pontifÍcia universidade catÓlica de minas gerais
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito
Faculdade Mineira de Direito
SÚMULAS VINCULANTES COMO ENTRAVES IDEOLÓGICOS AO PROCESSO
JURÍDICO DE ENUNCIAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA
Cynara Silde Mesquita Veloso
Belo Horizonte
2008
CYNARA SILDE MESQUITA VELOSO
SÚMULAS VINCULANTES COMO ENTRAVES IDEOLÓGIOCS AO PROCESSO
JURÍDICO DE ENUNCIAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Direito.
Área de concentração: Direito Processual Orientador: Professor Dr. Rosemiro Pereira Leal
Belo Horizonte
2008
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Veloso, Cynara Silde Mesquita V443s Súmulas vinculantes como entraves ideológicos ao processo jurídico de enunciação de uma sociedade democrática / Cynara Silde Mesquita Veloso. Belo Horizonte, 2008. 389f. : Il. Orientador: Rosemiro Pereira Leal Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito 1. Súmulas (Direito). 2. Direito processual. 3. Pós-modernismo. 4. Direito processual constitucional. 5. Devido processo legal. 6. Estado de direito. I. Leal, Rosemiro Pereira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa e Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 347.951.3
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito
Faculdade Mineira de Direito
A tese SÚMULAS VINCULANTES COMO ENTRAVES IDEOLÓGICOS AO
PROCESSO JURÍDICO DE ENUNCIAÇÃO DE UMA SOCIEDADE
DEMOCRÁTICA, elaborada pela acadêmica CYNARA SILDE MESQUITA VELOSO,
foi julgada adequada por todos os membros da Banca Examinadora, para a obtenção do título
de DOUTORA EM DIREITO e aprovada, em sua forma final, pelo Programa de Pós-
Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 28 de março de 2008.
Professor Dr. Marcelo Campos Galuppo
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da
Faculdade Mineira de Direito - PUC Minas
Apresentada à Banca integrada pelos seguintes professores:
Presidente: Dr. Rosemiro Pereira Leal (Orientador) – PUC Minas
Membro: Dr. José Marcos Rodrigues Vieira
Membro: Dr. Álvaro Ricardo Souza e Cruz
Membro: Dr. Adriano Perácio de Paula
Membro: Dr. Jason Soares Albegaria Neto
DEDICATÓRIA
À memória de Fernanda Soares de Mesquita, minha querida
madrinha, por ter-me acompanhado durante toda a vida. E,
sobretudo, por ter sempre acreditado nos projetos que realizei.
AGRADECIMENTOS
Em especial, agradeço ao meu orientador, Professor Dr.
Rosemiro Pereira Leal, pelos ensinamentos, incentivo, e por ter
acompanhado com dedicação a realização desta pesquisa,
tornando possível a consecução deste trabalho. Agradeço, ainda,
a todos os professores da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais; às Instituições Universidade Estadual de Montes
Claros e Faculdades Integradas Pitágoras pelo apoio na
realização do doutorado; aos acadêmicos e professores dessas
duas instituições, meus companheiros da luta diária; aos meus
pais, pelo apoio incondicional e por terem me ensinado os
valores essenciais da vida; a minha filha, Isabela, por ter
suportado minha ausência, possibilitando dedicar-me à pesquisa
realizada; a minhas queridas amigas Aurenice, Denise, Rannaí,
Priscila e Rejane pelo carinho; aos meus colegas de doutorado,
pela oportunidade da convivência; e a todos os que, de alguma
forma, colaboraram para a realização deste trabalho.
“Não mais nos orientamos atualmente por um processo histórico (causalidade histórica) fora das constituições em concepções fatalistas e inescapáveis (ortodoxo-marxistas) a determinar a consciência dos homens, mas o que se busca é a construção de uma sociedade (não causalidade sociológica) que passe pelo processo democrático do exercício coletivo das conquistas históricas jurídico-normativas de todos igualmente decidirem o devir. Claro que tal esforço teórico tem seus fundamentos na instituição constitucionalizada do PROCESSO que se define pelos princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa, condutores dialógicos (afirmações-negações) no espaço político de juridificação (edificação jurídico-sistemática) dessa nova realidade esperada.”
Rosemiro Pereira Leal
RESUMO
A adoção das súmulas vinculantes pelo ordenamento jurídico brasileiro foi o tema da presente
tese. A pesquisa insere-se na pós-modernidade, implicando em uma formulação teórica em
que ocorre a falência das metanarrativas. Para permitir maior aprofundamento da matéria,
fez-se necessário estabelecer um recorte específico. Desse modo, objetivou-se investigar a
compatibilidade das súmulas vinculantes com o Direito Processual próprio do sistema
romano-germânico e inquirir sobre a observância do devido processo constitucional em sua
emissão. Para consecução do objetivo, submeteram-se as súmulas vinculantes a testes por
meio do critério de falseabilidade popperiano e da teoria neo-institucionalista do processo. Os
resultados dos testes apontam que, na emissão dessas súmulas, não há observância do devido
processo constitucional e suas duas vertentes (o devido processo legislativo e o devido
processo legal) e elas mostram-se incompatíveis com o sistema romano-germânico. Assim,
os legisladores, a pretexto de solucionarem a crise de operacionalidade do Judiciário e de
proporcionarem celeridade processual, segurança jurídica e tratamento isonômico das partes,
utilizaram-se do processo histórico próprio da sociedade fechada. A teoria discursiva
habermasiana também indica que as súmulas são incompatíveis com o Estado democrático de
direito, uma vez que elas são decisões monológicas (solitárias) dos tribunais e não são
compartilhadas pelos destinatários dessas decisões. Por fim, elas não condizem com a teoria
processual da pós-modernidade – a teoria neo-institucionalista do processo. Os resultados
dos testes refutaram as súmulas vinculantes, motivo pelo qual se ofereceram à apreciação
crítica as propostas alternativas à sua adoção. Os testes corroboraram a proposta alternativa de
aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional. A pesquisa
concluiu que qualquer proposta alternativa na superação da crise do Judiciário deve submeter-
se ao processo jurídico nos moldes estudados pela teoria neo-institucionalista do processo.
Palavras-chave: pós-modernidade, Estado democrático de direito, súmulas vinculantes,
devido processo constitucional, teoria discursiva habermasiana, critério
de falseabilidade popperiano, teoria neo-institucionalista do processo, crise
de operacionalidade do Judiciário.
ABSTRACT
The adoption of the binding summula by the Brazilian legal system has been the subject of the
present thesis. The research is inserted in the post-modernity context, which implies a
theoretical formulation where metanarratives collapse. In order to allow a deeper approach to
the subject, it has been necessary to establish a specific inquiry outline. Thus, the objective
has been to investigate the compatibility between the summula and the very procedural law of
the Roman-Germanic legal system and inquire about the observance of the due constitutional
process in its issuing. In order to fulfil this objective, the summulae have been tested
accordingly to the Popperian falseability criterion and the new-institutionalist process theory.
Tests’ results indicate that, at the issuing of the summulae, there is no observance of the due
constitutional process and neither of its variants (due legislative process and due process of
law) and they appear as such incompatible with the Roman-Germanic legal system. Thus,
lawmakers, under the excuse of solve the operationality crisis within the Judiciary and to
foster process celerity, juridical safety and equal treatment to the parties, took advantage of
the typical historical process of a closed society. Habermas’s discursive theory also indicates
the summulae are incompatible with a democratic State of right, since they are monological
(solitary) decisions of the tribunals and are not shared by the addressees of such decisions. At
last, they appear incompatible with the post-modernity process theory – the neo-
institutionalist theory of process. Tests’ results refute binding summula, and for this reason
alternate propositions to its adoption have been offered for a critical assessment. Tests did
corroborate the proposition of applying a democratic law by means of the due constitutional
process. The research concludes that any alternate proposition to overcome the crisis in the
Judiciary must be submitted to the juridical process within the framework studied by the
new-institutionalist theory of process.
Keywords: post-modernity, democratic State of right, binding summulae, due
constitutional process, Habermasian discursive theory, Popperian falseability
criterion, new-institutionalist theory of process, operationalization crisis of the
Judiciary.
RIASSUNTO
L’adozione dei compendi vincolanti da parte dell’ordinamento giuridico brasiliano è stato
l’argomento della presente tesi. La ricerca si inserisce nella postmodernità, questa implica
una formulazione teorica in cui avviene il fallimento delle metanarrative. Per permettere un
maggior approfondimento della materia, si è dovuto stabilire un ritaglio specifico. Così, vi è
stato l’obiettivo di investigare la compatibilità dei compendi vincolanti con il Diritto
Processuale tipico del sistema romano-germanico e inquisire sull’osservanza del dovuto
processo costituzionale nella sua emissione. Per il conseguimento dell’obiettivo i compendi
vincolanti sono stati sottomessi a tests per mezzo del criterio di falsificazionismo popperiano
e della teoria neoistituzionalista del processo. I risultati dei tests segnalano che nell’emissione
di questi compendi non vi è l’osservanza del dovuto processo costituzionale e delle sue due
vertenze (il dovuto processo legislativo e il dovuto processo legale) e essi si mostrano
incompatibili con il sistema romano-germanico. In questo modo, i legislatori col pretesto di
soluzionare la crisi di operatività del Giudiziario e di proporzionare agevolezza processuale,
sicurezza giuridica e trattamento isonomo delle parti si sono utilizzati del processo storico
caratteristico della società chiusa. La teoria discorsiva habermasiana indica anche che i
compendi sono incompatibili con lo Stato democratico di diritto, una volta che essi sono
decisioni monologiche (solitarie) dei Tribunali e non sono condivisi dai destinatari di queste
decisioni. Infine, essi si mostrano incompatibili con la teoria processuale della postmodernità
– la teoria neoistituzionalista del processo. I risultati dei tests rifiutarono i compendi
vincolanti e per questo motivo si sono offerte all’apprezzamento critico le proposte alternative
alla sua adozione. I tests hanno confermato soltanto la proposta alternativa di applicazione di
un diritto democratico da parte del dovuto processo costituzionale. La ricerca ha concluso
che qualsiasi proposta alternativa nella superazione della crisi del Giudiziario debba
sottomettersi al processo giuridico nei modelli studiati dalla teoria neoistituzionalista del
processo.
Parole chiavi: postmodernità, Stato democratico di diritto, compendi vincolanti, dovuto
processo costituzionale, teoria discorsiva habermasiana, criterio di
falsificazionismo popperiano, teoria neoistituzionalista del processo, crisi di
operatività del Giudiziario.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................11
CAPÍTULO 1 CONCEPÇÕES DE DIREITO DEMOCRÁTICO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO..........................................................................................20
1.1 Falseabilidade das teorias e a sociedade aberta em Popper .........................20 1.2 Legitimidade do direito e teorias normativas da democracia em
Habermas......................................................................................................91 1.3 Teoria neo-institucionalista e teorização constitucional do direito
processual democrático ..............................................................................158 1.4 Concepções de Estado de direito e Estado democrático de direito ............194
CAPÍTULO 2 SÚMULAS VINCULANTES PERANTE O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ..................................................................................................245
2.1 O efeito vinculante e o precedente jurisdicional nos sistemas romano-germânico e anglo-americano ....................................................................245
2.2 Súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro ..........................279 2.3 O mito do efeito vinculante como solução para a crise de operacionalidade
do Judiciário ...............................................................................................295 2.4 Da ilegitimidade da adoção das súmulas vinculantes ................................310
CAPÍTULO 3 TESTABILIDADE DAS PROPOSTAS ALTERNATIVAS ÀS SÚMULAS VINCULANTES PELA TEORIA NEO-INSTITUCIONALISTA DO PROCESSO...........................................................................................................................320
3.1 Criação de um Tribunal Constitucional específico e mudanças estruturais no Judiciário ...............................................................................................320
3.2 Súmula restritiva de recurso, súmula de filtragem, súmula com eficácia administrativa, requisito da transcendência no recurso de revista e a repercussão geral no recurso extraordinário ..............................................328
3.3 Aperfeiçoamento da Justiça Estadual, possibilidade de alteração da jurisprudência e a privatização do Judiciário .............................................336
3.4 Aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional .............................................................................................340
CONCLUSÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES............................................................346
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................360
11
INTRODUÇÃO
A adoção das súmulas vinculantes pelo ordenamento jurídico brasileiro constitui-se
em contraponto ao tema da presente tese. Para um estudo aprofundado dessa matéria, estudar-
se-á a legitimidade dessas decisões judiciais em face do devido processo constitucional.
A realização da pesquisa partiu dos seguintes questionamentos: levando-se em
consideração a filiação do Brasil ao sistema romano-germânico e a positivação do Estado
democrático de direito pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, até que
ponto as súmulas vinculantes compatibilizam-se com o Direito Processual próprio do sistema
romano-germânico e, ainda, na emissão dessas súmulas há observância do devido processo
constitucional? O trabalho baseia-se na seguinte hipótese: As súmulas vinculantes são
incoerentes com o ordenamento jurídico brasileiro, que tem seu sustentáculo na lei, uma vez
que o Brasil se filia ao sistema romano-germânico, e em sua emissão não há observância dos
princípios que regem o Estado democrático de direito e, em especial, do devido processo
constitucional e de suas duas vertentes: o devido processo legislativo e o devido processo
legal.
A crise de operacionalidade do Judiciário é tema que gerou debates nos meios
acadêmicos e jurídicos. Por sua vez, o instituto da súmula vinculante foi introduzido no
ordenamento jurídico brasileiro recentemente, pela Emenda Constitucional n. 45, de 08 de
dezembro de 20041, com o intuito de solucionar a morosidade da atividade jurisdicional e
viabilizar o acesso à jurisdição. Se, por um lado, os argumentos apresentados por aqueles que
defendem a legitimidade das súmulas têm sido baseados no mito da celeridade processual, da
segurança jurídica, da certeza do direito e do tratamento isonômico das partes, por outro, há
os que defendem a ilegitimidade das súmulas vinculantes - por essa concepção, estas não se
harmonizam com o sistema romano-germânico e com os princípios do Estado democrático de
direito. Assim, trata-se de tema atual e polêmico e que carece de pesquisas aprofundadas que
possam trazer contribuições teóricas sobre essa temática. Por conseguinte, este estudo será
relevante, uma vez que pretende investigar a legitimidade da adoção das súmulas vinculantes
pelo Estado democrático de direito e submeter a testes as propostas alternativas às súmulas
1 BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
12
vinculantes, podendo o resultado desses testes levar à refutação ou à corroboração dessas
propostas, caso resistam aos testes a que foram submetidas. Para tanto, utilizar-se-ão os
critérios de refutabilidade, testabilidade ou falseabilidade popperianos e a teoria neo-
institucionalista que se constitui em uma teoria processual testificante da validade normativo-
democrática.
Apesar de o levantamento bibliográfico realizado para a presente pesquisa indicar que
há trabalhos que abordam a temática ora em estudo, observa-se que os argumentos utilizados
para refutar a adoção das súmulas vinculantes são diferentes dos apresentados nesta tese.
Ademais, trata-se de um estudo aprofundado sobre as súmulas vinculantes, tendo como
recorte a legitimidade dessas decisões no Estado da pós-modernidade. Um problema
existente nas abordagens acerca das súmulas vinculantes é que elas não colocam no centro de
suas reflexões o devido processo democraticamente constitucionalizado. Portanto, a
presente tese, de maneira inovadora, fundamentada no processo jurídico nos moldes
preconizados pela teoria neo-institucionalista do processo, contribui para uma nova
epistemologia do Direito Processual.
O ineditismo ou a originalidade são identificados em três momentos nesta tese. Em
primeiro lugar, na fundamentação teórica do trabalho, que, visando realizar um estudo
pormenorizado sobre o tema, utilizará os aportes teóricos de autores que não trabalham
diretamente com o Direito Processual, como Popper2 e Habermas3. Além disso, a pesquisa
valer-se-á do aporte teórico de Leal4, idealizador da teoria neo-institucionalista do processo5.
Assim, embasado em Popper e Leal, a tese delineia um estudo comparativo entre o processo
histórico - defendido pelos inimigos da sociedade aberta, Platão, Hegel e Marx, e pelos
defensores das súmulas vinculantes - e o processo jurídico preconizado por Popper6 e Leal.7
2 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. Ver também POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987. v.1, 2. 3 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 3, p. 105-125, jan./jul. 1995; e também as obras do autor: Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1; Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 2; Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social. Versión castellana de Manuel Jiménez Redondo. 4. ed. España: Taurus Humanidades, 2003; Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista. Versión castellana de Manuel Jiménez Redondo. 4. ed. España: Taurus Humanidades, 2003. 4 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. 6.ed. São Paulo: Thomson-IOB, 2005; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. 5 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. 6 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987. 7 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002.
13
Dessa forma, enquanto aqueles que defendem o processo histórico fazem uso da mecânica
social utópica ou holística típica da sociedade tribal, os que defendem o processo jurídico se
utilizam do método gradual de tentativa e erro popperiano, típico de uma sociedade aberta.
Ainda no estudo da legitimidade das decisões no Estado democrático de direito, utilizar-se-
á do aporte teórico de Habermas e, de maneira rigorosa e inédita na área do Direito
Processual, tentar-se-á reconstruir o pensamento habermasiano a partir de quatro momentos:
Teoria da ação comunicativa8, do Direito e Moral (Tanner Lectures 1986)9, Três modelos
normativos de democracia10 e Direito e democracia: entre facticidade e validade.11 Assim,
investigar-se-á se as súmulas vinculantes se compatibilizam com a teoria discursiva
habermasiana. Nesse estudo, utilizar-se-á, ainda, da teoria neo-institucionalista, pois, apesar
de Habermas ter ressaltado a relevância da procedimentalidade na construção de uma
sociedade democrática, ele não esclareceu como ocorrerá a transposição do princípio do
discurso para o princípio da democracia. Desse modo, a teoria neo-institucionalista possui
relevância, uma vez que é por meio dessa teoria processual que ocorre a institucionalização do
princípio do discurso em princípio jurídico da democracia.
Em segundo lugar, o caráter de ineditismo se relaciona com o estudo das concepções
de Estado de direito e Estado democrático de direito, a partir das pesquisas desenvolvidas no
Programa de Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e, de modo
especial, na área de Direito Processual, que tem como linha de pesquisa o processo na
construção do Estado democrático de direito. Examinar-se-ão as contribuições desses estudos
para uma nova epistemologia do Direito Processual. Na maioria dessas pesquisas acerca do
Estado democrático de direito, utiliza-se do aporte teórico de Habermas12 e, em alguns, faz-se
8 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003. Ver também HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003. 9 HABERMAS, Jürgen. Direito e moral (Tanner Lectures). In: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v. 2. 9 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995. 10 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995. 11 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v.2. 12 Nesse sentido consultar as seguintes obras: ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, Belo Horizonte, a. 3, n. 1, jul. 2004. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/prod_docente_ano1_2004.html//>. Acesso em: 10/10/2004. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade
14
uso do de Popper.13 Os estudos do processo nesta instituição, de modo geral, refutam a teoria
do processo como relação jurídica e partem da teoria do procedimento em contraditório, tendo
como ponto culminante desses estudos a teoria neo-institucionalista do processo, elaborada
por Leal, professor desta instituição. Essa teoria constitui-se em uma proposição inovadora e
diferenciadora dos estudos desenvolvidos em outras instituições e, em especial, da escola
instrumentalista de São Paulo.
O terceiro momento do ineditismo relaciona-se com a testabilidade das propostas
alternativas às súmulas vinculantes pelo critério da falseabilidade popperiano e pela teoria
neo-institucionalista do processo, por essa se constituir em uma teoria processual testificante
da validade normativo-democrática. Apesar de existirem estudos acerca das súmulas
vinculantes, as pesquisas anteriormente realizadas não se preocuparam em relacionar essas
propostas com o Estado da pós-modernidade e não submeteram a testes essas propostas.
Ainda, a maior parte desses estudos não está discutindo o tema por uma concepção da
epistemologia processual (caráter cientificista), mas sob uma perspectiva prática. Desse modo,
este estudo será relevante, porque pretende realizar um estudo sistematizado e uma análise
que reflitam sobre a viabilidade dessas propostas, com amparo na ciência jurídica e na crítica
jurídico-científica. Também se deve ressaltar que, de modo diferente de outros estudos, os
testes apontam para a necessidade de aplicação de um direito democrático pelo devido
processo constitucional. Assim, a pesquisa, de forma diferenciada, não aponta a necessidade
de reformas pontuais, apenas a necessidade de submissão aos princípios que regem o Estado
democrático de direito.
O objetivo geral do trabalho é inquirir a compatibilidade das súmulas vinculantes com
o Direito Processual, próprio do sistema romano-germânico, já que o Brasil se filia a esse
sistema, tendo como pilar de formação e sustentação do direito a lei; e investigar a
legitimidade de sua adoção pelo Estado democrático de direito, tendo em vista que esse
modelo de Estado pressupõe a construção gradativa do ordenamento jurídico pela comunidade
jurídica, através do devido processo constitucional.
Mineira de Direito, Belo Horizonte, PUC-Minas, v. 8, n. 16, p. 99, 2. sem. 2005. MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas. São Paulo: LTr, 2006. ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. 13 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003; PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2004.
15
Os objetivos específicos são: investigar as concepções de direito democrático e Estado
democrático de direito, estudar as súmulas vinculantes perante o ordenamento jurídico
brasileiro, submeter a testes as propostas alternativas às súmulas vinculantes através do
critério de falseabilidade popperiano e da teoria neo-institucionalista do processo.
Para facilitar a compreensão do trabalho, faz-se necessário esclarecer os seguintes
termos: pós-modernidade, Estado democrático de direito, teoria neo-institucionalista do
processo, devido processo constitucional, devido processo legislativo e devido processo
legal, e súmulas vinculantes.
As metanarrativas da modernidade iluminista, fundamentadas no otimismo
antropocêntrico, vislumbravam um sociedade governada pela racionalidade e objetivavam o
progresso técnico-científico e o desenvolvimento social. Porém, essse programa moderno não
logrou êxito, uma vez que não foi capaz de concretizar seus ideais emancipatórios. Com a
crise da modernidade, os estudiosos começaram a fazer referência a um novo paradigma de
compreensão do mundo – a pós modernidade. Por sua vez, o advento da pós-modernidade
também refletiu no direito:
[...] A perspectiva pós-moderna passou a indicar a falência das promessas modernas de liberdade, de igualdade e de progresso acessíveis a todos. A desconfiança de todo discurso unificante é o marco característico do pensamento pós-moderno. A realidade social, dentro da perspectiva pós-moderna, não existe como totalidade, mas se revela como fragmentada, multifacetada, fluida e plural.
O advento da pós-modernidade também refletiu no direito do ocidente, descortinando profundas transformações nos modos de conhecer, organizar e realizar as instituições jurídicas.14 (grifos do autor)
O termo pós-moderno foi utilizado pelo filósofo alemão Rudolf Pannwitz em 1917,
que o relacionava com o niilismo predominante na cultura ocidental do século XX.15 Ao
investigar as origens da pós-modernidade, Anderson enfatiza que a idéia de pós-
modernismo nasceu na América hispânica, com Frederico de Onís, em 1930, uma geração
antes de seu surgimento na Inglaterra ou nos Estados Unidos. O termo postmodernismo foi
empregado para descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo. Apesar de
14 SOARES, Ricarod Maurício Freire Soares. Elementos para uma cultura jurídica pós-moderna. Disponível em: http://host.uniroma3.it/dottorati/scuoladottoraleascarelli/doc/elementos_para_uma_cultura_juridica_pos. Acesso em: 17/11/2007. p. 7. 15 DINIZ, Antônio Carlos de Almeida. Teoria da legitimidade do direito e do estado: uma abordagem moderna e pós-moderna. São Paulo: Landy, 2006, p. 198.
16
a idéia de um estilo pós-moderno ter entrado para a crítica hispanófona em 1930, somente
cerca de vinte anos mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, essa idéia surgiu no mundo
anglófono como categoria de época e não como estética. Arnold Toynbee, no oitavo volume
de seu livro Study of History, publicado em 1954, denominou a época iniciada com a guerra
franco-prussiana de Idade Pós-Moderna. A expressão pós-moderna também foi utilizada
por outros como Charles Olson (1951), Wright Mills e Irving Howe (1959), Harry Levin
(1960), Leslie Fiedler (1960), Amitai Etzioni (1976).16 Porém, a noção de pós-moderno
somente ganhou maior difusão a partir de 1970, através de uma abordagem filosófica
desenvolvida pelo francês Lyotard, com a publicação de sua obra A Condição pós-
moderna.17
Sobre a temática pós-modernidade, na área do Direito Processual, Leal esclarece:
Ao se falar num direito processual da pós-modernidade, almeja-se com essa expressão, identificar nos textos positivados o conjunto de normas institucionalizadas pelo modelo do devido processo constitucional que, em sua gênese, reúna significância de superação de heteronomia produtiva do direito de tal modo a ensejar a construção procedimental de uma legalidade que se abre à crítica corretiva ampla e irrestrita. Esse direito processual assume compromisso teórico com as respostas a serem dadas numa universalidade pós-metafísica de instalação de comunidades jurídicas autoras, simultaneamente destinatárias, confirmadoras, reconstrutoras e operadoras do Estado demorático de direito discurivamente instituído. A processualidade jurídica institucionalizadora e recriadora do acervo normativo do Estado democrático de direito é que provocaria o salto para a pós-modernidade jurídica que requer não somente características de positividade (legalidade formal da modernidade), mas agregaria conteúdos jurídicos de testificação discursiva propiciadores de processual e incessante fiscalidade irrestrita, abstrata e concreta das bases de prodição, legiferação e cumprimento (aplicação) do direito, que só assim se mostraria realizadora do princípio da democracia.18 (grifos do autor)
A presente pesquisa situa-se na pós-modernidade, configurada não como um
momento histórico, mas como uma formulação teórica que aponta que a legitimidade do
direito não se relaciona com as metanarrativas e com uma razão autoritária, mas implica a
responsabilidade da comunidade jurídica na construção do ordenamento jurídico19. Por essa
concepção, o direito deve ser falível e fiscalizável e deve ser construído em um espaço
procedimental processualizado. Assim, o processo jurídico desempenha papel preponderante,
16 ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 9-20. 17 LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna, 2006. 18 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. p. 27-28. 19 LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
17
uma vez que ele possibilita a construção de um direito legítimo e viabiliza a enunciação de
uma Sociedade Jurídico-Político-Democrática. Por outro lado, o processo histórico é típico
da sociedade tribal (fechada), visto que não se submete à crítica.
Por sua vez, o Estado da pós-modernidade é o Estado democrático de direito
positivado pela Constituição da República Federativa, de 1988. Esse Estado encontra-se em
situação isonômica com outras instituições e se posta ao lado do processo no ordenamento
jurídico. Como instituição constitucionalizada, o Estado democrático de direito não é um
projeto acabado, mas encontra-se em construção gradativa pela comunidade jurídica, por meio
do devido processo constitucional, nos moldes preconizados pela teoria neo-
institucionalista do processo.
Outrossim, a teoria neo-institucionalista constitui o principal marco teórico da presente
tese, uma vez que essa teoria é a mais recente conquista teórica no âmbito do Direito
Processual. A teoria neo-institucionalista da decidibilidade coloca o processo jurídico no
centro de suas reflexões e passa a estudá-lo como direito de primeira geração, já que ele [o
processo] é constituinte de produção de direitos subseqüentes. Assim, o processo é que cria o
direito e, por meio dos princípios constitutivos do processo, possibilita sua renovação e
fiscalização pela comunidade jurídica.20
O devido processo constitucional é um instituto constitucionalizado
democraticamente que norteia o modo de proceder da Administração, do Judiciário e do
Legislativo, afastando qualquer subjetivismo do decisor. Desse modo, o devido processo
constitucional e suas duas vertentes - o devido processo legal e o devido processo
legislativo - são institutos indispensáveis para a construção de uma sociedade democrática.21
O devido processo legal implica na coexistência dos princípios da ampla defesa, do
contraditório e da isonomia.22
O devido processo legislativo constitui-se no direito-garantia de produção
democrática do direito e que deve ser realizado por intermédio do processo legislativo e sob
orientação do processo constitucional.23
20 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. 21 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 73. 22 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 78. 23 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 74.
18
Por fim, as súmulas vinculantes são de aplicação obrigatória e possuem força de lei, ou
seja, possuem caráter dissuasório. As súmulas são emitidas pelo Supremo Tribunal Federal,
em uma realidade não processualizada.
Na elaboração da pesquisa, utilizar-se-á o método (posição epistemológica) crítico-
eliminacionista popperiano (tentativas e erros), uma vez que, por esse critério, todas as
proposições estão abertas à crítica. O critério da testabilidade, refutabilidade ou falseabilidade
popperiano aponta que a existência da crítica é um pressuposto para construção de uma
sociedade aberta (democrática), enquanto o critério de verificação dos positivistas se relaciona
com uma sociedade fechada (autoritária). Por conseguinte, a epistemologia popperiana indica
a necessidade de aplicação de um direito democrático pelo Devido Processo Constitucional.
O presente trabalho divide-se em seis partes: Introdução; capítulo 1, capítulo 2,
capítulo 3; conclusões finais e recomendações; e referências. A introdução inclui o tema da
pesquisa, o problema, a hipótese, a justificativa, a relevância da pesquisa, o caráter de
ineditismo e de originalidade da tese, o objetivo geral, os objetivos específicos, o
esclarecimento dos termos, a metodologia e a estrutura do trabalho.
No primeiro capítulo, tratar-se-á da fundamentação teórica da pesquisa nas concepções
de direito democrático e Estado democrático de direito. Nesse estudo, utilizar-se-ão os
referenciais teóricos de Popper, Habermas e Leal, por se tratar dos principais teóricos que
abordaram esse tema e ainda por trazerem inovações nesses estudos. Esse capítulo subdivide-
se em quatro partes: falseabilidade das teorias e a sociedade aberta em Popper, legitimidade
do direito e teorias normativas da democracia em Habermas, teoria neo-institucionalista e
teorização constitucional do direito processual democrático e concepções de Estado de direito
e Estado democrático de direito.
No segundo capítulo, estudar-se-ão as súmulas vinculantes perante o ordenamento
jurídico brasileiro. Por sua vez, esse capítulo se divide em quatro subitens: o efeito vinculante
e o precedente jurisdicional nos sistemas romano-germânico e anglo-americano, as súmulas
vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, o mito do efeito vinculante como solução para
a crise de operacionalidade do Judiciário e da ilegitimidade da adoção das súmulas
vinculantes.
No terceiro capítulo, submeter-se-ão a testes as propostas alternativas às súmulas
vinculantes. Esse capítulo também se subdivide em quatro partes: na primeira parte,
submeter-se-ão a testes a proposta de criação de um tribunal constitucional e a proposta de
mudanças estruturais no Judiciário; na segunda, oferecer-se-ão à apreciação as propostas de
adoção da súmula restritiva de recurso, da súmula com eficácia administrativa, do requisito da
19
transcendência no recurso de revista e da repercussão geral da matéria no Recurso
Extraordinário; na terceira, submeter-se-ão a testes as propostas de aperfeiçoamento da Justiça
Estadual, de possibilidade de alteração da jurisprudência e privatização do Judiciário. Por fim,
tornar-se-á objeto de exame a aplicação de um direito democrático pelo devido processo
constitucional.
Faz-se necessário salientar que, no presente trabalho, se utilizarão, muitas vezes,
citações diretas, com o intuito de corroborar as idéias que a autora defende e contrariar
aquelas que ela refuta, possibilitando o acesso do leitor à versão original e levando ao
enriquecimento da pesquisa.
Esta tese insere-se em uma epistemologia que concebe o conhecimento como falível,
motivo pelo qual o trabalho não possui a pretensão de verdade, uma vez que os enunciados
científicos não são permanentes, mas provisórios.
20
CAPÍTULO 1
CONCEPÇÕES DE DIREITO DEMOCRÁTICO E ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1 Falseabilidade das teorias e a sociedade aberta em Popper
O presente capítulo cuida da fundamentação teórica da pesquisa nas concepções de
direito democrático e Estado democrático de direito. Neste subitem, utiliza-se do aporte
teórico de Popper, que, através do critério da falseabilidade das teorias, aponta a necessidade
de uma teoria crítica da democracia, baseada na discursividade e na construção gradual do
ordenamento jurídico. Além disso, através de sua crítica evidenciada às sociedades fechadas,
tematiza uma sociedade aberta (democrática), demonstrando a importância da epistemologia
(teoria do conhecimento científico) para a construção dessa sociedade.
Leal, com base na concepção popperiana de conhecimento, esclarece que a
epistemologia geral do pensamento é construída com base na técnica, na ciência, na teoria e
na crítica científica; a epistemologia do Direito Processual, por sua vez, fundamenta-se na
técnica jurídica, na ciência jurídica, na teoria jurídico-científica e na crítica jurídico-
científica.24 Esses fundamentos da epistemologia processual permitem, devido a seu caráter
cientificista, uma reflexão jurídica crítica acerca das súmulas vinculantes vigentes no
ordenamento jurídico brasileiro.
A técnica desenvolveu-se com o apoio do pensamento abstrato sem preocupação com
a crítica, tendo como objetivo a obtenção de resultados úteis. Na área do Direito Processual, a
técnica relaciona-se com a atividade de proceder do homem, objetivando encontrar resultados
práticos na área do Direito Processual, por meio da criação e sistematização das normas
24 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 55.
21
procedimentais.25 Nessa linha de idéias, a técnica se assemelha ao conhecimento do senso
comum26 extraído das observações e experiências.27
Por outro lado, a ciência vem sendo construída a partir da superação da técnica. A
ciência jurídica busca esclarecimentos sobre as realidades jurídicas, bem como sobre o modo
histórico dessas produções, possibilitando, através da crítica, indicar as contradições para o
aperfeiçoamento ou substituição das práticas jurídicas. Desse modo, os enunciados científicos
não são unificados e permanentes, mas provisórios28, uma vez que a crítica possibilita testar as
teorias científicas.
A epistemologia do Direito Processual indica que as súmulas vinculantes são inviáveis
para um Estado Democrático de Direito, pois sua adoção impossibilita uma argumentação
irrestrita dos jurisdicionados. Na adoção das súmulas vinculantes, houve, por parte dos
legisladores, uma preocupação com a simples técnica, ou seja, na tentativa de encontrar
resultados práticos para a crise de operacionalidade do Judiciário, não atentando para os
princípios do processo (contraditório, isonomia e ampla defesa), buscou-se atacar os efeitos
dessa crise, sem qualquer amparo da ciência jurídica e da crítica jurídico-científica. A
pesquisa aponta que a submissão à crítica, por meio de uma releitura da técnica, da ciência e
da teoria, deve ser a base de um ordenamento jurídico democrático.
Visando a um melhor aprofundamento do tema em estudo, passa-se a analisar a
epistemologia em Popper, que indica a necessidade da aplicação de um direito democrático
pelo devido processo constitucional. Popper, desde o outono de 1919, questionava acerca
dos critérios que fossem capazes de classificar uma teoria como científica. Desse modo, a
preocupação do autor não se relacionava com a aceitabilidade ou a veracidade de uma teoria,
mas com o critério capaz de diferenciar a ciência da pseudociência:
Naquela época, não estava preocupado com as questões “Quando é verdadeira uma teoria?” ou “Quando é aceitável uma teoria?” Meu problema era outro. Desejava traçar uma distinção entre a ciência e a pseudociência, pois sabia muito bem que a ciência freqüentemente comete erros, ao passo que a pseudociência pode encontrar acidentalmente a verdade.29 (grifos do autor)
25 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 57-58. 26 “O senso comum é um ‘conhecimento’ evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo mesma. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista. A ciência, para se constituir, tem que romper com essas evidências e com o ‘código de leitura’ do real que elas constituem.” SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 32. 27 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 18. 28 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 58-59. 29 POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. 2. ed. Brasília: UNB, 1982, p. 63.
22
Esse problema, acima proposto, de tentar estabelecer uma distinção entre a ciência e a
pseudociência foi denominado por Popper de problema da demarcação, no ano de 1928 ou
1929.30 Para esse problema, Popper aponta como solução os critérios de refutabilidade,
falseabilidade ou testabilidade, uma vez que, “[...] para serem classificadas como científicas,
as assertivas ou sistemas de assertivas devem ser capazes de entrar em contato com as
observações possíveis ou concebíveis.”31
Ao contrário de Popper, os epistemologistas empiristas, em especial os positivistas32,
apontam como critério de demarcação para que uma teoria seja ou não considerada científica,
o método de indução ou de verificação. Bacon, por exemplo, aconselhava o cientista a ficar
livre do preconceito, esvaziar sua mente das teorias e pesquisar experimentalmente: “[...]
resta-nos um único e simples método, para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos
próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se
sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das
coisas.”33 Contrapondo-se a Popper, para Bacon as teorias poderiam prejudicar as
observações. Porém, a objetividade não pode ser fundada em uma mente vazia, como quer
Bacon, mas na crítica, na discussão crítica e no exame crítico das experiências, nos moldes
proposto por Popper.34
30 “Denomino problema de demarcação o problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre as ciências empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas ‘metafísicos’, de outra.” POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. 5. ed. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 35. 31 POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações, 1982, p. 63. 32 O positivismo surgiu nos anos 20, na Áustria (a partir do movimento denominado Círculo de Viena, fundado pelo filósofo Moritz Sclick), Alemanha e Polônia. Porém, alguns de seus adeptos importantes, como Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, Hebert Feigl e Otto Neurath, emigraram para os Estados Unidos ou Inglaterra. Alves Mazotti esclarece que o termo positivismo vem de Comte, que considerava a ciência como o paradigma de todo o conhecimento. No entanto, mais importante do que Comte para a linha anglo-americana foi a combinação de idéias empiristas (Mill, Hume, Mach & Russell), com o uso da lógica moderna (a partir dos trabalhos em matemática e lógica de Hilbert, Peano, Frege, Russell e das idéias do Tractatus Lógico-Philosophicius, de Wittgenstein). ALVES, Alda Judith Mazzotti. O método nas ciências sociais naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1998. Sobre o tema, ver também ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 33 BACON, Francis. Novum organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza; Nova Atlântida. Tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 20. 34 POPPER, Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Tradução de Paula Taipas. Portugal: Edições 70, 1996, p. 27. Ver também POPPER, Karl R. El desarrollo del conocimento científico: conjeturas y refutaciones. Buenos Aires: Paidos, 1967, p. 61-62 e POPPER, Karl R. Lógica das ciências sociais. 2. ed. Tradução de Estevão de Rezende Marins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 60.
23
Popper rejeitou o indutivismo e o observacionismo baconiano no que diz respeito à
formação das teorias científicas.35 Nesse diapasão, Koudela aponta:
[...] Assim, a ruptura popperiana com o legado empirista clássico baconiano é total no que concerne ao contexto de formação das teorias da ciência, mas não é absoluta com relação ao contexto de avaliação de tais produções teórico-explicativas. Isso se deve ao fato de que Popper resguarda ainda a possibilidade de uma nítida separação entre os domínios teórico e observacional, com vista a assegurar a aceitação de um critério empírico de avaliação das teorias científicas. Dessa forma, ele assume parte da herança empirista ao pretender dar conta da compreensão da racionalidade científica, ou da lógica imanente à pesquisa científica a partir da formulação de um critério empírico de validação provisória, ou invalidação dos sistemas explicativos científicos. Entretanto, seu afastamento do ideal empirista de ciência foi contundente em praticamente todos os demais pontos.36
Assim como Popper, Kant37 colocou o problema da demarcação como o tema central
da teoria do conhecimento, problema também abordado por Hume. Popper, resgatando as
idéias de Hume, que, por sua vez, argumenta contra a validade da inferência indutiva, refuta a
indução como critério válido de demarcação, posto que ela poderia levar a uma regressão
infinita. O problema da indução, denominado por Popper de problema de Hume, relaciona-se
com a possibilidade de, a partir de casos observados, inferir casos não observados. Popper
esclarece que a solução dada por Hume para esse problema é negativa, ou seja, não existe a
possibilidade de inferência, quer essa conexão se relacione à necessidade, quer se relacione à
probabilidade. Assim, para esse problema lógico da indução, Popper concorda com Hume e
assevera que, apesar de ter resolvido negativamente, Hume conseguiu resolvê-lo
completamente.
35 “El mito baconiano de que toda ciencia parte de observaciones y luego avanza lenta y cautelosamente hasta llegar a las teorías ha influido profundamente la epistemología empirista tradicional y en la historiografía tradicional de la ciencia. El estudio de los presocráticos muestra que los hechos son muy diferentes [...]. No debemos olvidar que la función del mito baconiano es explicar por qué los enunciados científicos son verdaderos, al señalar que la observación es la ‘fuente verdadera’ de nuestro conocimiento científico. Uma vez que comprendemos que todos los enunciados científicos son hipótesis, o presunciones, o conjecturas, y que la gran mayoría de esas conjecturas (incluyendo las del mito Bacon) han resultado ser falsas, el mito baconiano pierde su importancia.” POPPER, Karl R. El desarrollo del conocimiento científico: conjeturas y refutaciones, 1967, p. 162 (grifos do autor). 36 KOUDELA, Marcello Souza Costa Neves. Condições de cientificidade do direito à luz da filosofia da ciência de Karl Popper. Revista jurídica, Blumenau, Universidade Regional de Blumenau, Centro de Ciências Jurídicas, v. 1, n. 1/2, p. 33-52, jan./dez. 1997. 37 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4. ed. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexander Fradique Morujão. Lisboa: Martin Claret, 1997, p. 36-57.
24
Porém, Popper não concorda com o aspecto psicológico da indução defendido por
Hume38, que, apesar de sustentar a falta de validade lógica da indução, tenta justificar o papel
desempenhado pela indução, com base na experiência perceptual, nos hábitos ou costumes e
no conhecimento irracional, uma vez que o homem acredita na repetição (crença pragmática).
Nessa linha de idéias, Popper esclarece que, para Hume, “[...] o mecanismo psicológico da
associação força tais pessoas a acreditarem, por costume ou hábito, que aquilo que aconteceu
no passado acontecerá no futuro. Esse é um mecanismo biologicamente útil - talvez não
pudéssemos viver sem ele –, mas não tem qualquer base racional.”39
Popper esclarece que, ao contrário da concepção de Hume, o homem é dotado de
razão, sendo assim, age racionalmente e não é produto de repetição ou hábitos cegos. Popper
enfatiza que “[...] não agimos baseados em repetição ou ‘hábito’, mas baseados nas mais bem
testadas de nossas teorias, as quais, como já vimos, são aquelas para que temos boas razões
racionais, não, sem dúvida, boas para crer que são verdadeiras, mas para crer que são as de
melhor aproveitamento do ponto de vista de uma busca da verdade ou da verossimilitude.”40
Para Kant, apesar de Hume ter desempenhado importante papel na resolução do
problema de demarcação, ele não o fez com o rigor necessário, pois se deteve apenas na
proposição sintética do efeito para com sua causa e julgou ter demonstrado a impossibilidade
de tal proposição a priori: “[...] segundo o seu raciocínio, tudo o que denominamos metafísica
mais não seria do que simples ilusão de um pretenso conhecimento racional daquilo que, de
facto, era extraído da experiência e adquirido pelo hábito a aparência de necessidade;
afirmação esta que destrói toda filosofia pura e que nunca teria ocorrido se tivesse em mente o
nosso problema.”41 Segundo Kant, o motivo de ter a metafísica se mantido através de
incerteza é por não ter investigado o problema da possibilidade dos juízos sintéticos a priori e
da distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos.42 Assim, para esse autor a solução para
38 “Não é, pois, a razão que conduz a vida, mas o hábito. Apenas ele determina a mente, em todas as circunstâncias, a supor por que o futuro é conforme o passado.” HUME, David. Resumo de um tratado da natureza humana. Tradução de Rachel Gutiérrez e José Sotero. Rio de Janeiro: Paraula, 1995. 39 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 93. 40 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 97. 41 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, 1997, p. 49-50. 42 “[...] Portanto, os juízos (afirmativos) são analíticos, quando a ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa ligação é pensada sem identidade, deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros poderiam igualmente denominar-se juízos explicativos; e os segundos, juízos extensivos; porque naqueles o predicado nada acrescenta ao conceito de sujeito e apenas na análise o decompõe nos conceitos parciais; ao passo que os outros juízos, pelo contrário, acrescentam ao conceito de sujeito um predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por qualquer decomposição.” KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, 1997, p. 43.
25
o problema levantado está na possibilidade do uso puro da razão na fundamentação de todas
as ciências.43
Popper ataca de forma contundente os juízos sintéticos a priori utilizados por Kant
para estabelecer um critério de distinção entre a ciência e a metafísica44, sendo que os juízos
sintéticos a priori são aqueles que se pretendem científicos, enquanto que a metafísica não
viabiliza esses juízos. Por outro lado, Popper enfatiza que Kant, assim como ele, já reconhecia
que a objetividade dos enunciados científicos se relaciona com a necessidade de elaboração de
teorias que poderiam ser submetidas a testes, apesar de entender que Kant formulou essa
descoberta de maneira obscura: “[...] na solução do problema enunciado, está,
simultaneamente, inclusa a possibilidade do uso puro da razão na fundamentação e
desenvolvimento de todas as ciências que contêm um conhecimento teórico a priori45 dos
objectos, isto é, a resposta às seguintes perguntas: Como é possível a matemática pura? Como
é possível a física pura?”46 Desse modo, a crítica da razão acaba por levar à ciência, e o uso
dogmático da razão acaba por levar ao ceticismo. Isso resulta em uma ciência particular
denominada por Kant de Crítica da Razão Pura: “[...] a razão é a faculdade que nos fornece os
princípios do conhecimento a priori. Logo, a razão pura é a que contém os princípios para
conhecer algo absolutamente a priori.”47
Marques esclarece que “[...] o critério de demarcação que Popper encontra implícito
nas obras dos positivistas é o da verificação, critério segundo o qual uma proposição é
significativa se, e apenas se, puder ser verificada empiricamente, isto é, se houver um método
empírico para decidir se é verdadeira ou falsa.”48 (grifo do autor).
Desse modo, Popper também não concorda com o critério de verificação ou
justificação estabelecido pelos positivistas. Nessa linha de idéias, ele destaca: “[...] ora, eu
sustento que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou verificáveis, mas
que, não obstante, são suscetíveis de se verem submetidas à prova.”49 Para Popper, nisso
reside a objetividade dos enunciados científicos, ou seja, na possibilidade de serem
submetidos a teorias concorrentes.
43 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 1997, p. 49-50. 44 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 49. 45 Conhecimento a priori é aquele que independe da experiência e das impressões do sentido. Distingue-se do conhecimento a posteriori, que é baseado na experiência. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, 1997, p. 37. 46 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, 1997, p. 50. 47 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, 1997, p. 52. 48 MARQUES, Alexandre. A doutrina do falseamento em Popper. Disponível em: <http:// www.cfh.ufsc.br/wifil/pooper5.htm>. Acesso em: 25/01/2004, p. 2. 49 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 46.
26
Existem várias deficiências no critério de verificação proposto pelos positivistas;
dentre essas, Oliva destaca as seguintes:
[...] A primeira diz respeito ao fato de que a rígida postura antimetafísica do verificacionismo não se dá conta de que, em importantes momentos da história da ciência, as instituições metafísicas estão na origem de sistemas explicativos científicos. A segunda concerne ao fato de que enunciados de generalidade irrestrita (portadores da mesma lógica das leis científicas) não têm como ser cabal e definitivamente verificadas, através de qualquer conjunto de dados observacionalmente catalogados. A terceira se refere à sua tendência a favorecer atitudes justificacionistas desatentas ao papel capital cumprido pela crítica não só no processo de crescimento do conhecimento como também na instauração e consolidação da Sociedade Aberta.50
Assim, os velhos positivistas buscaram resolver o problema kantiano da demarcação
através da adoção de um critério de significado, ou seja, o sentido de uma proposição deve
coincidir com seus métodos de verificação. Para Popper, isso fica evidente no caso de
Wittgenstein, tendo em vista que, para esse autor, toda proposição significativa deve ser
reduzida a proposições elementares (atômicas), que são por ele caracterizadas como descrição
da realidade:51
4.01 A proposição é uma imagem da realidade. A proposição é um modelo da realidade tal como nós a pensamos.
4.03 Uma proposição tem que comunicar um sentido novo com expressões velhas. A proposição comunica-nos uma situação, tem por isso que estar essencialmente em conexão com a situação. E a conexão é justamente ser ela a sua imagem lógica. A proposição só declara alguma coisa na medida em que é uma imagem.52
Desse modo, apenas as proposições verificáveis empiricamente teriam significado
(lógica indutiva). Ao analisar a rejeição do critério de significado e do método de verificação
dos positivistas, Pereira esclarece:
A lógica indutiva é, para Popper, um projeto inexeqüível. Implicaria a existência de um princípio de indução, isto é, um enunciado a partir do qual as inferências indutivas seriam possíveis. A crítica de Popper centra-se no fato de que enunciados podem ser analíticos ou sintéticos a posteriori, já que não são admitidos os sintéticos a priori. Se existisse um princípio de indução, ele não poderia assumir a forma de um enunciado analítico, pois, nesse caso, teríamos um raciocínio dedutivo. Por outro
50 OLIVA, Alberto. Popper da atitude crítica à sociedade aberta. In: PEREIRA, Julio César R. (Org.). Popper: as aventuras da racionalidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 76. 51 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 37. 52 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico e investigações filosóficas. Tradução de M.S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 53 e 57.
27
lado, se o princípio da indução fosse um enunciado sintético a posteriori, teríamos o problema de justificá-lo. Se apelarmos para um princípio de ordem superior, cairemos num regresso infinito ou mesmo num círculo vicioso. Conseqüentemente, se admitirmos o critério de significado do Positivismo Lógico, não poderemos traçar uma fronteira entre ciência e metafísica, mas, sim, teremos de concluir que a própria ciência é destituída de significado.53
Portanto, Popper adota como critério de demarcação não a verificabilidade, mas a
falseabilidade de um sistema. O critério da falseabilidade “[...] separa duas classes de
enunciados perfeitamente significativos: os falseáveis54 e os não falseáveis55; traça uma linha
divisória no seio da linguagem dotada de significado e não em volta dela.”56 Esse critério
também pode ser denominado refutabilidade ou testabilidade, ou seja, testar uma teoria
significa tentar encontrar falhas ou motivos de refutação.57
Por outro lado, Kuhn entende de forma errônea o critério de demarcação estabelecido
por Popper, uma vez que, em sua interpretação, Popper teria caracterizado toda atividade
científica como crises58 ininterruptas. Somente nos momentos de crise é que Kuhn admite a
possibilidade de testes: “[...] o papel que Popper atribui à falsificação assemelha-se muito ao
que este ensaio confere às experiências anômalas, isto é, experiências que, ao evocarem
crises, preparam caminho para uma nova teoria.”59 Ao rejeitar o critério de demarcação
estabelecido por Popper, Kuhn acaba por não aceitar que o conhecimento seja um processo de
conjecturas e refutações.
Para Kuhn, a ciência normal é a pesquisa baseada em realizações científicas passadas,
que pressupõe a aceitação de um paradigma60 por parte de um grupo e tem por objetivo a
53 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl R. Popper. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, p. 52. 54 Para melhor entendimento, Popper esclarece que falsear é contradizer: “[...] dizemos que uma teoria está falseada somente quando dispomos de enunciados básicos aceitos que a contradigam.” POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 91. 55 Não falseável é o que não se oferece à discursividade. MICHAELIS: pequeno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998. 56 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 42. 57 POPPER, Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade, 1996, p. 116. 58 As crises “[…] são uma pré-condição necessária para a emergência de novas teorias.” KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 107. 59 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 2003, p. 188. 60 “O termo paradigma é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal.” KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 2003, p. 220.
28
resolução de quebra-cabeças:61 “[...] a ciência normal, atividade que consiste em solucionar
quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem sucedido no
que toca ao seu objetivo. Em todos esses aspectos, ela se adapta com grande precisão à
imagem habitual do trabalho científico.”62 Kuhn enfatiza que o papel do pesquisador que se
dedica à ciência normal é o de solucionar quebra-cabeças e não de testar paradigmas.63 Desse
modo, o critério de demarcação de Kuhn seria a ausência do discurso crítico, caracterizando a
ciência normal por ser um empreendimento dogmático. Por outro lado, Popper assevera que,
ao contrário do cientista normal que prefere a rotina e a linguagem comum, o cientista não
normal é crítico, ousado e vai além da barreira da normalidade.64 Assim, o que para Kuhn é
científico, para Popper é metafísico, motivo pelo qual a aceitação da epistemologia de Kuhn
levaria à impossibilidade de distinguir a ciência da pseudociência.
A adoção do critério popperiano de demarcação apresenta vantagem, uma vez que
possibilita traçar uma distinção entre a ciência e a pseudociência. Nessa linha de idéias,
Pereira aponta que a adoção do critério de demarcação proposto por Kuhn seria um
retrocesso, significaria um retorno aos problemas já analisados de maneira satisfatória por
Popper.65
Para Albert, não cabe à filosofia justificar o conhecimento, fundamentando-o, uma vez
que a justificação acaba por dogmatizá-lo. Desse modo, o critério de demarcação estabelecido
por Popper merece a preferência, já que, através da crítica, esse critério facilita o
desenvolvimento do conhecimento. Além disso, por trás do critério que não possibilita a
crítica está o medo da descoberta de erros:
Portanto, todo infalibilismo é um dogmatismo em potencial. Um criticismo conseqüente, que não permite nenhum dogma, envolve necessariamente, em troca, um falibilismo em relação a qualquer instância possível. Enquanto o racionalismo clássico elevou determinadas instâncias – a razão e sentido – ao nível de autoridades epistemológicas e procurou torná-las infalíveis e, conseqüentemente, imunes à crítica, pois de outro modo a meta da fundamentação segura não parecia possível de ser alcançada, o racionalismo crítico não pôde conceder infalibilidade a nenhuma instância, e, por isso mesmo, o direito à dogmatização de determinadas soluções de
61 “Em inglês, jigsaw puzzle. A palavra refere-se aos quebra-cabeças compostos por peças, com as quais o jogador deve formar uma figura qualquer. Cada uma das peças é parte da figura desejada possuindo uma e somente uma posição adequada no todo a ser formado.” KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 2003, p. 59. 62 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 2003, p. 77. 63 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 2003, p. 77. 64 POPPER, Karl R. Lógica das ciências sociais, 1999, p. 43. Ver também POPPER, Karl R. O mito do contexto, 1996, p. 98. 65 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl R. Popper, 1993, p. 93.
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problemas. Não há nem uma solução, nem uma instância competente para a solução de determinados problemas que esteja desde o início protegida contra a crítica.66 (grifos do autor)
Ao estudar as idéias de Popper, Magee assevera que houve uma interpretação errônea
acerca de seu critério de demarcação. Essa interpretação aduz que Popper teria estabelecido
um critério de significado, ou seja, não um critério de demarcação entre a ciência e a
pseudociência, mas um critério entre o significativo e o destituído de significado. Desse
modo, os argumentos utilizados contra Popper baseavam-se nessa falsa presunção:
Ocorria que Popper não estava apenas deixando de propor um critério de apreciação de significado; em verdade, ele sempre sustentou que pretender isso constituiria grave erro filosófico. Acreditava ainda que a discussão continuada acerca do significado das palavras não é apenas entediante, mas prejudicial. Pode-se demonstrar, assevera Popper, que a noção segundo a qual importa definir os termos antes de iniciar uma discussão proveitosa é incoerente, pois, toda vez que um termo é definido, torna-se necessária a introdução de novos termos na definição.
67
Desse modo, o critério da falseabilidade popperiano possibilita submeter a testes os
enunciados, podendo o resultado desses testes levar à refutação desses enunciados. Popper
enfatiza que, de acordo com o critério da falseabilidade, “[...] os enunciados (ou sistemas de
enunciados) encerram informações acerca do mundo empírico apenas no caso de entrar em
conflito com a experiência; de modo mais preciso, apenas se forem passíveis de teste
sistemático, o que equivale dizer que podem ser submetidos (em consonância com uma
decisão metodológica) a testes que talvez resultem em refutação.”68 Assim, nessa concepção,
não pode haver enunciados definitivos em ciência, ao contrário, existe a possibilidade de
aferir a falseabilidade desses enunciados.
A adoção por Popper de enunciados básicos acabaria por levantar alguns falsos
problemas, entre eles a regressão infinita, uma vez que os enunciados que devem ser
submetidos a testes precisam ser fundamentados por outros enunciados. Porém, para discutir
esse problema com base em uma concepção popperiana, Pereira salienta que devem ser feitas
as seguintes ressalvas:
66 ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. 2. ed. Tradução de Idalina Azevedo da Silva, Érika Gudde e Maria José P. Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 53-54. 67 MAGEE, Bryan. As idéias de Popper. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 51. Ver também POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 51. 68 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 345.
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1º) Não cabe à epistemologia discutir “as origens essenciais do conhecimento”, mas apenas indagar como podem os enunciados científicos ser submetidos a teste.
2º) Quando se postula a falseabilidade como critério de demarcação, não está a exigir que uma determinada teoria tenha sido testada, mas tão somente que possa sê-lo. Isso é uma questão lógica, o falseamento é que é um procedimento prático.69
Popper menciona que o seu critério de refutabilidade e o critério de verificação
estabelecido pelos positivistas se constituem na distinção entre o pensamento crítico e o
dogmático. O pensamento dogmático preocupa-se com a verificação das leis e com sua
aplicação e confirmação, enquanto o pensamento crítico busca modificar as leis através de
testes e, quando possível, busca refutá-las. Assim, Popper aponta que a atitude crítica se
relaciona com a atitude científica, e que a atitude dogmática se relaciona com a atitude
pseudocientífica:
Mas a distinção entre o pensamento crítico e o dogmático nos traz de volta ao problema crucial. Com efeito, a atitude dogmática está claramente relacionada com a tendência a verificar nossas leis e esquemas, buscando aplicá-los e confirmá-los sempre, a ponto de afastar as refutações, enquanto a atitude crítica é feita de disposição para modificá-los – a inclinação no sentido de testá-los, refutando-os se isso for possível. O que sugere a identificação da atitude crítica com a atitude científica e a atitude dogmática com a que descrevi qualificando pseudocientífica.70 (grifo do autor)
A epistemologia popperiana, através do critério de demarcação da refutabilidade, visa
demonstrar que a institucionalização da crítica é requisito para a construção de uma sociedade
democrática. Além disso, essa epistemologia desperta uma reflexão acerca da importância da
principiologia do processo (isonomia, contraditório e ampla defesa), na medida em que
enfatiza o papel desempenhado pela crítica.
Os Tribunais Superiores, na emissão das súmulas vinculantes, utilizam-se do método
indutivo, tendo, como critério de demarcação, o método da verificação, adotado pelos velhos
positivistas. Além disso, as súmulas vinculantes não possibilitam uma participação dos
jurisdicionados na construção do provimento jurisdicional e inviabilizam a renovação do
ordenamento jurídico, levando-o a sua petrificação. Nesse diapasão, Carvalho acentua a
vantagem da adoção do critério de demarcação popperiano: “[...] Popper distinguirá a ciência
por sua irrestrita adoção da atitude crítica, que não só evita a petrificação de posturas
69 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl R. Popper, 1993, p. 52. 70 POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações, 1982, p. 80
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dogmáticas, como também possibilita mudanças teóricas na direção de explicação cada vez
melhores do mundo. Como a ciência se destaca pela universalização da impostação crítica,
devemos estender sua prática de enfrentamento de problemas a outros domínios, incluindo o
da política.”71
Por outro lado, o critério da falseabilidade das teorias aponta que o ordenamento
jurídico deve ser construído gradualmente pelos jurisdicionados dentro do espácio-temporal
da discursividade, dentro de um espaço processualizado. As súmulas vinculantes são
elaboradas antes da instauração do processo, na realidade nua. Agamben esclarece que a
realidade nua é aquela:
[...] ‘matável e insacrificável’ do ‘homo sacer’, cuja função essencial na política pretendemos reinvindicar. Uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento jurídico unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade).72
Seguindo o critério de demarcação de refutabilidade, adotado por Popper, Leal aponta
a necessidade de testabilidade do ordenamento jurídico. Por outro lado, contrapondo-se à
posição apresentada por Agamben, que trata da realidade nua, e conseqüentemente, também,
em oposição à adoção das súmulas vinculantes, Leal aponta a impossibilidade de haver
realidade jurídica fora do espaço processualizado: “[...] na democracia, o direito é um campo
da existência posta pela lei processualmente produzida, não podendo haver realidade jurídica
fora da existência suscetível de constante testificação processual.”73
Leal ressalta a importância do critério de falseabilidade popperiano, haja vista que é
Popper quem aponta a necessidade de um devido processo constitucional:
O pensamento popperiano, recentemente tão bem aproveitado por Habermas em obra que expõe uma revolucionária reviravolta em seu próprio discurso científico, é que traz para a cogitação jurídica a possibilidade do exercício e aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional atualmente concebido em seus elementos dialógicos e institutivos de um medium lingüístico-jurídico pela co-extensão procedimental (devido processo legal) propiciadora de um espaço estruturante da linguagem jurídica de discussão dos direitos argüidos e preparatória de decisões cuja teorização construtiva é aberta a todos os participantes procedimentais habilitados ou a se habilitarem à movimentação da atividade jurídica
71 CARVALHO, Maria Cecília M. de. Não sabemos: só podemos conjecturar. In: PEREIRA, Julio César R. (Org.). Popper: as aventuras da racionalidade, 1995, p. 76. 72 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 16. 73 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 39.
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(judicial, executiva e legislativa) por um direito-de-ação incondicionado (direito de petição) constitucionalmente garantido.74 (grifos do autor)
Após o estudo empreendido acerca dos dois problemas fundamentais da teoria do
conhecimento - o problema de Kant, denominado por Popper de problemas da demarcação; e
o problema de Hume, denominado de problema da indução - Popper acaba por levantar um
terceiro problema sobre a possibilidade do progresso científico. A resposta de Popper a esse
problema é realizada através da teoria do conhecimento objetivo, formulada lingüisticamente
e que pode ser discutida criticamente.75 Desse modo, Popper refuta qualquer teoria
subjetivista, enfatizando sua resposta com sua epistemologia falibilista.
Nesse sentido, Popper esclarece que, ao contrário do conhecimento objetivo, o
conhecimento subjetivo não possibilita a crítica, uma vez que não é formulado
lingüisticamente:
[...] O conhecimento subjetivo não é sujeito à crítica, embora possa ser alterado por vários meios – por exemplo, pela eliminação (morte) do portador do conhecimento subjetivo, ou disposição, em foco. Assim, o conhecimento no sentido subjetivo cresce ou obtém melhores ajustamentos pelo método darwiniano de mutação e eliminação do organismo. Em oposição a isto, o conhecimento objetivo pode alterar-se e crescer pela eliminação (morte) da conjectura lingüisticamente formulada: o portador pode sobreviver, pode até, se for uma pessoa autocrítica, eliminar sua própria conjectura.
A diferença está em que as teorias formuladas lingüisticamente podem ser discutidas criticamente.76 (grifos do autor)
Nesse diapasão, através dessa teoria subjetiva denominada por Popper de teoria do
balde da ciência ou teoria do balde mental, as percepções77 acumuladas ou assimiladas
(empirismo ingênuo) e as experiências do sentido são os pontos de partida para o
conhecimento:
[...] o ponto de partida desta teoria é a doutrina persuasiva de que, antes de podermos conhecer ou dizer qualquer coisa acerca do mundo, devemos primeiro ter tido percepções – experiências de sentido. Supõe-se decorrer desta teoria que o nosso conhecimento, a nossa experiência, consiste de percepções acumuladas
74 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 118-119. 75 CARVALHO, Maria Cecília M. de Carvalho. Não sabemos: só podemos conjecturar. In: PEREIRA, Julio César R. (Org.). Popper: as aventuras da racionalidade, 1995, p. 50. 76 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 71. 77 “As percepções são, por assim dizer, a matéria-prima que flui de fora para dentro do balde, onde experimenta um processamento automático.” POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 314.
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(empirismo ingênuo) ou então de percepções assimiladas, separadas e classificadas (concepção mantida por Bacon e, de maneira mais radical, por Kant).78
Popper assinala que a observação é sempre precedida por um problema, indagação, ou
seja, por uma teoria. Assim, para ele, a teoria79 domina todo o trabalho experimental. Nessa
mesma linha de idéias, Kneller enfatiza que “[...] o ciclo de pesquisa não começa com
observação ou mensuração, mas com a busca ou localização de um problema. Esse problema
pode ser empírico, como a existência de uma anomalia para uma lei ou teoria bem confirmada
[...]. Ou o problema pode ser conceitual.”80 Em contraposição, para a teoria do balde, uma
observação precede cada hipótese:
A indagação “que vem primeiro, a hipótese (H) ou a observação (O)? Recorda aquela outra pergunta famosa: Que veio primeiro, a galinha (G) ou o ovo (O)? Ambas as indagações são solúveis. A teoria do balde assevera: assim como uma forma primitiva de um ovo (O), um organismo unicelular precede a galinha (G), assim a observação (O) precede sempre cada hipótese (H); pois a teoria do balde considera esta última como surgida de observações por generalização, ou associação, ou classificação. Em contraste, podemos agora dizer que a hipótese (ou teoria, ou expectativa, ou seja lá o que chame) precede a observação, ainda que uma observação que refute certa hipótese possa eliminar nova hipótese (e, portanto, uma temporariamente posterior).81
Popper assevera que a epistemologia subjetivista deve ser rejeitada. Em contraposição
a essa teoria, Popper apresenta a teoria do holofote82 que, apesar de reconhecer o papel das
observações na testabilidade das teorias, assevera que as observações são secundárias às
hipóteses:
[...] De acordo com a teoria do holofote, as observações são secundárias às hipóteses. As observações, porém, desempenham um papel importante como testes que uma hipótese deve experimentar no curso do exame crítico que fizemos dela. Se a hipótese não passar no exame, se for mostrada falsa pelas nossas observações, então temos de procurar uma nova hipótese.83
78 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 319. 79 Teoria é “[...] um instrumento que submetemos à prova pela aplicação e que julgamos, quanto à capacidade, pelos resultados das aplicações.” POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 116. 80 KNELLER, George F. A ciência como atividade humana. Tradução de Antônio José de Souza. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 107. 81 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 318. 82 “O que o holofote torna visível dependerá de sua posição, de nosso modo de dirigi-lo e de sua intensidade, cor, etc., embora também venha a depender em larga escala das coisas iluminadas por ele. Similarmente, uma descrição científica dependerá, em ampla escala, de nosso ponto de vista, nossos interesses, que são como uma regra relacionada com a teoria ou hipótese que desejamos comprovar, mas também dependerá dos factos descritos.” POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 268. 83 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 318.
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A teoria do conhecimento objetivo é aquela baseada em teorias lingüisticamente
formuladas, essa teoria “[...] consiste no conteúdo lógico de nossas teorias, conjecturas,
suposições (e, se preferimos, do conteúdo lógico do nosso código genético).”84 Como
exemplos de conhecimentos objetivos, Popper cita as teorias publicadas em revistas e livros,
as discussões acerca dessas teorias, as dificuldades ou problemas relacionados às teorias.85
Enquanto o conhecimento objetivo é denominado de “mundo 3” por Popper, o conhecimento
subjetivo é o “mundo 2” e o mundo físico é o “mundo 1.”86
A epistemologia popperiana aponta que, apesar de as teorias não serem verificáveis,
elas são corroboradas. Popper denominou de grau de corroboração o grau em que uma
hipótese foi submetida a testes severos, demonstrando sua qualidade.87 Nesse sentido, Popper
esclarece que “[...] o grau de corroboração de uma teoria é um relato sumário, em que se
registra a forma pela qual a teoria resistiu aos testes a que foi submetida e a severidade desses
testes.”88 Desse modo, a corroboração indica uma situação passada e presente de uma teoria
sem pretensões de assegurar qualquer comportamento para o futuro.
O grau de testabilidade é de fundamental importância na seleção das teorias, que
podem ser falseadas com maior ou menor intensidade. Segundo Popper, uma teoria é falseável
quando ela rejeita um evento89 e não apenas uma ocorrência. Nesse sentido, Popper destaca:
“[...] a propósito de uma teoria, contanto que ela se mostre falseável, que ela rejeite ou proíba
não apenas uma ocorrência, mas pelo menos um evento. Assim, a classe dos enunciados
básicos90 proibidos, isto é, dos potenciais falseadores da teoria, conterá sempre, se não for
vazia, um número ilimitado de enunciados básicos, pois uma teoria não se refere a indivíduos
como tais.”91
Pereira, ao abordar os elementos da epistemologia de Popper, trata da corroboração
das teorias, enfatizando que “[...] a tese da corroboração permite a Popper dispor de um
critério de seleção entre teorias rivais. Uma teoria ‘T2’ será preferível a uma teoria ‘T1’
quando: 1) T2 resistir aos testes que refutam T1, 2) Se ambas, resistindo aos mesmos testes,
84 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 78. 85 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 78. 86 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 78. 87 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 275. 88 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 309. 89 O termo evento é utilizado para “[...] denotar o que pode apresentar-se como típico ou universal acerca de uma ocorrência, ou aquilo que, numa ocorrência, pode ser descrito com o auxílio de nomes universais.” POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 94. 90 “Os enunciados básicos são, portanto, - no modo material da expressão – enunciados asseveradores de que um evento observável está ocorrendo em certa região individual do espaço e do tempo.” POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 110. 91 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 95.
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apresentarem como resultado que T2 é mais simples, isto é dotada de um maior grau de
corroboração.”92 Além disso, Pereira também esclarece que a concepção de corroboração nos
moldes propostos por Popper não faz referência à palavra verdade93, uma vez que as
hipóteses são conjecturas provisórias.
Ao elucidar o terceiro problema da teoria do conhecimento, ou seja, sobre como é
possível o progresso científico, Popper assevera que sua epistemologia falibilista acaba por
unificar os problemas de Hume e Kant, apontando que eles podem ser vistos como duas faces
do problema capazes de levar ao progresso científico. Popper coloca a teoria do conhecimento
objetivo no centro de sua epistemologia, uma vez que essa teoria possibilita a crítica. Essas
reflexões popperianas acabam por remeter à epistemologia processual e, em especial, a
questionar o papel desempenhado pelas teorias do processo na construção do ordenamento
jurídico. Assim, como Popper apontou que a teoria subjetiva do conhecimento não se submete
à crítica, já que não é formulada lingüisticamente, a pesquisa indica que algumas teorias do
processo, quando testificadas, também se apresentam incompatíveis com a teoria discursiva
do direito democrático. Esse estudo adota como critério de demarcação o da testabilidade ou
da refutabilidade proposto por Popper e, utilizando-se desse critério, objetiva submeter as
súmulas vinculantes a testes e investigar se elas se adaptam à teoria processual da pós-
modernidade.
Antes de abordar as teorias do processo, cumpre esclarecer acerca da temática pós-
modernidade. Para Lyotard, a condição pós-moderna se relaciona com a falência das
metanarrativas. A pós-modernidade, por essa perspectiva, não configura um momento
histórico, mas uma formulação teórica que aponta que a legitimidade do direito não ocorre
através de um discurso que se reporte a uma razão totalitária. Nesse diapasão, Lyotard aponta
que seu objetivo é investigar a posição do saber nas sociedades desenvolvidas após as
transformações que acabaram por mudar as regras dos jogos da ciência, da literatura e das
artes a partir do final do século XIX. Por volta de 1970, enquanto a sociedade entra na época
pós-industrial, a cultura entra na era pós-moderna. Lyotard delimita seu estudo acerca das
transformações ocorridas em relação à crise dos grandes relatos (metanarrativas):
92 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl R. Popper, 1993, p. 70. 93 “A teoria de Tarski permite-nos definir a verdade como correspondência com os fatos; mas podemos usá-la também para definir a realidade como aquilo a que correspondem as asserções verdadeiras.” POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 78.
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Simplificando ao extremo, considera ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação a metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências: mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia metafísica e a da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde seus atores (functers), os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo.94
Assim, a legitimidade não se viabiliza pelo apelo às grandes narrativas, a autoridade
de um chefe ou de um juiz. A pós-modernidade pressupõe a responsabilidade da comunidade
jurídica na construção do ordenamento jurídico. Por isso, um direito pós-moderno deve ser
falível e fiscalizável, possibilitando a participação dos afetados através da discussão em um
espaço processualizado. O abandono das narrativas centralizadoras possibilita a proliferação
de uma multiplicidade de jogos de linguagem, que não devem ser baseados no consenso ou no
diálogo de subjetividade, mas no dissenso.95 Sobre a ruptura com os mitos da modernidade e
com a predominância de um mito legitimador dominante, Grenz esclarece:
O que torna nossa condição “pós-moderna” não se restringe somente ao fato de que as pessoas não se agarram mais aos mitos da modernidade. A perspectiva pós-moderna implica o fim do apelo a qualquer mito legitimador dominante, seja ele qual for. As principais narrativas predominantes não somente perderam sua credibilidade, como também a idéia de uma narrativa grandiosa já não desfruta de crédito algum. Tomamos-nos não apenas cientes de uma pluralidade de histórias legitimadoras de conflitos, como entramos igualmente na era da morte da metanarrativa. Na era pós-moderna, todas as coisas são deslegitimadas.96
Heller e Fehér também concordam com Lyotard acerca da necessidade da pluralidade
e do colapso das metanarrativas: “A condição política pós-moderna se baseia na aceitação da
pluralidade de cultura e discursos. O pluralismo (de vários tipos) está implícito na pós-
modernidade como projeto. O colapso da grande narrativa é um convite direto à coabitação
entre várias pequenas narrativas (locais, culturais, étnicas, religiosas, ideológicas).”97
Os grandes relatos ou metanarrativas são fábulas, lendas, mitos que não se submetem a
argumentação crítica. Para Harvey, as metanarrativas são “[...] interpretações teóricas de larga
escala pretensamente de aplicação universal.”98 Sobre os grandes relatos, Heller e Fehér
esclarecem:
94 LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna, 2006, p. xvi. 95 LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna, 2006, p. 29. 96 GRENZ, Stanley. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 76. 97 HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 16. 98 HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2006, p. 19.
37
Em termos políticos, os que preferiram ver-se como pós-modernos estão em primeiro lugar depois da “grande narrativa”. Não se deve confundir a grande narrativa com o holismo, que segundo Lyotard conduz ao totalitarismo, sendo um tipo peculiar de interpretação do mundo. Ela é bem resumida pela famosa pergunta de Gaugin: de onde viemos, que somos, aonde vamos? A grande narrativa tem, portanto, um ponto de origem fixo, em geral ampliado para dimensões mitológicas, e em vista desse peso simbólico a história só pode ser lida posteriormente ab urbe condita. A grande narrativa conta a história com uma autoconfiança ostensivamente casual e disfarçadamente teleológica. Essa posição de superioridade para com a história contada implica um transcendentalismo filosófico e político, a presença do narrador onisciente. [...] Em geral, a grande narrativa “revela” seu telos no final, um telos primeiro postulado junto com a invenção da origem. Mas os que vivem na condição política pós-moderna sentem que estão depois de toda a história, com sua origem sagrada e mitológica, sua estrita causalidade, sua teleologia secreta, seu narrador transcendente e onisciente e sua promessa de final feliz, num senso cósmico ou histórico.99
Ao estudar a pós-modernidade ou o pós-modernismo como fenômeno social e
cultural, Trindade, embasada em Lyotard, esclarece que ao contrário da modernidade100- que
era marcada pela confiança na razão universal, nas grandes narrativas utópicas, no progresso
linear e nas verdades absolutas -, a pós-modernidade:
[...] rejeita toda forma de legitimação que se fundamenta nas metanarrativas, compreendendo que, na contemporaneidade, convivem múltiplos e incompatíveis jogos de linguagem, cada qual com seus próprios princípios de autolegitimação. O abandono das narrativas centralizadoras leva ao florescimento dessa diversidade lingüística, refinando a sensibilidade e tolerância com a diferença. A falsa promessa de incorporação numa humanidade universal é abandonada, dando lugar à constatação da inegável diversidade cultural existente, que ao contrário de incomodar, é, antes, reforçada.101
Nessa perspectiva, o processo jurídico possui papel preponderante, uma vez que é
através de uma teoria democrática do processo que se viabilizará a construção de um direito
99 HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna, 2002, p. 12. 100 “[...] Designarei esse conjunto de experiência como ‘modernidade’. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos deseja a todos num turbilhão de permanentes desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx: ‘tudo que é sólido desmancha no ar’.” BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1981. 101 TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 26.
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legítimo que não decorra de um discurso totalizante e imune a críticas. Nessa perspectiva,
Leal acentua:
A maior conquista teórica da pós-modernidade (aqui compreendida na concepção de David Harvey), só é possível no final do século XX, no âmbito das ciências jurídicas, foi o conceito de processo como referente conjectural de produção, aplicação, modificação e extinção de direitos a partir de princípios autocrítico-discursivos de neutralidade deontológica da fala jurídica. Antes, o direito ainda emergia da Physis ou de consciências epistêmicas (apodícticas) ou crédulas na razão consensualista reveladora da natureza (Rousseau) ou na verdadeira razão iluminista da natureza humana (Kant), expressando-se numa sociedade civil civilizadora em modelo de um saber pressuposto e não interrogável.102 (grifos do autor)
Com o aprimoramento das diversas teorias do processo, mostraram-se ultrapassadas as
concepções que consideram o processo como contrato, quase contrato, relação jurídica entre
sujeitos, duelo entre as partes ou como um instrumento para a jurisdição. Ao contrário do que
argumentam os instrumentalistas, a jurisdição é atividade de decidir, legitimada e balizada
pelo processo. Com intuito de analisar a fundamentação e legitimidade do Direito no Estado
Democrático de Direito e de investigar se as súmulas se adaptam à teoria processual da pós-
modernidade, é imprescindível o estudo das seguintes teorias do processo: o processo como
relação jurídica; o processo como procedimento em contraditório; a teoria constitucionalista
do processo; e a teoria neo-institucionalista do processo.
A teoria do processo como relação jurídica foi desenvolvida por Bülow na obra Teoria
das exceções e dos pressupostos processuais, em 1868, tendo sido adotada por processualistas
de renome como Chiovenda, Carnelutti, Liebman, Couture, Buzaid, Cintra, Grinover e
Dinamarco. Essa teoria reconhece que o processo é uma relação de direitos e obrigações
entre pessoas, revestida pelo manto do direito público e que avança gradualmente. Essa
relação é autônoma e distinta da relação de direito material. Nesse sentido, Bülow esclarece:
A relação jurídica processual se distingue das demais relações de direito por outra característica singular [...] O processo é uma relação jurídica que avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo. Enquanto as relações jurídicas provadas que constituem a matéria do debate judicial apresentam-se como totalmente concluídas, a relação jurídica processual se encontra em embrião. Esta se prepara por meio de atos particulares. Somente se aperfeiçoa com a litiscontestação, o contrato de direito público, pelo qual, de um lado, o tribunal assume a obrigação concreta de decidir e realizar o direito deduzido em juízo e de outro lado, as partes
102 LEAL, Rosemiro Pereira. A judiciarização do processo nas últimas reformas do CPC brasileiro. In: BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo; NEPOMUCENO, Luciana Diniz (Coord.). Processo civil reformado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 258.
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ficam obrigadas, para isso, a prestar uma colaboração indispensável e a submeter-se aos resultados desta atividade comum.103
Essa concepção baseada em vínculos de subordinação entre os sujeitos era compatível
com a concepção privatística do direito da época, uma vez que marcada por concepções
individualistas. Apesar da contribuição de Bülow para a autonomia do processo, Aguiar
argumenta que, sob o ponto de vista da crítica jurídica, a teoria processual bülowiana é
inaplicável, tendo em vista sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito
estabelecido pela Constituição: “[...] O processo não mais pode ser visto como instrumento
para o exercício da jurisdição, tendo em vista que, enquanto instituição constitucionalizada, o
processo é metodologia para a garantia, exercício e execução dos direitos fundamentais. Hoje,
o que se deve buscar é o juízo democrático, rompendo com a concepção privada de processo e
repudiando os escopos metajurídicos defendidos arduamente pelos instrumentalistas.”104
Apesar dos esforços de Bülow para traçar uma distinção entre processo e
procedimento, ele acabou por analisar esses institutos como um único fenômeno. Desse
modo, para Bülow, na noção de processo se inclui a de procedimento: “[...] no lugar de
considerar o processo como uma relação de direito público, que se desenvolve de modo
progressivo, entre os tribunais e as partes, tem destacado sempre unicamente aquele aspecto
da noção de processo que chama a atenção de todo mundo: sua marcha gradual no tempo.”105
E, por outro lado, por essa concepção não se pode olvidar a noção de relação jurídica
processual: “Sem dúvida, poderia fazer predominar também o procedimento na definição de
processo, sem deixar de mostrar a relação processual como a outra noção.”106 A partir dessa
confusão entabulada por Bülow entre procedimento e processo decorre a dificuldade para os
adeptos dessa teoria elaborarem uma distinção adequada entre esses institutos.
Chiovenda, assim como Bülow, analisa o processo como relação jurídica e também
reafirma a autonomia da ação e da relação processual. O autor, do mesmo modo, analisa os
pressupostos processuais, como circunstâncias exigidas para a constituição regular da relação
103 BÜLOW, Oscar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003, p. 6. Ver também BÜLOW, Oscar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Traducción de Miguel Angel Rosas Lightschein. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1964. 104 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Processo, ação e jurisdição em Oskar von Bülow. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo. São Paulo: Síntese, 2005. v.6, p. 50. 105 BÜLOW, Oskar von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales, 1964, p. 3. 106 BÜLOW, Oskar von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales, 1964, p. 4.
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processual. Segundo Chiovenda, o processo é uma relação jurídica entre os homens, regulada
pela vontade da lei:
O próprio processo, do mesmo passo que tem por objeto a relação jurídica entre as partes deduzidas em juízo pelo autor (relação jurídica substancial), constitui, por sua vez, como veremos, uma relação jurídica de direito público entre as partes e o órgão jurisdicional (relação jurídica processual): as duas relações apresentam, no processo, contínuas interferências e contraposição.107
Ao estudar a teoria processual em Chiovenda, Pimenta enfatiza que essa teoria está
ultrapassada: “[...] com os avanços e a evolução dos estudos processuais, resta, hoje, evidente
a superação da teoria processual agasalhada por Chiovenda, que, enraizada em vetusta
concepção de direitos subjetivos, reflete a sujeição entre as partes – autor, réu e juiz –,
segundo a qual uma parte exige da outra o cumprimento de direitos de que se diz titular.”108
De acordo com Carnelutti, “[...] chamamos (por antonomásia) processo a um conjunto
de atos dirigidos à formação ou aplicação dos preceitos jurídicos, cujo caráter consiste na
colaboração para tal finalidade das pessoas interessadas (partes) com uma ou mais pessoas
desinteressadas (juízes, ofício judicial).”109 O autor enfatiza que o processo visa a garantir
uma regulação do conflito justa e certa. Como método, o processo serve para aplicação do
direito e, por outro lado, também é regulado pelo direito.
O procedimento é uma sucessão de atos que se encontram vinculados, tendo em vista
que cada ato pressupõe um ato precedente. O processo, por sua vez, é o conjunto de todos os
atos necessários, podendo desenvolver-se por um ou mais procedimentos: “[...] para distinguir
melhor entre processo e procedimento, pode-se pensar no sistema decimal: o procedimento é
a dezena; o processo é o número concreto, o qual não pode alcançar a dezena ou mesmo
compreender mais de uma.”110
Carnelutti enfatiza que, tendo em vista que o direito opera relações entre os indivíduos
através da composição de seus conflitos, os termos relações jurídicas processuais e Direito
Processual são indissociáveis. Apesar de ser adepto da teoria da relação jurídica, Carnelutti
107 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual. Tradução de Paolo Capitanio. 2.ed. São Paulo: Bookseller, 2000, p. 21. 108 PIMENTA, André Patrus Ayres Pimenta et al. Processo, ação e jurisdição em Chiovenda. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo. São Paulo: Síntese, 2004, v. 4, p. 72. 109 CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Tradução de Adrián Sotero de Witt Batsita. São Paulo: Classic Book, 2000, p. 71-72. v.1. 110 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Tradução de Antônio Carlos. São Paulo: Lejus, 2000, p. 473. v. 1.
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considera que: “[...] o processo não é uma relação jurídica, mas sim que gera uma rede, para
não dizer um emaranhado de relações jurídicas.”111
Ainda segundo Carnelutti, em decorrência dos direitos, deveres e número de pessoas
envolvidas, o processo é complexo e depende de vínculos: “[...] o processo é um mecanismo
extremamente complicado, do qual estes homens são as peças únicas; o mecanismo não
poderia funcionar se seu movimento não estivesse combinado por vínculos, os quais não são
nem podem ser outra coisa que relações jurídicas.”112
Liebman assinala que Carnelutti teve papel importante no estudo do processo,
principalmente ao apontar que o objeto do processo consiste nos interesses contraditórios das
partes. Porém, Liebman entende que os resultados indicados por Carnelutti devem ser
parcialmente alterados, uma vez que o pedido é o objeto do processo, mas apenas se constitui
em seu elemento formal. Liebman destaca que o motivo para essa conclusão é que o pedido é
“[...] manifestação da vontade dirigida à autoridade judiciária, requerendo desta uma atividade
de determinado conteúdo. Todo o desenvolvimento do processo consiste em dar a tal pedido o
devido seguimento, de conformidade com a lei, e o órgão público se desincumbe de sua
função ao proferir os atos com que atende ao mencionado pedido.”113 Já o elemento material,
nos moldes indicados por Carnelutti, é o interesse da parte que não foi satisfeito e que ela
procura resolver por meio do processo.
Liebman afirma que o processo é uma atividade através da qual se desenvolve de
modo efetivo a atividade jurisdicional. Ao esclarecer o significado de processo sob o ponto de
vista extrínseco, Liebman enfatiza que este é uma série de atos processuais regulados pela
norma procedimental. Ainda ao tratar do tema, Liebman procura traçar a distinção entre
processo e procedimento, destacando que o processo é amplo, e o procedimento é específico.
Porém, na análise empreendida por Liebman, ele acabou por confundi-los, uma vez que
estabelece que o procedimento corresponde ao aspecto externo e material do processo:
Do ponto de vista extrínseco e material, o processo consiste numa série de atos (atos processuais) provenientes dos órgãos jurisdicionais ou das partes. A lei regula não só a forma, o tempo e o modo como estes atos devem ser feitos, mas também a ordem com a qual seguir-se de um ao outro numa série contínua até o ato final, com a qual se reúne o objetivo da jurisdição. Estes atos são todos estreitamente legais entre si (eles) e têm todos um objetivo comum, qual seja de preparar o ato final; são, por isto, os elementos de uma unidade que se chama procedimento; e, por sua vez, o
111 CARNELUTTI, Francesco. Direito e processo. Tradução de Júlia Jimenez Amador. São Paulo: Peritas, 2001, p. 73. v.1. 112 CARNELUTTI, Francesco. Direito e processo, 2001, p. 73. 113 LIEBMAN, Enrico Tullio. Estudos sobre o processo civil brasileiro, São Paulo: Bestbook, 2001, p. 100.
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ato final pressupõe os atos anteriores e também os encerra. Processo e procedimento não são, portanto, a mesma coisa. O primeiro é um termo mais genérico e mais amplo, o segundo é mais técnico e mais preciso, uma vez que se refere somente aos atos, suas sucessões e unidade formal; e mais de um procedimento pode concorrer a integrar um processo (procedimento de cognição e procedimento de execução; procedimento de primeira instância e procedimento de apelação). Todavia, na linguagem usual, os dois termos são usados freqüentemente de forma promíscua.114
Já sob o ponto de vista intrínseco (tessitura jurídica interna), Liebman, assim como
Chiovenda, também conceituou o processo como relação jurídica processual:
Mas o processo não é só procedimento. A sua pendência determina entre os seus sujeitos uma relação jurídica, a relação jurídica processual. Desde o momento da sua proposição, o órgão que dele é investido e as partes envolvidas se encontram numa relação particular, de outra forma inexistente, que cria entre eles vínculos juridicamente regulares. Também esta relação é uma unidade, como o correspondente procedimento, mas uma unidade complexa, que perdura e progride do primeiro ao último ato do processo.115 (grifos do autor)
Inicialmente, Couture aderiu à teoria do processo como instituição.116 Essa adesão
pode ser observada nas primeiras edições da obra Fundamentos do Direito Processual
Civil:
Esta doutrina supera, em nossa opinião, os resultados da conceituação do processo como relação jurídica. A idéia de uma ‘relação jurídica’, em que pese às críticas que lhe foram opostas, contribui para descrever com bastante nitidez o objeto jurídico que se trata de representar [...]
114 “Da un punto di vista estrinseco e materiale, il processo consiste in una serie di atti (atti processuali) posti in essere sai dagli organi giurisdizionali sai dalle parti. La legge regola non solo la forma, il tempo e il modo con qui quesi ati devono faris, ma anche l’ordine com cui devono seguirsi lúno all’tro in una serie continua fino all’atto finale, com cui questi atti devono farsi, ma anche l’ordine com cui devono seguirse l’uno all’altro in una serie continua fino all’atto finale, com cui si raggiunge lo scopo della giurisdizione. Questi atti sono tutti strettamente legati fra loro e hanno tutti uno scopo comune, quello ciòe di preparare l’atto finale, sono pérciò gli elementi di una unitá Che si chama procedimento; e sua volta l’atto finale presuppone gli atti anterior e chiude la loro serie. Processo e procedimento non sono pérciò la stessa cosa. Il primo è un termine più genrico e più ampio, il secondo è più técnico e più preciso, poichè si riferisce ai soli atti, nella loro sucessione e unità formale; e più di un procedimento può concorrere ad integrare un processo (procedimento di cognizione e procedimento di esecuzione; procedimento di prima istanza e procedimento di apello. Ciò non toglie nel linguaggio usuale spesso I due termini usano promiscuamente.” LIEBMAN, Enrico Tullio. Corso di Diritto Processuale Civile. Millano: Dott A. Giufrrè, 1952, p. 28-29. 115 “Ma il processo non è solo procedimento. La sua pedenza determina fra i suoi soggetti un rapporto giuridico, il rapporto giuridico processuale. Dal momento della sua proposizione l’organo Che ne è investito e lê parti Che vi sono coinvolte si trovano in una relazione particolare, altrimenti inesistente, Che crea tra loro vincoli giuridicamente regolati. Anche questo rapporto è un’unita, come il corrispondente procedimento, ma una unità complessa, Che perdura e progredisce dal primo all’ultimo atto Del processo.” LIEBMAN, Enrico Tullio. Corso di Diritto Processuale Civile, 1952, p. 29. (grifos do autor). 116 “O processo, segundo esta teoria, não é uma relação, mas situação, ou seja, é o estado de uma pessoa sob o ponto de vista da sentença judicial, a qual é esperada de acordo com as normas jurídicas.” COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do Direito Processual Civil. Tradução de Rubens Gomes de Souza. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 97.
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A idéia de instituição, entretanto, tem sobre a de relação jurídica a vantagem de abarcar a totalidade do objeto. Além da própria relação em si, aquela abrange o conjunto de relações que nascem por força do processo. A variedade dessas relações é praticamente ilimitada, já que o processo compreende uma infinidade de vínculos e liames de toda ordem [...] Pela mesma razão porque se firmou que o processo não é uma situação, mas um conjunto de situações, também se pode afirmar que, mais que uma relação, ele é um conjunto de relações.
Esse conjunto de relações constituirá uma instituição, desde que por tal se entenda, como se faz a doutrina francesa, o conjunto das regras estabelecidas para assegurar a satisfação de interesses coletivos ou individuais.117
Porém, em edições posteriores, Couture confirmou que, apesar de sua filiação
temporária à concepção do processo como instituição118, era necessário fazer algumas
observações acerca dessa teoria, tendo em vista que, embora de fácil entendimento, essa teoria
era inadequada por apresentar uma série de pressupostos mais sociológicos que jurídicos.119
Nesse sentido, Assis, na obra Couture e a teoria institucional do processo, demonstra a
adesão de Couture à teoria do processo como relação jurídica e aponta suas observações sobre
o processo como instituição:
Mas essa não expressara a certeza de uma posição doutrinária, pois ele já deixara claro que continuava dando a sua adesão à teoria da relação jurídica, afirmando que a idéia institucional não constituía rigorosamente uma doutrina, senão um modo fácil de entendimento.120
Desse modo, Couture também aderiu à teoria do processo como relação jurídica,
elaborada por Bülow, com algumas adaptações: “[...] digamos, pois, que a relação jurídica
processual se compõe de relações menores, como nos últimos dos esquemas expostos, não só
ligam as partes aos órgãos jurisdicionais, mas também as partes entre si.”121
117 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do Direito Processual Civil, 1946, p. 102. 118 “Entende-se por instituição, diz Guasp, não somente o resultado de uma combinação de atos tendentes a um fim, como também um complexo de atividades relacionadas entre si pelo vínculo de uma idéia comum objetiva, à qual surgem ligadas, seja ou não aquela a sua finalidade específica, as diversas vontades individuais dos sujeitos, dos quais procede a referida atividade. A instituição, se compõe, assim, de dois elementos fundamentais, que são como que a trama e a urdidura de um tecido: a idéia objetiva, situada fora da vontade dos sujeitos, e acima dela; e o conjunto das vontades, que se vinculam àquela idéia, a fim de lograrem a sua realização.” COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do Direito Processual Civil, 1946, p. 101. 119 Ver também LAGES, Cíntia Garabini. Direito-garantia como abolição do vínculo da relação jurídica entre os sujeitos do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo. São Paulo: Síntese, 2001. v.2, p.88. 120 ASSIS, Jacy de. Couture e a teoria institucional do processo. Uberlândia: Faculdades de Direito de Uberlândia, 1961. 121 “Digamos, pues, que la relación jurídica procesal se compone de relaciones menores y que elles, como en el ultimo de los esquemas expuestos, no sólo ligan a las partes com los órganos de la jurisdicción, sino también a las partes entre sí.” COUTURE, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1993, p. 133-134.
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Couture, assim como Bülow, faz a diferenciação entre processo e procedimento. Para
ele: “[...] o processo é, em si mesmo, um método de debate. Nele participam elementos
humanos: juízes, auxiliares, partes, testemunhas, peritos etc., os quais atuam segundo certas
formas preestabelecidas na lei. Essas formas regulam a produção de atos jurídicos
processuais, vale dizer, atos humanos dirigidos pela vontade jurídica.”122 Assim, o processo é
um procedimento que visa cumprir a função jurisdicional que se apresenta como relação
jurídica, e o procedimento é desprovido de conteúdo teleológico, constituindo o lado externo
do processo. A finalidade do processo, para o autor, é resolver o conflito através de um debate
preordenado, por ato da autoridade.123
Porém, a maior contribuição de Couture relaciona-se a sua afirmação de que a tutela
do processo se realiza pelo império das previsões constitucionais; “[...] neste sentido, Couture
entende o processo como uma garantia constitucional e enuncia uma Teoria Geral da Tutela
Constitucional do Processo.”124
Buzaid, autor do anteprojeto do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, adotou a
teoria de Liebman sobre jurisdição, processo e ação. O conceito de relação jurídica, segundo
Buzaid, constitui um dos principais fundamentos do sistema de direitos. Para ele, relações das
mais variadas ligam os homens. “Quando essas relações intersubjetivas são reguladas e
protegidas pelo direito, em sentido subjetivo, dizem-se relações jurídicas. Os membros da
comunidade se acham vinculados nessa relação por um complexo de direitos e obrigações. A
norma jurídica estabelece deveres em relação a uns e direitos em relação a outros.”125 O autor
esclarece que essa relação bilateral que se forma entre o sujeito do dever e o sujeito do direito
constitui a relação jurídica. Essa relação possui, assim, dois sujeitos: um ativo, que possui
faculdade de fazer valer seu direito; e o outro passivo, que está obrigado a respeitar o poder
alheio.
A escola da relação jurídica no Brasil é conhecida como escola instrumentalista do
processo. Dinamarco, através da relação entre o processo, o direito, os valores sociais e
políticos, estuda o processo como instrumento de consecução de uma ordem justa, com
fundamento no método teleológico de interpretação das normas processuais. Para Dinamarco,
122 COUTURE, Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 43. 123 Sobre a adesão de Couture à teoria do processo como relação jurídica, consultar LAGES, Cíntia Garabini. Direito-garantia como abolição do vínculo da relação jurídica entre os sujeitos do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados da Teoria do Processo, 2001. v.2. 124 LAGES, Cíntia Garabini. Direito-garantia como abolição do vínculo da relação jurídica entre os sujeitos do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados da Teoria do Processo, 2001, p. 89. v.2. 125 BUZAID, Alfredo. A ação declaratória no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 151.
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existe uma preponderância metodológica da jurisdição sobre os demais institutos processuais,
motivo pelo qual a ação, a defesa e o processo deveriam constituir o contorno da jurisdição.126
Cintra, Grinover e Dinamarco, baseados nos ensinamentos dogmáticos de Bülow,
defendem a natureza do processo como relação jurídica e, na tentativa de diferenciar processo
e procedimento, acabam também por confundir esses institutos, sem conseguir diferenciá-los:
[...] a aceitação da teoria da relação jurídica processual, todavia, não significa afirmar, como foi feito desde o aparecimento desta, que o processo seja a própria relação processual, isto é, que processo e relação processual sejam expressões sinônimas. Como já foi indicado acima, o processo é uma entidade complexa, podendo ser encarado sob o aspecto dos atos que lhe dão corpo e da relação entre eles (procedimento) e igualmente sob o aspecto das relações entre sujeitos (relação jurídica processual): a observação do fenômeno processo mostra que, se ele não pode ser confundido como mero procedimento (como fazia a doutrina antiga), também não se exaure no conceito puro e simples de relação jurídica processual.127
Apesar de a teoria da relação jurídica ter sido adotada pela maior parte da doutrina
brasileira e de ter influenciado na elaboração do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973,
ela é inadequada para definir o processo no Estado Democrático de Direito, que não admite
vínculos de subordinação entre sujeitos. Nesse sentido, Lages assevera:
Assim, segundo a teoria do processo como procedimento realizado em contraditório, a teoria da relação jurídica, que pressupõe vínculo de exigibilidade, de sujeição entre as partes, apresenta-se incompatível com a própria garantia do contraditório, garantia essa vista como liberdade assegurada, não se confundindo com imposição.128
Nesse diapasão, para Gonçalves, o problema da teoria da relação jurídica encontra-se
na própria relação, uma vez que não se pode falar de supra-ordenação ou infra-ordenação
entre sujeitos, mas entre a ordem jurídica e entre os indivíduos cuja relação essa norma
regula: “[...] a se admitir o processo como relação jurídica, na acepção tradicional do termo,
ter-se-ia que admitir, conseqüentemente, que ele é um vínculo constituído entre sujeitos em
que um pode exigir do outro uma determinada prestação, ou seja, uma conduta
determinada.”129
126 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1990, p. 77-82. 127 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 286. 128 LAGES, Cíntia Garabini. Direito-garantia como abolição do vínculo da relação jurídica entre os sujeitos do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Org.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2001, p. 101, v. 2. 129 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
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No mesmo sentido, Pellegrini também faz críticas à teoria da relação jurídica, uma vez
que, no processo, não existe vínculo de sujeição entre os sujeitos, do autor frente ao réu, do
réu perante o juiz, e deste perante o autor. Ao contrário da existência de vínculos de
subordinação, de supra-ordenação ou infra-ordenação, a autora ressalta a exigência da
participação em simétrica paridade dos afetados pelo provimento jurisdicional.130
Essa também é a posição adotada por André Leal, para quem o processo como relação
jurídica não resistiu às críticas formuladas, principalmente, no que diz respeito aos vínculos
de subordinação entre as partes. Segundo o autor, já na concepção de Kelsen131 não era
possível falar em relação entre sujeitos, mas apenas relações entre normas.132
Além da atribuição de vínculos de subordinação, outra deficiência dessa teoria
relaciona-se ao fato de que seus adeptos não foram capazes de fazer a distinção entre processo
e procedimento. E, ainda, de conectar o processo à jurisdição através de escopos
metajurídicos:
Agravaram-se as tentativas de classificação de processo e procedimento nesta escola da relação jurídica (hoje instrumentalista), quando, além de se perderem em elucubrações fenomenológicas e enigmáticas, os teóricos dessa escola conectaram o Processo à Jurisdição, em escopos metajurídicos, definindo o processo como se fosse uma corda a serviço da atividade jurisdicional nas mãos do juiz para puxar pela coleira mágica a Justiça Redentora para todos os homens, trazendo-lhes paz e felicidade. Falam que o processo é instrumento jurídico, sem observarem que a jurisdição hoje é função fundamental do Estado e este só se legitima, em sua atividade jurisdicional, pelo Processo. É, portanto, o Processo validador e disciplinador da jurisdição e não instrumento desta.133
Ao analisar a teoria do processo como relação jurídica, Nunes destaca que “[...]
indubitável é que a teoria da relação jurídica, afora as contradições já apontadas, tem
funcionado como palco para o Estado exercer sua onipotência malsã, que causa não só o
desequilíbrio, a quebra da simétrica paridade exigida pela nova ordem constitucional, mas
retira a própria legitimidade do processo.”134
130 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo, Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2003, p. 4. 131 “Do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito, isto é, dirigido às normas jurídicas, não são tomadas em linha de conta as relações entre indivíduos, mas apenas relações entre normas – pelos indivíduos criadas e aplicadas – ou entre os fatos determinados pelas normas, dos quais a conduta humana apenas representa um caso especial, se bem que particularmente significativo.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 185. 132 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 82. 133 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 93. 134 NUNES, Elpídio Donizzetti. Jurisdição, judicação e tutela legal na teoria do processo contemporâneo. In: LEAL, Rosemiro Pereira Leal (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, 2001, v.2, p. 226.
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Além disso, o processo constitucional não é mero instrumento da jurisdição
constitucional como afirmam os instrumentalistas, conforme adverte Leal: “[...] seria um
retorno a Bülow, numa reafirmação ampliada da arcaica teoria do processo como relação
jurídica, imaginar, como ainda querem os instrumentalistas de hoje, que o Processo
Constitucional seja um instrumento de uma Jurisdição Constitucional exercida pelo juiz como
justiceiro-controlador da constitucionalidade (Tribunais Constitucionais).”135 Em uma
sociedade democrática, a jurisdição encontra-se subordinada aos princípios do processo:
[...] a jurisdição é o conjunto de conteúdos jurídicos (materiais-processuais) assegurados pelo Devido Processo constitucionalizado na criação, recriação, definição, interpretação e aplicação das leis por agentes legitimados no recinto da Sociedade Jurídico-Política Democrática de Direito. Tanto a parte como o juiz exercem, nos procedimentos, jurisdição, guardadas as características de suas atuações legais de articulador-construtor (parte) e aplicador-julgador (juiz), sendo que ambos são figurantes da estrutura procedimental.
136
Somente a partir da teoria do procedimento realizado em contraditório, elaborada por
Fazzalari, a decisão saiu da esfera do decisor e passou a ser estudada como provimento:
Essa perda semântica do sentido interdital da decisão (decisionismo pela autoridade-vontade executiva) [...] possibilitou o enquadramento teórico da decisão no conceito de provimento do hodierno direito processual italiano que Fazzalari, significando julgamento vinculado ao espaço técnico-procedimental-discursivo do processo cognitivo de direito, como conclusão co-extensiva da argumentação das partes, adquiriu conotação de ato integrante final do procedimento. Com Fazzalari, foi possível um salto epistemológico que retirou a decisão da esfera individualista, prescritiva instrumental da razão prática do decisor.137 (grifos do autor)
Fazzalari ofereceu uma nova concepção de processo, e seus estudos contribuíram para
a distinção entre processo e procedimento. Uma vez superado seu conceito como relação
jurídica, o processo não é mais estudado como um procedimento dos ritos e das formas e nem
o procedimento é diluído no processo. No Brasil, Gonçalves trabalhou essa nova concepção
de processo desenvolvida por Fazzalari.138
135 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 76. 136 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 76. 137 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 26. 138 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, 1992.
48
Inicialmente, Fazzalari elabora a noção de procedimento139, para, a partir dessa noção,
conceituar o processo. O procedimento pode ser definido como uma atividade preparatória do
provimento140 estatal, uma vez que “[...] possui sua específica estrutura constituída da
seqüência de normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o
cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da
validade do ato nele previsto.”141 Desse modo, o procedimento não configura mera
exteriorização processual.
Ao contrário dos adeptos da escola da relação jurídica, que desenvolvem a noção de
procedimento a partir da noção de processo, Fazzalari apresenta uma nova concepção. O
processo142, para essa teoria, é uma espécie do gênero procedimento, caracterizando-se pela
participação das partes na preparação do provimento estatal:
Há processo sempre onde houver o procedimento realizado em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na ‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como destinatários, sofrerão seus efeitos.143
O contraditório144 não significa a mera participação, “[...] é a garantia de participação,
em simétrica paridade das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença,
daqueles que são os interessados, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os
139 “O procedimento se apresenta, pois, como uma seqüência de ‘atos’, os quais são previstos e valorizados pelas normas. O procedimento vai, enfim, acautelado como uma série de ‘faculdades’, ‘poderes’, ‘deveres’: quantas e quais são as ‘posições subjetivas’ que é possível trazer das normas em discurso; e que resultam também elas, e a um sujeito quando um dever se completou, por ele ou por outros, é, por sua vez, o exercício daquele poder que constituía o pressuposto para insurgir de um outro poder (ou faculdade ou dever).” Tradução livre. “Il procedimento si presenta, poi, come uma sequenza di ‘atti’ quali previsti e valutati dalle norme. Il procedimento, va, infine, riguardato come una serie di ‘facoltà, ‘poteri’, ‘doveri’: quante e quali sono le ‘posizioni soggettive’ che è dato trarre dalle norme in discorso; e Che risultano anch’esse, e ad um soggetto quando um dovere sai stato compiuto, da lui o da altri, é, a sua volta, l’esercizio di quel potete costituisca il presupposto per l’insorgere di um altro potere (o facoltá o dovere).” FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 8. ed. Itália: CEDAM, 1996, p. 78. 140“Se, na primeira aproximação, indicamos, como provimentos, os atos que emanam dos órgãos do Estado, cada um no âmbito da própria competência, disposições imperativas, se acolhemos estas primeiras, sumárias noções, estamos em grau de constatar que, de norma, o provimento de um órgão do Estado constitui, exatamente, a conclusão de um procedimento.” Tradução livre. “Se, in prima approssimazione, indichiamo come ‘provedimenti gli atti con sui gli organi dello Stato […] emano, ciascuno nell’ambito della propria competenza, dispozioni imperative [...], se accogliamo queste prime, sommarie nozioni, siamo in grado di constatare Che, di norma, il provvedimento di um organo dello Stato costituisce, appunto, la conclusione di um procedimento.” FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale,1996, p. 8. 141 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, 1992, p. 112. 142 “[...] il processo è um procedimento in cui partecipano (sono abilitati a partecipate) coloro nella cui sfera giuridica l’atto finale è destinato a solgere effetti: in contradittorio, e in modo Che l’autore dell’atto non possa obliterare lel loro attività.” FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale,1996, p. 82. 143 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, 1992, p. 115. 144 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale,1996, p. 85-89.
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efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier impor.”145 Porém, apesar de suas
contribuições, Fazzalari não estudou o processo como um instituto de Direito Constitucional.
Nesse sentido, Leal destaca que Fazzalari: “[...] não fê-lo originariamente pela reflexão
constitucional do direito-garantia.”146
Desse modo, apesar de a teoria do processo como procedimento em contraditório ter
contribuído para a democratização do processo, Almeida aponta que Fazzalari “[...] não
conceituou o processo como instituição constitucionalizada regente de toda estrutura
procedimental, deixando que o princípio do contraditório adquira força pela coercitividade
autopoiética legalista, manipulada estrategicamente pelos instrumentalistas do Estado burguês
de direito.”147
A teoria constitucionalista do processo somente despontou com as obras de Baracho148
e Fix Zamudio149, que esclareceram essa aproximação entre constituição e processo. Nessa
linha de ideais, Baracho enfatiza: “[...] a relação existente entre Constituição e Processo é
apontada por vários publicistas, desde que o texto fundamental traça as linhas essenciais do
sistema processual consagrados pelo Estado. A Constituição determina muitos dos institutos
básicos do processo, daí as conclusões que acentuam, cada vez mais, as ligações entre a
Constituição e o Processo.”150
Contudo, apenas com os estudos realizados por Andolina e Vignera151, o processo
passou a ser visto como uma instituição constitucionalizada. Andolina e Vignera abordam, em
capítulo próprio de sua obra, a relação entre constituição e processo, destacando que os
princípios constitucionais regulam o exercício da atividade jurisdicional e que, apesar de
existir na Itália, em 1948, uma pluralidade de procedimentos jurisdicionais, existia apenas um
paradigma constitucional de processo: “[...] as normas e princípios constitucionais que dizem
respeito ao exercício das funções jurisdicionais, se considerados em conjunto, permitem ao
intérprete traçar um legítimo e próprio esquema geral de processo, susceptível de instituir um
objeto de explicação unitária.”152
145 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, 1992, p. 120. 146 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 97. 147 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 57. 148 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 149 FIX ZAMUDIO, Héctor. Constitución y processo civil en Latinoamérica. México: Unam, 1974. 150 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional, 1984, p. 122. 151 ANDOLINA, Ítalo; VIGNERA, Giuseppe. I foundamenti costituzionali della giustizia civile: il modelo costituzionale del processo civile italiano. Torin: Giappichele, 1979. 152 ANDOLINA, Ítalo; VIGNERA, Giuseppe. I foundamenti costituzionali della giustizia civile: il modelo costituzionale del processo civile italiano, 1979, p. 7.
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André Leal aponta que, a partir de Andolina e Vignera, o processo passa a ser visto
como um modelo constitucional, “[...] o contraditório deixa de ser mero atributo do processo e
passa à condição de princípio (norma) determinativo de sua própria inserção na estruturação
de todos os procedimentos preparatórios dos atos jurisdicionais.”153
Sobre a contribuição de Andolina e Vignera acerca do modelo constitucional de
processo, Leal destaca que:
[...] ficou explícito, por estudos de Ítalo Andolina, que o processo, em seus novos contornos teóricos na pós-modernidade, apresenta-se como instituição constitucionalizada que, pela principiologia constitucional do devido processo que compreende os princípios da reserva legal, da ampla defesa, da isonomia e do contraditório, converte-se em direito-garantia impostergável e representativo de conquistas teóricas da humanidade no empreendimento secular contra a tirania, como referente constitucional lógico-jurídico, de interferência expansiva e fecunda, na regência axial das estruturas procedimentais nos segmentos da administração, legislação e jurisdição.
154
Por fim, a teoria neo-institucionalista do processo, elaborada por Leal, aponta que o
processo é um modelo construído com base na constituição e com ampla participação da
comunidade jurídica na construção do provimento: “[...] a instituição do processo
constitucionalizado é referente lógico jurídico de estruturação dos procedimentos (judiciais,
legiferantes e administrativos) de tal modo que os provimentos (decisões, sentenças
decorrentes), resultem do compartilhamento dialógico-processual da Comunidade
Jurídica.”155 Desse modo, ao contrário das súmulas vinculantes, que são emitidas com base
no autoritarismo, a teoria neo-institucionalista enfatiza a necessidade da conquista teórico-
jurídica da cidadania como pressuposto do processo constitucional.
Conforme enfatiza André Leal, essa concepção proposta por Leal, apesar de se
aproximar da idéia de processo como modelo constitucional, ultrapassa essa concepção, uma
vez que relaciona o processo à legitimidade das decisões judiciais. O processo não pode mais
ser visto como mero instrumento da jurisdição, já que a jurisdição não tem validade sem
ele.156
Por sua vez, sobre tema procedimento LEAL esclarece:
153 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 88. 154 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 98-99. 155 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 100. 156 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 89.
51
O procedimento, distinguindo-se do processo pela ausência da qualidade constitucional principiológica do contraditório, é que deve merecer estudo especial para defini-lo não mais como a ritualística manifestação perceptível do processo, mas como uma estrutura técnica de atos jurídicos praticados por sujeitos de direito, que se configura pela seqüência obediente à conexão de normas preexistentes no ordenamento jurídico indicativas do modelo procedimental. De conseguinte, o procedimento é manifestação estrutural resultante de complexo normativo da positividade jurídica. É a estrutura extraída do texto normativo que a ela é preexistente e que lhe confere legitimidade, validade e eficácia pelo princípio da reserva legal que, em sua construção espácio-temporal, ao reflexo da lei, impõe o encadeamento de atos, no qual o ato anterior há de ser pressuposto lógico-jurídico do posterior e este pré-condição do ato seqüente que, por sua vez, é extensão do antecedente, até o provimento final (sentença, decisão, ato), o qual encerra uma etapa significativa ou o ciclo total do Procedimento. Por óbvio, o procedimento não se concretiza pela lógica diretiva da atividade jurisdicional do juiz, mas pelas condicionantes-lógicas dos princípios e institutos do Processo constitucionalizado.157
No Estado Democrático de Direito, toda decisão deve ser construída em um espaço
processualizado. Assim, a estrutura processual é o espaço de legitimação de toda atividade
estatal. Qualquer provimento, para ser legítimo, no Estado Democrático de Direito, deve
observar o Devido Processo Constitucional e suas duas vertentes: O Devido Processo
Legislativo e o Devido Processo Legal, de análise póstera no presente estudo.
Ao desenvolver estudo acerca da teoria neo-institucionalista, Aguiar ressalta que, em
oposição a essa teoria, as demais teorias do processo “[...] não possibilitaram a
institucionalização do princípio do discurso nem viabilizaram a revisibilidade do ordenamento
jurídico”158. Essa também é a posição adotada por Almeida: “[...] essas teorias, quando
testificadas pela teoria neo-institucionalista, apresentam-se incompatíveis com a teoria
discursiva do direito democrático, porque admitem resquícios republicanos, liberais e
voluntaristas para conduzirem a democracia, bem como uma modalidade estratégico-
instrumental-metodológica de produção e aplicação do direito, contemplando a tópica e a
retórica, desviam-se das aporias da linguagem, tornando a decisão compulsória.”159
Pelo estudo realizado acerca da falseabilidade das teorias em Popper, fica evidente que
as teorias científicas são frutos de discussões racionais (críticas). Apesar de uma discussão
crítica não poder alegar que uma teoria é verdadeira, ela pode, através de testes severos,
justificar a preferência por uma teoria: “A discussão crítica pode firmar razões suficientes
para a seguinte alegação: Esta teoria parece, presentemente, à luz de uma cuidadosa discussão
157 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 107-108. 158 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado Democrático de Direito. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, v. 27, n. 1, p. 73-123, jan./jul, 2005. 159 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 58.
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crítica e de severos e engenhosos testes, ser, em muito, a melhor (a mais forte, a mais bem
testada); e, assim, parece ser a mais próxima da verdade entre as teorias concorrentes.”160
Outro aspecto a ser analisado em Popper é a crítica formalizada por ele aos inimigos
da sociedade aberta (democrática): Platão, Hegel e Marx. Popper evidencia a necessidade de
uma sociedade aberta baseada na liberdade de opinião e na existência de uma oposição.161
Além disso, busca examinar a aplicabilidade dos métodos críticos e racionais da ciência aos
problemas da sociedade democrática.
Popper deixa claro que seu objetivo é abordar apenas dois aspectos da filosofia de
Platão, quais sejam o historicismo e o “Estado melhor”, não abrangendo, assim, outros
aspectos do platonismo. Desse modo, apesar de admirar a filosofia de Platão em aspectos que
ele entende que sejam socráticos, Popper visa criticar o historicismo. Após a análise
empreendida acerca de Platão, Popper volta suas críticas para Hegel, que seria um dos
seguidores de Heráclito, Platão e Aristóteles. O hegelianismo, na concepção popperiana,
significa um renascimento do tribalismo e representa um elo perdido entre o historicismo de
Platão e a fase moderna do totalitarismo. A doutrina de Hegel, assim como a de Platão,
baseia-se no totalitarismo. O último historicista analisado por Popper foi Marx. O marxismo é
uma forma pura de historicismo: “[...] é uma teoria que visa a predizer o curso futuro dos
desenvolvimentos econômicos e de poder político, e especialmente das revoluções.”162
Quanto ao materialismo de Marx, há dois aspectos a criticar: o historicismo e o economicismo
(materialismo).
Em sua obra, Da liberdade (1859), Mill buscou tematizar uma sociedade aberta
fundamentada na liberdade ampla do indivíduo163, criticou a infalibilidade e ressaltou a
necessidade da utilização do método da tentativa e erro. Apesar de reconhecer que o mérito de
Mill está em que, através de seu psicologismo ou individualismo metodológico164, ele se opõe
160 POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, 1999, p. 85. 161 POPPER. Karl R. A sociedade aberta um seu amigo, Karl Popper. Política, Brasília: Fundação Milton Campos, n. 4, p. 33-40, abr./jun. 1977. 162 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 70-83. 163 “O assunto deste livro não consiste na ‘liberdade da vontade’, conforme se diz, tão infelizmente colocada em oposição à doutrina inadequadamente denominada de necessidade filosófica; mas sim na liberdade social ou civil: natureza e limites do poder que a sociedade pode exercer legitimamente sobre o indivíduo.” MILL, John Stuart. Da liberdade. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1963, p. 3 164 “[...] Com efeito, a instância na origem psicológica das normas ou instituições sociais só pode significar que sua existência pode remontar a um estado em que sua instituição dependia unicamente de fatores psicológicos, ou, para falar com mais precisão, em que não dependia de nenhuma instituição social estabelecida. Assim o psicologismo se vê forçado a operar com a idéia do começo da sociedade e com a idéia de uma natureza e uma psicologia humana tais como existiam anteriormente à sociedade.” POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 100.
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ao coletivismo e ao holismo, Popper considera que o psicologismo é correto somente nesse
aspecto. Por outro lado, enfatiza que o problema do psicologismo é que Mill acredita que os
fenômenos sociais devem ser explicados historicamente.165 Apesar de sua contribuição, por
meio da crítica à sociedade fechada, Mill não colocou no centro de suas reflexões o processo
jurídico como espácio-temporal da discursividade na construção de uma sociedade
democrática:
[...] Recusar ouvir uma opinião porque estão certos de que é falsa importa em supor que a certeza (deles) é o mesmo que certeza absoluta. Todo silenciamento de discussão implica em hipótese de infalibilidade [...] Príncipes absolutos, ou outras pessoas que estão acostumadas a deferência, sentem em geral esta confiança completa nas próprias opiniões com respeito a quase todos os assuntos. Indivíduos felizes situados, que vez por outra ouvem as próprias opiniões discutidas e estão acostumados a vê-las corrigidas quando erradas, emprestam a mesma confiança ilimitada tão só àquelas opiniões que são compartilhadas.166
Já Häberle167, em 1975, defendeu uma sociedade e constituição aberta por meio da
adoção de uma hermenêutica constitucional adequada, ou seja, através da democratização da
interpretação constitucional, e objetivou refutar a metodologia jurídica tradicional vinculada à
sociedade fechada, uma vez que esta restringe a interpretação constitucional aos juízes.
Häberle evidencia, em sua obra, a necessidade da transição de uma sociedade fechada dos
intérpretes da Constituição para uma interpretação constitucional por e para uma sociedade
aberta.168 Porém, apesar de Häberle citar Popper, ele não conseguiu apropriar-se de forma
efetiva da concepção popperiana acerca da sociedade aberta.
De qualquer modo, a partir da idéia de abertura constitucional proposta por Häberle,
surge um questionamento acerca das súmulas vinculantes, ou seja, se na elaboração das
súmulas ocorre a participação do destinatário da norma no processo hermenêutico. As
súmulas vinculantes são resultantes do controle difuso de constitucionalidade, cabendo ao
Supremo Tribunal Federal sua aprovação. A forma como essas súmulas são emitidas acaba
por inviabilizar a atuação da comunidade jurídica como força produtiva de interpretação do
complexo normativo constitucional. Nos termos propostos por Häberle, a comunidade jurídica
poderia atuar como intérprete ou, pelo menos, como pré-intérprete: “[...] cidadãos e grupos,
165 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 99. 166 MILL, John Stuart. Da liberdade, 1963, p. 21-22. 167 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. 2. ed. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002. 168 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, 2002.
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órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública [...] representam forças produtivas de
interpretação (interpretatorische ProduktivKräfe); eles são intérpretes constitucionais em
sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (Vorinterpreten).”169
Porém, Leal adverte que, quando Häberle assevera a necessidade de democratização
da interpretação constitucional, “[...] é necessário que a quebra desse monopólio seja definida
pela base decisório-popular construtiva da lei, porque seria inócuo democratizar a
participação hermenêutica pelas interpretações aleatórias e idealistas.”170
Ao enfatizar os participantes do processo da interpretação, Häberle assevera que, em
uma sociedade pluralista, não é possível enumerar, de maneira taxativa, os intérpretes da
Constituição, como ocorre com as súmulas vinculantes. Para Häberle, essa interpretação
constitucional adequada à sociedade pluralista ou aberta consiste tanto em um elemento
formador como em um elemento resultante da sociedade aberta. Apesar de reconhecer a
responsabilidade da jurisdição constitucional na interpretação constitucional, Häberle destaca
que a teoria da interpretação deve ser garantida por uma teoria democrática. Ora, em uma
sociedade democrática, nos moldes propostos por Popper, somente por meio do processo
constitucionalizado é possível o exercício da jurisdição, que deve submeter-se ao devido
processo legal, o qual se configura pela observância do contraditório, isonomia e ampla
defesa. Assim, os intérpretes jurídicos não possuem o monopólio da interpretação da
Constituição, devendo o destinatário da norma participar do processo hermenêutico.
Sobre a democratização da interpretação, Leal assevera que somente os legitimados
pelo procedimento podem ser considerados intérpretes da constituição. Desse modo, Leal, ao
contrário de Häberle e baseado no critério de demarcação de testabilidade popperiano, coloca
no centro de sua reflexão uma hermenêutica que deve ser desenvolvida no espaço
processualizado, como exercício democrático de discussão de direitos pelas partes:171
A teoria neo-institucionalista do processo, ao contrário de Häberle, não trabalha em concepções de constituição aberta a intérpretes não juridicamente legitimados à procedimentação, sequer se oferece como instrumento de uma jurisdição
169 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, 2002, p. 14. 170 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.97. 171 “Parte já constitucionalmente legitimada é o agente do DEVER-SER jurídico NORMATIVO (devido processo legal) que se concretiza na procedimentalidade (efeito expansivo) para criação (legiferação) ou definição (judicação) do direito.” LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p.94.
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constitucional jurisprudencializada por tribunais justiceiros. A instituição constitucionalizada do processo, por sua eidética principiológica, há de ser referencial de decisibilidade desde a criação da lei até sua incidência, aplicação, extinção ou transformação. A teoria neo-institucionalista do processo é uma Teoria da processualização testificante da validade normativo-democrática, porque propõe e atua um pensar jurídico na racionalidade problematizável, por falibilidades revisíveis, da produção e aplicação do direito.172
Leal esclarece que cabe ao intérprete-julgador o pensar direcionado para aplicação do
direito procedimentalizado, desempenhando o conceito constitucional de parte papel
preponderante na operacionalização do processo constitucional: “[...] intérpretes, nas
democracias, são todos os que participam da procedimentalidade assegurada e regida pelo
DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL, que jurisdicionaliza o proceder para os
figurantes do procedimento, concretizando e legitimando-o como estrutura criada pelo
POVO a recriar, afirmar, negar, debater, discutir, transformar, substituir, destruir ou reafirmar
processualmente o direito, como seu feitor e intérprete originário e intercorrente.” 173 (grifos
do autor).
Verdú, embasado na obra de Häberle, também faz críticas aos inimigos da constituição
aberta e destaca que a abertura constitucional - assim como a sociedade aberta - como
manifestação de uma teoria democrática, implica o pluralismo, a alternância de poder, a
tolerância, que são valores fundamentais de uma democracia. Além disso, a abertura
constitucional significa que a Constituição está aberta a outros conteúdos normativos, extra-
normativos (usos e costumes) e metanormativos (valores e princípios morais), uma vez que o
texto constitucional está inserido em um meio cultural e sociopolítico.174 Ainda fundamentado
em Hesse175, Verdù aponta que a constituição exige mais do que apenas uma interpretação;
ela exige concretização. Essa concretização interessa não apenas aos tribunais, magistratura,
partidos políticos, mas também ao cidadão: “[...] Interessa, outrossim, aos cidadãos, quando
estes possuam uma mínima preocupação cívico-política ante a norma básica de nosso
172 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 103. 173 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p.94. 174 “La abertura constitucional, como la sociedad abierta, en cuanto se consideran manifestaciones del espíritu democrático, inplican la relación de entrambas con la publicidad, el pluralismo, la alternancia en el poder la tolerancia, valores fundantes de una democracia.” VERDÙ, Pablo Lucas. La constitución abierta y sus enemigos. Madrid: Beramar, 1990, p. 28. 175 “A vinculação da interpretação à norma a ser concretizada, à (pré)-compreensão do intérprete e ao problema concreto a ser resolvido, cada vez significa, negativamente, que não pode haver método de interpretação autônomo, separado desses fatores; positivamente que o procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação, pela Constituição e pelo problema respectivo.” HESSE, Konrad. Elementos de Direito constitucional da República Federal da Alemanha. 20. ed. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 63.
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ordenamento jurídico, sentindo a Constituição como sua, compreendendo sua comum
integração na comunidade nacional.”176 Essa necessidade de participação decorre do
sentimento constitucional, em que cada cidadão se sente parte de uma unidade política
fundada no pluralismo e se relaciona com o comprometimento do indivíduo com as
instituições e com os valores da constituição. O sentimento constitucional desempenha papel
preponderante na implementação de um discurso democrático, uma vez que se constitui em
meio para a participação e para o exercício da cidadania.177
Apesar de, após uma leitura preliminar, parecer haver uma correlação entre a
constituição aberta proposta por Verdù e a sociedade aberta popperiana, o sentimento
constitucional, por se tratar de um fenômeno que diz respeito à Psicologia social, e estando
alheio a uma estrita concepção técnico-jurídica, possibilitaria a complementação da
constituição através de conquistas sociais, sem acrescentar à constituição normas jurídicas.
Desse modo, Verdù, assim como Häberle, não conseguiu fazer uma leitura correta acerca da
sociedade aberta propugnada por Popper. Nessa linha de idéias, Leal adverte:
Seria de todo inadequado aproximar a visão de Verdù de Popper em face das expressões sociedade aberta e constituição aberta, que, numa primeira vista, sugeririam conjuncionamento. Porém, como foi lido em Verdù, este visualiza uma abertura constitucional como canal deixado pelo legislador para o povo freqüentar, complementando o organismo normativo constitucional, sem, no entanto, acrescentar diretamente normas jurídicas. O povo, nessa versão produziria normas prévias por conquistas sociais que, imiscuídas a uma hermenêutica constitucional levada a cabo pelo intérprete-descobridor, acabariam sendo incorporadas a uma jurisprudência de conceitos informativa das decisões e estas pela habitualidade tribunalícia poderiam provocar a criação de leis recepcionadoras da ideologia judicante. Ora, em Popper, por obra célebre, o que se lê é a inquietação desse filósofo ao distinguir a sociedade fechada e a aberta, atribuindo a esta a marcha “para o desconhecido, o incerto e o inseguro”, advertindo que a sociedade fechada é a sociedade mágica, tribal ou coletivista e a sociedade aberta é aquela em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais. De conseguinte, para Popper a sua sociedade aberta não se acopla a uma Constituição aberta no sentido de Verdù, porque a opinião pública nas sociedades abertas não guarda qualquer imanentismo coletivista que as empurrasse para um ajuste supletivo da constitucionalidade jurídica.178
Castro, assim como Verdú, aponta que, nos anos 90, a idéia de abertura constitucional
passou a ocupar posição de destaque na doutrina publicista, a partir da obra de Häberle,
elaborada há cerca de vinte anos, na Alemanha, e baseada na obra A sociedade aberta e seus
176 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como de integração política. Tradução de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 111. 177 ALMEIDA FILHO, Agassiz. Prefácio. In: VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como de integração política, 2004, p. XVII. 178 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 187.
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inimigos, de Popper. Seguindo a concepção häberliana, Castro também destaca a necessidade
de um processo hermenêutico inclusivo e participativo:
Nessa perspectiva de direito constitucional comunitário, que corresponde à idéia de sociedade e de constituição aberta, é natural que a própria interpretação da Constituição deixe de representar monopólio dos agentes estatais ou dos intérpretes oficiais, especialmente dos juízes e dos operadores orgânicos da ordem jurídica, passando a respeitar o papel da opinião pública enquanto fonte popular legítima de pronunciamento do sentido ou dos sentidos da Carta Política. Os destinatários do sistema constitucional, ou seja, o conjunto de indivíduos, de grupos sociais e instituições de toda a espécie que integram a comunidade política, são participantes ativos, conquanto não oficiais, do processo hermenêutico aberto. O sentimento do povo acerca da compreensão das normas constitucionais, a traduzir o sentimento constitucional da nação, corporifica o grau de recepção popular dos enunciados supralegais, legitimados ou deslegitimados, no plano da eficácia social, os comandos da Constituição. Numa sociedade aberta, pluralista e democrática é impensável a exegese da Lei Maior fazer-se nos canais estritamente públicos e oficiais deixando à margem do processo de construção diária e dinâmica da operância da Constituição o homem da rua, o trabalhador e os protagonistas da cidadania ativa, de que, em última análise, depende a integridade e o destino da comunidade política. A Constituição, em realidade, habita e sobrevive muito mais nas ruas e espaços do convívio social cotidiano do que nos gabinetes dos juízes ou plenários dos tribunais. O processo interpretativo é bem, por isso, não excludente e participativo.179
Ao possibilitar aos indivíduos, grupos sociais e instituições participar da interpretação,
Castro acaba por incorrer no mesmo erro que Häberle, uma vez que propugna um campo
hermenêutico, sem priorizar o papel das partes, como pessoas legitimadas pela lei ao
procedimento. A hermenêutica, por essa concepção, constitui-se em uma mera técnica
interpretativa do juízo de aplicação vertical do direito (autoritária). Desse modo, tanto Häberle
como Verdù e Castro não trabalham uma democracia que seja adquirida por meio do processo
jurídico-democrático. Nesse sentido, Leal adverte:
Com efeito, é o conceito de parte como pessoa legitimada pela lei a atuar a lei é que poderá, em Direito democrático, balizar o campo hermenêutico, porque os conceitos de homem, indivíduo, cidadão, pessoa, coletividade, sociedade, como autores ou atores anônimos do mundo da vida, não encerram vínculo jurídico participativo de procedimentalidade em bases jurídico-normativas para instalar um regime de interpretação aberta a todos, porque esta abertura não se faz por ordem natural ou espontânea, mas quando os seus agentes se protagonizam como pessoa (partes) legalmente autorizadas para provocar decisões, criar, reconstruir, modificar ou extinguir as suas próprias realidades do existir jurídico.180
179 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 44. 180 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 95-96.
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Platão, por sua vez, ao contrário de Popper, que, por meio de sua epistemologia
falibilista aponta a necessidade da reconstrução social através do método gradual de tentativa
e erro e acaba por enfatizar a importância do devido processo na construção e fiscalização de
uma sociedade democrática181, coloca no centro de suas reflexões o processo histórico,
através de sua teoria historicista da sociedade.
O historicismo apresentado pelos primitivos filósofos gregos teve seu apogeu com
Platão, que, objetivando a interpretação da história e vida social das tribos gregas, acabou por
esboçar um retrato filosófico do mundo. Platão apresenta uma lei de desenvolvimento
histórico, sendo a mudança social relacionada com a corrupção, decadência ou
degeneração.182
Para Platão, a lei do destino histórico poderia ser rompida pela vontade moral do
homem e sustentada pela razão humana. Assim, ele acreditava em duas coisas: na tendência
histórica para a corrupção e na possibilidade do homem de paralisar qualquer mudança
política. Nessa linha de idéias, Popper esclarece que esse era o objetivo de Platão: “[...] tenta
realizá-lo por meio do estabelecimento de um Estado que seja livre dos males de todos os
outros Estados, em vista de não degenerar, em vista de não mudar. O Estado livre do mal da
mudança e da corrupção é o melhor, o Estado perfeito. É o Estado da Idade do Ouro, que não
conhece mudança. É o Estado detido.”183
Contrapondo-se ao historicismo rígido, Platão acredita na possibilidade de alteração
do destino histórico pelo homem. Nessa perspectiva, o mecânico social também acredita que o
homem pode influenciar seu destino e pode alterar a história da humanidade, e acredita que a
ação política deve ser previamente determinada através de uma base científica da política. Ao
tratar das atitudes do mecânico social, Popper objetiva analisar os princípios de reconstrução
social democrática. Para tanto, faz uma comparação entre os princípios da mecânica social
gradual e os da mecânica social utópica ou holista. O historicismo adota como enfoque o
holista184, que também é adotado pelo mecânico social utópico, em contraposição ao enfoque
gradual.
181 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia- A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC - Minas, Belo Horizonte, 2005, a. 4, n.1, p. 1-14, jul. de 2005. Disponível em <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/prod-docente-ano4-2006.html>. Acesso em: 14/09/2006. 182 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 32-33. 183 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 35. 184 “[...] Os holistas, entretanto, não apenas planejam estudar a sociedade em seu todo, através de um método impossível, mas planejam, ainda, controlar e reconstruir nossa sociedade ‘como um todo’. Profetizam que ‘o poder do Estado tende a crescer até que o Estado quase chegue a confundir-se com a sociedade’.” POPPER, Karl
59
A mecânica social utópica consiste de um processo metodológico que retrata um
programa perigoso da política de Platão. “A Engenharia social holista, ou utópica, ao
contrário da Engenharia social de ação gradual, nunca é de caráter privado. Pretende a
remodelação de ‘toda a sociedade’, segundo as linhas de um definido plano ou de uma
definida diretriz; pretende ‘conquistar as posições-chave e ampliar o poder do Estado... até
que Estado e sociedade quase se identifiquem.”185
Nessa linha de ideais, Albert aponta que a utopia busca uma mudança radical do
Estado atual em busca do Estado perfeito, construído no vácuo social, o que acaba por
suprimir a possibilidade de correção gradual da sociedade e leva à opressão da crítica: “[...] a
tentativa de evitar o diálogo crítico com a realidade – a tentativa de salto para o Estado
perfeito – conduz, em ambos os casos, à opressão da crítica e ao domínio de um sistema
rígido e sem possibilidade de correção.”186
Em contrapartida, o método gradual possibilita a utilização do método científico na
política, uma vez que permite experiências reiteradas e reajustamentos contínuos. Assim, o
método gradual é mais simples e específico, pois, utilizado em pequena escala, se não
funcionar, o dano não é grande e não dificulta a correção, ao contrário do método utópico, que
deve ser realizado em grande escala, podendo conduzir a uma ditadura. O método gradual
proposto por Popper, ao contrário do método utópico que coloca no centro de sua reflexão o
processo histórico, evidencia o processo jurídico na construção do ordenamento jurídico.
As críticas formuladas por Popper a Platão levam a uma reflexão acerca do tema
central da presente pesquisa científica, que é investigar a viabilidade da adoção das súmulas
vinculantes pelo Estado Democrático de Direito. A pesquisa aponta que, assim como o
mecânico social utópico, que busca a construção de um Estado ideal, os legisladores
brasileiros, ao adotarem as súmulas vinculantes a pretexto de agilizarem a atividade
jurisdicional e concretizarem o ideal de certeza do direito, acabaram por excluir o devido
processo constitucional.
Leal enfatiza que o devido processo constitucional se constitui em um espaço
institucional argumentativo de testabilidade procedimental infinita, visto que ele viabiliza a
construção gradual do Estado Democrático de Direito pela comunidade jurídica, nos moldes
propostos por Popper: “A instituição constitucionalizada do Estado democrático de direito
R. A miséria do historicismo. Tradução de Octany S. da Mota e Leônidas Hegenberg. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980, p. 63. 185 POPPER, Karl R. A miséria do historicismo, 1980, p. 54. 186 ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica, 1976, p. 65-66.
60
põe-se em construção continuada pela comunidade jurídica, haja vista que não é um projeto
congenitamente acabado, mas uma proposição suscetível de revisibilidade constante pelo
devido processo constitucional que é o recinto de fixação jurídico-principiológica instituinte
dos direitos fundamentais como ponto de partida da teorização jurídica da democracia para a
criação normativa de direitos a se efetivarem processualmente no mundo vivente.”187
Assim, observa-se que, na adoção das súmulas vinculantes, os legisladores brasileiros
se embasaram no utopismo de Platão, sem se preocuparem com que a validade, legitimidade e
eficácia do direito estivessem condicionadas à observância dos princípios democráticos e, em
especial, dos princípios institutivos do processo (isonomia, ampla defesa e contraditório).
Desse modo, a súmulas vinculantes não condizem com uma sociedade democrática (aberta).
No Brasil, com a positivação do Estado Democrático de Direito, o método gradual é que deve
ser utilizado na reconstrução social, já que ele viabiliza mudanças graduais no ordenamento
jurídico, através de tentativas e erros.
Popper188 destaca que, para melhor compreensão do programa totalitário de Platão,
faz-se necessário analisar como ocorreu a distinção entre leis naturais e normativas. A
superação do isomorfismo entre as leis naturais e as leis normativas (natureza e convenção)
possibilita o desenvolvimento do pensamento democrático e a construção de uma sociedade
democrática (aberta). Para Almeida, isso ocorre “[...] a partir do momento em que se distingue
o costume humano das regularidades da natureza, ou seja, que as leis normativas são
convencionais, transitórias e passíveis de alteração, quando o homem passa a ter uma conduta
ativa e crítica.”189 O programa político de Platão ocupa uma posição intermediária entre o
monismo ingênuo e o dualismo crítico; essa posição demonstra que a sociedade se encontra
em meio à transição da sociedade fechada para a aberta.
Popper aponta que existem diversos passos intermediários no desenvolvimento de um
monismo ingênuo (mágico) para um dualismo crítico (sociedade aberta). O programa político
de Platão combina elementos do naturalismo biológico190, do positivismo ético ou jurídico191
e do naturalismo psicológico192.
187 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 31. 188 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 82. 189 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 20. 190 O naturalismo biológico é “[...] a teoria de que, a despeito do facto de serem arbitrárias as leis morais e as leis dos estados, há algumas eternas e imutáveis leis da natureza das quais podemos derivar tais normas.”190 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 86. 191 Já o positivismo ético, acredita que as normas devem ser reduzidas a fatos sociológicos, no mesmo sentido que o são as formas biológicas do naturalismo ético. Para o positivismo normas são as leis que foram estabelecidas: “[...] Outros padrões são considerados como imaginações irreais. As leis são os únicos paradigmas
61
Popper enfatiza, de modo especial, o naturalismo de Platão, em decorrência de sua
relação com o historicismo. O papel da ciência para essa concepção é estudar a origem das
coisas. E, no caso das Ciências Sociais, o objetivo é estudar a origem das sociedades e do
Estado. Desse modo, a história serve como método das Ciências Sociais e não é estudada por
si mesma, constituindo nisso a metodologia historicista. É importante salientar que a origem
da sociedade, para Platão, é analisada com base no naturalismo espiritual, ou seja, é uma
convenção – um contrato social. Além disso, a sociedade é uma convenção natural, baseada
na natureza social do homem, uma vez que não são auto-suficientes, em conseqüência de suas
limitações. Somente no Estado, e através dele, é que o indivíduo tem possibilidade de alcançar
a perfeição. Ao adotar o essencialismo metodológico193 que levou Platão a desenvolver essa
concepção holista do Estado, Platão funda, na visão de Popper, um regime totalitário. Assim,
mesmo as naturezas raras dependem da sociedade e do Estado para atingir a perfeição: “Só
através do Estado e no Estado podem alcançar a perfeição, o Estado perfeito deve oferecer-
lhes o ‘habitat social’ adequado, sem o qual se tornarão corruptas e degeneradas. Deve o
Estado, portanto, ser colocado acima do indivíduo, visto como só o Estado pode ser auto-
suficiente (‘autárquico’), perfeito e capaz de tornar boa a imperfeição necessária do
indivíduo.”194
Para Popper, apesar de Platão não defender o naturalismo biológico de modo explícito,
essa postura está implícita na obra A República195, em que o Estado ideal é um
superorganismo, por sua perfeição, em contraposição ao cidadão individual, que é uma cópia
imperfeita do Estado. Na realidade, a teoria orgânica do Estado foi formulada por Aristóteles
na obra A Política:
possíveis de bondade: o que existe é bom. (A força é direito).”191 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 86. 192 Por fim, o naturalismo psicológico ou espiritual é uma combinação das duas posições anteriores. Essa concepção concorda com o argumento do positivismo ético, que destaca que todas as normas são convencionais. Porém, Popper adverte que o positivismo ético esquece que as normas são uma expressão da natureza psicológica ou espiritual do homem e da natureza. POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 86. 193 “A escola dos pensadores que denominarei essencialistas metodológicos foi fundada por Aristóteles, para quem a ciência há de penetrar na essência das coisas, a fim de explicá-las. Os essencialistas metodológicos tendem a formular questões científicas em termos como ‘Que é a matéria?’ ‘Que é a força?’, ‘Que é a justiça?’ e acreditam que uma resposta esclarecedora para tais perguntas, resposta que revela o sentido real, ou essencial, desses termos, revelando assim, a real ou verdadeira natureza das essências por eles denotadas, é, pelo menos, um requisito essencial da pesquisa científica, se não lhe constituir o objetivo principal.” POPPER, Karl R. A miséria do historicismo, 1980, p. 25. 194 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 90. 195 PLATÃO. A República. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.
62
O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propõe a natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade.196
A teoria orgânica na concepção de Platão pode ser caracterizada como personalista ou
psicológica, já que não descreve o Estado como similar a outro organismo, mas ao indivíduo
ou à alma humana. Assim, a degeneração do Estado corresponde à degeneração da alma
humana e, em especial, dos membros da classe dirigente. Esse elemento biológico do
naturalismo de Platão fundamenta-se em seu historicismo: “[...] É visto como esta
degeneração moral é interpretada como baseada na degeneração racial; podemos dizer que o
elemento biológico do naturalismo de Platão demonstra, no fim, ser a parte mais importante
no alicerce de seu historicismo. Pois a queda do primeiro Estado, ou Estado perfeito, nada
mais é do que a história da degeneração da raça dos homens.”197
Para Bobbio, a concepção orgânica do poder que considera o Estado anterior e
superior às partes não se coaduna com a democracia, pois, enquanto a democracia “[...] se
funda sobre uma concepção ascendente do poder, o organicismo, fundando-se, ao contrário,
sobre uma concepção descendente, inspira-se em modelos autocráticos de governo: difícil
imaginar um organismo em que sejam os membros que comandam.”198 Apesar de Bobbio se
colocar contra o naturalismo biológico de Platão, ele enfatiza a autonomia dos indivíduos fora
dos perfis do processo, ou seja, não estuda a democracia por meio da instituição jurídica do
processo. Nesse sentido, Del Negri enfatiza:
Norberto Bobbio, ao apontar particularidades a respeito, salienta que o modelo democrático poderia ser mais promissor se houvesse o cumprimento das “ideologias democráticas” (promessas não cumpridas).
Mesmo que a democracia, na visão hodierna, apresente distorções, a postura de Bobbio, em fazer da democracia a melhor forma de convivência, é visivelmente equivocada ao sair em defesa da autonomia do indivíduo (todos os indivíduos) fora dos perfis do processo como direito-garantia constitucional. Ao considerar essas advertências, note-se que Bobbio segue, timidamente, a trilha de Habermas quanto ao reconhecimento do pluralismo na sociedade multicultural, mas não aponta um
196 ARISTÓTELES. A política. 2. ed. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 5. 197 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 95-96. 198 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 46.
63
método lógico de construção do Direito democrático pelos condicionamentos de garantia de direitos fundamentais.199
Nessa perspectiva, Del Negri aponta a importância do processo na legitimação do
direito democrático: “[...] nenhum estudo sobre a fundamentação do Direito e sua legitimação
no atual paradigma do Estado de Direito (Estado pós-moderno) seria possível sem passar pelo
medium linguístico do processo aberto a todos os participantes da Comunidade jurídica.”200
Segundo Popper, o dualismo crítico, ao contrário do monismo ingênuo, caracteriza a
sociedade aberta, uma vez que permite uma diferenciação entre as leis naturais e normativas:
“[...] o dualismo crítico apenas assevera que normas e leis normativas podem ser feitas e
alteradas pelo homem e, mais especialmente, por uma decisão ou convenção no sentido de
observá-las ou alterá-las, sendo, portanto, o homem moralmente responsável por elas.”201
Stieltjes enfatiza que existe uma relação entre a evolução de pensamento filosófico
grego e o desenvolvimento de suas estruturas jurídico-políticas. Assim, a partir do século VIII
a.C., a passagem do Mito ao Logos – nível cultural – é acompanhada pela passagem da lei
natural à lei normativa – nível jurídico.202
Os Mitos são criados para tentar responder os questionamentos feitos pelo homem
acerca da origem do mundo; todas as tribos têm histórias explicativas desse tipo. O Mito é o
conhecimento baseado em crenças e epifanias; sendo inquestionável e imutável, ele
proporciona a coesão de uma tribo.203 Porém, Popper adverte que alguns podem pensar que o
Mito seja uma explicação ou princípio lógico, mas, em sua acepção, essa é uma das
características da sociedade fechada, tribal e primitiva: “[...] julgo não só se tratar de uma
afirmação falsa, mas também viciada, e que, a ser acolhida de forma generalizada, minará a
unidade da humanidade, contribuindo, assim, para o forte aumento da probabilidade de
violência e de guerra. Esta é a razão principal pela qual desejo combatê-lo e refutá-lo.”204 O
Logos é conhecimento baseado na lógica e na razão, é mais recente e somente ocorreu a
passagem do Mito ao Logos após o aparecimento da escrita na Grécia, com Anaximandro,
199 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 50. 200 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 47. 201 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 75. 202 STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria. São Paulo: Germinal, 2001, p. 20. 203 MINDLIN, Dulce Viana; SCORZA, Mani. Mito: criação e permanência. Disponível em: <http://www.Ichs. Ufop.br/ Anais–Imemorial % 20% 201CHS/ trab/14 1 doc>. Acesso em 29/09/2006. 204 POPPER, Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade, 1996.
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através da invenção da crítica e da discussão crítica do Mito, que somente foi possível por
meio de um choque de culturas ou de contextos.205
Sobre o tema, Leal destaca que os sofistas tiveram papel preponderante na passagem
do Mito para o Logos. Essa transposição criou a possibilidade de uma passagem da lei
concebida como Themis206 para a lei como Nomos207:
Na Grécia socrática, o logos (inteligência comunicante e espontânea) da fala ou nomos (sentido humano) da lei escrita na Ágora, mesmo que exercitados por várias interpretações e questionamentos da lei da physis na produção das decisões, não perdem, antes dos sofistas, o comportamento mitológico com a sacralidade invulnerável da physis em seus dogmas invariantes e acolhidos por todos como substrato da polys, conforme anotou Fustel de Coulanges, ainda que outra seja a assertiva de Castoriadis ao afirmar que, na Grécia democrática, a religião se separou das atividades políticas. Ora, o que Castoriadis não examinou em sua valiosa conferência foi o princípio da isegoria, como regente da fala persuasiva, enunciado pelos sofistas no ensino de Protágoras, porque esse princípio proclama pioneiramente, não uma dicotomia definitiva entre religião e política, mas o exercício da política (atividade na polys) por uma linguagem coexistente (paralela) às leis naturais pressupostas (physis). Essa ruptura com a ninfa eco na estruturação do ego humano e a dispensa de Hermes como tradutor da linguagem natural (fala dos deuses) para os homens marcam a fundação do logos protagórico. A transposição do Mito para o Logos cria a possibilidade interativa desgarrada de uma arké (coerência imanente à linguagem) advinda da physis e de uma justiça natural (themis) para produzir o nomos.208
Stieltjes, assim como Leal, reconhece o papel dos sofistas, em especial de Protágoras,
nessa transposição do Mito para o Logos, visto que os sofistas substituem o discurso da
natureza por um discurso político. Nessa concepção, enquanto a política se forma com a
linguagem, a razão se forma com a linguagem e a política:
205 POPPER, Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade, 1996. 206 “A ‘Themis’ é a lei consuetudinária de origem divina, que regia o ‘genos’. Sabemos que as leis consuetudinárias são leis não escritas, mas inscritas no próprio tecido social, na forma de hábitos e costumes. Sua justificação é dada pelos relatos dos mitos que fornecem o sentido da estrutura e da ordem social. A ‘Themis’ é uma lei unanimemente aceita [...] todavia, os profundos conflitos sociais que ocorreram, particularmente no século VI aC, na Grécia Antiga, abrem a discussão sobre o fundamento da legitimidade das leis. As profundas mudanças na ordem econômica e no teor das relações sociais dissolvem as leis consuetudinárias, e a ‘Themis’ passa a ser questionada.” STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria, 2001, p. 20. 207 “O ‘Nomos, como lei escrita e convencionada, permite uma discussão sobre o caráter e a forma da ordem social e conduz a uma ação de reordenamento das relações sociais através de uma Razão Discursiva. O “Nomos permite uma relação dinâmica entre a Palavra e a Ação – relação que irá fundamentar o sentido da ‘bios politikos,’ na Grécia Clássica, como observou Hannah Arendt em ‘Condição Humana’. A partir do século V a. C, uma das características da Grécia é ser permeada pela discursividade.” STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria, 2001, p. 21. 208 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia - A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, Belo Horizonte, a. 4, n. 1, p. 1-14, jul. 2005. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/1_2005/Docentes./PDF/processo%20%democracia.pdf>. Acesso em: 14/09/2006.
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Para Protágoras, todos os homens, por possuírem a fala, têm “logos” e, portanto, “técné” política. Considerando-se que as regras e as normas não são naturais, mas relativas ao próprio uso da linguagem, todos os homens são competentes para o exercício da razão e para a prática política. O que Protágoras e os sofistas de modo geral instituem é o princípio de Isêgoria. A cidade democrática só realiza sua Isonomia na prática da linguagem, no princípio de Isêgoria. É a Isêgoria que guia a Eubulia, isto é, a boa deliberação. A razão é para Protágoras e os sofistas uma razão discursiva. A Isêgoria realiza a política na prática da persuasão. É na e pela persuasão que o corpo social torna-se político.209
Assim, segundo Stieltjes, na concepção dos sofistas, a cidadania significa o direito de
participar da política na esfera pública (Ágora), através do uso da palavra. Nessa perspectiva,
a democracia ocorre por meio da deliberação. Desse modo, o regime democrático é instável,
já que sua construção ocorre de forma gradual, através do discurso e da deliberação.210 É
justamente essa instabilidade que Platão refuta; seu objetivo é submeter o povo às magias e
tabus da vida tribal. Diante das profundas mudanças que começaram a ocorrer, e com a
chegada da democracia e da civilização, Platão, embasado em uma visão sociológica,
verificou que os cidadãos sofriam de tensão, que foi denominada por Popper de tensão da
civilização. Visando a recuperar a felicidade e aliviar o ônus da responsabilidade de seus
contemporâneos, que passaram a viver em uma sociedade complexa e acabaram por perder
sua referência, Platão fez tudo para retornar ao tribalismo (sociedade fechada).
Porém, Popper aponta que essa tentativa de Platão de retornar ao tribalismo era uma
forma terapêutica impraticável, haja vista que a sociedade fechada não possibilita a
emergência da responsabilidade social, uma vez que é baseada na tradição tribal. Se o homem
tiver interesse em permanecer humano, deve utilizar-se da razão e dos poderes da crítica para
que possa planejar tanto a segurança como a liberdade. Ao contrário da sociedade fechada, em
que as partes se preocupam em desempenhar suas funções, na sociedade democrática os
membros lutam por uma elevação social. Popper esclarece que na sociedade fechada “[...] as
células ou tecidos de um organismo, que muitas vezes se diz corresponderem aos membros de
um Estado, talvez possam competir por alimento; mas não há tendência inerente da parte das
pernas para se tornarem cérebro, nem dos outros membros do corpo para se transformarem em
barriga.”211 A perda do caráter orgânico de uma sociedade pode levá-la, de forma gradual, ao
que Popper chama de sociedade aberta, em que os indivíduos são confrontados com decisões
pessoais.
209 STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria, 2001, p. 22. 210 STIELTJES, Claúdio. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria, 2001, p. 22. 211 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 189.
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Ao tratar da denúncia formulada por Popper sobre a tensão da civilização e a
necessidade de se recorrer aos mitos para superar essa tensão, Trindade enfatiza que essa
crítica formulada por Popper acaba com o mito da decisão, visto que, na pós-modernidade, a
construção da decisão é de responsabilidade de todos os envolvidos na estrutura do
procedimento:
Popper, denunciando o que chamou de tensão da civilização, diz que a crença nos mitos alivia os homens não só do medo do desconhecido, mas também do ônus de sua responsabilidade, pois faz acreditar que as coisas acontecerão não importa o que se faça, levando o homem a desistir de lutar contra elas. Acabou, portanto, o mito da decisão justa, por intervenção da Providência Divina, posto que a mesma só se fará tanto quanto possível justa, na medida em que a participação de todos, intelectualmente bem preparados e comprometidos com a solução adequada em cada caso, vier a contribuir.212
Leal adverte a necessidade de estudar a cidadania como núcleo (conteúdo) da
democracia. Para tanto, faz-se necessária uma revisitação da ação social à ação jurídica.
Porém, antes de realizar esse estudo, cumpre ressaltar a concepção popperiana de democracia.
Leal enfatiza que a democracia, como governo do povo, teve sua origem na Grécia de
Péricles, por volta do século V a.C. E, em uma concepção dogmática, ela passou a ser vista
como o melhor governo para a humanidade, transformando a reflexão em torno dela numa
máxima proverbial (doxa).213 Para Popper, não tem importância a tentativa de traduzir o
significado de democracia como o governo do povo, uma vez que, apesar de poder influenciar
as ações de seus governantes através da ameaça de expeli-los do governo, o povo não se
governa a si mesmo de modo prático ou concreto. Na realidade, um princípio da política
democrática refere-se ao desenvolvimento e proteção das instituições políticas.
Popper enumera dois tipos de governos: a tirania e a democracia. A tirania é o “[...]
governo de que os governados não podem livrar-se, a não ser por meio de revoluções
vitoriosas – isto é, na maioria das vezes não se livram deles.”214 A democracia é um governo
que possibilita aos governados se livrarem dele sem violência: “[...] por exemplo, por meio de
eleições gerais, vale dizer, as instituições sociais fornecem meios pelos quais os governados
212TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática, 2005. 213 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005. 214 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 140.
67
podem expelir os governantes, e as tradições sociais asseguram que essas instituições não
serão facilmente destruídas pelos que detiveram o poder.”215
Del Negri assevera a contribuição de Popper no estudo da democracia, por sua
abordagem formular críticas ao autoritarismo nos diversos campos do conhecimento. Del
Negri, ainda, destaca a importância do processo jurídico no estudo da democracia, nos
moldes realizados pela teoria neo-institucionalista do processo, que possibilita praticar a
democracia por meio do processo com a regência dos princípios do contraditório, da ampla
defesa, da isonomia, da cidadania e da soberania popular.216 Nesse diapasão, Leal aponta:
“[...] nas democracias, é o devido processo o medium lingüístico inafastável à discussão
permanente dos conteúdos de falibilidade e efetividade de todo o ordenamento jurídico, só
cabendo às Cortes Constitucionais, se existirem, a observância de valores e conceitos que
estejam juridicamente normatizados e abertos a uma fiscalização procedimental legitimada a
todos (concreta e abstrata) pelo devido processo legal.”217
Para demonstrar que a democracia é o governo que possibilita a substituição
institucional dos governantes, Popper aponta como métodos do controle democrático o
sufrágio universal e o governo representativo. Para Del Negri, o objetivo de Popper é atacar a
soberania do rei filósofo.218 O problema principal do programa político de Platão era saber
quem deveria governar o Estado. Assim, a teoria da soberania incontrolável é adotada por
Platão de forma tácita, já que era o filósofo quem deveria governar, desviando a atenção das
instituições para as questões pessoais, tendo em vista que ele não se preocupa com o controle
institucional do governo.219 Ao enfatizar a importância do controle institucional da
democracia, Del Negri aponta que o objetivo de Popper era criticar a ideologia de Platão, uma
vez que seu programa político não possibilita esse controle, motivo pelo qual acaba por
implementar um retrocesso ao tribalismo: “[...] nesse sentido, o que o argumento popperiano
sugere é um ataque à ideologia platônica em razão do subjetivismo do elemento autoridade, o
que o fez colocar a obra de Platão (A República) como alvo de ferrenhas críticas, justamente
215 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 140. 216 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 47 e p. 66. 217 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. 218 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 48. 219 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 137.
68
por esse acreditar na superioridade mítica altamente purificada dos sábios em dirigir e
governar.”220
A forma de emissão das súmulas vinculantes através de decisão solipsista (solitária) do
Supremo Tribunal Federal, na realidade nua e sem observância dos princípios constitutivos do
processo, é uma forma de exortação à teoria da soberania de Platão, que delega todo poder de
decisão ao rei filósofo. As súmulas também acabam por delegar ao Supremo Tribunal Federal
poderes absolutos acerca da eficácia e validade das normas. Por conseguinte, as súmulas
vinculantes, assim como o programa político de Platão, são decisões baseadas no
autoritarismo e no antiigualitarismo, visto decorrerem da imposição dos Tribunais Superiores,
não possibilitando a participação em simétrica paridade dos jurisdicionados. Em
contraposição, Popper aponta que, em uma sociedade democrática, não deve haver submissão
dos indivíduos; mas eles devem ser co-autores das decisões.
Ao analisar o significado de liberdade, Arendt indica que a crítica realizada por Popper
à teoria da soberania proposta por Platão tem fundamento, já que existe incompatibilidade
entre a liberdade – pré-requisito para uma sociedade aberta - e a soberania, que só pode ser
mantida através de instrumento de violência e por meios não-políticos: “[...] onde os homens
desejam ser soberanos, como indivíduos ou como grupos organizados, devem-se submeter à
opressão da vontade, seja esta vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a
‘vontade geral’ de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à
soberania que devem renunciar.”221
Häberle, assim como Popper, também refuta a concepção de democracia a partir da
teoria da soberania popular de Rousseau, que atribui ao povo222 poderes divinos. Ao contrário
de Rousseau que estuda a democracia popular, Häberle analisa a democracia a partir dos
direitos fundamentais, sendo formada pela associação de cidadãos e baseada na liberdade
fundamental (pluralismo):
220 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 48. 221 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida; revisão de Mary Amazonas Leite de Barros. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 213. 222 “‘Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão.” HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição, 2002, p. 37.
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[...] a democracia do cidadão está muito próxima da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir da concepção segundo a qual o Povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar do monarca. Essa perspectiva é uma conseqüência da relativização do conceito de Povo – termo sujeito a entendimentos equívocos – a partir da idéia de cidadãos! Liberdade fundamental (pluralismo) e não “o Povo” converte-se em ponto de referência para a Constituição democrática.223
Para Häberle, o conceito de democracia pluralista por ele adotado pode, de certo
modo, recorrer à concepção de democracia popperiana, sendo que Popper é contrário à
concepção popular de democracia: “A concepção democrática de Popper e sua justificação no
contexto da teoria da ciência e do conhecimento não podem ser aqui descritos [...] Afigura-se
suficiente a constatação de uma perspectiva teórico-democrática, que o conceito de
democracia pluralista, constitucional, liberal, baseado na divisão de poderes, aqui defendido,
pode, em dada medida, invocar o conceito de democracia contra os dogmas ‘clássicos’ da
soberania popular por ele adotado.”224
Tocqueville, ao contrário de Popper, enfatiza que é da essência dos governos
democráticos que o império da maioria seja absoluto. Esse império moral da maioria
fundamenta-se na igualdade. Porém, para Tocqueville a onipotência acaba por gerar a tirania
da maioria, colocando em perigo a liberdade, caso não exista um meio para controlar esse
poder. Nessa perspectiva, Popper também assevera a necessidade de um controle institucional
dos governantes pelos governados. Sobre o perigo da onipotência da maioria, Tocqueville
destaca:
[...] a onipotência parece-me em si uma coisa ruim e perigosa. Seu exercício parece-me acima das forças do homem, qualquer que seja, e penso que apenas Deus pode ser, sem perigo, onipotente, porque sua sabedoria e sua justificação são sempre iguais a seu poder. Portanto, não há na terra autoridade tão respeitável em si mesma, ou investida de um direito tão sagrado, que eu aceitasse deixar agir sem controle e dominar sem obstáculos. Portanto, quando vejo concederem o direito e a faculdade de fazer tudo a uma força qualquer, seja ela chamada povo ou rei, democracia ou aristocracia, seja ela exercida numa monarquia ou numa república, digo: aí está o germe da tirania; e procuro viver outras leis.225
Desse modo, conforme esclarece Bobbio, na concepção de um liberal como
Tocqueville, o poder é sempre perigoso, motivo pelo qual o problema político não é saber
223 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição, 2002, p. 39. 224 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição, 2002, p. 39. 225 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América: leis e costume de certas leis e certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 295-296.
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quem governa, mas como limitar esse poder: “[...] O problema político por excelência é o
relativo não tanto a quem detém o poder quanto ao modo de controlá-lo e limitá-lo. O bom
governante não se julga pelo número grande ou pequeno dos que possuem, mas pelo número
grande ou pequeno das coisas que lhe é lícito fazer.”226
Apesar das críticas formuladas por Arendt, Häberle, Tocqueville e Bobbio acerca da
teoria da soberania incontrolável de Platão, a democracia, para esses autores, ainda é
apreendida a partir da polys grega como processo histórico, uma vez que eles ainda não
colocam no centro de suas reflexões o processo jurídico. Já Popper, através do seu critério da
falseabilidade, indica a necessidade da aplicação de um direito democrático pelo Devido
Processo Constitucional. Popper enfatiza que a democracia é o único sistema político capaz
de institucionalizar o conhecimento e a liberdade, sendo a liberdade pré-requisito para o
conhecimento. Enquanto a falibilidade da democracia tem possibilitado a correção desse
sistema, os sistemas totalitários fundamentados na infalibilidade, em uma suposta coesão e
numa unidade inflexível, não possibilitaram a sua autocorreção através da crítica.227
De acordo com Popper, existem sociedades que possuem graus de abertura diferentes.
Em decorrência disso, quando se tem uma democracia, a sociedade tem de percorrer um longo
caminho até chegar à sociedade aberta. Nesse sentido, Popper aponta: “A sociedade será
madura, mais desenvolvida e aberta em uma democracia que em outra. O que tenha de bom
ou de mau depende de várias coisas: de seus antecedentes e de sua tradição; de suas
instituições políticas, de seus métodos pedagógicos e, por último, dos indivíduos que animam
estas instituições.”228
Feitas essas considerações acerca da democracia em Popper, passa-se a fazer uma
revisitação da ação social à ação jurídica, a partir dos estudos desenvolvidos por Leal. No
estudo da ação jurídica, conforme enfatiza Leal, não se pode aceitar a Actio romana (instituto
jurídico), como poder de agir, uma vez que esse poder se torna para os romanos: “[...] um
poder advindo de uma predestinação que não reproduz as origens gregas da ação como praxis
instituinte de um mundo humano que se concebe como numa multiplicidade de falantes
(lexis) transcendente às individualidades (corpo político – bios polyticos).”229 (grifos do
autor).
226 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia, 1994, p. 58. 227 RAPHAEL, Frederic. Popper: o historicismo e sua miséria. Tradução de Jézio H. B. Gutierre. São Paulo: UNESP, 2000, p. 19. 228 POPPER. Karl R. A sociedade aberta um seu amigo, Karl Popper. Política, 1977. 229 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005.
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Leal salienta que, apesar da contribuição de Arendt no estudo da ação, é mister
salientar que a cidadania-democracia é compreendida por essa autora como ações sociais e
não como ações jurídicas. Conforme enfatiza Arendt, a ação é uma atividade humana230 que
não pode ser imaginada fora da sociedade dos homens:
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem mediação das coisas ou dos mistérios, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política, mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregou como sinônimo as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homine esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homine esse desinere).231
Nessa linha de idéias, com o surgimento da cidade-estado, o homem recebe não
apenas a vida privada, mas também uma espécie de segunda vida, ou seja, o seu bios
polytikos. Para Platão, a origem da polis relaciona-se com a falta de auto-suficiência
humana.232 Desse modo, a criação da cidade-estado possibilitou aos homens passar sua vida
na esfera pública em ação (praxis) e decisão (lexis). Ao revisitar a ação social em Arendt,
Leal enfatiza:
[...] A ação (praxis), significando estar em presença do outro (estar entre outros – inter homines esse), concorre para a caracterização do bios polytikos com a agregação da retórica (lexis). Para resumir, pode-se dizer que a praxis coletiva, como CORPO SOCIAL (demos), transmutava-se na Ágora (espaço público) numa comunidade (polys) que se definia como corpo político decisório pelo critério da lexis (palavra persuasiva). De conseguinte, esse corpo político decisório, por eleger a palavra persuasiva como forma de exclusão da violência na fundação do mundo humano, assume o status de polys engendrada pelo bios-polytikos a que se refere Hannah Arendt.233 (grifos do autor)
230 “Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. [...] O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida [...] O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana [...] A condição humana do trabalho é a mundanidade.” ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 15. 231 ARENDT, Hannah. A condição humana, 2004, p. 15. 232 “- Ora – disse eu -, uma cidade tem sua origem, segundo creio, no fato de cada um de nós não ser auto-suficiente, mas sim necessitado de muita coisa. Ou pensas que uma cidade se funda por qualquer outra razão?” PLATÃO. A República, 2002, p. 56. 233 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2005.
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A democracia na pós-modernidade não pode buscar sua referência na polys grega, já
que, conforme enfatiza Leal, a Ágora grega acaba por criar a paidéia234, uma vez que todas as
pessoas que pertenciam à polys eram iguais perante uma lei natural (physis), que era o
fundamento para todos na produção da lei humana (isonomia). Ao contrário de Arendt, que
enfatiza que a transformação do corpo social em corpo político ocorreu por meio da palavra
persuasiva, Leal aponta que é a isegoria como princípio de persuasão que possibilita essa
transformação:
[...] a Ágora grega, como espaço público, cria uma dimensão sinérgica de pessoas autoconscientes (paidéia) de pertencerem a polys: o ser político-coletivo que se identifica pela discursividade decisória em critérios da fala persuasiva. Entretanto, a isegoria como princípio da persuasão adotado na Ágora é que indica a transformação do SOCIAL em POLÍTICO, isto é: a mutação do demos constituído pela praxis coletiva em polys. Aqui se impõe ressaltar que a lexis em Aristóteles contemplava a produção do bios polytikos expresso numa fala inerente ao consenso por uma estrutura sígnica advinda de uma ordem geral e unívoca (arké) já pré-existente na lei da natureza (physis) que ao homem caberia descobrir e acatar. Por isso, na polys, todos eram iguais perante uma LEI NATURAL, referencial para todos, na produção da lei humana (isonomia), sendo que todos teriam igual liberdade (eram livres) para falar ou decidir na ecclésia (órgão deliberativo) da polys, mas não era permitido subestimar a LEI (a physis) compreendida como fundamento divinatório de uma ordem natural (ainda mítica) informativa das tradições instituintes da comunidade grega.235 (grifos do autor)
A democracia, na concepção de Arendt, é entendida a partir da polys grega como um
processo histórico, pois o bios polytikos decorre da praxis por meio do mito da linguagem.
Essa concepção não enfatiza uma linguagem autônoma num sentido protágorico de isonomia
perante o nomos (lei convencionada). Por outro lado, Leal aponta que o bios polytikos na pós-
modernidade “[...] é obtido na estrutura da linguagem discursiva processualizada e não pelo
estar (inter-pares) corporalmente ou entre os outros (inter homine esse) com iguais propósitos
guiados por uma fala erística e inerente a um entendimento escatológico (multidão reunida,
encontro festivo).”236
234 “Paidéia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico, é a única designação exata do tema histórico nele estudado. Este tema é, de fato, difícil de definir [...] Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paidéia. Cada um daqueles temas se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-lo de uma só vez.” JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 1. 235 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005. 236 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005.
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No direito democrático, Leal enfatiza que o que deve prevalecer não é uma ação social
que ocorre em uma realidade nua (Ágora), mas a ação jurídica como exercício da cidadania.
Assim, deve-se recorrer à instituição de um Logos argumentativo e discursivo através do
contraditório:237
O que se teria no direito democrático constitucionalizado é a despersonificação de uma justiça de um Judiciário mítico (vassalo de THEMIS) e a instituição de um Logos argumentativo-discursivo pelo direito ao contraditório na formação das opiniões e vontades construtivas, reconstrutivas e aplicativas da lei jurídica. Claro que esse direito ao contraditório não pode ser exercido a céu aberto por relações intersubjetivas tão do agrado dos sociólogos nostálgicos – adeptos ainda do espaço magnético (telepático) da Ágora grega como recipiendária do bios polytikos ou da escatologia messiânica (historicista) dos marxianos, que pensam a transformação social por um andar botânico (funcionalista da história) ou por uma libido providencial (militância-aceleração ativista) das relações humanas. Na contemporaneidade dos estudos da teoria da democracia, a legitimidade e aplicação do direito são entendidos como irrestrito direito-de-ação coextenso ao procedimento (legitimatio ao processo) como direito fundamental de aquisição e atuação de cidadania.238 (grifos do autor)
Leal, embasado no método de reconstrução gradual popperiano, esclarece que a
cidadania na pós-modernidade deve ocorrer através do Devido Processo Constitucional, ou
seja, por uma fiscalização ampla da comunidade jurídica na construção do ordenamento
jurídico:
A cidadania democrática pós-moderna exige compreensão pelo exercício de uma legitimatio fiscalizatória do sistema jurídico-político extensiva a todos indistintamente. Também, nessa acepção democrática, não é dado a ninguém exercer funções por adivinhação (onisciência, clarividência, onipotência), boas intenções ou autodidatismo prodigioso. A fala há de ser persuasiva (lexis), não pela tópica-retórica de um pensamento axiologizado (saberes públicos e privados) calcados na experiência de uma vida sem mundo discursivo, mas pelo entendimento argumentativo à operacionalidade processualizada da escritura constitucional.239 (grifos do autor)
Já para Platão, a cidadania busca sua referência na polys grega e se relaciona com a
posição que cada classe ocupa dentro da sociedade. Cada pessoa já nasce predestinada a
ocupar uma posição dentro da sociedade, sem haver qualquer possibilidade de ascensão 237 “Há de se entender o contraditório como oportunidade de produção formalizada de sentido a partir dos conteúdos de um ordenamento jurídico na preparação de um provimento (decisão) que possa afetar acertamento ou jurissatisfação de direitos processualmente alegados.” LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC -Minas, 2005. 238 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005. 239 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, de 2005.
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social. Essa é uma característica da sociedade fechada, onde qualquer possibilidade de
mudança leva à destruição. Além disso, a educação proposta para o Estado ideal era uma
forma de adestramento, não possibilitando a crítica e não viabilizando a formação de cidadãos
críticos. Nessa linha de idéias, sobre o programa político de Platão, Popper adverte: “[...] seu
alvo educacional não é o despertar da autocrítica e do pensamento crítico em geral. É antes
doutrinação - a moldagem de mentes e de almas.”240 Assim, o objetivo dessa educação era
impossibilitar as pessoas de agirem independentemente.
A sociedade fechada - tribal ou coletivista - é marcada pelos tabus, pelas mágicas,
pelas instituições tribais que não se oferecem à crítica. Também não possibilita a emergência
da cidadania nos moldes propostos pela teoria neo-institucionalista, uma vez que é baseada
na tradição tribal coletiva. Popper esclarece: “[...] uma sociedade fechada, no seu aspecto
mais completo, pode ser justamente comparada a um organismo. A chamada teoria orgânica
ou biológica do Estado pode ser-lhe aplicada em considerável extensão. Uma sociedade
fechada assemelha-se a uma horda ou tribo, por ser uma unidade semi-orgânica, cujos
membros são mantidos por laços orgânicos – parentesco, coabitação, participação nos
esforços comuns.”241
Após a análise empreendida por Popper acerca de Platão, considerado um inimigo da
sociedade aberta, Popper volta sua análise para Hegel, que, segundo ele, foi um seguidor de
Heráclito, Platão e Aristóteles.
Popper procede a uma análise comparativa entre o historicismo hegeliano e o de
Platão. O historicismo platônico teria chegado até Hegel por meio de Aristóteles, o qual, por
sua vez, através de sua teoria da metafísica do movimento, entendia que o movimento
revelava a essência da coisa e, por isso, era positivo. Essa tese aristotélica estaria presente na
filosofia de Hegel e resulta em três conseqüências historicistas: “[...] se o movimento de algo
revela a sua essência, para conhecermos o objeto devemos conhecer sua história; pelo fato de
desvelar a essência, o movimento é inexorável, o que implica na conclusão de que existe um
Destino; e, finalmente, a essência somente é real quando se atualiza.”242 Popper esclarece que,
enquanto o historicismo de Platão apresenta uma concepção negativa, pois se relaciona com a
decadência, Hegel, fundamentado em Aristóteles, apresenta uma concepção positiva do
historicismo.
240 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 147. 241 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, p. 188-189. 242 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl Popper, 1993, p.121.
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Para Platão, as essências existiam antes das coisas em fluxo, e o desenvolvimento
estava ligado à tendência de se afastar da perfeição das idéias e a um movimento em direção à
decadência. A história dos Estados é uma história de degeneração e está relacionada à
degeneração racial da classe dirigente. Hegel acredita que as essências ou idéias são idênticas
às coisas em fluxo, seguindo as alterações propostas por Aristóteles ao essencialismo de
Platão. Porém, isso não significa que, para Hegel, não existe um abismo entre a essência de
uma coisa e sua aparência sensível. Assim, do mesmo modo que para Platão e Aristóteles,
para Hegel a essência do Estado também é concebida como alma ou espírito.243 E se o Estado
é o espírito objetivo, somente como membro do Estado o indivíduo possui objetividade:
O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel; nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que, em serem membros do Estado, têm o seu mais elevado dever.
Nota – Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o interesse dos indivíduos enquanto tais é o fim supremo que os unifica, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado. Mas é muito diferente a relação do Estado com o indivíduo. Se o Estado é o espírito objetivo, então só como seu membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva.244
Para Leal, em Hegel o Estado ocupa o lugar do bando245 soberano246, cabendo ao
soberano ajudar a sociedade em sua caminhada ao longo da história, com o objetivo de
alcançar o Estado Espiritual da unidade absoluta:
243 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, p. 42-43. Ver também POPPER, Karl R. O que é dialética? In: POPPER, Karl R. O racionalismo crítico na política. 2. ed. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 37-44. 244 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone, 1997, p. 205. 245 “[...] O bando é essencialmente o poder de manter-se em relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto em bando é remetido à própria separação e, juntamente, entregue à mercê de quem abandona, ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e simultaneamente capturado [...] Torna-se assim compreensível a ambigüidade semântica, já anteriormente registrada, pela qual in bando, a bandono significam originalmente em italiano tanto à mercê de quanto ‘a seu talante livremente.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, 2002, p. 116-117. 246 “[...] O paradoxo da soberania enuncia: ‘o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’. Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então ‘ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in toto possa ser suspensa’ (Schmitt, 1922, p. 34).” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, 2002, p. 116-117.
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Portanto, o Estado em Hegel é um ente espetacular do Espírito Universal (uno) que se cria a si mesmo (in sich) e que seria descoberto pela sociedade civil à medida que esta superasse suas contingências e necessidades no embate da história, dispondo-se a participar da idéia de ordem absoluta e eterna que é o Estado. Em Kant, poder-se-ia dizer que o homem é fundador do Estado por uma inata auto-indução (razão a priori), mas em Hegel o Estado já é antes do homem (desde sempre), o lugar soberano, como nível ético conceitual supremo e unidade sintetizadora das contradições dinâmicas (processo histórico) à racionalização da ordem de um nós ideal para as sociedades políticas. Essa idéia de Estado em Hegel é, que, juridicamente acolhida em paradigmas de Estado liberal ou do Estado Social de Direito, se transformou em instrumento dos políticos (líderes sociais de várias procedências ideológicas) para, não mais como lugar somente de espera espiritual sublimadora do drama humano, intervir nas sociedades políticas e resgatá-las, de modo dirigista ou estatutário, de seu fatal sofrimento com promessa constitucionalmente escrita de busca empolgante dos fins do ESTADO que seriam a paz perpétua de Kant ou a ordem celestial de HEGEL.247 (grifo do autor)
Leal ressalta que, apesar de a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
adotar a teoria da democracia, ela é operacionalizada na concepção hegeliana de Estado como
bando soberano: “[...] esse lugar do bando soberano é, conforme Agamben, uma esfera de
liberdade plena e impermeável à fiscalidade e de onde o chefe de Estado dirige a nação ou
sociedade civil contida ainda numa realidade temporalizada (historizável) à espera de políticas
estatais assistencialistas, protetoras e curativas, porque incapaz por si mesma de colocar em
dúvida as ordens (metas) ou decisões desse último saber supremo.”248 (grifos do autor).
O Estado tanto em Hegel quanto em Marx assume o lugar do anonimato da sociedade
civil.249 Assim, desde que a sociedade civil250 cumpra seu suplício no leito da história, terá
como prêmio o seu acolhimento pelo Estado. Nessa perspectiva hegeliana, a jurisdição atua
por meio do Estado-juiz e de um processo histórico, e não se realiza pelo devido processo
democraticamente constitucionalizado, conforme enfatiza Leal: “[...] Por isso é que a
jurisdição nessa conjectura atua pelo Estado-Juiz, que é a forma secular de expressão
(seqüela) da sociedade civil como vontade suprema dos patrimonializados (civis). O 247 LEAL, Rosemiro Pereira. O declínio do Estado Hegeliano e o Esperado fim das guerras. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 162. 248 LEAL, Rosemiro Pereira. O declínio do Estado Hegeliano e o Esperado fim das guerras. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 163. 249 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade civil. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, Disponível em: <http:// www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/2_2005/Docentes/Pdf/processo%20civil%20e%20sociedade%20civil. pdf//>. Acesso em: 14/09/2006, p. 4. 250 “A sociedade civil contém os três momentos seguintes: a) A mediação da carência e a satisfação dos indivíduos pelo seu trabalho e pelo trabalho e satisfação de todos os outros: é o sistema de carências. b) A realidade do elemento universal de liberdade, implícito neste sistema, é a defesa da propriedade pela justiça. c) a precaução contra o resíduo de contingências destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como algo comum, pela administração e pela cooperação.” HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito, 1997, p. 173.
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julgamento do povo cidadanizado e descidadanizado fica à mercê, sem o devido processo
democraticamente constitucionalizado, de uma Justiça concebida como poder de sentenciar
(declarar e executar) o destino dos despossuídos.” 251
O processo para Hegel serve como meio para atuação da jurisdição. Desse modo, a
teoria do processo como relação jurídica parece ter sido influenciada por Hegel. Na realidade,
Hegel aponta que o processo, devido à sua complexidade, dificulta o exercício da jurisdição,
motivo pelo qual o tribunal deve se submeter a uma jurisdição simples. Hegel aponta a
necessidade de se romper com as formalidades do direito através da utilização da eqüidade:
223- Com sua divisão em atos sempre mais particulares e nos direitos correspondentes, segundo uma complicação que não tem limite em si mesma, o processo que começara por ser um meio, passa a distinguir-se da sua finalidade como algo extrínseco. Têm as partes a faculdade de percorrer todo o formalismo do processo, o que constitui o seu direito, e isso pode tornar-se um mal e até um veículo da injustiça. É por isso que, para proteger as partes e o próprio direito, aquilo que substancialmente se trata, contra o processo e os seus abusos, deverá o tribunal submeter-se a uma jurisdição simples (tribunal arbitral, tribunal de paz) e a tentativas de acordo antes de entrar no processo.252
A concepção hegeliana de processo não possibilita a participação das partes na
construção do provimento jurisdicional. Ao juiz qualificado cabe a direção do processo,
devendo prevalecer não a argumentação das partes, mas a posição subjetiva do juiz:
226- A direção da totalidade do processo, da investigação e de todos aqueles atos jurídicos das partes que são eles mesmos direitos (parágrafo 222), assim como o seu julgamento jurídico, cumprem sobretudo ao juiz qualificado [...] Para qualificar a ação, é essencial (cf. II Parte) o ponto de vista subjetivo da intenção e da convicção do agente, e a prova não se apóia neste domínio em objetos abstratos apreensíveis pela razão ou pelo intelecto, mas em particularidades, em circunstâncias e em objetos de intuição sensível de certeza subjetiva. A prova não contém, portanto, uma determinação objetiva absoluta e o que na decisão soberanamente prevalece é a convicção subjetiva, a certeza de consciência (animi sententia).253
Ao estudar a legitimidade decisória, Gabriel Maciel de Deus assevera que o processo
em Hegel não se coaduna com uma teoria do discurso jurídico, que compreende a decisão
como um ato compartilhado pelas partes:
Já no pensamento de Hegel estava elaborada uma versão do paradoxo de Bülow: as partes têm direito ao processo, que é um entrave ao direito. Uma tal concepção de
251 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade civil. Virtuajus.: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005, p. 4. 252 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito, 1997, p. 190. 253 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito, 1997, p. 190.
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processo jamais serviria para encaminhar uma teoria do discurso jurídico preocupada em assegurar a aceitabilidade racional das decisões judiciais e compreender o ato decisório como um empreendimento compartilhado. Pois, em última análise, a decisão se impõe nessa teoria, pela autoridade do julgador, haja vista que a decisão se funda em suas convicções subjetivas. Não há que se falar nem em consistência com o ordenamento jurídico (superada pelo juízo de eqüidade), nem em aceitabilidade racional (já que o critério decisório está enterrado nas convicções do julgador, onde permanece imune a críticas).254
Apesar de o Estado, nos moldes propostos por Hegel, estar em declínio255, Leal
assevera a dificuldade em sepultar o Estado hegeliano. Na atualidade, diversos escritores não
permutam o processo histórico de Hegel pela teoria do processo procedimental. Nesse
diapasão, Leal enfatiza: “[...] multidões de escritores ainda não trocam o processo histórico (a
caminhada de Hegel) pela teoria do processo procedimental para enfrentamento da violência
decisória milenar que, em bases axiologizantes ou de um saber inato individual ou coletivo,
vem, por hermenêuticas ou por uma jurisprudência de conceitos ou valores, colonizando a
humanidade ainda entregue ao comando de cavaleiros da paz ou da ordem (segurança) estatal
absoluta.”256
Hegel se contrapôs aos ideais de uma sociedade aberta por meio do resgate do
totalitarismo de Heráclito, Platão e Aristóteles, bem como através da adoração da História, da
Nação e do Estado. Do mesmo modo como Platão reagiu ao movimento racionalista grego,
Hegel reagiu contra a Revolução Francesa.257
Hegel assevera que tudo no mundo está em fluxo, embora que esse fluxo não
signifique decadência ou degeneração. O historicismo hegeliano é otimista, sua lei geral do
desenvolvimento é uma lei de um progresso dialético, seu Estado é de evolução criativa ou
emergente. Na concepção de um essencialista, para compreensão do Estado há necessidade do
conhecimento de sua essência ou espírito; isso ocorre através do conhecimento de sua própria
história. A essência de uma nação determina seu destino histórico, e a nação que deseja 254 MACIEL, Gabriel de Deus. Teoria do processo e legitimidade decisória: discurso de aplicação e argumentação de adequabilidade no direito democrático. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade Mineira de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 75-76. 255 “A desobediência da sociedade civil às decisões do soberano vem marcando um TEMPO que se espera pós-metafísico no sentido de rejeição pelo povo da moeda emblemática cunhada pelo Estado (moeda de curso legal) como fetiche de colonização absolutizante da sociedade econômico-política [...] Nota-se que o Estado hegeliano está morto ou desenganadamente agônico e que até o vocábulo (Estado) já se abre à investigação de sua mimésis (segredos de Estado) de uma trama delituosa dos governos contra os governados.” LEAL, Rosemiro Pereira. O declínio do Estado Hegeliano e o Esperado fim das guerras. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 164. 256 LEAL, Rosemiro Pereira. O declínio do Estado Hegeliano e o Esperado fim das guerras. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 163. 257 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl Popper, 1993, p. 122.
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progredir deve penetrar no “Palco da História” e combater as outras nações, com o objetivo de
dominar o mundo. Desse modo, Hegel, assim como Heráclito, acredita que a guerra é justa.
Também como Heráclito, Hegel estende essa guerra para a natureza e interpreta os contrastes
entre as coisas como uma espécie de guerra que impulsiona o desenvolvimento natural.
Para Popper, até esse ponto, essa filosofia pode ser vista como um historicismo
decente e honesto, embora sem originalidade. Porém, esse aspecto muda a partir da análise da
dialética de Hegel. Sobre a dialética de Hegel, Popper aponta:
[...] é que ele apresenta esse método tendo Kant em vista, Kant que, em seu ataque à metafísica (a violência desse ataque pode ser deduzida do lema que coloquei abrindo a ‘Introdução’ deste livro), procurou mostrar que todas as especulações desse tipo são insustentáveis. Hegel nunca tentou refutar Kant. Inclinou-se, e retorceu a concepção de Kant, dando-lhe sentido contrário. Eis como a dialética de Kant, o ataque à metafísica, se converteu na ‘dialética’ de HEGEL, o principal instrumento da metafísica.258
Segundo Hegel, o progresso acontece através de um ritmo ternário denominado por ele
de tríade dialética: primeiro apresenta-se uma tese, que será contraditada por seus opositores
através de uma antítese. Do conflito dessas duas concepções (tese e antítese), chega-se uma
unidade dos opostos (transigência ou reconciliação) – síntese. A síntese absorve as duas
posições opostas anteriores, podendo todo o processo ser repetido, a partir da síntese.259 A
unidade dos opostos desempenha importante papel no progresso dialético, constituindo estas
duas concepções de Heráclito - a guerra dos opostos e sua unidade - como as principais idéias
da dialética de Hegel.
Popper concorda com Hegel no aspecto de que a discussão crítica pode levar ao
avanço. O avanço científico consiste na eliminação de erros e contradições.260 Porém Hegel,
através de sua tríade dialética, possui um entendimento diferente do apresentado por Popper,
uma vez que, para ele, as contradições são admissíveis, como também inevitáveis e
desejáveis. Para Popper, esse argumento hegeliano destrói todo argumento e progresso. Desse
modo, Popper critica a dialética hegeliana. Nesse sentido, Pereira aponta: “Popper considera a
dialética de Hegel uma perversão dos ensinamentos de Kant. Enquanto Kant nos demonstrou
que um conhecimento metafísico que se pretenda científico esbarra nas antinomias da razão
pura, Hegel teria tomado esse resultado como uma demonstração de que é por meio da
contradição que a razão se desenvolve. O desastroso nesse procedimento não é a idéia de que
258 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 44. 259 POPPER, Karl R. O que é dialética? In: POPPER, Karl R. O racionalismo crítico na política, 1994, p. 27. 260 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 46.
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a contradição é inevitável, mas, sim, que é desejável.”261 Ao operar de forma livre com as
contradições, o objetivo de Hegel é impossibilitar o argumento e a crítica e,
conseqüentemente, deter o argumento racional e o progresso científico.
Popper esclarece que, ao contrário da dialética, em que o conflito entre uma tese e sua
antítese leve a uma síntese, ele propõe que o conflito entre uma idéia (tese) e sua crítica
(antítese) leve a uma eliminação da tese ou da antítese, se esta for insatisfatória. Nessa linha
de idéias, em lugar da dialética, Popper utiliza-se do método da tentativa e erro, que, segundo
ele, pode ser descrito da seguinte maneira:
[...] quando um cientista se defronta com um problema apresentará então – tentativamente – uma solução: uma teoria. Pois é extremamente característico do método científico que os cientistas não se poupem a quaisquer esforços para criticar a teoria em questão e para comprovar. Crítica e exame vão a par: a teoria será criticada por diversos lados para se descobrirem os pontos por onde pode ser atacada. E a comprovação de uma teoria realiza-se submetendo estes pontos fracos ao exame mais rigoroso possível. O que constitui, naturalmente, por outro lado, uma variante do método de tentativa e erro. As teorias são apresentadas tentativamente e são examinadas. Quando o resultado do exame mostra que a tentativa é falsa, então é rejeitada; o método de tentativa e erro é, na sua essência, um método de eliminação, a escolha negativa da exclusão.262
A filosofia de Hegel fundamenta-se em dois pilares: na tríade dialética e na filosofia
da identidade, que consiste em uma aplicação da dialética. A filosofia da identidade é baseada
em um positivismo ético e jurídico. Segundo Popper, a filosofia da identidade é um equívoco:
“[...] ela serve para justificar a ordem das coisas existentes. Seu principal rebento é um
positivismo ético e jurídico, a doutrina de que o que existe é bom, visto não poder haver
padrões fora dos padrões existentes, a doutrina de que a força é o direito.”263
Essa doutrina da filosofia da identidade derivou das interpretações feitas por Platão e
Kant do essencialismo. Para Platão, somente as idéias são reais, já as coisas perecíveis são
irreais. A partir dessa doutrina de Platão, Hegel conclui que ideal é igual a real. Por outro
lado, em sua dialética, a respeito das “Idéias de Razão Pura”, utilizou a palavra “idéia” para
significar idéias na mente. Com fundamento nessa doutrina, Hegel aceita que as idéias são
mentais ou racionais, ou seja, idéia é igual a razão. A partir da combinação dessas duas
equívocas doutrinas, Hegel chega à conclusão que real é igual à razão: “[...] efetivamente, o
racional que é sinônimo da idéia, ao entrar com sua realidade na existência exterior, adquire
261 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl R. Popper, 1993, p.122. 262 POPPER, Karl R. O que é dialética? In: POPPER, Karl R. O racionalismo crítico na política, 1994, p. 26. 263 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 47.
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assim, uma riqueza infinita de formas, de aparências, de manifestações e se envolve com uma
casca como se fora um caroço, no qual a consciência habita inicialmente, mas que o conceito
penetra, enfim, para descobrir a pulsação interior e para senti-la bater, mesmo sob a aparência
exterior.”264
Nessa linha de idéias, Popper acentua que “[...] isso permite a Hegel asseverar que
tudo quanto é razoável deve ser real, e tudo quanto é real deve ser razoável, sendo o
desenvolvimento da Razão e da Idéia tudo o que agora existe real e efetivamente, e deve ser
razoável, assim como bom. E particularmente bom é, como veremos, o Estado prussiano
efetivamente existente.”265 Desse modo, tudo o que é razoável deve conformar-se à realidade
e deve ser verdadeiro.266 Nisso consiste a filosofia da identidade, um dos sustentáculos da
filosofia hegeliana.
O conhecimento científico para Hegel é explicado a partir da unidade dos opostos, ou
seja, na unidade entre o subjetivo (crença) e o objetivo (verdade): “Desse modo, a oposição
entre o que Hegel chama o ‘subjetivismo’, isto é, a crença; e o objetivo, isto é, a verdade,
transforma-se numa identidade; e esta unidade dos opostos explica também o conhecimento
científico.”267 Para Hegel, a idéia significa a união do subjetivo e do objetivo. E a ciência
pressupõe que foi abolida a separação entre a idéia e a verdade.
Popper enumera algumas das idéias da filosofia de Hegel e de seus seguidores. A
primeira é o nacionalismo, na forma de uma idéia historicista. O Estado é a encarnação do
espírito, as raças superiores é que podem criar o Estado. A nação escolhida deve dominar o
mundo. A segunda idéia relaciona-se com a inimizade contra os outros Estados e deve afirmar
sua supremacia pela guerra. A terceira é que o Estado apenas se submete ao sucesso histórico,
não possui qualquer obrigação moral, sendo permitido a ele a mentira com intuito de
propaganda e a distorção da verdade. A quarta diz respeito à idéia ética da guerra (total e
coletivista), uma vez que a guerra possibilita o crescimento do Estado. A quinta idéia
relaciona-se na preponderância dos grandes homens e no antiigualitarismo. Por fim, a última
idéia diz respeito ao ideal da vida heróica (viver perigosamente) em oposição ao ideal do
medíocre burguês (vida rotineira de uma comunidade). A partir dessas idéias, fica evidente
que o liberalismo, a liberdade e a razão são os alvos atacados por Hegel.268
264 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito, 1997, p. 35. 265 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 48. 266 POPPER, Karl R. O que é dialética? In: POPPER, Karl R. O racionalismo crítico na política, 1994, p. 39. 267 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 48. 268 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 70-83.
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Hegel, além de se opor à liberdade e à igualdade, também se opõe à fraternidade dos
homens e ao humanitarismo. Nesse diapasão, a obediência cega deve substituir a consciência,
e o nacionalismo totalitário deve substituir a fraternidade. O nacionalismo tem por objetivo
combater a sociedade aberta: “[...] o nacionalismo faz apelo a nossos institutos tribais, à
paixão e ao preconceito, e a nosso nostálgico desejo de ser aliviados da tensão da
responsabilidade individual, que ela tenta substituir por uma responsabilidade coletiva e de
grupo.”269
O totalitarismo moderno deve seu desenvolvimento ao historicismo histérico de Hegel,
que se utilizou da desonestidade intelectual para cultivá-lo. Segundo Popper, “[...] o
totalitarismo moderno é apenas um episódio da perene revolta contra a liberdade e a razão.
Distingue-se dos episódios mais antigos não tanto por sua ideologia, como pelo fato de que
seus líderes conseguiram realizar um dos mais audaciosos sonhos de seus predecessores:
fizeram da revolta contra a liberdade um movimento popular.”270
Leal assevera que se faz necessário romper com o processo histórico de Hegel e
adotar um processo jurídico-discursivo. Para isso, Popper, através de sua crítica à sociedade
fechada hegeliana, desempenha papel preponderante:
Difícil mesmo liberar-se dessa emboscada sem auxílio de Popper, Habermas, Kauffmann, para que, eliminando esse observador-interventor privilegiado da história (o Estado Universal), se possa teorizar a própria observação para, ao problematizá-la a partir da linguagem discursiva, identificar suas características tirânicas advindas de uma intuição fenomenológica (Husserl) e sensibilidade não dadas à crítica e que querem dizer, de pronto e instantaneamente por uma razão natural e pressuposta ou por métodos engenhosos (Alexy, Günther, Dworkin, Rawls, Muller, Ferrajoli), o que é justo, bom ou ruim no mundo da realidade e da mente ou, desterrando os métodos (Gadamer, Heidegger), esperar o emergir do ser da verdade ou da solução justa por um canal de um pensar sem origem esclarecida.271
Após empreendidas críticas ao historicismo hegeliano, Popper passa a criticar o
historicismo de Marx. Popper apesar de admirar Marx pela crítica realizada por ele ao
capitalismo, entendia que Marx era incapaz de sugerir medidas práticas para sua substituição.
Além disso, outro aspecto criticado por Popper é que os marxistas têm o conhecimento como
infalível: “Creio ser insistentemente correta a insistência de que o marxismo é,
fundamentalmente, um método. Mas é errado acreditar que, como método, esteja a salvo de
269 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 56. 270 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 68. 271 LEAL, Rosemiro Pereira. O declínio do Estado Hegeliano e o Esperado fim das guerras. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 167-168.
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ataques. A posição de quem quer julgar o marxismo é simplesmente submetê-lo a prova
científica e criticá-lo como um método, isto é medi-lo por padrões metodológicos.”272
Popper deixa claro que somente existem teorias hipotéticas, que serão criticadas e
substituídas por outras. Não existe para ele pausa na ciência, no sentido de dizer que foi
alcançada a verdade. Desse modo, Popper aponta que os marxistas acreditam que sabem
muito, carecendo, assim, de modéstia intelectual. Apesar de possuir uma base especulativa
inteligente, observa-se que, na prática, do mesmo modo que a prática fascista273, o marxismo
é inimigo da razão e antiintelectual.274
Popper ressalta que sua crítica ao materialismo histórico de Marx, não significa uma
preferência pelo idealismo de Hegel. No conflito entre o materialismo e o idealismo, ele
escolhe o materialismo. Outro aspecto acentuado por Popper é que os marxistas não acreditam
nas possibilidades da política. Para Marx, as mudanças ocorrem através da revolução e não da
revolução política: “[...] uma revolução política só pode levar à substituição de um corpo
governante por outro – mera troca das pessoas que agem como governantes. Apenas a
evolução da essência subjacente, a realidade econômica, pode produzir qualquer mudança real
ou essencial – uma revolução social.”275
Em sua crítica formulada ao materialismo histórico de Marx, Popper aponta dois
aspectos: o primeiro aspecto é o historicismo, ou seja, as ciências sociais coincidem com o
método histórico e, de modo especial com a profecia histórica; o segundo aspecto diz respeito
ao materialismo (economismo): “[...] isto é, a afirmação de que a organização econômica da
sociedade, a organização de nossa troca de matéria com a natureza, é fundamental para todas
as instituições sociais e especialmente para seu desenvolvimento histórico.”276
Desse modo, na concepção de Marx, as relações de produção formam a estrutura
econômica, que se constitui na base sobre a qual se estabelece a estrutura jurídica e política da
sociedade:
272 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 91. 273 Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado, por uma ideologia baseada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal de colaboração de classes.” BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Tradução de Carmen C. Varriale et al. Brasília: Universidade de Brasília, 1998, p. 466. 274 POPPER. Karl R. A sociedade aberta um seu amigo, Karl Popper. Política, 1977, p. 33-40. 275 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 116. 276 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 114.
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[...] na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinha movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge, então, uma época de revolução social l.277
Isto posto, Leal adverte que para Marx a sociedade civil não é representada pelo povo,
mas por um núcleo econômico – economicismo: “Tanto em Hegel quanto em Marx a
sociedade civil não é o povo, mas um núcleo de potenciação econômica que influi na
modelação das formas da vida e que assume controles sociais. As raízes colonialistas da
sociedade civil penetram na atualidade, uma vez que, a todo instante, é convocada a se
mobilizar a favor de direitos que lhe são secularmente inerentes como sociedade pressuposta e
indissolúvel dos que se mantêm (ou se tornam) patrimonializados.”278 Ao contrário de Marx,
Leal enfatiza que, para que uma sociedade se transforme em sociedade democrática, ela deve
constituir-se pelo devido processo constitucional. A ênfase no processo econômico e,
conseqüentemente, na sociedade civil dissimulada em Estado, acaba por se transformar em
uma forma de reprodução do sistema de dominação.
Ao assumir o Estado o lugar domiciliar do anonimato da sociedade civil, a jurisdição
atua pelo Estado-Juiz. Porém, Leal enfatiza que, por essa conjectura, o povo (cidadanizado e
descidadanizado) tem uma atuação da jurisdição sem o Devido Processo Constitucional. A
jurisdição, por essa concepção, é o poder de sentenciar o destino dos despossuídos, forma de
expressão da sociedade civil dos patrimonializados (cidadãos-civis):
[...] A jurisdição, sem procedimento e processo, é a tônica da contemporaneidade tirânica, travestida de uma efetividade processual que prolonga secularmente a sociedade civil, fixando-a dentro e fora do Estado à margem da lei, suspendendo as conjecturas de Hegel e Marx ao se encravar numa zona de anomia que embosca a lei estatal num espaço extra-sistêmico com força de lei e em nome da lei (caráter constitutivo e legiferativo-suplementar da atividade jurisdicional). Essa atuação em zona anômica (que torna ingênuas as convicções legislativas de Carl Schmitt em
277 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Maria Helena Barreiros Alves. São Paulo, Martins Fontes, 1977. p. 24. 278 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade civil. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005, p. 3.
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suas concepções de estado de exceção)279 é que inaugura, para os CIVIS adeptos da escola instrumentalista do processo, o chamado PROCESSO JURISDICIONAL englobante de todas as especialidades do PROCESSO civilizatório como marcha acelerada da sociedade civil em várias ritualísticas.280 (grifos do autor)
Nessa concepção, o juiz (soberano) tem o poder legal de suspender a validade da lei
através da exceção soberana, com o intuito de preencher o espaço considerado por ele
juridicamente vazio, nos moldes esclarecidos por Agamben: “[...] o soberano, através do
estado de exceção, ‘cria e garante a situação’, da qual o direito tem necessidade para a própria
vigência.”281 O estado de exceção demonstra a essência da autoridade estatal, visto o soberano
possuir o monopólio da decisão.
Ainda sobre menosprezo à política, realizado por Marx, apesar de a igualdade perante
a lei ser garantida a todos, ele não acredita na liberdade formal, uma vez que os trabalhadores
não são tratados de modo equânime. Pelo contrário, eles são explorados:
Com o próprio funcionamento, o processo capitalista de produção reproduz, portanto, a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho, perpetuando, assim as condições de exploração do trabalhador. Compele sempre o trabalhador a vender sua fôrça de trabalho para viver, e capacita sempre o capitalista a comprá-la, para enriquecer-se [...] a produção capitalista, encarada em seu conjunto, ou como processo de reprodução, produz não só mais valia; produz a relação capitalista: de um lado, o capitalista e, do outro, o assalariado.282
Desse modo, o objetivo de Marx é demonstrar que, mesmo diante do sistema legal, o
sistema econômico não permite aos trabalhadores gozarem de sua liberdade. Nesse sentido,
Popper enfatiza: “[...] a liberdade formal ou legal, embora Marx não a desconsidere, mostra-se
inteiramente insuficiente para assegurar-nos aquela liberdade que ele considerava o alvo do
desenvolvimento histórico da humanidade. O que importa é a liberdade real, isto é, econômica
ou material. E isso só pode ser conseguido por meio de uma emancipação da servidão. Para
279 “[...] o estado de exceção, logo, não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura tipológica complexa, em que não só a exceção e a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro [...] é justamente nessa zona tipológica de indistinção que deveria permanecer oculta aos olhos da justiça, que nós devemos tentar em vez disso fixar o olhar. O que ocorreu e ainda está ocorrendo sob nossos olhos é que o espaço ‘juridicamente vazio’ do estado de exceção (em que a lei vigora na figura – ou seja, etimologicamente, na ficção – da sua dissolução, e no qual podia portanto acontecer tudo aquilo que o soberano julgava de fato necessário).” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, 2002, p. 43. 280 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade civil. Virtuajus.: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005, dezembro de 2005, p. 5. 281 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, 2002, p. 25 282 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 16 ed. Tradução de Reginaldo Sant’ana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, v.1, tomo 2, p. 672-673.
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essa emancipação, “[...] o encurtamento da jornada de trabalho é pré-requisito
fundamental.”283
Nessa perspectiva, para os marxistas a liberdade formal não tem qualquer importância,
motivo pelo qual visam à substituição da democracia formal pela econômica. Ao contrário da
posição defendida por Marx, Popper acentua que a liberdade formal - democracia - é o único
instrumento que pode ser utilizado pelo povo para controlar o poder dos governantes. Popper
enfatiza que, uma vez estabelecida a liberdade formal, cabe ao homem a responsabilidade de
construir instituições democráticas para controlar o poder econômico:
[...]. Devemos compreender que o controle do poder físico e da exploração física permanece como o problema político central. A fim de estabelecer esse controle, devemos estabelecer a ‘liberdade meramente formal’. Uma vez realizado isto, tendo aprendido como usá-la para controle do poder político, tudo mais depende de nós. Não mais devemos culpar ninguém, nem clamar contra sinistros demônios econômicos por trás da cena. Numa democracia, temos na mão as chaves do controle dos demônios. Podemos domá-los. Devemos saber disso e usar as chaves; devemos construir instituições para o controle democrático do poder econômico e para protegê-lo da exploração econômica.284
Por outro lado, Popper assevera que duas são as características de uma sociedade
aberta: a liberdade de discussão e a possibilidade de essa discussão exercer influência na
política. Além disso, espera-se que existam instituições capazes de defender a liberdade dos
fracos, ou seja, de protegê-los da exploração, já que a força política pode controlar a força
econômica:
O Estado protege seus cidadãos, com instituições legais e sociais, dos sofrimentos da força brutal, e também pode protegê-los do abuso da força econômica. Isto existe já e ainda pode melhorar. Temos que criar precisamente instituições sociais, que protejam os economicamente frágeis dos abusos dos fortes, quer dizer, instituições para protegê-los da exploração; pois a força política pode controlar a força econômica. Os marxistas menosprezam as possibilidades da política e, especialmente, do que chamam ‘liberdade formal’. Assim, pois eu insisto na função central das instituições políticas para realizar uma reforma social. O importante não é tanto saber quem governa, mas a maneira como se pode influenciar e controlar o governo.285
Croce recomenda aos historiadores que eles devem ficar atentos aos conceitos
provenientes do materialismo e devem lutar contra sua sobrevivência:
283 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 130. 284 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 135. 285 POPPER, Karl R. A sociedade aberta um seu amigo, Karl Popper. Política, 1977.
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Como já foi dito, a critica philosophica corroeu o materialismo histórico em todas as suas partes, encontrando nelle, precisamente porque subvertido, o mesmo erro, do panlogismo hegeliano, que desconhece e compromete a originalidade e a autonomia das varias fórmas espirituaes, as quaes, na sua distincção e unidde, são o próprio processo do espírito humano, a sua liberdade criadora. E contra o marxismo a critica reinvindicou, como já fizera contra o hegelianismo, as formas respectivamente negadas por um e por outro: contra Hegel, imaginado creadora e práxis; contra Marx, moralidade, imaginação creadora e pensamento. Além disso, demonstrou a discordância, que se poderia chamar grammatical, do principio marxista, que era economia, isto é, uma actividade do homem e como tal também ella principio espiritual, e que nelle era apresentado, ao contrário, como “materia”; de modo que o materialismo, antihistorico pela sua instituição, era apresentado como “materialismo histórico.”286
Croce também critica o economicismo do marxismo, segundo ele o ideal ético deve
prevalecer sobre o interesse econômico: “[...] é preciso que os factos econômicos sejam
rebaixados a simples materia de governo, e acima delles surja uma finalidade de governo, que
será sempre um ideal ethico, mais alto ou mais baixo, mais cultivado ou mais rude, mas um
ideal e não um interesse econômico.”287 Nessa perspectiva, Gramsci288 aponta que, para
superação da crise, deve ocorrer o desenvolvimento ético-moral do marxismo.
Bobbio ressalta a incompatibilidade do marxismo com a democracia, visto que o
Estado para Marx é baseado numa concepção organicista e antiindividualista da sociedade.289
Além disso, Marx considera o Estado como um mero aparelho de dominação e possui uma
visão determinista da história a partir de uma concepção economicista e redutora da sociedade
civil. Segundo Bobbio, dois são os elementos principais da concepção negativa do Estado em
Marx: “[...] a) consideração do Estado como pura e simples superestrutura que reflete o
Estado das relações sociais determinadas pela base econômica; b) a identificação do Estado
como aparelho de que se serve a classe dominante para manter seu domínio.”290
Ao examinar as críticas formuladas por Bobbio ao marxismo, Guimarães destaca que
essa concepção determinista da história demonstra a incapacidade teórica de Marx de pensar a
democracia no plano jurídico-institucional.291 Nessa perspectiva, Bobbio esclarece: “[...] O
que importa para Marx e para Engels (como para Lênin) é a relação de domínio, que tem suas
raízes na base real da sociedade, isto é, nas relações de produção. Do ponto de vista das 286 CROCE, Benedetto. Orientações: pequenos ensaios de philosofia politica. Tradução de Miguel Ruas. Rio de Janeiro: Athena, [19--]. p. 36-37. 287 CROCE, Benedetto. Orientações: pequenos ensaios de philosofia politica, [19--], p. 40. 288 GRAMSCI, Antônio. Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce. Turim: Giulio Einaudi, 1966. 289 BOBBIO, Norberto. Três ensaios sobre a democracia. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Cardim & Alario, 1991, p. 50. 290 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 164. 291 GUIMARÃES, Juarez. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal. São Paulo: Xamã, 1998, p. 31.
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relações reais de domínio não das aparentes (fixadas nas constituições formais, ou nas
estruturas institucionais), cada Estado é uma forma de despotismo.”292
Além disso, por adotar uma concepção organicista da sociedade, conforme enfatiza
Guimarães, o marxismo não foi capaz de colocar no centro das suas reflexões os direitos
fundamentais, não foi capaz de formular um projeto alternativo à democracia liberal e nem
mesmo desenvolveu uma teoria do Estado:
Por esposar uma visão organicista da sociedade, o marxismo teria sido incapaz de pensar os direitos fundamentais. Opondo igualitarismo a liberdade, a tradição marxista teria optado pela primeira. A esquerda revolucionária teria ignorado desde sempre os direitos da liberdade individual. Não existiria, em toda a literatura marxista ou marxizante, um único tratado sobre os direitos do homem.
Além de avesso ao pluralismo e à noção de direitos individuais, o marxismo teria sido incapaz de formular um projeto alternativo à democracia liberal. Ao circunscrever a sociedade civil ao reino das relações econômicas, os marxistas muitas vezes teriam equacionado simplificadoramente o problema da democracia política à democracia econômica, o autogoverno dos cidadãos ao autogoverno dos produtores. O erro, segundo Bobbio, decorreria da não existência dos problemas do cidadão distintos dos problemas do trabalhador ou produtor.
Além disso, a cultura do marxismo não teria desenvolvido uma teoria do Estado seja por ter concentrado mais na questão da conquista do poder (com a ênfase nos temas do partido), seja por conceber a transição simplificadoramente como um processo gradual de extinção do Estado (entendendo-o, portanto, como uma realidade transitória), seja pelo apego dogmático à letra dos textos clássicos.293
Apesar de acreditar que Marx contribuiu para a análise histórica e sociológica, em
conferência proferida em 1918, acerca do socialismo, Weber critica a concepção determinista
da história defendida por Marx em o Manifesto Comunista294: “[...] o Manifesto Comunista é
um documento profético, ele profetiza o desaparecimento da forma econômico-privada, ou,
como se costuma dizer, a organização capitalista da sociedade, e profetiza a substituição desta
sociedade, inicialmente – como estágio de transição -, pela ditadura do proletariado.”295
(grifos do autor).
292 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, 2001, p. 165. 293 GUIMARÃES, Juarez. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal, 1998, p. 32. 294 BOYLE, David. O manifesto comunista de Marx e Engels. Tradução de Débora Landsberg. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 295 WEBER, Max. O socialismo. In: GERTZ, René E. (Org.). Max Weber e Karl Marx. Tradução de René Gertz. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 264.
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Além do aspecto determinista, Weber também critica a feição economicista unilateral
e apriorística do materialismo histórico296 de Marx. Nessa linha de idéias, Guimarães aponta:
“[...] em segundo lugar, Max Weber critica o uso metafísico de uma concepção monista, de
feição economicista, para se explicar o curso da história.”297
Por sua vez, Habermas se relaciona com a obra de Marx sob uma perspectiva de
inspiração, crítica e alternativa. Como herdeiro da Escola de Frankfurt, Habermas herda a
crítica ao materialismo histórico. Na obra Para a reconstrução do materialismo histórico,
há uma tensão entre o marxismo e a tentativa habermasiana de reconstrução de um novo
campo teórico. Conforme Habermas, reconstrução “[...] significa, em nosso contexto, que
uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela
própria fixou: esse é o modo normal (quero dizer: normal também para os marxistas) de se
comportar diante de uma teoria que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo
potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar.”298
Sobre a crítica de Habermas a Marx, Guimarães esclarece:
A síntese crítica de Habermas desdobra-se em cinco componentes: o paradigma produtivista do trabalho com suas implicações redutoras da práxis social, a visão teleológica e holística da história, a compreensão do agir social através das classes estruturadas na produção, a limitada compreensão funcionalista do Estado democrático de direito, a conexão entre a autocompreensão da teoria mais como ciência e o vanguardismo.299
Habermas objetiva desenvolver os componentes não economicistas do marxismo. A
crítica ao paradigma da produção é um ponto central das críticas de Habermas. Ao analisar a
evolução das críticas habermasianas, Guimarães acentua:
Podemos igualmente relacionar a evolução da démarché habermasiana à evolução do grau desta crítica ao “paradigma da produção”: do início até Conhecimento e interesse, no qual o conceito de “interação” aparece como relativizador da centralidade do trabalho, compreendido em sua dimensão instrumental; o momento de A reconstrução do materialismo histórico, no qual o “paradigma da produção” é visto como fundamental, mas já aparece como momento subordinado ao desenvolvimento dos níveis evolutivos de interação social (inspirados em Piaget)
296 “De forma semelhante a Croce, Weber aceita a ênfase econômica contida na concepção materialista da história, como um princípio heurístico, útil para a investigação, desde que empregado de forma unilateral e apriorística.” GUIMARÃES, Juarez. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal, 1998, p. 23. 297 GUIMARÃES, Juarez. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal, 1998, p. 22. Sobre as críticas de Weber a Marx, ver também GIDDENS, Anthony. Marx, Weber e o desenvolvimento do capitalismo. In: GERTZ, René E. (Org.). Max Weber e Karl Marx, 1997. 298 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 11. 299 GUIMARÃES, Juarez. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal, 1998, p. 232.
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para a explicação das transições; o período a partir da Teoria da ação comunicativa no qual Habermas desloca o trabalho como conceito central e, em seu lugar, posiciona o conceito de comunicação, completando o giro de uma “filosofia da consciência” para a construção de uma teoria social a partir da linguagem.300 (grifos do autor)
Marx falhou em suas profecias, uma vez que elas foram desmentidas pela própria
história e não são adequadas para uma análise do sistema capitalista. Sua tentativa de extrair
conclusões a partir da observação de tendências não obteve êxito. O motivo de seu fracasso
está na pobreza do historicismo, já que, embora na atualidade pareça ser uma tendência
histórica, não podemos afirmar que no futuro ela continuará sendo uma tendência.301
Nessa perspectiva, Moncada, assim como Popper, faz críticas ao Marxismo, por
entender que se trata de uma doutrina ideológica e programática que acaba por se destruir por
meio de seu próprio materialismo histórico:
[...] não o dizemos com espírito de crítica burguesa, mas com o intuito de crítica filosófica: O Marxismo é a menos teorética e a mais ideológica de todas as doutrinas. Tudo nele é “programático”. É uma ideologia que, como pretende elevar-se à esfera teorética, a si mesma se destrói, desde que a si mesma se coloque dentro do esquema do seu “materialismo histórico”, que forjou para seu uso, e dentro do qual não pode haver lugar para nenhuma “verdade” nem para nenhum “ideal”, no sentido de que estas palavras sempre se estenderam na história do pensamento ocidental, desde Platão até Hegel.302 (grifos do autor)
Marx, assim como Platão, com base no holismo e no utopismo, acreditou que apenas
um sistema inteiramente novo fosse capaz de melhorar as coisas. Popper acentua que isso faz
com que ele volte a ressaltar a importância do método social gradual em detrimento do
método social utópico, que aponta a necessidade de planejamento para combater males
concretos e não para estabelecer um ideal.303 Assim, Marx, como Platão e Hegel, ao adotarem
o método utópico, acaba por enfatizar o processo histórico em detrimento do processo
jurídico, utilizado pelo método gradual. Esse método gradual viabiliza uma reconstrução
social democrática por meio do Devido Processo Constitucional.
Após estudar a falseabilidade das teorias e a sociedade aberta em Popper, que apontam
a importância do processo jurídico na construção de uma sociedade aberta, para melhor
aprofundamento do tema, estudar-se-ão, no próximo subitem, a legitimidade do direito e as
300 GUIMARÃES, Juarez. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal, 1998, p. 234. 301 PEREIRA, Julio César R. Epistemologia e liberalismo: uma introdução à filosofia de Karl R. Popper, 1993, p. 147. 302 MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado: I- Parte histórica, II- Doutrina e crítica. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 339. 303 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.2, p. 137-140.
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teorias normativas da democracia em Habermas. Assim, Habermas, como Popper, apresenta
importante aporte teórico no estudo do Direito Processual constitucionalizado, uma vez que
sua teoria procedimentalista da democracia perpassa por uma releitura acerca da legitimidade
do direito.304
1.2 Legitimidade do direito e teorias normativas da democracia em Habermas
A teoria discursiva de Habermas leva a uma reflexão acerca da legitimidade do direito
moderno; isso significa questionar sobre os fundamentos de validade do direito sem recorrer a
um direito natural ou imutável. Para tanto, o presente subitem objetiva reconstruir o
pensamento de Habermas a partir de quatro momentos: 1) Teoria da ação comunicativa
(1981)305, 2) Direito e Moral (Tanner Lectures 1986)306, 3) Três modelos normativos de
democracia307 e 4) “Direito e Democracia: entre facticidade e validade (1992)”308. Esse
estudo tem por objetivo investigar se as súmulas vinculantes se compatibilizam com a teoria
discursiva de Habermas.
Apesar da contribuição de Habermas no estudo da legitimidade do direito, Leal
adverte que “Habermas só poderia ser factível pelo modelo e estrutura espácio-temporal
regida pelo Processo como instituição constitucionalizada jurídico-principiológica e não por
quaisquer interações comunicativas procedimentais ocorrentes na base cultural de produção
do direito, ainda que constitucionalmente permissíveis.”309 Assim, a reconstrução do
pensamento habermasiano tem como objetivo, na própria definição do termo realizada por
Habermas310, desconstruir e recompor, sob um novo aspecto, a teoria discursiva para que ela
304 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002. 305 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003. Ver também JÜRGEN, Habermas. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003. 306 HABERMAS, Jürgen. Direito e moral (Tanner Lectures). In: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v.2. 307 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995. 308 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v.2. 309 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e Hermenêutica constitucional a partir do Estado Democrático de Direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 98. 310 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, 1990, p. 11.
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possa atingir seu desiderato. Desse modo, a teoria neo-institucionalista terá importante papel,
visto que coloca o processo constitucionalizado no centro de suas reflexões.
Habermas acentua que a legitimidade do direito não está relacionada com a mera
positivação do direito. Nessa perspectiva, Cademartori assevera: “Para Habermas, no entanto,
não basta que uma decisão seja legal para que obtenha legitimidade; as decisões, os
procedimentos formais e os conteúdos devem ser justificados mediante razões para serem
considerados como legítimos.”311
Habermas esclarece que a legitimidade significa que um ordenamento possui
fundamento moral para ser reconhecido e obedecido:
[...] legitimidade significa que há bons argumentos para que um ordenamento político seja reconhecido como justo e equânime; um ordenamento legítimo merece ser reconhecido. Legitimidade significa que um ordenamento político é digno de ser reconhecido. Com essa definição, sublinha-se que a legitimidade é uma exigência contestável; e que é (também) do reconhecimento (pelo menos factual) dessa exigência que depende a estabilidade de um ordenamento de poder.312
Nas análises empreendidas por Habermas sobre o processo de colonização do mundo
da vida313 na obra Teoria da ação comunicativa (1981)314, o direito é considerado como
meio e como instituição. Há, entre o direito e a moral, uma relação de complementaridade,
uma vez que, na construção do ordenamento, Habermas relaciona a formação da vontade
normativa com a moral – instância superior que lhe dá fundamento.315 Para esclarecer sobre a
legitimidade do Direito, Habermas procede a uma investigação dos processos de juridicização
que ocorreram ao longo da história, através da descrição de quatro jornadas: 1ª jornada:
Estado burguês, 2ª jornada: Estado burguês de Direito; 3ª jornada: Estado Democrático de
Direito e 4ª jornada: Estado social. Habermas acentua que a legitimidade do Direito pode
ocorrer pela via da correção do procedimento (justificação formal) ou pela via da justificação
material, permitindo uma legitimação perante o mundo da vida. O Direito como meio tem o
311 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 124. 312 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, 1990, p. 219-220. 313 “[...] El mundo de la vida es, por así decirlo, el lugar trascedental em que hablante y oyente se salen al encuentro: em que pueden plantearse recíprocamente la pretensíon de que sus emissiones concuerdan com el mundo (com el mundo objetivo, com el mundo subjetivo y com el mundo social); y em que pueden criticar y exhibir los fundamentos de esa pretensiones de validez, resolver sus disentimentos y lhegar a um acuerdo.” JÜRGEN, Habermas. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 179. 314 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003. Ver também HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003. 315 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 26.
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papel de controlar os sistemas316 de ação (Estado e Economia), sendo necessário, para
constatação da legitimidade, apenas a correção procedimental na consecução das normas. O
Direito como instituição tem sua legitimidade a partir da observância da legitimidade formal e
material, possui um papel regulativo e está conectado ao mundo da vida e não aos sistemas da
Economia e do mercado.
No texto Direito e Moral (Tanner Lectures 1986)317, datado de 1986 e publicado
apenas em 1988, ao estudar legitimidade, interessa não apenas uma relação de
complementaridade, mas também um entrelaçamento simultâneo entre o direito e a moral,
distanciando-se da concepção adotada na Teoria da ação comunicativa de que a mera
correção procedimental seria suficiente para a legitimidade como meio. A legitimidade do
direito se relaciona com uma justificação prático-moral. Assim, Habermas não enfatiza mais a
distinção entre direito como meio e como instituição.
Nos Três modelos normativos de democracia318, cujo texto foi apresentado pela
primeira vez na Cardozo Law School, no qual Habermas debateu as teses de Between facts
and norms com seus colaboradores dos Estados Unidos, Habermas objetivava esboçar um
modelo procedimentalista do Direito e da democracia e de política deliberativa que se
diferenciasse tanto do modelo liberal quanto do modelo republicano. A proposta
habermasiana estabelece um nexo interno de eqüiprimordialidade entre autonomia pública e
privada e, conseqüentemente, entre soberania do povo e direitos humanos:
Habermas objetivava esboçar uma visão procedimentalista da democracia e da política, diferente tanto da visão liberal quanto da republicana, traçando comparação entre as duas. Desse modo, a Modernidade esboçou duas respostas à questão da legitimidade do direito; através da compreensão liberal e republicana de política, os liberais enfatizaram a primazia dos direitos humanos, enquanto os republicanos destacaram a primazia da soberania popular. HABERMAS apresentou um terceiro modelo que visava à superação dos dois: sua proposta estabelecia uma ligação entre
316 “O segundo conceito, o de sistema, adota a perspectiva do observador externo à sociedade. Trata-se de um conceito que não se opõe ao de ‘mundo vivido’, mas o complementa. Com auxílio desse conceito é possível descrever aquelas estruturas societárias que asseguram a reprodução material e institucional da sociedade: a economia e o Estado. Trata-se, nesse caso, de dois subsistemas da sociedade que desenvolveram certos mecanismos auto-reguladores: o dinheiro e o poder que asseguram a ‘integração sistêmica.’ No interior do sistema, a linguagem é secundária, predominando a ação instrumental ou estratégica. O sistema é regido pela razão instrumental.” FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 165. 317 HABERMAS, Jürgen. (Tanner lectures). In: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v.2. 318 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Caderno da Escola do Legislativo, 1995, p. 105-121.
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autonomia pública e privada e, por conseguinte, entre soberania do povo e direitos humanos.319
E, por fim, em Direito e Democracia: entre facticidade e validade (1992)320, há uma
redefinição da legitimidade do Direito, que passa de meio ou instituição a mediador entre
facticidade e validade, bem como há uma redefinição da relação entre Direito e Moral, que
passam a ser co-originários, ocorrendo uma superação da proposta de Habermas na Tanner
Lectures, na qual entendia que o Direito estava submetido a um princípio moral de
justificação. O Direito passa a ter seu fundamento de legitimidade nos processos democráticos
de formação da vontade e da opinião. Nessa linha de idéias, Cattoni de Oliveira enfatiza: “[...]
Para Habermas, em Facticidade e validade, o Direito e a Moralidade são co-originários e
complementares321, sendo, portanto, que não há uma relação de subordinação do Direito à
Moral ou que a argumentação jurídica seja um caso especial da argumentação moral, como
ainda se percebe em suas Tanner Lectures (1986).322
Habermas oferece, por meio da teoria discursiva de legitimação democrática do
Direito, importante contribuição no estudo da legitimidade do direito. Apesar da colaboração
ao enfatizar a co-originariedade entre direito e moral na construção da racionalidade
discursiva fundante da democracia e de colocar o procedimento no centro de sua reflexão
(fase madura), uma vez que a complementaridade entre direito e moral ocorre por meio do
procedimento legislativo, Habermas não esclareceu qual é a teoria da processualidade
percorrida por ele, conforme assevera Leal:
Daí que o novo Habermas da co-originariedade de direito e moral ainda guarda silêncio sobre a índole de sua procedimentalidade jurídica instituidora do princípio da democracia por uma razão comunicativa que fosse apta a elaborar entendimentos a partir de um medium lingüístico indemarcado. O abandono da razão prática e filosofia do sujeito a favor da teoria do discurso não possibilita automaticamente a intersubjetividade criativa do direito em plano de entendimento mediado por uma
319 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado democrático de direito. Revista do curso de direito da Universidade Estadual de Montes Claros, 2005, p. 79. 320 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v.2. 321 Na concepção de MOREIRA, na obra Direito e democracia: entre facticidade e validade, Habermas não adota mais a relação de complementaridade entre direito e moral, mas de co-originariedade: “Nos trabalhos anteriores, havia uma relação de complementaridade entre essas esferas. Agora, Habermas declina dessa complementaridade em favor de uma relação de co-originariedade entre Moral e Direito.” MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 24. 322 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 61.
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linguagem inesclarecida, para legitimar pretensões de validade sobre algo no mundo em nome de um melhor argumento.323 (grifos do autor)
Essa qualificação do discurso da procedimentalidade do direito democrático será
realizada pela teoria neo-institucionalista do processo. Desse modo, faz-se necessário que se
associe à teoria do discurso uma teoria da procedimentalidade democrática:
Assim, a teoria da democracia em Habermas carece da principiologia jurídica da teoria do processo institucionalizador da possibilidade jurídica da racionalidade democrática, porque ao imaginar uma procedimentalidade como médium lingüístico da passagem do princípio do discurso ao princípio da democracia não se estabeleceu a índole dessa procedimentalidade neutra e canalizadora de argumentos que se conduziram por uma razão estratégica centrada em estoques de historicidade jusracionalista pelos direitos humanos com abandono do medium discursivo auto-ilustrativo de sua própria construção jurídica.
Por conseguinte, é de se reclamar uma teoria (neo) institucionalista do processo, voltada a qualificar o discurso da procedimentalidade fundante do direito democrático, a que nos dedicamos, em que seja o processo instituição constitucionalizada de controle e regência popular soberania legitimante dos procedimentos como estruturas técnicas de argumentos jurídicos assegurados, numa progressiva relação espácio-temporal, de criação, recriação (transformação), extinção, fiscalização, aplicação (decisão) e realização de direitos, segundo os princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa. Estes princípios, que são integrantes conceituais do processo nessa concepção, assumem, nas comunidades constitucionalmente implantadas, caráter jurídico-instrumental de tornarem irrestrito o direito-de-ação à fiscalidade processual, popular e incessante, dos direitos fundamentais assegurados.324 (grifos do autor)
Uma das propostas de Habermas na obra Teoria da ação comunicativa era
reconstruir a racionalidade da sociedade moderna (mundo pós-convencional)325 não mais
baseada em fundamentos metafísicos (racionalidade monológica), mas fundamentada na ação
comunicativa em que as ações se desenvolvem sob um pano de fundo – mundo da vida. Além
disso, objetivava desenvolver um conceito de sociedade articulado em dois níveis, que
relacionasse o mundo da vida com o sistema, bem como uma teoria da modernidade326 capaz
de explicar as patologias sociais.327
323 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 174. 324 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 178. 325 “No nível pós-convencional ou nível regulado por princípios, são discutidos os estágios 5 (contrato social ou utilidade e direitos individuais) e 6 (princípios éticos universais). Neste nível há o esforço visível de definir valores e princípios morais que tenham validade independentemente da autoridade de grupos ou pessoas que os sustentam e independentemente da identificação do sujeito com as pessoas do grupo.” FREITAG, Bárbara. Os itinerários de antígona: a questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992, p. 203. Ver também GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado democrático de direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Boletim Jurídico de La Universidad Europea de Madrid, n. 3, set. 2000, p. 10. 326 Segundo Habermas, Hegel foi pioneiro ao desenvolver um conceito de modernidade. Desse modo, para entender a relação entre modernidade e racionalidade, faz-se necessário revisitar o conceito hegeliano acerca da
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Para elaborar uma teoria moderna da evolução das sociedades, Habermas procede a
uma revisão da história. Ao fazer isso, ele analisa os conceitos atribuídos por alguns autores,
em especial, Weber. Habermas relaciona esses conceitos328 com os fatos históricos e sociais e
aponta as falhas e omissões desse autor. Assim, Freitag aponta que “[...] a ‘teoria da ação
comunicativa’ sustentada por este aparelho conceitual tem como objetivo revelar os aspectos
do processo histórico, omitidos nas análises anteriores, corrigir o que fora falsamente
diagnosticado, e reinterpretar fatos.”329 (grifos nossos).
Habermas destaca que “[...] a ação comunicativa é baseada em um processo
cooperativo de interpretação em que os participantes se referem simultaneamente a algo no
mundo objetivo, subjetivo e social.”330 Para Habermas, a modernidade ocidental ocorre
através da racionalização cultural e societária. Por sua vez, o autor reconhece duas formas de
racionalidade: a racionalidade instrumental331 e a racionalidade comunicativa332. O objetivo
de Habermas é superar a compreensão da racionalidade moderna proposta por Weber333, uma
modernidade: “Hegel emprega o conceito de modernidade, antes de tudo, em contextos históricos, como conceito de época: ‘os novos tempos’ são os ‘tempos modernos’. Isso corresponde ao uso contemporâneo do termo em inglês e francês por volta de 1800: modern times, temps moderns designaram os três séculos precedentes. A descoberta do ‘Novo Mundo,’ assim como o Renascimento e a Reforma, os três grandes acontecimentos por volta de 1500, constituem o limiar histórico entre a época moderna e a medieval. Hegel também utiliza esses termos, em suas lições sobre a filosofia da história, para delimitar o mundo germânico-cristão que, por sua vez, se originou da Antiguidade grega e romana.” HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução de Luiz Sérgio Rapa, Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 9. 327 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidade de la acción y racionalización social, 2003, p. 10. 328 “Este conceitual é constituído pelos conceitos-chaves de ‘ação comunicativa’ e de ‘sociedade’, que abrange os dois aspectos – o do mundo vivido (lebenswelt) e o do ‘sistema’.” FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas, 2005, p.46 329 FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas, 2005, p. 46. 330 “La acción comunicativa se basa em um proceso cooperativo de interpretácion em que los participantes se referien simultaneamente a algo em el mundo objetivo, em el mundo social y em el mundo subjetivo.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 171. 331 “Si partimos de la utilización no comunicativa de um saber proposicional em acciones teleológicas, estamos tomando uma decisión em favor de esse concepto de racionalidade cognitivo-instrumental que a través del empirismo há dejado uma profunda impronta em la autocomprensión de la modernidade.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 27. 332´[...] Si partimos, por el contrario, de la utilización comunicativa de saber proposicional em actos de habla, estamos tomando uma predecisión em favor de um concepto de racionalidad más amplio que se enlaza com la vieja idea logos. Este concepto de racionalidad comunicativa posee connotaciones que em última instancia se remontan a la capacidade de aunar sin coacciones y de generar consenso que tine um habla argumentativa em que diversos participantes superan la subjetividad inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a uma comunidad de convicciones racionalmente motivada se aseguran a la vez de la unidad del mundo objetivo y de la intersubjetividad del contexto em que desarrolan sus vidas.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 27. 333 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília / DF: Universidade de Brasília, 1999. v.2. Ver também WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Irene de Q. F. Smrecsányi, Tamás J. M. K. Smrecsányi. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 1999.
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racionalidade cognitivo-instrumental, que pode ser entendida como uma adequação de meios
a um fim e não uma racionalidade comunicativa.
É mister salientar que, enquanto a racionalidade instrumental é baseada no agir
estratégico334 e tem a linguagem apenas como um meio de transmitir informações, a
racionalidade comunicativa é centrada no agir comunicativo, e a linguagem é utilizada como
meio de integração. Nesse sentido, Habermas enfatiza que o agir comunicativo depende do
uso da linguagem dirigida ao entendimento:
[...] o entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados. Através das ações de fala, são levantadas pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire força obrigatória quando o falante garante, através de sua pretensão de validez, que está em condições de resgatar essa pretensão, caso seja exigido, empregando o tipo correto de argumentos. O agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na força racionalmente motivadora de atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente.335
Ao estudar a teoria da racionalidade habermasiana, Aragão enfatiza que Habermas
rejeita a investigação do conhecimento e da ação como meios adequados para refletir acerca
da razão, e indica a linguagem como um novo paradigma para a filosofia. Desse modo,
existem diferenças de conteúdo, de método e da dimensão da própria razão entre a filosofia da
consciência e da linguagem. A filosofia da linguagem substituiu o autoconhecimento
introspectivo por procedimentos que não apelam para a intuição:
[...] a razão que se depreende da atividade do sujeito cognoscente e agente, ele caracteriza como subjetiva e instrumental, porque centrada na noção de subjetividade e voltada para o domínio teórico ou prático dos objetos. Já a razão que pode ser descoberta pela análise dos sujeitos lingüísticos é uma razão intersubjetiva e não instrumental, porque a prática lingüística envolve pelo menos dois participantes (ou sujeitos) e tem como único objetivo o entendimento.336
334 “Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as conseqüências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos de sua ação influindo extremamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções, sobre a definição da situação ou as decisões ou motivos de seus adversários. A coordenação das ações de sujeitos que se relacionam dessa maneira, isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam os cálculos de ganho egocêntricos. O grau de cooperação e estabilidade resulta, então, das faixas de interesses dos participantes.” HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 335 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 72. 336 ARAGÃO, Lúcia Maria de Carvalho. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 25.
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Enquanto a racionalidade comunicativa é centrada no mundo da vida, por meio de uma
ação comunicativa orientada ao entendimento, a racionalidade instrumental, por meio da ação
estratégica, visa à realização de fins e é centrada nos sistemas (Estado e mercado). Os
sistemas buscam colonizar o mundo da vida através de sua mercantilização e burocratização.
Segundo Aragão, as patologias sociais são frutos da invasão da razão instrumental no mundo
da vida. Para que a modernidade ameaçada recupere seu potencial de racionalidade,
Habermas propõe uma interação entre as duas racionalidades, de tal modo que uma não se
intrometa nos domínios da outra:
[...] é exatamente essa intromissão da razão instrumental, nos domínios que pertencem à razão comunicativa, que gera as patologias sociais, os efeitos negativos observados ao nível de cultura, sociedade e personalidade, que acabam por ameaçar a existência do sistema como um todo (tanto socialista quanto capitalista) e podem entravar tanto o desenvolvimento posterior da lógica instrumental, quanto da lógica da razão comunicativa ao nível social.337
Almeida destaca que para operacionalizar a democracia faz-se necessário distinguir os
dois tipos de racionalidades estudadas por Habermas, uma vez que há diferenças na produção
e aplicação do direito na racionalidade orientada para um fim (estratégica) e na racionalidade
orientada para o entendimento:
Na racionalidade orientada para um fim (agir estratégico), o direito é produzido ou aplicado na perspectiva individual de cada sujeito, na busca por influenciar os outros envolvidos na ação (efeito manipulativo), a fim de alcançar um sucesso pessoal. A influência social consiste na influência que um exerce sobre o outro.
A racionalidade orientada para o entendimento não recepciona juízos de certeza, tem apenas a finalidade de designar o paradigma e esclarecê-lo por meio da teoria. Ela não contempla a infalibilidade do sistema – por não trabalhar com juízos de certeza absoluta, o que preconiza é a fiscalidade incessante do sistema. Nessa concepção discursiva, uma pessoa procura, em sua ação, convencer o outro da validade de suas pretensões. A integração social se produz a partir da participação.338
Chamon Júnior assevera que Habermas busca investigar o papel do Direito na
sociedade que tem como alternativa tanto a ação orientada ao entendimento quanto a
337 ARAGÃO, Lúcia Maria de Carvalho. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas, 2006, p. 112. 338 ALMEIDA, Andréa Alves de. A efetividade, eficiência e eficácia do processo no Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, 2004. v. 4, p. 82.
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orientada ao sucesso, a partir da colonização do mundo da vida, ou seja, do fenômeno de
juridicização.339
Segundo Chamon Júnior, a terminologia colonização significa que “[...] questões
antes abertas a uma proposta comunicativa a ser travada no mundo da vida são transportadas
para uma dimensão jurídica que, além de ‘abafar’ tal produção genuína de soluções pelos
próprios afetados, reflete a estrutura do Direito não referida ao próprio mundo da vida, mais
sim, aos sistemas da Economia e do Estado.”340
Habermas esclarece que a expressão juridicização “[...] se refere, em termos gerais, à
tendência que se observa nas sociedades modernas a um aumento do direito escrito. Nessa
tendência, podemos distinguir entre a extensão do direito, ou seja, a regulamentação jurídica
de novos assuntos sociais regulados, até o momento, de maneira informal, e a densificação do
direito, ou seja, a divisão de uma matéria global em várias particulares.”341 (grifos do autor).
Com o intuito de esclarecer o papel do direito na sociedade, que tem como alternativa
tanto a ação orientada ao entendimento quanto ao sucesso, Habermas desenvolve sua
investigação a partir de quatro jornadas de juridicização, que marcaram a época. A primeira
jornada é o Estado burguês, que se refere ao período absolutista e se caracteriza pela
institucionalização da diferença entre Economia e Estado. O Direito, nessa jornada, tem por
objetivo garantir a diferença entre Estado e Economia, não se preocupando com questões do
mundo, da vida (questões morais).
Segundo Habermas, O Estado burguês se desenvolveu na Europa Ocidental na época
do absolutismo e “[...] constitui a ordem política dentro da qual se efetua a transformação da
sociedade estamental de princípios do mundo moderno em uma sociedade capitalista.”342 Por
outro lado, a Economia se estabelece a partir de um direito privado, entre sujeitos de direito
que se comportam estrategicamente e entabulam entre si relações contratuais. Nesse diapasão,
a ordem jurídica se caracteriza por sua positividade,343 universalidade e formalidade, e é
339 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 184. 340 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 184. 341 “ [...] se refiere, dicho em téminos muy generales, a la tendencia que se observa em las sociedades modernas a um aumento del derecho escrito. En esta tendência podemos distinguir entre la exténson del derecho, es decir la regulación jurídica de nuevos asuntos sociales regulados hasta el momento de manera informal, y el adensamiento del derecho, es decir, la desmenuzación de uma matéria jurídica global em varias matérias particulares.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 505 (grifos do autor). 342 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 505. 343 “Positividade. El derecho moderno rige como um derecho positivamente estatuído. No se forma por interpretación de tradiciones sagradas reconocidas, sino que expresa más bien la voluntad de um legislador soberano, que haciendo uso del médio de organización que es el derecho, regual convencionalmente situaciones
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construída a partir do moderno conceito de lei e de sujeito de direito capazes de contratar,
adquirir ou transmitir propriedade. A função do direito é de “[...] garantir a liberdade e a
propriedade do sujeito privado, a segurança jurídica e a igualdade formal de todas as pessoas
perante a lei e, com ela, a previsão de todas as ações jurídicas normatizadas.”344 O Direito
Público relaciona-se ao poder do Estado, única fonte de dominação, tendo em vista o
monopólio da força.
A segunda jornada é o Estado burguês de direito, forma típica do constitucionalismo
alemão do século XIX. Essa jornada é marcada por uma normatização jurídico-constitucional.
Ao contrário da primeira jornada, que era marcada pela regulamentação legal e pelos meios
burocráticos de exercício do poder público, os cidadãos passam a ter direitos públicos
subjetivos frente ao soberano, apesar de eles ainda não participarem da construção desses
direitos de forma democrática. Habermas assevera que “[...] tendo em vista a instauração de
um Estado de direito, a ordem do direito privado burguês fica relacionado com o exercício de
dominação. Que o princípio da legalidade da administração pode ser interpretado no sentido
do ‘império da lei’. Na esfera da liberdade dos cidadãos, a administração não pode intervir
nem contra, nem menos, nem mais do que permite a lei.”345
Do ponto de vista de uma teoria da sociedade, ao contrário da primeira jornada, em
que o Estado absolutista priorizava os sistemas através do meio dinheiro e poder, e relegava
para um segundo plano o mundo da vida, a segunda jornada prioriza tanto o sistema quanto o
mundo da vida, o que Habermas considera o primeiro passo para que o Estado moderno
adquira legitimidade baseada em um direito próprio: “[...] essa ordem jurídica fica agora
enriquecida com elementos mediante os quais o moderno mundo da vida da burguesia é
objeto de reconhecimento e proteção. Ao ver as coisas de fora, isso pode ser considerado
como um primeiro passo, mediante o qual o Estado moderno adquire uma legitimidade por
direito próprio, adquire legitimações baseadas no mundo da vida moderna.”346
sociales.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 336. 344 “[...] garantizar la libertad y la propriedade de la persona privada, la seguridad jurídica y la igualdad formal de todas las personas jurídicas ante la ley y com ello la previsibilidad de todas las acciones jurídicamente normadas.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 506 345 “[...] por via de esta instauración de um Estado de derecho, el orden del derecho privado burguês queda coordinado de tal modo com el aparato del ejercicio de la dominación, que el principio de legalidad de la administración puede ser interpretado em el sentido de ‘imperio de la ley’. Em la esfera de la libertad de lso ciudadanos la administración no puede interveir ni contra ni praeter ni ultra legem.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 508. 346 “[...] este orden jurídico queda ahora enriquecido com elementos mediante los que el moderno mundo de la vida de la burguesia es objeto de reconocimiento y protección. Vistas las cosa desde fuera, esto puede
101
A terceira jornada conduz ao Estado democrático de direito, tendo-se difundido na
Europa e América do Norte como conseqüência da Revolução Francesa. Nessa jornada, os
cidadãos são portadores de direito de participação política; por sua vez, as leis só são
consideradas válidas através da participação democrática dos afetados em sua elaboração.
Essa participação dos afetados ocorre por meio de um “[...] procedimento que liga a legislação
a processos de decisão parlamentar e a uma discussão pública. A juridicização do processo de
legitimação se implanta em forma de direito de voto, universal e igual, e do reconhecimento
da liberdade de reorganizar e pertencer a associações e partidos políticos. Com ele se aguça
também o problema da divisão de poderes.”347 (grifos do autor). Assim como ocorre no
Estado de direito, o mundo da vida se faz valer frente aos imperativos de uma estrutura de
poder (sistema).
A quarta jornada, o Estado social democrático, é fruto do movimento operário europeu
no século XX. Trata-se do processo de juridicização do mundo do trabalho, que antes estava
submetido ao poder de disposição dos proprietários dos meios de produção. Há a limitação do
tempo de trabalho, a liberdade de organização sindical, o direito a um determinado salário, a
proteção contra a demissão e o direito à seguridade social. Os direitos trabalhistas surgem
com o objetivo tanto de restringir o conflito de classe como de garantir a liberdade.
O efeito negativo dessa jornada é resultado da própria estrutura da juridicização e não
se apresenta como um efeito colateral, uma vez que “[...] são os próprios meios que garantem
a liberdade que colocam em perigo os beneficiários. No âmbito da política social do Estado
essa rubrica tem tido uma ampla repercussão sob a rubrica de juridicização e burocratização
como limites da política social.”348
Desse modo, Habermas destaca que o efeito negativo dessa jornada é a burocratização
e monetarização do mundo da vida pelo sistema:
considerar-se como um primer paso, mediante el que el Estado moderno adquiere uma legitimidad por derecho próprio, adquiere legitimaciones basadas em el mundo de la vida moderno.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 509. 347 “[...] procedimiento que liga la legislación a procesos de decisión parlamentaria y a la discusión publica. La juridificación del proceso de legitimación se implanta en forma de derecho de voto, universal e igual, y del reconocimiento de la libertad de organizar y perttencer a asociaciones y partidos políticos. Côn ello se agudiza también el problema de la división de poderes.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 509. (grifos do autor). 348 “[...] Pues ahora son los propios médios com que se garantiza la libertad los que ponen em peligro la libertad de los beneficiarios. Em el âmbito de la política social del Estado esta circunstância há tenido um amplio eco bajo la rúbirca de ‘juridicización y burocratización como limites de la política social.” HABERMAS, Jürgen.Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 508.
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Na medida em que o Estado social vai além da pacificação de conflitos de classes que se apresentam imediatamente na esfera da produção e tende para os âmbitos privados da existência de uma rede de relações de clientela, com mais força surgem os esperados efeitos colaterais patológicos de uma juridicização que simultaneamente significa uma burocratização e monetarização dos âmbitos nucleares do mundo da vida. A estrutura paradoxal desse tipo de juridicização consiste em que as garantias que o Estado comporta deveriam servir de integração social e, sem dúvida, fomentam a desintegração daqueles contextos do mundo da vida que, em conseqüência da forma jurídica que a intervenção do Estado adota, ficam desligados do entendimento como mecanismo de coordenação da ação e acomodados a meios como dinheiro e poder.
349
Chamon Júnior esclarece que a maneira como a juridicização ocorre na quarta jornada
não possibilita aos afetados participarem da construção do direito, visto que ocorre a
colonização do mundo da vida pela Política e pela Economia:
[...] Mas o impacto negativo, segundo Habermas, deste período não se caracterizou antes, como no primeiro, pela aparição de ‘efeitos colaterais’ à juridicização, mas antes à maneira como esta juridicização fora conduzida, tal como o absurdo alargamento da matéria jurídica a ponto de pretender organizar âmbitos que antes deveriam estar tão-somente abertos a discussões para que, perante o mundo da vida, os afetados comunicativamente discutissem e alcançassem soluções para seus problemas. A isso HABERMAS chama de colonização do mundo da vida através da Política (burocratização) e da Economia (monetarização) de âmbitos do mundo da vida que, enquanto tais, são distintos dos sistemas orientados ao êxito.350
A partir do momento em que ocorre um aumento do direito por meio da
burocratização ou monetarização, os que estão submetidos a esse sistema jurídico se
contentam com a simples legitimação da norma jurídica pelo procedimento, sem preocupação
com uma justificação material. Habermas esclarece que, nesse caso, o direito atua como “[...]
instrumento de organização para os subsistemas regidos por meios, autonomizados frente aos
contextos orientados ao entendimento. São significativos, nesse sentido: a maioria das
matérias de Direito Econômico, o Direito Empresarial, o Direito Comercial e o Direito
Administrativo. Aqui, o direito se relaciona com os meios dinheiro e poder, de modo que
349 “[...] em la medida em que el Estado social vá más allá de la pacificación del conflicto de clases que se presenta inmediatamente em la esfera de la producción, y tiende sobre los âmbitos privados de la existência una red de relaciones de clientela, com tanta más fuerza surgen los esperados efectos laterales patológicos de una juridicización que simultáneamente significa uma burocratización y monetarización de âmbitos nucleares del mundo de la vida. La estructura dilemática de este tipo de juridicización consiste em que las garantias que el Estado social comporta habrían de servir a la integración social y, sin embargo, fomentan la desintegración de aquellos contexto del mundo de la vida que a consecuencia de la forma jurídica que la intervención del Estado adopta, quedan desligados del entendimiento como mecanismo de coordinación de la acción y acomodados a médios como dinero y poder.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 514. 350 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 187-188.
103
também adote o papel de um meio de controle.”351 (grifos do autor). Desse modo, o papel do
direito seria apenas organizar e controlar os sistemas de ação (Economia e Estado), sendo
desnecessária sua fundamentação material.
Por outro lado, as matérias de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito
Constitucional não se legitimam apenas pela legalidade (princípio da positivação), mas
necessitam de uma justificação material (princípio da fundamentação). Nesses casos, o Direito
atua como instituição, dotado de uma linguagem própria. Sobre o tema, Habermas destaca que
por instituições jurídicas entende “[...] as normas jurídicas que não podem ser legitimadas por
apelar apenas em termos positivistas a sua correção procedimental.”352
Na concepção de Chamon Júnior existe uma contradição no pensamento de Habermas,
ao estudar o direito como meio, pois, segundo Habermas, o Direito teria sua legitimidade no
mero procedimento formal. Desse modo, Habermas não leva em consideração suas críticas
formuladas ao positivismo sociológico de Weber. Sobre o tema, Chamon Júnior enfatiza que
Habermas excluiu do direito, como meio, a necessidade de uma justificação material,
fundamentada em princípios morais:
Ora, na medida em que se estabelecem princípios – ainda que morais – de maneira racional – porque comunicativa – em um momento pós-convencional de maneira a reger a criação de normas jurídicas, e na medida em que se é possível estabelecerem-se critérios que buscam alcançar a racionalidade no plano prático-moral, a conclusão a que chega HABERMAS é conseqüente, embora pontual: todas as normas jurídicas devem ser justificadas justamente por serem capazes de passar pelo crivo da crítica. Incompatível se faz a redução que é proposta no segundo tomo ao retirar desta justificação principiológica e referida ao mundo social as normas referentes ao Direito como meio: sua argumentação certamente, seria no sentido de que, sendo o Direito Constitucional ancorado moralmente no mundo da vida, e sendo ele quem determina o que venha a ser passível de ser considerado como “legal ou não”, por via de conseqüência bastaria a mera produção procedimental conforme a Constituição para conferir legitimidade a estas normas. A “confiança” no ordenamento jurídico conferiria legitimidade a estas normas, o que não deixa de chocar com a afirmação de que todas as normas podem ser justificadas principiologicamente.353
351 “[...] instrumento de organización para los subisitemas regidos por medios, autonomizados ya frente a los contextos normativos de la acción orientada al entendimiento. Son significativas em este sentido la mayorá de las matérias del derecho econômico, del derecho empresarial, del derecho comercial y del derecho administrativo. Aqui el derecho queda combinado com los médios dinero y poder de modo que también él adopta el papel de um médio de control.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 516 (grifo do autor). 352 “[...] las normas jurídicas que no pueden quedar suficientemente legitimadas com sólo apelar em términos positivistas a su correción procedimental.” HABERMAS, Jürgen.Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 516. 353 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 200-201.
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Habermas caracteriza o direito moderno por sua combinação dos princípios da
positivação e da fundamentação. O direito como instituição, ao contrário do direito como
meio, liga-se aos componentes sociais do mundo da vida e tem uma função regulativa. Porém,
as matérias trabalhadas pelo direito como meio, segundo Habermas, podem ser moralizadas,
uma vez que são abordadas a partir de uma dimensão ética354:
[...] E, do mesmo modo, as normas de ação que não vêm respaldadas pela sanção do Estado podem ser moralizadas, isso quer dizer, abordadas em sua dimensão ética constitutiva, quando se apresenta alguma dissonância especial.
[...] Na medida em que o direito funciona como um meio complexo conectado ao dinheiro e poder, abarca os âmbitos de ação formalmente organizados que foram constituídos como tais nas formas do direito formal burguês. Pelo contrário, as instituições jurídicas não têm nenhuma força constitutiva, somente uma função regulativa. Estão inseridas num contexto político-cultural e social mais amplo. Guardam uma relação de continuidade com as normas éticas, vêm sancionar juridicamente âmbitos de ação comunicativamente estruturados, proporcionam aos âmbitos de ação já constituídos informalmente uma força vinculante respaldada pela sanção estatal.355 (grifo do autor)
Para Chamon Júnior, a afirmação de Habermas de que essas questões podem ser
moralizadas, se abordadas por uma dimensão ética, além de demonstrar uma confusão entre
direito, ética356 e moral, aponta para uma confusão entre justificação do direito em termos
morais e de uma relação de continuidade entre direito e moral. Nesse sentido, Chamon Júnior
destaca: “[...] o Direito encontraria, enquanto instituição, uma legitimidade moral que,
354 “[...] Denomino éticas, nesse contexto, todas as questões que se referem a concepções do bem viver ou da vida não-malograda. Questões éticas não se deixam julgar sob o ponto de vista ‘moral’ que se pergunta se algo é ‘igualmente bom para todos’; sobre o fundamento de valorações intensas, pode-se avaliar bem melhor o julgamento imparcial dessas questões com base na autocompreensão e no projeto de vida perspectivo de grupos em particular, ou seja, com base no que ‘seja bom para nós’, mas a partir da visão do todo manifestada por esses grupos. Gramaticalmente, o que está inscrito nas questões éticas é a referência à primeira pessoa, e com isso a remissão à identidade (de um indivíduo ou) de um grupo.” HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2002, p. 251. 355 “[...] y al igual que el resto de las normas de acción que no vienen respaldadas por la sanción del Estado, pueden ser moralizadas, es decir, abordadas em su constitutiva diménsion ética, cuando se presenta alguna disonancia especial [...] Em la medida em que el derecho funciona como um médio complejo concetado com el dinero y el poder, abarca los âmbitos de acción formalmente organizados que quedaron constituídos como tales em las formas del derecho formal burgués. Por el contrario, las instituciones jurídicas no tienen ninguna fuerza constituyente, sino solo uma función regulativa. Están insertas em um contexto político-cultural y social más amplio, guardan uma relación de continuidad com las normas éticas, vienen a sancionar jurídicamente âmbitos de acción comunicativamente estructurados; proporcionan a los âmbitos de acción ya constituídos informalmente una fuerza vinculante respaldada por la sanción estatal.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 517. 356 “Questões éticas se referem ao auto-entendimento individual (ou coletivo) de identidades e biografias e ideais de vida, questões morais se referem à solução justa ou imparcial de problemas do ponto de vista da universalização racional dos interesses.” NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral. São Leopoldo – RS: UNISINOS, 2002, p. 15.
105
enquanto campo de discussões éticas, garantiria ao Direito uma dimensão já constituída e que
deveria tão somente ser institucionalizada estatalmente.”357 O direito como meio estaria
ligado aos sistemas da Economia e do Estado, como modo de controlá-los.
Porém, Chamon Júnior adverte que Habermas não esclarece de que maneira o direito
como meio permite organizar a Economia e o Estado. Além disso, o direito como meio
também poderia ser justificado perante o mundo da vida. Essas questões foram reformuladas
por Habermas na obra Direito e democracia: entre facticidade e validade. Nessa linha de
idéias, Chamon Júnior aponta:
Além disso, ainda complicado se fez a sua teoria quando não nos permitia perceber como o direito como meio poderia organizar legitimamente a Economia e o Estado, se a realização da liberdade era uma questão referente ao mundo da vida e o Direito como meio seria alheio a estas questões na medida em que seria orientado a fins de organização. A grande questão é que mesmo “o Direito como meio” é também capaz de ser justificado perante o mundo da vida, questão mais tarde retrabalhada de maneira adequada em Faktizät und Geltung.358 (grifos do autor)
O aumento da complexidade dos sistemas econômico e administrativo empregaria o
direito como meio. Por outro lado, as jornadas de juridicização que se caracterizam por novas
instituições jurídicas refletem a consciência jurídica da prática cotidiana. Habermas aponta a
necessidade da substituição do direito como meio pelo direito como instituição: “[...] o uso do
direito como meio deve ser substituído por procedimentos de regulação de conflitos, que se
ajustem às estruturas da ação orientada ao entendimento – por processos de formação
discursiva da vontade individual e coletiva por procedimentos de negociação orientada ao
consenso.”359
Para Chamon Júnior, Habermas, ao se preocupar em descrever as jornadas de
juridicização, acabou por incorrer no mesmo erro que Weber, uma vez que não realizou uma
análise capaz de articular a legitimidade do direito – como meio ou como instituição – com a
racionalidade moderna:
O interessante a ser ressaltado é que Habermas sequer levou a sério as críticas que ele mesmo ergueu à teoria da racionalidade do Direito moderno de WEBER. A preocupação em esclarecer as sucessivas jornadas de juridicização como uma abertura da constituição dos sistemas funcionais ao mundo da vida não foi
357 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 191-192. 358 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 201. 359 “[...] El uso del derecho como médio debe sustituirse por procedimientos de regulación de los conflictos, que se ajusten a las estructuras de la acción orientada al entendimiento – por procesos de formación discursiva de la voluntad individual y colectiva y por procedimientos de negociación y decisión orientada hacia el consenso.” HABERMAS, Jürgen.Teoria de la acción comunicativa, II: critica de la razón funcionalista, 2003, p. 524.
106
acompanhada de uma análise, como acima apontado, que articulasse, nos termos já indicados, a própria legitimidade do Direito – como meio ou como instituição – com a racionalidade moderna. HABERMAS procura salvar-se naquilo que tanto criticou em WEBER, ou seja, na referência a uma leitura positivista e formal da legitimidade.360
Por outro lado, a preocupação de Weber não se relacionava ao estudo dos fundamentos
de validade da ordem jurídica, mas os objetos de sua investigação sociológica eram os
motivos que levavam à obediência de uma ordem de domínio, ou seja, os princípios
motivadores da autoridade:
Naturalmente, a subsistência de toda ‘dominação’, no sentido técnico que damos à palavra, depende, no mais alto grau, da autojustificação mediante o apelo aos princípios de sua legitimação. Destes últimos princípios existem três: a ‘validade’ de um poder de mando pode expressar-se num sistema de regras racionais estatuídas (pactuadas ou impostas) que, como normas universalmente compromissórias, encontram obediência quando a pessoa por elas ‘autorizada’ a exige. Neste caso, o portador individual do poder de mando está legitimado por aquele sistema de regras racionais, sendo seu poder legítimo, na medida em que é exercido de acordo com aquelas regras. Obedece-se às regras e não à pessoa, ou então baseia-se o poder de mando em autoridade pessoal. Esta pode encontrar seu fundamento na tradição sagrada, isto é, no habitual, no que tem sido assim desde sempre, tradição que prescreve obediência diante de determinadas pessoas, ou, ao contrário, pode basear-se na entrega ao extraordinário; na crença no carisma, isto é, na revelação atual ou na graça concedida a determinada pessoa – em redentores, profetas e heroísmo de qualquer espécie.361 (grifos do autor)
Desse modo, Weber estuda a sociologia da dominação362, traçando suas estruturas e
seu funcionamento. Na forma totalmente pura, os fundamentos de legitimidade da dominação
são três: os estatutos legais, o carisma e a tradição. Porém, na realidade histórica, esses
fundamentos não possuem autonomia, eles se entrelaçam. Apesar de Weber ter contribuído
com a Sociologia, sendo reconhecido como um de seus mestres, observa-se que os tipos puros
de dominação são formas vazias, desprovidas de conteúdo. A forma é dominadora,
substituindo o conteúdo. Seu texto Os três tipos puros de dominação363 não permite a
indagação do conteúdo ofertado. Assim, Habermas, em sua fase madura, por meio do texto
Três modelos normativos de democracia, ao tratar os modelos normativos de democracia,
360 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 194. 361 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, 1999, p. 197-198. 362 Dominação “[...] é uma situação de fato, em que uma vontade manifesta (mandado) do dominador ou dos dominadores de querer influenciar as ações de outras pessoas (do dominado ou dos dominados), e de fato as influencia de tal modo, que essas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações.” WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, 1999, p. 191. 363 WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação. In: COHN, Gabriel (Org.). Max Weber: Sociologia. Tradução de Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Grandes cientistas, v. 13).
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quer evitar a forma pura estudada por Weber no texto As três formas puras de dominação e
na obra Economia e sociedade.
Porém, Leal adverte que tanto Weber quanto Habermas nos textos acima citados
acabam por enfatizar o processo histórico. Nessa linha de idéias, Leal enfatiza:
Em Weber, no seu texto sobre os três tipos puros de dominação legítima (1994), aduz-se que a pureza da dominação social decorre da proibição significante (autoritária) que a tradição, o mito e o direito impõem sobre seus próprios significados, e Habermas, ao discorrer sobre os seus três modelos normativos de democracia (HABERMAS, 1995:107-121), acaba por admitir normas oriundas (insondáveis) de processos de comunicação através de ‘redes informais da esfera pública’ que, no anonimato (comunicação sem sujeitos juridicamente legitimados), operaria uma intersubjetividade tendente a entendimentos formativos de integração social. Observa-se que ambos os autores ficam plantados numa linguagem pressupostamente racionalizante e organizativa do mundo humano.364
O Estado moderno, a partir de uma reflexão weberiana, é uma associação política, que
se equipara a uma empresa, e tem por objetivo o monopólio da coação física como forma
legítima de dominação. Prepondera, no Estado moderno, a legitimidade racional-legal, que
funda sua legitimidade na legalidade. Sob o aspecto relacional, o Estado é uma forma de
dominação do homem sobre o homem:
[...] O Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que, dentro de determinado território pretendeu, com êxito, monopolizar a coação física legítima como meio de dominação e reuniu para este fim, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os seus funcionários estamentais autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-se, ele próprio, em seu lugar, representado por seus dirigentes supremos.365
A racionalidade do Direito, para Weber, está relacionada à regularidade formal das
decisões e dos atos legislativos. Para ele, o direito moderno está ligado à dominação legal.
Além disso, esse direito deve ser operado por especialistas. Habermas enfatiza: “[...] de modo
geral, Weber associa conceitualmente de forma tão íntima o direito moderno e dominação
legal, que o princípio de que o direito necessita de justificação se subjuga e fica apenas o
princípio da positivação (Satzunprinizip). Weber, com efeito, insiste sobretudo nas
364 LEAL, Rosemiro Pereira. Direitos fundamentais do processo na desnaturalização dos direitos humanos. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, Belo Horizonte, a. 5, n. 1, p. 5-6, jul. 2006. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/1_2006/Docentes/pdf/Rosemiro.pdf//>. Acesso em 14/05/2007. 365 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, 1999, p. 529.
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propriedades estruturais relacionadas com o formalismo de um direito sistematizado por
especialistas e com a positividade das normas que são normas estatuídas.”366 (grifos do autor).
Weber delineou a transição da irracionalidade pré-moderna do direito para a
racionalidade moderna, advertindo que nem sempre essas etapas de racionalização ocorreram
em uma ordem crescente ou sequer existem na atualidade, nem mesmo no Ocidente:
As qualidades formais do direito desenvolvem-se nesse processo a partir da combinação de um formalismo magicamente condicionado a uma irracionalidade determinada pela origem em revelações, no procedimento jurídico primitivo, passando, eventualmente, por uma racionalidade material ou não-formal, ligada a um fim e patrimonial ou teocraticamente condicionada, rumo a uma racionalidade e sistemática jurídica crescentemente especializada e, por tanto, lógica e, por essa via - sob aspectos puramente externos-, ao progresso da sublimação lógica e do rigor dedutivo do direito e da técnica racional do procedimento jurídico.367
Desse modo, segundo Weber três foram as etapas de desenvolvimento da
racionalização do direito: o direito revelado do procedimento jurídico primitivo, o direito
tradicional e o direito moderno da técnica racional do procedimento jurídico. Ao analisar a
racionalização do direito weberiana, Habermas esclarece que “[...] na etapa do direito
primitivo falta o conceito de norma objetiva, na etapa do direito tradicional as normas se
consideram dadas, como elementos da tradição, e apenas na etapa do direito moderno podem
as normas ser consideradas como regras livremente estatuídas.”368
Habermas assevera que “[...] a racionalização do direito reflete a mesma seqüência de
categorias pré-convencionais, convencionais e pós-convencionais369 que a psicologia
366 “[...] por lo general Weber associa de forma conceptualmente tan estrecha derecho moderno y dominación legal, que el principio de que el derecho necesita justificación se desvanece y queda solamente el principio de positivización (Satzunprinizip). Weber, in efecto, insiste sobre todo em las propiedades estructurales relacionadas com el formalismo de um derecho sistematizado por especialistas y com la postividad de unas normas estatuídas.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 339. (grifos do autor). 367 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, 1999, p. 143. 368 “[...] Em la etapa del derecho primitivo falta todavía el concepto de norma objetiva, em la etapa del derecho tradicional las normas se consideran dadas, como elementos de la tradición, y sólo em la etapa del derecho moderno pueden las normas ser consideradas como reglas libremente estatuídas.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 339. 369 “Na etapa pré-convencional da sociedade, a comunidade ainda não possui valores próprios, vez que as tradições/costumes ainda não se consolidaram [...] A fase convencional corresponde ao momento em que os valores éticos, religiosos, sociais, políticos e econômicos já estão estabelecidos, firmando um status quo social [...] Na etapa pós-convencional, os indivíduos, mesmo detentores de uma herança cultural, conseguem identificar os valores que formam sua identidade e passam a ter juízos de valores críticos sobre os mesmos, por meio de reconhecimento dos direitos individuais e de princípios universais.” CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 135. Ver também HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, 1990.
109
evolutiva descobriu para a ontogênese da consciência moral.”370 Somente na etapa pós-
convencional, ou seja, no direito moderno, as estruturas de consciência moderna
materializam-se no sistema jurídico, como ocorre com o direito privado burguês. Três são as
características formais do direito: positividade, legalidade371 e formalismo372. Essas
características estão relacionadas ao modo de criação e validade, aos critérios de punibilidade,
modo de sanção e ao tipo de organização da ação jurídica.
De acordo com Habermas, essas características do direito supõem que as pessoas
agem de maneira estratégica, pois elas se utilizam de sua autonomia visando a determinados
fins. O sistema de ação dessas pessoas obedece a três posturas básicas: “[...] obedecendo, em
primeiro lugar, as leis a título de convênios publicamente sancionados mas que poderiam ser
legitimamente alteradas a todo momento; perseguindo, em segundo lugar, seus próprios
interesses sem atender a aspectos éticos e, em terceiro lugar, conforme os próprios interesses,
as decisões de acordo com as leis vigentes (isso quer dizer, levando em consideração as
conseqüências jurídicas previsíveis).”373
Porém, Habermas adverte que a positivação e formalização querem dizer que a
validade do direito não se relaciona com autoridade das tradições éticas, mas que necessita de
uma fundamentação autônoma, que não seja apenas uma fundamentação relacionada aos fins
dados como quer Weber. Essa exigência de fundamentação do direito ocorre apenas no nível
pós-convencional. Nessa linha de idéias, Habermas aponta: “[...] É aqui onde surge pela
370 “La racionalización del derecho refleja la misma secuencia de categorías preconvencionales, convencionales y postconvencionales que la psicologia evolutiva há descubierto para la ontogénesis de conciencia moral.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 335. 371 “Legalidad. El derecho moderno no supone a las personas jurídicas ninguna clase de motivación ética, fuera de uma obediência general al derecho; protege sus inclinaciones privadas dentro de limites sancionados. No sancionan las malas intenciones, sino las accione que se desvían de las normas (lo que supone las categorias de responsabilidad y de culpa).” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 336. 372 “Formalismo. El derecho moderno define âmbitos em que las personas privadas pueden ejercer legítimamente su arbítrio. Se presupone la libertad de arbítrio de las personas jurídicas em um âmbito, éticamente neutralizado, de acciones que son privadas, pero que lhevan anejas consecuencias jurídicas [...] En este ámbito está permitido todo aquello que no esté juridicamente prohibido.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 336. 373 “[...] obedeciendo, em primer lugar, las leys a título de convenios públicamente sancionados pero que em todo momento podrían cambiarse legitimamente; persiguiendo, em segundo lugar, sus propios intereses sin atender a aspectos éticos y, em tercer lugar, tomando, de acuerdo com tal orientación conforme los propios intereses, las decisones óptimas em el marco de las leys vigentes (es decir, teniendo también en cuenta las consecuencias jurídicas previsibles).” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidade de la acción y racionalización social, 2003, p. 337.
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primeira vez a idéia de que todas as normas jurídicas são, em princípio, suscetíveis de crítica e
que, por isso, devem ser justificadas.”374
O direito moderno aponta para uma separação entre moralidade e legalidade, em
decorrência disso, o direito necessita de uma justificação prático-moral, conforme acentua
Habermas: “A separação entre moralidade e legalidade que ocorre com o direito moderno traz
consigo o problema que agora é do âmbito da legalidade em seu conjunto e necessita de uma
justificação prática. A esfera do direito que é, moralmente neutro, mas exige dos sujeitos a
disponibilidade de obedecer a lei, remete a uma moral baseada, por sua vez, em princípio.”375
Segundo Habermas, Weber afirma que, com a modernidade, rompeu-se com a unidade
do verdadeiro, do perfeito e do bom que anteriormente era assegurada pelas formas religiosas
e metafísicas. Em decorrência disso, o politeísmo acabou gerando uma pluralidade de
pretensões nas diferentes esferas de valor (mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo),
o que levou à perda da unidade substancial da razão. Essa unidade, segundo Weber, só pode
ser garantida por meio de uma racionalidade instrumental e que seria orientada a fins. A
crítica formulada por Habermas a Weber é que este entabula uma confusão entre “conteúdos
particulares de valor” e “critérios universais de valor.”376 Nessa linha de idéias, Chamon
Júnior assevera: “[...] mas, como acertadamente argumenta Habermas, a pluralidade, o
pluralismo de ‘matérias de valor’, não tem a ver com as diferentes perspectivas ligadas ao
aspecto da validade que, assim sendo, poderiam, diferenciadamente, garantir um juízo acerca
da racionalidade das pretensões verificadas mais tarde, qual seja, a tensão entre facticidade e
validade.”377
Segundo Mattos, “Weber teria confundido a necessidade de fundamentação enquanto
pressuposto do direito com a implementação de valores materiais subjetivos. Por isso, ele faz
uma defesa do direito formalizado e independente de valores materiais.”378
374 “[...] Es aqui donde surgen por primera vez la idea de que todas las normas jurídicas son em principio susceptibles de crítica y de que, por lo mismo, es menester justificarlas.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidade de la acción y racionalización social, 2003, p. 337-338. 375 “La separación que com el derecho moderno se opera entre moralidad y legalidad trae consigo el problema de que ahora es el âmbito de la legalidad em su conjunto el que há menester de uma justificación práctica. La esfera del derecho, moralmente neutral, pero que la vez exige de los sujetos la disponiblidad a obedecer la ley, remite a uma moral basa, por sua parte, em principios.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidade de la acción y racionalización social, 2003, p. 338. 376 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 323-324. 377 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005. p. 196. 378 MATTOS, Patrícia Castro. As visões de Weber e Habermas sobre direito e política. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 118.
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Ao contrário de Weber, Habermas acentua uma complementaridade entre direito e
moral. Ao investigar as posições de Weber e Habermas sobre direito e política, Mattos
acentua: “[...] para Habermas, Weber desprezou totalmente o núcleo moral do direito, ao
confundir preferência por valores com validade normativa, isto é, com o dever-ser de normas
com o valor universal resultantes do processo democrático de formação da vontade e da
opinião.”379
Somente na obra Direito e democracia: entre facticidade e validade (1992), Habermas
revisita a relação entre direito e moral propugnada por ele na obra Teoria da ação
comunicativa (1981). Além disso, Habermas percebe a importância do direito na
estabilização da linguagem. Sobre o tema, Almeida aponta:
Somente mais tarde Habermas, após a crítica dos neo-estruturalistas, rejeitando a idéia de uma norma de ação comunicativa inerente à própria fala e capacitada a conduzir os participantes ao consenso, percebe a imprescindibilidade do direito para a estabilização da linguagem na esfera pública e articula a teoria discursiva do direito fundada na normatividade mediata da razão comunicativa, rompendo com a maneira anterior de conceber a relação entre moralidade e direito. Nesta concepção madura, Habermas elucida que a moral pós-metafísica decorre de um procedimento argumentativo e não do imediatismo prescritivo da linguagem e que, por isso a relação entre Moral e Direito é de co-originariedade, ou seja, de simultaneidade na origem e de complementaridade recíproca no modo de proceder.380
Nessa fase, Habermas evidencia que a institucionalização do princípio do discurso
ocorre por meio do Direito. Porém, ele ainda não deixou claro que é o processo, como
instituição jurídica que possibilita essa institucionalização. Nessa linha de idéias, Leal
esclarece que a teoria do discurso não pode valer-se apenas de uma linguagem interativa:
É preciso que se associe à teoria do princípio do discurso uma teoria da procedimentalidade democrática (neo-institucionalista) para que se promova a compreensão do que signifique “institucionalização jurídica” em Habermas, porque só numa concepção de processualidade neo-institucionalizante é que se supriria a racionalidade inconclusa das proposições de direitos fundamentais já constitucionalizadas para realização de uma integração social pelo direito-de-ação irrestrito e incondicionado, uma vez que em não sendo o processo um modelo de controle de juridicidade pela jurisdição dos juízes, como querem os constitucionalistas neo-positivistas, o processo assume a qualidade de instituição de pós-modernização (saneadora da modernidade) em paradigma teórico de plebiscitarização processual incessante (direito-de-ação irrestrito e incondicionado) com a conseqüente abertura jurídica de total auto-revisibilidade discursiva (devido processo constitucional) que legitima o ordenamento legal na democracia.381 (grifos do autor)
379 MATTOS, Patrícia Castro. As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 118. 380 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 26-27. 381 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 173.
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Apesar de a relação entre direito e moral ser um tema relevante, quando se investiga a
legitimidade do direito, Habermas não conseguiu deixar claro na obra Teoria da ação
comunicativa os limites dessa relação, bem como não explicou o que seria o Direito, como
caso especial da Moral382 nos moldes propostos por Alexy383. Esses esclarecimentos foram
prestados por Habermas no texto Direito e Moral (Tanner Lecture 1986), situado no
apêndice da obra “Direito e moral: entre facticidade e validade” (1992). Apesar de datado de
1986, esse texto foi publicado em inglês em 1988, mesmo ano em que Günther384 publicou
sua obra, Der Sinn für Angemessenheit. Anwendungsdiskure in moral recht, que apontava
para uma compreensão do direito como caso especial de moral.385
Chamon Júnior, ao reconstruir o pensamento de Habermas sobre o direito, enfatiza
que, apesar de a relação entre moral e direito desempenhar papel importante para o direito,
Habermas não aprofundou essa matéria na Teoria da ação comunicativa e, em especial, ele
não deixou claro o que seria o Direito como um caso especial de argumentação moral. Na
realidade, isso significa que “[...] a argumentação jurídica se desenvolve enquanto mera forma
especial de argumentação moral e dos discursos morais.”386 Naquela época, esse
entendimento se tornava mais difícil, uma vez que Günther387 ainda não havia traçado uma
distinção entre discurso de aplicação e de justificação:
Na medida em que não havia cunhado a distinção entre discurso de aplicação (GÜNTHER), tal afirmação se mostrava ainda mais complicada na medida em que o limite entre Moral e Direito não se fez claro na Theorie dês Kommunikativen Handels – o que não impediu, todavia, o próprio GÜNTHER de tender à compreensão do Direito como caso especial da Moral.
382 “[...] Mientras tanto R. Alexy (1978), 263 ss., me há convencido de que las argumentaciones jurídicas, em todas sus acuñaciones institucionales, han de entenderse como um caso especial de discurso práctico.” HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social, 2003, p. 60. 383 “Acima afirmamos a tese de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Isso aconteceu com base em: (1) as discussões jurídicas se preocupam com questões práticas, isto é, com o que deve ou não ser feito ou deixado de fazer e (2) essas questões são discutidas com a exigência de correção. É questão de ‘caso especial’ porque as discussões jurídicas (3) acontecem sob limites do tipo descrito.” ALEXY, Roberto. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 212. 384 GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriatness: application discourses in morality and law. Translated by John Farell. Albany, NY: State University Press, 1993. 385 Sobre a tese do caso especial, Cattoni de Oliveira enfatiza que essa tese aponta para uma subordinação do direito à moral, motivo pelo qual ela deve ser rejeitada. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 71. 386 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 203. 387 Sobre o tema consultar: GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriatness: application discourses in moralitty and law, 1993.
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Mas é interessante perceber que nem o próprio HABERMAS leva a sério esta sua afirmação de que o discurso jurídico seria um caso especial do discurso moral. O princípio da ética do discurso não está, sequer, sendo tomado a sério em termos morais, equivale dizer, perante determinadas situações jurídicas delineadas, e referir-se a um discurso jurídico como ‘especial’ de um discurso moral se mostra impreciso no tocante a questão referente, por exemplo, ao Direito como meio.388
Ao diferenciar os discursos de aplicação jurídico-normativa dos discursos de
justificação a partir de Günther389, Cattoni de Oliveira esclarece que: “[...] os discursos de
justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas e se desenvolvem com o
aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e
pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo
estruturado constitucionalmente.”390 Por outro lado, os discursos de aplicação dizem respeito
à adequabilidade das normas válidas a um caso concreto.391
Carvalho Netto, embasado em Günther, também analisa a diferença entre os discursos
de aplicação e justificação; segundo aquele autor, enquanto o primeiro discurso é regido pelos
requisitos da universalidade e da abstração, o segundo tem como requisito a especificidade do
caso concreto. A aplicação da norma ao caso concreto é uma situação complexa, haja vista
que o juiz deve ser capaz de tomar uma decisão de conformidade com o Direito vigente e com
a reconstrução fática dos afetados pelo provimento:
A imparcialidade aqui, ressalta Günther, se traduz na capacidade de o juiz levar em conta a reconstrução fática de todos os afetados pelo provimento e, desse modo, fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto pluralidade de normas que concorrem entre si para reger situações, se faça presente, buscando então qual a norma que mais se adapta à situação; qual a norma que, em face das peculiaridades
388 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 203-204. 389 “In appropriatness argumentation, the moral validity of norms is simply pressuposed and recognized as ‘given’; in justification discourses, it is suspended and can thus be contested and relativized at any time. This validity no longer determines the manner of norm’s application, that is, its relation to other valid norms in a situation. That is why the coherence of valid norms belonging to a form of life cannot be determined independently of the concrete situation.” GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriatness: application discourses in moralitty and law, 1993, p. 244. 390 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 63, 391 Sobre a diferença entre discurso de aplicação e justificação, Galuppo destaca “The difference between the context of application and the context of justification demands that the applicator consider that the legal norms, or at lest legal principles, including constitutional principles, determine almost everything, except their own application this is, under which practical circumstances they are applied. According with the hermeneutical configuration of Law, this can only be done by case.” GALUPPO, Marcelo Campos. Constitucional hermeneutics and pluralism. Separata de: Pluralism and law: proceeding of the 20 the IVR. World Congress, Amsterdam, 2001. Edited by Arend Soeteman. Volume 2: State, Nation, Comunity, Civil Society, p. 135.
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específicas daquele caso visto como um hard case, promove justiça para as partes, sem deixar resíduos de injustiças decorrentes da cegueira à situação de aplicação.392
Apesar da contribuição de Günther no estudo do direito e da moral, Cattoni de
Oliveira destaca que a argumentação jurídica da adequabilidade não pode ser estudada como
um caso especial da argumentação moral, nos moldes propugnados por Günther, uma vez que
nessa concepção há a subordinação do direito à moral. Essa reconstrução deve ser realizada
com base no Direito Processual, que possibilita a escolha das normas válidas que devem ser
aplicadas no caso concreto. Ademais, a legitimidade das decisões fundamenta-se nas garantias
processuais atribuídas às partes e não apenas na atuação do juiz. Desse modo, a
adequabilidade deve ser obtida através do processo jurisdicional.
[...] a tese do caso especial, num sentido ou no outro, pudesse parecer plausível de um ponto de vista heurístico, a questão é que ela sugere uma subordinação do Direito à Moralidade, que, para uma perspectiva pós-metafísica, é desencaminhante. [...] A tese do caso especial deve ser descartada tão logo se pense na distinção entre Direito e Moralidade que ocorre num nível pós-convencional de justificação. O princípio do discurso, como mostra Habermas, concretiza-se, entre outras formas, nos princípios da moralidade e da democracia, à luz de diferentes tipos de normas de ação. Enquanto o princípio da moralidade regula as relações interpessoais, consistindo-se numa ‘regra de argumentação’, o princípio da democracia regula as relações, num nível institucional, entre sujeitos jurídicos que se reconhecem como titulares de direitos.393
Maciel também destaca que o direito não pode ser analisado como um caso especial de
moral:
Resumindo, o direito não é um caso especial de argumentação moral, porque o próprio direito traça procedimentos argumentativos, os quais asseguram os pressupostos comunicativos que determinam a criação, interpretação e aplicação legítimas do direito vigente. Logo, a referência à moral, como uma espécie de supra-direito, é desnecessária. Tanto os discursos jurídicos de justificação, quanto os de aplicação são regulados juridicamente.394
392 CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 40. 393 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 71-72. 394 MACIEL, Gabriel de Deus. Teoria do processo e legitimidade decisória: discurso de aplicação e argumentação de adequabilidade no direito democrático, 2006, p. 67.
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Nessa linha de idéias, Leal assevera que, apesar de Günther395, Alexy396, Dworkin397 e
Rawls398 buscarem estudar a legitimidade do direito, esses autores não colocam no centro de
suas reflexões o processo jurídico:
Assim, nem Günther, Habermas, Alexy, Dworkin ou Rawls apresentam expressamente, em suas discussões, o tópico da legitimidade de criação e aplicação do direito pelos marcos formais do PROCESSO CONSTITUCIONAL (due process of law), porquanto, no sistema de civil law em que a conduta só tem validade, eficácia e legitimidade pela dotação normativa da lei, não querer colocar em situações antagônicas as esferas de justificação e aplicação normativa, como se aquela fosse a vontade do legislador e esta a vontade do juiz, com exclusão da articulação argumentativa das partes (indivíduos, pessoas) que se faz pela estrutura procedimental constitucionalmente processualizada concretizadora do due process. O devido processo, como direito-garantia constitucional, rompe com o conceito privatístico de direito subjetivo pela fidúcia (confiança recíproca – trust) em que o Estado-juiz é o depositário público da confiança da Sociedade Civil para resolver litígios e garantir uma suposta paz social.399 (grifos do autor)
Habermas inicia sua aula sobre a possibilidade de a legitimidade se concretizar através
da legalidade, resgatando a teoria weberiana sobre a racionalidade do direito. Segundo o
autor, Weber “[...] interpreta as ordens estatais das sociedades ocidentais modernas como
desdobramentos da ‘dominação legal’, porque sua legitimidade depende da fé na legalidade
do exercício do poder. Segundo ele, a dominação adquire um caráter racional.”400 Na
concepção weberiana, existe uma diferença entre a fé na legalidade das ordens escritas e a fé
na tradição ou no carisma; essa concepção levou a inúmeros debates.
Durante esses debates, na concepção de Habermas, Weber formulou um conceito
positivista de direito401, ou seja, “[...] direito é aquilo que o legislador, democraticamente
legitimado ou não, estabelece como direito, seguindo um processo institucionalizado
395 GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriatness: application discourses in moralitty and law, 1993. 396 ALEXY, Roberto. Teoria da argumentação jurídica, 2001. 397 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 398 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pissetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Ver também RAWLS, John. Liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. 399 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e Hermenêutica constitucional a partir do Estado Democrático de Direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 90. 400 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 193. 401 O positivismo jurídico relaciona-se ao direito positivo em contraposição ao direito natural. Bobbio aponta seis critérios de distinção entre o direito natural e positivo: o direito natural vale para todos e em todos lugares, é imutável, sua fonte é a natureza, é conhecido por meio da razão, os comportamentos regulados por esse direito são bons ou maus por si mesmos e o direito natural estabelece o que é bom. Enquanto que o direito positivo é válido em apenas alguns lugares (particularidade), muda no tempo (mutabilidade), é posto pelo homem, é conhecido por meio de uma declaração de vontade, os comportamentos regulados por ele são indiferentes (justo é o que é ordenado) e o direito positivo estabelece o que é útil. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995, p. 22-23.
116
juridicamente.”402 Assim, segundo Weber, a racionalidade relaciona-se ao caráter formal do
direito, ou seja, só existe em decorrência da observância dos procedimentos jurídicos, não
dependendo da moral.
Desse modo, Weber elaborou um conceito positivista de legitimidade. Por sua vez,
Kelsen, embasado em Weber, relaciona a legitimidade do direito ao atendimento dos
requisitos formais na sua elaboração. Kelsen objetiva construir uma teoria pura do direito.
Assim, com o intuito de alcançar esse desiderato, ele desvincula a validade do direito dos
conteúdos divinos, políticos, éticos ou morais. Habermas, por sua vez, critica a concepção de
legitimidade de Weber e Kelsen e acentua o entrelaçamento entre direito, moral e política. Ao
tratar do fundamento de legitimidade de validade de uma ordem jurídica, Kelsen afirma:
O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico. Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta [...] As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação. São normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva.403
Hart404, por sua vez, no estudo da legitimidade do direito, substitui a norma
fundamental de Kelsen pela regra de reconhecimento. Na concepção de Hart, os fundamentos
do direito relacionam-se na atribuição de autoridade a pessoas e grupos específicos para criar
leis. Sobre o tema, André Leal destaca:
A regra de reconhecimento, seria, assim, uma norma auto-evidente e, portanto, não justificável. Não obstante ser substitutiva da norma fundamental kelsiana, levaria a semelhantes desdobramentos. Levaria à conclusão de que o Direito fundar-se-ia, em
402 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 193. 403 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1988, p. 221. 404 “Segundo teoria criticada no Capítulo IV, os fundamentos de um sistema jurídico consistem na situação em que a maioria de um grupo social obedece habitualmente às ordens baseadas em ameaças da pessoa ou pessoas soberanas, as quais não obedecem elas próprias habitualmente a ninguém [...] Apresentamos, já com algum pormenor, a incapacidade de tal teoria para explicar alguns aspectos mais salientes de um moderno sistema jurídico interno: contudo, e apesar disso, contém realmente, embora de uma forma confusa e equívoca, algumas verdades acerca de certos aspectos importantes do direito [...] Essas verdades, porém, só podem ser claramente apresentadas, e sua importância correctamente avaliada, nos termos de uma situação social mais complexa, em que uma regra secundária de reconhecimento seja aceita e utilizada para a identificação das regras primárias de obrigação. É esta situação que merece, admitindo que algum o mereça, ser designado, como fundamento de um sistema jurídico.” HART, Hebert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Meireles. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 111.
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última instância, na atribuição coletiva de autoridade a determinados indivíduos ou grupos para criar a lei.405
André Leal adverte que a legitimidade do direito não é obtida pelo mero procedimento
formal, como querem Weber, Kelsen e Hart. O autor esclarece que o processo, como
instituição constitucionalizada, possui papel preponderante na consecução tanto da
legitimidade do direito quanto na legitimidade das decisões judiciais: “[...] é de se ver, no
entanto, que a legitimidade do Direito, no paradigma do Estado Democrático, não se alcança
mediante a simples inserção, nas normas jurídicas, de conteúdos que se pretendam
universalmente válidos, ainda que tal se realize pelas autoridades dotadas de competência
legislativa.”406
Ao investigar a concepção de legitimidade weberiana, Habermas esclarece que, para
Weber, “[...] a confusão entre moral e direito, pode, inclusive, colocar em risco a
racionalidade do direito e, com isso, o fundamento da legitimidade da dominação legal.”407
Desse modo, Weber constrói um conceito positivista de legitimidade. Cella, ao estudar as
críticas empreendidas por Habermas a Weber, aponta que:
Com isso Weber desloca o problema da legitimidade do direito positivo para a questão do procedimento pelo qual o direito é produzido e modificado. É o procedimento formal concreto que vai permitir uma identificação do que é ou não legal, e, por sua vez, é a crença naquilo identificado como legal que residirá a legitimidade desse tipo de dominação. Portanto, em última análise, a pedra fundamental da legitimidade do edifício jurídico muda, no pensamento weberiano, passa a ser a crença em um determinado procedimento que permite a identificação do direito.408
Desse modo, na concepção habermasiana, Weber apenas desloca o problema da
legitimidade para o procedimento e isso não resolve o problema. Nesse aspecto, Cella aponta:
“[...] persiste, então, a indagação do que confere a legitimidade ao procedimento legitimador
405 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 50. 406 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 46. 407 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 193-194. 408 CELLA, José Renato Graziero. A crítica de Habermas à idéia de legitimidade em Weber e Kelsen. Paper apresentado no XXII Congresso Mundial de Filosofia Del Derecho y Filosofia Social realizado em Granada-Espanha, 24-20 maio 2005. Disponível em: <http://www.cella.com.br/root/programs/habermas-IVR-01.pdf //>. Acesso em 17/02/2007, p. 8.
118
com que se depara Habermas, ao pretender analisar o problema da legitimidade do direito
moderno.”409
Wolkmer, ao analisar a distinção entre legitimidade e legalidade410, enfatiza a
necessidade de superar a tradição jurídico-formalista que reduz a legitimidade à legalidade e
aponta a necessidade da construção de uma legitimidade democrática:
[...] Trata-se de romper com a lógica dominante de que o processo de legitimação do poder estatal se identifica necessariamente com o processo de legalização do exercício do poder. É uma nova legitimidade enquanto expressão de vontade e do justo reconhecimento da comunidade que determina e fundamenta em definitivo os horizontes de uma nova legalidade institucionalizada.
Enfim, a construção crítica de uma legitimidade democrática que venha fundamentar o Poder político e o Direito justo tem seu ponto de referência deslocado da antiga lógica de legitimação, calcada na legalidade técnico-formal para uma legitimidade “instituinte”, formada no justo consenso da comunidade e num sistema de valores aceitos e compartilhados por todos. Não se trata mais de reduzir o conceito de legitimidade ao aspecto simplesmente jurídico, ou seja, a estrita vinculação com a validade e a eficácia enquanto produção de efeitos normativos. Numa cultura jurídica pluralista, democrática e participativa, a legitimidade não se funda na legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais instituintes e das necessidades reconhecidas como “reais”, “justas” e “éticas.”411
De acordo com Habermas, a materialização do direito formal burguês equipara-se ao
processo de juridificação do Estado Social. Tal fato decorre não apenas de um aumento das
prescrições jurídicas, mas também da necessidade de um Estado ativo. Assim, “[...] o próprio
Weber chamara a atenção para o direito regulador do Estado social. Esse direito é
instrumentalizado para as tarefas estruturadoras de um legislador que pretende preencher as
exigências de justiça social, lançando mão de compensações, de regulamentações
estabilizadoras e de intervenções transformadoras.412
Habermas esclarece que, na concepção weberiana,
409 CELLA, José Renato Graziero. A crítica de Habermas à idéia de legitimidade em Weber e Kelsen, 2005, p. 14. 410 “Legalidade compreende uma qualidade do exercício do poder. Trata-se de uma conceituação exclusivamente jurídica, cuja condição técnico-formal é essencial para a existência do próprio Direito, revelando-se estruturalmente dogmática, porquanto sua autoridade está em conformidade com um texto legal positivo [...] Legitimidade entende-se como uma qualidade do título de poder. Implica uma noção substantiva e ético-política, cuja existencialidade move-se no espaço de crenças, convicções e princípios valorativos. Sua força não repousa nas normas e nos integrantes majoritários de uma dada organização social.” WOLKMER, Antônio Carlos. Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária. Revista de informação legislativa, Brasília, a. 31, n. 124, p. 179-184, out./dez., 1994. 411 WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 92. 412 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 195.
119
[...] as demandas por justiça ‘material’, ao serem introduzidas no medium do direito, destroem sua ‘racionalidade formal’. Weber comprova sua tese, utilizando principalmente exemplos do direito liberal privado, cuja função era garantir, através de leis públicas, abstratas e gerais, a vida, a liberdade e a propriedade dos sujeitos que celebram acordos.413
Visando à manutenção do formalismo do direito, os especialistas preocupam-se com
os seguintes aspectos: a estruturação sistemática das proposições jurídicas permite que as
normas vigentes se tornem controladas; a forma geral e abstrata da lei atribui ao sistema uma
estrutura uniforme; e garante-se uma aplicação conforme o processo, através da vinculação da
justiça e da administração à lei. A partir dessas considerações, torna-se possível entender que,
com o surgimento do Estado Social, houve desvios em relação a esse modelo liberal do direito
formal414. Por conseguinte, pode-se falar em uma materialização do direito.
Na concepção habermasiana sobre a materialização do direito a partir de uma visão
crítica, Weber esclareceu:
[...] a) a racionalidade do direito está fundamentada nas suas qualidades formais; b) a materialização configura uma moralização do direito, isto é, a introdução de pontos de vista da justiça material no direito positivo. Disso resultou a afirmação crítica, segundo a qual o estabelecimento de um nexo interno entre direito e moral destrói a racionalidade que habita no medium do direito enquanto tal.415
Desse modo, para Weber, a racionalidade do direito é destruída com o estabelecimento
de um nexo entre o direito e a moral. Tal afirmação pressupõe que as qualidades formais do
direito são racionais, “[...] num sentido rigorosamente neutro do ponto de vista moral.”416
Habermas passa a analisar os três significados que Weber atribui ao termo racional,
quais sejam: a racionalidade de regras, a racionalidade de fins e a racionalidade científica dos
especialistas.
Quanto à racionalidade de regras, Habermas esclarece que “[...] parte de um conceito
amplo de técnica de oração, de pintura, de educação etc., a fim de mostrar que aquilo que em
geral segue uma regra é importante para uma racionalidade do agir.”417 Ainda sobre esse tipo
de racionalidade, o autor destaca que, quando essas regras são gerais, elas acabam por assumir
o significado de racionalidade instrumental.
413 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 195. 414 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 195-6. 415 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 197. 416 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 197. 417 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 197.
120
A racionalidade de fins é aquela que não se relaciona à aplicação de meios, mas diz
respeito à seleção de fins. Sobre o tema, Habermas enfatiza:
[...] em segundo lugar, Weber fala em racionalidade de fins, quando não se trata mais da aplicação regulada de meios, mas da seleção de fins, tendo em vista valores dados preliminarmente. Sob este aspecto, uma ação pode ser racional na medida em que não for comandada por afetos cegos ou por tradições nativas. Para Weber, as orientações valorativas são preferências dotadas de conteúdo, que se orientam para valores materiais, precedendo as decisões de sujeitos que agem em termos de racionalidade finalística.418
E, por fim, a racionalidade científica relaciona-se com os resultados do trabalho
intelectual dos especialistas, “[...] os quais enfrentam analiticamente os sistemas simbólicos
tradicionais, tais como, por exemplo, as cosmovisões religiosas, as idéias morais e jurídicas.
Tais realizações doutrinárias são expressões de um pensamento científico-metódico, que
tornam o saber ensinável mais complexo e específico.”419
Com base nas racionalidades acima estudadas, a partir de uma concepção weberiana,
poder-se-ia dizer que a racionalidade do direito burguês derivaria de três tipos de qualidades
formais, uma vez que a estruturação do direito dependeria:
a) da racionalidade científica de especialistas; b) de leis públicas, abstratas e gerais que asseguram espaços de autonomia privada para a busca racional _ em termos de fins _ de interesses subjetivos; c) da institucionalização de processos para o emprego estrito e implementação dessas leis, possibilitando a ligação, conforme as regras, portanto calculável, entre ações fatos e conseqüências jurídicas, especialmente nos negócios organizados no âmbito do direito privado.420
Habermas, todavia, destaca que não tem “[...] certeza se esses aspectos da
racionalidade são realmente capazes de conferir força legitimadora à legalidade de um poder
exercido conforme o direito.”421 Para Habermas, a legitimidade do direito formal burguês não
resultaria das características racionais, mas de implicações morais “[...] que podem ser
inferidas dessas características com o auxílio de outras proposições empíricas que traduzem a
estrutura e a função da ordem econômica.”422
Com o objetivo de demonstrar que a teoria weberiana - afirmadora de que a
racionalidade só existe em decorrência do caráter formal do direito - é insubsistente,
418 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 197. 419 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 198. 420 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 198. 421 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 198. 422 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 198.
121
Habermas faz uma releitura das qualidades formais do direito. A primeira qualidade teria
como escopo a segurança jurídica, alcançada através de leis gerais e abstratas. Entretanto,
Habermas destaca que “[...] é preciso considerar que a segurança jurídica, no sentido de que é
possível prognosticar intervenções na vida, liberdade e propriedade, constitui um valor que
concorre com outros valores.”423 Em caso de conflitos desses valores, “[...] as colisões têm
que ser decididas sob o ponto de vista moral da possibilidade de universalização de
interesses.”424
Com relação à segunda qualidade formal, a lei geral e abstrata não legitima um poder,
somente pelo fato de que ele preenche “[...] certas exigências funcionais para a busca
autônoma, privada e racional, de interesses próprios.”425
Habermas apresenta um ponto de vista diferenciado, uma vez que, para ele, a lei geral
e abstrata só pode ser justificada como racional a partir de princípios que possuem um
conteúdo moral:
[...] no entanto, programas de leis, dirigidos por regras, têm uma vantagem real face a programa de fins, pois a generalidade semântica os aproxima da igualdade perante a lei. E, devido a seu caráter abstrato, e na medida em que os fatos regulados são gerais e não tocados em seu conteúdo essencial pelos contextos cambiantes, eles chegam a corresponder ao princípio mais amplo, segundo o qual aquilo que é igual tem que ser tratado de modo igual e o que é diferente tem que ser tratado de modo diferente. Constatamos, pois, contra a argumentação funcionalista de Weber, que a forma de leis gerais e abstratas só pode ser justificada como racional à luz desses princípios que possuem um conteúdo moral.426 (grifos do autor)
Chamon Júnior esclarece que Habermas submete os critérios weberianos acerca da
racionalidade do direito à prova e acaba por demonstrar que esses critérios são falsos. No que
diz respeito às leis gerais e abstratas, ele enfatiza que, enquanto Weber atribui a essas leis um
enfoque funcionalista, Habermas, por sua vez, aponta que, a partir desse atributo
funcionalista, deve-se apresentar uma justificação moral:
[...] Enquanto Weber concede às mesmas o caráter de racionalidade em termos funcionalistas, enfim, pelo fato de criar um espaço privado – autonomia privada – para a busca racional com vistas a fins na medida do interesse subjetivo de cada, HABERMAS entende que deste enfoque funcionalista devemos aceder a uma visão moral: não é a funcionalidade, mas o fato de que as leis, por serem abstratas e gerais, permitem o respeito ao princípio da igualdade na medida em que, no marco da generalidade e abstração, os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais,
423 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 199. 424 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 199. 425 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 199. 426 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 199.
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desigualmente – sem que isto implique que somente leis gerais e abstratas, mas também diplomas cortados pelo contexto, possam satisfazer a igualdade. De uma perspectiva funcional (Weber) apresentada está uma justificação em termos morais – na medida em que HABERMAS eleva a igualdade, implicitamente, a uma questão minimamente moral.427
Quanto à terceira qualidade, qual seja a construção científica e metódica do direito,
essa também não é capaz “[...] de explicar a eficácia legitimadora da legalidade. Por maior
que seja a autoridade reclamada pelas ciências na sociedade moderna, as normas do direito
não se tornam legítimas a partir do momento em que os seus significados e conceitos são
explicitados.”428 Na realidade, os trabalhos científicos contribuem para a legitimação quando
ajudam na fundamentação; isso ocorre quando o direito se transforma em direito positivo.
Para Chamon Júnior, a legitimidade é esclarecida pelos especialistas do direito e não
conferida por eles. Nessa linha de idéias, Chamon Júnior assevera:
[...] enfim, os especialistas através da busca de uma sistematização é que possibilitariam, em um momento pós-tradicional, esclarecer a legitimidade, mas não conferi-la. Isto porque, para Habermas, as normas jurídicas devem ser fundamentadas como integrantes de uma ordem jurídica que, em conjunto, possa ser considerada convicente desde princípios morais, sendo que, todavia, tais princípios podem entrar em colisão – quando devem ser submetidos, portanto, a um exame discursivo. Tal racionalidade do direito, explicita HABERMAS, não se trata de uma racionalidade científica, mas de uma então “racionalidade que não é moralmente neutra.”429 (grifos do autor)
Habermas esclarece que, tendo em vista o fato de as normas terem perdido sua
validade consuetudinária, elas devem ser justificadas através de princípios. Esses, por sua vez,
também “[...] podem colidir entre si, estando expostos a um exame discursivo. Entretanto,
neste nível de discussão normativa, reaparece uma racionalidade que se aproxima mais da
razão prática de Kant do que de uma racionalidade científica – a qual também não é neutra
moralmente.”430
Assim, segundo Habermas, as qualidades formais do direito, analisadas por Weber, só
poderiam legitimar a legalidade se comprovadas como racionais, num sentido prático-moral.
Porém, para Weber, as idéias morais eram orientações valorativas subjetivas, não racionais e
incompatíveis com o caráter formal do direito. Sobre essa concepção weberiana, relacionada
aos valores, Habermas esclarece: “[...] ele não fez distinção entre valores que, no interior de
427 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 209-210. 428 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 200. 429 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 210. 430 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 200.
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determinadas tradições e formas culturais de vida, se recomendam como mais importantes que
outros valores, e a validade deontológica de normas que obrigam indistintamente todos os
destinatários.”431
Ao contrário de Weber, Habermas deixa claro que existe uma relação entre direito e
moral, e destaca que os limites entre direito e moral não podem ser estabelecidos apenas com
suporte nos conceitos formal e material: “[...] as considerações que tecemos levam, ao invés
disso, à conclusão de que a legitimidade da legalidade não pode ser explicada a partir de uma
racionalidade autônoma inserida na forma jurídica isenta de moral; ela resulta, ao invés disso,
de uma relação interna entre o direito e a moral.”432
A partir dessa afirmação de Habermas de que a legitimidade do direito deriva da
relação interna entre direito e moral, percebe-se que Habermas começa a mudar sua
concepção propugnada na Teoria da ação comunicativa, de que para a legitimidade do
direito não havia a necessidade de uma justificação material, sendo necessária apenas uma
correção procedimental. Nessa linha de idéias, Chamon Júnior enfatiza que Habermas não
mais defende a distinção de direito como meio e como instituição:
Habermas passa aqui a construir uma noção que, agora sim, permitiria entender as argumentações jurídicas como argumentações especiais da moral. Mesmo uma lei de ‘Direito Comercial’ poderia agora ser enfocada, em sua ‘generalização’ e ‘abstração’ perante um princípio ‘moral’ – igualdade – e não deixado fora de ancoragem do mundo da vida. A mudança de postura de HABERMAS, motivo, talvez, pelo qual não mais sustenta explicitamente a dicotomia meio/instituição, pode ser sentida com a mera afirmação de que a própria generalidade e abstração há que ser justificada moralmente e não funcionalmente.433 (grifos do autor)
O conceito de processo institucionalizado juridicamente é um tema central nos
modernos sistemas jurídicos. Porém, Habermas, fundamentado em Hart434, adverte que esse
conceito não pode ser confundido como uma forma especial do direito: “H.L.A. Hart e outros
mostraram que sistemas modernos contêm não apenas normas diretas de comportamento e de
castigo, mas também normas secundárias de organização e de autorização que servem para
institucionalizar processos da legislação, da jurisdição e da administração. Deste modo, a
própria produção de normas é submetida a outras normas.”435
431 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 201. 432 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 202. 433 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 212. 434 HART, Hebert L. A. O conceito de direito, 1994. 435 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 202.
124
Ainda, esses processos exigem que as decisões sejam fundamentadas através de
discursos jurídicos, que não se baseiam em regras jurídicas fechadas, mas naquelas abertas
aos discursos morais:
[...] é preciso considerar que esses processos colocam as decisões sob a necessidade de uma fundamentação. Desta forma se institucionalizam discursos jurídicos que operam nos limites exteriores do processo jurídico e sob limitações internas da produção argumentativa de bons argumentos. As respectivas regras de argumentação não colocam a construção e a avaliação de argumentos na dependência do arbítrio dos envolvidos [...]. Finalmente, é preciso considerar que os discursos jurídicos, independentemente do modo como se ligam ao direito vigente, não podem mover-se num universo fechado de regras jurídicas univocamente fixadas. Isso é uma conseqüência da própria estratificação do direito moderno em regras e princípios. O direito constitucional revela que muitos desses princípios possuem uma dupla natureza: moral e jurídica. Os princípios morais do direito natural transformaram-se em direito positivo nos modernos Estados constitucionais. Por isso, a lógica da argumentação permite ver que os caminhos de fundamentação, institucionalizados através de processos jurídicos, continuam abertos aos discursos morais.436
Assim, segundo Habermas, se os processos institucionalizados juridicamente possuem
as qualidades formais do direito e se eles são abertos a discursos permeáveis a argumentações
morais: “[...] a legitimidade pode ser obtida através da legalidade na medida em que os
processos para a produção de normas jurídicas são racionais no sentido de uma razão prático-
moral procedimental.”437 Desse modo, a legitimidade obtida a partir da legalidade é resultante
do entrelaçamento entre processos jurídicos e uma argumentação moral que, por sua vez,
obedece à sua própria racionalidade procedimental.
Apesar de a legitimidade baseada na legalidade significar a desvinculação da religião e
da metafísica, fundamentada na racionalidade do direito, a concepção de Weber sobre a
separação entre moral e direito não ficou comprovada, conforme assevera Habermas:
[...] todavia, não se confirmou a opinião de Weber, segundo o qual uma racionalidade autônoma e isenta de moral, que habita no interior do direito, constitui o fundamento da força legitimadora da legalidade. Um poder exercido nas formas do direito positivo deve a sua legitimidade a um conteúdo moral implícito nas qualidades formais do direito.438
Nessa linha de idéias, Habermas assevera que a legitimação do direito fundamenta-se
em “[...] processos que institucionalizam o caminho para seu resgate argumentativo.”439 Essa
fundamentação não pode ser buscada apenas na legislação política ou na jurisdição. A política
436 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 203. 437 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 203. 438 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 214. 439 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v. 2, p. 214.
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não é capaz de regular a justiça e a administração com base na forma semântica da lei, sendo
necessário um direito regulador. Já nos processos jurídicos, é necessário analisar como a
imparcialidade da fundamentação de normas e da aplicação de normas obrigatórias “[...] cria
uma relação construtiva entre o direito vigente, os processos de legislação e os processos de
aplicação do direito. Essa idéia da imparcialidade forma o núcleo da razão prática.”440 Por sua
vez, a imparcialidade é desenvolvida sob o aspecto da fundamentação de normas nas teorias
da moral e da justiça, permitindo julgar as questões práticas do ponto de vista moral.
Habermas assevera que o fato de existirem candidatos que possuem interesse em
assumir uma teoria procedimentalista da justiça acaba por demonstrar que sua tese de que o
direito procedimentalista depende de uma fundamentação não é equivocada. O autor esclarece
que são três os interessados: John Rawls, Lawrence Kolberg e Karl-Otto Apel441. Cada um
deles toma um modelo diferente para explicar como ocorre o processo da formação imparcial
da vontade.
Segundo Habermas, Rawls “[...] continua adotando o modelo do acerto contratual e
insere, na descrição da posição original, as limitações normativas sob as quais o egoísmo
racional dos partidos livres e iguais escolhe os princípios corretos.”442
Kolberg utiliza-se do modelo de George Hebert Mead. Esse autor desenvolveu a teoria
da intersubjetividade, que concebia o self (sujeito) como sendo um produto das relações
sociais.443 Por conseguinte, “[...] exige do sujeito que julga moralmente que se coloque na
situação de todos os possíveis atingidos pela entrada em vigor de uma norma questionada.”444
Ao analisar os modelos adotados por Rawls e Kolberg, Habermas esclarece que esses
modelos não são adequados para explicitar a formação racional da vontade, uma vez que,
enquanto no modelo contratual de Rawl as idéias morais são consideradas como decisões
racionais livres, no modelo de assunção de papel de Mead, por sua vez adotado por Kolberg,
elas são consideradas como um ato de entendimento empático.
Conforme Habermas, nenhum desses modelos se utiliza dos juízos morais, motivo
pelo qual ele e Apel445 entendem que a própria argumentação deve ser utilizada para a
formação racional da vontade:
440 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v. 2, p. 212. 441 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Tradução de Benno Dischinger. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 442 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 215. 443 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: 34, 2003, p. 130. 444 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 215. 445 “Junto com a comunidade de comunicação real, no entanto, a justificação lógica de nosso pensamento também pressupõe o cumprimento de uma norma moral básica. Mentir, por exemplo, tornará certamente
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[...] Ora, o exame de pretensões de validade hipotéticas representa esse processo, pois todo aquele que deseja argumentar seriamente tem que entrar em contato com as suposições idealizadoras de uma forma de comunicação exigente. Todo aquele que se envolve numa prática de argumentação tem que pressupor pragmaticamente que, em princípio, todos os possíveis afetados poderiam participar, na condição de livres e iguais, de uma busca cooperativa da verdade, na qual a única coerção admitida é a do melhor argumento.446
Desse modo, para Habermas, a existência de candidatos com interesse em assumir a
teoria procedimentalista da justiça apresenta um vestígio de que sua tese de o direito
procedimentalista necessitar de uma fundamentação moral de princípios tem fundamento.
Assim, a legalidade produz legitimidade se os processos de decisão jurídica estiverem
susceptíveis a argumentos morais: “[...] a legalidade só pode produzir legitimidade, na medida
em que a ordem jurídica reagir à necessidade de fundamentação resultante da positivação do
direito, a saber, na medida em que forem institucionalizados processos de decisão jurídica
permeáveis a discursos morais.”447
Para Habermas, o questionar acerca da legitimidade da legalidade acabou por destacar
o tema do direito e da moral. Para esse autor, interessa não apenas a relação complementar
entre moral e direito, mas o entrelaçamento entre direito e moral:
[...] a moral não paira mais sobre o direito, como era sugerido pela construção do direito racional, tido como uma série de normas suprapositivas: ela emigra para o direito positivo, sem perder sua identidade. No entanto, a moralidade, que não se contrapõe simplesmente ao direito, uma vez que se estabelece no próprio direito, é de natureza puramente procedimental; ela se despojou de todos os conteúdos normativos determinados, sublimando-se num processo de fundamentação e de aplicação de possíveis conteúdos normativos.448
Habermas explica que a legitimidade da racionalidade dos processos jurídicos ocorre
não apenas através das normas de procedimento da decisão judicial, mas também através do
processo de legislação democrática. André Leal enfatiza que a legitimidade do direito, em
Habermas, fundamenta-se em discursos racionais, e que a introdução de componentes morais
não precisa ocorrer após a elaboração legislativa, a partir do momento em que os destinatários
impossível o diálogo do argumentante; a mesma coisa vale também da recusa de compreensão crítica, e respectivamente, da explicação e justificação de argumentos. Em suma: na comunidade de argumentação se pressupõe o mútuo reconhecimento de todos os membros, como parceiros de discussão com direitos iguais.” APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, 1994, p. 120. 446 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v. 2, p. 212. 447 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v. 2, p. 216. 448 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 218.
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da norma participarem da elaboração do processo legislativo e demonstrarem quais elementos
morais devem ser introduzidos no Direito:
Assim, o Direito, em Habermas, não necessita de inserção de componentes morais ulteriores à sua criação legislativa. Se os pressupostos à sua criação e legitimação do Direito forem atendidos, o processo legislativo obteve êxito em oferecer um espaço adequado e livre de coerções, para que os destinatários das normas pudessem explicitar suas posições e expender os argumentos morais, éticos e pragmáticos que deveriam ser introduzidos no Direito.449
Para Del Negri, ao apontar que a complementaridade entre direito e moral ocorre por
meio do processo legislativo, Habermas coloca no centro de suas reflexões o processo. Porém,
essa abordagem não é exauriente, haja vista que não enfatiza o processo como instituição
jurídica:
Apesar de Habermas ter conseguido estabelecer uma profunda análise sobre a legitimação normativa adequada ao mundo contemporâneo e ao paradigma democrático, esse raciocínio leva à conclusão de que a sua abordagem procedimental com via de legitimação da validade do ordenamento jurídico não é teoricamente exauriente, já que deixa de abordar especificamente o processo como instituição regente da construção dos direitos fundamentais, limitando-se a afirmar que a institucionalização do princípio da democracia se faz pelo Direito.450
Sobre esse enfoque, Leal enfatiza a necessidade de uma teoria jurídica do processo
capaz de qualificar o discurso da procedimentalidade fundante do direito democrático:
Assim, a teoria da democracia em Habermas carece da principiologia jurídica da teoria do processo institucionalizador da possibilidade jurídica da racionalidade democrática, porque ao imaginar uma procedimentalidade como médium lingüístico-jurídico da passagem do princípio do discurso ao princípio da democracia, não se estabeleceu a índole dessa procedimentalidade neutra e canalizadora de argumentos que se conduziriam por uma razão estratégica centrada em estoques de historicidade jusracionalista pelos direitos humanos com abandono do médium discursivo auto-ilustrativo de sua própria construção jurídica.451 (grifos do autor)
Antes de abordar o estudo realizado por Habermas em Direito e democracia: entre
facticidade e validade, obra em que ocorre o rompimento da concepção acerca da legitimidade
do direito que ele desenvolveu na Teoria da ação comunicativa, bem como no texto Direito
449 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 74-75. 450 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 46. 451 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 178.
128
e moral (Tanner Lectures), faz-se necessário analisar o texto Os três modelos normativos,
no qual Habermas apresenta uma visão procedimentalista de democracia. Cattoni de Oliveira
enfatiza que a teoria habermasiana da democracia:
[...] visa a superar os modelos normativos de política deliberativa legados pelas tradições republicana e liberal. Isso será feito a partir da crítica ao que Habermas chama de “sobrecarga ética dos discursos políticos”, levada a cabo pelo republicanismo comunitarista. Num segundo momento, a partir do marco teorético-discursivo, buscará construir uma visão não conflitiva da relação entre autonomia pública e autonomia privada, e entre constitucionalismo e democracia, adequada a compreensão procedimentalista do Direito moderno e do Estado Democrático de Direito.452
Habermas analisa a consistência da fundamentação empirista proposta por Werner
Becker e conclui que essa fundamentação é insatisfatória, pois não é fundamentada
racionalmente. Assim, Habermas recusa a redução da legitimidade democrática do poder e do
direito ao conceito empírico de democracia. Desse modo, Habermas faz opção pelos modelos
normativos de democracia, uma vez que a legitimação é produzida pelos procedimentos
democráticos:
Podemos sintetizar o resultado de nossa análise, afirmando que os cidadãos racionais não teriam razões suficientes para manter as regras do jogo democrático, caso se limitassem a uma autodescrição empirista de suas práticas. Parece claro que uma teoria com pretensões de justificação não pode escamotear o sentido normativo genuíno da compreensão intuitiva da democracia. E, uma vez que o problema da relação entre norma e realidade não pode ser evitado pelo caminho das definições empiristas, temos que retornar aos modelos de democracia já introduzidos, os quais possuem um conteúdo normativo, para averiguar se as suas concepções implícitas de sociedade oferecem âncora para uma ciência social.453
Desse modo, na concepção empirista, a validade das normas é produzida a partir da
vontade de cada indivíduo, o que acaba por conduzir a aceitação da regra da maioria, uma vez
que cada vontade é soberana. Nessa linha de idéias, Habermas aponta que “[...] Becker
esclarece a aceitação da regra da maioria introduzindo a aceitação da luta pelo poder.”454
Nessa perspectiva, a democracia significa que uma parte (maioria) domina a outra (minoria).
Por outro lado, faz-se necessário explicar como as minorias estão protegidas da tirania da
maioria. Para isso, Becker “[...] recorre a liberdades fundamentais clássicas. Maiorias para
452 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da teoria discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito, p. 87-113, 2005. 453 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 18. 454 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 14.
129
garantir o interesse de minorias surgem do medo da respectiva maioria de tornar-se ela mesma
minoria.”455 Assim, de um lado temos a maioria motivada pelo medo de perder o seu poder e,
do outro lado, a perspectiva da minoria de ascender ao poder.
Para que ocorra a estabilização dessas forças é necessário um conjunto de meios
político-ideológicos e político-sociais. Mas isso não significa que a aceitação esteja
condicionada à mera luta ideológica de poder. Esse é o ponto crucial da crítica formulada por
Habermas à concepção empirista; isso significa que é importante produzir condições para
aceitação democrática dos objetivos perseguidos pelos partidos políticos. Nesse sentido,
Habermas adverte que “[...] os compromissos também têm de ser fundamentados e, por isso, é
necessário perguntar a seguir: o que fundamenta a aceitação?”456 Desse modo, as teorias
empíricas não possibilitam uma fundamentação racional e não passam de uma propaganda
ideológica, cujo objetivo é permitir a compreensão do Estado de direito do liberalismo. Por
isso, para proceder a uma fundamentação racional, faz-se necessário utilizar os modelos
normativos de democracia.
Inicialmente, Habermas procede a um estudo comparativo entre os dois modelos
normativos de democracia, duas respostas apresentadas pela modernidade e tipificadas de
forma ideal ao problema da legitimidade do direito, a visão liberal e a visão republicana a
partir do status do cidadão, da natureza do processo político e da concepção de direito. Em
seguida, ele apresenta uma concepção procedimentalista de democracia.
Locke é considerado um dos clássicos do liberalismo político. Ele propõe uma
articulação entre os temas que fundamentam a política liberal: direito à vida, à liberdade, à
igualdade e à propriedade; defesa do regime representativo e limitação da soberania em defesa
dos direitos subjetivos individuais. Por outro lado, Rousseau apresenta o republicanismo
como uma alternativa ao liberalismo, tendo como ponto de partida da discussão o conceito de
liberdade negativa, ao qual os republicanos fizeram oposição. É a partir da análise das visões
desses autores que Habermas traça uma comparação entre os modelos liberal e republicano.
Ao abordar a visão liberal, Habermas faz referência a Locke: “De acordo com a visão
‘liberal’ ou lockiana, o processo democrático realiza a tarefa de programar o Governo
segundo o interesse da sociedade, sendo o Governo representado como um aparato de
455 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 15. 456 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 17.
130
administração pública e a sociedade, como uma rede de interações entre pessoas privadas
estruturada na forma de mercado.”457
Em seguida, ao tratar da concepção dos republicanos contemporâneos acerca do
processo democrático, Habermas remete o leitor ao republicanismo de Rousseau:
Em sua interpretação comunitária, o modelo republicano é excessivamente idealista, mesmo dentro de uma análise puramente normativa. Nessa leitura, o processo democrático depende das virtudes de cidadãos devotados ao bem-estar público. Essa expectativa já levou Rousseau a separar o cidadão orientado para o bem comum do homem privado, que não pode ser eticamente sobrecarregado.458
Os ideais republicanos e humanitários reportam às repúblicas gregas com Platão459 e
Aristóteles460; já o humanismo cívico republicano desenvolveu-se em Roma com Cícero461.
Na Itália foi desenvolvida sua face moderna com Maquiavel462 e chegou à França através de
Montesquieu463.
Antes de examinar as diferenças entre os modelos republicano e liberal, cumpre
investigar os fundamentos do liberalismo. Abbagnano, no Dicionário de Filosofia, esclarece
que o liberalismo tem por objetivo a defesa da liberdade, sendo que a primeira fase do
liberalismo é fundamentada no individualismo464, e a segunda fase é baseada no estatismo.
Nesse sentido, esse autor afirma:
457 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 108, jan./jul. 1995. 458 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 112. 459 PLATÃO. A República, 2002. 460 ARISTÓTELES. A política, 1998. 461 CÍCERO. Da República. São Paulo, Edipro, 1996. Ver também: CÍCERO. Dos deveres. São Paulo: Martin Claret: 2002 e COWELL, F.R. Cícero e a República Romana. Lisboa: Ulissea, 1967. 462 “Todos os Estados, todos os domínios que têm havido e que há sobre os homens, foram repúblicas ou principados.” MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe. Tradução de Lívio Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 95. Ver também MACHIAVELLI, Niccolò. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de Sérgio Bath. 2.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1982. (Coleção Pensamento Político). 463 “Existem três espécies de governo: o REPUBLICANO, o MONÁRQUICO e o DESPÓTICO [...]: ‘o governo republicano é aquele no qual o povo em seu conjunto, ou apenas uma parte do povo, possui o poder soberano; o monárquico, aquele onde um só governa, mas através de leis fixas e estabelecidas; ao passo que, no despótico, um só, sem lei e sem regra, impõe tudo por força de sua vontade e de seus caprichos [...] Quando, na república, o povo em conjunto possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, chama-se Aristocracia.” MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 19. 464 “A unidade elementar da vida social é a ação humana individual. Explicar instituições sociais e mudança social é mostrar como elas surgem como resultado da ação e interação de indivíduos. Essa visão, chamada de individualismo metodológico, é, na minha opinião, trivialmente verdadeira.” ELSTER, John. Peças e engrenagens das ciências sociais. Tradução de Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 29.
131
[...] Doutrina que tomou para si a defesa e a realização da liberdade no campo político. Nasceu e afirmou-se na Idade Moderna e pode ser dividida em duas fases: 1ª do séc. XVII, caracterizada pelo individualismo; 2ª do séc. XIX, caracterizada pelo estatismo.465
Nessa concepção, a primeira fase do liberalismo é caracterizada pelo jusnaturalismo,
contratualismo, liberalismo econômico e negação do absolutismo estatal e redução da atuação
do Estado.466 Por outro lado, na segunda fase ocorre a negação do postulado do absolutismo
estatal.467
Sobre o liberalismo, Souza acentua:
O liberalismo tem duas vertentes: o político e o liberalismo econômico. Ambos se apóiam na idéia de liberdade. A liberdade política está vinculada aos direitos e garantias individuais e aos direitos políticos que foram se materializando ao longo do século XIX e entraram pelo século XX (voto das mulheres, analfabetos, etc.). O liberalismo econômico é o “laissez faire”, a economia de mercado, a liberdade dos negócios, o Estado absenteísta, a liberdade contratual. O liberalismo político foi a ante-sala da democracia, o liberalismo econômico gerou, ao longo do século XIX, desigualdades e injustiças que prepararam o terreno para as revoluções do século XX e o Estado do Bem-Estar. O neoliberalismo é uma tentativa de retorno aos princípios do liberalismo com as conseqüências que estamos assistindo. É o horror econômico como se vê no livro de Viviane Forester.468
Acerca do status de cidadão, na visão liberal469, Habermas assevera que, “Segundo a
visão liberal, o status do cidadão é fundamentalmente determinado de acordo com os direitos
negativos que eles têm em relação ao Estado e a outros cidadãos.”470
Andrade enfatiza que o discurso liberal da cidadania comporta o individualismo, que,
por sua vez, significa um vínculo entre os valores da igualdade e liberdade:
465 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, 1998, p. 604. 466 “0 jusnaturalismo (v.), que consiste em atribuir ao indivíduo direitos originários e inalienáveis; b) contratualismo (v.), que consiste em considerar a sociedade humana e o Estado como fruto de convenção entre indivíduos; c) L. econômico, próprio da escola fisiocrática, que combate a intervenção do Estado nos assuntos econômicos e quer que estes sigam exclusivamente seu curso natural.” ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, 1998, p. 604. 467 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, 1998, p. 604. 468 SOUZA, Patrus Ananias de. Processo constitucional e devido processo legal. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Estudos continuados de teoria do processo. Porto Alegre: Síntese, 2000, v.1, p. 34. 469 “A tradição política liberal, de John Lock, a Immanuel Kant, de Emmanul Sieyes e Benjamin Constant ou John Stuart, passado por Jeremy Benthan e outros, chega aos nossos dias através dos ensaios de Isaiah Berlin e de obras tão diversificadas como as de John Rawls (1971, 1993a), Robert Nozick (1991), Charles Lamore (1996) ou Ronald Dworkin (1978; 1993). Mas é a obra filosófico-política e moral de John Rawls que, atualizando o jusnaturalismo de matriz Kantiana e não utilitarista, reacendeu nos Estados Unidos o debate que se alastrou pelo mundo, entre republicanos (comunitaristas ou não) e liberais (sociais ou não).” CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da teoria discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2005, p. 87-121. 470 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 108.
132
Dessa forma, retomando a constatação de que o discurso da cidadania é um discurso que tem, modernamente, sua origem no Ocidente, surgindo na base de pressupostos e motivos da história européia, no bojo do estado capitalista (liberal), não há dúvida de que é historicamente marcado pela ideologia liberal no reconhecimento da igualdade formal (perante a lei) e dos direitos civis, bem como no reconhecimento dos direitos políticos, no âmbito da cidadania concebida como direito à representação política.471
Bobbio também enfatiza o individualismo472 como o sustentáculo do liberalismo: “Por
liberalismo ético entende-se a doutrina que coloca no primeiro posto na escala de valores o
indivíduo, conseqüentemente, a liberdade individual [...] Tanto a exigência da liberdade
econômica quanto a exigência da liberdade política são conseqüências práticas, traduzíveis
em regras e instituições, do primado axiológico do indivíduo.”473
Ao abordar os limites do liberalismo, Touraine destaca que, apesar de o liberalismo ter
criticado o poder autocrático e ter preparado a democracia, ele também se opôs à democracia
e se constitui em uma zona intermediária entre forças políticas opostas (classes sociais e
grupos de interesses):
[...] liberalismo e democracia nem por isso são sinônimos. Se não há democracia que não seja liberal, existem, pelo contrário, regimes liberais que não são democráticos. Com efeito, o liberalismo sacrifica tudo a uma única dimensão da democracia: a limitação do poder, e assume tal postura em nome de uma concepção que tanto ameaça quanto protege a idéia democrática. O pensamento liberal se baseia na desconfiança em relação aos valores e formas de autoridade que os fazem respeitar. Estabelece a separação entre a ordem da razão impessoal, que deve ser a da vida pública e que é também o da utilidade, e a ordem das crenças que deve permanecer o da vida privada. Não acredita na existência de atores sociais definidos, simultaneamente, por valores e relações sociais. Mas acredita nos interesses e preferências privadas e procura deixar-lhes o maior espaço possível, sem prejudicar os interesses e preferências dos outros [...] a sociedade ideal é concebida como um mercado, sem excluir a intervenção da lei e do Estado no sentido de fazer respeitar as leis do jogo, a honestidade das transações e a liberdade de expressão e a ação de cada um.474
471 ANDRADE, Vera Regina Pereira de Andrade. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 95. 472 “Concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado; ou melhor para citar o famoso artigo 2º da Declaração de 1789, a conservação dos direitos naturais imprescritíveis do homem ‘é o objetivo de toda associação política’.” BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 59. 473 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 110. 474 TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis / RJ: Vozes, 1996, p. 68-69.
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Numa concepção individualista, o modelo jusnaturalista de Locke parte do estado de
natureza e, por meio do pacto social, passa para o estado civil. Em uma concepção
individualista475, os homens viviam no estado pré-social e pré-político; esse estágio era
caracterizado pela liberdade e igualdade e era denominado de estado de natureza. A partir do
pacto social, os indivíduos consentem em entrar no estado civil com o intuito de preservarem
a propriedade por meio de leis fixas que proporcionem paz e segurança:
Como já mencionamos, os homens são por natureza livres, iguais e independentes e, por isso, nenhum pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem, sem dar seu consentimento. O único modo legítimo pelo qual alguém abre mão de sua liberdade natural e assume os laços da sociedade civil consiste no acordo com outras pessoas para se juntar e unir-se em comunidade, para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, com a garantia de gozar de suas posses, e de maior proteção contra quem não faça parte dela. Qualquer número de homens pode fazê-lo, porque não prejudica a liberdade dos demais, que ficam como estavam, livres no estado de natureza. Quando certo número de homens acordou assim em constituir uma comunidade com governo, fica, de fato, fazendo parte dela e formando um corpo político, no qual a maioria tem a prerrogativa de agir e resolver tudo.476
Habermas aponta que os direitos subjetivos que são concebidos como direitos
negativos pela visão liberal “[...] garantem um espaço de ação alternativo em cujos limites as
pessoas do direito se vêem livres de coações externas.”477 Os titulares desses direitos devem
pautar suas ações na lei478 e, à medida que cumprem esse requisito, garantem a proteção
estatal.
Nessa concepção, Locke, como representante da concepção liberal e tendo como
fundamento a liberdade negativa, afirma que liberdade significa estar livre de restrições e da
violência dos outros:
A liberdade natural do homem nada é que não estar sujeito a qualquer poder terreno, e não submetido à vontade ou à autoridade legislativa do homem, tendo como única regra a natureza. A liberdade do indivíduo na sociedade não deve estar subordinada a qualquer poder legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento na
475 “Precisamente partindo de Locke, pode-se compreender como a doutrina dos direitos naturais pressupõe uma concepção individualista da sociedade e, portanto, do Estado, continuamente combatido pela bem mais sólida e antiga concepção organicista, segundo a qual a sociedade é um todo, e o todo está acima das partes.” BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, 1992, p. 59. 476 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 76. 477 MIRANDA, Igor Costa de. Democracia à luz do princípio do discurso. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 216, 7 fev. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4794>. Acesso em: 18/02/2007, p. 4. 478 “[...] liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este poder.” MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis, 1996, p. 166.
134
comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição de qualquer lei, a não ser aquele promulgado por tal legislativo [...] a liberdade dos homens sob o governo importa em ter regra permanente a lhe pautar a vida, comum aos demais membros da sociedade e feita pelo poder legislativo estabelecido em seu seio; a liberdade de seguir a própria vontade em tudo o que não está prescrito pela lei, não submetida à vontade mutável, duvidosa e arbitrária de qualquer homem; assim como a liberdade de natureza consiste em não sofrer qualquer restrição a não ser a lei da própria natureza.479
Já os direitos políticos, na concepção liberal (direitos ao voto e à livre expressão),
oportunizam um espaço para os cidadãos firmarem seus interesses privados e ficarem livres
de coação externa:
[...] Direitos políticos tais como o direito ao voto e à livre expressão não têm apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquanto direitos civis que fornecem um espaço no qual assuntos legais tornam-se livres de coerção externa. Eles dão aos cidadãos a oportunidade para afirmar seus interesses privados de tal maneira que por meio de eleições, da composição de corpos parlamentares e da formação de um governo, esses interesses são finalmente agregados numa vontade política que provoca um impacto sobre a administração.480
Por outro lado, o status do cidadão, na visão republicana, não é determinado pelas
liberdades negativas, mas, sim, pelas liberdades positivas; são direitos políticos. Assim, “[...]
eles garantem não a liberdade de coerção externa, mas a possibilidade de participação numa
práxis comum pela qual os cidadãos podem, primeiramente, tornar-se aquilo que desejam ser:
autores politicamente autônomos de uma comunidade de pessoas livres e iguais.”481
Destarte, o processo político por essa concepção “[...] não serve apenas para manter a
atividade governamental sob a vigilância de cidadãos que já adquiriram uma autonomia
prévia social no exercício de seus direitos privados e de suas liberdades pré-políticas.
Tampouco ele atua como elo entre o Estado e a sociedade, pois a autoridade administrativa
não é uma autoridade autóctone; não é algo dado.”482
Rousseau, representante da concepção republicana, assevera que a liberdade e a
propriedade somente se efetivam no estado de sociedade por meio do contrato social. Para
esse autor, existem dois tipos de liberdade: a natural e a civil. A liberdade revela a
479 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, 2006, p. 35. 480 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 109. 481 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 109. 482 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 109.
135
espiritualidade da alma humana, renunciar a ela é renunciar à própria qualidade de homem e
aos direitos humanos:
[...] o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito sem limites a tudo o que tenta e pode atingir: ganha a liberdade civil e a propriedade de que possui. Para não vos enganardes nessas compensações, cumpre distinguir bem a liberdade natural, que só tem por termo as forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral; e a possessão, que é só efeito da força, ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade, que não pode ser fundada a não ser num título positivo.483
Cattoni de Oliveira, ao estudar o republicanismo e o liberalismo traça um estudo
comparativo entre a liberdade na tradição republicana e na concepção liberal:
Jean-Jacques Rousseau, na linha da tradição republicana, compreende o direito à liberdade como direito à autodeterminação política, que se realiza através do exercício da liberdade civil e da soberania do povo, na construção de uma comunidade ou “corpo” ético-político, enquanto John Locke, como autor do liberalismo, compreende o direito de liberdade fundamentalmente como autodeterminação privada quanto à propriedade e à felicidade, a ser assegurado perante outros indivíduos e à própria organização político estatal. Enquanto em Rousseau a liberdade é liberdade para algo, em Locke é liberdade de ou diante de algo. Em Rousseau, a liberdade se institucionaliza juridicamente, no âmbito da comunidade política, como liberdade civil, no plano da e para a participação política (pertinência à polis), e que resgata a idéia de virtude cívica; em Locke, a liberdade natural se institucionaliza juridicamente no plano da comunidade política como liberdade civil, através do reconhecimento e da garantia, pela comunidade político-estatal, da existência à parte de uma esfera privada (separação entre Estado e sociedade).484 (grifos do autor)
O cidadão, pela visão republicana, possui autonomia, adquirida pela comunicação e
produzida na práxis da autolegislação. “Nesse sentido, cidadão é aquele que resgata sua
autonomia através da participação em uma práxis comum de formação da opinião e da
vontade política. O aparato estatal, portanto, legitima-se por defender e garantir essa práxis
através da institucionalização da liberdade pública.”485
Rousseau esclarece acerca do significado do termo república e sobre a autolegislação:
Chamo, pois, república todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de sua administração, porque então só o interesse público governa, e a coisa pública passa a representar algo. Todo governo legítimo é republicano: logo explicarei o que é governo.
483 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 35. 484 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 58. 485 MIRANDA, Igor Costa de. Democracia à luz do princípio do discurso. Jus Navigandi, 2004, p. 5.
136
As leis são, a rigor, as condições da associação civil; o povo submisso às leis deve ser o autor delas; só àqueles que se associam compete regular as condições da sociedade.486 (grifo do autor)
Na visão liberal, a política tem a função mediadora, isso quer dizer que ela reúne os
interesses privados e encaminha-os a um aparato governamental. Esse aparato, por sua vez,
com o intuito de alcançar objetivos coletivos, especializa-se em administrar o uso do poder.487
Já na concepção republicana, a política é o meio pelo qual os membros de uma
determinada comunidade se conscientizam de que dependem uns dos outros. Assim, pela
concepção republicana, a arquitetura liberal sofre alterações, visto que, enquanto esta é
formada por regras hierárquicas do Estado e regras descentralizadas do mercado, por aquela
aparece uma terceira fonte de integração, que é a solidariedade e a orientação para o bem
comum. Nessa linha de idéias, Habermas aponta:
[...] Na visão “republicana”, porém, a política vai além dessa função mediadora; ela é, sobretudo, constitutiva dos processos da sociedade como um todo. A política é concebida como a forma em que se reflete a vida ética real, isto é, como o meio pelo qual os membros de comunidades de certo modo solitárias se tornam conscientes de que dependem uns dos outros, e agindo com plena capacidade de deliberação como cidadãos, modelam e desenvolvem as relações existentes de reconhecimento recíproco, transformando-as em uma associação de parceiros livres e iguais, sob a vigilância da lei.488
Nessa concepção, Rousseau aponta que, a partir do contrato social, forma-se um corpo
moral e coletivo. Esse corpo é denominado de corpo político; por sua vez, a soberania é
exercida por esse corpo político. A lei, como ato de vontade geral, é elaborada pelo legislador
e sancionada pelo soberano. Esse ato de vontade geral deve garantir a liberdade e a
propriedade dos cidadãos:
Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro, como parte indivisível do todo.
Imediatamente, em lugar da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto são os votos da assembléia, o qual desse mesmo ato recebe a sua unidade, o Eu comum, sua vida, e vontade. A pessoa pública, formada, assim, pela união de todas as outras, tomava, noutro tempo, o nome de cidade, e hoje se chama república, ou
486 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social, 2002, p. 48. 487 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 105-125. 488 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 108.
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corpo político, o qual é, por seus membros, chamado Estado, quando passivo; soberano se ativo; poder, se o comparam a seus iguais. A respeito dos associados, tomam coletivamente o nome de Povo, e chamam-se, em particular, Cidadãos, como participantes da autoridade soberana, e Vassalos, como submetidos às leis do Estado.489
Enquanto a visão liberal possibilita a representação, pela visão republicana, a
soberania não pode ser delegada. Nesse diapasão, Habermas aponta: “[...] de acordo com a
visão republicana, o povo é portador de uma soberania que não pode, por princípio, ser
delegada: em seu caráter soberano, o povo não pode ter outros que o representam.”490
Locke, a partir de uma concepção liberal, aponta que cabe ao povo escolher seus
representantes para a elaboração das leis: “[...] somente o povo pode definir a forma da
comunidade, ou seja, constituir o legislativo e indicar em que mãos deve estar. E, quando o
povo escolher seus representantes, todos sujeitar-nos-emos a regras e seremos regidos pelas
leis feitas por esses homens.”491
Por outro lado, acerca da possibilidade de se delegar a soberania, Rousseau enfatiza:
“[...] digo, portanto, não sendo a soberania mais que o exercício da vontade geral, não pode
nunca alienar-se; e o soberano, que é unicamente um ser coletivo, só por si mesmo se pode
representar. É dado transmitir o poder, não a vontade.”492
Outro ponto controvertido entre os liberais e os republicanos diz respeito ao conceito
de direito, em especial à predominância de sua dimensão subjetiva ou objetiva. A concepção
liberal entende que a esfera subjetiva precede a esfera objetiva, fundamentando-a. Por outro
lado, na visão republicana, os direitos subjetivos provêm de uma ordem jurídica objetiva:
Enquanto na visão liberal a finalidade de uma ordem jurídica é tornar possível determinar em cada caso a quais indivíduos pertencem quais direitos, na visão republicana esses direitos “subjetivos” devem sua existência a uma ordem jurídica “objetiva”, que tanto possibilita como garante a integridade de uma vida autônoma em comum, baseada em mútuo respeito.493
Desse modo, Rousseau assevera que no estado civil é a lei quem determina os direitos:
“[...] no estado de natureza, em que tudo é comum, não devo nada a quem nada prometi, só
reconheço como alheio o que me é útil; não acontece o mesmo no estado civil, onde a lei
489 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social, 2002, p. 32. 490 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 105-125. 491 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, 2006, p. 104. 492 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social, 2002, p. 39. 493 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 105-125.
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determinou todos os direitos”494 Para Rousseau, os objetos de todas as legislações devem ser a
igualdade e a liberdade:
Se indagais em que consiste justamente o maior bem de todos, que tal deve ser o fim de todo sistema de legislação, achá-lo-eis resumido nestes dois objetos principais, a liberdade e a igualdade; a liberdade, porque toda a dependência particular é outra tanta força tirada ao corpo do Estado; a igualdade, porque sem ela não pode subsistir a liberdade.495
As divergências entre os liberais e republicanos acerca do status do cidadão e do
conceito de lei acaba por gerar polêmica em relação à natureza do processo político de
formação da vontade e da opinião. Na visão liberal, esse processo é determinado pela
competição entre a coletividade (mercado). Por outro lado, na visão republicana, essa
formação não obedece às estruturas dos mercados, mas ao diálogo de uma comunidade. Nesse
sentido, Aguiar acentua: “[...] na visão liberal, o processo democrático ocorre sob a formação
de compromissos entre interesses concorrentes; na visão republicana, sob a forma de um
discurso ético-político.”496
Porém, acerca da concepção republicana que enfatiza o papel do diálogo, Almeida
adverte que os republicanos não esclarecem de que forma o diálogo por si só possibilita a
produção de valores e decisões em uma sociedade complexa. Assim, Habermas concorda
com os liberais que enfatizam que a sociedade é homogênea. Mas, ao mesmo tempo, entende
que os liberais também criticam essa concepção, uma vez que eles não são capazes de
explicar como autores que buscam a satisfação de interesses próprios podem concordar sobre
as normas que objetivam reger, de maneira imparcial, a vida em comum:
Entretanto, os republicanos não explicam como a orientação para o bem comum é possível. Ao acreditarem que o diálogo por si pode produzir valores e decisões em que todos estão incluídos se tornam utópicos e a democracia inoperante, pois as sociedades complexas são caracterizadas pela diversidade de valores, e a integração social não pode ser obtida botanicamente ou fazer parte de uma evolução histórica.497
Na visão liberal, ocorre uma redução da democracia ao processo de eleição, e o
governo é legitimado pela maioria. Além disso, a formação política da vontade obedece a
494 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social, 2002, p. 39. 495 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social, 2002, p. 58. 496 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado Democrático de Direito. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, 2005, p. 81. 497 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. 2003, p. 42.
139
competição entre a coletividade (mercado). Na visão republicana, ao contrário da concepção
liberal, a formação da vontade não obedece à estrutura de mercado, mas se relaciona ao
diálogo de uma comunidade ética. Ainda na concepção republicana, o governo tem de exercer
um mandato aberto e tem de conduzir certas políticas. Habermas assevera que o modelo
republicano, quando comparado ao liberal, apresenta vantagem ao levar em conta as
condições comunicativas, que, por sua vez, são exercidas por cidadãos autônomos:
O modelo republicano, quando comparado ao liberal, tem a vantagem de preservar o significado original de democracia em termos de institucionalização de uma utilização pública da razão comunicativa exercida por cidadãos autônomos. Esse modelo leva em conta aquelas condições comunicativas que conferem força legitimadora à formação política da opinião e da vontade. Essas são precisamente as condições sob as quais se pode esperar que o processo político produza resultados razoáveis.498
Apesar de ressaltar essa vantagem do modelo republicano, Habermas aponta que os
republicanos contemporâneos acabam por fazer uma interpretação comunitária dessa
comunicação pública e dar uma conotação ética ao discurso político. Através dessa constrição
ética do discurso político, o processo democrático depende das virtudes dos cidadãos voltadas
para o bem da coletividade. Nesse contexto, a sociedade seria homogênea. Em decorrência
disso, o modelo republicano se torna idealista. Nesse sentido, Cattoni de Oliveira aponta: “[...]
para o modelo republicano, a Democracia só seria possível em sociedade e comunidades
culturalmente homogêneas, em que uma forte educação cívica possibilitaria a formação de
cidadãos conscientes e virtuosos, capazes, por isso, de realizar os valores consagrados e
refletidos na Constituição.”499
Conforme acentua Cattoni de Oliveira, Habermas formula inúmeras críticas à
concepção comunitarista de política deliberativa e que podem ser resumidas através das
seguintes considerações:
a) Tal redução dos discursos políticos a questões éticas não combina com a função dos processos legislativos em que tais discursos surgem. Razões éticas são levadas em consideração no processo legislativo, a legislação contém elementos teleológicos, mas isso não significa que as leis representam meramente a explicação hermenêutica de orientações de valor compartilhadas. Por sua
498 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 111. 499 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo de Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da teoria discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2005, p. 105.
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estrutura, as leis são determinadas, antes de tudo, pela questão de se saber quais normas os cidadãos devem adotar para regular sua vida em comum.
b) As questões éticas são certamente parte importante da política. Mas devem estar subordinadas às questões morais (de justiça) e ligadas às questões pragmáticas (de interesse). Se, por um lado, na política legislativa, deve-se levar em consideração o que é bom não somente para nós, enquanto comunidade concreta, mas abrir-se ao que é justo, no igual interesse de todos, uma questão que transborda particularismos, por outro há de se reconhecer que compromissos constituem a maior parte dos processos políticos, sob as condições políticas determinadas pelo pluralismo axiológico, cultural, religioso etc., nas atuais sociedades complexas. Muitos objetivos políticos acabam por ser selecionados com base em interesses e orientações de valor que são, por vezes, compartilhados por todos, dando margens a negociações e a orientações estratégicas, cujos âmbitos devem encontrar-se previamente regulados.500
Habermas objetiva superar os modelos normativos de política deliberativa
propugnados pelos modelos republicanos e liberais. Essa superação será realizada a partir da
crítica à constrição ética do discurso político por meio de uma interpretação teorética-
discursiva. Desse modo, nesta interpretação, a formação democrática é baseada nos
pressupostos comunicativos e não em discursos éticos:
Em sua interpretação comunitária, o modelo republicano é excessivamente idealista, mesmo dentro dos limites de uma análise puramente normativa. Nessa leitura, o processo democrático depende das virtudes de cidadãos devotados ao bem-estar-público. Essa expectativa de virtude já levou Rousseau a separar o cidadão orientado para o bem comum do homem privado, que não pode ser eticamente sobrecarregado. A unanimidade do ato político de legislar deve ser assegurada antecipadamente por um sólido consenso ético. Diferentemente, uma interpretação teorético-discursiva insiste no fato de que a formação democrática da vontade não retira sua força legitimadora de uma convergência prévia de convicções éticas consolidadas, mas dos pressupostos comunicativos que permitem aos melhores argumentos entrarem em ação em várias formas de deliberação, bem como dos procedimentos que asseguram processos justos de negociação. A teoria do discurso rompe com uma concepção puramente ética do discurso.501
Ao analisar os motivos que levaram Habermas à superação dos paradigmas jurídicos
do direito, em especial o paradigma jurídico liberal e o paradigma do Estado Social, e,
conseqüentemente, levaram-no a propor o paradigma procedimentalista do Estado
democrático de direito, Pellegrini aponta que:
[...] o paradigma liberal foi reformulado a partir da crítica ao direito formal burguês, da inviabilidade de consecução de liberdades subjetivas aos sujeitos de direitos e, principalmente, da garantia material (cf. HABERMAS, 1997, V, II, p. 139). Já o
500 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo de Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da teoria discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2005, p. 108. 501 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 111-112.
141
Estado social baseava-se em uma estrutura paternalista, na qual o Estado possui papel de organizador de políticas compensatórias de proteção jurídicas, mas que impedem a própria participação dos sujeitos de direitos e restringem liberdades, o que gerou profundas críticas.502
Através do marco teorético-discursivo, Habermas intenta a construção de uma visão
que possibilite uma relação entre autonomia pública e privada e entre constitucionalismo e
democracia, que seja adequada a uma concepção democrática de direito e do Estado
democrático de direito.
Segundo Habermas, tanto o modelo liberal quanto o republicano visualizam uma
sociedade centrada no Estado. No modelo liberal, o Estado é o guardião de uma sociedade
centrada no mercado. Por sua vez, no modelo republicano, este seria a institucionalização
autoconsciente de uma comunidade ética. Por outro lado, na concepção procedimentalista da
democracia, Habermas trabalha com uma concepção descentrada de Estado. Assim, o Estado,
na visão habermasiana, não possui o monopólio da decisão e do direito. Por essa concepção, a
democracia opera com ênfase na intersubjetividade dos processos de comunicação: “[...] A
teoria do discurso, ao contrário, opera com a intersubjetividade de mais alto nível dos
processos de comunicação que passam tanto pelos corpos parlamentares como pelas redes
informais da esfera pública. Dentro e fora do complexo parlamentar, essas formas de
comunicação sem sujeito constituem arenas em que pode ocorrer uma formação mais ou
menos racional da vontade e da opinião.”503
Por sua vez, Leal aponta que é a teoria do processo institucionalizada
constitucionalmente que será capaz de suprimir a tensão entre os republicanos e os liberais e,
por conseguinte, é o processo um referente de integração do público e do privado:
A teoria do processo que se institucionalize constitucionalmente pelos princípios jurídicos do contraditório, ampla defesa e isonomia suprime a tensão entre republicanos e liberais à medida que a fiscalidade legitimante do ordenamento jurídico instalador do Estado democrático de direito se processualize pelo direito-de-ação irrestrito, assegurado o contraditório como oportunidade legal de produzir ou não argumentos jurídicos na construção estrutural dos procedimentos, bem assim a isonomia como princípio de igualdade, para as partes, do tempo de realização estrutural do procedimento e a ampla defesa como direito ao contraditório em tempo isonômico indistintamente para todos.504
502 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC–Minas, 2003, p. 13. 503 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 118. 504 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 180.
142
Ao estudar os modelos normativos de democracia, Almeida enfatiza que os modelos
liberal e republicano impossibilitam a construção de uma sociedade democrática, uma vez que
esses modelos restringem a liberdade crítica do homem: “[...] enquanto os republicanos
acabam instituindo um Estado paternalista, responsável por todas as decisões, reduzindo a
importância da iniciativa individual e a responsabilidade pessoal, a visão liberal cética acaba
interpretando o sistema jurídico de maneira fechada, sem possibilidade de o homem, através
do direito, transformar ou influenciar a realidade.”505
Por sua vez, Nunes, ao estudar o recurso como possibilidade jurídico-discursiva das
garantias do contraditório e da ampla defesa, ressalta que tanto o modelo liberal quanto o
republicano se tornaram inadequados no estudo do processo jurisdicional, haja vista que o
primeiro se abstém das preocupações sociais, e o segundo reduz a autonomia privada, uma
vez que não possibilita a participação efetiva dos cidadãos no espaço democrático. A
percepção de um paradigma procedimental do Direito, realizada por Habermas, que não
concede um lugar privilegiado ao Estado, cidadão, à autonomia pública ou privada demonstra
a necessidade de uma comparticipação dos sujeitos na formação do provimento jurisdicional:
A existência de uma co-responsabilidade e de uma cooperação abrangendo o público e o privado somente pode ser obtida pela percepção de um paradigma procedimental de Estado democrático de direito.
Na verdade, a partir do paradigma de Estado democrático de direito percebe-se que a legitimidade do direito não se dá pela simples atribuição de um lugar privilegiado ao Estado ou ao cidadão, nem à autonomia privada ou pública deste, mas, sim, pela empreitada cooperativa, que se apresenta por meio de procedimentos que possibilitam a participação igualitária e efetiva de todos os interessados no processo de produção das leis, bem como no processo de aplicação das normas.506
Enquanto na visão liberal o processo democrático ocorre através de compromissos
entre interesses concorrentes e na visão republicana por meio de um discurso ético-político, a
teoria do discurso faz uso de elementos dessas duas visões. Na visão procedimentalista, o
conteúdo normativo surge da própria estrutura das ações comunicativas:
A teoria do discurso apropria-se de elementos dessas duas visões, integrando-os no conceito de procedimento ideal para deliberação e tomada de decisão. Entrelaçando considerações pragmáticas, compromissos discursos de autocompreensão e de justiça, esse procedimento democrático tem a presunção de que, dessa maneira se
505 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 30. 506 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 56-57.
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obtêm resultados razoáveis e justos. De acordo com essa visão procedimentalista, a razão prática afasta-se dos direitos humanos universais, ou da substância ética concreta de uma comunidade específica, para adequar-se às regras do discurso e às formas de argumentação. Em última análise, o conteúdo normativo surge da própria estrutura das ações comunicativas.507
A teoria do discurso enfatiza o processo democrático com conotações normativas mais
fortes que as apresentadas pelo modelo liberal, porém, mais fracas que as do modelo
republicano. Além disso, essa teoria apresenta os princípios constitucionais como forma de
institucionalizar os procedimentos e as condições de comunicações correspondentes e aponta
que o êxito da política deliberativa não consiste na ação coletiva:
Em consonância com o republicanismo, a teoria do discurso dá destaque ao processo de formação política da vontade e da opinião, sem, no entanto, considerar a Constituição como elemento secundário. Ao contrário, concebe os princípios do Estado constitucional como resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma formação democrática da vontade e da opinião. A teoria do discurso sustenta que o êxito da política deliberativa depende não da ação coletiva dos cidadãos, mas da institucionalização dos procedimentos e das condições de comunicação correspondentes. Uma soberania popular procedimentalizada e um sistema político ligado às redes periféricas da esfera público-política andam de mãos dadas com a imagem de uma sociedade descentrada. Esse conceito de democracia não mais necessita trabalhar com a noção de um todo social centrado no Estado e imaginado como um sujeito teleologicamente orientado, numa escala mais ampla. Tampouco representa a totalidade num sistema de normas constitucionais que regulam mecanicamente a disputa de poderes e interesses em conformidade com o modelo de mercado.508
Desse modo, na concepção procedimentalista do Estado Democrático não ocorre a
limitação da democracia pela constituição. Ao contrário, a democracia pressupõe a existência
de uma constituição, uma vez que os princípios constitucionais possibilitam a
institucionalização jurídica do exercício do uso público das liberdades políticas dos cidadãos:
Sob o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, por um lado, a Constituição não limita a Democracia; esta pressupõe aquele, já que é através da mediação jurídica entre canais institucionais e não-institucionais, regulados e não-regulados, que a soberania popular se manifesta enquanto poder comunicativo. Ao contrário de uma visão típica do liberalismo, os direitos fundamentais, assim como os demais princípios constitucionais, não podem ser considerados como uma restrição externamente imposta ao exercício da soberania popular, pois são justamente esses princípios e direitos constitucionais que possibilitam a
507 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 115. 508 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, 1995, p. 117.
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institucionalização jurídica do exercício de um uso público das liberdades políticas dos cidadãos em sua prática cívica de autodeterminação.509
Na concepção de Teixeira, apesar de Habermas conseguir responder de maneira
satisfatória acerca da legitimidade do direito no Estado democrático de direito - visto que a
legitimação da lei não está mais alicerçada no imperativo categórico de Kant, mas no
princípio do discurso - ele não esclareceu de que forma ocorrerá a passagem do princípio do
discurso ao princípio da democracia, para que possibilite a coexistência entre autonomia
pública e privada. Desse modo, faz-se necessária uma teoria do processo capaz de superar
essa lacuna deixada por Habermas:
A teoria do discurso criada por Habermas [...] é de grande valia para a legitimação das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito e mostra-nos um caminho aberto e, por isso, democrático da construção do provimento jurisdicional em sociedades complexas. Entretanto, repita-se, ele não declinou em que moldes a passagem do discurso transmudaria para o princípio da democracia. A permanecer tal vácuo, essa lacuna, a fantástica contribuição daquele pensador alemão não correria o risco de não ser aproveitada, do ponto de vista prático, uma vez que não teria um espaço, um campo, um local para ser aplicada, omissão essa que pode ser perfeitamente sanada por meio de uma teoria do processo àquela teoria intimamente ligada, o que acontece de maneira satisfatória com a teoria neo-institucionalista do processo.510
Ao abordar os três modelos normativos, Habermas pretende evitar a forma pura
estudada por Weber no texto sobre as três formas puras de dominação.511 Porém, observa-se
que Habermas trabalha os modelos de democracia de forma historicista, pois trabalha o agir
comunicativo na realidade nua e não percorre a teoria da procedimentalidade. Assim, a
discursividade na democracia deve ocorrer dentro do espaço processualizado por meio da
teoria neo-institucionalista do processo, já que essa teoria possibilita a passagem do princípio
do discurso para o princípio da democracia.512
Na obra Direito e democracia: entre facticidade e validade, Habermas apresenta uma
concepção diferente acerca da legitimidade do direito da anteriormente apresentada na Teoria
da ação comunicativa e na Tanner Lectures. Enquanto na Teoria da ação comunicativa
Habermas buscou estudar a legitimidade do direito a partir da distinção entre o direito como
509 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo de Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da teoria discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2005, p. 113. 510 TEIXEIRA, Welington Luzia. Novas reformas do CPC e o Estado democrático de direito. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Belo Horizonte, IAMG, n. 12, p. 88, 2006. 511 WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação. In: COHN, Gabriel (Org.). Max Weber: Sociologia, 1991. 512 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 178-179.
145
meio e como instituição, não conseguindo explicar de forma clara a questão da legitimidade, é
na Tanner Lectures que Habermas enfatiza essa questão e aponta uma submissão do direito à
moral. Desse modo, em Direito e Democracia: entre facticidade e validade, através do
método da reconstrução, o direito não é estudado como meio ou instituição, mas como
mediador entre facticidade e validade. Além disso, este não mais se submete à moral nem é
estudado como um caso especial de moral. Assim, há uma redefinição da relação entre direito
e moral, que passam a ser co-originários e complementares.
Para Leal, ao entender que existe uma relação de co-originariedade entre direito e
moral, Habermas contribuiu para demonstrar que as decisões se qualificam por sua gênese
discursiva e não como atividade solipsista (solitária) do juiz:
A partir do momento em que Habermas acolheu que a moral não guarda relação de complementaridade imediata com o direito, mas de co-originariedade, tornou-se possível teorizar, como salientamos, uma normatividade jurídica que, desgarrando-se da tradição e da autoridade, já num estágio de pós-secularização, institucionaliza-se pelo medium lingüístico da testificação continuada (Popper) expressa na processualidade legitimadora da produção de um direito que se qualifica democrático por sua gênese discursiva, não axiológica ou prescritivamente deôntica.513 (grifos do autor)
Inicialmente, Habermas retoma algumas das questões já abordadas na Teoria da ação
comunicativa e busca apresentar a relação entre facticidade e validade após a guinada
lingüística. Segundo Habermas, Frege teve papel importante na guinada lingüística514,
completada por Charles S. Peirce, que incluiu na análise formal o uso da linguagem.
Peirce considera a comunicação e, em geral, a interpretação de sinais como nervo central das performances lingüísticas [...] No conceito bipolar de um mundo representado lingüisticamente, surge em Peirce o conceito tripolar da representação lingüística de algo para um possível intérprete. O mundo como síntese de possíveis fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação, cujos membros se entendem sobre algo no mundo, no interior de um mundo de vida compartilhado intersubjetivamente.515
513 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 154. 514 “Com essa crítica, Frege dá o primeiro passo rumo à guinada lingüística. A partir de agora, não podemos mais aprender simplesmente e sem mediação pensamentos e fatos no mundo dos objetos representáveis, eles só são acessíveis enquanto representados, portanto em estados de coisas através de proposições [...] o importante é saber que podemos ler a estrutura dos pensamentos observando a estrutura das proposições; e as proposições são as partes elementares de uma linguagem gramatical, passíveis de verdade. Dependemos, pois, do médium da linguagem quando queremos explicar a diferença entre os pensamentos e as representações.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 27-28. 515 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 31-32.
146
Ao analisar a relação entre validade e facticidade nas sociedades sacralizadas e
tradicionais, Chamon Júnior assevera que não existe tensão, mas fusão entre facticidade e
validade:
Enquanto nas sociedades sacralizadas há uma fusão entre facticidade e validade mediada pela autoridade do sagrado, no mundo da vida em que se verificam certas instituições fortes, e assim tradicionais, também não se verifica uma tensão entre facticidade e validade: enquanto saber de fundo e aproblematizado, na validade tem-se apagado este momento “idealizador” e que, por ser contrafático, apontaria para além do dado em cada caso. Não há que se falar entre tensão e facticidade diante daquilo que é “dado”, enfim, perante aquilo que é tradicionalmente compartilhado sem problematizações. Ora, a pretensão de validade somente surge quando se faz delineada uma proposição que, enquanto problematizante, cobra um juízo de verdade, retidão ou veracidade, mas não perante um saber de fundo intersubjetivamente compartilhado que não possibilite questionamentos e que, enquanto tal, não participa desta tensão.516 (grifos do autor)
Na teoria do agir comunicativo, que tem como fundamento o entendimento na
coordenação da ação, as suposições contrafactuais dos atores possuem relevância para a
construção e manutenção da ordem social. Desse modo, Habermas aponta que a tensão entre
facticidade e validade retorna ao modo de integração social. Por sua vez, essa tensão é
estabilizada por meio do direito positivo:
[...] O conceito de agir comunicativo, que leva em conta o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições confractuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade normativas. Isso significa que a tensão entre facticidade e validade, embutida na linguagem e no uso da linguagem, retorna no modo de integração de indivíduos socializados – ao menos de indivíduos socializados comunicativamente - devendo ser trabalhada pelos participantes. Veremos, mais adiante, que essa tensão é estabilizada de modo peculiar na integração social realizada por intermédio do direito positivo.517
Habermas aponta que, ao contrário das sociedades modernas, a legitimidade do direito
nas sociedades tradicionais está relacionada com um direito sagrado. Porém, em uma
sociedade moderna e profanizada em que existe uma distinção entre o agir comunicativo e o
estratégico, as ordens normativas devem ser mantidas sem garantias metassociais. Nessa linha
de idéias, Chamon Júnior esclarece:
Enquanto nas sociedades sacralizadas a referência a Deus era garantia da estabilidade, nas sociedades modernas não há que se falar em qualquer garantia, fundamento ou justificação metassocial. A saída sacra não mais é sustentável na medida em que a sociedade se apresenta como profana e intensamente diferenciada
516 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 228-229. 517 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 35.
147
funcionalmente [...] A integração por via da religião, ou pela via das instituições tradicionais, enfim, pelas certezas fora de questionamento em face do mundo da vida, já não é mais suficiente: a questão da integração social se desloca para os processos de entendimento mútuo, no sentido de que as certezas sagradas/tradicionais, não mais suficientes em um mundo tão plural, cedem lugar para que a integração social seja enfocada através da ação comunicativa.518
Essa integração social, inicialmente, poderia ser feita por intermédio do agir
comunicativo. Porém, existe a possibilidade do dissenso no agir comunicativo, uma vez que
cada participante pode buscar seu próprio interesse (agir estratégico). Surge, então, um
problema típico de sociedades modernas: “[...] como estabilizar, na perspectiva dos próprios
atores, a validade de uma ordem social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e
claramente distintas das interações estratégicas?” Para solucionar esse problema, Habermas
aponta, como saída, a regulamentação normativa de interações estratégicas:
[...] Partimos do fato de que as garantias meta-sociais do sagrado caíram, as quais tinham tornado possível a força de ligação ambivalente de instituições arcaicas e, assim, uma ligação entre facticidade e validade, na própria dimensão da validade. Encontramos a solução desse enigma no sistema de direitos que provê as liberdades subjetivas de ação com a coação do direito objetivo.519
Essa regulamentação normativa, uma vez construída pelos próprios atores sociais,
torna-se vinculante, já que construída com fundamento nas pretensões de validade normativa
reconhecida intersubjetivamente. Nessa perspectiva, Chamon Júnior aponta:
[...] enfim, os enunciados que pretendem regular normativamente as ações estratégicas hão que ser considerados, pelos atores sociais, como vinculantes, isto é, devem ser capazes de ser sustentados perante todos na medida em que são construídos sobre a base de pretensões de validade normativa reconhecidas intersubjetivamente. Há aquilo que HABERMAS chama de uma perspectiva contraditória: o estabelecimento fático de limites à conduta estratégica e objetivamente do sujeito – artificialmente delineados – deve necessariamente estar ancorado naquilo capaz de garantir, em última instância, uma integração social, i.e, a ação comunicativa que, enquanto tal, orienta-se ao entendimento.520
As normas capazes de estabelecer esses limites e regular essas ações estratégicas são
as normas jurídicas, que fazem referência a um sistema de direitos e não que buscam sua
autoridade no sagrado ou no tradicional: “Destarte, o tipo de norma capaz de satisfazer a esta
determinação de limites de maneira impositiva (fática), ao mesmo tempo que retira sua
518 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 230. 519 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 47. 520 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 231.
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autoridade não desta coerção faticamente verificada no sagrado/tradicional, mas de uma
legitimidade (validade), são as normas jurídicas – desde que referidas a um sistema de direitos
que, enquanto indispensáveis, podem ser entendidos como fundamentais.”521
Habermas esclarece que a doutrina do direito em Kant fundamenta-se nos direitos
subjetivos, os quais, por sua vez, possibilitam a utilização do uso da força na proteção da
liberdade subjetiva de ação. O conceito de legalidade kantiano possui papel preponderante na
investigação da validade do direito, considerado como ponto de partida dos direitos
subjetivos. Por essa perspectiva ocorre uma ligação entre facticidade e validade:
[...] Na dimensão da validade do direito, a facticidade interliga-se mais uma vez com a validade, porém não chega a formar um amálgama indissolúvel – como nas certezas do mundo da vida ou na autoridade dominadora de instituições fortes, subtraídas a qualquer discussão. No modo de validade do direito, a facticidade da imposição do direito pelo Estado interliga-se com força de um processo de normatização do direito, que tem a pretensão de ser racional, por garantir a liberdade e fundar a legitimidade.522
Nessa concepção, a relação entre facticidade e validade é estabilizada por meio do
direito. Assim, essa relação fundamentada no direito aponta para uma relação interna entre
coerção e liberdade, uma vez que o uso da coerção, que é autorizado pelo direito, só pode
ocorrer se retirar os obstáculos à liberdade:
Para Kant, a relação entre facticidade e validade, estabilizada na validade jurídica, apresenta-se como uma relação interna entre coerção e liberdade, fundada pelo direito. De si mesmo, o direito está ligado à autorização para o uso da coerção, no entanto esse uso só se justifica quando “elimina empecilhos à liberdade”, portanto, quando se opõe a abusos na liberdade de cada um. Essa ‘relação interna entre o poder geral e recíproco de usar a força e a liberdade de cada um’ se manifesta na pretensão da validade do direito.
[...] O paradoxo das regras de ação, que exigem sem levar em conta a possibilidade de seu reconhecimento moral, se resolve com o auxílio do conceito kantiano da legalidade: normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e da liberdade.523
Segundo Habermas, a coerção e a liberdade se constituem no duplo aspecto de
validade do direito, que, por sua vez, são esclarecidas pela teoria da ação.524 Moreira aponta
que isso ocorre “[...] porque, com a coerção e a liberdade, aquele que age passa a ter as rédeas
521 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 232. 522 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 48. 523 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 49. 524 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 50.
149
da ação.”525 Porém, é necessário questionar de que forma ocorre a validade do direito.
Habermas explicita que a validade do direito ocorre simultaneamente por meio da validade
social ou fática (Geltung) e de sua validade ou legitimidade (Gültigkeit).
Enquanto a validade social se relaciona à sua aceitabilidade fática pelos membros da
comunidade jurídica, a legitimidade ou validade jurídica ocorre por meio da discursividade e
de um processo legislativo racional:
[...] A validade social de normas do direito é determinada pelo grau em que se consegue impor, ou seja, pela sua possível aceitação fática no círculo de membros do direito. Ao contrário da validade convencional dos usos e costumes, o direito normatizado não se apóia sobre a facticidade de formas de vida consuetudinária e tradicionais, e sim sobre a facticidade artificial da ameaça de sanções definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo Tribunal. Ao passo que a legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional – ou fato de que elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista éticos pragmáticos e morais. A legitimidade de uma regra independe do fato de ela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social, como a obediência fática, variam de acordo com a fé dos membros da comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez, apóia-se na suposição da legitimidade, isto é, na fundamentabilidade das respectivas normas.526
Desse modo, o processo de legislação tem papel preponderante na integração social.
Os participantes desse processo deixam de ser meros portadores de direitos privados e passam
a ser cidadãos, membros de uma comunidade jurídica livremente associados. Assim, não
ocorre apenas o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os membros da
comunidade jurídica, mas esse reconhecimento deve ser baseado em leis legítimas, que sejam
capazes de garantir que a liberdade de cada um possa conviver com a liberdade de todos.
Apenas dessa maneira pode-se falar em pretensão de legitimidade do direito:
As leis morais preenchem esta condição per se, no caso das regras do direito positivo, no entanto essa condição precisa ser preenchida pelo legislador político. No sistema jurídico, o processo de legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social. Por isso, temos que supor que os participantes do processo de legislação saem do papel de sujeitos privados do direito e assumem, através de seu papel de cidadãos, a perspectiva de membros de uma comunidade jurídica livremente associada, na qual um acordo sobre os princípios normativos da regulamentação da convivência já está assegurado através da tradição ou pode ser conseguido através de um entendimento, segundo regras reconhecidas normativamente.527
525 MOREIRA, Luis. Fundamentação do direito em Habermas, 2002, p. 121. 526 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 50. 527 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 52-53.
150
Por essa concepção kantiana do princípio do direito, a legitimação do direito se
relaciona com a existência de leis gerais e, conseqüentemente, desse postulado resulta uma
subordinação do direito à moral:
[...] Na formulação kantiana do princípio do direito, a ‘lei geral’ carrega o peso da legitimação. E aí o imperativo categórico está sempre como pano de fundo: a forma de lei geral legitima a distribuição das liberdades de ação subjetivas, porque nele se expressa um bem-sucedido teste de generalização da razão que examina leis. Disso resulta, em Kant, uma subordinação do direito à moral, a qual é inconciliável com a idéia de uma autonomia que se realiza no médium do próprio direito.528
Porém, Habermas adverte que, a partir de uma concepção de autolegislação, não se
pode aceitar essa concepção kantiana, uma vez que a autolegislação pressupõe que os afetados
pelo direito (destinatários) possam se considerar autores desses direitos:
A idéia de uma autolegislação de civis exige que os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam entender-se também enquanto autores do direito. E, para fazer jus a esta idéia, não basta compreender o direito a iguais liberdades de ação subjetivas como um direito fundamentado moralmente, que necessita apenas da positivação através do legislador político. Enquanto pessoas que julgam moralmente, podemos certamente nos convencer da validade do direito humano primordial, na medida em que já dispomos de um conceito de legalidade. Todavia, enquanto legisladores morais, nós ainda não somos sujeitos jurídicos ou destinatários, aos quais esse direito é conferido. É verdade que cada sujeito do direito, no papel de uma pessoa moral, entende que poderia dar-se a si mesmo determinadas leis jurídicas; mesmo assim, essa ratificação moral posterior e privada não elimina o paternalismo de uma “dominação das leis”, à qual os sujeitos do direito, politicamente heterônomos, continuam submetidos. Somente a normatização politicamente autônoma permite aos destinatários do direito uma compreensão correta da ordem jurídica em geral. Pois o direito legítimo só se coaduna com um tipo de coerção jurídica que salvaguarda os motivos racionais para a obediência ao direito. O direito coercitivo não pode obrigar os seus destinatários a isso; deve ser-lhes facultado renunciar ou não, conforme o caso, ao exercício de sua liberdade comunicativa e à tomada de posição em relação à pretensão de legitimidade do direito, ou seja, deve-se permitir que abandonem, num caso concreto, o enfoque performativo em relação ao direito, trocando-o pelo enfoque de um ator que calcula as vantagens e que decide arbitrariamente. Normas jurídicas devem poder ser seguidas com discernimento.529 (grifos do autor)
Porém, Habermas assevera que a autolegislação não pode ser retirada de uma
autolegislação moral, motivo pelo qual ele introduziu o princípio do discurso.530 Esse
princípio demonstra-se indiferente tanto à moral como ao direito, e através da
528 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 157. 529 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 157-158. 530 “O princípio do discurso eqüivale a uma teoria que preconiza uma neutralidade deontológica para discussão e institucionalização (concretização) de decisões pelo melhor argumento, localizando-se no espaço do processo instituinte.” ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 59.
151
institucionalização jurídica, deve-se transformar em um princípio da democracia, que, por sua
vez, faz referência ao sistema de direitos:
A idéia da autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser, deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares. A autonomia tem de ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso, introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal – e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para o exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto, o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.531 (grifo do autor)
O princípio da democracia532 possui papel preponderante nas sociedades democráticas,
uma vez que aponta a necessidade de os destinatários das normas participarem de sua
elaboração através de um discurso racional:
Não podemos esquecer que o objetivo da democracia é o de construir e efetivar um procedimento que seja apto a legitimar o Direito em sociedades abertas e complexas, porque, como já visto, não basta a validade da norma; mister se faz que a mesma possa ser legitimada pelos seus criadores e destinatários (o povo), por uma decisão racional de questões práticas a serem construídas através do discurso, do qual depende a legitimidade das leis. Destarte, o princípio da democracia parte da premissa de que uma formação político-racional da opinião e da vontade é possível, implicando, via de conseqüência, a institucionalização dessa vontade racional através de um sistema que garanta a participação dos envolvidos em igual condição numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo Direito. [...] Destarte, o princípio da democracia é orientador do próprio médium do Direito [...]. Sendo assim, qualquer lei que venha inibir esta prática é ilegítima, pouco importando se ela originou-se do órgão próprio, ou seja, do legislativo.533
Os sistemas de direito são constituídos pelos direitos dos cidadãos, que são aqueles
que esses cidadãos são obrigados a atribuir-se de forma recíproca. Habermas estabelece,
531 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 158. 532 “O princípio jurídico da democracia consiste numa teoria que eqüivale à processualização do princípio do discurso e que garante um espaço discursivo isonômico de defesa (argumentos) irrestrita (ampla defesa) e do contraditório para produção, aplicação e fiscalização incessante da constitucionalidade (co-instituições).” ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 59. 533 TEIXEIRA, Welington Luzia. Novas reformas do CPC e o Estado democrático de direito. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2006, p. 85-86.
152
então, as categorias de direitos capazes de garantir tanto a autonomia privada quanto a
autonomia pública das pessoas de direito. Por outro lado, de acordo com a teoria
constitucionalista do processo, os pressupostos comunicativos habermasianos são constituídos
pelos princípios do contraditório, isonomia, ampla defesa, direito ao advogado e à gratuidade
da justiça.534 Habermas estabelece cinco categorias do direito a partir da aplicação do
princípio do discurso ao medium do direito:
(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação.
(2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito.
(3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual. [...] (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direitos legítimos. [...] (5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4).535 (grifos do autor)
Nas três primeiras categorias de direitos fundamentais, há a garantia da autonomia
privada dos sujeitos jurídicos, visto eles se reconhecerem como destinatários desses direitos.
A partir da quarta categoria, esses sujeitos de direitos assumem também o papel de autores da
ordem jurídica através da autonomia política:
[...] de acordo com o princípio do discurso, podem pretender validade as normas que poderiam encontrar assentimento de todos os potencialmente atingidos, na medida em que estes participam de discursos racionais. Os direitos políticos procurados têm que garantir, por isso, a participação em todos os processos de deliberação e de decisão relevantes para a legislação, de modo que a liberdade comunicativa de cada pessoa possa vir simetricamente à tona, ou seja, a liberdade de tomar posição em relação a pretensões de validade criticáveis. À juridificação simétrica do uso político de liberdades comunicativas corresponde o estabelecimento de uma formação política da opinião e da vontade, na qual o princípio do discurso encontra aplicação. A liberdade comunicativa está referida, antes de qualquer institucionalização, a condições de um uso da linguagem orientado pelo entendimento, ao passo que as autorizações para o uso público da liberdade comunicativa dependem de formas de comunicação asseguradas juridicamente e de processos discursivos de consulta e decisão. Estes fazem supor que todos os resultados obtidos segundo a forma e o procedimento correto são legítimos. Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois, de uma juridificação simétrica da liberdade comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política através da assunção dos direitos dos cidadãos.536
534 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005. 535 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 159-160. 536 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 164.
153
Desse modo, a introdução do sistema de direito possibilita a conexão entre soberania
do povo e direitos humanos e, conseqüentemente, a eqüiprimordialidade entre autonomia
pública e privada. O princípio do discurso, ao assumir a forma de um princípio da democracia
através do medium do direito, possibilita a formação legítima do direito:
Quando introduzimos o sistema de direitos desta maneira, torna-se compreensível a interligação entre soberania do povo e direitos humanos, portanto a co-originariedade da autonomia política e privada. Com isso não se reduz o espaço da autonomia política dos cidadãos através de direitos naturais ou morais, que apenas esperam para ser colocados em vigor, nem se instrumentaliza simplesmente a autonomia privada dos indivíduos para fins de uma legislação soberana. [...] Temos que lançar mão do médium do direito, caso queiramos implementar no processo de legislação – com o auxílio de iguais direitos de comunicação e de participação – o princípio do discurso como princípio da democracia. Entretanto, o estabelecimento do código jurídico enquanto tal implica direitos de liberdade, que criam o status de pessoas de direito, garantindo sua integridade. No entanto, esses direitos são condições necessárias que apenas possibilitam o exercício da autonomia política; como condição possibilitadora não impõem limitações àquilo que constituem.
O princípio do discurso e a forma jurídica de relações interativas não são suficientes, por si mesmos, para a fundamentação de qualquer tipo de direito. O princípio do discurso só pode assumir a figura de um princípio da democracia, se estiver interligado com o médium do direito, formando um sistema de direitos que coloca a autonomia pública numa relação de pressuposição recíproca.537
Nessa linha de idéias, Chamon Júnior enfatiza que, por uma concepção procedimental,
não pode ocorrer uma prevalência entre a autonomia pública (liberdades comunicativas) e a
autonomia privada (liberdades subjetivas), mas uma relação de co-dependência:
Em uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito não há que se falar na prevalência do público ou do privado, mas antes numa co-dependência que não pode ser cortada senão sob o perigo de não se considerar a construção legítima das decisões políticas e da produção do Direito. Neste sentido, portanto, se autonomia privada se refere a uma seara em que indivíduos reconhecem reciprocamente, e a todos, determinados direitos a fim de possibilitar a construção de um projeto de vida rumo a sua própria e individual (privada) auto-realização ética – inclusive reconhecendo âmbitos para o agir estratégico -, a autonomia pública, por sua vez, é referente a um campo aberto às discussões, enfim, um espaço discursivo aberto em que, também aqui, reconhecem-se, a todos, direitos de igual inserção nos debates. Assim é que fica estabelecida uma co-dependência entre autonomia privada e pública.538
537 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 165. 538 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na alta modernidade, 2005, p. 251.
154
A partir do momento em que o sistema de direitos é capaz de assegurar tanto a
autonomia pública quanto a privada, ocorre a tensão entre facticidade e validade. Nesse
sentido, Habermas afirma:
Na medida em que o sistema de direitos assegura tanto a autonomia pública como a privada, ele operacionaliza a tensão entre facticidade e validade, que descrevemos inicialmente como tensão entre positividade e a legitimidade do direito. De um lado, o sistema dos direitos conduz o arbítrio dos interesses de sujeitos singulares que se orientam pelo sucesso para os trilhos de leis cogentes; que tornam compatíveis iguais liberdades subjetivas de ação; de outro lado, esse sistema mobiliza e reúne as liberdades comunicativas de civis, presumivelmente orientados pelo bem comum, na prática da legislação. Aqui irrompe novamente a tensão entre facticidade e validade; ou melhor, ela se concentra na circunstância, paradoxal à primeira vista, de que os direitos políticos fundamentais têm que institucionalizar o uso público das liberdades comunicativas na forma de direitos subjetivos. O código do direito não deixa outra escolha; os direitos de comunicação e de participação têm que ser formulados numa linguagem que permite aos sujeitos autônomos do direito escolher se e como vão fazer uso deles.539 (grifos do autor)
Apesar de, por um lado, Habermas trazer uma contribuição significativa no estudo da
legitimidade do direito e das decisões judiciais, apontando que nas sociedades democráticas
os destinatários das normas devem-se reconhecer como autores, por outro lado, ele não
esclareceu como deverá ocorrer essa transposição do princípio do discurso para o princípio da
democracia, capaz de garantir a efetivação dos direitos fundamentais. Essa ligação pode ser
realizada através de uma teoria do processo de base fazzalariana540 ou neo-institucionalista,
que aponta a necessidade de um espaço-jurídico processualizado:
O postulado de Habermas de que a força do direito nas democracias se expressa na circunstancialidade de os destinatários das normas se reconhecerem como seus próprios autores só é acolhível num espaço-jurídico processualizado (em conotações fazzalarianas e neo-institucionalistas) em que as decisões não seriam atos jurisdicionais de algum protetor ou mero provedor dos procedimentos democraticamente constitucionalizados (devido processo legal), mas atos processualmente preparados na estrutura procedimental aberta a todos os sujeitos (partes: pessoas físicas e jurídicas, coletivos; órgãos judiciais; juízes; instituições estatais, Ministério Público e órgãos técnicos) figurativos e operadores dessa instrumentalidade jurídico-discursiva na movimentação efetivadora, correcional e recriativa dos direitos constitucionalizados por uma comunidade que se candidate a se constituir, a cada dia, em sociedade jurídico-política democrática no Estado constitucionalizado.541
Por sua vez, Nunes, embasado na teoria do processo em contraditório e na teoria neo-
institucionalista, assevera que, na concepção democrática e discursiva do direito, é necessário 539 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 166-167. 540 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, 1996, p. 82. 541 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 131.
155
que se garantam às partes, em termos de técnica processual, espaços de diálogos que
possibilitem a construção de um provimento comparticipativo e a observância dos princípios
do contraditório, isonomia e ampla defesa.542
Almeida também destaca que, apesar de Habermas ter ressaltado a relevância da
procedimentalidade na construção de uma sociedade democrática, isso foi realizado de
maneira abstrata, sendo necessárias discussões acerca do processo e do procedimento. Desse
modo, estabelece-se a institucionalização do princípio do discurso em princípio da
democracia: “[...] a implementação da teoria sociológica habermasiana do discurso
democrático (compreensão procedimentalista) perpassa na teoria e na práxis do direito,
visando transpor (institucionalizar) o princípio do discurso em princípio da democracia
perpassa pela teoria do processo.”543
A institucionalização do princípio do discurso em princípio da democracia deve
perpassar pelo processo. Almeida, em estudo desenvolvido em sua dissertação de mestrado,
embasada no método crítico eliminacionista popperiano, na teoria neo-institucionalista do
processo e com base na teoria habermasiana, esclarece que as teorias do processo, uma vez
submetidas a testes pela teoria neo-institucionalista do processo não resistem aos testes aos
quais foram submetidas, daí a necessidade de se refutarem algumas das teorias do processo.544
A teoria do processo como contrato e quase contrato, baseada na vontade individual,
não possibilita a intersubjetividade, requisito essencial para a legitimidade do direito. Por sua
vez, a teoria da relação jurídica, idealizada por Bülow e recepcionada pelo Código de
Processo Civil brasileiro, inviabiliza a participação das partes na construção do provimento
jurisdicional e, uma vez baseada na concepção dos republicanos, amplia os poderes do
Estado-juiz na elaboração da decisão. Além disso, essa teoria entende que o direito é um caso
especial de moral. Nessa linha de idéias, Almeida destaca: “[...] de modo diverso da teoria do
discurso, a escola instrumentalista, em um hibridismo jurídico, ainda compreende que o
direito se confunde com a moral, podendo as decisões serem fundamentadas, na falta da lei,
através da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito, e ainda por meio da eqüidade,
nos casos estabelecidos em lei (art. 126 e 127 do CPC e art. 4º da LICC).”545
Leal adverte que a legitimidade das decisões para os instrumentalistas não é
considerada um fato jurídico, mas um fato social, uma vez que as decisões não decorrem do 542 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 61. 543 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p.56. 544 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p.56-61. 545 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 56.
156
devido processo. Desse modo, fica evidente que os teóricos dessa escola não adotam a teoria
discursiva habermasiana:
Com efeito, os instrumentalistas são contrários à teoria discursiva da democracia que informa o Estado democrático de direito, as decisões ditas proferidas em harmonia ao sistema processual identificador desse Estado não passam pelo princípio da democracia (irrestrita observância aos conteúdos dialógico-jurídicos do devido processo legislativo e ao devido processo legal como institutos da expansividade jurídico-normativa do DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL).546 (grifos do autor)
Em uma concepção diferente da esposada pela teoria da relação jurídica, Habermas
adverte que “[...] a dimensão de validade mais complexa das normas do direito proíbe
equiparar correção de decisões jurídicas à validade dos juízos morais e, nessa medida,
considerá-la como um caso especial de discursos morais.”547
Além disso, Habermas critica a ampliação dos poderes do juiz nos termos propostos
pela teoria da relação jurídica e assevera que no Estado democrático de direito a interpretação
judicial dos direitos e deveres não pode ser baseada no princípio monológico, que elegeu
Hércules como seu modelo, mas deve ser baseada numa interpretação construtiva, embasada
na comunicação pública dos cidadãos.548
A teoria discursiva de Habermas não coaduna com a teoria do direito solipsista de
Dworkin.549 Por essa perspectiva habermasiana, no Estado democrático as súmulas
vinculantes são insustentáveis, posto que baseadas no princípio monológico dworkiano, visto
que elas são elaboradas pelos Tribunais e não são compartilhadas pelos afetados pelo direito.
Sobre o tema, Penna assevera:
Por isso HABERMAS (1997) cita a crítica profunda que MICHELMAN faz à concepção do juiz monológico, enfatizando, pois, ser inconcebível tal modelo sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Por sinal, pelo ensinamento de MICHELMAN constata-se que uma decisão nascida apenas da atividade e iniciativa dos tribunais, de efeito vinculante, sem dúvida apresenta-se como exercício do juiz monólogo, e com todas as características do Hércules dworkiano, especialmente porque, por essa concepção, não se vislumbra a via participativa e pluralista, mas apenas a visão solipsista daqueles que conseguem extrair por intermédio de uma capacidade intelectual e humana extraordinárias, todos os anseios da sociedade.550
546 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 128 547 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 290. 548 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 278. 549 DWORKIN, Ronald. O império do Direito, 2003. 550 PENNA, Saulo Versiani. A decisão de efeito vinculante na teoria do processo jurídico contemporâneo: sua legitimidade sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, 2004, p. 106.
157
Por sua vez, Leal adverte que, ao se enfatizar que a lei, como instrumento formal do
direito, apresenta lacunas, as quais, por sua vez, são inerentes ao sistema jurídico, cabe um
questionamento, qual seja: A proibição ou negação do non liquet não seria uma estratégia dos
liberais para colocar nas mãos do Judiciário o poder de decisão baseado na ética e nos
costumes? Ao contrário disso, Leal enfatiza a necessidade de se pensar numa fiscalidade
processual dos critérios de legislar: “Portanto, os que entendem ainda a lacuna da lei ou a
defesa de sua completude como problema que, nas decisões, tem de ser dogmaticamente
resolvido pelo juiz, desconhecem que, na democracia, nenhuma norma é exigível se seu
destinatário não é o seu próprio autor.”551
Desse modo, ao contrário da teoria da relação jurídica que destaca que as lacunas da
lei devem ser resolvidas de forma dogmática pelo juiz, Leal esclarece que “[...] No direito
democrático, se a lei, em qualquer nível é obscura, ininteligível, lacunosa, ambígua,
antagônica, inadequada, por antinomia, caberia ao juiz decidir segundo os conteúdos
paradigmáticos da teoria do Estado democrático de direito em sua base de fundamentalidade
jurídica (direitos humanos) já prejulgados na instância constituinte da institucionalização de
direitos.”552 Assim, a lei deve ser processualmente produzida, não se admitindo realidade
jurídica fora dos perfis do processo.
Já a teoria da situação jurídica, apesar de ter criticado a teoria da relação jurídica pelos
vínculos de subordinação entre as partes aponta que não existiam direitos preexistentes no
processo, mas apenas expectativas e ônus, uma vez que o processo era um duelo entre as
partes, e o juiz poderia reconhecer os direitos alegados pelas partes sem qualquer
fundamentação jurídica. Sobre o tema, Leal aponta: “[...] não precisava a sentença apontar
fundamentos jurídicos para a sua elaboração e conclusão, porque, segundo Goldschmidt, a
sentença é uma resolução do conflito que não guardava uma ‘relação causal’ com o processo,
não passando os ‘direitos processuais’ de meros prognósticos que poderiam ou não ser
aproveitados pela sentença em prol de qualquer dos contendores.”553 Desse modo, Almeida
adverte que a teoria do processo como situação jurídica manteve o voluntarismo e
subjetivismo, motivo pelo qual se mostra incompatível com a teoria discursiva do direito.554
Por sua vez, apesar de a teoria constitucionalista do procedimento em contraditório ter
contribuído para a democratização do discurso processual, quando garante às partes a
551 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 39. 552 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 39 553 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 95. 554 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 57.
158
participação em simétrica paridade, não conceituou o processo como instituição jurídica
constitucionalizada regente da estrutura procedimental. Isso acabou “[...] deixando que o
princípio do contraditório adquira força pela coercitividade autopoiética legalista, manipulada
estrategicamente pelos instrumentalistas do Estado burguês de direito.”555
Almeida esclarece que, quando essas teorias são submetidas a testes pela teoria neo-
institucionalista do processo, elas não se coadunam com a teoria discursiva do direito
democrático, uma vez que ainda não conseguiram superar a concepção liberal e republicana e
adotar a teoria procedimental idealizada por Habermas, baseada na dialeticidade e
intersubjetividade, além de fazer uso da tópica e da retórica, o que acaba por conduzir a
decisões solipsistas e autoritárias.556
Pelo estudo realizado, fica evidente a contribuição de Habermas, visto que sua teoria
do discurso possibilita repensar a legitimidade do direito e das decisões judiciais nas
sociedades complexas. Além disso, ele demonstra a debilidade das decisões monológicas
(solipsistas) e baseadas na figura do juiz Hércules como ocorre com as decisões de efeito
vinculante. Apesar da relevância do estudo de Habermas, ele não explicou de que forma
ocorreu a passagem do princípio do discurso ao princípio da democracia. Com o intuito de
esclarecer como isso se concretizou, estudar-se-á, no próximo subitem, a teoria neo-
institucionalista do processo, pois é por meio dessa teoria processual que ocorre a
institucionalização do princípio do discurso em princípio jurídico da democracia, já
solucionada por Popper por meio de sua lógica discursiva557, superando-se a lacuna deixada
por Habermas na obra Direito e democracia: entre facticidade e validade.
1.3 Teoria neo-institucionalista e teorização constitucional do direito processual
democrático
Os inimigos da sociedade aberta, Platão, Hegel e Marx, fazem uso dos princípios da
mecânica social utópica ou holista e preconizam o processo histórico, que é típico das
sociedades tribais. Por outro lado, Leal, embasado nos princípios da mecânica social gradual e
555 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 57. 556 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 58. 557 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 16.
159
utilizando-se do método gradual de tentativa e erro popperiano558, elabora a teoria neo-
institucionalista do processo, colocando no centro de suas reflexões o processo jurídico
como forma de enunciação de uma Sociedade Jurídico-Político-Democrática (aberta). Essa
teoria processual da decisibilidade ofertada pelo professor mineiro consiste em uma
proposição que possibilita compreender de que maneira ocorre a transposição do princípio do
discurso em princípio da democracia, suprindo a lacuna deixada por Habermas em sua obra
Direito e democracia: entre facticidade e validade. Além disso, Leal, por meio da teoria neo-
institucionalista, objetiva construir um referente lógico-jurídico capaz de submeter a testes as
teorias que se intitulam de democráticas.559
Leal se propõe a investigar os contornos teóricos da decisão democrática e, para tanto,
faz um estudo comparativo entre a teoria discursiva das decisões que caracterizam a passagem
para a pós-modernidade da constitucionalidade democrática e a das decisões autocráticas
baseadas no poder, na tradição e na autoridade. Desse modo, o autor busca ressemantizar o
conceito de decisão no Direito da pós-modernidade, baseado na teoria discursiva de
Habermas e na epistemologia popperiana e, em especial, através do critério de falseabilidade
do ordenamento jurídico. Assim, a teoria neo-institucionalista constitui-se em uma teoria
processual testificante da validade normativo-democrática.
Outrossim, a teoria neo-institucionalista fundamenta-se na proposta de uma teoria
constitucional do direito democrático que se relaciona com a cidadania. Leal estuda a
cidadania560 como núcleo da democracia e questiona seu estudo como ação social que ocorre
por mobilizações sociais e fora do espaço da procedimentalidade. Assim, a teoria neo-
institucionalista enfatiza a ação jurídica como exercício da cidadania.561
A teoria neo-institucionalista assevera a necessidade de uma interpretação
teoricamente demarcada (hermenêutica constitucional) capaz de possibilitar a fiscalidade do
ordenamento jurídico por parte dos destinatários da norma.562
558 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos, 1987, v.1, 2. 559 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. 560 “A cidadania, como direito-garantia fundamental constitucionalizada, só se encaminha pelo Processo, porque só este reúne garantias dialógicas de liberdade e de igualdade do homem ante o Estado na criação e na reconstrução permanente das instituições jurídicas, das constituições e do próprio modelo constitucional do Processo.” LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 52. Ver também SOARES JÚNIOR, Dário José. O processo como instituição no Estado pós-moderno. Jus navegandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2440>. Acesso em: 31/03/2007. 561 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia – A ação jurídica como exercício da cidadania. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005, p. 1-14. 562 LEAL, Rosemiro. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 92.
160
Inicialmente, cumpre esclarecer o que significa um direito processual da pós-
modernidade. Leal enfatiza que a processualidade jurídica institucionalizada possui papel
preponderante para a passagem para a pós-modernidade, pois a legitimidade do direito não
se relaciona apenas com sua positividade (legalidade formal), mas também com a
possibilidade de uma fiscalização irrestrita por parte da comunidade jurídica na construção do
ordenamento jurídico.563
Na pós-modernidade, o Estado que se deve estudar é o Estado democrático de direito
constitucionalizado pela Constituição de República Federativa do Brasil, de 1988. Esse
Estado, numa concepção não hegeliana564, não representa mais o todo do ordenamento
jurídico, mas encontra-se em situação isonômica com outras instituições. Assim, como parte
desse ordenamento jurídico em que se encontra o Estado, também está o processo como
instituição jurídica:
Por conseguinte, o Estado na pós-modernidade, seja como Administração-Governativa ou espaço da procedimentalidade jurídica, não é mais o todo do ordenamento jurídico, mas está no ordenamento jurídico em situação homotópica (isonômica) com outras instituições e com esta se articula de modo interdependente e num regime jurídico de subsidiariedade recíproca. O Processo, como instituição jurídica desse mesmo ordenamento jurídico, define-se como bloco de condicionamentos do exercício da Jurisdição na solução dos conflitos e da validade da tutela jurisdicional, que, não sendo um ato ou meio ritualístico, sentencial e solitário do Estado-juiz, é o provimento construído pelos referentes normativos da estrutura institucional constitucionalizada do Processo.565
O Estado democrático de direito, como instituição constitucionalizada, é um projeto
que se encontra em construção gradativa pela comunidade jurídica por meio do devido
processo constitucional. Esse, por sua vez, “[...] é o recinto de fixação jurídico-
principiológica instituinte dos direitos fundamentais como ponto de partida da teorização
jurídica da democracia para criação normativa de direitos a se efetivarem processualmente no
mundo vivente.” 566
Assim, Leal conceitua o Estado democrático de direito como um espaço juridicamente
constitucionalizado em que os destinatários das normas também se consideram autores das
normas vigentes:
563 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 28. 564 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito, 1997, p. 205. 565 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 53. 566 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 31.
161
O Estado democrático de direito, em sua acepção pós-metafísica e pós-convencional, é um espaço judicamente institucionalizado a uma constante aprendizagem processual de exercício testificador dos direitos fundamentais (criados e garantidos pelo devido processo constitucional) em que os destinatários da normatividade legislada legitimam a validade e a eficácia do ordenamento jurídico pela via procedimental do devido processo legal irrestrito (aberto a todos como fundamento da soberania popular), mediante o qual se reconhecem autores das normas vigentes e aplicáveis por um controle confirmativo ou recriativo de constitucionalidade do direito posto (plebiscitarização da fiscalidade jurídica).567 (grifos do autor)
Por conseguinte, Leal apresenta uma concepção diferente daquela apresentada pelos
republicanos e liberais, uma vez que tanto os republicanos como os liberais trabalham com
uma sociedade centrada no Estado. Leal, assim como Habermas, embasado numa concepção
da procedimentalidade democrática, adota uma concepção descentrada de Estado. Assim, por
essa concepção que enfatiza que o Estado não detém o monopólio da decisão e do direito, o
Estado e o cidadão encontram-se em situação de igualdade por meio de uma instituição
jurídica, que é o processo: “O Estado (status da processualidade) e o cidadão já deveriam
estar em nível de igualdade institucional pela regência de uma instituição maior, que é hoje a
Jurisdição Constitucional do Processo.”568
A legitimidade das instituições jurídicas advém da estrutura normativa constitucional e
se relaciona com a garantia da atuação da cidadania; essa, por sua vez, é que qualifica o
indivíduo como construtor da sociedade jurídico-política. Assim, cidadão é aquele legitimado
ao devido processo legal. Segundo Leal, cidadania “[...] é um deliberado vínculo jurídico-
político-constitucional que qualifica o indivíduo como condutor de decisões, construtor e
reconstrutor do ordenamento jurídico da sociedade política a que se filiou, porém o exercício
desse direito só se torna possível e efetivo pela irrestrita condição legitimada ao devido
processo constitucional.”569
A cidadania, como direito-garantia constitucionalizado, não se relaciona com uma
ação social baseada em mobilizações sociais utópicas, pelo contrário, ela somente se
concretiza pelo processo. Desse modo, a teoria neo-institucionalista refuta o exercício da
cidadania como ação social e propugna a ação jurídica como exercício da cidadania. Leal
aponta que, na construção de uma sociedade democrática, não se pode orientar por um
processo histórico, mas por um processo jurídico, fundamentado no contraditório, isonomia
e ampla defesa:
567 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 145. 568 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 52. 569 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 28.
162
Não mais nos orientamos atualmente por um processo histórico (causalidade histórica) fora das constituições em concepções fatalistas e inescapáveis (ortodoxo-marxista) a determinar a consciência dos homens, mas o que se busca é a construção de uma sociedade (não causalidade sociológica) que passe pelo processo democrático do exercício coletivo das conquistas históricas jurídico-normativas de todos igualmente decidirem o devir. Claro que tal esforço teórico tem seus fundamentos na instituição constitucionalizada do PROCESSO que se define pelos princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa, condutores dialógicos (afirmações-negações) no espaço político de juridificação (edificação jurídico-sistemática) dessa nova realidade esperada.570 (grifos do autor)
Com base no critério de demarcação popperiano (falseabilidade), Leal submete a testes
as teorias das decisões baseadas no voluntarismo e no autoritarismo. Porém, ao final refuta
essas teorias e oferece uma teoria processual da decisão jurídica. Para melhor esclarecimento
acerca do instituto jurídico da decisão no Estado democrático de direito, o presente estudo
será dividido em três partes: 1) Decisionismo voluntarista e autoritarista, 2) Visão neo-
institucionalista da decidibilidade e 3) Procedimentalidade democrática (neo-institucionalista)
e princípio do discurso.
Nos primórdios da civilização, a decisão se apresenta numa visão autoritária como ato
criador do direito pelos interditos romanos. Nesse sentido, Leal acentua: “[...] os interditos
(interdicta) eram atos de vontade e poder (potestas) do pretor e encerravam veracidade
indiscutível, enquanto a jurisdicitio (atos de inteligência) encaminhava um provimento final
(sentença) pela constatação de verossimilhança do direito alegado.”571
Já nos séculos XX e XXI, para muitos processualistas, em especial para os adeptos da
teoria do processo como relação jurídica572 e para os instrumentalistas, a decisão é estudada
como um ato de salvação da lei pelo Judiciário. Porém, Leal esclarece que na pós-
modernidade a decisão não pode mais ser estudada na acepção aristotélica, como um ato de
escolha pelo julgador das diversas alternativas: “A decisão, como filosofema (juízo
570 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e Hermenêutica constitucional a partir do Estado Democrático de Direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 95 571 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 25-26. 572 “[...] o conceito de jurisdição de Bülow não foi adequadamente tematizado, já que, para o autor, a jurisdição corresponde à atividade respeitável e continuada dos magistrados, devidamente resguardada pelo poder coercitivo estatal, como única instância apta a retirar o direito de sua abstração legal e torná-lo operacionalizável. ANDRÉ LEAL, Cordeiro. Processo e jurisdição no estado democrático de direito: reconstrução da jurisdição a partir do Direito Processual democrático. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: <http://www.sistemas.pucminas.br/BDP?SilverStream/Pages/pg_ConstItem.html>. Acesso em: 14/09/2007, p. 1.
163
conclusivo pelo loci e a adesão ao topos573 já culturalmente contigenciado ou como juízo
sintético pelo achamento apodíctico), não mais satisfaz as investigações do pensamento
jurídico, que se afasta, a cada dia, da escolástica aristotélica, que via na decisão uma predileta
e individual escolha entre várias alternativas.”574
Leal, ao analisar o instituto da decisão na visão de Chiovenda, assevera que “[...] a
sentença vale como expressão da vontade do Estado e não de suas premissas lógicas.”575
Desse modo, Chiovenda define a jurisdição “[...] como função do Estado que tem por
escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos
públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência
da vontade da lei, já no torná-la praticamente efetiva.”576 Assim, a função jurisdicional é o
poder de aplicar a lei ao caso concreto.
Além disso, Leal destaca que, em Chiovenda, o Estado é todo poderoso, possuindo
mais poder do que seus integrantes: “[...] o Estado é um conjunto orgânico mais poderoso que
seus órgãos integrantes, como que uma síntese metabólica de elementos político-jurídicos que
se manifestasse numa vontade-poder legitimadora da lei por ele próprio produzida.”577 Por sua
vez, o processo por essa concepção não visa à defesa dos direitos subjetivos, mas tem por
objetivo a atuação da lei. Chiovenda, assim como Bülow578, analisa o processo como relação
jurídica. Para Leal, o estudo do processo como um instrumento da jurisdição ou como relação
jurídica acaba por inviabilizar a compreensão do instituto da decisão no Estado democrático,
uma vez que esse se fundamenta na razão discursiva e não na tradição e autoridade das
decisões.
Leal adverte que, ao colocar a jurisdição no centro da teoria processual, os adeptos da
teoria da relação jurídica acabam por enfatizar que o ato de decidir se relaciona com o poder
do Estado e esse, por sua vez, é que garante a validade do direito: “[...] a confusão implantada
pelos instrumentalistas liebmanianos entre jurisdição, processo e procedimento, com eleição
da jurisdição como centro da teoria processual, é que tem propiciado um sincretismo maligno
dos significados do decidir a tal ponto de o Estado ainda ser, em nossos dias, o ente mítico
573 “[...] Os pontos de vista provados e freqüentes destes campos especiais são também topoi que estão a serviço de uma discussão de problema e cujo conhecimento tem por objeto oferecer une sorte de reportoire facilitant l’invention.” VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Universidade de Brasília, 1979. v.1, p. 37. 574 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 17. 575 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 21. 576 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual. 2. ed., 2000. v.2, p. 8. 577 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 21. 578 BÜLOW, Oscar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais, 2003.
164
(temido) que se presta a garantir a violência estrutural da validade do direito.”579 (grifos do
autor).
Porém, Leal adverte que, na pós-modernidade, a decisão já não se relaciona ao poder,
tradição e autoridade; o instituto da decisão perdeu esse caráter interdital, ou seja, o
decisionismo pela autoridade-vontade executiva, posto que elas se submetem ao devido
processo legal, que se constitui em um direito-garantia no Estado democrático de direito.
Somente a partir de Fazzalari a decisão saiu da esfera do decisor e passou a ser estudada, em
âmbito teórico, como provimento:
Essa perda semântica do sentido interdital da decisão (decisionismo pela autoridade-vontade executiva), cujo resgate ainda foi lamentavelmente tentado por Carl Schmitt, possibilitou o enquadramento teórico da decisão no conceito de provimento do hodierno direito processual italiano, que, com Fazzalari, significando julgamento vinculado ao espaço técnico-procedimental-discursivo do processo cognitivo de direitos, como conclusão co-extensiva da argumentação das partes, adquiriu conotação de ato integrante final da estrutura do procedimento. Com Fazzalari, foi possível um salto epistemológico que retirou a decisão da esfera individualista, prescritiva e instrumental da razão prática do decisor.580
Essa também é a posição de Brêtas C. Dias, para quem a função jurisdicional deve
observância ao processo constitucional, não se constituindo em um ato isolado do órgão
jurisdicional:
Portanto, no Estado Democrático de Direito, que visualizamos como princípio, a função jurisdicional somente se concretiza dentro da moderna e inafastável estrutura constitucionalizada do processo e a declaração final do Estado, decorrente do poder de cumprir o dever de prestá-la, quando e se provocado por qualquer um do povo ou mesmo por qualquer órgão estatal, inserida na decisão, sentença ou provimento ali prolatados, jamais será um ato isolado ou onipotente do órgão jurisdicional, ditando ou criando direitos a seu talante, máxime se fundados na fórmula ilógica, inconstitucional e antidemocrática do ‘livre (ou prudente) arbítrio’ do juiz, mas resultado lógico de uma atividade jurídica realizada com a obrigatória participação em contraditório daqueles interessados que suportarão seus efeitos.
Em resumo, inspirando-nos nas lições proficientes de Rosemiro Pereira Leal, a função jurisdicional do Estado tem de ser prestada sob obediência ao processo constitucional, não se podendo conceber o processo como se fosse um meio de obediência servil à jurisdição.581
579 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 24. 580 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 26-27. 581 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 87-88.
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Brêtas C. Dias, estribado no renovado conceito de jurisdição formulado pela teoria
neo-institucionalista, e com fundamento na concepção estruturante do Estado democrático de
direito, formula o seguinte conceito de jurisdição:
[...] A função jurisdicional ou jurisdição é atividade-dever do Estado, prestada pelos seus órgãos competentes, indicados no texto da Constituição, somente possível de ser exercida sob petição da parte interessada (direito de ação) e mediante a garantia do devido processo constitucional, ou seja, por meio de processo instaurado e desenvolvido em forma obediente aos princípios e regras constitucionais, dentre os quais avultam o juízo natural, a ampla defesa, o contraditório e a fundamentação dos pronunciamentos jurisdicionais, com o objetivo de realizar imperativa e imparcialmente o ordenamento.582
Por sua vez, nessa perspectiva, Cattoni de Oliveira também enfatiza o caráter do
discurso do processo jurisdicional e assevera a importância da observância dos princípios
constitucionais, dentre os quais destaca os do contraditório, da ampla defesa, do direito à
prova, do juiz natural, da independência e imparcialidade do juiz, da fundamentação racional
das decisões, da publicidade, da instrumentalidade técnica do processo, da efetividade e da
inafastabilidade da tutela jurisdicional. A partir desses pressupostos, Cattoni de Oliveira
esclarece que a jurisdição deve ser compreendida como “[...] atividade, o poder-dever,
público-estatal que se realiza através de discursos jurídico-processualmente
institucionalizados de aplicação jurídico-normativa.”583
Na pós-modernidade, os destinatários das decisões não são destinatários passivos da
legalidade produzida, tendo em vista que essas decisões devem se submeter ao devido
processo legislativo e ao devido processo legal:
É na pós-modernidade concebida por um direito que não se contenta com pretensões de validade em bases meramente estratégicas de preservação de uma paz sistêmica, em que os destinatários das normas são clientes passivos da legalidade produzida, é que se realizaria a legitimidade do direito, mediante a estruturação procedimental criadora de situações jurídicas pelo devido processo legislativo. Tais situações jurídicas se submetem a correições também processualizadas pelo devido processo legal, como ponto de fuga da modernidade secularizada cuja produção jurídica se manifesta insuficientemente validada por uma razão prescritiva que, mesmo ocasionalmente apartada da tradição, ainda assim se impõe por uma deontologia (árbitro) do saber técnico-jurisprudencial de assembléias de especialistas paternalizadoras de decisões não preparadas procedimentalmente numa relação normativa espácio-temporal em simétrica paridade construtivo-estrutural com os componentes da comunidade jurídica.584 (grifos do autor)
582 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 83-84. 583 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 160. 584 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 29.
166
Nesse diapasão, Brêtas C. Dias aponta que, tendo em vista as decisões serem atos que
refletem o poder político do Estado, não devem ser arbitrárias, mas devem obediência aos
princípios do Estado democrático de direito:
Em razão disso, essa manifestação de poder do Estado, exercido em nome do povo, que se projeta no pronunciamento jurisdicional, é realizada sob rigorosa disciplina constitucional principiológica (devido processo constitucional), só podendo agir o Estado, se e quando chamado a fazê-lo, dentro de uma estrutura metodológica construída normativamente (devido processo legal), de modo a garantir adequada participação dos destinatários na formação daquele ato imperativo estatal, afastando qualquer subjetivismo ou ideologia do agente decisor (juiz), investido pelo Estado do poder de julgar, sem espaço para discricionariedade ou a utilização de hermenêutica canhestra, fundada no ‘prudente (ou livre) do juiz’, incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito, como, ao contrário, até hoje e infelizmente, alguns doutrinadores supõem e apregoam.585
Leal assevera que os paradigmas do Estado de direito e do Estado social não
esclarecem o significado de democracia, que, uma vez diluídos nos textos constitucionais da
modernidade, às vezes destacam o republicanismo das maiorias autocráticas e outras vezes o
liberalismo (privatismo) baseado nas liberdades negativas. Desse modo, para que ocorra a
concretização das constituições democráticas, faz-se necessária uma teoria do processo capaz
de explicar o significado do princípio da democracia. As demais teorias do processo, de modo
diverso da teoria neo-institucionalista, não viabilizaram a institucionalização do princípio do
discurso nem viabilizaram a revisibilidade do ordenamento jurídico:
A pós-modernidade do discurso filosófico-constitucional se faz pela apreensão da democracia como teoria processual de resolução do impasse da modernidade ainda radicalizado na recusa em preencher o vazio da linguagem deixado ao longo de século de dominação legal pelo autoritarismo da razão prescritiva, que, embora já acentuadamente laicizada (desencantada) em seus juízos de validação, não é apta a encaminhar o convívio em sociedades pluralísticas e transculturais da atualidade. É preciso destruir o fetiche do Estado de Justiça que está a emperrar a transição para a pós-modernidade.586
Nessa resolução do impasse da Modernidade, os direitos fundamentais
constitucionalizados são inafastáveis e também são suscetíveis de uma fiscalidade ampla,
motivo pelo qual houve a necessidade de desenvolver uma teoria do processo de direito
democrático capaz de atender a essa exigência:
585 BRÊTAS C. Dias, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 86. 586 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 30.
167
Também é oportuno que se esclareça a expressão direitos fundamentais, que, na pós-modernidade, não pode designar o que é eternamente intrínseco ao ser humano como integrante de um Estado-Nação e que se explicitasse pelo reconhecimento recíproco entre homens como atributos inatos e individuais de liberdade, igualdade e dignidade, porque os fundamentos desses cognominados direitos humanos hão de ser, na teoria do democracia, postos pela decidibilidade de cunho discursivo como forma processual ilustrada de institucionalização jurídica da vontade soberana da comunidade, que, por se prover pela teoria do processo de direito democrático, cumpre estabelecer os princípios a serem observados atinentes à isonomia, ampla defesa e contraditório, como fundamentos (autoprivação de liberdade) de demarcação do exercício da vontade criadora de direitos.
Assim, na teoria da democracia, os direitos fundamentais são inafastáveis não porque já estejam impregnados na consciência dos indivíduos, mas porque são pressupostos jurídicos da instalação processual da movimentação do sistema democrático, sem os quais o conceito de Estado democrático de direito não se enuncia.587 (grifos do autor)
Assim, a hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito não pode ser
fundamentada no poder, na tradição ou na autoridade formados na filosofia do sujeito ou em
uma interpretação solipsista do juiz588, como querem os adeptos da teoria da relação jurídica
ou os instrumentalistas, mas no princípio do discurso juridicamente institucionalizado:
Com efeito, ao se falar numa hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, não há de ser por balizamentos metodológicos da tradição ou autoridade formados na filosofia do sujeito, porque a regência operacional da democracia não ocorre no plano solipsista do intérprete iluminado por uma inteligência genial, mas pela auto-ilustração teórica do princípio do discurso juridicamente (processualmente) institucionalizado e direcionado à concreção dos direitos à fundamentalidade constitucional democrática.589 (grifos do autor)
Leal assevera que, ao contrário do que preconizam os especialistas do Estado burguês
ou social de direito, o princípio da legalidade no Estado democrático de direito não autoriza o
preenchimento da lei pelo intérprete-decisor, por meio de métodos de interpretação. Os
problemas relacionados a eventuais anomias ou antinomias normativas devem ser
solucionados com base nos argumentos jurídicos dos legitimados ao processo:
[...] no direito democrático, se há normas conflitivas ditas vigorantes, impedientes de um julgar pelos direitos fundamentais do DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL, o controle de legitimidade dessas normas vigentes válidas e eficazes não se faz por critérios do saber do JUIZ, mas pelos argumentos jurídico-
587 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 31. 588 “O que significa esta solidão? Agora ele não pode contar mais do que consigo mesmo: os outros, tudo o que lhe podiam dar, foi dado [...] Quero dizer que cada um de nós, na prestação de contas, está só com sua miséria. Na audiência, no alto sobre sua cátedra, revestido de dignidades e de poder, reverenciado, temido, ele pode também se considerar superior aos outros; em câmara de conselho se converte em um qualquer.”CARNELUTTI, Francesco. Direito processual civil e penal. São Paulo: Peritas, 2001. v.2, p. 228. (grifos do autor). 589 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 32.
168
procedimentais dos legitimados ao PROCESSO em sua expansividade legislativa e procedimental-corretiva e não por critérios imediatizados do saber administrativo ou judicial do decididor.590
Além disso, Leal ressalta que a lacuna da lei é um espaço jurídico de liberdade
processual para construção e reconstrução das leis e não um defeito do ordenamento jurídico:
“Portanto, a denominada lacuna da lei é o espaço jurídico de liberdade processual isocrítica e
não um defeito caótico do direito escrito. Querer, como pretendem os realistas, assenhorar-se
deste espaço vazio, que é o ponto político da liberdade processual criativa e recriativa de
direito formulado, é sair da democracia para o decisionismo autocrático.”591
Por sua vez, a utilização da tópica com o intuito de suprir as aporias592 jurídicas é uma
preocupação do Estado social e burguês e não se coaduna com o Estado democrático de
direito. A tópica593 se constitui em uma forma de reprodução da ideologia dominante:
[...] A tópica, nesse patamar, como técnica de utilização da ideologia com base nos topoi (pontos de vista, opiniões correntes, costumes, lugares comuns), é que vai fornecer os raciocínios possíveis para a resolução dos problemas em bons níveis de aceitabilidade pelo povo. O importante, nesses sistemas, é manter o povo sempre iludido, já que os topoi podem estar ou não contidos nas normas do direito formulado. Transita-se, como foi dito, do dever-ser (semasiologia)594 para o ser (onomasiologia)595 e vice-versa para evitar as aporias jurídicas (lacunas, antinomias, o dubium).596
590 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 44. 591 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 46. 592 “O termo aporia designa precisamente uma questão que é estimulante e iniludível, designa a ‘falta de um caminho’, a situação problemática que não é possível eliminar, e que Boecio traduziu, talvez de modo frágil, pela palavra latina dubitatio [...]. A tópica pretende fornecer indicações de como comportar-se em tais situações, a fim de não ficar preso, sem saída. É portanto uma técnica de pensamento.” VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência, 1979. v.1, p. 32. 593 “A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação de evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa [...] A expressão topos significa lugar (comum). Trata-se de fórmulas variáveis no tempo e no espaço, de reconhecimento de força persuasiva, e que usamos, com freqüência, mesmo nas argumentações não técnicas das discussões cotidianas.” VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência, 1979. v.1, p. 3-4. 594 “Semasiologia. S.f. Lingüística: estudo semântico que consiste em partir do signo lingüistico para a determinação do conceito (por oposição a onomasiologia).” KINGHOST. Dicionário de Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.kinghost.com.br/dicionario/semasiologia.html>. Acesso em: 22/10/2007. 595 “Onomasiologia. S.f. Estudo semântico que consiste em buscar, a partir do conceito, os signos lingüísticos, a expressão que lhe corresponde (por oposição a semasiologia).” Disponível em: KINGHOST. Dicionário de Língua Portuguesa. <http://www.kinghost.com.br/dicionario/onomasiologia.html.>. Acesso em: 22/10/2007. 596 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 52.
169
O problema relacionado à aplicação de métodos de interpretação é que não houve uma
apreensão correta do método no sentido proposto pela epistemologia popperiana597, ou seja,
como teoria que pode ser utilizada para falsear outras teorias. Ao contrário disso, o método é
concebido como um meio seguro e não polemizado:
Os jurismetodologistas, que até a pós-modernidade (a partir dos anos 70), incursionaram pelo direito, não assentaram bem o conceito de método, porque não conceberam o método como uma teoria falível para testificar outras teorias, mas como meio seguro ou modo eficiente de encaminhar idéias, o que certamente obscurece uma proposta de cientificidade em nossos dias, e, que, no entanto, para eles, seria uma atividade racional de encontro com as verdades que já estariam ínsitas na lógica das coisas e dos sistemas idealizados para a realização do bom e do justo [...] só com Popper, identificando-se a lógica e método como teoria evolucionária e provisória adotada para a enunciação de conhecimentos, é que foi superada a essencialização dos métodos (hipóstases).598
Outro aspecto criticado por Leal diz respeito à hermenêutica filosófica de Gadamer.599
Por sua vez, Hesse, fundamentado na hermenêutica filosófica de Gadamer, e assim como
Häberle600, também enfatiza que a norma não tem existência autônoma da realidade. Hesse,
contrapondo-se às idéias de Lassale601 reconhece um vínculo entre a constituição jurídica e a
realidade político-social. Nesse sentido, Hesse esclarece que: “[...] a norma constitucional não
tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja,
a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade.”602 (grifo do autor). Ao
reconhecer essa conexão entre a constituição jurídica e a constituição real, o autor acaba
também por reconhecer que o primeiro ator a transpor esse espaço vazio que separa essas duas
constituições é o intérprete, uma vez que o teor da norma apenas se completa com a
compreensão do intérprete. Para Hesse, a interpretação tem relevância para preservação da
força normativa da constituição, e interpretação significa concretização. O autor esclarece que
três são as condições da interpretação constitucional: “[...] concretização pressupõe um
597 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 116. 598 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 58. 599 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis / RJ: Vozes, 1997. 600 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição, 2002. 601 LASSALE, Ferdinand. O que é uma constituição? Tradução de Hiltomar Marins Oliveira. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2001. 602 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 14.
170
entendimento do conteúdo da norma a ser concretizada. Essa não se deixa desatar da ‘(pré)-
compreensão’ do intérprete e do problema a ser resolvido.”603
Nesse diapasão, Gadamer, superando a hermenêutica tradicional604, considera como
um problema unitário não apenas a compreensão e a interpretação, mas também a aplicação.
O intérprete deve relacionar o texto com uma situação concreta, já que: “[...] a tarefa da
interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação.”605 Por
conseguinte, a interpretação não é um ato posterior à compreensão. Assim, compreender é
sempre interpretar. E na compreensão ocorre uma aplicação do texto a ser compreendido.
Gadamer resgata a concepção de pré-compreensão em Heidegger606 (pré-juízo, preconceito), e
entende que essa seria uma parte da compreensão:
Também aqui vemos confirmado que compreender significa, primariamente, sentir-se entendido na coisa, e somente secundariamente destacar e compreender a opinião do outro. Assim, a primeira de todas as condições hermenêuticas é a pré-compreensão que surge do ter de se haver com a coisa em questão.607
Nessa linha de idéias, Streck aponta que, para a Constituição poder ser vivenciada
como constituição, possui relevância a pré-compreensão do intérprete, e, nesse aspecto, ele
concorda com Gadamer: “[...] Daí o acerto de Gadamer (1990, p. 281) ao afirmar que os pré-
juízos de um indivíduo, muito mais do que seus juízos, são a realidade histórica de seu ser.”608
Desse modo, Streck assevera que a compreensão depende da facticidade e
historicidade do intérprete:
Esta facticidade e historicidade é o locus da pré-compreensão, condição de possibilidade para qualquer interpretação. Dizendo de um modo mais simples: só interpreto se compreendo; só compreendo se tenho pré-compreensão, que é constituída de uma estrutura prévia (Vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e concepção prévia (Vorgriff), que já une todas as partes (textos) do “sistema”. Como a hermenêutica de matriz gadameriana (que não difere neste sentido da matriz ontológica fundamental) não é um método, mas, sim, filosofia; é a condição-de-ser-no-mundo do intérprete que vai determinar o sentido. A pergunta pelo sentido do texto é uma pergunta pelo modo como esse sentido se dá, qual seja, através do
603 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 61. 604 O problema hermenêutico se divide em três subtilitae: compreensão (subtilitas inteligendi), interpretação (subtilitas explicandi) e aplicação (subtilitas aplicandi). Apesar dessa distinção, houve por parte dessa hermenêutica uma fusão entre compreensão e interpretação, deixando a aplicação em desconexão com os dois primeiros momentos da problemática da hermenêutica. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, 1997, p. 489 605GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, 1997, p. 489. 606 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 208. 607 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, 1997, p. 441. 608 STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo) constitucionalismo. Estudos jurídicos, São Leopoldo, UNISINOS, v.38, n. 1, p. 26, jan./abr. 2005.
171
intérprete, inserido na tradição, que compreende esse sentido. Não se interpreta assim, um texto (jurídico) desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem (no caso que para o Direito mais interessa, da Constituição).609 (grifos do autor)
Por essa concepção, o intérprete, diante de um texto jurídico, não se desvincula de sua
pré-compreensão, de sua existência histórica. Sobre o tema, Pereira aponta: “[...] assim sendo,
o homem, ao interpretar qualquer fenômeno, já possui antecipadamente, um pré-conceito,
uma antecipação prévia de seu sentido, influenciada pela tradição em que se insere (suas
experiências, seu modo de vida, sua situação hermenêutica etc.).”610
Porém, Leal adverte que essa ligação do texto com o intérprete por meio de uma pré-
compreensão acaba por eliminar o medium lingüístico procedimental regido pelo devido
processo constitucional:
O ensino de Gadamer, seguido por Larenz, que afirma a imprescindível ligação do texto com o intérprete como base comum de uma pré-compreensão necessária de acesso às normas jurídicas, é que vai automaticamente suprimir o medium lingüístico do PROCESSO constitucionalizado na produção das decisões jurídicas. Na lógica gadameriana, a norma só é elucidada por uma cadeia de tradição entre valores culturais do intérprete coincidentes com os conteúdos juridicamente positivados. O axiológico e o deontológico, para Gadamer, se jurisprudencializam, perenizando o sentido das leis e das decisões judiciais e administrativas, sem que haja um espaço dialógico (medium lingüístico processual), entre sujeitos de direito, garantido pelo procedimento (devido processo legal- devido processo legislativo), como recurso discursivo (isegórico) por argumentos e alegações de direito, regido pelo DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL em que a isonomia dos interlocutores em contraditório se exercita pelos aspectos isotópicos (igualdade perante a lei), isomênicos (igualdade de interpretar a lei) e isocríticos (igualdade para destruir ou recriar leis) entre a legalidade aplicável e a decisão decorrente.611 (grifos do autor)
Por conseguinte, Leal deixa claro que a hermenêutica no Estado democrático de
direito deve ter como fundamento a teoria jurídica do processo e não se restringe a métodos
interpretativos:
A hermenêutica do direito democrático não se limita a métodos interpretativos, por mais arrojados que sejam, mas tem como fundamento de sua compreensão a teoria jurídica do processo em suas faces de construção, atuação e aplicação do direito. Não há Estado democrático de Direito pela imediatividade de valores, metas, categorias [...], mas pela observância a uma condição jurídico-espacial
609 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 212. 610 PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 28 611 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 109.
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procedimentalmente processualizada (âmbito estatal democrático) como mediadora teórica de construção, garantia, recriação e aplicação do direito.612
Nessa linha de idéias, a hermenêutica desenvolvida no Estado democrático de direito
não é baseada em uma interpretação vertical (autoritária), mas fundamenta-se no exercício
democrático de uma discussão horizontal, uma vez que desenvolvida no procedimento
processualizado:
[...] Com efeito, a hermenêutica desenvolvida no procedimento processualizado, nas democracias plenas, não se ergue como técnica interpretativa do juízo de aplicação vertical (absolutista) do direito, mas como exercício democrático de discussão horizontal de direitos pelas partes no espaço-tempo construtivo da estrutura procedimental fixadora dos argumentos encaminhadores (preparadores) do provimento (sentença) que há de ser a ‘conclusão’ das alegações das partes e não um ato eloqüente e solitário de realização da JUSTIÇA.613
Contrapondo-se às decisões interditais (autocráticas), Leal desenvolve uma teoria neo-
institucionalista da decidibilidade. Cumpre destacar que a palavra instituição não significa
instituição sociológica ou econômica, mas instituição jurídica constitucionalizada. Nesse
sentido, Leal aponta:
É que instituição aqui não é utilizada no sentido de bloco de condutas aleatoriamente construído pelas supostas leis naturais da sociologia ou da economia. Recebe em nossa teoria, a acepção de conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo Texto Constitucional com a denominação jurídica de Processo, cuja característica é assegurar, pelos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, do direito ao advogado e do livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados.614 (grifos do autor)
O processo jurídico desempenha papel preponderante na pós-modernidade:
Tal é a importância que o processo adquiriu na teoria neo-institucionalista, que o mesmo foi elevado à condição de direito de primeira geração, porque é uma instituição jurídica, constituinte e constituída de produção de direitos subseqüentes. Sua eficiência autodeterminativa e juridificante possibilita fiscalização, renovação e confirmação constantes da comunidade jurídica, através dos princípios processuais
612 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 122. 613 LEAL, Rosemiro. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 92. 614 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 99-100.
173
discursivos da isonomia, contraditório e ampla defesa. O processo é que cria o direito e rege sua dicção procedimental.615
Desse modo, o processo, como instituição jurídica constitucionalizada, “[...] define-se,
por conseguinte, como uma conjunção de princípios (contraditório, isonomia, ampla defesa,
direito ao advogado e à gratuidade judicial) que é referente-lógico jurídico da
procedimentalidade, ainda que esta, em seus modelos legais específicos, não se realize
expressa e necessariamente em contraditório.”616
Para melhor esclarecimento acerca dos princípios do processo, passa-se a estudar os
princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, do direito ao advogado e da
gratuidade da justiça, com o intuito de demonstrar a importância da observância desses
princípios para a construção de uma Sociedade Jurídico-Político democrática. Sobre o tema,
Leal esclarece que a “[...] principiologia do processo é construtiva de um direito democrático
constitucionalizado que se pretende aberto a uma fiscalidade incessante pelos produtores e
destinatários normativos em que a vida, liberdade, dignidade, sejam direitos fundamentais no
recinto do discurso procedimental processualizado e não espontaneamente surgidos de esferas
públicas de relação entre pessoas.”617
André Leal destaca que, a partir dos estudos realizados por Andolina e Vignera, acerca
do modelo constitucionalizado do processo: “[...] o contraditório deixa de ser mero atributo do
processo e passa à condição de princípio (norma) determinativo de sua própria inserção na
estruturação de todos os procedimentos preparatórios dos atos jurisdicionais.”618
Ao desenvolver estudo acerca do contraditório e da fundamentação das decisões,
André Leal assevera que, no Estado democrático de direito, os princípios da isonomia, do
contraditório e da ampla defesa devem ser entendidos como princípios619 institutivos620 do
615 TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática, 2005, p. 57. 616 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 102. 617 LEAL, Rosemiro Pereira. A principiologia do processo na teoria neo-institucionalista. Virtuajus, Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, Belo Horizonte, a. 5, n. 1, p. 1-17, jul. 2005. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/2_2006/Docentes/pd/Rosemiro.pdf//>. Acesso em: 14/09/2006. 618 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 88. 619 “[...] em direito, princípio é o marco teórico que, introduzido pela linguagem do discurso legal como referente lógico-indutivo, genérico e fecundo (desdobrável), é balizador dos conceitos que lhe são inferentes.” LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 110 (grifos do autor). 620 “Leal, atento à noção de Processo como criação constitucional, o entende como instituição jurídica com características próprias, definidas nos princípios que lhe são integrantes e que, por isso, são denominados princípios institutivos do processo. Tais princípios são isonomia, contraditório e ampla defesa, os quais, por comportarem infindáveis desdobramentos em sua natureza jurídica, assumem características de autênticos
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processo e não mais como princípios informativos621. Além disso, o contraditório não se
constitui em mera atividade das partes na defesa de seus direitos, mas é um atributo estrutural
do procedimento. O contraditório como norma constitucional possui papel preponderante na
construção de decisões legítimas, uma vez que sua observância é essencial à teoria
procedimental da democracia: “É exatamente o contraditório que vai proporcionar, quanto às
oportunidades de pronunciamento, uma atuação eqüitativa dos partícipes nos procedimentos
judiciais. Vai também garantir, em conexão com o princípio (requisito) da fundamentação das
decisões jurisdicionais, que a decisão se fundamente no Direito debatido pelas partes e nos
fatos por elas reconstruídos.”622
Por sua vez, André Leal assevera que a fundamentação das decisões deve ser baseada
em um discurso racional:
Portanto, racional agora, é a decisão proferida no âmbito de um Direito Democrático positivo que se torna auto-referente por sua legitimação discursiva. Uma razão construída mediante processos legislativos e jurisdicionais adequados que somente tornam racionais as decisões que se fundamentem nas leis democraticamente instituídas e a partir de procedimentos que assegurem a imparcialidade (colhida da estrutura procedimental, e não como atributo mítico do julgador).623
Nessa linha de idéias, Leal aponta que a fundamentação das decisões deveria ser a
principal preocupação de uma sociedade pós-convencional. Decisão democrática é aquela
construída dentro da estrutura do devido processo constitucional e com a participação de
todos os sujeitos do processo. Desse modo, uma decisão no Estado democrático de direito não
se constitui em um ato final e solipsista de um decisor ou de um órgão guardião da
Constituição.624
Por sua vez, Teixeira embasado na Teoria discursiva habermasiana e na teoria neo-
institucionalista aponta a necessidade de participação dos destinatários da norma na
fundamentação das decisões:
institutos, devido às implicações teóricas advindas de seu estudo. Tais princípios, referentes lógico-jurídicos sem os quais não se definiria o Processo, diferem dos princípios informativos do processo, estes são inferentes dos quais aqueles são referentes. Os princípios informativos são variáveis lógico-jurídicos dos princípios institutivos.” TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática, 2005, p. 33. 621 LEAL enumera os seguintes princípios do Processo: oralidade, publicidade, lealdade processual, disponibilidade e indisponibilidade, economia processual e instrumentalidade das formas. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 112-116. 622 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 77. 623 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 107. 624 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 130.
175
Sendo assim, no paradigma do Estado Democrático de Direito, as decisões judiciais não estão nas mentes privilegiadas do julgador solitário, mas são construídas através de uma interpretação conjunta da norma, emergida de uma razão discursiva advinda de uma racionalidade fundamentada por uma teoria Processual (neo-institucionalista) em que os destinatários da norma possam ser reconhecidos como os autores do direito.625
Cruz enfatiza que a fundamentação das decisões é um elemento indispensável para a
formação do Estado democrático de direito. Outrossim, as partes devem participar da
construção da decisão judicial:
O atual estágio do constitucionalismo não mais admite decisões judiciárias carentes de justificação. Decisões sem fundamento ou sem parte dispositiva adequada são consideradas, necessariamente, manifestações de arbítrio ou lembranças amargas do período medieval da Santa Inquisição.
O estudo da fundamentação/ argumentação das decisões judiciárias, vistas até bem pouco tempo atrás, como construções isoladas do juiz, têm sofrido significativas alterações. Por conseguinte, sob o ângulo de uma democracia participativa e entendendo-se a Constituição como processo, dá-se valor cada vez mais à atuação das partes. A decisão judicial deixa de ser ato isolado do juiz e transforma-se numa construção conjunta entre as partes, numa fusão da autonomia pública (Estado-juiz) e privada (partes).626
Cattoni de Oliveira também aponta a necessidade de decisões racionalmente
fundadas, uma vez que o direito no Estado democrático de direito não é indiferente às razões
através das quais o juiz prolata sua decisão: “[...] a pretensão de legitimidade da ordem
jurídico-democrática requer decisões consistentes não apenas com o tratamento anterior de
casos análogos e com o sistema de norma vigente, mas pressupõe igualmente que sejam
racionalmente fundadas nos fatos da questão, de tal modo que os cidadãos possam aceitá-las
como decisões racionais.”627
Por conseguinte, Cattoni de Oliveira deixa claro que a legitimidade das decisões não
se relaciona à pessoa ou autoridade do juiz, mas à observância do contraditório e da ampla
defesa e da fundamentação das decisões:
O que justifica a legitimidade das decisões, no contexto de uma sociedade plural e democrática, são antes garantias processuais atribuídas às partes, principalmente a
625 TEIXEIRA, Welington Luzia. A construção do provimento jurisdicional no estado democrático de direito. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 128. 626 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 8. 627 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual constitucional, 2001, p. 143.
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do contraditório e da ampla defesa, além da necessidade da fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público, das partes e dos seus advogados.628
Essa é a concepção propugnada por Habermas, para quem as decisões não podem ser
baseadas em casos semelhantes ou apenas no sistema jurídico vigente, mas devem ser
fundamentadas racionalmente, para que possam ser aceitas pela comunidade jurídica: “[...] o
problema da racionalidade da jurisprudência consiste, pois, em saber como a aplicação de um
direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada racionalmente no plano
externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção.”629
Ao abordar a questão da fundamentação do direito a partir do pensamento de
Habermas, Chaves aponta que esse autor “[...] condiciona a legitimidade, pressuposto de
validade do direito, à sua fundamentação, que se efetiva quando presentes condições de
desenvolvimento de um discurso racional, só possível mediante anulação de qualquer forma
de coação ou de vínculos não-mensuráveis racionalmente.”630
Brêtas C. Dias, assim como André Leal, também destaca o entrelaçamento do
princípio do contraditório com o princípio da fundamentação das decisões a partir de uma
concepção renovada de processo e da teoria discursiva do direito e da democracia
habermasiana:
Nessa perspectiva, unem-se inseparavelmente o princípio do contraditório e o princípio da fundamentação, como se fossem irmãos siameses, ambos atuando na dinâmica argumentativa (fática e jurídica) do procedimento, de forma que propicie a geração democrática de uma decisão jurisdicional participada, em concepção renovada do processo, trabalhada a partir da confluência da teoria discursiva do direito e da democracia (Habermas) com a teoria do processo como procedimento em contraditório (Fazzalari).631
Vieira ao tratar do princípio do contraditório faz referência ao Code de Procedure
Civile que estabelece que o juiz somente pode levar em consideração os fatos submetidos ao
contraditório:
628 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 49. 629 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 247. 630 CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Estudos continuados de Teoria do Processo. São Paulo: Síntese, 2003. v.3, p. 6 631 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 149.
177
Sirvo-me de comparação com o Nouveau Code de Procédure Civile (França, 1999, p. 11) francês, cujo art. 7º, inversamente, determina ao juiz que não tome em consideração fato, ainda que provado, se não alegado pelas partes, se não submetido ao contraditório entre as partes:
Art. 7º. Lê juge ne peut fonder sa decision sur des faits qui ne sont pas dans le débat.632 (grifos do autor)
Nessa perspectiva, embasado em Fazzalari, Vieira ressalta que, uma vez erigido à
garantia constitucional, o princípio do contraditório se constitui na essência do processo, já
que possibilita a ampla participação das partes em simétrica paridade:
O princípio do contraditório ganhou relevância, erigido em garantia constitucional, explicitamente (art. 5º, LV, Constituição Brasileira). E se confirmou como essência mesma do processo, com o apoio da inolvidável contribuição doutrinária. Neste sentido, merece lembrança, desde sua primeira formulação sobre a matéria o pensamento de Fazzalari (1966), reclamando a dimensão categoria que, afinal, fixou para o contraditório. À estrutura (diz) corresponde o desenvolvimento dialético do processo: a simetria das posições subjetivas, a sua mútua implicação, a sua substancial paridade se traduzem para cada um dos participantes, na possibilidade de interloqüir não episodicamente, e sobretudo, de exercitar um conjunto –conspícuo ou modesto, não importa – de controles, de reações e de escolhas, e na necessidade de sofrer os controles e as reações do outro.633
Jayme, a partir dos estudos realizados por Gonçalves na obra Técnica Processual e
Teoria do Processo, que, por sua vez, faz uso da teoria do processo como procedimento em
contraditório de Fazzalari, aponta que o contraditório é um elemento constitutivo do processo
e é baseado na igualdade: “[...] não uma igualdade meramente formal. A observância do
contraditório é função do juiz no processo.”634 Desse modo, cabe ao juiz garantir a
participação das partes, em simétrica paridade, e zelando para que esse princípio não seja
violado.
Por sua vez, Nunes acentua que o contraditório não pode ser estudado numa acepção
tradicional como mero direito de bilateralidade da audiência. Essa visão estática atende a uma
visão monológica e unilateral na formação do provimento pelo juiz e não se coaduna com o
Estado democrático de direito que acentua a necessidade de a comunidade jurídica participar
ativamente na formação dos provimentos. Já numa visão dinâmica, o contraditório é
632 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. A nova ordinariedade: execução para a cognição. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, PUC Minas, v. 3, n. 5 e n.6, p. 115, 1. e 2. sem. 2000. 633 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. A nova ordinariedade: execução para a cognição. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2000, p. 121-122, 2000. 634 JAYME, Fernando. Devido processo legal. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, PUC Minas, v. 3, n. 5 e n.6, p. 69, 1 e 2. sem. 2000.
178
compreendido como garantia dinâmica e como núcleo do processo. Nunes adverte que “[...]
impõe-se, assim, a leitura do contraditório como garantia de influência no desenvolvimento e
resultado do processo.”635 Nessa perspectiva, o contraditório é a garantia de que a parte
participe efetivamente na construção do provimento jurisdicional.
Apesar do contraditório se constituir em uma faculdade e não em um ônus, seu
exercício não se relaciona à apreciação discricionária do juiz, mas deve ser normativamente
garantido:
O contraditório não constitui uma obrigação mas sim uma faculdade que se resolve em ônus processual pois não existe a necessidade do seu exercício, mas sim a possibilidade de fazê-lo atuar de modo a garantir a cada um dos interessados uma equivalência correspondente nas respectivas posições, explicando de maneira constante e não episódica uma séria de escolhas, de controle e reações que podem ser feitas.
Deste modo, ele precisa ser compreendido como cânone essencial de todo o iter procedimental formador do provimento possibilitando uma constante participação dos interessados ao desenvolver do procedimento, impondo instrumentos adequados para o seu exercício concreto, de modo a permitir o diálogo entre os sujeitos processuais636.
O contraditório, a isonomia e a ampla defesa são princípios jurídico-institutivos do
processo necessários para se definir o processo na pós-modernidade. Leal destaca a
importância do contraditório na construção de uma decisão democrática:
Por conseguinte, o princípio do contraditório é referente lógico-jurídico do Processo constitucionalizado, traduzindo, em seus conteúdos, pela dialeticidade necessária entre interlocutores que se postam em defesa ou disputa de direitos alegados, podendo, até mesmo, exercer a liberdade de nada dizerem (silêncio), embora tendo direito-garantia de se manifestarem. Daí o direito ao contraditório ter seus fundamentos na liberdade jurídica de contradizer, que, limitada pelo tempo finito (prazo) da lei, converte-se em ônus processual se não exercida. Conclui-se que o Processo, ausente o contraditório, perderia sua base democrático-jurídico principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida colonizadora da liberdade das partes.637
Leal enfatiza a necessidade de se superar a concepção fazzalariana do contraditório
como mera qualidade do processo, uma vez que, por essa visão, o contraditório não possui
uma estrutura lógico-normativa fundante. E, por conseguinte, faz-se necessário contextualizar
635 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 133. 636 NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim Técnico, Belo Horizonte, Escola Superior da Advocacia, v. 1, p. 47, , jan./jun. 2004. 637 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 110-111.
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o contraditório na instituição jurídico-constitucional do processo: “[...] porque o contraditório
há de ser princípio regente (direito-garantia constitucionalizado) do procedimento, e não
atributo consentido por leis ordinárias processuais (codificadas ou não) ou dosado pela
atuação jurisdicional em conceitos e juízos personalistas de senso comum, de conveniência ou
de discricionariedade do julgador.”638
Nessa perspectiva, “[...] o contraditório apenas se efetiva com a oportunidade de
preparação do provimento pelos interlocutores, em simétrica paridade, com igualdade
temporal de participação limitada pelo prazo, sendo lícita a liberdade de nada dizerem.”639
Para Pellegrini, o contraditório não significa apenas o dizer e o contradizer, mas
implica a ampla participação das partes na construção de todo o provimento jurisdicional:
Desta feita, o contraditório, entendido como posição de simétrica paridade entre os afetados pela decisão (Cf. FAZZALARI, 1994), é entendido não como ação e reação ou o dizer e o contradizer, mas sim como estrutura argumentativa que propicia as partes intervirem de maneira participativa em toda a construção do provimento jurisdicional juntamente com o juiz. Ou seja, não será apenas a decisão final (sentença) que será construída participadamente, mas toda a estrutura procedimental que gera o provimento final que garante a simétrica paridade entre os afetados.640
O princípio da igualdade foi projetado como pilar do Estado Moderno a partir da
Revolução Francesa (Estado Liberal), com a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Esse princípio foi alçado a direito fundamental e, uma vez
positivado pela Constituição da República Federativa de 1988, passou a nortear todo o
sistema jurídico nacional.641 O princípio da isonomia processual passou a integrar a garantia
638 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 54. 639 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado Democrático de Direito. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, 2005, p. 73-123. Sobre os princípios institutivos do processo, ver também MIRANDA, Alexandra Carolina Vieira. A remessa necessária em face do princípio da isonomia. 2004. Monografia (Graduação em Direito) - Faculdade Mineira de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 640 PELLEGRINI, Flaviane Magalhães de Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha de; GUIMARÃES, Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do Estado democrático de direito. Disponível em: <http://www.conpedi.org.manaus/arquivos/Anais/Flaviane%20Magalhaes_Marius%20Fernando %20e%20Natalia%20Chernicaro.PDF>. Acesso em: 03/03/2007, p. 11-12. 641 Sobre o princípio da igualdade, Rocha aponta que “[...] o constitucionalismo brasileiro sempre adotou o princípio da igualdade que não significa, porém, que tenha havido sempre respeito e acatamento a ele, mesmo se lhe tomar apenas em sua acepção formal. Tanto que na primeira fase coexistiu com a escravidão [...] Neste quadro constitucional, onde a igualdade teve lugar como princípio – texto, mas que não deixou de ser expressão para ganhar as ruas por onde anda a sociedade, sobreveio a Constituição de 05 de outubro de 1988. Por isto é que o princípio da igualdade comparece no Preâmbulo de uma Carta Magna como princípios determinantes da elaboração que a seguir é posta como sistema normativo fundamental.” ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Lê, 1990, p. 62-69.
180
do devido processo legal e dirige-se tanto ao aplicador da lei quanto ao legislador. Nesse
sentido, Aguiar aponta:
Trata-se o princípio da isonomia processual, ora em análise, de uma reafirmação do direito fundamental à igualdade e deve nortear as relações jurídicas, devendo-se fazer presente para que as partes recebam tratamento igualitário e obtenham as mesmas oportunidades – simétrica paridade – no procedimento. O alcance do referido princípio não é apenas nivelar os cidadãos diante da norma estético legal posta, a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia.642
Na Idade Antiga e na Idade Média, prevalecia a igualdade geométrica responsável pela
união da polis. A justiça distributiva dava a cada um segundo o seu valor (arethé), ou seja, de
acordo com o que cada um contribuiu com a comunidade política. Porém, na Modernidade,
com a superação de uma concepção holística da sociedade, esse seria um critério de exclusão
e não de inclusão, na comunidade política. Nesse sentido, Galuppo acentua: “[...] tudo isso
conduz à conclusão de que a Modernidade concebe a sociedade como uma sociedade de
pessoas (aritmeticamente) iguais que compartilham vários e distintos projetos de vida. Se
todas as pessoas possuem (aritmeticamente) o mesmo valor, não há razões para que o direito
crie distinções entre pessoas.”643
Por sua vez, Galuppo conceitua o princípio jurídico da igualdade a partir da teoria
discursiva de Habermas e de uma concepção aritmética:
[...] O Princípio Jurídico da Igualdade pode ser entendido nesse contexto com um princípio que permite maior inclusão possível dos cidadãos nos procedimentos públicos de justificação e aplicação das normas jurídicas e de gozo dos bens e políticas públicas, que pode ser fundamentado na dimensão lingüística do direito e que desempenha a função básica de permitir a sobrevivência democrática de uma sociedade pluralista.644
Porém, Leal declara que, ao contrário do que aponta Galuppo, a legitimidade do
direito na democracia não se relaciona com garantias de condições materiais e culturais para
inserção de cada falante no discurso645, mas pela teorização do devido processo. Assim, a
igualdade na democracia diz respeito à proporcionalidade temporal entre as partes:
642 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado Democrático de Direito. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, 2005, p. 105. 643 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 73-74 644 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 22. 645 “A prática do discurso jurídico pressupõe que todo possível falante seja reconhecido como pessoa, pois é o que lhe possibilita participar da produção e da aplicação das normas jurídicas, como já podemos perceber em
181
A igualdade na democracia se define pela garantia de simétrica atuação temporal entre as partes na construtividade da estrutura procedimental como espaço argumentativo instituído pela conexão normativa egressa da teoria jurídico-processual do direito democrático e não pela paridade entre pessoas no nível de justificação facticizada para obviar uma solidariedade pressuposta ou para alegar boas razões para otimizar estrategicamente inclusões sociais.646
No Estado democrático de direito, a isonomia como direito fundamental não pode ser
compreendida a partir de uma concepção aristotélica. Nesse diapasão, Aguiar enfatiza:
Se assim fosse concebido, o processo, direito-garantia, legitimador da atividade jurisdicional, passaria a ser concebido como forma de pacificação social, com escopos políticos e metajurídicos, realizados pelo juiz, desvirtuando sua função de possibilitar a formação dos provimentos pelas partes em contraditório.
Além disso, permitir o tratamento desigual a uma das partes, sob fundamento de alcance da igualdade substancial, é tão somente submeter o processo à jurisdição, esta entendida como o monopólio estatal na aplicação da lei.647
Na pós-modernidade, o princípio da isonomia é um direito-garantia
constitucionalizado, ou seja, significa igualdade temporal na construção procedimental. Nesse
diapasão, Leal enfatiza que o princípio da isonomia: “[...] é referente lógico-jurídico
indispensável do procedimento em contraditório (Processo), uma vez que a liberdade de
contradizer no Processo equivale à igualdade temporal de dizer e contradizer para a
construção entre partes da estrutura procedimental.”648
Leal afirma que é isonomia enquanto princípio de primeira geração que possibilita a
igualdade processual entre os economicamente desiguais: “A isonomia como princípio
jurídico-processual de primeira geração não pode ser descuidada na construção e exercício da
constitucionalidade democrática, porque é ela que torna possível a igualdade (simétrica
paridade) entre os economicamente desiguais, entre os física e psiquicamente diferentes e
entre maioria e minoria política, ideológica ou social.”649
Kant [...] conseqüentemente, não podem ser negados aqueles direitos que garantem as condições materiais e culturais para a inserção de cada falante no discurso.” GALLUPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 204-205. 646 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 191. 647 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado Democrático de Direito. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, 2005, p. 107. 648 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 111. 649 LEAL, Rosemiro Pereira. Isonomia processual e igualdade fundamental a propósito das retóricas afirmativas. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 78.
182
Quanto ao princípio da ampla defesa, significa a possibilidade de as partes
participarem da construção do provimento mediante a inserção de argumentos relevantes e na
possibilidade de produção de provas que serão úteis na reconstrução dos fatos marcantes para
o processo. Nesse sentido, Pellegrini destaca:
Importante ressaltar que, na proposição da ampla argumentação, abarca-se tanto a possibilidade de a parte formular teses jurídicas a respeito dos temas a serem decididos, sejam argumentos jurídicos processuais e sejam argumentos quanto ao mérito da decisão, mas também a possibilidade de construção de fatos relevantes para a formação da cognição, ou seja, o amplo direito de produção da prova por meios lícitos.650
Ao estudar o instituto das liminares e a ampla defesa, Nascimento destaca que o
conceito do princípio da ampla defesa abarca o conceito de defesa. Em primeiro lugar,
cumpre ressaltar que a defesa deve ser ampla, haja vista que não deve ocorrer a sumarização
do tempo, ou seja, ela não pode ser violada a pretexto de celeridade processual ou efetividade
do processo:
Neste talante, pode-se dizer que o conceito de ampla defesa estende o conceito de defesa, não sendo o termo ampla defesa pleonástico. A defesa é feita no procedimento, de caráter infra-constitucional, e a ampla defesa tem cunho de garantia. Sem o termo ampla, há restrição, diminuição estrutural. Esta atua a partir do modelo constitucional. A defesa dever ser inteira, não existe meia defesa. O termo ampla aumenta o espaço pela reanálise da legitimidade dos atos estruturais do procedimento. Retirado, suprime o ‘segundo grau de jurisdição’, com perda de espaço estrutural pela supressão da recorribilidade.651 (grifos do autor)
Em estudo especializado acerca do princípio da ampla defesa, Trindade, embasada em
Popper, ressalta que esse princípio é indissociável do princípio do contraditório, e na pós-
modernidade constitui-se em um fator de legitimidade das decisões através da articulação de
argumentos e produção de provas pelas partes (horizontalidade) e possibilidade de
interposição de recursos (verticalidade):
Apropriando-se da teoria de Karl Popper, pode-se dizer que, através da ampla defesa, a parte articula seus argumentos, busca demonstrar que sua tese é a melhor, porque é a que mais se aproxima da verdade do que qualquer outra até então proposta; com a produção da prova, busca confirmar sua argumentação e,
650 PELLEGRINI, Flaviane Magalhães de Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha de; GUIMARÃES, Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do Estado democrático de direito, 2007, p. 12. 651 NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. O instituto das liminares e a ampla defesa constitucional. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Org.). Estudos continuados de Teoria do Processo. Porto Alegre: Síntese, 2001, v.1, p. 51.
183
finalmente, através do recurso, pretende demonstrar que, não obstante sua tese ser a melhor, a decisão que não acolheu merece ser reexaminada.652
Trindade esclarece que a possibilidade de ampla argumentação e produção de provas
pelas partes está contida na concepção de contraditório. Por sua vez, a ampla defesa constitui-
se no conteúdo do contraditório. Por conseguinte, contraditório e ampla defesa formam um
conjunto teórico-normativo que se expressa na garantia de participação das partes na
preparação do provimento: “Portanto, é a ampla defesa o conteúdo possível do contraditório;
é nela que o Estado-juiz irá buscar os fundamentos para proferir uma decisão que ostente a
qualificação de participada.”653
Na concepção da teoria neo-institucionalista, o princípio da ampla defesa se relaciona
com o direito a um espaço procedimental que possibilite a construção de fundamentos por
meio da ampla argumentação das partes e da produção de provas que viabilizem a construção
do provimento:
O princípio da ampla defesa na teoria neo-institucionalista do processo é que vai permitir defesas não só em face de defeitos procedimentais ou contra o mérito, mas numa concepção expansiva da negação ou afirmação de constitucionalidade dos atos e conteúdos jurídicos das pretensões e de sua procedimentalidade formal. Ampla defesa é, nessa concepção, o direito processualmente garantido a um espaço procedimental cognitivo à construção de fundamentos obtidos dos argumentos jurídicos advindos de liberdades isonômicas exercidas em contraditório na preparação das decisões. A teoria neo-institucionalista como médium hermenêutico da procedimentalidade realizadora do direito democrático é devolutiva ao povo, por habilitações de todos ao devido processo legal, da fiscalidade soberana, direta e simultânea, das esferas de produção e aplicação do direito pela plebiscitarização processual (legitimação plenária ad processum e ad causam) do controle irrestrito e incessante de constitucionalidade.654 (grifos do autor)
O princípio da ampla defesa é coextenso ao princípio do contraditório e da isonomia,
uma vez que essa amplitude de defesa deve observar os limites do procedimento que ocorre
em contraditório. A garantia da defesa é uma das exigências do devido processo legal e
significa que ela deve ocorrer no tempo e no espaço processual:
[...] A ampla defesa, em qualquer sistema jurídico do moderno Estado Democrático de Direito, envolve a cláusula do devido processo legal em sentido substancial (substantive due process), equivalente ao direito material de garantias fundamentais do cidadão, como o devido processo em sentido processual (procedure due process),
652 TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática, 2005, p. 93. 653 TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática, 2005, p. 88. 654 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 171.
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traduzindo a garantia da plenitude da defesa em tempo e modo suficiente para sustentá-la.655 (grifos do autor)
Segundo Leal, o princípio da ampla defesa proporciona a construção de uma sociedade
aberta, através da crítica, posto que se tem assegurado o direito de argumentação das partes.
E, conseqüentemente, esse princípio impede a criação de sociedades fechadas: “[...] ao se
assegurar a ampla defesa como direito fundamental, assegura-se o direito de argumentação
das minorias no mesmo espaço-tempo procedimental processualizado das maiorias e vice-
versa. Esse direito é que impede o fechamento do sistema.”656
Desse modo, os princípios institutivos do processo asseguram a formação da vontade
política racional, visto que esses princípios estruturam o espaço discursivo, possibilitando a
formação da vontade livre de coerções externas e baseadas na força do melhor argumento. A
partir da formação desse espaço discursivo, há participação dos litigantes na construção do
provimento e, por conseguinte, eles serão seus co-autores.657
Com relação à gratuidade da justiça, observa que os custos de uma demanda judicial
constituem-se em entraves ao acesso à jurisdição. Rodrigues aponta que as desigualdades
socioeconômicas configuram um dos problemas do Estado contemporâneo:
[...] a desigualdade sócio-econômica gera, em termos de acesso à justiça, dois problemas: a) dificulta o acesso ao Direito e ao Judiciário, tendo em vista a falta de condições materiais de grande parte da população para fazer frente aos gastos que impõe uma demanda judicial; e b) mesmo quando há esse acesso, a desigualdade material, em contraste com a igualdade formal prevista no ordenamento jurídico, acaba colocando o mais pobre em situação de desvantagem dentro do processo.658
Santos também ressalta que o custo da litigação é um obstáculo para o acesso dos
pobres à jurisdição, o que acaba por gerar um fenômeno de vitimização desses cidadãos, por
terem seu direito de acesso à jurisdição tolhido:
Assim na Alemanha verificou-se que a litigação de uma causa de valor médio na primeira instância de recurso custaria cerca de metade do valor da causa. Na Inglaterra verificou-se que em cerca de um terço das causas em que houve contestação os custos globais foram superiores aos do valor da causa. Na Itália, os
655 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 112. 656 LEAL, Rosemiro Pereira. Direitos fundamentais do processo na desnaturalização dos direitos humanos. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2006, p. 14. 657 MACIEL, Gabriel de Deus. A remissão no procedimento de apuração do ato infracional: por uma compreensão constitucionalmente adequada do direito do menor. 2003. Monografia (Graduação em Direito). Faculdade Mineira de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 40. 658 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à Justiça no Direito Processual. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 35.
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custos da litigação podem atingir 8,4% do valor da causa nas causas com valor elevado, enquanto nas causas com valor diminuto essa percentagem pode elevar-se a 170% [...] Estes estudos revelam que a justiça civil é proporcionalmente mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas ações de menor valor e é nessas ações que a justiça é proporcionalmente mais cara, o que configura um fenômeno da dupla vitimização das classes populares face à administração da justiça.659
A presença do advogado no processo também é uma garantia de concretização do
contraditório, da isonomia e da ampla defesa, uma vez que é ele quem possui a capacidade
postulatória e capacidade técnica para defender os interesses das partes. Conforme preceitua a
Constituição da República Federativa de 1988, o advogado é indispensável à administração da
justiça.660 Sobre o tema Paiva aponta: “[...] o poder de agir em juízo e o de defender qualquer
pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus
direitos, porém estes direitos constitucionais só prevalecerão com a presença do advogado,
que é indispensável à justiça.”661
Tolentino, em sua dissertação de mestrado, assevera a obrigatoriedade de participação
do advogado para o adequado exercício da defesa de direitos:
Considerando que os sujeitos parciais, de maneira geral, não possuem capacidade postulatória, resta impossibilitado o desenvolvimento de teses argumentativas que fundamentem suas pretensões. Impossibilitada também a produção e análise dos instrumentos probatórios, essenciais à comprovação processual de qualquer alegação, seja ela fática ou jurídica. Pode-se afirmar o mesmo com relação à interposição de recursos, imprescindíveis à impugnação de decisões que lhe sejam desfavoráveis.662
Por sua vez, Leal acentua que o direito de ampla defesa só ocorre pela participação do
advogado na estruturação dos procedimentos jurisdicionais. Embasado na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 (Art. 133), Leal aponta a necessidade do controle da
atividade jurisdicional pelo advogado:
659 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1999, p. 168. 660 “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 661 PAIVA, Mário Antônio Lobato de Paiva. A supremacia do advogado em face do jus postulandi, p.1. Disponível em: <http://www.advogado.adv.br\artigoss\1999\art06.htm>. Acesso em 12/04/2007. Sobre o tema consultar também SILVEIRA, Laura Cristina. A indispensabilidade do advogado como elemento garantidor do princípio da isonomia. 2004. Monografia (Graduação em Direito). Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros. 662 TOLENTINO. Fernando Lage. Princípio constitucional da ampla defesa, direito fundamental ao advogado e Estado de direito democrático: da obrigatoriedade de participação do advogado para o adequado exercício da defesa do direito. 2007. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 107.
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O DIREITO DE AMPLA DEFESA, como instituto constitucional expresso no due process (art. 5º, LIV e LV, CR/88), com os balizamentos teóricos aqui expostos, só se ergue, em sua efetividade, no direito brasileiro, pela participação dos advogados das partes ou interessados na estruturação dos procedimentos jurisdicionais, sejam ordinários, sumários, especiais ou extravagantes, porque qualquer ato jurisdicional sem a vinculação do ADVOGADO é ato ilegítimo pela falta de suporte constitucional à sua validez, conforme estabelece claramente o art. 133 da CR/88: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. A expressão administração da justiça equivale tecnicamente à atividade jurisdicional e não à administração do Poder Judiciário, ao qual o advogado não pertence, sequer à ministração de justiça (direito justo) que é conteúdo só dimensionável e aferível por via de prévia edição de norma material pelo Poder Legislativo (art. 5, II, CR/88).663 (grifos do autor)
Leal esclarece que as teorias do processo como contrato (Pothier, 1800), quase
contrato (Savigny e Guényvau, 1850), como relação jurídica (Bülow, 1868), como situação
jurídica (Goldschmidt, 1910), como procedimento em contraditório não democraticamente
constitucionalizado (Fazzalari, 1975), como modelo constitucional posto e garantido por uma
Assembléia de Especialistas em Parlamentos ou Tribunais (Andolina, 1980) não viabilizaram
a institucionalização do princípio do discurso em princípio da democracia e, por conseguinte,
não possibilitam a revisibilidade do ordenamento jurídico.664
As decisões oriundas da teoria da relação jurídica, baseada em vínculos subjetivos de
subordinação entre autor, juiz e réu, adviriam da vontade superior de uma razão prática
sensibilizada pelo juiz. Por essa teoria privatística, o juiz possui poderes carismáticos na
condução do processo. Nesse sentido, Leal enfatiza:
Um direito que no plano constitucional explicasse o processo como relação jurídica entre juiz, autor e réu (Bülow) confinaria o processo a um recinto prescritivo de atos jurídicos seqüenciais em que decisões adviriam do exercício da vontade última superior de uma razão prática (do bem e do mal) sensibilizada pelo juiz, porque não estariam, nessa corrente doutrinária, definidos os critérios dessa relação jurídica de formação de vontades (juiz, partes, auxiliares judiciários) para validar (fundamentar) as decisões a serem tomadas e quais possibilidades jurídicas de intercorrentemente se exercer a fiscalidade pelo processual controle irrestrito de constitucionalidade (exame de legitimidade) do direito e da estrutura das condutas procedimentais condutoras das decisões proferidas, já que o Processo, na teoria do processo como relação jurídica entre sujeitos, é tido como instrumento de uma sábia jurisdição provedora de direitos.665 (grifos do autor)
663 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria da defesa no processo civil. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005. 664 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 168. 665 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 168.
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Apesar de Bülow, em sua obra Teoria das exceções e dos pressupostos processuais,
não ter analisado de forma explícita a jurisdição, ele, como adepto do Movimento do Direito
livre, acaba por colocar a jurisdição no centro da teoria processual.666 A decisão por essa
concepção é uma atividade pessoal de um juiz sábio. Nesse sentido, Aguiar aponta:
Como se vê, podemos concluir que para Bülow, adepto da doutrina apresentada, é a jurisdição não uma função do Estado de ditar o direito, mas atividade pessoal do juiz sábio, intérprete sensitivo de leis sociais e humanas, de dizer (criar) o direito. Nessa concepção, os interessados no provimento judicial são meros expectadores, sem qualquer participação na construção da decisão.667
Com relação à teoria da situação jurídica, apesar de ter rompido com a concepção
privatística da teoria da relação jurídica, determinava que decisão não precisava guardar
relação com o processo, não sendo necessário o decisor apontar os fundamentos jurídicos na
elaboração da sentença: “A teoria do processo como situação jurídica (Goldschmidt) ainda é
mais aleatória e subjetivista do que a teoria da relação jurídica (instrumentalista), porque o
processo é imaginado como um lugar procedimental da dinâmica das partes à procura da
vitória de seus pretendidos direitos articulados perante um juiz, que poderá apontar
vencedores e vencidos, sem qualquer vinculação a direitos fundamentais orientadores de sua
decisão.”668
A concepção de jurisdição, para Goldschmidt, está relacionada com sua concepção de
justiça e de direito. O direito se inspira na justiça. A justiça, por sua vez, seria uma virtude
intrínseca ao decisor. “Da mesma maneira que a arbitrariedade é uma antijuridicidade na qual
só pode incorrer a autoridade, a justiça é uma virtude que pode ser praticada exclusivamente
pela autoridade à qual a constituição incumbe a aplicação do direito.”669
Por essa teoria, o decisor possui poderes dilatados, já que ele pode, inclusive, julgar
contra disposição de lei. Além disso, as partes não participam da construção da decisão. Com
a elevação das garantias processuais ao status de direito constitucionalizado, essa teoria não
666 BÜLOW, Oscar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. 667 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Processo, ação e jurisdição em Oskar von Bülow. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, 2005, v. 6, p. 48. 668 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 109. 669 “De la misma manera que la arbtirariedad es uma antijuridicidad em la que solo puede incurrir la autoridade, la justicia es uma virtud que puede practicarse exclusivamente por la autoridad a la que incumbe la constitución y la aplicacion del derecho.” GOLDSCHMIDT, James. Problemas generales del derecho. Buenos Aires: Depalma, 1944, p. 25.
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condiz com os princípios do Estado democrático de direito. Ao elencar as críticas à teoria da
situação jurídica, Madeira aponta:
A primeira e mais óbvia crítica que se faz está justamente no elevado grau de incerteza das partes, conseqüência imediata da desvinculação do juiz aos argumentos lançados pelos litigantes. No entender do autor alemão, o juiz julgaria a lide de acordo com seu senso de justiça, não estando adstrito nem mesmo à lei.
A partir de tal idéia, totalmente inadequada à finalidade do processo no Estado Democrático de Direito, para GOLDSCHMIDT restaria às partes apenas a passiva expectativa de uma decisão favorável, que seria extraída não do conteúdo dos debates, mas, sim, da divinizada capacidade do julgador para entender qual dos contendores apresentou a melhor estratégia para chegar à vitória.670
Já pela teoria do processo como instituição, a decisão não possui qualquer balizamento
jurídico, mas sociológico. Ao contrário do que ocorre no Estado democrático de direito, em
que o processo assumiu o status de direito fundamental constitucionalizado, o processo como
instituição era conduzido pelas mãos jurisdicionais dos juízes. Sobre o tema, Leal assevera:
Quanto à teoria de Guasp, que entendia o processo como instituição oriunda da sociedade política para reproduzir o mundo da vida no plano decisório do direito, percebe-se que é insatisfatória para a compreensão da teoria democrática do direito, que se propõe a uma reconstrução jurídica da normatividade pela razão jurídico-discursiva que não é preservadora axiológica da vida social pela filosofia do sujeito julgador ou decisor em qualquer segmento da estabilidade.671
Por outro lado, a teoria do processo como procedimento em contraditório retirou a
decisão da esfera do decisor, passando ela a ser estudada como provimento. Nessa linha de
idéias, Leal aponta: “[...] a sentença (provimento) não é, nessa teoria, um ato sentimental e
solitário do juiz, mas uma conseqüência e expressão jurídica, racionalizada e categoricamente
conclusiva, dos atos do procedimento em contraditório pelas partes.”672 Porém, Leal adverte
que, apesar da contribuição de Fazzalari673 no estudo do processo, o contraditório não é mais
uma qualidade que deve ser incorporada ao processo, mas um instituto do Direito
Constitucional.674
670 MADEIRA, Dhenis Cruz et al. Processo, jurisdição e ação em James Goldschmidt. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, 2005, v. 6, p. 116. 671 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 109. 672 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 97. 673 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, 1996. 674 “[...] Em Fazzalari, por ser o contraditório uma qualidade transformadora do procedimento em processo, ainda assim, embora auxilie a aprendizagem da teoria do direito democrático, nos remete a uma cogitação aristotélico-essencialista, que lhe retira a racionalidade explicativa de como é institucionalizado o princípio do contraditório para que este adquira força transmutativa do procedimento em processo quando não apoiada numa
189
Com base nos estudos desenvolvidos por Fazzalari675, a atividade jurisdicional não se
limita à aplicação da lei como quer Liebman676 ou Chiovenda677, mas se fundamenta na
estrutura procedimental. Nesse sentido, Pellegrini aponta:
Portanto, a estrutura jurisdicional se realiza baseada na existência do processo. A partir do monopólio da jurisdição, que possui caráter imperativo, e da estrutura jurisdicional, que se caracteriza pela função substitutiva, a jurisdição se realiza porque as partes que serão afetadas pelo provimento jurisdicional atuam no processo em contraditório, a fim de se chegar a um provimento final.678
Assim, Fazzalari não define ou conceitua o instituto da jurisdição; o método adotado
por ele “[...] para explicar a atividade jurisdicional é sempre voltado para o processo e
mediante o estudo dos seus elementos de validade. Isso se revela extremamente importante
para a formação de uma nova concepção de jurisdição.”679 Assim, Fazzalari não entende que
o litígio seja a figura mais importante na caracterização da atividade jurisdicional, como
ensinava Carnelutti.680
Essa concepção de jurisdição é de fundamental importância no Estado democrático de
direito, pois retira a sobrecarga imposta à função jurisdicional ao garantir às partes a
participação em simétrica paridade:
Com as novas conquistas do Direito, o problema da justiça no processo foi deslocado do “papel missão” do juiz para as garantias das partes. O grande problema da época contemporânea já não é o da convicção ideológica, das preferências pessoais, das convicções íntimas do juiz. É o de que os destinatários do provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo jurisdicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade, podendo compreender por que, como, por que forma, em que
coercitividade autopoiética de cunho meramente legalista e própria do Estado burguês de direito.” LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 169. 675 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, 1996, p. 102-103. 676 “Jurisdição é a atividade do poder judiciário destinada a realizar a justiça mediante a aplicação do direito objetivo às relações humanas intersubjetivas; no processo de cognição somente a sentença que decide a lide tem plenamente a natureza de ato jurisdicional.” LIEBMAN, Enrico Túlio. Estudos sobre o processo civil, 2001, p. 109. 677 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual, 2000. 678 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O processo, a jurisdição e a ação sob a ótica de Élio Fazzalari. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, Belo Horizonte, a. 2, n. 1, ago. 2003. Disponível em http: <//www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/prod_docente_ano1_2004.html/>. Acesso em 10/10/2004. 679 LARA, Leonardo Augusto Leão; CARVALHO, Newton Teixeira; PENNA, Saulo Versiani. Processo, ação e jurisdição em Fazzalari. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, São Paulo: IOB-Thonsom, 2004, v. 5, p. 308. 680 Carnelutti, pressupondo a existência de um conflito de interesse, conclui que a jurisdição consiste na justa composição da lide, qualificada por uma pretensão resistida, mediante sentença declarativa. CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Tradução de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Líder Cultura Jurídica, 2004, p. 22.
190
limites o Estado para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos e para impor condenações.681
Por fim, Leal submete a teste a teoria constitucionalista do processo. Em primeiro
lugar, cumpre ressaltar que ter um modelo constitucional do processo não significa que essa
teoria se coaduna com uma teoria do Estado democrático de direito, uma vez que tanto o
Estado liberal quanto o Estado social de direito poderiam adotar modelo constitucional, sem,
no entanto, possibilitar uma ampla e irrestrita fiscalização do ordenamento jurídico pela
comunidade jurídica. Ademais, os adeptos dessa teoria não esclareceram qual é a teoria
processual adotada por eles capaz de informar essa constitucionalidade. Em decorrência disso,
acabam por adotar os ensinos da teoria do processo como relação jurídica. Por essa
concepção, o processo é apreendido “[...] como um instrumento de uma Jurisdição
Constitucional (atividades de Juízes Guardiães-da-Lei) com escopos metajurídicos
capelletianos de fazer justiça social em critérios não esclarecidos por supostas probidade e
seriedade (pós-positivismo) de operadores virtuosos do Direito.”682
Ao realizar um estudo comparativo entre a teoria constitucionalista do processo e a
teoria neo-institucionalista, Leal aponta:
A Teoria Constitucionalista do Processo acolhe uma Sociedade Civil pressuposta e já construída por um Estado nacional pré-histórico como referente hermenêutico dos direitos a serem decididos pela autoridade jurisdicional. Ao contrário, a Neo-Institucionalista propõe-se a construir uma Sociedade Democrática pelo povo legitimado ao processo (comunidade jurídica de cidadãos) em todos os níveis de produção, atuação, aplicação e extinção de direitos no marco teórico-institucional do Devido Processo Constitucionalizado (Direito Constitucional Processual).683
No Estado democrático de direito, a jurisdição pode ser conceituada como atividade de
monopólio do Estado no reconhecimento de direitos; por sua vez, essa atividade encontra-se
subordinada aos princípios do processo.684 Ao estudar a função jurisdicional, Brêtas C. Dias
assevera sua aderência ao renovado conceito de jurisdição formulado pela teoria neo-
institucionalista da decidibilidade:
[...] a função jurisdicional é atividade-dever do Estado, prestada pelos seus órgãos competentes, indicados no texto da Constituição, somente possível de ser exercida sob petição da parte interessada (direito de ação) e mediante a garantia do devido processo constitucional, ou seja, por meio do processo instaurado e desenvolvido em
681 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, 1992, p. 195. 682 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 104. 683 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 97. 684 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 41.
191
forma obediente aos princípios e regras constitucionais, dentre os quais avultam o juízo natural, a ampla defesa, o contraditório e a fundamentação dos pronunciamentos jurisdicionais, com o objetivo de realizar imperativa e imparcialmente o ordenamento jurídico.685
Desse modo, a jurisdição no Estado Democrático de Direito não é atividade
beneficente, mas “[...] é direito fundamental de qualquer um do povo (governantes e
governados) e também dos próprios órgãos estatais obtê-la, a tempo e modo, vale dizer, de
forma adequada e eficiente, pela garantia do devido processo constitucional.”686
Após submeter as teorias do processo a testes, Leal conclui que a teoria neo-
institucionalista não apresenta relação com as demais teorias do processo, pois essas teorias
não se compatibilizam com a teoria do direito democrático:
A teoria neo-institucionalista nenhuma relação apresenta com as demais teorias que, ao se proporem a instrumentalizar soluções de conflitos na sociedade, não se comprometem com a auto-inclusão processual de todos nos direitos fundamentais, sem os quais se praticaria, a nosso ver, a tirania da ocultação dos problemas jurídicos e não sua resolução compartilhada.
O processo, nessa concepção, não se estabelece pelas forças imaginosamente naturais de uma Sociedade ou pelo poder de uma elite dirigente ou genialmente judicante, ou pelo diálogo de especialistas, mas se impõe por conexão teórica com a cidadania (soberania popular) constitucionalmente assegurada, que torna o princípio da reserva legal do processo nas democracias o eixo fundamental da previsibilidade das decisões.687
Desse modo, a institucionalização constitucional do Processo retira das decisões toda
sua autoridade, tornando-as impessoais, uma vez que baseadas na dialogicidade: “[...] a
institucionalização constitucional do processo acarreta a impessoalização das decisões, porque
estas, assim obtidas, se esvaziam de opressividade potestativa (coatividade, coercibilidade)
pela deslocação de seu imperium (impositividade) do poder cogente da atividade estatal para a
conexão jurídico-política da vontade popular constitucionalizada.”688
O momento decisório, por essa concepção, não significa mais o momento de o decisor
fazer justiça, mas implica que é instante de construção da decisão em uma estrutura
procedimental regida pelo processo constitucionalizado.689 Essa também é a posição adotada
por Brêtas C. Dias:
685 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 83-84. 686 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 93. 687 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 102. 688 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 102. 689 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 69.
192
[...] essa manifestação de poder do Estado, exercido em nome do povo, que se projeta no pronunciamento jurisdicional, é realizada sob rigorosa disciplina constitucional principiológica (devido processo constitucional), de modo a garantir adequada participação dos destinatários na formação daquele ato imperativo estatal, afastando qualquer subjetivismo ou ideologia do agente público decisor (juiz), investido pelo Estado pelo poder de julgar, sem espaço para a discricionariedade ou a utilização de hermenêutica canhestra, fundada no “prudente (ou livre) arbítrio do juiz”, incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito, como, ao contrário, até hoje e infelizmente, alguns doutrinadores supõem e apregoam.690
A esse desiderato está o processo plenamente ajustado à referida estrutura normativa (devido processo legal), como procedimento que se realiza em contraditório entre as partes, por exigência do devido processo constitucional, sem exceção de espécie alguma. Assim o é, porque o contraditório viabiliza a participação simetricamente igualitária das partes destinatárias do pronunciamento jurisdicional decisório final (decisão, sentença, provimento) na fase procedimental da sua preparação, influindo as mesmas partes na sua construção.691 (grifos do autor)
Assim, uma vez submetidas a testes pela teoria neo-institucionalista, verifica-se que as
demais teorias do processo não se coadunam com a do direito democrático, motivo pelo qual
ocorre a corroboração da teoria neo-institucionalista e o falseamento das demais nos moldes
propostos pelo critério da falseabilidade das teorias popperiano. Fica evidente que somente
uma teoria processualmente institucionalizada possui compatibilidade com a teoria do direito
democrático, conforme enfatiza Leal:
[...] não é qualquer teoria procedimental que se compatibiliza com a teoria do direito democrático, mas aquela processualmente institucionalizada como referente-lógico jurídico-constitucional (devido processo constitucional) equivalente a uma teoria argumentativa que seja mediante a instauração judicial de procedimentos (devido processo legal), auto-includente de todos os destinatários da normatividade no âmbito de pleno exercício e confirmação dos direitos fundamentais como agentes de sua própria integração social.692
As demais teorias estudadas não possibilitaram a institucionalização do princípio do
discurso em princípio da democracia, motivo pelo qual Leal entendeu necessário desenvolver
uma teoria da procedimentalidade democrática (neo-institucionalista), com o intuito de
esclarecer o significado de institucionalização democrática em Habermas:
[...] porque só numa concepção de processualidade neo-institucionalizante é que se supriria a racionalidade inconclusa das proposições de direitos fundamentais já constitucionalizados para realização de uma integração social pelo direito-de-ação irrestrito e incondicionado, uma vez que, em não sendo o processo um modelo de controle de juridicidade pela jurisdição dos juízes, como querem os constitucionalistas neo-positivistas, o processo assume a qualidade de instituição de pós-modernidade
690 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 86-87. 691 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 86. 692 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 172.
193
(saneadora da modernidade) em paradigma teórico de plebiscitarização processual incessante (direito-de-ação irrestrito e incondicionado) com a conseqüente abertura jurídica de total auto-revisibilidade discursiva (devido processo constitucional) que legitima o ordenamento legal na democracia.693 (grifos do autor)
Ao analisar a contribuição da teoria discursiva habermasiana, Teixeira destaca que,
apesar da contribuição de Habermas no estudo da legitimidade do direito, ele não informou
como ocorreria a passagem do princípio do discurso para o princípio da democracia de modo
a efetivar e resguardar os direitos fundamentais. Essa omissão deixada por Habermas poderia
levar a uma perigosa autolegislação, uma vez que elaborada fora de um espaço procedimental.
Porém, essa lacuna foi sanada pela teoria neo-institucionalista do processo:
É que a teoria neo-institucionalista estuda o processo como pressuposto de legitimidade da atividade jurisdicional, efetivando-o pela constitucionalização dos princípios institutivos do processo – contraditório, ampla defesa e isonomia -, processo que será espaço discursivo imune de coerções externas, estando, via de conseqüência, capaz de permitir a participação dos envolvidos na construção do provimento em condições de igualdade.694
Desse modo, a teoria neo-institucionalista visa cobrir essa lacuna deixada por
Habermas, que não percorreu a teoria da processualidade e não esclareceu qual a teoria da
procedimentalidade utilizada por ele. Para que ocorra a legitimidade do direito com
fundamento na teoria do direito democrático, faz-se necessária a observância do devido
processo constitucional e de suas duas vertentes: o devido processo legislativo e o devido
processo legal, de análise póstera no presente trabalho.
Por conseguinte, a teoria neo-institucionalista, embasada na falibilidade discursiva
popperiana, ao viabilizar a transposição do princípio do discurso ao princípio da democracia
por meio do devido processo constitucional e de suas duas vertentes, o devido processo
legal e o devido processo legislativo, possibilita a construção de uma Sociedade Jurídico-
Político-Democrática. Nesse sentido, Almeida aponta que, nas sociedades pós-convencionais,
a democracia somente ocorre se balizada pela processualidade na visão neo-institucionalista.
A teoria neo-institucionalista esclarece o conceito de procedimentalidade e de medium
lingüístico (meio lingüístico) utilizado por Habermas, demonstrando em que forma ocorre a
discursividade:
693 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 173. 694 TEIXEIRA, Welington Luzia. Novas reformas do CPC e o Estado democrático de direito. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2006, p. 89.
194
A democracia, nas sociedades complexas, somente se encaminha pela discursividade proposta por Habermas se balizada pela processualidade na visão neo-institucionalista, primeiro porque o espaço discursivo não é inerente ao agir comunicativo; é a estrutura processual que garante um espaço isonômico de defesa (argumentos) irrestrita (ampla defesa). E, segundo, porque nessa visão os princípios institutivos (contraditório, isonomia e ampla defesa) do processo são regências do procedimento.695
Após estudada a teoria neo-institucionalista do processo, abordar-se-ão, no próximo
subitem, as concepções de Estado de direito e Estado democrático de direito, a partir das
pesquisas desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Mineira de
Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em especial na área do Direito
Processual, que tem como linha de pesquisa o processo na construção do Estado
Democrático de Direito, apontando os aportes teóricos utilizados nesses estudos, bem como
a relação desses paradigmas de Estado com o processo.
1.4 Concepções de Estado de direito e Estado democrático de direito
O presente subitem objetiva fazer uma reflexão acerca das concepções de Estado de
direito e Estado democrático de direito a partir das pesquisas desenvolvidas no Programa de
Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, em especial, na área de Direito Processual. Além disso, busca-se
examinar as contribuições desses estudos para uma nova epistemologia do Direito Processual.
Cumpre salientar que o Direito Processual pode significar tanto uma disciplina como
um sistema normativo.696 Nessa linha de idéias, André Leal, ao estudar as acepções de Direito
Processual, assinala: “Assim, Direito Processual significa não só uma disciplina jurídica,
como também, por metáfora, um conjunto de normas, porque seria epistemologicamente
inadequado tanto imaginar-se uma disciplina jurídica de base empírica, como referir-se a
conjunto de normas, cuja sistematização não se houvesse operado por via de utilização
daquele repositório propedêutico de conhecimentos cientificamente encontrados.”697
695 ALMEIDA, Andréa Alves de. A efetividade, eficiência e eficácia do processo no Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, 2004, v. 4, p. 94. 696 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p.55. 697 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. Direito processual – Texto jurídico e norma processual: implicações hermenêuticas. In: LEAL, Rosemiro Pereira. (Org.) Estudos continuados de Teoria do Processo, 2001, v.1, p. 116.
195
Já a epistemologia do Direito Processual, segundo Leal é um “[...] conjunto necessário
de conhecimentos, ainda que provisórios, ao entendimento e esclarecimento das fases
jurídicas da atividade e interação humanas empreendidas, até a construção das atuais bases
histórico-científicas do Processo no campo do Direito.”698
Por meio da teoria neo-institucionalista do processo, já anteriormente estudada, houve
uma ruptura com o modo, como o processo, a jurisdição e o Estado eram estudados
anteriormente. A jurisdição em uma sociedade aberta deve ser balizada pelo devido processo
constitucional. Assim, a jurisdição não pode mais ser vista como uma atividade solipsista do
juiz, mas constitui-se em um direito fundamental e somente é alcançada pela observância do
devido processo constitucional, o devido processo legal e o devido processo legislativo, ou
seja, através de uma fiscalização ampla e irrestrita dos jurisdicionados. Por sua vez, o
processo não é mero instrumento da jurisdição, mas uma instituição jurídica
constitucionalizada. Já o Estado, por essa nova concepção, não é estudado como um ente
todo-poderoso nos moldes preconizados por Maquiavel699, Bodin700, Hobbes701 ou Hegel702 e
que representa o todo do ordenamento jurídico, conforme aponta Leal:
O Estado hobbesiano que, segundo Ascarelli e Bobbio, impõe uma gramática de obediência aos significados das normas organizadoras da coerção estatal (a dogmática jurídica e o monismo da estatalidade normativa), inaugurou, na História do Direito, a primeira teoria do Estado Moderno. Entretanto, o Estado hobbesiano era um Estado cuja soberania ainda se encontrava na pessoa do rei (absolutismo monárquico), como se vê em Maquiavel e Bodin, embora muitos atribuam a Hobbes o título de precursor do positivismo jurídico que, como já frisamos em ponto anterior, trocou a lei da natureza pelas leis da razão e permutou a ontologia pela metodologia do útil e do necessário. Hobbes, ao achar que o estado de natureza é um estado de anarquia de significados, preconizou o totalitarismo estatal em que as leis eram extraídas da racionalidade soberana do rei e dos governantes para a preservação da unidade, da ordem e do progresso das nações.703 (grifos do autor)
698 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 55. 699 MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe, 2000. 700 “Bodin, pela primeira vez, começa a teorizar a autonomia e soberania do Estado moderno, no sentido que o monarca interpreta as leis divinas, obedece a elas, mas de forma autônoma. Ele não precisa receber pelo papa a investidura de seu poder. O Estado é constituído essencialmente pelo poder: nem o território, nem o povo definem o Estado tanto quanto o poder [...] O Estado, para Bodin, é o poder absoluto, é a coesão de todos os elementos da sociedade.” GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Tradução de Dario Canali. 5. ed. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 12. 701 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2002. 702 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito, 1997, p. 205. 703 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 48.
196
Ao contrário do que preconiza Aristóteles704, o Estado não objetiva assegurar a
felicidade e a virtude.705 Para Maquiavel, o Estado é uma instituição política suprema. O
príncipe possui o poder absoluto, e esse poder se confunde com o próprio Estado. Por essa
concepção, o Estado se relaciona com a dominação do príncipe sobre o povo. Nessa linha de
idéias, Maquiavel acentua: “Todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que há
sobre os homens foram repúblicas ou principados.”706 O Estado, como poder central, além de
ter o poder legiferante, tem o poder de decisão. O Estado absoluto não necessita de
compartilhar esse poder com ninguém.707
O Leviatã de Hobbes também representa o autoritarismo, sendo o soberano (poder
absoluto) responsável por emitir as leis que serão impostas aos súditos. O Estado (civitas) é
formado a partir de um pacto entre os homens, em que cada pessoa transfere seus direitos a
esse Deus imortal (Leviatã), responsável por assegurar a paz e a defesa comum. Por essa
concepção, a comunidade jurídica não é considerada co-autora das leis, uma vez que o Estado
é o único legislador: “O único legislador é o soberano em todos os Estados, seja este um
homem, como uma monarquia, ou uma assembléia, como uma democracia ou numa
aristocracia. O legislador é aquele que faz a lei. Só o Estado prescreve e ordena a observância
das regras a que chamamos leis, então o Estado é o único legislador.”708
Porém, Leal deixa claro que o Estado não pode mais ser concebido como a figura
hobbesiana do Leviatã. Na pós-modernidade, também não basta uma concepção de Estado
de direito, uma vez que também existem Estados de direitos autocráticos, que não
possibilitam o exercício da cidadania na construção do ordenamento jurídico. Por isso, Leal
preconiza que o Estado que se deve estudar na pós-modernidade é o Estado democrático de
direito:
[...] Embora tenha unidade política e jurídica, não oferece, ainda, um efetivo sistema jurídico de garantias institucionais constitucionalmente autonomizadas em repúdio aos tradicionais e utópicos poderes estatais. Atualmente, a concepção de Estado de direito não basta ao exercício do Direito em sua plenitude, porque o Estado
704 “Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem.” ARISTÓTELES. A política, 1998, p. 1. 705 “O Estado, para Maquiavel, não tem mais a função de assegurar a felicidade e a virtude, segundo afirmava Aristóteles. Também não é mais - como para os pensadores da Idade Média – uma preparação dos homens ao Reino de Deus. Para Maquiavel, o Estado passa a ter suas próprias características, faz política, segue sua técnica e suas próprias leis.” GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci, 1986, p. 10. 706 MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe, 2000, p. 95. 707 COSTA, Nelson Nery. Curso de Ciências políticas. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 76. 708 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, 2002, p. 197.
197
autocrático é também um Estado de direito, com seu povo, sua soberania formal, sua constituição, seus parlamentos e tribunais regidos por leis restritivas de liberdade, dignidade política e econômica, impeditivas do exercício da cidadania e da liberdade de ampla crítica e participação popular na criação e reconstrução do Estado.709
Assim, a concepção de Estado que deve embasar o estudo do processo é uma visão
pós-moderna. No pós-modernismo, ou seja, “[...] um mundo posto pelo homem sem
pressupostos históricos condicionadores [...]”710, o processo, como instituição jurídica, está
situado ao lado do Estado, do povo, da cidadania e da soberania popular. Desse modo, o
Estado, na pós-modernidade, já deveria estar em paridade com outras instituições jurídicas:
O Estado (status da processualidade) e o cidadão já deveriam estar em nível de igualdade institucional pela regência de uma instituição maior, que hoje é a Jurisdição Constitucional pelo Processo, não sendo mais possível, no pós-modernismo, sustentar a existência hierárquica de instituições jurídicas ou a prevalência de uma sobre as outras no bojo constitucional, como se fossem caixas de ferramentas jurídicas à escolha e a serviço do Estado absoluto.711
A partir dessa nova concepção oferecida pela teoria neo-institucionalista, que, por sua
vez, fundamenta-se na epistemologia popperiana e na teoria discursiva habermasiana, têm
sido desenvolvidas pesquisas que envolvem o tema em estudo. Salienta-se que a teoria neo-
institucionalista inova ao trabalhar com o referencial teórico de Popper, uma vez que trouxe
uma nova perspectiva para o estudo do processo a partir de uma reflexão crítica.
Vieira salienta que o Estado possui noção dúplice como sujeito e objeto de direito.
Além disso, a vontade do Estado se relaciona com a lei: “[...] o Estado, forma e meio de
garantir a igualdade perante a lei, vale dizer, sendo meio, é a coação organizada, é a sanção
em seu amplo sentido de força coercitiva a serviço do Direito.”712 Por sua vez, no Estado de
Direito o processo é meio de se fazer valer o direito controvertido inclusive contra o Estado.
Com relação à natureza jurídica do processo, Vieira afirma que esse tem a natureza de
situações jurídicas: “[...] sem preocupação de originalidade, por isso ecleticamente, a idéia de
relação constituída de situações jurídicas. Realmente, o modo de ser do Direito no Processo
considera as posições contrapostas de autor e de réu, cada uma delas situação jurídica
processual.”713
709 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 48. 710 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 52. 711 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 52. 712 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Carnelutti e o ônus da prova. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 45, 2. sem. 1998. 713 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Teoria Geral da efetividade do processo. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 90, 1. sem. 1998.
198
Ao estudar a diferença entre processo e procedimento, Vieira acentua que: “[...] o
processo é uma estrutura de fases lógicas, correspondentes às operações racionais da
jurisdição. O procedimento, uma estrutura de seqüência, variável, de atos típicos daquelas
operações.”714
Ainda sobre o tema processo, Vieira enfatiza: “[...] dada a sua dimensão
constitucional, de garantia das garantias o processo termina por ser a matriz política de todo o
direito contribuindo para o próprio sistema do direito material.”715 A efetividade do processo
relaciona-se com a observância da garantia constitucional do devido processo legal. Por sua
vez, em cumprimento ao devido processo legal, três são os direitos processuais das partes:
direito à estabilização da lide716, direito à prova e direito ao provimento liminar ou de mérito.
Sobre o tema, Vieira esclarece:
No direito à estabilização da lide figuram a igualdade (art. 5º, “caput”, CF) e a publicidade (art. 5º, LX, CF) – eliminado o fator surpresa. No direito à prova situam-se o dever de motivação (art. 93, IX, CF) e a licitude dos meios (art. 5º, LVI e §2º, CF) – quer no sentido dos atos de instrução quer no do convencimento resultante. No direito ao provimento liminar ou de mérito, incluem-se o direito de ação como acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), esperando-se a desejável gratuidade; o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF); o direito à efetividade do processo (art. 5º, §2º, CF), como imperativo da ordem jurídica justa; o direito à assistência jurídica gratuita (art. 5º, LXXIV c/c art. 134, CF); e o direito de ação coletiva, disseminada a legitimidade para as “class actions” (art. 5, XXI e LXX, CF). Tais diferentes ângulos do “due process of law” compõe-se com o direito ao judiciário independente (art. 2º, CF), com o juiz natural, competente e imparcial (art. 5º, XXXVII e LIII, CF), um e outro, a sua vez, derivados da garantia de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e à ordem jurídica equânime (art. 5º, § 2º).717
Vieira destaca-se pelo estudo do direito de ação, como direito ao julgamento do
pedido: “[...] a ação é a lide tal como se apresenta em juízo mediante o pedido deduzido. Daí,
dizermos que o direito de ação é o direito ao julgamento do pedido conforme o estado do
processo.”718
714 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 80. 715 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 92. 716 “Não se consente mais a omissão do juiz em decretar a carência da ação ou sanear o processo. O saneamento implícito infrige o ‘due process of law’, que o exige expresso sem razão.” VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 81. 717 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 90. 718 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 71-72.
199
Em dissertação de mestrado intitulada Processualidade jurídica e legitimidade
normativa, Almeida apresenta o seguinte questionamento, que envolve o Estado democrático
de direito:
Nesse sentido, a problemática levantada pela contemporaneidade é como se operacionaliza (concretiza), legitima e implementa o Estado de direito democrático estabelecido e implantado pelo ordenamento jurídico; como se poderá efetivar as conquistas da modernidade. Em outras palavras, quais são as condições possibilitadoras para a formação, o exercício e a fiscalização da vontade normativa no paradigma do Estado de direito democrático?719
Na resolução do problema proposto, Almeida utiliza-se dos referenciais teóricos de
Popper, Habermas e Leal. Ao justificar a escolha desses aportes teóricos, a autora esclarece
que, enquanto Habermas teoriza uma racionalidade comunicativa discursiva procedimental
como condição para a integração social, Leal, comprometido com a teorização do direito
democrático, esclarece o medium lingüístico da procedimentalidade da teoria sociológica
habermasiana e testifica as teorias que se rotulam de democráticas. Popper evidencia a
necessidade de uma atitude crítica e a responsabilidade pessoal para a construção de uma
Sociedade Político-Jurídico-democrática, o que acaba por apontar a necessidade de uma teoria
capaz de estabilizar a democracia por meio da discursividade.
A teorização da democracia para esses autores é realizada pelo método reconstrutivo,
conforme acentua Almeida: “Popper, Habermas e Leal adotam um método reconstrutivo a fim
de construírem ciência e teorizarem sobre a democracia, contribuindo para uma pesquisa
dialógica da realidade jurídica em substituição ao tradicional conhecimento jurídico
metodológico, dogmático, pressuposto e auto-suficiente.”720
Ao estudar a teorização do direito democrático, embasada nas pesquisas desenvolvidas
por Popper, Almeida destaca duas questões de fundamental importância para a construção de
uma sociedade democrática: “[...] a exigência de se evidenciar a atitude crítica e a
responsabilidade pessoal como condição indispensável para a construção da sociedade
político-jurídico-democrática e a de pensar que a adoção do princípio universal da crítica
como racionalidade consistem no fundamento da Sociedade Aberta.”721
719 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 10. 720 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 11. 721 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 12.
200
Desse modo, nas análises empreendidas por Almeida, ela destaca que Popper, ao
enfatizar o papel da crítica, acaba por colocar no centro de suas reflexões a principiologia do
processo:
A epistemologia popperiana possibilita perceber-se a amplitude da importância da principiologia do processo (isonomia, ampla defesa e contraditório) na medida em que preconiza o princípio universal da crítica. A tese popperiana de que não há uma fonte de conhecimento a privilegiar implica, do ponto de vista jurídico, a indispensabilidade do direito-garantia da ampla defesa (argumentação irrestrita), ou seja, que nenhum argumento deve ser liminarmente rejeitado na estrutura técnico-jurídica de construção do provimento.722
Almeida destaca que Popper aponta a necessidade de uma teoria capaz de estabilizar a
democracia por meio da discursividade reconstrutiva incessante, o que é realizado pela teoria
neo-institucionalista do processo, uma vez que Leal teoriza o devido processo constitucional
(isonomia, contraditório e ampla defesa), como instituição regente do procedimento que
prepara o provimento jurisdicional.723
Ao contrário de Calmon de Passos, que preconiza que o paradigma democrático
contempla a infalibilidade do sistema724, Almeida aponta que a democracia contempla a
falseabilidade do sistema, visto que deve ser legitimado incessantemente pelo devido
processo legislativo e pelo devido processo legal. Nas sociedades democráticas, a atividade
jurisdicional é exercida por todos os sujeitos do processo, posto que a decisão, para ser
legítima, deve ser construída por seus destinatários:
A democracia não é algo acabado, consiste na participação de todos os destinatários, quer da lei ou do provimento, na produção, aplicação, interpretação e fiscalização incessante da constitucionalidade (co-instituições). O exercício da democracia não se limita à participação do povo nas eleições. Uma decisão somente retratará expectativas socialmente compartilháveis, se for construída por todos os destinatários e não pressuposta em algum momento anterior. Não bastam leis democráticas por si sós, são necessárias implicações hermenêuticas (interferência intelectual) dos destinatários das normas e do provimento. A legalidade per si não é suficiente para validar a legitimidade.725
Desse modo, o processo desempenha papel preponderante na democracia. Nessa linha
de idéias, Almeida enfatiza: “O processo devolve ao povo o interesse pela política e a
722 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 19. 723 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 19. 724 “[..] Daí se afirmar que, numa democracia moderna, soberanas são as leis, que expressam a vontade geral, vontade esta cuja normalização se obtém mediante um processo de produção do direito constitucionalizado.” CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A crise do Poder Judiciário e as reformas instrumentais: avanços e retrocesso. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 5, p. 4, mar.- abr.-maio, 2006. 725 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 106.
201
responsabilidade pessoal pelas decisões políticas. Diante disso, impossível falar em
democracia sem processo, pois é este que canaliza o princípio da soberania e os direitos
fundamentais, ao garantir a instauração do debate e a participação efetiva e direta do povo,
necessários nos Estados de direito democrático.”726
Assim, o processo é o espaço que permite a reconstrução do ordenamento jurídico. E a
legitimidade da norma no paradigma democrático se relaciona com o retorno à
processualidade jurídica: “O processo consiste no espácio discursivo isonômico de
argumentação irrestrita e em contraditório da reconstrução fática e da interpretação da norma
na construção das decisões estatais pelos destinatários. É o retorno da lei à processualidade
jurídica que garante a sua legitimidade normativa.”727
Ao tratar da concepção de Estado de direito e Estado democrático de direito, Almeida
destaca que “O Estado de direito democrático possui um nexo com o Estado de direito,
porque se caracteriza pelo princípio da reserva legal, mas extrapola os limites do Estado de
direito com o plus democrático.”728 A autora explica que o princípio democrático significa
“[...] garantia de participação efetiva dos destinatários das decisões estatais na sua criação,
aplicação e fiscalização por meio (medium lingüístico-jurídico) da processualidade
jurídica.”729
Almeida destaca a relevância da principiologia do processo no Estado democrático de
direito, uma vez que essa principiologia é responsável pela formação, exercício, aplicação e
fiscalidade da vontade normativa:
Nesse sentido, é importante perceber a principiologia do processo no âmbito constituinte, regendo a formação da vontade normativa, ou seja, o devido processo constitucional; a principiologia do processo no momento do exercício da vontade normativa, ou seja, na regulamentação da norma constitucional (devido processo legislativo); e a processualidade jurídica no momento de aplicação e fiscalização da vontade normativa nas funções do Judiciário e da Administração (devido processo legal). A democracia só se plenificará com a decisão democrática e com o controle democrático; a mera eleição não é condição suficiente para realizar a democracia.730
Brêtas C. Dias731 também desenvolve estudo pormenorizado acerca do Estado de
direito e do Estado democrático de direito, na obra Responsabilidade do Estado pela função
726 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 19. 727 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 112. 728 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 101. 729 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 101. 730 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 101. 731 Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor efetivo da graduação e pós-graduação da Faculdade Mineira de Direito.
202
jurisdicional732 e nos artigos A Reforma do Judiciário e os princípios do devido processo
legal e da eficiência733, Apontamentos sobre o Estado democrático de direito734 e A
garantia da fundamentação das decisões jurisdicionais no Estado democrático de
direito735. Nesses estudos, o autor utiliza-se de uma vasta bibliografia, destacando como
aportes teóricos as obras de Canotilho736 e Larenz737 que compreendem o Estado de direito e o
Estado democrático de direito como princípios738 conexos. Além desses, ao investigar a
função jurisdicional no Estado democrático de direito, Brêtas C. Dias adota os conceitos
cientificamente renovados de jurisdição e processo ofertados pela teoria neo-institucionalista.
Brêtas C. Dias aponta que, no estudo do Estado, se observa uma conexão entre as
idéias de poder e de direito. Por sua vez, a conceituação de poder não é tema central apenas da
Teoria do Estado, mas apresenta importância para a Teoria do Direito, pois o modo de seu
exercício pode afetar todo um ordenamento jurídico. Brêtas C. Dias aponta o fato de Kelsen
destacar que o poder é o centro do Estado.739 O poder pode ser conceituado como “[...]
relação sociopsicológica, fundada no efeito recíproco das ações daqueles que o detêm e o
exercem e das ações de seus destinatários, ou seja, daqueles perante os quais o poder é
exercido.”740 Por sua vez, o Direito Político desempenha papel importante, uma vez que esse
tem como objeto o exercício do poder político pelo Estado: “As tendências do Direito Político
moderno são no sentido de se preservar o exercício do poder pelo Estado dentro dos reclamos
da ordem e da liberdade, balizando-o pelos princípios da constitucionalidade e da
legalidade.”741
732 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004. 733 BRÊTAS C. DIAS. A Reforma do Judiciário e os princípios do devido processo legal e da eficiência. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, Brasília, OAB Conselho Federal, n. 80, ano XXXV, p. 113-123, jan./jun. 2005. 734 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Apontamentos sobre o Estado democrático de direito. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Minera de Direito da PUC – Minas, Belo Horizonte, a.2, n.1, ago. 2003. Disponível em: <http:// www.fmd.pucminas.br/vituajus/prod_docente_ano1_2004.html>. Acesso em 10/10/2004. 735 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. A garantia da fundamentação das decisões judiciais. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Belo Horizonte, IAMG, n. 12, p. 25-44, 2006. 736 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. 737 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 738 “[...] os princípios são havidos como proposições fundamentais do Direito, e via de conseqüência, como normas jurídicas, as quais, ao lado das regras, com idêntica força vinculativa, integram o ordenamento jurídico.” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 121. 739 “Diz-se, às vezes, que o Estado é uma organização política pelo fato de ter, ou de ser o ‘poder’. O Estado é descrito como o poder que se encontra por trás do Direito, que impõe o Direito.” KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes.1998, p. 274. 740 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 62. 741 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Uma introdução ao estudo do direito político. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 8, p. 122, 2002.
203
Ao analisar as diversas concepções atribuídas ao termo Estado, Brêtas C. Dias
assevera que o Estado “[...] representa a sociedade politicamente organizada pelo direito.”742
Por sua vez, Leal esclarece que, perante o Direito Processual, o Estado pode ser conceituado
como “[...] uma instituição constituída e regulada pelas normas legais que formam o
ordenamento jurídico de uma sociedade política.”743
Apesar dos inúmeros conceitos, o Estado somente pode ser concebido como Estado
constitucional, tendo a Constituição como sua lei suprema.744 O Estado constitucional
apresenta duas qualidades: o Estado de direito e o Estado democrático. Todavia, Canotilho
acentua que o Estado não deve limitar-se a ser apenas um Estado de direito, mas deve “[...]
estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio
legitimada pelo povo. A articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional
significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exerce-se em termos
democráticos.”745 (grifos do autor).
É de bom alvitre salientar que, para a configuração do Estado democrático de direito,
não basta apenas a união do Estado democrático e do Estado de direito, mas consiste na
criação de um novo conceito. Isso significa que as formas de atuação estatal estão submetidas
ao direito, que, por sua vez, é resultante da participação popular na sua elaboração. Conforme
acentua Sapucaia, em monografia embasada na teoria neo-institucionalista do processo: “[...]
por fim, uma vez estipulada a concepção de Estado Democrático de Direito, importa ressaltar
a imprescindibilidade da efetiva participação dos destinatários da norma na construção dos
provimentos jurisdicionais, por meio da processualidade jurídica, observado o Devido
Processo Constitucional.”746
O Estado de direito (Reechsstaat) teve sua origem delineada no século XIX, com o
constitucionalismo alemão. No início, o Estado de direito era caracterizado de forma abstrata
como Estado da Razão e era limitado em nome da autodeterminação da pessoa. Com o passar
do tempo, o Estado de direito passou a ser caracterizado com os traços jurídicos essenciais
742 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Uma introdução ao estudo do direito político. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, p. 107-122, 2002. 743 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 223. 744 “[...] Tem-se, portanto, um Estado submetido às normas do direito e estruturado por leis, sobretudo a lei constitucional, um Estado no qual se estabeleça estreita conexão interna entre dois grandes princípios jurídicos, democracia e Estado de direto, ou seja, um Estado Constitucional Democrático.” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 99 (grifos do autor); 745 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição, 2002, p. 98. 746 SAPUCAIA, Renata Soares. Súmulas vinculantes no Estado democrático de direito: propostas alternativas à sua adoção. 2006. Monografia (Graduação em Direito). Universidade de Montes Claros, Montes Claros, p. 14.
204
desse Estado, ou seja, o Estado liberal de direito em oposição ao Estado de Polícia (Estado
Absolutista).747
O Estado de Polícia, também denominado de Estado providência apresenta as
seguintes características: “[...] predomínio da idéia de soberania centrada no monarca, a
extensão do poder soberano ao âmbito religioso, assim exercendo a autoridade eclesiástica, a
assunção pelo Estado, no plano teórico, da promoção do bem-estar e da felicidade dos súditos,
missão confiada ao soberano, e a configuração do Estado desvinculada do moderno
constitucionalismo.”748
Brêtas C. Dias ressalta que o Estado Constitucional Democrático de Direito ocorre a
partir da articulação e do entrelaçamento dos princípios do Estado democrático e do Estado de
direito, o que, por sua vez, acontece por meio das normas constitucionais. A democracia para
Brêtas C. Dias “[...] mais do que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado
nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder,
que tem origem no povo.”749
Ao princípio democrático agrega-se o princípio do Estado de direito, fundamentado,
entre outras, nas seguintes bases: no império da lei750, na divisão de funções (legislativa,
administrativa e jurisdicional), no enunciado dos direitos, liberdades e garantias fundamentais
dos indivíduos751, na legalidade da administração pública, na independência dos juízes e na
fundamentação das decisões judiciais.
Nos trabalhos desenvolvidos acerca do Estado democrático de direito, Brêtas C. Dias
destaca, como princípio fundamental desse Estado, o direito do povo752 à função jurisdicional,
através do devido processo constitucional: “[...] é princípio estruturante do Estado
Democrático de Direito o direito do povo à função jurisdicional, a ser exercido pela garantia
do devido processo constitucional.”753
747 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição, 2002, p. 97. 748 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Apontamentos sobre o Estado democrático de direito. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC- Minas, ago. 2003, p. 2. 749 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 102. 750 “[...] esta compreendida como expressão da vontade geral, ato formalmente emanado da função legislativa, exercida com a participação indispensável dos representantes do povo.” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 96. 751 “[...] entre eles o princípio da igualdade, o princípio da reserva legal e o direito à jurisdição pela garantia do devido processo constitucional, estruturado nos princípios do contraditório e da ampla defesa, incluindo-se, neste, garantia, indispensável do advogado (art. 5º, incisos I, II, XXXV, LI e LV, e art. 133).” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 105. 752 “[...] como povo, há de se entender a comunidade política do Estado, composta de pessoas livres dotadas de direitos subjetivos em face de outras e perante o próprio Estado.” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 102. 753 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 107.
205
A partir dessa afirmativa, ou seja, a jurisdição somente atua por meio do processo
constitucional, cabe ao órgão jurisdicional, ao fundamentar sua decisão, justificar as razões
pelas quais a decisão foi proferida. Porém, essa fundamentação não pode ser baseada em
ideologias ou em convicções pessoais:
Essa justificação, porém, não pode ser abstrata, desordenada, desvairada, ilógica, irracional ou arbitrária, formulada ao influxo das ideologias, do particular sentimento jurídico ou das convicções pessoais (=subjetivismos) do agente público, porque ele não está sozinho no processo, não é seu centro de gravidade e não possui o monopólio do saber.
A justificação se faz de acordo com um conteúdo estrutural normativo que as normas processuais impõem à decisão (devido processo legal), em forma tal que o julgador lhe dê motivação racional com observância do ordenamento jurídico vigente e indique a legitimidade das escolhas adotadas, em decorrência da obrigatória análise dos argumentos desenvolvidos pelas partes, em contraditório, em torno das questões de fato e de direito sobre os quais estabeleceram discussão. Portanto, a fundamentação da decisão jurisdicional será o resultado lógico da atividade procedimental realizada mediante argumentos produzidos em contraditório pelas partes, que suportarão seus efeitos.754
Por sua vez, Pellegrini755 estuda o paradigma do Estado democrático de direito e sua
relação com o processo; para tanto, nos estudos dos paradigmas de Estado, incursiona no
Direito Constitucional, através das obras de Cattoni de Oliveira756 e Carvalho Netto757. Além
desses aportes teóricos, no estudo do Estado democrático de direito, a autora se utiliza da
teoria discursiva de Habermas e, no estudo do processo, faz uso de teoria do procedimento em
contraditório elaborada por Fazzalari.
Pellegrini, embasada nos estudos desenvolvidos por Cattoni de Oliveira758, assevera
que o termo paradigma pode ser entendido como “[...] uma determinada sociedade, num
determinado período, compreende os princípios constitucionais e o sistema de direitos.”759
754 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. A garantia da fundamentação das decisões judiciais. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2006, p. 31-32. 755 Doutora e Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Direito Processual e Teoria Geral do Processo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 756 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual constitucional, 2001. 757CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito, Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 3, p. 473-486, maio 1999. 758“[...] cabe recordar que o termo ‘paradigma’ foi introduzido na discussão epistemológica contemporânea, com o sentido utilizado pelo Professor Gomes Canotilho, ou seja, como ‘consenso científico’ enraizado quanto às teorias, modelos e métodos de compreensão do mundo’, a partir do conceito concebido pro Thomas Kuhn.” CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 52. 759 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros, O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2004, p. 2. Brêtas C.
206
E, com base nos ensinamentos de Carvalho Netto760, Pellegrini aponta que a
Antiguidade e a Idade Média constituiriam um paradigma único. Porém, na Modernidade, faz-
se necessária a formulação de três paradigmas: o do Estado de direito, o do Estado social e do
Estado democrático de direito. O paradigma do Estado de direito surgiu com a dissolução do
paradigma pré-moderno. Nesse paradigma, observa-se a cisão da sociedade em sociedade
civil e política. O direito passa a ser um conjunto de regras gerais e abstratas, aplicadas a
todos, as quais, por sua vez, limitam a atuação estatal na esfera privada dos indivíduos.
Pellegrini aponta que o Estado de direito liberal é marcado pela positividade e pelo
formalismo, sendo permitido ao cidadão fazer tudo o que não seja contrário ao direito. Esse
paradigma de Estado tem como pilares: a divisão dos poderes761 em Legislativo, Executivo e
Judiciário e a instituição de direitos fundamentais, denominados de direito de primeira
geração:
Assim, no Estado Liberal, o entendimento era que o Estado deveria atuar de modo a intervir o menos possível na esfera do indivíduo, compreendida como o espaço do direito privado e das relações familiares, contratuais e negociais. Dessa forma, o espectro de liberdades do cidadão poderia ser compreendido como toda atuação que não fosse contrária ao direito; ou seja, o que não é proibido por lei é permitido.762
Conforme acentua Souza, no paradigma do Estado liberal, o Estado possui uma
postura passiva; sua função se restringe à manutenção da ordem e a uma prestação
jurisdicional capaz de resguardar os interesses da classe social dominante: “[...] paradigma do
Estado Liberal de direito se dá basicamente nesse contexto [...] O papel do Estado é
Dias apresenta uma concepção diferente acerca do conceito de paradigma. Ver BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 101. 760 CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, 1999, p. 473-486. Ver também CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004. 761 Conforme assevera Brêtas C. Dias, as formulações teóricas sobre as funções do Estado estão sendo estudadas e utilizadas pela maior parte dos publicistas, “[...] em substituição à teoria da separação ou tripartição dos poderes – Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 66. Ao analisar se o Judiciário é um poder ou uma função, Leal destaca que “[…] com o advento do Estado moderno, torna-se arcaica a divisão da atividade estatal pela afirmação de poderes, porque, em face do discurso jurídico-democrático avançado das sociedades modernas, a única fonte de poder é o povo.” LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 213. 762 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2004, p. 4.
207
basicamente garantir a ordem e a segurança e assegurar a prestação jurisdicional inicialmente
para atender os interesses de uma classe social dominante.”763
Por esse paradigma de Estado, a teoria da relação jurídica apresenta relevância, uma
vez que o Judiciário tem o monopólio da jurisdição. Porém, a autora destaca que essa teoria
não se coaduna com o Estado democrático de direito:
Se pensarmos no paradigma do Estado Liberal, a separação entre sociedade civil e sociedade política, fica clara a importância da teoria da relação jurídica, pois a garantia formal de que o Poder Judiciário possui o monopólio da jurisdição e que os conflitos devem ser submetidos a sua apreciação, através do genérico direito de ação, de que todos possuem direito de iniciar uma demanda quando um direito próprio for lesado ou ameaçado.764
Carvalho Neto aponta que, por esse paradigma de Estado, o juiz é considerado a “boca
da lei”, já que apenas desenvolve uma atividade hermenêutica mecânica:
É claro que, sob este primeiro paradigma constitucional, o do Estado de direito, a questão da atividade hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera bouche de la loi.765 (grifos do autor)
A partir da superação do paradigma do Estado liberal, ocorre a formação do Estado
social e, com ele, há o estabelecimento dos direitos sociais, denominados de segunda geração.
Com essa mudança, o papel do Estado também se modificou: “[...] Não mais um Estado
Liberal ‘neutro’, distante dos conflitos sociais, mas um Estado que se assume como agente
conformador da realidade social e que busca, inclusive, estabelecer formas de vida concretas,
impondo pautas ‘públicas’ de ‘vida boa’, como relata Marcelo Cattoni (CATTONI DE
OLIVEIRA, 2002, p. 59).”766
763 SOUZA, Patrus Ananias de. Processo constitucional e devido processo legal. In: LEAL, Rosemiro Pereira. (Org.) Estudos continuados de Teoria do Processo, 2000, v. 1, p. 35. 764 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2004, p. 20. 765 CARVALHO NETO, Menelick. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p.34. 766 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2004, p. 6.
208
Nunes, embasado em Cappelletti767, assevera que o paradigma social mudou a
concepção dos processualistas da época e, por essa nova concepção, com a conseqüente
publicização e socialização dos direitos das partes, o processo deixou de ser “coisa das
partes”; o juiz passou a ter uma postura ativa no processo e delineou-se um movimento
denominado de “acesso à justiça”. Esse movimento visa a estabelecer uma relação entre o
processo civil e a justiça social, bem como entre a igualdade jurídico-formal e a desigualdade
social. Porém, Nunes adverte que há uma preocupação exacerbada com a celeridade e a
sumarização da cognição que, por sua vez, não possibilita uma ampla e irrestrita participação
das partes na construção do provimento:
Ao visar a esses fins sociais, os processualistas começam a preocupar-se com a adequação da técnica processual a este novo paradigma de análise e a construir procedimentos em que a cognição é sumarizada e, primordialmente, os poderes de direção e decisão do juiz são majorados (no caso brasileiro, cada vez menos controlados), possibilitando que, com uma intervenção mínima das partes, possa chegar ao proferimento do provimento final, respondendo-se com o menor custo e tempo possíveis as demandas propostas no sistema judiciário.768
Por esse “movimento de acesso à justiça”, há uma preocupação com a instituição de
direitos de minorias. No entanto, não há uma garantia da autonomia pública e privada, vez
que os afetados da decisão não participam da sua construção, conforme também aponta
Pellegrini. O Estado, ao assumir um papel paternalista (protetor), acaba por estabelecer o que
é bom para os indivíduos: “Contudo, a impossibilidade de o Estado Social resolver todas as
demandas e a crítica às políticas eticizantes decorrentes do paternalismo socioestatal, que
alijam minorias – já que normatizam questões sem a provável adesão dos seus destinatários –
fundamentam a crítica e propõem a ruptura deste paradigma.”769
Por sua vez, Carvalho Netto aponta que, por esse paradigma de direito, o juiz passa a
ter sua atuação ampliada, e a hermenêutica jurídica passa a exigir métodos sofisticados de
interpretação:
767 “É manifesto o caráter acentuadamente criativo da atividade judiciária de interpretação e de atuação da legislação e dos direitos sociais [...] quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juizes.” CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999, p. 42. 768 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 41. 769 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. Os direitos das vítimas de crimes no Estado democrático de direito. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, Belo Horizonte, a. 2, n. 1, p. 27, ago. 2003. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/prod_docente_ano2_2003.html>. Acesso em 10/10/2004.
209
O juiz agora não pode ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecânica de aplicação silogística da lei, tomada como a premissa maior sob a qual se subsume automaticamente o fato. A hermenêutica jurídica reclama métodos mais sofisticados como as análises teleológica, sistêmica e histórica capazes de emancipar o sentido da vontade subjetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materialização do Direito que a mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos programas e tarefas sociais.770
Porém, o paradigma social sofreu críticas em decorrência dessas políticas
paternalistas, que não possibilitavam aos destinatários das decisões participarem de sua
construção. Em decorrência das críticas surgidas, ocorreu a superação desse paradigma de
Estado para o Estado democrático de direito.
Nessa linha de idéias, Nunes aponta que, por esse paradigma, há uma redução da
autonomia privada: “Vê-se, assim, no paradigma de Estado de Bem-Estar Social, que a
autonomia privada pode ser reduzida de tal modo, que os cidadãos não poderiam identificar-
se como participantes efetivos e genuínos do espaço democrático.”771 Desse modo, somente a
partir de um paradigma procedimental democrático de direito há a possibilidade de uma
relação de complementaridade entre autonomia pública e privada.
Com a implementação do Estado democrático de direito, há a introdução dos
denominados direitos de terceira geração. A sociedade civil passa a questionar e a fiscalizar as
atividades do Estado e passa a participar dos debates tanto das atividades públicas quanto dos
seus interesses fundamentais:
Significa isso a compreensão de um direito participativo, em que a sociedade civil exerce importante papel controlador e conformador do Estado pluralista, respeitando os diversos matizes sociais, na busca da implantação de direitos, quer de primeira, segunda ou terceira geração, visto como um complexo de direitos e garantias que não podem ser aplicados em separado. Nesse sentido, não importa ter direitos sociais ou, mesmo, proteção aos direitos difusos se não há garantias mínimas de que a atuação estatal, principalmente no âmbito jurisdicional, não atingirá os indivíduos em seus direitos fundamentais.772
No paradigma do Estado democrático de direito, Carvalho Netto ressalta uma
mudança de postura do responsável pela tutela jurisdicional, uma vez que, ao tomar as
770 CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 36. 771 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 56. 772 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. Os direitos das vítimas de crimes no Estado democrático de direito. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2003, p. 2.
210
decisões, o Judiciário deve levar em consideração tanto o Direito vigente quanto os fatos
específicos do caso concreto:
Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivas do Direito vigente, satisfaçam a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.773
Apesar de Carvalho Netto tratar do Estado democrático de direito, a partir dos seus
estudos infere-se que ele não estuda o Estado democrático de direito nos moldes preconizados
por Popper ou pela teoria neo-institucionalista do processo que colocam no centro de suas
pesquisas o processo jurídico. Ao contrário disso, esse autor apreendeu a democracia nos
termos estudados por Häberle e Verdú. Ademais, no Estado da pós-modernidade não há que
se falar em crenças, visto que essa implica na falência de qualquer mito legitimador. Por sua
vez, a segurança jurídica e a certeza do direito se relacionam à observância da principiologia
do processo e não com a sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto como
quer Carvalho Netto. Desse modo, ao enfatizar o papel do juiz como parte primordial na
interpretação, ele acaba por enfatizar uma interpretação vertical, não desenvolvida no espaço
processualizado. Por conseguinte, seus estudos se remetem ao paradigma social.774
Embasada nos estudos realizados por Soares775, Pellegrini aponta que o Estado
democrático não se constitui em modelo fechado, mas é uma estrutura aberta à revisão. O
Estado Democrático de Direito está em construção, conforme assevera Soares: “[...] esse tipo
de Estado não é uma estrutura acabada, mas uma assunção instável, recalcitrante e, sobretudo,
falível e revisável, cuja finalidade é realizar o sistema de direitos nas circunstâncias
mutáveis.”776
Segundo Pellegrini, a noção de processo que permite essa fiscalização do ordenamento
jurídico é a teoria do procedimento em contraditório. Nesse paradigma de Estado, já não é
773 CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 38. 774 CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 39-44. 775 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 776 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Processo constitucional, democracia e direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 412.
211
mais possível estudar a compreensão do processo como relação jurídica, uma vez que, por
essa concepção, existe vínculo de subordinação entre as partes. Ao contrário, a teoria do
procedimento em contraditório aponta a participação em simétrica paridade das partes:
Portanto, a noção de processo que mais se adequa ao paradigma do Estado Democrático de Direito é a Teoria do processo como procedimento em contraditório. Este processo exige a participação dos afetados pelo provimento jurisdicional em simétrica paridade, colaborando, assim, para a produção do ato final, a sentença. Esta teoria foi formulada por Elio Fazzalari, que assim compreende o processo, como espécie de procedimento em contraditório, que se distingue do mesmo em virtude do contraditório.777 (grifos do autor)
No estudo do Estado democrático de direito, Pellegrini se utiliza da teoria discursiva
de Habermas e aponta a co-originariedade e eqüiprimordialidade entre autonomia pública e
privada dos sujeitos de direitos:
Assim, no Estado Democrático de Direito, o cidadão dever ser compreendido como autor e destinatário do direito, de modo que a principal mudança, baseada na crítica às políticas eticizantes do Estado Social, há pouco ressaltada, consiste justamente na participação dos afetados na construção e reconstrução comunicativa de seus direitos, aliando autonomia pública e autonomia privada.778
Com o intuito de demonstrar como a teoria discursiva auxilia na crítica ao Estado
Social e nos fundamentos do Estado Democrático de Direito, Pellegrini estuda a evolução
ocorrida no movimento feminista. Esse estudo é desenvolvido a partir das análises
empreendidas por Habermas, tendo como ponto de partida a Carta de 1977.779 Inicialmente,
Pellegrini esclarece que Habermas identifica as reivindicações de direitos formais típicos do
Estado Liberal nas diversas áreas: educação, trabalho e direitos políticos. Por sua vez,
Habermas esclarece que “[...] o feminismo clássico, que deita suas raízes no século XIX,
entendia por igualdade das mulheres o acesso livre e sem discriminações às instituições [...] A
política liberal tentava incluir as mulheres numa sociedade que lhes recusara até então
chances eqüitativas de concorrer.”780
777 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. Os direitos das vítimas de crimes no Estado democrático de direito. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2003, p. 2. 778 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. Os direitos das vítimas de crimes no Estado democrático de direito. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2003, p. 3. 779 “Tomo como ponto de partida a Carta Feminista, promulgada em 1977, em Houston, Texas, por 2000 delegados oriundos de sociedades, etnias e regiões diferentes.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 161. 780 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 162.
212
Pellegrini destaca que a obtenção desses direitos formais exigia a implementação de
políticas sociais pelo Estado, como, por exemplo, medidas relativas à gestação e maternidade.
Porém, essas políticas eram paternalistas e acabaram por gerar segregação das mulheres,
surtindo um efeito contrário ao pretendido. Sobre o tema, Habermas acentua: “[...] a
materialização do direito, que a princípio visava eliminar a discriminação das mulheres,
produziu efeitos contrários, na medida em que a proteção da gestação e da maternidade
apenas agravara o risco de desemprego das mulheres.”781
Em decorrência disso, o movimento feminista, a partir da década de setenta, começou
a formular críticas a essas políticas, já que elas não viabilizam discussões públicas pelos
afetados por essas medidas. Por conseguinte, Pellegrini aponta que: “[...] assim, podemos
concluir que o estabelecimento de direitos fundamentais depende de uma participação dos
afetados no processo de discussão e formação de opinião e vontade, que somente podem ser
garantidos se a autonomia pública que lhe complementa puder ser exercida.”782
Essa é a posição adotada por Habermas, para quem a concepção jurídica
procedimentalista deve assegurar a autonomia privada e pública:
Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para haver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante reivindicações de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar-social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao mesmo tempo autonomia privada e pública: os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado.783 (grifos do autor)
Outro aspecto abordado por Pellegrini e que merece destaque no estudo do Estado
democrático de direito é uma nova abordagem do princípio da ampla defesa. A partir da teoria
da falseabilidade popperiana, a autora submete a teste as teorias que tentam conceituar o
princípio de ampla defesa. A autora aponta que, para uma adequada reconstrução do princípio
da ampla defesa a partir do Estado democrático de direito, faz-se necessário uma
compreensão do direito de ação a partir do referencial teórico de Fazzalari.784
781 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 163. 782 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O paradigma do Estado democrático de Direito e as teorias do processo. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2004, p. 19. 783 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 305. 784 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, 1996.
213
Pellegrini aponta que a pesquisa partiu dos seguintes questionamentos: “[...] o
princípio da ampla defesa inclui o direito de defesa, ou até é igual ao direito de defesa? Se
assim for, a ampla defesa seria um paralelo ao direito de ação, já que o autor, pela teoria da
relação jurídica, exerce seu direito de ação ao provocar a demanda, e o réu, seu correlato
direito de resistir ou de se defender?”785
A partir dos estudos realizados por Fazzalari há uma reelaboração do conceito de ação,
que passa a ser concebida como direito a um provimento legítimo e não mais como direito de
provocar a jurisdição:
A legitimação para agir é considerada – na medida da legitimação em geral, como noção de teoria geral – por dois ângulos. Chamamos de “situação legitimante” o ponto de contato da legitimação de agir, ou seja, tirando a metáfora, a situação com base na qual se determina qual é o sujeito que, concretamente, pode e deve cumprir um certo ato; e de “situação legitimada” o poder, ou a faculdade, ou o dever – ou uma série deles – que, por conseqüência, cabe ao sujeito identificado, vale dizer, corresponde ao conteúdo da legitimação no qual ela consiste.786
Por essa concepção, não se pode falar em legitimação ativa e passiva para as partes,
visto que a legitimação para agir é sempre ativa. Por sua vez, a legitimação passiva se
relaciona ao provimento:
Importantes, parece-nos, são as implicações desta conclusão, pela qual tem ação no processo todos aqueles que realizarão uma série de atos, direitos, faculdades e deveres. Principalmente, no que tange ao confronto entre as atuações entre autor e réu. Pois tanto um, quanto outro, possuem faculdades, direitos e deveres, relativos à construção do processo como procedimento em contraditório, entendido como posição de simétrica paridade entre eles. Logo, não se pode falar em legitimação ativa do autor e legitimação passiva do réu. Pois ambos são legitimados ativos do contraditório. Se há alguma legitimação passiva das partes, esta se refere à legitimação ao provimento jurisdicional, pois serão eles os afetados pela decisão.787
Desse modo, o direito de defesa não é um direito que pertence ao réu, como destacam
os adeptos da teoria do processo como relação jurídica, mas consiste no direito de defesa tanto
do réu quanto do autor. Por sua vez, o direito de ação consiste no direito ao processo. E o
contraditório implica a participação das partes em toda estrutura procedimental que visa ao
785 PELLEGRINI, Flaviane Magalhães de Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha de; GUIMARÃES, Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do Estado democrático de direito. 2007, p. 1. 786 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução de Elaine Nassif. 8.ed. Campinas: Bookseller, 2006, p. 369. Ver também FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, 1996, p. 422-423. 787 PELLEGRINI, Flaviane Magalhães de Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha de; GUIMARÃES, Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do Estado democrático de direito, 2007, p. 13.
214
provimento jurisdicional, em simétrica paridade. A partir desses conceitos de direito de ação e
de defesa, Pellegrini apresenta o conceito de ampla defesa:
Assim, tomando estes conceitos como base – direito de ação e contraditório -, a ampla defesa será compreendida como garantia das partes de amplamente argumentarem, ou seja, as partes além de participarem da construção da decisão (contraditório), têm direito de formularem todos os argumentos possíveis para a formação da decisão, sejam estes de qualquer matiz. Isto, pois a recorrente afirmação da distinção entre argumentos de fato e de direito, aqui estão compreendidos como indissociáveis. Assim, a ampla argumentação garante como conseqüência lógica a possibilidade de ampla produção de prova para reconstrução do fato e das circunstâncias relevante para o processo.788
Essa proposição formulada por Pellegrini encontra convergência com a proposição
acerca da ampla defesa formulada pela teoria neo-institucionalista do processo. Por essa
concepção, esse princípio garante, através de uma estrutura procedimental adequada, a
construção de fundamentos obtidos por meio de argumentos jurídicos que, por sua vez,
decorrem da isonomia processual exercida através do contraditório e cujo objetivo é a
construção do provimento jurisdicional.789
Ao final da pesquisa realizada acerca do princípio da ampla defesa a partir do Estado
democrático de direito, Pellegrini aponta que o direito de defesa, como garantia de defesa do
réu em face do direito de ação, é uma construção teórica da teoria do processo como relação
jurídica. Porém, essa formulação é inadequada ao paradigma do Estado democrático de
direito. Por outro lado, a proposição de que o direito de defesa é um direito das partes frente
ao Estado se coaduna com o paradigma do Estado liberal, uma vez que seria uma limitação da
atividade estatal. Mas essa proposição também não é adequada para o Estado democrático de
direito.
De modo diverso dessas proposições, Pellegrini toma como suporte teórico a
conceituação formulada por Fazzalari790 acerca: do direito de ação, ou seja, como legitimação
ao provimento, ou como direito ao processo; e da definição do contraditório como garantia
das partes de participação em simétrica paridade na construção da decisão. A ampla defesa
quer dizer direito a ampla argumentação: “[...] isto é, ampla possibilidade de as partes
inserirem na controvérsia argumentos relevantes para a construção da decisão e ampla
788 PELLEGRINI, Flaviane Magalhães de Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha de; GUIMARÃES, Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do Estado democrático de direito, 2007, p. 14. 789 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 171. 790 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual Civil, 2006, p. 369. Ver também FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, 1996, p. 422-423.
215
possibilidade de produção de provas para reconstrução de fato relevante para o processo.”791
Nesse aspecto, há uma convergência entre a concepção adotada por Pellegrini e a teoria neo-
institucionalista, conforme reconhece a própria autora.
Maciel Júnior792, na obra Teoria das ações coletivas, também desenvolve pesquisa
acerca do Estado democrático de direito. Numa concepção diferente da apresentada
anteriormente por Maquiavel e Hobbes, o autor aponta que nesse paradigma de Estado nem os
indivíduos nem o Estado possuem poder:
O Estado, as associações, sociedades civis ou comerciais são uma ficção, uma criação da lei.
O Estado, pessoa jurídica (ORESTANO, 1968, p. 336), pode receber da lei, por delegação, competências de poder para atuar a vida prática através de seus agentes políticos. Essas competências condicionam os limites dos poderes delegados e instituem as esferas de atuação dos agentes políticos, que não podem agir além desses poderes conferidos. Nisso consistem as garantias dos indivíduos contra o Estado.793
Maciel Júnior, fundamentado em Habermas, aponta que o Estado não representa o
todo no ordenamento jurídico, mas se posta ao lado de outras instituições, como um
interlocutor:
[...] O Estado é apenas um dos entes que compõem a sociedade, e existem vários interlocutores dentro dela que se posicionam em um mesmo patamar participativo. O Estado, hoje, deve ser um interlocutor, juntamente com os diversos segmentos da sociedade, no sentido de estabelecer um processo de participação dos sujeitos quanto às diversas pretensões existentes dentro dessa sociedade. A teoria do agir comunicativo de Habermas tenta assimilar a tensão que existe entre a facticidade e a validade, estabelecendo, pelo processo da linguagem, do discurso, o consenso sobre as pretensões de validade manifestadas em uma dada sociedade.794
Inicialmente, havia uma ligação da figura dos reis e imperadores com o Estado, cabia a
eles o direito de dizer a lei. Com a superação desse sistema paternalista de poder e com o
Estado de direito e, posteriormente, com o Estado democrático de direito, houve uma ruptura
791 PELLEGRINI, Flaviane Magalhães de Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha de; GUIMARÃES, Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do Estado democrático de direito, 2007, p. 17. 792 Pós-doutor em Direito pela Universidade de Roma. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Graduação e da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, onde ministra aulas de Direito Processual Civil e Direito Processual Coletivo. 793 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 116. 794 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 49.
216
com essa concepção, que relaciona o poder do rei ao Estado. A norma passa a definir as
esferas de competências dos agentes públicos, que somente podem fazer segundo essa esfera
de competência. Assim, embasado em Habermas, Maciel Júnior aponta que o poder passou a
ser regulado dentro de processos discursivos na sociedade:
O poder, não sendo mais personalizado em uma figura humana, possibilitou o surgimento do Estado Democrático de Direito, porque ele (o poder) passou a ser regulado por processos discursivos dentro da sociedade. Ocorre uma transformação significativa, porque o poder passa, mas pela confrontação dos diversos interesses dos sujeitos e grupos na sociedade. Esses sujeitos reivindicam a participação nos processos definidores dos limites do poder. Reivindicam a participação política para fixar as competências dos agentes de poder.795
Desse modo, a preocupação central do direito passa a ser a forma de aquisição e
delimitação do poder. Nessa linha de idéias, um Estado poder ser considerado democrático se
oportuniza a participação da sociedade na definição de competências. Assim, válidas são as
leis que possibilitam um processo discursivo de deliberação:
Para Habermas, o princípio democrático deve fixar o processo de legítima produção jurídica. Para ele, isso significa que somente podem pretender validade as leis que são aprovadas por todos os envolvidos em um processo discursivo de deliberação, que, por sua vez, é também constituído pela lei. O princípio democrático para Habermas explica o sentido dado à práxis ao pressupor que todos os sujeitos envolvidos em uma questão sejam livres e iguais para se autodeterminarem (HABERMAS, 1996, p. 134).796
Da estabilização da tensão entre facticidade e validade emerge a importância da lei.
Porém, mesmo com a existência de leis, o conflito não é solucionado pela lei, em tese, mas
através de um provimento jurisdicional:
Quando surge a tensão entre a facticidade e a validade dos interesses manifestados, emerge em importância a lei, como fator estabilizador no sentido de prever os padrões de comportamento e a distribuição do direito em tese.
Mas, mesmo em face da lei em tese o conflito não se resolve por si só. Muitas vezes é essencial que se recorra ao sistema estatal vigente para a solução dos conflitos de interesses, cujo objetivo principal será a eliminação desses conflitos através de uma sentença, um provimento judicial que ponha fim à controvérsia.
795 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 118. 796 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 118.
217
O Direito, portanto, se não decorrer de um processo de validação espontânea dos interesses, reconhecidos e harmonizados no seio da própria sociedade, decorrerá do provimento estatal que fixa a vontade da lei para o caso concreto.797
O ordenamento jurídico brasileiro veda a autotutela. Em conseqüência disso, o direito
de ação é conceituado por Maciel Júnior como faculdade de ação. O processo, por sua vez,
garante às partes um espaço discursivo em contraditório: “A ‘processualização’ do conflito de
interesses é uma técnica de racionalização para permitir que as partes participem em
contraditório de um processo decisório sobre o litígio. Esse processo decisório é dado por um
terceiro, imparcial e independente e que recebe do poder uma competência específica para
atuar e impor uma decisão e, principalmente, de garantir às partes um processo discursivo em
contraditório.”798
Maciel Júnior assevera que a simplificação do procedimento com intuito de reduzir a
massa de processos pode ter como objetivo a racionalização do procedimento. No entanto, as
garantias processuais das partes não podem ser violadas: “O Judiciário existe
fundamentalmente para cumprir a difícil missão de decidir, de julgar e garantir que esse
julgamento tenha sido obtido após o devido processo legal.”799
Ao abordar a ação coletiva como ação temática800, Maciel Júnior acentua a
necessidade de participação dos legitimados interessados, ou seja, todos os afetados devem
ser co-autores dos provimentos decorrentes dessas ações: “A legitimação do provimento
decorrente de uma ação coletiva se dá pelo procedimento que permita a inclusão dos
legitimados para a participação na construção da decisão.”801
Maciel Júnior, embasado em Gonçalves e Fazzalari que, por sua vez, se utilizam da
concepção da legitimação para agir, e tendo como referencial o conceito de situação jurídica,
aponta que os destinatários dos provimentos devem participar de sua formação, sendo tais
797 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 118. 798 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 124. 799 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 171. 800 “Entendemos que a ação coletiva deve ser uma demanda que viabiliza a discussão de ‘temas’. Esses temas são os fatos ou situações jurídicas que afetem os interessados. Assim, por exemplo, a construção de uma praça pública que gere a destruição de uma grande área verde em determinado bairro de uma cidade, podendo afetar o manancial de água ou mesmo a qualidade do ar, suscita uma questão ambiental onde diversos interessados poderão ter entendimentos divergentes sobre a questão. Essa questão ambiental referente a determinado fato concreto de uma cidade será o ‘tema’ da ação coletiva.” MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 178. 801 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 178.
218
sujeitos (destinatários) legitimados ao processo e a dizer e contradizer em simétrica paridade.
Desse modo, Maciel Júnior enfatiza que “[...] as ações coletivas como ações ‘temáticas’
permitem, portanto, a participação dos legitimados na formação do provimento, resgatando às
partes (interessados difusos), o direito de participação em contraditório no processo decisório
que os afetará.”802
Por sua vez, Cattoni de Oliveira803 desenvolve inúmeros estudos acerca do Estado
democrático de direito. Essas pesquisas abordam temas tais como tutela jurisdicional e, em
especial, a legitimidade das decisões, tendo como aporte teórico a teoria discursiva de
Habermas. Além disso, o autor enfatiza em seus estudos a relevância das garantias
constitucionais do processo; para tanto, utiliza-se da obra de Gonçalves e de Fazzalari. Outros
aspectos abordados por Cattoni de Oliveira são o processo constitucional, o devido processo
legislativo e a interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito.
Cattoni de Oliveira esclarece que a Teoria do Estado centra seus estudos na
institucionalização jurídico-social do poder político, o Estado. Por essa concepção, o Estado
“[...] é compreendido como o núcleo de organização política da totalidade da sociedade.
Todas as relações sociais teriam, assim, uma referência à estrutura do Estado, visto como
ponto de convergência da vida social e das atividades humanas.”804 Porém, o autor, embasado
em Habermas, aponta que, com o aumento da complexidade das sociedades modernas, o
Estado não pode ser considerado o todo do ordenamento jurídico, ou seja, não há como
restringir a esfera pública ao Estado:
Assim, por um lado, não é mais possível compreender o Estado como corporificação e a instância única de estabilização de uma identidade ética, de uma dada forma de vida e de certos padrões de vida boa (concepção ainda presente em Smend, Scmitt e mesmo em Lowenstein). Assim, não há mais como restringir a esfera pública ao Estado, como atestam os chamados direitos fundamentais de terceira geração; o público tem que ser visto hoje como uma dimensão bem mais complexa do que simplesmente a de um lócus estatal, como dimensão discursiva de mobilização e expressão dos diversos fluxos comunicativos, políticos, artísticos, científicos, enfim, culturais, o que, inclusive, requereu profunda revisão por que passa toda a teoria jurídico-processual.805
802 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, 2006, p. 116. 803 Mestre e Doutor em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto de Hermenêutica e Teoria da Argumentação Jurídica, Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito nos cursos de Graduação e Pós-graduação da Faculdade Mineira de Direito - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 804 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 168 805 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 168-169.
219
Para Habermas, a esfera pública constitui-se em uma estrutura comunicacional do agir
orientado ao entendimento:
[...] A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição nem como uma organização, pois ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis nem regula o modo de pertença a uma organização etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana [...] A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir comunicativo orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.806
A partir dessa concepção, há uma superação da compreensão da própria sociedade,
que já não pode ser mais entendida a partir da visão republicana nem a partir de uma visão
liberal.807 Cattoni de Oliveira aponta a necessidade de reconstrução do conceito de esfera
pública e de sociedade civil, com base na teoria discursiva habermasiana:
No entanto, assim como não há como recorrer à tradição republicana e compreender a sociedade em termos de um todo societário que giraria em torno do Estado, tal como na famosa teoria dos três elementos estatais – povo, território e poder soberano-, não há mais como recorrer à tradição liberal e compreender a sociedade em termos meramente dualistas, Estado de um lado, sociedade civil, reduzida à esfera do mercado e da família, do outro. Com base numa teoria discursiva da democracia, há que se reconstruir, por um lado, tanto um conceito de esfera pública que não se reduza ao Estado, quanto, por outro lado, um conceito de sociedade civil que não se reduza ao mercado e à família.808
Cattoni de Oliveira critica o conceito tradicional de processo, ou seja, aquele que
conceitua o processo como instrumento da jurisdição. Além disso, o autor discorda do critério
806 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. 2, p. 92. 807 “Tanto a tradição liberal quanto a republicana pressupõem uma visão de sociedade centrada no Estado. Mas, enquanto, para a primeira, o Estado é o guardião de uma sociedade centrada no mercado, para a segunda, o Estado é a institucionalização autoconsciente de uma comunidade ética. De acordo com os republicanos, a formação política da vontade e da opinião dos cidadãos cria o meio através do qual a sociedade se constitui como uma totalidade política, onde não faz sentido distinguir-se o Estado e a sociedade.” CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do pensamento político moderno à luz da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2005, p. 99. 808 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 171-172.
220
teleológico utilizado para fazer a distinção entre processo e procedimento realizada por esses
processualistas tradicionais:
Essas duas compreensões, a distinção entre processo e procedimento, com base num critério teleológico e a da natureza jurídica do processo como relação jurídica, podem ser duramente criticadas. A primeira, não só porque se esquece que mesmo dentro do seu próprio quadro conceptual o procedimento não seria uma mera exterioridade, já que teria a mesma finalidade do processo a que se prestaria, mas também por lidar com um conceito não só restrito, mas pouco sofisticado de procedimento; e a segunda porque, ao conceber o processo como relação jurídica, expõe a críticas levantadas no plano da Teoria Geral do Direito, quer fundadas em Hans Kelsen, quer na teoria das situações jurídicas.809
Ao contrário dessa concepção de processo, Cattoni de Oliveira utiliza-se, a partir de
uma perspectiva reconstrutiva da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia elaborada por
Habermas, do aporte teórico de Fazzalari, desenvolvido por Gonçalves. Por essa nova
concepção, o processo é uma espécie do gênero procedimento. Cattoni aponta que o
procedimento objetiva a preparação do provimento, apesar de que ele [o provimento] não se
esgota com a mera preparação:
[...] ele possui uma característica fundamental, a forma específica de interconexão normativa entre os atos que compõem. Visando a preparação do provimento, o procedimento possui sua específica estrutura constituída da seqüência de normas, atos, situações jurídicas e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato nela previsto.810
O processo é conceituado como “[...] uma espécie de procedimento pela participação
na atividade de preparação do provimento dos interessados, juntamente com o autor do
próprio provimento, como no caso do processo jurisdicional, ou dos seus representantes,
como no caso do processo legislativo.”811
A reconstrução da argumentação jurídica é possibilitada por meio do princípio do
contraditório, que se constitui em uma das garantias dos discursos de aplicação e de
aceitabilidade racional das decisões:
No quadro do exercício do Poder Jurisdicional, o Direito realiza sua pretensão de legitimidade e de certeza da decisão através, por um lado, da reconstrução argumentativa no processo da situação de aplicação e, por outro, da determinação argumentativa de qual, dentre as normas jurídicas válidas, é a que deve ser aplicada
809 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 192. 810 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 192. 811 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 192.
221
em razão de sua adequação, ao caso concreto. Mas não só por isso. A argumentação jurídica através da qual se dá a reconstrução do caso concreto e a determinação da norma jurídica adequada está submetida à garantia processual de participação em contraditório dos destinatários do provimento. O contraditório é uma das garantias dos discursos de aplicação jurídica institucional e é condição de aceitabilidade racional do processo jurisdicional.812
Desse modo, a função jurisdicional deve ser exercida através do processo
jurisdicional, com observância do contraditório entre as partes, conforme preceitua Cattoni de
Oliveira: “[...] o processo jurisdicional é o instrumento através do qual se dá o exercício do
Poder Jurisdicional e se garantem, nos termos analisados, direitos de participação e de
condições procedimentais que possibilitam a geração legítima do provimento
jurisdicional.”813
Nessa perspectiva, a legitimidade das decisões no paradigma do Estado democrático
de direito se relaciona com as garantias processuais atribuídas às partes que, por sua vez,
possibilitam a construção participada do provimento:
Há muito a questão da legitimidade das decisões judiciais deixou de ser um problema que se reduza à pessoa do juiz. O que garante a legitimidade das decisões são, antes, garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a da ampla defesa, além da necessidade da fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz mas também do Ministério Público e fundamentalmente das partes e de seus advogados. E juiz que não exerça adequadamente a sua função deve ser efetivamente submetido à correição.814
Desse modo, os argumentos dos afetados pela decisão jurisdicional devem ser
considerados pelo juiz e, para Cattoni de Oliveira, nisso consiste o devido processo legal em
uma sociedade plural:
Numa sociedade lingüisticamente estruturada, plural e sem a possibilidade de fundamentos absolutos, a única certeza pela qual podemos lutar é a de que os melhores argumentos, em uma situação de participação em simétrica paridade entre as partes que serão afetadas pelo provimento jurisdicional, sejam levados corretamente em consideração, ao longo do processo e no momento da decisão, por
812 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 192. 813 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 201. 814 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Tutela jurisdicional e Estado democrático de direito: três ensaios críticos. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, Belo Horizonte, a. 1, n. 1, p. 2-3, out. 2002. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/prod_docente_ano1_2002.html//>. Acesso em 10/10/2004.
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um juiz que demonstre a sua imparcialidade. Tal é, inclusive, a noção que consideramos a atual do princípio do devido processo legal.815
Ao tratar da “jurisdicionalidade” da Jurisdição constitucional, Cattoni de Oliveira
esclarece que a Jurisdição Constitucional, “[...] apesar das especificidades de cada
ordenamento jurídico, significa, aqui, o exercício do poder jurisdicional em matéria
constitucional, ou seja, a apreciação, em sede difusa ou concentrada, de alegações que
explicitamente se fundam em razões de ou de inconstitucionalidade, no contexto lógico-
argumentativo de aplicação reconstrutiva do Direito Constitucional.”816
Por sua vez, Baracho esclarece que a “Jurisdição Constitucional é tomada, assim, no
sentido de atividade jurisdicional que tem como objetivo verificar a consonância das normas
de hierarquia inferior, leis e atos administrativos, com a Constituição.”817 Ao comprovar a
contradição dessas leis ou atos administrativos com o texto constitucional, os órgãos
competentes devem declarar que são inconstitucionais.
Dantas, ao abordar os objetos do Direito Processual Constitucional, observa que ele
possui dois objetos:
a) Preocupa-se com a denominada Jurisdição Constitucional e com as ações que visam à integridade e defesa da própria Constituição, ou seja, aquelas que hoje formam o Controle de Constitucionalidade; b) Consagração de ações constitucionais e que dizem respeito à Jurisdição Constitucional das liberdades – denominadas de Remédios Constitucionais – exatamente, aqueles que visam tornar efetivos os Direitos constitucionalmente assegurados.818 (grifos do autor)
Brêtas C. Dias destaca a importância da jurisdição constitucional e enfatiza que ela
pode ser “[...] entendida, em noção alargada, como atividade jurisdicional exercida pelo
Estado objetivando tutelar o princípio da supremacia da Constituição e o de proteger os
direitos fundamentais da pessoa humana nela estabelecidos.”819
No estudo comparativo do sistema de garantia constitucional do processo realizado
por Comoglio, o autor analisa as características do modelo italiano, espanhol e brasileiro. Ao
estudar o modelo italiano, Comoglio esclarece que a jurisdição constitucional é exercida pela
815 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Tutela jurisdicional e Estado democrático de direito: três ensaios críticos. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC – Minas, 2002, p. 5. 816 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Processual Constitucional, 2001, p. 206. 817 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional, 1984, p. 103. 818 DANTAS, Ivo. Jurisdição constitucional e a promoção dos direitos sociais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 437. 819 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 90.
223
corte constitucional, cujas competências são de três categorias:820 1) conflito geral de
constitucionalidade das leis e dos atos que têm força de leis do Estado e da Região, 2) conflito
de atribuições do Estado e entre o Estado e a Região e 3) averiguações de acusações contra o
Presidente da República que atentem contra a constituição.
Ao tratar sobre o tema, Cattoni de Oliveira analisa a jurisdição sobre o ponto de vista
teorético-filosófico. O autor esclarece que adota uma teoria discursiva da democracia e do
direito:
A tese aqui defendida é de que a jurisdição constitucional, no exercício do controle de constitucionalidade, deve garantir o devido processo legislativo, o devido processo constitucional e os direitos fundamentais, no sentido de que o constitucionalismo e democracia não são concorrentes, mas face de uma mesma moeda: os direitos fundamentais são garantias de institucionalização de um processo legislativo democrático, fundado na autonomia jurídica, pública e privada, e realizador da pretensão jurídico-moderna segundo a qual os destinatários das normas são seus próprios autores.821
Desse modo, conforme aponta Cattoni de Oliveira, a função da jurisdição
constitucional “[...] será a de garantir as condições processuais para o exercício da autonomia
pública e da autonomia privada dos cidadãos.”822 Ele destaca a importância do controle na
produção das próprias leis através da garantia do devido processo legislativo democrático e
do devido processo constitucional:
1- Garantia do devido processo legislativo democrático, ou seja, democracia e abertura nos discursos de justificação;
2- Garantia do devido processo constitucional, ou seja, imparcialidade e adequabilidade nos discursos de aplicação constitucional.823
Ao esclarecer acerca de o processo legislativo se relacionar com os discursos de
justificação, Cattoni de Oliveira acentua que, no paradigma do Estado Democrático de
Direito, a soberania popular assume a forma jurídica por meio dos processos legislativos de
820 “[…] - la prima si estrinseca nel controllo generale legitimita costituzionale delle legi e degli tai, aventi forza di legge e degli tai, aveni forza di legge, dello Stato e delle Región; -la second si ocupa dei conflitti di atribuzione tra i poteri dello Stato, tra la Stato e le Región, nonchè tra Regione e Regione; -la terza riguarda i giudizi di accusa nei confronti del Presidente della Republica, per alto tradimento o per attentato alla Costituzione.” COMOGLIO, Luigie Paolo. Garanzie costituzionali e giusto processo (modeli a confronto). Revista de Processo, São Paulo, ano 23, v. 90, p. 97, abr./jun. 1998. 821 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo e controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, 2003, p. 173. 822 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional, 2001, p. 259. 823 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional, 2001, p. 259.
224
justificação do Direito e que, por sua vez, garante a articulação entre autonomia pública e
privada:
[...] O processo legislativo situa-se em nível discursivo em que argumentos de grande generalidade e abertura são colhidos, e, na verdade, funcionam como pontos de partida para a construção do discurso jurídico, inclusive do doutrinário, do jurisprudencial e do administrativo. Assim, a ‘participação em simétrica paridade’, dos possíveis afetados pelo provimento legislativo, no procedimento que o prepara, garantida pelo princípio constitucional do contraditório, é possibilidade de participação na discussão política, mediada processualmente e não necessariamente atual e concreta. Sob o paradigma do Direito procedimentalizado do Estado Democrático de Direito, um processo político deliberativo legítimo, conformado constitucionalmente, só pode ser compreendido sob as condições de uma sociedade complexa, em termos de teoria de comunicação, como um fluxo comunicativo que emigra da periferia da esfera pública – cujo substrato é formado pelos movimentos sociais e pelas associações livres da sociedade civil, surgidos da esfera de vida privada – e atravessa as comportas ou eclusas [...] dos procedimentos próprios à Democracia e ao Estado de Direito, ganhando os canais institucionais dos processos jurídicos não somente legislativos, mas também jurisdicionais e até administrativos824
A jurisdição constitucional pode ser exercida pelo critério difuso e pelo critério
concentrado. O controle concentrado teve sua origem na Áustria com Kelsen e “[...]
caracterizou-se, sobretudo, por centrar em um órgão a legitimidade de declarar a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei.”825 O controle difuso é de origem
americana e “[...] consolidou-se por descentralizar a legitimação daquele controle,
estendendo-a a todos os órgãos do Poder Judiciário.”826
Enquanto o critério concentrado é exclusivo, o critério difuso é inclusivo, tendo em
vista que no primeiro cabe a um menor número de legitimados argüirem a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Nessa linha de idéias, França destaca: “[...] o
modelo concentrado também pode ser caracterizado como um modelo exclusivo (no sentido
de excluir), a partir do pressuposto de que nele se desenvolve um controle abstrato de normas,
824 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, 2000. p. 110. 825 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003. v. 3, p. 24. 826 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003. v. 3, p. 24.
225
portanto há um processo objetivo de partes, em que não há partes, daí a idéia de que se podem
limitar os legitimados a propor a ação para argüir a inconstitucionalidade.”827
O critério difuso possui partes; ele “[...] é realizado a partir de um caso concreto no
qual se argúi, incidentalmente, a inconstitucionalidade de uma lei. Sendo por isso um modelo
aberto a todos os que se encontrem sob a concreta incidência da lei inquinada como
inconstitucional.”828
O Brasil adota um controle híbrido, ou seja, adota o critério difuso e o concentrado. O
controle concentrado, além de exclusivo por limitar os legitimados a argüir a
inconstitucionalidade, acaba por impedir o controle difuso com a introdução do efeito
vinculante. Nesse diapasão, França ressalta “[...] o festejado efeito vinculante, a par de
desconsiderar um importante direito-garantia, que é o direito de ação constitucional, suprimiu
importante conquista histórica (Constituição de 1891) do constitucionalismo brasileiro, que é
o controle difuso de constitucionalidade.”829
Porém, contrapondo-se à posição adotada por França, segundo Cattoni de Oliveira o
controle concentrado não ocorre através de mero procedimento, mas de procedimento em
contraditório:
Primeiramente, como vimos, onde houver procedimento que se realiza em contraditório, haverá processo, como no caso do modelo constitucional brasileiro de controle jurisdicional de constitucionalidade. Isso serve, inclusive, para o controle concentrado, por via de ação, apesar da idéia geralmente divulgada de que o controle concentrado, por via de ação, sempre se realiza através de ‘processo objetivo’, ou seja, de mero procedimento de ‘jurisdição voluntária.’830
É mister salientar que, apesar de, no entendimento de Cattoni de Oliveira831, o
procedimento no controle concentrado de constitucionalidade se realizar em contraditório, a
posição assumida no presente trabalho é que, nessa forma de controle, há restrição ao
contraditório e à própria teoria habermasiana do princípio do discurso. Essa também é a
posição sustentada por Maciel:
827 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003. v. 3, p. 24. 828 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003. v. 3, p. 24. 829 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003, v.3, p. 25. 830 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional, 2001, p. 207. 831 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional, 2001, p. 207.
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Não ‘absolutizamos’ o raciocínio em homenagem a Marcelo Cattoni [...] Ocorre que, na citação desse emérito processualista há uma referência ao fato de que a apreciação de inconstitucionalidade da lei em tese no Direito brasileiro deve ser encarada como ‘processo’, admitindo-se, pois, o contraditório. A justificativa, tanto para Cattoni quanto para Aroldo Plínio, reside no aspecto de que a Constituição Federal de 1988, no parágrafo 3º do art. 103, prevê a citação do Advogado-Geral da União, a fim de que ele pugne pela constitucionalidade do ato ou texto impugnado. Dissentimos parcialmente desse ponto de vista. Se é exato que no ‘processo’ de ação direta de inconstitucionalidade há esse contraditório, não menos correto que ele se dá de forma única, por ocasião, apenas daquela promoção de inconstitucionalidade, e de forma ‘elitizada’, vale dizer, sem a participação direta da sociedade.832
A objeção ao controle difuso de constitucionalidade deve-se à falta de uniformização
das decisões, e foi formulada por Kelsen. Desse modo, o efeito vinculante na ação direta de
inconstitucionalidade e na ação declaratória de inconstitucionalidade objetiva uniformizar o
entendimento. Todavia, é mister salientar que “[...] quando Kelsen fez suas reflexões, a
produção normativa não se fazia pelo paradigma do Estado Democrático de Direito, em que
os destinatários da norma devem também se sentir seus autores.”833
Desse modo, observa-se que, no controle concentrado, há uma transferência da
legitimidade do direito a quem não pode figurar ao mesmo tempo como autor e destinatário:
Desta forma é que, ao contrário do que pensou Kelsen, há no Estado Democrático uma pressuposição de falibilidade jurídico-normativa permanente, suscetível de correção e insuscetível de uniformização (efeito vinculante), a preferir um controle processual difuso, pelo qual fique reservado um espaço para legitimação do direito pelos seus sujeitos.834
Nessa linha de idéias, Meyer afirma que o controle concentrado em relação à argüição
de descumprimento de preceito fundamental não possibilita uma participação plural da
sociedade:
[...] a visão procedimentalista do direito atribui a este legitimidade através da participação plural da sociedade das partes na construção do provimento jurisdicional. Se, com Jürgen Habermas, pode-se acreditar que só serão legítimos os discursos de justificação nos quais os destinatários participem ativamente de sua elaboração, do mesmo modo só é legítima a sentença (provimento
832 MACIEL, Omar Serva. Princípio de subsidiariedade e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 122 833 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003. v. 3, p. 24. 834 FRANÇA, Fernando Luís. A integração social democrática pelo controle processual difuso de constitucionalidade. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo, 2003. v. 3, p. 24.
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jurisdicional/discurso de aplicação) emanada do que podem oferecer as partes, o juízo e seus auxiliares.835
No Brasil, o controle concentrado é realizado pelo Supremo Tribunal Federal. O
critério de escolha dos ministros desse órgão é polêmico, tendo em vista que cabe ao
Presidente da República a escolha e nomeação dos ministros, após a aprovação pelo Senado
Federal836, levando a questionamentos acerca da existência ou inexistência de influências
político-administrativas nas decisões desses Tribunais.
Ao analisar o processo de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal,
Carvalho adverte: “[...] dessa forma, devem-se positivar novos critérios para a composição da
mais alta corte do país, que apresentem métodos técnico-objetivos de avaliação e seleção de
seus ministros e que garantam imparcialidade e evitem o comprometimento das decisões.”837
Esse argumento é contrário à adoção das súmulas vinculantes, uma vez que cabe ao Supremo
Tribunal aprovar as súmulas que terão efeito vinculante.
Com o intuito de colaborar na construção de uma teoria constitucionalmente adequada
ao paradigma constitucional do Estado democrático de direito, Cattoni de Oliveira desenvolve
estudo acerca da teoria da interpretação, enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica
de aplicação.
Segundo Cattoni de Oliveira, garantir que as decisões sejam, ao mesmo tempo,
coerentes com o Direito vigente e adequadas ao caso concreto, pressupõe os paradigmas
jurídicos. Para tanto, o autor se apóia na conceituação do termo paradigma do aporte teórico
de Kuhn 838 e Habermas. Sobre o tema, Habermas esclarece que:
Os paradigmas de direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação. Eles iluminam o horizonte de determinada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua função primordial consiste em abrir portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade
835 MEYER, Emílio Peluso Neder. A argüição de descumprimento de preceito fundamental no paradigma do Estado Democrático de Direito. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática, 2004, p. 178. 836 BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, art. 101. 837 CARVALHO, Fábio. O processo de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. 2002. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, p. 28. 838 “[...] De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeça que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal.” KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 1987, p.218.
228
como um todo. Eles lançam suas luzes sobre as restrições e as possibilidades para a realização de direitos fundamentais, os quais, enquanto princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma estruturação ulterior. Por isso, o paradigma jurídico procedimentalista, como qualquer paradigma, necessita de elementos normativos e descritivos.839
Porém, é de bom alvitre salientar que em um Estado democrático de direito não há
necessidade de que os participantes partilhem de um contexto comum como quer Habermas,
uma vez que a discussão racional e o choque ou confronto de diferentes contextos são
importantes na construção do Estado da pós-modernidade, conforme esclarece Popper ao
explicar e criticar o mito do contexto.840
Nessa perspectiva, Cattoni de Oliveira aponta que, no concernente à aplicação jurídica,
a reconstrução paradigmática, ao combinar história e teoria, “[...] retiraria dos ombros do
intérprete um papel ou encargo hercúleo, pois, uma vez reconstruído o paradigma, ter-se-ia,
sem maiores mediações, um vetor interpretativo já presente e efetivo para resolução de
questões jurídicas.”841
Cattoni destaca que se trata do processo de adequada aplicação das normas jurídicas a
partir de paradigmas jurídicos concorrentes e baseada em casos concretos:
Estaremos, portanto, tratando do processo de aplicação adequada das normas jurídicas, argumentativamente fundamentada nos termos do caso concreto, à luz de paradigmas concorrentes e nada absolutos, cobra reflexividade, abertura e crítica, no quadro de uma compreensão procedimentalista do Direito. Assim, o Direito não pode ser reduzido quer a uma lógica argumentativa referente a programas condicionais (a regra), quer a programas finalistas (a políticas), ou até mesmo a um “Direito reflexivo”, como forma privilegiada de solução.842
Nessa linha de idéias, Rocha enfatiza que, na concepção procedimentalista do direito,
não há métodos fixos de interpretação:
839 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 181. 840 “O mito do contexto pode definir-se numa frase, como a que se segue. A existência de uma discussão racional e produtiva é impossível, a menos que os participantes partilhem um contexto comum de pressupostos básicos ou, pelo menos, tenham acordado em semelhante contexto em vista da discussão. Tal é o mito que vou criticar [...] Pelo contrário: julgo não se tratar só de uma afirmação falsa, mas também viciada, e que, a ser acolhida de forma generalizada, minará a unidade da humanidade, contribuindo assim para o forte aumento da probabilidade de violência e de guerra. Esta é a razão principal pela qual desejo combatê-lo e refutá-lo.” POPPER, Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade, 1996, p. 57. 841 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 55. 842 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual jurisdicional dos direitos fundamentais. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 213.
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É importante ressaltar que a compreensão paradigmática do direito não significa, de modo algum, o estabelecimento de modelos fixos de interpretação. Considerando que os direitos fundamentais devem ser compreendidos de forma discursiva, os paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social tornam-se visões reflexivas e concorrentes acerca do Direito e poderão ser apresentadas discursivamente, à luz das circunstâncias de sua aplicação.843
Numa perspectiva procedimentalista do direito, a proposição jurídica depende da
interpretação baseada em concepções paradigmáticas concorrentes, fundamentada em cada
caso concreto e conforme a argumentação jurídica empreendida pelas partes e apreciada pelo
juiz, conforme aponta Cattoni de Oliveira:
Conseqüência disso é que não se pode fixar em definitivo (“modelo de regras”)844 o que apenas é disposto “prima facie” (“modelo de princípios”)845. Se partimos de uma concepção procedimentalista do Direito, em que qualquer proposição jurídica é fruto de interpretação, sobre o pano de fundo de visões paradigmáticas concorrentes, não se pode predefinir o “conteúdo” ou a “extensão total” de um dispositivo normativo, que ganha sentido a cada novo caso concreto, predeterminado-se materialmente a argumentação jurídica. É necessário, mais uma vez romper com uma teoria material do Direito e dos direitos que estabelece um modelo fixo, para a sua “efetivação”, até mesmo porque a dinâmica de uma sociedade democrática e pluralista não coaduna com visões privilegiadas e excessivamente concretas do que seja vida, liberdade, igualdade, segurança ou até mesmo dignidade humana.846
Por sua vez, o Direito Processual desempenha papel importante na aplicação da norma
jurídica, conforme aponta Cattoni de Oliveira: “[...] portanto, a reconstrução adequada da
situação de aplicação condicionada e garantida pelo Direito Processual é que possibilita,
juridicamente, a determinação de qual, dentre as normas válidas, é a que deve ser aplicada.”847
Além disso, é mister salientar a importância dos afetados pelo provimento
jurisdicional na interpretação jurídica, conforme aponta Rocha:
843 ROCHA, Heloisa Helena Nascimento Rocha. Elementos para uma compreensão constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 236. 844 “Chamo modelo ‘das regras’ ao segundo modelo de comunidade. Pressupõe que os membros de uma comunidade política aceitam o compromisso geral de obedecer as regras estabelecidas de um certo modo que é específico dessa comunidade [...] Eles obedecem às regras que aceitaram ou negociaram como uma questão de obrigação.” DWORKIN, Ronald. O império do Direito, 2003, p. 256-257. 845 “O modelo de princípios satisfaz todas as nossas condições, pelo menos tão bem quanto qualquer modelo poderia fazê-lo numa sociedade moralmente pluralista. Torna específica as responsabilidades da cidadania: cada cidadão respeita os princípios do sentimento de eqüidade e de justiça da organização política vigentes em sua comunidade particular.” DWORKIN, Ronald. O império do Direito, 2003, p. 256-257. 846 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual jurisdicional dos direitos fundamentais. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 213-214. 847 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 74.
230
A disputa acerca da compreensão paradigmática correta do sistema jurídico de uma dada sociedade é essencialmente uma disputa política que, no Estado democrático de direito, diz respeito a todos os participantes (Habermas, 1997). A construção de uma sociedade justa e democrática se torna um desafio concreto e cotidiano, o que requer uma postura reflexiva de cidadãos que conquistem seus direitos, e que não os recebem como dádivas daqueles que acreditam deter a condição privilegiada de tomar, sozinhos, as decisões que afetam todos nós.848
Figueiredo busca reconstruir o pensamento de Cattoni de Oliveira sobre a teoria da
interpretação, entendida como teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. Nesse
diapasão, a adequabilidade deve ser buscada discursivamente por meio do processo
jurisdicional. Figueiredo destaca que, ao final, Cattoni de Oliveira conclama os profissionais
do direito a levar a Constituição a sério na concretização do projeto constitucional
democrático.849
André Leal, na dissertação intitulada Processo e jurisdição no Estado democrático
de direito: reconstrução da jurisdição a partir do Direito Processual democrático, na obra O
contraditório e a fundamentação das decisões, no artigo Direito Processual – Texto
jurídico e norma processual: implicações hermenêuticas, também desenvolve pesquisa
acerca do Estado democrático de direito e da relação desse paradigma de Estado com a
atividade jurisdicional, com a legitimidade do direito e das decisões judiciais e sobre a
importância do Processo constitucional como instituição assecuratória dessa legitimidade,
trazendo uma contribuição para a nova epistemologia do Direito Processual.
André Leal aponta, como primeiro paradigma constitucional, o Estado liberal. Por esse
paradigma, o Direito era uma forma de assegurar a proteção das iniciativas e interesses
particulares. Por outro lado, o Estado só podia intervir nas liberdades individuais com o
intuito de garantir a liberdade individual:
Tendo como cerne de sua atuação a proteção à propriedade privada, o Estado (instrumental) Liberal, por via do estabelecimento da tripartição dos poderes (poderes tripartidos estes que mais tarde passam a ser entendidos como funções do Estado), visava garantir que a esfera privada dos indivíduos fosse protegida de interveniências súbitas e inesperadas dos governantes e também de outros
848 ROCHA, Heloisa Helena Nascimento. Elementos para uma compreensão constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, 2004, p. 237. 849 FIGUEIREDO, Marco Túlio Caldeira. Teoria da interpretação: teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, PUC-Minas, v. 8, n. 16, p. 99, 2. sem. 2005.
231
indivíduos. Estes todos eram autorizados em leis previamente elaboradas pelos parlamentares.850
Por sua vez, por esse paradigma, a construção do Direito e a interpretação ocorriam de
modo privatístico. Essa insuficiência em apresentar respostas ao avanço crescente do
capitalismo acabou levando à superação desse paradigma pelo paradigma do Estado social.
Desse modo, se no Estado liberal o Estado possuía deveres negativos, passou a possuir um
caráter positivo, “[...] no sentido de que o Estado deve agir efetivamente para garantir os
direitos sociais mínimos à população, tais como educação e saúde.”851
Com relação à atividade jurisdicional, cabia ao juiz utilizar seus conhecimentos e
“senso de justiça” na busca do equilíbrio social, mesmo que isso significasse a inobservância
da legislação, conforme aponta André Leal: “Isso levou, no patamar jurisdicional, ao
entendimento de que ao juiz representando um Estado preocupado com o bem-estar coletivo
caberia impor seu conhecimento e senso de justiça para corrigir as agruras dos desequilíbrios
sociais, ainda que tal implicasse inobservância dos textos legais.”852
O Estado democrático de direito objetiva apresentar uma resposta para as sociedades
políticas às questões não resolvidas pelos paradigmas antecessores e busca esclarecer o
próprio conceito de democracia. Nesse sentido, André Leal assevera: “Talvez a diferença
entre paradigmas centre-se em um ponto crucial, cujo esclarecimento é imprescindível ao
entendimento do Estado democrático: o próprio conceito de democracia.”853
A teoria discursiva habermasiana se propõe a oferecer condições adequadas à
legitimação do direito e da atuação do Estado: “A teoria habermasiana afasta, por um lado, a
idéia de um Estado mediador de cidadãos gladiadores e, por outro, o entendimento segundo o
qual o Estado aparece como macrossujeito abarcador de uma hipotética unidade cívica.”854
Assim, André Leal assevera que a obra de Habermas intitulada Direito e democracia:
entre facticidade e validade apresenta uma releitura da legitimidade do direito e constitui-se
em importante aporte teórico no estudo do Direito Processual constitucionalizado. Ao
contrário de Alexy, que preconiza a introdução de elementos morais, após a sua criação
850 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no Direito Processual democrático, 2002, p. 26. 851 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no Direito Processual democrático, 2002, p. 26. 852 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no Direito Processual democrático, 2002, p. 27. 853 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 29. 854 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 31.
232
legislativa, ou seja, os discursos jurídicos pré-requisitos para a racionalidade do Direito,
André Leal aponta que os discursos jurídicos não são uma forma especial de discurso prático-
moral: “[...] os desdobramentos dessa opção metodológica, no entanto, acabaram por conduzir
Alexy a uma visão segundo a qual só são possíveis decisões corretas (no sentido a que já
fizemos referência), se forem introduzidos, nos discursos jurídicos, discursos morais de
fundamentação e aplicação.”855
Em contraposição a Alexy, a teoria discursiva habermasiana possibilita a integração
das pretensões dos destinatários das normas no processo legislativo, que podem apontar os
argumentos morais, éticos e pragmáticos que devem ser introduzidos no Direito, motivo pelo
qual não há necessidade de introdução de componentes morais posteriormente à sua criação
legislativa.856
A teoria discursiva de legitimação democrática do Direito de Habermas exige que as
decisões judiciais satisfaçam os critérios de aceitabilidade racional e de segurança jurídica.
Sobre a racionalidade das decisões, André Leal esclarece que “[...] daí, a racionalidade da
decisão só pode ser encontrada na interpretação compartilhada dos textos legais
democraticamente elaborados e na reconstrução dos fatos pelas partes.”857 Nessa linha de
idéias, André Leal esclarece que a teoria discursiva de legitimação democrática proposta por
Habermas exige que as decisões satisfaçam os critérios de racionalidade e segurança jurídica.
O critério da racionalidade das decisões significa que estas devem se submeter a um processo
legislativo adequado e “[...] que se fundamentem nas leis democraticamente instituídas e a
partir de procedimentos judiciais que assegurem a imparcialidade (colhida da estrutura
procedimental), e não como atributo mítico do julgador.”858
Quanto à segurança jurídica, Habermas esclarece que:
Os direitos processuais garantem a cada sujeito de direito a pretensão a um processo eqüitativo, ou seja, uma clarificação discursiva das respectivas questões de direito e de fato; deste modo, os atingidos podem ter segurança de que, no processo, serão decisivos para a sentença judicial argumentos relevantes e não arbitrários. Se considerarmos essa segurança como um sistema de normas idealmente coerentes, então essa segurança, dependente do procedimento, pode preencher a expectativa de
855 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 74. 856 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 74-75 857 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 26. 858ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p.107.
233
uma comunidade jurídica interessada em sua integridade e orientada por princípios, de tal modo que a cada um se garantem os direitos que lhe são próprios859
Por sua vez, o contraditório se torna imprescindível para a teoria procedimental
democrática. O contraditório não significa apenas a igual oportunidade de dizer e contradizer,
em simétrica paridade, sendo necessário que esses argumentos sejam considerados pelo juiz
ao prolatar a decisão:
Portanto, a partir da premissa de que o pronunciamento jurisdicional, ou o acertamento de direitos pelo Poder Judiciário, somente se legitima pelo processo, claro que o contraditório há de permear tanto a reconstrução dos fatos quanto à escolha e interpretação da norma material aplicável ao caso concreto, sob penas de ruptura autoritária do ciclo de legitimação a que se refere Muller.860
No estudo realizado, André Leal adota a teoria neo-institucionalista do processo e
destaca que o processo, por essa teoria, é uma instituição constitucionalizada que se posta ao
lado de outras instituições. Além disso, essa teoria conecta o processo à legitimidade das
decisões no Estado democrático de direito. Nesse sentido, André Leal aponta: “Em síntese,
pois, vemos que a teoria neo-institucionalista propõe uma visão do processo ligada às
condições de legitimação das decisões judiciais já alinhada ao paradigma do Estado
democrático de direito. Isso fornece importantes dados ao estudo que ora se desenvolve,
conforme se exporá na conclusão.”861
Del Negri estuda o controle de constitucionalidade no processo legislativo no marco
do Estado democrático de direito, na obra Controle de constitucionalidade no processo
legislativo, inicialmente apresentada como dissertação de mestrado. Ao prefaciar a referida
obra, Leal recomenda a leitura a todos os que se proponham a compreender a teoria
constitucional democrática e aponta a importância da pesquisa para uma nova epistemologia
do Direito Processual:
O professor André Del Negri inaugura, com sua excelente dissertação esse debate científico voltado ao exercício amplo dos direitos fundamentais do PROCESSO CONSTITUCIONAL garantidores de uma constante dialogicidade, em juízo do devido processo legal, entre autores e destinatários das normas como pressuposto inafastável do atributo de legitimidade jurídica no Estado democrático de direito pelo controle irrestrito (quisquis ex populo), difuso e concentrado, concreto e
859 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 274. 860 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 103. 861 ANDRÉ LEAL, Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático, 2002, p. 103.
234
abstrato, da constitucionalidade positivada. Estuda, com ênfase em seu trabalho, a questão da efetividade do processo na produção da lei com a novidade de afirmar a existência do devido processo legislativo somente quando, em sendo este suscetível de correição pelo devido processo legal, se mostre legítimo ante possíveis testificações processuais fiscalizatórias ao longo da construção das leis como característica de validade jurídica permanentemente aberta ao controle jurisdicional. Assim, pode-se, no trabalho, antever a distinção necessária entre processo legislativo e devido processo legislativo, porque esse só se configuraria na hipótese de o procedimento legislativo (o chamado processo legislativo) se oferecer a uma fiscalidade plenária e intercorrente por qualquer um do povo, pela via do controle concreto e abstrato de constitucionalidade.862
Del Negri esclarece que o Estado pós-moderno não pode mais ser estudado como um
superorganismo ou um guardião que toma decisões de forma unilateral, sob pena de retorno às
sociedades fechadas (tribalismo):
Estado, hoje, como se pode notar, não é mais a representação unitária da nação concebida por Bodin e Hobbes, o guardião que age limitado, anunciando e manifestando as mudanças de forma unilateral, tomando e executando todas as coisas. Trata-se, dentro desse holismo (do grego holos, todo) de um Estado visto como um indivíduo perfeito, de um super-indivíduo soberano fundamentado numa concepção puramente centrada no autoritarismo. É claro que isso corresponde a uma teoria anacrônica que, nos dias atuais, não mais pode ser aceita, sob pena de se presenciar um retorno ao “tribalismo”.863
Desse modo, o Estado em uma sociedade aberta deve obediência aos limites
constitucionais e aos direitos fundamentais, conforme aponta Del Negri: “O Estado, dessa
forma, é uma instituição que se legitima na Constituição, não podendo ultrapassar a medida
de seu caminho traçado por esse texto articularizador.”864
Por essa nova concepção de Estado, que não mais se relaciona ao poder do soberano
ou de divindades, Del Negri aponta que a palavra poder, na pesquisa realizada, é empregada
como respeito à lei ou como função:
Poder é utilizado, aqui, no sentido de dever, de respeito à lei escrita criada pelo povo enquanto legitimador do ordenamento jurídico (povo como instância global de articulação da legitimidade democrática) ou, ainda, com a denominação de atividade ou função (atividade constituinte, atividade legislativa, função estatal, atividade jurisdicional), a fim de fugir da aplicação nomenclatural do autoritarismo dos órgãos dirigentes, legiferantes e judicantes de um Estado. 865
862 LEAL, Rosemiro Pereira. Prefácio. In: DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 25. 863 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 25. 864 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 26 865 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 25.
235
Ao estudar a relação entre Estado e soberania, embasado nos estudos desenvolvidos
por Leal, Del Negri aponta que, apesar de a Constituição da República Federativa do Brasil,
de 1988, ora se referir à soberania do Estado, ora à soberania do povo, na pós-modernidade,
os estudos realizados apontam como titular da soberania o povo e não mais o Estado, nos
moldes propostos por Hegel. Por sua vez, o povo não é entendido como massa popular, mas
como comunidade jurídica: “[...] povo processualmente legitimado, pois, fazendo uma
reflexão processual, cada um da multidão não pode ser portador nativo do exercício da
liberdade, vez que a liberdade é um instituto decidido pelo homem no espaço processual.”866
Com o objetivo de estudar a influência dos paradigmas constitucionais na orientação
do processo legislativo, Del Negri busca examinar e identificar as características desses
paradigmas.
No paradigma do Estado liberal, a característica essencial era a liberdade, em especial
a liberdade econômica, motivo pelo qual as leis eram elaboradas com o intuito de proteger a
intervenção do Estado na esfera privada:
Nesse primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, percebe-se que as leis elaboradas pelos parlamentos eram tendentes a proteger e garantir a esfera privada dos indivíduos contra as interferências governamentais e particulares; nesse mundo liberal regido por mercado, havia, segundo Adam Smith, uma “mão invisível,” que garantia a sustentação da economia. O Estado é limitado à legalidade, e essas leis, na primeira fase do Estado Liberal, eram discutidas e aprovadas pelos representantes da “melhor sociedade”.867
Porém, Cattoni de Oliveira aponta que, apesar de o modelo liberal reconhecer o
pluralismo como característica das sociedades modernas, não esclarece de que modo pessoas
preocupadas com seus interesse próprios podem concordar com normas gerais e abstratas para
reger a vida em comum. Nesse diapasão, Cattoni de Oliveira aponta que esse modelo é:
[...] excessivamente céptico, porque reduz o debate político, à luz de um modelo econômico do mercado, a uma mera disputa entre os atores políticos, e não explica, de modo consistente, como atores voltados exclusivamente para a satisfação de interesses próprios podem concordar sobre as normas que irão reger, de forma imparcial, sua vida em comum. Nesse quadro, a Jurisdição Constitucional teria uma função moralizante, resguardando a esfera privada, através da manutenção dos
866 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 32. 867 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 21-22.
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“limites razoáveis” (para usar uma expressão de John Rawls) à atuação política legislativa.868
O paradigma do Estado social tem como característica marcante o intervencionismo:
“Diante desse paradigma, as leis elaboradas pelos parlamentos estabelecem uma série de
direitos sociais mínimos, antes ausentes, como, por exemplo, a jornada máxima de trabalho de
oito horas, repouso semanal remunerado, o amparo à criança e ao adolescente, dentre
outros.”869
Por essa concepção, a política não significa apenas concorrência entre os atores
políticos e um modelo normativo, baseado em um projeto de vida comum e em um consenso
ético, conforme aponta Cattoni de Oliveira:
O modelo republicano, por outro lado, embora possua a vantagem de compreender a política como algo mais que uma simples concorrência entre atores políticos, que visa satisfazer interesses próprios, diversos e divergentes, e procure regatar a “dignidade da política” (Hannah Arendt), considerando-a como uma forma dialógica de integração social, é um modelo excessivamente normativo, pois tende a reduzir o debate político a um processo de auto-esclarecimento coletivo, sobre o modo ou projeto de vida que se pressupõe com base num forte consenso ético. Assim, embora autores republicanos comunitaristas como Michael Walzer (1993; 1997) e Charels Taylor (1993; 1997) se considerem defensores do pluralismo social e cultural, é preciso lembrar que para eles as decisões políticas só se justificam de forma relativa e à luz de valores comunitários prevalecentes, e nunca de forma imparcial. A justiça, é assim, considerada tão somente como um bem coletivo dentre outros comunitariamente interpretado.870
Por fim, no paradigma do Estado democrático de Direito ou Estado de direito
democrático, denominação utilizada por Del Negri, uma vez que a democracia deve ser uma
qualidade, característica ou paradigma adotado pela Constituição. O autor esclarece que
democrático é o direito e não o Estado, visto que pode existir Estado de direito autocrático.
Assim, o paradigma do Estado democrático de direito se coaduna com uma teoria discursiva
do direito:
Dessa forma, o paradigma do Estado de Direito Democrático se apresenta e requer um modelo de sociedade aberta com uma teoria discursiva do Direito. Disso resulta uma série de reposicionamentos como os que dizem respeito à moderna interpretação, à legitimidade do Direito, ao estudo do processo legislativo como
868 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, 2000, p. 43. 869 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 22. 870 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, 2000, p. 72-73.
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institucionalizador da vontade democrática dos cidadãos, à ruína do Estado absolutista superior ao cidadão e até mesmo ao afastamento da figura de um julgador magnânimo e iluminado que, graças a seus potentes dons e uma sofisticada técnica, consegue sobrepor-se, sabe-se lá como, às Partes no processo.871 (grifo do autor)
A teoria discursiva habermasiana apresenta um modelo de sociedade descentrada e
reveste o processo democrático com conotações mais fortes que as apresentadas pelo modelo
liberal. Porém, com conotações mais fracas que as do modelo republicano. Esse modelo
procedimental possibilita identificar os problemas que afetam a sociedade e reconstruir uma
relação que não seja conflitiva entre autonomia pública e privada e uma relação entre
constitucionalismo e democracia. Sobre o tema, Cattoni de Oliveira aponta:
A Teoria Discursiva da Democracia sustenta que o êxito da política deliberativa depende da institucionalização jurídico-constitucional dos procedimentos e das condições de comunicação correspondentes, e considera os princípios do Estado constitucional como resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma formação democrática de vontade e da opinião políticas.
Uma soberania popular reconstruída em termos democráticos procedimentalistas e um sistema político ligado às redes periféricas da esfera pública andam de mãos dadas com a imagem de uma sociedade descentrada. O modelo procedimental reinterpreta a esfera público-política enquanto arena para a detectação, identificação e interpretação dos problemas que afetam a sociedade.872
Ao estudar a legitimação do direito em Habermas, Del Negri aponta que a
legitimidade do direito não se relaciona apenas com um processo legislativo revestido de
formalidade, mas com a existência de procedimentos democráticos capazes de possibilitar
debates críticos necessários para a formação racional das vontades de todos os participantes:
Por conseguinte, encontra-se em Habermas uma teoria da criação do Direito num espaço procedimental discursivo-legislativo com vista à integração social (processo legislativo) capaz de “institucionalizar a vontade democrática dos cidadãos” por meio do diálogo e da observância das diferenças existentes na sociedade multicultural, a fim de que sejam reconhecidas, discutidas e argumentadas, sempre por intermédio de um enfoque crítico, o que levou a definir, com base na soberania popular, o Estado constitucional.873
871 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 23. 872 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, 2000, p. 79. 873 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 45.
238
Apesar de sua contribuição no estudo da legitimação normativa, Habermas não aborda
o processo como instituição regente da democracia, uma vez que, em seus estudos, ele se
limita a apontar que a institucionalização do princípio da democracia se faz pelo Direito.
Desse modo, a partir de uma visão ampliada da abordagem habermasiana, Del Negri destaca
que, na produção da lei, é importante verificar se há obediência ao devido processo
constitucional: “[...] pois é a instituição do Processo, em suas peculiares características
lógico-jurídicas, o espaço discursivo de legitimação da positivação e autuação do direito, de
modo a que os destinatários das normas possam desenvolver seus discursos críticos e assumir
a posição de co-autores e fiscalizadores das leis, por via de correições incessantes (controle
irrestrito da constitucionalidade).”874
André Del Negri, embasado em Popper, aponta a importância da crítica argumentativa
por meio do discurso, considerando-a imprescindível para preservar a democracia. Por sua
vez, a democracia não pode ser estudada fora dos perfis do processo. Desse modo, a
fundamentação do direito e a legitimidade do direito passam pelo medium lingüístico do
processo.875
Na concepção de André Del Negri, outro autor que apresenta uma teoria discursiva
para o esclarecimento do processo legislativo é Wolff876, segundo o qual existe uma
preocupação em estabelecer um equilíbrio dos princípios discursivos com a isonomia, a
isegoria e a isocrítica:877
Considerações dessa ordem ajudam a entender como a igualdade constitucionalizada (isonomia) interessa ao estudo do provimento legislativo (lei), em que haja na base legiferante a igualdade processual de todos na participação da criação do Direito; capacidade de todos em distinguir e não admitir um discurso parlamentar, substituindo-o por um melhor (isocrítica), o que ocorreria por intermédio de legitimação dos destinatários das normas para que possam desenvolver seus discursos críticos via controle de constitucionalidade e, por fim, a igualdade dialógica que é a igualdade de todos estarem em posições equânimes de comunicação discursiva dentro de um espaço político de criação das leis (isegoria).878
874 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 47. 875 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 47-50. 876 WOLFF, Francis. Nascimento da razão: origem da crise. In: NOVAIS, Adauto; CHAUÍ, Marilena; LEFORT, Claude (Org.). A crise da razão. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 877 Sobre os conteúdos processuais isegóricos da isonomia, isomenia e isocrítica, consultar LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 96. 878 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 52.
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Leal aponta que, nas sociedades democráticas, a Jurisdição Constitucional tem o
controle de sua atuação por meio do devido processo legislativo, o qual, por sua vez, é um
instituto de sustentação do devido processo constitucional: “[...] Aliás, a própria constituição
é produzida, nas democracias, com total observância ao DEVIDO PROCESSO
CONSTITUCIONAL (devido, porque legislado pelo POVO (Comunidade Jurídica) – eixo de
geração do texto constitucional como cláusula constituinte fundante dos fundamentos do
paradigma da Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático.”879
Del Negri estuda as diversas teorias que tratam do processo; ao final do estudo,
conclui que a teoria neo-institucionalista é uma concepção adequada ao paradigma do Estado
democrático de direito, uma vez que “[...] utilizá-la significa praticar a democracia pelo
processo com a regência dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa, da
isonomia, da cidadania e da soberania popular.”880 Essa teoria viabiliza a fiscalidade
processual abstrata e concreta no Estado da pós-modernidade, entendido como o Estado
democrático de direito.
André Del Negri acentua que, no paradigma do Estado de direito democrático, faz-se
necessário que a lei apresente não somente validade e eficácia881, mas também legitimidade.
A mudança paradigmática acarretou uma guinada epistemológica, e a legitimação de uma lei
somente ocorre pelo processo:
A perspectiva desenvolvida nesta pesquisa envolve um deslocamento dessas posições tradicionais por causa da guinada epistemológica acarretada pela mudança paradigmática oriunda da vigente Constituição. O caráter democrático da lei, em um Estado de direito democrático, não consiste no simples ato de analisar se a lei foi produzida por um órgão competente e de acordo com o procedimento regular (validade), e muito menos pelo acatamento que a norma impõe (eficácia). Deve-se observar, acima de tudo, se a lei, na fonte de produção e sua posterior aplicação, está sendo elaborada e aplicada de forma legítima pela participação da soberania popular e se o procedimento preparatório (lei) é capaz de assegurar a observância do princípio democrático-constitucional do contraditório, ampla defesa e isonomia.
879 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e hermenêutica constitucional a partir do Estado democrático de direito. LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada – Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 98. 880 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 66. 881 “Como se verá, para a maioria dos juristas contemporâneos, uma norma é válida quando pertence a um ordenamento jurídico por haver sido produzida pelo órgão competente e de acordo com o procedimento regular. De outro lado, a eficácia é considerada como decorrente do efetivo comportamento dos destinatários em relação à norma posta, bem como a sua aplicação pelos tribunais em caso de descumprimento.” CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista, 1999, p. 44.
240
Esta maneira de colocar o problema revela que, ao postular a existência de um novo âmbito de apreciação (legitimidade), defende-se que a apuração da legitimação deve ocorrer pelo Processo, e somente por meio deste é possível constatar se a produção das leis e sua aplicação ocorreram de forma jurídico-democrática ou não.882
Galuppo também desenvolve estudos acerca do Estado democrático de direito dentre
os quais se destacam Os princípios jurídicos no Estado democrático de direito: ensaio de
modo de sua aplicação, Constitucional Hermeneutics and Pluralism e Igualdade e
diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas.
Galuppo assevera que a defesa do pluralismo é uma característica do Estado
constitucional democrático. Esse paradigma de Estado positivado pela Constituição da
República Federativa do Brasil não é apenas um modelo de Estado, mas também o projeto de
uma sociedade. No Estado moderno existem três paradigmas de Estado: O Estado Liberal, o
Estado Social e o Estado Constitucional democrático.883 Galuppo destaca que o Estado
democrático de direito, por ser uma forma de vida adequada à sobrevivência de uma
sociedade pluralista, ela se distingue dos demais modos de organização estatal:
Com o advento da Modernidade, a sociedade torna-se uma sociedade complexa, na qual, ao contrário das sociedades antigas e medievais, convivem projetos de vida e valores culturais não raros antagônicos. Enquanto o Estado liberal procurava eliminar os projetos e valores divergentes pela imposição dos projetos dominantes e o Estado social procurava impor um projeto alternativo e arbitrário ao poder econômico, integrando, mais que incluindo, aqueles historicamente excluídos do projeto majoritário, o Estado democrático de direito reconhece como constitutiva da própria democracia contemporânea o fenômeno do pluralismo e do multiculturalismo, recorrendo preferencialmente à técnica da inclusão do que da integração. Por isso mesmo, o Estado democrático de direito não pode eliminar qualquer projeto ou qualquer valor, mas ao contrário, deve reconhecer todos os projetos de vida, inclusive os minoritários, igualmente valiosos para formação da auto-identidade da sociedade.884
Galuppo esclarece que, para a consecução de seus objetivos, o direito desse paradigma
de Estado deve adotar um conceito de princípio que viabilize esse pluralismo. Para tanto, é
necessária uma Teoria procedimental do direito capaz de possibilitar a reconstrução dessa
forma de Estado e de seu direito:
882 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 70. 883 GALUPPO, Marcelo Campos. Constitucional hermeneutics and pluralism. Amsterdam: Franz Steiner Verlag, 2001. Separata de : Pluralism and law: proceeding of the 20th IVR World Congress, 2001. 884 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 20-21.
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Uma Teoria Procedimental do Direito, e em especial uma Teoria Discursiva do Direito, exigida para a compreensão do Estado democrático de direito, só é possível se indicar as condições pragmáticas para a realização dos discursos jurídicos de justificação e aplicação das normas jurídicas. Exatamente por isso, apenas uma Teoria Procedimental do Direito que seja uma teoria pragmática da comunicação humana pode reconstruir adequadamente essa forma de Estado e de seu direito.885
O objetivo de Galuppo é estudar o princípio da igualdade no Estado democrático de
direito, conhecer suas funções e seus fundamentos. O autor esclarece que o princípio da
igualdade possibilita a inclusão dos cidadãos nos procedimentos de justificação e aplicação
das normas jurídicas, tendo como fundamento a dimensão lingüística do direito. Quanto à sua
função, relaciona-se com a sobrevivência democrática em uma sociedade pluralista. Segundo
Galuppo, “[...] tal função é compatível, inclusive, com algumas formas de tratamento
diferenciado, como é o caso das ações afirmativas e das propostas da assim chamada
sociedade inclusiva.”886 O autor se propõe a reconstruir filosoficamente a Teoria do discurso e
a ética do discurso a partir do aporte teórico de Habermas.
Na Modernidade, a sociedade é concebida como uma sociedade de pessoas
aritmeticamente iguais, que, segundo Galuppo, é uma igualdade inclusiva:
Ora, a igualdade aritmética, estendida pela universalização a todos os homens, é um conceito inclusivo de igualdade. Ela exige que um maior número possível de pessoas (idealmente a humanidade) seja incluída pelo direito. A filosofia kantiana concebe a igualdade como um mecanismo de inclusão em direitos e, fundamentalmente, na liberdade civil. A partir de Kant, quer dizer, com a sociedade contemporânea, torna-se impossível pensar em uma igualdade geométrica na organização social moderna e contemporânea. Ao contrário, a civilização ocidental se pauta, na sua organização político-jurídica, preponderantemente, pela igualdade aritmética, pela igualdade como mecanismo de inclusão social, capaz de permitir o pluralismo de projetos já indicado por Kant em Sobre a expressão corrente.887
Galuppo enfatiza que os princípios jurídicos podem ser entendidos como o
fundamento dos demais direitos: “[...] os princípios (jurídicos) são, no plano da justificação, o
fundamento (formal) normativo dos demais direitos, seu ponto de partida, como na célebre
definição de Aristóteles.”888
885 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 21. 886 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 22. 887 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 99. 888 GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado democrático de direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Boletin Jurídico de La Universidad Europea de Madrid, 2000, n. 3, p. 12.
242
Os princípios jurídicos expressam a diversidade de uma sociedade pluralista e por isso
devem concorrer em igualdade, não devendo haver hierarquia entre eles. Desse modo, a
Constituição, por ser a norma suprema, desempenha papel importante quanto aos princípios
do Estado democrático de direito:
[...] Apesar de não poder ser concebida como o único repositório desses princípios, é tarefa dela, por excelência, indicar (e preservar) aqueles princípios reputados mais importantes pelos cidadãos por intermédio do representante constituinte sensível à sociedade. A concorrência entre os princípios constitucionais revela uma característica fundamental da sociedade em que existe um Estado democrático de direito: não é possível hierarquizar os princípios constitucionais porque todos eles são igualmente valiosos para a auto-identificação de uma sociedade pluralista. É o conjunto deles, e não um outro, que revela quem somos e quem queremos ser. A concorrência dos princípios deriva do fato de que nossa identidade é uma identidade plural.889
A solução para a tensão entre os princípios de expressão na Constituição deve ser
buscada nos discursos de aplicação através da racionalidade discursiva:
Em ambos os casos, o único procedimento capaz de dar um curso para a tensão entre os princípios (sobretudo os princípios constitucionais) é aquele que envolve a racionalidade discursiva (ou seja, que avalia através de razões a correção normativa envolvida por esse princípio para o caso concreto), que não é neutra a argumentações práticas (Habermas, 1994b: 549) e que avalia qual dentre os princípios conflitantes, é adequado à situação. Sendo possível ou não a aplicação do maior número de princípios constitucionais, o que deve sempre buscar em tais procedimentos é a imparcialidade na fundamentação e na aplicação de normas jurídicas (Habermas, 1994b: 563), ou, para retornamos o conceito de Dworkin, Integridade.890
Para Galuppo, da reconstrução discursiva do Estado democrático de direito, do direito
e legitimidade desse Estado deve-se presumir um sistema de direitos.891 Esse sistema é
composto por direitos básicos e que são capazes de possibilitar e efetiva participação em
discursos reais, criando uma igualdade de participação na produção do próprio direito, de
forma que os destinatários possam sentir-se como seus próprios autores. Em decorrência
disso, a igualdade deve ser aritmética e não geométrica, uma vez que essa forma de igualdade
implicaria reconhecer maior ou menor importância às pessoas. Galuppo aponta que,
889 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 198. 890 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 198. 891 “[...] A esse conjunto de direitos fundamentais Habermas dá o nome de Sistema de Direitos que é um conjunto de princípios jurídicos que garante a legitimidade de um ordenamento jurídico contemporâneo.” GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 204.
243
conseqüentemente, “[...] a igualdade tem de ser concebida como um procedimento formal e
material nos discursos de justificação e aplicação das normas e o direito só pode ser tido como
legítimo se garantir essa igualdade nos discursos que realiza.”892
Desse modo, Galuppo ressalta a importância da participação dos envolvidos na
aplicação da norma, já que os afetados pela decisão é que podem indicar qual norma é
apropriada para o caso concreto. O autor ressalta que a teoria do procedimento em
contraditório de Fazzalari aponta nessa mesma direção, tendo em vista que cabe às partes
elaborar a decisão final, não admitindo que o juiz seja o único responsável pela decisão.893
Ao se colocar a favor das ações afirmativas, Galuppo aponta que não podem ser
negados os direitos que garantam as condições materiais e culturais para a inserção da cada
falante no discurso, posto que é pré-requisito para a prática do discurso que o falante seja
reconhecido como pessoa. Em posição antagônica a Galuppo, Leal enfatiza que a legitimidade
do direito não se relaciona com um direito à diferença através de ações afirmativas, pois essas
ações afastam o processo como espaço discursivo:
A pretexto dessa ação lúcida e solidária dos operadores obsoletos da democracia, exclui-se o devido processo constitucional como instituição jurídica referencial de garantia, execução, fiscalização, correição e reconhecimento de direitos, transformando-o em mero instrumento presentificado de uma jurisdição redentora que se diz capaz, por um senso especial de justiça e eqüidade, de assegurar os direitos dos diferentes sem atentar para o aspecto de que, para apreciar os direitos dos diferentes, há de se cumprir, prima-facie, as decisões constituintes de implementação de direitos fundamentais para todos, indistintamente.894
Desse modo, a igualdade na democracia é compreendida como a igualdade temporal
entre as partes dentro da estrutura procedimental. Nesse diapasão, ações afirmativas só seriam
admissíveis no espaço procedimental do processo:
Por isso, o processo é a procedimentalidade estruturante de argumentos que afasta a colonização do direito pela atuação ou prestígio de minorias ou maiorias ou do dinheiro ou do poder, o que faz distinguir o Estado democrático de direito de outras formas políticas da Sociedade. Ações afirmativas como atividade de realização individual ou social de direitos só seriam suscetíveis de admissibilidade no marco executivo da processualidade teórico-constitucional identificadora do Estado democrático de direito e não por um esforço solidarista de mudança de
892 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas, 2002, p. 208. 893 GALUPPO, Marcelo Campos. Constitucional hermeneutics and pluralism. Amsterdam: Franz Steiner Verlag, 2001. Separata de : Pluralism and law: proceeding of the 20th IVR World Congress, 2001, p. 137. 894 LEAL, Rosemiro Pereira. Isonomia processual e igualdade fundamental a propósito das ações afirmativas. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 86.
244
mentalidades ou modo de pensar dos manejadores dos espaços público e privado para uma compreensão objetivante de uma autoridade culturalmente ética e compadecida dos sofrimentos dos excluídos ou párias sociais (homo sacer).895 (grifos do autor)
Em síntese, e com base na pesquisa realizada, observa-se que os estudos realizados no
âmbito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais mostram uma ruptura com o
modo como o processo e a jurisdição têm sido estudados. A teoria neo-institucionalista,
elaborada por Leal, professor desta instituição, constitui-se em uma proposição inovadora,
uma vez que coloca o processo jurídico como uma forma de enunciação de uma Sociedade
Política-Jurídico Democrática. Além disso, observa-se que existem inúmeros trabalhos que
buscam teorizar o Estado democrático de direito, cujas reflexões contribuem para uma nova
epistemologia do Direito Processual.
895 LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 82.
245
CAPÍTULO 2
SÚMULAS VINCULANTES PERANTE O ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
2.1 O efeito vinculante e o precedente jurisdicional nos sistemas romano-germânico e
anglo-americano
Os estudos realizados refutam o processo histórico na formação de uma sociedade
democrática. O critério de falseabilidade, de refutabilidade ou de testabilidade popperiano, a
teoria discursiva habermasiana e a teoria neo-institucionalista do processo apontam a
necessidade da observância do devido processo constitucional e suas duas vertentes (o
devido processo legal e o devido processo legislativo), como requisitos imprescindíveis para
a construção de uma decisão legítima e de uma Sociedade Jurídico-Político-Democrática. Em
decorrência disso, o presente capítulo objetiva investigar se as súmulas vinculantes são
emitidas com base nesses requisitos e se elas se coadunam com o Estado da pós-
modernidade.
Para a consecução do objetivo proposto, no presente subitem proceder-se-á a um
estudo comparativo entre o sistema romano-germânico (civil law) e o anglo-americano
(common law). Para um melhor aprofundamento do tema em estudo, faz-se necessário levar
em consideração as três indagações que permeiam uma pesquisa comparativa (“o que
comparar”, “por que comparar” e “como comparar”). O esclarecimento dessas indagações
permite que a comparação saia do campo implícito, viabilizando que a comparação passe de
simples descrição ou justaposição de dados para a utilização de uma metodologia comparada.
Desse modo, a partir de uma macro-comparação896, abordar-se-á a formação da civil law e da
896 “A comparação tanto pode incidir sobre sistemas jurídicos considerados em globo como sobre frações deles; generalizaram-se as expressões ‘macro-comparação e ‘micro-comparação’ para designar essas duas vertentes do Direito Comparado, havendo, porém, que chamar a atenção para que a distinção tem zonas cinzentas; não só a macro-comparação engloba micro-comparações, como estes pressupõem a localização dos institutos a comparar dentro dos respectivos sistemas.” DUARTE, Rui Pinto. Sistemas jurídicos comparados: uma introdução ao Direito Comparado. Disponível em: <http://www.artnet.com.br/~lgm/comparados.doc>. Acesso em: 14/05/2007.
246
common law, para, em seguida, numa perspectiva de micro-comparação, apreciar o grau de
autoridade do precedente jurisdicional, ou seja, a influência exercida por um precedente na
decisão judicial de um caso semelhante nesses dois sistemas jurídicos. Além disso, a pesquisa
visa examinar se existem diferenças entre a regra do precedente jurisdicional adotado pelo
sistema anglo-americano e o efeito vinculante atribuído às decisões nos países filiados ao
sistema romano-germânico. Desse modo, essa pesquisa possibilitará, a partir de uma
perspectiva crítica, um melhor conhecimento do instituto do stare decisis897 – vinculação das
decisões judiciais aos precedentes jurisdicionais, no Direito Comparado, permitindo apontar
as divergências, as semelhanças e as relações existentes entre esses dois sistemas jurídicos.
Além disso e levando-se em conta a filiação do Brasil ao sistema romano-germânico, e que,
por sua vez, tem como pilar de formação e sustentação do direito a lei, busca-se refletir até
que ponto a adoção de súmulas que vinculam os juízes ao emitir suas decisões compatibiliza
com o Direito Processual próprio do sistema romano-germânico e, em especial, com os
princípios do Estado democrático de direito.
Inicialmente, cumpre destacar a importância do Direito Comparado para a pesquisa
jurídica. Sidou aponta que o estudo do Direito Comparado pode ser dividido em duas fases:
fase comparativa em que se pratica um método e fase investigativa em que se procede
cientificamente. O autor esclarece que houve um desenvolvimento do Direito Comparado que
passou de uma fase empírica, que se relacionava com a curiosidade acerca da legislação de
outros povos, para uma fase denominada de Etnologia Jurídica.898 A concepção moderna do
Direito Comparado não eliminou a curiosidade pelas coisas alheias, nem o método da
comparação legislativa, mas tornou científica a comparação. Nesse sentido, Sidou afirma que
essa concepção: “[...] parificou a comparação à investigação, fazendo-a recuar no tempo ao
encontro das origens. Noutras palavras, transformou a comparação elementar na investigação
científica e aprofundada.”899
Por sua vez, Sidou com base na concepção teleológica conceitua o Direito Comparado
como “[...] campo jurídico dedicado à investigação comparativa dos diversos sistemas em
aplicação, para efeito do aprimoramento do direito. Daí se intui que é um direito mais
897 “Stare decisis et quieta non movere”. Mantenha a decisão e não perturbe o que foi decidido.” SÁ, Djanira Maria Rademés de. Súmula vinculante: análise de sua adoção. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 61. 898 “[...] a Etnologia Jurídica é ‘[...] o campo doutrinário do Direito Comparado dedicado ao estudo comparativo dos povos em sua evolução, para, por esse meio, chegar à afinidade existente nos direitos modernos.’” SIDOU, J. M. Othon. Processo civil comparado: (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 14. 899 SIDOU, J. M. Othon. Processo civil comparado: (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 14.
247
comparativo do que imitativo, e mais investigativo do que comparativo, num perene processo
de construção.”900
Por conseguinte, o objetivo do Direito Comparado é permitir conhecer os pontos
convergentes e divergentes entre os sistemas jurídicos, segundo aponta Sidou:
Seu escopo é conhecer as semelhanças e neutralizar as divergências no tocante a um sistema jurídico em face de outro ou ao conjunto de sistemas jurídicos, perquirindo, com acuidade, o porquê das similitudes, aceitando com modéstia, o que de salutar é praticado por outros povos, e oferecendo-lhes, sem desdém, o que temos de razoável. E sua tarefa última no aprimoramento da civilização, quimérico como possa parecer, é a marcha ao encontro da unicidade do direito, tornando-o uma ciência menos árida e menos esquiva.901
Ao estudar o Direito Comparado, David aponta que, numa concepção tradicional e nos
primórdios do Direito Comparado, se discutia se o Direito Comparado deveria ser um ramo
autônomo da ciência do Direito ou se ele se constituía em um simples método comparativo.
Porém, numa perspectiva contemporânea, uma vez superada essa discussão, o Direito
comparado passou a ser reconhecido como ciência. Por conseguinte, a preocupação da
atualidade é esclarecer as vantagens da utilização do Direito Comparado no estudo do Direito.
Sobre as vantagens que o Direito Comparado oferece, David enumera as seguintes: auxilia
nas investigações históricas e filosóficas; possibilita melhor conhecimento e aperfeiçoamento
do Direito nacional; permite uma compreensão do povo estrangeiro; e propicia melhorar as
relações internacionais.902
Desse modo, o Direito Comparado desempenha importante papel no estudo do Direito:
O direito comparado é chamado a desempenhar uma grande função na renovação da ciência do direito, e na elaboração de um novo direito internacional que corresponda às condições do mundo moderno. Não basta, portanto, aos comparatistas colocar em evidência a função que deve desempenhar o direito comparado. Uma outra função é, para eles, tornar os juristas aptos a cumprir, cada um na sua especialidade, a tarefa que lhes é confiada. O direito comparado não é o domínio reservado de alguns juristas aptos a cumprir, cada um na sua especialidade, a tarefa que lhes é confiada. O direito comparado não é o domínio reservado de alguns juristas que encontram seu interesse no ramo. Todos os juristas são chamados a interessar-se pelo direito comparado, quer para melhor compreenderem o seu próprio direito, quer para o tentarem aperfeiçoar, ou ainda, para estabelecer de acordo com os juristas dos países estrangeiros, regras de conflito ou de fundo uniformes ou uma harmonização dos diversos direitos. Sem dúvida que, para a maior parte, o direito comparado apenas será um método, o método comparativo, podendo servir para os variados fins que ele
900 SIDOU, J. M. Othon. Processo civil comparado: (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 2. 901. SIDOU, J. M. Othon. Processo civil comparado: (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 2. 902 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 3.
248
propõe. Pelo contrário, para outros, pode se conceber que o direito comparado seja uma verdadeira ciência, um ramo autônomo do conhecimento do direito, se a preocupação for concentrada sobre os próprios direitos estrangeiros e sobre a comparação que importa, em diferentes aspectos, facilitar com o direito nacional.903
Sacco aponta que o escopo da comparação jurídica como ciência é conhecer as
diferenças existentes entre os sistemas jurídicos, e conseqüentemente contribuir para o
conhecimento dos modelos em confronto.
A comparação pressupõe, evidentemente, o reconhecimento de que exista uma pluralidade de modelos jurídicos, mas essa vai além desse simples reconhecimento. Se ela concentra a sua tensão sobre esses múltiplos modelos, o faz para estabelecer em que medida os modelos são idênticos, e em que medida são diferentes. Em termos mais simples, já que a identidade dos modelos pode ser representada pela idéia de uma diferença igual a zero, a comparação consiste em medir as diferenças que existem entre uma multiplicidade de modelos jurídicos.904
Nessa linha de idéias, David acentua que a comparação pressupõe uma pluralidade de
sistemas jurídicos. Por sua vez, a comparação consiste em investigar em que medida esses
sistemas são idênticos ou em que medidas são diferentes, permitindo um melhor
conhecimento desses sistemas.905 Para tanto, o método científico desempenha papel
importante. Ao discorrer sobre os métodos de investigação, Kneller assevera que entende por
método científico “[...] a estrutura racional daquelas investigações científicas em que são
formadas e testadas hipóteses. Hipótese, inferência, teste e feedback constituem o núcleo da
estrutura.”906
Por sua vez, Richardson, ao tratar dos temas “conhecimento” e “método científico”
enfatiza que “[...] o método científico é o caminho da ciência para chegar a um objetivo. As
metodologias são as regras estabelecidas para o método científico, por exemplo: a
necessidade de observar, a necessidade de formular hipótese, a elaboração de
instrumentos.”907
Popper afirma que o problema central da epistemologia relaciona-se com o problema
do saber, e que o aumento do saber poderá ser mais bem analisado com o aumento do
conhecimento científico. Esse autor admite a existência de um método que pode ser
denominado de método da filosofia. Porém, ele adverte que esse método não caracteriza
903 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 9-10. 904 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado, 2001. 905 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 34. 906 KNELLER, George F. A ciência como atividade humana, 1980, p. 120. 907 RICHARDSON, Roberto Jarry et al. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999, p. 22.
249
apenas a Filosofia, mas toda discussão racional e, por isso, presta-se tanto às Ciências
Naturais como à Filosofia. Por conseguinte, a utilização do método científico implica a
discussão racional e crítica, conforme aponta Popper: “[...] o método a que me refiro é o de
enunciar claramente o problema e examinar criticamente, as várias soluções possíveis.”908
Assim, no estudo do Direito comparado, o presente trabalho valer-se-á do método científico
nos moldes propostos por Popper.
Cappelletti acentua que o estudo do processo civil comparado apresenta dificuldades,
principalmente, quando se propõe realizar uma comparação entre sistemas de famílias
jurídicas diversas. Essas dificuldades podem ser agrupadas em objetivas e subjetivas. Para
superar as dificuldades de ordem objetiva, que decorrem, principalmente, da multiplicidade e
multiformidade dos ordenamentos europeus, Cappelletti aponta a necessidade de se extrair da
multiplicidade os pontos em comum desses sistemas. Para tanto, faz-se necessário estudar os
princípios e os institutos fundamentais sob uma perspectiva histórica. Por outro lado, quanto
às dificuldades de caráter subjetivo, o autor aponta a necessidade de diálogo entre os
estudiosos e os práticos dos diversos sistemas. Além disso, ressalta que as diferenças entre os
sistemas romano-germânico e o anglo-americano não são tão grandes quanto parecem: “[...] E
não é apenas isto, mas que as mesmas diretrizes de evolução, como veremos, são, em muitos
campos, semelhantes ou convergentes, e certas diferenças vão se atenuando, de modo que se
possa falar em um sistema jurídico enquanto há muitos aspectos inspirados nos princípios
gerais em todos os países (de civil law e de common law), pelo menos do denominado ‘mundo
ocidental’.”909
Antes de traçar um breve escorço histórico do sistema romano-germânico e do anglo-
americano cumpre explicitar o significado de “sistemas jurídicos”. Para Canotilho, o sistema
jurídico deve ser compreendido como um sistema aberto de regras e princípios:910
908 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972, p. 27. 909 CAPPELLETTI, Mauro. O processo civil no direito comparado. Tradução de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2001, p. 15. 910 “Saber como distinguir, no âmbito do superconceito norma, entre regras e princípios, é uma tarefa complexa. Vários são os critérios sugeridos: a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto; os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa. c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito). d) “Proximidade da idéia de direito: os princípios são standards” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça” (Dworkin) ou na “idéia de direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional. f) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.”
250
[...] (1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e “capacidade de aprendizagem das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da “verdade” e da “justiça;” (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas; (4) é um sistema de regras e princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a sua forma de regras.911 (grifos do autor)
Ao estudar os sistemas jurídicos, Streck aborda a expressão “sistemas” em duas
acepções. Na primeira acepção, enfoca o sistema jurídico como conjunto de normas jurídicas
comuns e capazes de diferenciar o sistema romano-germânico do anglo americano. E na
segunda acepção, examina os sistemas jurídicos sob a perspectiva da Teoria Geral do Direito:
Ressalte-se, dessa forma, que um sistema jurídico resulta de fatores determinantes em dado momento da história dos povos: fatores ambientais, étnicos, econômicos, religiosos, políticos, sociais ou filosóficos. Assim, não é temerário afirmar que o sistema jurídico-romano, os sistemas jurídicos das repúblicas helênicas ou o sistema jurídico moderno, de base romanística, incluindo-se o sistema saxão, são todos sistemas jurídicos, ou seja, como já dito, conjunto de normas jurídicas que apresentam características comuns. Daí a importância da conceituação de Ancel (1980, p. 58), para quem deve se entender por sistema jurídico um conjunto mais ou menos amplo de fontes, de concepções fundamentais, de métodos e de processos de desenvolvimento.912
Os sistemas jurídicos são agrupados em famílias pelos estudiosos do Direito
Comparado. Na atualidade, coexistem duas principais famílias913 ou sistemas: a família
romano-germânica (civil law) e a família anglo-americana (common law). A título de
esclarecimento, destaca-se que, além desses dois sistemas, existem a família de Direito
Comunista, que abrange a China, Rússia e os países que formavam a extinta União Soviética;
famílias de menor relevância como a africana, a muçulmana, a judaica; e ordens jurídicas
paralelas, não oficiais. Porém, para o presente estudo, interessam apenas os estudos relativos a
common law e a civil law.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, p. 1144-1145 (grifos do autor). 911 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, p. 1143. 912 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 36. 913 “[...] A noção de ‘família de direito’ não corresponde a uma realidade biológica; recorre-se a ela unicamente para fins didáticos, valorizando as semelhanças e as diferenças que existem entre os diferentes direitos.” DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 17.
251
O sistema jurídico anglo-americano é baseado nos precedentes judiciais, ou seja, nas
jurisprudências dos tribunais, e volta-se para o passado, com base no processo. O sistema
jurídico romano-germânico, a partir do século XIX, passou a ter como fundamento a lei,
emanada de um órgão competente, e o sistema volta-se para o futuro, uma vez que, de modo
geral, é vedada a retroação de suas leis. É mister salientar que, no Estado da pós-
modernidade, a lei que se constitui no sustentáculo desse sistema não é qualquer lei, mas
uma lei elaborada por meio do devido processo constitucional. Assim, o juiz, ao decidir,
deve observar os critérios estabelecidos pela lei, conforme acentua Leal: “[...] o julgador não
pode decidir assumindo o papel paternalista ou do magister em juízos de desvinculada
subjetividade. O juiz não pode, portanto, decidir em face de uma lei vazia à qual possa
emprestar conteúdos de pessoal sabedoria, clarividência ou magnanimidade.”914
Cumpre destacar que tanto o sistema romano-germânico quanto o anglo-americano
tiveram a mesma origem: “[...] na verdade, tiveram ambos os sistemas a mesma gênese: o
direito romano imposto às populações conquistadas pelo poderoso Império. Até a invasão dos
anglo-saxões vigorou, portanto, nas ilhas britânicas, o direito romano.”915
Sobre a gênese da família romano-germânica, David aponta que:
A família do direito romano tem seu berço na Europa Continental. Formou-se graças aos esforços das universidades européias, que elaboraram e desenvolveram a partir do século XII, com base em compilações do imperador Justiniano, uma ciência jurídica comum a todos, apropriada às condições do mundo moderno. A denominação romano-germânica foi escolhida para homenagear estes esforços comuns, desenvolvidos ao mesmo tempo nas universidades dos países latinos e dos países germânicos.916
No final dos séculos XIII a XVI, ocorreu o fenômeno de recepção ou assimilação do
direito romano. “Os jurisconsultos romanos, retemperados no cadinho do tempo e manejando
um direito escrito desde as Doze Tábuas, conseguiram traçar, não um estatuto, mas um
sistema jurídico cujos fundamentos não são adequados apenas a dado povo, mas
perfeitamente assimiláveis pela natureza humana.”917 Esse fenômeno da recepção do direito
romano foi observado na Itália, França, Península Ibérica, nos territórios germânicos e eslavos
do século XVI ao XVIII. Todavia, essa assimilação não ocorreu na Inglaterra, conquistada
pelos normandos.
914 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 124. 915 SÁ, Djanira Maria Rademés de. Súmula vinculante: análise de sua adoção, 1996, p. 47. 916 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 18. 917 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 80.
252
A família de direito romano-germânica reúne os países cuja ciência do direito se
formou sobre a base do direito romano e do direito germânico. Nos países filiados a esse
sistema como Alemanha, Brasil, França, Espanha, Japão e Portugal, a lei escrita é considerada
a fonte principal do direito, conforme aponta Streck: “[...] o que deve ser dito é que, a partir
do século XIX, quando a maioria dos países filiados ao sistema romano-germânico editou
seus códigos e promulgou suas constituições, os juristas passaram a buscar na lei sua principal
fonte de inspiração. As leis escritas passam a ser tratadas, então, de forma hierárquica, tendo
no topo da pirâmide as Constituições dos países.”918 Apesar de o centro desse sistema ser a
lei, verifica-se uma tendência à ampliação do precedente jurisdicional, admitindo-se,
inclusive, a vinculação, em vários graus, que passa a adquirir força de lei.
Inicialmente, o processo romano se destacou por ser um processo oral, e que se
relacionava com a função da prova, como aponta Chiovenda: “[...] oralidade é um nome que
indica, portanto, um complexo de princípios interdependentes. Pois bem: o processo romano
foi, como é fácil de ver-se, eminentemente oral, no sentido amplo desta palavra, pela razão
íntima e profunda de ser isto exigido da função da prova.”919
O Direito romano é aquele que abrange o período de 754 a.C., época da fundação de
Roma, até a morte do imperador Justiniano, césar do Império do Oriente, em 565 d.C.
Conforme adverte Vieira, apesar de a primeira fase do Direito Processual civil romano
(legis actiones) não estabelecer normas gerais de processo, essa fase pode ser considerada
como um marco para o desenvolvimento do processo, não se podendo falar em Direito
Processual antes dos romanos.920 No estudo do direito romano, podem-se levar em
consideração o critério histórico (período arcaico, clássico e pós-clássico); o político (régio,
republicano, principado e dominato); e o religioso (paganismo e cristianismo). Já pelo aspecto
do desenvolvimento processual, o direito romano pode ser dividido em três fases: a das ações
das leis (legis actiones), a das fórmulas escritas (per formulas) e a do juízo unificado (cognitio
extra ordinem).921
Sidou aponta que, numa concepção científica, o procedimento privado romano divide-
se em duas etapas: a primeira etapa subdivide-se em Ordo iudiciorum privatorum (natureza
918 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 68. 919 CHIOVENDA, Giuseppe. A idéia no processo civil moderno. In: MORATO, Francisco (Org.). Processo oral. Rio de Janeiro: Forense, 1940, p. 92. 920 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 3. 921 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 24.
253
privada) e Ordo iudiciorum publicorum (natureza pública), esta movimentada por meio da
quaestio, e aquela, por meio da actio. Na segunda etapa, tem-se o juízo unificado (Cognitio
extra ordinem). Sobre o procedimento privado do direito romano, Sidou esclarece que:
Na Ordo iudiciorum privatorum prevalece o juízo formal, ou obediente a fórmulas, as quais fazem subpartir-se em duas fases: a das fórmulas orais, desenvolvidas por meio das legis actiones, e a das fórmulas escritas, ou procedimento formulário propriamente dito. Peculiaridade dessa etapa do procedimento, tipicamente romana, eis que não encontrada nos direitos das civilizações precedentes, é a duplicidade do juízo, com a actio organizada ante o pretor ou magistrado com jurisdição (fase in iure), e instruída e decidida por um juiz ou corpo de juízes particulares (fase apud iudicem). Aplicava-se este sistema apenas para efeito dos juízos legítimos, ou entre cidadãos romanos.922
De modo diverso à Ordo iudiciorum privatorum ou publicorum, na fase da Cognitio
extra ordinem, havia apenas um juízo, conforme aponta Sidou: “[...] a ação desenvolvia em
instância inteiriça, e foi adotada para a jurisdição peregrina, ou povos non civis, depois
universalizada, com o magistrado público recebendo a causa, conhecendo e julgando-a
unipessoalmente.”923
Conforme acentua Leal, o sistema da legis actiones, desenvolvido a partir do século
VIII ao século V a.C., era caracterizado pela judicialidade, legalidade e formalidade: “[...]
Judicial, porque se iniciava perante o magistrado (in jure) e, em seguida, perante o arbítrio
particular (apud judicem); legal, porque previsto em regras do magistrado; e formalista, por se
vincular a formas e palavras sacramentais. Na solução dos conflitos, no período régio do
Império Romano, por volta de 451 a 450 a. C., foi consolidado o direito então vigente pela
publicação da Lei das XII Tábuas.”924
Além do formalismo, Vieira aponta como características marcantes da legis actiones a
publicidade e a oralidade. Por outro lado, entende que não se pode atribuir às legis actiones
um caráter integralmente judiciário:
As afirmações das partes são solenidades impostergáveis, sob pena de nulidade. O procedimento das “legis actiones” é de extremo formalismo e, neste sentido, mais rígido que o “per formulas.” Também mais do que este último, o das “legis actiones” tem maior publicidade e oralidade. Exige a presença de ambas as partes e a prova testemunhal tem seu valor exacerbado, ainda quando “in genere” se afirme o livre convencimento do juiz. Diversamente, não se pode fazer derivar das “legis actiones”
922 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 24. 923 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 25. 924 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 40.
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um caráter integralmente judiciário a não ser que se lhes atribua a conclusão a termos da previsão legal rígida. Mas, à guisa de exemplo, tem-se em contrário que a “pignoris capio” se desenvolve, de regra, “extra ius”, como vimos, para não falar, já, da “manus iniectio”, de iniciativa privada, originariamente. Só depois é que o magistrado passou a intervir para pronunciar a “addictio” e prestar anuência àquela iniciativa, o que tornava, por assim dizer, a sanção legal.925
Para defesa de seus direitos, os romanos utilizam-se das cinco espécies de legis
actiones (ações da lei), quais sejam: a sacramentum926, a iudicis postulationem927, a
condictionem,928 a manus iniectionem929 e a pignoris capionem930. Quanto à natureza, as duas
primeiras eram declaratórias; as duas seguintes constitutivas; e as duas últimas, executivas.
Ao estudar as legis actiones, Vieira aponta que:
As “legis actiones” compreendiam declarações perante o magistrado, revestidas de solenidade, a respeito do objeto da querela. Não havia exposição de fundamento de fato ou “causa petendi”. O magistrado cingia-se a verificar se os atos das partes eram legais e tentar conciliá-las por meio dos “pacta”. Não lograsse sucesso a sua tentativa, cumpria-lhe remeter os contendores a um juiz, cuja escolha ficaria a cargo das partes.931
A partir do século V a.C., foram desenvolvidas as fórmulas escritas. Sidou ressalta a
importância da lei escrita no procedimento romano: “[...] como quer que seja, empresta-se a
925 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 12. 926 “A ‘legis sacramento’ ocupava o lugar de um procedimento comum, era usada toda vez que a lei não indicasse outra. Daí, o seu caráter abstrato, já que o autor estava desobrigado de declinar a causa de pedir. Conforme o objeto, podia ser ‘in rem’ (uma coisa) ou ‘in personam’ (um crédito).” VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 7. 927 “A ‘legis actio per iudicis postulationem’ era prevista nas XII Tábuas para os créditos originários da ‘stipulatio’ (promessa solene) ou para a partilha hereditária, sendo esta estendida por uma ‘Lex Licinia’ às divisões de coisa comum. A ‘legis actio postulationem’ dispensava o ‘sacramentum’, já por ser especial e concreta, atenuava o risco da lide temerária.” VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 9. 928 “A ‘legis actio per condictionem’, criada por uma ‘Lex Silia’ para os créditos de ‘certa pecunia’ (quantia certa), foi estendida por uma ‘Lex Calpurnia’ aos créditos de ‘certa res’ (coisa certa). É geral e abstrata e contém ‘poena’ para o demandante, proporcional à coisa litigiosa, parecendo ser simples reforma da ‘legis actio sacramento’, porque a pena é devida ao vencedor e não mais ao fisco.” VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 9. 929 “A ‘ legis actio per manus iniectionem’ havia contra o iudicatus (quem já condenado a pagar uma quantia). É a matriz da execução, só que ainda se faz sobre a pessoa e não sobre o patrimônio do executado.” VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 9. 930 “A ‘legis actio per pignoris capionem’ rendia ensejo ao apossamento de coisas do devedor, sem a necessidade de o magistrado autorizar o credor. Realizava-se, pois, sem a presença do pretor, isto é, ‘extra ius’, mesmo ausente o réu, e podia consumar-se nos dias ditos nefastos, nos quais ilícito ‘lege agere’.” VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 910 931 VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, 2002, p. 3.
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essa lei uma importância quiçá exagerada na formação do procedimento, visto como ela nada
criou, limitando-se a dar forma escrita à forma oral.”932
Ao estudar o período formular, Leal divide a análise desse período em duas fases: o
direito romano arcaico (a partir do século V a.C.) e o direito romano clássico (a partir do
século II a.C. até o século III d.C.). Desse modo, ao lado de uma arbitragem facultativa, houve
a criação de uma arbitragem oficial, que se desenvolvia em duas fases: perante o magistrado
(pretor - representante do Estado – in jure) e perante o juiz popular (árbitro particular – apud
judicem). Inicialmente, o árbitro era indicado pelas partes. Já o pretor era nomeado pelo
governo e, por meio dos editos, exercia função jurisdicional ao fornecer a fórmula ao árbitro.
A fórmula era um documento escrito que concedia ao árbitro o poder de julgar. Leal esclarece
que a fórmula933 era um documento redigido pelo próprio pretor e “[...] que continha o
resumo, os limites e o objeto da demanda (litiscontestatio), o nome do árbitro livremente
escolhido pelos demandantes e o compromisso a ser assinado pelo árbitro e pelos litigantes de
seguirem os termos da fórmula e de os litigantes obedecerem a decisão (sentença) a ser
proferida pelo árbitro.”934
A partir do século II a.C., durante o período em que vigorou o direito romano
clássico, com a criação da Lei Aebutia (século II a.C.) e da Legis Iulia (século I a.C.), o
pretor passou a nomear o árbitro. Nessa fase, a arbitragem passa a vigorar como instituto
público, marcando o fim da justiça privada ou do ordo iudiciorum privatorum (procedimento
de natureza privada). E, por fim, período da Cognitio extra ordinem, época em que vigorou o
direito romano pós-clássico. Diante do enfraquecimento do Império Romano e da necessidade
de o príncipe impor sua vontade para recuperar a unidade nacional, houve uma ampliação dos
poderes do pretor, que passou a conhecer e julgar os litígios:
Ampliou-se, nessa época, ainda mais, o poder dos pretores que, nesse período pós-clássico, também chamado período do Principado e da monarquia absoluta (284 d.C – 565 d.C), agiam por um sistema jurídico paralelo à ordem vigente, conhecendo e julgando diretamente os litígios sem interferência de árbitros, não mais podendo os
932 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 82. Consultar também MORATO, Francisco (Org.). Processo oral, 1940, p. 28. 933 “A fórmula concreta do litígio no regime correspondente era, portanto, um breve escrito baseado na fórmula abstrata do edito e elaborada com a ajuda de algum patronus (advogado), para ser submetida pelo autor ao correspondente juiz único (iudex ou arbiter) ou ao grupo de julgadores (recuperatores), conforme o caso. Quatro eram as partes ordinárias da fórmula, segundo Gaio, 4:39: demonstratio, intentio, condmnatio e adiucatio o que não significa que toda fórmula encerrasse necessariamente essas quatro partes.” SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 82. Consultar também MORATO, Francisco (Org.). Processo oral, 1940, p. 30. 934 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 41.
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particulares, nessa época pós-clássica, utilizar-se da arbitragem, por qualquer de suas formas. Essa fase, conhecida como da cognitio extra ordinem, assinala a passagem do modelo romano da Justiça Privada para a Justiça Pública.
Como vimos, ao se irrogar o conhecimento e julgamento das causas, e assumindo o Estado Romano, per lege et jura (com base nas constituições imperiais e pareceres dos jurisconsultos), o monopólio da atividade de dizer o direito, abolindo oficialmente a arbitragem facultativa, era o pretor o órgão jurisdicional do Estado e o Estado o único e exclusivo árbitro dos litígios. A essa atividade denominou-se Jurisdição (arbitragem estatal obrigatória).935 (grifos do autor)
Desse modo, fica evidente que a Jurisdição surgiu da Arbitragem obrigatória. Ao
contrário do que afirmam os instrumentalistas, não foi o processo que surgiu da Arbitragem.
O pretor exercia a jurisdição sem processo, sendo as decisões marcadas pelo senso de
clarividência e de sabedoria do pretor:
Depreende-se que a Jurisdição, em sua origem, é a estratificação da figura da Arbitragem legalmente institucionalizada e praticada, de modo exclusivo e monopolístico, pelo Estado. A Jurisdição, quando não está previamente condicionada, como veremos à principiologia do processo, cuja plataforma jurídica fundamental se encontra insculpida na maioria das constituições modernas, é mera atividade de julgar e descende diretamente da primeva Arbitragem, na qual a clarividência divinatória dos sacerdotes e o carismático senso inato de justiça dos pretores e árbitros é que marcavam e vincavam o acerto e a sabedoria de suas decisões.936
Após estudada a influência do direito romano na formação da civil law, abordar-se-á o
procedimento germânico, parceiro do direito romano na construção do sistema romano-
germânico. O direito germânico não foi um direito homogêneo, abrangendo o território de
tribos e povos diversos. Compreende o período do século VI ao XII e pode ser dividido em
três fases: 1) fase da longobarda – direito germânico estrito (anos de 568 a 774); 2) fase franca
(anos de 774 a 900), influenciada pelo direito romano, e mais desenvolvida; 3) fase feudal
(anos de 900 a 1100), com maior influência do direito itálico-canônico.937
Em sua fase inicial, o direito germânico também não era baseado no direito escrito,
mas caracterizava-se por sua oralidade: “Público, oral, contraditório, com a prevalência do
princípio de iniciativa, eram as características marcantes do procedimento germânico
935 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 41-42. 936 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 42. 937 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 81.
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medieval. Às partes, portanto, incumbia o desenvolvimento da demanda, restringindo-se o
papel do magistrado a dirigir o debate e esclarecer, quando devido, a matéria de direito.”938
Porém, conforme destaca Chiovenda, existe uma diferença entre o processo oral
romano e o germânico:
[...] o processo germânico era sem dúvida oral, mas dessa oralidade de um povo que não conhece a escritura e que trata em assembléia negócios jurídicos. Não era a oralidade romana correspondente à função da prova. Em um processo em que o juiz não forma a sua livre convicção, mas decide apoiado nos juízos de Deus, baseado, pois, nas regras que constituem o sistema da prova legal, a oralidade tem uma importância meramente formal e está destinada a diminuir logo que se difunda o uso da escritura e logo que os juízos passem da assembléia às salas dos juízes. Formou-se o processo escrito, que se chamou processo ordinário romano-canônico, em que as atividades processuais se repartiram por diversas fases: o interrogatório das partes e o exame das testemunhas são realizadas por um juiz diverso daquele que pronunciará a sentença, e consagrada em processos verbais; a causa é interrompida por freqüentes interlocutórios imediatamente apeláveis.939 (grifos do autor)
Na primeira fase do direito germânico, denominada de germânica estrita antes de ser
instaurada a demanda, o acusado era notificado por um oficial público. Essa fase se
desenvolvia formalmente, através de palavras do queixoso, sob a invocação de Deus,
seguindo a contradita do acusado, sob juramento. Com o tempo os querelantes foram
substituídos por procuradores que falavam em nome dos querelantes. Desse modo, “[...]
característica do procedimento germânico era a assembléia dos homens livres, o Ding, ou
Mallus, como titular da jurisdição, presidida pelo próprio soberano ou por um delegado seu
(tunginus), designado para cada caso e escolhido dentre os centenarius.”940
No período franco, o formalismo foi cedendo aos poucos, sendo dispensado o autor de
invocar a divindade. Além do juízo popular, havia o tribunal real, jurisdição superior do rei.
Nesse tribunal, o processo perdia sua característica de oralidade e publicidade; era inquisitório
e secreto. Ao Ding competia ditar a sentença, que era precedida de tentativa de conciliação
das partes. Da decisão do Ding não cabia recurso. Todavia, no feudalismo, a sentença podia
ser impugnada, uma vez que o rei podia exercitar o ius avoncandi em casos de denegação de
938 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 82. Consultar também MORATO, Francisco (Org.). Processo oral, 1940, p. 22. 939 CHIOVENDA, Giuseppe. A idéia romana no processo civil comparado. In: MORATO, Francisco (ORG.). Processo oral, 1940, p. 93. 940 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 82.
258
justiça. Aos poucos, a administração da justiça germânica passou do Ding para os juízes
graduados em universidades, local onde se ensinava o direito romano.941
Por sua vez, nesse período, as Leis Sálica e Ripurária estabeleciam que o
procedimento executivo ocorria fora do juízo. Sidou adverte que isso ocorria como
[...] conseqüência do processo inquisitório e público levado a efeito no Ding, ante o qual autor e réu assumiam a tácita obrigação de cumprir a decisão proferida ou com ela conformar-se. Se transcorrido, o prazo estabelecido na sentença, o devedor não satisfizesse a obrigação, o credor, em presença de testemunhas e munido do título executório, equivalência romana do pignus in causa iudicat captum, apreendia bens móveis e, se esses não bastassem, se imitia na posse de imóveis.942
É mister ressaltar que os direitos germânicos, em especial o longobardo e o franco, não
exerceram domínio pleno nas regiões conquistadas, sempre foram influenciados pelo direito
romano, embora deturpado. Por outro lado, houve a sistematização de um direito paralelo, o
direito canônico. Com a queda do império romano, o direito romano encontrou asilo nas
universidades criadas pela Igreja. Em decorrência disto, o direito canônico e o germânico
coexistiram por quase sete séculos.
O direito canônico assimilou os princípios do direito romano e o adaptou aos
interesses da igreja. O direito canônico levou o procedimento longobardo, no século XI, a
receber influência do direito romano, propiciando o surgimento de um procedimento misto,
denominado comum, ou itálico-canônico. A penetração do direito germânico nesse direito
transformou o procedimento oral romano em um procedimento escrito.
A influência do direito canônico ao produzir a fusão do direito romano e germânico,
passou o procedimento para as mãos de juízes. Desse modo, a “administração da justiça” foi
retirada do Ding:
A administração da justiça germânica foi pouco a pouco sendo retirada do Ding, conseqüentemente abolida a figura do centenarius ou tunginus, meros orientadores do processo nas assembléias populares, substituídos por juízes letrados, formados nas universidades onde se ensinava o direito romano, e dotados de discernimento para conhecerem das causas em julgamento.943
941 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 83. 942 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 82-83. 943 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p.82-83.
259
Outrossim, o procedimento germânico antes do feudalismo era desenvolvido nas
assembléias populares, sem utilização da palavra escrita, era oral. Coube ao Direito Canônico,
já estruturado, a introdução da escrita em todos os termos processuais, com o objetivo de
assegurar a memória dos atos jurídicos. “Eis como dois sistemas procedimentais, o romano e
o germânico, tipicamente orais, contribuiu um e influenciou outro, para a formação de um
procedimento de todo averso.”944
Ao contrário do sistema romano-germânico que tem como a principal fonte do direito
a lei, com a adequação e submissão dos atos à determinada norma, o sistema anglo-americano
coloca a lei em segundo plano e dá primazia às decisões judiciais. Desse modo, as decisões
judiciais, além de decidir o litígio, impossibilitam novas discussões sobre questões já
decididas e funcionam como precedentes para casos futuros, desde que entre os dois casos
analisados existam semelhanças de ordem jurídica e fática. Sobre o tema, Streck aponta:
Tradicionalmente, o Direito inglês tem considerado o Direito Legislado – statute law – como algo secundário, de onde não se deve buscar os princípios gerais do Direito e cuja função se reduz a aclarar ou retificar, em casos específicos, os principais assentados através dos trabalhos do juiz.
[...] o Direito inglês é de base jurisprudencial. Daí que, em vez de citar o texto de uma lei, se citem sentenças que aplicam essa lei. Para o jurista inglês, acrescenta o autor, é mais fácil contemplar a lei através da sentença, a regra legal através da jurisprudencial.945
Ao estudar os sistemas jurídicos, Streck destaca a importância dos precedentes para o
sistema jurídico anglo-americano:
A doutrina dos precedentes obrigatórios (Doctrine of binding precedent), também chamada stare decisis, case law, está estreitamente ligada ao sistema denominado de Law Reports. De pronto, deve ser dito (e repetido) que uma das características históricas mais marcantes da lei inglesa é ser produto do trabalho dos juízes (judge made law). Ou seja, a maior parte da common law não é produto do Parlamento, mas, sim, do trabalho de séculos dos juízes aplicando regras consuetudinárias estabelecidas, aplicando regras a casos novos, na medida em que foram surgindo. O princípio que respalda a doutrina dos precedentes consiste em que, em cada caso, o juiz deve aplicar o princípio legal existente, isto é, deve seguir o exemplo ou precedente das decisões anteriores (stare decisis).946
944 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p.78. 945 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 42. 946 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 46-47.
260
Desse modo, o precedente jurisdicional obrigatório confere à sentença o caráter de
norma geral, devendo ser aplicadas em situações concretas semelhantes. Porém, nessas
decisões devem-se distinguir dois elementos a ratio decidendi e os obter dicta ou dicta.
Somente as questões de direito deverão ser observadas em casos futuros e apenas deve ser
considerado aquilo que for necessário para a decisão. A ratio decidendi é o elemento
caracterizador do precedente, pois é dele que decorre a obrigatoriedade e a força vinculativa
do precedente. Por sua vez, os dicta são pronunciamentos dispensáveis.947
David adverte que todo estudo da common law deve iniciar-se pelo estudo do Direito
inglês, haja vista que a gênese do sistema anglo-americano remonta às atividades dos
tribunais reais de justiça na Inglaterra a partir da conquista normanda.948 Sobre a common law,
David assevera:
A família da common law compreende, além do direito inglês, que está na sua origem, e salvo certas exceções, os direitos de todos os países de língua inglesa. Além dos países da língua inglesa, a influência da common law foi considerável na maior parte dos países, senão em todos, que politicamente estiveram ou estão associados à Inglaterra.
Todo o estudo da common law deve começar por um estudo do direito inglês. A common law é um sistema profundamente marcado pela sua história, e esta história é de forma exclusiva, até o século XVIII, a do direito inglês.949
A história do direito inglês pode ser dividida em quatro períodos. O primeiro período,
denominado direito anglo-saxônico, precede a conquista normanda de 1066. Vigorava, nesse
período, um sistema de direito baseado nos costumes das diversas tribos. O segundo período
se estende de 1066 até a dinastia de Tudor (1485) e corresponde à formação da common law.
Quando Guilherme (o Conquistador ou o Bastardo) dominou a Inglaterra, estabeleceu a
dominação feudal e, como não trouxe elementos de direitos mais evoluídos, deixou que
permanecesse o direito dos anglo-saxões. Desenvolveu-se, nesse período, um sistema de
direito comum a todo povo inglês, em substituição aos costumes locais. A confiança
depositada pelos juízes nos julgamentos anteriores deu origem à doutrina do precedente
judicial.950 A partir do século XIII, as decisões judiciais, que eram reduzidas a termo,
947 SÁ, Djanira Maria Rademés de. Súmula vinculante: análise de sua adoção, 1996, p. 62. 948 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 37. 949 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 279. 950 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 283-301.
261
começam a circular por meio dos anuários, precursores dos law reports. Assim, a common
law desenvolveu-se através de processos formalistas.951
Sobre a common law, David esclarece que a elaboração desse direito coube aos
Tribunais Reais de Justiça (a partir do século XIII denominado de Westminter): “[...] em
suma, o common law, um direito que é ‘comum’, na acepção de nacional, não local, e que
deixou de ser ‘costumeiro’, porque, a partir daí, o que passou a prevalecer foi a
jurisprudência, não o costume; um direito jurisprudencial, sua marca até nossos dias.”952
Além de fazer a substituição da lei pela jurisprudência, uma característica marcante do
sistema anglo-americano é que o juiz da common law exerce função legiferante, conforme
aponta Sidou:
[...] o juiz inglês é investido de uma quase função legislativa. Ele, ao mesmo tempo em que busca o direito a ser aplicado em face do caso concreto e que, por sua vez, já fora perquirido por juízes sucessores em situação idêntica ou semelhante, lega o resultado de seu labor decisório para ser empregado em futuros casos análogos, ou vinculados a um mesmo fundo jurídico, assim reforçando o repertório dos ‘precedentes’, o núcleo do sistema.953
O terceiro período (1485-1832) corresponde à época de maior expansão da common
law. Em decorrência do formalismo da common law, surgiu a equity. Streck esclarece que a
equity: “[...] era caracterizada por ser um recurso à autoridade real diante da injustiça
flagrante de alguns casos concretos. Encaminhavam-se petições ao rei ou a seu conselho, que
eram despachadas pelo chanceler (Keeper of the King’s Conscience), encarregado de orientar
e guiar o rei em sua decisão.”954 Com o passar do tempo, o chanceler se constitui em um juiz
autônomo. Aos poucos, as regras da equity tornaram-se sistemáticas, sem se contraporem à
common law.
A common law se desenvolveu através de um procedimento oral e público. A equity se
desenvolveu mediante processo escrito, secreto e inquisitório. Apesar dessas peculiaridades
da equity, David ressalta a eficácia desse procedimento:
951 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 39. 952 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 90. 953 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 90. 954 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 39.
262
O chanceler continuou examinando os pleitos, todavia, mediante processo escrito, secreto e inquisitório, à linha do direito ítalo-canônico, sem mais dar lugar à formação de júris. Tal desvio era duplamente benéfico, porque, se por um lado encorajava o absolutismo régio, por outro favorecia os litigantes que às Cortes de common law, tardígradas e desnorteadas diante de situações jurídicas novas, preferiam bater à porta da Chancelaria, que lhes proporcionava decisão mais pronta e por método moderno.955
A partir do século XIX, ocorreram profundas modificações no direito inglês. A Lei de
Organização Judiciária de 1873 (Judicatures Acts) marca o início do quarto período. A partir
dessa época, uma única corte passou a aplicar as diferentes regras da common law e da equity.
Outra contribuição do Judicatures Act foi a edição de um código procedimental, Rules of
Supreme Court, denominado de White Book. A revisão das decisões por uma corte superior
foi estabelecida pelo Appelate Act. Com as transformações ocorridas nos séculos XIX e XX,
houve uma enorme criação legislativa, que era ignorada nos períodos anteriores. O aumento
das leis e regulamentos faz com que a lei escrita se torne uma complementação da common
law.956
Nesse período, a lei escrita (statue law) passou a vigorar na Inglaterra, constituindo-se
em um ponto de convergência entre os sistemas romano-germânico e anglo-americano. A lei
possui uma função diferente no sistema anglo-americano, conforme adverte Sidou, uma vez
que ela não cria o direito, apresentando função secundária e complementar à jurisprudência:
“Tanto assim é que a edição da lei inglesa não significa sua imediata incorporação ao direito,
a qual só se verifica quando ela for objeto de mais de uma aplicação judicial. E na prática
nenhum jurista a cita em seus julgados, arrazoados ou doutrinariamente, porque o que merece
referência útil ou pragmática é o julgado a que ela deu suporte.”957
Na Inglaterra é feita uma distinção entre a alta justiça (haute justice)958, administrada
pelos tribunais superiores e a baixa justiça (basse justice), administrada por uma série de
jurisdições inferiores ou por organismos quase inferiores ou por organismos quase judiciários.
Ao lado desses tribunais, existem as Magistratures Courts e uma estrutura paralela,
denominada de quase judiciária, composta por juízes leigos, que têm competência
955 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 92. 956 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 40. 957 SIDOU, J.M. Othon. Processo civil comparado. (Histórico e contemporâneo) a luz do Código de Processo civil brasileiro, modificado até 1966, 1997, p. 92. 958 A jurisdição superior é composta pela Casa dos Lordes (House of the Lords) e pelos Tribunais Superiores (Supreme Court of Judicature). São Tribunais Superiores: a Alta Corte de Apelação (High Court of Justice), a Coroa da Corte (Crown Court) e a Corte de Apelação (Court of Appeal). A jurisdição inferior é composta pelas Cortes do Condado (County Courts). STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 43-45.
263
administrativa. Com a adesão do Reino Unido à Comunidade Européia, desde 1973, o
Tribunal de Justiça da Comunidade Européia é competente para julgar questões de direito
comunitário e se coloca em posição superior a House of The Lord.959 Das decisões dos
tribunais superiores é que surgem os precedentes, que devem ser seguidos no futuro, sendo
que apenas as questões de direito se dirigem aos casos futuros e somente deve ser considerado
o que foi considerado necessário para a decisão - princípio geral que justifica o caso – ratio
decidendi.960 Com relação ao direito comunitário, as decisões do Tribunal de Justiça
Comunitário têm caráter obrigatório. Apesar de os tribunais não estarem vinculados às suas
próprias decisões anteriores, na prática, eles costumam observá-las.
Desse modo, a decisão inglesa se reduz ao dispositivo que soluciona o caso concreto.
Conforme adverte David, os juízes ingleses não têm que motivar suas decisões; a necessidade
da motivação poderia ser considerada “[...] um atentado à sua dignidade impor-lhes essa
obrigação: eles ordenam e não têm de se justificar.”961 Porém, ressalta-se que, nos tribunais
superiores, o juiz inglês, de modo geral, esclarece as razões que o levaram a prolatar aquela
decisão:
[...] Em um comentário, que não tem a brevidade nem a precisão dos “motivos” franceses, expõe, de forma dedutiva, as regras e os princípios do direito inglês, a propósito da decisão tomada. Nesta exposição, freqüentemente, emprega fórmulas e anuncia regras que, por sua generalidade, ultrapassam o âmbito do processo. A técnica das distinções se baseara nesta particularidade.962
Na aplicação do precedente jurisdicional, o jurista inglês deve levar em consideração
os comentários das decisões (reazons). Nessas razões, faz-se necessário distinguir o ratio
decidendi (razões necessárias) do obter dictum. Ao contrário da ratio decidendi, que possui
força vinculativa e deve ser obedecida no futuro, o obter dictum tem força meramente
persuasiva. Segundo Tucci três são os elementos que integram a ratio decidendi: “a) a
indicação dos fatos relevantes (statement of material facts); b) o raciocínio lógico-jurídico da
decisão (legal reasoning); e c) o juízo decisório (judgement).”963 Assim, o que deve nortear a
959 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juá, 2006, p. 58-59. 960 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 43. 961 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 342. 962 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 342. 963 TUCCI, Rogério Cruz e. Precedente jurisdicional como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 175.
264
interpretação em situação posterior é a tese jurídica suficiente para decidir o caso (rule of law)
e não a parte dispositiva da decisão.
Ressalta-se que, em decorrência da forma como ocorre a seleção para publicação dos
precedentes, existe uma certa flexibilidade no funcionamento da regra do precedente. Nesse
sentido, David aponta que:
[...] 75% dos acórdãos da Câmara dos Lordes, 25% dos acórdãos do Court of Appeal e unicamente 10% das decisões do High Court of Justice são publicados. Torna-se, assim, possível eliminar um grande número de decisões que não são dignas de se considerarem como precedentes. Evita-se, por outro lado, que os juristas ingleses sejam submersos pela avalanche de precedentes.964
Faz-se necessário esclarecer que a temática dos direitos humanos provoca impacto
sobre os precedentes judiciais na Inglaterra, uma vez que, de acordo com a Convenção
Européia de Direitos Humanos, não se pode considerar que o precedente tenha caráter
obrigatório, conforme aponta Souza. Apesar de esse fato se constituir em uma revolução no
instituto do precedente jurisdicional, na prática, existe uma relutância em sua aplicação por
alguns tribunais:
O próprio Direito interno inglês, com redação do Human Rights Act de 1988, reconhece essa nova prática. Segundo o Human Rights Act, é contrária ao Direito a decisão judicial que é inconsistente em relação à Convenção Européia dos Direitos Humanos. Isto empresta às cortes inglesas uma grande liberdade para ignorar os antigos precedentes quando a matéria do caso em julgamento diz respeito à Convenção Européia de Direitos Humanos.965
Segundo David, outro ponto de divergência entre o sistema anglo-americano e o
sistema romano-germânico diz respeito ao interesse pelo processo e pelas normas
substantivas, enquanto existe uma tendência de os juristas romanos se direcionarem para as
normas substanciais do direito (substantive law), colocando o processo em um segundo
plano. O jurista inglês, que é o juiz prático, uma vez que não é professor nem estudou em
universidades, aponta que o direito não é baseado em princípios, mas é um direito de
processualistas e de práticos, pois, para esse jurista, de nada adianta a existência de princípios
ou direito se não há como aplicá-los. O autor aponta que o processo inglês é caracterizado por
sua oralidade, já que não existem autos do processo, e todos os atos processuais devem ser
feitos oralmente em audiência, com o intuito de que o júri possa formar sua opinião. Não é
964 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 344. 965 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 84.
265
necessário estabelecer normas minuciosas para o processo e para as provas, o importante é a
observância da lealdade no processo:
A idéia de que o acusado deve ter seu um fair trial (ser tratado com lealdade no processo), a idéia de que não se pode estatuir senão observando as formas de um processo regular (the rules of natural justice) são idéias centrais do direito inglês, direito concebido sob um aspecto essencialmente contencioso, mais preocupado com a administração da justiça do que propriamente com a justiça em si mesma. As duas coisas não podem evidentemente ser dissociadas. O estado do espírito inglês, contudo, merece ser notado. Segue um processo bem regulado, cheio de lealdade – pensa o jurista inglês – e chegarei quase seguramente a uma solução de justiça. O jurista inglês pensa, pelo contrário que é necessário dizer ao juiz qual é a solução de justiça, e se o juiz conhece esta solução, não se deve impedi-lo de chegar a ela, regulamentando com excessiva minúcia o processo e as provas.966
Ao estudar o processo inglês na atualidade, David assevera:
O processo seguido nos tribunais de justiça, por exemplo, continua legalmente a ser o que era seguido quando era normal existir um júri, embora a presença do júri seja hoje, especialmente em matéria civil, excepcional. O processo é cuidadosamente preparado de modo que os pontos de desacordo entre as partes surjam claramente e sejam fixados nas questões em relação às quais se poderia responder sim ou não [...] O processo conclui-se por uma audiência pública, the day in Court, em que os pontos de desacordo vão ser elucidados por uma técnica de prova inteiramente orais – audição de testemunhas, que são interrogadas sucessivamente pelos advogados das duas partes (examination-in-chief e cross-examination): não existe qualquer auto do processo; tudo deve ser feito oralmente em audiência, para que um júri, outrora inculto, possa formar sua opinião. A audiência não deve ser interrompida e a decisão sobre a questão deve ser imediatamente tomada: o júri, se houvesse deveria ser libertado o mais cedo possível dessas funções. Certas provas devem ser excluídas, quer em matéria civil, quer em matéria criminal, porque seriam suscetíveis de produzir um efeito impróprio sobre esses jurados ignorantes que têm de supor-se sempre presentes.967
Apesar de o precedente jurisdicional nos Estados Unidos desempenhar papel
importante, a extensão do stare decisis não é a mesma nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Embora os Estados Unidos pertençam à família anglo-americana, ao estudar a história do
direito americano, observa-se que ele tem características próprias que o fazem diferir do
direito inglês. Dentre essas peculiaridades do direito americano podem-se enumerar as
seguintes: a adoção do federalismo, a descentralização do Poder Judiciário e a existência de
uma Constituição escrita e de códigos.
O direito dos Estados Unidos Unidos da América pode ser estudado em três fases:
primeira fase, de 1800 até a Guerra Civil (1861-1865); segunda fase, da Guerra Civil até a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918); e terceira fase, da Primeira Guerra até a atualidade. A 966 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 323. 967 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1996, p. 322.
266
primeira fase é marcada pelo questionamento acerca da possibilidade de aplicação do direito
da Inglaterra após a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América. Os
americanos não aceitavam a idéia de absorção do direito consuetudinário inglês. No período
de 1776-1820, houve a formação de uma jurisprudência tipicamente americana, bem como
houve o surgimento de uma corrente que não valorizava o precedente jurisdicional e
incentivava a criação de inúmeras leis pelos juízes. Enfatiza-se, ainda, nessa primeira fase,
que, tendo em vista que era vedado ao Governo Federal a aplicação das leis em todo o
território, visto que os poderes da União e dos Estados eram ilimitados, não foi possível a
uniformização das leis nem mesmo a formação de um sistema legal americano.968
Na segunda fase, houve uma preocupação para tentar solucionar o problema do
elevado número de precedentes jurisdicionais formulados pelos tribunais federais e estaduais.
Com o objetivo de solucionar esse problema, surgiu o National Report System, que no
decorrer de quinze anos, tendo em vista o número de casos registrados, acabou por dificultar a
pesquisa.969
Na terceira fase, houve novamente o interesse pela codificação com o intuito de
solucionar o elevado número de precedentes, o que não durou muito tempo. Streck esclarece
que “[...] o fracasso do movimento pela codificação pode ser debitado ao fato de que os
princípios gerais do Direito são sempre os mesmos, e os acidentes mudam em função de
fatores de ordem econômica, social, política etc. Portanto, não havia benefício em codificar as
decisões judiciais, chamadas precedentes, uma vez que, constatando os tribunais a
necessidade da reformulação da lei, ela seria feita pelo próprio Poder Judiciário.”970
Apesar da resistência dos americanos na adoção do direito inglês, a common law
acabou sendo adotada pelos Estados Unidos:
De qualquer sorte, a common law triunfou nos Estados Unidos da América, não há necessidade de nos interrogarmos sobre as razões que explicam o triunfo da common law, a língua inglesa e o povoamento originalmente inglês dos Estados Unidos, além das obras de juristas magistrais, entre os quais Kent, Blackstone e Story, contribuíram de forma decisiva para que os Estados Unidos da América adotassem essa modalidade de sistema jurídico.971
968 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 50-51. 969 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 51-52. 970 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 52. 971 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 53-54.
267
Nessa linha de idéias, a nação norte-americana, apesar de filiada ao sistema da
common law, dele se afastou sob vários aspectos, formando um sistema próprio e híbrido. Os
Estados Unidos, ao contrário da Inglaterra, possuem uma constituição escrita e não adotam o
sistema parlamentarista. Organizados sob a forma federativa desde 1789, adotaram o princípio
da separação de funções. Cabe ao Congresso, formado pelo Senado e pela Câmara dos
Representantes, o poder de legislar constitucionalmente. Isso, porém, não impediu que às
decisões recursais, federais ou estaduais fosse outorgado o caráter vinculativo, devendo ser
adotado pelas cortes inferiores.
A organização judiciária nos Estados Unidos é composta pela Trial Courts of Inferior
Jurisdiction, dentre as quais se destacam a Justice of the peace courts (Justiça de Paz),
Municipal Courts, que também recebe outras denominações, como Traffic Court, City Court,
Night Court e Police Court. Ainda cada Estado tem Trial courts of general jurisdiction
denominados de County Court (Tribunais de Condado), metade dos Estados têm Intermediate
Appelate Court (Tribunal de apelação intermediário) e todos têm um Final Court of Appeals
(Tribunal Supremo). No âmbito federal, existem as Constitucional Courts, constituídas de U.S
District Court (primeiro grau de jurisdição), U.S (Circuit) courts of Appeal e U.S Supreme
court.972
Em decorrência de uma política federativa descentralizada, o sistema norte-americano
apresenta grande complexidade. Nos Estados Unidos, coexistem duas estruturas jurisdicionais
e legislativas independentes: a federal e a estadual. Não há hierarquia entre elas, motivo pelo
qual as decisões federais, de um modo geral, não constituem precedentes vinculantes para os
juízes estaduais:
Em outras palavras, no que tange à doutrina do precedente, como foi visto, a regra é independência entre as várias “Justiças”, e uma decisão judicial de uma corte superior só é vinculante para as cortes inferiores do seu próprio sistema.
[...] Todavia, não se pode deixar de lembrar que as decisões de outros Estados, sobretudo das suas Court of Ultimate Appelation, podem ter – e freqüentemente têm – forte poder de persuasão.973
Após realizado um estudo acerca da formação da civil law e da common law em nível
de macro-comparação, para melhor aprofundamento do tema em estudo, passa-se a investigar
o efeito vinculante no sistema romano-germânico e o instituto do precedente jurisdicional no
972 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 92-95. 973 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 101.
268
sistema anglo-americano, com o intuito de examinar as semelhanças e divergências entre
esses dois institutos. Inicialmente, cumpre ressaltar a posição esposada por Stiefelmann Leal.
O autor destaca que, apesar de diversos autores apontarem que existe identidade entre o efeito
vinculante e o stare decisis, em sua concepção, existem diferenças conceituais entre esses dois
institutos.974
A primeira diferença apontada por Stiefelmann Leal diz respeito à finalidade desses
institutos. Enquanto o efeito vinculante foi criado no âmbito do controle concentrado de
constitucionalidade para evitar a recalcitrância dos demais “poderes” e órgãos do Estado, o
stare decisis tinha por objetivo atribuir estabilidade na regulação das relações sociais. A
segunda diferença se relaciona com a abrangência desses institutos, tendo em vista que, se por
um lado, stare decisis visa a uma coerência interna, por outro lado, o efeito vinculante tem
abrangência externa, em relação ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo ou à
administração pública. A última diferença diz respeito ao vínculo jurídico entre a
jurisprudência firmada e os destinatários do instituto, já que, como efeito vinculante, é de
caráter obrigatório. O precedente jurisdicional permite, em alguns casos, aos demais órgãos
do Poder Judiciário se afastarem do precedente:
Não restam dúvidas de que o efeito vinculante impõe liame de caráter obrigatório, paranormativo, aos órgãos e poderes a que se aplica. No caso do stare decisis, embora fale em vinculação de precedentes (binding precedents), aos juízes inferiores se reconhecem mecanismos para sua superação (overruling). Assim, cabe aos demais órgãos do Poder Judiciário, mediante técnicas decisórias específicas – tais como a superação antecipada (antecipatory overruling) ou a superação implícita -, desgarrarem-se dos precedentes da Suprema Corte e decidirem casos de maneira diversa.975
Assim, em caso de hierarquia das cortes envolvidas na resolução do conflito, o
precedente jurisdicional possui caráter obrigatório. Caso contrário, apesar de não possuir
caráter obrigatório, o precedente jurisdicional possui caráter persuasivo. Porém, mesmo no
caso do precedente obrigatório, o sistema da common law desenvolveu técnicas na aplicação
do precedente que possibilitam a não aplicação do precedente entre os quais se podem citar as
seguintes: distinguinshing (distinção entre os casos), alterações das circunstâncias em que o
precedente foi elaborado, decisão per incuriam (ignorância de um precedente obrigatório),
974 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 128. 975 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 128.
269
existência de decisões contraditórias de mesma hierarquia, overruling (revogação de
precedente) e reversal (reforma de uma decisão de um juízo a quo por um juízo ad quem).976
Nessa linha de idéias, Penna aponta que o precedente jurisdicional possui maior
flexibilidade do que o efeito vinculante que não possui limitação em sua aplicação e acaba por
transformar os juízes em legisladores (constitucional). Nessa perspectiva, Penna assevera:
“[...] logo o grau de coerção ou persuasão dos precedentes, mesmo no sistema anglo-
americano, onde o direito, diversamente do que ocorre entre nós, é enunciado e desenvolvido
por intermédio de decisões judiciais, encontra limitações e não se equipara ao efeito
vinculante emoldurado pelas recentes normas já editadas e a proposta sumular.”977
Com relação à eficácia do precedente que enuncia uma nova regra no sistema da
common law, ele pode ter efeito retroativo ou prospectivo. Quanto ao efeito retroativo, a
aplicação do precedente pode ser retroativa pura ou retroativa clássica. Sobre o tema, Souza
esclarece:
A diferença é que, na aplicação retroativa pura, o precedente novo será aplicado a todos os fatos que tiveram lugar antes e depois dele, incluindo aqueles que já foram objeto de sentença transitada em julgado. Enquanto que, na aplicação retroativa clássica (a mais empregada), o precedente novo será aplicado aos fatos que tiveram lugar antes e depois dele, excluindo-se aqueles que já foram objeto de sentença transitada em julgado e as situações em que tenha havido decadência ou prescrição.978
Com relação à aplicação do precedente revogador na Inglaterra, a aplicação retroativa
clássica é mais utilizada, e, de modo geral, o precedente tem efeitos retroativos. Por outro
lado, nos Estados Unidos, apesar de a regra ser aplicação do precedente revogador, têm
ocorrido variações na aplicação e, por diversas vezes, ocorre a aplicação prospectiva:
Na realidade, no Direito americano, seja na Suprema Corte seja em diversos Estados dessa Federação, de modo diverso do que ocorre na Inglaterra, freqüentemente o precedente judicial revogador é aplicado prospectivamente, havendo duas formas de os tribunais americanos decidirem sobre a eficácia temporal de um precedente novo: a) ao anunciar a nova regra, indicar simultaneamente, a partir de quando aplicá-la a outros casos como ocorreu Durham v. United States 214 F. 2de 862 (1954); e b) deixar a questão para a corte onde, porventura, esta questão, no futuro, seja controvertida que, aliás, é o que normalmente ocorre.979
976 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 142-152. 977 PENNA, Saulo Versiani. A decisão de efeito vinculante na teoria do processo jurídico contemporâneo: sua legitimidade sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, 2004, p. 122. 978 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 160. 979 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 170-171.
270
Por sua vez, a aplicação prospectiva visa à manutenção na confiança nos precedentes
jurisdicionais, haja vista que, no sistema da common law, as condutas das pessoas são
baseadas nas decisões dos tribunais que afirmam o que é o Direito. Nesse diapasão, pode
ocorrer a aplicação prospectiva pura, aplicação prospectiva clássica e aplicação prospectiva a
termo. Enquanto que, na aplicação prospectiva pura, o novo precedente somente será aplicado
aos fatos ocorridos depois de sua elaboração, na aplicação prospectiva clássica ele é aplicado
tanto aos fatos ocorridos após sua criação como aos fatos que deram origem ao precedente.
Por fim, na aplicação prospectiva a termo, determina-se o dies a quo para sua aplicação.980
Apesar de os tribunais ingleses se utilizarem de aplicação retroativa do precedente, de
modo excepcional, tem-se discutido a possibilidade de aplicação prospectiva do precedente
revogador e, em alguns casos, tem-se atribuído efeito prospectivo ao precedente revogador,
como ocorre na área do Direito Administrativo.981 Nos Estados Unidos, o precedente
revogador é utilizado prospectivamente nos seguintes casos:
a) Em casos penais, quando o Direito Judicial estende a sanção penal a condutas que não estavam criminalizadas no Direito anterior. Nestes casos, os critérios para determinar se as garantias constitucionais no campo do processo penal vão ser aplicadas retrospectivamente exige a consideração destes três critérios: a) os fins a que servem os novos padrões; b) a extensão da confiança que têm os operadores jurídicos nos velhos padrões; e c) o efeito que teria na Administração de Justiça uma aplicação retroativa dos novos padrões.
b) Em processos cíveis contra funcionários que atuaram de acordo com uma lei posteriormente declarada inconstitucional.
c) Em casos cíveis contra partes que celebram um contrato ou adquirem uma propriedade confiando numa decisão (que posteriormente é derrogada) ou em uma lei declarada posteriormente inconstitucional.
d) Para proteger as pessoas cujos atos não estavam expostos à responsabilidade civil antes da mudança da case law.982 (grifos do autor)
Outrossim, é de bom alvitre salientar que, enquanto os países filiados a common law
fazem uso da regra do precedente jurisdicional (stare decisis) no controle de
constitucionalidade, os países da civil law adotam o efeito vinculante, o que acaba por atribuir
às decisões dos tribunais força de lei. Sobre o efeito vinculante, Cruz esclarece que:
O efeito vinculante, tal como admitido pela “Jurisprudência de valores” concede às decisões de controle abstrato de inconstitucionalidade força de lei, ou seja, transforma-as em discursos normativos de fundamentação, com todas as conseqüências já examinadas.
980 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 162. 981 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 168. 982 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 172.
271
Dessa forma, tal efeito passaria a obrigar órgãos e autoridades que não haviam integrado o processo, fazendo com que se adaptassem a uma postura fixada pela Corte Constitucional. Sob essa concepção, o efeito vinculante não pode ser admitido. Para que possa ser aceito no Estado democrático de direito, ele deve ater-se à parte dispositiva da decisão, de modo a não haver distinção entre os mesmos e os limites objetivos da coisa julgada.983
Desse modo, o efeito vinculante abarca os fundamentos da decisão, ou seja, vai além
da parte dispositiva, conforme assevera Stiefelmann Leal. Esse fato constitui-se em uma
incoerência, uma vez que órgãos e autoridades que não participaram da construção dessa
decisão terão de acatá-la com força de lei:
[...] Assim, seu objeto transcende o decisum em sentido estrito, alcançando os seus fundamentos, determinantes, a ratio decidendi subjacente ao julgador. Da vinculação aos fundamentos determinantes da decisão decorre, a exemplo dos demais países que adotam o efeito vinculante, a vedação a seus destinatários de reproduzir em substância o ato declarado inconstitucional, de manter outros atos de conteúdo semelhante e de adotar via interpretativa diversa da acolhida nos julgados do Supremo Tribunal Federal em sede de controle principal de constitucionalidade.984
Apesar de o efeito vinculante ter sido adotado por diversos países filiados à família
romano-germânica, esse fato constitui-se em incoerência com esse sistema onde vigora o
primado da lei, constituindo as decisões anteriores como meramente persuasivas. Dentre os
países filiados ao sistema romano-germânico que adotaram o efeito vinculante, citam-se os
seguintes: Áustria, Alemanha, Espanha, França, Portugal e Itália. Essa forma de vinculação é
denominada de vinculação hierárquica, visto que é uma imposição dos tribunais superiores,
constituindo-se em forma de interferência na independência da atividade jurisdicional:
[...] Observe-se que a vinculação representa forma excepcional de manifestação do poder hierárquico, uma vez que implica a possibilidade de interferir sobre a decisão inferior mesmo antes de este ser objeto de recurso. Trata-se, pois, de exceção ao princípio da independência jurisdicional. A posição hierárquica, contudo, não é condição suficiente a garantir a vinculação, visto que nem toda decisão superior é dotada de autoridade. Normalmente, apenas os tribunais superiores, ou mesmo apenas a Corte Constitucional, gozam dessa prerrogativa.985
983 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática, 2004, p. 257. 984 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 150. 985 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 15.
272
A Áustria, fundamentada nas idéias de Kelsen, adotou o controle concentrado de
constitucionalidade. A Corte Constitucional Austríaca teve como predecessor o Tribunal do
Império (Reichsgericht), criado em 21 de dezembro de 1867, e foi substituído em 25 de
janeiro de 1919, por uma Assembléia Nacional Provisória. A Constituição de 1920, de 1º de
outubro de 1920, deu à jurisdição constitucional sua forma definitiva. As decisões da Corte
Constitucional austríaca, que tem competência para realizar o controle abstrato e concreto de
constitucionalidade, possuem efeito vinculante em relação aos tribunais e órgãos
administrativos.986 Caso a Corte Constitucional decrete a anulação da lei, faz-se necessária a
publicação da decisão no boletim das Leis Federais, para que ela cesse seus efeitos na data de
sua publicação (princípio da não retroatividade das leis). Se entender necessário, a Corte
Constitucional poderá, no prazo máximo de um ano, retardar os efeitos da decisão de
anulação.987
Por sua vez, a jurisdição constitucional Alemã foi criada pela Lei Fundamental de 8 de
maio de 1949. O Tribunal Constitucional foi instituído pela Lei de 12 de março de 1951. A
Alemanha também adotou o modelo de controle de constitucionalidade concentrado
concebido por Kelsen e adotado inicialmente pela Áustria. O efeito vinculante foi introduzido
no ordenamento jurídico alemão por meio do art. 94.2 da Lei Fundamental de Bonn. Além
disso, o § 31, n. 1 da Lei orgânica do Tribunal Constitucional Federal alemão também prevê a
vinculação, conforme aponta Stiefelmann Leal:
(1) As decisões do Tribunal Constitucional Federal vinculam os órgãos constitucionais da federação e dos estados, assim como todos os órgãos judiciais e autoridades administrativas.
(2) Nos casos do § 13, n. 6, 11, 12, 13, a decisão do Tribunal Constitucional tem força de lei. Isso vale também nos casos do § 13, n. 8, se o Tribunal Constitucional Federal declara uma lei compatível ou incompatível com a Lei Fundamental, ou nula, a parte dispositiva da decisão deve ser publicada, pelo Ministro Federal da Justiça, no Diário Oficial Federal. O mesmo vale para a parte dispositiva da decisão de que trata o §13, nº. 12 e 14.988
Assim, o efeito vinculante adotado na Alemanha tem por objeto a ratio decidendi, ou
seja, o efeito vinculante alcança não apenas o dispositivo, mas também os fundamentos
jurídicos da decisão e tem como destinatários todos os órgãos e poderes do Estado, com
exceção do próprio Tribunal Constitucional. De modo geral, a constatação da
inconstitucionalidade de um dispositivo legislativo deve acarretar sua anulação, que
986 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 172. 987 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 52. 988 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 118 e 119.
273
normalmente terá efeito retroativo. Porém, com o intuito de evitar a anulação pura e simples
da lei, a partir de 1955, o Tribunal passou a utilizar-se da interpretação conforme a
constituição. Nessa perspectiva, mantém-se a lei em vigor com a condição de que sua
interpretação seja consoante àquela dada pelo juiz constitucional. A partir de 1958, o Tribunal
Constitucional passou a utilizar-se da declaração de constitucionalidade sem a subseqüente
anulação. E, posteriormente, adotou uma outra técnica, que é a anulação diferida, ou seja, o
Tribunal não anula a lei, concedendo prazo para o legislador modificar a lei em razão de sua
precariedade, para tanto, concede um prazo fixo.989
A jurisdição constitucional espanhola foi instaurada por meio do denominado
“Tribunal das Garantias Constitucionais”; o Tribunal Constitucional somente foi instalado em
12 de julho de 1980. O procedimento perante o Tribunal constitucional é regido pela Lei
orgânica de 1979, e de modo supletivo, pela Lei orgânica do “Poder Judiciário” e pelas
normas processuais. Na Espanha, a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (arts. 1º e 13)
estabelece que as decisões de seu Pleno têm caráter vinculante, ao contrário do que acontece
com as decisões de suas salas (órgãos fracionários da Corte). O apartado 1 do art. 38
estabelece que a aplicação do efeito vinculante a todos os poderes públicos, exigindo, para
tanto, a publicação da integralidade da sentença no Boletim Oficial do Estado. O referido
dispositivo assim estabelece:
Art. 38 1. As sentenças proferidas em procedimentos de inconstitucionalidade terão valor
de coisa julgada, vincularão a todos os Poderes Públicos e produzirão efeitos gerais desde a data de sua publicação no Boletim Oficial do Estado.990
Porém, Stiefelmann Leal adverte que a adoção do efeito vinculante pela Alemanha e
Espanha não levou a uma diminuição do número de processos. Pelo contrário, houve um
aumento considerável da quantidade de processos distribuídos para os Tribunais
Constitucionais desses países:
A adoção do efeito vinculante na Alemanha, apesar do menor índice populacional e extensão, não impediu que o número de processos submetidos ao juízo do Tribunal Constitucional Federal praticamente dobrasse entre os anos de 1990 e 1995. Enquanto no ano de 1990 foram distribuídos 3.309 processos, em 1994, a Corte Tedesca recebeu 5.234 feitos e, em 1995, 5.911.
989 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais, 2004, p. 72. 990 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 150.
274
Por seu turno, o Tribunal Constitucional da Espanha, cujas decisões também produzem efeito vinculante, teve aumentada em aproximadamente 700% a quantidade de processos distribuídos entre os anos de 1985 e 2003. Em 1985, foram distribuídos 1.266 feitos, ao passo que em 1994 deram entrada 4.255 processos na Corte e, em 1996, 4.810. Já em 1989, o Tribunal recebeu 5.652 processos, e, em 2003, foram 7.878 feitos. Quanto às decisões, o Tribunal expediu, em 1999, 5.461 julgados definitivos e, em 2003, proferiu 7.259.991
O Conselho Constitucional francês foi instituído em 1958. Segundo a alínea 2 do art.
62 da Constituição Francesa, ela é responsável pela atribuição do efeito vinculante às decisões
do Conselho Constitucional em relação aos demais poderes e autoridades administrativas e
jurisdicionais. Conforme aponta Stiefelmann Leal, o dispositivo tem a seguinte redação: “[...]
2. As decisões do Conselho Constitucional não são suscetíveis de recurso. Impõem-se aos
poderes públicos e a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.”992 A partir da
decisão Loi d’orientation de 1962, o efeito vinculante alcança os fundamentos determinantes
das decisões do Conselho Constitucional. Do mesmo modo como ocorre na Alemanha, não
está o próprio Conselho Constitucional adstrito aos fundamentos por ele anteriormente
aduzidos.
Apesar de a Constituição italiana de 27 de dezembro de 1947 ter criado um sistema de
jurisdição constitucional, a Corte Constitucional somente foi instalada oito anos mais tarde,
tendo sua primeira sessão em 14 de julho de 1936.993 Na Itália, o Tribunal Constitucional tem
competência para realizar o controle de constitucionalidade em abstrato e em concreto. Por
sua vez, o efeito vinculante decorre dos arts. 134 e 136 da Constituição, caput:994
Art. 134 - A Corte Constitucional julga:- as controvérsias relativas à legitimidade constitucional das leis e dos atos com força de lei, do Estado e das Regiões;- os conflitos de atribuição entre os poderes do Estado e aqueles entre o Estado e as Regiões, e entre uma e outra região;- as acusações movidas contra o Presidente da República e os Ministros, segundo a Constituição. Art. 136 - Quando a Corte declara a ilegitimidade constitucional de uma norma de lei ou de um ato com força de lei, a norma perde a sua eficácia a partir do dia sucessivo à publicação da decisão. A decisão da Corte é publicada e comunicada às Câmaras e aos Conselhos Regionais interessados, a fim de que, se se julgar necessário, tomem providências nas formas constitucionais.995 (grifos nossos)
991 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 180. 992 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 125. 993 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais, 2004, p. 77. 994 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 203. 995 ITÁLIA. Constitucional italiana de 1948. Disponível em: <//www.eco.com.br/cidadania/p2tit6.asp>. Acesso em: 07/06/2007.
275
Portugal, assim como o Brasil, adota o sistema misto de controle de
constitucionalidade. A implementação da jurisdição constitucional em Portugal tem passado
por períodos de evolução desde 1911. Inicialmente, cabia à Assembléia Nacional realizar o
controle concentrado de constitucionalidade. Por sua vez, em 1974, o controle de
constitucionalidade abstrato foi confiado, de forma provisória, ao Conselho de Estado. Já o
sistema de controle misto de constitucionalidade era de competência dos tribunais, do
Conselho de Revolução (extinto em 1982) e da Comissão Constitucional, com a função de
Tribunal Constitucional. Com a extinção do Conselho da Revolução, o controle de
constitucionalidade passou a ser realizado pelo Tribunal constitucional. A função precípua
desse Tribunal está prevista na Constituição portuguesa (art. 277) e na Lei do Tribunal
Constitucional (art. 6º), e se configura na fiscalização da constitucionalidade de normas
jurídicas.996
Em sede de controle abstrato, as decisões do Tribunal Constitucional têm força de lei e
vinculação geral. Por sua vez, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma produz
efeitos ex tunc (retroativo). A Constituição portuguesa estabelece, em seu artigo 282, n. 3, que
a declaração de inconstitucionalidade não modifica nem revoga as decisões transitadas em
julgado. Também a Constituição, em seu art. 282, prevê a possibilidade de limitação dos
efeitos de declaração de inconstitucionalidade com fundamento em razões de eqüidade, ou de
interesse público de excepcional relevo, quando a segurança jurídica assim o exigir.
Levando-se em consideração que Portugal não faz uso da regra do stare decisis do
sistema anglo-americano e, com o intuito de articular os controles de constitucionalidade
concentrado e difuso, Portugal adotou o mecanismo de generalização. Após decisão reiterada
de declaração de inconstitucionalidade, em três casos concretos, o Tribunal Constitucional
poderá fixar, com força geral, a inconstitucionalidade de norma por meio de um processo de
fiscalização concentrada, denominado de processo de generalização, nos termos do art. 281, n.
3 da Constituição Portuguesa, que assim dispõe: “O Tribunal Constitucional aprecia e declara
ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer
norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos.”997
Faz-se necessário salientar que no processo de generalização somente as decisões de
inconstitucionalidade de normas é que possuem efeito vinculante. Nessa perspectiva, não se
996 ARRUDA, Paula. Efeito vinculante: ilegitimidade da jurisdição constitucional estudo comparado com Portugal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 17. 997 ARRUDA, Paula. Efeito vinculante: ilegitimidade da jurisdição constitucional estudo comparado com Portugal, 2006, p. 17.
276
atribui força obrigatória nas decisões relacionadas à declaração de constitucionalidade de lei.
Ademais, não existe restrição quanto ao conteúdo material ou processual das normas,
podendo as normas de qualquer natureza ser objeto do processo de generalização.
Ao fazer um estudo comparativo entre o efeito vinculante no Brasil e o processo de
generalização em Portugal, Arruda aponta diferenças entre esses dois institutos e, ao final,
conclui pela ilegitimidade da jurisdição brasileira, que não possibilita uma deliberação
discursiva entre os controles de constitucionalidade concentrado e difuso:
Portugal adotou o mecanismo de generalização dos efeitos controle difuso para o controle concentrado, objetivando resolver os inconvenientes da combinação dos sistemas de controle de constitucionalidade existentes nos países de tradição romanística, ou seja, a fim de evitar divergência nas decisões dos tribunais a quo, devido à ausência do stare decisis, que significa a vinculação dos precedentes jurisprudenciais. Por seu turno, o Brasil instituiu no ordenamento jurídico o efeito vinculante, objetivando impor as decisões do Supremo Tribunal Federal por meio de uniformização jurisprudencial, assegurando o uso de reclamação para preservar a autoridade do seu julgado constitucional. Em Portugal, o objetivo do processo de generalização é atribuir força obrigatória geral às decisões que declaram a inconstitucionalidade em três casos concretos, com base nos mesmos argumentos utilizados nesses casos, para que seja superado o inconveniente de limitação dos efeitos inter partes. No Brasil, o objetivo do efeito vinculante é impor o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal aos juízes a quo.998
Em decorrência disso, Arruda assevera que o efeito vinculante constitui-se em
obstáculo à argumentação jurídica e acaba por dificultar uma interação entre aplicação da
norma e a análise do caso concreto, motivo pelo qual entende que a utilização do efeito
vinculante não compatibiliza de maneira adequada as duas formas de controle de
constitucionalidade:
Com efeito, admitir que o efeito vinculante impõe entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, dispensando o diálogo entre os controles de constitucionalidade concentrado e difuso, significa concordar que a atuação do controle de constitucionalidade fica comprometida, pelo afastamento da interação entre aplicação da norma e análise do caso concreto, que identificará os reais conflitos que precisam ser dirimidos. A ausência de diálogo entre os controles de constitucionalidade concentrado e difuso representa a atuação autoritária do Supremo Tribunal Federal atestando ilegitimidade da jurisdição constitucional no paradigma pós-positivista.999
998 ARRUDA, Paula. Efeito vinculante: ilegitimidade da jurisdição constitucional estudo comparado com Portugal, 2006, p. 95-96. 999 ARRUDA, Paula. Efeito vinculante: ilegitimidade da jurisdição constitucional estudo comparado com Portugal, 2006, p. 119.
277
Por fim, o Brasil, através da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004,
atribui efeito vinculante às decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de
constitucionalidade. É mister salientar que o efeito vinculante foi introduzido, inicialmente,
no ordenamento jurídico brasileiro através da emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de
1999.
A ação declaratória de constitucionalidade foi idealizada por Ives Gandra Filho. A
Emenda Constitucional n. 3/1993 resultou do substitutivo de autoria do deputado Benito
Gama, apresentando perfil diferenciado da proposta original, atribuindo efeito vinculante à
decisão que reconheça a constitucionalidade de lei. Streck esclarece que vários doutrinadores
se manifestaram por sua inconstitucionalidade:
Várias vozes se levantaram contra a inovação constitucional. A expressiva maioria dos doutrinadores aduziu ser inconstitucional a nova ação. O próprio Ives Gandra (1994, p. 123), ao ver que sua criação foi “desvirtuada”, tratou, imediatamente, de se livrar do “filho bastardo”: “Considero ser de manifesta inconstitucionalidade tal emenda. Ao ter surgido este tipo de ação para atalhar o perigo da avocatória, vi, infelizmente, minha proposta adulterada pelo eminente amigo e deputado Benito Gama, em cuja concepção não tive qualquer participação. Resisto a qualquer ‘investigação de paternidade’. Este filho bastardo não é meu, apesar de ter adotado o constituinte o mesmo nome que daria ao filho que não gerei.” (destaque do autor).
Além disso, Gandra (ibidem, p. 128) sustenta que “a força vinculante atribuída pela nova redação do art. 103, a decisão que reconheça a constitucionalidade da lei ou ato federal por essa via, retira, dos demais órgãos do Judiciário e do próprio Supremo Tribunal Federal, a legitimidade ativa para deflagrar novo julgamento a respeito, impedindo que questões individuais sejam suscitadas ou subam à superior instância, pois estarão sumariamente decididas, sem o exaurimento do devido processo legal e sem o exercício da ampla defesa e do contraditório.”1000 (grifos do autor)
Apesar de em 2004 ter ocorrido uma redução do número de processos distribuídos, a
introdução do efeito vinculante no ordenamento jurídico brasileiro não apresentou efeito
minimizador com relação ao crescimento quantitativo de demandas propostas perante o
Supremo Tribunal Federal; o que houve foi um aumento de reclamações:
No Brasil, os números também não revelam, a partir da adoção do efeito vinculante, abrandamento no volume de processos em curso perante o Supremo Tribunal Federal. Em 1994, foram julgados pela Corte 28.221 processos e recebidos 25.868. Em 2000, o Supremo Tribunal Federal decidiu 86.138 feitos e teve distribuídos 90.839. No ano de 2003, foram julgados 107.867 processos e distribuídos 109.965.
1000 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 138.
278
É certo, porém, que, no ano de 2004, houve redução. O número de processos distribuídos caiu, alcançando a marca de 69.171 feitos, tendo sido apreciados 101.690.1001
A pesquisa aponta que países filiados ao sistema romano-germânico têm atribuído a
vinculação às decisões dos tribunais constitucionais. Porém, cumpre ressaltar que, além de
contrariar o sistema normativo adotado pelo Estado democrático de direito, uma vez que as
súmulas não se submetem à discursividade no âmbito da processualidade, elas se mostram
incompatíveis com o sistema romano-germânico. Essa também é a posição sustentada por
Maciel Júnior, que aponta a incoerência das súmulas vinculantes com o ordenamento jurídico
brasileiro, que tem seu sustentáculo na lei, visto o Brasil se filiar ao sistema romano-
germânico. O autor destaca, entre outros aspectos, que o efeito vinculante petrifica as
decisões, tendo em vista que obstaculiza a revisibilidade da jurisprudência.1002
Pelo estudo realizado, infere-se que, apesar das peculiaridades de cada sistema
jurídico, se observa uma aproximação entre a família romano-germânica e a família anglo-
americana. De um lado, existe uma tendência à normatização nos países filiados à common
law, apesar de o precedente continuar desempenhando papel de destaque e se constituir na
principal fonte do direito. Por outro lado, os países da civil law, como Áustria, Alemanha,
França, Espanha, Portugal e Brasil, têm admitido a vinculação, em graus variados, em
especial das decisões de natureza constitucional, que, por sua vez, passam a adquirir força de
lei, com eficácia geral e efeitos retroativos. Desse modo, a autoridade das decisões dos
tribunais, apesar de desempenhar papel de fonte secundária, vem aumentando sua importância
nos países da família romano-germânica. Porém, é importante destacar que a doutrina do stare
decisis encontra limitações, visto que os países filiados ao sistema da common law prevêem
técnicas que possibilitam a não aplicação do precedente, ao contrário do efeito vinculante que
impõe, de forma autoritária aos juízes de instâncias inferiores, a adoção das decisões dos
tribunais superiores.
A pesquisa comparativa realizada em termos de macrocomparação permitiu conhecer
a origem e as principais características dos sistemas jurídicos em estudo, possibilitando
apontar as semelhanças e divergências existentes entre eles. Além disso, em termos de
microcomparação, a pesquisa viabilizou examinar a autoridade dos precedentes jurisdicionais
nos países filiados ao sistema da common law, de modo especial na Inglaterra e nos Estados
1001 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 181. 1002 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. O efeito vinculativo das súmulas e enunciados. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 34, n. 134, p. 159-170, 1994.
279
Unidos. Por outro lado, analisou-se a adoção do efeito vinculante na Áustria, Alemanha,
França, Espanha, Portugal e Brasil, países filiados ao sistema romano-germânico. No próximo
subitem, estudar-se-á, de modo específico, o efeito vinculante no ordenamento jurídico
brasileiro, por meio da adoção das súmulas vinculantes.
2.2 Súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro
No presente subitem, estudar-se-ão as súmulas vinculantes no ordenamento jurídico
brasileiro. Para melhor aprofundamento da matéria, abordar-se-ão os conceitos, a
classificação, a origem, a legitimidade para provocação, o quorum para aprovação, os limites
subjetivos e objetivos, a eficácia temporal, a revogação de enunciado de súmula vinculante e a
possibilidade de reclamação, caso as autoridades vinculadas não observem a súmula. Além
disso, investigar-se-á se na emissão das súmulas há observância do devido processo
constitucional.
A palavra súmula advém do latim (summula) e quer dizer sumário ou resumo. O
termo pode ser utilizado para indicar o resumo de um julgado ou a tendência
jurisprudencial1003 de um tribunal. Nessa linha de idéias, Malta esclarece que as: “[...] súmulas
do Supremo Tribunal Federal são indicações da jurisprudência pacífica naquele mais alto
órgão do Judiciário brasileiro.”1004 Ainda sobre o tema, o autor assevera que as súmulas
constam de enunciados, que, por sua vez, são precedidos de número.
Nesse diapasão, Sifuentes assevera que “[...] no âmbito jurídico, a súmula de
jurisprudência se refere a teses jurídicas solidamente assentes em decisões jurisprudenciais,
das quais se retira um enunciado, que é o preceito doutrinário que extrapola os casos
concretos que lhe deram origem e pode ser utilizado para orientar o julgamento de outros
casos.”1005 Sifuentes também analisa as súmulas vinculantes como ato normativo da função
jurisdicional ou ato jurisdicional normativo, uma vez que elas são obrigatórias em relação aos
1003 “[...] Pode-se dizer, então, que jurisprudência como fonte do Direito positivo, é o conjunto uniforme e constante das decisões judiciais sobre casos semelhantes.” STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 83. 1004 MALTA, Christovão Piragibe. Dicionário jurídico. 6. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1988, p. 863. 1005 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 238.
280
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública, adquirindo as características de
abstração e generalidade, que são próprias das leis. Sob esse enfoque, Sifuentes acentua: “[...]
trata-se de ato típico e exclusivo da função jurisdicional, que se situa em uma zona cinzenta
da distribuição funcional entre os poderes do Estado, dado o seu caráter de obrigatoriedade e
generalidade, que o aproxima do conteúdo material da lei.”1006
Sifuentes salienta que uma das questões que se coloca com relação ao efeito
vinculante é a possibilidade de o juiz criar o direito, o que resultaria na falta de legitimidade
democrática. Sifuentes enfatiza que, apesar de, para alguns, os argumentos relacionados à
falta de legitimidade residirem na forma de escolha dos juízes que não são escolhidos pelo
povo, ela entende que esse problema não se esgota somente no sistema eletivo. Em sua
opinião, a resolução do problema da legitimidade das decisões pode ser buscada na melhoria
do relacionamento entre o Poder Judiciário e a sociedade, por meio de participação popular na
administração da “justiça” e no conhecimento, por parte da população, da estrutura e
funcionamento do Judiciário.
Porém, a legitimidade de uma decisão na pós-modernidade não se relaciona com a
forma de escolha dos juízes, mas com a maneira como essa decisão é elaborada, ou seja,
dentro do espaço procedimental processualizado. Por sua vez, deve ser possibilitada às partes
a construção participada da decisão, pois esta não se constitui em um ato solitário do juiz. De
acordo com a teoria neo-institucionalista, a decisão baseada na “dialogicidade” não significa
um momento de o juiz fazer “justiça”, mas implica a construção da decisão em uma estrutura
regida pelo processo constitucionalizado. Desse modo, a decisão não se relaciona com a
autoridade ou poder do juiz, como ocorria nos primórdios da civilização, em que a decisão,
numa concepção autoritária, era um ato criador do pretor, por meio dos interditos romanos.
Para Streck, a súmula visa legitimar o sistema jurídico-político vigente; para tanto,
busca-se uma sistematização jurisprudencial e uma coesão ideológica. A súmula constitui-se
em uma forma indireta de criação de normas gerais. Nesse sentido, o autor esclarece que “[...]
a súmula é uma espécie de resultado final de uma definição explicativa, que passa a ter força
prescritiva no âmbito jurídico. Desse modo, quando o Supremo Tribunal Federal edita uma
súmula, pode-se dizer que será norma constitucional aquilo que a súmula determinar que seja.
1006 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, 2005, p. 275.
281
Isso porque a Súmula é condição de validade das normas constitucionais às quais se
refere.”1007
Streck aponta que, numa perspectiva da dogmática jurídica, as súmulas visam à
previsibilidade, à calculabilidade e à segurança do direito. Por sua vez, para atingir esses
desideratos, elas acabam por impossibilitar a dialogicidade jurídica, uma vez que são frutos de
decisões autoritárias:
Ainda, numa palavra, cabe ressaltar que as Súmulas são típicas manifestações de discursos monológicos, que, enquanto manifestações da dogmática jurídica, visam a estabilizar os conflitos que chegam até o Poder Judiciário. A mi(s)tificação do uso das Súmulas – como já demonstrado – resulta na supressão simbólica da autonomia dos sujeitos/atores jurídicos, construindo um imaginário coercitivo e sitiante, no interior (e por intermédio) do qual os conflitos sociais são resolvidos através de “prêt-à-porter” significativos.1008
Nessa perspectiva, Streck acentua que as súmulas funcionam como mecanismo de
controle do discurso dominante nos tribunais, ou seja, constituem-se em uma forma de
controlabilidade difusa, podendo ser equiparadas ao panóptico de Jeremy Bentham, tendo em
vista que, através do controle discursivo, os tribunais impõem aos tribunais inferiores uma
única possibilidade interpretativa: “[...] Daí poder-se dizer que, enquanto a lei é uma
programação de sentido feita pelo legislador, a Súmula reprograma e uniformiza de forma
unilateral o sentido original, descontextualizado e, portanto, estereotipando o sentido da
norma.”1009
As súmulas podem ser classificadas em: súmula tautológica, súmula interpretativa,
súmula extra legem e súmula contra legem. A súmula tautológica é aquela que, com o intuito
de garantir “segurança jurídica”, destaca-se pela obviedade, já que ela diz o que a lei diz.1010
A súmula intra legem, também denominada de interpretativa, é aquela que redefine o
conteúdo da norma no limite da hermenêutica tradicional; é considerada como forma
1007 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 228-229. 1008 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 231-232. 1009 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 247. 1010 Exemplo de súmula tautológica: Súmulas 266 do Supremo Tribunal Federal. “A Súmula 266 tem a seguinte redação: não cabe mandado de segurança contra lei em tese. Seu conteúdo é o mesmo da lei: o artigo da Lei Federal n. 1.533/51, que alude a violação ou a receio de sofrê-la, não deixando margem à dúvida.” STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 171.
282
verdadeira de interpretar a lei e é a mais numerosa.1011 A súmula extra legem visa limitar o
acesso das partes aos Tribunais, uma vez que restringe a possibilidade de admissão de
recursos.1012 E, por fim, a súmula contra legem, também denominada inconstitucional, uma
vez que é de conteúdo contrário à Constituição.1013
As súmulas podem ter caráter persuasivo ou vinculante. Enquanto as súmulas
persuasivas consistem naquelas destituídas de força e aplicação obrigatória e possuem caráter
meramente intelectual, já que para essas súmulas não existe nenhum mecanismo que assegure
a sua exigibilidade, as súmulas com efeito vinculante são de aplicação obrigatória e possuem
força de lei, ou seja, possuem caráter dissuasório. Assim, a não observância da súmula com
efeito vinculante acarreta a cassação das decisões que a contrariam. Scaff e Maués, ao
estudarem a trajetória brasileira em busca do efeito vinculante no controle de
constitucionalidade, esclarecem:
[...] b) o efeito vinculante caracteriza-se como um mecanismo de prevenção da divergência sobre a interpretação constitucional, e não como um mecanismo de correção. Ele visa que os juízes se adaptem às orientações jurisprudenciais do STF e decidem de modo conforme a ela evitando que as questões de inconstitucionalidade sejam elevadas à Corte Suprema, o que dificulta a possibilidade de uma nova análise da questão por ela; c) o efeito vinculante transcende o nível meramente intelectual de vinculação dos órgãos judiciais às decisões do STF e o transforma em uma vinculação dissuasória (ver supra), na qual o descumprimento dessa orientação pelos juízes e tribunais acarreta a revisão de suas decisões, nesse caso, via o meio de expedito de reclamação.1014
1011 Exemplo de súmula intra legem: “Essa antiga Súmula do Supremo Tribunal Federal sobreviveu à própria edição do Código de Processo Civil de 1973, tendo o seguinte teor: Não cabe condenação em honorário de advogado na ação de mandado de segurança.” STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 179. 1012 Exemplo de súmula extra legem: Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. “Seu conteúdo é o seguinte: a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 183. 1013 Exemplo de súmula contra legem: Súmula 2 do Superior Tribunal de Justiça. “Sob o pretexto de interpretar o writ constante no inciso LXXII do artigo 5º da Constituição Federal, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 2, com o seguinte teor: ‘não cabe o habeas data (CF, art. 5º, LXXII, a) se não houver recusa de informações por parte da autoridade administrativa.’” [...] Com efeito, com a edição da Súmula 2, vedando a impetração do writ sem o esgotamento da instância administrativa, o Superior Tribunal de Justiça, de forma inconstitucional, cria Direito novo como se legislador fosse, ignorando, além disso, frontalmente, outro dispositivo constante no mesmo artigo 5º da magna Carta, pelo qual ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’ (inciso XXXVI). Assim, estabeleceu-se inusitada situação, em que uma Súmula exclui da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito.” STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 202. 1014 SCAFF, Fernando Facury; MAUÉS, Antonio G. Moreira. A trajetória brasileira em busca do efeito vinculante no controle de constitucionalidade. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 241.
283
Com o intuito de melhor entender a adoção do efeito vinculante pelo ordenamento
jurídico brasileiro, passa-se a fazer um breve escorço histórico dos antecedentes desse
instituto no Brasil. Os assentos portugueses podem ser considerados a primeira experiência
brasileira com as decisões judiciais de efeito vinculante. Os assentos constituíam interpretação
autêntica e tinham força de lei. Eles objetivavam a manutenção do controle político da
monarquia sobre as decisões judiciais. Ao estudar os assentos no Direito português, Costa
esclarece o significado desse instituto: “No Direito recente de Portugal, os assentos foram
definidos como enunciados de uniformização de jurisprudência emitida pelo Pleno dos
Tribunais Superiores; imodificáveis e irrevogáveis pelo órgão emissor, embora pudessem sê-
lo até o advento do Código Civil português de 1961.”1015
Por ter sido o Brasil colônia de Portugal, os assentos portugueses vigoraram no
período do Brasil-Colônia e no do Império; neste último período, os assentos tiveram força de
lei reconhecida pelo Decreto Legislativo n. 2.864, de 23 de outubro de 1875, regulamentado
pelo Decreto n. 6.142, de 10 de março de 1876. O referido Decreto atribuía força de lei aos
assentos da velha Casa de Suplicação emitidos entre 1805 e a data da independência, e
delegava competência ao Supremo Tribunal de Justiça brasileiro para emiti-los. Somente em
1891, com a proclamação da República, os assentos foram abolidos no Brasil. Após esse
período, houve duas tentativas de reintrodução deles no ordenamento jurídico brasileiro. A
primeira ocorreu em 1961, com o anteprojeto da “Lei Geral de Aplicação das Normas
Jurídicas”, elaborado por Haroldo Valladão; e a segunda em 1964, pelo anteprojeto do Código
de Processo Civil, elaborado por Alfredo Buzaid. Porém, essas propostas foram rejeitadas sob
o fundamento de inconstitucionalidade, estabelecendo o Código de Processo Civil somente as
súmulas para uniformização de jurisprudência, sem caráter obrigatório e constituindo-se em
orientações para os tribunais.
Os assentos portugueses têm sua origem nos antigos assentos da Casa de Suplicação, o
Tribunal de maior hierarquia no Reino, e que era presidido pelo próprio Rei. Foram criados
pelas Ordenações Manuelinas de 1521 (§ 1º do Título 58 do Livro V), mantidos nas
Ordenações Filipinas (§ 5º do Título 5 do Livro I), com regulamentação minuciosa na Lei da
Boa Razão, de 18/08/1769. Na década de 90, o art. 2º do Código Civil português de 1966
previa o instituto, cabendo aos tribunais supremos, nos casos declarados em lei, a
competência para fixar doutrina com força de lei, por meio dos assentos. Somente em 1993,
os assentos foram declarados inconstitucionais, por meio do Acórdão 810/1993, no Processo
1015 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário, 2002, p. 23.
284
474/1988.1016 Por fim, o Decreto-Lei n. 329-A/95 aboliu os assentos, em caráter retroativo.
Trata-se de matéria polêmica, tendo sido argüida a inconstitucionalidade do n. 1 do art. 17 do
Decreto-Lei n. 329-A/95. Por outro lado, a Seção Cível do Supremo Tribunal de Justiça, ao se
manifestar sobre o assunto, entendeu que as orientações contidas nos assentos seriam válidas
até que o Supremo Tribunal de Justiça fizesse a revisão de cada assento.
Outro documento a que não se pode deixar de fazer referência no estudo da evolução
histórica das súmulas é o Decreto n. 23.055, de 9 de agosto de 1933. Esse documento
estabeleceu o valor da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, uma vez que cabia aos
juízes dos Estados, do Distrito Federal e do Território do Acre interpretar as leis da União de
acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Desse modo, esse decreto buscava
vincular os tribunais estaduais à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.1017
A introdução da súmula no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu por meio de
proposta formulada por Victor Nunes Leal, incluída no Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal em 1963. Faz-se necessário salientar que essa súmula tinha caráter apenas
persuasivo. Posteriormente, através de emenda ao Regimento Interno, ocorrida em 13 de
dezembro de 1963, foi instituída a “súmula da jurisprudência predominante”, que, por sua
vez, foi encampada pelo Código de Processo Civil de 1973, nos arts. 476 e seguintes. Nesse
sentido, a “súmula para uniformização de jurisprudência” constitui-se em uma orientação para
os juízes e partes, não possuindo caráter obrigatório. Sobre o tema, Stiefelmann Leal assevera:
[...] Sua finalidade consistia em dar a desejável firmeza à jurisprudência da Corte a partir do imediato conhecimento de seus precedentes pelas partes interessadas e, principalmente, pelos próprios juízes. As súmulas conformam, desse modo, sistema oficial de referência dos precedentes judiciais, estruturadas em verbetes que consolidam a orientação predominante e segura da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A impositividade das súmulas, no entanto, limita-se à sua autoridade moral e persuasiva, ante os fundamentos que lhes são subjacentes e a estatura do órgão que as edita. Não gozam, por si só, de autonomia normativa. Sua contribuição à uniformidade e estabilidade da jurisprudência é de fato, não de direito. Segundo Victor Nunes Leal, destinam-se a substituir loterias judiciárias das maiorias ocasionais.1018
1016 Sobre os assentos portugueses, consultar COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do Judiciário, 2002, p. 23-36. Ver também SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante, 2006, p. 178-184. 1017 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, 2005, p. 235-236. 1018 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 133-134.
285
Porém, é de bom alvitre salientar que, na prática, as súmulas passaram a ter efeito mais
abrangente, visto que, caso fosse interposto recurso que contrariasse jurisprudência sumulada,
o relator estava autorizado a determinar o arquivamento do feito. Nesse sentido,
posteriormente, a Lei n. 8.038 de 28 de maio de 1990 permitia ao relator negar seguimento a
pedido ou recurso que contrariasse, nas questões predominantemente de direito, Súmula do
respectivo tribunal. A Lei n. 9.756 de 17 de dezembro de 1998, que deu nova redação ao art.
557 do Código de Processo Civil, também autorizava o relator a negar seguimento a recurso
que estivesse em confronto com súmula ou jurisprudência dominante no Supremo Tribunal
Federal.1019
Por outro lado, as súmulas com efeito vinculante também tiveram seus antecedentes
nos prejulgados do Tribunal Superior do Trabalho, que eram de observância obrigatória para
os juízes. Posteriormente, os prejulgados foram revogados pela Lei n. 7.033 de 05 de outubro
de 1982, e foram transformados em súmulas e enunciados do Tribunal Superior do Trabalho.
Além desse, no âmbito da Justiça eleitoral, o Código Eleitoral também admitiu o prejulgado,
atribuindo-lhe efeito vinculante, salvo em caso de rejeição da tese nele exposta por dois terços
dos membros do tribunal que o apreciasse.
A Emenda Constitucional n. 7, de abril de 1977, também pode ser considerada como
ponto decisivo na atribuição de força normativa a uma decisão judicial, que previa o instituto
de representação do procurador-geral da República ao Supremo Tribunal Federal para
interpretação, em tese, de leis ou atos normativos federais ou estaduais. Posteriormente, com
a edição da Emenda n. 7, de agosto de 1978, ao Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal, passou-se a combinar esta com a Emenda Constitucional n. 7, de abril de 1977. A
partir de então, as decisões proferidas em processos de natureza não contenciosa, iniciados
por representação do procurador-geral, passaram a ter efeito vinculante. Segundo Stiefelmann
Leal, a força vinculante das decisões proferidas em sede de representação interpretativa é o
instituto que apresenta mais semelhança com o instituto de efeito vinculante.1020 Porém, a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 extinguiu o instituto.1021
Na atualidade, o ordenamento jurídico brasileiro prevê mecanismos para a
uniformização da jurisprudência mediante a emissão de súmulas, como se observa pelo
1019 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 134-135. 1020 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 138. 1021 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, 2005, p. 236-237.
286
estabelecido no art. 479 do Código de Processo Civil (CPC) em vigor.1022 Também, quando
não há divergência jurisprudencial, há a previsão nos regimentos internos dos tribunais para
edição de súmulas. Tais súmulas possuem o caráter persuasivo e não vinculativo. O
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal prevê a possibilidade de emissão de súmulas
de sua jurisprudência (art. 102 e art. 103 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal -
RISTF), exigindo-se, para tanto, quorum qualificado. Por sua vez, o Regimento Interno do
Superior Tribunal de Justiça também estabelece a possibilidade de emissão de súmulas pelos
membros da Corte Especial ou da Seção, quando houver unanimidade no julgamento ou
quando, em dois julgamentos idênticos, o resultado ocorrer pela maioria absoluta dos
membros da Corte Especial ou da Seção (art. 126 do Regimento Interno do Superior Tribunal
de Justiça - RISTJ). Ainda no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
Justiça existem outras formas de uniformização de jurisprudência, que são os embargos de
divergência interpostos em recurso especial e recurso extraordinário (art. 496, VIII, do CPC).
Por sua vez, o Recurso especial previsto no art. 105, III, c, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, tem a finalidade de uniformizar a jurisprudência dos
Tribunais estaduais e federais, fazendo preponderar a lei federal. Em se tratando de matéria
trabalhista, o recurso de revista, cuja competência para julgamento é do Tribunal Superior de
Justiça, visa à uniformização da jurisprudência nessa área. Com o intuito de facilitar a
divulgação da jurisprudência dominante, o Tribunal Superior do Trabalho tem publicado
orientações jurisprudenciais. De acordo com o art. 896, § 3º, da Consolidação das Leis do
Trabalho1023, a uniformização de jurisprudência trabalhista é obrigatória para os Tribunais
Regionais Federais. A partir da uniformização, ocorre a restrição à interposição dos recursos
de revista ou de embargos. Também existem as sentenças normativas na Justiça do Trabalho
nos dissídios trabalhistas coletivos instaurados perante os Tribunais Regionais do Trabalho,
cujo objetivo é fixar as condições de trabalho a serem observadas nos contratos individuais
das empresas da categoria.
No âmbito dos juizados especiais, a Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001,
estabeleceu duas formas de uniformização de jurisprudência da lei federal, que podem ser
realizadas pela Turma Regional de Uniformização de Jurisprudência, quando ocorrer conflito
de interpretação entre Turmas Recursais da mesma Região e pela Turma Nacional de 1022 “Art. 476. O julgamento tomado pela maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.” BRASIL. Código de Processo Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2007. 1023 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. In: PINTO, Antônio Luiz; WINDT, Márcia Cristina Vaz dos; CÉSPEDES, Lívia. Vade Mecum. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
287
Uniformização de Jurisprudência. Compete à Turma Nacional de Uniformização de
Jurisprudência julgar o incidente de uniformização de interpretação de lei federal, em
questões de direito material, quando houver divergência entre decisões de Turmas Recursais
de diferentes Regiões ou em contrariedade à súmula ou jurisprudência dominante do Superior
Tribunal de Justiça. E, ainda, cabe-lhe o julgamento do incidente de uniformização interposto
contra decisão das Turmas Regionais de Uniformização de Jurisprudência, quando contrariar
súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça.1024
Apesar de as súmulas dos Tribunais não possuírem caráter obrigatório, na prática, a
redação dada ao art. 557 do CPC acaba por outorgar o efeito vinculante a elas, uma vez que o
relator poderá negar seguimento ao recurso que esteja em confronto com súmula ou
jurisprudência dominante no Supremo Tribunal ou Tribunal Superior. Dessa decisão cabe
agravo. Por outro lado, se a decisão estiver em desacordo com jurisprudência dominante, do
Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.
Ao analisar o art. 557 do CPC, Sifuentes aponta que a observância desse requisito para
recorrer acaba por inibir as partes de utilizarem a via recursal e atribuem quase que uma
forma de vinculação a essas súmulas:
Em outras palavras, preservou-se a liberdade do juiz de julgar em desacordo com a súmula, mas, por outro lado, desestimulou-se a parte vencida de recorrer por recorrer, medida procrastinadora responsável pela postergação da prestação jurisdicional. Se o juiz decide contrariamente à súmula, de duas, uma: ou as partes não recorrem, e apenas neste caso prevalece a decisão do juiz de primeiro grau que contrariou a súmula; ou, o que é mais provável, o vencido interporá recurso, e o relator do processo, no tribunal, dar-lhe-á provimento imediato e de plano. Desse modo, se a súmula não é vinculante para o juiz de primeiro grau, pelo menos ela o é para as partes, que somente terão o seu recurso apreciado pelo tribunal quando invocarem o descumprimento da súmula aplicável ao seu caso.
Pode-se dizer, portanto, terem sido as súmulas dotadas, pelo art. 557 do CPC, de vinculatividade média, ou quase-vinculação. Importa dizer que a matéria sumulada pelo tribunal inibirá a parte de recorrer contra ela.1025
Cumpre ressaltar que a Lei Complementar n. 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura
Nacional - LOMAN) do extinto Tribunal Federal de Recursos (art. 90, § 2º) permitia ao
relator negar seguimento ao recurso que contrariasse a súmula do tribunal e depois a Lei n.
8.038, de 28/05/90 (art. 38) também adotou procedimento semelhante, nos processos em
curso perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. A diferença
1024 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, 2005, p. 247-250. 1025 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, 2005, p. 252.
288
desses dispositivos com o art. 557 do CPC foi que esse artigo foi abrangente, estendeu o
procedimento para outros tribunais, concedeu maiores poderes ao relator, que podia, além de
negar seguimento ao recurso, julgar o mérito, negando-lhe provimento imediato e estabelecer
multa para o recurso de agravo meramente protelatório interposto dessa decisão.1026
O art. 38 da Lei n. 8.038 recebeu críticas de Streck, que sustenta sua
inconstitucionalidade, em decorrência de entender que o dispositivo acaba por atribuir efeito
vinculante às súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, posto
que impede a subida do recurso para rediscussão da interpretação dada à lei federal ou à
própria Constituição da República Federativa do Brasil. Sobre o tema, Streck assim se
manifestou:
Dito de outro modo: ao editar uma Súmula, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal passam a ter poder maior que o do legislador, pois, primeiro, ‘legislam’, ao conceberem a interpretação ‘correta’ de determinada norma; depois, quando existe discordância de tal interpretação, no bojo de qualquer unidade da federação, tal discordância é impedida de prosperar, pela exata razão de que o relator negará seguimento ao recurso ‘que contrariar, nas questões predominantemente de direito’, Súmula do respectivo Tribunal.1027
O art. 102 da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, atribui às decisões
definitivas de mérito adotadas em sede de ação declaratória de constitucionalidade proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal eficácia erga omnes e efeito vinculante, relativamente aos
demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo. Posteriormente, através da Lei n.
9.868, de 10 de novembro de 1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal), o efeito vinculante passou a ser disciplinado por legislação
infraconstitucional. Essa legislação estendeu o efeito vinculante para as decisões proferidas
em ação direta de inconstitucionalidade em relação aos órgãos do Poder Judiciário e a
administração pública federal, estadual e municipal.
Em 3 de dezembro de 1999, a Lei n. 9.868/99 (dispõe sobre o processo e julgamento
da argüição de descumprimento de preceito fundamental), art. 10, § 3º, concedeu às decisões
proferidas em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental efeito vinculante
em relação aos demais órgãos do Poder Público.
1026 SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, 2005, p. 252. 1027 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 149.
289
Por fim, a Emenda Constitucional n. 45/2004 deu nova redação ao § 2º do art. 102 da
Constituição da República Federativa do Brasil de 19881028, alterando o regime jurídico do
efeito vinculante. Por um lado, concedeu também à ação direita de inconstitucionalidade o
efeito vinculante e, por outro lado, modificou a definição constitucional dos órgãos e
entidades que se submetem ao efeito vinculante na ação declaratória de constitucionalidade.
Assim, as decisões de mérito nessas ações passam a produzir efeito em relação aos demais
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta nas esferas municipal,
estadual e federal. Houve, desse modo, a substituição da expressão Poder Executivo por
administração pública direta e indireta. Além disso, cumpre ressaltar que o Poder
Legislativo não se encontra entre os destinatários do efeito vinculante. Desse modo,
Stiefelmann Leal ressalta que “[...] é lícito, portanto, ao Legislativo ignorar as interpretações e
os fundamentos deduzidos pelo Supremo Tribunal Federal em controle abstrato de
constitucionalidade e reiterar preceitos normativos materialmente semelhantes a outros
declarados inconstitucionais.”1029
Para Stiefelmann Leal, essa alteração no critério conceitual do destinatário do efeito
vinculante acaba por liberar o Poder Executivo de observar as decisões proferidas nas ações
diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade. Sobre o tema
Stiefelmann Leal assim se manifesta:
Passa a Emenda n. 45/2004 a permitir que o poder Executivo desafie os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, reproduzindo, em medidas provisórias, projetos de lei e decretos preceitos normativos já declarados inconstitucionais em ação declaratória de constitucionalidade. Da mesma forma, fica o Poder Executivo autorizado a sancionar, sem qualquer impedimento de ordem jurídica, comandos normativos que contrariem manifestamente a interpretação constitucional assentada expressamente pela Corte.
Quanto ao exercício das atribuições administrativas, cumpre ao Poder Executivo observar a ratio decidendi integrante das decisões proclamadas em controle abstrato de constitucionalidade, isto é, as interpretações e raciocínios ali desenvolvidos deverão ser acatados na aplicação da legislação, ainda que em sede de processo administrativo, bem como na representação judicial da administração pública, constituindo, a priori, impedimento às procuradorias e advocacias estatais de sustentar argumentação em sentido contrário.1030
1028 BRASIL. Constituição de 1988. “Art. 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações direta de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.” BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 1029 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 160. 1030 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 156.
290
Além do efeito vinculante nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações
declaratórias de constitucionalidade, a Emenda Constitucional n. 45/2004 acresceu o art. 103-
A, que atribui efeito vinculante a súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal por dois
terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional. O referido artigo trata sobre a competência, forma de emissão, limites
subjetivos, revisão e cancelamento da súmula vinculante. Assim, a competência para emissão
das súmulas é do Supremo Tribunal Federal, que poderá atuar de ofício ou mediante
provocação dos legitimados do art. 103 da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, incisos I a IX, ou seja, os que têm legitimidade para propor ação direta de
inconstitucionalidade, conforme determina o § 2º do art. 103-A. Registre-se, ainda, a Lei n.
11.417, de 19 de dezembro de 2006, que regulamentou o art. 103-A da Constituição da
República Federativa do Brasil, em seu art. 3º e estabelece os legitimados para propor a
edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante o Presidente da
República; a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados; o Procurador-Geral
da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Defensor Público-
Geral da União, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional; a Mesa da Assembléia Legislativa ou da
Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; os
Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios,
os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais
Eleitorais e os Tribunais Militares. É mister salientar que esse rol de legitimados poderá ser
ampliado, uma vez que o § 2º do art. 103-A prevê a possibilidade de lei ordinária definir
outros legitimados. Cabe ao Supremo Tribunal proceder à revisão e ao cancelamento das
súmulas, na forma estabelecida na lei.
Desse modo, os legitimados ativos para a propositura de súmula com efeito vinculante
podem ser classificados em: legitimados universais ou neutros e os legitimados especiais ou
sectários. Sobre o tema, Figueiredo esclarece que:
a) legitimados universais ou neutros: todos aqueles que atuam na defesa geral dos interesses da Nação, que não precisam demonstrar relação de pertinência objetiva na fixação obrigatória do entendimento jurisprudencial do Pretório Excelso. Esta categoria, no ato de propositura, deverá, tão somente, ater-se a demonstração de existência dos requisitos previstos no art. 2º, § 1º, para conhecimento do pedido de edição, revisão ou cancelamento, a saber, dano potencial ou efetivo à segurança jurídica e à celeridade processual. São estes o Presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; o
291
Defensor Público-Geral da União; e partido político com representação no Congresso Nacional.
b) legitimados especiais ou sectários: todos aqueles que atuam na defesa específica de interesses inerentes à determinada categoria ou população restrita à determinada base territorial, necessitando demonstrar, além dos requisitos do art. 2º, § 1º, relação de pertinência objetiva na fixação obrigatória do entendimento sumulado do Pretório Excelso. São estes a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional; a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; e os Tribunais Superiores, os Tribunais de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.1031
Após formulada, a proposta de emissão, revisão ou cancelamento de súmula
vinculante ex officio ou por um dos legitimados ativos será distribuída a um relator, que
procede à oitiva do Procurador-Geral da República nas propostas não formuladas por ele
conforme determinação do art. 103, § 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 e do § 2º da Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006. O relator pode ainda admitir a
manifestação de terceiros. Em seguida, a proposta será submetida ao plenário para
deliberação, após a qual o Supremo Tribunal Federal terá o prazo de 10 dias para publicar o
enunciado respectivo em Seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União, a
qual produzirá efeitos imediatos, a partir da data de sua publicação. Porém, com o intuito de
preservar a segurança jurídica ou excepcional interesse público, o art. 4º da Lei n. 11.417, de
19 de dezembro de 2006, estabelece que o Supremo Tribunal Federal poderá restringir os
efeitos vinculantes ou a eficácia temporal, estipulando, nesse caso, outra data de vigência.
Com relação ao quorum para sua aprovação, o art. 103-A é de dois terços dos
membros do Supremo Tribunal Federal, ou seja, dos onze ministros que compõem esse órgão,
oito deverão votar favoravelmente à proposta para que ocorra a aprovação da súmula
vinculante.
Quanto aos limites subjetivos, o art. 103-A estabelece que as súmulas terão efeito
vinculante com relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública
direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. O art. 103-A, devidamente
regulamentado pela Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, ao tratar dos limites subjetivos
dos efeitos da súmula vinculante em seu art. 2º1032, não fez referência expressa à
1031 FIGUEIREDO, Leonardo Vieira. Súmula vinculante e a Lei n. 11.417 de 2006: apontamentos para compreensão do tema. Disponível em: <http://agu.gov.br/undadesAGU/CEAGU/revista/Ano_VII_2007/Sumula-Leonardo%20Vizeu.pdf.>. Acesso em: 14/09/2007, p. 8. 1032 “Art. 2º O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matérias constitucionais, editar enunciado de súmulas que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta,
292
administração pública distrital. Por outro lado, ao estabelecer a legitimação ativa para propor
a emissão das súmulas vinculantes, inclui, no rol dos legitimados, a Câmara Legislativa do
Distrito Federal e o Governador do Distrito Federal. Assim, através de uma interpretação
extensiva e sistemática desses dispositivos legais, a administração pública distrital direta ou
indireta deve obediência às súmulas vinculantes.
Por sua vez, os parágrafos do art. 103-A da Constituição da República Federativa do
Brasil1033 delineiam os objetivos, a legitimidade ativa para pedido de aprovação, revisão ou
cancelamento, e dispõe sobre a possibilidade de anulação dos atos administrativos e cassação
das decisões que sejam produzidas contrariando as súmulas emitidas pelo Supremo Tribunal
Federal.
Os limites dos objetos dos enunciados das súmulas estão delineados no art. 103-A, §
1º da Constituição da República Federativa do Brasil e no art. 2º, § 1º da Lei 11.417, de 19 de
dezembro de 2006. Assim, os enunciados a que será atribuído efeito vinculante terão por
objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, desde que haja
controvérsia acerca de sua aplicação entre os órgãos do Poder Judiciário ou entre esses e a
administração pública, em face dos preceitos estabelecidos pela Constituição, e que essa
controvérsia possa gerar grave insegurança ou relevante multiplicação de processo sobre
idêntica questão. Desse modo, esses são os pressupostos objetivos para a aprovação de
enunciado de súmula.
A Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que regulamentou o art. 103-A da
Constituição da República Federativa do Brasil, disciplinou a edição, a revisão e o
cancelamento de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal. Porém, é mister salientar
que o procedimento para edição, revisão e cancelamento de enunciados de súmulas
vinculantes não foram disciplinados de forma suficiente pela lei regulamentadora, uma vez
que ela se limitou a estabelecer o quorum qualificado de apreciação pelo plenário, o rol de nas esfera federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei.” BRASIL. Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá outras providências. Disponível em: <http: //www.trt02.gov.br/geral/tribunal2/Legis/Leis/11417_06.html >. Acesso em: 16/08/2007. 1033 “Art. 103- § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre os órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. §3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.” BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
293
legitimados para a edição, revisão e cancelamento de enunciados de súmulas vinculantes, bem
como a possibilidade da manifestação de terceiros nesses procedimentos, de acordo com o
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Caso a reclamação seja julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, além de
cassar a decisão judicial ou anular o ato administrativo que contrariou a súmula vinculante,
será dada ciência à autoridade prolatora da decisão e ao órgão competente para julgamento do
recurso, devendo as futuras decisões adequarem-se à súmula vinculante, sob pena de
responsabilização nas esferas cível, administrativa e penal, conforme determina o art. 64-B da
Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006. No caso de ação ou omissão da administração, faz-
se necessário o esgotamento da via administrativa para utilização da reclamação, de acordo
com o § 1º do art. 7º da Lei n. 11.417/2006. Esse artigo acaba por restringir o acesso à
jurisdição garantido pelo art. 5º, inciso XXXV da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, uma vez que condiciona a propositura de reclamação ao prévio esgotamento
da via administrativa.
Quanto aos limites objetivos1034, a lei regulamentadora do art. 103-A não define os
limites objetivos do efeito vinculante. Se os limites objetivos fossem baseados nos limites
objetivos da coisa julgada1035, a vinculação deveria ocorrer apenas do dispositivo, conforme
dispõe o art. 469 do CPC, que é inspirado da doutrina de Liebman e que, por sua vez, busca
esse limite no pedido ou na pretensão das partes. Porém, Campos esclarece que, no
ordenamento brasileiro, há uma incoerência com relação aos limites objetivos da coisa
julgada, já que o artigo 468 do CPC emprega os termos lide e questões decididas de acordo
com a acepção de Carnelutti; e o artigo 469, inspirado na doutrina de Liebman, procura os
limites da lide no pedido da parte ou na pretensão.1036
Com relação aos limites objetivos da coisa julgada, para Carnelutti, a decisão encontra
seus limites na lide, e esta vai buscá-la nas questões decididas.1037 Questões decididas perdem
o caráter de questão e readquirem o de razão. Ao contrário de Carnelutti, Liebman exclui as
1034 Fica a sugestão para que sejam desenvolvidas novas pesquisas sobre os limites objetivos da coisa julgada, uma vez que essa não se constitui no objeto do presente trabalho. 1035 “A coisa julgada, com a vigência da Constituição Brasileira de 1988, assumiu contornos teóricos de instituto jurídico autônomo, perdendo a inerência significativa de mero atributo, qualidade (como quis Liebman e atualmente Dinamarco) de efeito da sentença de mérito com a autoridade a suscitar ainda, em preliminar, exceção substancial (art. 301, VI, CPC) extintiva do procedimento instaurado. Daí, impõe-se a distinção entre a sentença transitada em julgado como ato afetado pela preclusão máxima e a coisa julgada, esta agora como garantia constitucional de existência, exigibilidade e eficácia de provimentos meritais pelo atendimento ao direito fundamental do devido processo.” LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada –Temática processual e reflexões jurídicas, 2005, p. 3. 1036 CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites objetivos da coisa julgada. Rio de Janeiro: Aide, 1988. 1037 CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil, 2000. v.1.
294
razões da decisão, uma vez que a autoridade da coisa julgada, para este autor, compreende
tão-somente o comando e não a razão pela qual a coisa foi decidida.1038
Com relação aos limites objetivos da súmula vinculante, a posição esposada pelo
Deputado Antônio Carlos Magalhães Neto, ao apresentar projeto substitutivo ao de n. 6.636,
de 2006 (que objetivava regulamentar o art. 103-A e que originou a Lei n. 11.417/2006), é de
que a vinculação não é apenas do dispositivo, mas também da fundamentação da decisão, se
levar em consideração a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Desse modo, em consonância com a jurisprudência do STF, cabe deixar claro que o efeito vinculante decorrente da súmula implica a obrigatoriedade do seu enunciado e, em caráter ancilar, dos fundamentos determinantes que serviram de motivação para as decisões que lhe deram embasamento.1039
Essa também tem sido a posição adotada por Stiefelmann Leal, para quem os limites
objetivos da súmula vinculante transcendem o enunciado para abarcar a ratio decidendi:
[...] Nesse sentido, a atribuição de efeito vinculante às súmulas, a exemplo do que sucede em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle abstrato de normas, tem como resultado prático a imposição de seus fundamentos determinantes aos órgãos e poderes especificados na norma constitucional. A ratio decidendi do verbete sumular – objeto da vinculação – alcança, na hipótese, os princípios e interpretações asseveradas na motivação dos reiterados julgamentos que embasaram sua edição. Em outras palavras: os fundamentos determinantes das súmulas são os fundamentos determinantes dos precedentes que lhe deram origem.1040
Sobre os limites objetivos do efeito vinculante, Cruz adverte que, para que ocorra
adequação com o Estado democrático de direito, esses limites devem-se ater apenas à parte
dispositiva da decisão nos moldes do que ocorre com os limites objetivos da coisa julgada.1041
Desse modo, as súmulas vinculantes são emitidas pelo Supremo Tribunal Federal de
forma solipsista, sem a participação da comunidade jurídica em sua elaboração e,
conseqüentemente, não se submetem a uma fiscalidade ampla e irrestrita, levando a uma
estagnação do direito. Não há a instauração do processo, sendo, assim, elaboradas fora do
espaço-temporal da discursividade, na realidade nua. Outrossim, a cúpula do Judiciário, por
1038 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 1039 MAGALHÃES NETO, Antônio Carlos. Substitutivo ao Projeto de Lei n. 6.636/2006. Disponível em: <http:// www.camara.gov.br/sileg/integras/423286.pdf>. Acesso em: 20/08/2007. 1040 STIEFELMANN LEAL, Roger. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, 2006, p. 177. 1041 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 257.
295
meio do “estado de exceção”1042, cria as súmulas vinculantes, sob o intuito de evitar a
multiplicidade de ações idênticas e de proporcionar segurança jurídica e celeridade
processual, e acabam desrespeitando o devido processo constitucional. Somente através do
processo nos moldes preconizados pela teoria neo-institucionalista é que se torna possível a
construção de um direito legítimo e que se harmoniza com o Estado da pós-modernidade.
2.3 O mito do efeito vinculante como solução para a crise de operacionalidade do
Judiciário
O Judiciário tem sido alvo de críticas devido à morosidade da atividade jurisdicional.
Em decorrência disso, a Emenda Constitucional n. 45/2004, objetivando efetivar uma reforma
do Judiciário que fosse capaz de solucionar ou minimizar a lentidão da atividade jurisdicional
e viabilizar o acesso à jurisdição, alterou o texto constitucional. Entre os aspectos relevantes
da Reforma do Judiciário que interessam ao presente trabalho, destacam-se os seguintes: a)
art. 102, § 2º, que trata do efeito vinculante nas decisões proferidas nas ações declaratórias de
constitucionalidade e diretas de inconstitucionalidade; e b) artigo 103-A, que disciplina as
súmulas com efeito vinculante. O presente subitem objetiva examinar até que ponto a adoção
do efeito vinculante será capaz de solucionar as causas da crise de operacionalidade do
Judiciário ou se os argumentos apresentados pelos que defendem o efeito vinculante são
apenas mitos, baseados na crença da celeridade processual, da certeza do direito, da segurança
jurídica e do tratamento isonômico das partes.
A partir da reforma do Judiciário realizada por meio da Emenda Constitucional nº.
45/2004, não apenas as decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas
ações declaratórias, mas também aquelas prolatadas nas ações diretas de inconstitucionalidade
produzirão efeito vinculante. Além dessa modificação no controle concentrado de
constitucionalidade, inovação maior ocorreu no controle difuso de constitucionalidade. Para
tentar resolver o problema da crise de operacionalidade do Judiciário e, em especial, a
sobrecarga de trabalho do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento jurídico brasileiro 1042 “[...] O que ocorreu e ainda está ocorrendo sob nossos olhos é que o espaço “juridicamente vazio” do estado de exceção (em que a lei vigora na figura – ou seja, na ficção – da sua dissolução, e no qual podia portanto acontecer tudo aquilo que o soberano julgava de fato necessário).” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, 2002, p. 44.
296
adotou as súmulas vinculantes no art. 103-A. Porém, convém examinar se as súmulas
vinculantes são compatíveis com os princípios do Estado democrático.
Kelsen, ao tratar da possibilidade de criação de normas jurídicas gerais vinculantes
pelos tribunais, ou seja, através do precedente jurisdicional, esclarece que a vantagem desse
sistema é a segurança jurídica. Por sua vez, o autor explica que essa consiste “[...] no fato de a
decisão dos tribunais ser até certo ponto previsível e calculável, em que os indivíduos
submetidos ao Direito se poderem orientar sua conduta pelas previsíveis decisões dos
tribunais.”1043
Nessa linha de idéias, Tostes assevera que segurança jurídica é sinônimo de
estabilidade e tranqüilidade e por sua vez, “a adoação das súmulas vinculantes contribuirá
para a segurança jurídica, imprimindo-se previsibilidade às decisões judiciais e garantindo-se
a observância do princípio da isonomia.”1044
Essa também é a posição esposada por Tavares, que apesar de entender que as súmulas
vinculantes apresentam alguns pontos negativos1045 ela acaba com a loteria jurídica, uma vez
que proporciona a previsibilidade das decisões. Sobre o tema Tavares assevera: “há riscos, é
claro. Mas igualmente não há como deixar de assumi-los, na busca de um sistema que se
baseie menos na sorte (loteria de pensamentos jurídico-judciais divergentes em relação a
temas largamente debatidos) e mais na previsibilidade, própria da finalidade que se atribui ao
e que o justifica o Direito.”1046 (grifos do autor)
Entretanto, é de bom alvitre salientar que, no Estado democrático de direito, a certeza
e a segurança jurídica relacionam-se com a observância da estrutura procedimental
(contraditório, ampla defesa e isonomia). Quanto ao argumento da agilização da prestação
jurisdicional, é importante destacar que a realização da atividade jurisdicional em prazo
razoável não permite acelerar os procedimentos pela diminuição das garantias processuais.
Nesse sentido, Brêtas C. Dias ressalta:
1043 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1988, p. 279. 1044 TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Judiciário e segurança jurídica: a questão da súmula vinculante. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004. p. 107 1045 “Contudo, o maior problema da súmula vinculante parece ser o que chamo de ‘mecanismo de auto-imposição dependente’, que é também sua maior fraqueza. Sim, porque o descumprimento da súmula vinculante impõe uma atuação sucessiva e desgastante ao STF [...] tranformando-o em uma espécie de ‘oficial de execução de suas próprias sentenças’ (STRECK: 160) de suas próprias decisões, situação não apenas constrangedora para um Tribunal dessa envergadura, mas também inviabilizadora do exercício de suas funções fundamentais.” TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417 de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007. p. 109. 1046 TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417 de 19.12.2006, 2007. p. 108.
297
Advirta-se, porém, que a exigência normativa de se obter a decisão jurisdicional em tempo útil ou prazo razoável, o que significa adequação temporal da jurisdição, mediante processo sem dilações indevidas, não permite impingir o Estado ao povo a aceleração dos procedimentos pelas garantias processuais constitucionais (por exemplo, suprimir o contraditório, proibir a presença do advogado no processo, eliminar o duplo grau de jurisdição, abolir a instrumentalidade das formas, restringir o direito das partes à produção de provas, dispensar o órgão jurisdicional do dever de fundamentação).1047
Assim, a atribuição de efeito vinculante às súmulas acaba por suprimir as garantias
processuais, inviabilizando sua adoção pelo Estado democrático de direito:
A restrição de quaisquer das garantias processuais, sob a canhestra e antidemocrática justificativa de agilizar ou tornar célere o procedimento, com o objetivo de proferir decisão jurisdicional em prazo razoável, é estimular o arbítrio, fomentar a insegurança jurídica e escarnecer da garantia fundamental do povo ao devido processo legal, em suma, deslavada agressão ao princípio constitucional do Estado democrático de direito.1048
Por outro lado, a prestação jurisdicional em tempo hábil relaciona-se ao princípio da
eficiência a que estão condicionados todos os órgãos do Estado. Esse princípio também
está disciplinado pelo Artigo 37, caput da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, bem como pelo Artigo 175, parágrafo único, inciso II que impõe ao Estado a
obrigação de manter serviços adequados. Esse princípio da eficiência, de acordo com
Brêtas C. Dias, significa:
[...] além de rigorosa obediência ao ordenamento jurídico, sobretudo em razão aos prazos ali prescritos, a eficiência dos órgãos estatais no exercício da função jurisdicional exige atividade precisa e normal, no sentido de cumprimento de prazos legais e do dever de impulso oficial. A eficiência da função jurisdicional afasta o descaso do Estado na boa estruturação técnica de seus órgãos jurisdicionais, a lentidão, a negligência e omissão daqueles órgãos estatais nos processos instaurados, o que gera a inobservância pelo Estado dos prazos processuais estabelecidos em lei, disto resultando dilações indevidas do processo, frustrando o resultado eficaz e útil dessa atividade estatal à pessoa interessada do povo que a postulou. A partir daí, observa a doutrina que a eficiência do Estado pode ser vista sob duas dimensões: legalidade _ conformar-se externamente à lei _ e legitimidade _ atender ao interesse público.1049 (grifos do autor)
Conforme adverte Brêtas C. Dias, o direito fundamental à jurisdição garante ao povo a
prestação desse serviço público dentro de um prazo razoável. Porém, não permite violar as
1047 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 117. 1048 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 117. 1049 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 156.
298
garantias processuais, motivo pelo qual as súmulas não se coadunam com o Estado da pós-
modernidade. Segundo Brêtas C. Dias, a eficiência da função jurisdicional será obtida:
Em primeiro lugar, com a reforma da mentalidade e com a melhoria da formação técnica dos operadores do direito, que precisam enxergar o processo como metodologia normativa de garantia dos direitos fundamentais, ou seja, compreendê-lo como processo constitucionalizado e não apenas como mero instrumento técnico da jurisdição. Em segundo lugar, com adequada infra-estrutura, material e pessoal dos órgãos jurisdicionais, o que exige investimentos financeiros de monta por parte do Estado, além de introdução de métodos e técnicas racionais de trabalho, por exemplo, documentação dos atos do processo por meio da estenotipia, como recomenda o artigo 279.1050
Antes de tratar da crença na legitimidade do efeito vinculante por meio dos
argumentos daqueles que a defendem, faz-se necessário examinar as causas de
operacionalidade do Judiciário e refletir se as súmulas vinculantes atacam essas causas ou
apenas os efeitos provenientes da crise, bem como apontar os argumentos que levaram à
adoção das súmulas vinculantes. Ao estudar as causas da crise de operacionalidade do
Judiciário, Souza divide-as em quatro grupos: as causas operacionais, as estruturais, as
conjunturais e as orgânicas.1051
As causas operacionais da crise do Judiciário relacionam-se aos direitos emergentes
com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como com a criação de
instrumentos hábeis capazes de garantir esses direitos. Conseqüentemente, essas garantias
passaram a ser usadas cada vez mais pelo jurisdicionado. Desse modo, cada vez mais as
pessoas passaram a buscar seus direitos, levando a um aumento considerável das ações
judiciais.
As causas estruturais estão relacionadas à estrutura do Judiciário, à quantidade dos
juízes e qualificação. O baixo número de juízes, frente ao crescente volume de processos,
dificulta o cumprimento dos prazos processuais: estão em curso, e sob a direção de um juiz,
de 4.000 a 6.000 processos. Na Alemanha, ao contrário do que ocorre no Brasil, existe uma
adequação do número de processos ao número de juízes e à população, uma vez que cada juiz
somente tem sob sua responsabilidade de 500 a 1.000 processos, e há um juiz para cada 5.000
mil habitantes. Sobre o tema, Brêtas C. Dias esclarece:
1050 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. A reforma do judiciário e os princípios do devido processo legal e da eficiência. Texto base de exposição sobre o tema feito no IX Encontro dos Advogados Mineiros, realizado em Araxá, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais, 30/04/2005, p.7. 1051 SOUZA, Carlos Aureliano Motta de. O papel constitucional do STF: uma nova aproximação sobre o efeito vinculante. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 21.
299
[...] De nada adianta, por exemplo, fixar o Código de Processo Civil brasileiro ao juiz proferir despachos em 2 dias e decisões em 10 dias (artigo 190), designar audiência nos casos de procedimento sumário em 30 dias (artigos 277 e 278, §2º), ou o Código Penal brasileiro determinar os prazos de 10 dias para o juiz proferir decisão definitiva ou interlocutória mista, de 5 dias para decisão interlocutória simples e de 1 dia para despacho (artigo 800), se estão em curso 6.000 ou 4.200 processos sob a direção de um único juiz, como ocorre nos casos das comarcas anteriormente apontadas. Fatalmente, tais prazos serão descumpridos e a jurisdição não se concretizará em prazo razoável, tudo em franca desobediência aos princípios da legalidade e da eficiência e ofensa à garantia do devido processo legal, como ocorre de forma crônica e enervante no Estado brasileiro, ao contrário do que prescreve o texto constitucional.1052
Quanto às causas conjunturais, são aquelas relacionadas ao excesso de litigiosidade.
Assim, verifica-se, anualmente, um crescimento significativo do número de ações ajuizadas,
assim como um aumento do número de recursos. O aumento da litigiosidade ocorre pelo
aumento da população e pela necessidade de o direito acompanhar o desenvolvimento da
tecnologia. Souza destaca que o aumento da produção legislativa é uma das causas que
contribuem para a morosidade na prestação jurisdicional:
Na verdade, o Brasil é um país-laboratório, seja pela velocidade com que produz constituições e em seguida as modifica, seja pela fúria legislativa. No período republicano o nosso ordenamento tem sido regulado pelos mais variados tipos de normas jurídicas, de acordo com a constituição vigente, tais como: lei complementar (89), lei (9.564), decreto legislativo (62), lei constitucional (2), lei delegada (13), ato institucional (17) e medida provisória (1.948). Levando-se em conta apenas a legislação federal produzida em meio século, de 1946 a 1996, foram editadas 104.660 normas, constitucionais e infraconstitucionais, de competência do Legislativo e do Executivo.1053
O Estado figura na maior parte das ações ajuizadas no Judiciário, sendo seu principal
usuário e, portanto, responsável pelo excessivo volume de trabalho no Supremo Tribunal
Federal e no Superior Tribunal de Justiça, como se depreende dos dados abaixo:
Nem mesmo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça – com 11 e 33 ministros, estão a salvo do número caótico de feitos distribuídos, pois só no ano de 1996 receberam, respectivamente, 23.668 e 77.032 processos. Já em 1998, o Supremo Tribunal Federal recebeu 223.717 processos, sendo que 91,97% desse total, ou seja, 205.770, corresponderam a recursos extraordinários e agravos ajuizados. Quanto à origem, 25,8% (53.036 processos) foram ajuizados pela União; 19,85% (40.864) pelo INSS; 9,43% (19.405), pelo Estado de São Paulo; 4,84% (9.974) pela CEF; e 2,52% (5.185) pelo Banco do Brasil. Esses dados, demonstram
1052 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. A reforma do Judiciário e os princípios do devido processo legal e da eficiência. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, 2005, p. 117. 1053 SOUZA, Carlos Aureliano Motta de. O papel constitucional do STF: uma nova aproximação sobre o efeito vinculante, 2000, p. 25.
300
claramente que o maior comprometimento da prestação jurisdicional na mais alta Corte do País é a União Federal.1054
Observa-se que, para alguns doutrinadores, as excessivas possibilidades recursais
previstas no sistema processual, utilizadas em grande parte com fins protelatórios, constituem
uma das principais causas da lentidão da atividade jurisdicional. Ressalte-se, contudo, que as
vias recursais são garantias do devido processo legal inerente ao Estado democrático de
direito. O que se revela inadmissível e que, por conseqüência, fere a boa-fé processual é o uso
dessa faculdade com fins protelatórios.
Por fim, as causas orgânicas são aquelas intrínsecas à movimentação do processo.
Desse modo, há a necessidade de se repensar o processo que não pode mais ser visto como
mero instrumento da jurisdição, mas, sim, como direito-garantia constitucionalizado, que
proporcionará às partes a participação em simétrica paridade, na construção do provimento
jurisdicional.
Calmon de Passos aborda a crise de operacionalidade do Judiciário sob quatro
perspectivas: 1) uma crise ampla do modelo de Estado, 2) uma crise específica do processo
constitucional de produção do direito, 3) uma crise baseada na institucionalização dos agentes
políticos por ele responsáveis, 4) uma crise baseada nos procedimentos adotados. Sobre o
tema, o autor esclarece:
Falar sobre crise do Judiciário é algo que comporta mais de uma abordagem. É possível inseri-la na crise mais ampla do próprio modelo de Estado em que ele se insere. Pode, outrossim, configurar-se como uma que lhe seja específica, localizada no processo constitucional de produção jurisdicional do direito ou na institucionalização dos agentes políticos por ele responsáveis, como pode simplesmente ser um problema menor, relacionado com os problemas adotados naquele processo constitucional já referido. A primeira, com implicações que extrapolam do que é próprio da função jurisdicional. A segunda, de matriz estritamente constitucional, condicionadora de todos os demais problemas processuais e sua causa mais relevante. A terceira, ainda passível, em parte, de apresentar matrizes constitucionais, porque pertinente à organização judiciária, localizada, entretanto, no mais significativo, no espaço da legislação infraconstitucional. A quarta de pequena relevância e de facílima superação, porque toda ela de natureza infraconstitucional e dizendo respeito apenas a procedimentos. Em nosso país, todas elas convivem, sendo que a primeira, a mais grave, tem sido de todo descurada. A segunda, de difícil solução sem que a primeira seja resolvida, mas passível de ser minorada em seus aspectos mais graves, também é ignorada. A terceira, ainda penosa, pela camisa de força em que a colocou a nossa “indigestão constitucional”, fez-se tão grave quanto a segunda e tem sido, tanto quanto ela, desconsiderada, merecendo apenas referências marginais. A quarta, porque
1054 CARNEIRO, Sérgio Barradas. O Judiciário que a sociedade deseja. Disponível em: <http://www.coleprecor.org.br/reuniões/arquivos>. Acesso em 23/08/2007, p. 1.
301
irrelevante, tornou-se a “bola da vez”, servindo com pretexto para o encobrimento das três primeiras, permitindo que delas não cuidemos.1055
Acerca dessas quatro abordagens, alguns aspectos devem ser considerados. Em
primeiro lugar, o entendimento de Calmon de Passos é que a crise do Judiciário pode ser
inserida numa crise mais ampla do modelo estatal. Todavia, essa alegação é insubsistente,
uma vez que a resolução da crise extrapola a função jurisdicional. Ao contrário do que afirma
Calmon de Passos, a Constituição da República Federativa do Brasil estabelece a harmonia e
interdependência “dos poderes”, com o intuito de garantir que nenhum governo será arbitrário
ou omisso com o seu dever constitucional. Ademais, a própria constituição já estabeleceu e
positivou o atual modelo de Estado – Estado democrático de direito. Essa também é a posição
adotada por Almeida acerca da possibilidade de a crise do Judiciário se inserir numa crise do
modelo estatal:
[...] Tal afirmação não procede, porque a estrutura (modelo) do Estado já está institucionalizada na Constituição de 1988: Estado democrático de direito. Assim, o Legislativo, “poder constituído”, tem o dever de criar leis que correspondam ao modelo constitucional e a Administração Pública o dever de implementar os direitos econômicos fundamentais, que devem ser entendidos no paradigma democrático com os atributos de liquidez e certeza. Cabe ao Ministério Público e ao Judiciário zelar pelo cumprimento destes deveres por meio do mandado de injunção e do mandado de segurança. Nestes termos, como o modelo de Estado extrapola a função jurisdicional?1056
Por outro lado, Brêtas C. Dias assevera que as três funções fundamentais do Estado, a
legislativa, a executiva e a judiciária são exercidas por meio de órgãos que, por sua vez, são
criados pela estruturação jurídica constitucional e com observância das normas que compõem
a ordem jurídica instituída. Especificamente, sobre a função jurisdicional, o autor destaca que:
Permite ao Estado, quando provocado, pronunciar o direito de forma imperativa e em posição imparcial, tendo por base um processo legal e previamente organizado, segundo o ordenamento jurídico constituído pelas normas que o Estado edita, nas situações concretas da vida social em que essas normas são descumpridas.1057
Quanto à segunda abordagem, também se mostra insubsistente a afirmação de Calmon
de Passos de que a crise do poder judiciário se relaciona com o processo constitucional de
produção jurisdicional do direito. Ao contrário, o devido processo constitucional não pode
1055 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A crise do Poder Judiciário e as reformas instrumentais: avanços e retrocesso. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, 2006, p. 1-2. 1056 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 80. 1057 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 76.
302
ser causa da crise do Judiciário, mas constitui-se em direito-garantia que deve nortear toda
atividade jurisdicional e não um mero instrumento da jurisdição nos moldes idealizados pela
escola instrumentalista do processo. Nesse âmbito, a efetividade/legitimidade fundamenta-se
nos instrumentos processuais, marcados pelo direito-de ação, pelos princípios constitutivos do
processo e pelo direito ao advogado. Assim, a efetividade e garantia dos direitos fundamentais
passa pelo modelo constitucional, conforme adverte Gonçalves:
[...] Com as novas conquistas do Direito, o problema da justiça no processo foi deslocado do ‘papel missão’ do juiz para as garantias das partes. O grande problema da época contemporânea já não é da convicção ideológica, das preferências pessoais, das convicções íntimas do juiz. É o de que os destinatários do provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo jurisdicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade, podendo compreender porque, como, por que forma, em que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos e para impor condenações.1058
Ainda no que se refere à terceira abordagem, ou seja, na institucionalização dos
agentes políticos responsáveis pela produção jurisdicional do direito, não é permitido ao juiz
agir com discricionariedade, uma vez que ele [o juiz] deve nortear sua atividade pelo princípio
da legalidade, devendo ser respeitada a isonomia processual dos sujeitos do processo, e todas
as decisões devem ser fundamentadas. Outrossim, os próprios interlocutores do processo
participam da construção do provimento emanado do Estado, em suas diversas esferas,
construindo o contraditório, que, por sua vez, é reflexo do Estado democrático de direito.
Assim, de acordo com essas três primeiras abordagens por Calmon de Passos, haveria
necessidade de uma reforma constitucional. Porém, como adverte Almeida, essa reforma é
desnecessária, haja vista que os direitos-garantias já se encontram positivados, fazendo-se
necessária apenas a implementação e concretização dessas conquistas. Nesse sentido,
Almeida esclarece:
[...] o que falta é o esclarecimento, a conscientização (co-ciência) de que é a principiologia institutiva do processo que encaminha a cidadania, a formação e o exercício da vontade. O impasse é concretizar, operacionalizar e implementar essas conquistas já positivadas, o que somente é possível se destrincharmos o princípio jurídico da democracia na contemporaneidade.
Ressalta-se, sim, a necessidade de uma hermenêutica constitucional quanto às expressões indetermináveis, ambíguas e/ou imprecisas, deixadas intencionalmente
1058 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, 1992, p. 195.
303
pelo legislador originário, a fim de impedir que a jurisprudência crie, na prática, através da mutação constitucional, direitos segundo sua conveniência.1059
Por fim, a quarta abordagem aponta que os procedimentos adotados são as causas da
crise de operacionalidade do Judiciário, tendo em vista que existem procedimentos presentes
no ordenamento jurídico que violam as garantias constitucionais processuais, como a
isonomia, a ampla defesa, o contraditório e o direito ao advogado. Há, no ordenamento
jurídico brasileiro, medidas protelatórias e procrastinadoras que são utilizadas para postergar a
concretização dos direitos fundamentais, ferindo, desse modo, os princípios constitutivos do
processo, inclusive, diante desse fato, a Emenda Constitucional n. 45/2004 acrescentou o
inciso LXXXVIII ao art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, assegurando a
todos uma “duração razoável do processo” e os meios que garantam sua celeridade. Por outro
lado, a pretexto de agilizar a prestação jurisdicional, foram adotadas as súmulas vinculantes,
que acabam por violar os princípios constitutivos do processo. Porém, deve-se ressaltar que as
súmulas vinculantes não solucionam a crise de operacionalidade do Judiciário, que somente
poderá ser solucionada ou amenizada pela observância do devido processo constitucional.
Apesar de a emenda ter acrescentado no rol de direitos fundamentais a duração
razoável do processo e celeridade de sua tramitação – princípio da efetividade, Tavares aponta
que a simples normatização de uma situação do mundo da vida (juridicização) não é
suficiente para solucionar o problema da “lentidão do processo”. Outrossim, o legislador
apenas reconstitucionalizou um princípio que já havido sido introduzido no ordenamento
jurídico brasileiro através do art. 8º, da Convenção Americana de Direitos Humanos –Pacto
São José da Costa Rica.1060
Ainda sobre o tema, Tavares acentua que o legislador não se utilizou de uma técnica
acertada de redação, pois a expressão correta não seria duração do processo, mas do
procedimento, haja vista que aquele é um direito e não fica condicionado à duração temporal:
[...] Entendendo-se o processo como um direito-garantia constitucionalizado e de natureza fundamental – definição que resulta da escrituração do título II, da Constituição Brasileira, não se pode cogitar que um direito tenha ou não “duração” nem que esta seja razoável. Ao escriturar o termo “duração”, o inciso LXXVIII, do artigo 5º, da Constituição Brasileira, se refere à “tramitação dos procedimentos administrativos ou judiciais” e não ao Processo, pois, este é um direito e como tal
1059 ALMEIDA, Andréa Alves de. A efetividade, eficiência e eficácia do processo no Estado democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro (Coord.). Estudos continuados de teoria do processo, 2004, v. 4, p. 86. 1060 TAVARES, Fernando Horta. Tempo e processo. In: GALUPPO, Marcelo Campos. O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: PUC Minas, 2006, p. 218.
304
impossível de ser enquadrado numa estrutura abstrata de duração do tempo, e tampouco a qualquer conceito de razoabilidade.1061
Ao estudar a relação entre tempo e processo, Tavares assevera que, para justificar a
necessidade de novas técnicas processuais, o tempo tem sido apontado como uma das causas
para a “lentidão do processo”. Porém, o autor adverte que a demora no percurso legal de
resolução de conflitos não pode ser imputada a fatores temporais, mas àquelas pessoas que
participam da estrutura procedimental, em decorrência de questões relacionadas à ineficiência
das atividades desenvolvidas pelo aparato Judiciário. Assim, Tavares ressalta a necessidade de
observância do devido processo constitucional e do princípio da reserva legal.
Nessa linha de idéias, ao tratar da duração razoável e da celeridade da estrutura
técnica, Tavares esclarece:
Logo, duração razoável indica tramitação ou a prática de atos “delimitada por marcos temporais com começo e fim”, mas esta trilha procedimental deve ser percorrida regularmente (que é a melhor definição técnica para o termo “razoável,” também ligada à racionalidade procedimental).
Mas o que dizer de tramitação “célere”? Adjetivo latino célere, que em sentido próprio indica “pronto, rápido”, e em sentido figurado indica “vivo” (FARIA, 1967, P. 172). No plano da Teoria do Processo Constitucionalizado, a celeridade se liga ao cumprimento do Princípio da Legalidade e do respeito aos princípios da Isonomia, da Ampla Defesa e do Contraditório, sem quaisquer compressões ou supressões do exercício destes direitos, pelos sujeitos do processo e com observância necessária pelo próprio Estado-juiz e pelos auxiliares do juízo.1062
Nesse sentido, Leal esclarece que a expressão “razoável duração do processo” acaba
por estigmatizar o processo, pois, na concepção dos instrumentalistas, significa um meio de os
juízes fazerem “justiça rápida”. Além disso, mensurável é o procedimento e não o processo:
Ora, o processo, como instituição constitucionalizante e constitucionalizada e fundadora do status democrático não-paidéico, não se desenvolve por relações métrico-temporais e espaciais (duração fatal), uma vez que, em sendo paradigma lingüístico-discursivo por princípios autocríticos (teoria neo-institucionalista), é interpretante que atua ao longo da validade e legitimidade do sistema jurídico aberto a um devir dialógico (crítico) procedimental construtivo, reconstrutivo, desconstrutivo, afirmativo ou extintivo dos conteúdos de legalidade que possam ameaçá-lo ou lesá-lo (contrapor-se ao PROCESSO). Portanto, mensurável é o procedimento que, em sendo a estrutura técnica regida ou regida-atuada pelo PROCESSO, comporta uma ratio interlocutória de durabilidade (relação jurídica espácio-temproal) que só pode ser uma RAZÃO egressa dos conteúdos da LEI
1061 TAVARES, Fernando Horta. Tempo e processo. In: GALUPPO, Marcelo Campos. O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito, 2006, p. 218-219. 1062TAVARES, Fernando Horta. Tempo e processo. In: GALUPPO, Marcelo Campos. O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito, 2006, p. 219.
305
(ratio-legis) processualmente produzida ex ante e que só é célere enquanto EFETIVO (assegurador de eficiência sistêmica redutora da massa de conflitos nas bases políticas da comunidade jurídico-democrática de direito). Não há, nas democracias jurídico-político-processualizadas, assegurar celeridade sem ampla defesa (esgotamento da cognitio) e isonomia (simétrica paridade de tempo procedimental e em direitos fundamentais já pré-cognito e processualmente garantidos na base instituinte da constitucionalidade.1063
O Senador Ronaldo Cunha Lima foi responsável pela Proposta de Emenda à
Constituição, que recebeu, no Senado Federal, o n. 54, de 1995, e pela redação do art. 102,
§ 2º, que atribui efeito vinculante às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Após
aprovada a proposta no Senado Federal, ela foi remetida para a Câmara dos Deputados, que
recebeu o n. PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 500, de 1997. O Senador apresentou
três argumentos para justificar a proposta apresentada. O primeiro argumento se relaciona ao
acúmulo de processos no Supremo Tribunal Federal, dos quais cerca de 70% são repetitivos; o
segundo diz respeito à harmonização dos aspectos relacionados às questões constitucionais; e
o terceiro diz respeito ao acesso ao Judiciário. Nesse sentido, foi o discurso proferido pelo
Senador Ronaldo Cunha, em 22 de julho de 1997:
Ao propor a emenda constitucional que modifica o § 2º do art. 102 da nossa Constituição, criando o chamado efeito vinculante, eu o fiz basicamente por três razões fundamentais: Primeiro, a medida pretende desafogar o Supremo Tribunal Federal, que tem distribuídos entre os seus 11 membros cerca de 30 mil processos sub judice, dos quais aproximadamente 70% exigem decisões repetitivas, porque são julgados já prolatados, já proferidos por aquela egrégia Corte. O segundo fundamento é a tentativa de harmonizar o quanto possível as decisões judiciais deste País, para evitar posições conflitantes de juízes; de tribunais, de instâncias superiores na análise jurídica de determinadas matérias já apreciadas e muitas definitivamente julgadas pela Suprema Corte brasileira. Por último, Sr. e Srs. Senadores, a proposta pretende igualdade entre recursos processuais e recursos materiais. A isso se referia há pouco, com muita propriedade, o eminente Senador Antônio Carlos Valadares, cujas palavras registro com alegria e indisfarçável emoção, pela consciência política e sensibilidade jurídica reveladas.1064
Ao estudar a súmula vinculante, Lima destaca a necessidade de sua adoção. Para o
autor, ao contrário daqueles que reagem contra a adoção das súmulas vinculantes, em seu
entendimento a instituição de uma jurisprudência obrigatória não afronta as garantias
1063 LEAL, Rosemiro Pereira. A principiologia jurídica do processo na teoria neo-institucionalista. Virtuajus, Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, 2005, p. 13. 1064 LIMA, Senador Ronaldo Cunha. Discurso proferido no Senado Federal. In: LIMA, Senador Ronaldo Cunha. Efeito vinculante. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 105.
306
constitucionais do princípio da “separação dos Poderes” e da independência da magistratura.
Segundo ele, a doutrina de Kelsen autoriza os tribunais superiores a produzirem norma geral
com força de precedente.1065 Ademais, por essa perspectiva, as súmulas não levam à
estabilização da jurisprudência, apenas impedem o perigo do livre-arbítrio judicial, que acaba
por dar soluções contrárias para casos iguais. Assim, as súmulas objetivam uniformizar a lei
federal, dar maior coerência às decisões judiciais e celeridade processual, impedindo o
julgamento de inúmeros recursos repetitivos e meramente protelatórios. Por essa concepção, a
súmula vinculante constitui-se em autêntico instrumento de garantia de julgamento rápido,
com segurança jurídica e de renovação e progresso do direito:
[...] mais do que dar efetividade a princípios modernos de processo, como celeridade e economias processuais, viabilizando o ideal de justiça rápida e segura, a instituição da súmula vinculante impõe como necessidade de conferir concreção à específica finalidade institucional do STF e dos tribunais superiores, consistente na função de assegurar a inteireza positiva, a validade, a autoridade e a uniformidade de interpretação da Constituição e das leis federais infraconstitucionais, respectivamente.1066
Porém, essa não é a posição adotada no presente trabalho, uma vez que a pesquisa
realizada aponta que a súmula não possibilita a renovação do ordenamento jurídico, já que
não permite, através da via argumentativa, a evolução dos entendimentos dos tribunais.
Ademais, no Estado democrático de direito, o juiz está adstrito à legalidade (princípio da
persuasão racional do juiz), não havendo lugar para o livre-arbítrio judicial.
Por outro lado, há os que defendem que as súmulas vinculantes proporcionarão um
tratamento isonômico das partes, evitando desigualdade arbitrária, pois os casos semelhantes
serão tratados do mesmo modo. Nessa linha de idéias, Dworkin aponta: “[...] A força
gravitacional de um precedente pode ser explicada por um apelo, não à sabedoria da
implementação de leis promulgadas, mas à eqüidade que está em tratar os casos semelhantes
do mesmo modo.”1067
1065 “Um tribunal, especialmente um tribunal de última instância, pode receber competência para criar, através de sua decisão, não só uma norma individual, apenas vinculante para o caso sub judice, mas também normas gerais. Isto é assim quando a decisão cria o chamado precedente judicial, quer dizer: quando a decisão judicial do caso concreto é vinculante para a decisão de caso idêntico.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1988, p. 277-278. 1066 LIMA, Diomar Bezerra. Súmula vinculante: uma necessidade. Revista de Processo, São Paulo, a. 27, n. 106, p. 217-220, abr./jun. 2002. 1067 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 176.
307
Entretanto, a padronização de decisões não significa tratamento isonômico, tendo em
vista que esse somente ocorre por meio da observância do devido processo constitucional.
Pelo contrário, haverá uma extensão da coisa julgada a quem não participou da construção da
decisão. Assim, a intersubjetividade e a dialogicidade estão ausentes na elaboração das
súmulas.
Dinamarco argumenta a favor da legitimidade das súmulas vinculantes, visto que, para
ele, acatar a súmula pressupõe acatar um preceito normativo posto pela ordem jurídica.
Assim, por essa concepção, elas não se constituem em óbice à cidadania e não ferem a
independência do juiz. Pelo contrário, elas serão capazes de “ofertar a justiça” em tempo
razoável, aliviando a sobrecarga de trabalho do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido,
Dinamarco assevera:
De minha parte sempre louvei a idéia das súmulas, porque vejo nelas a capacidade de pacificar em tempo relativamente breve a jurisprudência sobre temas relevantes ligados à ordem constitucional, servindo também para o desafogo dos trabalhos dos tribunais (especialmente o Supremo Tribunal Federal). Não vejo qualquer ameaça à liberdade dos cidadãos nem à independência dos juízes, porque o acatamento a elas será acatamento a preceitos normativos legitimamente postos na ordem jurídica nacional, tanto quanto as leis. Quem emitirá esses preceitos será um órgão expressamente autorizado pela Constituição Federal e essa autorização era e é vital para todos que se interessem pela presteza na oferta do acesso à justiça.1068
Ao se colocar a favor das súmulas vinculantes, Dinamarco, adepto da escola
instrumentalista do processo, acaba por aceitar que a jurisdição ocorra sem procedimento e
sem processo, uma vez que as súmulas vinculantes são elaboradas na realidade
desprocessualizada. Por outro lado, Leal, idealizador da escola neo-institucionalista do
processo, adverte que, sob o mito de uma “justiça célere”, a jurisdição por essa concepção
atua pelo Estado-juiz e acaba deixando o julgamento do povo à mercê, sem o devido
processo legal:
A cada dia, o caráter interdital da summaria cognitio se fortalece entre os integrantes do Poder Judiciário e seus epígonos em nome da JUSTIÇA RÁPIDA (a justiça verdadeira e justiceira de Libniz), uma justiça dita racional da razão dos CIVIS que, vestidos agora de magistrados de uma interditalidade eternizante, querem ser mais que juízes de uma racionalidade efêmera. A jurisdição, sem procedimento e processo, é a tônica da contemporaneidade tirânica, travestida de uma efetividade processual, que prolonga secularmente a sociedade civil, fixando-a dentro e fora do ESTADO, à margem da lei, suspendendo as conjecturas de Hegel e Marx ao se
1068 DINAMARCO, Cândido Rangel. O processo civil na reforma constitucional do Poder Judiciário. Revista Jurídica Eletrônica Unicoc. Disponível em: <http://www.revistajurídicaunivoc.com.br.> Acesso em: 20/10/2006.
308
encravar numa zona de anomia que embosca a lei estatal num espaço extra-sistêmico com força de lei e em nome da lei (caráter constitutivo e legiferante-suplementar da atividade jurisdicional). Essa atuação em zona anômica (que torna ingênuas as convicções legalistas de Carl Schmitt em suas concepções de estado de exceção) é que inaugura, para os CIVIS adeptos da escola instrumentalista do processo, o chamado PROCESSO JURISDICIONAL englobante de todas as especialidades do PROCESSO civilizatório como marcha acelerada da sociedade civil em várias ritualísticas.1069 (grifos do autor)
Por sua vez, Grinover, ao tratar das mudanças estruturais no Processo Civil brasileiro,
destaca que as reformas introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda
n. 45/2004 tiveram como objetivo a celeridade processual, com a conseqüente simplificação,
desformalização e democratização do processo. Assim, segundo a autora, essas mudanças
visam operar no plano funcional de “administração da justiça”, com o intuito de se alcançar
um processo de resultados. Para Grinover, as súmulas vinculantes foram uma resposta
adequada para a crise numérica dos recursos interpostos ao Supremo Federal. Nessa linha de
idéias, Grinover argumenta:
Como podem os onze ministros do Supremo Tribunal Federal julgar 160.000 processos por ano? Uma das respostas adequadas para o desafio criado por um crescimento desmesurado foi a súmula vinculante, que não tem apenas o efeito de impedir os recursos sobre a matéria já sumulada, mas, sobretudo, o de fixar uma orientação a ser obrigatoriamente seguida pelo Poder Judiciário em geral. E, especialmente, pela Administração direta e indireta, responsável pela grande maioria de recursos perante o Supremo Tribunal Federal.1070
Apesar de destacar que as reformas introduzidas pela Emenda Constitucional n.
45/2004 não solucionarão o problema de operacionalidade do Judiciário, que é a lentidão na
atividade jurisdicional, Velloso ressalta que a súmula vinculante, utilizada de maneira
adequada, poderá trazer benefícios, posto que eliminará os recursos meramente protelatórios e
repetidos e proporcionará uma aplicação do princípio isonômico, acabando, dessa forma, com
a “loteria judiciária”. Em sua opinião, as súmulas não inviabilizam o acesso à justiça. Pelo
contrário, elas proporcionam a segurança jurídica:
Em artigo que publiquei, anotei que algumas vozes se levantam contra essas medidas, argumentando que a eficácia erga omnes e o efeito vinculante limitam o
1069 LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade civil. Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas, Belo Horizonte, a. 4, n. 2, p. 5, dezembro de 2005. Disponível em: <http:// www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/prod-docente-ano4-2006.html>. Acesso em: 14/09/2006. 1070 GRINOVER, Ada Pellegrini. Mudanças estruturais no Processo Civil brasileiro. Revista IOB, São Paulo, n. 44, p. 35-55, São Paulo, nov./dez. 2006.
309
acesso à justiça. O argumento não é procedente. O efeito vinculante, aliás não tem sabor de novidade no sistema judicial norte-americano, que é dos mais eficientes. É que, em razão do stare decisis – stare decisis et non quieta movere –acolhido no sistema do common law, estabelece à Corte o princípio legal aplicável a certo estado de fato. Estabelecido o princípio, será ele aplicado a todos os casos futuros em que os fatos forem substancialmente os mesmos.
É dizer, no sistema judicial norte-americano, que garante aos indivíduos, de modo amplo, a tutela jurisdicional, todos os Tribunais estão vinculados às decisões da Suprema Corte, nos casos em que os fatos forem substancialmente iguais ao estado de fato em que a decisão da Suprema Corte foi tomada.
Isso, sem dúvida, proporciona segurança jurídica.1071
Porém, como Penna adverte que no Estado democrático não se podem aceitar decisões
que, sob o mito de dar segurança jurídica, obstaculizam o discurso jurídico-democrático, que
se constitui no fundamento de uma Sociedade Jurídico-Político democrática:
É por isso que o Estado democrático de direito, que se funda pelo processo constitucional, não pode se conformar com decisões judiciais, mesmo que autorizadas por “lei e emendas” (inconstitucionais), que, sob o falso argumento da manutenção de “segurança jurídica”, extrapolam o limite interpretativo da norma jurídica para se transformar na própria norma, substituindo-a, ou até mais do que ela, obstando e cerceando o discurso jurídico-democrático, próprio de uma sociedade pluralista que detém o direito inafastável de efetiva participação na construção da ordem jurídica.1072
Por conseguinte, a pretexto de agilizar a prestação jurisdicional, de proporcionar
segurança jurídica e de assegurar a certeza do direito, o efeito vinculante acaba por violar as
garantias processuais. Desse modo, ao contrário dos que defendem a legitimidade das
decisões com efeito vinculante, a pesquisa aponta que elas não possuem legitimidade nos
termos preconizados pela teoria discursiva habermasiana. Além disso, de modo diverso do
critério da falseabilidade popperiano que possibilita a construção do ordenamento jurídico
dentro do espácio-temporal da discursividade, essas decisões impedem a renovação do
ordenamento jurídico. Por outro lado, ao contrário da teoria neo-institucionalista que enfatiza
o processo jurídico, elas fazem uso do processo histórico. Por fim, o efeito vinculante
inviabiliza a fiscalidade do ordenamento jurídico por parte dos destinatários da decisão.
Assim, essas metanarrativas utópicas, que possuem objetivos “grandiosos” para seus
1071 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Poder Judiciário: reforma. A Emenda Constitucional n. 45, de 08/12/2004. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, Brasília: OAB Conselho Federal, n. 80, ano XXXV, p. 20, jan./jun. 2005. 1072 PENNA, Saulo Versiani. A decisão de efeito vinculante na teoria do processo jurídico contemporâneo: sua legitimidade sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, 2004, p. 141.
310
defensores, não passam de lendas e mitos da modernidade. Porém, o Estado da pós-
modernidade implica o fim do apelo ao mito legitimador dominante, uma vez que somente
através do processo jurídico pode ocorrer a construção de um direito democrático.
2.4 Da ilegitimidade da adoção das súmulas vinculantes
No Estado democrático de direito, a legitimidade das decisões não se relaciona com a
mera positivação do direito nem com a existência de emendas constitucionais que
possibilitam a adoção de súmulas vinculantes, mas pela possibilidade de os destinatários da
norma participarem de sua construção. Desse modo, a “dialogicidade” é fator preponderante
na construção de decisões válidas e eficazes. Por conseguinte, o presente subitem pretende
submeter a testes as súmulas vinculantes, com o intuito de investigar se elas se coadunam com
o Estado da pós-modernidade. Ao contrário da modernidade, que era marcada pela crença
nas metanarrativas, nos mitos e nas crenças, a legitimidade na pós-modernidade não ocorre
pela autoridade de um tribunal, como ocorre com as súmulas vinculantes, mas pressupõe a
responsabilidade da comunidade jurídica na construção do ordenamento jurídico.
O Estado democrático de direito apresenta os mesmos princípios que o Estado de
direito, destacando que, em ambos, podem ser observados a reserva legal, a separação das
funções e o sistema de direito. Acrescente-se a este o princípio democrático, com a efetiva
participação dos destinatários da norma na construção dos provimentos jurisdicionais, por
meio da processualidade jurídica, observados o devido processo constitucional, o devido
processo legislativo e o devido processo legal. Assim, somente uma teoria democrática do
processo viabiliza a construção de um direito legítimo.
Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece um
modelo constitucional de processo fundamentado nos princípios do contraditório, da ampla
defesa (art. 5º, inciso LV), da isonomia (art. 5º, caput), do devido processo legal (art. 5º,
inciso LIII), da inafastabilidade do controle judiciário ou o exercício do direito-de-ação (art.
5º, inciso XXXV) e do direito ao advogado (art. 133) e da fundamentação das decisões (art.
93, inciso IX). Somente através da observância desses princípios é que se possibilita a
construção de provimentos legítimos. Desse modo, o objetivo do presente subitem é
investigar se na emissão das súmulas pelo Supremo Tribunal Federal há observância desses
princípios, que se constituem no sustentáculo do Estado democrático de direito.
311
A persuasão racional do juiz significa que o juiz não pode decidir baseado em
discricionariedade, conveniência e eqüidade sem amparo no princípio da legalidade. Desse
modo, Leal assevera que “[...] a reserva legal, como referente lógico jurídico da legitimidade
jurisdicional erigiu-se em princípio constitucional de racionalidade na prolatação das decisões
judiciais, o que torna imprescindível a fundamentação do ato jurisdicional em leis que lhe
sejam precedentes.”1073
Nessa linha de idéias, Brêtas C. Dias assevera que a função jurisdicional está
vinculada aos princípios do Estado democrático de direito. Esse princípio será otimizado por
dois outros subprincípios, que são o princípio da supremacia constitucional e o princípio da
reserva legal (ou da prevalência da lei). Assim, a legitimidade das decisões jurisdicionais se
relaciona com a sujeição dos órgãos jurisdicionais às normas que integram o ordenamento
jurídico, as quais, por sua vez, são emanadas da vontade popular. Por conseguinte, decisões
baseadas em subjetivismo, autoritarismo ou discricionariedade, denominadas por esse autor
de complexo de Magnaud1074, devem ser descartadas:
Por essas razões, deve ser energicamente descartada qualquer doutrina que sugira aos órgãos estatais (juízes e tribunais) exercício da função jurisdicional sob critérios outros dissociados da constitucionalidade da jurisdição, porém, ao revés, marcado de forma inconstitucional e antidemocrática pela arbitrariedade, pela discricionariedade, pelo subjetivismo, pelo messianismo, pelas individualidades carismáticas ou pela patologia que denominamos complexo de Magnaud.1075
Por outro lado, Habermas1076 assevera que a legitimidade do direito não se concretiza
apenas pela legalidade, devendo ser justificada mediante razões. Assim, não é suficiente que
as decisões sejam fundamentadas através de discursos jurídicos, mas elas também devem
fundamentar-se em regras abertas aos discursos morais. Por conseguinte, as decisões, por essa
concepção, resultam da discursividade e não de uma atividade solitária do juiz. Ao contrário,
1073 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 124. 1074 “Jean-Marie Bernard Magnaud foi o juiz que, na França, presidiu o Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, no período de 1899 a 1904, cujos julgamentos se tornaram célebres, mas assim sobressaindo porque subvertiam a ordem jurídica, formulando regras apoiadas unicamente no sentimentalismo e nos seus juízos e opiniões pessoais, que variavam em cada situação apreciada, ainda que semelhantes os casos julgados. Essas decisões assim proferidas simbolizavam a anarquia jurídica, porque levavam em conta a classe, a mentalidade religiosa ou a ideologia política das pessoas que postulavam a jurisdição. Ao ditar a sentença comportava-se Magnaud como se fosse a própria encarnação do direito, um misto de legislador, de vidente, de apóstolo e de evangelizador, dir-se-ia espécie mitológica do Juiz-Zeus. Para alguns doutrinadores, entretanto, Magnaud proferia suas sentenças com base na eqüidade.” BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 135. 1075 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 134 1076 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 126.
312
as súmulas não se submetem a uma fiscalização participativa, uma vez que decorrem de
imposição do Supremo Tribunal Federal.
Desse modo, a legitimidade de uma norma jurídica somente é alcançada quando
submetida à discursividade no âmbito da processualidade, ou seja, quando viável à
concretização da participação efetiva do povo (comunidade jurídica) em todo o processo
legislativo. Outrossim, a aplicabilidade da teoria do discurso, no Estado democrático de
direito, só é possível através do processo visto como instituição constitucionalizada e
metodologia garantidora dos direitos fundamentais, pautado nos princípios institutivos do
contraditório, isonomia e ampla defesa.
Penna, ao investigar a teoria neo-institucionalista do processo e sua relação com a
emissão do provimento legítimo, acentua: “[...] é facilmente perceptível a incompatibilidade
da teoria neo-institucionalista do processo com a implantação de sistema de decisões de cunho
genérico e de efeito vinculativo, especialmente quando concebidas nos bastidores de
tribunais.”1077
Os testes apontam que as súmulas vinculantes são incompatíveis com a teoria neo-
institucionalista do processo, pois, enquanto essa teoria enfatiza o processo jurídico, as
súmulas vinculantes enfatizam o processo histórico. Além disso, elas não permitem a
dialogicidade jurídica, por não haver observância do devido processo constitucional e suas
vertentes. Desse modo, as súmulas vinculantes são construídas pelos Ministros do Supremo
Tribunal Federal e não pelas partes litigantes. Porém, é de bom alvitre salientar que “[...] o
juiz não é o construtor do direito, mas concretizador do ato decisório de encerramento do
discurso estrutural do procedimento processualizado pelo devido processo democrático.”1078
Desse modo, é mister salientar que a adoção do critério de falseabilidade popperiano e
do princípio do discurso pela teoria neo-institucionalista do processo indica a possibilidade do
exercício e aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional e
implica um rompimento epistemológico com o modo como o processo vem sendo abordado.
Por outro lado, as súmulas vinculantes não se adaptam à teoria processual da pós-
modernidade, uma vez que a fundamentação e legitimidade passam obrigatoriamente por um
espaço processualizado aberto a todos da comunidade jurídica. Na emissão das súmulas
1077 PENNA, Saulo Versiani. A decisão de efeito vinculante na teoria do processo jurídico contemporâneo: sua legitimidade sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, 2004, p. 69. 1078 TRINDADE, Adriana Luisa Vieira. O princípio da ampla defesa como direito-garantia na constitucionalidade democrática, 2005, p. 93.
313
vinculantes, não há submissão à fiscalidade ampla, irrestrita e constitucionalizada
procedimentalmente.
Nesse diapasão, Aguiar, ao estudar o motivo pelo qual as súmulas vinculantes não
devem ser adotadas no atual modelo de Estado, assevera que:
[...] Ao contrário do Estado Liberal ou Social, o provimento jurisdicional legítimo não é o resultado de uma atividade solitária do juiz (decisão solipsista), mas conta com a participação dos destinatários da norma e com a observância do devido processo constitucional, devido processo legislativo e devido processo legal. As súmulas não proporcionam à comunidade jurídica a participação efetiva na construção do provimento. Ao contrário, um provimento proferido no Estado Democrático de Direito deve permitir a participação de todos os interessados.1079
A adoção das súmulas vinculantes viola o princípio da separação das funções, uma vez
que, conforme atribuição constitucional, cabe ao Legislativo a função de legislar e ao
Judiciário a função de aplicar a norma ao caso concreto. Assim, quaisquer manifestações dos
Tribunais Superiores na elaboração de normas são ilegítimas. Ao discorrer sobre as funções
jurídicas fundamentais do Estado, Brêtas C. Dias esclarece:
a) a função legislativa consiste na edição de normas obrigatórias de caráter geral e abstrato, as quais compõem o ordenamento jurídico vigente, criando o Estado, assim, o direito positivo, com o objetivo de disciplinar as suas próprias atividades e condutas das pessoas na vida em sociedade;
b) A função governamental, administrativa ou executiva compreende todas as manifestações concretas das diversas atividades desenvolvidas pelo Estado que visem a concretização dos interesses e negócios públicos correspondentes às necessidades coletivas prescritas no ordenamento jurídico vigente;
c) A função jurisdicional permite ao Estado, quando provocado, pronunciar o direito de forma imperativa e em posição imparcial tendo por base um processo legal e previamente organizado, segundo o ordenamento jurídico constituído pelas normas que o Estado edita, nas situações concretas da vida social em que essas normas são descumpridas.1080
Segundo Neves, a usurpação da função legislativa pelo Judiciário fica evidente, já que,
se por um lado o Legislativo não está vinculado às súmulas, por outro lado, não existe
previsão legal acerca de eventual promulgação de lei incompatível com as súmulas.1081
Costa esclarece que as súmulas vinculantes comprometem o princípio da separação
das funções do Estado, vez que sua emissão implica a elaboração de normas com eficácia
1079 AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de et al. Jurisdição e processo no Estado Democrático de Direito. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, 2005, p. 117-118. 1080 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 75-76. 1081 NEVES, Zuenir de Oliveira Neves. A sumarização do processo: o advento da súmula de efeito vinculante em face das garantias constitucionais processuais. Disponível em: <http: jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8552 >. Acesso em: 11/09/2007, p. 4-6.
314
erga omnes. Outra objeção enumerada por Costa contra as súmulas vinculantes relaciona-se
com a violação ao princípio da independência jurisdicional, uma vez que essa ingerência do
Supremo Tribunal Federal sobre a atividade jurisdicional compromete o requisito da
imparcialidade da jurisdição.1082 Assim, no Estado democrático de direito, o juiz deve ficar
adstrito ao princípio da reserva legal e aos argumentos e provas produzidas pelas partes.
Nessa linha de idéias, Streck argumenta que a adoção da súmula implica a perda da
independência dos juízes, já que, ao concentrar o poder de emissão das súmulas nos tribunais
superiores, retira-se das instâncias inferiores a possibilidade de analisar cada caso concreto e
suprime a independência dos juízes. Além disso, na prática jurídica, muitas vezes são citadas
súmulas e jurisprudências sem contextualização com a situação fática:
[...] Não se pode olvidar que, desde há muito, no plano da prática jurídica, grande parcela das querelas jurídicas têm sido decididas mediante a (singela) citação de ementas, jurisprudências (ou Súmulas) descontextualizadas. Ou seja, as decisões, embora fundamentadas, não são suficientemente justificadas, é dizer, não são agregadas aos ementários jurisprudenciais os imprescindíveis suportes fáticos, decorrendo daí o que denominamos de “um perigoso ecletismo”, originário de um “hibridismo” (simplista/simplificado) entre common law e civil law. Por tais razões, não tenho medo de afirmar que trocar a democracia e a independência dos juízes pelo desafogo dos processos – tese que começa perigosamente a ser aceita até mesmo pelos que são contrários à vinculação sumular – é um preço exageradamente alto a ser pago por todos nós. Ou seja, ao acreditarem na simplista tese de que o desafogo do aparelho judiciário depende de drástica providência do tipo “vinculação sumular”, os operadores do Direito agem como aquele cidadão que perdeu o relógio em meio a uma praça escura e, ao invés de procurá-lo nas imediações de onde perdera, põe-se a procurá-lo, comodamente, embaixo de um iluminado poste de luz... Perguntando do motivo de tal atitude – porque, à evidência, inútil – o cidadão responde. É bem mais fácil procurar aqui.1083
Por sua vez, Silva refuta esses argumentos de Streck sob o fundamento de que, ao se
repetir o que se julgou, não se retira a liberdade dos juízes inferiores, mas “[...] apenas
economiza uma discussão desnecessária, poupando tempo e praticando um procedimento
rápido e eficaz. Tudo, aliás, de acordo com a filosofia do nosso tempo, que exige um mínimo
de eficácia e eficiência em todos os procedimentos e ações praticadas por quaisquer setores ou
pessoas da administração pública ou particular.”1084 Além disso, o autor argumenta que, na
primeira instância, a discussão foi suscitada pelas partes, no exercício de direito de ação e em
observância do devido processo legal. 1082 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário, 2002, p. 225-226. 1083 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 1998, p. 275. 1084 SILVA, Antônio Álvares da. As súmulas de efeito vinculante e a completude do ordenamento jurídico. São Paulo: LTr, 2004, p. 116.
315
Porém, essas reflexões realizadas por Silva não se coadunam com o Estado da pós-
modernidade, porque as partes que sofrerão os efeitos das súmulas vinculantes não
participarão de sua construção. Por esse motivo, não se pode falar em devido processo legal,
se os destinatários da norma não participaram da sua elaboração em um espaço procedimental
processualizado. Desse modo, Silva não coloca no centro de sua reflexão o processo jurídico,
nos moldes preconizados pela teoria neo-institucionalista. Por outro lado, não se pode permitir
que o devido processo constitucional seja afastado na elaboração das súmulas como acaba
por consentir Silva, uma vez que de seus apontamentos se infere que não seria necessário que
isso ocorresse nos tribunais superiores.
Outro aspecto a ser investigado é o sistema de direito. Sobre o tema, Brêtas C. Dias
esclarece que esse é um dos fundamentos do Estado de direito e se constitui no
[...] vigoroso e exuberante rol de direitos, liberdade e garantias fundamentais declarados nos artigos 5º e 6º, entre eles o princípio da igualdade, o princípio da reserva legal e o direito à jurisdição pela garantia do devido processo constitucional, estruturando-se nos princípios do contraditório e da ampla defesa, incluindo-se nesta a garantia, a indispensável presença do advogado no ato de julgar (art. 5º, incisos, I, II, XXXV, LIV e LV, e art. 133).1085
Habermas evidencia que os sistemas de direitos são constituídos por aqueles direitos
que os cidadãos se atribuem de forma recíproca e que são capazes de garantir a
eqüiprimordialidade entre autonomia pública e privada.1086
Por outro lado, Leal adverte a necessidade de se analisarem esses direitos, sejam eles
humanos ou fundamentais, pelo eixo hermenêutico do devido processo:
É nesse passo de engenharia (civil) (LEAL, 2005) fantastística das palavras que comparecem os corporalizados direitos humanos como tijolos sememáticos que se multiplicam numa autopoiese prolífera, se lidos na estática substantivada do preâmbulo da Constituição Brasileira (direitos sociais e individuais, liberdade, poder público, estado, união, segurança, igualdade, bem-estar, desenvolvimento, justiça) numa oferta pródiga que se estabelece pelo art. 1º, incisos II (cidadania), III (dignidade), IV (valores sociais do trabalho e da livre iniciativa) e arts. 2º e 4º em sua inteireza, O preâmbulo constitucional é, portanto, o portal aberto a esses direitos (discurso retoricamente afirmativo) sem que ninguém mais possa abri-los porque já se encontram abertos ante todos, como no conto de Kafka (perante a lei), e guardados em seus sentidos herméticos pelos três poderes (legislativo, executivo e judiciário), que se incubem de assegurar que todos fiquem perante a lei sem jamais nela entrarem para intratextualizá-la e fruí-la em seus conteúdos de validade e legitimidade.
1085 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 105. 1086 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v.1, p. 159-160.
316
Esses direitos ditos humanos, ao receberem o nome (transformação em outra coisa) de direitos fundamentais, ora individuais (vida, dignidade, liberdade-igualdade), ora econômico-sociais (existência digna, valorização do trabalho, justiça social, pleno emprego), conforme se vê nos arts. 5º e 170º e seus incisos e parágrafos da Constituição vigorante, continuam auto-conceptivos de si mesmos, se não examinados pelo eixo hermenêutico do devido processo.1087 (grifos do autor)
Assim, as súmulas vinculantes não se conformam com essa concepção de construção
dos direitos por meio do devido processo, tendo em vista que são realizadas em uma
realidade não processualizada. Em contrapartida, Leal acentua a necessidade da observância
da processualidade jurídica na criação dos direitos humanos:
Um direito à vida não produzida no exercício lingüístico da instância sígnica do instituto jurídico do contraditório (integração no discurso de produção e aplicação dos sentidos normativos) conceberia vida no plano exclusivamente vegetativo ou biológico (zoé-bios). Direito à dignidade sem o prévio correlativo de uma auto-ilustração sobre os fundamentos da própria fala (ampla defesa) recepcionaria o absolutismo da ostentação de uma consciência formada numa relação intimidante do outro reconhecedor (Hegel). Direito à igualdade-liberdade sem antes instituir fundamentos lingüístico-jurídicos postos como autoprivação para todos (isonomia) da livre vontade de uns sobre a fala de outros, seria o exercício da barbarização das minorias pelas maiorias opulentas, mediante o livre-arbítrio da autotutela centrada no poder da autoridade legal ou carismática. É premente esclarecer que ao se falar num direito à vida, dignidade e igualdade-liberdade, sem explicitar a característica do direito construtor dessas dimensões humanas, há risco ideológico de se vedar o que se pretende garantir como estampado no Estado Liberal ou Social de Direito.1088 (grifos do autor)
Por conseguinte, as súmulas vinculantes ofendem os princípios e as garantias
processuais constitucionais. A adoção do efeito vinculante afronta o devido processo
constitucional e suas duas vertentes - o devido processo legal e o devido processo
legislativo, - vez que elas impossibilitam a formação de um espaço discursivo e que não
possibilitam aos destinatários da norma participarem de sua construção.
As súmulas vinculantes acabam por impossibilitar a manifestação do Judiciário aos
casos concretos, motivo pelo qual ofendem o postulado do acesso à jurisdição. Desse modo, o
direito-de-ação assegurado constitucionalmente também é violado. Nesse sentido, Sá
argumenta:
1087 LEAL, Rosemiro Pereira. Direitos fundamentais do processo na desnaturalização dos direitos humanos. In: GALUPPO, Marcelo Campos (Org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito, 2006, p. 665-666. 1088 LEAL, Rosemiro Pereira. Direitos fundamentais no processo na desnaturalização dos direitos humanos. In: GALUPPO, Marcelo Campos. O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: PUC Minas, 2006. p. 219.
317
Se é certo que a súmula vinculante torna inacessível a justiça ao cidadão, não menos certo é que inviabiliza o exercício do direito de ação, isto porque a previsão legal torna impeditiva a apreciação da causa pelo órgão jurisdicional competente para seu julgamento. A redação do § 3º do artigo 98 do substitutivo à Emenda Constitucional n. 96 tolhe de tal maneira a atividade judicial que, conhecida a súmula, conhecem-se de antemão as decisões de todos os casos concretos que se assemelham.
Obstada a apreciação do caso concreto pelo órgão jurisdicional para tanto competente, tem-se como configurada a transgressão ao princípio do direito de ação, afastado o controle do Judiciário quanto a questão específica de interesse do jurisdicionado.1089
Brêtas C. Dias ressalta que a função jurisdicional somente se concretiza no Estado
democrático de direito dentro da estrutura constitucionalizada do processo. Assim, a decisão
jamais será um ato isolado do juiz ou baseado em seu livre arbítrio, mas constitui-se em um
resultado lógico de uma atividade que é realizada em contraditório. Desse modo, Brêtas C.
Dias esclarece que, ao fundamentar uma decisão, deverá justificar as razões pelas quais
proferiu a decisão. Por sua vez, as argumentações das partes são importantes na
fundamentação das decisões como adverte Brêtas C. Dias:
A justificação se faz dentro de um conteúdo estrutural normativo que as normas processuais impõem à decisão (“devido processo legal”), em forma tal que o julgador lhe dê motivação racional com observância do ordenamento jurídico vigente e indique a legitimidade das escolhas adotadas, em decorrência da obrigatória análise dos argumentos desenvolvidos pelas partes, em contraditório, em torno das questões de fato e de direito sobre as quais estabeleceram discussão. Portanto, a fundamentação da decisão jurisdicional será o resultado lógico da atividade procedimental realizada mediante os argumentos produzidos em contraditório pelas partes, que suportarão seus efeitos.1090
Porém, a forma como as súmulas são emitidas não possibilita que as partes possam
produzir argumentos em um espaço processualizado. Desse modo, não se pode falar em
fundamentação das decisões nas súmulas vinculantes.
Brêtas C. Dias esclarece, ainda, porque há exigência constitucional de fundamentação
das decisões, que, segundo ele, podem ser estruturadas em quatro razões relevantes:
a) controle de constitucionalidade da função jurisdicional, permitindo verificar se o pronunciamento estatal decisório está fundado no ordenamento jurídico vigente (princípio da reserva legal);
b) tolhimento da interferência de ideologias e subjetividades do agente público julgador no ato estatal de julgar;
1089 SÁ, Djanira Maria Rademés de. Súmula vinculante: análise de sua adoção, 1996, p. 106. 1090 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. A garantia da fundamentação das decisões judiciais. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte: PUC Minas, v. 8, n. 16, p. 147-161, 2005.
318
c) verificação da racionalidade da decisão, ao apreciar os argumentos desenvolvidos pelas partes em contraditório e ao resolver analiticamente as questões postas em discussão no processo, a fim de afastar os erros de fato e de direito cometidos pelos órgãos jurisdicionais, causadores de prejuízos às partes, ensejando a responsabilidade do Estado;
d) possibilidade de melhor estruturação dos recursos eventualmente interpostos, proporcionando às partes precisa impugnação técnica e jurídica dos vícios e erros que maculam as decisões jurisdicionais, perante órgão jurisdicional diverso daquele que as proferiu, viabilizando a concretização dos princípios da recorribilidade e do duplo grau de jurisdição.1091
Nessa perspectiva, além de as súmulas vinculantes não contarem com a argumentação
das partes em sua elaboração, não possibilitam um controle efetivo da função jurisdicional
pelos jurisdicionados e possibilita a formação de decisões baseadas no subjetivismo e no
livre-arbítrio dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Por fim, sabe-se que o
cancelamento de súmulas somente pode ser feito de ofício pelo Supremo Tribunal Federal ou
a pedido dos legitimados ativos enumerados no art. 3º da Lei n. 11.417, de 19 de dezembro
de 2006, que regulamentou o art. 103-A da Constituição da República Federativa do Brasil.
Desse modo, nesse caso haverá dificuldade em detectar os vícios e erros que maculam uma
súmula que possa ser passível de cancelamento.
Sobre a fundamentação das decisões, Cattoni de Oliveira destaca que ela pressupõe a
participação das partes e a presença do contraditório; sendo assim, a mera referência a uma
súmula não é suficiente para fundamentar uma decisão no Estado democrático de direito.
Desse modo:
Não bastará, para fundamentar uma decisão, a vaga referência a uma súmula, assim como não é fundamentação a mera referência a artigo de lei. A fundamentação das decisões, a sua legitimação, pressupõe o contraditório e ampla defesa, a consideração da argumentação das partes e a demonstração da adequabilidade da decisão ao caso concreto. A súmula vinculante, se levada a sério, só virá a tornar ainda mais complexa a atividade de aplicação do Direito e, assim, o tiro sai pela culatra.1092
Essa também é a posição sustentada por Sá, para quem as fundamentações baseadas
em súmulas serão meramente formais:
[...] porque ao juiz submetido à sua força só restará a subsunção dos fatos à norma posta pelo tribunal, a aplicação mecânica de decisão previamente tida como a única possível porque, repita-se, se o magistrado ousar discordar da súmula, poderá ver cassada sua decisão, o que torna inócuo qualquer esforço interpretativo no sentido
1091 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 150-151. 1092 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Tutela jurisdicional e Estado democrático de direito: três ensaios críticos. Virtuajus, 2002, p. 2.
319
de adequação dos fatos concretos à norma legal vista sob a perspectiva do momento de sua aplicação.1093
Além desses argumentos, Maciel Júnior aponta a incompatibilidade das súmulas com
o sistema romano-germânico, que tem seu sustentáculo na lei. Além disso, as súmulas
impossibilitam a revisão da jurisprudência, levando a uma cristalização das decisões:
[...] a proposta de acatar o efeito vinculante às súmulas no sistema nacional é incompatível com o ordenamento jurídico, porque petrifica, cristaliza decisões, eliminando a “válvula respiratória” de nosso sistema, que é a liberdade de questionamento da lei e da jurisprudência dada a qualquer juiz, em face de seu livre convencimento e da possibilidade de revisão da jurisprudência em vista aos novos valores vigentes na sociedade.1094
Assim, as súmulas vinculantes só podem ser concebidas por uma visão historicista, ou
seja, à margem da pós-modernidade, tendo em vista que sua emissão de forma solipsista e
autoritária gera uma desprocessualização do direito. Por isso, qualquer proposta para a crise
de operacionalidade deve submeter-se ao processo jurídico, uma vez que esse pode ser
considerado a maior conquista teórica da pós-modernidade, já que somente o processo
possibilita a produção de direitos a partir “dialogicidade” jurídica, conforme aponta Leal:
[...] A maior conquista teórica da pós-modernidade (aqui compreendida na concepção de David Harvey), só possível no final do século XX, no âmbito das ciências jurídicas, foi o conceito de processo como referente conjectural de produção, aplicação e modificação e extinção de direitos a partir de princípios autocríticos-discursivos de neutralidade deontológica da fala jurídica. Antes, o direito ainda emergia da Physis ou de consciências epsistêmicas (apodícticas) ou crédulas na razão consensualista reveladora da natureza (Rousseau) ou na verdadeira razão iluminista da natureza humana (Kant), expressando-se numa sociedade civil civilizadora em modelo de um saber pressuposto e não interrogável.1095
Assim, as súmulas vinculantes foram submetidas ao critério de testabilidade,
refutabilidade ou falseabilidade popperiano e testificadas pela teoria neo-institucionalista do
processo. Porém, o resultado dos testes aponta sua ilegitimidade, uma vez que elas não se
coadunam com os princípios do Estado democrático de direito. Desse modo, os resultados
direcionam para a necessidade de sua refutação. Por fim, no último capítulo, submeter-se-ão a
testes as propostas alternativas às súmulas vinculantes. 1093 SÁ, Djanira Maria Rademés de. Súmula vinculante: análise de sua adoção, 1996, p. 107. 1094 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. O efeito vinculativo das súmulas e enunciados. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1994, p. 162. 1095 LEAL, Rosemiro Pereira. A judiciarização do processo nas últimas reformas do CPC brasileiro. In: BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo; NEPOMUCENO, Luciana Diniz (Coord.). Processo civil reformado, 2007, p. 258.
320
CAPÍTULO 3
TESTABILIDADE DAS PROPOSTAS ALTERNATIVAS ÀS SÚMULAS
VINCULANTES PELA TEORIA NEO-INSTITUCIONALISTA DO
PROCESSO
3.1 Criação de um Tribunal Constitucional específico e mudanças estruturais no
Judiciário
O critério da refutabilidade, da testabilidade ou falseabilidade popperiano implica a
tentativa de encontrar falhas ou motivos de refutação de uma teoria. Ao contrário de Popper,
os positivistas fazem uso do critério da indução ou verificação. Por esse critério há uma
preocupação apenas com a verificação e confirmação das teorias. O presente subitem objetiva
submeter a testes as propostas alternativas às súmulas vinculantes. Para tanto, utilizar-se-ão o
critério de demarcação da refutabilidade popperiano e a teoria neo-institucionalista do
processo. Esta última constitui uma teoria processual testificante da validade normativo-
democrática.
Tendo em vista que as súmulas vinculantes não se coadunam com o Estado
democrático de direito e que sua adoção não atinge as causas da crise de operacionalidade do
Judiciário, faz-se necessária a apreciação das propostas alternativas à sua adoção, com o
intuito de investigar se elas são compatíveis com o atual modelo de Estado. Assim, submeter-
se-ão a testes as seguintes propostas: criação de um Tribunal Constitucional específico;
atribuição do poder seletivo aos Tribunais, privatização do Judiciário e mudanças estruturais
no Judiciário; aperfeiçoamento da Justiça Estadual, possibilidade de alteração da
jurisprudência e implementação imediata das decisões de primeiro grau; súmula restritiva de
recurso, súmula com eficácia administrativa e o princípio da transcendência; aplicação de um
direito democrático pelo devido processo constitucional.
Cumpre ressaltar que a teoria neo-institucionalista coloca no centro de suas reflexões o
processo jurídico como forma de construção de uma Sociedade Jurídico-Político
321
democrática, uma vez que a cidadania (direito-garantia constitucionalizado) somente pode ser
exercida por meio do processo jurídico e não do processo histórico, tendo em vista que
somente aquele reúne as garantias dialógicas de liberdade e igualdade do homem perante o
Estado na criação e reconstrução das instituições jurídicas. Por conseguinte, somente através
de uma teoria democrática se viabilizará a construção de um direito legítimo.
A primeira proposta alternativa a ser submetida a teste é a criação de um Tribunal
Constitucional específico. Favoreu esclarece que a nomenclatura que se vai atribuir a esse
tribunal pouco importa, ou seja, pode ser denominado de Conselho, Tribunal ou Corte
Suprema Constitucional; o importante é a função que lhe é atribuída. Assim, o autor assevera
que o Tribunal Constitucional - ou a Corte Constitucional - pode ser conceituado como “[...]
uma jurisdição criada para conhecer especial e exclusivamente o contencioso constitucional,
situada fora do aparelho constitucional ordinário e independente deste e dos poderes
públicos.”1096
Ao tratar da história constitucional das cortes européias, Favoreu esclarece que a
criação das cortes constitucionais teve início em 1920:
A história das Cortes Constitucionais não é longa, pois realmente teve início em 1920, com a criação da Corte Constitucional da Tchecolosváquia (Constituição de 29 de fevereiro de 1920) e a da Alta Corte Constitucional da Áustria (Constituição de 1º de outubro de 1920). A Espanha republicana seguiu esse movimento, criando em sua Constituição de 1931 um Tribunal de Garantias Constitucionais que durou até a ascensão de Franco. A segunda onda situa-se após a Segunda Guerra Mundial, quando, após o restabelecimento da Corte austríaca em 1945, foram instituídas a Corte Constitucional italiana, em 1948, e o Tribunal Constitucional Federal alemão, em 1949, aos quais podemos acrescentar a criação, alguns anos mais tarde, das Cortes Constitucionais da Turquia (1961) e Iugoslávia (1963). A criação do Conselho Constitucional de França, em 1959, deve ser situada nesse movimento, mesmo que na origem não parecesse ter as mesmas finalidades. A terceira onda manifestou-se nos anos de 1970, com a criação dos Tribunais de Portugal (Constituição de 1976, revista em 1982), Espanha (Constituição de 1978) e também, em certa medida, a Corte Especial Superior da Grécia (1975); movimento que se propagou na Bélgica, com a Corte de Arbitragem (1983) que teve grande desenvolvimento na Europa do Leste: Polônia (1985), Hungria (1989), Romênia, Bulgária (1991), Albânia e República Tcheca (1992), Lituânia (1993), Eslovênia (1994), Rússia (1995) e Armênia (1996).1097
Por sua vez, Nascimento ao estudar a jurisdição constitucional na América do Sul
esclarece que a Bolívia a partir da reforma constitucional de 1994 passou a contar com um
Tribunal Constitucional com competência para exercer o controle concentrado de
1096 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais, 2004, p. 15. 1097 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais, 2004, p. 16.
322
constitucionalidade e, no Chile, o Tribunal Constitucional foi instituído com a Constituição
Política da República de 1980:
No universo de comparação apenas a Argentina, que foi fortemente influenciada pelo modelo dos EUA, adota um sistema exclusivamente difuso. A Bolívia, tal como o Brasil, adota um sistema misto, com a marcante diferença de possuir um Tribunal Constitucional, Chile, Uruguai e Paraguai, por sua vez, adotam um sistema concentrado. Há um Tribunal constitucional no Chile, um órgão fracionário especializado da Corte Suprema, chamado Sala Constitucional, no Paraguai e, no Uruguai, a concentração da jurisdição constitucional no Plenário da Suprema Corte. Portanto, há justiça constitucional no Chile, na Bolívia e, em certo sentido, no Paraguai, enquanto nos demais países a jurisdição constitucional culmina na Suprema Corte, no órgão de cúpula da estrutura judiciária comum, que acumula a jurisdição constitucional com a tarefa de corte de cassação, quer dizer, com a competência para rever as decisões das instâncias inferiores nos casos de suspeita de erro na aplicação do direito.1098
As Cortes Constitucionais têm como característica marcante o monopólio do
contencioso constitucional. Isso significa que “[...] a justiça constitucional é concentrada nas
mãos de uma jurisdição especialmente formada para tanto, e goza de monopólio nesse
domínio: o que significa que os juízes ordinários não podem conhecer do contencioso
reservado à Corte Constitucional.”1099
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi instituído pela Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. A esse tribunal cabe,
precipuamente, a guarda da Constituição, conforme estabelece o art. 102 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Além da função de Tribunal Constitucional, o
Supremo Tribunal Federal possui também outras competências. Com a criação do Superior
Tribunal de Justiça pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, houve
redução das competências do Supremo Tribunal Federal. Contudo, esse tribunal continuou
sobrecarregado. Para Dallari, uma solução para o acúmulo de processos no Supremo Tribunal
seria retirar as demais competências desse órgão, atribuindo-lhe apenas o papel de Tribunal
Constitucional1100:
1098 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares. Jurisdição constitucional na América do Sul: apontamentos de Direito Constitucional comparado. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 28/09/2007. 1099 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais, 2004, p. 28. 1100 Essa também é a posição adotada por Silva, conforme se depreende da entrevista concedida à Revista CONSULEX: “Em relação ao STF assim se manifestou o jurista Antônio Álvares. Transformá-lo em Corte Constitucional, composta apenas de juristas e, não apenas de juízes, já que os julgamentos constitucionais são, a um só tempo, políticos e jurídicos. Por isso, é de toda a conveniência que dele participe o maior número possível de representantes dos grupos sociais de importância que constituem a sociedade brasileira. Outra característica os juízes não devem ser vitalícios. Exerceriam o mandato por tempo certo, permitindo-se uma recondução.” REVISTA CONSULEX, Brasília, ano I, n. 3, p.14-15, mar. 1997.
323
[...] O que se pode concluir disso é que, se fossem retiradas do Supremo Tribunal Federal as demais competências, deixando-lhe o controle da constitucionalidade, haveria muitas vantagens, pois suas pautas não estariam mais sobrecarregadas; ele poderia, com rapidez e eficiência, atuar como verdadeiro guarda da Constituição, impedindo a vigência de leis e atos inconstitucionais e responsabilizando os agressores da normalidade constitucional; e o Brasil poderia ter, afinal, uma Constituição efetivamente vigente e respeitada, o que contribuiria para a estabilidade política e a superação das injustiças sociais.1101
Essa também é a posição esposada por Jayme que, apesar de ser contra a adoção das
súmulas vinculantes, se mostra favorável à criação de um Tribunal Constitucional. Nesse
sentido, esse autor destaca:
A súmula vinculante, constante da proposta de Reforma do Poder Judiciário, representa verdadeiro retrocesso democrático, incompatível com o dinamismo do Direito Constitucional: além de não representar nenhuma redução do número de demandas existentes, não irá prevenir novos litígios. A criação de um Tribunal Constitucional é imperativa para se promover as aspirações de uma sociedade justa, democrática, igualitária e livre, com vistas à promoção da dignidade humana.1102
No ordenamento jurídico brasileiro, adota-se um controle híbrido de
constitucionalidade, ou seja, utilizam-se os critérios difuso e concentrado. A posição adotada
no presente trabalho é a de que o controle difuso de constitucionalidade, ao contrário do
concentrado, permite a participação do destinatário da norma na construção da decisão. Por
outro lado, há aqueles que defendem que, no controle concentrado, existe a observância do
contraditório. Por sua vez, enquanto os comunitaristas apontam que o controle de
constitucionalidade deve ocorrer exclusivamente pelas Cortes constitucionais, Habermas
esclarece que o controle de constitucionalidade é essencialmente concreto e surge da
adequação das normas ao caso concreto, constituindo-se, assim, em um discurso de aplicação.
Desse modo, Habermas critica o fato de essas Cortes Constitucionais, mediante
“Jurisprudência de Valores”, atribuírem-se o papel de definição dos discursos de aplicação.
Para ele, o controle abstrato de normas é função do legislador: “A existência de Tribunais
constitucionais não é auto-evidente. Tais instituições não existem em muitas ordens do Estado
de direito. E, mesmo onde eles existem – eu me restrinjo, aqui, à República Federal da
1101 DALLARI , Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 110. 1102 JAYME, Fernando Gonzaga. Tribunal Constitucional: exigência democrática. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1999, p. 144.
324
Alemanha e aos Estados Unidos – há controvérsia sobre o seu lugar na estrutura de
competências da ordem constitucional e sobre a legitimidade de suas decisões.”1103
Assim, para Habermas, quando o controle abstrato é realizado por Cortes
Constitucionais, pode ocorrer que essa Corte se transforme em uma instância autoritária,
conforme aponta Cruz: “[...] quando, entretanto, o controle abstrato se perfaz por Tribunais
Constitucionais, sua legitimação processa-se de forma complexa, em razão dos riscos de o
Tribunal converter-se, numa instância autoritária, por meio de uma remodelação do discurso
de fundamentação, com base em preferências pessoais dos juízes.”1104
Nessa linha de idéias, Leal enfatiza que, no Estado democrático de direito, a jurisdição
constitucional não tem a função de guardiã de valores, uma vez que essa concepção contraria
o princípio do discurso:
A jurisdição constitucional assim compreendida como desempenho (performance) do “Poder Judiciário” vinculado à eticidade substantiva de “guardião de valores” conformador do “sentimento constitucional da comunidade” em nada caracterizaria o Estado democrático de direito, de vez que essa concepção extirparia o princípio do discurso (neutralidade deontológica), que absurdamente seria trocado pela razão prescritiva de uma Assembléia de Especialistas construtora de decisões por uma jurisprudência de valores calcados na tradição e autoridade.
A partir da vigência da CR/88, ao positivar o paradigma de Estado democrático de direito em nome do povo brasileiro (comunidade jurídica), os compromissos de factibilização de um Estado assim constitucionalmente instituído, para realizar a integração social (sociedade política), na democracia não são garantidos pelo Poder Judiciário (“como último intérprete da constituição”), porque, se assim afirmado, nega-se o princípio discursivo da isonomia em seus conteúdos isegóricos (plenários) de isotopia, isomenia e isocrítica, mediante uma interpretação reducionista (solipsista) da constituição por hermeneutas éticos de última trincheira e depositários de valores comunitaristas desvinculados das estruturas procedimentais do devido processo constitucional.1105
Assim, na elaboração de propostas, o devido processo legal é que deve ser levado em
consideração:
Nas democracias, é o devido processo medium lingüístico inafastável à discussão permanente dos conteúdos de falibilidade e efetividade de todo o ordenamento jurídico, só cabendo às Cortes Constitucionais, se existirem, a observância de valores e conceitos que estejam juridicamente normatizados e abertos a uma fiscalização procedimental legitimada a todos (concreta e abstrata) pelo devido processo legal.1106 (grifos do autor)
1103 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v.2, p. 298. 1104 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática, 2004, p. 248. 1105 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 132-133. 1106 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 133.
325
A partir da teoria procedimentalista habermasiana, faz-se necessário questionar a
legitimidade do papel do Supremo Tribunal Federal como guardião da constituição, já que,
por essa concepção, a legitimidade do direito implica a participação dos destinatários da
norma em sua elaboração. Desse modo, no Estado democrático de direito a Constituição não
necessita de um guarda, haja vista que o controle de constitucionalidade deve ocorrer por
meio do devido processo constitucional, conforme aponta Leal:
É por isso que é inconcebível, no Estado democrático de direito, preconizar uma decisão como ato ou sentença final de um órgão guardião, depositário ou tutor da Constituição ou do próprio sistema processual, porque o devido processo constitucional não é uma instituição jurídica que suplique um guarda ou uma proteção solene, como se fosse uma arca da aliança, mas é eixo principiológico-discursivo da operacionalização permanente de um controle de constitucionalidade (judicial review), individual ou agrupadamente, ao ajuste fiscalizatório abstrato e in-concreto do discurso constitucional positivado à efetiva realização do Estado como lugar decisório (jurídico-espacial) da integração social pelo direito processualizado a que se submete toda comunidade jurídica como autodeterminadora e garantidora (sem qualquer guardião ou depositário) de seu próprio destino.1107
Outrossim, os objetivos da República Federativa do Brasil, de 1988 não se
concretizam mediante atividade dos juízes-intérpretes da Constituição, mas essa somente
ocorre pela participação dos destinatários da norma no processo hermenêutico, que, por sua
vez, deve ser desenvolvido em um espaço processualizado. Sobre o tema, Leal esclarece:
Os objetivos constitucionais da dignidade da pessoa humana e de uma sociedade justa e solidária contidos na Constituição brasileira não são alcançáveis pela atividade dos juízes intérpretes da Constituição, mas na medida em que essa interpretação e essa aplicação das leis ocorram pelo devido processo constitucional ao exercício de um controle de constitucionalidade difuso, total, abstrato, concreto, amplo e irrestrito (parágrafo único do art. 1º da CR/88), não concentrado no corporativismo discricionário de legitimação introvertida, internacionalista ou externalista do Estado Liberal burguês com expurgo do povo da correição processual ininterrupta da atuação do ordenamento jurídico.
No Estado brasileiro da CR/88, a abrangência a todos pelo círculo de intérpretes da Constituição, à garantia autonômica da liberdade, da igualdade e da dignidade, não é uma pretensão a ser obtida, pois já está assegurada plenamente pelo parágrafo único do art. 1º. c/c o § 4º, IV, do art. 60 e inciso XXXIV, a, do art. 5º. da CR/88.1108 (grifos do autor)
Leal adverte que, na busca de alternativas para a crise de operacionalidade do
Judiciário, cabe aos processualistas a apresentação de propostas que sejam capazes de
1107 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002. p. 130-131. 1108 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 133-134.
326
compatibilizar os princípios institutivos do processo com a celeridade e a eficiência decisória,
não sendo admitida a adoção de propostas autoritárias no Estado democrático de direito, como
ocorre com o controle concentrado de constitucionalidade. No Estado Democrático de Direito,
o povo tem amplo poder de fiscalização do ordenamento jurídico, motivo pelo qual essa
alternativa não condiz com os princípios do Estado Democrático de Direito,
É óbvio que caberá aos processualistas deste novo milênio buscar uma plenariedade processual que concilie celeridade, ampla defesa e eficiência decisória em paradigma (teoria) do direito democrático sem as improvisações autoritárias, verticais e simplórias das chamadas tutelas de urgência e das peripécias judiciais ou administrativas de uma jurisdição onipotente (juizados especiais) e de um esdrúxulo controle de constitucionalidade concentrado (CR/88) que ilegitimamente exclui o indivíduo de fiscalizar e corrigir, por sua iniciativa includente, as distorções dos rumos democráticos do seu ordenamento jurídico. A decisão no Estado de direito democrático, para ser legítima, tem de se validar na teoria democrática legalmente adotada e em negativa a preceitos jurídicos, ainda que constitucionalizados, contrários a efetivação dos direitos fundantes do discurso democrático em toda a extensão jurídica da estatalidade.1109 (grifos do autor)
Desse modo, a proposta de criação de um Tribunal constitucional, uma vez submetida
a teste, deve ser refutada, tendo em vista que a Constituição, no Estado democrático de
direito, não necessita de um guarda. Além disso, no caso específico do controle de
constitucionalidade concentrado, exercido mediante um processo objetivo, ocorre violação da
concepção de democracia procedimentalista proposta por Habermas e obstaculiza a
construção gradual do ordenamento jurídico por meio do devido processo constitucional,
nos moldes preconizados pela teoria neo-institucionalista do processo. Além disso, no
controle concentrado há preponderância de uma interpretação vertical (autoritária), não
possibilitando uma discussão horizontal dos afetados pela decisão. Leal adverte sobre a
necessidade de se remover, substituir o controle concentrado de constitucionalidade por uma
democracia fiscalizatória que possibilite o exercício da cidadania procedimental: “O controle
de constitucionalidade tão instigado pelos reminiscentes da autocracia privatista do velho
Estado social de direito é o entrave a ser removido pelo pensamento jurídico da pós-
modernidade à democratização fiscalizatória pelo exercício da cidadania procedimental da
legitimidade do ordenamento jurídico.”1110
Além da criação de um Tribunal Constitucional específico, outra proposta, sugerida
pelo Professor da Universidade de Minas Gerais e Juiz do Trabalho Antônio Álvares da Silva
1109 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 126. 1110 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 71.
327
(TRT- 3º Região), seria uma reformulação da estrutura do Judiciário, o principal problema.1111
Nesse sentido, ao estudar essa proposta alternativa Costa destaca:
Grosso modo, a estrutura proposta consistirá no seguinte: juízos de primeiro grau e tribunais regionais de revisão em segundo grau, terminando nesta a lide. Esses tribunais seriam formados por seções, câmaras ou turmas especializadas (direito privado, direito público, direito penal e direito social, neste último compreendidos os trabalhista e previdenciário). Mantido o STF, este teria competência exclusivamente constitucional, recebendo recursos versando sobre essa matéria e sem efeito suspensivo. Os demais tribunais superiores seriam extintos, passando seus quadros a compor a seção de direito público. As Juntas de Conciliação seriam transformadas em juizados especiais trabalhistas entendendo o autor da proposta ser esse o ramo do Direito para tais juizados.1112
Observa-se que essas propostas reformistas colocam na figura do juiz-Hércules a
solução para a crise do Judiciário, ao invés de assegurar às partes uma estrutura procedimental
adequada, através do qual possam participar da construção do provimento jurisdicional. Além
disso, a mera supressão de instância, sem submissão do Judiciário à concepção de direito
democrático, baseada na teoria do discurso, não se constitui em proposta viável.
Outrossim, a extinção dos tribunais acentuaria ainda mais o problema da morosidade
da atividade jurisdicional, pois reduziria o número de juízes e seus auxiliares. Diante do
aumento das demandas, verifica-se que o escasso número de juízes é um dos fatores
determinantes da crise de operacionalidade do Judiciário. Nesse sentido, Almeida enfatiza:
“[...] e a morosidade da atividade jurisdicional decorre da omissão indesculpável de o Estado
não contratar funcionários (juízes, auxiliares do Judiciário e defensores públicos) suficientes
para cumprir seu dever jurisdicional.”1113 Desse modo, conclui-se pela refutabilidade dessa
proposta de mudanças estruturais e supressões de instâncias, uma vez que, além de não
solucionarem a crise de operacionalidade do Judiciário, não se coadunam com o Estado da
pós-modernidade. Após submetidas a testes as propostas de criação de um Tribunal
Constitucional específico e de mudanças estruturais no Judiciário, no próximo subitem
submeter-se-ão a testes as propostas relacionadas com a restrição da via recursal.
1111 REVISTA CONSULEX, 1997, p.14-15. 1112 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário, 2002, p. 216. 1113 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 95.
328
3.2 Súmula restritiva de recurso, súmula de filtragem, súmula com eficácia
administrativa, requisito da transcendência no recurso de revista e a repercussão geral
no recurso extraordinário
Alguns doutrinadores asseveram que as excessivas possibilidades recursais previstas
no sistema processual, utilizadas em sua maioria com fins protelatórios, têm sido apontadas
como uma das causas da morosidade da atividade jurisdicional. Ressalte-se, contudo, que as
vias recursais são garantias do devido processo legal inerente ao Estado democrático de
direito. Assim, o que se pode considerar inadmissível é o uso dessa faculdade com fins
protelatórios.
O recurso é um instituto jurídico de garantia de revisibilidade dos provimentos, sendo
exercitável dentro de uma estrutura procedimental. Leal conceitua o recurso como “[...] uma
forma legal de impugnabilidade dos provimentos (decisões) jurisdicionais e administrativos
elencados pela lei como suscetíveis de revisibilidade em outra instância diversa daquela em
que foram exarados.”1114
Nessa linha de idéias, Nunes estuda o instituto do recurso como possibilidade jurídico-
discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, visto que possibilita um espaço
procedimental discursivo de revisibilidade dos provimentos:
Assim sendo, no quadro das reformas implementadas e do panorama apresentado dos estudos processuais, o sistema recursal, à primeira vista, abre-se como possibilidade jurídico-discursiva das garantias da ampla defesa e do contraditório na formação e análise dos provimentos judiciais, impedindo que o arbítrio judicial e a concepção solipsista de criação das decisões instaurem-se definitivamente, possibilitando-se um espaço procedimental dialógico de revisibilidade e adequação do procedimento formador do provimento ao seu perfil democrático.1115
Entre as propostas alternativas e que visam coibir a interposição de recursos citam-se
as seguintes: súmula restritiva de recurso, súmula com eficácia administrativa, súmula com
efeito filtrante, o requisito da transcendência no Recurso de revista e a repercussão geral da
matéria no recurso extraordinário.
A Proposta de Emenda Constitucional n. 96/92-A, denominada de emenda de Reforma
do Judiciário, atendendo às pressões da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de órgãos
1114 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 203. 1115 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 15.
329
da Magistratura, como a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) em lugar da
denominação vinculante passou a utilizar a expressão súmula restritiva de recurso, época
em que passou a figurar no § 5º da redação proposta para o artigo 102, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. A súmula restritiva de recurso privilegia a súmula
qualificada do Supremo e “[...] consiste na inadmissão de recurso extraordinário contra
decisão judicial que tenha tomado por base súmula aprovada por 2/3 dos Ministros do
STF.”1116 De acordo com essa proposta, existiriam duas modalidades sumulares: a comum e a
qualificada. As súmulas qualificadas seriam apenas as das seguintes matérias constitucionais:
previdenciária, acidentária, tributária e econômica.
Já de acordo com a redação proposta para o Art. 105-A caput da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, súmula impeditiva de recurso seria emitida pelo
Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão de dois terços de seus membros, podendo ser
emitida de ofício ou por provocação. No âmbito da legislação infraconstitucional, o Art. 518
do CPC de forma expressa estabelece que a súmula do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal constitui-se em empecilho para o recebimento de recurso de
apelação. Desse modo, caso a sentença esteja em conformidade com uma dessas súmulas, o
recurso de apelação não será recebido.
Por conseguinte, as súmulas emanadas do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal
Superior do Trabalho constituem-se em impedimento à interposição de recurso contra as
decisões que a houverem aplicado; são as denominadas súmulas impeditivas de recursos.
Porém, como assevera Streck, elas são falsas soluções para o problema:
[...] Com efeito pela súmula impeditiva de recurso, somente será possível a interposição de recurso de sentença que venha a contrariar a súmula. Ou seja, se o juiz ou o tribunal exarar sentença que esteja em conformidade com a súmula emitida pelo STJ e TST, não caberá recurso à parte (sic); já na hipótese de a decisão contrariar a súmula, então será cabível o recurso.
Ora, parece não haver dúvidas de que esse “mecanismo” proposto sofre dos mesmos vícios da súmula vinculante “geral e irrestrita” constante na Emenda à Constituição aprovada. Com efeito, a proposta da “súmula impeditiva” pode vir a institucionalizar uma espécie de “consenso virtual do judiciário acerca de determinadas matérias” (da cúpula até a base), com a peculiaridade de que, ao mesmo tempo em que há protestos em torno da súmula vinculante porque esta coloca o judiciário como legislador (afora outras críticas), de outro lado estar-se-á aceitando a possibilidade de o judiciário ser um “bom legislador”, bastando para tanto, que as cúpulas elaborem “boas” súmulas (das quais, exatamente por serem “corretas”, não caberá recurso). Ou seja, se a súmula for considerada “correta” pelos juízes – e por isso
1116 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário, 2002, p. 196.
330
passarem a aplicar -, o instituto das súmulas “perde” o epíteto de autoritarismo, etc., já se os juízes com ela não concordarem, caberá recurso.1117
O Conselho Federal da OAB propôs, de forma alternativa às súmulas vinculantes, a
súmula com eficácia administrativa. A vinculação atingiria somente a Administração Pública,
contendo, dessa forma, o recurso por dever de recorrer:
[...] Por conseguinte, quaisquer decisões, contra a Administração, que adotassem como ratio decidendi enunciado de súmula vinculante, seriam imutáveis. Constitui pois, uma variação da proposta de súmula restritiva de recurso, prevendo efeito restritivo apenas sobre a Administração Pública. Com isso, procura manter a independência do Juiz e refrear a prática de recurso por dever de ofício, que, segundo estimativas do próprio Judiciário, representa cerca de 60% da demanda jurisdicional daqueles tribunais.1118
A doutrina, considerando que a vinculação é incompatível com o Estado constitucional
de Direito, apresentou proposta, no mesmo sentido, denominada de súmula com efeito
filtrante. Sobre o tema, Costa aponta que: “[...] segundo essa proposta, o acúmulo de recursos
extraordinários e especiais no STF e no STJ poderia ser resolvido atribuindo-se às súmulas
votadas nesses tribunais com maiorias de dois terços o status de requisito de admissibilidade
para tais recursos.”1119
Com o objetivo de limitar o número de Recurso no Tribunal Superior do Trabalho, foi
instituído, através da Medida Provisória n. 2.226, de 4 de setembro de 2001, o requisito da
transcendência para o julgamento dos recursos de revista. A Medida Provisória criou o art.
896-A da Consolidação das Leis Trabalhistas, que assim dispõe: “O Tribunal Superior do
Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência
com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica.”
Silva enfatiza que essa será uma alternativa que deixará o Tribunal Superior do
Trabalho livre da sobrecarga de processos inúteis e protelatórios, tendo oportunidade de
concentrar-se em conflitos de interesse público. Ele destacou que o Tribunal Superior julgou
121.000 (cento e vinte e um mil) processos em 1999; já no segundo semestre de 2000,
entraram 9.000 (nove mil) processos por mês.1120
1117 STRECK, Lenio Luiz. O efeito vinculante das súmulas e o mito da efetividade: uma crítica hermenêutica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, Instituto de Hermenêutica Jurídica, v.1, n.3, p. 107, 2005. 1118 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário, 2002, p. 199. 1119 COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário, 2002, p. 199. 1120 DA SILVA, Antônio Álvares. Mudança no TST. Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 7, 27 set. 2001.
331
A utilização do critério da transcendência, para Chaves Júnior, seria melhor alternativa
que as súmulas vinculantes: “[...] em sede de agilização do Judiciário, esse sistema nos parece
bem mais compatível com a independência do julgador, que o das súmulas vinculantes, cuja
estrutura também é suscetível ao diferimento fractual da justiça, uma vez que as súmulas,
enquanto enunciados lingüísticos, são sempre passíveis de interpretações, o que, ao fim,
acabaria por acrescentar, ao revés de reduzir, complexidade e postergação ao sistema.”1121
Entretanto, Maciel Júnior enfatiza que o texto legal não consegue estabelecer um
conceito objetivo de transcendência, revelando uma subjetividade nessa criação jurídica. Para
esse autor, essa alternativa não é adequada: “[...] ora, para resolver um problema complexo e
crônico, da falta de estrutura do Poder Judiciário, o legislador está transferindo o problema
para o jurisdicionado, lavando as mãos e esquivando-se de enfrentá-lo.”1122
Para Pedron, Caffarate e Barreto, o requisito da transcendência dá margem à
discricionariedade na seleção das causas que serão julgadas. O mecanismo da transcendência
é uma diretriz política, que objetiva melhoria dos aspectos políticos, sociais ou econômicos de
uma determinada comunidade e acaba por instituir privilégios para um grupo de pessoas.
Porém, essa inserção no ordenamento jurídico de uma diretriz política acaba por violar o
devido processo legal, uma vez que não possibilita a intervenção da comunidade jurídica, em
simétrica igualdade, nos discursos jurídicos.1123
Por outro lado, a Emenda Constitucional n. 45/2004 condicionou a admissão do
recurso extraordinário fundado em questão constitucional à denominada repercussão geral.1124
Instituto análogo foi adotado pelo Direito Processual do Trabalho, por força da Medida
Provisória n. 2.226/2001, através da adoção do requisito da transcendência – reflexos de
natureza econômica, política ou jurídica. A repercussão geral das questões constitucionais
encontra institutos análogos na Alemanha, nos Estados Unidos, na Argentina e no Japão.1125
1121 CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Transcendência do recurso de revista: a Justiça diferida – da teoria do caos à transcendência, Debate, Belo Horizonte, p. 6, jul. 2001. 1122 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Recurso de Revista: o absurdo requisito da transcendência. Debate, Belo Horizonte, p. 7, jul. 2001. 1123 PEDRON, Flávio Quinad; CAFFARATE, Viviane Machado; BARRETO, Helena Guimarães. A transcendência no recurso de revista: uma análise do posicionamento do STF no julgamento da ADIN n. 2527-9. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O Supremo Tribunal Federal revisitado: o ano judiciário de 2002. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 262-276. 1124 “Art. 102, § 3º - No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.” BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 1125 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, 2005, p. 68-69.
332
Na jurisprudência e doutrina alemã, existem critérios ou indicadores positivos e
negativos elaborados para o recurso de revisão, que equivale ao recurso especial brasileiro. É
mister salientar que a diferença entre o recurso extraordinário brasileiro e o recurso de revisão
alemão é que o primeiro se relaciona ao direito constitucional, enquanto o segundo diz
respeito ao direito geral. Os critérios positivos são aqueles que possuem significação
fundamental (repercussão geral). Nesses casos, o recurso de revisão deve ser admitido:
I-decisão recorrida representa uma “construção encoberta do direito”, no que está implicado que isso não deve ocorrer, o que configura uma censura à criatividade do direito, pelo juiz; II- a decisão contém “uma interpretação difícil do direito que é muito debatida”; III- a decisão tem largo espectro subjetivo de abrangência; IV- a decisão recorrida é “tão injusta”, o que pode ter convidado a uma construção do direito praeter ou contra legem, enunciado este onde fica muito minorada a censura à criatividade judicial (v. n. I, supra); V- na decisão recorrida entremostra-se a necessidade de correção da lei, pelo Legislador; VI- a questão é muito discutida na jurisprudência e na literatura; VII- quando o Estado for parte; VIII – a questão de direito deve ter uma significação geral, utilizada esta expressão com o sentido oposto ao de uma significação de pouco espectro ou circunscrita a poucos; IX- é o caso de significação fundamental (=repercussão geral), quando a decisão local houver sido pobremente decidida, no que está implicado que essa decisão, ao menos, demanda esclarecimentos, e estes dizem respeito à preservação ou à conservação da unidade do direito.1126 (grifos do autor)
Por outro lado, os critérios ou indicadores negativos no recurso de revisão são aqueles
que recomendam que o recurso de revisão não seja admitido: “a) se a questão é isolada e sua
importância não transcende apreciavelmente, enquanto decidida, ao caso concreto, com o que
não é dotada de significação fundamental; b) quando a questão não comporta mais discussão
(assunto pacífico); c) quando a própria lei, em seu espectro, refere-se a poucos casos.”1127
Nos Estados Unidos, ressalta-se a Rule 19 (Rules of The Supreme Court of The United
States), cujos critérios para selecionar os recursos que serão apreciados pelo Supremo
Tribunal Federal são valorativos:
1. Será relevante a questão, quando Corte estadual houver decidido questão substancial, antes de determinação da Suprema Corte; 2. quando a Corte estadual tenha decidido provavelmente em desconformidade com o que consta de decisões da Suprema Corte (estas duas hipóteses são explícitas na Regra 19, letra a, das Regras da Suprema corte); 3. quando uma Corte tenha decidido em conflito com a decisão de outra Corte, sobre o mesmo assunto; 4. se houver decidido a respeito de importante questão federal, que haveria de ter decidido pela Suprema Corte, mas não o foi (Regra 19, letra d); 5. ou quando tenha decidido de tal forma a conflitar com
1126 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 90-91. 1127 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 91.
333
decisões “aplicáveis” da Suprema Corte; 6. ou quando tenha sido sancionado erro procedimental (de tal porte), por uma Corte inferior, a ponto de demandar o exercício do poder de supervisão da Suprema Corte (Regra 19, letra b).1128
Já na Argentina, a Lei n. 23.774, de 05 de abril de 1990, introduziu o critério
equivalente ao da repercussão geral como requisito necessário à admissão do recurso
extraordinário argentino, denominado de gravidade institucional. Essa lei deu nova redação ao
Art. 280 do Código de Processo Civil e Comercial da Nação que, por sua vez, estabelece a
discricionariedade da corte Argentina para refutar recurso extraordinário por ausência de lesão
suficiente ao direito federal e quando as questões não possuam transcendência.1129
No ordenamento jurídico brasileiro, a argüição de relevância foi inicialmente prevista
por meio da Emenda Regimental n. 3 de 12 de junho de 1975, que modificou o Art. 308 do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, alterando as hipóteses taxativas de
interposição do recurso extraordinário (ofensa à Constituição ou relevância da questão
federal). Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977, inseriu o
instituto da argüição de relevância do recurso extraordinário, abolido com a Constituição da
República Federativa de 1988. Sobre o tema, Cambi enfatiza: “Desta feita a modificação
constitucional havida em 1977 fortaleceu o instituto criado pela Emenda Regimental n. 3, de
12.06.1975, reconhecendo ao STF competência para, por meio de seu regimento interno,
legislar, segundo a possibilidade anteriormente criada pela EC n. 1 de 1969, acerca da
admissão do recurso extraordinário pela via da argüição de relevância.”1130
Após a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, podem ser citados
dois antecedentes da repercussão geral: o primeiro foi inserido pela Medida Provisória
2.226/2001 (requisito da transcendência), e o segundo foi introduzido pelo Art. 1º da Lei n.
9.882/1999 e dispõe sobre a necessidade de fundamento constitucional relevante para
cabimento da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Ainda sobre a argüição de relevância, Lamy esclarece que essa decisão não constituía
uma decisão jurisdicional, mas, sim, um ato político, tendo em vista a forma como ocorria
seu julgamento:
1128 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 92. 1129 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 92 1130 LAMY. Eduardo de Avelar. Repercussão geral no recurso extraordinário: a volta da argüição de relevância? In: ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 168.
334
O incidente concernente à relevância era distribuído aos onze Ministros, nele havendo relator. Por conseguinte, era julgado pelo Plenário do STF, em sessão do conselho, sendo irrecorrível a decisão então tomada, da qual não havia fundamentação e muito menos a possibilidade de embargos de declaração. Para que fosse acolhida a argüição era necessário que a minoria de quatro Ministros lhe fosse favorável.1131
Para Alvim, a repercussão geral das questões seria uma forma de filtrar os recursos
extraordinários que serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal:
[...] a expressão “repercussão geral” significa praticamente a colocação de um divisor de águas em relação ao cabimento do recurso extraordinário, viabilizando-se que o SF, mais uma vez instalado o regime da EC n. 45, só venha a julgar recursos extraordinários na medida em que tenham repercussão geral, deixando sempre de julgar os recursos que não sejam dotados dessa repercussão, ainda que formal e substancialmente pudessem ser aptos à admissão e ao julgamento, e até mesmo ao julgamento favorável.1132
Alvim defende que a necessidade da configuração da repercussão geral constitui-se
em excelente solução para a crise do Judiciário, haja vista que resolve os problemas dos
tribunais, que estão afetados por carga excessiva de trabalho. Assim, a repercussão geral
acaba por minimizar o acesso ao Supremo Tribunal Federal. Segundo o autor, esse filtro
acaba por gerar decisões com maior eficácia: “As decisões decorrentes dos futuros recursos
extraordinários terão maior visibilidade, e daí, certamente, neste sentido, maior eficácia.
Essas decisões do STF expressarão ou carregarão consigo mesmas a repercussão geral
existente na questão constitucional que tenha sido decidida.”1133 (grifos do autor).
Tavares também se posiciona a favor da repercussão geral, segundo esse autor a
Reforma do Judiciário resgatou a excepcionalidade do recurso extraordinário, permitindo ao
tribunal criar seu “espaço próprio”. Sobre o tema o autor enfatiza:
A criação de uma nova exigência (demonstração da repercussão geral) para fins de apreciação do recurso extraordinário interposto não acarreta, de per si, qualquer abalo no modelo de controle difuso-concreto. Este restará aberto a todos os juízes e instâncias. Na realidade, tem-se, a partir de agora, como já assinalado, um passo em direção à transformação do Supremo Tribunal Federal em verdadeiro e pleno Tribunal
1131 LAMY. Eduardo de Avelar. Repercussão geral no recurso extraordinário: a volta da argüição de relevância? In: ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 168-169. 1132 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 64-65. 1133 ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre e EC n. 45/2004, 2005, p. 67
335
Constitucional (cf. Tavares 2005). A combinação da súmula vincualnte com o instituto aqui analisado da repercussão geral cria uma nítida conexão entre o modelo de controle difuso-concreto e o modelo de controle abstrato-concentrado (cf. Tavares, 2004b: 56-58), aproximando aquele das carcterísticas próprias deste último, o que talvez seja realmente o caminho mais apropriado para países que pretendem manter ambos os modelos concomitantemente.1134
Porém, ao conceder ampla margem de discricionariedade aos juízes, percebe-se uma
judiciarização do processo, já que prevalece uma jurisdição baseada no autoritarismo dos
tribunais em detrimento das garantias constitucionais do processo, conforme adverte Leal: “O
aumento crescente dos poderes dos juízes, com preterição de defesa plena e dos juízos de
direito para que se exercite o contraditório como direito fundamental de argumentação
jurídica, desfigura o pensar discursivo de uma sociedade que se pretenda democrática e
condena ao horror alguns poucos decisores que ainda preservam sua fidelidade ao saber
científico-jurídico.”1135
Ademais, como assevera Nunes, não há que se falar em possibilidade de supressão dos
recursos extraordinários, “[...] pois eles vêm insculpidos e garantidos de modo expresso na
Constituição da República e são criados em benefício da discursividade do ordenamento
jurídico para manutenção e respeito da interpretação uniforme da legislação federal ou da
Constituição.”1136
Essas propostas alternativas às súmulas vinculantes, uma vez submetidas a testes,
mostram-se incompatíveis com o Estado democrático de direito, pois, na busca da celeridade,
tolhem o direito da parte de recorrer. E elas acabam por suprimir as garantias do contraditório
e da ampla defesa, conforme adverte Nunes: “[...] a preocupação com a celeridade impede que
se enxergue a estrutura procedimental como espaço intersubjetivo e comparticipativo dos
provimentos com a marca de nosso modelo constitucional, em sua acepção dinâmica.”1137
Essas propostas restritivas de recursos impedem a formação de um novo espaço
discursivo do processo, impossibilitando outras informações e argumentos que poderiam ser
propostos pelas partes em âmbito recursal. Não se pode olvidar que no Estado democrático de
direito a estrutura procedimental do processo não é perfeita, devendo ser suscetível da revisão.
1134 TAVARES, André Ramos. A repercussão geral no recurso extraordinário. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús (Coord.). Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005. p. 218-219. 1135 LEAL, Rosemiro Pereira. A judiciarização do processo nas últimas reformas do CPC. BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo; NEPOMUCENO, Luciana Diniz (Coord.). Processo civil reformado, 2007. 1136 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 162. 1137 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 150.
336
Desse modo, o instituto do recurso é indispensável, como aponta Nunes, em sua dissertação
de mestrado:
Poderia ainda ser feita uma indagação: na hipótese de o processo ser construído numa estrutura procedimental perfeita, que garantisse uma cooperação intersubjetiva em todas as suas facetas e um atendimento completo às garantias do modelo constitucional de processo, seria ainda necessário o instituto do recurso? A resposta da pergunta passa, de início, por um outro problema: existe a possibilidade de construção desta estrutura procedimental perfeita? A resposta a esta segunda pergunta é negativa. A institucionalização de qualquer estrutura procedimental, por mais que possibilite o cumprimento de todas as garantias constitucionais, somente permite, respeitando os limites temporais e objetivos, a livre discussão de temas (questões) de maneira que possa atuar a força racionalmente motivadora do melhor argumento, mas sempre dentro dos limites de uma procedimentalidade imperfeita.1138
Assim, as propostas que inviabilizam a revisibilidade dos provimentos também devem
ser refutadas, visto que por elas ocorre um aumento dos poderes do juiz, em detrimento dos
princípios institutivos do processo. Essa margem de discricionariedade concedida aos
tribunais para selecionar as causas que serão passíveis de interposição de recurso não se
coaduna com o Estado democrático de direito que está adstrito ao princípio da legalidade
(persuasão racional do juiz). Além disso, essas propostas acabam por privilegiar um grupo
determinado de pessoas, violando o princípio do devido processo legal, uma vez que
impossibilitam a formação de um novo espaço discursivo do processo.
No próximo subitem, submeter-se-ão a testes as propostas que são favoráveis ao
aperfeiçoamento da Justiça Estadual, a possibilidade de alteração da jurisprudência e
implementação das decisões de primeiro grau e a privatização do Judiciário.
3.3 Aperfeiçoamento da Justiça Estadual, possibilidade de alteração da
jurisprudência e a privatização do Judiciário
Não se pode negar que o sistema jurídico necessita de reformas, todavia as súmulas
vinculantes não seriam a solução adequada, já que violam os princípios do federalismo. Nesse
sentido, Maciel Júnior assevera: “[...] portanto, a proposta do relator não demonstra harmonia
com os princípios do federalismo adotado na Constituição de 1988, pois nada mais é do que 1138 NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa, 2003, p. 150.
337
uma tentativa de centralização ainda maior, desconhecendo a autonomia dos Estados, que
podem, mediante a edição de lei complementar, estar autorizados a editar códigos Estaduais
que prevejam soluções diferenciadas para as diversas situações jurídicas.”1139 Todavia, a mera
adoção de Códigos Estaduais sem a submissão do Judiciário aos princípios do Estado
democrático de direito também não soluciona o problema. O que não se pode aceitar são
propostas, como as das súmulas vinculantes, que violam o princípio do devido processo
constitucional.
Maciel Júnior ressalta a necessidade de uma reforma do Judiciário que respeite os
princípios do federalismo, possibilite a divergência jurisprudencial e implemente a execução
imediata das decisões de primeiro grau. Segundo Maciel Júnior, a divergência jurisprudencial
decorre das dimensões do território nacional: “[...] sendo o Brasil um país de dimensões
continentais, nada mais natural do que haver divergência de soluções jurisprudenciais para
uma ou outra região. E as divergências decorrerão, com certeza, da adequação do caso ao
pensamento prevalente na região.”1140
Assim, enquanto a adoção das súmulas vinculantes implicaria a petrificação das
decisões, a proposta de flexibilização da jurisprudência demonstra a falibilidade do
ordenamento jurídico. Por conseguinte, deve ser possibilitada sua revisão e fiscalização
permanente, através do devido processo, aberto a todos os membros da comunidade jurídica.
Nessa linha de idéias, Leal enfatiza a necessidade de instauração do procedimento para
correição do sistema jurídico: “[...] nenhuma decisão seria constitucionalmente válida e eficaz
se não preparada em status do devido processo legal, porquanto, uma vez produzida em
âmbito de juízo judicacional não poderia garantir em validade e eficácia pela discursiva
condição estatal do direito democrático.”1141 (grifos do autor).
Por conseguinte, a diversificação jurisprudencial decorre da necessidade da
intersubjetividade e da dialogicidade (discursividade), requisitos essenciais para a construção
do provimento jurisdicional em uma sociedade aberta (democrática), em contraposição às
súmulas, que pressupõem uma versão autoritária e solipsista (monológica) da atividade
jurisdicional.
1139 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. O efeito vinculativo das súmulas e enunciados. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1994, p. 168. 1140 MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. O efeito vinculativo das súmulas e enunciados. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1994, p. 169. 1141 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 124.
338
Outra proposta a ser submetida a teste é a privatização do Judiciário. A proposta de
privatização do judiciário é um projeto neoliberal1142, diminuindo a intervenção do Estado na
sociedade. Segundo Derani, a privatização pode ser conceituada como: “[...] a transferência de
um serviço realizado pelo poder público para o poder privado e também a transferência da
propriedade de bens de produção públicos para o agente econômico privado.”1143 No Brasil, a
Lei n. 9.491/97 orienta o programa de desestatização, nomenclatura adotada por essa lei, ao
contrário da lei anterior revogada, Lei n. 8.031/90, que fazia uso da expressão privatização. A
Lei n. 9.017/97 enumera as atividades envolvidas na privatização/desestatização: as
instituições financeiras, inclusive as estaduais e os serviços públicos.
Para Rampinelli, as privatizações na América Latina consistem em uma das estratégias
do Consenso de Washington e visam à transferência do patrimônio público para as empresas
privadas, em especial, para as multinacionais. Diversas são as conseqüências da privatização
das empresas: perda do seu caráter político-social, dispensa de funcionários, aumento de
tarifas, construção de monopólios privados (economia de mercado) e, por fim, o
enfraquecimento da democracia e a perda do controle de funções essenciais exercidas por
determinados setores da economia.1144
Essa proposta transfere à esfera privada parte da competência estatal. Ressalta-se que a
privatização parcial do Judiciário brasileiro encontra respaldo na Lei n. 9.307/96, a
denominada Lei do Juízo Arbitral.1145 Por sua vez, no âmbito internacional a Arbitragem
encontra respaldo no Protocolo de Genebra de 1923, na Convenção de Genebra de 1927, na
Convenção de Nova York de 1958, na Convenção de Panamá de 1975, na Convenção de
Montevidéu de 1979, na Lei-Modelo da Unicitral de 1985 (Comissão das Nações Unidas para
o Desenvolvimento do Comércio Internacional), na Convenção Européia da Comissão
1142 “Neoliberalismo é o paradigma econômico e político que define nosso tempo. Ele consiste em um conjunto de políticas e processos que permitem a um número eleavado relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus benefícios individuais. Inicialmente associado a Reagan e Thatcher, o neoliberalismo é a principal tendência da política e da economia globais nas últimas décadas, seguida, além da direita, por partidos políticos de centro e por boa parte da esquerda tradicional. Esses partidos e suas políticas representam os interesses imediatos de investidores extremamente ricos e de menos de mil grandes empresas.” CHESSEY, Robert W. Mc. Introdução. In: CHOMSKY, Noam. O lucor ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. Tradução Pedro Jorgensen. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p. 8. 1143 DERANI, Cristiane. Privatizações e serviços públicos: as ações do Estado na produção econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 110. 1144 RAMPINELLI, Waldir José. A globalização e as privatizações. In: FERREIRA, Alceu Conceição; ALVIM, Valdir. A trama da privatização: a reestruturação neoliberal do Estado. Florianópolis: Insular, 2001, p. 23-24. 1145 ALEMÃO, Ivan. Reforma da execução em Portugal: desjudicialização ou privatização? Disponível em: <http://www.anamatra.org.br/geral/reforma_execucao.doc>. Acesso em 07/09/2007.
339
Econômica para a Europa sobre a Arbitragem Comercial Internacional, na Convenção de
Moscou de 1972 e no Acordo de Arbitragem Internacional do Mercosul.1146
Em Portugal, através da Reforma da Ação Executiva de 2003, buscou-se reduzir a
atuação do juiz e da administração pública da Justiça e, de modo especial, do oficial de
Justiça, criando a figura do solicitador de execução. Essa reforma objetivava adequar o país às
diretrizes da União Européia, tornar o processo mais barato e combater a morosidade
processual. Ao aderir à União Européia, Portugal se viu obrigado a atender à política
neoliberal e globalizante1147 que vigora na Europa e que tem como paradigma de execução a
Suécia, a França, a Bélgica, Luxemburgo, Holanda e Grécia. O projeto neoliberal cobra uma
eficiência do Judiciário como se ele fosse uma empresa produtiva que gerasse resultados
estatísticos em termos de produção (“justiça fordista”). Por conseguinte, as críticas neoliberais
apontam as empresas privadas como a melhor alternativa para a morosidade do Judiciário,
motivo pelo qual as propostas de privatização surgem naturalmente.
Por essa reforma realizada em Portugal, o solicitador passou a exercer algumas
funções dos juízes e dos oficiais de justiça na execução processual. Para Alemão, essa
reforma não levou apenas a uma desjudicialização, mas à privatização de algumas atividades
judiciais: “[...] para além, de reduzir a atividade pública esta foi, na verdade, repassada em
grande parte para os profissionais liberais. Não se tratou de desregulamentar as tarefas que
eram executadas pelos funcionários e pelo juiz, mas de entregá-las ao setor privado, com
custos adicionais ao cidadão.”1148
Todavia, convém lembrar que, no Estado democrático de direito, o processo é uma
instituição jurídica constitucionalizada, não podendo admitir dessa forma uma privatização do
Judiciário. O caráter público da função jurisdicional está presente no conceito de jurisdição.
Chiovenda adverte que a jurisdição é uma função do Estado: “[...] dissemos, antes de tudo,
que a jurisdição é exclusivamente uma função do Estado, isto é, uma função de soberania do
Estado.”1149 Entretanto, deve-se salientar que ela deve estar subordinada aos princípios do
1146 SILVA, Adriana dos Santos. Acesso à justiça e arbitragem: um caminho para a crise do Judiciário. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 53-73. 1147 “O conceito de globalização, que traz no seu conteúdo os velhos métodos das práticas imperialistas, se transforma em ideologia da classe dominante. Desde 1492, quando se iniciou o primeiro processo de globalização da América Latina – sua entrada na modernidade -, é apresentada uma saída para a superação do subdesenvolvimento do continente. No entanto, já se passaram mais de 500 anos e esta vasta região tem fieto o caminho inverso.” RAMPINELLI, Waldir José. A globalização e as privatizações. In: FERREIRA, Alceu Conceição; ALVIM, Valdir. A trama da privatização: a reestruturação neolieral do Estado. Florianópolis: Insular, 2001. p. 17. 1148 ALEMÃO, Ivan. Reforma da execução em Portugal: desjudicialização ou privatização?, 2007. 1149 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual, 2000. v.2, p. 9
340
processo, o qual tem, como um dos seus princípios, a inafastabilidade do controle judiciário
ou o exercício do direito-de-ação. Em decorrência disso, essa proposta se mostra inadequada
para o Estado democrático de direito e, por isso, dever ser refutada.
Por fim, submeter-se-á a teste a última proposta alternativa à súmula vinculante, que é
a aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional.
3.4 Aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional
Antes de submeter a teste a última proposta alternativa às súmulas vinculantes, o
presente subitem visa esclarecer em que consiste o devido processo constitucional e suas
duas vertentes e, numa perspectiva pós-moderna, esclarecer para que servem esses institutos.
Assim, questiona-se se a aplicação de um direito democrático pelo devido processo
constitucional é capaz de atacar as causas da crise de operacionalidade do Judiciário.
Os procedimentos adotados que violam a isonomia, a ampla defesa e o contraditório
podem ser apontados como uma das principais causas da crise do Judiciário. Somente através
da observância e adoção do devido processo constitucional é que se torna possível
solucionar a crise de operacionalidade do Judiciário. Nesse sentido, Leal aponta:
[...] essa dogmática extremamente habilitada em resolver conflitos não é, por isso, apta a reduzir os conflitos na comunidade jurídica, porque, preferindo decidir pela ideologia cultural da razão prática, não atende o Estado Democrático de Direito que é no enfoque da processualidade, como anotamos, a condição discursiva e jurídico-espacial de validade e eficácia das decisões.1150
Segundo Leal, o que se faz necessário para a desmitificação do Judiciário no Estado
democrático de direito não é a melhoria do nível técnico dos juízes nem a observância da lei e
prática da justiça, “[...] mas por sua inclusão e submissão, como instância pública, ao espaço
jurídico-processual de comprometimento institucional com o direito democrático que
pressupõe a teoria do discurso como base de validade da construção jurisprudencial
(jurisdicente).”1151
1150 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 121. 1151 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica, 2002, p. 142.
341
Na pós-modernidade, o processo é criado através da Lei Constitucional (devido
processo constitucional). Constitui o devido processo constitucional uma garantia das
partes de que o processo será realizado no plano constitucional:
O constitucional due process (“Devido Processo Constitucional’) é garantia (como dever do Estado) de realização desses procedimentos nos planos do direito constituído, mediante instalação do contraditório, observância de defesa plena, isonomia, direito ao advogado, gratuidade de jurisdição nas hipóteses de existência de conflito ou contenciosidade de direitos pretendidos.1152
Sobre o tema, Almeida esclarece que se trata de um espaço axial, que tem por objetivo
validar a criação e atuação do direito pelo povo (comunidade jurídica).1153 Nesse sentido, Leal
assevera que o devido processo constitucional “[...] é instituído pelo povo para validar,
legitimar e eficacizar a atuação de direitos em todo o arcabouço jurídico do discurso
constitucional.”1154
Del Negri acrescenta: “[...] percebe-se, pois, que a expressão devido processo
constitucional é vista como instituição regenciadora de todo e qualquer procedimento (devido
processo legal), a fim de tutelar a produção de provimentos, seja administrativo, legislativo ou
judicial.”1155 (grifos do autor).
Ao discorrer sobre a função jurisdicional, Brêtas C. Dias destaca que as decisões
emanadas dos órgãos estatais têm o caráter imperativo, refletindo o poder político do Estado.
O autor esclarece que “[...] em razão disso, essa manifestação de poder do Estado, exercido
em nome do povo, que se projeta no pronunciamento jurisdicional, é realizada sob rigorosa
disciplina constitucional principiológica (devido processo constitucional).” 1156
Porém, observa-se que as súmulas vinculantes são emitidas pelo Supremo Tribunal
Federal fora desse espaço processualizado. Assim, existe a atuação da jurisdição fora dos
perfis do processo constitucional. Entretanto, a legitimidade do direito democrático se
relaciona com a observância do devido processo constitucional.
Ao estudar a evolução histórica do devido processo legal, Pereira aponta que, ao
contrário do que afirmam muitos doutrinadores, a origem do devido processo legal se
relaciona com o Direito Alemão Medieval e não com o Direito Inglês (Magna Carta de 1215):
1152 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 73. 1153 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 101. 1154 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 76. 1155 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 74. 1156 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 86.
342
Em verdade, o documento inglês não constitui o primeiro a reconhecer os princípios by the law of the land e judgment by his peers nem mesmo no Direito Inglês, vez que apenas reproduz ipsis litteris as prescrições das leges henrici primi, que lhe antecedem. Antes mesmo disso, o Direito Alemão bárbaro, este, sim, o primeiro, já reconhecia tais institutos (secundnum constitutionem antecessorum nostrorum et iudicium parium suorum), por meio do Decreto Feudal de 28 de maio de 1037, editado pelo Imperador alemão Konrad II, com o fim de regular a transmissão da propriedade hereditária dos feudos.1157
O devido processo legal previsto na Magna Carta (1215), durante a Idade Média,
significava, inicialmente, simples limitação às ações reais. A locução utilizada àquela época,
no artigo 39 da Magna Carta, era per legem terrae ou law of the land: “[...] tal significa dizer
que esses direitos naturais, assim elencados, somente poderiam sofrer limitações segundo
procedimentos e por força do direito comumente aceito e sedimentado nos precedentes
judiciais, ou seja, pelos princípios e costumes jurídicos consagrados pelo ‘common law’.”1158
Somente no ano de 1354, no reinado de Eduardo III, com a Lei do Parlamento Inglês, o termo
legem terrae foi substituído por due process of law.
Conforme esclarece Leal, quando se trata do instituto do devido processo legal, existe
uma diferença entre a lei que o preconizava nos países da common law (sistema anglo-
americano) e naqueles da civil law (sistema romano-germânico): “[...] no sistema de ‘common
law’, a lei que preconizava o ‘due process’ era, e ainda é, a lei moral dos juízes ou da razão
natural taumaturga, e não a lei como instituição jurídico-popular em bases processuais de
produção do Direito Democrático.”1159 Leal assevera que o devido processo legal “[...] é o
dever-ser posto pelo Processo Constitucional.”1160
Ainda sobre o tema, Leal aponta: “[...] vimos que o instituto do devido processo legal
define-se pela coexistência dos princípios da ampla defesa (necessariamente aqui incluído o
direito ao advogado) e do contraditório, acrescentando-se o da isonomia à configuração
constitucional da instituição do Processo.”1161
Brindeiro destaca que “[...] no Brasil, o devido processo legal, com essa expressão
verbal, passou a ser garantia constitucional inscrita expressamente na Constituição em 1988,
1157 PEREIRA, Ruiteberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 477. 1158 CASTRO, Carlos Roberto da Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 10. 1159 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 65. 1160 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 75. 1161 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, 2005, p. 78.
343
pela primeira vez, no art. 5º, inciso LV1162, onde há norma expressa sobre o devido processo
legal.”1163
Jayme aponta a importância do devido processo legal como garantia processual
fundamental do cidadão, constituindo-se em pré-requisito para o exercício da jurisdição. O
autor assevera que a legitimidade do processo se relaciona com a observância do devido
processo legal. Nesse sentido, o autor aponta que o devido processo legal é “[...] conditio
sine qua non do exercício da jurisdição e, por conseguinte, da formação da coisa julgada.”1164
Assim, o devido processo legal, no Estado Democrático de Direito, é um instituto
constitucionalizado democraticamente, uma vez que legislado pelo povo, não possuindo
relação com aquele preconizado pela Magna Carta:
[...] o Devido Processo Legal do Estado Moderno é um instituto (constitucionalizado democraticamente) [...] no qual se encontram as garantias fundamentais que norteiam o modo de proceder da Administração, do Judiciário e do Legislativo. A incidência do instituto due process na atividade legislativa implica o fato de o legislativo agir somente no sentido positivo da lei.1165
No Estado Democrático de Direito, uma norma, para ser legítima, tem de se submeter
à fiscalidade ampla, sendo apenas relativa a legitimidade da norma criada pelo legislativo,
conforme salienta Almeida:
[...] a norma só é legítima quando se oferece à fiscalidade ampla (irrestrita). Por isso se afirma que no paradigma democrático a legitimidade normativa é a posteriori. A legitimidade das normas criadas pelo legislativo é apenas relativa. O direito nas sociedades jurídico-político-democráticas somente se torna efetivamente (concretamente) legítimo quando a norma abstrata, diante de um caso concreto, se oferece (retoma) à processualidade jurídica para a sua discursividade. Nessas condições, os destinatários das decisões poderão ser também co-autores, e a força do direito poderá não estar na coação do Estado, mas na participação dos destinatários na criação, aplicação e fiscalização dos provimentos estatais.1166
Sobre o tema, Brêtas C. Dias esclarece que o devido processo legal “[...] é uma
estrutura metodológica construída normativamente [...], de modo a garantir a adequada
1162 “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 1163 BRINDEIRO, Geraldo. Jurisdição constitucional e o devido processo legal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 427. 1164 JAYME, Fernando. Devido processo legal. Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2000, p. 68. 1165 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 73. 1166 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 76- 77.
344
participação dos destinatários na formação daquele ato imperativo estatal, afastando qualquer
subjetivismo ou ideologia do agente público decisor (juiz).”1167
Ao inviabilizar a formação de um espaço discursivo, as súmulas acabam por
suprimir o contraditório, a ampla defesa e a isonomia, uma vez que não possibilitam às partes
participarem de sua construção. Assim, na sua emissão também não há observância do devido
processo legal.
Cattoni de Oliveira, em obra especializada sobre o processo legislativo, embasado
no conceito renovado de Fazzalari acerca do procedimento, esclarece que os afetados pelo
processo legislativo têm papel preponderante na preparação desse procedimento, que deve
ocorrer em contraditório. O autor esclarece que sua compreensão acerca do processo
legislativo é baseada numa tentativa de conciliar os estudos realizados por Fazzalari (1994),
Galeotti (1985) e Häberle (1997). Sobre o tema, Cattoni de Oliveira esclarece:
Nesse quadro, o processo legislativo, enquanto processo de justificação democrática do Direito, pode ser caracterizado como uma seqüência de diversos atos jurídicos que, formando uma cadeia procedimental, assumem seu modo específico de interconexão, estruturado em última análise por normas jurídico-constitucionais, e, realizados discursiva ou ao menos em termos negocialmente equânimes ou em contraditório entre agentes legitimados no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, visam à formação e emissão de ato público estatal do tipo pronúncia-declaração, nesse caso, de provimento normativos legislativos, que, sendo o ato final daquela cadeia procedimental, dá-lhe finalidade jurídica específica.1168
Por sua vez, Del Negri, ao estudar o controle de constitucionalidade no processo
legislativo, assevera que o devido processo legislativo é um direito-garantia de que a
produção do direito será realizada por meio do processo legislativo e sob orientação do
processo constitucional:
[...] o devido processo legislativo, o qual é também devido processo legal, é um direito-garantia que os cidadãos possuem com relação a uma produção democrática do Direito, uma produção realizada em consonância com o paradigma atual, concretizado por intermédio do Processo Legislativo orientado pelo Processo Constitucional.1169
1167 BRÊTAS C. DIAS, Ronaldo. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, 2004, p. 86. 1168 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, 2000, p. 109. 1169 DEL NEGRI, André L. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, 2003, p. 74.
345
Almeida aponta que o devido processo legislativo refere-se à “[...] principiologia do
processo no momento do exercício da vontade normativa, ou seja, na regulamentação da
norma constitucional.”1170
Ao contrário do que ocorre com as súmulas, a pós-modernidade implica a
participação ativa dos destinatários das decisões, visto que as decisões devem submeter-se ao
devido processo legal e devido processo legislativo. Porém, a forma como as súmulas são
emitidas transforma os destinatários da norma em destinatários passivos. Por conseguinte,
elas acabam por impedir a correção do sistema através da crítica e por impedir a emergência
da cidadania.
Com base no estudo realizado, é mister salientar a importância do devido processo
constitucional e suas vertentes na construção do Estado democrático de direito. Essa
proposta, uma vez submetida a testes, mostra-se capaz de permitir a construção de uma
Sociedade Jurídico-Político-Democrática, uma vez que possibilita a ampla participação da
comunidade jurídica na construção do ordenamento jurídico por meio do processo jurídico.
Por conseguinte, essa proposta testificada pelo critério de refutabilidade popperiano e pela
teoria neo-institucionalista do processo, revela-se capaz de atacar a principal causa de
operacionalidade do Judiciário, que é a utilização dos procedimentos que ferem o
contraditório, a isonomia e a ampla defesa. Desse modo, há corroboração dessa proposta
alternativa às súmulas vinculantes nos moldes idealizados por Popper.1171
1170 ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa, 2003, p. 101. 1171 POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica, 1972.
346
CONCLUSÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
A presente pesquisa encaminha a tese de investigar a compatibilidade das súmulas
vinculantes com o sistema romano-germânico e a legitimidade de sua adoção pelo Estado
democrático de direito. Para tanto, submeteram-se essas súmulas a testes, com o intuito de
aferir se em sua emissão há observância do devido processo constitucional.
Nessa perspectiva e com base nos objetivos específicos delineados, podem-se apontar
as seguintes proposições:
1. Pelo estudo da teoria popperiana da falseabilidade das teorias, pode-se concluir que,
na elaboração das súmulas vinculantes, não se levou em consideração a epistemologia do
Direito Processual baseada na ciência jurídica e na crítico-jurídico-científica. Assim, numa
perspectiva utilitarista, buscaram-se resultados práticos para a crise de operacionalidade do
Judiciário sem atentar para os princípios do contraditório, da isonomia e da ampla defesa. Por
outro lado, a epistemologia popperiana aponta para a necessidade de aplicação de um direito
democrático pelo devido processo constitucional.
O critério da falseabilidade popperiano evidenciou a importância da epistemologia na
construção gradativa de uma sociedade democrática, dentro de um espaço processualizado.
Porém, os resultados da pesquisa indicam que as súmulas vinculantes são elaboradas na
realidade nua, ou seja, antes da instauração do processo.
A epistemologia falibilista popperiana colocou a teoria do conhecimento objetivo no
centro de sua reflexão e refutou a epistemologia subjetivista, uma vez que esta inviabiliza a
crítica. Todavia, de modo diferente do preconizado por Popper, na emissão das súmulas, os
ministros do Supremo Tribunal Federal fazem uso dessa epistemologia subjetivista, pois a
forma como são elaboradas não possibilita uma dialogicidade em um espaço processualizado.
Por outro lado, a epistemologia popperiana falibilista remeteu a pesquisa à
epistemologia processual, levando a uma reflexão sobre o papel das teorias do processo na
construção de uma sociedade democrática. Embasada nessa epistemologia falibilista
popperiana, a pesquisa submeteu a testes as teorias do processo, com o intuito de investigar a
compatibilidade dessas teorias com a teoria discursiva do direito democrático. E, ainda,
submeteram-se a testes as súmulas vinculantes com o intuito de inquirir se elas se adaptam à
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teoria processual da pós-modernidade, ou seja, se elas possibilitam uma renovação do
ordenamento jurídico.
Pelo estudo da temática pós-modernidade, conclui-se que a legitimidade das decisões
não se viabiliza pelo apelo aos mitos da modernidade nem com a autoridade dos ministros do
Supremo Tribunal Federal. Pelo contrário, a pós-modernidade, como formulação teórica,
implica a participação dos afetados na construção dessa decisão em um espaço
processualizado.
A pesquisa realizou três testes com as teorias do processo. O primeiro teste enfocou a
distinção entre processo e procedimento, bem como os conceitos de processo formulados por
essa teoria; esse teste baseou-se no princípio do discurso da teoria neo-institucionalista. Já o
segundo teste teve como fundamento a teoria discursiva habermasiana. Por fim, o terceiro
teste, baseado na visão neo-institucionalista da decidibilidade, enfoca a decisão jurisdicional.
Os resultados dos primeiros testes apontam que a teoria neo-institucionalista do
processo ocasiona um rompimento com o modo como o processo vem sendo estudado pelas
demais teorias. Por conseguinte, os estudos apontaram que a teoria neo-institucionalista do
processo compatibiliza-se com a pós-modernidade, já que, por essa teoria, o processo é
construído com base na constituição e com ampla participação da comunidade jurídica na
construção do provimento. Outrossim, a adoção do princípio do discurso pela teoria neo-
institucionalista indica a possibilidade do exercício e aplicação de um direito democrático
pelo devido processo constitucional.
Por outro lado, os testes apontam que as súmulas vinculantes não se compatibilizam
com a teoria neo-institucionalista do processo – teoria processual da pós-modernidade -
tendo em vista que, em sua emissão, não há submissão à fiscalidade ampla, irrestrita e
constitucionalizada procedimentalmente.
Na crítica popperiana à sociedade fechada (tribal), também se esclareceu a importância
da epistemologia na construção de uma sociedade aberta (democrática). Através da
epistemologia popperiana falibilista, aponta-se a necessidade de reconstrução social através
do método gradual de tentativa e erro. Por conseguinte, enfatiza-se o devido processo
constitucional na construção de uma sociedade democrática. Por outro lado, os inimigos da
sociedade aberta, Platão, Hegel e Marx, através do método social utópico ou holista,
enfatizam o processo histórico. Nessa concepção, tem-se a atuação da jurisdição sem o
devido processo constitucional. Desse modo, eles [os inimigos da sociedade aberta] não
adotaram um processo jurídico-discursivo.
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Os testes apontam que os legisladores, ao adotarem as súmulas vinculantes, fizeram
uso do processo histórico, já que, a pretexto de agilizarem a atividade jurisdicional e
concretizarem o ideal de certeza do direito, excluíram o devido processo constitucional.
Desta forma, na busca do Estado perfeito nos moldes idealizados por Platão, os legisladores
se utilizaram do método utópico. Assim, a adoção das súmulas vinculantes implica a opressão
da crítica e a impossibilidade de correção gradual do sistema jurídico.
Os resultados da pesquisa indicam que, no direito democrático, deve prevalecer uma
ação jurídica como exercício da cidadania, mediante a instituição de um Logos
argumentativo, e discursivo através do contraditório. Por sua vez, o contraditório não pode
ocorrer na realidade nua ou a “céu aberto” como ocorria na Ágora grega, mas deve ocorrer
através do devido processo constitucional. Por outro lado, a súmulas vinculantes não
possibilitam a instituição desse Logos argumentativo, motivo pelo qual sua adoção deve ser
refutada pelo Estado democrático de direito.
2. De maneira inovadora, o trabalho buscou reconstruir o pensamento habermasiano a
partir de quatro momentos. Para tanto, a teoria neo-institucionalista teve papel preponderante,
tendo em vista que essa teoria coloca o processo constitucionalizado no centro de suas
reflexões, viabilizando a institucionalização do princípio do discurso em princípio jurídico,
suprindo a lacuna deixada por Habermas em sua teoria discursiva.
Após a reconstrução do pensamento habermasiano, pode-se concluir que houve um
desenvolvimento de seus estudos acerca da legitimidade das decisões. No primeiro momento,
Habermas destacou uma relação de complementaridade entre o direito e a moral, tendo em
vista que ele relacionou a formação da vontade normativa com a moral, que se constituía na
instância superior que a fundamentava. No segundo momento, no estudo da legitimidade do
direito e das decisões, ocorre um entrelaçamento simultâneo entre o direito e a moral. No
terceiro momento, Habermas apresentou um modelo procedimentalista do Direito e da
democracia e de política deliberativa diferente tanto do modelo liberal quanto do republicano
e adequado às concepções de direito democrático e Estado democrático de direito. Por sua
vez, ele estabeleceu um nexo interno de eqüiprimordialidade entre autonomia pública e
privada e, conseqüentemente, entre soberania do povo e direitos humanos. E, por fim, no
quarto momento, ocorreu uma redefinição entre Direito e Moral, passando a ser co-
originários.
Ao entender que existe uma relação de co-originariedade entre direito e moral,
Habermas contribuiu para demonstrar que as decisões se qualificam por sua gênese discursiva
e não como atividade solipsista (solitária) do juiz. Por conseguinte, a teoria discursiva
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habermasiana ofereceu importante contribuição no estudo da legitimidade do direito e das
decisões. Apesar de colocar o procedimento no centro de sua reflexão, uma vez que a
complementaridade entre o direito e a moral ocorre por meio do processo legislativo, ele não
qualificou a procedimentalidade democrática. Essa qualificação foi realizada pela teoria neo-
institucionalista do processo, a qual explicitou que a institucionalização do princípio do
discurso em princípio da democracia deve perpassar o processo.
Pela segunda vez, as teorias do processo foram submetidas a testes pela teoria neo-
institucionalista do processo, tendo com fundamento a teoria discursiva habermasiana. Os
resultados desses testes apontam que, para os instrumentalistas, a legitimidade das decisões
constitui-se em um fato social e não em um fato jurídico. Desse modo, por essa concepção
não há observância do devido processo constitucional e suas duas vertentes (o devido
processo legislativo e o devido processo legal).
Além disso, ao contrário da teoria discursiva, que pressupõe a participação dos
destinatários das normas em sua elaboração, a pesquisa aponta que as súmulas vinculantes
buscaram inspiração no princípio monológico dworkiano, tendo em vista que são elaboradas
pelo Supremo Tribunal Federal de maneira solitária e não são compartilhadas pelos afetados.
Também a teoria da situação jurídica, uma vez submetida a teste, mostra-se
incompatível com a teoria discursiva habermasiana, vez que, apesar das críticas
empreendidas, a teoria da relação jurídica pelos vínculos de subordinação entre as partes
manteve o subjetivismo e o voluntarismo. Desse modo, a sentença não precisava guardar
relação com o processo, já que não havia necessidade de o juiz apontar fundamentos jurídicos
para sua elaboração e conclusão.
A teoria do procedimento em contraditório na democratização do direito processual
através da garantia das partes à simétrica paridade, apesar de sua contribuição, ainda não foi
capaz de conceituar o processo como instituição jurídica constitucionalizada, regente da
estrutura procedimental.
Assim, os resultados dos testes pela teoria neo-institucionalista do processo apontam
que essas teorias do processo mostram-se incompatíveis com a teoria do discurso
habermasiana, pois não foram capazes de superar a concepção liberal e republicana e de
adotar a teoria habermasiana baseada na dialogicidade e intersubjetividade. Desse modo, os
testes sinalizam para a debilidade das decisões monológicas e autoritárias como ocorre com as
súmulas vinculantes.
3. A pesquisa registra a contribuição da teoria neo-institucionalista na construção de
uma Sociedade Jurídico-Político-Democrática (aberta). Essa teoria possibilitou submeter a
350
testes as demais teorias do processo e as propostas alternativas às súmulas vinculantes,
viabilizando o caráter de originalidade da presente tese de doutorado, uma vez que a
utilização dessa teoria como principal aporte teórico traz não só uma contribuição teórica, mas
também metodológica, no estudo de uma nova epistemologia do Direito Processual. Além
disso, essa teoria possibilitou compreender de que maneira ocorre a transposição do princípio
do discurso em princípio da democracia.
A teoria neo-institucionalista buscou ressemantizar o conceito de decisão na pós-
modernidade. Para tanto, fez uso da teoria discursiva habermasiana e da epistemologia
falibilista popperiana. Assim, baseada no critério de falseabilidade popperiana, essa teoria
coloca o processo jurídico no centro de suas reflexões.
A teoria neo-institucionalista fundamenta-se na proposta de uma teoria constitucional
do direito democrático, que, por sua vez, relaciona-se com a cidadania. Nessa linha de idéias,
essa teoria processual refutou a ação social e enfatizou a ação jurídica como exercício da
cidadania. Essa teoria, ainda, ressaltou que é a cidadania que qualifica o indivíduo como
construtor da Sociedade Jurídico-Político-Democrática. Desse modo, cidadão é aquele
legitimado ao devido processo legal.
Embasado na teoria neo-institucionalista do processo, estudou-se o instituto jurídico
da decisão no Estado democrático de direito. Com o intuito de melhor aprofundamento da
matéria, dividiu-se a pesquisa em três partes: decisionismo voluntarista e autoritarista da
decidibilidade, visão neo-institucionalista da decidibilidade e procedimentalidade democrática
(neo-institucionalista), e princípio-democrático.
Sobre o decisionismo voluntarista e autoritarista, a pesquisa aponta que a decisão já
não pode mais ser estudada como ato autoritário do juiz. Desse modo, ao contrário dos
adeptos da relação jurídica que colocam a jurisdição no centro dessa teoria processual e que
relacionam o ato de decidir com o poder do Estado, na pós-modernidade a decisão não se
relaciona com o poder, a tradição e autoridade, mas ao devido processo constitucional.
Assim, a hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito fundamenta-se
no princípio do discurso juridicamente institucionalizado. Desse modo, a hermenêutica não
pode restringir-se a métodos interpretativos, pois o método é apreendido como um meio
seguro e não polemizado, e não nos moldes preconizados pela epistemologia falibilista
popperiana.
A teoria neo-institucionalista do processo desenvolveu uma teoria neo-institucionalista
da decidibilidade em oposição às decisões interditais e destacou a importância do processo
jurídico na pós-modernidade na construção de uma decisão legítima. Assim, a presente
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pesquisa estudou os princípios do processo com o intuito de investigar se na emissão das
súmulas há observância desses princípios. Estudaram-se os princípios jurídico-institutivos do
processo capazes de definir o processo na pós-modernidade.
O contraditório, como referente lógico-jurídico do processo constitucionalizado,
caracteriza-se pela dialeticidade e garante uma atuação eqüitativa das partes, possibilitando
que a decisão seja fundamentada no direito debatido e nos fatos reconstruídos por elas. Assim,
o estudo embasado na teoria neo-institucionalista do processo enfatizou a necessidade de se
superar o conceito de contraditório fazzalariano como mero atributo do processo, visto que
esse constitui uma instituição jurídico-constitucionalizada. Por sua vez, a isonomia também é
um referente lógico-jurídico do processo constitucionalizado e que é indispensável ao
contraditório, e se constitui na garantia da igualdade temporal na construção procedimental. O
princípio da ampla defesa constitui-se no conteúdo do contraditório e se relaciona com a
garantia de um espaço procedimental que possibilite a participação das partes na preparação
do provimento por meio da ampla argumentação das partes e da produção de provas. A
observância desses princípios possibilita a construção de uma sociedade aberta por meio da
crítica jurídica. Porém, na emissão das súmulas vinculantes não há observância desses
princípios, uma vez que elas são elaboradas fora de um espaço procedimental
processualizado. Assim, impossibilitam a construção de uma sociedade democrática pelos
destinatários das normas, já que não permitem que eles sejam seus co-autores.
Por sua vez, para atingir seu desiderato e utilizando-se do método da mecânica gradual
popperiano, a teoria neo-institucionalista submeteu a testes, pela terceira vez, as demais
teorias do processo e constatou que essas teorias não possibilitaram a transposição do
princípio do discurso em princípio da democracia e não viabilizaram a revisibilidade do
ordenamento jurídico.
Os testes apontam que a teoria da relação jurídica é privatística, baseada em vínculos
subjetivos de subordinação entre os sujeitos do processo, em que o juiz possui poderes
carismáticos na condução do processo. Já pela teoria da situação jurídica, não havia
necessidade de a decisão possuir relação com o processo. Assim, por essa teoria, as partes não
participam da construção da sentença. Na teoria do processo como instituição, a decisão
possui fundamentos sociológicos e não jurídicos. Por sua vez, a teoria do procedimento em
contraditório, apesar de se constituir em um avanço com relação às demais, não foi capaz de
estudar o contraditório como um instituto do Direito Constitucional, mas como mera
qualidade do processo. Além disso, apesar de essa teoria adotar um modelo constitucional do
processo, ele não explicitou a teoria processual adotada por ela, capaz de informar essa
352
processualidade; sendo assim, acabou por adotar os ensinamentos da teoria do processo como
relação jurídica. Desse modo, enquanto essa teoria pressupõe a existência de uma sociedade
civil, a teoria neo-institucionalista se propõe a construir uma sociedade democrática pela
comunidade jurídica, por meio do devido processo constitucional.
Sendo assim, a pesquisa conclui que a institucionalização do processo é que possibilita
retirar das decisões seu caráter interdital e voluntarista. Também os testes evidenciam que a
teoria neo-institucionalista do processo não se compatibiliza com as demais teorias, uma vez
que estas não possibilitam a auto-inclusão processual de todos nos direitos fundamentais e
não se compatibilizam com um direito democrático. Assim, houve a corroboração da teoria
neo-institucionalista do processo e a refutação das demais teorias.
Ainda, tendo em vista que as demais teorias do processo não viabilizaram a
institucionalização do princípio do discurso em princípio da democracia, a teoria neo-
institucionalista buscou esclarecer o significado de institucionalização democrática na teoria
discursiva habermasiana. Desse modo, a teoria neo-institucionalista, baseada na falibilidade
discursiva popperiana, viabilizou a transposição do princípio do discurso em princípio da
democracia por meio do devido processo constitucional.
Deste modo, as súmulas vinculantes, também uma vez submetidas a testes, mostram-
se incompatíveis com a teoria neo-institucionalista. Portanto, enquanto as súmulas são
baseadas no processo histórico dos inimigos da sociedade aberta, a teoria neo-
institucionalista, embasada na epistemologia falibilista popperiana e na teoria discursiva
habermasiana conclama o processo jurídico na enunciação de uma sociedade democrática.
4. Após os estudos realizados no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da
Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em
especial na área de Direito Processual, que tem como linha de pesquisa o processo na
construção do Estado democrático de direito, com o intuito de apontar os aportes teóricos
utilizados nesses estudos, bem como de explicitar a relação desses paradigmas de Estado com
o processo, as pesquisas realizadas mostram uma ruptura com o modo como o processo e a
jurisdição têm sido estudados. Além disso, o incentivo no desenvolvimento de pesquisas que
teorizem sobre o Estado democrático de direito acaba por contribuir para uma nova
epistemologia do Direito Processual.
A inovação nesses estudos consiste na teoria neo-institucionalista do processo, uma
vez que essa proposição de maneira original coloca no centro de suas reflexões o processo
jurídico, como forma de enunciação de uma sociedade democrática. Esses estudos apontaram
que o Estado passou a ser estudado ao lado de outras instituições jurídicas, não se
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constituindo mais o todo do ordenamento jurídico; por outro lado, o Estado da pós-
modernidade não é apenas um Estado de direito, mas um Estado democrático de direito. Esse
modelo de Estado viabiliza o exercício da cidadania na construção de uma Sociedade Político-
Jurídico democrática, que deve ser baseada em uma atitude crítica e na responsabilidade da
comunidade jurídica. Ao evidenciar a crítica na construção de uma sociedade aberta, o
trabalho enfatizou o papel desempenhado pelo processo jurídico e sua principiologia na
democracia.
No estudo do Estado democrático de direito, Leal, Almeida, Pellegrini, Maciel Júnior,
Cattoni de Oliveira, André Leal, Del Negri e Galuppo utilizam-se do aporte teórico de
Habermas. Por sua vez, a teoria neo-institucionalista no estudo do Estado democrático de
direito, idealizada por Leal, também trabalha com o referencial de Popper. Isso acabou por
acarretar outros estudos com esse embasamento teórico, como os trabalhos desenvolvidos por
Almeida, Del Negri, Trindade, Pellegrini, bem como a presente tese de doutorado. Esse
também pode ser apontado como outro aspecto inovador acerca dos estudos desenvolvidos
nesta instituição, uma vez que a epistemologia popperiana também coloca o devido processo
constitucional como pré-requisito na construção de uma sociedade democrática.
Os estudos realizados no âmbito desta instituição refutam o processo como relação
jurídica e partem suas pesquisas da teoria do procedimento em contraditório idealizada por
Fazzalari. Assim, Pellegrini, Cattoni de Oliveira e Galuppo utilizam-se desse aporte teórico.
Por outro lado, Maciel Júnior e Vieira fazem uso do referencial teórico da teoria do processo
como situação jurídica. Já Almeida, Brêtas C. Dias, Del Negri, André Leal, Trindade e a
presente tese de doutorado utilizam-se do aporte teórico de Leal (teoria neo-institucionalista
do processo).
5. Com o intuito de melhor conhecer o instituto do stare decisis – vinculação das
decisões judiciais aos precedentes jurisdicionais, estudou-se este instituto tomando por base o
Direito Comparado e buscou-se examinar as diferenças existentes entre a regra do precedente
jurisdicional adotado pelo sistema anglo-americano e o efeito vinculante atribuído às decisões
nos países filiados ao sistema romano-germânico. Buscou-se refletir até que ponto a adoção
de súmulas que vinculam os juízes ao emitir suas decisões compatibiliza com o Direito
Processual próprio do sistema romano-germânico e, em especial, com os princípios do Estado
democrático de direito.
A pesquisa realizada indica que o sistema romano-germânico tem como fundamento a
lei, que, por sua vez, no Estado da pós-modernidade, é uma lei que deve ser elaborada por
meio do devido processo constitucional. Apesar disso, houve uma ampliação da força do
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precedente jurisdicional nesses países, admitindo-se, inclusive, a vinculação como ocorreu no
ordenamento jurídico brasileiro, com a adoção das súmulas vinculantes. Por outro lado, o
sistema anglo-americano tem seu sustentáculo nos precedentes jurisprudenciais, como ocorre
nos Estados Unidos e na Inglaterra. Porém, os estudos realizados em termos de
macrocomparação apontam que, apesar dessas peculiaridades, existe uma aproximação entre
esses dois sistemas. O estudo do Direito Comparado em termos de microcomparação apontou
que os países vinculados ao sistema romano-germânico, como Áustria, Alemanha, França,
Espanha e Portugal, têm admitido a vinculação, especialmente das decisões de natureza
constitucional.
Apesar de serem apontadas semelhanças entre o efeito vinculante e o stare decisis,
existem diferenças entre esses dois institutos. Assim, o efeito vinculante, criado no âmbito do
controle concentrado, objetiva evitar a recalcitrância dos demais órgãos do Estado; visa a uma
coerência interna e possui o caráter obrigatório. Por outro lado, o stare decisis visa conceder
estabilidade nas relações jurídicas, tem abrangência externa em relação ao Poder Legislativo,
Executivo ou à administração pública e permite, em alguns casos, aos demais órgãos do Poder
Judiciário se afastarem do precedente através da distinção entre os casos, alterações das
circunstâncias em que o precedente foi emitido, ignorância do precedente, existência de
decisões contraditórias de mesma hierarquia e revogação do precedente, e reforma de uma
decisão de um juízo a quo por um juízo ad quem. Desse modo, essas técnicas utilizadas pelos
países filiados ao sistema da common law possibilitam a não aplicação do precedente. Por
outro lado, o efeito vinculante impõe de maneira autoritária aos juízes de instâncias inferiores,
bem como à administração pública, a adoção das decisões do Supremo Tribunal Federal, uma
vez que não possibilitam que esses juízes e gestores públicos contrariem as decisões
sumuladas. E, caso isso ocorra, a decisão poderá ser cassada e o ato administrativo anulado.
Apesar de os estudos indicarem que diversos países filiados à família romano-
germânica adotaram o efeito vinculante, isso se constitui em incoerência com esse sistema
jurídico, baseado no primado da lei. Assim, a adoção do efeito vinculante pelo ordenamento
jurídico brasileiro não se compatibiliza com o Direito Processual, próprio do sistema romano-
germânico e se constitui em mais um motivo pelo qual elas devem ser refutada.
6. As súmulas vinculantes foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro pela
Emenda Constitucional n. 45/2004. Além disso, a referida emenda alterou o regime jurídico
do efeito vinculante. Assim, ao estudar as súmulas vinculantes perante o ordenamento jurídico
brasileiro, constatou-se que elas podem ser emitidas pelo Supremo Tribunal mediante votação
de dois terços de seus membros, sendo elaboradas em uma realidade não processualizada.
355
Desse modo, não há uma discursividade processualizada e, conseqüentemente, não há
observância dos princípios institutivos do processo. Assim, essa forma de emissão não
possibilita o devido processo legislativo no momento da formação normativa. No Estado
democrático de direito, a decisão não precisa ser apenas válida e eficaz, mas também deve ser
legítima.
Além disso, tendo sido emitidas essas súmulas elas deverão ser obrigatoriamente
obedecidas pelos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e
indireta, nas esferas estadual e municipal. As súmulas passam então a ter força de lei,
contrariando o sistema normativo próprio do sistema romano-germânico. Além disso, essa
obrigatoriedade fere a independência dos juízes que estão adstritos ao princípio da legalidade
e aos argumentos discutidos pelas partes e provas produzidas por elas em um espaço
processualizado. A vinculação impede a renovação do ordenamento jurídico e tolhe a
capacidade do povo de fiscalizar a criação, aplicação e execução das normas jurídicas pelo
devido processo legal.
Os limites objetivos das súmulas não foram regulamentados de maneira expressa pela
lei infraconstitucional regulamentadora da matéria, o que dá margem a interpretação dúbia.
Caso esses limites sejam baseados na coisa julgada, a vinculação deve ocorrer apenas do
dispositivo. Por outro lado, levando-se em consideração a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, a vinculação deve ocorrer não apenas do dispositivo, mas também da
fundamentação da decisão. Esse fato fere o princípio da fundamentação da decisão que deve
nortear a elaboração de qualquer decisão nesse modelo de Estado, uma vez que os
destinatários da norma não serão seus co-autores, já que, na fundamentação das súmulas
vinculantes os ministros do Supremo Tribunal Federal farão referência aos argumentos que
foram debatidos por outras partes.
7. O trabalho aponta que os argumentos apresentados pelos que defendem o efeito
vinculante são apenas mitos, baseados na crença da celeridade processual, da segurança
jurídica e do tratamento isonômico das partes, tendo em vista que sua adoção pelo Estado
democrático de direito obstaculiza o discurso jurídico-democrático, que se constitui no
fundamento de uma sociedade democrática.
A celeridade processual não permite que sejam agilizados os procedimentos pela
diminuição das garantias processuais. Assim, o que deve ocorrer é uma adequação temporal
da jurisdição, ou seja, é a garantia de que a atividade jurisdicional ocorrerá dentro de um
prazo hábil e sem dilações indevidas. Por isso, a adoção da súmula implica a violação de uma
garantia processual. Por outro lado, a segurança jurídica e a certeza do direito dizem respeito
356
à observância da estrutura procedimental (contraditório, isonomia e ampla defesa). Além
disso, as súmulas vinculantes não possibilitam um tratamento isonômico entre as partes, mas
uma mera padronização das decisões, com extensão da coisa julgada a quem não participou
da construção do provimento emanado do Estado.
O trabalho analisou as causas operacionais, as estruturais, as conjunturais e as
orgânicas da crise de operacionalidade do Judiciário. Além dessas, a pesquisa abordou
também quatro outras perspectivas: uma crise ampla do modelo de Estado, uma crise
específica do processo constitucional do direito, uma crise baseada na institucionalização dos
agentes políticos e uma crise baseada nos procedimentos adotados.
A pesquisa identificou como principal causa dessa crise a adoção de procedimentos
que violam os princípios institutivos do processo, que também pode ser denominada de causa
orgânica. Assim, o que a pesquisa aponta é que não há necessidade de uma reforma pontual,
mas, para que essa crise seja solucionada ou amenizada, há necessidade de observância do
devido processo constitucional. Por outro lado, as súmulas não atacam as causas da crise de
operacionalidade, mas se constituem em uma das causas dessa crise.
8. As súmulas foram submetidas a testes com o intuito de aferir sua legitimidade.
Constatou-se que, na emissão das súmulas, não há submissão ao modelo constitucional do
processo.
Os testes apontam que, na utilização das súmulas, não há sujeição dos órgãos
jurisdicionais às normas que integram o ordenamento jurídico, visto que, apesar de a súmula
ter o caráter geral e de sua emissão ser autorizada por emenda constitucional, isso não confere
legitimidade a elas. Assim, elas não possibilitam uma fiscalização participativa da
comunidade jurídica.
Averiguou-se, ainda, que as súmulas vinculantes ferem o princípio da separação das
funções e independência dos juízes, uma vez que elas são elaboradas pelo Supremo Tribunal
Federal, órgão de cúpula do Judiciário, cuja função estabelecida pela Constituição é a
jurisdicional e não a legislativa fora da estrutura do processo constitucionalizado. Essa
ingerência do Supremo Tribunal Federal na atividade jurisdicional viola o requisito da
imparcialidade da jurisdição.
As súmulas vinculantes também não possibilitam a construção dos direitos pelo eixo
hermenêutico do devido processo constitucional e, conseqüentemente, ofendem o postulado
do direito de ação. Por conseguinte, elas também não viabilizam a fundamentação das
decisões, já que não há a participação das partes nem a presença do contraditório.
357
Assim, com base na teoria neo-institucionalista do processo, conclui-se que qualquer
proposta para superar a crise de operacionalidade do Judiciário deve submeter-se ao processo
jurídico, já que essa é a maior conquista da pós-modernidade.
9. Diante da ilegitimidade das súmulas vinculantes, fez-se necessário a apreciação das
propostas alternativas à sua adoção com o intuito de investigar se elas são compatíveis com o
atual modelo de Estado. Para tanto, utilizaram-se o critério de refutabilidade popperiano e a
teoria neo-institucionalista do processo.
A primeira proposta alternativa oferecida à apreciação foi a criação de um Tribunal
Constitucional específico. Porém, constatou-se a necessidade de refutação dessa proposta,
uma vez que se trata de uma proposta autoritária, que impossibilita a participação dos
destinatários das normas em sua elaboração. Assim, a Constituição não necessita de um
guarda, tendo em vista que o controle de constitucionalidade deve ocorrer por meio do devido
processo constitucional. O que se faz necessário é a substituição do controle concentrado de
constitucionalidade por uma democracia fiscalizatória que possibilite o exercício da
cidadania.
A pesquisa também refutou a proposta de mudanças estruturais no Judiciário, essa
proposta acabaria por agravar o problema da lentidão da atividade jurisdicional, tendo em
vista que ela implica a redução do número de juízes. Assim, é mister a submissão do
Judiciário à concepção de direito democrático, fundamentada na teoria do discurso.
10. A segunda proposta submetida a teste foi a possibilidade de criação de súmulas
que impossibilitem a interposição de recursos, como a súmula restritiva de recurso, a súmula
de filtragem, a súmula com eficácia administrativa, o requisito da transcendência no recurso
de revista e a repercussão geral no recurso extraordinário. Essa proposta concede uma ampla
margem de discricionariedade aos juízes na seleção dos recursos que serão apreciados,
levando a uma judiciarização do processo. Nessa concepção, ocorre a atuação da jurisdição
fora dos perfis do processo. Assim, a proposta não possibilita a formação de um novo espaço
discursivo do processo em âmbito recursal.
11. Ainda se submeteram a testes as propostas de aperfeiçoamento da Justiça Estadual,
possibilidade de alteração da jurisprudência e privatização do Judiciário. Os testes apontaram
que de nada adianta o aperfeiçoamento da Justiça Estadual com a adoção de Códigos
Estaduais, sem que ocorra a submissão do Judiciário aos princípios que regem o Estado
democrático de direito. Por outro lado, deve-se possibilitar a renovação do ordenamento
jurídico mediante a flexibilização da jurisprudência através do devido processo
constitucional. De modo diverso do que ocorre com as súmulas vinculantes que levam à
358
petrificação do ordenamento jurídico, a flexibilização jurisprudencial possibilita a correção
gradual do ordenamento jurídico pelo método de tentativas e erros.
Foi também submetida a teste a proposta de privatização do Judiciário. O
neoliberalismo cobra uma eficiência do Judiciário, uma vez que, por essa concepção, o
Judiciário seria uma empresa produtiva, que deveria gerar resultados positivos. Diante da
lentidão da atividade jurisdicional, as críticas neoliberais indicam as empresas privadas como
uma alternativa para essa morosidade. Porém, não se pode olvidar que o processo jurídico foi
a maior conquista da pós-modernidade, e aceitar a privatização do Judiciário seria o retorno
a Pothier, idealizador da teoria do processo como contrato. Assim, sendo o processo uma
instituição jurídica constitucionalizada, não se pode corroborar essa proposta alternativa à
súmula vinculante.
12. Por fim, ofereceu-se à apreciação crítica a última alternativa às súmulas
vinculantes com a aplicação de um direito democrático pelo devido processo constitucional.
A pesquisa aponta que a crítica tem papel preponderante na construção de uma Sociedade
Jurídico-Político-Democrática. Por sua vez, a pesquisa constatou que o devido processo
constitucional é esse espaço que possibilita a criação do direito pela comunidade jurídica.
Devido é, justamente, porque é criado pelo povo; e constitucional, porque deve observar a
principiologia constitucional do processo. O devido processo legislativo deve ser observado
no momento da formação normativa (regulamentação da norma constitucional). O devido
processo legal diz respeito à possibilidade de fiscalização ampla e irrestrita pela comunidade
jurídica. Assim, somente a aplicação de um direito democrático pelo devido processo
constitucional viabiliza a correção do sistema através da crítica e possibilita a emergência da
cidadania. Desse modo, há a corroboração dessa proposta alternativa às súmulas vinculantes,
uma vez que ela é capaz de atacar a principal causa da crise de operacionalidade do Judiciário.
O objetivo da presente tese de doutorado foi alcançado, pois corroborou-se a hipótese
proposta e refutou-se a adoção das súmulas vinculantes pelo Estado democrático de direito. E,
ainda, a pesquisa foi capaz de apontar uma proposta alternativa às súmulas vinculantes,
enfatizando-se o processo jurídico nos moldes preconizados pela teoria neo-institucionalista
do processo.
Assim, a pretensão da presente pesquisa foi a de consolidar a tese aqui defendida de
uma nova epistemologia do Direito Processual, através de um estudo sistematizado e baseado
na ciência jurídica e na crítica jurídico-científica, com o enfoque voltado para a legitimidade
das decisões no Estado democrático de direito.
359
13. Fica ainda a sugestão para que sejam desenvolvidas novas pesquisas, utilizando o
critério de falseabilidade popperiano, a teoria discursiva habermasiana e a teoria neo-
institucionalista do processo. Em especial que se submetam a testes as reformas processuais
que foram introduzidas em nosso ordenamento jurídico. Sugere-se também que se
investiguem outros institutos que têm sido objeto de pesquisa no âmbito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, com o intuito de melhor delinear essa nova
epistemologia do Direito Processual desenvolvida pela Escola Mineira do Direito Processual.
360
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