Filhas de Maria Auxiliadora (Irmãs Salesianas) e mantida através de convênios e/ou doação de benfeitores. As meninas atendidas são provenientes de famílias com problemas econômicos e sociais que refletem diretamente em sua formação, uma vez que, não tendo alimentação básica, educação e orientação familiar, saem às ruas em busca de alternativas de vida, onde, muitas vezes, são induzidas ao vício e à marginalidade. A nossa ação educativa coloca a menina como centro de atenção e de respeito, favorecendo a redescoberta de valores humanos e morais para que possa protagonizar uma nova história pessoal, reencontrando sua autoestima, bem como paradigmas que a levem a uma opção de vida digna, madura e consciente, além de oferecer uma ação socioeducativa baseada no Sistema Preventivo de Dom Bosco. Proporciona atendimento a 400 crianças e adolescentes vitimizadas, do sexo feminino, oferecendo educação integral, que favoreça o desenvolvimento cognitivo, artístico e manual, garantindo o acompanhamento escolar; oferece oportunidade de atendimento biopsicossocial (médico, odontológico e psicológico); acompanha a menina dentro do laço familiar e, se necessário, reconstruir este laço nos locais onde ele inexiste, denunciando e acompanhando os casos de violação e ameaça de direitos. Garante abrigo em caso de ameaça ou violação de Direitos para 25 crianças/adolescentes do sexo feminino. (Pesquisa documental.)

97

caixas, eu tinha minhas funções: arrumar o depósito, cuidar dos cachorros, cuidar da casa, fazer comida, deixar minhas irmãs na parada do ônibus e buscar na parada do ônibus depois da escola delas. Eu tinha 11 anos de idade, na época, mas a minha vida era uma rotina de adulto, eu tinha que dar conta de tudo em uma casa, eu era a pessoa que tinha que ficar em casa, a polícia podia aparecer a qualquer momento. Eu apanhava muito, muito mesmo, de palmatória, chutes e tapas, tudo sempre quando ela estava bêbada. (Pesquisa de campo, 2012).

Apurinã só tinha o direito de ir à escola; em casa, ela não podia perder

tempo fazendo os trabalhos escolares; então, a menina, que sempre foi muito

esperta, esperava a madrugada, quando todos estavam dormindo, para fazer suas

tarefas da escola, e assim relata:

Eu me sentava na janela pra pegar a iluminação da varanda e não ter que ligar a luz do quarto para ela não perceber, porque, se ela percebesse, eu apanhava, então, eu sentava na janela e ficava estudando, fazendo minhas tarefas; ela acordava de madrugada, morta de bêbada, o único tempo que eu tinha para estudar era de madrugada, então ela ía no quarto, me via estudando e botava para me bater, me jogava na cama e espancava! E foi um acúmulo, teve uma hora que eu não aguentei! (Pesquisa de campo, 2012).

A menina só acumulava marcas profundas, mas continuava estudando e

cuidando das coisas da tia e das irmãs. Porém, agora ela já conhecia bem a CMM,

sabia que lá também era um abrigo para meninas, e que as irmãs foram para lá

porque já tinham um histórico de violência, mas continuou na casa da tia. “Eu não fui

para a CMM, porque eu tinha que estudar perto de casa, para dar conta das coisas.

Mas eu conhecia a casa, sabia que tinha um abrigo”.

3.4 A Luz que Faltava

Contudo, diante daquele cenário de violência e desrespeito, Apurinã

esperava mudar a situação. Mas como uma criança abusada, fragilizada, de modo

geral, poderia reverter sua história? A violência também neutraliza, a partir do medo

gerado.

O medo do abandono, das surras e da vida de pobreza, que até aquele

momento tinha sido tão cruel com a criança, tomava conta daquele coração tão

98

carente de carinho, família, amor e oportunidade. Apurinã só tinha um desejo: queria

a oportunidade de estudar.

Mas foi com 13 anos de idade, quando Apurinã estava cursando a 6a série

do ensino fundamental, que um dia, na escola, é apresentada pela primeira vez ao

ECA e ao Conselho Tutelar. Ela já não era mais ignorante. Sabia, a partir daquele

momento, que era uma cidadã de direitos.

E suas palavras revelam: “A visão vai ampliando, tu vai percebendo, foi

quando eu soube o que era um Conselho Tutelar, qual era a função, foi quando eu

fui enxergando que eu vivia uma situação de violência e que podia buscar ajuda”.

O desconhecimento dos nossos direitos é a total escuridão; viver sem saber

que podemos buscar na lei a solução para determinada situação, que temos amparo

e proteção legal, é simplesmente não viver, é vegetar, pois essa escuridão nos

neutraliza, nos domestica e nos faz aceitar a condição de explorado, violentado, com

naturalidade imutável. Saber, e ter com quem contar, pode nos libertar da escuridão.

A menina sabia, agora, que vivia uma situação de violência, de trabalho

infantil, e que existiam mecanismos de proteção. Apurinã também conhecia a Keyte

(ex-abrigada da CMM). Keyte sempre mandava a menina fugir e buscar a CMM, mas

ela ainda não estava preparada.

Certo dia, Apurinã pegou dinheiro da tia para comprar duas pilhas do

walkman, ela gostava muito de ouvir músicas, mas estava proibida de fazê-lo,

porque a tia achava que atrapalhava o serviço doméstico. Então, Itacira ficou

sabendo da compra das pilhas e da desobediência de Apurinã e, como sempre, a tia

mostrou quem mandava. Chorando, ela conta:

Eu que estava proibida de ouvir o walkman, porque, segundo ela, a música atrapalhava eu arrumar a casa, e uma vizinha fofoqueira, desgraçada, ligou para minha tia para dizer que eu tinha saído de casa e que eu estava escutando música. Imediatamente, ela chegou em casa, que nem um mostro, e me perguntou: “O que tu foi comprar na taberna?”. Aí eu menti, disse que fui comprar alho, na verdade, eu também fui comprar alho, mas fui para comprar as pilhas, aí, ela disse assim: “Só alho?”. Eu falei: Só, só o alho. Ela disse: “Mentira que eu vim da dona Nete (a dona da taberna) agora e eu estou sabendo que tu comprou duas pilhas”. Aí, nesse dia, ela me bateu muito, muito! Espancou os meus dedos com a ripa, me jogou no chão, me chutava, chutava minha cara, chutava, chutava, ela me bate, sabe, quando tu vê querendo matar um cachorro? Nesse dia ela me bateu assim! Ela me bateu muito, ela me chutou até a beira da escada, acho que quando eu estava na beira da escada, ela acordou da crise de violência, quando ela viu que ia me chutar

99

daquela escada e eu ia morrer (choro), acho que ela acordou, assim, ela parou, eu estava sangrando. Aí, para mim, esse foi o estopim, eu já pensava há muito tempo em fugir, ir embora e tal, mas ainda não tinha tido coragem por causa das minhas irmãs. (Pesquisa de campo, 2012).

Então, Apurinã, muito machucada, se arrumou e foi para escola preparada

para fugir.

Sempre apanhei por mim e por elas, porque ela dizia que eu era muito atrevida, muito audaciosa. Aí, nesse dia, eu fui para a aula com a cara todo vermelha, toda espancada, ela disse que não era para eu ir para a aula! Eu desobedeci, me arrumei, vesti duas calcinhas, uma por cima da outra, eu não podia sair de casa com uma bolsa porque ela ia perceber que eu estava fugindo, né, peguei R$ 3,00 e pouco, que era para minha passagem, coloquei uma peça de roupa na minha mochila, o dinheiro eu consegui porque eu menti para ela, eu disse assim: Tia, eu preciso comprar uma cartolina e coisas para fazer um trabalho na escola, ela me deu o dinheiro, e perguntou: “Tu vai mesmo para a aula?”. Eu menti! Disse que tinha uma coisa muito importante lá. Então, fui para a aula decidida que eu não voltava mais para casa. (Pesquisa de campo, 2012).

Chegando lá, contou o acontecido para um professor, que falou com a

diretora e pedagoga, e os profissionais aconselharam-na a voltar para casa, ficar

mais uma semana, para que eles observassem o comportamento da tia, e

garantiram que iam fazer a denúncia ao Conselho Tutelar.

Prometeram também que acompanhariam a história durante aquela semana

para ver se a violência continuaria. Mas ela sabia que continuaria. “Eu falei: Claro

que vai continuar! Eu apanho todo dia; quando não era de dia era de madrugada, é

sempre isso, ela dizia: ‘Mas a gente precisa acompanhar para ter certeza’”.

A menina voltou para casa, e na outra semana, a diretora chamou-a e disse

assim: “Amanhã, às 14 horas, o conselheiro tutelar vai lá na tua casa fazer uma

visita, para conversar com tua tia”. E esse momento decisivo, ela conta, muito

angustiada.

Tu não sabe o que é isso, dizer para uma criança que é violentada que o conselheiro tutelar vai à casa dela! Isso é a sua certidão de óbito, tu sabe quem é a tua tia, que ela jamais aceitaria isso, e que quando o conselheiro sair da casa tu vai morrer de tanto apanhar. (Pesquisa de campo, 2012).

100

Nesse dia, Apurinã só pensava em sobreviver e fez de tudo para sair de

casa antes de o conselheiro chegar e, com muito medo, foi para a escola preparada

para não voltar mais, e assim aconteceu. Ela conseguiu que o professor de inglês a

levasse para a casa de uma advogada (irmã do professor).

Chegando lá, Apurinã, assustada, fica sabendo que a tia já estava louca, à

sua procura, que o conselheiro tutelar não tinha ido na casa, como prometido, mas

ela já não estava mais lá, conseguiu uma esperança de mudar de vida. E, assim,

ligou para a tia para informar que não voltava mais:

Aí, eu falei com o meu primo, e disse assim: Olha, diz para a tia que eu não vou voltar para casa, foi nessa hora que perguntei pelo conselheiro e fiquei sabendo que ele não foi lá, aí eu fiquei com ódio profundo, porque eu tinha fugido de casa com medo de morrer e ele não foi.

A advogada queria ficar com a menina para cuidar dos filhos recém-

nascidos, mas Apurinã tinha um objetivo, chegar à CMM. Ela sabia que lá teria a

possibilidade de estudar, como sempre quis.

Na mesma semana, o conselheiro ligou para a advogada e disse que a

menina podia ficar lá até ele conseguir um local para ela, e prometeu buscá-la no

sábado seguinte, e assim fez. Nesse dia, a advogada fez a proposta de ficar com

Apurinã, e disse: “Você quer ficar comigo? Sou advogada, consigo tua guarda até

tua mãe sair da prisão, vou te pagar um salário, tu vai ter o teu quarto, vai poder

estudar, vou te colocar numa escola aqui perto”.

Mas Apurinã já estava esperta com essa situação e respondeu: “Eu quero ir

pra um abrigo!”. A advogada tentou argumentar dizendo: “Tu não sabe o que é um

abrigo!”.

Mas a menina já estava decidida e enfatizou: “Eu quero ir para um abrigo!”.

E assim ela destaca o porquê da sua escolha tão incisiva:

Porque a visão que me passavam do abrigo é que eu ia poder estudar, que as irmãs conseguiam bolsa em escolas particulares, escolas boas e tudo o mais. Então, meu foco era o abrigo e eu estando no abrigo, era mais fácil consegui levar minhas irmãs para lá. (Pesquisa de campo, 2012).

101

Porém, Apurinã não imaginava que sua mãe poderia atrapalhar seus planos.

Então, o conselheiro ligou para o presídio e falou com Cunhã-Porãe; esta tinha o

poder de decisão, mais ela não sabia o que a filha havia passado, durante os cinco

anos com essa tia. E então, a menina contou tudo e muito revoltada disse à mãe:

Se a senhora disser para o conselheiro tutelar que é para eu ir para Porto Velho, eu nunca mais na minha vida te reconheço como mãe. Não vou nem te visitar, porque em Porto Velho eu não vou ter a oportunidade de estudar, de ter um emprego, eu vou ser prostituta, eu vou ser vagabunda, vou ser tudo aquilo que falavam que eu seria, porque eu sei muito bem qual é família que vou ficar, aí, a mesma miséria de antes, é isso que a senhora quer para mim? (Pesquisa de campo, 2012).

Então, Cunhã-Porãe disse que a filha podia seguir para um abrigo. E

Apurinã foi levada para o abrigo das Irmãs Carmelitas, onde ficou um mês, mas ela

estava com um objetivo: queria ser acolhida pela CMM, porém, lá estava sem vagas

e ela teve que apelar para uma conhecida (Keyte), e esta entrou em contato com a

direção da casa e conseguiu uma vaga. Mas as duas irmãs de Apurinã, Potyra e

Jassy, permaneceram com a tia agressora. Contudo, as duas meninas continuaram

estudado na CMM.

A CMM faz parte da rede de proteção à criança e adolescentes. É um abrigo

(Art. 95), executor de uma das medidas de proteção previstas no ECA: a medida de

abrigamento (art. 101, inciso VII, do ECA), que somente deverá ser aplicada após se

esgotarem as demais medidas de proteção ali previstas. O abrigo é uma medida

provisória e excepcional e transitória que não implica privação da liberdade. (Art. 101

do ECA). A CMM oferece a Proteção Social Especial (PSE), de alta complexidade,

que se volta:

A indivíduos e grupos que se encontram em situação de alta vulnerabilidade pessoal e social, decorrente do abandono, privação, perda de vínculos, exploração, violência, entre outras. Destinam-se ao enfrentamento de situações de risco em famílias e indivíduos cujos direitos tenham sido violadas e/ ou em situações nas quais já tenha ocorrido o rompimento dos laços familiares e comunitários. (YAZBEK, 2010, p.42).

102

Apurinã entendia que, na CMM, teria proteção integral, moradia, convívio

com outras meninas que estavam na mesma situação, possibilitando-a uma gama

de conhecimento e novos horizontes de crescimento.

3.5 Direitos Protegidos e a Vida de Abrigada

Garantir o direito à sobrevivência é fundamental, mas é

só o primeiro passo. Ninguém quer apenas sobreviver.

(Pedro Demo, 2000)

E, dessa forma, Apurinã finalmente consegue chegar à CMM no dia 2 de

novembro de 2002, para iniciar uma nova fase da sua vida. E ela observa com muita

convicção:

A aí começa a minha história de abrigada, que, comparado com a minha infância, eu acho que foi o melhor período da minha vida. Porque lá eu tive o que realmente queria, que era estudar. Em todo momento da minha infância, eu tive que trabalhar, que cuidar das minhas irmãs, eu tinha que fazer tudo, menos estudar mesmo, o pouco que eu conseguia era porque eu era teimosa. Então lá na casa eu realmente tive a oportunidade de estudar. (Pesquisa de campo, 2012).

Apurinã chegou à casa, foi bem recebida, finalizou o ano letivo, passou a

estudar perto da CMM, e começou a viver de verdade. Agora, ela possuía casa,

comida, proteção e várias oportunidades.

E na CMM foi outra história mesmo, de verdade, começaram assim as oportunidades de inserção nos movimentos sociais, no teatro, na escola, eu já me envolvia na dança, no canto, no teatro, eu não era boa em nada disso, mas eu me envolvia com tudo, isso me deixa conhecida, até o porteiro da escola me conhecia. A diretora da escola que eu estudava foi me visitar na CMM, ela falou muito bem de mim para a irmã Liliana, eu também cheguei a ganhar o terceiro lugar de um concurso de redação com tema sobre drogas. (Pesquisa de campo, 2012).

103

No final do ano de 2003, a moça foi chamada pela irmã e ficou sabendo que

teria uma bolsa de estudo para fazer o ensino médio na Escola Santa Terezinha,

uma das melhores escolas particular de Manaus. Quando recebeu a notícia, sentiu

um caleidoscópio de emoção, chegou à luz que ela tanto buscava, mas logo veio o

medo do fracasso e ela disse: “Não! Eu não quero! Vou reprovar, eu tenho medo”, e

a irmã disse: “Você vai”.

No ano de 2004, ela inicia o ensino médio no Colégio Santa Terezinha,

como bolsista integral. A CMM também oferecia teatro, acompanhamento

psicológico, pedagógico, etc., além de participação nos movimentos sociais, nos

quais Apurinã sempre se destacou. E assim consegue aproveitar as oportunidades

oferecidas pela CMM.

Eu passei seis anos na CMM, dos 13 aos quase 19 anos, mesmo depois da maior idade eu fiquei na CMM, lá as meninas só ficam até os 18 anos, mas como eu não tinha nenhuma possibilidade de retorno para a família, fiquei na casa até quase 19 anos. Eu passei quatro anos sem convívio com a minha família, ficava só na CMM, porque lá, todos os fins de semana, as meninas abrigadas vão para suas casas, mas eu não tinha para onde ir. Até que, um dia, minha tia foi me visitar na casa, fizemos as pazes ela fez um aniversário surpresa para mim, levou um monte de coisas, então fizemos a experiência de tentar retornar, mas não deu certo, não deu certo, porque já era outro mundo para mim. Na CMM, as coisas foram abrindo para mim, através do teatro, através dos projetos que a gente era inserida, o trabalho realizado com a questão da cidadania, dos direitos, e aí eu fui estudar o ECA, entender o que era, e me apaixonei por esse mundo social. Com 15 anos eu decidi que eu queria ser assistente social.

Foi essa inserção e participação no movimento social, o conhecimento para

além da sua vivência histórica que fazia aquela garota, tão marcada pela violência,

vislumbrar a possibilidade de mudar a sua vida, fazer essa história menos sofrida.

Durante o período de abrigamento, ela viveu a adolescência, compartilhou

com as outras abrigadas sua história, conheceu outras mais intensas, fez do abrigo

a sua casa, viveu intensamente esses anos, que lhe deram um acúmulo de

experiência e vivências. Mas o conhecimento também pode revoltar e ela destaca

que:

Não é só pela minha história de vida, mas pela história das outras meninas, perceber o quanto é importante conhecer os nossos direitos, não só do conhecimento, mas de ser protegida pelo que a

104

gente tem, porém, esse conhecimento adquirido na casa também me fazia ficar revoltada, pois eu pensava: Se é a minha família que me bate, me espanca, são os violadores do meu direito, por que eu tenho que sair de casa? Me sentia presa, queria ser livre. Comecei a participar das conferências municipais dos direitos da criança e do adolescente e nos debates eu dizia mesmo que a lei tinha que mudar, porque ela transforma a vítima em agressor, é a vítima que é punida, ela que fica presa, olha aí, não aconteceu nada com a minha tia, eu não queria que acontecesse, mas e as outras meninas, que eram estupradas pelo próprio pai ou tio? Elas tinham que sair de casa, o cara continuava na boa, não era preso, não acontecia nada. Então, aí, o teatro ajudou muito no meu crescimento como pessoa, porque esse fato, que aconteceu em Porto Velho, para mim era uma situação. Mas eu não sabia o que era, quando as peças teatrais eram sobre violência sexual contra criança e adolescente, teve um dia que eu simplesmente travei, saí da sala espancando a professora chutando todo mundo, eu empurrava as pessoas, eu sentia um ódio tão grande porque eu tinha me dado conta do que tinha acontecido com a minha irmã e comigo, isso foi logo nas primeiras aulas de teatro, eu fiquei uma semana para conseguir falar sobre o assunto e dizer o que tinha acontecido. (Pesquisa de campo, 2012).

O conhecimento e o entendimento da violência vivida causava revolta digna

dos cidadãos, é essa capacidade de revolta tão necessária que impulsionava a

jovem a buscar mais conhecimento e se instrumentalizar para lutar pelos direitos

socialmente conquistados. Mas ela ainda era apenas uma garota, com um intenso

histórico de agressão, que poderia refletir para sempre em sua vida e em suas

escolhas, como ela mesma informa:

Apesar de estar no abrigo, a Assistente Social não sabia da minha história de vida por completo, sabia de alguns detalhes. Então, assim, para superar, para hoje chegar aqui e conseguir falar, foi muito difícil, mesmo com apoio psicológico, pedagógico, etc. que eu tive na casa, porque eu fiz acompanhamento psicológico nos últimos dois anos que passei na casa, não fiz mais porque me recusei. Eu não acreditava na terapia, eu ia para lá, falava, falava, e ela me dizia coisas que eu já sabia, então eu achava que eu mesma podia ser a minha psicóloga. (Pesquisa de campo, 2012).

As meninas abrigada na CMM tem sua festa tradicional de debutantes, e

Apurinã também teve a sua festa. Nesse mesmo período, sua mãe sai do presídio

em liberdade condicional e retorna a Manaus.

Quando eu completei 15 anos, minha mãe saiu da prisão, minhas irmãs foram morar com ela, em uma situação complicada, porque meu atual padrasto abusou sexualmente da minha irmã do meio. (Pesquisa de campo, 2012).

105

Como a mãe estava residindo em Manaus, Apurinã tenta conviver com ela

nos fins de semana, mas não se sentia parte daquela realidade, além de não

concordar com as atitudes da mãe, como informa:

Com 15 anos, eu já namorava escondido das irmãs, eu me envolvi com o motorista da instituição, ele não tinha estudo, e depois que a irmã descobriu, perdeu a graça, mas acredito que o que me desencantou mesmo foi a interferência da minha mãe, ela tentava me vender para ele. Ela pedia as coisas para ele. Ela criava situações pra me deixar sozinha com ele. Ele ajudou a construir a casa dela. Ela deixava ele dormir na casa e me deixava sozinha em casa com ele. Então eu não quis mais. Eu me sentia vendida. (Pesquisa de campo, 2012).

Mesmo tentando conviver com a mãe, Apurinã continua no abrigo. Lá, a

moça tinha casa e não sofria mais violência, e seus direitos estavam garantidos.

Mas ela sofria com muitas faltas, como suprir essas necessidades, onde estaria o

remédio para a cura interna? Como esquecer tanto abandono e entender as suas

próprias fraquezas, às vezes expressas na mais simples ação?

São tantas as perguntas que as respostas poderiam estar em um rapaz por

quem Apurinã se apaixonou. Foi ele que lhe apresentou o amor, o carinho e a

atenção que também lhe fazia muita falta. Ele foi seu grande amor.

Mas aquele sonho tão lindo foi se transformando em um pesadelo. O rapaz

era dependente químico, tinha vários processos por assassinatos e assaltos. Ela

sofreu muito para conseguir acreditar que aquele homem tão maravilhoso fizera tudo

aquilo que a polícia lhe mostrou na ficha criminal dele. E depois de muito sofrimento

ela decidiu esquecê-lo para sempre, porém, não era fácil fazer o coração obedecer à

razão:

Foi uma grande confusão na CMM, a irmã pensava que eu estava levando drogas para dentro da casa. Colocou até polícia atrás de mim, teve investigação, levaram fotos minhas para a polícia, aí, assim, foi um período muito complicado, porque eu me apaixonei muito por ele, de verdade mesmo. Porque tudo o que eu tinha na CMM, na verdade, é que a gente não tem a atenção que a gente quer ter, eu não tinha tempo para mim, eu tinha tempo para o teatro, para a aula, para o projeto, eu tinha tempo para tudo quanto era coisa, mas, de verdade, parecia que ninguém me ouvia, entendeu? E eu encontrei um ser humano que era extremamente inteligente, te dá aulas de história, do que você quiser, mas a verdade é que ele fazia assaltos, era um dependente químico, assassino. Mas comigo ele

106

não era nada disso, comigo ele era amigo, namorado sensível, que fazia café e me levava na cama, uma coisa de outro mundo. Aquele cara que eu li o processo que falava friamente que matou, torturou e etc. e que olhava dentro dos meus olhos. Sabe, quando tu sentes que essa pessoa não tem coragem de triscar um dedo em você? Eu passei mais de um ano com ele, mas eu tive que romper, porque a minha razão sabia que não era correto, eu já era maior de idade, se a polícia me pegasse com ele, não ia querer saber se eu era cúmplice ou não. Apesar de que, quando estava comigo, ele não usava drogas, quando ele estava comigo parecia que vivia outro mundo, entendeu? Eu faltava ao trabalho na casa para ficar com ele. Eu percebi que era perigoso, quando um vigilante nos viu juntos e contou para uma moça da casa, aí ele mandou três caras ameaçarem o vigilante de morte. Então, eu fiquei com medo dele. Depois disso, ele foi armado na CMM. Então, eu deixei para lá, mas o encontrei ainda algumas vezes, e sei que eu o amei de verdade. (Pesquisa de campo, 2012).

Então, Apurinã manda um e-mail para o rapaz terminando tudo, pois não

teve mais coragem de encontrá-lo pessoalmente; ela sofreu muito para conseguir

sobreviver e continuar sem aquele amor. Ela estava frágil e carente, queria colo de

uma mãe de verdade. E assim ela relata: “Passei uma semana na maior depressão,

fiquei trancada numa sala, precisando de atenção e de carinho, aí foi a primeira vez

que a irmã me deu colo de verdade”.

Então, ela termina o ensino médio, presta vestibular para Ciências Sociais

na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), consegue passar; fez também boa

pontuação, mais de 60 pontos, no normal superior na Universidade Estadual do

Amazonas (UEA); não passou por causa do sistema de cotas, visto que tinha feito o

ensino médio em escola particular.

Ela fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)27 e conseguiu boa

pontuação sendo beneficiada integral pelo Programa Universidade para Todos

(Prouni)28 para fazer o curso de Serviço Social no Centro Universitário do Norte,

curso sonhado desde os 15 anos de idade. E a vida estava realmente mudando.

27

O Enem avalia conhecimentos obtidos até o término do Ensino Médio. É usado como parte do processo seletivo de centenas de Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas. 28

É um programa do Ministério da Educação, criado pelo governo federal em 2004, que oferece bolsas de estudos em instituições de educação superior privadas, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, a estudantes brasileiros de baixa renda, sem diploma de nível superior, foi criado pela MP 213/2004 e institucionalizado pela Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao programa.

107

3.6 A Universitária e a Vida Fora da Casa Mamãe Margarida

Uma nova fase se inicia para Apurinã; agora ela não era apenas uma

abrigada da casa, mas simplesmente a primeira menina abrigada a passar na Ufam,

por isso a CMM premiou-a com uma viagem para a Itália, onde teve a oportunidade

de conhecer vários lugares; foi também para a Áustria. Durante a viagem, a jovem

recebeu um convite para ficar na Itália, mas não quis porque não queria abandonar

as irmãs que estavam no Brasil.

A jovem volta para Manaus e inicia a sua vida de universitária, mas agora

ela já estava com quase 19 anos (faltava apenas dois meses para seu aniversário) e

precisava sair da CMM. Então, ela foi morar de aluguel com uma amiga, mas não

seria fácil viver sem a proteção da CMM; era um pássaro inexperiente, que saíra do

ninho para buscar outros voos e outras relações num horizonte cheio de

complexidade. E ela fala sobre a nova experiência:

Então, a minha saída da CMM, não foi fácil em nenhum aspecto, nem emocional, nem financeiro, nem educacional, enfim, quero dizer que foi “barra” de todas as formas. Para começar, eu sempre deixei parecer para as pessoas muito independência, mas, no fundo, no fundo, sempre foi autodefesa. A verdade é que desde quando me dei conta de que não tinha possibilidades de sair da CMM e ir morar com minha mãe, ou com qualquer outra tia, fiquei muito mal, me senti um lixo. As crises começaram a vir, mas, ao mesmo tempo, eu precisava provar para mim que eu podia ser feliz, sem ter que estar com aquelas pessoas que não entendiam e não respeitavam minhas opiniões, minha visão de mundo, meus gostos, meus defeitos, minhas qualidades. A verdade é que eu sou muito diferente de todos e todas da família, e a CMM contribuiu para isso. Eu saí da CMM com algumas coisas materiais encaminhadas, pois tive um ano para juntar dinheiro, junto com uma amiga que também era abrigada e vivia a mesma situação que eu. Então, nós já tínhamos certo que iríamos morar juntas, assim que o juiz nos desabrigasse. Assim, quando saí da CMM, fomos morar num ap/quitinete, até legalzinho. Lá pagávamos aluguel, energia e uma taxa de água. A vida fora do abrigo é muito difícil, até hoje, porque imagina que você passa a tua infância e adolescência toda sendo sustentada por alguém, bem ou mal, mas por um adulto e, de repente, você se vê sozinha, responsável pelo teu próprio sustento, pela tua sobrevivência! Foi muito difícil conciliar trabalho, estudo, e despesas, que nem tinha noção de quanto pesavam na vida da gente. Mas fui vivendo. A vida a dois com a amiga não durou muito tempo, pois os conflitos começaram a chegar logo; eu comecei a me sentir a empregada dela, porque ela ganhava mais do que eu, apesar de ainda estar cursando o ensino médio, mas trabalhava em dois horários, logo, ganhava pelos dois. E eu acabava contribuindo bem

108

menos, na compra da alimentação, visto que as despesas com energia, água e aluguel eram divididas em partes iguais. E todo serviço doméstico acabava sobrando para mim, sobretudo nos fins de semana. Então, não deu certo, a relação começou a ficar insustentável, e eu resolvi procurar um lugar para morar sozinha, mesmo porque tinha o desejo de que minhas irmãs passassem o fim de semana comigo, e lá não era possível, devido o espaço ser pequeno para muitas pessoas. (Pesquisa de campo, 2012).

E talvez por ironia do destino, Apurinã sai da CMM no mesmo período em

que suas irmãs Potyra e Jassy iniciam a vida de abrigadas, pois elas são retiradas

do convívio com a mãe por causa de abuso sexual sofrido por Potyra.

Potyra revelou à minha tia, que o marido da minha mãe, meu padrasto, a aliciava há mais de um ano. Isso gerou um caos, pois eu fiquei revoltadíssima, sobretudo porque minha mãe não acreditava na minha irmã e porque eu sempre desconfiei dele, e sempre disse à minha mãe, mas ela nunca me dava ouvidos e sempre o defendia, me acusando de estar com ciúmes dela. A partir disso, sob muita pressão que fiz, minha mãe resolveu deixá-lo, e sair de casa. Assim, minhas irmãs chegaram ao abrigo, pois corriam risco de vida. Apesar da denúncia de violência sexual não ter ocorrido de fato, pois, como o marido da minha mãe sabia que ela cumpria condicional, e que estava com nome falso, tinha medo de que ele contasse à polícia o fato, então, minha mãe seria presa novamente, agora por uma preventiva que tinha em seu nome verdadeiro e por falsidade ideológica. E eu, na época, a entendi, mesmo preferindo que ela denunciasse, e mesmo que corresse o risco de voltar à prisão. O que importava para mim naquele momento era saber que o que minha irmã sofreu não iria ficar impune, o que não aconteceu. Então, as duas, Potyra e Jassy, foram morar no abrigo, no período em que eu estava de saída, que contradição, a vida! (Pesquisa de campo, 2012).

Apurinã já trabalhava como auxiliar administrativo na própria CMM (com

CTPS assinada), no turno matutino, e no turno vespertino cursava Ciências Sociais

na Ufam e Serviço Social, no Centro Universitário do Norte (Uninorte) (universidade

privada), no turno noturno. Porém, conciliar trabalho e estudo não foi fácil e ela não

aguentou um ano nesse pique, então desistiu da Ufam, e passou a estudar à tarde

no Uninorte.

Contundo, antes de sair da federal, no dia 26 de março de 2008, dia do seu

aniversário de 19 anos, ela conheceu um professor (E), que faria parte da vida dela

futuramente.

109

Eu pedia nas minhas orações, que o homem da minha vida, eu queria encontrar na universidade, então eu conheci o (E) na Ufam no dia do meu aniversario de 19 anos. sempre tive aquela coisa de menina, príncipe encantado, etc., fiquei toda mexida, trocamos telefones e nos encontramos depois. (Pesquisa de campo, 2012).

Nesse mesmo período, a vida começa a exigir mais ainda, de Apurinã, e ela

vai percebendo a cada dia que não era fácil ser adulta e responsável por diversas

situações, pois, quando se tem com quem dividir as questões cotidianas, as coisas

parecem mais simples, ou apenas podemos sentir segurança, e assim, em cada dia

de gente grande, a moça sentia as novas agruras da vida, e o peso da

responsabilidade com ela e com as irmãs.

Em meados de 2008, fui morar sozinha e, nesse mesmo período, minha irmã foi internada com urgência por suspeita de tuberculose, e então começou o pior momento da minha vida. Foi uma mistura de tudo, fragilidade emocional, crise com minha melhor amiga, relação com as irmãs da CMM fragilizada, carência de recursos financeiros para a vida agora sozinha, minha outra irmã que estava no abrigo em depressão, nossa! foi um turbilhão de dificuldades. E naquele momento a única pessoa que estava comigo, dando apoio, segurança, conforto era o (E). Minha irmã Potyra, na época com 16 anos, ficou internada até o fim de maio, e quando saiu do hospital precisava de cuidados especiais, pois estava realmente com tuberculose, logo, não podia voltar ao ambiente do abrigo, visto que lá não tinha possibilidades de ter um acompanhamento exclusivo, e as condições de ventilação e higiene nos quartos das meninas não eram o ideal para a sua recuperação e tratamento. Assim, eu solicitei das irmãs que ela fosse morar comigo, diante dos cuidados que ela precisava. Você deve estar se perguntando e a mãe de vocês nessa história? (Pesquisa de campo, 2012).

Apurinã continuou fazendo Serviço Social no Uninorte, e já tinha certa

proximidade com a mãe, mas ainda morava de aluguel. Começou a namorar o

professor, e se encantava a cada dia com ele. Apurinã via nessa relação muitas

possibilidades, e sonhava em construir com ele uma família.

Ele é um homem inteligente que ela sempre sonhou, logo descobre que ele

seria o homem da sua vida. Esse novo namorado renovava suas esperanças de

mulher e suas necessidades de carinho atenção e amor.

Com 16 anos eu já queria ser mãe, eu achava lindo, queria dar carinho, mesmo não tendo recebido carinho, viver o processo de gravidez, então, eu achava lindo. Então com dois anos de relacionamento com o (E), eu resolvi ser mãe e o (E) tinha que ser o

110

pai do meu filho, na verdade, a imaturidade me fez apressar esse processo, eu ainda não me sinto adulta, então, ser mãe para mim era como eu criei as minhas irmãs, só eu sei o que passei para concluir a faculdade de resguardo. (Pesquisa de campo, 2012).

Depois de um tempo com o professor, e muito apaixonada, Apurinã resolve

ser mãe e acredita que o (E) é o homem de sua vida, e o homem ideal para ser o pai

de seu filho. E, no último ano da faculdade, ela engravida, junto com a gravidez

também surgem várias decepções com o namorado.

Contudo, a vida lhe apresenta outro desafio, pois sua irmã do meio, Potyra,

recebeu o diagnóstico de doença muito grave e sem cura, Poliangeite

microscopica29 e, por causa da doença, a moça passa a receber o Benefício de

Prestação Continuada (BPC). E Apurinã lamenta a falta de apoio da mãe, e a falta

de uma família. Afirma, com muita tristeza:

A minha mãe é a grande decepção da minha vida, eu já fui apaixonada pela minha mãe, mas agora não, eu entendo que ela também é vitima, mas não quero contato com ela, ela não se comporta como mãe, não cuida das filhas. Não tem uma presença, não tem apoio, eu tentei fortalecer esse vínculo mas não deu certo e eu abri mão da minha mãe. Sabe qual é a minha dificuldade de trabalhar com todos os problemas que eu tenho? É que eu não tenho com quem contar. Mesmo assim eu tenho o sonho de conhecer meu pai, eu queria ter o nome do meu pai, a minha mãe não sabe o nome do meu pai. Eu não tenho noticia dele, eu queria muito dar um avó para o meu filho, porque eu não tive. (Pesquisa de campo, 2012).

3.7 A Vida Depois da Graduação

Hoje, Apurinã está com 23 anos, é graduada em Serviço Social, mora com o

filho de um ano de idade, ainda trabalha como auxiliar administrativo na CMM e

aufere R$ 700,00 por mês. Não tem casa própria, mora de aluguel e paga R$ 500,00

por mês. Ela também conta com a ajuda do pai da criança.

29

É uma forma de vasculite sistêmica de pequenos vasos, associada aos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, que preferencialmente acomete vênulas, capilares e arteríolas, e que pode, entretanto, envolver artérias e veias. Está entre as vasculites sistêmicas primárias de pequenos vasos mais frequentes, e pode ter apresentação clínica indistinguível da granulomatose de Wegener e da síndrome de Churg-Strauss. Estas vasculites de pequenos vasos são histologicamente semelhantes e podem ser diferenciadas pela presença de granulomas na granulomatose de Wegener, ou de quadro clínico-funcional de asma na síndrome de Churg Strauss. (Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo>. Acesso em: 20 abr. 2012).

111

Ela tem dificuldade de trabalhar com um filho pequeno; como é muito bem

quista na CMM, atualmente leva o filho para o trabalho. Diante dessa realidade de

pura sobrevivência, ela destaca que ainda passa por necessidades econômicas,

principalmente.

Como, infelizmente, qualificação profissional não é garantia de um emprego

que possa mudar a situação de pobreza, é como assistente social que ela abre, com

muita tristeza e emoção, o seu coração ferido:

Eu estou em crise com a profissão, na realidade não é com a profissão em si, é com a conjuntura, eu tenho muito fé que as coisas vão chegar na minha vida, a crise é porque se tu não tem um sobrenome, se não faz parte de grupos, você não consegue emprego, eu sei de colegas, que colaram a faculdade inteira, eu conheço tanta gente nessa cidade, mas não quero me vender, eu não tenho coragem de trair o que eu acredito e por isso eu não consigo emprego. Eu pedi minhas contas da CMM, porque eu preciso cuidar do meu filho da minha irmã, mesmo agora, depois de formada, eu passo necessidades. E isso para mim dói muito, lá foi a minha casa, e hoje eu não me sinto valorizada por ela. Sabe, quando a irmã me apresenta como ex-abrigada e diz que agora sou assistente social, eu me sinto um troféu, por que eu fui um projeto que deu certo, a casa ganhou muito dinheiro às minhas custas, eu fui a primeira abrigada a concluir a faculdade, na verdade, para mim, isso é muito triste. (Pesquisa de campo, 2012).

Apurinã tenta sobreviver e contornar a relação complicada com o pai do

seu filho pois, em quatro anos de relacionamento, ele já a fez sofrer muito, porém,

mesmo ela sabendo dos defeitos dele, não consegue deixar de amá-lo, no fundo,

acredita que vai chegar o momento da grande mudança; ela já se separou várias

vezes e voltou novamente. Ele tem outros relacionamentos, filhos e histórico de

várias mulheres, mesmo assim é o amor da vida dela.

E, diante de mais uma fase difícil, ela fala da fé, acredita que Deus vai olhar

por ela, que vai chegar a hora, e emocionada ela fala orgulhosa de ter lutado muito:

Só vejo uma esperança: passar num concurso público, preciso acreditar que tudo tem seu tempo, pois eu passaria por tudo novamente para poder estudar, hoje eu vejo no rosto das minhas irmã e primas o orgulho que elas têm de mim, por ter concluído a faculdade, vejo a esperanças nas pessoas, e isso para mim vale a pena. (Pesquisa de campo, 2012).

112

Esse orgulho talvez só seja realmente compreendido por quem teve que

passar por tantas dificuldades para ter acesso ao direito à educação, acreditar que a

educação é a chave para um mundo melhor pode não ser óbvio, o que não está

posto para alguém que vivenciou a ausência real de garantias de direitos.

Potyra,atualmente, está com 20 anos de idade, é beneficiária do BPC por

causa da doença diagnosticada, é uma moça introspectiva e que não quer nenhum

tipo de relacionamento com sua mãe. Conviveu algum tempo com Apurinã, mas

recentemente resolveu morar com um companheiro. Ela ainda não terminou o

ensino médio e, além das marcas e lembranças da vida de risco e desproteção,

convive com a certeza da doença incurável.

Jassy está com 17 anos de idade, é mãe de um menino de dois anos e

reside com seu companheiro. Ainda não concluiu o ensino fundamental. Mesmo

diante da luta vivenciada, ela é uma menina alegre e amorosa, guarda poucas

lembranças da infância e, talvez por isso, não demonstra sofrimento e/ ou raiva da

mãe.

113

4 CONSIDERAÇOES FINAIS: O ENTRECRUZAR DAS HISTÓRIAS

O real não está na saída nem na chegada,

ele se dispõe para a gente é no meio da travessia

(Guimarães Rosa)

Por meio do estudo realizado a partir das narrativas apresentadas neste

trabalho, foi possível constatar que a história é contada muitas vezes pelo

colonizador, restando ao colonizado o estigma do pobre acomodado ou do

preguiçoso que não quer trabalhar para mudar suas condições de vida. Diante desse

cenário permeado de injustiças sociais que se constrói a história de milhares de

pessoas que lutam cotidianamente para validar o direito e o acesso à proteção

social, à equidade e à parte que lhes foi bruscamente retirada deste “latifúndio”.

Em um contexto de desigualdades sociais é que essas histórias reais,

relatadas neste trabalho, entrecruzaram-se e desenvolveram-se, num processo

distinto e ao mesmo tempo semelhante, quanto à necessidade de acesso à proteção

social.

É na realidade da pobreza e de abandono que as duas mulheres

apresentadas neste trabalho traçaram seus caminhos, resistindo para romper com a

violência e com a falta de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado.

Assim, ao falar em proteção social, no contexto brasileiro, é relevante resgatar as

impressões de quem dela necessita e a conjuntura que a desenvolve, no bojo da

sociedade capitalista.

Mediante os relatos apresentados, observa-se como os sujeitos em situação

de pobreza se posicionam na sociedade e nos convidam a refletir a respeito da

relação com o Estado. Apresenta-se a riqueza do ser genérico e o acúmulo de

experiências da vida real, coberta de significados e de meandros que constroem as

relações sociais, bem como a violência da pobreza e da falta de oportunidades,

diante de uma realidade social excludente.

As marcas somadas durante toda uma vida permeada de riscos sociais é

uma realidade frequente para as crianças pobres, que podem ser obrigadas a perder

o convívio familiar, por causa de um processo de violência e maus-tratos, que é

evidente na realidade brasileira.

114

A primeira mulher que dá vida a esta história relata momentos de muitas

dificuldades e abandono, durante todo a sua infância e adolescência. A vida

expressada pelos sujeitos deve ser observada para compreender e materializar

estratégias de atenção às crianças e aos adolescentes e à família como um todo,

para efetivar a proteção social e a assistência social, visando ao fortalecimento e à

manutenção dos vínculos familiares, para possibilitar a cidadania e a justiça social.

A pobreza e desproteção social que afeta a família imprime novos desafios,

condiciona a vida e os vínculos familiares; estes, fragilizados, se rompem

bruscamente, força o abandono dos seus membros, mediante as condições de

sobrevivência. Ser criança, nessas condições, é realizar as tarefas de casa, é

trabalhar para o sustento do grupo familiar. É o amadurecimento precoce, é o

aviltamento da infância, e essas condições prevalecem, em detrimento da

importância da escola, da saúde, ou até mesmo da afetividade familiar de seus

membros.

São realidades como essas que revelam a inoperância do Estado e a

segmentação imposta pela sociedade capitalista, que exclui parcela da população,

do usufruto de bens e serviços, assim como do direito ao reconhecimento de sua

própria condição, numa realidade crescente de carência que se constituem em

desafios para o sistema de proteção social brasileiro.

O contexto da constituição das leis de proteção social no Brasil e as tensões

que movimentam a realidade, podem ser relatados de várias formas e diferentes

perspectivas. Porém, é imprescindível levar em consideração a visão dos sujeitos

que compõem essa história, os quais tendem a ser elencados de forma genérica e

suas experiências são esquecidas ou esvaziadas de significados.

Para tanto, é fundamental atentar para as especificidades locais, pois as

diferenças regionais não podem ser suprimidas de suas características específicas,

as quais estão inseridas no movimento da história e da luta dos sujeitos nas suas

particularidades cotidianas que constituem o Brasil e seus “brasis”.

Dentre esses brasis, cita-se o Estado do Amazonas e sua capital, Manaus,

que, mesmo estando distante das grandes regiões desenvolvidas do País, sofre as

influências dos contextos social, econômico, cultural e histórico nacional e apresenta

um desenvolvimento repleto de desigualdades sociais e de concentração de renda.

Diante do exposto, verifica-se que o texto da CF de 1988 garante o modelo

de proteção social não contributiva, que tem por eixo principal a proteção integral às

115

famílias, isto é, o reforço para que elas exerçam a proteção de seus membros

(SPOSATI, 2009, p.50). Contudo, a partir da década de 1990, as estratégias

neoliberais de um Estado mínimo, principalmente no trato das políticas sociais, vão

direcionar a proteção social no Brasil.

Essa realidade apresenta baixos investimentos no social, mais focalização e

menos universalização dos direitos, desconsiderando, assim, a supremacia dos

direitos sociais em detrimento do econômico. Essa lógica determina a pontualidade

das políticas de atendimento às famílias, incentiva o trabalho voluntário e a

responsabilidade do indivíduo pelo seu bem-estar, e, com isso, a lógica do esforço

pessoal.

A segurança, a proteção à maternidade e à infância são garantias da CF de

1988, em seu art. 6o, e nessa perspectiva é imprescindível que a intervenção estatal

esteja conectada com a territorialidade, para que a pobreza e a desigualdade social

não sejam naturalizadas, e incorpore concretude de condições de acesso como dois

elementos imbricados mutuamente (KOGA, 2011, p.16).

Esse movimento possibilita o estabelecimento de parâmetros de

questionamentos a respeito da política social desenvolvida e suas características

históricas, que podem simplesmente não comportar a realidade complexa da

população empobrecida e em situação de risco social, não efetivando, dessa forma,

a segurança social.

É necessário, também, romper definitivamente com o estigma histórico que

coloca a proteção social no campo da compaixão, do amor ao próximo. Pois o

modelo de proteção social assegurada na CF de 1988, não é continuísmo de velhas

práticas assistencialistas ou de modelo de gestão tecnocratas (SPOSATI, 2007, p.

20). Concretizando-a como direito do cidadão, incidindo em mudanças concretas

que efetivem o dever do Estado na proteção à família.

Os direitos da criança e da família pobre, no Brasil, passam por avanços

significativos, porém, o desrespeito que marcou a vida dessas mulheres ficará para

sempre. A memória estará viva e as marcas estarão sempre presentes, mesmo que

sua condição social hoje seja outra, ninguém esquece tanta violência sofrida. Além

da violência e da pobreza, existiu a violência do abandono, do desrespeito, e

mutilação da infância, da adolescência.

Esses relatos são claros e enfáticos a respeito da necessidade da proteção

social. E, de acordo com Sposati (2007, p. 442), há necessidade de criminalização

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da pobreza, pois a condição de ser pobre não gera direitos. Toda a história

demonstra que o sofrimento poderia ser amenizado.

Assim, as marcas são profundas e a história é rica de detalhes que

dispensam qualquer análise, pois, chegar a qualquer lugar, em uma realidade de

abandono, é basicamente improvável. Mas, diante do improvável, essa história

mostra a urgência da efetivação da proteção social, como garantia de cidadania, da

equidade, e do desenvolvimento humano.

A proteção ao trabalho é imperativo para que as famílias consigam preservar

sua autonomia e garantir a própria subsistência. Deve buscar formas para priorizar o

atendimento de qualidade aos sujeitos, garantir o acesso e criar condições para que

os cidadãos ampliem sua resiliência (SPOSATI, 1998 p.26).

Todavia, é diante do reconhecimento dos problemas estruturais da

sociedade brasileira e do debate sobre a efetividade do sistema de proteção social,

que as diferentes correntes de pensamentos destacam a inoperância do sistema no

enfrentamento da pobreza e da desigualdade.

Contudo, a vida das duas mulheres, que têm suas histórias relatadas neste

trabalho, explicita a importância da proteção social; principalmente a história de

Apurinã. Mesmo que as garantias constitucionais efetivadas nesse contexto não

tenham conseguido prevenir uma realidade de sofrimento, abandono, exploração do

trabalho e violência, pois é possível constatar o retardo e a perspectiva do extremo

para que o direito e a dignidade humana fossem protegidos de acordo com os

dispositivos constitucionais.

Isso posto, é importante elencar que, para garantir os direitos sociais, não

basta apenas o reconhecimento em lei, este é apenas o primeiro passo; dessa

forma, é imprescindível a materialização do direito sob o reconhecimento do sujeito,

da igualdade e da autonomia e da vida ativa, nos territórios, local onde se

concretizam as relações sociais. (KOGA, 2011, p.33).

E, assim, serviços que atendam às demandas, de acordo com suas

respectivas necessidades. Para Jaccoud (2009, p. 69), é justamente pela via do

direito social que a proteção social se torna efetiva, reduzindo vulnerabilidades e,

incertezas, igualando oportunidades e enfrentando as desigualdades.

Em suma, é importante lembrar que a pobreza não é um problema individual,

ou apenas a carência de renda, mas, é advinda de problemas estruturais da

sociedade capitalista que determina o lugar do sujeito. A pobreza deve ser

117

combatida com políticas articuladas, com garantias de oportunidade, de acesso a

bens e serviços, ao direito e empregos, mecanismos para ampliar a capacidade

protetiva dos sujeitos e a equidade, para que velhas praticas não permaneçam em

novas configurações.

Fundamentos que inovaram a concepção de direitos sociais e elaboram o

conceito de seguridade social, superando o antigo padrão de proteção social e com

“novas concepções de direito e justiça social” (JACCOUD, 2009, p.62, apud

DRAIBE, 2002, p. 3). Diante dessa nova concepção, a proteção social pública seria

direcionada contra as privações, sejam elas decorrentes de riscos sociais ou de

situações socioeconômicas, ampliando a responsabilidade pública. Concretizando o

tripé da seguridade social.

E assim, somos convidados a refletir a respeito das inúmeras categorias que

poderiam aqui ser trabalhadas, para aprofundar o estudo, porém, não teríamos

tempo para essa análise no período de um mestrado, nos colocando a possibilidade

de aprofundamento futuro no doutorado.

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