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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUCSP
Susete Gomes
A interpretao dos contratos complexos: uma viso dos contratos coligados
DOUTORADO EM DIREITO
SO PAULO SP 2016
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUCSP
Susete Gomes
A interpretao dos contratos complexos: uma viso dos contratos coligados
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutora em Direito Civil, sob orientao do Professor Doutor Giovanni Ettore Nanni.
SO PAULO SP 2016
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Banca examinadora
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Ao Professor Renan Lotufo, que me ensinou a amar o Direito Civil.
A vida me concedeu a honra e o privilgio de ter sido sua aluna e sua orientanda.
Tenha a certeza, caro Professor, que todo o seu conhecimento e todas as suas lies iluminaram e sempre iluminaro os meus dias de estudo e de lida com o Direito.
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Aos meus amores: Susy, minha gmea amada, pela vida, pelas travessias, por comigo erguer os braos e cantar... Viver e No ter a Vergonha de Ser Feliz...
Thales, meu filho. Que a vida te permita voar bem alto! Saiba que sempre tem um lugar para pousar ao meu lado... If You Need Me, Call Me. No Matter Where You Are...
Cristiano, meu marido, amor de tantas vidas, por ser meu tudo, por todo encantamento que viver com voc... Io Che Amo Solo Te...
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AGRADECIMENTOS Agradeo a meus pais, Atayde e Nen, pelas lies; em especial: ter F em
Deus (a F remove montanhas), a respeitar o prximo (no faa aos outros o que
no quer que faam a voc), a estudar sempre (o poder de transformao do
conhecimento); a trabalhar (o trabalho dignifica); acreditar na intuio (intuio
inspirao divina); a fazer tudo com amor (ensinaram com seus exemplos).
Agradeo ao meu orientador, Professor Giovanni Ettore Nanni, pela acolhida,
confiana e sua firmeza ao me dizer sempre: Vamos em frente. Espero que a vida
me permita lhe mostrar toda a minha gratido.
Agradeo aos queridos Professores Francisco Jos Cahali e Tcio Lacerda
Gama, que tambm participaram da banca do exame de qualificao e muito
contriburam para a composio final deste trabalho.
Agradeo Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, a todos os
Professores, assistentes e colegas do mestrado e do doutorado, em particular aos
Professores Paulo de Barros Carvalho, Robson Maia Lins, Thiago Rodovalho dos
Santos e Diogo Leonardo Machado de Melo.
Agradeo a Slvia Helena Gomes Piva e ao Agostinho Gomes, pelas imensas
contribuies ao presente trabalho, pelo carinho e incentivo, pela nossa histria de
vida.
Agradeo o apoio e a amizade de Ana Lia Sampaio Machado de Sousa,
Edilson Vitorelli e Ricardo Hoffmann.
Agradeo a todos os advogados, estagirios e colaboradores do escritrio
Gomes & Hoffmann, Bellucci, Piva Advogados, do qual tenho a honra de ser scia.
Agradeo a todos que em mim confiaram a elaborao de um contrato,
simples, complexo, tpico, atpico. Eu no chegaria at aqui sem a lida diria com o
direito contratual, especialmente com a experincia desses intrpretes operadores
que operacionalizam o contrato com as mos trabalhadoras de quem constri o
mundo.
Agradeo aos amigos de todas as horas. Neste ano, 2016, completei 50 anos.
Susy (minha gmea) e eu resolvemos festejar: no momento dos agradecimentos,
ns e nossos convidados (grandes amigos e familiares), com rosas na mo,
cantamos a famosa msica Andanas... Assim, com a lembrana viva desse
momento to especial e entoando o refro por onde for quero ser seu par, eu
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agradeo a todos os amigos que a vida me deu, pois em algum momento das
minhas andanas pela vida cada um deles foi meu par.
Agradeo a todos que amam o Direito e que se tornaram imortais ao escrever
um artigo, um livro, uma resenha. Eu me conectei a muitos autores: em
determinados momentos, pareciam ser amigos de longa data (eu os chamava pelo
primeiro nome), um Professor a me ensinar. Fui transformada ao longo da escrita
desta tese. Experimentei muitas lentes que me fizeram ver o mundo e o Direito de
uma forma diferente. No sou a mesma, pois escrever uma tese uma superao
que no se faz s. Todos esses companheiros de jornada me fizeram chegar at
aqui. Hoje saem da minha bagunada escrivaninha e voltam para a ordem das
prateleiras, para os arquivos digitais. Mas permanecero vivos nas linhas, nas notas
de rodap e em todos os pensamentos e todas as divagaes os quais, mesmo que
no tenham sidos apresentados na linguagem escrita, compem o pano de fundo da
tese.
A todos, minha eterna gratido!
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RESUMO
GOMES, Susete. A interpretao dos contratos complexos: uma viso dos contratos
coligados. 2016. 263 fls. Tese (Doutorado em Direito) Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, So Paulo.
No mbito negocial, a liberdade (inserida no mbito da autonomia privada)
fundamenta os contratos complexos, que podem ser assim caracterizados por
diversas vertentes (subjetiva, normativa, volitiva, objetiva) e que so atpicos com
tendncia a ser lacunosos, de durao, relacionais. Os contratos complexos atraem
outros contratos que passam a ser a eles coligados, formando um sistema contratual
complexo. para esse contexto que converge este estudo, que tem por objetivo
tratar da interpretao dos contratos complexos, incluindo uma viso dos contratos
coligados. Justifica-se tal investigao por ser o tema pouco tratado pela doutrina;
tambm se percebe demanda crescente de tais contratos no mercado negocial.
Alcanar tal objetivo pressups sincronizar a demanda por contratos complexos com
a sociedade contempornea e sua complexidade, que impe a necessidade de se
reduzirem as complexidades por meio da seleo (escolhas). Para tanto, a
linguagem mostra-se como intermediadora de complexidades distintas advindas dos
sistemas jurdico, econmico e poltico. A interpretao dos contratos complexos
deve ser feita com base na situao concreta: alocam-se todos os elementos
diversos que os compem conforme sua funo prtica e econmica, que revelada
pela sua causa concreta; filtram-se os elementos pelo vetor das circunstncias do
caso para que os elementos filtrados sejam ponderados relativamente ao sistema
jurdico por meio de clusulas gerais da boa-f objetiva, do equilbrio contratual e da
funo social dos contratos. Portanto, do prprio sistema contratual complexo vo
emanar as normas de interpretao a metacontratualidade que sobre o mesmo
sistema contratual incidiro para dirimir eventuais conflitos.
Palavras-chave: Intepretao contratual. Contratos complexos. Contratos coligados.
Metacontratualidade.
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ABSTRACT
GOMES, Susete. The interpretation of complex contracts: a view on correlated
contracts. 2016. 263 pp. Thesis (Doctorate in Law) Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, So Paulo city.
In business context, freedom (inserted in the private autonomy context) lays
foundations to the so-called complex contracts, which may be named as so due to
aspects of different nature (subjective, normative, volitional, and objective). They are
atypical, besides tending to show gaps and being of duration and relational. Complex
contracts attract other contracts that become related to them, forming a complex
contractual system. It is to this matter that this study converges by aiming to address
the interpretation of complex contracts, including an overview of related contracts.
The research underlying this thesis is relevant because its theme was given almost
none doctrine treatment; moreover, there is an increasing demand for such contracts
in the business market. Achieving such an aim required synchronizing the demand
for complex contracts with contemporary society and its complexity, which imposes
the need to reduce complexities by means of selection (choices). For that, the
language works as a mediator of distinct complexities arising from the legal,
economic and political systems. The interpretation of complex contracts must be
drawn from the concrete situation: all various elements making it up are allocated
according to its economic and practical function, which is revealed by its specific
cause; the elements are filtered by the vector of the circumstances of the case so
that the filtered ones are weighed against the legal system by means of general
clauses of objective good faith, contractual balance and social function of contracts.
Therefore, in a process called meta-contractuality, rules to interpret the complex
contractual system will derive from the complex contract itself to be used in the same
contractual system in case of conflicts to solve.
Keywords: Contractual interpretation. Complex contracts. Related contracts. Meta-
contractuality.
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SUMRIO
INTRODUO 11
1 O DIREITO NA SOCIEDADE COMPLEXA 17 1.1 Da modernidade sociedade complexa 18 1.2 Sociedade complexa 26 1.3 Direito como fenmeno comunicacional 36 1.4 Relevncia da linguagem na interpretao dos contratos complexos 41 2 CONTRATOS COMPLEXOS 54 2.1 Complexidade subjetiva e complexidade volitiva 59 2.2 Complexidade normativa 64 2.3 Complexidade objetiva 74 2.3.1 Tipicidade e atipicidade 75 2.3.2 Contratos complexos e mistos 88 2.3.3 Complexidade econmica 92 2.3.4 Complexidade tecnolgica 95 2.4 Contratos coligados 100 2.4.1 Efeitos da coligao contratual 104 2.4.1.1 Efeitos sociais dos contratos coligados 113 2.5 Exemplos de contratos complexos e contratos coligados que integram
o sistema de complexidade contratual na realidade empresarial 115 2.5.1 Garantias e financiamentos de projeto (project finance) 115 2.5.2 Franquias 118 2.5.3 Contratos de engenharia e infraestrutura 122 2.5.4 Contratos relativos revenda de combustveis automotivo 124 3 PREMISSAS PARA INTERPRETAAO DE CONTRATOS COMPLEXOS 127 3.1 Intrpretes do negcio jurdico complexo 127 3.2 Interpretao dos contratos complexos no deve seguir padro
hierrquico esttico 131 3.3 Clusulas gerais da boa-f objetiva, da funo social dos contratos e do
equilbrio contratual devem ser vistas e aplicadas luz da complexidade dos contratos e dos efeitos dela decorrentes 139
3.4 Causa concreta determinante para a interpretao dos contratos complexos 151
3.5 Lacunas nos contratos complexos decorrem de sua essncia 154 3.6 Distino entre contratos complexos e coligados deve ser efetuada
de forma dinmica 156
10
3.7 Situao concreta em contratos complexos: analisvel a priori para identificar seus elementos e os nveis de concreo e influncia recproca 160
4 INTERPRETAO DOS CONTRATOS COMPLEXOS 163 4.1 Incidncia e concreo 166 4.1.1 Ordem temporal como pauta para concreo a (re)constituio
(da formao) do contrato complexo 169 4.1.2 Ordem temporal II: reconstituio da operacionalizao do contrato
complexo e delimitao dos conflitos dele decorrentes 175 4.1.3 Circunstncias do caso como vetor de concreo e filtro de ponderao
para interpretao dos contratos complexos 178 4.1.4 A concreo e a linguagem da doutrina 186 4.2 A Metacontratualidade 190 5 CONTRATOS COMPLEXOS E FORO PARA DECISES DE CONFLITOS 193
5.1 Esfera judicial para deciso de conflitos decorrentes de contratos complexos 193
5.1.1 Caso 1: contrato de locao coligado a contratos relacionados com contratos complexos de reorganizao societria (ciso) 195
5.1.2 Caso 2: contratos complexos (relacionados com a revenda de combustveis automotivos) e coligados exceo de contrato no cumprido 200
5.1.3 Caso 3: contrato complexo entre empresas aplicao de regras do CDC de forma equivocada pelo tribunal de origem 202
5.1.4 Caso 4: franquias clusula compromissria 203 5.1.5 Consideraes sobre os julgados analisados 207 5.2 Eleio da arbitragem para disputas relativas a contratos complexos 209
CONCLUSO 211 REFERNCIAS 219 ANEXO 1 Recurso Especial 1.206.723/MG 235
ANEXO 1.1 AgRg no Recurso Especial 1.206.723/MG 242
ANEXO 2 Recurso Especial 985.531/SP 245
ANEXO 2.1 Embargos de Divergncia em RESP 985.531/SP 247
ANEXO 3 Agravo EM Recurso Especial 218.620/RJ 252
ANEXO 3.1 AgInt no AGRaVO EM Recurso Especial 218.620/RJ 260
ANEXO 4 Recurso Especial 1.602.076/SP 262
11
INTRODUO A demanda crescente por negcios jurdicos patrimoniais, celebrados entre
empresrios de forma simtrica e paritria, deixa entrever pluralidade e
complexidade seja quanto aos elementos que compem o objeto (fugindo do
regramento contratual tipificado), aos centros de interesse, s manifestaes de
vontade e s regras para dirimir seus conflitos, seja sua forma, tendo em vista a
aplicao de tecnologias e esquemas econmicos no tradicionais. A sociedade
contempornea tem na complexidade o contexto da existncia humana, o que torna
relevante entender como o sistema jurdico pode funcionar entre particulares que
pretendem fazer suas escolhas perante as complexidades para obter lucros e fazer
circular riquezas. A liberdade concedida aos particulares no mbito da autonomia
privada permite utilizar elementos variados para compor uma relao contratual e
pode torn-la atpica e complexa.
A compreenso de vertentes diversas da complexidade contratual indica que
a caracterizao de uma relao contratual como complexa pode advir de fontes
variadas: tempo, incompletude, partes, elementos que compem o objeto, dentre
outros; mais que isso, pode gerar, alm da relao complexa em uma unicidade
contratual, a pluralidade de contratos que se ligam por uma causa concreta comum
(contratos coligados).
Com efeito, para essa seara que converge a pesquisa apresentada nesta
tese. Como objeto de estudo a ser problematizado, a investigao apresenta os
parmetros para a interpretao dos contratos complexos e os contratos a eles
coligados, firmados por partes (empresas) em relao de paridade e simetria. O que
se pretende apresentar uma forma de interpretar tais sistemas contratuais
complexos que privilegie a liberdade contratual de que advm a atipicidade com
diversidade de elementos e que extraia, da relao contratual criada pelos
particulares, as normas de interpretao que incidiro sobre a (mesma) relao
contratual complexa. Subjacente obteno das normas de interpretao que
incidiro para dirimir conflitos da relao contratual complexa denominada
metacontratualidade , est o mtodo da concreo.
Partindo-se das premissas estabelecidas e por meio de pautas de
argumentao, busca-se reconstituir a relao contratual complexa com todos seus
elementos alocados em suas funes, filtrados pelas circunstncias do caso e
12
ponderados pelas clusulas gerais da boa-f, da funo social e do equilbrio
contratual vistos pelas lentes da complexidade. Assim, impe-se a necessidade de
uma reflexo sobre relaes jurdicas contratuais complexas, em especial acerca de
sua interpretao, tendo em vista que tal tema no alvo habitual da doutrina.
O problema da pesquisa se delineia no questionamento de como deve ser o
processo de interpretao dos contratos complexos e dos contratos a ele coligados,
tendo em vista que os contratos complexos so caracterizados (ainda que de forma
dinmica) por ser de durao, lacunosos, com possibilidade de combinao e/ou
fuso de elementos tpicos ou atpicos o que enseja a sua atipicidade e sem
um regramento legal prprio e preestabelecido para dirimir os conflitos deles
decorrentes. Todavia, a ausncia de regramento legal no impede que se obtenham
parmetros interpretativos.
A fim de cumprir com o objeto do presente trabalho, respondendo a essa
indagao, o estudo foi desenvolvido como pesquisa bibliogrfico-documental,
utilizando tambm registros de casos concretos verificados na jurisprudncia e/ou
indicados na doutrina. Os resultados da pesquisa e a anlise esto apresentados em
cinco captulos, cada um com um objetivo especfico.
O captulo 1 apresenta a sociedade complexa. O objetivo do captulo
explanar, ainda que de forma breve, como a humanidade passou a se enxergar
pelas lentes da diversidade e da complexidade: deixa a divindade e a racionalidade
extrema (calcada no cientificismo) para, com base na crtica proposta por Kant,
iniciar a era do pensamento moderno, com a dialtica, os movimentos filosficos e
sociais, a Revoluo Industrial... at alcanar o movimento ps-moderno: a viso
que desnuda paradoxos, visto que demonstra a necessria coexistncia da
instabilidade e da incerteza. Uma breve digresso histrico-analtica mostra que,
com o movimento ps-moderno, ocorreram rupturas diversas, em particular na
delimitao das cincias e do conhecimento. Passa-se a ter uma viso de mundo de
alta complexidade, com transitividade de saberes, conectividade e transformaes
na forma de comunicar (em particular com a internet).
Com efeito, tal movimento se verifica, tambm, na esfera do direito contratual,
pois essa viso de mundo acarretou negcios cada vez mais complexos, reunindo
modelos e objetos de contratos conhecidos a modelos e objetos desconhecidos. A
complexidade passou a integrar os contratos. A tecnologia e a economia trouxeram
13
mudanas ao cenrio contratual. Modelos largamente utilizados e conhecidos
passam a ser superados.
Ainda que no tenha o condo de guiar a prtica, a teoria dos sistemas
proposta por Niklas Luhmann demonstra-se extremamente til tarefa de reduzir as
complexidades. Isso porque, no sistema jurdico contratual (em especial dos
contratos complexos), a diversidade de elementos faz com que seja necessrio um
filtro para que tais elementos possam ser canalizados para suas funes devidas.
luz de tal teoria, os sistemas especializados (jurdico, econmico, poltico) se
diferenciam entre si e com o ambiente (sociedade), e a forma como se interagem
pela comunicao, pela linguagem.
Alm disso, o direito um fenmeno comunicacional, conforme preceitua
Robles (2005a), s vezes at parecido com os jogos, pois para conviver na
sociedade complexa que impe incertezas e inseguranas saber lidar com riscos
passa a ser essencial. Entendida como texto escrito e texto no escrito, a linguagem
ser fundamental para interpretar os contratos complexos. Com estes fogem
tipicidade, a situao concreta ser a base para sua interpretao.
Partindo-se do entendimento da complexidade como fenmeno inerente
sociedade contempornea, passa-se, no captulo 2, a caracterizar o contrato
complexo, pois no basta identific-lo como oposio ao contrato simples. A
compreenso de vertentes diversas da complexidade contratual indica que a
caracterizao de uma relao contratual como complexa pode advir de formas
variadas. Por esse motivo, aborda-se a questo temporal como caracterstica da
complexidade, bem como a complexidade subjetiva, volitiva, normativa e objetiva
nesta ltima, analisa-se a complexidade econmica e tecnolgica. Tais
caractersticas devem ser vistas de forma dinmica e aberta, pois na grande parte
das vezes esto inter-relacionadas. Contratos objetivamente complexos so
atpicos, pois (em razo de sua combinao e /ou fuso de elementos contratuais
tpicos e/ou atpicos) no so regrados por lei que os tipifique. Nesse sentido, trata-
se da tipicidade e atipicidade, de ter uma viso mais fundamentada dos efeitos dos
contratos complexos como contratos atpicos.
Convm antecipar que as relaes contratuais complexas devem ser vistas
como um sistema em razo de sua diversidade de elementos que buscam se
organizar para atender a sua finalidade contratual. Tais relaes contratuais
complexas atraem outros contratos, que a eles se coligam sem integrar o mesmo
14
programa contratual. So os contratos coligados. Eis por que o captulo 2 aborda,
numa breve viso, os contratos coligados. A interpretao dos contratos complexos
requer analisar se existem contratos a ele coligados e quais os possveis efeitos de
tal coligao. Cabe frisar que este trabalho tem por objetivo principal a interpretao
dos contratos complexos; a viso dos contratos coligados se faz necessria como
integrante da proposta de interpretao, pois, na prtica, existem situaes diversas
em que contratos complexos se coligam a outros contratos (complexos ou no).
Igualmente, existem situaes em que a distino entre contratos complexos e
coligados no se faz de forma automtica. Tendo em vista que se busca demonstrar
a relevncia da situao concreta para a interpretao dos contratos complexos, a
caracterizao destes (incluindo a viso acerca dos coligados) vem acompanhada
de exemplos para contextualizar tais contratos.
O captulo 3 tem como objetivo estabelecer premissas para a interpretao
dos contratos complexos e dos contratos a eles coligados. Tais premissas so: (i)
indicar quem so os intrpretes do contrato complexo; (ii) a interpretao dos
contratos complexos no deve seguir um padro hierrquico esttico; (iii) as
clusulas gerais de boa-f objetiva, da funo social dos contratos e do equilbrio
contratual devem ser vistas luz da complexidade aplicadas a tais contratos; (iv) a
causa concreta determinante para a interpretao dos contratos complexos; (v) as
lacunas nos contratos complexos decorrem de sua essncia; (vi) a distino dos
contratos complexos e dos coligados deve ser efetuada de forma dinmica; (vii)
apenas o caso concreto revelar o efetivo contedo do programa contratual, com
grande relevncia linguagem contratual (que abarca todas as formas de
comunicao).
Com tais premissas estabelecidas, o captulo 4 tem com objetivo tratar da
interpretao dos contratos complexos. Demonstra-se que estes, como expresso
da liberdade contratual e da sociedade contempornea, so sistemas que trazem
em si, ainda que de forma indireta, a sua prpria regra de interpretao; ou seja,
do prprio sistema que se extrai como ele ser interpretado em caso de conflitos.
Extrai-se uma metalinguagem: a contratualidade de carter normativo, que aqui se
denomina metacontratualidade. Embora seja uma norma individual e concreta,
considera-se que o contrato sempre poder sofrer novas incidncias e concrees
at alcanar todo o seu teor de juridicidade, at cumprir todas as obrigaes e
prestaes dele advindas. Nos contratos complexos, a capacidade de se
15
concretizarem e se individualizarem cada vez mais e com mais diversidade maior,
pois composto de mais elementos que os no complexos. Suas particularidades
tero de ser catalogadas.
Conforme a proposta apresentada no captulo 4, a catalogao dos elementos
dos contratos complexos ser efetuada por meio de pautas (que no tm o condo
de exaurir toda a situao complexa), com a finalidade de auxiliar a reconstituio da
relao contratual complexa. Tais pautas so divididas em dois momentos: o da
celebrao do contrato e o da sua operao, na qual a efetiva participao dos
intrpretes-operadores far com que possam ser criadas normas concretas. A
diviso temporal auxiliar a visualizar o que foi pactuado (observando-se eventuais
patologias na gnese da relao contratual) e como a relao complexa de fato
ocorreu (a realidade contratual complexa e suas vicissitudes). Isso permite delinear
os limites da controvrsia.
Aps o preenchimento de tais pautas, ser necessrio alocar todos os
elementos em suas funes, indicadas pela causa concreta (tida como uma clusula
geral), para que ento tais elementos passem pelo filtro (que um vetor de
concreo) das circunstncias do caso, aplicando-se as normas cogentes
eventualmente incidentes e efetuando-se as ponderaes pertinentes por meio das
clusulas gerais da boa-f, da funo social e do equilbrio contratual.
O sistema contratual complexo faz surgir um novo circuito de produo do
direito conforme expresso utilizada por Rodot (2008) que, no mbito da
autonomia privada, pretende prever (tambm) como os conflitos sero dirimidos,
dilatando-se as regras para sua resoluo interna (pelas partes). Entretanto, nem
sempre possvel a autocomposio sem a interferncia de um rgo julgador.
Nessa esteira, o captulo 5 avalia qual seria a via a ser eleita para a deciso de
conflitos decorrentes de contratos complexos com fundamento no mtodo de
interpretao proposto.
A anlise de casos de contratos complexos julgados pelo Superior Tribunal de
Justia mostra que o exame do caso concreto na forma como proposta encontra
dificuldades na esfera judicial; seja em razo da dificuldade em tratar um contrato
complexo como tal, da atipicidade somada diversidade de elementos que
importam numa ausncia de regramento tipificado, de todas as dificuldades que se
fazem presentes no processo judicial ptrio (tempo diferido para as decises,
16
atolamento de processos, ausncia de suporte tcnico para lides complexas), seja
em razo das smulas 5 e 7 do referido tribunal.
Por prescindir da anlise da situao concreta requerendo disponibilidade,
conhecimento especfico, sigilo em muitas situaes, decises em tempo razovel,
dentre outros fatores , a interpretao dos contratos complexos indica que a
arbitragem a melhor via para soluo dos conflitos deles derivados. O que restar
demonstrado que a interpretao dos contratos complexos e dos contratos a eles
coligados revela-se como mais uma face da complexidade da sociedade
contempornea que requer analisar a situao concreta, com todas as suas
particularidades, mediante filtros especficos.
17
1 O DIREITO NA SOCIEDADE COMPLEXA A complexidade permeia a vida na sociedade contempornea. Nas atividades
empresariais, percebe-se, h algum tempo, que os negcios jurdicos passam a ser
no s cada vez mais complexos com estruturas requintadas e intrincadas ,
como tambm suscetveis a mais riscos.1 Nessa lgica, o contrato complexo envolve
pluralidades de objeto, de partes e de regras normativas, dentre outras
caractersticas. Trata-se do contrato que no pode ser considerado como simples
e/ou tipificado. H incidncia de regramentos diversos (legais, sociais, particulares),
que se combinam e at se fundem em determinadas situaes; tambm h a
possibilidade de coligar tais contratos a outros (simples ou complexos). A pluralidade
de elementos acarreta a ideia de sistema contratual para tratar dos contratos
complexos. Portanto, faz-se primordial entender por que interpretar tais contratos
complexos requer recursos mais requintados e foco maior na situao concreta.
Com efeito, a fim de apresentar um mtodo de interpretao dos contratos
complexos fruto da sociedade contempornea , convm fazer uma sntese
histrica para demonstrar como a pluralidade e a diversidade, que impem a
complexidade, passaram a ser entendidas pela humanidade. Dos tempos imemoriais
contemporaneidade, chegar a tais ideias levou sculos de reflexo de vrias
vertentes. Assim, as muitas discusses que ocorreram no podem ser descartadas
quando se trata de interpretar contratos complexos.
O contrato, como negcio jurdico patrimonial que a expresso da
autonomia privada, reflete um grande passo na evoluo da humanidade; ou seja,
reflete a autodeterminao, o autorregramento, o atributo de exercer a liberdade
negocial.2 Nos contratos complexos, em que a atipicidade incide com mais fora, h
uma tendncia a ampliar os limites de tal liberdade negocial. Tais contratos partem
de modelos no pr-concebidos (ao menos no totalmente), pois podem resultar da
fuso ou combinao de modelos diversos existentes, assim como da fuso ou
combinao de modelos existentes com inexistentes (legal e socialmente); lidam
1 Cf. Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 123). 2 Fukuyama (1996, p. 238) esclarece que [...] o desenvolvimento de instituies como direitos de propriedade, contrato e um sistema estvel de direito comercial foi decisivo para a evoluo do Ocidente. Essas instituies legais serviram de substituto da confiana que existia naturalmente entre famlias e grupos de parentes e constitui uma estrutura na qual estranhos puderam interagir em joint ventures de negcios ou no mercado.
18
com a possibilidade de encadear contratos, usam esquemas econmicos inovadores
e podem se valer de formas de comunicao que poderiam ser impensveis h
pouco tempo.
Entretanto, a ideia de relaes contratuais em especial as complexas, sem
conflitos ainda utpica (e talvez sempre o ser). Conflitos requerem decises; e
decises, para o Direito, prescindem da interpretao. Portanto, a interpretao dos
contratos complexos supe compreender que a sociedade atual complexa.
1.1 Da modernidade sociedade complexa
Embora permeie obrigatoriamente a reflexo e o discurso contemporneo, a
temtica da complexidade no tocante ao conhecimento, existncia humana e s
relaes sociais, econmicas, polticas e jurdicas problema antigo na histria do
pensamento humano. No por acaso, pode ser entendida como um grande tema de
reflexo da civilizao ocidental. Indagaes e posies tomadas entre a unidade
representada pelos universais e a diferenciao representada pelos singulares
como fator determinante da complexidade apresentada, inclusive, como
subttulo da obra de Niklas Luhmann (1998) remontam ao posicionamento de
Scrates ao defender, perante os sofistas, que o objetivo do conhecimento o que
existe de comum, universal em todos os indivduos de um grupo, e no o que
distingue, singulariza cada um deles. Essa questo permeou a Idade Mdia nos
embates em torno do realismo e do nominalismo (ABBAGNANO, 2000b) e mostrou
ser constante na evoluo e diferenciao do conhecimento.
Embora uma anlise histrica do pensamento ocidental escape ao escopo
deste estudo, considerar o movimento pendular sobre a oscilao em posies
extremas o universal e o singular, o geral e o especfico na construo da
cultura ocidental pela filosofia e seus desdobramentos na epistemologia
necessrio porque o direito entendido aqui como bem cultural (REALE, 1994)
construdo historicamente, ou seja, sob influncia dessas oscilaes. Tal
considerao permite vislumbrar com mais clareza as proposies de Luhmann e
sua influncia no pensamento de Robles (2005a) e de toda doutrina jurdica
lastreada no direito como discurso e linguagem e perceber a importncia dessa
relao dialgica entre o universal e o singular na seara jurdica. Seara da qual se
destacam os contratos complexos como objeto de interpretao, pois no pode o
enunciado normativo ter outro atributo que no o de ser generalizante nem pode, em
19
contraposio, a aplicao do direito ser outra coisa seno que singular e especfica
ao caso em questo. No mbito do saber jurdico, a aplicao do direito sempre
uma atualizao da histrica relao antagnica entre o universal e o singular que,
embora no seja arbitrria porque parametrizada pela isonomia e segurana
jurdica , h que ser levada a termo pela interpretao, pela hermenutica.
A compreenso do processo de complexificao da sociedade humana at o
estgio contemporneo pode ser empreendida segundo olhares e metodologias
variados. Tal variao de posturas em sentido amplo fruto de oscilaes
entre posturas pr-universais e posturas pr-singulares. Enquanto as primeiras
caracterizam as anlises de cunho metafsico portanto, postulam uma
compreenso que parte do ser mesmo, do ser em si , as segundas determinam
que toda compreenso tem de partir do existente, do observvel, do particular.
Numa simplificao dessas posturas, isso significa que a pergunta basilar para
posturas pr-singulares O que o homem? e, para posturas pr-universais,
Quem este homem?. Ainda que aparentemente sutis, essas distines
determinam conceituaes e compreenses necessariamente diversas.
Apesar da no ser possvel demarcar, de forma precisa, os momentos de
trnsito do pensamento e do conhecimento humano, pode-se afirmar que o ingresso
na modernidade denota a ruptura com a ideia da verdade revelada mediante a f.
Atribui-se a Guilherme de Occam (12851349) o codinome de a Navalha, por ser
considerado a ltima figura da escolstica e simultaneamente a primeira figura da
Idade Moderna (ABBAGNANO, 1979, p. 143), por ter colocado fim ao pensamento
medieval para estabelecer o marco que definiria o pensamento moderno: a
racionalidade, cuja supremacia se desenvolve aos poucos e de forma no uniforme.
Com tal feito, instala-se, definitivamente, a supremacia da razo (e no da f) para o
conhecimento acerca do mundo e do homem, tornando a experincia, a investigao
experimental e demonstrao, proposta por Duns Escoto (12661300), como
fundamento e recurso da racionalidade.3
3 Tais ideias tm suas reminiscncias nas tentativas de rompimento com a Escolstica promovidos por Abelardo (10791142) com sua afirmao do valor do humano na investigao, passando por Duns Escoto (12661308) em seu posicionamento em favor de uma cincia fundamentada exclusivamente na demonstrao, no procedimento crtico e analtico, determinando uma releitura do aristotelismo empregado por Toms de Aquino.
20
Como marco histrico do pensamento ocidental, essa ruptura tem como ponto
decisivo o cogito ergo sum, de Descartes4 (15961650), para quem o conceito de
indivduo um eu numa relao consigo mesmo cristaliza-se de vez,
determinando a supremacia do sujeito no conhecimento e na relao de domnio
sobre o mundo natural (ABBAGNANO, 2000a). Descartes lanou as bases do
desenvolvimento, ainda que no linear, de uma racionalidade cientfica e tecnolgica
de reflexos perceptveis no presente.
O pensamento cartesiano emblemtico quanto a priorizar a autonomia da
razo e estabelecer tcnicas do exerccio da racionalidade em um mtodo, baseado
na ordem sucessiva entre ideias claras e distintas, que garanta o conhecimento da
verdade e conserve uma resistncia nas posies metafsicas por considerar a
razo como um a priori do sujeito ou seja, ainda ligada a um conceito universal do
sujeito. Na figura de Descartes, de Hobbes (15881679), de Espinosa (16321677)
e de Leibniz (16461716), o sculo XVII marcado pelo triunfo da razo, cuja
delimitao ser dada pelo iluminismo, no sculo XVIII; isto , pela [...] rigorosa
autolimitao da razo nos limites da experincia e [...] caracterizado pela
possibilidade, que se atribui razo, de investigar todo o aspecto ou domnio que se
contenha dentro de tais limites (ABBAGNANO, 2000a, p. 8). No iluminismo ingls
do pensamento de Locke (16321704), fundamentou-se o iluminismo francs, que
atingiu seu expoente no enciclopedismo e nas mudanas que esse movimento
provocou na dimenso poltica.
Por exemplo, o pensamento de Montesquieu (16891757) e sua proposio
do modelo tripartite do poder, presente em O esprito das leis, fazem-se presentes
at os dias de hoje. Com suas implicaes polticas, sociais, econmicas e jurdicas,
a Revoluo Francesa encontra seu alicerce filosfico no pensamento de
Montesquieu (16891755), Voltaire (16941778), Diderot (171384) e DAlembert
(171783). Tambm se fazem presente no desdobramento desse momento
revolucionrio com Napoleo Bonaparte e as implicaes do iluminismo na seara do
Direito, trazendo os princpios da racionalidade, do modelo de uma cincia
demonstrativa (NANNI, 2014) e da universalidade da verdade no Cdigo
Napolenico.
4 Conceito desenvolvido como soluo da dvida metodolgica (DESCARTES).
21
Num quadro em que levada ao extremo uma racionalidade calcada no
cientificismo, no princpio de causalidade e no mtodo demonstrativo originrios
da fsica de Isaac Newton (16431727) e assumidos pelo iluminismo , movimentos
de oposio surgem no mbito do conhecimento e da gnoseologia; seus
representantes principais foram Berkeley (16851753) e David Hume (171176). A
crtica definitiva ao extremismo iluminista, porm, ser feita pela interveno de Kant
(17241804). Em seu pensamento filosfico, [...] a razo humana, levada ante o
tribunal de si prpria, delimita de modo autnomo os seus confins e as suas
possibilidades efectivas (ABBAGNANO, 2000a, p. 94).
Em Crtica da razo pura, de 1781, ele no s estabelece as condies do
conhecimento, alicerado nas relaes entre sujeito e objeto, mas tambm e
sobretudo delimita o campo do que possvel ser conhecido racionalmente o
fenmeno. Este, porm, no o delimitado pelos limites da sensibilidade; mesmo
que estejam ausentes aspectos sensrios, possvel conhecer, dentro dos limites
da razo humana, pois h objetos prprios do entendimento distintos dos da
sensibilidade. A profundidade do olhar de Kant acerca da razo e da tica (em
Crtica da razo prtica) e sua doutrina transcendental do mtodo fazem de sua
reflexo filosfica o marco referencial do pensamento moderno. Kant no rompe
com as bases do pensamento moderno obteno da verdade e universalidade
dos conceitos obtidos pela racionalidade; ele as aprimora. Sua filosofia crtica
objetiva estabelece condies efetivas de obter verdades universais e necessrias.
Essas bases verdade e universalidade foram questionadas pelo que se
convencionou chamar de pensamento ps-moderno. De certa forma, os
desdobramentos ps-kantianos jamais deixam de ser referentes crtica proposta
por ele, notadamente com relao aos limites da razo (aceitando-a, negando-a ou
adaptando-a). nesse sentido que se pode compreender o movimento (filosfico,
literrio e artstico) do romantismo e idealismo alemes, do fim do sculo XVIII e nos
primeiros decnios do sculo XIX e cuja caracterstica, apoiada numa retomada do
sentimento, uma identificao da razo ou com o Eu infinito em Fichte (1762
1814), ou com o Absoluto em Schelling (17751854) e com a Razo autoconsciente
em Hegel (17701831) (ABBAGNANO, 2000b). A viso hegeliana de [...] esprito
que se manifesta e se realiza num mundo existente isto , na presencialidade, no
facto, na realidade histrica o esprito do mundo que encarna nos espritos dos
povos que se sucedem na vanguarda da histria (ABBAGNANO, 2000b, p. 110),
22
transforma-se em tema relevante em torno do qual posicionamentos diversos,
inclusive antagnicos entre si, marcam os embates no campo da histria e da cultura
no tocante a compreender a dinmica social.
Na inverso da dialtica hegeliana, tanto o pensamento de Marx (181883) e
Engels (182095) a anlise, pelo mtodo do materialismo histrico dialtico, de
estruturas e conflitos de interesses e classes nas relaes econmicas que teve
grandes reflexos filosficos, geopolticos e econmicos no sculo XX quanto o
pensamento, na seara do direito, de Savigny (17791861) suas consideraes
sobre a historicidade do direito, o que viabilizaria, no Brasil, o culturalismo de Tobias
Barreto (183989) tm em comum a historicidade e a cultura como ponto de
partida para indagar e observar o fenmeno social; mas sem desvincular da
racionalidade e do conceito de causalidade, caros ao pensamento moderno.
Embora a abordagem do pensamento moderno seja muito sucinta aqui,
convm dizer que este se refere a questes e desdobramentos do pensamento e da
cincia no sculo XIX e princpio do sculo XX, marcados por um fervilhamento de
ideias, inventos e movimentos artsticos, pela industrializao e pelas descobertas
cientficas. So fatores determinantes para compreender a exausto e a crise da
racionalidade, observvel a partir das dcadas de 1950 e 60, quando comea a se
engendrar o ps-moderno. Do sculo XIX ao XX, movimentos filosficos como o
positivismo, o historicismo, o pragmatismo e o estruturalismo, por exemplo, agitaram
o cenrio acadmico, tanto quanto as obras de Darwin vide Origem das espcies
(1859) e os reflexos da psicanlise de Freud (18561939) cujas teorias acerca
do inconsciente colocaram em xeque as luzes e a exclusiva positividade da razo
humana: baluartes do pensamento moderno.
Traduzido pelo desenvolvimento econmico, tcnico e industrial, o sucesso
obtido pelo avano das cincias naturais e experimentais provocou uma crise nas
cincias das humanidades e em todas as reas de pesquisa no empricas, tidas,
ento, como carentes de cientificidade e objetividade. Contudo, a crise da fsica de
Newton (16431727) com o pensamento de Albert Einstein (18791955) e as
questes levantadas pelo Crculo de Viena (19221936), em especial os embates
entre Carnap (18911970) e Karl Popper (190294) comeou a abalar a
supremacia desse conceito de cientificidade guiado pelas cincias naturais e
experimentais. Nas reas das cincias sociais, a Escola Crtica de Frankfurt (1922),
em sua Teoria Crtica fundada numa conceituao heterodoxa do marxismo e
23
considerando as contribuies da psicanlise, lanou as bases de uma indagao
acerca da emancipao do homem, da indstria cultural e da cultura de massa as
quais se refletem no presente.
Entretanto h que se considerar que o maior esgotamento do conceito de
cincia que, legitimada pelo xito tcnico, pela metodologia e pela objetividade
arrogava, porque isenta de juzos de valor, sua supremacia de racionalidade e
cientificidade em oposio s cincias sociais e s humanidades, fora causado pelos
trgicos acontecimentos da segunda guerra mundial. O fim da guerra exps de
maneira inconteste, a negatividade tambm presente na cientificidade e na
racionalidade, quer seja nos horrores do holocausto e dos experimentos mdico-
cientficos l desenvolvidos, quer seja pela hecatombe de Hiroshima e Nagasaki,
tornando claro os resultados de uma racionalidade isenta de valores, chegara ao fim
o mito da neutralidade do conhecimento. Se, por um lado, o fim da guerra
determinou uma nova maneira para as solues de eventuais conflitos com a
fundao, em 24 de outubro de 1945, da Organizao das Naes Unidas (ONU), e
um novo olhar sobre a humanidade, com a Declarao Universal dos Direitos
Humanos, em 10 de dezembro de 1948 (com as devidas implicaes nos
ordenamentos jurdicos dos pases signatrios), bem verdade que a polarizao,
determinada pela Guerra Fria (194753), entre os sistemas capitalista e socialista,
deixaram grandes marcas na segunda metade do sculo XX. parte as discusses
ideolgicas, a polarizao entre Estados Unidos e a ento Unio Sovitica alimentou
pesquisas e avanos tecnolgicos na disputa pela conquista da Lua; embora no
tenha trazido resultados imediatos e de relevncia econmica ou cientfica na
prpria Lua, o pequeno passo para o homem, um gigantesco salto para a
humanidade diria Neil Armstrong, que pisou na Lua em 20 de julho de 1969 ,
trouxe aporte inegvel de conhecimento e tecnologia correlata, viabilizadoras dessa
empreitada, nas mais diversas reas, notadamente na de processamento de dados
e de comunicao, fundamentais para o exponencial avano das tecnologias de
ponta e da conexo em rede global do mundo contemporneo.
Essa transitividade dos saberes, essa possibilidade de que conhecimentos
adquiridos e desenvolvidos em dada rea de pesquisa fossem aplicados em outra
de natureza distinta demonstram uma caracterstica-chave do trnsito da
modernidade para a ps-modernidade: a ruptura da delimitao das cincias e do
conhecimento, a ruptura com a prpria indagao e concepo acerca do
24
conhecimento (LYOTARD, 1988, p. 5). Exemplifica isso a presena da robtica em
novas formas de produo industrial e em equipamentos cirrgicos menos invasivos,
assim como o sistema de posicionamento global (tecnologia de localizao por
satlite que pode atingir fins blicos, mas tambm pode servir ao controle de trnsito
ou em jogos eletrnicos e inumerveis outros fins).
A partir da dcada de 60, observa-se que as estruturas de autoridade e
legitimao de poderes e saberes comeam a ser abaladas. O movimento estudantil
de Paris em 1968, a contracultura e o feminismo, bem como a convocao do
Conclio Vaticano II, esto entre os muitos sinais do [...] enfraquecimento da
autoridade cultural do Ocidente e de suas tradies polticas e intelectuais (que
determinou a) abertura do cenrio poltico mundial s diferenas culturais e tnicas
(CONNOR, 1992, p. 16). Abalos e presses sociais se fizeram sentir nos polos
capitalista e socialista: este teve de se abrir ao mercado internacional na busca de
sobrevivncia econmica; aquele teve de rever o liberalismo extremo para suprir as
demandas sociais. Alm disso, uma grande transio democrtica ps fim a regimes
militares na Amrica Latina: em 1982, na Bolvia; em 1983, na Argentina; em 1984,
no Uruguai; em 1985, no Brasil; em 1988, no Chile. Em 1989, a queda do muro que
dividia Berlim, na Alemanha, selaria de vez o fim de uma era de polarizao poltico-
ideolgica.
A consolidao principal de um mundo ps-moderno de alta complexidade,
transitividade de saberes, conectividade intensa, transformao espao-temporal
da comunicao funo especfica do sistema social, no dizer de Luhmann
(1998) , ocorre de forma determinante a partir dos anos 1990, com a world wide
web (literalmente, rede mundial), que viabilizou e viabiliza a informao global,
constante e continuamente, com mais rpida e mais eficincia. O ps-modernismo
revela-se como mais que um movimento artstico-filosfico, podendo ser mais bem
compreendido como posicionamento, a partir da segunda metade do sculo XX,
ante os movimentos do pensamento ocidental anteriores. Nesse sentido, que a
indagao acerca dele no tanto o que ele significa, mas o que ele faz (CONNOR,
1992).
Com efeito, o que, de fato e precipuamente, faz o ps-moderno manifestar-
se [...] na multiplicao de centros de poder e de atividade e na dissoluo de toda
espcie de narrativa totalizante que afirme governar todo o complexo campo da
atividade e da representao sociais (CONNOR, 1992, p. 16). Nessa medida, por
25
romper com a verdade e a universalidade baluartes do pensamento moderno ,
traz para a sociedade contempornea no apenas a presena dos paradoxos at
ento ocultados no consenso do saber acadmico e centralizado, mas tambm e
sobretudo a coexistncia necessria com a instabilidade e a incerteza.5
A priorizao da informao como fonte de observao e poder coloca em
suspenso as questes acerca do conhecimento que movimentaram o pensamento
moderno. As relaes entre sujeito e objeto perdem sua significncia; a
intersubjetividade e as maneiras de organizar, estocar e distribuir os saberes pela
informao se tornam a maneira ps-moderna de se posicionar nos campos da
pesquisa, da economia, da poltica numa palavra, de toda a sociedade.
A teoria da informao suplanta a teoria do conhecimento. A informao
digital sobrepuja os limites da espacialidade porque a rede global e da
temporalidade porque a comunicao sincrnica. Com a velocidade das
tecnologias avanadas, a transitividade dos saberes viabiliza e determina, cada vez
mais, especificidades que, por determinarem o surgimento de sistemas, agregam
complexidade ao grande sistema social (LUHMANN, 1998)
Nessa linha, h que considerar a denominada globalizao (ou a
mundializao) como fenmeno contemporneo que pe em xeque a autoridade do
Estado. Ao discorrer sobre a globalizao e o Judicirio, Faria (1996, p. 162) expe
que
[...] acima de tudo, ao gerar formas de poder e influncia novas e autnomas ela (a globalizao) tambm ps em xeque a centralidade e a exclusividade das estruturas jurdicas do Estado moderno, baseadas nos princpios da soberania e da territorialidade, no equilbrio dos poderes, na distino entre o pblico e o privado e na concepo do direito como um sistema lgico-formal de normas abstratas, genricas, claras e precisas.
A mundializao caracterizada pela globalizao econmica cada vez maior
e estagnao das instituies e dos direitos. Colson (2013, p. 485) destaca os
seguintes aspectos: i) a existncia de alargamentos geogrfico, comercial e da
dependncia dos movimentos financeiros decorrente das tecnologias da
5 Incerteza que fora imposta ao mundo contemporneo quando se apercebeu da exausto dos recursos naturais, das reais possibilidades catastrficas que a viso cartesiana de uma natureza disposio do homem pode determinar e que levou a sociedade contempornea a se preocupar com o meio ambiente e sua proteo, conservao e preservao.
26
comunicao e informao; ii) a volta do direito da propriedade diferentemente de
outrora, a elite patrimonial est na Finana, que tem poucas relaes com a
economia real e contribui para a instabilidade geral; iii) o afastamento geral do
Estado; iv) o progresso tcnico, o desenvolvimento das comunicaes que aceleram
o afastamento estatal.
Essa digresso de tom histrico visa posicionar a relevncia das relaes
negociais que passaram a ser cada vez mais complexas, isto , a gerar contratos
complexos, pois os modelos contratuais existentes deixam de suprir plenamente as
necessidades negociais da sociedade, que almeja formas de contratar utilizando
todas as informaes e tecnologias disponveis com o mximo de eficincia. A
liberdade de contratar, a liberdade acerca do contedo do contrato e a liberdade de
com quem contratar fundamentam a possibilidade da atipicidade dos contratos
complexos, que transitam no mbito da autonomia privada.
A interpretao de tais contratos complexos (e cada vez mais complexos)
passa a ter uma relevncia maior no meio jurdico, tendo em vista que em razo de
sua atipicidade, os mesmos no esto categorizados e a anlise do contrato em
concreto, com todas as suas variveis, com todas as caractersticas que a realidade
impe, demonstra a necessidade de se compreender que a complexidade do
contrato decorre tambm da sociedade complexa contempornea.
1.2 Sociedade complexa
Seja tomada em que sentido for, a complexidade inegavelmente tanto a
condio quanto contexto da existncia humana, uma vez que seu oposto a
simplicidade jamais fora percebida ou encontrada tanto no mundo natural quanto
no universo interior (consciente ou inconsciente) do ser humano. No h fenmeno
que no seja complexo. No h percepo, compreenso, conceito, conhecimento
ou denominao do fenmeno observado que no sejam complexos. Foram sculos
de evoluo, de embates entre filsofos para que a complexidade fosse
compreendida como inerente humanidade. Foram abandonadas ideias arraigadas
relativas divindade, a uma cientificidade que a tudo pode responder, reduzir,
simplificar.
A complexidade mantm uma relao ntima e dependente com a matriz de
toda existncia: a multiplicidade; a contrario sensu, s uno, o no diverso, simples;
porm, dele no pode o pensamento humano se ocupar sem, de fato, reduzi-lo.
27
Essa relao paradoxal a condio de que o simples, o uno, no pode ser
compreendido e conhecido pelo complexo, pelo mltiplo , a toda evidncia, o
motor propulsor da fundamental atividade humana a cultura em sua funo
basilar: a denominao; ou seja, a representao, a abstrao, a significao, a
substituio do que no pode estar presente pela mediao do smbolo. Mas no
sem se defrontar com novo paradoxo: por ser polissmico, o smbolo complexo.
Se for correto supor que a complexidade se liga multiplicidade e
diversidade e que uma constante em tudo que manifesto e existente, ento o
seria v-la como fator constante no mundo natural e no universo cultural. Noutros
termos, ainda que de formas e metodologias variadas se possa tentar compreender
e analisar o fenmeno social, no possvel imaginar uma sociedade que no seja
complexa. O que se pode indagar ou inquirir sobre o quantum de complexidade
que dada sociedade apresenta. Portanto, a questo que aqui se impe refletir
sobre o grau de complexidade que a sociedade contempornea apresenta e como
nvel de complexidade se desdobra sobre o sistema jurdico, em particular no mbito
negocial dos contratos complexos.
Fazer tal reflexo requer, preliminarmente, estabelecer um critrio de
abordagem da complexidade. Tal abordagem ser efetuada com base em conceitos
preconizados por Niklas Luhmann ao tratar da teoria dos sistemas. Luhmann (2016,
p. 32) cabe ressaltar adverte que sua teoria no tem o condo de guiar a
prtica; sua pretenso fazer uma descrio do [...] sistema jurdico como um
sistema que se auto-observa e se descreve, e, portanto, desenvolve suas prprias
teorias, procedendo de modo construtivista, ou seja, sem qualquer tentativa de
representar o mundo exterior no sistema.
luz das ideias desse terico, este trabalho busca abordar a forma de tratar a
complexidade, as escolhas (seletividade) dentre tantas possibilidades, o contingente
que no foi objeto de escolha (contingncia) e a forma como o sistema jurdico atua
no (grande) sistema social (sociedade) e como se relaciona com os sistemas
econmico e poltico. Ainda que realizada de forma sucinta, tal abordagem visa
oferecer suportes tanto caracterizao do contrato complexo como um sistema (ou
subsistema) inserido no sistema jurdico quanto ao estabelecimento de premissas de
sua interpretao.
A complexidade significa o excesso de possibilidades de comunicao na
sociedade contempornea, o que leva a necessidade de uma escolha: selecionar
28
dada hiptese em detrimento de outras. A seletividade se refere necessidade de
promover escolhas: quanto mais complexa a situao, maior a necessidade de
mecanismos de selees. Ao abordar a complexidade,6 Luhmann (1998, p. 267)
destaca duas questes.
Uma questo a quantidade de elementos de dado sistema e as relaes
entre eles; nesse caso, [...] toda operao do sistema que estabelece uma relao
tem que eleger uma entre muitas a complexidade impe a seleo [...].7 Define-
se, portanto, uma dimenso da complexidade, que a complexidade das operaes
de seleo. A outra questo se relaciona com a anterior, ou seja, relativa ao
problema da observao. Visto que o mero conhecimento de um elemento de dado
sistema no conduz, necessariamente, ao conhecimento de todo o sistema sem
considerar as informaes adicionais de seus outros elementos, ento a seleo de
quais elementos observar e quais relaes entre eles considerar fator decisivo.
Nesse caso, no se poderia concluir de outra forma: [...] ambas as noes de
complexidade [...] apontam uma seletividade forosa. A complexidade significa que
toda operao uma seleo.8
Nessa perspectiva de uma seletividade forosa como condio da
possibilidade de operao e de observao, o conceito de sentido no pensamento
de Luhmann se estabelece como forma de realizao, de experienciao dessa
seletividade. Trata-se de algo alm de como o compreende a fenomenologia, na
medida em que, para ele, o sentido pressupe sistemas dinmicos e autopoiticos.
Tais sistemas se caracterizam pela instabilidade dos elementos constitutivos dos
prprios sistemas, que no so unidades estveis, por isso mesmo demandam
organizao entre a atualidade que certa e instvel e a potencialidade que
incerta porm estvel.
No tocante interpretao de contratos complexos, tal pensamento deixa
entrever um ponto de extrema importncia, a ser destacado nos captulos seguintes.
Refere-se a compreender a complexidade segundo os elementos que compem o
contrato (complexo), a forma como se organizam e a relevncia da escolha de quais
6 Luhmann abordou a complexidade ao se desdobrar sobre a temtica das distines entre cincias naturais e cincias humanas. 7 No original em espaol se l: toda operacin del sistema que establece una relacin tiene que elegir una entre muchas la complejidad impone la seleccin, 8 No original em espaol se l: ambas nociones de complejidad [...] apuntan a una selectividad forzosa. La complejidad significa que toda operacin es una seleccin.
29
elementos (sob quais filtros) observar ao interpret-los (para que a seleo dos
elementos no descaracterize o contrato em sua complexidade).
A concepo do que seja sistema e do que seja autopoiesis so cruciais para
a compreenso do pensamento de Luhmann (1998) e suas influncias sobre a
sociologia e sobre o direito, em especial no mbito dos contratos complexos. Com
base nas indagaes acerca das diferenas entre sistema e entorno (ambiente),
Luhmann parte do que, de fato, determina essa diferenciao: a formao do limite.9
Dessa forma, a questo fundamental saber como determinado esse limite. Como
fator determinante do limite, ele elege o conceito de produo como poiesis, como
um fazer,10 e justifica tal escolha porque o fazer pressupe a distino, a
especializao, segundo a qual h que ser realizada uma obra. Ainda que [...] o
produtor no possa produzir por si mesmo todas as causas necessrias para isso11
(p. 55), a obra produzida o sistema mesmo, a diferenciao entre sistema e
entorno (ambiente). Portanto, o que determina a especificidade de um sistema o
que ele produz, e no como ele se constitui. Mais que isso, cada sistema produz de
forma especfica e no poderia ser efetivada tal obra por nenhum outro sistema.
Cada fazer exclusivo de determinado sistema, que lhe atribui identidade por
especificidade.
Na sociedade contempornea, existe um sistema de comunicao
especializada no desempenho de funes polticas, jurdicas e econmicas
que, tambm, so autopoiticas. Estabilizam-se vrios sistemas, dos quais se
destacam o sistema jurdico,12 o econmico e o poltico. O sistema se relaciona com
o entorno organizando e ordenando causas internas e externas na elaborao de
sua obra e [...] pode usar as internas de maneira que resultem possibilidades
suficientes para a combinao de causas externas e internas13 (p. 55). Isso significa
9 O limite [] marca la unidad de la forma, y por ello no puede ser localizado en ninguna de sus caras. El lmite existe slo como orden de cruzar tanto de adentro hacia afuera como de afuera hacia adentro (LUHMANN, 1998, p. 54) 10 Aqui, a ideia de fazer distinta do conceito de prxis (ao). 11 No original em espaol se l: el productor no pueda producir por s mismo todas las causas necesarias para ello. 12 Para Luhmann (2016, p. 31), [...] o ambiente do sistema jurdico interno sociedade aparece como altamente complexo, e a consequncia disso o sistema jurdico fazer referncia a si mesmo: a uma autonomia que lhe prpria, a limites autodeterminados, a um cdigo prprio e a um filtro altamente seletivo, cuja ampliao, poderia pr em risco o sistema ou mesmo dissolver o carter determinvel de suas estruturas. 13 No original em espanhol se l: puede utilizar las internas de manera que resulten suficientes possibilidades para la combinacin de causas externas e internas.
30
que, embora o sistema produza por especificidade, no est cognitivamente
fechado. Ele mantm relaes com o entorno. Entretanto, a especificidade da obra
significa que o sistema est operativamente fechado. nesse sentido que deve ser
entendida a autopoiesis, como conceito trazido da concepo tautolgica de que
nenhum sistema pode operar fora de seus limites14 (p. 55). Portanto, no grande
sistema social, nenhum sistema ou subsistema pode tomar o lugar do outro.
Dadas a especificidade do fazer de cada sistema e a abertura cognitiva de
cada um para os demais sistemas (afinal, para cada sistema, os demais sistemas se
constituem como entorno, embora cada um, por sua especificidade, deva se manter
operativamente fechado, elaborando, dentro de sua identidade, as respostas s
questes provocadas pelo entorno), as implicaes dessa abordagem trazem luz
nova para a compreenso da verdadeira dimenso da complexidade com que se lida
quando se pensa na sociedade contempornea como grande sistema social.
Se for correto considerar que as questes relativas complexidade cabe
frisar podem ser postas em duas dimenses complementares (relativas
quantidade de elementos de dado sistema e aos problemas da observao das
relaes desta grande quantidade de elementos, o sistema social, o grande sistema
cujos elementos so os sistemas que se formam no por arbitrariedade ou por
simples determinismo do ambiente, mas pela necessria especificidade dos fazeres
de cada sistema), ento se torna evidente que o nmero e grau dessas relaes
tendem a ter um crescimento exponencial porque os sistemas se inter-relacionam
cognitivamente e se especificam operativamente. Tal crescimento, inegavelmente, j
fora atingido na contemporaneidade. Por serem todos e no todo dinmicos,
no se trata de avaliar a complexidade presente por juzo de valor atribuindo-lhes
conceitos de evoluo ou desenvolvimento. Trata-se isso sim da densificao
por especificao necessria.
O que se quer dizer com isso que, inseridos na dimenso temporal
(histrica) afinal nenhum sistema pode operar fora de seu prprio limite , as
provocaes, os rudos trazidos pelo entorno e pela dinamicidade interna e externa,
se no puderem encontrar soluo/estabilidade em dado sistema, exigiro, por
especificao, o surgimento de outro sistema. No por acaso, isso agrega cada vez
14 No original em espanhol se l ningn sistema puede operar fuera de sus limites.
31
mais complexidade ao j complexo, tanto pelo constante incremento do nmero de
sistemas quanto pelas probabilidades de inter-relaes entre eles.
Essas inter-relaes entre os sistemas que compem o grande sistema social
determinam sua funo especfica, a poiesis do sistema social, isto , a
comunicao diria Luhmann. Se for correto ver a funo de um sistema com o
prprio sistema, ento a sociedade nada mais do que um sistema autopoitico
cuja operao reprodutora a comunicao (LUHMANN, 1998, p. 56); logo,
sociedade um sistema comunicacional.
Os reflexos dessa constatao sobre a forma de pensar e analisar a
sociedade e todos os seus sistemas, incluindo-se o sistema jurdico, so imediatos,
em particular pelo corte epistemolgico que provoca nas cincias sociais. Isso
porque, em tal perspectiva, a sociedade no um conjunto de seres humanos,
tampouco as relaes que se estabelecem entre eles. A sociedade [...] o sistema
que engloba todas as comunicaes, aquele que se reproduz autopoieticamente mediante o
entrelaamento recursivo de comunicaes e produz comunicaes sempre novas e
diferentes. 15
Essa conceituao rompe com as vises apoiadas na racionalidade moderna,
calcadas no princpio da causalidade como fator de compreenso do processo
histrico e da complexificao da sociedade contempornea. Dentro dessa teoria
dos sistemas, estabelece-se que o evento comunicativo que abre e fecha o
sistema e que so exatamente esses eventos que geram bifurcaes de sim ou
de no que determinam os passos a ser tomados; bifurcaes a partir das quais
pode haver histria (LUHMANN, 1998, p. 58).
Para que as aberturas do sistema promovam comunicaes acerca do
entorno, porm no com o entorno, pelas provocaes que este exerce sobre o
sistema, preciso haver intermediao de algo que viabilize a organicidade do
grande sistema social, apesar do fechamento operativo dos sistemas e subsistemas
que o compem. Luhmann resolve essa questo com o conceito de acoplamento
entre os sistemas e, ao faz-lo resolve as questes relativas s relaes entre
indivduo e sociedade, entre conscincia e comunicao. A estrutura funcional que
age como viabilizadora desse acoplamento entre os sistemas, garantindo at o
15 No original em espaol (p. 57) se l: es el sistema que engloba todas las comunicaciones, aquel que se reproduce autopoiticamente mediante el entrelazamiento recursivo de las comunicaciones y produce comunicaciones siempre nuevas y distintas..
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distanciamento e a diferenciao entre conscincia e comunicao, , para
Luhmann, a linguagem. Segundo ele, diferentemente do que afirmavam os
linguistas, a linguagem no configura um sistema, mas sim um fator de acoplamento
(p. 601).
A despeito da profundidade das reflexes que essa temtica suscita, o
relevante para a presente anlise considerar que a linguagem exerce papel duplo:
ela exerce a funo de acoplamento entre sistemas portanto exerce um papel de
incluso cognitiva do entorno pelo sistema e o faz de forma tal que, ao incluir
cognitivamente, determina uma excluso operativa. Ao promover tal acoplamento, a
linguagem no exerce uma representao do mundo externo; antes, exerce uma
concentrao, uma condensao do que de fato por ser trazido para o interno
enquanto suportvel pelo sistema, incluso e excluso so aes sincrnicas da
linguagem.16
Exercido pela linguagem, esse processo de concentrao da ateno, tanto
na conscincia quanto na comunicao, faz dela o primordial foco de observao de
todo conhecimento que se queira produzir acerca dos sistemas e de suas relaes
entre si. Como referencial terico, essa questo joga luz nova sobre as linhas de
pensamento que se aliceram na observao do sistema jurdico com base em sua
linguagem. Esta no se configura como mero recurso metodolgico; antes,
configura-se como convico, dentro da teoria sistmica, de que todo sistema,
inclusive o jurdico, somente pode ser observado por sua funo estruturante de
acoplamento, qual seja: a linguagem. Claro est que outras linhas jusfilosficas
podem ocupar e de fato se ocupam do papel da linguagem no mbito jurdico;
mas no o fazem necessariamente nessa lgica.
16 A linguagem aumenta a irritabilidade da conscincia atravs da comunicao e da sociedade por meio da conscincia, que transforma os estados internos na linguagem e compreenso (ou falta de compreenso). Ao mesmo tempo, isso significa que outras fontes de irritao so excludas do sistema da sociedade. Assim, a linguagem isola a sociedade de quase todos os eventos ambientais do tipo fsico, qumico ou que tomam a forma de vida, com exceo da irritao atravs dos impulsos da conscincia (LUHMANN, 1998, p. 61). No original em espanhol se l: El lenguaje aumenta la irritabilidad de la conciencia por medio de la comunicacin y la de la sociedad por medio de la conciencia, la cual transforma los estados internos en lenguaje y en comprensin (o en falta de comprensin). Esto significa, al mismo tiempo, que otras fuentes de irritacin son excluidas del sistema de la sociedad. As, pues, el lenguaje asla a la sociedad de casi todos los acontecimientos ambientales de tipo fsico, qumico o que adoptan la forma de vida, con la nica excepcin de la irritacin a travs de los impulsos de conciencia.
33
Ainda quanto observao, convm considerar que o ambiente informa o
sistema, mas dele no participa ( conceito do sistema cognitivamente aberto e
operativamente fechado) e que, por outro lado, o sistema informa o ambiente (todos
os demais sistemas), mas dele no participa. Exatamente porque as aes, as
intervenes, sobre o ambiente so impossveis, para que se mantenha constante a
distino entre autorreferncia e heterorreferncia, ambiente e sistema,
preservando-se a especificidade operacional que caracteriza um sistema
autopoitico, preciso que este se auto-observe. As implicaes da necessria
auto-observao para que o sistema autopoitico se mantenha como tal so
inmeras, tanto do ponto de vista epistemolgico das cincias sociais quanto,
sobretudo, para a cincia do Direito na anlise do sistema jurdico nas relaes
que este mantm com os demais sistemas.
Ante a especificidade do sistema jurdico de, ao manter sua autorreferncia,
dispor sobre a licitude ou no das aes e funes que ocorrem nos demais
sistemas, a heterorreferncia supe mais que sustentar sua condio de sistema
autopoitico. Isso porque sua poiesis qualificar o status das aes do ambiente e,
ainda que dele no possa participar (assim como no podem todos os sistemas com
relao aos outros), atravs de sua linguagem, ao dizer o direito, qualifica as aes
do ambiente pelo parmetro da licitude, permitindo, alterando ou desconstituindo
essas aes.
Convm aqui o pensamento de Teubner (1989, p. 2), ao se referir obra de
Luhmann; segundo ele,
[...] o Direito retira a sua prpria validade dessa auto-referncia pura, pela qual qualquer operao jurdica reenvia para o resultado de operaes jurdicas. Significa isto que a validade do Direito no pode ser importada do exterior do sistema jurdico, mas apenas obtida a partir do seu interior.
Nesse sentido, a auto-observao no e do sistema jurdico adquire uma
densidade maior tendo em vista que, por sua linguagem autorreferenciada, ao
comunicar-se com o ambiente, deve faz-lo, pelo menos, dentro dos princpios da
isonomia e da segurana jurdica. Por tal motivo, as aes de auto-observao do
sistema jurdico so, por excelncia, prprias das situaes concretas e, em
particular, efetuadas pelos rgos julgadores (a jurisprudncia) no exerccio das
aes de interpretao e hermenutica, isto , de acoplamento entre o sistema
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jurdico e o ambiente; aes nas quais o sistema se abre cognitivamente ao
ambiente para apresentar solues aos problemas ocorridos; solues que devero
ser dadas pelo sistema jurdico operativamente fechado.
Entretanto, para que possa ser processado autopoieticamente pelo sistema
jurdico, este promove uma seletividade pela reduo da complexidade, cuja
estratgia [...] implementada de dois modos: deslocamento dos problemas
(transformar a complexidade do ambiente e seus problemas em complexidade e
problemas do sistema) e dupla seletividade (realizar escolhas e conect-las)
(CAMPILONGO, 2011b, p. 21). O complicador dessa seletividade observa o autor
no a seletividade; o ocultamento das alternativas extradas no processo
seletivo. Noutros termos, embora o sistema jurdico se abra cognitivamente ao
ambiente, ele o faz a partir de [...] estruturas que definam o grau de complexidade
que pode ser compreendido, processado e reduzido no interior do sistema.
Estruturas que resistam s variaes do ambiente e isolem as desiluses
(CAMPILONGO, 2011b, p. 21).
em tais estruturas cuja tessitura do filtro determina redues da
complexidade para que seja possvel ser conhecidas pelo sistema que se deve
fundamentar a reflexo sobre a ao interpretativa, sobre a funo hermenutica
numa viso sistmica e dinmica do direito (contratual). Isso porque cabe frisar ,
a complexidade est ligada ao conceito de especificidade, segundo o qual nenhum
sistema pode ocupar operativamente o lugar do outro e no qual a sociedade
entendida como o sistema que engloba todas as comunicaes entre os sistemas.
Portanto, fica evidente o grau elevado de complexidade da sociedade
contempornea. Mais que isso, pela lgica da especificidade funcional, nenhuma
pessoa fsica ou jurdica apresenta exclusividade sistmica; isto , os sujeitos
esto em tantos sistemas quanto sejam suas funes, suas poiesis; processam,
contnua e constantemente, inmeras relaes entre os sistemas dos quais
participa, das quais cada uma de uma constituio sistmica. exponencial o
nmero de inter-relaes, relaes autorreferenciais e heterorreferenciais, as quais
determinam aberturas cognitivas e fechamentos operativos, gerando comunicaes.
O grau de complexidade presente na sociedade contempornea tem reflexos
no sistema negocial, pois crescente o nmero de negcios jurdicos complexos,
nos quais h uma intensa participao de variados sistemas (especificidades). Neste
sentido, faz-se importante refletir acerca de como integrar estas diversas
35
especificidades, ou ainda, como lidar com todas elas no caso concreto, para que a
necessria atividade de reduo de complexidades (para que seja possvel uma
soluo de um conflito no caso concreto) no seja realizada de forma a ocultar
questes relevantes.
Com efeito, integram o mote desta pesquisa o repensar e a busca de
maneiras novas para que o acoplamento do sistema jurdico ao sistema econmico-
negocial ocorra respeitando-se o fechamento operativo daquele e buscando-se uma
expanso em sua abertura cognitiva para que, em sua seletividade, os ocultamentos
possam ser aclarados e as redues de complexidade no sejam por demais
restritivas, de modo a dilatar as alternativas e possibilidades prprias de um
ambiente em transformao e complexificao constantes.
Nessa lgica de Luhmann, o contrato representa o acoplamento entre o
sistema econmico e o sistema jurdico; representa a concretude da liberdade
concedida ao particular de estabelecer negcios com seus pares, incrementando a
economia e repercutindo na sociedade. O contrato complexo representa um mbito
maior: o particular no enquadra seu negcio nas categorias tipificadas no sistema
jurdico, utiliza a liberdade que o prprio sistema legitima para, em constante dilogo
com as diferentes reas do conhecimento, ampliar as possibilidades de negcios, da
forma de negociar, do incremento da economia.
A complexidade do contrato gerada tanto pelos elementos que formam o
objeto do contrato quanto na forma de observar tais elementos e negociar. Para
interpretar tal contrato, o sistema, tambm, torna-se mais complexo, pois ter de
empregar recursos a ser criados pelo prprio sistema, ainda que nem sempre
estejam nele descritos ou expressamente previstos. O contrato complexo implica
uma autopoiesis constante: seja por ter uma capacidade intensa de concretude em
razo de sua diversidade de elementos e sua aptido (em razo, inclusive, de sua
atipicidade) de gerar normas particulares cada vez mais concretas, seja para sua
interpretao, que implicar uma anlise prvia de todo o caso concreto para
verificar as normas incidentes cogentes e particulares estabelecidas no texto
do contrato ou advindas da relao estabelecida.
Tais temas sero tratados ao longo deste trabalho. Por ora cumpre destacar
que, em vista da atipicidade, do no pleno regramento legal e social dos contratos
complexos, a linguagem ganha ainda mais relevo no mbito dos contratos
complexos e de sua interpretao. Na ausncia de regra tpica aplicvel, a situao
36
concreta ser revelada e interpretada com base na linguagem estabelecida entre as
partes.
1.3 Direito como fenmeno comunicacional
Na esteira do pensamento de Luhmann, se a linguagem for o fator de
acoplamento entre os sistemas, ento entender o sistema jurdico e o direito como
linguagem o caminho que aqui se impe. Nessa acepo do direito como
fenmeno comunicacional destaca-se o pensamento de Gregorio Robles, no
somente por afirmar ser o direito um texto, mas tambm e sobretudo por lanar
um olhar profundo sobre o papel das decises jurdicas como atos de fala
constitutivos do sistema jurdico.
Ao tratar da teoria comunicacional do direito a qual o concebe como
sistema de comunicao, como texto jurdico organizador e regulador da sociedade
que possibilita a convivncia humana por meio da regulao de suas aes ,
Robles (2005a) ensina que, sem dvida, texto o texto escrito, assim como o no
escrito: manifestado oralmente e suscetvel de transcrio. Tambm considerada
como texto a linguagem simblica dos sinais verbalizvel por quem domina o
significado de seus smbolos. H ainda obras humanas resultantes de uma ao
criativa que transmitem uma mensagem, ainda que subjetiva; da que podem se
tomadas como textos. Tendo em vista a ideia bsica da hermenutica de Robles
texto no apenas o escrito, mas tambm a realidade suscetvel de interpretao
, pode-se afirmar que a realidade humana a realidade social um texto se
admitir ser vertida em linguagem. Nesse caso, apresenta-se como algo que aceita
interpretao para poder ser compreendido.
Ao esclarecer as bases e os fundamentos da teoria comunicacional do direito,
Robles (2005a, p. 7) inicia sua reflexo distinguindo os conceitos de ordenamento e
sistema jurdicos:17 enquanto este resulta do trabalho da dogmtica jurdica, que
17 Convm anotar que Tcio Lacerda Gama (2011, p. 348) no acolhe a distino proposta por Robles, caso se considere o que expe: Neste trabalho, tomaremos as expresses ordenamento jurdico e sistema jurdico como sinnimos perfeitos. Uma e outra servem para designar um conjunto de normas jurdicas vlidas em certas condies de espao e tempo. Sendo essa nossa premissa, no podemos aceitar distines como aquela proposta por Gregorio Robles, que reserva significaes distintas para as duas locues. [...] Contra esse entendimento, sustentamos existir racionalidade e sistematicidade tanto no chamado sistema, que domnio da Cincia do Direito, quando no direito positivo, que o campo do ordenamento jurdico. Nessas duas hipteses, o produto da interpretao varia, pois na cincia se produzem proposies descritivas e no direito positivo se
37
submete o texto bruto [...] a um processo de refino e reelaborao, produzindo-se
um novo texto que reflete o primeiro e ao mesmo tempo o completa; aquele
composto exclusivamente pelo [...] texto jurdico bruto ou simplesmente material
jurdico. Ao apontar o papel fundamental que os juristas e doutrinadores exercem
pela especificidade desse fazer, dessa poiesis reelaborar o ordenamento
construindo a norma aplicvel e, portanto, viabilizando a especificidade operativa do
sistema jurdico; ou seja, dizer o direito , Robles no nega que o sistema,
diferentemente do ordenamento, por ser fruto da reelaborao dogmtica, no
unvoco. Logo, a est a causa principal da insegurana jurdica tendo em vista a
variedade interpretativa possvel do texto bruto.
Entretanto, para Robles, tal questo no se configura como impeditivo tendo
em vista a contribuio necessria e constitutiva do sistema ofertada pela
reelaborao. Isso porque os eventuais problemas presentes no ordenamento, no
texto bruto (lacunas, omisses e contradies), so aperfeioados pelo sistema. Da
sua concluso de que o sistema e no ordenamento que [...] reflete melhor
[...] as normas e instituies de um direito positivo concreto (p. 7); de que a
dogmtica exerce influncia determinante em todos os nveis da produo
normativa, inclusive da prpria Constituio. Robles trata da questo das instituies
jurdicas como um fazer constitutivo do sistema executado pela especificidade da
funo dos juristas; segundo ele, [...] os juristas no so descritores da realidade do
direito, mas construtores criativos dela. A linguagem do direito a linguagem dos
juristas (p. 9; grifo nosso).
Para Robles, no tocante construo criativa principal dos juristas
instituies como a sociedade annima, o matrimnio e o contrato , a funo das
instituies, do princpio institucional, regular juridicamente os costumes, os
aspectos concretos da realidade social. Nessa medida, privilegia o autor o olhar
sobre as falas acerca dessas instituies ao se estudar um ordenamento jurdico
concreto, concluindo que, Assim como as normas no possuem sentido fora do
sistema, tampouco possuem sentido isoladas das instituies a que pertencem (p.
10).
produzem normas. Em ambos, porm, h esquemas racionais que determinam como se d a relao entre as proposies. Justificamos, assim, o porqu de no acatarmos a distino entre ordenamento e sistema, exposta acima de forma clara e didtica.
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Nessa relao intrnseca entre instituies e normas, entre aspectos
concretos da realidade juridicamente regulados e ordenamento; nessa relao
contnua que as decises jurdicas essas falas do sistema promovem na
construo, interpretao e aplicao das normas, justamente a est o eixo
principal pelo qual, neste trabalho, pretende-se estabelecer uma conexo entre o
instituto do contrato complexo como aspecto concreto da realidade negocial da
sociedade complexa contempornea e sua interpretao. Estando as normas
intrinsecamente ligadas aos institutos e s instituies jurdicas e estando todos
estes no mbito das decises intrassistmicas, a dialogicidade dessas falas entre si
ampla, porque pertencem ao mesmo sistema o jurdico; e visto que falam e
somente falam entre si, garantem o fechamento operativo do sistema, garantem a
autopoiesis que o identifica como sistema.
Considerando-se o direito como linguagem e tratando-se, especificamente, de
contratos complexos, convm ressaltar que a linguagem contratual como texto
escrito e mesmo no escrito (texto que se extrai dos atos praticados pelas partes na
execuo do contrato, no cumprimento das obrigaes e nas prestaes nele
estabelecidas, das circunstncias do caso concreto) de extrema relevncia. Isso
se mostra, por exemplo, ao se tratar de contratos paritrios, em que as partes
estabelecem, de forma livre, as regras, conhecem os riscos e assumem (em
determinadas situaes) uma parcela de lea. Nesses contratos, a forma como a
relao prestao/contraprestao se estabelece pode se aproximar, inclusive, da
ideia de um jogo, de uma relao ldica.
Cabe ressaltar que Robles (2005a), ao tratar do direito como texto, como
linguagem, relaciona-o ao texto ldico. Em regra, texto ldico um texto fechado. O
jogo o prprio texto ldico. Os jogos pressupem um regulamento, um conjunto de
regras que estabelecem os elementos diretos e indiretos da ao do jogo. Para
definir um jogo, necessrio mencionar suas regras, a linguagem prpria nele
estabelecida. Alm disso, tanto nos jogos como na vida social aparecem fenmenos
tais como a cooperao, a competncia, a luta, o conflito (ROBLES, 2011, p. 3).
Nesse sentido, pode-se afirmar que o texto ldico um texto regulador; mais
exatamente, constitutivo-regulador. Afinal, o texto cria a ao do jogo, que possibilita
ao jogador abrir parnteses na vida real, ser outro distinto daquilo que se na vida
diria e rotineira. Proporciona diverso e distrao.
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Assim como o texto ldico, o texto jurdico um texto constitutivo-regulador,
possvel de ser decomposto em um conjunto de regras e caracteres lingusticos
similares. Porm, enquanto o texto ldico regulamenta uma ao criada
independente da vida real, o texto jurdico no supe essa ruptura com a vida real:
ele a prpria vida social real. O texto jurdico faz parte da vida de cada um,
independentemente da vontade (ROBLES, 2005a).
Apesar de no estar no escopo nem integrar o rol de temas a ser discutidos
no presente trabalho, cabe ressaltar que os jogos e a teoria dos jogos no esto
adstritos a brincadeiras ou ao esporte. Atualmente, demonstram a importncia da
inteligncia artificial, que denota efetivas realizaes como auxiliar do processo
decisrio humano (BERNI, 2004). A teoria dos jogos, que ganhou notoriedade com
John Nash,18 um ramo da teoria da deciso estratgica e diz respeito interao
estratgica entre dois indivduos ou mais (os jogadores podem ser pessoas fsicas e
jurdicas, ou grupo de pessoas). Est em ao um conjunto de nmeros
relacionados com algumas propriedades comportamentais de homens e coisas.
Conforme diz Berni (2004, p. 2),
[...] ao tratar idiossincrasias humanas do modo mais formal possvel, a teoria dos jogos apresenta um requisito importantssimo para a pesquisa cientfica: ela exige explicitamente a demonstrao lgica de vnculos entre as motivaes dos agentes e os meios utilizados para alcanar os resultados desejados.
Nessa teoria, diz Jos A. M. Carvalho19 (2007, p. 214), a estruturao do jogo
deve obedecer a regras claras e preestabelecidas, com base nas quais so
determinadas as escolhas (decises) e os resultados possveis. As escolhas
18 John Forbes Nash Jnior, em artigo de 1951, Non-cooperative games, definiu a existncia de um equilbrio estratgico para jogos no cooperativos: equilbrio de Nash. Em 1994, ao lado de John C. Harsanyi e Reinhard Selten que contriburam para o reconhecimento da teoria dos jogos , ele ganhou o prmio Nobel de economia. 19 Por mais que isto signifique fugir ao que recomenda a norma NBR 14724/2011, da Associao Brasileira de Normas Tcnicas, certos autores so referidos ao longo do texto com seu nome e sobrenome, em vez do sobrenome, como postula a norma. Por um lado, essa licena se justifica para distinguir bem os autores citados e evitar confuses com sobrenomes mais comuns e abundantes no texto como Azevedo, Carvalho e Silva: sempre que possvel, aparecem com o respectivo nome; o mesmo ocorre com o sobrenome Coelho. Por outro lado, aparecem nome e sobrenome de outros autores por uma questo de afetividade: so pessoas do meu conhecimento, com quem pude conviver como aluna ou colega ao longo do mestrado e doutorado; o uso do sobrenome apenas pareceu criar certa distncia incompatvel com a proximidade que a academia proporcionou.
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realizveis de forma simultnea ou no e os resultados sempre sero finitos;
devero se restringir a um nmero limitado de possibilidades.
Tratar do contrato complexo e de sua interpretao e compar-lo (de forma
sucinta) com os jogos supe destacar que as partes necessariamente interagem,
seja para celebrar o co