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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC–SP Susete Gomes A interpretação dos contratos complexos: uma visão dos contratos coligados DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO – SP 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC–SP

Susete Gomes

A interpretação dos contratos complexos: uma visão dos contratos coligados

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO – SP 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC–SP

Susete Gomes

A interpretação dos contratos complexos: uma visão dos contratos coligados

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Direito Civil, sob orientação do Professor Doutor Giovanni Ettore Nanni.

SÃO PAULO – SP 2016

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Banca examinadora

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Ao Professor Renan Lotufo, que me ensinou a amar o Direito Civil.

A vida me concedeu a honra e o privilégio de ter sido sua aluna e sua orientanda.

Tenha a certeza, caro Professor, que todo o seu conhecimento e todas as suas lições iluminaram e sempre iluminarão os meus dias de estudo e de lida com o Direito.

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Aos meus amores: — Susy, minha gêmea amada, pela vida, pelas travessias, por comigo erguer os braços e cantar... Viver e Não ter a Vergonha de Ser Feliz...

— Thales, meu filho. Que a vida te permita voar bem alto! Saiba que sempre tem um lugar para pousar ao meu lado... If You Need Me, Call Me. No Matter Where You Are...

— Cristiano, meu marido, amor de tantas vidas, por ser meu “tudo”, por todo encantamento que é viver com você... Io Che Amo Solo Te...

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AGRADECIMENTOS Agradeço a meus pais, Atayde e Nenê, pelas lições; em especial: ter Fé em

Deus (“a Fé remove montanhas”), a respeitar o próximo (“não faça aos outros o que

não quer que façam a você”), a estudar sempre (“o poder de transformação do

conhecimento”); a trabalhar (“o trabalho dignifica”); acreditar na intuição (“intuição é

inspiração divina”); a fazer tudo com amor (ensinaram com seus exemplos).

Agradeço ao meu orientador, Professor Giovanni Ettore Nanni, pela acolhida,

confiança e sua firmeza ao me dizer sempre: “Vamos em frente”. Espero que a vida

me permita lhe mostrar toda a minha gratidão.

Agradeço aos queridos Professores Francisco José Cahali e Tácio Lacerda

Gama, que também participaram da banca do exame de qualificação e muito

contribuíram para a composição final deste trabalho.

Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a todos os

Professores, assistentes e colegas do mestrado e do doutorado, em particular aos

Professores Paulo de Barros Carvalho, Robson Maia Lins, Thiago Rodovalho dos

Santos e Diogo Leonardo Machado de Melo.

Agradeço a Sílvia Helena Gomes Piva e ao Agostinho Gomes, pelas imensas

contribuições ao presente trabalho, pelo carinho e incentivo, pela nossa história de

vida.

Agradeço o apoio e a amizade de Ana Lia Sampaio Machado de Sousa,

Edilson Vitorelli e Ricardo Hoffmann.

Agradeço a todos os advogados, estagiários e colaboradores do escritório

Gomes & Hoffmann, Bellucci, Piva Advogados, do qual tenho a honra de ser sócia.

Agradeço a todos que em mim confiaram a elaboração de um contrato,

simples, complexo, típico, atípico. Eu não chegaria até aqui sem a lida diária com o

direito contratual, especialmente com a experiência desses “intérpretes operadores”

que operacionalizam o contrato com as mãos trabalhadoras de quem constrói o

mundo.

Agradeço aos amigos de todas as horas. Neste ano, 2016, completei 50 anos.

Susy (minha gêmea) e eu resolvemos festejar: no momento dos agradecimentos,

nós e nossos convidados (grandes amigos e familiares), com rosas na mão,

cantamos a famosa música Andanças... Assim, com a lembrança viva desse

momento tão especial e entoando o refrão “por onde for quero ser seu par”, eu

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agradeço a todos os amigos que a vida me deu, pois em algum momento das

minhas andanças pela vida cada um deles foi meu par.

Agradeço a todos que amam o Direito e que se tornaram imortais ao escrever

um artigo, um livro, uma resenha. Eu me conectei a muitos autores: em

determinados momentos, pareciam ser amigos de longa data (eu os chamava pelo

primeiro nome), um Professor a me ensinar. Fui transformada ao longo da escrita

desta tese. Experimentei muitas lentes que me fizeram ver o mundo e o Direito de

uma forma diferente. Não sou a mesma, pois escrever uma tese é uma superação

que não se faz só. Todos esses companheiros de jornada me fizeram chegar até

aqui. Hoje saem da minha bagunçada escrivaninha e voltam para a ordem das

prateleiras, para os arquivos digitais. Mas permanecerão vivos nas linhas, nas notas

de rodapé e em todos os pensamentos e todas as divagações os quais, mesmo que

não tenham sidos apresentados na linguagem escrita, compõem o pano de fundo da

tese.

A todos, minha eterna gratidão!

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RESUMO

GOMES, Susete. A interpretação dos contratos complexos: uma visão dos contratos

coligados. 2016. 263 fls. Tese (Doutorado em Direito) — Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, São Paulo.

No âmbito negocial, a liberdade (inserida no âmbito da autonomia privada)

fundamenta os contratos complexos, que podem ser assim caracterizados por

diversas vertentes (subjetiva, normativa, volitiva, objetiva) e que são atípicos com

tendência a ser lacunosos, de duração, relacionais. Os contratos complexos atraem

outros contratos que passam a ser a eles coligados, formando um sistema contratual

complexo. É para esse contexto que converge este estudo, que tem por objetivo

tratar da interpretação dos contratos complexos, incluindo uma visão dos contratos

coligados. Justifica-se tal investigação por ser o tema pouco tratado pela doutrina;

também se percebe demanda crescente de tais contratos no mercado negocial.

Alcançar tal objetivo pressupôs sincronizar a demanda por contratos complexos com

a sociedade contemporânea e sua complexidade, que impõe a necessidade de se

reduzirem as complexidades por meio da seleção (escolhas). Para tanto, a

linguagem mostra-se como intermediadora de complexidades distintas advindas dos

sistemas jurídico, econômico e político. A interpretação dos contratos complexos

deve ser feita com base na situação concreta: alocam-se todos os elementos

diversos que os compõem conforme sua função prática e econômica, que é revelada

pela sua causa concreta; filtram-se os elementos pelo vetor das circunstâncias do

caso para que os elementos filtrados sejam ponderados relativamente ao sistema

jurídico por meio de cláusulas gerais da boa-fé objetiva, do equilíbrio contratual e da

função social dos contratos. Portanto, do próprio sistema contratual complexo vão

emanar as normas de interpretação — a metacontratualidade — que sobre o mesmo

sistema contratual incidirão para dirimir eventuais conflitos.

Palavras-chave: Intepretação contratual. Contratos complexos. Contratos coligados.

Metacontratualidade.

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ABSTRACT

GOMES, Susete. The interpretation of complex contracts: a view on correlated

contracts. 2016. 263 pp. Thesis (Doctorate in Law) — Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, São Paulo city.

In business context, freedom (inserted in the private autonomy context) lays

foundations to the so-called complex contracts, which may be named as so due to

aspects of different nature (subjective, normative, volitional, and objective). They are

atypical, besides tending to show gaps and being of duration and relational. Complex

contracts attract other contracts that become related to them, forming a complex

contractual system. It is to this matter that this study converges by aiming to address

the interpretation of complex contracts, including an overview of related contracts.

The research underlying this thesis is relevant because its theme was given almost

none doctrine treatment; moreover, there is an increasing demand for such contracts

in the business market. Achieving such an aim required synchronizing the demand

for complex contracts with contemporary society and its complexity, which imposes

the need to reduce complexities by means of selection (choices). For that, the

language works as a mediator of distinct complexities arising from the legal,

economic and political systems. The interpretation of complex contracts must be

drawn from the concrete situation: all various elements making it up are allocated

according to its economic and practical function, which is revealed by its specific

cause; the elements are filtered by the vector of the circumstances of the case so

that the filtered ones are weighed against the legal system by means of general

clauses of objective good faith, contractual balance and social function of contracts.

Therefore, in a process called “meta-contractuality”, rules to interpret the complex

contractual system will derive from the complex contract itself to be used in the same

contractual system in case of conflicts to solve.

Keywords: Contractual interpretation. Complex contracts. Related contracts. Meta-

contractuality.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 O DIREITO NA SOCIEDADE COMPLEXA 17 1.1 Da modernidade à sociedade complexa 18 1.2 Sociedade complexa 26 1.3 Direito como fenômeno comunicacional 36 1.4 Relevância da linguagem na interpretação dos contratos complexos 41 2 CONTRATOS COMPLEXOS 54 2.1 Complexidade subjetiva e complexidade volitiva 59 2.2 Complexidade normativa 64 2.3 Complexidade objetiva 74 2.3.1 Tipicidade e atipicidade 75 2.3.2 Contratos complexos e mistos 88 2.3.3 Complexidade econômica 92 2.3.4 Complexidade tecnológica 95 2.4 Contratos coligados 100 2.4.1 Efeitos da coligação contratual 104 2.4.1.1 Efeitos sociais dos contratos coligados 113 2.5 Exemplos de contratos complexos e contratos coligados que integram

o sistema de complexidade contratual na realidade empresarial 115 2.5.1 Garantias e financiamentos de projeto (project finance) 115 2.5.2 Franquias 118 2.5.3 Contratos de engenharia e infraestrutura 122 2.5.4 Contratos relativos à revenda de combustíveis automotivo 124 3 PREMISSAS PARA INTERPRETAÇAO DE CONTRATOS COMPLEXOS 127 3.1 Intérpretes do negócio jurídico complexo 127 3.2 Interpretação dos contratos complexos não deve seguir padrão

hierárquico estático 131 3.3 Cláusulas gerais da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do

equilíbrio contratual devem ser vistas e aplicadas à luz da complexidade dos contratos e dos efeitos dela decorrentes 139

3.4 Causa concreta é determinante para a interpretação dos contratos complexos 151

3.5 Lacunas nos contratos complexos decorrem de sua essência 154 3.6 Distinção entre contratos complexos e coligados deve ser efetuada

de forma dinâmica 156

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3.7 Situação concreta em contratos complexos: analisável a priori para identificar seus elementos e os níveis de concreção e influência recíproca 160

4 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS COMPLEXOS 163 4.1 Incidência e concreção 166 4.1.1 Ordem temporal como pauta para concreção — a (re)constituição

(da formação) do contrato complexo 169 4.1.2 Ordem temporal II: reconstituição da operacionalização do contrato

complexo e delimitação dos conflitos dele decorrentes 175 4.1.3 Circunstâncias do caso como vetor de concreção e filtro de ponderação

para interpretação dos contratos complexos 178 4.1.4 A concreção e a linguagem da doutrina 186 4.2 A Metacontratualidade 190 5 CONTRATOS COMPLEXOS E FORO PARA DECISÕES DE CONFLITOS 193

5.1 Esfera judicial para decisão de conflitos decorrentes de contratos complexos 193

5.1.1 Caso 1: contrato de locação coligado a contratos relacionados com contratos complexos de reorganização societária (cisão) 195

5.1.2 Caso 2: contratos complexos (relacionados com a revenda de combustíveis automotivos) e coligados — exceção de contrato não cumprido 200

5.1.3 Caso 3: contrato complexo entre empresas — aplicação de regras do CDC de forma equivocada pelo tribunal de origem 202

5.1.4 Caso 4: franquias — cláusula compromissória 203 5.1.5 Considerações sobre os julgados analisados 207 5.2 Eleição da arbitragem para disputas relativas a contratos complexos 209

CONCLUSÃO 211 REFERÊNCIAS 219 ANEXO 1 Recurso Especial 1.206.723/MG 235

ANEXO 1.1 AgRg no Recurso Especial 1.206.723/MG 242

ANEXO 2 Recurso Especial 985.531/SP 245

ANEXO 2.1 Embargos de Divergência em RESP 985.531/SP 247

ANEXO 3 Agravo EM Recurso Especial 218.620/RJ 252

ANEXO 3.1 AgInt no AGRaVO EM Recurso Especial 218.620/RJ 260

ANEXO 4 Recurso Especial 1.602.076/SP 262

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INTRODUÇÃO A demanda crescente por negócios jurídicos patrimoniais, celebrados entre

empresários de forma simétrica e paritária, deixa entrever pluralidade e

complexidade seja quanto aos elementos que compõem o objeto (fugindo do

regramento contratual tipificado), aos centros de interesse, às manifestações de

vontade e às regras para dirimir seus conflitos, seja à sua forma, tendo em vista a

aplicação de tecnologias e esquemas econômicos não tradicionais. A sociedade

contemporânea tem na complexidade o contexto da existência humana, o que torna

relevante entender como o sistema jurídico pode funcionar entre particulares que

pretendem fazer suas escolhas perante as complexidades para obter lucros e fazer

circular riquezas. A liberdade concedida aos particulares no âmbito da autonomia

privada permite utilizar elementos variados para compor uma relação contratual e

pode torná-la atípica e complexa.

A compreensão de vertentes diversas da complexidade contratual indica que

a caracterização de uma relação contratual como complexa pode advir de fontes

variadas: tempo, incompletude, partes, elementos que compõem o objeto, dentre

outros; mais que isso, pode gerar, além da relação complexa em uma unicidade

contratual, a pluralidade de contratos que se ligam por uma causa concreta comum

(contratos coligados).

Com efeito, é para essa seara que converge a pesquisa apresentada nesta

tese. Como objeto de estudo a ser problematizado, a investigação apresenta os

parâmetros para a interpretação dos contratos complexos e os contratos a eles

coligados, firmados por partes (empresas) em relação de paridade e simetria. O que

se pretende é apresentar uma forma de interpretar tais sistemas contratuais

complexos que privilegie a liberdade contratual de que advém a atipicidade com

diversidade de elementos e que extraia, da relação contratual criada pelos

particulares, as normas de interpretação que incidirão sobre a (mesma) relação

contratual complexa. Subjacente à obtenção das normas de interpretação que

incidirão para dirimir conflitos da relação contratual complexa — denominada

metacontratualidade —, está o método da concreção.

Partindo-se das premissas estabelecidas e por meio de pautas de

argumentação, busca-se reconstituir a relação contratual complexa com todos seus

elementos alocados em suas funções, filtrados pelas circunstâncias do caso e

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ponderados pelas cláusulas gerais da boa-fé, da função social e do equilíbrio

contratual vistos pelas lentes da complexidade. Assim, impõe-se a necessidade de

uma reflexão sobre relações jurídicas contratuais complexas, em especial acerca de

sua interpretação, tendo em vista que tal tema não é alvo habitual da doutrina.

O problema da pesquisa se delineia no questionamento de como deve ser o

processo de interpretação dos contratos complexos e dos contratos a ele coligados,

tendo em vista que os contratos complexos são caracterizados (ainda que de forma

dinâmica) por ser de duração, lacunosos, com possibilidade de combinação e/ou

fusão de elementos típicos ou atípicos — o que enseja a sua atipicidade — e sem

um regramento legal próprio e preestabelecido para dirimir os conflitos deles

decorrentes. Todavia, a ausência de regramento legal não impede que se obtenham

parâmetros interpretativos.

A fim de cumprir com o objeto do presente trabalho, respondendo a essa

indagação, o estudo foi desenvolvido como pesquisa bibliográfico-documental,

utilizando também registros de casos concretos verificados na jurisprudência e/ou

indicados na doutrina. Os resultados da pesquisa e a análise estão apresentados em

cinco capítulos, cada um com um objetivo específico.

O capítulo 1 apresenta a sociedade complexa. O objetivo do capítulo é

explanar, ainda que de forma breve, como a humanidade passou a se enxergar

pelas lentes da diversidade e da complexidade: deixa a divindade e a racionalidade

extrema (calcada no cientificismo) para, com base na crítica proposta por Kant,

iniciar a era do pensamento moderno, com a dialética, os movimentos filosóficos e

sociais, a Revolução Industrial... até alcançar o movimento pós-moderno: a visão

que desnuda paradoxos, visto que demonstra a necessária coexistência da

instabilidade e da incerteza. Uma breve digressão histórico-analítica mostra que,

com o movimento pós-moderno, ocorreram rupturas diversas, em particular na

delimitação das ciências e do conhecimento. Passa-se a ter uma visão de mundo de

alta complexidade, com transitividade de saberes, conectividade e transformações

na forma de comunicar (em particular com a internet).

Com efeito, tal movimento se verifica, também, na esfera do direito contratual,

pois essa visão de mundo acarretou negócios cada vez mais complexos, reunindo

modelos e objetos de contratos conhecidos a modelos e objetos desconhecidos. A

complexidade passou a integrar os contratos. A tecnologia e a economia trouxeram

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mudanças ao cenário contratual. Modelos largamente utilizados e conhecidos

passam a ser superados.

Ainda que não tenha o condão de guiar a prática, a teoria dos sistemas

proposta por Niklas Luhmann demonstra-se extremamente útil à tarefa de reduzir as

complexidades. Isso porque, no sistema jurídico contratual (em especial dos

contratos complexos), a diversidade de elementos faz com que seja necessário um

filtro para que tais elementos possam ser canalizados para suas funções devidas. À

luz de tal teoria, os sistemas especializados (jurídico, econômico, político) se

diferenciam entre si e com o ambiente (sociedade), e a forma como se interagem é

pela comunicação, pela linguagem.

Além disso, o direito é um fenômeno comunicacional, conforme preceitua

Robles (2005a), às vezes é até parecido com os jogos, pois para conviver na

sociedade complexa que impõe incertezas e inseguranças saber lidar com riscos

passa a ser essencial. Entendida como texto escrito e texto não escrito, a linguagem

será fundamental para interpretar os contratos complexos. Com estes fogem à

tipicidade, a situação concreta será a base para sua interpretação.

Partindo-se do entendimento da complexidade como fenômeno inerente à

sociedade contemporânea, passa-se, no capítulo 2, a caracterizar o contrato

complexo, pois não basta identificá-lo como oposição ao contrato simples. A

compreensão de vertentes diversas da complexidade contratual indica que a

caracterização de uma relação contratual como complexa pode advir de formas

variadas. Por esse motivo, aborda-se a questão temporal como característica da

complexidade, bem como a complexidade subjetiva, volitiva, normativa e objetiva —

nesta última, analisa-se a complexidade econômica e tecnológica. Tais

características devem ser vistas de forma dinâmica e aberta, pois na grande parte

das vezes estão inter-relacionadas. Contratos objetivamente complexos são

atípicos, pois (em razão de sua combinação e /ou fusão de elementos contratuais

típicos e/ou atípicos) não são regrados por lei que os tipifique. Nesse sentido, trata-

se da tipicidade e atipicidade, de ter uma visão mais fundamentada dos efeitos dos

contratos complexos como contratos atípicos.

Convém antecipar que as relações contratuais complexas devem ser vistas

como um sistema em razão de sua diversidade de elementos que buscam se

organizar para atender a sua finalidade contratual. Tais relações contratuais

complexas atraem outros contratos, que a eles se coligam sem integrar o mesmo

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programa contratual. São os contratos coligados. Eis por que o capítulo 2 aborda,

numa breve visão, os contratos coligados. A interpretação dos contratos complexos

requer analisar se existem contratos a ele coligados e quais os possíveis efeitos de

tal coligação. Cabe frisar que este trabalho tem por objetivo principal a interpretação

dos contratos complexos; a visão dos contratos coligados se faz necessária como

integrante da proposta de interpretação, pois, na prática, existem situações diversas

em que contratos complexos se coligam a outros contratos (complexos ou não).

Igualmente, existem situações em que a distinção entre contratos complexos e

coligados não se faz de forma automática. Tendo em vista que se busca demonstrar

a relevância da situação concreta para a interpretação dos contratos complexos, a

caracterização destes (incluindo a visão acerca dos coligados) vem acompanhada

de exemplos para contextualizar tais contratos.

O capítulo 3 tem como objetivo estabelecer premissas para a interpretação

dos contratos complexos e dos contratos a eles coligados. Tais premissas são: (i)

indicar quem são os intérpretes do contrato complexo; (ii) a interpretação dos

contratos complexos não deve seguir um padrão hierárquico estático; (iii) as

cláusulas gerais de boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do equilíbrio

contratual devem ser vistas à luz da complexidade aplicadas a tais contratos; (iv) a

causa concreta é determinante para a interpretação dos contratos complexos; (v) as

lacunas nos contratos complexos decorrem de sua essência; (vi) a distinção dos

contratos complexos e dos coligados deve ser efetuada de forma dinâmica; (vii)

apenas o caso concreto revelará o efetivo conteúdo do programa contratual, com

grande relevância à linguagem contratual (que abarca todas as formas de

comunicação).

Com tais premissas estabelecidas, o capítulo 4 tem com objetivo tratar da

interpretação dos contratos complexos. Demonstra-se que estes, como expressão

da liberdade contratual e da sociedade contemporânea, são sistemas que trazem

em si, ainda que de forma indireta, a sua própria regra de interpretação; ou seja, é

do próprio sistema que se extrai como ele será interpretado em caso de conflitos.

Extrai-se uma metalinguagem: a contratualidade de caráter normativo, que aqui se

denomina metacontratualidade. Embora seja uma norma individual e concreta,

considera-se que o contrato sempre poderá sofrer novas incidências e concreções

até alcançar todo o seu teor de juridicidade, até cumprir todas as obrigações e

prestações dele advindas. Nos contratos complexos, a capacidade de se

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concretizarem e se individualizarem cada vez mais e com mais diversidade é maior,

pois é composto de mais elementos que os não complexos. Suas particularidades

terão de ser catalogadas.

Conforme a proposta apresentada no capítulo 4, a catalogação dos elementos

dos contratos complexos será efetuada por meio de pautas (que não têm o condão

de exaurir toda a situação complexa), com a finalidade de auxiliar a reconstituição da

relação contratual complexa. Tais pautas são divididas em dois momentos: o da

celebração do contrato e o da sua operação, na qual a efetiva participação dos

intérpretes-operadores fará com que possam ser criadas normas concretas. A

divisão temporal auxiliará a visualizar o que foi pactuado (observando-se eventuais

patologias na gênese da relação contratual) e como a relação complexa de fato

ocorreu (a realidade contratual complexa e suas vicissitudes). Isso permite delinear

os limites da controvérsia.

Após o preenchimento de tais pautas, será necessário alocar todos os

elementos em suas funções, indicadas pela causa concreta (tida como uma cláusula

geral), para que então tais elementos passem pelo filtro (que é um vetor de

concreção) das circunstâncias do caso, aplicando-se as normas cogentes

eventualmente incidentes e efetuando-se as ponderações pertinentes por meio das

cláusulas gerais da boa-fé, da função social e do equilíbrio contratual.

O sistema contratual complexo faz surgir um novo circuito de produção do

direito — conforme expressão utilizada por Rodotà (2008) — que, no âmbito da

autonomia privada, pretende prever (também) como os conflitos serão dirimidos,

dilatando-se as regras para sua resolução interna (pelas partes). Entretanto, nem

sempre é possível a autocomposição sem a interferência de um órgão julgador.

Nessa esteira, o capítulo 5 avalia qual seria a via a ser eleita para a decisão de

conflitos decorrentes de contratos complexos com fundamento no método de

interpretação proposto.

A análise de casos de contratos complexos julgados pelo Superior Tribunal de

Justiça mostra que o exame do caso concreto na forma como proposta encontra

dificuldades na esfera judicial; seja em razão da dificuldade em tratar um contrato

complexo como tal, da atipicidade somada à diversidade de elementos que

importam numa ausência de regramento tipificado, de todas as dificuldades que se

fazem presentes no processo judicial pátrio (tempo diferido para as decisões,

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atolamento de processos, ausência de suporte técnico para lides complexas), seja

em razão das súmulas 5 e 7 do referido tribunal.

Por prescindir da análise da situação concreta — requerendo disponibilidade,

conhecimento específico, sigilo em muitas situações, decisões em tempo razoável,

dentre outros fatores —, a interpretação dos contratos complexos indica que a

arbitragem é a melhor via para solução dos conflitos deles derivados. O que restará

demonstrado é que a interpretação dos contratos complexos e dos contratos a eles

coligados revela-se como mais uma face da complexidade da sociedade

contemporânea que requer analisar a situação concreta, com todas as suas

particularidades, mediante filtros específicos.

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1 O DIREITO NA SOCIEDADE COMPLEXA A complexidade permeia a vida na sociedade contemporânea. Nas atividades

empresariais, percebe-se, há algum tempo, que os negócios jurídicos passam a ser

não só cada vez mais complexos — com estruturas requintadas e intrincadas —,

como também suscetíveis a mais riscos.1 Nessa lógica, o contrato complexo envolve

pluralidades de objeto, de partes e de regras normativas, dentre outras

características. Trata-se do contrato que não pode ser considerado como simples

e/ou tipificado. Há incidência de regramentos diversos (legais, sociais, particulares),

que se combinam e até se fundem em determinadas situações; também há a

possibilidade de coligar tais contratos a outros (simples ou complexos). A pluralidade

de elementos acarreta a ideia de sistema contratual para tratar dos contratos

complexos. Portanto, faz-se primordial entender por que interpretar tais contratos

complexos requer recursos mais requintados e foco maior na situação concreta.

Com efeito, a fim de apresentar um método de interpretação dos contratos

complexos — fruto da sociedade contemporânea —, convém fazer uma síntese

histórica para demonstrar como a pluralidade e a diversidade, que impõem a

complexidade, passaram a ser entendidas pela humanidade. Dos tempos imemoriais

à contemporaneidade, chegar a tais ideias levou séculos de reflexão de várias

vertentes. Assim, as muitas discussões que ocorreram não podem ser descartadas

quando se trata de interpretar contratos complexos.

O contrato, como negócio jurídico patrimonial que é a expressão da

autonomia privada, reflete um grande passo na evolução da humanidade; ou seja,

reflete a autodeterminação, o autorregramento, o atributo de exercer a liberdade

negocial.2 Nos contratos complexos, em que a atipicidade incide com mais força, há

uma tendência a ampliar os limites de tal liberdade negocial. Tais contratos partem

de modelos não pré-concebidos (ao menos não totalmente), pois podem resultar da

fusão ou combinação de modelos diversos existentes, assim como da fusão ou

combinação de modelos existentes com inexistentes (legal e socialmente); lidam

1 Cf. Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 123). 2 Fukuyama (1996, p. 238) esclarece que “[...] o desenvolvimento de instituições como direitos de propriedade, contrato e um sistema estável de direito comercial foi decisivo para a evolução do Ocidente. Essas instituições legais serviram de substituto da confiança que existia naturalmente entre famílias e grupos de parentes e constitui uma estrutura na qual estranhos puderam interagir em joint ventures de negócios ou no mercado”.

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com a possibilidade de encadear contratos, usam esquemas econômicos inovadores

e podem se valer de formas de comunicação que poderiam ser impensáveis há

pouco tempo.

Entretanto, a ideia de relações contratuais — em especial as complexas, sem

conflitos — ainda é utópica (e talvez sempre o será). Conflitos requerem decisões; e

decisões, para o Direito, prescindem da interpretação. Portanto, a interpretação dos

contratos complexos supõe compreender que a sociedade atual é complexa.

1.1 Da modernidade à sociedade complexa

Embora permeie obrigatoriamente a reflexão e o discurso contemporâneo, a

temática da complexidade no tocante ao conhecimento, à existência humana e às

relações sociais, econômicas, políticas e jurídicas é problema antigo na história do

pensamento humano. Não por acaso, pode ser entendida como um grande tema de

reflexão da civilização ocidental. Indagações e posições tomadas entre a unidade —

representada pelos universais — e a diferenciação — representada pelos singulares

— como fator determinante da complexidade — apresentada, inclusive, como

subtítulo da obra de Niklas Luhmann (1998) — remontam ao posicionamento de

Sócrates ao defender, perante os sofistas, que o objetivo do conhecimento é o que

existe de comum, universal em todos os indivíduos de um grupo, e não o que

distingue, singulariza cada um deles. Essa questão permeou a Idade Média nos

embates em torno do realismo e do nominalismo (ABBAGNANO, 2000b) e mostrou

ser constante na evolução e diferenciação do conhecimento.

Embora uma análise histórica do pensamento ocidental escape ao escopo

deste estudo, considerar o movimento pendular sobre a oscilação em posições

extremas — o universal e o singular, o geral e o específico — na construção da

cultura ocidental pela filosofia e seus desdobramentos na epistemologia é

necessário porque o direito é entendido aqui como bem cultural (REALE, 1994)

construído historicamente, ou seja, sob influência dessas oscilações. Tal

consideração permite vislumbrar com mais clareza as proposições de Luhmann — e

sua influência no pensamento de Robles (2005a) e de toda doutrina jurídica

lastreada no direito como discurso e linguagem — e perceber a importância dessa

relação dialógica entre o universal e o singular na seara jurídica. Seara da qual se

destacam os contratos complexos como objeto de interpretação, pois não pode o

enunciado normativo ter outro atributo que não o de ser generalizante nem pode, em

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contraposição, a aplicação do direito ser outra coisa senão que singular e específica

ao caso em questão. No âmbito do saber jurídico, a aplicação do direito é sempre

uma atualização da histórica relação antagônica entre o universal e o singular que,

embora não seja arbitrária — porque parametrizada pela isonomia e segurança

jurídica —, há que ser levada a termo pela interpretação, pela hermenêutica.

A compreensão do processo de complexificação da sociedade humana até o

estágio contemporâneo pode ser empreendida segundo olhares e metodologias

variados. Tal variação — de posturas em sentido amplo — é fruto de oscilações

entre posturas pró-universais e posturas pró-singulares. Enquanto as primeiras

caracterizam as análises de cunho metafísico — portanto, postulam uma

compreensão que parte do ser mesmo, do ser em si —, as segundas determinam

que toda compreensão tem de partir do existente, do observável, do particular.

Numa simplificação dessas posturas, isso significa que a pergunta basilar para

posturas pró-singulares é “O que é o homem?” e, para posturas pró-universais,

“Quem é este homem?”. Ainda que aparentemente sutis, essas distinções

determinam conceituações e compreensões necessariamente diversas.

Apesar da não ser possível demarcar, de forma precisa, os momentos de

trânsito do pensamento e do conhecimento humano, pode-se afirmar que o ingresso

na modernidade denota a ruptura com a ideia da verdade revelada mediante a fé.

Atribui-se a Guilherme de Occam (1285–1349) o codinome de “a Navalha”, por ser

considerado a última figura da escolástica e simultaneamente a primeira figura da

Idade Moderna (ABBAGNANO, 1979, p. 143), por ter colocado fim ao pensamento

medieval para estabelecer o marco que definiria o pensamento moderno: a

racionalidade, cuja supremacia se desenvolve aos poucos e de forma não uniforme.

Com tal feito, instala-se, definitivamente, a supremacia da razão (e não da fé) para o

conhecimento acerca do mundo e do homem, tornando a experiência, a investigação

experimental e demonstração, proposta por Duns Escoto (1266–1300), como

fundamento e recurso da racionalidade.3

3 Tais ideias têm suas reminiscências nas tentativas de rompimento com a Escolástica promovidos por Abelardo (1079–1142) com sua afirmação do valor do humano na investigação, passando por Duns Escoto (1266–1308) em seu posicionamento em favor de uma ciência fundamentada exclusivamente na demonstração, no procedimento crítico e analítico, determinando uma releitura do aristotelismo empregado por Tomás de Aquino.

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Como marco histórico do pensamento ocidental, essa ruptura tem como ponto

decisivo o cogito ergo sum, de Descartes4 (1596–1650), para quem o conceito de

indivíduo — um eu numa relação consigo mesmo — cristaliza-se de vez,

determinando a supremacia do sujeito no conhecimento e na relação de domínio

sobre o mundo natural (ABBAGNANO, 2000a). Descartes lançou as bases do

desenvolvimento, ainda que não linear, de uma racionalidade científica e tecnológica

de reflexos perceptíveis no presente.

O pensamento cartesiano é emblemático quanto a priorizar a autonomia da

razão e estabelecer técnicas do exercício da racionalidade em um método, baseado

na ordem sucessiva entre ideias claras e distintas, que garanta o conhecimento da

verdade e conserve uma resistência nas posições metafísicas por considerar a

razão como um a priori do sujeito — ou seja, ainda ligada a um conceito universal do

sujeito. Na figura de Descartes, de Hobbes (1588–1679), de Espinosa (1632–1677)

e de Leibniz (1646–1716), o século XVII é marcado pelo triunfo da razão, cuja

delimitação será dada pelo iluminismo, no século XVIII; isto é, pela “[...] rigorosa

autolimitação da razão nos limites da experiência e [...] é caracterizado pela

possibilidade, que se atribui à razão, de investigar todo o aspecto ou domínio que se

contenha dentro de tais limites” (ABBAGNANO, 2000a, p. 8). No iluminismo inglês —

do pensamento de Locke (1632–1704)—, fundamentou-se o iluminismo francês, que

atingiu seu expoente no enciclopedismo e nas mudanças que esse movimento

provocou na dimensão política.

Por exemplo, o pensamento de Montesquieu (1689–1757) e sua proposição

do modelo tripartite do poder, presente em O espírito das leis, fazem-se presentes

até os dias de hoje. Com suas implicações políticas, sociais, econômicas e jurídicas,

a Revolução Francesa encontra seu alicerce filosófico no pensamento de

Montesquieu (1689–1755), Voltaire (1694–1778), Diderot (1713–84) e D’Alembert

(1717–83). Também se fazem presente no desdobramento desse momento

revolucionário com Napoleão Bonaparte e as implicações do iluminismo na seara do

Direito, trazendo os princípios da racionalidade, do modelo de uma ciência

demonstrativa (NANNI, 2014) e da universalidade da verdade no Código

Napoleônico.

4 Conceito desenvolvido como solução da dúvida metodológica (DESCARTES).

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Num quadro em que é levada ao extremo uma racionalidade calcada no

cientificismo, no princípio de causalidade e no método demonstrativo — originários

da física de Isaac Newton (1643–1727) e assumidos pelo iluminismo —, movimentos

de oposição surgem no âmbito do conhecimento e da gnoseologia; seus

representantes principais foram Berkeley (1685–1753) e David Hume (1711–76). A

crítica definitiva ao extremismo iluminista, porém, será feita pela intervenção de Kant

(1724–1804). Em seu pensamento filosófico, “[...] a razão humana, levada ante o

tribunal de si própria, delimita de modo autónomo os seus confins e as suas

possibilidades efectivas” (ABBAGNANO, 2000a, p. 94).

Em Crítica da razão pura, de 1781, ele não só estabelece as condições do

conhecimento, alicerçado nas relações entre sujeito e objeto, mas também — e

sobretudo — delimita o campo do que é possível ser conhecido racionalmente — o

fenômeno. Este, porém, não é o delimitado pelos limites da sensibilidade; mesmo

que estejam ausentes aspectos sensórios, é possível conhecer, dentro dos limites

da razão humana, pois há objetos próprios do entendimento distintos dos da

sensibilidade. A profundidade do olhar de Kant acerca da razão e da ética (em

Crítica da razão prática) e sua doutrina transcendental do método fazem de sua

reflexão filosófica o marco referencial do pensamento moderno. Kant não rompe

com as bases do pensamento moderno — obtenção da verdade e universalidade

dos conceitos obtidos pela racionalidade; ele as aprimora. Sua filosofia crítica

objetiva estabelece condições efetivas de obter verdades universais e necessárias.

Essas bases — verdade e universalidade — foram questionadas pelo que se

convencionou chamar de pensamento pós-moderno. De certa forma, os

desdobramentos pós-kantianos jamais deixam de ser referentes à crítica proposta

por ele, notadamente com relação aos limites da razão (aceitando-a, negando-a ou

adaptando-a). É nesse sentido que se pode compreender o movimento (filosófico,

literário e artístico) do romantismo e idealismo alemães, do fim do século XVIII e nos

primeiros decênios do século XIX e cuja característica, apoiada numa retomada do

sentimento, é uma identificação da razão ou com o Eu infinito em Fichte (1762–

1814), ou com o Absoluto em Schelling (1775–1854) e com a Razão autoconsciente

em Hegel (1770–1831) (ABBAGNANO, 2000b). A visão hegeliana de “[...] espírito

que se manifesta e se realiza num mundo existente — isto é, na presencialidade, no

facto, na realidade histórica — é o espírito do mundo que encarna nos espíritos dos

povos que se sucedem na vanguarda da história” (ABBAGNANO, 2000b, p. 110),

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transforma-se em tema relevante em torno do qual posicionamentos diversos,

inclusive antagônicos entre si, marcam os embates no campo da história e da cultura

no tocante a compreender a dinâmica social.

Na inversão da dialética hegeliana, tanto o pensamento de Marx (1818–83) e

Engels (1820–95) — a análise, pelo método do materialismo histórico dialético, de

estruturas e conflitos de interesses e classes nas relações econômicas que teve

grandes reflexos filosóficos, geopolíticos e econômicos no século XX — quanto o

pensamento, na seara do direito, de Savigny (1779–1861) — suas considerações

sobre a historicidade do direito, o que viabilizaria, no Brasil, o culturalismo de Tobias

Barreto (1839–89) — têm em comum a historicidade e a cultura como ponto de

partida para indagar e observar o fenômeno social; mas sem desvincular da

racionalidade e do conceito de causalidade, caros ao pensamento moderno.

Embora a abordagem do pensamento moderno seja muito sucinta aqui,

convém dizer que este se refere a questões e desdobramentos do pensamento e da

ciência no século XIX e princípio do século XX, marcados por um fervilhamento de

ideias, inventos e movimentos artísticos, pela industrialização e pelas descobertas

científicas. São fatores determinantes para compreender a exaustão e a crise da

racionalidade, observável a partir das décadas de 1950 e 60, quando começa a se

engendrar o pós-moderno. Do século XIX ao XX, movimentos filosóficos como o

positivismo, o historicismo, o pragmatismo e o estruturalismo, por exemplo, agitaram

o cenário acadêmico, tanto quanto as obras de Darwin — vide Origem das espécies

(1859) — e os reflexos da psicanálise de Freud (1856–1939) — cujas teorias acerca

do inconsciente colocaram em xeque as luzes e a exclusiva positividade da razão

humana: baluartes do pensamento moderno.

Traduzido pelo desenvolvimento econômico, técnico e industrial, o sucesso

obtido pelo avanço das ciências naturais e experimentais provocou uma crise nas

ciências das humanidades e em todas as áreas de pesquisa não empíricas, tidas,

então, como carentes de cientificidade e objetividade. Contudo, a crise da física de

Newton (1643–1727) — com o pensamento de Albert Einstein (1879–1955) e as

questões levantadas pelo Círculo de Viena (1922–1936), em especial os embates

entre Carnap (1891–1970) e Karl Popper (1902–94) — começou a abalar a

supremacia desse conceito de cientificidade guiado pelas ciências naturais e

experimentais. Nas áreas das ciências sociais, a Escola Crítica de Frankfurt (1922),

em sua Teoria Crítica fundada numa conceituação heterodoxa do marxismo e

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considerando as contribuições da psicanálise, lançou as bases de uma indagação

acerca da emancipação do homem, da indústria cultural e da cultura de massa as

quais se refletem no presente.

Entretanto há que se considerar que o maior esgotamento do conceito de

ciência que, legitimada pelo êxito técnico, pela metodologia e pela objetividade

arrogava, porque isenta de juízos de valor, sua supremacia de racionalidade e

cientificidade em oposição às ciências sociais e às humanidades, fora causado pelos

trágicos acontecimentos da segunda guerra mundial. O fim da guerra expôs de

maneira inconteste, a negatividade também presente na cientificidade e na

racionalidade, quer seja nos horrores do holocausto e dos experimentos médico-

científicos lá desenvolvidos, quer seja pela hecatombe de Hiroshima e Nagasaki,

tornando claro os resultados de uma racionalidade isenta de valores, chegara ao fim

o mito da neutralidade do conhecimento. Se, por um lado, o fim da guerra

determinou uma nova maneira para as soluções de eventuais conflitos com a

fundação, em 24 de outubro de 1945, da Organização das Nações Unidas (ONU), e

um novo olhar sobre a humanidade, com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, em 10 de dezembro de 1948 (com as devidas implicações nos

ordenamentos jurídicos dos países signatários), é bem verdade que a polarização,

determinada pela Guerra Fria (1947–53), entre os sistemas capitalista e socialista,

deixaram grandes marcas na segunda metade do século XX. À parte as discussões

ideológicas, a polarização entre Estados Unidos e a então União Soviética alimentou

pesquisas e avanços tecnológicos na disputa pela conquista da Lua; embora não

tenha trazido resultados imediatos e de relevância econômica ou científica na

própria Lua, o “pequeno passo para o homem, um gigantesco salto para a

humanidade” — diria Neil Armstrong, que pisou na Lua em 20 de julho de 1969 —,

trouxe aporte inegável de conhecimento e tecnologia correlata, viabilizadoras dessa

empreitada, nas mais diversas áreas, notadamente na de processamento de dados

e de comunicação, fundamentais para o exponencial avanço das tecnologias de

ponta e da conexão em rede global do mundo contemporâneo.

Essa transitividade dos saberes, essa possibilidade de que conhecimentos

adquiridos e desenvolvidos em dada área de pesquisa fossem aplicados em outra

de natureza distinta demonstram uma característica-chave do trânsito da

modernidade para a pós-modernidade: a ruptura da delimitação das ciências e do

conhecimento, a ruptura com a própria indagação e concepção acerca do

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conhecimento (LYOTARD, 1988, p. 5). Exemplifica isso a presença da robótica em

novas formas de produção industrial e em equipamentos cirúrgicos menos invasivos,

assim como o sistema de posicionamento global (tecnologia de localização por

satélite que pode atingir fins bélicos, mas também pode servir ao controle de trânsito

ou em jogos eletrônicos e inumeráveis outros fins).

A partir da década de 60, observa-se que as estruturas de autoridade e

legitimação de poderes e saberes começam a ser abaladas. O movimento estudantil

de Paris em 1968, a contracultura e o feminismo, bem como a convocação do

Concílio Vaticano II, estão entre os muitos sinais do “[...] enfraquecimento da

autoridade cultural do Ocidente e de suas tradições políticas e intelectuais (que

determinou a) abertura do cenário político mundial às diferenças culturais e étnicas”

(CONNOR, 1992, p. 16). Abalos e pressões sociais se fizeram sentir nos polos

capitalista e socialista: este teve de se abrir ao mercado internacional na busca de

sobrevivência econômica; aquele teve de rever o liberalismo extremo para suprir as

demandas sociais. Além disso, uma grande transição democrática pôs fim a regimes

militares na América Latina: em 1982, na Bolívia; em 1983, na Argentina; em 1984,

no Uruguai; em 1985, no Brasil; em 1988, no Chile. Em 1989, a queda do muro que

dividia Berlim, na Alemanha, selaria de vez o fim de uma era de polarização político-

ideológica.

A consolidação principal de um mundo pós-moderno de alta complexidade,

transitividade de saberes, conectividade intensa, transformação espaço-temporal

da comunicação — função específica do sistema social, no dizer de Luhmann

(1998) —, ocorre de forma determinante a partir dos anos 1990, com a world wide

web (literalmente, rede mundial), que viabilizou e viabiliza a informação global,

constante e continuamente, com mais rápida e mais eficiência. O pós-modernismo

revela-se como mais que um movimento artístico-filosófico, podendo ser mais bem

compreendido como posicionamento, a partir da segunda metade do século XX,

ante os movimentos do pensamento ocidental anteriores. Nesse sentido, é que a

indagação acerca dele não é tanto o que ele significa, mas o que ele faz (CONNOR,

1992).

Com efeito, o que, de fato e precipuamente, faz o pós-moderno é manifestar-

se “[...] na multiplicação de centros de poder e de atividade e na dissolução de toda

espécie de narrativa totalizante que afirme governar todo o complexo campo da

atividade e da representação sociais” (CONNOR, 1992, p. 16). Nessa medida, por

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romper com a verdade e a universalidade — baluartes do pensamento moderno —,

traz para a sociedade contemporânea não apenas a presença dos paradoxos até

então ocultados no consenso do saber acadêmico e centralizado, mas também — e

sobretudo — a coexistência necessária com a instabilidade e a incerteza.5

A priorização da informação como fonte de observação e poder coloca em

suspenso as questões acerca do conhecimento que movimentaram o pensamento

moderno. As relações entre sujeito e objeto perdem sua significância; a

intersubjetividade e as maneiras de organizar, estocar e distribuir os saberes pela

informação se tornam a maneira pós-moderna de se posicionar nos campos da

pesquisa, da economia, da política — numa palavra, de toda a sociedade.

A teoria da informação suplanta a teoria do conhecimento. A informação

digital sobrepuja os limites da espacialidade — porque a rede é global — e da

temporalidade — porque a comunicação é sincrônica. Com a velocidade das

tecnologias avançadas, a transitividade dos saberes viabiliza e determina, cada vez

mais, especificidades que, por determinarem o surgimento de sistemas, agregam

complexidade ao grande sistema social (LUHMANN, 1998)

Nessa linha, há que considerar a denominada globalização (ou a

mundialização) como fenômeno contemporâneo que põe em xeque a autoridade do

Estado. Ao discorrer sobre a globalização e o Judiciário, Faria (1996, p. 162) expõe

que

[...] acima de tudo, ao gerar formas de poder e influência novas e autônomas ela (a globalização) também pôs em xeque a centralidade e a exclusividade das estruturas jurídicas do Estado moderno, baseadas nos princípios da soberania e da territorialidade, no equilíbrio dos poderes, na distinção entre o público e o privado e na concepção do direito como um sistema lógico-formal de normas abstratas, genéricas, claras e precisas.

A mundialização é caracterizada pela globalização econômica cada vez maior

e estagnação das instituições e dos direitos. Colson (2013, p. 485) destaca os

seguintes aspectos: i) a existência de alargamentos geográfico, comercial e da

dependência dos movimentos financeiros decorrente das tecnologias da

5 Incerteza que fora imposta ao mundo contemporâneo quando se apercebeu da exaustão dos recursos naturais, das reais possibilidades catastróficas que a visão cartesiana de uma natureza à disposição do homem pode determinar e que levou a sociedade contemporânea a se preocupar com o meio ambiente e sua proteção, conservação e preservação.

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comunicação e informação; ii) a volta do direito da propriedade — diferentemente de

outrora, a elite patrimonial está na “Finança”, que tem poucas relações com a

economia real e contribui para a instabilidade geral; iii) o afastamento geral do

Estado; iv) o progresso técnico, o desenvolvimento das comunicações que aceleram

o afastamento estatal.

Essa digressão de tom histórico visa posicionar a relevância das relações

negociais que passaram a ser cada vez mais complexas, isto é, a gerar contratos

complexos, pois os modelos contratuais existentes deixam de suprir plenamente as

necessidades negociais da sociedade, que almeja formas de contratar utilizando

todas as informações e tecnologias disponíveis com o máximo de eficiência. A

liberdade de contratar, a liberdade acerca do conteúdo do contrato e a liberdade de

com quem contratar fundamentam a possibilidade da atipicidade dos contratos

complexos, que transitam no âmbito da autonomia privada.

A interpretação de tais contratos complexos (e cada vez mais complexos)

passa a ter uma relevância maior no meio jurídico, tendo em vista que em razão de

sua atipicidade, os mesmos não estão categorizados e a análise do contrato em

concreto, com todas as suas variáveis, com todas as características que a realidade

impõe, demonstra a necessidade de se compreender que a complexidade do

contrato decorre também da sociedade complexa contemporânea.

1.2 Sociedade complexa

Seja tomada em que sentido for, a complexidade é inegavelmente tanto a

condição quanto é contexto da existência humana, uma vez que seu oposto — a

simplicidade — jamais fora percebida ou encontrada tanto no mundo natural quanto

no universo interior (consciente ou inconsciente) do ser humano. Não há fenômeno

que não seja complexo. Não há percepção, compreensão, conceito, conhecimento

ou denominação do fenômeno observado que não sejam complexos. Foram séculos

de evolução, de embates entre filósofos para que a complexidade fosse

compreendida como inerente à humanidade. Foram abandonadas ideias arraigadas

relativas à divindade, a uma cientificidade que a tudo pode responder, reduzir,

simplificar.

A complexidade mantém uma relação íntima e dependente com a matriz de

toda existência: a multiplicidade; a contrario sensu, só uno, o não diverso, é simples;

porém, dele não pode o pensamento humano se ocupar sem, de fato, reduzi-lo.

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Essa relação paradoxal — a condição de que o simples, o uno, não pode ser

compreendido e conhecido pelo complexo, pelo múltiplo — é, a toda evidência, o

motor propulsor da fundamental atividade humana — a cultura — em sua função

basilar: a denominação; ou seja, a representação, a abstração, a significação, a

substituição do que não pode estar presente pela mediação do símbolo. Mas não

sem se defrontar com novo paradoxo: por ser polissêmico, o símbolo é complexo.

Se for correto supor que a complexidade se liga à multiplicidade e à

diversidade e que é uma constante em tudo que é manifesto e existente, então o

seria vê-la como fator constante no mundo natural e no universo cultural. Noutros

termos, ainda que de formas e metodologias variadas se possa tentar compreender

e analisar o fenômeno social, não é possível imaginar uma sociedade que não seja

complexa. O que se pode indagar ou inquirir é sobre o quantum de complexidade

que dada sociedade apresenta. Portanto, a questão que aqui se impõe é refletir

sobre o grau de complexidade que a sociedade contemporânea apresenta e como

nível de complexidade se desdobra sobre o sistema jurídico, em particular no âmbito

negocial dos contratos complexos.

Fazer tal reflexão requer, preliminarmente, estabelecer um critério de

abordagem da complexidade. Tal abordagem será efetuada com base em conceitos

preconizados por Niklas Luhmann ao tratar da teoria dos sistemas. Luhmann (2016,

p. 32) — cabe ressaltar — adverte que sua teoria não tem o condão de guiar a

prática; sua pretensão é fazer uma descrição do “[...] sistema jurídico como um

sistema que se auto-observa e se descreve, e, portanto, desenvolve suas próprias

teorias, procedendo de modo ‘construtivista’, ou seja, sem qualquer tentativa de

representar o mundo exterior no sistema”.

À luz das ideias desse teórico, este trabalho busca abordar a forma de tratar a

complexidade, as escolhas (seletividade) dentre tantas possibilidades, o contingente

que não foi objeto de escolha (contingência) e a forma como o sistema jurídico atua

no (grande) sistema social (sociedade) e como se relaciona com os sistemas

econômico e político. Ainda que realizada de forma sucinta, tal abordagem visa

oferecer suportes tanto à caracterização do contrato complexo como um sistema (ou

subsistema) inserido no sistema jurídico quanto ao estabelecimento de premissas de

sua interpretação.

A complexidade significa o excesso de possibilidades de comunicação na

sociedade contemporânea, o que leva a necessidade de uma escolha: selecionar

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dada hipótese em detrimento de outras. A seletividade se refere à necessidade de

promover escolhas: quanto mais complexa a situação, maior é a necessidade de

mecanismos de seleções. Ao abordar a complexidade,6 Luhmann (1998, p. 26–7)

destaca duas questões.

Uma questão é a quantidade de elementos de dado sistema e as relações

entre eles; nesse caso, “[...] toda operação do sistema que estabelece uma relação

tem que eleger uma entre muitas — a complexidade impõe a seleção [...]”.7 Define-

se, portanto, uma dimensão da complexidade, que é a complexidade das operações

de seleção. A outra questão se relaciona com a anterior, ou seja, é relativa ao

problema da observação. Visto que o mero conhecimento de um elemento de dado

sistema não conduz, necessariamente, ao conhecimento de todo o sistema sem

considerar as informações adicionais de seus outros elementos, então a seleção de

quais elementos observar e quais relações entre eles considerar é fator decisivo.

Nesse caso, não se poderia concluir de outra forma: “[...] ambas as noções de

complexidade [...] apontam uma seletividade forçosa. A complexidade significa que

toda operação é uma seleção”.8

Nessa perspectiva de uma seletividade forçosa como condição da

possibilidade de operação e de observação, o conceito de sentido no pensamento

de Luhmann se estabelece como forma de realização, de experienciação dessa

seletividade. Trata-se de algo além de como o compreende a fenomenologia, na

medida em que, para ele, o sentido pressupõe sistemas dinâmicos e autopoiéticos.

Tais sistemas se caracterizam pela instabilidade dos elementos constitutivos dos

próprios sistemas, que não são unidades estáveis, por isso mesmo demandam

organização entre a atualidade — que é certa e instável — e a potencialidade — que

é incerta porém estável.

No tocante à interpretação de contratos complexos, tal pensamento deixa

entrever um ponto de extrema importância, a ser destacado nos capítulos seguintes.

Refere-se a compreender a complexidade segundo os elementos que compõem o

contrato (complexo), a forma como se organizam e a relevância da escolha de quais

6 Luhmann abordou a complexidade ao se desdobrar sobre a temática das distinções entre ciências naturais e ciências humanas. 7 No original em español se lê: “toda operación del sistema que establece una relación tiene que elegir una entre muchas — la complejidad impone la selección”, 8 No original em español se lê: “ambas nociones de complejidad [...] apuntan a una selectividad forzosa. La complejidad significa que toda operación es una selección”.

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elementos (sob quais filtros) observar ao interpretá-los (para que a seleção dos

elementos não descaracterize o contrato em sua complexidade).

A concepção do que seja sistema e do que seja autopoiesis são cruciais para

a compreensão do pensamento de Luhmann (1998) e suas influências sobre a

sociologia e sobre o direito, em especial no âmbito dos contratos complexos. Com

base nas indagações acerca das diferenças entre sistema e entorno (ambiente),

Luhmann parte do que, de fato, determina essa diferenciação: a formação do limite.9

Dessa forma, a questão fundamental é saber como é determinado esse limite. Como

fator determinante do limite, ele elege o conceito de produção como poiesis, como

um fazer,10 e justifica tal escolha porque o fazer pressupõe a distinção, a

especialização, segundo a qual há que ser realizada uma obra. Ainda que “[...] o

produtor não possa produzir por si mesmo todas as causas necessárias para isso”11

(p. 55), a obra produzida é o sistema mesmo, é a diferenciação entre sistema e

entorno (ambiente). Portanto, o que determina a especificidade de um sistema é o

que ele produz, e não como ele se constitui. Mais que isso, cada sistema produz de

forma específica e não poderia ser efetivada tal obra por nenhum outro sistema.

Cada “fazer” é exclusivo de determinado sistema, que lhe atribui identidade por

especificidade.

Na sociedade contemporânea, existe um sistema de comunicação

especializada no desempenho de funções — políticas, jurídicas e econômicas —

que, também, são autopoiéticas. Estabilizam-se vários sistemas, dos quais se

destacam o sistema jurídico,12 o econômico e o político. O sistema se relaciona com

o entorno organizando e ordenando causas internas e externas na elaboração de

sua obra e “[...] pode usar as internas de maneira que resultem possibilidades

suficientes para a combinação de causas externas e internas”13 (p. 55). Isso significa

9 O limite “[…] marca la unidad de la forma, y por ello no puede ser localizado en ninguna de sus caras. El límite existe sólo como orden de cruzar — tanto de adentro hacia afuera como de afuera hacia adentro” (LUHMANN, 1998, p. 54) 10 Aqui, a ideia de fazer é distinta do conceito de práxis (ação). 11 No original em español se lê: “el productor no pueda producir por sí mismo todas las causas necesarias para ello”. 12 Para Luhmann (2016, p. 31), “[...] o ambiente do sistema jurídico interno à sociedade aparece como altamente complexo, e a consequência disso é o sistema jurídico fazer referência a si mesmo: a uma autonomia que lhe é própria, a limites autodeterminados, a um código próprio e a um filtro altamente seletivo, cuja ampliação, poderia pôr em risco o sistema ou mesmo dissolver o caráter determinável de suas estruturas”. 13 No original em espanhol se lê: “puede utilizar las internas de manera que resulten suficientes possibilidades para la combinación de causas externas e internas”.

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que, embora o sistema produza por especificidade, não está cognitivamente

fechado. Ele mantém relações com o entorno. Entretanto, a especificidade da obra

significa que o sistema está operativamente fechado. É nesse sentido que deve ser

entendida a autopoiesis, como conceito trazido da concepção tautológica de que

“nenhum sistema pode operar fora de seus limites”14 (p. 55). Portanto, no grande

sistema social, nenhum sistema ou subsistema pode tomar o lugar do outro.

Dadas a especificidade do fazer de cada sistema e a abertura cognitiva de

cada um para os demais sistemas (afinal, para cada sistema, os demais sistemas se

constituem como entorno, embora cada um, por sua especificidade, deva se manter

operativamente fechado, elaborando, dentro de sua identidade, as respostas às

questões provocadas pelo entorno), as implicações dessa abordagem trazem luz

nova para a compreensão da verdadeira dimensão da complexidade com que se lida

quando se pensa na sociedade contemporânea como grande sistema social.

Se for correto considerar que as questões relativas à complexidade — cabe

frisar — podem ser postas em duas dimensões complementares (relativas à

quantidade de elementos de dado sistema e aos problemas da observação das

relações desta grande quantidade de elementos, o sistema social, o grande sistema

cujos elementos são os sistemas que se formam não por arbitrariedade ou por

simples determinismo do ambiente, mas pela necessária especificidade dos fazeres

de cada sistema), então se torna evidente que o número e grau dessas relações

tendem a ter um crescimento exponencial porque os sistemas se inter-relacionam

cognitivamente e se especificam operativamente. Tal crescimento, inegavelmente, já

fora atingido na contemporaneidade. Por serem todos — e no todo — dinâmicos,

não se trata de avaliar a complexidade presente por juízo de valor atribuindo-lhes

conceitos de evolução ou desenvolvimento. Trata-se — isso sim — da densificação

por especificação necessária.

O que se quer dizer com isso é que, inseridos na dimensão temporal

(histórica) — afinal nenhum sistema pode operar fora de seu próprio limite —, as

provocações, os ruídos trazidos pelo entorno e pela dinamicidade interna e externa,

se não puderem encontrar solução/estabilidade em dado sistema, exigirão, por

especificação, o surgimento de outro sistema. Não por acaso, isso agrega cada vez

14 No original em espanhol se lê “ningún sistema puede operar fuera de sus limites”.

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mais complexidade ao já complexo, tanto pelo constante incremento do número de

sistemas quanto pelas probabilidades de inter-relações entre eles.

Essas inter-relações entre os sistemas que compõem o grande sistema social

determinam sua função específica, a poiesis do sistema social, isto é, a

comunicação — diria Luhmann. Se for correto ver a função de um sistema com o

próprio sistema, então a sociedade nada mais é do que um sistema autopoiético

cuja operação reprodutora é a comunicação (LUHMANN, 1998, p. 56); logo,

sociedade é um sistema comunicacional.

Os reflexos dessa constatação sobre a forma de pensar e analisar a

sociedade e todos os seus sistemas, incluindo-se o sistema jurídico, são imediatos,

em particular pelo corte epistemológico que provoca nas ciências sociais. Isso

porque, em tal perspectiva, a sociedade não é um conjunto de seres humanos,

tampouco as relações que se estabelecem entre eles. A sociedade “[...] é o sistema

que engloba todas as comunicações, aquele que se reproduz autopoieticamente mediante o

entrelaçamento recursivo de comunicações e produz comunicações sempre novas e

diferentes.” 15

Essa conceituação rompe com as visões apoiadas na racionalidade moderna,

calcadas no princípio da causalidade como fator de compreensão do processo

histórico e da complexificação da sociedade contemporânea. Dentro dessa teoria

dos sistemas, estabelece-se que é o evento comunicativo que abre e fecha o

sistema e que são exatamente esses eventos que geram bifurcações — de sim ou

de não — que determinam os passos a ser tomados; bifurcações a partir das quais

pode haver história (LUHMANN, 1998, p. 58).

Para que as aberturas do sistema promovam comunicações acerca do

entorno, porém não com o entorno, pelas provocações que este exerce sobre o

sistema, é preciso haver intermediação de algo que viabilize a organicidade do

grande sistema social, apesar do fechamento operativo dos sistemas e subsistemas

que o compõem. Luhmann resolve essa questão com o conceito de acoplamento

entre os sistemas e, ao fazê-lo resolve as questões relativas às relações entre

indivíduo e sociedade, entre consciência e comunicação. A estrutura funcional que

age como viabilizadora desse acoplamento entre os sistemas, garantindo até o

15 No original em español (p. 57) se lê: “es el sistema que engloba todas las comunicaciones, aquel que se reproduce autopoiéticamente mediante el entrelazamiento recursivo de las comunicaciones y produce comunicaciones siempre nuevas y distintas.”.

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distanciamento e a diferenciação entre consciência e comunicação, é, para

Luhmann, a linguagem. Segundo ele, diferentemente do que afirmavam os

linguistas, a linguagem não configura um sistema, mas sim um fator de acoplamento

(p. 60–1).

A despeito da profundidade das reflexões que essa temática suscita, o

relevante para a presente análise é considerar que a linguagem exerce papel duplo:

ela exerce a função de acoplamento entre sistemas — portanto exerce um papel de

inclusão cognitiva do entorno pelo sistema — e o faz de forma tal que, ao incluir

cognitivamente, determina uma exclusão operativa. Ao promover tal acoplamento, a

linguagem não exerce uma representação do mundo externo; antes, exerce uma

concentração, uma condensação do que de fato por ser trazido para o interno

enquanto suportável pelo sistema, inclusão e exclusão são ações sincrônicas da

linguagem.16

Exercido pela linguagem, esse processo de concentração da atenção, tanto

na consciência quanto na comunicação, faz dela o primordial foco de observação de

todo conhecimento que se queira produzir acerca dos sistemas e de suas relações

entre si. Como referencial teórico, essa questão joga luz nova sobre as linhas de

pensamento que se alicerçam na observação do sistema jurídico com base em sua

linguagem. Esta não se configura como mero recurso metodológico; antes,

configura-se como convicção, dentro da teoria sistêmica, de que todo sistema,

inclusive o jurídico, somente pode ser observado por sua função estruturante de

acoplamento, qual seja: a linguagem. Claro está que outras linhas jusfilosóficas

podem ocupar — e de fato se ocupam — do papel da linguagem no âmbito jurídico;

mas não o fazem necessariamente nessa lógica.

16 “A linguagem aumenta a irritabilidade da consciência através da comunicação e da sociedade por meio da consciência, que transforma os estados internos na linguagem e compreensão (ou falta de compreensão). Ao mesmo tempo, isso significa que outras fontes de irritação são excluídas do sistema da sociedade. Assim, a linguagem isola a sociedade de quase todos os eventos ambientais do tipo físico, químico ou que tomam a forma de vida, com exceção da irritação através dos impulsos da consciência” (LUHMANN, 1998, p. 61). No original em espanhol se lê: “El lenguaje aumenta la irritabilidad de la conciencia por medio de la comunicación y la de la sociedad por medio de la conciencia, la cual transforma los estados internos en lenguaje y en comprensión (o en falta de comprensión). Esto significa, al mismo tiempo, que otras fuentes de irritación son excluidas del sistema de la sociedad. Así, pues, el lenguaje aísla a la sociedad de casi todos los acontecimientos ambientales de tipo físico, químico o que adoptan la forma de vida, con la única excepción de la irritación a través de los impulsos de conciencia”.

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Ainda quanto à observação, convém considerar que o ambiente informa o

sistema, mas dele não participa (é conceito do sistema cognitivamente aberto e

operativamente fechado) e que, por outro lado, o sistema informa o ambiente (todos

os demais sistemas), mas dele não participa. Exatamente porque as ações, as

intervenções, sobre o ambiente são impossíveis, para que se mantenha constante a

distinção entre autorreferência e heterorreferência, ambiente e sistema,

preservando-se a especificidade operacional que caracteriza um sistema

autopoiético, é preciso que este se auto-observe. As implicações da necessária

auto-observação para que o sistema autopoiético se mantenha como tal são

inúmeras, tanto do ponto de vista epistemológico das ciências sociais quanto,

sobretudo, para a ciência do Direito na análise do sistema jurídico — nas relações

que este mantém com os demais sistemas.

Ante a especificidade do sistema jurídico de, ao manter sua autorreferência,

dispor sobre a licitude ou não das ações e funções que ocorrem nos demais

sistemas, a heterorreferência supõe mais que sustentar sua condição de sistema

autopoiético. Isso porque sua poiesis é qualificar o status das ações do ambiente e,

ainda que dele não possa participar (assim como não podem todos os sistemas com

relação aos outros), através de sua linguagem, ao dizer o direito, qualifica as ações

do ambiente pelo parâmetro da licitude, permitindo, alterando ou desconstituindo

essas ações.

Convém aqui o pensamento de Teubner (1989, p. 2), ao se referir à obra de

Luhmann; segundo ele,

[...] o Direito retira a sua própria validade dessa auto-referência pura, pela qual qualquer operação jurídica reenvia para o resultado de operações jurídicas. Significa isto que a validade do Direito não pode ser importada do exterior do sistema jurídico, mas apenas obtida a partir do seu interior.

Nesse sentido, a auto-observação no e do sistema jurídico adquire uma

densidade maior tendo em vista que, por sua linguagem autorreferenciada, ao

comunicar-se com o ambiente, deve fazê-lo, pelo menos, dentro dos princípios da

isonomia e da segurança jurídica. Por tal motivo, as ações de auto-observação do

sistema jurídico são, por excelência, próprias das situações concretas e, em

particular, efetuadas pelos órgãos julgadores (a jurisprudência) no exercício das

ações de interpretação e hermenêutica, isto é, de acoplamento entre o sistema

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jurídico e o ambiente; ações nas quais o sistema se abre cognitivamente ao

ambiente para apresentar soluções aos problemas ocorridos; soluções que deverão

ser dadas pelo sistema jurídico operativamente fechado.

Entretanto, para que possa ser processado autopoieticamente pelo sistema

jurídico, este promove uma seletividade pela redução da complexidade, cuja

estratégia é “[...] implementada de dois modos: deslocamento dos problemas

(transformar a complexidade do ambiente e seus problemas em complexidade e

problemas do sistema) e dupla seletividade (realizar escolhas e conectá-las)

(CAMPILONGO, 2011b, p. 21). O complicador dessa seletividade — observa o autor

— não é a seletividade; é o ocultamento das alternativas extraídas no processo

seletivo. Noutros termos, embora o sistema jurídico se abra cognitivamente ao

ambiente, ele o faz a partir de “[...] estruturas que definam o grau de complexidade

que pode ser compreendido, processado e reduzido no interior do sistema.

Estruturas que resistam às variações do ambiente e isolem as desilusões”

(CAMPILONGO, 2011b, p. 21).

É em tais estruturas — cuja tessitura do filtro determina reduções da

complexidade para que seja possível ser conhecidas pelo sistema — que se deve

fundamentar a reflexão sobre a ação interpretativa, sobre a função hermenêutica

numa visão sistêmica e dinâmica do direito (contratual). Isso porque — cabe frisar —,

a complexidade está ligada ao conceito de especificidade, segundo o qual nenhum

sistema pode ocupar operativamente o lugar do outro e no qual a sociedade é

entendida como o sistema que engloba todas as comunicações entre os sistemas.

Portanto, fica evidente o grau elevado de complexidade da sociedade

contemporânea. Mais que isso, pela lógica da especificidade funcional, nenhuma

pessoa — física ou jurídica — apresenta exclusividade sistêmica; isto é, os sujeitos

estão em tantos sistemas quanto sejam suas funções, suas poiesis; processam,

contínua e constantemente, inúmeras relações entre os sistemas dos quais

participa, das quais cada uma é de uma constituição sistêmica. É exponencial o

número de inter-relações, relações autorreferenciais e heterorreferenciais, as quais

determinam aberturas cognitivas e fechamentos operativos, gerando comunicações.

O grau de complexidade presente na sociedade contemporânea tem reflexos

no sistema negocial, pois é crescente o número de negócios jurídicos complexos,

nos quais há uma intensa participação de variados sistemas (especificidades). Neste

sentido, faz-se importante refletir acerca de como integrar estas diversas

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especificidades, ou ainda, como lidar com todas elas no caso concreto, para que a

necessária atividade de redução de complexidades (para que seja possível uma

solução de um conflito no caso concreto) não seja realizada de forma a ocultar

questões relevantes.

Com efeito, integram o mote desta pesquisa o repensar e a busca de

maneiras novas para que o acoplamento do sistema jurídico ao sistema econômico-

negocial ocorra respeitando-se o fechamento operativo daquele e buscando-se uma

expansão em sua abertura cognitiva para que, em sua seletividade, os ocultamentos

possam ser aclarados e as reduções de complexidade não sejam por demais

restritivas, de modo a dilatar as alternativas e possibilidades próprias de um

ambiente em transformação e complexificação constantes.

Nessa lógica de Luhmann, o contrato representa o acoplamento entre o

sistema econômico e o sistema jurídico; representa a concretude da liberdade

concedida ao particular de estabelecer negócios com seus pares, incrementando a

economia e repercutindo na sociedade. O contrato complexo representa um âmbito

maior: o particular não enquadra seu negócio nas categorias tipificadas no sistema

jurídico, utiliza a liberdade que o próprio sistema legitima para, em constante diálogo

com as diferentes áreas do conhecimento, ampliar as possibilidades de negócios, da

forma de negociar, do incremento da economia.

A complexidade do contrato é gerada tanto pelos elementos que formam o

objeto do contrato quanto na forma de observar tais elementos e negociar. Para

interpretar tal contrato, o sistema, também, torna-se mais complexo, pois terá de

empregar recursos a ser criados pelo próprio sistema, ainda que nem sempre

estejam nele descritos ou expressamente previstos. O contrato complexo implica

uma autopoiesis constante: seja por ter uma capacidade intensa de concretude em

razão de sua diversidade de elementos e sua aptidão (em razão, inclusive, de sua

atipicidade) de gerar normas particulares cada vez mais concretas, seja para sua

interpretação, que implicará uma análise prévia de todo o caso concreto para

verificar as normas incidentes — cogentes e particulares — estabelecidas no texto

do contrato ou advindas da relação estabelecida.

Tais temas serão tratados ao longo deste trabalho. Por ora cumpre destacar

que, em vista da atipicidade, do não pleno regramento legal e social dos contratos

complexos, a linguagem ganha ainda mais relevo no âmbito dos contratos

complexos e de sua interpretação. Na ausência de regra típica aplicável, a situação

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concreta será revelada e interpretada com base na linguagem estabelecida entre as

partes.

1.3 Direito como fenômeno comunicacional

Na esteira do pensamento de Luhmann, se a linguagem for o fator de

acoplamento entre os sistemas, então entender o sistema jurídico e o direito como

linguagem é o caminho que aqui se impõe. Nessa acepção do direito — como

fenômeno comunicacional — destaca-se o pensamento de Gregorio Robles, não

somente por afirmar ser o direito um texto, mas também — e sobretudo — por lançar

um olhar profundo sobre o papel das decisões jurídicas como atos de fala

constitutivos do sistema jurídico.

Ao tratar da teoria comunicacional do direito — a qual o concebe como

sistema de comunicação, como texto jurídico organizador e regulador da sociedade

que possibilita a convivência humana por meio da regulação de suas ações —,

Robles (2005a) ensina que, sem dúvida, texto é o texto escrito, assim como o não

escrito: manifestado oralmente e suscetível de transcrição. Também é considerada

como texto a linguagem simbólica — dos sinais — verbalizável por quem domina o

significado de seus símbolos. Há ainda obras humanas resultantes de uma ação

criativa que transmitem uma mensagem, ainda que subjetiva; daí que podem se

tomadas como textos. Tendo em vista a ideia básica da hermenêutica de Robles —

texto não é apenas o escrito, mas também a realidade suscetível de interpretação —

, pode-se afirmar que a realidade humana — a realidade social — é um texto se

admitir ser vertida em linguagem. Nesse caso, apresenta-se como algo que aceita

interpretação para poder ser compreendido.

Ao esclarecer as bases e os fundamentos da teoria comunicacional do direito,

Robles (2005a, p. 7) inicia sua reflexão distinguindo os conceitos de ordenamento e

sistema jurídicos:17 enquanto este resulta do trabalho da dogmática jurídica, que

17 Convém anotar que Tácio Lacerda Gama (2011, p. 348) não acolhe a distinção proposta por Robles, caso se considere o que expõe: “Neste trabalho, tomaremos as expressões ‘ordenamento jurídico’ e ‘sistema jurídico’ como sinônimos perfeitos. Uma e outra servem para designar um conjunto de normas jurídicas válidas em certas condições de espaço e tempo. Sendo essa nossa premissa, não podemos aceitar distinções como aquela proposta por Gregorio Robles, que reserva significações distintas para as duas locuções. [...] Contra esse entendimento, sustentamos existir racionalidade e sistematicidade tanto no chamado sistema, que é domínio da Ciência do Direito, quando no direito positivo, que é o campo do ordenamento jurídico. Nessas duas hipóteses, o produto da interpretação varia, pois na ciência se produzem proposições descritivas e no direito positivo se

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submete o texto bruto “[...] a um processo de refino e reelaboração, produzindo-se

um novo texto que reflete o primeiro e ao mesmo tempo o completa”; aquele é

composto exclusivamente pelo “[...] texto jurídico bruto ou simplesmente material

jurídico”. Ao apontar o papel fundamental que os juristas e doutrinadores exercem

pela especificidade desse fazer, dessa poiesis — reelaborar o ordenamento

construindo a norma aplicável e, portanto, viabilizando a especificidade operativa do

sistema jurídico; ou seja, dizer o direito —, Robles não nega que o sistema,

diferentemente do ordenamento, por ser fruto da reelaboração dogmática, não é

unívoco. Logo, aí está a causa principal da insegurança jurídica tendo em vista a

variedade interpretativa possível do texto bruto.

Entretanto, para Robles, tal questão não se configura como impeditivo tendo

em vista a contribuição necessária e constitutiva do sistema ofertada pela

reelaboração. Isso porque os eventuais problemas presentes no ordenamento, no

texto bruto (lacunas, omissões e contradições), são aperfeiçoados pelo sistema. Daí

sua conclusão de que é o sistema — e não ordenamento — que “[...] reflete melhor

[...] as normas e instituições de um direito positivo concreto” (p. 7); de que a

dogmática exerce influência determinante em todos os níveis da produção

normativa, inclusive da própria Constituição. Robles trata da questão das instituições

jurídicas como um fazer constitutivo do sistema executado pela especificidade da

função dos juristas; segundo ele, “[...] os juristas não são descritores da realidade do

direito, mas construtores criativos dela. A linguagem do direito é a linguagem dos

juristas” (p. 9; grifo nosso).

Para Robles, no tocante à construção criativa principal dos juristas —

instituições como a sociedade anônima, o matrimônio e o contrato —, a função das

instituições, do princípio institucional, é regular juridicamente os costumes, os

aspectos concretos da realidade social. Nessa medida, privilegia o autor o olhar

sobre as falas acerca dessas instituições ao se estudar um ordenamento jurídico

concreto, concluindo que, “Assim como as normas não possuem sentido fora do

sistema, tampouco possuem sentido isoladas das instituições a que pertencem” (p.

10).

produzem normas. Em ambos, porém, há esquemas racionais que determinam como se dá a relação entre as proposições. Justificamos, assim, o porquê de não acatarmos a distinção entre ordenamento e sistema, exposta acima de forma clara e didática”.

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Nessa relação intrínseca entre instituições e normas, entre aspectos

concretos da realidade juridicamente regulados e ordenamento; nessa relação

contínua que as decisões jurídicas — essas falas do sistema — promovem na

construção, interpretação e aplicação das normas, justamente aí está o eixo

principal pelo qual, neste trabalho, pretende-se estabelecer uma conexão entre o

instituto do contrato complexo como aspecto concreto da realidade negocial da

sociedade complexa contemporânea e sua interpretação. Estando as normas

intrinsecamente ligadas aos institutos e às instituições jurídicas e estando todos

estes no âmbito das decisões intrassistêmicas, a dialogicidade dessas falas entre si

é ampla, porque pertencem ao mesmo sistema — o jurídico; e visto que falam — e

somente falam — entre si, garantem o fechamento operativo do sistema, garantem a

autopoiesis que o identifica como sistema.

Considerando-se o direito como linguagem e tratando-se, especificamente, de

contratos complexos, convém ressaltar que a linguagem contratual como texto

escrito e mesmo não escrito (texto que se extrai dos atos praticados pelas partes na

execução do contrato, no cumprimento das obrigações e nas prestações nele

estabelecidas, das circunstâncias do caso concreto) é de extrema relevância. Isso

se mostra, por exemplo, ao se tratar de contratos paritários, em que as partes

estabelecem, de forma livre, as regras, conhecem os riscos e assumem (em

determinadas situações) uma parcela de álea. Nesses contratos, a forma como a

relação prestação/contraprestação se estabelece pode se aproximar, inclusive, da

ideia de um jogo, de uma relação lúdica.

Cabe ressaltar que Robles (2005a), ao tratar do direito como texto, como

linguagem, relaciona-o ao texto lúdico. Em regra, texto lúdico é um texto fechado. O

jogo é o próprio texto lúdico. Os jogos pressupõem um regulamento, um conjunto de

regras que estabelecem os elementos diretos e indiretos da ação do jogo. Para

definir um jogo, é necessário mencionar suas regras, a linguagem própria nele

estabelecida. “Além disso, tanto nos jogos como na vida social aparecem fenômenos

tais como a cooperação, a competência, a luta, o conflito” (ROBLES, 2011, p. 3).

Nesse sentido, pode-se afirmar que o texto lúdico é um texto regulador; mais

exatamente, constitutivo-regulador. Afinal, o texto cria a ação do jogo, que possibilita

ao jogador abrir parênteses na vida real, ser outro distinto daquilo que se é na vida

diária e rotineira. Proporciona diversão e distração.

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Assim como o texto lúdico, o texto jurídico é um texto constitutivo-regulador,

possível de ser decomposto em um conjunto de regras e caracteres linguísticos

similares. Porém, enquanto o texto lúdico regulamenta uma ação criada

independente da vida real, o texto jurídico não supõe essa ruptura com a vida real:

ele é a própria vida social real. O texto jurídico faz parte da vida de cada um,

independentemente da vontade (ROBLES, 2005a).

Apesar de não estar no escopo nem integrar o rol de temas a ser discutidos

no presente trabalho, cabe ressaltar que os jogos e a teoria dos jogos não estão

adstritos a brincadeiras ou ao esporte. Atualmente, demonstram a importância da

inteligência artificial, que denota efetivas realizações como auxiliar do processo

decisório humano (BERNI, 2004). A teoria dos jogos, que ganhou notoriedade com

John Nash,18 é um ramo da teoria da decisão estratégica e diz respeito à interação

estratégica entre dois indivíduos ou mais (os jogadores podem ser pessoas físicas e

jurídicas, ou grupo de pessoas). Está em ação um conjunto de números

relacionados com algumas propriedades comportamentais de homens e coisas.

Conforme diz Berni (2004, p. 2),

[...] ao tratar idiossincrasias humanas do modo mais formal possível, a teoria dos jogos apresenta um requisito importantíssimo para a pesquisa científica: ela exige explicitamente a demonstração lógica de vínculos entre as motivações dos agentes e os meios utilizados para alcançar os resultados desejados.

Nessa teoria, diz José A. M. Carvalho19 (2007, p. 214), a estruturação do jogo

deve obedecer a regras claras e preestabelecidas, com base nas quais são

determinadas as escolhas (decisões) e os resultados possíveis. As escolhas —

18 John Forbes Nash Júnior, em artigo de 1951, “Non-cooperative games”, definiu a existência de um equilíbrio estratégico para jogos não cooperativos: “equilíbrio de Nash”. Em 1994, ao lado de John C. Harsanyi e Reinhard Selten — que contribuíram para o reconhecimento da teoria dos jogos —, ele ganhou o prêmio Nobel de economia. 19 Por mais que isto signifique fugir ao que recomenda a norma NBR 14724/2011, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, certos autores são referidos ao longo do texto com seu nome e sobrenome, em vez do sobrenome, como postula a norma. Por um lado, essa licença se justifica para distinguir bem os autores citados e evitar confusões com sobrenomes mais comuns e abundantes no texto como Azevedo, Carvalho e Silva: sempre que possível, aparecem com o respectivo nome; o mesmo ocorre com o sobrenome Coelho. Por outro lado, aparecem nome e sobrenome de outros autores por uma questão de afetividade: são pessoas do meu conhecimento, com quem pude conviver como aluna ou colega ao longo do mestrado e doutorado; o uso do sobrenome apenas pareceu criar certa distância incompatível com a proximidade que a academia proporcionou.

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realizáveis de forma simultânea ou não — e os resultados sempre serão finitos;

deverão se restringir a um número limitado de possibilidades.

Tratar do contrato complexo e de sua interpretação e compará-lo (de forma

sucinta) com os jogos supõe destacar que as partes necessariamente interagem,

seja para celebrar o contrato, na sua execução, seja na hipótese de conflitos dele

decorrentes. O contrato complexo traz em si uma dose de requinte em suas regras

(o que o aproxima da ideia de um jogo), tendo em vista que são regras criadas pelas

partes (em razão da atipicidade, da ausência de um modelo preestabelecido no

sistema jurídico que se ajuste plenamente ao pactuado), com diversidade de

elementos.

É inegável a importância da interação das partes, do esmiuçar das regras a

ser aplicadas, da análise de riscos, do processo que vai gerar escolhas.

Necessariamente, as partes interagem: seja para celebrar o contrato, sua

execução, seja na hipótese de conflitos dele decorrentes. A forma como as partes

se relacionaram desde a concepção do contrato complexo e na sua execução —

isto é, a forma como o conceberam, efetuando escolhas e limitando

possibilidades — e, em especial, a forma como jogaram o jogo — se atuaram

visando ao equilíbrio, se atuaram com lealdade — serão relevantes no processo

de interpretação.

Nos contratos complexos, são incluídas regras “atípicas” (que podem ser

combinadas de jogos conhecidos). Cada vez mais, a complexidade da sociedade

contemporânea vai impor às partes que conheçam os riscos e as probabilidades.

Não se trata de “tino” comercial. Trata-se de analisar a estratégia do jogo, suas

regras, para saber jogá-lo. Agentes que desenvolvem e celebram contratos

complexos têm percebido a necessidade (decorrente da sociedade contemporânea)

de saber escolher o contratante, muitas vezes denominado de “parceiro”, e

substituindo regras extremamente punitivas para inadimplência por regras que

agregam bônus pelo desempenho.

Entretanto, ações que envolvem a escolha dos “parceiros”, as “partes”, os

“jogadores”, as regras de punição ou de bônus, requerem linguagem. Tanto no

contrato complexo como no jogo, isto é, seja um texto jurídico ou lúdico, ou

jurídico-lúdico, a linguagem utilizada e a clareza (em contraposição à vagueza

e/ou ambiguidade) das regras — em particular das que estabelecem os deveres,

as obrigações, o que é permitido, proibido e o que é a obrigação, quais serão as

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perdas, os ganhos — vão ser fundamentais para sua interpretação, seja a

interpretação de um operador do contrato (jogador), de um doutrinador

(observador) ou de quem tenha de decidir um conflito.

1.4 Relevância da linguagem na interpretação dos contra tos complexos

Com os recursos discursivos, os textos contratuais são fundamentais nos

contratos, notadamente nos complexos. Mais que isso, a linguagem, como o léxico

que permite toda e qualquer forma de compreensão (GAMA, 2003, p. 33), como

condição de possibilidade de todo e qualquer conhecimento (GAMA, 2009a, XLVII),

é que encadeia a comunicação entre os sistemas (jurídico, político, econômico), que

se reproduzem por códigos próprios, diga-se, que permitem que esses sistemas

fechados operativamente possam receber informações (abertura cognitiva) de outros

sistemas. Nesse ponto, nascem a intertextualidade e a necessidade de tradução

entre as linguagens diversas típicas de cada sistema, de cada área de

conhecimento.

Com efeito, no dizer de Teubner (2005, p. 286),

[...] o contrato é uma relação entre linguagens sociais que ata a tendência centrífuga à sua respectiva dinâmica, de forma potencialmente produtiva, mas sempre somente ad hoc. Por um rápido momento, ele une diferentes lógicas de atuação: a lógica voltada à tecnologia no produto, a ciência, a arte com a lógica voltada para o lucro da economia e a lógica do direito voltada à norma. [...] Assim, o nexo do contrato dá início a um movimento ultracíclico entre vários sistemas sociais. Ele possibilita que, em sua autopoiesis, ad hoc e momentaneamente, eles possam explorar os ciclos da auto-reprodução de outros sistemas sem que sejam questionadas suas autonomias.

Com grande incidência no movimento ultracíclico, os contratos complexos

incorporam questões técnicas de outras áreas de conhecimento, bem como regras

específicas quanto às obrigações (prestações e contraprestações) e à forma de

solução de conflitos. Assim, se a linguagem do contrato por si só já carreia a

complexidade advinda do acoplamento estrutural, da relação entre linguagens

sociais distintas, no contrato complexo a relevância passa a ser maior. Portanto,

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como texto, como linguagem, o direito contratual deve ser concebido fora de um

exercício formalista.20

Tendo em vista a interpretação dos contratos complexos, importa ainda

destacar que há de encontrar o texto relevante (dentre os textos e discursos que

integram e/ou permeiam a relação contratual) para que se tome uma decisão. Essa

tarefa exige competência especializada. Afinal, só se pode interpretar e argumentar

quando se encontram os textos convenientes:21 nem sempre são textos escritos nos

instrumentos contratuais, também são aqueles que decorrem da linguagem advinda

da conduta das partes na execução da relação contratual, que, por diversas vezes,

altera o conteúdo do texto do instrumento contratual.

Encontrar o texto conveniente é um desafio ao intérprete. Não raro, para se

encontrar o texto conveniente, é necessário buscar em outros textos, nas

circunstâncias do caso, no comportamento das partes. O texto primário por si não

supre a demanda da interpretação ou é insuficiente para a interpretação. Daí a

necessidade da tradução, da intertextualidade (dialogismo), fundamentais na

interpretação integradora nos contratos complexos.

Seja quem for o intérprete — operador, participante (órgão decisório),

observador (doutrinador)22 —, o processo de interpretação pode ensejar uma

decodificação, um “decifrar” do texto escrito, ou seja, a interpretação, ainda que no

seu primeiro estágio (o literal, da apreensão do suporte físico da mensagem), que

precisa ser vertido para uma linguagem que o receptor possa entender. Portanto,

20 Sobre a ideia de exercício formalista, cabe citar Luhmann (2016, p. 99): “[...] o tempo em que vivemos não é o de um exercício jurídico formalista e quase mágico, mas é preciso ao menos comunicar e compreender implicitamente que se trata de uma comunicação que exige validade contrafactual e juridicamente amparada; com essa comunicação se pressupõe que o lícito e o ilícito mutuamente se excluem. [...] A decisão vinculativa nas questões jurídicas realiza-se somente por meio de associação com a função política que dá conta das decisões coletivamente vinculantes, que por sua vez garantem o recurso ao poder de imposição. Mas isso, de modo algum, significa que não se realize uma enorme quantidade de comunicações jurídicas fora desse estreito domínio de parlamentos e tribunais, e que não se crie uma enorme quantidade de direito positivo sem que haja conexão com essas instâncias, portanto, sem nenhum controle político da sociedade, como o que se teria precisamente por meio de contratos”. 21 Conforme diz Luhmann (2016, p. 452), “Justamente porque realizam a medição da argumentação com a validade do direito, os textos são dotados de um significado excepcional para a argumentação jurídica, em especial os textos jurídicos em seu sentido normal (ou em sua especificidade técnica). Os textos possibilitam a auto-observação simplificada. No curso normal das decisões, o sistema se observa a si mesmo não como sistema (em um ambiente), mas como uma aglomeração de textos jurídicos que se remetem uns aos outros. Como se sabe, também a isso os juristas denominam ‘sistema’”. 22 O item 3.1 do capítulo 3 trata dos intérpretes do contrato complexo.

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determinadas situações exigem a tradução. Com efeito, no dizer de Jakobson (2010,

p. 80–1),

[...] para o lingüista como para o usuário comum das palavras, os significados de um signo lingüístico não é mais que uma tradução por outro signo que lhe pode ser substituído. Especialmente um signo “no qual ele se ache desenvolvido de modo mais completo”, como insistentemente afirmou Pierce, o mais profundo investigador da ciência dos signos. O termo “solteiro” pode ser convertido numa designação mais explícita “homem não casado”, sempre que maior clareza for requerida.

Para Flusser (1969, p. 16), “[...] traduções entre línguas têm a ver com a

coincidência e divergência de repertórios, de estruturas, e de relações significativas”.

Mais que isso, um texto: (i) pode ser traduzido fielmente (quando os símbolos

denotativos e conotativos têm correspondentes da segunda língua); (ii) pode ser

traduzido livremente (quando contém símbolos conotativos correspondentes na

outra língua); (iii) pode ser intraduzível (por não conter símbolos denotativos e/ou

conotativos correspondentes). Neste último caso (línguas que divergem em suas

regras básicas), pode haver uma terceira língua que faça a transferência indireta,

uma metalíngua das duas primeiras. A transferência indireta é a decodificação da

mensagem. Para aquele autor, toda comunicação contém elementos de

transferência indireta. Toda comunicação é questão de enfoque. Não é objetiva nem

subjetiva. É intersubjetiva (p. 17–22).

Mesmo que como transferência indireta, como questão de enfoque, a

tradução não pode ser arbitrária. A tradução tem de se situar nos limites da

linguagem, do seu uso e seu contexto.23 Não se pode olvidar que a prática e a teoria

da tradução abundam em problemas complexos. Conforme Jakobson (2010), a

faculdade de falar determinada língua implica a faculdade de falar dessa língua, e tal

gênero de operação metalinguística permite revisar e redefinir o vocabulário

empregado. Trata-se de dois níveis complementares: linguagem-objeto e

23 Renata Silva (2009, p. 293–5), em artigo que se reporta à teoria da tradução de Flusser, ressalta que “[...] é permitido dizer que a terceira língua não pode ser arbitrária com relação às línguas objeto; deve respeitar o uso das palavras traduzidas dentro do contexto da terceira língua, aproximando assim as realidades distantes da metalíngua e da língua objeto [...] O que também ocorre com o direito, que no ato de aplicação deve fazer uso do significado previamente estabelecido pelas próprias palavras, levando em consideração os significados que melhor se ajustem ao contexto do caso analisado, passando a ser um poder ‘discricionário’ que encontra ‘vinculação’ dentro dos limites da linguagem: uso e contexto”.

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metalinguagem. O nível cognitivo da linguagem não só admite, como também exige,

a interpretação por outros códigos: a recodificação, que redunda na tradução.

A tradução e sua importância na interpretação24 dos contratos complexos são

verificáveis porque tal contrato incorpora muitas linguagens (de áreas diferentes) e,

uma vez que integram o contrato, tais linguagens têm o condão de criar direitos e

obrigações advindos da norma autônoma. Em determinadas situações, para que a

linguagem (“importada”) de outras áreas passe a integrar a norma privada, de

linguagem prescritiva de condutas, ou de uma linguagem (ainda que em caráter

descritivo) que integre uma obrigação, será preciso recorrer a operações linguísticas

como a tradução. Por exemplo, contratos complexos da área de engenharia, em

diversas situações, contêm fórmulas matemáticas e equações complexas. Nessa

situação, supondo-se ser preciso avaliar se tal fórmula foi realizada conforme o

estabelecido, o intérprete requer um intermediador, um tradutor que compreenda a

referida fórmula e indique se foi observada ou não. Com base em tal informação,

poderá ser avaliado se a conduta prescrita foi observada.

Além disso, as linguagens passíveis de compor um programa contratual

complexo têm de ser coerentes entre si; não podem ser contraditórias. Suponha-se

um contrato complexo de fornecimento de produtos que cumule transferência de

know-how (para que o fornecedor possa fabricar os produtos) com comodato modal

de ferramental: a linguagem técnica que envolver a transferência de know-how terá

de citar o ferramental da mesma forma que conste no contrato de comodato.

O risco maior é o contrato complexo se tornar uma verdadeira torre de Babel.

A combinação de objetos e/ou elementos diversos é tal que produz dificuldades de

compreensão, desentendimentos, conflitos. Nesse sentido, quanto mais bem

articulada for a linguagem contratual, quanto mais alinhada estiver nas áreas e nos

elementos envolvidos, maior é a possibilidade de mitigar conflitos.

Pelo prisma apresentado neste trabalho, tais assertivas retomam a posição de

Luhmann (em sua teoria dos sistemas) de que o sistema do direito (assim como os

demais sistemas que identifica) são operativamente fechados e cognitivamente

24 Para Guastini (2005 p. 26), “[...] o discurso do intérprete é evidentemente assimilável ao discurso do tradutor. [...] Destarte, como a tradução consiste no produzir um enunciado numa certa língua, que o tradutor assume ser sinônimo de um enunciado diverso em outra língua, assim na interpretação jurídica, o intérprete produz um enunciado pertencente à sua linguagem que ele assume ser sinônimo de um enunciado distinto pertencente à linguagem das fontes”.

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abertos. Isso permite que o direito vá buscar informações em outros ambientes

(dialogismo) que, quando trazidos para dentro desse sistema, devem funcionar

segundo as regras do direito; ou seja, passam a ser a realidade jurídica. Isso pode

ocasionar a necessidade da tradução, para que a linguagem do outro sistema

(visitado pelo sistema jurídico) passe a se revestir da linguagem do direito a fim de

poder gerar os efeitos pretendidos.

A tradução é um processo de muita relevância para a incidência jurídica, que

é uma operação tradutória por excelência. O critério de julgamento do sucesso de

uma tradução para a linguagem jurídica é sua validade.25 O jurista, o aplicador do

direito, o operador do contrato, aquele que faz a incidência ocorrer terá de traduzir,

inclusive por meio da interpretação jurídica, a linguagem própria do direito para que

seja aplicada à realidade social, e vice-versa. Cabe destacar o dialogismo (ou

intertextualidade) como recurso de linguagem a ser utilizado nos contratos

complexos. Os recursos de dialogismo e tradução podem até incidirem em conjunto

na operação interpretativa.

Conforme Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 17),

[...] a intertextualidade é formada pelo imenso diálogo que os textos mantêm entre si, sejam eles passados, presentes ou futuros, pouco importando as relações de dependência que houver entre eles. Na verdade, assim que inseridos no sistema, passam a conversar com outros conteúdos, intra-sistêmicos e extra-sistêmicos, num denso intercâmbio de comunicações.

Assim, o contrato complexo como sistema (inserido no sistema jurídico) que é

cognitivamente aberto comunica-se com outros sistemas sempre por meio da

linguagem (esses outros sistemas também são linguísticos), num dialogismo (ou

intertextualidade) externo. Quando o diálogo, a relação entre textos, ocorre dentro

do próprio sistema do direito, trata-se de uma intertextualidade interna. Convém

anotar que a partir de um dialogismo externo, pode ocorrer a introdução de uma

25 “[...] a incidência, caracterizando a passagem do fato social para o fato jurídico, consubstancia uma tradução interlíngua, assim entendida a interpretação de signos verbais por meio de outra língua. A interpretação, sendo operação do pensamento, já é uma tradução, uma vez que todo pensamento é tradução de outro pensamento. [...] Com a incidência procura-se construir no universo jurídico uma representação equivalente àquela que está no mundo social. Para construção dessas correspondências é preciso observar a forma mediante a qual se prova juridicamente a ocorrência de um fato social. [...] O critério de julgamento do sucesso de uma tradução para a linguagem jurídica é a sua validade” (ARAUJO, 2009, p. 163–4).

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linguagem, de um conceito externo (até então) ao direito, mais especificamente ao

contrato, no programa contratual.

Para que o texto esteja apto à interpretação, faz-se necessário conceder

conteúdo semântico a tal texto. Ocorre que nem sempre o conteúdo semântico está

inserido diretamente no contrato. Pode estar no sistema econômico e social; pode

ser um tema técnico. Nesse percurso, quando o intérprete busca o conteúdo em tais

sistemas, há uma interpretação que inclui um conteúdo, por meio da linguagem

competente, ao contrato. Assim, o dialogismo, mesmo que externo de início,

provocou uma mudança no interior do programa contratual.

Cabe frisar que o foco da análise jurídica é o texto jurídico; não a manifestação

não jurídica. Todavia, no enfoque jurídico, é relevante a intertextualidade: o diálogo do

texto jurídico com um texto técnico, um texto da economia ou da sociologia, para que a

interpretação jurídica de determinado fato leve em conta o contexto envolvido, em

particular quando se trata de contrato complexo.

Como o direito é um fenômeno comunicacional e contingente — sempre pode

ser diferente do que é; não existe uma única interpretação correta —, na

interpretação, sobretudo, nos contratos complexos em que a utilização dos recursos

de tradução e intertextualidade são utilizados com recorrência a característica da

inesgotabilidade tem de ser analisada, em particular no que se refere à interpretação

sempre demandar uma escolha para que possa advir uma decisão. As palavras de

Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 194) dão mais propriedade a esse entendimento:

[...] os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade não significam ausência de limites para a tarefa interpretativa. A interpretação toma por base o texto: nele tem início, por ele se conduz e, até o intercâmbio com outros discursos, instaura-se a partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico-positivo e o ingresso no plano de seu conteúdo tem de levar em conta as diretrizes do sistema.

Perlingieri (2002, p. 62) alerta que

[...] não se nega que a interpretação da norma e do fato sejam permeáveis a qualquer ideologia (é impossível separar o homem do jurista); o que se contesta é que essa observação legitime a completa superação, por parte do filósofo e do político, do papel do jurista, o qual, em vez de interpretar a regra se torna o seu depositário. Extraem-se as normas da interpretação da lei, e não da imposição das preferências pessoais do jurista à sociedade, não importante quanto seja nobre a sua intenção.

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O que importa frisar quanto à inesgotabilidade da interpretação é que o

direito, como fenômeno comunicacional e objeto cultural, além de ser texto aberto —

que não está adstrito a uma única opção (pois se assim fosse nem seria necessária

ao de intelecção da interpretação), que está sempre “em construção” — não pode

ser entendido como texto acabado, obra pronta.26 A evolução social e o jogo de

valores no seio da sociedade, por exemplo, são alguns indicativos de que a

interpretação que fundamentou determinada aplicação do direito hoje pode ser

alterada amanhã. Contudo, ao se tratar da interpretação contratual, a

inesgotabilidade é limitada pela própria realidade, pelo esquema econômico

subjacente, pela causa concreta do contrato e pelo texto (em seu contexto), ainda

que incompleto ou com diversidade linguística do contrato complexo.

Tendo em vista a premissa do papel determinante da linguagem no processo

comunicacional, cabe aqui a orientação de Flusser (2004), para quem a verdade é

construída pela língua. Nessa perspectiva, a verdade corresponde à relação que se

estabelece entre um enunciado e as condições de aceitação da língua. Daí ser

incabível falar em verdade absoluta, pois esta é exatamente a relação que se

estabelece na língua.27 Trata-se de uma verdade construída que “[...] não é

simplesmente revelada ou descoberta, mas que nasce do relacionamento

intersubjetivo, considerado determinado quadro referencial” (TOMÉ, 2005, p. 16).

Nos contratos complexos, ante a diversidade de elementos, a verdade

construída pela linguagem deve guardar relação com a diversidade da realidade

contratual. A interpretação do contrato complexo tem como ponto de partida a

linguagem (com todos os seus recursos para intercâmbio com as outras áreas de

conhecimento envolvidas) estabelecida no instrumento contratual que contempla a

pluralidade de elementos. Mas ela deve se guiar, também, pela concreção, pelas

26 Com o entendimento de que não existe uma única interpretação possível — ao contrário, o texto jurídico é um texto aberto, disponível para novas interpretações —, abre-se mão, como ocorre desde o entendimento de que o direito se faz pela linguagem, do conceito de verdade absoluta. A verdade é metafísica: não pode ser alcançada mediante a experiência; ultrapassa o campo empírico (TOMÉ, 2005). 27 Apesar da tormentosa discussão acerca do que é a verdade e como seria possível alcançá-la, passando pelas teorias para a referida solução, tais como a verdade por correspondência (adequação de dada sentença à realidade), verdade por coerência (a verdade não se estabelece entre o enunciado e o mundo da experiência, mas decorre da coerência de determinado juízo com um sistema de crenças ou verdades anteriormente estabelecidas), verdade por consenso (consenso entre os indivíduos de dada comunidade ou cultura), verdade pragmática (verdadeiro se tiver efeitos práticos para quem o sustenta, sendo-lhe útil), o entendimento adotado é que a verdade se dá na relação entre linguagens.

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circunstâncias do caso concreto, pelo comportamento das partes em relação a tal

pluralidade. A conexão do contrato com a realidade é essencial até para que o

suporte econômico (e social) seja estabelecido e cumprido.

Tendo-se que a interpretação do contrato visa a uma ação (se for um

intérprete operador) ou a uma decisão (em caso de conflito) — embora o conteúdo

das normas a ser interpretadas possa ser (ou estar) sempre aberto —, o ato

interpretativo dogmático — na expressão de Ferraz Júnior,28 que lhe outorga o

caráter de decidibilidade —, requer uma decisão. A concreção da norma contratual

passa pela necessidade de ação e/ou de decisão, que o próprio sistema impõe.

Contudo, a relação contratual e a ação e/ou decisão decorrentes da

interpretação não ficam isentas dos ruídos da comunicação que afetam a linguagem,

os textos e que podem colocar em risco o contrato. A ambiguidade29 e a vaguidade30

na linguagem dos contratos complexos e daqueles a ele coligados representam

ruídos (ou, ao menos, a sua possibilidade) na comunicação.31 Tais ruídos interferem

na execução do contrato. Diferentemente da norma legal, a norma contratual já é

individual e concreta, com possibilidade de novas incidências e concretização.

Portanto, nesse caso, a ambiguidade e vaguidade no âmbito da norma individual e

concreta representam a possibilidade efetiva de lacunas, de interpretação (pelos

operadores do contrato) diversa em relação ao texto do instrumento contratual. Em

certos contratos, a exemplo dos incompletos e relacionais, certos conteúdos ficam

28 Ferraz Júnior (2012, p. 230) assevera que “[...] essa tensão entre dogma e liberdade constitui o que chamamos de desafio kelseniano. Não obstante isso, para a tradição da ciência jurídica, essa tensão significa que não apenas estamos obrigados a interpretar, como também que deve haver uma interpretação (e, pois, um sentido) que prepondere e ponha um fim (prático) às múltiplas possibilidades interpretativas. Eis aí o problema hermenêutico da decidibilidade, isto é, da criação das condições para uma decisão com o mínimo de perturbação social possível”. 29 Segundo De Plácido e Silva (2008, p. 102), “[...] na tecnologia jurídica, o termo ambiguidade, derivado do vocábulo latino ambíguo (equívoco, duvidoso, incerto, variável, com dois sentidos), vem precisamente indicar a disposição legal ou texto de lei, ou a cláusula contratual que possa mostrar um duplo sentido”. 30 Vaguidade, no dizer de Tácio Lacerda Gama (2009a, p. LII), é “[...] atributo de uma palavra, termo ou expressão cujo sentido é impreciso”. Para Struchiner (2011, p. 137–8), conceitos ou predicados vagos são aqueles que têm como marca registrada a característica de apresentar casos fronteiriços ou nebulosos de aplicação. “A vagueza pode ser uma vagueza de grau ou combinatória (o que acontece com conceitos multidimensionais)”. 31 Nesse sentido, Tácio Lacerda Gama (2009b, p. 236) esclarece que, “[...] noutras circunstâncias, porém, os chamados ‘ruídos de comunicação’ ensejam problemas das mais diversas naturezas no entendimento dos sujeitos de uma conversação qualquer. No plano das linguagens descritivas, próprias da Ciência do Direito, os ‘ruídos de comunicação’ levam a desentendimentos, disputas verbais e incompreensões. Nas linguagens prescritivas os danos não são menores, pois problemas na transmissão de mensagens jurídicas precisas ensejam conflitos de interesse”.

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em aberto de forma proposital, ou seja, para ser definidos ao longo da relação

contratual.

Todavia, o que causa ruído na maioria das vezes são as ambiguidades e

vaguidades não propositais, ocasionadas pela utilização de linguagem inapropriada

e deficiente, ou ainda da ausência de linguagem escrita para abarcar dado conceito

ou dada situação. Em razão de sua diversidade de elementos, os contratos

complexos em unicidade ou pluralidade contratual (quando existem contratos

coligados a eles) tendem a ser mais suscetíveis a tais ruídos. Por isso sua

interpretação impõe tratar de tais circunstâncias com maior ênfase.

Convém incluir a globalização nesse contexto da relevância da linguagem na

sociedade contemporânea e complexa, em que se insere o texto do contrato complexo.

O mundo sem territórios estanques com negócios transnacionais onde todos se

comunicam com todos usando recursos tecnológicos sofisticados se impõe como

contexto desafiador para o direito. Ante a multiplicidade, diversidade e falta de limites

territoriais (globalização), necessidade de inovar na tecnologia e nas formas de atuar de

cada parte (de se fazer presente, se relacionar, pensar sem a limitação do impossível),

ante o aumento de população, o efetivo receio de escassez de bens básicos (água,

comida) num futuro não muito distante de alterações climáticas relevantes e as

mudanças de valores sociais dos próprios rumos da história, a sociedade

contemporânea complexa implica formas diferentes de os particulares se relacionarem

em busca da satisfação de seus interesses, inclusive nas relações patrimoniais.

Por consequência, tal momento e a própria globalização denotam um desafio

ao jurista, conforme Grossi (2010, p. 89)

[...] a globalização mostra sua dupla face para o jurista: grande ocasião de maturação e de abertura, mas de grande risco. O risco se encontra na arrogância do poder econômico, que não é menor do que a ameaça do poder público. O risco é a instrumentalização da dimensão jurídica à satisfação dos interesses econômicos, que com frequência se concentram — em um clima de capitalismo desenfreado — no alcançar com qualquer meio e a qualquer custo o maior lucro possível.

Verifica-se, sem dúvida, o surgimento de um novo circuito de produção do

direito,32 em particular nas relações contratuais que ocorrem na esfera de

32 Termo utilizado por Rodotà (2008).

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autodeterminação entre os particulares. A liberdade de pensamento, as inovações

em todas as áreas (tendo em vista que a cientificidade deixou os muros acadêmicos

e passou a integrar o cotidiano das empresas, e das empresas para as vidas das

pessoas), a simultaneidade na comunicação ante as novas mídias sociais, o

intercâmbio fácil e rápido de informações entre diferentes países revolucionaram o

tráfico comercial (econômico) e social.

A par desse novo circuito de produção do direito, as estruturas jurídicas,

aparentemente, não estão preparadas para compreender e atender a complexidade

de relações jurídicas (em suas duas dimensões: seja quanto ao número de

elementos, seja das relações desta grande quantidade de elementos), inclusive

como operações fáticas. Nesse novo âmbito do direito, em especial nas relações

contratuais, verifica-se que se torna quase impossível presumir as inúmeras relações

resultantes da complexidade de elementos que o sistema passa a ter e as relações

entre eles.

A seletividade (escolha) praticada pelo particular parte das possibilidades não

catalogadas pelo direito, em particular pelo direito civil. Passa-se a ter relações

jurídicas orientadas por relações econômicas e sociais constituídas de elementos

diversos e múltiplos, gerando relações complexas inovadoras cujas vicissitudes, em

muitos casos, nem sequer foram tidas como possíveis quando a relação foi

celebrada. Daí a necessidade premente de que o sistema jurídico esteja aberto para

acolher tais relações complexas.

O Código Civil de 2002 privilegiou a abertura do sistema com a adoção,

sobretudo no direito das obrigações, de princípios, cláusulas gerais e conceitos

jurídicos indeterminados. Em particular na dogmática jurídica, o pensamento jurídico

deve ser orientado a valores como um sistema móvel e aberto que abarque métodos

de concretização para que possa cumprir a função de manter o sistema jurídico com

a capacidade de distinguir o lícito do ilícito e garantir, ao menos, um mínimo de

segurança jurídica.33 A mobilidade do sistema só será possível se tiver aberturas, se

33 Larenz (1983, p. 277) faz a seguinte reflexão: “Luhmann coloca a questão ‘de se e como é em geral ainda possível, em condições socioestruturais dadas, uma dogmática jurídica e uma diferenciação, por ela garantida, do sistema jurídico’. Na medida em que isto dependa das condições socioestruturais, não arriscamos, do mesmo modo que Luhmann não arrisca um prognóstico. Na medida em que isto dependa dela própria, a nossa resposta seria: a dogmática jurídica afirmar-se-á a si própria e cumprirá a sua função quando e só quando conseguir, em medida crescente, desenvolver e aplicar formas de um pensamento orientado a valores — como o tipo jurídico, o conceito jurídico

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seus conceitos não estiverem enclausurados; se o sistema jurídico reagir aos

demais sistemas e, em especial, se o próprio sistema presumir tal abertura.

Com efeito, segundo Renan Lotufo (2011, p. 9), “[...] princípios, são idéias

matrizes e motrizes do sistema, do ordenamento, porque são pontos de partida e de

movimentação dos mesmos, dão origem e ensejam a interpretação das normas”. Os

princípios convivem no sistema e podem ter graus de concreção e eficácia diversos;

podem ter destinatários diferentes e exercer funções diversas no sistema. Como

ensina Ávila (2014, p. 155),

[...] os princípios são, portanto, normas que atribuem fundamento a outras normas, por indicarem fins e serem promovidos, sem, no entanto, preverem o meio para sua realização. Eles apresentam, em razão disso, alto grau de indeterminação, não no sentido de mera vagueza, presente em qualquer norma, mas no sentido específico de não numerarem exaustivamente os fatos em presença dos quais produzem a consequência jurídica ou de demandarem a concretização por outra norma, de modos diversos e alternativos. Desse modo, a defectibilidade é apenas um elemento contingente dos princípios como sustenta Guastini. O seu elemento essencial é a indeterminação estrutural: princípios são prescrições finalísticas com elevado grau de generalidade material, sem consequências específicas previamente determinadas.

Um ponto relevante no tocante aos princípios, conforme assevera Diogo

Machado de Melo (2011, p. 75),

[...] é que eles convivem uns com os outros mesmo quando se encontrarem em estado de total colidência. Eles não se revogam, não se sucedem uns aos outros, mas bem, diferentemente, preponderam, mesmo que momentaneamente, uns sobre os outros. [...] Eles, os princípios, tendem a se acomodar em um mesmo caso concreto que reclama sua incidência, conforme sejam as necessidades presentes ou ausentes que justifiquem a sua incidência.

Para dar mais concreção aos valores e às diretrizes escolhidos (eticidade,

socialidade, operabilidade), a opção do legislador do Código Civil de 2002 foi

positivar os princípios da boa-fé objetiva, função social e equilíbrio contratual no

âmbito da autonomia privada por meio de cláusulas gerais e regras que contenham

funcionalmente pensado, o sistema ‘móvel’ e o ‘aberto’ — e método de um pensamento que não só flui num sentido único, mas em sentido duplo — métodos de ‘concretização’ e ‘tipificação’de ‘analogia’ e de ‘redução teleológica’”.

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conceitos jurídicos indeterminados. Conforme Reale (2002, p. 13), cláusulas gerais

“[...] possibilitam a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos

advogados, quer pelos juízes, para a atualização de preceitos legais”.

Contudo, a função de tais cláusulas não se limita a abrir o sistema jurídico às

mudanças de valoração. Isso porque, ao abri-lo, não só permitem que novos casos

sejam sistematizados — o que é de suma importância para os contratos complexos;

como também conotam, ao sistema, a mobilidade internamente considerada — o

que permite realizar a função de estabilização em relação a algumas conclusões do

intérprete, viabilizando consenso acerca de determinados significados (MARTINS-

COSTA, 2015, p. 163).

Quando presentes na norma jurídica, os conceitos jurídicos indeterminados

permitem, ao aplicador do direito, outorgar o conteúdo de tal conceito com base em

elementos do sistema, dos valores, e dialogar com outras áreas de conhecimento

para, ao definir o conceito da norma ao caso concreto, fazer incidir a consequência

jurídica ali prevista.

Mecanismos como a utilização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos

indeterminados criam uma janela no sistema de direito que propicia uma

comunicação com a realidade; e tal janela permite que, além de fazer a necessária

auto-observação, o sistema se mantenha sempre cognitivamente aberto, em diálogo

com outros sistemas e com o ambiente.

O ambiente atual demonstra uma ruptura do direito civil, em particular das

atividades negociais, com o direito tradicional.34 De tal modo, a produção do direito,

sobretudo dos contratos, tem sido efetivada de forma a testar (para alargar) os

limites extremos do âmbito da autonomia privada. Logo, apenas em sua concreção é

que sua adequação ao sistema pode ser verificada.

Particulares, em especial as empresas, passaram cada vez mais a se

autorregularem para alcançar objetivos econômicos, mesmo diante de uma

linguagem jurídica tradicional carente. Como fenômeno (complexo) comunicacional,

o direito (contemporâneo) passa a ser construído com base em tal realidade. No

rastro dessas mudanças, corporações empresariais importantes passam a celebrar

34 Sobre a ruptura do direito civil com o direito tradicional, Fachin (2012, p. 245) diz que “[...] a clara evidência da crise é o reconhecimento de que se operam relações no plano da dobra do direito, ou seja, no não-direito. Fatos acabam se impondo perante o Direito. Não é o Estado que regula todas as condutas, nem tampouco produz todas as normas nas quais aquelas vão subsumir”.

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contratos complexos e/ou totalmente atípicos. São fruto de muitas negociações e do

uso da linguagem técnica jurídica, linguagem que os operadores do direito buscam

em dialogismo com outras áreas (técnicas e comerciais) e outros ordenamentos;

linguagem elaborada, em grande parte, nos departamentos jurídicos e nas bancas

de advocacia35 de tais corporações. Tais modelos de contratação — contratos

complexos, que incluem contratos a eles coligados e uma grande parte de definições

para mitigar questões de interpretação quanto à parte técnica e de diferentes

ordenamentos jurídicos, além de regulamentos, conjugados com obrigações,

prestações e contraprestações diversas — passam a ser utilizados e difundidos em

uma escala não desprezível.

Aparentemente, conforme o sistema jurídico,36 a produção privada de tais

modelos de contratação passa a ter relevância não só em razão de sua função

econômica e social, mas também porque pedem, para sua aplicação, uma

interpretação devida. Afinal, não estão isentos de conflitos e repercutem nos

sistemas econômico e social. Embora se fale aqui de um novo circuito de produção

do Direito, não há como tratar da interpretação de tais contratos complexos sem

passar por conceitos e institutos do Direito Civil; como diz Fachin (2012, p. 263), faz-

se necessário “[...] que o ponto de partida seja revisitado muitas vezes, uma vez que

não há transformação sem que passe por uma consideração do que já foi posto em

um dado momento [...] Em outras palavras, o que é dado passa a ser construído a

partir do momento histórico em que se insere essa construção”. Com efeito, é

preciso partir do dado para chegar ao novo. A ciência (do direito) avança na

construção do conhecimento à medida que revê a validade e pertinência de seus

consensos para determinado contexto.

35 Ainda que sejam referentes a transações na internet, as palavras de Rodotà (2008, p. 190) se fazem pertinentes aqui “[...] não estamos mais diante de uma tarefa técnica, mas de uma mudança política, que se resolve na criação de um novo circuito de produção do direito. No âmbito das transações internacionais, ele se realiza sobretudo através dos modelos contratuais uniformes que dominam o cenário jurídico do nosso tempo, tomando o lugar das convenções internacionais de direito uniforme e das diretivas comunitárias de harmonização: seus criadores não são os legisladores nacionais, mas os departamentos jurídicos das grandes multinacionais, são os consultores das associações internacionais das diversas categorias empresariais, são os grandes escritórios de advogados associados, estes também projetados em uma dimensão internacional. Este é o processo de deregulation, que nunca consistiu na diminuição de regras jurídicas, e sim na redução da área das regras de origem pública a favor daquelas de produção privada”. 36 Fala-se em concordância aparente com o sistema jurídico porque, como se trata de inovação, diversos casos ainda não passaram pelo “crivo” do sistema jurídico, pela função/operação de julgamento: judiciário ou arbitral. Em casos de conflitos, seria necessário avaliar, de início, a validade de tais negócios, depois seu programa e seus efeitos.

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2 CONTRATOS COMPLEXOS A caracterização do contrato como complexo, em oposição ao simples — que

tem por objeto um tipo contratual —, não parece ser mais suficiente, pois a

complexidade pode advir de muitos fatores, inclusive de ordem econômica e social.

Além disso, a complexidade contratual pode estar travestida de uma simplicidade

operacional. Nesse caso, à primeira vista, poderia se tratar de um contrato sem

complexidades; mas, ao se analisar a relação como um todo, verifica-se que se trata

de situação contratual complexa.

Com efeito, propõe-se aqui analisar a relação contratual complexa, que atrai a

ideia de um sistema contratual (sistema contratual complexo ou de complexidade

contratual), buscando uma forma de interpretação que abarque tal complexidade. No

âmbito deste estudo insere-se uma visão dos contratos coligados, visto que, por

vezes, é tênue a delimitação entre estes e os complexos — há situações de

intersecção entre ambos — e porque a coligação envolve complexidade na maioria

das vezes.

A ideia de contratos complexos (incluindo aqueles a eles coligados) como

sistema é essencial, pois carregam pluralidade de elementos dotados de unidade,

requerendo uma ordenação. Com base na ideia de sistema da teoria do Luhmann

como autopoiético, importa incluir as características de unidade e ordenação

enfatizadas por Canaris (1996, p. 12), “[...] por serem duas características que

emergiram em todas as definições, ressaltando que elas estão, uma para outra, na

mais estreita relação de intercâmbio”.

Por unidade, entende-se a recondução de todos os elementos componentes

do sistema a um valor comum, que, no caso da ciência do direito, é a justiça, e, no

do direto civil, são os princípios da autodeterminação, da autorresponsabilidade, da

proteção do tráfego e de confiança, da consideração pelas esferas de personalidade

e de liberdade dos outros e da restituição do reconhecimento injusto (CANARIS,

1996). Com a ordenação, pretende-se que esses elementos diversos possam

encontrar algum tipo de arrumação do ponto de vista orgânico (KATAOKA, 2008).

A celebração de contratos complexos, sua execução e sua interpretação em

esferas e níveis variados — desde o operacional até a eventual solução de conflitos

— demandam: empenho de tempo (em geral, a celebração de tais contratos requer

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uma série de atos prévios como a troca de informações, reuniões técnicas, projetos,

dentre outros), conhecimento técnico especializado (dialogismo) para usar termos

próprios (inclusive com elaboração de glossário contratual em razão de tais termos

específicos), análise da associação de objetos distintos com obrigações específicas

de cada um, verificação de eventual celebração de contratos a ele coligados, análise

dos efeitos sociais que dele decorrem e dos efeitos de eventuais descumprimentos

contratuais, diversidade de ocorrências que podem suceder após sua celebração —

pois são, em grande número, de execução continuada ou diferida, podendo ainda se

encaixar (em determinadas situações) como contratos relacionais.

Entretanto, a caracterização e a sistematização do contrato complexo passam

pela classificação dos contratos. O estudo da teoria geral dos contratos sempre

destina um capítulo, um item ou uma seção para essa classificação segundo pontos

de vista diversos. Sem adentrar a questão de sua utilidade, cabe registrar que

identificar determinado contrato como complexo requer incluí-lo em dada categoria

ou excluí-lo de uma categoria existente. O tratamento de determinado contrato como

complexo — cabe frisar — ocorre, em primeiro plano, por oposição ao simples, além

disso o contrato complexo “[...] seria aquele não subsumível a nenhum modelo

simples dos vários tipos contratuais” (AZEVEDO, 2005b, p. 247). Assim, mediante tal

classificação, os contratos denominados simples representam um tipo de contrato

determinado; nessa lógica (que se entende não ser suficiente), os contratos

complexos resultam de combinações de dois tipos contratuais ou mais,37 ou de

inserções de cláusulas que, além de incluir novos elementos, desfigurem um dos

tipos simples ou resultem da combinação de objetos não tipificados. Tal

classificação privilegia apenas a caracterização de um contrato como complexo com

base em seu objeto. Embora seja uma característica de extrema relevância, outras

características atraem a complexidade contratual.

A tipicidade dos contratos não esgota as possibilidades da sociedade

complexa nem da complexidade que envolve o estágio atual da humanidade. A

atipicidade, que amplia a possibilidade de autorregulamentação dos particulares e já

37 Para Bessone (1997, p. 86), “[...] o interesse da distinção está na escolha das normas aplicáveis. Quando não seja possível harmonizar as regras reguladoras dos tipos combinados, deve-se atender à finalidade essencial da operação, ou, quando a infração for de determinada cláusula que se possa isolar das demais, merecerá observância a disposição disciplinadora do contrato simples de que tenha sido extraída”.

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está prevista em nosso ordenamento, destaca-se por abrigar a possibilidade da

inovação, além de permitir a associação de objetos diversos (típicos ou atípicos)

num mesmo instrumento contratual, numa relação de simbiose e interação.

Entretanto, a caracterização de um contrato como complexo contém um

âmbito maior: envolve a situação fática e as peculiaridades do caso.38 Ressalte-se

que a complexidade pode se referir tanto ao número de elementos que compõem a

relação quanto à probabilidade de inter-relações entre eles e/ou que deles

derivam.39 Tendo a complexidade a possibilidade de ser exponencial, é necessário

estabelecer critérios de caracterização de contrato complexo.

Quanto aos critérios para caracterizar a complexidade, são abordadas a

complexidade subjetiva, volitiva, normativa e objetiva como critério principal e a

complexidade econômica e tecnológica como critério secundário e/ou vinculado aos

critérios principais (em especial à complexidade objetiva). Ressalve-se que tais

características não são decisivas nem estanques, visto que se relacionam entre si e

com outros fatores e/ou elementos.

Convém anotar que o aspecto temporal permeia todos os critérios de

caracterização dos contratos complexos. Estes têm aptidão para ser contratos de

duração,40 pois a

38 Neste sentido, Forgioni (2015a, p. 62) explica que “[...] a complexidade dos contratos pode variar conforme os seguintes fatores, todos interligados: (i) duração da relação; (ii) iteração da contratação; (iii) valores das prestações e contraprestações; (iv) magnitude dos prejuízos decorrentes do eventual insucesso da operação; e (v) quantidade de pessoas envolvidas na execução do contrato”. 39 Gil (2007, p. 31), ao tratar da caracterização de contrato como complexo, sintetiza: “[...] poder-se-ia caracterizar o contrato como complexo quando: 1) houver elevado grau de incertezas, ou elevado número de contingências, quanto ao seu cumprimento ou fruição das utilidades nele, contrato, previstas; 2) houver dispersão ou variabilidade entre a magnitude das prestações e contraprestações na dinâmica ou fluxo de seu cumprimento (caso típico dos contratos cuja consecução do objeto contratual se desenvolva em ambiente de risco, ou aleatoriedade); e 3) quando o entendimento do conteúdo contratual demande conhecimento amplo ou profundo”. Para Francisco M. de B. P. Coelho (2014, p. 11–2), em sua obra sobre o tema, “Pode, com efeito, falar-se de ‘complexidade’ em diversíssimos sentidos — complexidade ‘subjetictiva’ ou ‘objectiva’, complexidade consubstanciada numa pluralidade de declarações (ou de prestações) ou numa pluralidade de negócios; complexidade traduzida na inclusão, num único contrato, de estipulações, que se reportam a diversos tipos contratuais ou na distribuição de tais estipulações, por vários negócios autónomos; complexidade traduzida naquela referência a regimes legais de vários tipos contratuais ou, inversamente, na impossibilidade de as estipulações ou prestações se reportarem claramente a determinando tipo contratual, devendo então recorrer-se a uma nova e unitária matriz causal; etc. Um conceito, pois ambíguo e sem unidade interna de circunstâncias, havendo, portanto muitas (outras tantas) formas possíveis de complexidade — e nessa medida não podendo fornecer um critério delimitativo seguro (entre o que é complexo e o que não é)”. 40 Para Gomes (1997, p. 80), “Há contrato de duração quando as duas partes, ou uma delas, estão adstritas ao cumprimento de prestações contínuas ou repetidas em intervalos estipulados, por tempo determinado ou indeterminado”

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[...] economia moderna se desenvolve intensamente por meio de contratos de duração (por oposição a contratos instantâneos) e tendo em vista a aceleração da produção e a complexidade das situações que vão surgindo, por acordo com cláusulas abertas. A visão algo padronizada dos “momentos contratuais”, conclusão e execução dos contratos, não cobre exatamente essa realidade (AZEVEDO, 2005a, p. 123).

Além disso, a questão do tempo — da cronologia para cumprimento das

obrigações, prestações e contraprestações — pode ser o vetor da complexidade. O

contrato é celebrado num determinado momento, e seu programa pode ter etapas

diversas, passíveis de condicionar e/ou vincular a celebração de outros contratos

(coligados), ou condicionar o cumprimento de outras obrigações advindas daquele

mesmo programa contratual (contratos complexos). O tempo pode ser o fator de

numerosas vicissitudes. Conforme Martins-Costa (2011, p. 258),

[...] o contrato é uma instituição cronotópica sendo o tempo o seu grande problema. A promessa de cumprimento, implicitamente contida na declaração negocial, é a modalidade normativa destinada à apreensão do futuro jurídico. Mais que um ato de apreensão, cada contrato caracteriza, verdadeiramente, um ato de comprometimento do futuro. Este é conjetural, incerto, pleno de riscos, tendo razão Maurice Hauriou ao dizer que na tensão entre a incerteza causada pelo futuro e a necessidade humana de um regramento está “o empreendimento mais ousado que se possa conceber” para estabelecer o domínio humano sobre os fatos, integrando-os num ato de previsão.

O aspecto temporal relaciona-se tanto com a confiança que as partes

reciprocamente atribuem à possibilidade de o contrato ser cumprido quanto com o

risco do inadimplemento (total ou parcial). Nas negociações empresariais da

sociedade contemporânea, o tempo, a sua delimitação, a sua exatidão e o

cumprimento do pactuado no tempo avençado são essenciais. Os contratos de

longa duração são representantes exemplares de relações que se tornaram

complexas.41 Por outro ângulo de análise, o tempo pode ser um fator para redução

41 Sobre os contratos de longa duração, Nitschke (2011, p. 86–7) que “Esses vínculos se problematizam quando a temporalidade contratual passa do ‘evento’ à ‘duração’, i. e., quando a realidade paulatinamente impõe a necessidade de celebrarem-se contratos duradouros, esticados no tempo, que não se erupcionam explosivamente, mas que derramam seu magma continuamente, formando camadas e sedimentos de obrigações e contraobrigações em constante fluxo. À alteração da base fática corresponde inegavelmente um alargamento do próprio significado de ‘contrato’ — no que revela a primeira faceta de sua historicidade —, mas também dos instrumentos práticos que possam garantir a prosperidade desse novo espécime de liame — aqui fazendo emergir a segunda faceta de sua historicidade. A realidade questiona e exige, o direito responde e propõe: os contratos de longa duração são representantes exemplares de relações que se tornaram complexas.”

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de complexidades ou de mitigação de riscos, em particular quando o contrato

envolve complexidade técnica e/ou tecnológica; as perturbações iniciais tendem a se

acomodarem com sua operacionalização, com as experiências adquiridas.42

O contrato complexo por ser um contrato de diversidades (numa intrincada

combinação e/ou fusão de elementos típicos e/ou atípicos), e ter a influência do

tempo (contrato de duração) implica que é uma tarefa quase impossível presumir

todas as situações que possam decorrer, embora haja aumento crescente de

inclusão de cláusulas de caráter normativo no contrato. Assim, os contratos

complexos, em sua maioria, são incompletos, com lacunas.

Martins-Costa (2011, p. 261) denomina tais contratos incompletos como

“contratos evolutivos” que contêm, em sua estrutura, um projeto de adaptação à

realidade. Combinam, em sua estrutura, cláusulas rígidas —integralmente

predeterminadas — e outras “abertas” ou “lacunosas” — que carecem de

preenchimento conforme o evoluir das circunstâncias. Daí o uso43 da expressão

“contratos evolutivos” como evocativa de um fenômeno que diz respeito às relações

contratuais com o tempo, como os contratos de fornecimento de bens, prestação de

serviços, distribuição. São contratos “incompletos” contendo em sua estrutura um

projeto de adaptação à realidade. Comportam problemas específicos por serem

contratos de duração e modelam uma relação sinalagmática evolutiva.

Nessa mesma linha, têm-se os denominados contratos relacionais, que não

são “tipos” contratuais; são contratos que se aperfeiçoam em uma relação complexa

em que elementos contratuais não vinculantes relacionados com o contexto são

levados em consideração para os motivos de sua constituição (MACEDO JÚNIOR,

2011, p. 313). São relacionais44 todos os contratos que estabelecem e/ou regulam

42 Segundo Gil (2007, p. 78), “Contratos também podem se tornar menos complexos ao longo do tempo, à medida que as contingências que os circundam se tornem mais conhecidas e que a experiência sobre eles se acumule”. 43 Conforme Martins-Costa (2011a, p. 260–1), a expressão “contratos evolutivos” não diz respeito a nenhum tipo contratual. 44 Para Leonardo (2003, p. 136), “[...] longe de pretenderem projetar, com minúcias, o futuro da relação entre as partes (que se pretende longo), os contratos relacionais seriam propositadamente incompletos (incomplete agreements), concentrando esforços no regramento do processo obrigacional por eles instaurado. A indefinição do objeto (ou incompletude do objeto), por sua vez, seria colmatada ao longo do processo obrigacional, a partir de diversos critérios (condições econômicas, avanços tecnológicos, etc.)”. Martins-Costa (2015, p. 367), ao se referir aos contratos de colaboração empresária, relata que com frequência se apresentam em forma de contratos atípicos, relacionais, lacunosos e duradouros. As quatro noções estão comumente imbricadas e até superpostas, mas não são absolutamente coincidentes. Por outro lado, não é necessário que um

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uma relação de longo prazo entre as partes, em geral preservando determinada

flexibilidade para que estas possam ajustar sua relação, seja no tocante ao preço, à

quantidade e/ou à qualidade de produtos (por exemplo) etc., à medida que as novas

circunstâncias e o passar do tempo o recomendam (ROSITO, 2007). Têm por objeto

a colaboração, como o consórcio, a sociedade, as parcerias e, os que, mesmo não

tendo por objeto a colaboração, exigem-na intensamente para atingir seus fins, tais

como a distribuição e a franquia (AZEVEDO, 2005a, p. 125).

Portanto, como características dos contratos complexos, há que incluir a

relação com o tempo e a colaboração entre as partes (podendo ser contratos de

duração, evolutivos, relacionais), que envolve tanto as incompletudes como a

relação de confiança, para que os riscos (que supõem as lacunas e o tempo)

possam ser mitigados com a necessária cooperação ente os participantes.45

2.1 Complexidade subjetiva e complexidade volitiva

Para que se tenha um contrato complexo quanto aos sujeitos (complexidade

subjetiva), é importante que, ao menos, um dos polos contratuais (centro de

interesses) seja formado por mais de uma pessoa.46

O contrato, que se forma pelo consenso, requer, pelo menos, duas partes; cada

uma delas vai, no âmbito da autonomia privada, expressar sua vontade de sujeitar-se

àquele determinado regulamento, que resulta do conjunto de cláusulas contratuais.

Parte do contrato é o titular da relação contratual, o que emite a declaração

contratual constitutiva, o sujeito que diretamente recebe e sobre o qual recai o efeito

jurídico do contrato (BIANCA, 1987). Parte não se confunde com pessoa47 ou sujeito

de direito48 e pode ser entendida como centro de interesses49 — tem o sentido de

que certos interesses comuns podem aglutinar, em uma só parte, dois ou mais

contrato atípico seja de colaboração empresária ou lacunoso. Assim, as conexões entre essas espécies e o seu alcance obedecem a critérios diversos. 45 Konder (2006, p. 161), ao tratar dos contratos relacionais e dos contratos conexos, observa que os dois conceitos, embora tratem de fenômenos interligados, buscam elucidar problemas distintos, portanto são chaves conceituais complementares, e não concorrentes. Enquanto no conceito de contrato relacional a renovação ocorre por meio da superação da tradicional concepção descontínua em nome de uma leitura estrutural sociologicamente mais profunda, na conexão contratual a superação é da leitura singularizada do contrato em nome de uma perspectiva mais abrangente. 46 Neste sentido, ver Marino (2009, p. 110). 47 Para Fachin (2012, p. 165), “[...] é a noção formal que reduz a de pessoa a um complexo de normas, ou centro de interesses”. 48 Conforme as lições de Fran Martins (1988, p. 106) e Comparato (1978, p. 514). 49 Bessone (1997) cita Carnelutti ao descrever parte como centro de interesses.

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sujeitos contratuais. A pluralidade dos sujeitos unifica-se, no caso, formando uma

parte apenas.

Betti (2008, p. 125) ensina que “[...] para conferir a qualificação de ‘parte’ não

é suficiente o fato de uma pessoa referir-se à forma do ato em si mesmo, é também

preciso que se possa imputar a essa pessoa o conteúdo do ato, o significado que ele

tem como autorregulamento de interesses privados”. Para Roppo (2009, p. 81), “[...]

parte significa centro de interesses objetivamente homogêneos, e uma parte

contratual pode consistir em uma, como em duas, três ou mais pessoas (que

relativamente àquele contrato exprimem uma posição de interesse comum)”.

A complexidade subjetiva nem sempre é aparente. Embora, em certos

contratos, figure apenas uma parte num dos polos, por decorrência da lei ou de

contratos a tal contrato coligado, o centro de interesses indiretamente pode ser

formado por mais de uma parte. Além disso, verifica-se uma maior incidência de

contratos plúrimos, nos quais, nos polos (ou em um deles), encontra-se uma variada

gama de sujeitos.50 É o que ocorre, por exemplo, se, dentre diversos contratos

coligados ao contrato complexo, um deles se tratar de uma relação de consumo. A

conjugação do art. 3º com o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor impõe que,

apesar de a relação contratual contenha apenas uma parte no polo como vendedor

(por exemplo), todos aqueles que a referida lei define como fornecedor poderão ser,

em razão da solidariedade legal, responsabilizados por vícios do produto ou do

serviço.

Assim, um comprador, ao adquirir determinado bem para seu consumo — um

par de tênis, por exemplo —, estará firmando um contrato de compra e venda com o

estabelecimento comercial que lhe vendeu. Mas, na hipótese de detectar um vício

no produto — por exemplo, a sola do tênis descola — e se estiver dentro do prazo

legal ou contratual da garantia, então ele poderá requerer a troca ao

estabelecimento comercial, assim como ao fabricante. Este, uma vez acionado, terá,

a seu turno, de responder ao consumidor. Noutros termos, indiretamente, o centro

50 Segundo Marques (1998, p. 23), “Passamos de um contrato bilateral e comutativo, para o modelo de um contrato múltiplo, triangular ou plúrimo, onde nos polos encontram-se uma variada gama de sujeitos, como o fornecedor direto e a cadeia de fornecedores indiretos e sujeitos protegidos, como o consumidor-contratante, o consumidor stricto sensu e os consumidores equiparados; um contrato muitas vezes aleatório e se não, um contrato de fictamente-comutativo, pois o importante passa a ser o nexo das prestações e seu equilíbrio (synalagma), não a prestação em si, mas seus anexos, sua qualidade, a informação que a acompanha, o status que assegura, a rapidez e a segurança quanto ao seu prestar”.

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de interesses do polo vendedor, para a relação de consumo (de compra e venda de

um par de tênis), não é necessariamente formado apenas pelo estabelecimento

comercial, mas também, neste caso, pelo fabricante. Daí que, em grande parte, as

relações de consumo são relações com complexidade subjetiva, muitas vezes não

aparente.

Apesar de este trabalho não focar nos contratos de consumo, convém anotar

que, de tal circunstância, podem decorrer regulamentações específicas a ser

previstas nos contratos entre entes da cadeia de fornecimento a fim de regular os

efeitos da atribuição, por imperativo legal, da solidariedade na responsabilidade por

vícios do produto ou serviço. A consequência é uma complexidade que não é

apenas subjetiva ou objetiva, mas também normativa, pois se refere ao regulamento

(que advém da relação patrimonial estabelecida) quanto ao efeito da

responsabilidade nesse caso. Assim, a complexidade subjetiva pode implicar,

também, a complexidade normativa.

Todavia, no âmbito dos contratos paritários de que se ocupa o presente

trabalho, destaca-se que, em razão dos movimentos da sociedade contemporânea

de concentração de mercados, de cooperação entre empresários visando à

eficiência econômica e tecnológica, verifica-se um movimento crescente de “união”

de partes num dos polos contratuais.51 Pode-se citar o consórcio de empresas e as

joint ventures como exemplos em que, de forma recorrente, nessas figuras

contratuais se terá a complexidade subjetiva.

Por serem formados por empresas independentes ou não, que decidem

conjugar suas atividades em certos setores ou para certos empreendimentos sem

perder sua autonomia decisória própria (COMPARATO, 1978), os consórcios

caracterizam, ao firmar contratos com terceiros, a complexidade subjetiva, pois duas

ou mais empresas consorciadas integrarão um dos polos contratuais.

51 Segundo Timm e Rodrigues (2009, p. 345), “No atual estágio de globalização pode-se observar uma maior fluidez entre as trocas no mercado, acirrando a competição entre as empresas no âmbito mundial. É grande o número de empresas que necessitam buscar forças para enfrentar concorrentes cada vez mais fortes. Seja para entrar em novos mercados fora de seus países, seja para se fortalecerem internamente, as empresas se viram obrigadas a recorrer a parcerias empresariais para se manterem neste competitivo mercado e aproveitar as oportunidades. Uma das formas encontradas para tanto são as joint ventures, que permitem a associação entre parceiros de nacionalidades e qualidades distintas”.

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A joint venture52 une duas (ou mais) empresas independentes que, para

atingir seus objetivos, ajustam uma união de esforços (parceria) por um período de

tempo determinado ou indeterminado, em geral um escopo pré-definido. O

empreendimento é comum aos contratantes, mas os objetivos em si não são,

necessariamente, iguais entre eles (TIMM et al., 2009). Assim, se houve uma joint

venture num dos polos da relação contratual, então se estará diante da

complexidade subjetiva. Cabe notar que tal complexidade subjetiva (consórcio e joint

venture, por exemplo) pode ensejar conflitos, sobretudo em razão de seu tempo de

duração53 — são contratos tidos como relacionais;54 embora, quando as partes se

unem para um empreendimento comum — conforme citado acima —, nem sempre

os objetivos são os mesmos. Portanto, integrar tais contratos no rol dos contratos

complexos enseja que, também a eles seja aplicada a sistemática interpretativa

apresentada neste estudo.

Pode ocorrer na relação contratual que uma parte ou todas as partes incorram

em manifestações de vontade,55 o que ensejaria a denominada complexidade

volitiva. Tal pluralidade de manifestações de vontade poderá estar relacionada com

a pluralidade contratual (contratos coligados). Todavia, ao se relacionar com um

único contrato, este será complexo. Nesse sentido, Miranda (2012, p. 245) cita como

exemplo a oferta irrevogável, em que “[...] há negócio jurídico unilateral, sucedido

por outro, bilateral, em que a oferta e a aceitação passam a ser elementos”.

52 Conforme Carmona (2008, p. 165), “[...] os dicionaristas anglo-saxões costumam definir a expressão joint venture como um empreendimento levado a efeito por duas ou mais partes no qual os lucros, perdas e o controle são divididos. Diferenciam a joint venture da sociedade por conta do escopo e duração mais limitados da primeira em relação à segunda. A definição — simples, mas significativa — evidencia o caráter específico da associação, que é pensada para uma determinada atividade, de execução imediata, bem como a comunhão de interesses, eis que todos os participantes deverão contribuir para um esforço comum (tirando os respectivos proveitos); em contrapartida, deverão dividir os prejuízos. Todos os participantes exercerão, em alguma medida, o controle da atividade comum e a direção do projeto, estando o acordo baseado na boa-fé”. 53 Nesse sentido, Timm e Rodrigues (2009, p. 69) afirmam que “Não só o tempo de duração, por si só, pode gerar problemas quanto ao negócio. A longa duração dessa associação, que é da essência deste tipo, pode gerar necessidades de adaptações econômico-financeiras ao acordo inicial”. 54 Conforme Antônio Junqueira de Azevedo (2005a, p. 123), “Há no contrato relacional, um contrato de duração, e que exige fortemente colaboração. São relacionais todos os contratos que, sendo de duração, têm por objeto colaboração (sociedade, parcerias, etc.) e, ainda, os que, mesmo não tendo por objeto a colaboração, exigem-na intensa para poder atingir os seus fins, como os de distribuição e da franquia, já referidos. O consórcio, sendo de colaboração e de duração, não resta dúvida, é um contrato relacional”. 55 Segundo Bessone (1997, p. 117), “[...] a manifestação da vontade não depende de formalidades extrínsecas, podendo verificar-se por qualquer meio apto a revelá-la”.

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63

Para esse autor, as manifestações de vontade podem se fundir — o que ele

denomina de “coagulação”, que leva à unidade e complexidade volitiva do negócio

jurídico. A “coagulação”, contudo, não implica inseparabilidade, como ele sugere

com o exemplo da doação com cláusula de inalienabilidade (“modus”): a nulidade do

modus e da cláusula de inalienabilidade não contagia o todo.56

As diversas manifestações de vontade podem estar relacionadas com o

objeto, especialmente com o aspecto temporal do cumprimento do objeto, à forma

de manifestação ou ainda a diversidade de prestações que compõem o objeto. Uma

das partes pode ser requerida a manifestar sua vontade em momentos distintos

numa mesma relação contratual, ou de forma diferente.

A complexidade volitiva tem realce na sociedade contemporânea, em que as

manifestações de vontade podem ocorrer diversamente, inclusive em razão dos

avanços tecnológicos ou da complexidade técnica relativa ao objeto contratual. A

título de exemplo, pode ocorrer que, por questões de ordem técnica, uma das

partes, já tendo assinado um contrato de prestação de serviços de elaboração de

projeto e fornecimento de produto (isto é, já tendo manifestado sua vontade pela

celebração do contrato), seja inquirida a se manifestar se aprova um projeto

(decorrente do contrato firmado) que ensejará o fornecimento de dado produto.

Nessa hipótese, verifica-se uma nova manifestação de vontade que, se positiva,

ensejará uma nova etapa da relação contratual, e que, se negativa, seguirá os

trâmites eventualmente previstos no programa contratual — por exemplo, refazer o

projeto ou rescisão contratual. O que é importante ressaltar que é comum nos

contratos complexos que as partes sejam inquiridas a manifestar sua vontade em

mais de uma oportunidade.

Cabe frisar que os critérios de caracterização da complexidade não são

estanques e isolados; ante, são dinâmicos e relacionados. Por essa razão, os

contratos complexos devem ser analisados como conjunto de elementos.

56 Para Miranda (2012, Tomo III p. 245), “[...] as manifestações de vontade ou se coagulam, de modo que se fundem e nenhuma declaração ou manifestação de vontade está, aí, por si só ou não se coagulam. [...] Na coagulação volitiva, há elemento ou elementos volitivos nucleares e elementos não-nucleares, dando ensejo a espécies, em que a falta de algum ou de alguns desses se trate, a despeito da coagulação, como anormalidade ou ineficácia parcial. Donde se tira, desde logo, que a coagulação não implica inseparabilidade. [...] A bilateralidade pode ser em negócio jurídico único, se apenas ocorre enantiomorfia (vender é enantiomórfico de comprar; trocar, de trocar; ser locador, de ser locatário)”.

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64

2.2 Complexidade normativa

No contexto proposto na pesquisa aqui descrita — da complexidade da

sociedade contemporânea e dos efeitos do movimento pós-moderno, em particular

da globalização — verifica-se uma onda crescente de interesse dos particulares,

sobretudo das grandes corporações empresarias, em ampliar os limites da liberdade

negocial, inclusive ao incluir regras de composição de conflitos em seus contratos.57

Portanto, uma face da sociedade contemporânea e do circuito de produção do

direito nela inserido é a aptidão ao autorregramento. Nesse sentido, passam a

integrar os contratos regras requintadas de caráter normativo, gerando a

denominada complexidade normativa.

Perlingieri (2008, p. 736) entende a função da relação jurídica como o

regulamento, o ordenamento do caso concreto, pois se trata de conjunto de

situações jurídicas subjetivas que encontra sua síntese em chave normativa: é a

superação, a composição de um conflito de interesses mediante um regulamento:

A relação jurídica é regulamento dos interesses na sua síntese: é a normativa que constitui a harmonização das situações subjetivas. Ela se apresenta como o ordenamento do caso concreto; não é casual, de fato, a definição do ordenamento como sistema de relações jurídicas. A relação jurídica, como regulamento, é um conjunto de cláusulas, preceitos, prerrogativas, atribuições. O perfil tipicamente normativo conflui para aquele funcional.

Para a concepção da complexidade normativa, é importante destacar que não

se trata, exclusivamente, da figura do contrato normativo — conforme Messineo

(1952, p. 57) ao diferenciar o contrato normativo que tem por conteúdo estabelecer

normas jurídicas do contrato em sentido próprio (técnico) como aquele cujo

conteúdo são relações jurídicas patrimoniais. Este último estabelece direitos e

obrigações que vão surgir entre as partes; é ordenado por determinada e concreta

57 Faria (1996, p. 167) aponta como consequência do processo de globalização “[...] uma intrincada articulação de sistemas e subsistemas internos e externos, nos planos micro e macro. Uma parte significativa dos direitos nacionais, por exemplo, hoje vem sendo internacionalizada pela expansão da Lex Mercatoria e do Direito da Produção e por suas relações intersticiais com as normas emanadas dos organismos multilaterais. Uma outra parte, por sua vez, vem sendo esvaziada pelo crescimento de normas privadas, no plano infra-nacional, na medida em que cada corporação empresarial, valendo-se do vazio normativo deixado pelas estratégias de desregulamentação e deslegalização, cria as regras de que precisa e jurisdiciza suas áreas e espaços de atuação segundo suas conveniências. A desregulamentação ao nível do estado significa, desta maneira, a re-regulamentação e a relegalização ao nível da sociedade — mais precisamente, ao nível das organizações privadas capazes de oferecer empregos, impor comportamento etc.”

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relação econômica e, em especial, estabelece a base de quais regras segundo as

quais a relação será disciplinada; enfim, enuncia um resultado concreto e específico

para aquelas partes, não para outras. Para esse autor, o contrato normativo, a seu

turno, é um resultado abstrato e genericamente referível a todos que se encontram

(ou quando se encontrarem) em certa situação; será obrigatório mesmo que as

partes ignorem seu conteúdo ou não o mencionem; influenciará na relação apenas

de forma indireta (da mesma forma que uma norma jurídica pode influenciar); uma

vez válido, o será para um número indeterminado de casos. O contrato normativo

pressupõe que a relação patrimonial seja proveniente de outra relação que não a

que ele estabelece (pois nem o poderia fazer).

O contrato em sentido técnico e o contrato normativo podem ser mesclados

em um único pacto ou consignados em um mesmo e único documento. Nem por

isso se identificam nem um absorve o outro. O caráter de singularidade de um e de

generalidade do outro basta para dirimir a possibilidade de identificação.

O contrato é verdadeiramente normativo quando: (i) disciplina situações

suscetíveis de se repetirem; (ii) representa um fenômeno de autodisciplina, ou seja,

de autocomposição de normas admitidas (não estando em oposição com normas

imperativas). O contrato normativo estaria dentro do rol dos contratos padronizados,

conforme Noronha (1996, p. 107–8); é aquele no qual são os próprios contraentes

que preestabelecem os termos por que se regerão suas relações contratuais. É um

prévio contrato, por isso mesmo designado de normativo (pactum de modo

contrahendi). Tem a característica de não prefixar todo o conteúdo dos futuros

contratos individuais, segundo ensinamentos de Orlando Gomes (1997, p. 84), “[...]

pois deixa uma margem às partes dos contratos singulares para que, em pontos

secundários, ou variáveis, exerçam a liberdade de estipulação, introduzindo

cláusulas que não contradigam ou desvirtuem as disposições normativas”.

Tendo em vista a expressão cunhada por Gomes (1972, p. 13) — “[...]

contratos normativos destinam-se essencialmente a constituir o conteúdo normativo

dos contratos existentes, ou por existir, na sua órbita de atração [...]” — e

adaptando-a para a caracterização de contrato complexo por complexidade

normativa, é importante ressaltar que, ao celebrarem o contrato, as partes podem

convencionar quantas cláusulas quiserem, construindo — se o pretenderem — um

regulamento complexo e articulado que preveja e discipline todos os aspectos

possíveis, todas as eventualidades, todas as consequências da relação contratual.

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66

Tal regramento pode ser firmado no mesmo instrumento que contiver a relação

patrimonial ou em instrumento apartado. Pode ser firmado em momento

concomitante ou não da relação contratual patrimonial propriamente dita.

A complexidade normativa relaciona-se com a diversidade de situações que a

regulamentação poderá englobar, especialmente decorrentes das vicissitudes do

contrato (cuja maioria expressiva é contratos de duração) que poderão advir daquele

contrato. A complexidade requer recursos de linguagem como a intertextualidade, o

intercâmbio de informações com as áreas técnicas, financeiras e outras.

Entretanto, mesmo a norma contratual que já é individual e concreta, que está

em relação direta com a realidade, não tem o condão de abarcar todas as possíveis

situações e vicissitudes decorrentes da relação patrimonial (complexa) estabelecida.

Daí a importância de incluir regras de caráter “geral” (cláusulas abertas), nas

disposições de caráter normativo. Ao introduzir no contrato as hipóteses das

vicissitudes que poderão ocorrer na relação contratual complexa (considerando-a

como uma relação sinalgmática evolutiva58), normatizando as possíveis situações a

ser enfrentadas, o particular amplia o âmbito da sua autonomia, pois atrai para si a

possibilidade de solução dos conflitos, ou, ao menos, estabelece as regras que o

órgão julgador (juiz, árbitro) utilizará para a decisão de eventual conflito na hipótese

de não ocorrer a autocomposição. Se, por um lado, isso acarreta complexidade no

âmbito normativo, por outro permite que autonomia, a liberdade das partes, também,

se faça presente na forma e nas regras que vão permear a solução de conflitos.59

A complexidade advém da diversidade de situações que podem estar

abrangidas nesse regramento. Assim, são importantes para interpretar os contratos

complexos. Habitualmente, a complexidade normativa também decorre da

complexidade subjetiva ou objetiva. Conforme exposto no tópico que tratou da

complexidade subjetiva (não aparente), ou seja, da legislação consumerista, verifica-

se, nos casos concretos, relações que se encadeiam com base nos contratos.

58 Martins-Costa (2011, p. 261) diz que tecnicamente a “evolutividade” ampara-se em um complexo de fórmulas, podendo resultar de critérios e procedimentos postos pontualmente no contrato ou, diferentemente, em previsão genérica de renegociação, procedida diretamente entre as partes ou viabilizada com a intervenção de um terceiro imparcial. 59 Nesse sentido, diz Martins-Costa (2011, p. 262), “É função dos mecanismos adaptativos criados pela autonomia privada converter uma relação contratual estática em uma ‘relação evolutiva’, viabilizando às partes impedir que circunstâncias modificativas, no mais das vezes externas e subtraídas de sua esfera de controle, alterem de maneira substancial a composição de interesses econômicos originariamente programada”.

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Retome-se o exemplo da compra de um par de tênis: nessa vertente, segundo a

lógica da relação entre fornecedor de matéria-prima e indústria fabricante, o contrato

de fornecimento poderá abarcar uma série de regulamentações quanto aos efeitos

de uma inadequação da matéria-prima verificada durante a industrialização e de tal

inadequação quando esta for verificada depois o produto estiver em circulação.

Assim, serão situações distintas. Na primeira situação a relação pode se

denominar “interna” — entre fornecedor e fabricante do produto final. O regramento

vai se referir à eventual inadequação do produto na linha de fabricação. Em razão da

inadequação poderá ocorrer atraso na fabricação, poderá haver perdimento de

produtos, dentre outras consequências que, em regra, atingirão a relação contratual.

Na segunda hipótese, se o produto final for colocado em circulação e apresentar

inadequação em razão da matéria-prima fornecida, o regramento será de uma

amplitude maior, inclusive porque, nessa esfera, o âmbito da autonomia privada

estará reduzido por normas cogentes consumeristas.

Entretanto, tal limite não impedirá de existir a previsão quanto ao fornecedor

de matéria-prima indenizar todos os danos sofridos eventualmente pela indústria,

mas impedirá que exista uma previsão em que o fornecedor da matéria-prima não

poderá ser acionado judicialmente pelo consumidor final, pois esta é uma garantia

legal do consumidor. Assim, com base no exemplo acima, poderia haver dois tipos

de regramentos: (i) um relativo somente às partes envolvidas — uma relação interna;

(ii) um que guarde relação com terceiros — uma relação externa.

A complexidade normativa contratual consiste em incluir regras (de caráter

normativo) para eventuais situações de natureza distintas, pois uma envolve uma

relação interna e outra uma relação (também) externa, na qual a incidência de

regras heterônomas pode ser muito maior. São exemplos de regramentos que

atraem e/ou caracterizam a complexidade normativa: as cláusulas de adaptação do

contrato às vicissitudes da realidade negocial advindas do tempo: como as cláusulas

de reajuste de preço, cláusulas de alinhamento e os pactos de renegociação

(cláusula de hardship); os contratos-quadro, por terem o caráter de contrato

normativo. O negócio jurídico processual e a cláusula compromissória de arbitragem,

também, são exemplos de regramentos caracterizadores da complexidade

normativa nos contratos.

Com o fito de contextualizar tais exemplos ao exposto quanto à complexidade

normativa, passa-se a discorrer sobre eles, com o alerta de que não se adentrará

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questões relativas a natureza jurídica, características, efeitos e problematizações

decorrentes. Tendo em vista os contratos complexos serem de duração, as

alterações das circunstâncias, em particular aquelas que atinjam substancialmente o

contrato, ensejam a inclusão de cláusulas como de reajuste do preço mediante

indexador, de alinhamento, o “pacto de renegociação” — a denominada cláusula de

hardship. Em razão de sua duração no tempo, os “contratos evolutivos” são

“incompletos”: contêm em sua estrutura um projeto de adaptação à realidade,

combinando cláusulas rígidas (integralmente predeterminadas) com cláusulas

abertas. Suscitam a necessidade de renegociação (MARTINS-COSTA, 2011, p.

261).

A “cláusula de reajuste do preço”60 mediante a utilização de determinado

índice é uma cláusula que impede a desvalorização monetária e pode ser entendida

como cláusula de adaptação automática do contrato à realidade de economia

inflacionária. As denominadas cláusulas de alinhamento são de adaptação

semiautomática e, em geral, aplicadas quando um concorrente apresenta uma

condição financeira mais favorável; nesse caso, outorga-se ao contratante a

possibilidade de manter o contrato alinhando no preço (MARTINS-COSTA, 2011, p.

259).

Por “pacto de renegociação” entende-se a cláusula contratual, não

automática, a qual preveja que, ante circunstâncias (alheias à vontade das partes)

que ensejaram alterações significativas nos fundamentos (acima de tudo

econômicos) originais do contrato, de sua base objetiva,61 as partes deverão

renegociar determinadas cláusulas e/ou condições contratuais. Tal cláusula está

vinculada aos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual, dos quais decorrem o

dever de cooperação e solidarismo contratual.62

Nos contratos internacionais, a obrigação de renegociar é de larga utilização

por meio da “cláusula de hardship”.63 Como explica Martins-Costa (2011, p. 262),

60 São as cláusulas de indexação, também denominadas de escala móvel (GOMES, 1980). 61 Conforme Nery Júnior e Rodovalho (2011, p. 120), “[...] em não havendo mais a base objetiva sobre a qual o negócio jurídico foi pactuado, inexiste, verdadeiramente, a base contratual que se pretende executar, daí o surgimento do dever de renegociação (obrigação de colaboração e cooperação na gestão do risco contratual nos contratos de longa duração), inclusive como expressão da boa-fé que deve presidir a execução do contrato”. 62 Nesse sentido, vide Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 254–5). 63 Martins-Costa (2011, p. 263), “[...] a cláusula de hardship exerce quatro funções: (a) assegurar a preservação do equilíbrio econômico e a continuação do contrato; (b) atuar como meio de repartição,

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“[...] situações de hardship passaram a ser tidas em cláusulas contratuais como

causa da alteração do pactuado em vista de minimizar a situação aflitiva que, por

força do hardship, atingiria um ou ambos os contraentes, vindo a afetar o contrato”.

As cláusulas de renegociação, conforme Nery Júnior e Rodovalho (2011, p. 123),

consubstanciam-se em exercício da “liberdade contratual e da autonomia privada”,

fixando as partes “contornos e procedimentos” que a renegociação contratual deve

observar, caso sobrevenham perturbações das prestações e alteração das

circunstâncias (base objetiva) a ponto de desequilibrar a relação contratual,

conforme originalmente contratada.

O pacto de renegociação revela uma dupla obrigação: (i) de resultado, quanto

à obrigação das partes em efetivamente entrar em discussão; (ii) de meio, pois a

discussão deve ser construtiva, sancionada por perdas e danos.64 Caracteriza-se em

dever de renegociar de boa-fé, e não em uma obrigação de concluir positivamente o

acordo de renegociação (NERY JÚNIOR; RODOVALHO, 2011, p. 125).

É imperioso que as partes indiquem os parâmetros que caracterizem a

situação efetiva que enseje a obrigação de renegociação, ou seja, qual será a

dificuldade que afete substancialmente a base objetiva do contrato, o hardship,

podendo incluir em tal rol as circunstâncias imprevisíveis, as incertas, as previsíveis

quanto à possibilidade de ocorrerem, mas imprevisíveis quanto ao grau de afetação

ao contrato, as que estejam fora do controle das partes.65

entre os contratantes, dos custos resultantes do evento superveniente e incerto; (c) impedir a extinção contratual devida à resolução por excessiva onerosidade de um contrato que ainda por ser útil; (d) encontrar um novo regime adaptado aos mútuos interesses”. 64 Conforme Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 259) e Martins-Costa (2011, p. 267). No mesmo sentido, dizem Nery Júnior e Rodovalho (2011, p. 125), “Em verdade, o adimplemento das obrigações decorrentes do dever de renegociar se verifica no comportamento sério, ativo e de boa-fé das partes-contratantes no curso do procedimento de readequação do contrato. Sendo assim, da mesma forma que o próprio dever de renegociação nasce do princípio da boa-fé na execução das obrigações, essa mesma boa-fé se apresenta como o critério fundamental para indicar se o comportamento da parte durante o procedimento de readequação do contrato consubstanciou-se em comportamento cooperativo efetivo (sério e ativo) ou não. [...] O inadimplemento no dever de renegociar pode dar margem (além, evidentemente, da possibilidade de revisão judicial do contrato ou de resolução do contrato por onerosidade excessiva) a eventual indenização por perdas e danos, caso a parte prejudicada com impossibilidade de conservar o contrato (em razão do incumprimento do dever de renegociar) demonstre e comprove ter efetivamente experimentado danos decorrentes desse inadimplemento (perda de uma chance, v. g.)”. 65 Nesse sentido, diz Martins-Costa (2011, p. 264), “Durante algum tempo entendeu-se que o acontecimento causador do hardship (e, portanto, ensejador da renegociação) deveria ser um acontecimento imprevisível. Presentemente, a doutrina majoritária afasta esse requisito, conquanto concorde que deva ser o hardship ‘substancial’”.

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Assim, o pacto de renegociação deve ser cumprido com lealdade, com o

efetivo comprometimento de diligência, de buscar os meios para adequação do

contrato à realidade. O inadimplemento do pacto de renegociação, que pode ser

configurado tanto pela recusa à negociação como pelo comportamento desleal,

enseja: (i) perdas e danos; (ii) a possibilidade de execução específica pela parte

lesada; (iii) revisão judicial do contrato; (iv) rescisão contratual, conforme artigo 475

do Código Civil.66

A inclusão de cláusulas de adaptação do contrato frente às vicissitudes, em

especial as decorrentes do tempo de duração, tais como as cláusulas de

renegociação, denota um exemplo claro de complexidade normativa, com a função

de composição de conflitos e, na impossibilidade de composição, de parâmetros de

interpretação do contrato.67

No rol da complexidade normativa, também se pode citar os contratos-quadro.

Trata-se de contratos flexíveis firmados pelas partes e que, segundo Gatsi (1996, p.

3), são aptos a situações contratuais complexas. Sua originalidade vem do fato de

deixar a outras modalidades contratuais a preocupação de, enfim, realizar o objetivo

dos contratantes. Esses contratos futuros são chamados contratos de aplicação, na

medida em que refletem a tendência dos negócios estabelecida pelo acordo de

vontades inicial. Tem como características a necessidade de um duplo consenso

(que deverá existir tanto no contrato básico como nos dele decorrentes) e uma

vontade de padronizar os contratos futuros (affectio modulus), cumulada com a

intenção das partes de cooperar em vários negócios (affectio cooperandi) dentro do

que foi preestabelecido (WALD, 1998).

A relação contratual futura não se limita a uma simples assinatura do contrato

(quadro) inicial de vontades. A manutenção do contrato-quadro nas relações entre

os contratantes requer que seja seguido por vários contratos de execução que vão

preencher o quadro pré-fixado, depois de determinar seus elementos essenciais e a

sua conclusão (GATSI, 1996, p. 304–5). Assim, os contratos-quadro, que também

são relevantes na coligaçao contratual — com a flexibilidade de atender situações

66 Ver Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 261), Nery Júnior e Rodovalho (2011, p. 125). 67 Martins-Costa (2015, p. 595) di que, “[...] quando é maior o espaço de atuação da autonomia privada, podem desejar que a elas mesmas seja dado o poder de revisar ou acomodar o contrato às novas circunstâncias, definindo, já no próprio texto contratual, um ‘projeto de adaptação’ ou dispondo sobre essa possibilidade, para o que é prevista uma nova negociação (‘renegociação’) entre os contraentes”.

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contratuais complexas —, podem tanto servir para organizar a operaçao econômica

como um todo quanto ditar regras às quais os contratos futuros deverão se

submeter. Essa hipótese, destaca Forgioni (2015a, p. 57), assume o caráter de

contrato prévio, que, em nosso sistema, pode enfrentar problemas relacionados com

a execução específica.68

Todavia, é relevante a sua função como auxiliar da interpretação das

operações econômicas como um todo, pois orienta a descoberta da função

econômica dos instrumentos firmados e da ligação que guardam entre si. Por

conseguinte, o contrato-quadro, por ter seu conteúdo integrado aos contratos futuros

firmados pelas partes, acarreta a complexidade normativa, podendo ser importante

no processo de interpretação de tais contratos.

No tocante à complexidade normativa, é imperioso ressaltar a importância de

tal tema com a ampliação do âmbito do denominado “negócio jurídico processual”,

previsto no Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). O art. 190 do referido

Código Processual amplia as possibilidades, até então existentes, de as partes se

autodeterminarem no campo processual, ou pré-processual, isto é, de incluírem

regras de natureza normativa. Trata-se de uma verdadeira “[...] cláusula geral de

atipicidade dos negócios processuais” (REDONDO, 2015, p. 273) que “[...] torna o

processo mais democrático” (NERY JÚNIOR et al., 2015, p. 701).

Dentre os critérios estabelecidos para o exercício da autonomia privada na

esfera processual, estão: (i) o processo deve versar sobre direitos que admitam

autocomposição,69 os quais incluem “[...] categoria jurídica mais ampla que os

direitos disponíveis [...]”; dentre os primeiros, pode haver direitos disponíveis e

indisponíveis, “[...] como são os direitos a alimentos. [...] Podem existir, portanto,

negócios jurídicos processuais relativamente a ações que tenham por objeto direitos

indisponíveis no plano material” (WAMBIER, 2016, p. 400–02);70 (ii) as estipulações

68 Segundo Forgioni, conforme o sistema brasileiro — art. 462 do Código Civil —, tal contrato apenas teria execução específica quando encerrasse o acordo sobre todos os elementos do negócio, o que, na prática, não funciona, tendo em vista serem intrínsecas ao contrato-quadro certas indeterminações dos elementos essenciais do contrato de execução. 69 Vide enunciado 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”. 70 Wambier (2016, p. 400–02) também entende que “O negócio jurídico processual, ao contrário dos negócios jurídicos materiais, reserva para si uma característica que lhe dever nortear a existência e a interpretação de suas disposições: tem por objeto uma relação de intenso color público (a própria relação processual é de direito público), e esta característica lhe é inata, o que exige sua compatibilização com normas processuais de caráter cogente, imperativo”.

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poderão versar sobre mudanças no procedimento e convenções sobre ônus,

poderes, faculdades e deveres processuais; (iii) tais alterações poderão incidir antes

ou durante o processo; (iv) poderá tratar do ajuste de calendário para a prática dos

atos processuais.

Na hipótese de inadimplemento de determinada parte quanto à obrigação

assumida em negócio processual, se for devidamente caracterizada, então deverá

se sujeitar às eventuais penalidades previstas no negócio; igualmente, a parte

lesada deverá — se já em curso o processo — levar ao conhecimento do juiz sob

pena de renúncia tácita, com a preclusão de alegar posteriormente (DIDIER

JÚNIOR, 2016). Assim, as partes poderão estabelecer em contrato um regulamento

com caráter normativo visando a um processo judicial, seja quanto às provas, à

interposição (ou não) de recursos, aos procedimentos, ao rateio de despesas ou à

diminuição de prazos, dentre outros aspectos que serão de extrema relevância na

hipótese de conflitos. Ressalte-se que o negócio jurídico processual vai ter eficácia

nas situações de conflito e/ou de pré-conflito. Até tal ensejo, tais normas se

manterão dormentes, sem eficácia.71

Cabe frisar que o alcance do negócio processual requer ruptura com o

sistema processual anterior, ou seja, requer a construção de novos paradigmas,

reflexões despidas de conceitos calcados no entendimento de que as partes não

poderiam (ou tinham pouquíssima possibilidade) se autodeterminarem acerca das

regras processuais. Sem qualquer embargo, a inclusão do negócio jurídico

processual ao negócio jurídico material atrai complexidade. A ressalva é justamente

na sua aplicação que não poderá ser apequenada por eventuais apegos

processualistas à ideia do viés público do processo.72

Consubstanciada como negócio jurídico (NANNI, 2014, p. 16), a denominada

cláusula compromissória, contida no art. 4º da Lei 9.307/96 e no art. 853 do Código

Civil, também, indica o caráter complexo quanto à normatividade do contrato a ela

subjacente (na grande parte das vezes complexo, em razão de seu objeto). Trata-se

de uma das espécies da convenção de arbitragem (art. 3º da Lei 9.307/96), da qual

71 Giovanni Ettore Nanni (2016, p. 265) faz tal menção ao tratar da cláusula compromissória. 72 Nesse sentido, Redondo (2015, p. 275) destaca que “O objetivo do processo é a tutela do direito material, cujo titular são as partes. Por essa razão, deve-se reconhecer que os titulares de determinadas situações processuais são as próprias partes, e não o juiz ou o Estado. E, sendo as partes titulares, deve ser garantida, às mesmas, liberdade maior no sentido da disposição (lato sensu) sobre determinadas situações processuais”.

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73

decorre a obrigação de instituir a arbitragem sem necessidade de compromisso

arbitral posterior.73

Conforme Francisco José Cahali (2015, p. 153),

[...] a cláusula compromissória tem caráter preventivo, na medida em que as partes estão na expectativa de contratar e honrar seus compromissos contratuais, porém desde então deixam previsto que eventual conflito decorrente do contrato deverá ser resolvido por arbitragem, não pelo Judiciário.

Quanto ao objeto da cláusula compromissória, este pode ter um âmbito mais

ou menos amplo. Em regra, o objeto contempla não apenas a instituição do juízo

arbitral, como também o número de árbitros, a instituição que sediará a arbitragem

ou a sua forma de escolha, a legislação incidente. Pode ser determinado, na

hipótese da denominada cláusula cheia,74 a qual contém os elementos

identificadores da arbitragem a ser instituída ou determinável (ainda que em parte),

na hipótese da denominada cláusula vazia,75 que é a incompleta, com lacunas em

que habitualmente ficam pendentes certos elementos essenciais como a forma de

escolha da instituição de arbitragem, o número e a forma de escolha dos árbitros.

Daí ser necessário o consenso das partes para dar início a arbitragem (NANNI,

2014, p. 37).

É imperioso ressaltar, conforme Giovanni Ettore Nanni (2014, p.126), que a

clareza da cláusula compromissória é um meio de diminuir os riscos da contratação.

Assim, registre-se mais uma vez a importância da linguagem nos contratos, em

particular nos complexos. Ao firmar a cláusula compromissória, o que ocorre, de

forma habitual, com a assinatura do contrato a que ela se aplica (e, na grande

maioria dos casos, no próprio instrumento contratual),76 não existe nenhum litígio,

73 Segundo Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 13), não é mais mero pactum de compromittendo; não há que falar em obrigação de firmar o compromisso. 74Francisco José Cahali (2015, p. 157) explica que “Será considerada cheia a cláusula que contempla o quanto necessário para se dar início à arbitragem (art. 19 da Lei 9.307/1996). Mas podem as partes ir além, ou seja, aproveitar a liberdade de contratar para estabelecer diversas outras regras relativas à organização e ao desenvolvimento da arbitragem”. 75 Cláusula vazia é também chamada de cláusula em branco, como o próprio nome sugere. A previsão da arbitragem, dessa forma, traz uma lacuna quanto à forma de instauração do procedimento arbitral quando do surgimento do conflito, celebrado pelas partes diretamente, ou por intermédio do Judiciário (CAHALI, 2015, p. 160). 76 Importante anotar, conforme Giovanni Ettore Nanni (2016, p. 266), que a cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato onde foi incluída, daí que é considerada como negócio jurídico plurilateral.

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74

assim só o conflito é o “[...] fator de atribuição da eficácia em geral [...]” da cláusula

compromissória (NANNI, 2016, p. 265). A partir da deflagração do dissenso que

atribui eficácia à cláusula compromissória, outros negócios jurídicos são celebrados,

seja com a instituição (privada na maioria das vezes) que vai sediar a arbitragem,

seja com a nomeação dos árbitros. Portanto, é inegável a complexidade que decorre

da cláusula compromissória.

Ainda que apresentados de forma breve e com a ressalva de que não são

estanques (pois podem se configurar, também, como exemplo de outras

complexidades ou mesmo de coligamento contratual), tais exemplos demonstram

como a utilização de estruturas complexas e requintadas — se comparadas com

contratos simples, em que as partes atribuem a solução dos conflitos ao Judiciário

com base na legislação vigente — supre as necessidades da sociedade

contemporânea com estruturas econômicas cada vez mais sofisticadas que

perduram no tempo e aumentam os riscos da alternância do cenário (quando

comparado com a época de sua celebração). Assim, a inserção de cláusulas de

caráter normativo com a utilização da linguagem clara e adequada, inclusive com a

inclusão de cláusulas de caráter geral tendo em vista a impossibilidade da

previsibilidade integral, é de enorme importância, seja por ampliar a autonomia

negocial, mitigar conflitos ou preestabelecer as regras se ocorrer o dissenso.

2.3 Complexidade objetiva

Ao se caracterizar determinado contrato como complexo em razão de seu

objeto, deve se ter em mente que este é um complexo orgânico, é o conjunto de

preceitos contratuais oriundos do consentimento (BESSONE, 1997). Não se trata

apenas do conjunto das obrigações previstas no contrato; é muito mais que isso: é o

complexo de todos os direitos, deveres, ônus e sujeições, obrigações advindas do

programa contratual.

Assim, ao identificar os elementos que compõem o objeto, é possível

identificar a obrigação, que tem como objeto a prestação; esta, por sua vez, tem

como objeto a coisa (nas obrigações de dar), o fazer ou o não fazer (nas obrigações

de fazer ou não fazer), ou o fazer e dar (nas obrigações de fazer e dar), que estão

compreendidos na operação econômica subjacente ao contrato.

Nos contratos complexos, em razão de seu objeto, verifica-se que elementos

diversos (sejam provenientes de contratos tipificados legal ou socialmente ou

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atípicos) se combinam e/ou se reúnem, formando uma unicidade contratual, dando

roupagem jurídica à operação econômica. Assim, mesmo que a tipificação legal dos

contratos resvale na exagerada ingerência do viés público na esfera de atuação da

autonomia privada — restringindo, por vezes em demasia, a atividade negocial —,

cabe explorar tal tema no contexto dos contratos complexos, sobretudo da

complexidade em relação ao objeto. Tal reflexão se faz necessária, pois a

complexidade objetiva afastará o regramento legal tipificado, ou seja, ensejará a

atipicidade.

Entretanto, como um contrato complexo pode abarcar elementos tipificados,

será importante analisar o efeito do regramento de tal elemento no sistema

complexo. Além disso, a atipicidade se verifica na inexistência de regramento legal

aplicável àquele contrato. Convém adentrar, ainda que brevemente, a questão da

atipicidade e tipicidade contratual.

2.3.1 Tipicidade e atipicidade

A acepção da palavra tipo, quando associada ao contrato — em especial ao

tipo contratual previsto em lei —, deve estar relacionada com a ideia de modelo,

sobretudo de um modelo construído com base na experiência social. A ideia de tipo

deve ser diferenciada de conceito. Gomes (1997, p. 108) pontua a questão entre

“tipo” e “conceito” da seguinte forma:

O problema resolve-se com a aceitação da categoria lógica de tipo, elaborada pela doutrina alemã e contraposta ao conceito, pois enquanto este põe em evidência os elementos comuns a todos os indivíduos do grupo, o tipo se constrói individualizando os dados característicos em função de um quadro total que se apanha globalmente sem que seja necessário que todos os dados estejam presentes em todos os indivíduos do grupo.

Larenz (1983, p. 364) relata que o “[...] âmbito de um conceito é fixado de

modo concludente pelas notas que formam a sua definição, enquanto que o tipo não

o é”.

A distinção entre conceitos e tipos revela que os tipos se relacionam entre si

de forma horizontal (e não vertical ou em pirâmide como os conceitos); os tipos não

se subsumem uns aos outros, mas combinam-se, ordenam-se e coordenam-se uns

com os outros em séries e planos. O critério de tipificação assenta, em princípio, em

mais do que uma característica típica. Dessas características, uma ou mais poderão

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76

ser graduáveis; na generalidade dos casos, um tipo terá várias características típicas

graduáveis, podendo umas ser mais graduáveis que outras.77

Ao tratar do tipo como forma de pensamento em geral, Larenz (1983, p. 561)

ensina que

[...] quando o conceito geral-abstrato e o sistema lógico destes conceitos não são suficientes por si para apreender um fenômeno da vida ou uma conexão de sentido na multiplicidade de suas manifestações, oferece-se então o “tipo” como forma de pensamento.

Dentre os tipos, Vasconcelos (2009, p. 54 et seq.) indica os “tipos reais”,

cujo conteúdo é encontrado na realidade; aí se pode encontrar os “tipos médios”

(exprimem os casos que, numa série bipolar, estão equidistantes entre os

polos), os “tipos de frequência” (que numa pluralidade semelhante ocorrem com

maior frequência), os “tipos ideais”, que são construídos pelo pensamento e têm

como cerne um critério de valor e podem ser divididos em “tipos ideais lógicos”

(destituídos de componente axiológico) e “tipos ideais axiológicos” (constitui um

modelo de dever ser para o qual se deve tender e que tem em si um critério de

valor para um juízo de conformidade); “tipos fluídos ou de transição”, que se

contrapõem aos “tipos genéricos” (com limites firmes e bem determinados e

permitem juízos seguros de inclusão ou exclusão) — a gradualidade das

características dos tipos fluidos torna-os particularmente aptos para exprimir

casos mistos e de transição, a exemplo dos contratos mistos; “tipos

representativos” (servem para exprimir exemplos, modelos de comportamento).

Os tipos podem ser “abertos” (cujas características não são fixas e

determinadas e cuja verificação de todas não é necessária nem suficiente para

a correspondência) ou “fechados” (formados por um número certo e

determinado de características cuja verificação é necessária e suficiente para a

correspondência). Ressalta ainda o autor os “tipos normativos”, pela importância

ao direito, como sendo os

77 Vasconcelos (2009, p. 38 et seq.) diz que “[...] a pluralidade de casos típicos relacionar-se-ão então num plano em que uns serão mais típicos e outros menos, nuns se verificará mais intensamente esta e noutros aquela característica típica e nalguns poderá mesmo estar ausente uma ou outra das características típicas”.

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77

[...] que nascem da realidade da qual são recolhidos e com o qual mantém sempre uma ligação que pode ser mais forte ou mais fraca, mas que os alimenta de realidade e de vida como um cordão umbilical, [...] são portadores de um dever-ser, [...] trazem em si os critérios de ação e de decisão, de bem e de mal, de dever-ser.

Larenz (1983, p. 568 et seq.) explica que os tipos de relações jurídicas,

especialmente os tipos contratuais, são configurativos normativos, ou seja, são

tipos-jurídico-estruturais, em sua expressão. Os tipos de contratos obrigacionais

devem seu surgimento ao tráfico jurídico. Não são formados segundo pontos de

vista normativos. São tipos de regulação, ou seja, de conteúdos normativos.

A coordenação de um contrato determinado ao tipo contratual não depende

tanto da coincidência em relação a todos os traços particulares, mas da “imagem

global”; daí que os desvios notórios a tal imagem são classificados como tipos

especiais ou configurações atípicas (LARENZ, 1983, p. 570). Para Larenz, os tipos

jurídico-estruturais podem trazer uma contribuição para a formação jurídico-científica

do sistema, pois tratam de complexos de regulação relacionados entre si cujos

elementos são conteúdos normativos em conjunto com as relações da vida nele

tidos em conta; elementos estes cuja globalidade —pode se conceber como um

“sistema móvel”78.

Assim sendo, o sistema jurídico contratual abarca uma série de tipos que são

modelos construídos com base no sistema social e no tráfico comercial; passaram a

ser catalogados visando à segurança e certeza nas negociações. A mobilidade do

sistema ocorre (mesmo que com tipos contratuais), pois, em sua maioria, tais tipos

permitem às partes dispor em conformidade com sua autonomia privada. Portanto,

tais tipos permitem mobilidade nesse território da liberdade negocial.

Embora sendo o negócio jurídico patrimonial, cuja expressão é o contrato,

uma norma concreta e individual, na condição de modelo tipificado, ele é abstrato; e

somente no negócio jurídico concreto, existente, é que serão verificados os

elementos que determinarão se tal negócio pode ser categorizado como tipo jurídico

contratual ou não. Nessa linha, faz-se imperioso tratar dos elementos do negócio

jurídico que são capazes de individualizar os tipos.

Conforme Antônio Junqueira de Azevedo (2002, p. 23–32), o negócio jurídico

deve ser examinado em três planos sucessivos de projeção: existência, validade e

78 Conforme Wilburg (1950 apud LARENZ, 1983) —

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78

eficácia; o elemento do negócio jurídico é “[...] tudo aquilo que compõe sua

existência no campo do direito”. Esse autor adverte que, antes de classificar tais

elementos, é importante considerar que a expressão negócio jurídico exprime uma

obrigação; em concreto, o que há são negócios jurídicos particulares. Subindo

gradualmente numa escala de abstração, entre os negócios jurídicos particulares e

os abstratos, enquadram-se categorias intermediárias. Portanto, para se estabelecer

a classificação dos elementos dos negócios jurídicos, é importante ter uma noção

clara sobre a que negócio está se referindo — se à categoria abstrata final, se a

alguma categoria intermediária ou se ao negócio particular — para, assim, classificá-

los em elementos gerais, categoriais e particulares.79

Elementos gerais são indispensáveis à existência de todo e qualquer negócio.

Podem ser divididos em intrínsecos ou consecutivos (forma da declaração; o objeto

e as circunstâncias negociais) e extrínsecos ou antecedentes (o agente, o lugar e o

tempo). Elementos categoriais são próprios de cada tipo de negócio e não resultam

da vontade das partes, mas da ordem jurídica, entendida como lei e do que, em

torno desta, a doutrina e a jurisprudência constroem. Seus elementos categoriais

podem ser essenciais ou inderrogáveis80 (definem o tipo de negócio) e naturais ou

derrogáveis (mesmo que repelidos pelas partes, o regime jurídico do negócio se

manterá). Elementos particulares se encontram num negócio específico mas que

não têm o condão de tipificá-lo. Diferenciam-se dos categoriais por ser voluntários.

São em número indeterminado, o que impede o seu estudo completo; mas três

deles, mais comuns, foram sistematizados pela doutrina: são a condição, o termo e

o encargo.

79 Monteiro (1994, p. 235), Pereira (2004, p. 395) e Venosa (2008, p. 420) classificam os elementos em: essenciais (essentialia negotii): são da estrutura do negócio jurídico, pois formam sua substância, são obrigatórios para a constituição do negócio jurídico (estão no art. 104 do Código Civil) — cada contrato (tipo contratual) pode requerer outros elementos essenciais, específicos da sua natureza; naturais (naturalia negotii): são consequência da própria natureza do ato, razão pela qual é desnecessários ser expressos; acidentais (accidentalia negotii): são cláusulas acrescentadas ao negócio jurídico com o objetivo de modificar uma ou algumas de suas consequências naturais. Venosa ensina que, “[...] embora facultativos, esses elementos, uma vez apostos ao negócio pela vontade das partes, tornam-se, para os atos a que se agregam, inarredavelmente essenciais. São facultativos no sentido de que, em tese, o negócio jurídico pode sobreviver sem eles. No caso concreto, porém, uma vez presentes no negócio, ficam indissociavelmente ligados a ele”. Pererira afirma que “[...] os elementos acidentais atuam decisivamente sobre a vontade declarada, desde que com ela se exteriorizem”. 80 Em razão da importância da linguagem e dos termos com que se dá no presente trabalho, cumpre definir derrogação, que deriva do latim derogatio, de derogare (anular uma lei); conforme De Plácido e Silva (2008, p. 440), é o vocábulo especialmente empregado para indicar a revogação parcial de uma lei ou de um regulamento.

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79

Antônio Junqueira de Azevedo (2002, p. 40) destaca a importância dessa

classificação do ponto de vista prático, explicitando, quanto aos elementos

categoriais, que

[...] a exata identificação do negócio dentro de uma categoria, por outro lado, através da exata consciência dos elementos categoriais, é fundamental para se saber qual regime jurídico a ele aplicável. Além disso, se, num negócio de certo tipo, faltar um elemento categorial inderrogável (ou se, mesmo sem faltar, se puder dar esse elemento como inexistente, para evitar que o negócio seja considerado nulo), aquele ato não existirá como negócio jurídico daquele tipo, mas há possibilidade de convertê-lo em negócio de outro tipo (conversão substancial).

O tipo contratual não decorre da imaginação do legislador. A sua tipificação

decorreu da sua concretude. O referido negócio nasceu na sociedade e pela sua

relevância (que decorreu da sua função econômica, social e do seu uso reiterado). A

regulação legal de determinado tipo contratual é consequência, via de regra, de sua

matriz social. “O reconhecimento jurídico confirma, aceita e, quando necessário,

modifica limites e exigências naturais da autonomia privada” (BETTI, 2008, p. 154).

Com sua regulação jurídica, tal tipo passa a ter um modelo padrão, do qual

decorrerão consequências jurídicas. Daí já se pode concluir que os elementos

inderrogáveis podem não se referir apenas à caracterização de tal negócio e que,

uma vez tipificado, não se terá como fugir de certas consequências se estas forem

previstas como inderrogáveis.

Com o pressuposto que o direito civil nasce na sociedade em que está

inserido,81 o contrato passa a ser previsto na legislação não só no tocante às suas

regras gerais, mas também aos contratos típicos. Assim, os tipos contratuais

encontram seu nascedouro nos usos e costumes da sociedade; não decorrem da

abstração do legislador. Representam uma forma de o direito se adaptar às

necessidades da vida. O legislador não inventou os tipos contratuais; ele os

81 Para Fachin (2012, p. 248), “[...] justifica-se a insistência em centrar e colocar no palco da relação entre o Direito e a sociedade o problema da assimetria, a relação de interdependência, exatamente para que fique claro o fato de que é o Direito que está na sociedade e não vice-versa. Já não é o direito que dá conta das relações sociais. Embora isso pareça uma flagrante obviedade, em um sistema dominado por uma orientação monolítica e concentrada, o reconhecimento dessa realidade se mostra relevante”.

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80

descobriu.82 Isso porque os tipos contratuais surgem no ambiente, no entorno

(sistema econômico) e provocam os sistemas político e jurídico, para que

respondam a essas provocações

A classificação do contrato como um tipo legal acarreta que tal tipo possa

invocar pressupostos de validade especiais, bem como que a tal tipo incidam

determinadas proibições e/ou exigências de ordem pública específicas.83

Para Varela (2000, p. 273), a disciplina legislativa dos contratos típicos (que,

para ele, são os mais importantes no comércio jurídico) exerce três funções: (i)

auxiliar as partes e os tribunais, na medida em que a lei fixa, subsidiariamente, a

disciplina jurídica aplicável aos pontos em que em geral são omissos nos contratos;

(ii) fixar normas imperativas para o propósito do conflito de interesses particulares

subjacente; (iii) normas dispositivas em larga medida inspiradas na vontade

presumida das partes.84 Com fulcro na legislação italiana, que tem a causa como

elemento do negócio jurídico, Perlingieri (2008, p. 738) esclarece que:

[...] a função da relação obrigacional deve ser determinada não tanto pelo conteúdo da prestação ou pelo tipo de obrigação (de dar, de fazer ou de não fazer), quanto pela identificação do título da obrigação e da sua incidência sobre a disciplina. Isto é confirmado pelo parágrafo I do artigo 1.230 Cód. Civ. (“novação objetiva”) onde o título é a causa da obrigação, a sua função prático-jurídica. [...] na identificação do título — vale dizer, na qualificação da relação jurídica — é necessário valorar a concreta composição de interesses. Neste sentido, uma cláusula aparentemente acessória do regulamento de interesses pode revelar-se, em concreto, essencial, incidente sobre a relação jurídica.

82 Conforme Larenz (1983, p. 567), “O legislador não inventou os tipos contratuais mas os descobriu: o legislador regulamentou-os, porquanto os encontrou previamente na realidade da vida jurídica, aprendeu-os na sua tipicidade e adicionou-lhes as regras que considerou adequadas para um tal tipo de contrato”. 83 Conforme Larenz (1983, p. 359), “[...] a classificação do contrato concreto num tipo contratual legal ou a sua qualificação como ‘contrato misto’ tem uma dupla importância. Por um lado, pode resultar daí que para um contrato de tal espécie existam pressupostos de validade especiais, por exemplo o requisito da forma do § 518 do BGB, se se tratar de uma promessa de doação e o requisito da forma do § 313 do BGB, se se tratar da compra de um terreno. A classificação pode também ser importante em relação à questão de se existe uma proibição legal ou se se requer uma autorização da entidade pública. Por outro lado, da classificação depende a aplicabilidade de normas vez, daquilo que as partes nele convencionaram”. 84 Comiran (2011, p. 598) esclarece que “[...] o tipo é considerado como (i) modelo de aplicação do direito, (ii) normatividade supletiva dos contratos atípicos e (iii) fato de incremento da importância dos usos e costumes (corroborada pela regra do art. 113 do CC/2002) no processo hermenêutico-integrativo”.

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Os tipos contratuais e os modelos que deles decorrem influenciam a análise

dos contratos complexos. Cada contrato típico tem, de forma efetiva, uma função

econômico-social própria, que se reflete numa estrutura jurídica privativa — a

doutrina italiana lhe dá o nome sugestivo de causa do contrato — e constitui o

verdadeiro cartão de identidade de cada espécie contratual típica (VARELA, 2000).

Mas, no caso de contratos complexos — e, nesse item específico de complexidade

objetiva, a combinação de tipos legais — ou de contratos atípicos são os

caracterizadores da complexidade e afastam a tipicidade.

Além disso, os tipos, em razão da variabilidade de seus elementos, podem se

transformar uns em outros, de tal modo que alguns elementos desaparecem por

completo e outros surgem ou passam ao primeiro plano. A transição entre os tipos é

cada vez mais fluída. Entretanto, Larenz (1983, p. 577) alerta que os tipos jurídico-

estruturais referem-se sempre a regulações parciais, encadeadas entre si e que, por

sua vez, estão ajustadas a regulações mais amplas como a do direito dos contratos,

do direito privado e do ordenamento. É função do sistema interno “[...] poder tornar

visíveis as idéias jurídicas e pautas de valoração gerais que encimam os complexos

de regulação particulares”.

Tratar de sistema interno supõe tratar de princípios e valores, pois formam e

fundamentam o sistema. O tipo e o pensamento tipológico fazem, entre o caso e o

valor, a ponte necessária para concretizar valores jurídicos. Também são

intermediários na construção lógica dos conceitos gerais abstratos

(VASCONCELOS, 2009). Ressalte-se que a ideia do tipo contratual está relacionada

na doutrina com a circunstância de, além de estar nominado,85 ser regulado em lei.86

85 A classificação entre contratos nominados e inominados (que se aproxima, mas não se identifica com a classificação entre típicos e atípicos) é uma divisão romana, pois os que tinham denominação própria eram providos de ações especiais (BESSONE, 1997, p. 68). Messineo (1952, p. 379), embora cite a denominação de tal contrato como atípico (que seria combatido por alguns autores) ou sui generis, utiliza o termo contrato inominado como aquele que (ainda mencionado pela lei) carece de uma disciplina particular. Para Hironaka (2006, p. 120), a forma de referência deve ser contratos típicos e atípicos: “[...] reconhece-se com frequência cada vez mais acentuada que contratos há que têm nome e nem por isso são nominados-típicos já que, para que assim fossem considerados, estariam a exigir a presença de um regramento legislativo específico. Fico com a melhor e dominante doutrina para admitir que é preferível se referir, nestes casos, a contratos típicos e a contratos atípicos, em lugar de nominados e inominados”. 86 Para Venosa (2008, p. 39), este é o sentido técnico da expressão contrato típico. Ele ressalta o fato de que a reiteração social de uma forma contratual força o legislador a tipificá-lo.

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82

Todavia, podem existir contratos que, embora sejam nominados e previstos

em lei, não são considerados típicos, tendo em vista que a lei possa ser omissa

quanto ao conteúdo do contrato, como ocorre no caso de franchising.87

Ao passar a ser prevista em lei, determinada convenção (outrora apenas

social e econômica) passou a integrar o conjunto de regras legais, com uma

linguagem própria, que inclui regras necessárias e as de caráter normativo. O

legislador não precisa assumir o tipo tal como se formou na vida jurídica; pode, na

sua regulação, subtrair ou adicionar novos traços, bem como indicar, na regulação

do tipo contratual, quais regras são de observância obrigatória ou não.

Assim, a tipicidade, formada de regras próprias a cada tipo contratual, passa

a ter aptidão de dirigir, direta ou indiretamente, o exercício da autonomia privada

para se adequar (ou não) a dado tipo contratual. A tipificação legal de uma relação

jurídica que tem seu nascedouro no tráfico comercial e social atrai uma série de

questões, em particular quando incorrer em regulação dotada de normas

imperativas. Portanto, a questão que se impõe é, justamente em razão de a

autonomia privada estar inserida no âmbito da liberdade, ainda que mitigada pelas

normas cogentes previstas no ordenamento, entender se as regras tipificadas têm o

condão de arrastar o seu regramento (tipificado, portanto pré-modelado) ao

programa contratual estabelecido pelas partes.

Embora a segurança jurídica seja um valor perseguido pela sociedade e a

previsibilidade que o regramento advindo da tipicidade contratual acarreta seja, na

aparência, um vetor que concorre para tal valor, quando tal tipo vem carregado de

normas imperativas fica evidente seu viés autoritário, que limita, por vezes em

demasia, a autonomia privada. Para o tipo previsto na lei, a sua regulação (legal) é

decisiva (quando imperativa).

Entretanto, a regulação contratual ajustada pelas partes no caso concreto

pode afastar-se, mais ou menos, da regulação legal; e com base em tais acordos

podem surgir outros tipos contratuais (LARENZ, 1983). Além disso, verifica-se, de

forma crescente, que muitos tipos contratuais na forma como previstos em lei estão

ultrapassados e não refletem a realidade.88 Nesse sentido, importante destacar que

87 Nesse mesmo sentido, vide Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 441) e Silva et al. (2011, p. 272). 88 Conforme Antunes (2012, p. 595), “[...] assim, os tipos, muitas vezes ultrapassados ou alheios a realidade econômica, deixam de auxiliar e passam a ser um empecilho, e como o atuar criativo das

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83

os contratos atípicos demonstram que a vida jurídica (sobretudo no tocante aos

negócios jurídicos) não está regulada por formas imutáveis, mas está sempre em

movimento e evolução, inclusive quanto ao seu aspecto técnico. Portanto, os

contratos atípicos ocorrem em razão do desenvolvimento da sociedade e da

economia (MESSINEO, 1952).

Além da tipicidade legislativa, há de considerar os “tipos sociais” (ou

extralegais), que são aqueles habitualmente utilizados num contexto social e

econômico, mas ainda não contemplados expressamente pelo legislador.89 Betti

(2008, p. 281) esclarece que “[...] a configuração por tipos não se realiza,

necessariamente, por meio de qualificações técnico-legislativas: ela pode efetuar-se

também mediante remessa para as concepções dominantes na consciência social

da época, nos vários campos da economia, da técnica e da moral”.90

Nesse mesmo sentido, Penteado (2007a, p. 469, grifo do autor) esclarece

que, “[...] por vezes, muitos contratos atípicos são, inclusive, contratos nominados

pela praxe dos operadores em mercado, mostrando que, em não poucas ocasiões,

são contratos socialmente tipificados”. Sendo socialmente tipificados, pode-se

depreender que suas regras (necessárias) são aceitas socialmente; e sendo da

prática do mercado, sendo o modelo social utilizado, então, em tese, as regras

(socialmente aceitas) necessárias e normativas acompanharão tal tipo social, se não

forem afastadas pela autonomia das partes. A aceitação social decorre da

efetividade, em especial econômica.

Com efeito, Grossi (2010, p. 79) afirma que

partes não cessa em razão da impotência típica, o Direito necessita de algum meio para reconhecer e regular os pactos”. 89 Para Roppo (2009, p. 134), “Naturalmente, os tipos legais não são fixados uma vez por todas. Num dado momento histórico, a lei prevê e disciplina um certo número deles, na base do reconhecimento de que as operações a que correspondem são socialmente úteis e merecedoras de tutela jurídica; mas com o evoluir das condições econômico-sociais, novas operações, novos gêneros de negócios, diversos dos correspondentes aos tipos codificados, podem emergir, por difusão e importância, no tráfico. Desenham-se assim, com eles, novos tipos contratuais, não contemplados expressamente pelo legislador e portanto, não reconhecidos como tipos ‘legais’ , mas de fato reconhecidos e correntemente utilizados no contexto sócio econômico, e que se definem por isso por ‘tipos sociais’. [...] Geralmente acontece que o legislador — precedido pela realidade e pelas exigências da economia — acaba por tomar conhecimento ex post da existência desses ‘tipos sociais’, considerando-os dignos de reconhecimento e tutela e procede, mais cedo ou mais tarde, à sua regulamentação específica: quando isto acontece, os ‘tipos sociais’ elevam-se a ‘tipos legais’”. 90 Ainda segundo Betti (2008, p. 281), “Então, para o lugar da rígida tipicidade legislativa, baseada num número limitado de denominações, entra uma outra tipicidade, que desempenha também sempre a função de limitar e orientar a autonomia privada, mas que em comparação com aquela, é muito mais elástica na configuração dos tipos, e, na medida em que se realiza, remetendo para as valorações econômicas ou éticas da consciência social, poderia chamar-se-lhe tipicidade social”.

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Um fato é tão novo e apropriado aos interesses dos operadores econômicos que eles o repetem, o observam, não por ser espelho fiel de algo que está no alto, mas por ter em si uma força (e, se assim queremos, uma capacidade persuasiva) que o faz merecer ser observado e, portanto, de vida duradoura. Aqui, o filtro não existe e não deve existir. São os fatos econômicos que contam; e contam assim como são: grosseiros, informais, carregados de escórias que as práticas cotidianas ali depositam e que devem ser considerados respeitáveis porque, em sua informalidade e plasticidade, podem responder às variações do mercado segundo os diversos tempos e lugares. Se a dialética “típica-atípica” percorreu o direito burguês moderno e sua modelagem, pode-se ao contrário, constatar que os canais do direito globalizado são o reino incontrastado da atipicidade (em outras palavras, do factual).

Na concretização do negócio jurídico, as partes estão com suas atenções

voltadas ao negócio em si, às regras a que se submeterão por força do programa

contratual a ser estabelecido para eventuais particularidades. Seria demais pensar

que estariam preocupadas em se manter dentro das linhas dispostas previamente

na lei e de realizar os tipos nela (a lei) estabelecidos, ou ainda apenas os tipos

dispostos legalmente (MESSINEO, 1952). Assim, a leitura da tipicidade contratual

deve se associar ao princípio da liberdade contratual, pois ao lado de tal tipicidade

convive a atipicidade, que se expande a cada dia. Se não forem aplicáveis a

determinado tipo contratual normas imperativas, de observância obrigatória, as

partes poderão estabelecer livremente o programa contratual.

Para Comiran (2011, p. 598), o Código Civil de 2002, utilizando-se da técnica

das cláusulas gerais, introduziu no sistema o art. 425, que prevê expressamente a

possibilidade de “[...] estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais [...]”

fixadas no próprio código. Para a autora, “[...] a fórmula contida no dispositivo legal,

portanto, se compõe de um binômio — que chamamos de binômio da atipicidade —,

formado pela autonomia privada contratual e a noção de tipo (ou não tipo) [...]”. Além

disso, há de ressaltar que o esquema doutrinário da tipicidade e atipicidade

contratual está relacionado com a ideia de contratos considerados isoladamente e

de contratos complexos e/ou coligados.91

91 Nesse sentido, Kataoka (2008, p. 59) diz que “Parece, portanto, lícito dizer que o esquema doutrinário da tipicidade e atipicidade contratual não está apto a dar conta dos problemas relativos à coligação contratual. Essa classificação foi pensada para resolver as questões relativas a um contrato isoladamente, compreendido no seu atomismo obrigacional, e não inserindo na complexidade econômica resultante da pluralidade contratual”.

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Cabe salientar que o contrato pode ser atípico socialmente. Assim, conforme

Vasconcelos (2009, p. 1), os contratos, quando se ajuízam da sua tipicidade ou

atipicidade, podem dividir-se em três campos: o dos contratos legalmente típicos, o dos

legalmente atípicos mas socialmente atípicos e o dos legal e socialmente atípicos.92

Vasconcelos (2009, p. 230–4) faz referência aos contratos de tipo múltiplo e

tipo modificado, como os atípicos mistos (que são construídos pelas partes com

base em tipos contratuais que são adaptados, modificados ou misturados de modo a

satisfazerem o seu interesse contratual). Os de tipo modificado são aqueles cujas

partes elegem um tipo contratual que desempenha o papel de instrumento-base; as

partes se referem à sua disciplina na contratação, mas adicionam uma convenção

que modifica a disciplina jurídica do tipo. No de tipo múltiplo, o contrato atípico é

construído com base na conjunção de mais de um tipo; não existe um tipo contratual

de referência. Nem sempre essa distinção entre tipo modificado e múltiplo é nítida.

Sua importância, segundo o autor, está na sua concretização e na necessidade de

eventual integração de lacunas.

Para Roppo (2009, p. 132), o conceito de autonomia privada compreende, além

do poder de determinar o conteúdo do contrato, o poder de escolher contratar ou não

contratar, o de escolher com quem contratar e o de decidir em que tipo contratual

enquadrar a operação que se pretende, ou ainda de concluir contratos que não

pertençam aos tipos que têm uma disciplina particular.93 Ao estabelecerem livremente o

programa contratual, as partes poderão deixar de cumprir requisitos específicos de

dado tipo contratual (desde que não obrigatórios), desnaturando a regulação legal; ou

seja, passa a vigorar a regulação contratual (ao menos no que for permitido).

Conforme Varela (2000, p. 275),

[...] sempre que na convenção celebrada entre as partes se instale um dos esquemas ou modelos previstos na lei e as cláusulas acrescentadas pelas partes não destruam o núcleo essencial do seu acordo, nem lhe aditem qualquer outro dos esquemas legalmente autonomizados, o contrato continuará a pertencer ao tipo correspondente a esse esquema. Quando assim não suceda, a

92 O autor explica que, embora raros, existem os contratos legalmente típicos e socialmente atípicos. Exemplo seria o contrato de subordinação tipificado no Código das Sociedades Comerciais (Portugal) com um caso de contrato que está tipificado na lei, ainda que não exista tipificado na vida. 93 Cabe complementar que, “[...] de resto, se não se reconhece à autonomia privada uma tal liberdade e possibilidade criativa, não seria sequer concebível aquele processo de lenta inserção de novas praxes contratuais, e portanto, de formação dos respectivos tipos sociais” (ROPPO, 2009, p. 135).

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convenção negocial das partes navegará já no gurgite vasto dos contratos atípicos ou inominados.94

Assim, o contrato atípico não está disciplinado pelo ordenamento jurídico,95

mas é dotado de licitude. Seu traço característico é não se sujeitar a uma disciplina

própria96.

A atipicidade contratual tem enorme relevância no presente trabalho, que trata

de interpretação de contratos complexos. Quando não se tem um tipo contratual

especificado em lei, a liberdade das partes é ampla, e o programa contratual, com

um regime próprio, será a norma a ser seguida, como ocorre nos contratos

complexos. Por outro lado, a atipicidade requer uma dedicação muito maior ao caso

concreto, o que dificulta seu enfrentamento. Cabem aqui as palavras de

Vasconcelos (2009, p. 15): “[...] a recondução dos contratos atípicos aos tipos

contratuais mais próximos, designadamente aos tipos-padrão, desconsidera as

diferenças que afastam o caso do tipo e que o tornam atípico e desrespeita assim a

autonomia privada”.97

Os contratos atípicos podem ser “puros” (ainda que raros) — são completamente

diferentes dos tipos contratuais legais e extralegais; mas a maioria dos casos não é

pura, pois são construídos com base em um tipo ou mais tipos que são combinados ou

modificados para cumprir as finalidades pretendidas pelas partes. São os chamados

contratos mistos (que são atípicos) (VASCONCELOS, 2009).

Álvaro Villaça Azevedo (2009, p. 127) classifica, em sentido amplo, os

contratos atípicos em singulares e mistos: os primeiros são figuras atípicas

94 Varela (2000, p 27) cita os contratos de leasing, franchising, factoring, joint venture, know-how (assistência técnica), engineering, garantia autônoma como novos esquemas negociais que servem para documentar o poder criador permanente do jurista através da liberdade contratual e para mostrar as novas figuras contratuais, graças sobretudo à facilidade crescente de comunicação entre os homens e as nações, que podem facilmente ser assimiladas por sistemas jurídicos diferentes daqueles que as conceberam. 95 Messineo (1952) tratou da questão da atipicidade, assinalando que: (i) para tais contratos sempre serão aplicadas as regras gerais dos contratos; (ii) os contratos atípicos representam uma manifestação e um reconhecimento da liberdade (autonomia) contratual, com o requisito de, necessariamente, estar em consonância com a legalidade; (iii) a lei (italiana) também requer a busca pelos elementos particulares, própria dos contratos singulares, no conteúdo do contrato atípico. 96 Conforme assevera Jabur (2011, p. 206), “[...] os contratos não sistematizados e os típicos devem direcionar atenção às disposições endereçadas aos negócios jurídicos, assim como às obrigações em geral e aos preceitos edificados aos contratos propriamente”. 97 Vasconcelos (2009, p. 15) aduz ainda que “[...] a falta de enquadramento teórico da atipicidade contratual tem-se feito sentir particularmente na Jurisprudência. [...] O dever de julgar tem conduzido os tribunais a procurar nos tipos contratuais legais a disciplina dos contratos atípicos, usando para isso do expediente de os qualificar como do tipo mais próximo”.

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consideradas individualmente; os segundos apresentam-se: (a) com contratos ou

elementos somente típicos; (b) com contratos ou elementos somente atípicos; (c)

com contratos ou elementos típicos e atípicos. Ainda nessa distinção entre tipicidade

e atipicidade há de entender que pode ocorrer uma aparente atipicidade, sobretudo

nos casos em que um contrato que tenha por objeto tipificado contenha elementos

de outra figura contratual, ou elementos atípicos, que não desfiguram o elemento

caracterizador do tipo contratual e, como consequência, não afasta a

regulamentação nem as consequências jurídicas (em especial quando imperativas)

daquele dado tipo contratual.98

Quanto à complexidade objetiva, os contratos que tenham a combinação de

elementos de contratos típicos (mas diferentes entre si), de contratos típicos e

atípicos, ou sendo atípicos puros, com diversidade de objetos, serão considerados

complexos.

No tocante à complexidade objetiva, cabe ressaltar que pode existir uma

complexidade objetiva crescente ou condicionada, na qual a combinação de

elementos contratuais (típicos e/ou atípicos) decorre da implementação de

determinada condição. Assim, se um contrato for de prestação de serviços de

elaboração de projeto de equipamento e fornecimento do equipamento, sua

assistência técnica e manutenção, com previsão de que o equipamento só será

fornecido se o projeto for aprovado, a complexidade objetiva vai ocorrer apenas se

for implementada a condição de o projeto ser aprovado; se não o for, então os

outros elementos contratuais não vão se concretizar, e a complexidade objetiva não

vai se implementar.

Na complexidade objetiva crescente ou condicionada é primordial que os

eventos condicionantes estejam claros, inclusive com o suporte econômico definido

em cada etapa. Tal complexidade fica muito próxima da ideia de coligação

contratual; o fato de distinção é a unidade ou pluralidade contratual, que será tratada

adiante.

Para o tema da interpretação dos contratos complexos, será importante

analisar os elementos dos contratos típicos e atípicos, quando combinados, para

verificar se existirá, no caso concreto, a prevalência de um elemento sobre outro, se

ocorrerá algum tipo de contradição na combinação de elementos e como eles se

98 Nesse sentido, vide parecer de Martins-Costa (2014).

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coordenarão no sistema complexo. A fim de caracterizar os contratos complexos e,

logo, sua interpretação, é essencial compreender os tipos contratuais como

consequências de um movimento que parte da repetição da operação econômica no

seio negocial e que o âmbito da autonomia privada permite a liberdade de os

particulares de não seguirem um tipo contratual, possibilitando a combinação de

elementos próprios de tipos legislados ou a fusão de tipos sociais, ou apenas conter

elementos atípicos.

A existência de modelos legislados não pode implicar uma resistência a

entender que o contrato atípico, também, é permitido no sistema, com liberdade em

seu regramento. É a permissão da atipicidade contratual que outorga guarida aos

contratos objetivamente complexos.

2.3.2 Contratos complexos e mistos

Por vezes, a doutrina classifica contrato misto e contrato complexo da mesma

forma.99 Mas convém consignar que todo contrato misto, além de ser atípico

(VARELA, 2000, p. 279), é complexo, embora nem toda complexidade contratual

decorra da combinação de tipos (ou de contrato típico com atípico).

Os contratos mistos100 resultam da fusão, num só negócio, de elementos

contratuais (típicos e/ou atípicos) distintos,101 que, “[...] além de perderem a sua

autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do

99 Cabe anotar que nas lições de Bessone (1997, p. 86) há equivalência entre contratos complexos e mistos em oposição aos contratos simples: “[...] os complexos ou mistos resultam de combinações de dois ou mais tipos de contratos, ou da inserção de cláusulas que desfigurem um dos tipos simples. O interesse da distinção está na escolha das normas aplicáveis. Quando não seja possível harmonizar as regras reguladoras dos tipos combinados, deve-se atender à finalidade essencial da operação, ou, quando a infração for de determinada cláusula que se possa isolar das demais, merecerá observância a disposição disciplinadora do contrato simples de que tenha sido extraída”. 100 Os contratos mistos podem ser classificados, conforme Gomes (1997, p. 105) em: (i) contratos gêmeos — em que há pluralidade de prestações (de diversos tipos legais); (ii) contratos dúplices; (iii) contrato misto “stricto sensu”. O referido autor descarta a classificação proposta por Ennecerus, que inclui os contratos de duplo tipo (união de dois contratos completos, de modo que se apresenta como contratos tanto de uma espécie como de outra) e contratos típicos com prestações subordinadas (o contrato básico não se altera em sua natureza pela circunstância de se lhe agregar uma prestação de outro tipo subordinada a seu fim principal). 101 Para Tullio Ascarelli (2011, p. 347), “[...] o problema dos contratos mistos e inominados surge na realidade quando num mesmo negócio concorrem prestações típicas de vários negócios diferentes, ou prestações que não correspondem às típicas de nenhum contrato nominativamente regulado na lei, quer no caso de somente uma das partes se obrigar a cumprir mais do que uma prestação típica de contratos diferentes (‘verbi gratia’, na locação de um quarto com prestação de serviços), quer no caso de a prestação de uma das partes corresponder à que é típica de um determinado contrato, e a contra-prestação da outra parte corresponder à de um outro contrato (‘verbi gratia’, o uso de um quarto em troca da prestação de trabalho)”.

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conteúdo deste (VARELA, 2000, p. 284). Podem ser: (i) combinados — quando

uma das partes compromete-se com duas ou mais prestações que correspondem

a dois ou mais tipos contratuais legais (ou a um tipo contratual e outro atípico) e

outra parte compromete-se com uma única obrigação; (ii) contratos duplos —

quando uma parte se obriga a uma prestação típica de um contrato e a outra

parte, a uma obrigação proveniente de outro tipo legal; (iii) contratos mistos em

sentido estrito — seriam caracterizados pela utilização de certo tipo de contrato

como meio para a consecução de finalidade diferente que lhe é própria; essa

noção se aproxima da noção de negócio jurídico indireto, conforme Leonardo

(2003, p. 101).102

Para Pontes de Miranda (2012, p. 243),

[...] quando o negócio jurídico é único, mas complexo, não se pode dizer que é, em parte, contrato de compra-e-venda e, em parte, contrato de sociedade (por exemplo); é envoltório, cápsula, parte de elementos da compra e venda e parte de elementos da sociedade. Por isso mesmo, as regras jurídicas especiais que incidem sobre esses elementos não levam consigo a sua especificidade, se esses elementos não são os do caráter específico, preponderante, do negócio jurídico.

Ao tratar do direito aplicável aos contratos mistos, pode-se citar a teoria103 da

absorção, a da combinação, a da aplicação analógica, a da relação interna

(MIRANDA, 2012, p. 253) e a da criação (VASCONCELOS, 2009, p. 243).104

Pela teoria da absorção, um elemento prepondera subordinando os

outros.105Assim, a partir da prestação preponderante dentro da economia do negócio,

102 Ascarelli (2011, p. 443–4) explica o negócio jurídico indireto assim: “[...] as partes estabelecem entre si um negócio jurídico, é certo, mas o objetivo prático final a que elas visam não é, de fato, o que normalmente decorre do negócio por ela adotado, e sim um objetivo diferente, muitas vezes análogo ao de outro negócio, mais freqüentemente sem forma típica própria num determinado ordenamento. E a obtenção deste fim ulterior é assegurada por meio de cláusulas particulares, que são no entanto compatíveis com a estrutura basilar do negócio adotado, ou por meio de simples elementos de fato, com os quais as partes concordam. Existe, portanto, um negócio indireto porque as partes recorrem a ele para atingirem, por seu intermédio, e de modo indireto, objetivos diferentes dos que se poderiam induzir da estrutura do negócio adotado”. Mas a adoção de certo tipo de negócio, mesmo que seja para fins indiretos, não é feita ao acaso; ela encontra a sua explicação no propósito das partes de se sujeitarem não somente à forma das leis, como também à disciplina do negócio adotado. 103 Rosas (1978, p. 74), Varela (2000, p. 287), Vasconcelos (2009, p. 243) e Francisco M. de B. P. Coelho (2014, p. 285; 299) citam a doutrina tipológica, mas afastam sua aplicação, razão pela qual ela não está incluída no rol acima. 104 Vasconcelos (2009, p. 243), citando Schluep Innominatvertäge, relata que Antunes Varela admite, na falta de casos análogos, uma “[...] atividade criadora confiada ao intérprete, dentro do espírito do sistema”.

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se “[...] teria a prestação principal e se utilizaria, com as necessárias acomodações, o

regime contratual” (VARELA, 2000, p. 287). Essa teoria, segundo assinala Francisco M.

de B. P. Coelho (2014, p. 289), foi elaborada apenas para determinado tipo de contratos

mistos: aquele em que comprovadamente intercedesse, entre as prestações, um nexo

de subordinação; daí que se imputar à doutrina posterior a pretensão de alargamento

da teoria absorcionista a todas as espécies de contratos mistos. Noutros termos, já em

sua origem tal teoria mostrou ter um alcance limitado.

Com a premissa de que nem sempre é possível determinar o elemento

principal que terá preponderância sobre os demais,106 a teoria da combinação parte

do isolamento dos elementos componentes do contrato, aplicando-se as regras de

cada contrato numa consolidação de regras. Por tal teoria, seria sempre possível

desintegrar cada contrato típico em seus componentes de forma a buscar, em cada

um destes, a disciplina jurídica correspondente.107 Uma aplicação parametrizada das

normas ou uma combinação de várias disciplinas jurídicas permitiriam obter o

resultado pretendido.108

A teoria da aplicação analógica procura o contrato típico mais próximo

pertinente para adotar suas regras jurídicas ao caso análogo (porém misto), ou seja,

se utilizaria as regras próprias do contrato típico, desde que demonstrem adequação

ao contrato misto, e a partir da analogia se integraria as eventuais lacunas do

negócio jurídico.

A teoria da relação interna, para Pontes de Miranda (2012), é, de certo modo,

negação de teoria, pois atribui ao exame da subespécie, ou do caso, a conclusão

sobre a complexidade.109

105 Rosas (1978, p. 74) diz que o Supremo Tribunal examinou questão atinente ao assunto: contrato misto de arrendamento de propriedade rural e de fornecimento de cana (RTJ 56/80) ou no caso do contrato de locação de natureza mista. 106 Messineo (1952, p. 397) integra sua crítica à teoria da absorção, em que a finalidade econômica prevista pelas partes, ao invés de ser protegida em sua integridade, passa a ser distorcida e dificultada, além de se dever levar em conta que nem sempre os contratos mistos resultam de elementos precedentes de contratos nominados. 107 Para Miranda (2012, p. 252), “[...] o fundo, a teoria da combinação tentou manter a tipicidade dos negócios jurídicos, como se não pudesse romper-se”. 108 Messineo (1952, p. 399) critica também essa teoria. Entende que se fosse aplicável, o elemento de cada contrato teria seu conteúdo constante em qualquer circunstância. Aduz que tal crítica diz respeito a combinação entre contratos nominados e inominados, pois o contrato nasce como unidade orgânica, e não como um destilado de uma análise ou como o efeito de um jogo combinatório. 109 Miranda (2012, p. 253) enfatiza que “[...] ora há absorção, ora há combinação, ora há acumulação, ora há invocação da analogia, segundo a natureza do negócio jurídico em seu todo”.

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A “doutrina da criação” trata da criação de uma solução concreta,

fundamentada em princípios, cláusulas gerais e “standards”, conforme Vasconcelos

(2009, p. 243), como uma interpretação integradora. Francisco M. de B. P. Coelho

(2014, p. 299) explica que tal doutrina procura — em cada caso, mas sempre com

objetivação dos critérios de solução — determinar o modelo de solução mais

ajustado a cada modelo de problema. Daí que o intérprete deve “criar” o modelo de

tratamento mais equilibrado.

Na forma como é ora abordada, a complexidade requer a análise do caso

concreto. Assim, tanto a teoria da absorção como a da combinação e a da analogia,

a princípio, não representam a primazia da realidade, que, em contratos complexos,

mostra-se muito mais intensa, com mais elementos, que eventuais elementos tidos

como relevantes (teoria da absorção), ou passíveis de ser combinados, ou ainda de

se buscar uma situação análoga. Sem qualquer embargo, buscar a interpretação no

caso concreto pelas formas que o sistema outorga (princípios, cláusulas gerais) e

valorizando a autonomia das partes é um processo mais difícil, porém mais apto a

ser aplicado com eficiência.

Contudo, cabe ressaltar a importância de as partes, no âmbito da

normatividade privada, estabelecerem as normas reguladoras, incorrendo muitas

vezes no que ora se denomina complexidade normativa, pois desde que tais

regras não se choquem com as normas imperativas, muitos dos problemas

advindos dos contratos atípicos e complexos quanto ao objeto podem ser

solucionados ou ter parâmetros para a solução de conflitos.110 Cabe frisar que o

dilema na interpretação dos contratos complexos (e considerando os contratos

mistos como complexos) reside no seu caráter inovador, pois são resultantes da

autodeterminação das partes: combinam possibilidades diversas, geram

complexidade sobre complexidade, incidem diversas vezes na ausência de

parâmetros de usos e costumes que possam identificar paradigmas ou os

denominados tipos sociais.

110 Messineo (1952, p. 401) entende que, existindo a possibilidade de o contrato normativo regulamentar os contratos inominados apenas nos casos em que falte a autodisciplina no contrato inominado ou que não existam usos jurídicos a respeito, o intérprete deverá se preocupar em reconstruir por sua conta essa disciplina.

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2.3.3 Complexidade econômica A questão que toca a complexidade econômica é justamente a relação

entre os sistemas econômico e jurídico, que na sociedade contemporânea têm

gerado a complexidade de seus elementos e da consciência sobre eles, seja pela

autorreferência, seja pela heterorreferência. Conforme Roppo (2009, p. 9),

[...] se pode e se deve falar do contrato-conceito jurídico, como de algo diverso e distinto do contrato-operação econômica, e não identificável pura e simplesmente com este último — é, contudo, igualmente verdade que aquela formalização jurídica nunca é construída (com seus caracteres específicos e peculiares) como fim em si mesma, mas sim com vista e em função da operação econômica, da qual representa, por assim dizer, o invólucro ou a veste exterior, e prescindindo da qual resultaria vazia, abstracta, e, consequentemente, incompreensível: mais precisamente, com vista e em função do arranjo que se quer dar às operações econômicas, dos interesses que no âmbito das operações econômicas se querem tutelar e prosseguir.

Como premissa deste trabalho — na esteira de Luhmann —, o fechamento

operativo dos sistemas não importa em desconsiderar as implicações e a

sensibilização que faz um sistema afetar, pela comunicação, o outro sistema; o que

é efetivado pela abertura cognitiva dos sistemas. Normas criam normas, riqueza faz

riqueza circular. Mas a circulação lícita de riquezas requer o atendimento a normas

postas pelo direito, ainda que estas sejam as que fundamentem a autonomia

privada, o negócio jurídico patrimonial: o contrato. Nesse sentido, Martins-Costa

(2002, p. 619) afirma que

As escolhas políticas, expressas juridicamente, imprimem fisionomia ao mundo das trocas, conferem a sua peculiar forma, o seu específico modelo. Daí o “duplo caráter do Direito”, ou sua “dupla instrumentalidade”, tese de Reich apontada por Grau, a qual indica que o Direito instrumenta o desenvolvimento das relações de mercado e instrumenta, por igual, a atuação do próprio Estado. O que significa dizer que certas escolhas, políticas e certos controles, jurídicos, produzem tantos modelos de mercados e de Estados quantos forem os modelos concebidos pelas normas jurídicas reguladoras, orientadoras e controladoras das relações de mercado.111

111 Martins-Costa cita Eros Grau — a 1ª edição de A ordem econômica na Constituição de 1988, São Paulo, 1990, p. 30–3 — e esclarece que ele apontou a tese de Reich da dupla instrumentalidade.

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As regras do jogo econômico não são as regras do jogo político nem do jogo

jurídico.112 Entretanto, ao olhar a sociedade contemporânea, à primeira vista, parece

que estão todos invadindo os campos alheios, numa mistura de regras — em que

quase impera a regra da prevalência do mais forte. A aparência sugere modelos

caóticos de sistemas sensibilizados. A instabilidade econômica e política gera uma

busca incessante pela segurança no sistema jurídico, em que esta também é

perseguida.113 O grande tema a ser objeto de reflexão ao se tratar da complexidade

econômica é saber: se as questões suscitadas na economia — quando informadas,

pela linguagem, ao sistema de direito, na forma como atualmente é concebido —

não são reduzidas em demasia por causa das escolhas feitas (pelos que detêm o

poder de selecionar, acima de tudo de legislar e julgar); e se, em razão disso, não se

tem a semeadura de um outro sistema (ou subsistema) que tenta se inserir no

sistema de direito, mas que, com regras próprias, advindas daquilo que, na

seletividade (em especial legislativa e jurisprudencial), foi descartado.

As inovações não surgem do acaso, da coincidência ou da sorte. São fruto de

pesquisas, de investimentos. O “novo” não é simplesmente descoberto; é “criado”

pelo ato humano de “fazer algo”. Para que possa existir, houve investimento,

projetos, planos de negócios. Negócios foram firmados, sem que existisse um

modelo estabelecido; ou seja, com base em parâmetros, muitas vezes, distante dos

112 Segundo Teubner (2005, p. 135), “[...] mesmo que a maioria dos economistas e juristas tenha uma visão diferente e compreenda as instituições jurídicas e econômicas como fenômenos unitários, sendo ora complexos de normas, ora sistemas de incentivos, mesmo se se atribuírem as diferenças entre componentes jurídicos e econômicos aos diferentes interesses de conhecimentos das disciplinas científicas em questão, defende-se aqui, com ênfase, a seguinte tese: instituições econômicas divergem fundamentalmente das jurídicas . As ‘regras do jogo’ econômicas, apesar de todas as sobreposições, não são idênticas a normas jurídicas. E isso não tem nada a ver (pelo menos não só) com a tão citada diferença entre ser e dever ser. Os property rights econômicos são chances de ação práticas no mercado, com uma relativa distância da propriedade jurídica, que, por sua vez, sendo um complexo de pretensões jurídicas válidas e normas destinadas à solução de conflitos jurídicos, não pode ser identificada com chances fáticas de ação. Deve-se distinguir uma transação econômica de um contrato concluído de maneira juridicamente válida, mesmo se ambos ocorrerem muitas vezes, mas não necessariamente, ao mesmo tempo. A pessoa jurídica como ponto de imputação de atos jurídicos vinculativos, direitos subjetivos e obrigações não é idêntica à empresa econômica como um sistema social auto-reprodutivo. No fundo, a diferença consiste no fato de que instituições econômicas são compostas, em sua estrutura de constraints e incentives, que influenciam os cálculos de custos e benefícios dos agentes econômicos, enquanto instituições jurídicas são complexos de normas válidas que estruturam a solução de conflitos. Apesar de ambas poderem ser estruturalmente acopladas, as instituições econômicas e jurídicas podem não só ser analiticamente diferenciadas, como também são fenômenos diferentes do ponto de vista empírico”. 113 Gail (2009, p. 665) diz que “[...] não é à toa que sistemas instáveis e em constantes mudanças buscam segurança e certeza em outros sistemas. Vejamos, por exemplo, o sistema econômico que, por ser extremamente volúvel, busca incessantemente segurança onde não existe, no sistema jurídico”.

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tradicionais. O modelo econômico desenhado para tal negócio pode se adequar ou

não ao sistema jurídico existente, porém apenas o sistema jurídico pode avaliar se

ele é lícito ou ilícito, se pode entrar e permanecer no sistema sob o status de

negócio válido.

Contudo, a questão que se propõe à reflexão é se o sistema jurídico

tradicional tem condições de analisar esquemas econômicos complexos ou que

denotem a face da contemporaneidade, ou seja, diversificados, múltiplos, plúrimos.

Quando se utilizou a expressão de Rodotà (2008) — um novo circuito de produção

do direito promovido na esfera privada —, não se quis tratar de um circuito ilícito; ao

contrário, quis se tratar de um contingente não selecionado (ou alcançado) pelo

sistema jurídico tradicional. Conforme Grossi (2010, p. 77),

[...] a práxis econômica se faz produtora de direito: a nova economia e as novas mirabolantes técnicas exigem novos instrumentos jurídicos não encontráveis na bimilenar tradição romana fundamentalmente radicada na noção de coisa corporal que, no final do século XX, parece paleolítica aos contemporâneos homens de negócios. Existem novas exigências jurídicas e se “inventam” novos instrumentos jurídicos, aptos a ordenar a nova circulação global.

Tratar da complexidade econômica, inclusive como face da complexidade

objetiva, requer ampliar a abertura cognitiva do sistema, requer reflexão, requer uma

atuação efetiva das instituições.

Sem uma adequação do sistema jurídico, pode-se perder o elo principal com

a segurança — valor, convém frisar —, buscado pelos sistemas. Mesmo se tratando

de uma segurança artificial, moldada com base em possíveis frustrações, ela é uma

regra necessária (senão imperativa) do jogo social. O encadeamento de contratos e

as estruturas econômicas complexas, incluindo os financiamentos, as garantias, os

consórcios, bem como uma aproximação de grandes grupos econômicos

empresariais visando a soluções compartilhadas, aliadas a uma efetiva participação

do consumidor final (por meio de pesquisas efetuadas on-line, por exemplo),

apontam modelos que devem ser analisados sob novas lentes, que só serão

utilizadas quando o descarte seletivo não for efetuado pelas lentes antigas, que só

permitem ler o igual, o parâmetro, o paradigma.

Contudo, sendo a economia tão dinâmica, sendo os sujeitos que se

relacionam tão ávidos por inovação e riqueza, sendo a grande maioria das potências

mundiais predominantemente fincadas numa estrutura que privilegia a iniciativa

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privada, tendo a ciência rompido as muralhas acadêmicas e se inserido no seio

social, integrando departamentos das empresas e das organizações privadas, então

se faz fundamental compreender que o contrato é a ponte entre o direito e a

economia, que as relações patrimoniais dele advindas estabelecem regras que se

inovam diuturnamente visando a uma lucratividade cada vez maior.

A instrumentalização do mercado pelo direito se faz pelo contrato, que se

conforma às necessidades, em razão da maleabilidade que a liberdade (ainda que

mitigada) permite. Por ser uma decorrência do poder concedido aos particulares, o

contrato tem um âmbito que pretende ser alargado pelo esquema econômico que o

sustenta. O “novo” sempre testa os limites das normas cogentes. Por ser assim, que

a complexidade contratual está calcada na liberdade que permite os contratos

atípicos, e por essa razão se sustenta que a interpretação dos contratos complexos

deve se dar pela análise do caso concreto, identificando sua causa, unidade ou

pluralidade, a partir do esquema econômico subjacente.

2.3.4 Complexidade tecnológica

Desde que a ciência passou a integrar a vida das pessoas comuns, assistiu-

se a uma evolução tecnológica (a aplicação prática da técnica e do conhecimento

científico); os limites de espaço, tempo foram se alargando com a automação,

internet e acesso à informação. Mas isso reflete que cada facilidade tecnológica

pode envolver uma complexidade contratual relevante, derivada, inclusive do

esquema econômico subjacente.

As tecnologias são desenvolvidas em forma de projetos e parcerias. Uma vez

concebidas, têm forte aptidão a ser compartilhadas por meio de contratos próprios

de tal área, como são os de licença de exploração de patentes, a licença de uso de

marcas, de fornecimento de tecnologia, a licença de exploração de desenhos

industriais, o contrato de fornecimento de tecnologia, o de prestação de serviços

técnicos especializados, o de compartilhamento de pesquisa ou acordo de

cooperação tecnológica, o de franquia e os acordos de confidencialidade (SANTOS,

2011).114

114 Santos (2011, p. 100) explica que, de acordo com o ato normativo 135, expedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), em 15 de abril de 1997, apenas as licenças de direitos de propriedade industrial, os contratos de aquisição de conhecimentos tecnológicos e os contratos de franquia enquadram-se na categoria dos contratos de transferência de tecnologia.

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A avidez por novas tecnologias e as suas possibilidades de aplicação ao

cotidiano das pessoas acarretaram um viés muito forte de empreendedorismo nas

pesquisas por meio de projetos firmados entre instituições de pesquisas e empresas

(privadas) de formação de startups — empresas constituídas por pesquisadores e

fomentadas por investidores (que são denominados de “anjos” em algumas

situações)115 por meio de associações e/ou parcerias para compartilhamento de

tecnologias).

Tecnologias diversas permeiam de forma intensa a vida cotidiana, em

particular no denominado comércio eletrônico, que atinge tanto o tráfico comercial

das grandes corporações — cujas compras e vendas são efetuadas por meio de

“portais eletrônicos” (em relações de não consumo) — como a rotina das pessoas —

em relações finais de consumo. Como tal, as tecnologias atraem complexidade aos

contratos afins. Para cada facilidade do mundo moderno, foram firmados contratos

diversos (em relação de consumo e de não consumo).

Por exemplo, ao comprar um livro em um website próprio da livraria, é

possível escolher a forma de pagamento; em geral, a escolha se dá entre cartão de

crédito, débito em conta corrente e boleto bancário. Na opção de cartão de crédito,

várias bandeiras são disponibilizadas. O pagamento, a despeito de tal informação

nem sempre ser evidente para o comprador, é efetuado, em grande parte das vezes,

por meio de um intermediador, que valida a transação visando mitigar fraudes (seja

em relação ao uso indevido de cartão de crédito, seja em relação à compra em si).

Além disso, ao se tratar de um livro impresso, deverá ser entregue ou disponibilizado

para retirada. Portanto, além da compra do livro, poderá ser contratado um serviço

de entrega, executável de formas diferentes: pelo correio, por um serviço de entrega

com agendamento ou ainda em um prazo especial.

Como se lê, a singela aquisição de um livro envolve uma série de contratos:

pelo comprador (contratos de relação de consumo) — primeiramente, fez-se um

cadastro no referido website, em que se concordou com os termos gerais de acesso

115 Em Figueiredo (2016, p. 124) se lê que “Até mesmo as start-ups, que têm por base ideias inovadoras e tecnológicas e que, em tese, seriam bem recebidas pelo mercado, precisam de capital para a implementação da empresa. Nesse contexto, tem-se que, nos casos em que o titular da start-up não possui recursos próprios para investir na empresa, precisa recorrer a outros meios para financiar a atividade que pretende desenvolver, a exemplo de financiamentos públicos ou privados e de sócio investidor (chamado no ramo das start-ups de investidor-anjo, o qual não apenas investe capital como também indica fornecedores e clientes), além de outros meios menos ortodoxos como crowdfundings e participação em concursos e competições que oferecem premiação”.

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e utilização. Ao se efetuar a compra, celebrou-se um contrato de compra de dado

livro por determinado preço (oportunidade que reafirma concordar com todas as

condições da compra e venda). O pagamento, se realizado por cartão de crédito,

pressupõe um contrato entre comprador e banco e/ou administrador de cartão de

crédito, que inclui limites, data de pagamento, taxas de juros, multa por

inadimplência. Além disso, se o comprador optou por receber o livro em determinado

endereço, houve a contratação do serviço de entrega, que pode ser diverso (via

correio, empresa de entrega, serviço próprio da empresa que vende os livros e

outros).

Pode-se vislumbrar outros contratos pelo comprador: se a compra foi

efetuada por um computador com acesso à internet, então houve a contratação de

um acesso à rede mundial de computadores; se foi por um dispositivo móvel, então

houve a contratação de um plano para acesso; se a compra ocorre mediante

determinado aplicativo para dispositivos móveis, então houve aquisição de tal

aplicativo. Pelo vendedor (envolve contratos de relação de consumo e de não

consumo), para disponibilizar a venda de determinado livro em seu website

(comércio eletrônico), foi necessário contratar o domínio do site, assim como

determinada plataforma eletrônica que permitisse conjugar informações variadas —

cadastro de estoque, autores, títulos, editoras, usuários etc. (em geral, uma licença

de uso de dada tecnologia).

Além disso, a plataforma pode ser gerenciada pela própria empresa ou por

terceiros; neste caso, o contrato envolveria, além da prestação de serviços de

administração da plataforma, contratos de licença de marca, programas, sigilo de

dados que trafegam no website, controle de estoque, dentre outros (contratos de

tecnologia). Como é necessário mantê-lo acessível, deve ser celebrado um contrato

de hospedagem.

Para viabilizar as compras on-line, o vendedor precisa ter um sistema de

pagamentos. Em geral, contrata-se uma empresa intermediadora de pagamentos,

que prestará os serviços para possibilitar a transação financeira, seja validando a

utilização dos cartões de crédito e débito em conta ou emitindo boletos bancários.

Precisa ter um contrato com os serviços de entrega, seja os Correios, seja serviços

privados, em que conste prazos específicos. A fim de cumprir regras advindas do

direito do consumidor, é preciso manter um serviço de atendimento a consumidores,

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o qual, em grande parte das vezes, é efetuado por prestadores de serviços

contratados.

Em resumo, subjacentes a um contrato (firmado de forma eletrônica entre

comprador e vendedor) de um livro estão vários contratos para lhe permitir ser

efetuado. Com efeito, dentre aqueles listados (é possível que existam outros

contratos relacionados), claramente encadeados, existem contratos complexos (o

contrato da disponibilização da plataforma de comércio eletrônico é um exemplo) e

os não complexos. Mas o conjunto de tais contratos, sem dúvida, detém uma

complexidade tecnológica e econômica.

Apesar de singelo, o exemplo da compra do livro denota a complexidade

contemporânea decorrente, inclusive, da premente necessidade de avanço

tecnológico, das ferramentas “facilitadoras” do cotidiano. Inúmeras poderão ser

as vicissitudes de tal relação: o produto adquirido poderá não estar mais

disponível em estoque, por um erro na gestão da plataforma (um retardamento da

atualização das informações de estoque); a empresa de entrega não cumprir com

o prazo estabelecido; a autorização da compra pela empresa intermediadora de

pagamento não se confirmar (por exemplo, ter sido efetuada por um cartão de

crédito clonado), dentre outras muitas possibilidades que poderão surgir.

Acrescente-se que no exemplo existe uma estabilidade razoável entre os tipos

contratuais envolvidos: compra e venda; prestação de serviços; intermediação. O

maior desafio diz respeito à contratação entre ausentes, em especial quanto ao

pagamento (para evitar fraudes) e à tecnologia da disponibilização das

informações.

Todavia, ao se pensar em negócios que causam impactos ao se imporem na

realidade, a dimensão das complexidades, mesmo que próprias de cada sistema,

expandem-se. Um exemplo atual é o caso do Uber, que causa discussões em

países diversos, inclusive no Brasil.

Trata-se de uma empresa multinacional que, por meio de tecnologia em rede

— utilizando aplicativo móvel —, disponibiliza transporte urbano de caráter privado

com uma noção de “carona remunerada”. Para acessar o Uber, é necessário ser

cadastrado em tal aplicativo, com indicação de forma de pagamento. Requerer um

motorista para uma corrida (que é monitorada pelo aplicativo) demanda solicitar via

aplicativo, que informa o veículo (e nome do motorista) que será disponibilizado e o

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valor estimado, a ser pago por meio da forma pré-cadastrada (em geral, um cartão

de crédito).

Sem adentrar as questões jurídicas, sociais, econômicas e até políticas aí

envolvidas, é de se notar como uma inovação em uma realidade que envolve o

cotidiano das pessoas pode se mostrar tão relevante e de solução (em todos os

sistemas acima citados) difícil. A questão fica mais complexa caso se considere que

o serviço foi posto em prática — ou seja, ingressou na realidade fática, a despeito de

todas essas questões — e foi recepcionado de forma positiva por seus usuários,

inclusive porque representa uma solução (ainda que aparente) para o transporte a

um custo mais baixo que os taxis convencionais.

Esse exemplo demonstra os paradoxos contemporâneos: praticidade

versus modelos de intervenção estatal (algumas de cunho até protecionista);

soluções criativas privadas para o transporte urbano versus o engessamento das

políticas públicas; modelos econômicos que colocam em discussão modelos

sociais, especialmente quanto ao emprego; a relevância da manifestação de

vontade dos consumidores numa sociedade capitalista, numa economia de

mercado.116

Com base em certas características (não estanques) — ser atípicos, de

duração, lacunosos, incompletos, de colaboração, evolutivos, relacionais, sendo a

complexidade subjetiva, volitiva, objetiva, tecnológica e/ou econômica —, é possível

categorizar os contratos complexos. É certo que tais contratos ingressaram na vida

social de uma forma definitiva, e sua compreensão, de forma ampla, sem buscar

reducionismos fundados em regramentos conhecidos (tipificados), ocorre conforme

a situação concreta, pois sua atipicidade caminha com a liberdade exercida no

âmbito negocial.

116 A ministra Nancy Andrighi em palestra proferida no II Congresso Brasileiro de Internet, afirmou, sobre o tema, que: “Por fim, de tudo que tenho acompanhado a respeito da proibição de aplicação de intermediação de contrato de transporte, não vi, até o momento, qualquer notícia do que os maiores interessados têm a dizer sobre a questão. De fato, a discussão sobre a proibição ou não de aplicativos de intermediação de contratos de transporte não pode ser pautada exclusivamente por pressão política de certas categorias profissionais como tem sido feito, mas deve ser feita precipuamente no interesse dos consumidores do serviço de ‘transporte privado individual, afinal é do interesse do consumidor — e deveria ser também do Estado, por força do art. 170 inciso IV da Constituição — que a livre concorrência seja fomentada e jamais restringida. São os consumidores que devem ser os primeiros a serem ouvidos quando o Estado pretende proibir qualquer atividade econômica lícita’” (24 de setembro de 2015, p. 20).

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2.4 Contratos coligados A complexidade das relações negociais,117 vista como um sistema, enseja a

possibilidade dos denominados contratos coligados. Utiliza-se o termo coligação

contratual, conforme Leonardo (2012, p. 351), para retratar o gênero das situações em

que duas ou mais diferentes relações contratuais se encontram vinculadas, ligadas,

promovendo alguma eficácia paracontratual. A visão de tais contratos integra o presente

trabalho para servir de suporte à interpretação dos contratos complexos. Conforme

assentado, as relações contratuais complexas atraem contratos coligados. Assim, na

situação concreta, verifica-se a existência de contratos complexos com contratos a eles

coligados. Daí o objetivo de fazer uma explanação rápida acerca dos coligados para, na

interpretação dos complexos, abarcar a possibilidade de ocorrer contratos a eles

coligados.

Embora haja denominações diferentes e diferenças entre as abordagens

feitas em sistemas jurídicos variados, como adverte Leonardo (2003, p. 129),118

verifica-se que todos se relacionam com contratos estruturalmente diferenciados,

mas unidos por nexo funcional-econômico que implica consequências jurídicas.

Assim, para fins deste estudo, os diferentes termos (contratos conexos, redes

contratuais, contratos ligados) serão tidos como sinônimos de contratos coligados.

Ao tratar de tal tema, Gomes (1997) apresenta a classificação de Enneccerus

acerca da união de contratos: (i) união meramente externa, (ii) união com

dependência, (iii) união alternativa.

Ele trata a união meramente externa como simplesmente instrumental, sem

interdependência entre os contratos: são vários contratos unidos externamente no

117 O novo “[...] estilo de negociar, ajuntou-se a existência de novos modos de estabelecer contratos, conseqüentes à expansão, à sofisticação técnica e às peculiaridades dos meios eletrônicos. E a tudo se somou a criação de novos modelos contratuais. Basta pensar na existência de redes, cadeias e grupos contratuais, formas expressivas de operações econômicas múltiplas, complexas e não raramente conexas, porquanto marcadas por uma unidade finalista, por uma ‘supracontratualidade’, também o direito dos contratos vivenciado, tal qual o direito societário, o momento de ‘passagem do átomo para a molécula’ (MARTINS-COSTA, 2008, p. 484). 118 Leonardo (2003, p. 129) explica que, no direito italiano e no direito português, a interligação funcional e econômica entre contratos “[...] estruturalmente diferenciados tem sido tratada sob a expressão contratos coligados. No direito espanhol, privilegia-se a expressão contratos conexos. No direito francês, grupos de contratos, no direito anglo-saxão, contratos ligados (linked contracts ou linked transaction) ou networks contratuais, e, por fim, no direito argentino, a expressão redes contratuais”. Ressalte ainda, que para o mesmo autor, “Rede de contratos ou rede contratuais, pressupõem dois ou mais contratos interligados por um articulado e estável nexo econômico, funcional e sistemático que se destina à oferta de produtos e serviços no mercado para o consumo” (LEONARDO, 2012, p. 352).

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ato de sua conclusão. Nesse caso, não há propriamente coligação de contratos, pois

não se completam nem se excluem.

Na união com dependência, os contratos coligados são queridos pelas partes

como um todo; um depende do outro, de tal modo que sirvam a individualidade

própria. Por isso se distinguem dos contratos mistos. A dependência pode ser

recíproca (bilateral) ou não (unilateral). Na dependência recíproca, dois contratos

completos, embora autônomos, condicionam-se com reciprocidade, em sua

existência e validade. Um é a causa do outro. Um não existe sem o outro. Formam

uma unidade econômica, pois os dois se extinguem ao mesmo tempo. Na

dependência unilateral, não há reciprocidade, mas subordinação de um contrato a

outro na sua existência e validade (p. 104).

Na união alternativa, dois contratos são previstos para que subsistam um ou

outro; uma vez realizada determinada condição, um exclui o outro, quando a

condição se verifica. Embora unidos, não se completam, como na união com

dependência; antes, excluem-se (p. 105).

Conforme Marino (2009, p. 99), contratos coligados podem ser conceituados

como “[...] contratos que, por força de disposição legal, de natureza acessória de um

deles ou do conteúdo contratual (expresso ou implícito) encontram-se em relação de

dependência unilateral ou recíproca”. Portanto, como elementos essenciais, têm-se:

(i) a pluralidade de contratos (ao menos dois contratos), não necessariamente

celebrados entre as mesmas partes; (ii) vínculo de dependência unilateral ou

recíproca (conexão entre eles).

A coligação necessária,119 que é objetiva, ocorre quando o vínculo entre os

contratos se dá por disposição legal como ocorre entre o contrato preliminar e o definitivo,

mandato e procuração, contrato e subcontrato.120 Engloba também, de forma mais

ampla, a (vasta) categoria dos contratos acessórios,121 dependentes, auxiliares ou de

119 Também denominada “coligação em sentido estrito” — vide Leonardo (2012, p. 352). 120 Conforme Martinez (1989, p. 197), o subcontrato e o contrato-base formam uma coligação unilateral, funcional e necessária. Constituem uma união processual, na medida em que prosseguem o mesmo fim, e uma união em cascata porque a relação entre eles é vertical. Quanto ao conteúdo, os dois contratos formam uma união homogênea, pois os dois contratos são do mesmo tipo negocial. Trata-se de uma união hierárquica, pois um dos contratos fica na dependência do outro. 121 Marino (2009, p. 105) entende que a expressão “coligação necessária” é equivocada, pois é preciso separar os casos de coligação ex lege das hipóteses de coligação advinda da própria natureza acessória típica de um dos contratos envolvidos na coligação. Essa coligação nem sempre será “necessária”, na acepção estrita da palavra, pois o vínculo, ainda que natural, poderá perfeitamente surgir por acidente, sem que fizesse parte do programa inicial das partes.

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segundo grau (NANNI, 2011). Tratando-se de coligação voluntária, o vínculo se dá por

meio de cláusula contratual expressa ou implícita (resultante da autonomia privada).

Seja na coligação necessária ou na voluntária, a manifestação de vontade é

importante. Mesmo na coligação legal, a manifestação volitiva terá desempenhado

relevante função, pois a celebração dos contratos se deu por um ato de autonomia

negocial. No tocante à coligação voluntária, esta não demanda a vontade específica

para que se institua o sistema contratual de coligação: basta a intenção da parte de

celebrar determinado contrato que integre uma operação econômica global.122

A coligação contratual também pode se apresentar, conforme Martinez (1989, p.

194–5), como genética ou funcional. Na coligação genética, um dos contratos produz

efeitos na fase formativa do outro, mas esses efeitos não persistem na fase de execução

(a exemplo do contrato tipo).123 Na coligação funcional (que é mais importante em razão

da maior complexidade de efeitos), o destino de ambos os contratos está ligado, não só

na sua formação, como também no funcionamento das respectivas relações. Para a

coligação contratual não é preciso que sejam os mesmos sujeitos como partes em ambos

os contratos. É, todavia, imprescindível a existência de um sujeito comum aos dois

negócios jurídicos, ou seja, parte em um e em outros contratos.

Por ser um sistema, os contratos coligados têm por elementos os contratos

que se encontram unidos por um nexo funcional e ordenado para o alcance de

objetivos próprios ao sistema (objetivos que transcendem a individualidade de cada

contrato-elemento).124 A ligação entre os diversos contratos deve refletir uma mesma

operação econômica que é propiciada ou potencializada pela união referida

(LEONARDO, 2005, p. 103).

122 Fernandes (2014, p. 231) cita como exemplo o fornecedor de materiais para determinada empreitada que não precisa ter plena consciência de que está adentrando em uma situação de contratos coligados. 123 Para Gomes (1997, p. 127), os “contratos-tipo” contêm o esquema concreto dos futuros contratos individuais e pode resultar de conteúdo cuja elaboração incluiu, em igualdade de condições, os interessados. 124 Segundo Moreira (2003, p. 756), “[...] acentuam os autores que não é essencial a vinculação externa dos negócios, bastando que as recíprocas prestações tenham sido pactuadas como elementos que se coordenam, na intenção das partes, em vista do fim comum que se quer atingir. Algumas vezes, haverá dependência bilateral, de sorte que cada um dos contratos só existe em função do outro, mas pode haver também dependência unilateral, se um dos contratos pressupõe o outro sem que a recíproca seja verdadeira. Na segunda hipótese, a conexão não fica excluída pelo fato de serem diversos sujeitos dos contratos: assim, expressamente, Messineo, ob e tomo cits., pág. 725, que acrescenta ser suficiente a coincidência quanto a uma das partes”.

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Conforme Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 252), o elemento caracterizador da

interdependência entre os contratos coligados, ou seja, da conexão contratual, é a

causa. É por intermédio da causa concreta, que assume feição de cláusula geral,

que se afere a existência ou não de coligação contratual.125 Para além da causa de

cada um dos contratos-elementos da rede, consoante explica Leonardo (2005, p.

103), seria perceptível uma causa sistemática correspondente a uma função prático-

social para o conjunto (sistema) de contratos diversa da função prático-social de

cada um dos contratos individualizados (elementos do sistema). Castro (1966, p. 42)

já afirmava que a causa assume especial relevância na solução da individualização

dos contratos, na hipótese de concurso ou cumulação de contratos autônomos, ou

de conexão objetiva ou subjetiva de contratos unitários.

O regime jurídico aplicável deve ter em conta a causa do sistema de

contratos, portanto deve ser um regime jurídico construído; e, sendo um sistema,

deve resolver a solução de cada setor com referência ao todo (PENTEADO, 2007a).

A apuração da coligação contratual, portanto, é constatada mediante o cotejo entre as causas concretas de contratos que tenham acentuado grau de proximidade ente si em que se denota alguma sorte de conexão entre elas, formando uma unidade funcional econômica (NANNI, 2011, p. 256).

A crescente complexidade negocial — cabe frisar — acarreta a

possibilidade de operações econômicas serem concluídas mediante a celebração

de vários contratos. O que importa verificar é se tais contratos podem ser

considerados coligados ou não. Nessa ordem de ideias, é lícito distinguir de

imediato as hipóteses de coligação em sentido próprio daqueles casos

de coligação em sentido impróprio; ou seja, contratos que, embora tenham entre

si algum liame econômico ou fático, não podem ser considerados coligados em

sentido próprio ou técnico da expressão,126 pois dispõem de “conexidade fraca”,

diria Antônio Junqueira de Azevedo (2009, p. 76). Consoante lição de Giovanni

Ettore Nanni (2011, p. 257), os casos de conexidade fraca consubstanciam

coligação não vinculante, ao passo que a coligação contratual vinculante se

opera ante a presença de efetiva proximidade de causa concreta, formando uma

125 A causa concreta será analisada no item 3.4 do capítulo 3. 126 Leães (2016, p. 406)

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unidade de interesse econômico.127 Todos esses aspectos serão levados em

conta na análise da situação concreta para a interpretação de contratos

complexos que envolverem, também, os coligados. Ocorrendo a coligação, seus

efeitos repercutirão nos complexos.

2.4.1 Efeitos da coligação contratual

A existência de uma coligação contratual traz uma série de repercussões

jurídicas para os contratos e as partes que integram o sistema.128 Um ponto a

destacar é que as relações contratuais coligadas, também, importam em deveres de

conduta específicos para a referida coligação. A todo o complexo de deveres

impostos às partes (em qualquer relação contratual) se integram os deveres

secundários e os laterais de conduta;129 e quando se trata de contratos coligados,

tais deveres afetam toda a rede da coligação contratual (inclusive os contratos

complexos que eventualmente integrarem tal rede).

Não é possível enumerar de forma taxativa quais são os deveres laterais, mas

como forma de exemplificação, Martins-Costa (2005, p. 50) colaciona os deveres

[...] de lealdade, de cuidado, previdência e segurança; aviso e esclarecimento; de informação, de consideração com os legítimos interesses do parceiro contratual; de proteção ou tutela com a pessoa e o patrimônio da contraparte de não aguardar a situação do parceiro contratual; de evitar ou diminuir os riscos; de abstenção de condutas que possam pôr em risco o programa contratual; de omissão e de segredo, em certas hipóteses, deveres que podem anteceder o contrato, na chamada fase pré-contratual, ou mesmo prolongar-se findo o negócio, hipótese de responsabilidade pós-contratual.

Três deveres laterais de conduta que são verificados nas redes contratuais: (i)

dever lateral de contribuição para a manutenção do sistema (por exemplo: vedação

127 O autor também explica que a coligação não vinculante se enquadra na denominada união meramente externa, sem relação de interdependência. 128 Nesse sentido, vide Fernandes (2014, p. 235). 129 Cabe esclarecer que são várias as nomenclaturas oferecidas pela doutrina: deveres anexos, instrumentais, laterais, deveres de conduta, deveres fiduciários. Sobre a diversidade de nomenclatura, Fernando Noronha (2007, p. 81) anota que a “[...] nomenclatura destes deveres está muito longe de ser objeto de consenso; a primeira designação que lhes foi dada foi a de ‘deveres laterais’, mas a que ganhou a preferência da doutrina e da jurisprudência foi a de ‘deveres anexos’; todavia nós temos como mais adequada a de ‘deveres fiduciários’, porque é denominação que aponta diretamente para o fato de eles serem exigidos pelo dever de agir de acordo com a boa-fé, tendo como fundamento a confiança gerada na outra parte”.

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aos contratantes envolvidos em rede de modificar injusta ou intempestivamente os

vínculos sistemáticos, nas hipóteses em que o ato modificativo se reverta em

prejuízo ao sistema); (ii) observação da reciprocidade sistemática das obrigações

(visa manter ou promover o equilíbrio entre as partes e o sistema); (iii) dever lateral

de proteção das relações contratuais internas aos sistemas (voltado particularmente

à consecução dos objetivos de persistência temporal do sistema) (LEONARDO,

2005, p. 151–2). Portanto, fincados na ideia da necessária cooperação, lealdade e

reciprocidade, os deveres laterais de conduta são essenciais aos contratos

coligados e sua observação implicará a forma como os efeitos da coligação

repercutirão em cada contrato individualmente.

Há coligações contratuais com intensidade maior ou menor, conforme sua

aptidão para gerar efeitos jurídicos.130 A intensidade e os próprios efeitos variam de

acordo com o evento concreto e suas peculiaridades (NANNI, 2011, p. 264). Marino

(2009, p. 142–5) propõe os seguintes fatores como “intensificadores” da coligação:

(i) a coligação composta por contratos celebrados entre as mesmas partes

apresenta, a princípio, maior propensão a gerar efeitos jurídicos; (ii) a coexistência

dos contratos coligados, não só na formação, como na execução dos contratos; (iii)

a presença de um contrato existencial.131 Além disso, a própria complexidade

negocial envolvida pode intensificar a coligação contratual, como acontece em

contratos de franquia e revenda de combustíveis, por exemplo, tratados a seguir. O

que importa é ressaltar que a atividade econômica subjacente a um contrato

complexo tem potencial para atrair contratos coligados na espiral em que mercado

gera mercado, razão pela qual se assiste e se desenvolve o acoplamento de

diversos entes comerciais e prestação de serviços para potencializar vendas,

aumentar lucros, diminuir despesas, angariar novos clientes.

130 Marino (2009, p. 141) prefere a expressão “consequências jurídicas”, em sentido amplo, a “efeitos jurídicos”, pois nem toda consequência será, tecnicamente, um efeito jurídico entendido como a criação, modificação ou extensão de uma relação ou posição jurídica. 131 Conforme Antônio Junqueira de Azevedo (2005a, p. 117), contratos existenciais são os de consumo, de trabalho, de locação residencial, de compra da casa própria e, em geral, os que dizem respeito à subsistência da pessoa humana em relação aos “contratos empresariais”. Explica o autor que “[...] essa nova dicotomia, que defendemos, ‘contrato existencial/contrato empresarial’, é, a nosso ver, a verdadeira dicotomia contratual do século XXI. Por força da renovação dos princípios contratuais e da frequência de sua concretização, não se pode mais empregar a palavra ‘contrato’ sem consciência dessa nova dicotomia; ela é operacional e está para o século XXI, como a de ‘contrato paritário/contrato de adesão’ esteve para o século XX”.

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Dentre os efeitos do reconhecimento da coligação contratual, conforme

Marino (2009, p. 145), ganham relevância os seguintes temas: (i) interpretação; (ii)

qualificação; (iii) derrogação do regime jurídico; (iv) plano de validade; (v) plano da

eficácia.

Quanto à interpretação, em razão da causa concreta conexa, de uma

unicidade de operação econômica ela passa a ter novo relevo na coligação

contratual, na medida em que impõe ao intérprete buscar elementos (além dos

advindos do negócio em exame) nos demais que estão a ele vinculados (KONDER,

2006, p. 198). A interpretação não deve ficar limitada às teorias clássicas, pois os

pactos se fundem na arte de elucidar o significado das declarações e definir o

sentido que foi o objeto do consenso (NANNI, 2011, p. 268).

Há a necessidade de interpretar os contratos coligados em conjunto. Uma vez

que o intérprete perceba a existência de contratos possivelmente vinculados àquele

objeto da interpretação, deve, necessariamente, utilizá-lo como meio interpretativo

(MARINO, 2009, p. 148). O foco da interpretação não pode ser baseado no contrato,

mas na interação de um grupo de contratos que atuam relacionadamente, de forma

que o contrato é uma ferramenta para realizar negócios. Essa abordagem permite

estabelecer que há um propósito supracontratual na negociação que justifica o

nascimento e funcionamento de uma rede. Faz-se necessária uma compreensão

fundada no sistema, portanto uma teoria sistemática (LORENZETTI, 1998).

Tepedino (2011) assevera que a presença de contratos coligados traduz, com

efeito, a unicidade econômica da operação e significa, tecnicamente, no

ordenamento jurídico brasileiro, que a disciplina jurídica aplicável às partes e à

interpretação dos seus atos não pode se dissociar dos objetivos por elas

perseguidos na operação globalmente considerada.

Tendo em vista que o escopo do presente trabalho é tratar da interpretação

dos contratos complexos e dos contratos a eles coligados, por ora essas

considerações se fazem necessárias para compor a visão global dos contratos

coligados.

Outro efeito relevante diz respeito ao processo de qualificação do contrato. De

maneira geral, a conexão pode interferir na classificação dos contratos em

categorias gerais. A distinção de contratos entre gratuitos e onerosos é um exemplo

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que conduz à restrição no processo interpretativo e à diminuição da

responsabilidade contratual.132

Ao situar o processo qualificatório em um patamar mais elevado, a

consideração da conexão contratual permite, além de um enquadramento mais

adequado nos negócios concretos e a consequente determinação das normas

aplicáveis, um controle mais eficaz de merecimento de tutela (meritevolezza). Isso

porque, por vezes, as partes podem fazer uso de uma complexa operação

plurinegocial com o objetivo de fraudar a lei, que em geral atenta apenas para os

negócios singularizados.133

Com efeito, Marino (2009, p. 198) destaca que há hipóteses diversas nas

quais a fraude se dá por meio da coligação contratual. Muitos são os exemplos de

utilização de contratos coligados para fraudar a proibição do pacto comissório

(conforme artigo 1.428 do Código Civil). Um deles seria a leasing back (operação

estruturada por meio de coligação entre uma compra e venda e um contrato de

leasing, de que são partes o vendedor arrendatário e o comprador arrendante):

conquanto previsto na lei do arrendamento mercantil (artigo 9º da Lei 6.099/74),

pode eventualmente ser utilizada para fraudar a mencionada vedação ao pacto

comissório.

Entretanto, o fato de haver uma operação complexa não pode induzir à

presunção de que se trata de uma tentativa de simulação, fraude ou ato ilícito, pois a

boa-fé se presume, a sua ausência deve ser demonstrada.

Além disso, no plano da validade, é importante anotar a possibilidade de

contaminação da invalidade de um contrato ao(s) contrato(s) a ele coligado(s). Tal

contaminação não é um efeito automático; deve ser verificada com base no prejuízo

causado à função comum desempenhada pelo grupo de negócios.134

132 Konder (2006, p. 200) cita os artigos (do Código Civil) 114 — “[...] os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente [...]” — e 392 — “[...] nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei”, a Súmula 130 do Superior Tribunal de Justiça; “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação do dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento”. Assim, utiliza os seguintes exemplos: ainda que o veículo esteja no estacionamento, a título gratuito, a empresa responde pelo furto do veículo. 133 Konder (2006, p. 204–5) cita recorrentes expedientes fraudulentos já identificados no tráfico jurídico e na jurisprudência visando burlar a vedação ao pacto comissório 134 Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 272) ensina que “[...] a extensão da invalidade de um negócio defeituoso em relação aos demais integrantes da cadeia contratual depende da afetação ou não de toda a unidade funcional originada da operação econômica composta pela conexão”.

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Deve-se consignar a incidência da teoria da conservação do negócio jurídico,

previsto no artigo 184 do Código Civil,135que consiste em se procurar salvar tudo o

que é possível num negócio jurídico concreto, tanto no plano da existência e da

validade quanto no da eficácia. Trata-se da consequência necessária do fato de o

ordenamento jurídico, ao admitir a categoria negócio jurídico, estar implicitamente

reconhecendo a utilidade de cada negócio jurídico concreto (AZEVEDO, 2002).

Conforme ensina Renan Lotufo (2016, p. 570), ao comentar o referido artigo, se o

negócio puder subsistir com a retirada de determinada parte inválida sem

comprometer a intenção das partes, então a parte válida não sofrerá prejuízos. O

próprio texto já destaca a necessidade, nesse caso, de o negócio ter por objeto uma

complexidade, permitindo que se possam distinguir frações dele; a falta de uma

delas não impede a sobrevida do negócio.

Quando se trata de coligação por dependência unilateral, em geral se aplica a

regra de que o acessório segue o principal; entretanto, tal aplicação deverá ser

analisada com o caso concreto, pois nem sempre, em tal coligação, haverá uma

relação desprovida de uma vinculação funcional efetiva.136 Conforme Konder (2006,

p. 222–8), a controvérsia da contaminação da invalidade de um contrato ao seu

coligado surge na forma de justificar a ineficácia de um negócio que, considerado

em si mesmo, é perfeito.137

Marino (2009, p. 193) sustenta que somente quando o fim concreto não for

afetado pela invalidade de um dos contratos coligados é que os demais poderão ser

mantidos. O fim concreto, parcela relevante do conteúdo contratual, deve ser

determinado mediante interpretação objetiva, atenta à “racionalidade interna” do

135 “[...] respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”. 136 Marino (2009, p. 193) cita o seguinte exemplo, para demonstrar que “o acessório segue o principal” deva ser admitido como algo estanque: “[...] na coligação entre contrato de locação e contrato de distribuição de combustíveis, haveria dependência unilateral ou recíproca? Aparentemente, o contrato de locação poderia ser tido como acessório, na medida em que sua ‘finalidade última’ é a distribuição de produtos. Não faltam, contudo, manifestações jurisprudenciais, no sentido de que, neste caso, é a locação o contrato principal, ao qual se subordinam as demais ‘cláusulas acessórias’”. 137 Para Konder (2006, p. 222–8), em nosso ordenamento, o artigo 421 do Código Civil permite invocar a função social do contrato para tal situação: “[...] inválido um dos negócios que compõem o regulamento de interesses estabelecido plurinegocialmente, a função comum a ser desempenhada pela conexão é destruída e, portanto, a função social do outro contrato que também integrava aquele grupo pode restar prejudicada, danificando assim o fundamento de sua proteção jurídica.

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contrato e conduzida à luz dos parâmetros previstos na lei (artigo 113 do Código

Civil).

Contudo, apenas a situação concreta poderá indicar se houve contaminação

da invalidade de um negócio ao outro coligado. O modelo de interpretação dos

contratos complexos e coligados proposto neste trabalho parte, justamente, da

concreção, dos elementos que compõem faticamente a relação contratual em cotejo

com as disposições convencionadas entre as partes (no exercício da autonomia

negocial), com os usos e costumes, circunstâncias do caso e demais filtros que

indicam que apenas a situação concreta pode revelar a intensidade de os efeitos da

coligação.

Quanto ao plano da eficácia, a coligação acarreta uma remodelação tendo em

vista sua interação com os demais contratos integrantes do sistema (FERNANDES,

2014, p. 236). Assim, tem-se, com a coligação contratual, a expansão da eficácia de

um pacto em relação ao outro (ou outros) a ele coligado(s). Com isso, atingem-se

não só as partes, como também terceiros, que firmaram os negócios jurídicos

conexos. São os efeitos internos (ou eficácia direta) sobre terceiros que se cuida

quando se trata da expansão da eficácia.138 Para Fernandes (2014, p. 236), “Os

planos eficaciais dos contratos integrantes de uma coligação podem eventualmente

tocar-se e até fundir-se”.

A repercussão da coligação entre contratos no campo da eficácia traz efeitos

significativos. Destaca-se, na esteira de Penteado (2007a, p. 488), a aplicação do

regime jurídico construído (com base em causa concreta) de remédios

sinalagmáticos tradicionais ao regime da rede. Nesses casos, é imperiosa a

aplicação da boa-fé objetiva, como teoria da confiança (PENTEADO, 2007a, p. 489)

e da vedação do abuso de direito.

Quando se trata de contratos coligados, o inadimplemento deve ser visto em

conjunto. Mesmo que seja coligação unilateral — como nos contratos acessórios —,

não se deve perder de vista que o contrato tido como acessório pode conter

obrigações essenciais quando contextualizado na sistemática da coligação. É

138 Como esclarece Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 263), “[...] sabe-se que a fisionomia revisitada do contrato permitiu a expansão de sua eficácia perante terceiros, aqui entendida como ‘eficácia externa’, de tal sorte que ‘o contrato passa a não lhe ser indiferente, de algum modo podendo influir em sua esfera jurídica’. Contudo, quando se analisa a eficácia diante do terceiro na coligação contratual, é da ‘eficácia direta’ que se cuida”.

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comum nos coligados, em especial nos relacionados com o mercado financeiro, a

inclusão, nos contratos, da cláusula que prevê o inadimplemento cruzado.

Noutros termos, o inadimplemento no cumprimento das obrigações de um dos

contratos afeta os contratos a ele coligados. É a denominada cláusula de cross-

default, que desencadeia um efeito dominó, permitindo a reação dos demais

credores da rede contratual. Trata-se de cláusula convencional, entabulada pelas

partes. Essa cláusula tem como peculiaridade, conforme Kataoka (2008, p. 109), o

fato de o “inadimplemento” eleito como condição resolutiva não estar no contrato

onde está a cláusula, e sim em outro. Isso funciona para mitigar o risco sofrido por

um dos credores envolvidos na operação econômica considerada do ponto de vista

global; ou ainda para garantir resultados adequados do ponto de vista negocial em

outros. A análise da referida cláusula impõe uma reflexão importante para a questão

do risco, do crédito e da confiança nos contratos coligados. Contagiando a rede, a

inclusão de tal cláusula faz com que os riscos do inadimplemento sejam menores e

não afetem toda a cadeia de credores.139

São exemplos de tais cláusulas: as que permitem ao financiador cortar

imediatamente outras linhas de financiamento que estivessem à disposição do

empresário financiado quando ele inadimplir outros contratos de crédito e provocar o

vencimento antecipado de dívidas porventura já existentes em razão de outros

contratos; as que permitem que o credor cobre antecipadamente a sua dívida se o

devedor, ou uma de suas filiais ou controladas, ou ainda seus garantidores

inadimplirem uma obrigação pecuniária que cause seu vencimento antecipado; ou

as que preveem um vencimento antecipado na hipótese de atos de constrição de

bens; as que preveem a resolução do contrato se o devedor se tornar inadimplente

com qualquer terceiro, sendo habitual incluir o dever de informar tal situação ao

credor (KATAOKA, 2008).

Na hipótese de tal cláusula não estar prevista no contrato, é imprescindível

analisar a importância da prestação inadimplida para a coligação vista como um

todo. Se a verificação da extensão e dos efeitos do inadimplemento de determinada

obrigação já é tarefa difícil nos contratos não complexos ou não coligados, a

tormenta aumenta em tais situações. Deve se investigar se a coligação, a conexão

139 Cabe ressaltar que os riscos que podem ser objeto de negociação são os riscos previsíveis no momento da negociação.

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entre os contratos, decorre de um sinalagma genético (estabelecido no momento de

sua celebração) ou de um funcional (mantido durante o tempo de vigência do

contrato) (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 502). Assim, a determinação do alcance do

inadimplemento dependerá da avaliação dos seus efeitos em relação a cada um dos

contratos, com ênfase na análise no fim concreto pretendido pelas partes e no

equilíbrio das prestações nos contratos diversos, verificando-se ainda o interesse do

credor no adimplemento e na utilidade da prestação para o contrato e os demais

contratos a ele coligados.140

Relacionada com o inadimplemento nos contratos coligados está a

acumulação de cláusulas penais decorrentes de contratos coligados diversos, que já

foi objeto de análise, inclusive, do Supremo Tribunal Federal, envolvendo contratos

coligados para revenda de combustíveis (postos de gasolina). Daí se depreende,

também, que só a interpretação fundada no caso concreto embasará a análise

quando a poder ocorrer ou não a cumulação de penalidades. Wald (2008, p. xvi)

apresenta o relevante relato acerca de tal problemática:

O primeiro assunto em que se discutiu a problemática da coligação dos contratos foi a fixação da multa no caso de “troca de bandeira” dos postos de gasolina, que ocorreu de modo mais intenso quando a Petrobras ingressou no mercado da distribuição no setor. Havia, na época, entre os postos e as empresas distribuidoras, três contratos simultâneos e conexos: um de financiamento para a construção do imóvel, outro de comodato de tanques e bombas, e ainda um terceiro, que era uma promessa de compra para revenda de quantidades mínimas de gasolina, óleo diesel e querosene. Todos os contratos eram feitos pelo mesmo prazo de dez anos e deles constava a previsão de pesadas multas, no caso e inadimplemento. Com a mudança de “bandeira”, discutiu-se o cabimento da cumulação das multas previstas nos três instrumentos e, como advogados, tivemos, na ocasião, a oportunidade de defender, em vários processos a tese de acordo com a qual, tratando-se de contratos coligados referentes a uma única operação econômica, a cumulação da multa seria incabível, tendo finalmente tal entendimento sido adotado pelo Excelso Pretório. Efetivamente, o Supremo Tribunal Federal teve o ensejo de discutir a matéria em vários acórdãos relatados pelos Ministros Raphael Barros Monteiro, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, Cordeiro Guerra e outros, que, inclusive, adotaram a terminologia proposta pelo então Desembargador e posteriormente Ministro Cunha Peixoto, que considerou tais contratos como constituindo verdadeiros “irmãos siameses”, por serem inseparáveis um do outro.

140 Nesse sentido, vide Marino (2009, p. 199).

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Outro acórdão do Supremo Tribunal Federal de extrema relevância e bastante

citado é o prolatado pelo Ministro Moreira Alves no recurso extraordinário n.

86.246/RJ, 2ª. Turma do STF, julgamento em 4/3/1977,141 referindo-se, também, a

contratos coligados relacionados com postos de gasolina: fornecimento de

combustível e comodato de equipamentos:

Ora, no caso presente, é inequívoco que o inadimplemento diz respeito à finalidade econômica dessa coligação contratual, finalidade essa que se confunde com a do contrato principal, já que os equipamentos fornecidos, servem somente como um dos meios utilizados para a consecução daquele fim. Descumprida tal finalidade, impõe-se a aplicação da cláusula penal que a ela diz respeito, e que é a do contrato de promessa de compra e venda mercantil. A cláusula penal do contrato denominado de “comodato” só poderia ser aplicada cumulativamente com a do contrato principal, se, também, tivesse sido descumprida uma de suas obrigações específicas — e, portanto, desvinculadas do inadimplemento da função econômica da coligação —, como, por exemplo, se a primeira recorrente (Salul – São Luiz Posto e Restaurante Ltda.) se recusasse, agora, a devolver os equipamentos da segunda recorrente (Esso Brasileira de Petróleo S. A.) ou se pretendesse restituí-los com danos resultantes de culpa sua.

No tocante à aplicação de multas por inadimplemento por incidência dos

princípios da boa-fé e da vedação ao abuso de direito, bem como dos artigos 412 e

413 do Código Civil, há que avaliar, além da aplicação de multas cumulativas, a

quantificação das multas, “[...] que deverá levar em consideração não somente o

valor da obrigação diretamente afetada, mas o da operação como um todo, na

eventualidade de vir a comprometê-la (MARINO, 2009, p. 204). Isso leva outra vez à

situação concreta, às peculiaridades do caso.

Outro tema que merece destaque é a exceção do contrato não cumprido nas

relações de contratos coligados. Bessone (1997, p. 200) ensina que

Nos contratos bilaterais, as prestações são recíprocas e interdependentes (donnant, donnant, como dizem os franceses ou Zug um Zug como se exprimem os alemães). Obedecem, pois, a regra dos correlativos. Então, se um dos contratantes não cumpre a obrigação assumida, rompe-se a equivalência calculada ao celebrar-se a convenção, com repercussões fatais no jogo normal do contrato e nos próprios pressupostos do consentimento.

141 Marino (2009, p. 203) cita tal julgado.

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O contratante prejudicado pode optar entre a dissolução do contrato e a

suspensão temporária de sua execução até que a inadimplência seja sanada. Trata-

se da exceção de contrato não cumprido prevista expressamente no artigo 476 do

Código Civil. A referida exceção estará legitimada quando se tratar de contrato

bilateral ou sinalagmático, quando houver simultaneidade das prestações, bem

como a boa-fé;142 também pode ser empregada na coligação contratual. A exceção

originada de um contrato pode ser aplicada aos demais a eles coligados em função

da operação econômica unida (NANNI, 2011, p. 276), mesmo que não estejam

envolvidas as mesmas partes em todos os contratos. Portanto, em relações

coligadas, verifica-se que a questão dos efeitos dos descumprimentos das

obrigações contratuais acarreta muitos eventos que poderão culminar em

penalidades cruzadas e até rescisão de contratos que compõem a rede contratual.

Logo, estando o contrato complexo em uma rede de coligação contratual, tais

aspectos deverão integrar o método de interpretação.

2.4.1.1 Efeitos sociais dos contratos coligados

Ainda que concisa, à análise dos contratos coligados importa refletir acerca

de seus efeitos sociais e efeitos perante terceiros.143 Daí ser imprescindível

relacioná-los com dois princípios fundamentais: função social e relatividade dos

contratos.144 O efeito externo do contrato denota que suas vicissitudes ultrapassam

os limites circunscritos às partes e podem atingir terceiros; estes devem cooperar

com o contrato quanto a respeitar e não importunar o desenvolvimento e

cumprimento da relação obrigacional (NANNI, 2011, p. 236). A função social dos

contratos, para Theodoro Júnior (2014, p. 37), consiste em abordar a liberdade

contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros), e não apenas no campo

das relações entre as partes que os estipulam (contratantes).

142 Kataoka (2008, p. 174) ressalta que cumpre salientar a possibilidade da inclusão, no contrato, da cláusula solve et repete, admitida em contratos paritários, sem que haja vulnerabilidade de uma das partes, que afasta a possibilidade de alegação da defesa via “exceção do contrato não cumprido”. Por se estar no âmbito da autonomia privada e em estado econômico paritário, tendo as partes negociado as cláusulas negociais, a renúncia à possibilidade de alegar tal defesa pode ser resultado de outras vantagens obtidas no campo negocial, sempre com atenção à boa-fé objetiva e ao equilíbrio de prestações 143 Conforme Penteado (2007b, p. 208), no campo contratual terceiro é o sujeito de direitos que não é parte de uma relação jurídica determinada, mas que tem situação jurídica afim a das partes de uma relação jurídica ex contractu. 144 No mesmo sentido, ver Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 232).

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Para Fernandes (2014, p. 243), a complexidade e a unificação do sistema

reforçam a tese de que a relatividade contratual efetivamente assume sua mais

moderna dimensão no seio da coligação contratual. Essa interação e o constante

funcionamento conjunto trazem consigo a consequência de que não se pode (isso é

impossível) individualizar o raio de efeitos de cada relação jurídica componente do

grupo.

Própria da nova concepção da relatividade contratual, a ideia de eficácia

externa dos contratos se apresenta com muita clareza nesse contexto, pois uma

parte dos efeitos desses contratos se projeta para o sistema e integra, com os

efeitos dos demais negócios jurídicos, a eficácia da própria cadeia contratual,

associando-se à causa global, inerente ao grupo.

O poder concedido à autonomia privada de celebrar negócios jurídicos

outorga, a tal negócio, o caráter de exigibilidade para e entre as partes que o

celebraram (efeito interno) e que terceiros o respeitem e/ou não menosprezem a sua

eficácia. Para Carlos Branco (2009, p. 263), tal oponibilidade do contrato perante

terceiros está relacionada com a cognoscibilidade de tais terceiros, ou seja, com o

conhecimento destes.

Apesar da eficácia dos contratos não desfrutar da publicidade típica do direito

real, tal circunstância não lhe retira a oponibilidade, seja em razão do solidarismo

contratual, seja porque o direito deve ser considerado em seu dinamismo. Assim,

por se tratar de um fato social, e por ter existência real, autoriza-se que seja

invocado contra terceiros e, às vezes, opostos por terceiros às próprias partes.

Um dos fatores de intensificação da conexão entre contratos coligados,

conforme explica Marino (2009, p. 145), é a presença de contratos existenciais (por

oposição aos empresariais)145 na coligação. Seu conteúdo voltado à existência do

ser humano atrai a incidência de princípios de ordem constitucional, tais como o da

dignidade da pessoa humana, de normas cogentes, e, em diversas hipóteses, a

solidariedade entre participantes da coligação. Nesse sentido, os efeitos dos

contratos coligados perante terceiros e os efeitos sociais dos contratos coligados

podem ser dilatados se a coligação, em algum ponto, for conectada a contratos

145 Conforme Antônio Junqueira de Azevedo (2005a).

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115

envolvendo consumidores,146 trabalhadores e outros contratos tidos como

existenciais e/ou que sofram incidência de normas cogentes.

2.5 Exemplos de contratos complexos e contratos coligad os que integram o

sistema de complexidade contratual na realidade emp resarial A complexidade contratual empresarial envolve tanto os contratos complexos

como os coligados. Numa relação de cadeia de contratos, chega até ser habitual a

existência de pelo menos um contrato complexo. Os coligados são utilizados nas

relações que envolvem crédito, garantias, financiamentos, em grande parte das

vezes integrando a rotina empresarial. Nesses casos, a coligação tem uma forte

relação com a mitigação dos riscos envolvidos e a confiança. Não é raro que um (ou

mais) dos contratos que integram a coligação seja um contrato complexo. As

franquias, os contratos envolvendo a revenda de combustíveis e os de infraestrutura

são exemplos claros de sistema contratual complexo que envolve contratos

complexos e coligados.

Esclarecendo-se que os exemplos a seguir não objetivam abarcar todos os

aspectos de tais contratos, mas apenas o que os caracteriza como complexos e

coligados. Passa-se a tratar brevemente acerca de tais relações contratuais

complexas.

2.5.1 Garantias e financiamentos de projeto (project finance)

As garantias, concessões de crédito, de uma maneira geral, configuram-se

como contratos coligados. A evolução da economia fez com que, a par dos

instrumentos jurídicos tradicionais de garantia de créditos (fiança, aval, hipoteca,

146 Marques (1998, p. 25) faz uma crítica a essa nova forma de se relacionar que faz do consumidor um “cativo” das redes contratuais: “Estes novos contratos complexos envolvendo fazeres na sociedade representam o novo desafio da teoria dos contratos. São serviços prestados por um fornecedor ou por uma cadeia de fornecedores solidários, organizados internamente, sem que o consumidor, na maioria das vezes, fique consciente desta organização. Trata-se de serviços que no contexto da vida moderna, de grande insegurança e de indução através da publicidade massiva à necessidade de acumulação de bens materiais e imateriais (o chamado ‘poder da necessidade’ e a ‘sedução das novas necessidades’), vinculam o consumidor de tal forma que, ao longo dos anos de duração da relação contratual complexa, torna-se este ‘cliente-cativo’ daquele fornecedor ou cadeia de fornecedores, tornando-se dependente mesmo da manutenção daquela relação contratual ou verá frustradas todas as suas expectativas. Em outras palavras, para manter o vínculo com o fornecedor aceitará facilmente qualquer nova imposição por este desejada”.

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116

dentre outros), surgissem estruturas de garantia como garantias autônomas147 que

se desvinculam do caráter de “acessória” em relação à obrigação principal. Nesse

sentido,

A evolução dos negócios e particularmente dos contratos internacionais ressentia-se de uma garantia com maior dinamismo, uma garantia livre de entraves e tanto quanto possível prescindindo da comprovação do inadimplemento do devedor principal, para somente então vir a ser acionada. Em nome da eficiência era preciso agilizar a execução da garantia internacional. O desejo de obter garantias próximas do absoluto imediatismo, da autonomia e da liquidez perfeita passou a inspirar o comércio internacional. Nesse contexto evoluíram as garantias bancárias. A característica fundamental dessas garantias residia no fato de não mais se constituírem em obrigações acessórias à obrigação principal, mas sim em compromisso autônomo, passível e possível de ser executado diretamente, sem necessidade da comprovação do inadimplemento da obrigação dita principal, a obrigação-base, a obrigação garantida (HUCK, 2012, p. 447).

Também Lorenzetti (2008, p. 216–7) retrata tais garantias (“garantias à

primeira demanda”, “auto-liquidáveis”) como um movimento de descodificação e

denota um verdadeiro microssistema da empresa, que exibe princípios, normas,

fontes de criação, doutrina e jurisprudência particularizadas.148

Sob várias denominações: “garantia pura”, “garantia incondicional”, “garantia

abstrata”, “garantia à primeira solicitação (ou à primeira demanda)”, “garantia

automática”, “garantia de pagamento imediato”, a característica comum é que tal

garantia seja prestada por uma instituição (banco) para assegurar uma soma

previamente acordada ao beneficiário da garantia. Se for um contrato de garantia

simples, o pagamento ocorrerá com a comprovação do incumprimento de

determinada obrigação por parte de terceiro. Se for uma garantia de pagamento

imediato, à primeira demanda, ou à primeira solicitação, explica Giovanni Ettore

Nanni (2011, p. 286), o pagamento ocorrerá quando houver a interpelação a realizar

essa prestação. Cabe dizer que em todos esses casos existe uma abdicação a opor

147 Diz Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 286): “[...] especialmente em contratos internacionais e operações bancárias, nasceram modernas figuras, entre elas, a garantia autônoma, a qual é implementada em estrutura contratual coligada”. 148 Para Lorenzetti (2008, p. 217), “[...] as controvérsias interempresariais resolvem-se cada vez menos na justiça ordinária, e casa vez mais mediante soluções alternativas, tais como a arbitragem, os contratos ‘imunizados’, ou as garantias à primeira demanda, ou ‘auto-liquidáveis’. [...] Estamos na presença de um verdadeiro microssistema da empresa, que exibe seus princípios, normas, fontes de criação, doutrina e jurisprudência particularizadas”.

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ao beneficiário, quaisquer exceções derivadas tanto da sua relação com o terceiro

garantido, como da relação jurídica cujo cumprimento garante.

O que se pretende demonstrar com base em tais garantias autônomas é que

o comércio se incrementa de tal forma, em especial nas relações contratuais

complexas transnacionais, que vão sendo criados modelos de relações negociais

autônomas para a garantia do crédito, de forma a desvincular a garantia do caráter

de acessório em relação ao contrato principal, atuando diretamente nos efeitos da

coligação.

Outro exemplo de sofisticação de estruturas de crédito para empreendimentos

complexos são os denominados project finance (ou financiamento de projetos), que

são muito comuns nos contratos de infraestrutura, que, por sua vez, também são

contratos complexos com contratos a eles coligados. A complexidade negocial

nesses financiamentos envolve a constituição de uma pessoa jurídica com um

propósito específico de um determinado empreendimento, as denominadas SPE, ou

sociedades de propósito específico. Estas não têm como objeto social uma atividade

ampla e genérica, mas sim a consecução de dado empreendimento. Com isso, tem-

se um isolamento jurídico e até financeiro do empreendimento em relação a outras

atividades gerais da empresa (que geralmente é sócia da SPE), Assim, o project

finance (KATAOKA, 2008, p. 102) é uma modalidade de financiamento em que há

um enorme complexo de contratos ligados entre si pela sua finalidade econômica

comum e que podem vir a sofrer uma coligação voluntária. Trata-se de engenharia

financeira arrimada no fluxo de caixa dos projetos, com escopo de menor

comprometimento das partes para estruturar a realização de receita desejada. A

criação de empresa com finalidade única e específica é o instrumento legal para

agregar os riscos do projeto, protegendo os credores.149

A estrutura negocial de project finance pressupõe que o financiamento será

concedido exclusivamente em função dos resultados futuros esperados com a

operação do projeto. Ao entrar em operação, a sociedade veículo do projeto (SPE)

fornecerá produtos ou serviços ao mercado e passará a ter créditos a receber. Em

síntese, o financiamento do projeto é feito para que tal sociedade seja implantada,

entre em operação no futuro e produza resultados operacionais positivos

149 Cf. Theophilo A. Santos (2007, p. 18).

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(recebíveis) com os quais seja possível, no longo prazo, pagar o financiamento

concedido pelos investidores.150

Eis, então, um exemplo de coligação contratual em que se tem evidente a

causa do sistema de coligação que é o resultado da operação do projeto que vai

gerar receitas para todos os envolvidos.

2.5.2 Franquias

O conceito legal de franquia está assim disposto no artigo 2º da lei

8.955/1994,

Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso e tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício.

Assim, pode-se concluir, com fundamento na referida lei, que a franquia é um

sistema contratual pelo qual uma das partes, mediante remuneração e

estabelecimento de determinadas condições, cede à outra parte o direito de uso de

uma marca ou patente (ou método), estando esse direito associado ao direito de

distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos.151

A franquia pode ser entendida como sistema pelo qual dado franqueador,

mediante certas condições avençadas contratualmente, cede determinados direitos

a um franqueado, tais como o uso da sua marca ou patente, associado a outros

direitos visando estabelecer condições apropriadas para um fim empresarial. Tal

sistema contratual traz em si uma série de outras determinações, tais como quanto à

publicidade, que muitas vezes é colaborativa, a um regramento comum formado por

um conselho de franqueados e ao território de atuação, dentre outras. Além disso, a

150 Ver Seixas (2007, p. 40). 151 “Franchising, do verbo to franch, constitui um instrumento destinado a fomentar processos de venda e distribuição em série, com características específicas. [...] negócio jurídico pelo qual uma pessoa concede, a outra, o direito de usar sua marca ou de comercializar seus produtos ou de terceiros ou de prestar serviços, de maneira contínua, com o fornecimento de assistência técnica, inclusive comercial e de publicidade dos produtos, que pode ser limitada a determinado espaço geográfico de acordo com uma remuneração ajustada entre os contratantes” (MARTINS, 2010, p. 283–4).

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característica central do contrato de franquia é sua qualidade de contrato complexo,

por misturar elementos de contratos típicos e atípicos, de modo a referendar um

conjunto de direitos e obrigações de dar, fazer e não fazer singulares e a ele

entrelaçadas. Embora seja nominado em lei, não se pode afirmar que se trata de um

contrato típico, com regramento próprio; a própria lei o conceitua como sistema, ou

seja, conjunto de elementos que devem ter ordem e unidade, mas não qualifica tais

elementos de forma categorial e completa.

Pode ser objeto de um contrato de franquia, ainda, a cessão de tecnologia,

sistemas de gestão, know-how administrativo, estratégias comerciais, estudos

mercadológicos, projetos arquitetônicos, dentre outros, conforme o modelo adotado

e o segmento onde se verifica a relação de franquia. Justen Filho (1994, p. 252)

assevera que

A franquia é um contrato complexo nessa acepção. É inviável nela divisar a conjugação de uma pluralidade de CONTRATOS autônomos [...] que se somam por justaposição. Não se trata da cumulação de contrato de cessão de marca com contrato de transferência de tecnologia e outros contratos, cada um com individualidade própria. Há um plexo de deveres impostos a ambas as partes, onde a transferência de tecnologia é indissociável da cessão do uso de marca e dos demais pactos. Esses deveres não são unilaterais, muito pelo contrário.

De fato, pode-se afirmar que o contrato de franquia “[...] é, por sua natureza,

um contrato híbrido, que se constitui de um complexo de relações jurídicas

diferentes entre si;152 quais sejam, a disponibilização para uso da marca/método ou

patente associada ao direito de distribuição de produtos, bem como a cessão de

outros direitos (tecnologia, know-how etc.) de forma indissociável.

A questão da complexidade é tão relevante nos contratos de franquia, que a

discussão sobre os efeitos fiscais de tal complexidade, em particular quanto ao

Imposto Sobre Serviços, está pendente de julgamento, com o crivo de repercussão

geral, perante o Supremo Tribunal Federal.153 A despeito de se tratar questão de

ordem tributária, vale ressaltar que a análise desse tribunal vai aferir se a incidência

do ISS sobre franquia viola o preceito constitucional que pressupõe que o objeto da

152 Voto Conselheiro Antônio Carlos Guidoni Filho no acórdão 1201-00.011, de 11 de março de 2009, do Primeiro Conselho de Contribuintes — Terceira Câmara. 153 Recurso Extraordinário 603136 (Tema 300), o qual está pendente de julgamento por referido tribunal.

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prestação de serviço decorre de uma obrigação de fazer, considerando que a

atividade de franquia envolve uma relação jurídica complexa, da qual decorrem

diversas obrigações.

Além da complexidade assinalada, outros elementos são importantes, como a

obrigatoriedade legal da franqueadora disponibilizar ao candidato a denominada

Circular de Oferta de Franquia, em que características, requisitos, valor de

investimentos e demais condições, inclusive minutas de contrato, são apresentadas

ao pretenso franqueado. Também é habitual que as partes estabeleçam um pré-

contrato de franquia, em que certas condições devam ser cumpridas para que a

relação de franquia possa ser estabelecida. Aí se incluem a escolha do ponto, a

participação em treinamentos, as comprovações cadastrais e outras.

Além da complexidade, outros contratos se coligam. A escolha do ponto em

que a unidade franqueada será instalada é relevante. Além das questões

comerciais, ela envolve questões atinentes à territorialidade do contrato (se o

franqueado terá exclusividade ou não sobre determinada área), bem como qual seria

a solução quanto ao ponto na hipótese de rescisão do contrato de franquia.

Assim é da essência da franquia cujas unidades sejam instaladas em pontos

comerciais que os contratos de locação de tais pontos se coliguem ao contrato de

franquia. Tal coligação poderá ocorrer diversamente: o franqueado pode locar o

ponto e sublocar ao franqueado; o franqueado pode locar diretamente o ponto, mas

no contrato de franquia se inclui a previsão que na hipótese de rescisão o

franqueado deve ceder o contrato de locação ao franqueador ou alguma previsão

similar, dentre outros. Supondo-se que o imóvel locado tenha de ser reformado para

a adequação ao layout determinado pela franqueadora, o contrato do projeto de

arquitetura e o de empreitada estarão coligados ao de franquia.

Em franquias que comercializem produtos, os contratos de franquia contêm a

previsão que os produtos deverão ser adquiridos de fornecedores homologados. Os

contratos de fornecimento entre franqueados e fornecedor são coligados ao de

franquia. A possibilidade de coligação no sistema de franquias é grande, pois o

próprio conceito do sistema, que difunde uma marca, a qual passa a ser reconhecida

por seus produtos ou serviços, potencializa a possibilidade de outros serviços e

produtos serem adicionados, coligando-se contratos de parcerias, patrocínios,

permutas e outros.

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Um ponto controvertido e interessante no tocante ao contrato de franquia, a

despeito de ser um sistema contratual que rege relações entre empresas, é se ele

pode ser classificado como “contrato de adesão”. Já se esclarece que tal

controvérsia visa apenas relatar que certas vicissitudes podem ocorrer com base em

tal entendimento. Deverá integrar a Circular de Oferta de Franquia conforme dispõe

a Lei 8.955/1994, art. 3º, inciso XV, “[...] o modelo do contrato-padrão e, se for o

caso, também do pré-contrato-padrão de franquia adotado pelo franqueador, com

texto completo, inclusive dos respectivos anexos e prazo de validade”. Assim,

decorre da própria exigência legal a padronização de tais contratos, que podem

sofrer ajustes em decorrência da negociação entre as partes.

Cabe ressaltar que a relação de franquia é uma relação empresarial por

excelência. Existem numerosas franquias no mercado, e o candidato a franqueado

tem ampla liberdade de escolha; pode até escolher constituir um negócio sem

vínculo de franquia. Ao optar pelo sistema de franquias, tem fartas possibilidades de

escolha, e ao escolher dado sistema de franquias, ainda poderá negociar condições

específicas para sua unidade. Portanto, a despeito da padronização dos contratos

de franquia, há que ter cuidado com qualquer referência a contrato de adesão, pois

o ideal é que se tratasse de um contrato padronizado em razão da disposição legal e

que se trata de relação empresarial.

Com efeito, Thiago Rodovalho (2016, p. 164–5) afirma que “[...] empresários

devem ser tratados como empresários [...]”, que no direito empresarial a

hipossuficiência está relacionada com a existência de [...] “abuso de poder

econômico [...] [ou] abuso de dependência econômica empresarial [...]”, o que deve

ser aferido in concreto. Na mesma direção, Diogo Machado de Melo (2016, p. 165)

afirma que

[...] há contratos de adesão tipicamente civis, em que não estão reguladas relações de consumo (regulam relações de não consumo), como acontecem nos contratos de locação envolvendo shopping centers, contratos de distribuição, franquia, concessões, de fornecimento de energia, dentre outros, e que por isso mesmo possuem uma lógica econômica própria, não necessariamente envolvendo, a priori, questões de ordem pública ou pressuposta vulnerabilidade.

A questão de se tratar ou não de contrato de adesão, e sob quais lentes o fato

de se tratar como contrato de adesão (se com lentes protecionistas ou se

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entendendo que tal contrato tem muito mais um caráter de padronização, mas é

celebrado por empresários e, assim, deverá ser tratado) terá reflexos na análise da

relação contratual entre franqueador e franqueado, em especial de determinadas

cláusulas contratuais. O sistema de franquia — cabe frisar — é empresarial por

excelência: a operação econômica é tipicamente empresarial, o que afugenta

eventuais protecionismos ao franqueado. Determinados regramentos mais ajustados

por parte da franqueadora decorrem da proteção à marca, ao método de trabalho,

ao know-how e protege toda a rede franqueada, todo o sistema de franquia

envolvido. Justamente por se tratar de um sistema complexo, que eventuais regras

de cunho protecionista (que podem se ajustar a contratos que efetivamente

envolvam vulnerabilidades) não cabem numa relação empresarial como a de

franquias. Assim, como sistema de negócios, a franquia expressa a relação

contratual complexa: a concomitância de diversos elementos e regramentos numa

relação duradoura, de colaboração, cujas vicissitudes somente poderão ser

dirimidas quando resultarem em conflito no caso concreto.

2.5.3 Contratos de engenharia e infraestrutura

Tendo em vista a envergadura dos grandes empreendimentos próprios da

sociedade contemporânea, a figura do contrato de empreitada não está mais em

total sincronia com tais eventos.154 As necessidades relacionadas com os

empreendimentos de grande porte, tais como custos, planejamento, projetos,

garantias, prazo, qualidade e responsabilidades, impulsionaram o advento de novos

sistemas contratuais155 como o contrato de engineering, o denominado EPC

(engineering, procurement and construction contract), o contrato de aliança, dentre

outros.

Para Clóvis do Couto e Silva (1992), o contrato de engineering é um negócio

jurídico complexo. O seu conteúdo pode abrigar contratos de empreitadas parciais,

154 Nesse sentido, ver Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 283). 155 Leonardo Toledo da Silva (2012, p. 14), nas notas introdutórias de Direito e infraestrutura, assinala que “[...] a legislação envolvendo direito da construção, e mais especificamente contratos de construção para grandes projetos de engenharia, é diminuta. A pouca legislação que existe trata de um perfil de contratos de construção não muito próximo da realidade dos projetos em infraestrutura. E é bom que seja assim. Acreditamos ser positivo o fato de certas áreas muito dinâmicas do direito, e sobretudo dos negócios, estarem mais abertas para as soluções trazidas pelo mercado. Isto torna o direito muito mais apto e eficiente a solucionar os conflitos existentes. Daí por que certos princípios contratuais, como o da autonomia da vontade, devem ser especialmente observados neste universo jurídico”.

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de planejamento da obra, de realização de certas partes ou equipamentos, contratos

de serviços, de transporte e de supervisão. Sua totalidade é o “contrato de

engineering”. Configura-se como contrato atípico, que se desprendeu do modelo de

empreitada e que, conforme a complexidade da obra, poderia ter como partes

diversos figurantes, e não apenas um empreiteiro e o dono da obra, como sucedia,

em regra, no modelo de empreitada previsto no Código Civil.

Gil (2007, p. 38) esclarece que a complexidade do contrato de engineering é

não só referente ao seu objeto — cuja consecução envolve várias disciplinas —,

mas também relativa à contraprestação pela execução do objeto. Isso porque são

várias as formas de alocação de riscos instrumentalizadas pelas cláusulas de

determinação do preço e pagamento e ainda àquelas relativas à determinação de

responsabilidade do engenheiro, tendo em vista que são bastante frequentes as

cláusulas de limitação ou exoneração de responsabilidade. Os contratos EPC, por

sua vez, conforme Tepedino et al. (2006, p. 346–7), têm numerosos pontos em

comum com os contratos de empreitada global, que se caracteriza por ser de preço

certo, data determinada de conclusão e “chave de mão”, caso em que o contratante

recebe a obra em condições de operar a instalação (contratação costumeiramente

definida pela expressão inglesa turnkey). Alguns se referem a tais contratos como

a empreitada integral, definida pela Lei de Licitações. Trata-se de contratos

extremamente complexos em relação aos quais é questionável a aplicação,

mediante simples subsunção e sem os devidos temperamentos, dos dispositivos de

lei referentes à empreitada.

Contudo, independentemente da qualificação desses contratos como

empreitada tout court ou como contrato atípico, o certo é que suas principais

características em muito se assemelham, permanecendo como prestação principal a

entrega de obra em termo certo.

Nos contratos de aliança, ou “modelo de aliança”, utilizam-se mecanismos de

compartilhamento de riscos e se estimula a cooperação entre a construtora e a dona

da obra na obtenção de um objetivo comum, conforme Leonardo Toledo da Silva

(2012, p. 122). Tal modelo contém em seu bojo um conjunto de contratos típicos e

atípicos, cujo principal objetivo é a reunião de esforços de duas ou mais pessoas

visando ao máximo de aproveitamento dos recursos de cada um deles para obter

um resultado preestabelecido mediante um sistema de obrigações recíprocas

pautadas pela confiança e clareza de informações. “[...] ao contrário do sistema

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tradicional jurídico fincado na penalização civil por meio de multa pelo

descumprimento, nos ‘contratos de aliança’ há a primazia do incentivo ao

cumprimento do contrato, pelos prêmios ou bônus do adimplemento” (DINIZ, 2015,

p. 19) .

Para Martins-Costa (2014, p. 321), a causa da aliança não é, pois, uma

“troca” entre o construir e o pagar pela construção, mas a comum atividade (inclusos

os comuns ônus e bônus) compartilhada entre os aliados. Em vista dessa causa,

compreende-se serem efeitos essenciais de um contrato-aliança a agregação e a

distribuição; ou seja, não se tratando de contrato de intercâmbio, mas de comunhão

de escopo, então há uma agregação de atividades feitas necessariamente no

interesse comum de todos os “aliados”.156 Diniz (2015, p. 19) ressalta que a

[...] aliança é um subsistema autopoiético estruturado a partir de relação entre pessoas (físicas ou jurídicas), com o fito da realização de um projeto em comum, com acordos econômicos prévios, alicerçado em informações simétricas, na condição de produção de normas e na capacidade de solução de conflitos interna corporis.157

Os novos modelos de contratos vinculados às obras de infraestrutura

demonstram que os contratos complexos e coligados, como sistema contratual,

suprem as necessidades do sistema jurídico de abarcar as necessidades do

mercado. Conforme a clássica expressão de Roppo (2009, p. 11), “[...] o contrato é a

veste jurídico-formal de operações econômicas [...]”; se assim o for, então se faz

necessário encontrar novas vestes para operações econômicas próprias da

sociedade contemporânea.

2.5.4 Contratos relativos à revenda de combustíveis automotivos

Embora seja regulada pelos órgãos como a Agência Nacional de Petróleo158 e

seja utilidade pública, a atividade de revenda varejista de combustíveis automotivos

enseja, na relação entre as distribuidoras e a revenda, um arcabouço de contratos

complexos e coligados, que, cabe frisar, já propiciou discussões judiciais diversas.

156 Contrato de construçao. “Contratos-Aliança”. Interpretação contratual. Cláusulas de exclusao e de limitação do dever de indenizar. Parecer, 2014, p. 321. 157 Diniz (2015, p. 19) assinala também “[...] tratar-se de um contrato em fase de transformação e adaptação, mas já faz parte arraigada de alguns países, entre eles: Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e Holanda”. 158 Vide Resolução ANP 41, de 5/11/2013, conforme alterada.

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125

Sem adentrar nas questões próprias de tal atividade regulada, a intenção é

apresentar um dos exemplos principais de contratos complexos e coligados.

A revenda de combustíveis pode se dar de uma forma “bandeirada” ou não.

Sendo uma revenda “bandeirada”, então haverá exclusividade de fornecimento e a

consequente revenda de produtos de dada distribuidora. A relação contratual

(comercial) “bandeirada” entre as distribuidoras e a revenda está no âmbito da

autonomia privada, e a relação se dá por meio de um complexo de contratos.

(i) Contrato de fornecimento de produtos combustíveis para revenda, que traz

uma série de regulamentações quanto à revenda em si, aos produtos e, sobretudo,

impõe a exclusividade na aquisição dos produtos combustíveis; por se tratar de

aquisição, pela revenda, de produtos que ensejam diariamente uma alta

movimentação financeira, isso requer que a revenda ofereça uma garantia à

distribuidora.

(ii) No próprio contrato de revenda ou em contrato apartado, pode existir uma

meta de revenda, em litragens, com bônus por atingimento da performance: se a

revenda vender determinada litragem durante o prazo contratual, receberá uma

bonificação para tanto.

(iii) Compra e venda de equipamentos, ou comodato de equipamentos. A

revenda de combustíveis requer a utilização de equipamentos específicos que

poderão ser adquiridos; nesse caso a aquisição pode ser de tais equipamentos

diretamente da distribuidora, ou de terceiros por ela indicados. Poderá ainda ocorrer

de a distribuidora, na qualidade de proprietária de tais equipamentos, emprestar, sob

comodato, tais equipamentos à revenda para utilização exclusiva de comercialização

dos produtos por ela distribuídos.

(iv) Da mesma forma que nas franquias, o ponto em que a revenda se

estabelece é de suma importância, em geral são avenidas ou rodovias importantes,

e o contrato de locação tem uma importância muito grande na relação. Em razão

disso, os contratos de locação, normalmente, são efetuados entre o proprietário do

imóvel e a distribuidora que subloca o imóvel para a revenda.

(v) É comum que com a revenda de combustíveis existam outros negócios

agregados, tais como a troca de óleo e a loja de conveniência, cujo modelo de

negócio pode ser a franquia, que nem sempre tem como franqueado a mesma

pessoa (física ou jurídica) da revenda, e sim outra, vinculada ou não com a revenda.

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126

Se não for uma pessoa vinculada à revenda, também é habitual que a revenda seja

uma garantidora do franqueado.

(vi) É comum também que, para reforma e demais adaptações do imóvel para

abrigar a revenda de combustíveis, a distribuidora faça um empréstimo de valores à

revenda para que o referido valor seja utilizado na reforma, ou seja, coligando o

empréstimo aos demais contratos.

Sem pretender esgotar as inúmeras possibilidades que poderão agregar em

tal relação contratual, as questões principais que surgem são em relação ao próprio

contrato de revenda, como quebra de exclusividade, baixa performance, não

atendimento às normas reguladas, e aos efeitos dessas quebras nos demais

contratos. Além disso, a relação locatícia traz discussões, em especial quanto à

renovação locatícia envolvendo a sublocação. Todas essas questões, em geral,

trazem à tona a incidência de penalidades, a possibilidade de rescisão contratual e o

quantum de afetação aos demais elementos da relação e/ou contratos.

O exemplo das franquias, dos contratos de engenharia e dos relacionados à

revenda de combustíveis demonstra que o âmbito da autonomia privada que

fundamenta os contratos complexos tem sido terreno fértil para que novos modelos

econômicos possam procurar guarida no sistema jurídico. Com exemplos que

integram o cotidiano das empresas, tais como contratos de colaboração, de

infraestrutura e de comercialização de bens de utilidade pública, demonstra-se que

os efeitos da união de elementos diversos numa relação contratual unitária ou em

pluralidade de contratos são uma corrente que avança cada dia mais e com mais

força. Que as vicissitudes de tais relações complexas tenham efeitos relevantes,

seja nos demais elementos — se for uma relação unitária — ou nos demais

contratos — se forem coligados — não há qualquer dúvida. Por essa razão sua

interpretação com o objetivo de dirimir conflitos e conservar o contrato (sempre que

possível) de forma equilibrada com base no sistema jurídico tem contornos tão

especiais.

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3 PREMISSAS PARA INTERPRETAÇAO DE CONTRATOS COMPLEXOS Sob as lentes da complexidade contemporânea, a abordagem do contrato

complexo como sistema contratual — incluindo uma visão dos contratos coligados

— pressupõe estabelecer premissas para sua interpretação. Estas serão expostas a

seguir conforme uma ordem que visa à clareza nas ideias, e não à hierarquização.

Afinal, todas são relevantes ao método de interpretação dos contratos complexos.

• Estabelecer quem são os intérpretes dos contratos complexos (e dos a

eles coligados).

• A interpretação dos contratos complexos não deve seguir um padrão

hierárquico estático.

• A terceira premissa é a de que as cláusulas gerais da boa-fé objetiva,

função social dos contratos e equilíbrio contratual devem ser vistas à luz

da complexidade ao ser aplicadas a tais contratos.

• A quarta premissa é que a causa concreta é determinante para a

interpretação dos contratos complexos (bem como para aferir a coligação

contratual).

• A quinta premissa é a de que as lacunas nos contratos complexos são

decorrência de sua essência.

• A sexta premissa é que a distinção entre contratos complexos e os

coligados deve ser efetuada de forma dinâmica.

• A sétima premissa é que apenas o caso concreto revelará o efetivo

conteúdo do programa contratual, tendo em vista que a linguagem

contratual abarca todas as formas de comunicação.

3.1 Intérpretes do negócio jurídico complexo

Ao se tratar da interpretação, utiliza-se, com frequência, a distinção proposta

por Kelsen (2006)159 entre interpretação autêntica — aquela realizada por um órgão

jurídico — e a doutrinária (“não autêntica”) — aquela que não é realizada por um

órgão jurídico, mas por uma pessoa privada, em especial pela ciência jurídica.

159 Kelsen (2006) diz que “[...] existem duas espécies de interpretação que devem ser distinguidas claramente uma da outra: a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica, e a interpretação do Direito que não é realizada por um órgão jurídico, mas por uma pessoa privada, e especialmente, pela ciência jurídica”.

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Portanto, existiriam os intérpretes autênticos e os doutrinários (“não autênticos”),

também denominados, respectivamente, participantes e observadores.160

Em matéria contratual, Vigo (2010, p. 158) adverte acerca da necessidade de

distinção entre hermenêutica autônoma ou autêntica — gerada pelas próprias partes

— e interpretação heterônoma — realizada por um terceiro que impõe sua

determinação exigindo a conduta respectiva.

A fim de evitar qualquer forma de confusão entre as denominações atribuídas

aos intérpretes, será utilizada a denominação “intérprete julgador” — para denominar

o intérprete que tem o poder de decisão acerca de um conflito; “intérprete

doutrinador” — para o intérprete que não tem o poder de decisão de um conflito,

mas que analisa a situação à luz da ciência do direito; e “intérprete parte” ou

“intérprete operador” — que pode ser a própria parte ou aquele que age em nome da

parte. O que eleva essa questão a uma categoria de premissa para a interpretação

do contrato complexo é justamente incluir a parte ou aquele que age em nome da

parte como um intérprete de extrema importância.

A caracterização de um contrato complexo indica que a interpretação visando

à execução do contrato complexo nem sempre decorre de forma automática. Além

disso, por se tratar de contratos de cunho empresarial, normalmente os

representantes das partes que firmaram o contrato não vão executá-lo

pessoalmente, mas determinarão que outros (funcionários, prepostos) o façam.161

Nesses casos, há uma “linha de transmissão” de informações para que ocorra

a comunicação acerca da execução do contrato. O “instrumento contratual”,

habitualmente, não circula entre os executores do contrato, inclusive em razão de

deveres de confidencialidade que, a depender do objeto, são inerentes à

contratação. Assim, quem tomou conhecimento do texto contratual o interpretou

para informar, àqueles que de algum modo estavam implicados na operação,

daquele determinado objeto (que compunha o complexo contratual). Com essa

“linha de transmissão”, depreende-se que os profissionais envolvidos colhem as

informações e as filtram de acordo com o que compreenderam do programa

160 Tácio Lacerda Gama (2011, p. 354) adota tal distinção, proposta por Herbert Hart, na obra O conceito do direito, p. 111 et seq. 161 No dizer de Forgioni (2015a, p. 93–4), “Em contratos complexos, há muitas pessoas envolvidas na execução da avença. A imagem do negócio que tem seu cumprimento dirigido e fiscalizado, em seus detalhes, pelo “dono” da empresa é romântica e cada vez menos encontrada na realidade”.

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contratual (ou da parte dele que tiveram conhecimento) para que o programa possa

ser devidamente cumprido. Portanto, nem sempre o intérprete operador interpreta o

contrato como um todo. Pode ocorrer de ser efetuada uma interpretação apenas de

determinada obrigação ou de determinado conjunto de obrigações as quais teve

acesso.

Na execução de um contrato complexo, cuja maioria é de execução

continuada, diferida (contrato de duração) ou ainda se caracteriza muitas vezes

como relacional, há uma interpretação contínua das regras contratuais inaugurais

(aquelas dispostas no instrumento contratual), que geram novas normas contratuais

normativas e operacionais. Pode ocorrer, por exemplo, a necessidade de detalhar o

desenho de uma ferramenta que constou num anexo de caráter técnico. Nessa

hipótese, a parte que deve executar tal desenho para produzir tal ferramenta incluirá

os detalhes de tal ferramental e executá-lo; poderá, antes de executar a sua

produção, apresentar o detalhamento para a outra parte. Se a outra parte concordar

com o detalhamento, então tal procedimento configura um padrão de conduta das

partes em caso de incompletudes de qualquer natureza. Se assim o for, então as

partes interpretaram (ainda que parcialmente) o contrato e, de tal interpretação,

praticaram condutas que passaram integrar o programa contratual.

Ou ainda, num outro exemplo, na hipótese de um contrato atípico, surgir uma

dúvida de natureza fiscal relacionada em como proceder com um faturamento, pois

em razão da atipicidade existe a possibilidade de ausência de precedente no tráfico

comercial (como ocorreu no início do comércio eletrônico). Nesse caso, as partes, de

comum acordo, podem efetuar uma consulta a um especialista na área de direito

tributário de comum escolha, que pode formular uma consulta ao Fisco e, a partir de

então, estabelecer uma forma de faturamento, mas sem firmar um instrumento de

aditivo contratual, pois entendem que se trata de um ajuste normativo-operacional.

Nesse caso, as partes interpretaram o contrato com auxílio de um expert. Ao agirem

dessa forma criaram uma norma derivada do contrato, mas de cunho operacional,

com efeitos de norma autônoma, a ser observada pelas partes.

Essa “criação” de norma de cunho operacional decorre, inclusive, do princípio

da boa-fé objetiva, pois cria um paradigma interno de atuação das partes, de tal

efeito que faz com que uma parte confie que a outra vai agir na forma como

ajustado, pois quanto mais se avança na concretude, menos regras são escritas e

mais “fazeres” — ações propriamente ditas — são verificados.

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Nesse sentido, a autopoiesis se faz evidente, pois a norma privada contida no

negócio jurídico, que tem a aptidão da concretude, vai se concretizando cada vez

mais até a conclusão de todo o programa contratual. Tal concretização se dá por

operações fáticas, relatadas em comunicação entre as partes, e das partes com

terceiros (entes públicos e particulares), que incluem atos de interpretação. Tudo

isso forma subsistemas dentro do sistema estabelecido pelo contrato complexo

inaugural.

Portanto, a interpretação do “operador” (“intérprete parte”) do contrato é a

interpretação direcionada ao fazer, ao agir, ao “jogar” conforme a regra que lhe foi

informada (que não necessariamente é a regra escrita) na linha de comunicação que

se estabeleceu a partir da celebração do contrato até sua execução. A interpretação

do contrato a ser realizada na hipótese de um conflito que tenha como objetivo

decidir uma controvérsia é uma interpretação diferente da anterior, mas que se

utiliza da interpretação do “intérprete parte” do contrato como fonte relevante para

sua decisão. A diferença é que a interpretação operacional (realizada pelo

“intérprete parte”) está voltada ao agir para cumprir determinada obrigação (ou um

conjunto de obrigações) e a interpretação para solução de conflitos (realizada pelo

“intérprete julgador”) está direcionada para decidir um conflito. Não se trata apenas

de reconhecer uma regra preexistente, mas de decidir com base em regras

estabelecidas no próprio contrato ou que decorrem do sistema jurídico (em sentido

amplo), na hipótese de ausência de autorregulação quanto à matéria objeto do

conflito.

Tal reflexão suscita questões relevantes: (i) o operador do contrato tem

aptidão para criar normas contratuais “operacionais”? (ii) Entendendo-se que há

criação de normas operacionais, existe uma hierarquia entre as normas escritas e as

normas operacionais? (iii) A parcela invariável de incompletude no contrato

complexo permite que a realidade se imponha às regras escritas?

O operador do contrato, como intérprete a priori da norma contratual, ao

executar o programa contratual tem aptidão para criar normas contratuais concretas

ao operacionalizar a obrigação prevista no texto contratual, especialmente se tal

previsão não estava completa e/ou definida, o que ocorre com habitualidade na

realidade negocial.

Não há que falar, no momento da operacionalização do contrato, se tal norma

“concreta” (a que advém com as etapas de realização da obrigação) tem primazia

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sobre a norma escrita ou vice-versa, pois somente a análise da situação concreta

(que será objeto de interpretação pelo intérprete julgador) pode indicar se a

operação se mostrou diferente da previsão escrita por um erro de interpretação do

operador, se por uma adaptação do texto que fora escrito sem total consonância

com o contexto da realidade negocial, ou se por alguma outra circunstância. Mais

que isso, a situação concreta indicará se o “desvio” entre o acordado e o realizado

pode ser interpretado como complemento ao programa contratual, um

inadimplemento; ou se, apesar da diferença entre o texto contratual e o contexto do

cumprimento da obrigação, ocorreu uma aceitação tácita (pela outra parte) da forma

como a obrigação foi cumprida.

O intérprete doutrinador tem papel de suma importância na interpretação dos

contratos complexos, ainda que de forma indireta. Isso porque a doutrina exerce o

papel de intermediação entre a linguagem social do contrato e/ou da operação do

contrato e a linguagem da aplicação do direito visando a uma decisão. A doutrina

tem como mister estudar, categorizar e mediar a abertura do sistema jurídico aos

demais sistemas. Conforme Martins-Costa (2015, p. 171–2),

[...] cabe à doutrina o papel precípuo de esclarecer a significação dos modelos jurídicos (legais, jurisprudenciais, costumeiros e negociais) em vigor e suprir as insuficiências da interpretação jurisprudencial em função da superveniência de mutações operadas após a sua promulgação, propondo progressivamente novos conteúdos significativos, bem como reclamar a sua revogação por não mais corresponderem à realidade da vida que o Direito cabe ordenar.

Portanto, os intérpretes do contrato complexo são o operador, o doutrinador e

o julgador. Todos atuam em seus âmbitos, em evidente influência recíproca.

3.2 Interpretação dos contratos complexos não deve segu ir padrão hierárquico

estático A interpretação do contrato complexo não pode seguir um modelo estanque,

escalonado. As características do contrato complexo, incluindo a atipicidade advinda

da combinação e/ou fusão de elementos de tipos jurídicos e/ou sociais e/ou de

elementos atípicos, acarretam a necessidade de empregar um método interpretativo

que possa abarcar a diversidade de forma dinâmica. Nesse sentido, as teorias

clássicas de interpretação devem ser superadas.

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Sem pretender negar ou diminuir a valiosa contribuição das teorias clássicas

para a interpretação do direito e, por consequência, a interpretação contratual, neste

trabalho cabe apenas citar tais escolas, que surgiram como um levante perante o

jusnaturalismo. Aí se incluem a escola da exegese — que pregava a interpretação

literal, exata, a primazia (monopólio) do estatuto codificado como fonte do direito; a

escola histórica do direito — difundida por Savigny com o programa de que a ciência

jurídica devia ser histórica e a experiência histórica de um povo devia ser a

verdadeira fonte de inspiração para sua prática do direito (tal escola acreditava que

o direito era a expressão orgânica natural da vida de um povo) (CAENEGEM, 2000,

p. 198); a jurisprudência dos conceitos — que previa a dedução de princípios

jurídicos com base em meros conceitos (NANNI, 2014, p. 190), superou e

complementou a investigação dogmática, concebendo o direito como um sistema

conceitual fechado, formado por conceitos abstraídos das normas jurídicas (e dos

quais se poderia, por dedução lógica, extrair novos conceitos) (KARAM, 2010), que,

para Larenz (1983, p. 22), tratava-se de uma pirâmide de conceitos do sistema

construído segundo as regras da lógica formal; a jurisprudência dos interesses —

capitaneada por Philipp Heck, revolucionou a aplicação do direito por meio do juízo

de ponderações de uma situação de fato complexa, da avaliação dos direitos em

jogo, de harmonia com os critérios de valoração próprios da ordem jurídica162 e que,

conforme Larenz (1983, p. 59), considera o direito como “tutela de interesses”. Em

tais escolas, predominava a interpretação estática do direito (NANNI, 2014, p. 194),

que teve de ser superada tendo em vista a evolução da sociedade. Desde então,

cedeu espaço à interpretação que abranja valores, para as teorias de interpretação

valorativa.

Entretanto, antes de adentrar essa interpretação valorativa, cabe ressaltar a

importância da teoria pura do direito, protagonizada por Hans Kelsen. Sua relevância

incide, em especial, na contribuição à noção de validade e de norma fundamental,

162 Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 192) avalia que “[...] o seu mais perdurável contributo metodológico foi o de ter chamado o pensamento jurídico à consciência de que o próprio direito positivo legal não é um mero lado, algo com que simplesmente se depara e que se tenha que apreender ‘de fora’, numa relação já hermenêutica, já analítica de pura transcendência objetiva, mas que terá, pelo contrário de ser considerado como a solução-resultado de problemas prático-normativos que lhe são pressupostos, relativamente aos quais apenas em sentido, e que, como tal, só pode compreender-se ‘por dentro’, através do reconstruir e assimilar do próprio processo problemático-normativo que o constitui — que o direito nunca será teoricamente e sempre prática solução de problemas”.

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de interpretação como “moldura” (conforme adiante explicado). Kelsen (2006)

constrói sua teoria visando depurar o direito das teorias metafísicas. Assim, sua

metodologia é voltada para o interior do sistema. Para ele, as normas são válidas ou

inválidas. Só podem ser medidas pelo critério da validade, meramente formal: a

norma vale quando seu sentido objetivo coincide com seu sentido subjetivo. O

sentido objetivo é o ato que coloca a norma e o sentido subjetivo é a mera vontade

pronunciada na norma. O sentido objetivo é a garantia que aquele ato, que aquele

comando, está num campo de permissão da ordem jurídica.163

Para Kelsen, direito positivo é direito possível, direito que viabiliza escolhas

dentro das possibilidades oferecidas no próprio sistema. Como se trata de um “dever

ser” — tem o sentido de imputação — e não de causalidade, o direito positivo

sempre pode ser diferente do que é. É contingente. Se assim não fosse, estaria se

falando de necessidade, e não de possibilidade. Só existe escolha se houver

alternativas. Partindo da visão do sistema escalonado e do direito positivo como

direito possível, Kelsen demonstra que ao, se aplicar uma norma superior que é

fundamento de validade de uma norma inferior, isso significa sempre criar uma nova

norma: criação e aplicação — isso porque o sistema do direito positivo é um sistema

dinâmico e não estático como o jusnaturalista.

Esse caráter dinâmico está presente na formação dos contratos, pois o que

importa é o vínculo que existe na formação, se o contrato nasce de acordo com as

regras impostas: dentro do limite de liberdade que o ordenamento previu ao

particular. Nesse sentido, observadas as regras para validade no negócio jurídico,

não há vínculos de conteúdo para que o contrato seja válido, pois se certo tipo de

contrato não está proibido pelo ordenamento, então está permitido, logo caberá aos

particulares se autorregularem.

163 Para construir, em sua teoria, esse sistema de validade, Kelsen propõe um sistema escalonado de normas, em que a norma hierarquicamente inferior encontra sua validade na norma que lhe é superior, e assim sucessivamente, até se deparar com a norma fundamental do ordenamento. Para Kelsen, a teoria pura do direito opera com essa norma jurídica fundamental como se fora uma situação hipotética, sob a suposição que ela vale, vale também todo o sistema jurídico sob o qual repousa. Confere ao ato do primeiro legislador e, por isso, a todos os demais atos que repousam no ordenamento jurídico, o sentido de “dever ser”, aquele sentido específico em que a condição jurídica está ligada à consequência jurídica, na proposição jurídica; e a proposição jurídica é a forma típica em que o material jurídico deve se apresentar. Dessa forma, ele vai construindo sua teoria, fechando o sistema, no sentido que o estrutura logicamente.

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Kelsen usa o termo moldura para explicar como as diversas possibilidades de

aplicação do direito convivem no sistema do direito.164 Entretanto, ele trata de uma

estrutura rigidamente fechada do direito, sem abertura cognitiva (como propõe

Luhmann). Isso implica uma interpretação do direito, ainda que com caráter

contingente em razão das possibilidades (dentro do âmbito da validade) da

aplicação (formal) da norma, que não presume e/ou contempla uma abertura do

sistema aos valores.

Todavia, no dizer de Robles (2005b, p. 30), “[...] não há sociedade sem

valores. Esses são o cimento do edifício social”. Para Grossi (2010, p. 83), a teoria

de Kelsen deve ser criticada:

[...] a velha imagem da pirâmide, que representava o velho sistema normativo, vem sendo substituída por uma imagem que não evoca necessariamente uma desagradável escansão hierárquica. E os sociólogos do direito — mas também os juristas mais à vanguarda nas novas trincheiras — falam de rede, em sentido bem diferente de como a invocamos para concretizar a ideia de filtro entre fatos e direito, no sentido de substituir a imagem piramidal potestativa autoritária pela de um sistema de regras não postas uma sobre a outra, mas no mesmo plano, ligadas, uma com a outra, por uma relação de recíproca interconexão. Regras que não encontrarão sua legitimação em uma única fonte suprema identificada em quem detenha o poder supremo político, mas na maioria das vezes, em um modo espontâneo daquela realidade variada e móvel que é o mercado.

O contrato complexo (e os contratos a ele coligados) com todos os seus

elementos, vistos como um sistema dinâmico e com uma potencialidade de

concretização — pois incidente na realidade negocial —, são mecanismo vivos de

um sistema criador de normas (autopoiesis).

164 Kelsen (2006, p. 247) diz que “[...] “uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”. Além disso, “[...] se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro dessa moldura existem. Assim, interpretar uma lei não deve necessariamente levar a uma solução só como a correta, isto é, tem de levar possivelmente a várias soluções, que, uma vez que só são aferidas pela lei a aplicar, apresenta valor igual, embora uma delas apenas se torna direito positivo no ato do órgão aplicador do direito, ou seja, no ato do tribunal em especial. Kelsen ainda expõe que “[...] não há absolutamente qualquer método — capaz de ser classificado como de Direito positivo — segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’ — desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica”.

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Ao aplicar as próprias regras legais de interpretação dos contratos, em

especial artigos 112 a 114, 187, 421 a 425 do Código Civil,165 verifica-se que a

interpretação, por atingir toda a realidade negocial, relaciona a realidade, os valores,

o aspecto temporal (os fatos que antecederam e os que ocorreram após a conclusão

e execução do contrato podem ser relevantes), os usos, os costumes e o

comportamento das partes. A própria estrutura da interpretação contratual já é

complexa; e tal complexidade se potencializa nos contratos complexos.

Assim, a interpretação dos contratos complexos deve partir da ideia que as

normas concretas advindas do programa contratual devem ser interpretadas de

forma interligada e dinâmica, respeitando, naquilo que não ofender às normas

cogentes, a liberdade negocial, pois não se pode tratar a interpretação do direito, em

especial dos contratos complexos, como instituições com forma de algo

predeterminado ou com regras rígidas.166 Ao outorgar tal caráter dinâmico, concreto

e vinculado à realidade, a interpretação deve contemplar a abertura167 no sistema,

tanto pelas cláusulas gerais da boa-fé, da função social, do equilíbrio contratual e da

própria causa concreta quanto pelas cláusulas gerais (autônomas) eventualmente

contidas no programa contratual. As cláusulas gerais, cabe frisar, privilegiam os

princípios, que por sua vez carregam os valores.

165 “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”. 166 Aurora Tomazini de Carvalho (2011, p. 209) reconhece que “Há uma dificuldade, própria das mudanças de paradigmas, em conceber o direito (texto em sentido amplo) como uma construção do intérprete (significação), justamente pela subjetividade que lhe é atribuída por esta visão. Mas, dentro da concepção filosófica à qual nos filiamos, não conseguimos compreender de outro modo, mesmo porque, a pragmática jurídica só vem corroborar com nosso posicionamento. Se o direito fosse algo certo e determinado (significação unívoca) contido nos textos positivados (dado material), não haveria divergências doutrinárias, nem jurisprudenciais. O juiz simplesmente extrairia o conteúdo do texto e o aplicaria ao caso concreto, numa operação mecânica”. 167 Nas palavras de Aurora Tomazini Carvalho (2012, p. 235), “[...] não existe um limite objetivo para a interpretação, como o pressupõe a teoria tradicional. A objetividade do direito está no seu suporte físico, que é aberto. A comunicação jurídica (entre legislador e intérpretes) se estabelece por ambos vivenciarem a mesma língua, a mesma cultura, por estarem por estarem inseridos no mesmo contexto histórico”.

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O jogo de valores e dos princípios (que os carregam) no sistema varia com o

contexto histórico, social, econômico e cultural. Reale (1992, p. 237) entende como

“[...] insustentável o propósito de uma teoria de interpretação cega para o mundo dos

valores e dos fins”;168 para Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 174),169 “[...] o dado

valorativo está presente em toda configuração do jurídico, desde seus aspectos

formais (lógicos), como nos planos semântico e pragmático. Onde houver direito,

haverá o elemento axiológico”; enquanto para Hessen (2001, p. 37) o conceito valor

não pode se definir rigorosamente; tudo o que se pode fazer a respeito dele é

simplesmente tentar uma clarificação ou mostração do seu conteúdo. Quando se

pronuncia a palavra valor, pode-se com ela querer significar três coisas distintas: a

vivência de um valor (domínio da consciência, psicologia e psicologismo), a

qualidade de valor de uma coisa (naturalismo), ou a própria ideia de valor em si

mesmo (segundo Platão). No conceito de valor, conforme Hessen (2001, p. 47), está

incluído o da sua referência a um sujeito:

[...] valor é sempre valor para alguém. Valor — pode-se dizer é a qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em função de um sujeito dotado com certa consciência capaz de registrá-la. O valor não pode ser desligado desta relação. A referência a um sujeito não significa o mesmo que subjetctivismo.

A escolha do aplicador do direito não é isolada, é fruto de seus valores e dos

valores da sociedade em que convive. Da mesma forma, a produção legislativa, a

eleição de determinada realidade social para configurar na hipótese (antecedente)

normativa, é uma escolha. Os modais deônticos que regulam a conduta dos sujeitos

— permitido, obrigatório e proibido — são frutos de valorações, nos modais

permitido e obrigatório, com valorações positivas e, no modal proibido, com

valoração negativa.

168 Reale (1992, p. 237) avança em seu raciocínio nestes termos: “[...] mais ainda, alheia ou indiferente à problemática filosófica assim como julgo inadmissível o relativismo daqueles que fazem depender a teoria da interpretação do flutuar ou suceder-se das ideologias; algo há, penso eu, condicionando os processos hermenêuticos, não obstante as mutações inevitáveis dos ambientes culturais, capaz de propiciar uma base de entendimento e de comunicabilidade, integrando-se, em complementaridade dinâmica, os pontos de vista do filósofo, do teórico e do dogmático do direito”. 169 Paulo de Barros Carvalho (2008) assinala também que o acesso aos valores se dá pela intuição emocional, e não pela intuição sensível ou intelectual. Os valores não são, mas valem. Os valores seriam aquelas entidades cujo modo específico de ser é o valer. Eles são na medida em que valem.

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Como objeto cultural, o direito é permeável aos valores. Reale desvinculou os

valores dos objetos ideais para dar status autônomo à axiologia ou teoria dos

valores e, na linha de Hessen, apontou características que identificam sua

presença.170 A Constituição171 carrega os valores e princípios que deverão iluminar

todo o sistema; cabe-lhe o papel fundamental na dinâmica do sistema, pois nela

estão traçadas as características dominantes das várias instituições que a legislação

comum desenvolverá; noutros termos, a Constituição imprime, decisivamente,

caráter unitário ao conjunto, e a multiplicidade de normas, como entidades da

mesma índole, atribuem-lhe o timbre de homogeneidade (CARVALHO, 2008).

Na Constituição Federal de 1988, os valores máximos foram descritos no

preâmbulo: liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça; e

a Carta Magna elegeu como fundamentos do Estado Democrático de Direito, no art.

1º, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

A autonomia privada, a liberdade negocial, tem previsão constitucional. Por

meio de remissões, sejam positivas (que afirmam o poder concedido aos

particulares), como se verifica, por exemplo, no artigo 170 da Constituição Federal,

bem como de limitações a tal poder, conforme artigo 1º inciso III e primeira parte do

inciso IV, artigo 3º, em especial incisos I, III e IV. Por ambos aspectos, verifica-se

que a liberdade negocial está prevista constitucionalmente.

170 São características dos valores: (i) bipolaridade: apenas possível entre os objetos metafísicos e culturais, que é marca obrigatória dos valores — onde houver valor haverá como contraponto, o desvalor, de tal modo que os valores positivos e negativos implicam-se mutuamente; (ii) implicação recíproca: decorre do item anterior — nenhum valor se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na realização dos demais; (iii) referibilidade: o valor importa sempre uma tomada de posição do ser humano perante alguma coisa a que está referido, ou seja, vale para algo ou vale como algo para alguém; (iv) preferibilidade: os valores apontam uma direção determinada, para um fim, uma direção entre várias possibilidades; (v) incomensurabilidade, tendo em vista que os valores não são passíveis de medição; (vi) tendência à hierarquia: apresentam forte tendência à graduação hierárquica (ordem escalonada) quando se encontram em relações mútuas, tomando como referência o mesmo sujeito axiológico; (vii) objetividade: os valores requerem sempre objetos da experiência para neles assumir objetividade — a objetividade é consequência da particular condição ontológica dos valores: se eles se configuram como qualidades aderentes, que os seres humanos predicam dos objetos (reais e ideais), hão de requerer, invariavelmente, a presença desses mesmos objetos; (viii) historicidade: os valores são construídos na evolução do processo histórico e social; (ix) inexauribilidade: os valores sempre excedem os bens em que se objetivam, não se esgotam, pois sempre admitem novos conteúdos. Paulo de Barros Carvalho, identifica ainda as características da (x) atributividade — o valor requer a presença humana e um ato de atribuição — e da (xi) indefinibilidade — como ente metafísico, é impossível de definição 171 Que faz o acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico (LUHMANN).

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138

Ao se tratar da interpretação que presuma os valores do sistema —

portanto, os valores constitucionais, mesmo no âmbito da autonomia privada e

no âmbito negocial que a liberdade deveria ser mais alargada —, tem-se que

levar em consideração os valores constitucionais, menos em razão de eventual

hierarquia,172 e mais por estarem visceralizados no sistema, por representar

uma rede, uma teia de valores comuns da sociedade que não podem ter a veia

ingênua e utópica, mas sim devem ser enlaçados num viés da solidariedade

(ao invés de caridade) que permita um contínuo desenvolvimento da

humanidade.173

Entretanto, no caso de premissas para interpretar os contratos complexos,

faz-se essencial consignar que os valores constitucionais, por estar inseridos no

sistema, devem ser sopesados; porém, com base nos canais de que se trata de

relação empresarial, patrimonial. Com isso não se quer dizer que valores

fundamentais devam ser afrontados; o que se quer dizer é que não devem ser

invocados, de maneira desconexa da realidade negocial ou de forma a inviabilizar a

atividade negocial. Cabe aqui o pensamento de Grossi (2010, p. 83): “[...] o núcleo

fundamental e mais delicado e o mais prepositivo do direito globalizado, os

contratos, ou seja, o suporte jurídico do mercado precisa de princípios ordenadores

e não de amarras normativas”.

Convém ressaltar que, no âmbito da liberdade negocial entre pares (sem

relação de vulnerabilidade ou hipossuficiência), a autonomia, a autodeterminação, o

poder de autorregramento concedido aos particulares, deve ser respeitado e levado

a sério. As lições de Canaris e Grigoleit (2011) são claras quando afirma que a

função básica do contrato é permitir que as partes possam determinar suas relações

legais como lhes convém; a função da interpretação é verificar as intenções das

172 Paolo Grossi (2010, p. 78) alerta: “[...] se o direito moderno pode ser considerado um direito inteiramente público, desde o momento em que o Estado se preocupa até mesmo com a regulamentação das relações privadas na vida cotidiana dos privados (o exemplo mais clamoroso é o Código Civil), com o direito da globalização se tem novamente (como se tinha no Antigo regime pré-revolucionário) um direito privado produzido pelos privados”. 173 Freitas (2010, p. 224) assevera que “[...] a interpretação constitucional é processo tópico-sistemático, de maneira que resulta impositivo, no exame dos casos, alcançar uma relação de equilíbrio entre o formal e o substancial, evitadas as soluções unilaterais e respeitada a Constituição em sua abertura dialógica e em seu caráter não-linear. Com efeito, a tarefa primeira do intérprete consiste em refinar o catálogo de princípios, regras e valores, aprimorando-o constantemente para fazê-lo, no quadro evolutivo, cumprir a função sistematizadora intrínseca ao processo. Embora reconhecendo tratar-se — a reelaboração da mesma — de projeto permeável às mutações axiológicas”.

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139

partes. O direito de autodeterminação, se levado a sério, inclui necessariamente a

liberdade de procurar e concordar com algo absurdo — assim como um voto em

uma decisão democrática não é sujeito a controle da razão. Não as razões, mas as

intenções das partes, portanto, formam a base do contrato de acordo com a máxima

Stat pro ratione voluntas. Isso implica que o sistema legal só tem de conferir que a

decisão das partes é o mais livre possível, não só em sua legalidade, mas também

em circunstâncias práticas. Essa suposição está de acordo com o fato de que o

objetivo econômico da eficiência é alcançar a maior conformidade com a preferência

do indivíduo.

Portanto, a interpretação dos contratos complexos deve recorrer a recursos

de um sistema aberto que analise a situação concreta em toda a sua diversidade e,

após analisar as circunstâncias do caso em cotejo com o comportamento das partes,

usos e costumes, efeitos do contrato, utilizando-se da intermediação que as

cláusulas gerais fazem entre os princípios (e valores) incidentes sobre os contratos e

o caso concreto, poder ordenar e sistematizar esses elementos em prol de uma

solução.

3.3 Cláusulas gerais da boa-fé objetiva, da função soci al dos contratos e do

equilíbrio contratual devem ser vistas e aplicadas à luz da complexidade dos contratos e dos efeitos dela decorrentes

A complexidade das relações contratuais expressa nos contratos

complexos impõe à aplicação das cláusulas gerais a necessidade de lentes mais

acuradas, em especial para que se possa enxergar toda a diversidade do caso

concreto. Na linha proposta por Luhmann, o sistema jurídico é operativamente

fechado e aberto cognitivamente. Isso significa que a produção jurídica se dá pela

forma como tal “fazer” é previsto no sistema jurídico, em síntese, atuando com o

código binário lícito e ilícito, mas com a abertura cognitiva para receber as

informações advindas dos demais sistemas que formam o ambiente. O que se

assistiu por um longo período foi um sistema jurídico contratual hermético às

sensibilizações do ambiente, em vista da própria estrutura dos institutos jurídicos.

Com a abertura (necessária) do sistema jurídico por meio dos princípios,

das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, o movimento de

abertura cognitiva passa a integrar o sistema operacional, pois permite que, para

a aplicação e, logo, interpretação (que neste caso é a de contratos complexos),

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140

por meio da linguagem própria do sistema jurídico, busque-se no ambiente em

que o contrato foi pactuado determinados padrões de comportamento, de

costumes e de regramento social que privilegiem os valores daquele ambiente

(no caso negocial) conduzidos pelas cláusulas gerais, para se parametrizarem as

condutas e os comportamentos do caso concreto (muitas vezes, tratando-se de

novos modelos de contratação).

Martins-Costa (2015, p. 168–9) explica que “[...] a série de situações

passível de disciplinamento por via de uma cláusula geral se dá sempre à vista

de uma referência de conjunto, ora completando-o, ora restringindo-o, ora

estendendo-o”. Também afirma que passam a ser “pontos de referência” para

ligar novos casos a precedentes, permitindo uma ressistematização. Para as

cláusulas gerais, a função de tais precedentes está em fixar (embora de maneira

não rígida) as pautas de concreção, assegurando relativa estabilidade ao

entendimento jurisprudencial.

Tratando-se de situações complexas e, na grande parte das vezes,

inovadoras, fruto do mercado, da tecnologia, parece que sempre se terá um

vácuo entre os casos novos e o conjunto de casos que formam os precedentes.

As dificuldades que se apresentam na interpretação dos contratos complexos

advêm da “novidade”, pois mesmo que existam na composição de tais contratos

elementos e regramentos tipificados (jurídica ou socialmente), habitualmente, têm

situações não catalogadas por completo. Nesse sentido, o papel do “intérprete

doutrinador” é crucial: por meio de elaboração teórica, fundamenta as multifárias

e, muitas vezes, desordenadas soluções judiciais, confrontando-as com a

realidade negocial, o que colabora para a estabilidade e certeza jurídicas.

De forma crescente, verifica-se que, em casos de conflitos decorrentes de

contratos complexos (e os a eles coligados), em via judicial ou arbitral, as partes

recorrem aos “pareceres jurídicos” de doutrinadores de autoridade opinativa

reconhecida. Com tal recurso, é possível apresentar, para certo caso concreto

complexo e, por muitas vezes, não catalogado no sistema, uma sistematização de

ideias, institutos, usos e costumes que municiem o intérprete julgador. Cabe aqui a

síntese de Martins-Costa (2015, p. 173):

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A determinação do conteúdo que há de ser conferido efetivamente ao dispositivo que caracteriza cláusula geral (por não estar descrito no texto legislativo), implica ponderações e valorizações da jurisprudência e da doutrina que se reportam a um âmbito de referência tecido por variadas escalas: os casos precedentes, o seu criterioso agrupamento por hipóteses em que foi similar a ratio decidendi, a história institucional, bem como as opiniões consolidadas doutrinariamente por autores a quem é reconhecida autoridade opinativa, os usos e costumes do tráfico jurídico, as soluções advindas do Direito Comparado, quando compatíveis com o sistema. Esses fatores, idealmente necessários ao preenchimento das cláusulas gerais e ao desempenho de suas funções, nem sempre são observados na prática, o que leva a mencionar os riscos potenciais das cláusulas gerais, bem como as vantagens que proporcionam ao desenvolvimento do sistema.

O Código Civil de 2002 incluiu a boa-fé objetiva, a função social dos contratos

e o equilíbrio contratual como cláusulas gerais no sistema contratual. A boa-fé

objetiva174 inserida nos artigos 113, 187 e 422 desempenha, no campo obrigacional,

três funções distintas: (i) a função de cânone hermenêutico-integrativo do contrato,

(ii) a de fonte de criação de deveres jurídicos175 e (iii) a de limitação ao exercício de

direitos subjetivos.176

A boa-fé objetiva, que, no § 242 do Código Civil alemão (BGB), dispõe que o

devedor está obrigado a executar a prestação como exige a boa-fé, em atenção aos

usos e costumes (tráfico social), diferencia-se da boa-fé subjetiva, também

denominada de boa-fé “crença”, uma vez que é designativa de uma crença na

aparência de licitude ou da convicção de não estar lesando direito alheio.

174 Penteado (2002, p. 151) destaca que “Entre os instrumentos mais sofisticados, pela agudeza e flexibilidade de que dispõe, está a boa-fé, que exerce um papel de tornar o direito um pouco melhor, o que se apresenta como direito, justo. Seu manejo, no entanto, requer não apenas precisão, mas sutileza, para evitar o rápido desgaste que palavras de cunho excessivamente geral podem sofrer. Usando-a com cautela, será forte arma de obtenção de justiça, tanto no âmbito intra como no extracontratual”. 175 Tendo a boa-fé objetiva como um dos princípios basilares do contrato, dela decorre um sem-número de deveres que percorrem a vida (e a morte) da relação contratual. Assim, pode-se dizer que o alicerce de tais deveres, especialmente nas relações negociais, é a boa-fé objetiva. Nesse sentido, a exigência de as partes agirem de boa-fé na formação e execução da relação contratual implica, necessariamente, o reconhecimento da existência de deveres não expressamente referidos no contrato, que podem ser qualificados como deveres instrumentais ou secundários (PEREIRA, 2001, p. 81). Varela (2000, p. 123) revela que “[...] diferentes dos deveres primários ou secundários de prestação são os deveres de conduta que, não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autônoma de cumprimento, são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”. Assim, são os deveres que excedem o próprio e estrito dever de prestação e que resultam para ambas as partes cumprir o que foi expressamente pactuado, com base na boa-fé, também denominados “deveres de conduta”. 176 A vedação ao abuso de direito é um exemplo.

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142

Miguel Reale177 e Renan Lotufo178 outorgam à boa-fé objetiva, na forma do

art. 113 do Código Civil — “[...] os negócios jurídicos devem ser interpretados

conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração [...]” — o status de requisito

de validade do negócio jurídico. Se não houver boa-fé objetiva no momento do

nascimento do negócio jurídico, este não poderá ser considerado válido como norma

jurídica.179

A referência dos contratos complexos no presente trabalho é das relações

paritárias, sobre as quais o âmbito da autonomia privada, denominada autonomia

negocial nesses casos, é mais alargado, ou seja, diminui o poder externo. Nesses

casos, a boa-fé age,

[...] primacialmente, como norma de cooperação, lealdade e probidade a incidir nos modelos negociais formatados pela autonomia privada por parte de sujeitos que podem — jurídica e faticamente — exercer em razoável grau, a liberdade de dispor sobre seu próprio patrimônio, inclusive modelando em formas atípicas o conteúdo do contrato. As regras legais são majoritariamente dispositivas e supletivas, embora incidam nos particulares vínculos contratuais, também, as normas cogentes e imperativas (MARTINS-COSTA, 2015, p. 574).

Ao incluir a boa-fé no âmbito dos contratos empresariais complexos, seu viés

de previsibilidade e confiança (como confiabilidade ou credibilidade) em todas as

fases da relação contratual ganha perspectivas diferenciadas. A previsibilidade pode

advir do tráfico comercial (usos e costumes habituais naquele determinado mercado

de atuação em que o objeto do contrato se insere) e dos usos e costumes

habitualmente utilizados entre as partes, que também se traduzem na lealdade. A

confiança — cabe frisar — relaciona-se com o ato de escolha do contratante, da

177 “Donde se conclui que quando o Art. 104 dispõe sobre a validade do negócio jurídico, referindo-se ao objeto lícito, neste está implícita a sua configuração conforme à boa-fé, devendo ser declarado ilícito todo ou parte do objeto que com ela conflite” (A boa-fé no Código Civil, 16/8/2003). 178 “A origem negocial leva aos requisitos do negócio jurídico, expressos no art. 104, que remete à vontade livre, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei, mas também ao art. 113, do Código, que a nosso ver é requisito de validade” (LOTUFO, 2011, p. 14). 179 Martins-Costa (2015, p. 580), ao analisar tal questão, assim entende: “Em síntese: fora da hipótese do art. 51, inc. IV, do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da boa-fé não age diretamente no plano da validade, senão de forma residual, embora possa atuar no plano hermenêutico (via análise de conduta) para potencializar determinadas eficácias legalmente previstas a outras figuras, como no caso do dolo por omissão informativa (Código Civil, art. 147) que pode conduzir à invalidade (quando configurado o dolo essencial) ou à satisfação de perdas e danos, sem declaração de invalidade (quando caracterizado o dolo acidental), hipótese que se reconduz aos esquemas ressarcitórios. Mas em ambos os casos, estará em causa, primariamente, o dolo, não a boa-fé objetiva”.

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relação com ele estabelecida, ou que tal contratante detém, perante seu mercado,

bem como na própria evolução do contrato, que por ser de duração e complexo

invariavelmente tem conteúdos (ao menos em parte) incompletos, e seu

preenchimento dependerá da forma de agir das partes, extremamente vinculada à

boa-fé.

A boa-fé no direito empresarial representa um standard específico e deve ser

mais específico ainda nos contratos complexos, pois a diversidade de elementos —

somada ao aspecto temporal, que gera por diversas vezes contratos relacionais —,

a relação de confiabilidade e a previsibilidade (também como lealdade) devem ser

mais aprimoradas e a sua verificação, no caso concreto, deve prestigiar a forma

como as partes se relacionaram entre si e com o mercado em que estão inseridas. O

comportamento habitual das partes (e de todos que agem em nome das partes)

deve revelar uma conformidade às práticas de mercado e às práticas reiteradas

entre as partes e uma perenidade da forma de se relacionar, ressaltando que a vida

negocial não é constituída por gentilezas e favores, e sim por ações (com o sentido

de “fazer”, de atividade) que visam a um negócio lucrativo (à circulação de riquezas).

Da boa-fé objetiva decorrem institutos tais como o denominado venire contra

factum proprium,180 tu quoque,181 supressio,182 a surrectio183 e o adimplemento

substancial,184 que não serão objeto de maiores detalhamentos neste trabalho,

consignando-se que são usualmente citados em decisões, tendo o Superior Tribunal

180 O contratante assume determinado comportamento qual é contrariado depois por outro comportamento seu. 181 A locução significa tu também e representa as situações nas quais a parte vem a exigir algo que também foi por ela descumprido ou negligenciado. 182 O teor, conforme Recurso Especial n.º 1.202.514 – RS (2010/0123990-7) “[...] indica a possibilidade de se considerar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não-exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo”. 183 “[...] trata-se de exercício continuado de uma situação jurídica em contradição ao que foi convencionado ou ao ordenamento jurídico, de modo a implicar nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se para o futuro” (ROSENVALD, 2005) 184 “Trata-se de execução do contrato que não se operou conforme os estritos termos de suas cláusulas, desviando-se de forma insignificante do programa contratual. Se esse desempenho anômalo representar algo de somenos importância, a outra parte não poderá resolver a avença e será compelida a cumprir sua correspectiva prestação. Reserva-se, contudo, a esse contraente o direito à parcela faltante ou a perdas e danos exclusivamente em face da performance menos que perfeita do contrato” (RODRIGUEZ JÚNIOR , 2006, p. 72).

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de Justiça, em diversos julgados, reforçado o reconhecimento dos referidos institutos

como decorrentes da boa-fé.185

Entretanto, vale ressaltar que se assiste, de forma recorrente, ao uso e abuso

da cláusula da boa-fé objetiva de forma desvinculada dos seus efetivos parâmetros

e de sua função. É numa utilização sem critérios, um vale-tudo desmedido. Tal

instituto é virtuoso: traz em seu bojo a eticidade, a lealdade de condutas entre os

contratantes; mas seu uso não pode ser desmedido.186

O princípio e a cláusula geral da função social dos contratos,187 previstos no

artigo 421 do Código Civil, estabelece que “[...] a liberdade de contratar será

exercida nos limites e em razão da função social do contrato”.

A reflexão proposta incide no sentido de como a função social dos contratos

atua no sistema dos contratos complexos e nas redes contratuais. Se a aplicação de

tal princípio nos contratos não complexos acarreta discussões doutrinárias e

jurisprudenciais, quando vinculada ao contrato complexo a dificuldade é maior, pois

terá de visitar todos os elementos da complexidade. Parte-se do pressuposto de que

a função social do contrato, da mesma forma que a boa-fé objetiva, não pode ser

utilizada de forma desmedida, sem critérios estabelecidos. A questão é que o próprio

significado e alcance da cláusula geram discussões,188 tendo em vista que há quem

entenda que se pode tutelar questões de fundo social por meio de tal cláusula.189

185 Nesse sentido, destacam-se o Recurso Especial n.º 953.389 – SP (2007/0115703-9), o Recurso Especial n.º 1.202.514 – RS (2010/0123990-7), que abarcam, em sua decisão, o instituto da supressio, o Recurso Especial n. 1.200.105 – AM (2010/0111335-0), que abrange a teoria do adimplemento substancial. 186 Nesse sentido, cabe citar Martins-Costa (2015, p. 11), “[...] a explosão do emprego do instituto jurídico designado como boa-fé objetiva tem um lado virtuoso e outro perverso. Virtuoso porque assenta no Direito brasileiro inafastável padrão ético à conduta contratual. Perverso quando o uso excessivo, desmesurado, imperito, deslocado dos critérios dogmáticos a que deve estar vinculado serve para desqualificá-lo, esvaziá-lo de um conteúdo próprio, diluindo-o em outros institutos e minorando sua densidade específica. Oferecer critérios é também oferecer limites. A ausência de limites importa necessariamente em arbítrio, como diz antigo provérbio — ‘quando as margens são ultrapassadas caem todos os limites’”. 187 Rocha (2008, p. 517–8) diz que “[...] a função social do contrato está inserida no ordenamento jurídico como princípio e como cláusula geral. [...] Enquanto princípio, a função social do contrato informa toda a compreensão do instituto, pouco importa o ramo do direito a que esteja ligado. Enquanto cláusula geral constitui valioso instrumento de elaboração e construção judicial, prevista no art. 421”. 188 Nesse sentido, Carlos Branco (2014, p. 257) diz que “[...] o art. 421 do Código Civil está entre as disposições que provocam debates inconclusivos, assim como justificam correntes jurisprudenciais e doutrinárias incertas sobre seu significado”. 189 Segundo Penteado (2007a, p. 270), o princípio da função social do contrato permite a tutela difusa pelo judiciário das garantias institucionais. Liberta a tutela de interesses supraindividuais da tutela administrativa ou a casuística prevista em lei. Toda vez que forem lesados interesses institucionais haverá lesão à função social do contrato.

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Para Carlos Branco (2009, p. 316),

[...] o interesse social não é oposto ao interesse das partes, mas uma atribuição do ordenamento sob a perspectiva macroscópica e normativa. Sob o ponto de vista singular, a consequência direta da função social dos contratos é a proteção do interesse particular de um dos contratantes: a finalidade imediata a ser alcançada pela função social dos contratos é de natureza econômica e particular, e a finalidade mediata é de natureza social e geral.

A função social não pode eliminar do contrato a sua essência de veículo de

direitos e interesses individuais. Cabe-lhe apenas conciliar os interesses das partes

com os da sociedade; mas, a par do resguardo da função social, é necessário

lembrar que os direitos individuais inseridos no contrato se beneficiam das garantias

dispensadas pela Constituição ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido e

constam com a proteção do devido processo legal substantivo (THEODORO

JÚNIOR, 2014).

A função social nos contratos em geral e, de forma mais relevante, nos

contratos complexos tem forte ligação, conforme ensina Carlos Branco (2014, p.

258), com os princípios da solidariedade social e do equilíbrio econômico do

contrato. A incidência dos princípios e das cláusulas gerais na interpretação dos

contratos complexos não deve ser hierárquica, e sim compor toda a teia, as

eventuais sobreposições, buscando vislumbrar o quantum de risco assumido por

cada parte. Relacionar a função social com equilíbrio econômico do contrato e

solidariedade social nos contratos complexos requer analisar como e em quais

momentos tais princípios podem incidir nas referidas operações.

Nos exemplos de contratos complexos e contratos a eles coligados, foi citado

o caso das franquias, cujo sistema habitualmente abriga contratos complexos e

coligados. Suponha-se uma franquia de escolas de cursos livres (não

regulamentados pelos órgãos competentes), mas que, mesmo assim, cumpre a

função social de ensinar, promover educação e a cultura e, especialmente, envolver

relações de consumo. Suponha-se ainda que a relação entre franqueador e

fraqueado passe a ser conflituosa em razão de inadimplemento do franqueado e, por

tal situação, a escola corra risco de ser fechada antes de concluir os cursos

contratados pelos alunos. Nessa situação, o aspecto social de os alunos ficarem

sem a conclusão dos cursos contratados é relevante para a interpretação do caso e

a decisão judicial, seja a pretensão deduzida pelo franqueador requerendo o

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fechamento da escola, a do franqueado requerendo condições comerciais mais

brandas para atender tais alunos, seja a dos alunos ou de entes que o representem

visando a uma solução. A relação de desequilíbrio econômico pode ter sido

causada, a título de exemplo, exclusivamente pelo franqueado; mas a questão social

(e consumerista) será decisiva na interpretação do órgão julgador, que não poderá

vedar os olhos para o aspecto social.

O interessante é que nessas relações complexas e coligadas, os riscos, na

grande parte das vezes, distribuem-se ou pela própria vontade das partes, ou pela

imposição da lei, quando tais contratos se coligam a contratos que recebam a

proteção social. Portanto, para tais situações, as lentes têm que ser graduadas de

acordo com a relevância das questões suscitadas na concretude da relação. As

questões sociais em situações como essas devem ser vistas sob lentes amplas, mas

as decisões não podem, por sua vez, arruinar toda a operação econômica envolvida.

Há que ter parcimônia, seja na atribuição de responsabilidades, seja no quantum

indenizatório.

Eis por que, ao analisar o complexo programa contratual, é de suma

importância verificar os eventuais efeitos sociais quando os contratos se

operacionalizarem efetivamente. Se o contrato veste (juridicamente) o esquema

econômico subjacente e o objetivo econômico é a circulação de riquezas, que

maciçamente é atender aos anseios (básicos, intermediários e supérfluos) das

pessoas, então quanto mais essencial à subsistência humana a relação complexa

(incluindo contratos a ela coligados) estiver servindo, mais riscos terá de ser afetada

pelos efeitos sociais.

Para Fernando Rodrigues Martins (2011, p. 31)

Pelas redes contratuais vê-se relativizado o princípio res alios inter acta, importando no comparecimento de terceiros interessados no objeto do contrato, que, em conjunto com as partes, constroem um sistema que busca otimizar os benefícios contratuais e, ao mesmo tempo, diminuir os riscos eventuais. Esta é, talvez, uma práxis pós-moderna da função social do contrato, nos termos do art. 421 do CC/2002.

Como exemplo, na hipótese de conflito, os contratos relacionados com

logística (transporte, armazenamento, embalagem) destinados a medicamentos

essenciais podem ter a incidência de uma análise sob os efeitos sociais de uma

ruptura contratual, por exemplo.

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Tais situações não impedem as rupturas contratuais, ou os efeitos do

inadimplemento, mas as sopesam com os efeitos sociais. Nesse sentido, cabe citar

a decisão do Agravo de Instrumento nº 0150224-33.2012.8.26.0000, de São Paulo,

com foro central na 27ª Vara Cível (proc. nº 583.00.2012.127032-9). No texto se lê

Agravo de Instrumento. Ação de obrigação de fazer. Liminar concedida em primeiro grau e estendida até audiência em 28.08.12. Contrato com término previsto para 28.07.12. Autonomia privada e liberdade de contratar. Limitação pela função social do contrato. Risco de interrupção de fornecimento de equipamentos e medicamentos para diálise peritoneal, caso não prorrogada liminar Proteção à vida, saúde e dignidade humana, Eventuais danos patrimoniais que, se comprovados, poderão ser recompostos na exata medida das perdas Decisão de primeiro grau que não se mostra ultra petita nem tampouco ilegal. Recurso desprovido

Nas lições de Theodoro Júnior (2014, p. 123),

[...] sendo o contrato um instituto, antes de tudo econômico, a limitação de seu emprego a uma função social não pode ser feita de maneira a inutilizar ou reduzir o papel que cumpre desempenhar no mercado. A análise da função social, in casu, só será legítima se procedida de maneira interdisciplinar, nunca de forma puramente jurídica, sob pena de, a pretexto de tutelar interesses de partes supostamente frágeis, chegar-se a resultados coletivos muito mais nocivos e intensos, no âmbito econômico, do que os benefícios individualmente proporcionados a quem se endereçou, de forma inadequada, a apelidada tutela social do contrato.

Percebe-se que os movimentos sociais contemporâneos carregam (ao menos

na aparência) paradoxos, pois, ao lado de uma sociedade que tende a ser

individualista, consumista, focada em aparências (devido, em grande parte, à

evidente utilização massificada de mídias sociais) e intolerante, convive uma

sociedade que busca a um meio ambiente equilibrado, a sustentabilidade, a ética, a

solidariedade, a inclusão social, que não se cala ou se acomoda perante injustiças.

Não se pretende defender posições ou analisar tais mecanismos sociais. O que se

pretende é demonstrar que a instabilidade no sistema social (advinda dos sistemas

que o integram) gera a necessidade de movimentação no sistema jurídico. O

exemplo citado sobre a implantação do serviço Uber no Brasil é um exemplo de

inovação tecnológica, esquema econômico e realidade social que requer

movimentação no (e/ou do) sistema jurídico.

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Partindo-se do pressuposto de que os contratos nascem na realidade

social, no tráfico comercial realizado entre as partes, no “fazer”, então os

contratos complexos, atípicos, por ser fruto da autodeterminação dos particulares,

serão influenciados se tal realidade social sofrer os efeitos dos dramas da

complexidade contemporânea. A complexidade social se refletirá nos contratos,

em especial nos efeitos dos contratos perante terceiros. A sociedade acolherá ou

repelirá determinados contratos e o sistema jurídico, com seu caráter dogmático

(decisório), será chamado a decidir acerca dos efeitos dos contratos perante

terceiros. Assim, positivação, no Código Civil de 2002, do princípio da função

social dos contratos é um exemplo evidente dessa necessária interação do

contrato com a sociedade. Quanto mais participativa e informada for a sociedade,

mais difícil será o consenso. Daí que os programas visam possibilitar, em

situações complexas, as decisões e as escolhas, pois não se pode discutir um

tema indefinidamente.

Por ser difícil o consenso, a existência da incerteza e insegurança que

decorrem de tal ausência faz com que os sistemas se movimentem e evoluam.

Nesse sentido cabe citar o que diz Gail (2009, p. 666):

A evolução reside justamente na incerteza e na insegurança. Deveríamos render homenagem a esses princípios, pois são eles os elementos norteadores da evolução, da adaptação, da contextualização da relação sistema–ambiente, do discurso. São esses elementos que permitem um caráter de adaptação do sistema jurídico. Nossa função como participantes do sistema social é produzir comunicação, a fim de permitir uma adaptação do sistema que pode ou não evoluir, mas que essa possibilidade seja um critério do próprio sistema e não uma determinação do seu entorno. Somente assim poderíamos falar em evolução do sistema e do direito numa sociedade pós-moderna.

A comunicação como vetor na evolução, na questão contratual, também se

verifica pelo movimento crescente que visa resguardar o solidarismo contratual e a

solidariedade entre as partes e a própria sociedade inserida no contexto contratual.

Sem tais mecanismos, somente um sistema autoritário e/ou de ampla intervenção

estatal poderia manter a paz social.

Tratar de solidariedade não pressupõe tratá-la pela lógica da fraternidade ou

caridade, e sim com um viés de resgate social da segurança, mesmo que para tanto

tenha de ocorrer o compartilhamento de riscos (que representa, dentre outros,

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formador de contratos coligados). Os contratos (e seus efeitos) não podem servir de

assistencialismo. Aqui se fazem importantes as ponderações de Fernando

Rodrigues Martins (2012, p. 49):

[...] advirta-se, contudo, que o Código Civil nesse passo de erradicação da pobreza não tem função assistencialista, conforme assume o Direito público. Não há espaço para “tirar” do rico e passar para o pobre. A função é mesmo emancipatória, porquanto a segurança nas relações deve ser respeitada, bem como a liberdade inerente mesmo ao Direito privado. Cinge-se a função emancipatória no caráter preventivo à exclusão, de forma a outorgar meios de, mesmo nas questões patrimoniais, sobejar espaço para a pessoa. Caso contrário, a pessoa indicada como pobre não evoluirá, redundando sua existência na velha caridade (fraternidade) da Revolução Francesa.

Assim, as situações sociais complexas, na esfera contratual, implicarão a

criação (inclusive privada) de regulação de tais situações e/ou de seus efeitos, em

especial os efeitos sociais na tentativa de obter decisões em equilíbrio com os

valores sociais vigentes. Sendo o direito um fenômeno comunicacional e sendo o

contrato o veículo e a língua do mercado globalizado,190 a adequação da

comunicação (linguagem) contratual à complexidade social pode implicar a

complexidade objetiva e a complexidade normativa, gerando contratos cada vez

mais complexos.

À luz da função social, a interpretação dos contratos complexos e coligados

abarcará, também, a verificação de como as partes enxergaram, no momento da

instituição da avença e no decorrer do contrato, os efeitos sociais e se incluíram, no

programa contratual, previsões acerca de tais efeitos (o que se denominou, ao se

tratar de complexidade normativa, de relação externa, na qual há maior incidência

de regras heterônomas).

Veiculado como cláusula geral, por meio de artigos do Código Civil —

vide 157, 317, 413, 473, parágrafo único 478, 479, 480 —, o princípio do

equilíbrio contratual visa equilibrar as relações jurídicas sem que prepondere

uma parte sobre a outra e resguardando-se os interesses do grupo social,

também, nas relações de direito privado. Trata-se de manter a comutatividade e

190 Fabio Gil (2007, p. 17) emprega tal expressão citando M. Ferrarese, na obra Mercati e globalizzazione: gli incerti cammini del diritto in le institutizioni dela globalizzazione, Bologna, Mulino, 2000, p. 70.

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a proporção das prestações nos contratos para preservar a liberdade das

partes, de permitir que estas possam cumprir as obrigações assumidas e se

libertarem da relação estabelecida. Portanto, sem equilíbrio, a liberdade das

partes fica ameaçada e, por consequência, compromete a vontade manifestada

ou declarada pelas partes.

Bandeira (2016, p. 197) esclarece que,

[...] em relações paritárias, em que não há assimetria de informações, a equação econômica estabelecida pelos contratantes por meio da alocação de riscos há de ser observada em toda a vida contratual. Afinal, a repartição dos riscos traduzirá a finalidade almejada pelos contratantes com o concreto negócio, os quais buscam satisfazer os seus interesses por meio daquela específica alocação de riscos. A alocação de riscos no contrato revela, portanto, o equilíbrio econômico do negócio perseguido pelas partes contratantes e mediante o qual as partes visam a concretizar seus objetivos econômicos.

Ao transpor tais ideias aos contratos complexos, a perspectiva tem de ser

ajustada, pois as prestações e contraprestações estão imbricadas numa relação

nem sempre linear. Num contrato complexo, uma das partes pode, num primeiro

momento (de prospecção, por exemplo), assumir muito mais obrigações do que a

outra, sem que isso rompa o equilíbrio, desde que se analise a questão como um

todo.

Tome-se, por exemplo, os contratos que envolvem empreendimento

imobiliário. É comum que o proprietário do imóvel e o pretenso empreendedor

façam um contrato que preveja que toda a parte de projetos, prospecção da área,

obtenção de autorizações e registros perante todos os órgãos competentes fique

a cargo exclusivamente do empreendedor. Este deverá cumpri-las em

determinado período; se não cumprir no prazo estabelecido, o contrato se

resolve, sem que o empreendedor seja ressarcido dos custos que incorreu. À

primeira vista, pode parecer que a relação está desequilibrada; mas não é o que

ocorre na práxis.

O contrato é estabelecido com a confiança, fundamentada na boa-fé objetiva

e na análise dos riscos. Para ter um padrão de confiança do proprietário e do

mercado imobiliário, o empreendedor tem de conhecer os procedimentos que

envolvem tal etapa e o tempo para tanto. Ao assumir tais obrigações, ele tem

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conhecimento das condições de cumpri-las; uma vez que as cumpre, participará de

um empreendimento que vai lhe gerar renda.

O que se pretende demonstrar com esse exemplo é que contratos complexos,

de duração, não podem ser analisados quanto ao equilíbrio das prestações sem que

se analise todo o conjunto com todas as peculiaridades. No caso de relações

complexas, paritárias, empresariais, de longa duração, a análise dos riscos, em

todos os momentos do contrato, é de extrema importância, bem como é imperiosa —

cabe frisar — a inclusão de regras contratuais para adaptação do contrato às

vicissitudes da realidade negocial advindas do tempo; por exemplo, cláusulas de

reajuste de preço, cláusulas de alinhamento e pactos de renegociação (cláusula de

hardship).

O princípio do equilíbrio contratual nos contratos complexos está fortemente

ligado ao princípio da conservação dos negócios jurídicos. O desequilíbrio contratual

poderá afetar em série as demais relações contratuais. Daí a sua relevância e sua

intrínseca relação com a função social, pois a principal finalidade do contrato é que

cumpra a finalidade que carreia em seu objeto; mantendo-se o negócio, desde que

de uma forma útil para os contratantes, tal função será cumprida.

Assim, a aplicação de tais cláusulas gerais nos contratos complexos deve

privilegiar a liberdade concedida no âmbito da autonomia privada negocial,

ponderada pela boa-fé objetiva — fincada na matriz da confiança e da credibilidade

aplicada ao mercado, aos negócios; e pela função social dos contratos — a fim de

que tais contratos sejam úteis às partes e, na medida do possível, à sociedade.

Numa palavra, que privilegiem o equilíbrio contratual.

3.4 Causa concreta é determinante para a interpretação dos contratos complexos

Castro (1966, p. 37) ensina que

[...] a causa é a função que o ato jurídico tende a realizar. Ela é de ser vista no ato; ela é o elemento do ato que lhe garante a individualidade. A causa é elemento formal do ato. Mas a causa não é todo o ato. A causa do contrato não se confunde com o próprio contrato. É um elemento essencial, um aspecto abstrato de sua existência.

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Trata-se da causa, para o presente trabalho, como a função prático-social ou

econômico-social do negócio jurídico,191 que detém “[...] um largo campo de atuação,

que se assemelha à cláusula geral, amoldável ao evento efetivo” (NANNI, 2011, p.

248). Na visão de Bechara (2014, p. 199),

A causa como razão prática do contrato, englobando o propósito objetivo a que o contrato é destinado a satisfazer à luz dos concretos interesses das partes na operação econômica, permite uma análise individual e específica do ajuste analisado. O juízo de valor sobre a relação contratual é feito de forma a verificar as circunstâncias específicas do caso e seu contexto, viabilizando a interpretação tópica e a concreção. Exatamente por se defender que a causa não se prende a qualquer modelo pré-definido e por permitir a ampla investigação da relação contratual específica, sustenta-se aqui ser a causa cláusula geral, por meio da qual pode o juiz, ou intérprete, navegar pelos diferentes remédios conferidos pela legislação e conferir a melhor solução ao caso analisado, conforme suas peculiaridades.

Justamente por se tratar da causa com esse viés prático, abstraindo-se de

todas as questões doutrinárias que a tornaram um tema controverso,192 é que ela se

mostra tão importante na interpretação dos contratos complexos e dos contratos a

eles coligados. Com essa mobilidade de cláusula geral, a causa terá o condão de,

na concreção, identificar se se tratava de unidade ou pluralidade contratual — ou

seja, se a causa era única, apontando um contrato complexo —, ou se a causa era

unificadora de contratos independentes entre si, mas coligados por uma causa que

caracteriza tal coligação ao identificar uma operação econômica comum.

Penteado (2006) atribui, no direito contratual, dois sentidos à causa: causa

razoável e causa suficiente. A primeira é apta a desencadear a vinculação jurídica

obrigacional, sinalagmática. A segunda (que pressupõe a presença de uma causa

razoável) se refere à maneira como, concretamente, encontra-se composta a

191 Conforme defendido por Antônio Junqueira Azevedo (2002), Giovanni Ettore Nanni (2011), Bechara (2014) e Marino (2011), trata-se de elemento do conteúdo negocial global (integrante do conteúdo expresso ou — o que é mais frequente — do conteúdo implícito) que desempenha papel crucial, na medida em que unifica o conteúdo do negócio jurídico, esclarecendo o seu conteúdo global. É missão do intérprete, portanto, revelar o fim do negócio jurídico, com o escopo de trazer à tona o “suplemento de significação” que ele proporciona, iluminando o conteúdo global do negócio jurídico. 192 Penteado (2006, p. 257) diz que, seja qual for a questão legal, a categoria da causa é fundamental para analisar lides contratuais. Às vezes se tem consciência disso; às vezes, não. A falta de uma doutrina clara sobre o assunto — e não para questões adjacentes — é o que dificulta a aplicação da ideia.

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relação entre os termos que dependem um do outro, permite a qualificação e, em

perspectiva de argumentação, pode ser o elemento apto a descaracterizar um tipo e

incluir a figura em outro modelo jurídico (perturbando o esquema causal anterior).

Esse autor assinala ainda a relação de igualdade de racionalidade entre a causa

concreta, a tarefa de sua apreensão cognoscitiva (qualificação), o modelo jurídico

(típico ou não) e o consequente regramento jurídico a ser aplicado.

Identificar a causa nos contratos complexos, atípicos, requer analisar todas as

vertentes do momento da celebração do contrato (e como elas se comportaram ao

longo da execução dos contratos). Entretanto, a razão econômica que fundamenta a

relação contratual indica, à primeira vista, o caminho para se identificar a causa. Nos

contratos complexos, a grande questão é a junção de elementos diversos que impõe

uma atipicidade, bem como a ausência do modelo jurídico preestabelecido na lei ou

no tráfico comercial; o que pode tornar, nesse primeiro momento, nebulosa a sua

identificação. Nos contratos complexos, a causa pode estar declarada no próprio

contrato, o que passou a ser habitual, mas por não ser uma condição de validade tal

declaração, a sua ausência não traz consequências jurídicas à qualificação do

contrato como válido, embora possa dificultar sua identificação.

Convém frisar que o emprego da linguagem competente nos contratos

complexos se mostra relevante. Quanto mais recursos de linguagem o contrato tiver

sobre as complexidades, mais tal circunstância permitirá a sua operacionalização e

interpretação. No caso de contrato complexo, sua causa concreta poderá não ser

simples, mas composta por diversos elementos. Considerando-se a causa como

cláusula geral, ela atrai a atuação de princípios e regras de outros textos, movendo o

sistema interno do contrato complexo e viabilizando o dialogismo, a

intertextualidade, a tradução, pois ela promove a concreção. A busca da causa

concreta abre caminho para a redução das complexidades, clareando as regras do

jogo.

Na aferição da coligação contratual, na qual a causa é seu elemento

caracterizador, Giovanni Ettore Nanni (2011, p. 252)193 propõe as seguintes etapas:

(i) identificar a causa concreta de cada negócio, pois cada qual detém a sua

individualidade, e confrontá-la com distinto contrato para se apurar a existência ou

193 Giovanni Ettore Nanni expõe que “[...] em regra, a coligação deflui de operações econômicas estruturadas, contemplando diferentes empresas, cada qual com uma atribuição específica, em um projeto unitário”.

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não de coligação; (ii) realizado o cotejo entre as causas concretas de contratos que

tenham acentuado grau de proximidade entre si, a coligação se configura quando

ocorre alguma sorte de conexão entre elas. Assim, é a hipótese fática que aponta a

causa concreta e qualifica o contrato.

Nos contratos coligados, existe um propósito supracontratual que faz o nexo,

a coligação entre os contratos. Nos contratos complexos, a causa concreta reflete

essa complexidade. Se houver contratos coligados a contratos complexos, então

será preciso identificar a causa do contrato complexo e aquela que o coliga a outros

contratos.

3.5 Lacunas nos contratos complexos decorrem de sua ess ência

Em razão de suas características, já elencadas, o contrato complexo traz

lacunas em sua essência, pois é uma tarefa quase impossível (ou que pode não ser

conveniente), no ato da celebração, prever todas as situações que possam decorrer.

Assim, os contratos complexos, em sua maioria, são lacunosos. As lacunas não são

necessariamente um “defeito” dos contratos — como prega a dogmática tradicional;

mas uma característica própria dos contratos complexos (FORGIONI, 2015a, p. 64).

A incompletude pode revelar a confiança que as partes devem nutrir entre si.

As partes podem escolher deixar determinado conteúdo ou determinada

previsão para ser preenchidos ao longo da relação contratual; o que seria uma

incompletude proposital. Também é comum que convencionem uma obrigação de

renegociar se a base econômica do contrato vier a sofrer uma alteração. A

incompletude intencional e o pacto de renegociação têm por finalidade: (i) adaptar o

contrato às circunstâncias supervenientes, visando ao equilíbrio (ou ao reequilíbrio)

econômico do contrato; (ii) repartir, entre os contratantes, os custos decorrentes de

eventos supervenientes imprevisíveis; (iii) minimizar riscos de extinção do contrato;

(iv) encontrar (ou tentar encontrar) um novo regime adaptado aos interesses mútuos

como uma função adaptativa da autonomia privada (MARTINS-COSTA, 2015).

Todavia, ante uma situação imprevista, sempre se questiona: como preencher

tal lacuna? A tal pergunta Antônio Junqueira de Azevedo (2004, p. 121) responde

assim: “[...] antes de mais nada, mediante uma interpretação que leve em conta a

vontade comum das partes manifestada no todo contratual”.

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A interpretação envolve integração194 (como forma de suprir tais lacunas,

buscando no sistema recursos para preencher o vácuo deixado pelas partes). A

integração é uma das funções da boa-fé objetiva como cláusula geral. Se da análise

da concreta relação contratual for possível identificar a vontade das partes sobre

aquela determinada situação, então a integração se dará dessa forma.

Entretanto a solução (quando possível) da incompletude pode ocorrer como

(i) um novo acordo — em especial se o contrato original tiver previsto pacto de

renegociação ou regramento similar; (ii) pelos usos e costumes195 — mas tal

alternativa tem como limitador o fato de que nem sempre existem usos e costumes

invocáveis para sanar a disciplina contratual ou não são suficientemente

institucionalizados a ponto de permitir sua demarcação; (iii) por uma decisão judicial

ou arbitral; (iv) por decisão de terceiros — desde que seja possível que juiz, árbitro

ou terceiro preencha tal incompletude; (v) a critério de uma das partes, se assim se

convencionou.

Contudo, é importante questionar se é cabível o preenchimento de lacunas e,

se o for, qual seria a forma de fazer isso na relação contratual em concreto.

Conforme abordado anteriormente, nem sempre a incompletude decorre da

imprevisibilidade, pois pode ser proposital. Portanto, o primeiro ponto a se

questionar é se a incompletude foi proposital ou não e se se tratava de evento

previsível ou não. Pode ter ocorrido de as partes terem deixado de prever

determinada situação, ainda que previsível, por uma opção de não tratar tal

circunstância que poderia acarretar embate ou aumento de custos. Nessa situação,

pode-se questionar se caberia a integração por uma decisão judicial, arbitral.

Ora, se as partes não quiseram (e poderiam) tratar determinada circunstância

previsível e no decorrer do contrato não encontraram solução consensual, então é

importante avaliar se é possível obrigar a mantença do contrato, ou se o contrato

deve ser resolvido se não houver acordo sobre tal circunstância.196 Assim, é

194 Segundo Rodney Malveira da Silva (2011, p. 238–9), “[...] a dicotomia entre interpretação e integração perdeu o sentido [...] e se compreende atualmente que na atividade interpretativa encontra-se também a integrativa, na medida em que o contrato não é mais entendido como um ente solitário e está em constante diálogo com o sistema no qual está inserido. Daí a utilização do termo interpretação-integrativa, atualmente de uso corrente”. 195 O artigo 133 do Código Comercial de 1850 assentava que, “[...] omitindo-se na redação do contrato cláusulas necessárias à sua execução, deverá presumir-se que as partes se sujeitaram ao que é de uso e prática em tais casos entre os comerciantes, no lugar da execução do contrato”. 196 Nesse sentido, ver Forgioni (2015b, p. 233).

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fundamental analisar a situação concreta para, dela, depreender se cabe impor a

manutenção do contrato ou não. O que é importante consignar é que, em respeito

ao preceito da autonomia privada, não se pode autorizar, de forma desmedida,

invocar o princípio da conservação do contrato, da função social, da boa-fé, como

integradora, para suprir uma vontade não declarada se estas, deliberadamente, não

o quiseram fazer.

As incompletudes podem gerar inúmeros conflitos, em especial quando

guardam relação com a função econômica do contrato, a exemplo do

estabelecimento de metas de vendas ou da aquisição de produtos para contratos de

distribuição e da atribuição de estoque mínimo em contratos de fornecimento. Os

conflitos podem ser maiores se a regra para completar tais lacunas ficar a critério de

uma das partes. Nessas situações, podem ocorrer contestações com o argumento

de se tratar de potestatividade pura, o que seria vedado pelo ordenamento. O critério

principal para afastar a potestatividade pura é que, caso o preenchimento fique ao

talante de uma das partes, deve-se, para tanto, observar determinadas condições

objetivas, vedando-se o abuso de direito.197

No tocante à premissa de as lacunas serem inerentes aos contratos

complexos, cumpre ressaltar a função integradora da boa-fé objetiva, especialmente

ao se desdobrar em deveres laterais, de lealdade e de cooperação entre os

contratantes, o que será fundamental por se tratarem de contratos de colaboração.

3.6 Distinção entre contratos complexos e coligados dev e ser efetuada de

forma dinâmica Convém salientar a distinção entre unidade e pluralidade contratual para a

finalidade da interpretação do contrato complexo e dos coligados. A verificação se

determinado contrato se encontra conexo com outro se torna tão imprescindível

quanto o tradicional exame dos termos utilizados no contrato, dos usos e costumes,

197 Conforme Forgioni (2015b, p. 234), “Os pontos a serem completados geralmente desempenham função econômica importante no negócio celebrado, revelando-se indispensáveis para o sucesso do empreendimento comum. Exemplo clássico é a cláusula de estoque mínimo, mediante a qual se atribui ao fornecedor a faculdade de, durante a vida do contrato, estabelecer ou alterar a quantidade de bens que o distribuidor deverá manter em estoque. A função econômica dessa estipulação relaciona-se ao bom atendimento ao consumidor; se não encontrar o produto no estabelecimento do distribuidor, poderá dirigir-se àquele do concorrente” (grifos do autor).

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das circunstâncias em que foi celebrado, do comportamento das partes em sua

execução etc.198

Partindo-se da ideia do contrato complexo como aquele que decorre da

complexidade subjetiva, volitiva, normativa, objetiva (que não se resume apenas aos

contratos mistos), econômica, tecnológica, a questão da unidade e pluralidade

contratual merece destaque, pois não se verifica de forma estática, mas na dinâmica

da relação contratual. Numa relação contratual complexa — cabe reiterar —, podem

existir contratos coligados a ela. A questão se coloca especialmente quando se trata

de contratos entre as mesmas partes. A distinção entre coligados e complexos pode

ser relevante quanto aos efeitos, sobretudo em casos de efeitos supervenientes, as

vicissitudes de uma maneira geral.

Cumpre esclarecer que não será a forma (instrumento público ou particular)

nem a instrumentalização do contrato (em um ou em diversos atos) que

determinarão a unidade ou pluralidade contratual.199 Também não é outorgada, de

forma definitiva,200 às partes, a despeito do poder (decorrente da autonomia privada)

de autorregulamentação, a decisão quanto a qualificar o contrato como singular ou

plural, pois a natureza destes e suas peculiaridades indicarão se se trata de contrato

complexo ou de pluralidade de contratos.201

Não se trata simplesmente de pluralidade de sujeitos, objetos, manifestações

de vontade, relações jurídicas (MIRANDA, 2012, p. 244), pois o fator unificador do

contrato complexo (unidade) que o diferencia da pluralidade contratual não é de

198 Konder (2006, p. 194) conclui que “Não é consentido ao intérprete ignorar que o regulamento de interesses estabelecido entre as partes teve em consideração outras regras instituídas em outro negócio. Ou melhor, o intérprete deve identificar que a composição de interesses que foi firmada transcende o contrato singular em exame; este é apenas parte de uma regulamentação mais ampla”. 199 Pontes de Miranda (2012, p. 239) esclarece que “[...] a unidade do contrato, ou de outro negócio jurídico, não pode ser em relação ao ato da conclusão ou à instrumentação; nem ao conteúdo do negócio jurídico (seria unitariedade); nem à dependência recíproca das manifestações de vontade (há uniões de negócios jurídicos com dependência daquelas). E sim em relação ao trato do negócio jurídico, dizendo-se também único o negócio jurídico ou contrato, quando há nele elementos de diferentes tipos de negócios jurídicos, inclusive de negócios jurídicos atípicos, suscetíveis de serem suporte fáctico de regras jurídicas especiais, mas subordinados à especificidade preponderante e ao fim comum do negócio jurídico complexo (= misto)”. 200 Diz-se de que não é outorgado de forma definitiva tal poder, pois, em tese, se as partes determinarem que se trata de uma unidade contratual ou de uma pluralidade e tal circunstância não for contrária a normas cogentes nem a interesse de terceiros, pode-se entender que se estaria no âmbito da autonomia privada. 201 Nesse sentido, Varela (2000, p. 285), diz que “Não são as partes que decidem, dentro ou fora das cláusulas do contrato, sobre a qualificação singular ou plural do acordo que estabeleceram. Mas é sobre a natureza do acordo por elas estabelecido, à luz do pensamento sistemático denunciado na classificação e definição dos diferentes contratos típicos, que as dúvidas na matéria hão de ser solucionadas”.

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simples aferição. A doutrina trata como fator unificador a “especificidade

preponderante, o “fim comum do negócio jurídico complexo”,202 a “necessidade [de]

que os seus elementos integrem um processo unitário e autônomo de composição

de interesses”,203 unidade de causa (GOMES, 1997, p. 104). Isso denota que

apenas a casuística demonstrará se se trata de contrato complexo ou de pluralidade

contratual.204

A pluralidade contratual poderá ensejar a coligação contratual, na qual se

revelarão os níveis de interferência entre os contratos coligados. Por ora, para

distinção entre unidade e pluralidade contratual, pode-se elencar como coordenadas

— ainda que de caráter não decisivo e não estanques — estes elementos: (i)

unidade ou pluralidade da contraprestação; (ii) unidade ou pluralidade do esquema

econômico subjacente;205 (iii) os limites dos tipos contratuais legais, sociais

(sociojurisprudenciais) contratuais envolvidos; (iv) unidade ou diversidade

instrumental; (v) unidade ou diversidade temporal; (vi) participação de diversos

centros de interesse;206 especialmente (vii) a causa (como função econômico-social).

A análise da coordenada unidade ou pluralidade da contraprestação

envolverá avaliar, conforme Varela (2000, p. 285), se às diversas prestações a cargo

de uma das partes corresponderá uma prestação única (una ou indivisível) da outra

202 Pontes de Miranda (2012, p. 240), trata-se de contrato “único”, “quando há nele elementos de diferentes tipos de negócios jurídicos, inclusive de negócios jurídicos atípicos, suscetíveis de serem suporte fáctico de regras especiais, mas subordinados à especificidade preponderante e ao fim comum do negócio jurídico complexo”. 203 Segundo Varela (2000, p. 285), “Para que as diversas prestações a cargo de uma parte façam parte de um só e o mesmo contrato, e não de dois ou mais contratos, é necessário que eles integrem um processo unitário e autônomo de composição de interesses”. 204 Hironaka (2006, p. 121) propõe que, “Se os contratos mistos são aqueles que resultam da combinação de elementos de diferentes contratos, formando uma espécie contratual, não esquematizada em lei e se desta combinação de elementos de diferentes contratos, resulta uma unicidade que é o que, afinal, claramente os caracteriza, não há razão para confundir os contratos mistos — assim definidos —, com os contratos coligados, uma vez que, nestes, não se combinam elementos de vários contratos, simplesmente, mas o que se dá é a combinação de contratos completos. Por isso, nos contratos coligados há uma pluralidade de contratos, e a combinação deles não resulta, como nos contratos mistos, numa unicidade”. 205 Tais itens propostos por Varela (2000, p. 285). 206 Marino (2009, p. 119) propõe as seguintes coordenadas a fim de qualificar determinada fattispecie contratual como contrato único ou coligação entre contratos: “(i) os limites dos tipos contratuais de referência, sejam eles legislativos ou sócio-jurisprudenciais; (ii) a participação de diversos centros de interesse na relação jurídica ou nas relações jurídicas envolvidas; e (iii) unidade ou diversidade instrumental, temporal e de contraprestação. Importante ressaltar que tal distinção se faz entre contrato único e contratos coligados, e a distinção que se faz no presente trabalho é entre contratos complexos e coligados (pluricontratualidade)”.

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parte. Nesse caso, será naturalmente de presumir, até prova em contrário, que as

partes quiseram realizar um só contrato (embora, talvez, de caráter complexo).207

Francisco M. de B. P. Coelho (2014, p. 139), nesse sentido, faz menção a

nexos “intranegociais” como “nexos que exprimem uma unidade negocial, na medida

em que se reportam a relações (entre prestações ou efeitos negociais) próprias de

um contrato “unitário”, tal é a estreita solidariedade que, por via delas, estabelece-se

entre essas prestações ou efeitos.

A coordenada unidade ou pluralidade da contraprestação está relacionada

com a coordenada unidade ou pluralidade do esquema econômico subjacente, pois

é exatamente no sistema econômico que a relação negocial se dá por excelência e

que o acoplamento com os demais sistemas, com o ambiente, se dá pela linguagem

contratual. Assim, se ocorrer uma pluralidade de contraprestações, a princípio,

haverá uma pluralidade de esquemas econômicos. Da mesma forma, se houver

mais de um esquema econômico, então pode haver contraprestações diversas.

Contudo, não se pode ter isso como regra estanque. Tais coordenadas não

são interpretáveis de forma única. A título de exemplo, pode ocorrer uma única

contraprestação. Mas o esquema econômico requerer garantia; e, a depender desta

(se pessoal, se real, se por terceiros etc.), o contrato se manterá em unidade ou não.

A coordenada limites dos tipos contratuais legais, sociais

(sociojurisprudenciais) contratuais envolvidos (se existirem tais tipos envolvidos) está

relacionada com a maior ou menor flexibilidade do tipo legal ou sociojurisprudencial

envolvido; noutros termos, envolve saber se os elementos categoriais são flexíveis

para suportar que outros elementos se somem ao programa contratual sem que,

com isso, seja necessário formar uma relação contratual distinta.208

Quanto à coordenada unidade ou diversidade instrumental, conforme exposto,

o fato de existirem dois ou mais instrumentos não tem o condão de definir a unidade

ou pluralidade contratual. Trata-se de mero indicativo. Além disso, não cabe às

partes definir a unidade ou pluralidade do negócio. Mas se não ferir imperativos

207 Betti (2008, p. 429) esclarece que “[...] a unidade do negócio não é comprometida pelo fato de diversas declarações, reunidas na unidade do negócio, produzirem consequências jurídicas próprias de cada uma delas, quando essas consequências sejam de caráter secundário, preliminar e preparatório, desde que seus efeitos jurídicos propriamente correspondentes aos fins do negócio, estejam, unicamente, ligados ao conjunto de declarações assim reunidas”. 208 Marino (2009, p. 120) explica que “[...] há determinados tipos de coligação contratual em que a qualificação como contrato único é afastada, de plano, tão só em virtude dos limites do tipo ou dos tipos contratuais de referência”.

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legais e se se tratar de negócios distintos — a instrumentalização dos contratos em

documentos próprios —, então se terá uma pluralidade de contratos, coligados.

No caso da coordenada unidade ou diversidade temporal, parece ser a

circunstância temporal bastante contundente para a distinção. Caso se trate de

obrigações a ser prestadas em prazos diferentes sem uma continuidade entre elas,

ou entre contratos com prazos diversos, então parece que não se está diante de

uma unidade contratual, e sim de uma pluralidade.

Quanto à coordenada participação de diversos centros de interesse, se os

contratos forem firmados entre partes distintas, então haverá, a princípio, a

impossibilidade de se tratar de um mesmo contrato.209

Conforme exposto, é a causa concreta como função prático-social ou

econômico social do contrato a coordenada principal de distinção entre unidade e

pluralidade contratual. Conforme ensina Castro (1966, p. 56),

A causa como elemento de individualização dos contratos, abre o campo para a verdadeira construção científica desses atos, já agora vistos em si mesmos, em sua unidade existencial. Todo o problema técnico e prático dos contratos inominados, toda a dogmática da nominação dos contratos — o concurso e a conexão objetiva ou fundamental dos contratos — são dominados por essa noção jurídica, tão útil quanto fundamental.

Na mesma esteira, Penteado (2007, p. 482) esclarece que a causa nos

contratos coligados — como traduz a específica ligação entre prestações — permite

identificar cada relação contratual e a rede como um todo. Daí que se pode enxergar

a causa de cada contrato que integra a rede e a causa da rede; ou seja, isso permite

colacionar os remédios em geral relacionados com a ideia de causa (em especial a

causa sinalagmática), como a rescisão lesionária, a revisão judicial dos contratos, a

resolução por onerosidade excessiva, a exceção do contrato não cumprido.

3.7 Situação concreta em contratos complexos: analisáve l a priori para

identificar seus elementos e os níveis de concreção e influência recíproca A ausência do regramento típico legal e, por vezes, de uma incidência prática

correspondente ao contrato complexo ou à relação complexa (que inclui os contratos

coligados) é indicativo de que a interpretação de tais contratos deve partir da

209 Nesse sentido, ver Marino (2009, p. 122).

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situação concreta. Nos contratos complexos, pode ocorrer uma relação de

correspondência por aspectos semelhantes de dados elementos já categorizados,

mas não uma correspondência por identidade ou uma correspondência integral.

Donde se conclui que apenas o caso concreto, entendido como toda situação fática

e complexa, com todos os seus elementos, deverá ser o ponto de partida da

interpretação dos contratos complexos, vistos como um sistema próprio que abrange

diversidades.

Quando se diz caso concreto, quer se envolver todas as circunstâncias do

caso: o comportamento das partes, as possibilidades existentes no momento da

contratação, as escolhas efetuadas e as contingenciadas, o mercado em que o

negócio está inserido, a catalogação de todas as linguagens (técnicas, comerciais,

estatísticas) utilizadas e a sua relação de intertextualidade com o instrumento

contratual e com a relação contratual concreta.

A norma jurídica contratual — convém frisar — é individual (porque destinada

às partes determinadas no contrato) e concreta (pois existe a situação concreta a

que ela está destinada, prevista no programa contratual). Nos contratos complexos,

pois atípicos (ou com elementos de atipicidade), de duração, lacunosos, relacionais

em sua grande maioria, a norma jurídica contratual sofrerá novas concretizações

para que todos os elementos (obrigações, prestações, contraprestações etc.) que

constituem seu objeto possam ser cumpridos.

Tais concretizações ocorrem de forma simultânea ou não e podem ser

realizadas por entes diferentes (agindo em nome da parte), ou então em uma

relação contratual coligada. Além disso, deve ser levado em consideração que, para

o ato de “concretizar” a norma contratual, o “operador do contrato” interpretou a

referida norma para que pudesse cumprir a obrigação, compondo o conjunto do que

formará o “comportamento da parte”, ou seja, criando uma norma ainda mais

concreta que a lhe originou.

Nesse sentido, nos contratos complexos como sistemas contratuais, o

primeiro sopesamento deve ser entre os elementos fáticos e os elementos

normativos advindos da relação contratual: o planilhamento de todos os elementos e

as circunstâncias que de fato compõem a relação contratual. Sem esse desenho, ou

melhor, sem esse filme — tendo em vista que a relação é dinâmica e se realiza com

o decorrer do tempo —, não se terão elementos fáticos a ser entrelaçados com os

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princípios, as cláusulas gerais e as regras legais (quando incidentes) para que possa

ser realizada a interpretação sistemática fundada na concreção.

Portanto, tais pautas de argumentação que serão instrumentais à

interpretação dos contratos complexos e dos coligados se aproximam da ideia da

tópica, dos topoi — conforme ensina Martins-Costa (2015, p. 182):

Em outras palavras, para solucionar o caso concreto que tem em mãos, não parte o julgador do sistema (entendido como ordem de axiomas legais, passível de compreensão mediante o método lógico-dedutivo), mas do caso em si mesmo considerado. Este sempre encerra um problema, o qual deve ser resolvido numa ou noutra direção. Por constituírem pontos de vista, os tópicos que direcionarão tal ou qual caso não estão previamente fixados e ordenados, sendo selecionados de forma mais ou menos arbitrária pelo intérprete. Contudo, a arbitrariedade na eleição dos tópicos que direcionarão o processo de compreensão e resolução dos problemas não é absoluta, estando condicionada por sua função, que consiste em “servir a uma discussão dos problemas”. O problema indica o seu sentido e, por igual, a sua adequação ou inadequação funcional. Esta também não é perene ou imodificável, pois, se mudarem as circunstâncias em que colocado o problema, mudará o caráter assumido pelo próprio tópico. Além do mais, se não existe uma ordenação sistemática dos tópicos, eles não são, por isso, desordenados: é possível uma ordenação dos tópicos em certos “repertórios de pontos de vista” ou “catálogos de tópicos”, preparados de antemão.

A pretensão do método para interpretar contratos complexos é justamente

catalogar tais tópicos, que servirão de verdadeiros canais de interpretação. Com

base na complexidade do caso concreto, serão catalogados os elementos (fáticos e

normativos) que compõem o conjunto contratual por meio de tópicos para formar um

repertório apto à seletividade pelos filtros (ou canais) das circunstâncias do caso,

sopesados por meio de utilização de das cláusulas gerais, da causa concreta, das

disposições normativas do contrato, e, se cabível, de normas heterônomas.210

210 Segundo Vicenzi (2011, p. 107), “[...] mais do que uma simples operação exegética, a interpretação do contrato diz com a pesquisa das razões de cada cláusula no contexto do regulamento contratual, uma vez que imprescindíveis são as circunstâncias nas quais o contrato é posto a operar, as situações pressupostas pelas partes e o comportamento dos sujeitos durante as tratativas, conclusão e execução do contrato. Tal atividade, longe de ser limitada às hipóteses de obscuridade da linguagem contratual, constitui, pelo contrário, a premissa de cada análise que tenda a delimitar conteúdo de prestações deduzidas no contrato, para dirimir as controvérsias que dele próprio provém”.

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4 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS COMPLEXOS A proposta ora apresentada, cujos parâmetros e premissas foram

estabelecidos nos capítulos anteriores, tem a pretensão de ser vinculada à

realidade, própria do exercício da autonomia privada. Sendo os contratos complexos

sistemas próprios de regramentos entre particulares de operações econômicas e

considerando que a complexidade pode advir de fontes diversas, sua interpretação

não pode estar desvinculada da dinamicidade em que tais relações acontecem. No

exercício das atividades que decorrem da execução dos contratos complexos a

interpretação do contrato é realizada, inclusive, pelos diversos “atores” que estão

inseridos no contexto contratual. Trata-se da interpretação que se inicia antes

mesmo da elaboração do contrato, com a aproximação das partes, com as relações

de confiança (advindas do mercado negocial) que estabeleceram para iniciar as

tratativas do negócio, que inclui todos os atos relacionados com a sua celebração

(em todas as fases de formação do contrato) e se forma ao longo de sua execução e

no período pós-contratual.

O contrato, ao ser executado pelos “atores”, vai se alargando com a

linguagem do “fazer”. Assim, são criadas novas normas com base no contrato: a

autopoiesis da realidade contratual, que não utiliza, necessariamente, a linguagem

jurídica habitual, mas, em grande parte das vezes, uma linguagem compreensível a

cada parte, ou para aquele (“ator”) que executa total ou parcialmente as obrigações

previstas no programa contratual.

Como uma contextualização para melhor compreensão da proposta,

suponha-se que duas grandes empresas celebraram um contrato complexo de

desenvolvimento e fornecimento de matéria-prima específica, com transferência de

tecnologia, licença de uso de marca, comodato de instrumental e outras avenças. A

relação contratual terá como primeira etapa o desenvolvimento de determinada

matéria-prima mediante pesquisa prévia (com condições específicas), para que (a

matéria-prima) venha a ser utilizada na fabricação de um produto do setor de

alimentos. Se a matéria-prima for desenvolvida a contento, já se estipula a obrigação

do fornecimento, com previsões de volumes. Suponha-se ainda tratar-se de projeto

sigiloso, tendo em vista a concorrência no setor. O desenvolvimento da referida

matéria-prima demandará pesquisas, e o contratado terá de se associar (por meio

de um contrato coligado) a uma instituição que deverá se comprometer a não utilizar

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animais em suas pesquisas, tendo em vista que um dos acionistas da empresa do

setor de alimentos (a contratante) é detentor de uma marca que, reconhecidamente,

assumiu o compromisso de não usá-los nas pesquisas de desenvolvimento de

produtos.

O desenvolvimento da matéria-prima envolverá investimentos vultosos. Por se

tratar de um projeto com a condição de não utilizar animais como cobaias, existe a

possibilidade de o projeto ter de ser abortado. Estabeleceram ainda que, se o projeto

vier a ser concluído, todos os direitos sobre ele (marca, patentes, know-how,

tecnologias envolvidas etc.) devem ser transferidos à empresa contratante, que, por

outro lado, se compromete a adquirir a referida matéria-prima, em volumes

expressivos, exclusivamente do fornecedor (que foi quem a desenvolveu).

Da leitura da breve exposição acima, pode-se se depreender que um

operador do direito com experiência em negócios contratuais complexos inicia o

processo de delinear o contrato complexo e os contratos a ele coligados que terão

de ser celebrados em todo esse projeto. Para tanto, serão realizadas reuniões com

os departamentos técnico, financeiro, de logística e outros das empresas envolvidas.

Nesse momento, todos os envolvidos, além de participar das discussões, alertam

para eventuais dificuldades, o que implica começar um processo de interpretação

(em perspectiva), pois o exercício mental de supor os possíveis desdobramentos

passa a ser efetuado de forma recorrente pelos envolvidos para se avaliarem os

riscos.

Serão feitos estudos sobre a viabilidade econômica do desenvolvimento da

referida matéria-prima. Como serão necessários investimentos vultosos, então se faz

imperioso saber de onde virão tais investimentos — se de recursos dos sócios da

empresa, recursos de financiamentos de instituições bancárias — e se existe

alguma linha de crédito que fomente tal tipo de pesquisa. Aliada a essa verificação,

elabora-se um estudo para saber se a matéria-prima será útil no mercado, ou seja,

se ao longo do tempo (e em qual tempo estimado) haverá retorno do valor investido

(com lucros) àqueles que investiram, ou ainda, como compensar eventuais perdas

se o projeto for descartado após ter se iniciado. Isso porque existe a possibilidade

(risco) de o projeto ser inviável sem a pesquisa animal. E por se tratar de matéria-

prima a ser utilizada em determinado produto alimentício, serão necessárias

autorizações das esferas administrativas, em especial de caráter regulatório, cujos

prazos de emissão são apenas estimados e podem afetar a cronologia do projeto.

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Assim, por meio de interpretação em perspectiva, passa-se a exercitar algumas das

possibilidades e dos riscos que podem advir.

O projeto demonstrando viabilidade econômica e técnica (que aparentemente

seria possível executar a pesquisa sem envolver animais), as partes envolvidas

optam por celebrar o contrato. Por se tratar de um contrato complexo (complexidade

advinda de diversas fontes), serão previstas as fases de desenvolvimento e

pesquisa, com uma série de anexos técnicos e financeiros que, sendo superada,

poderá desencadear a outra fase, que é a de fornecimento da referida matéria-prima

para a empresa, bem como a transferência da titularidade do desenvolvimento e do

know-how da matéria-prima mediante a exclusividade no fornecimento.

Nesse exemplo, no momento pré-contratual, as partes se debruçaram sobre

as possibilidades de êxito e de perda, tanto no âmbito técnico como no econômico.

Com base nelas (possibilidades positivas e negativas), avaliaram os riscos

envolvidos (estudo de probabilidades) e estabeleceram as regras, partindo da

confiança de que ambas cumpririam o pactuado a contento. A confiança é

estabelecida: ambas as partes se reconhecem como aptas a cumprir o pactuado

(ainda que sempre exista a possibilidade do não cumprimento), da análise dos riscos

e da forma como encontraram para mitigar tais riscos (garantias adicionais e na

forma como estabeleceram a modo de dirimir conflitos — contrato normativo,

contrato quadro, dentre outros).

Ao celebrarem o contrato, houve o início do jogo propriamente dito, e as

regras estipuladas passaram a ser colocadas à prova: foi celebrado um contrato com

um renomado instituto de pesquisa para que o desenvolvimento da matéria-prima

ocorresse de modo a abranger todos os testes necessários; os técnicos começaram

a fazer os testes. Foram feitos pedidos para registro da referida pesquisa em órgãos

competentes. O resultado foi um sucesso. Mas a situação econômica global se

alterou, e os volumes então estimados não deverão ser mais consumidos no período

previsto, mas num período que não permitirá o retorno financeiro esperado. Se os

riscos foram efetivamente previstos no contrato, então podem ser cabíveis nesse

momento uma execução de garantia ou uma obrigação de renegociação (pacto de

renegociação) ou um mecanismo financeiro em que o valor a ser pago pela matéria-

prima se altere em razão do volume a ser adquirido.

A questão econômica pode ter sido prevista, entretanto. A título de exemplo,

pode ter ficado incompleta ou dúbia se, nessa situação, a transferência da

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titularidade dos direitos sobre o desenvolvimento da matéria-prima: se seria apenas

efetuada se os volumes fossem adquiridos na totalidade, ou se teria de ser

transferida no início do fornecimento. Apenas a análise da situação concreta poderá

avaliar o quão determinante ao projeto seria a transferência da titularidade do

desenvolvimento e do know-how, se era uma condição no negócio, se integrava a

causa, se era objeto.

Além disso, ao longo da execução do contrato, diversas ações e decisões

foram tomadas pelos executores (“atores”), algumas relatadas em atas de reuniões,

outras em correspondência eletrônica, e outras apenas aferíveis na análise concreta.

Uma decisão de extrema relevância ocorreu quando a pesquisa (realizada em

parceria entre a contratada e o instituto de pesquisas) estava em andamento e se

deparou com a seguinte situação: determinada substância que comporia a matéria-

prima (e era essencial) já tinha sido alvo de pesquisa há muitos anos, com

publicações internacionais datadas do início do século XX e não seria possível

assegurar se as pesquisas que embasaram tais estudos não tinham usado animais.

Como são pesquisas antigas e os atributos de tais substâncias passaram a ser

reconhecidos pela comunidade científica desde então, seria difícil assegurar como

foram os procedimentos utilizados. Considerando-se que existia uma efetiva

possibilidade de terem sido utilizados animais nos testes, a dúvida era se a

utilização dessa substância, baseada em tais pesquisas, poderia ferir a obrigação de

não utilizar animais como cobaias. Nesse exemplo, as circunstâncias em torno da

complexidade de obrigações envolvidas demonstram que as partes são requeridas a

tomar inúmeras decisões que, na verdade, refletem a autopoiesis: a produção de

normas de operação e interpretação do contrato, formando paradigmas internos.

A abertura deste capítulo com um exemplo (que será retomado adiante em

outras passagens) tem como objetivo principal apresentar a proposta de

interpretação com base no caso concreto, na identificação das regras do jogo

preestabelecidas de forma explícita e implícita pelas partes, na causa do contrato,

na(s) operação(ões) econômica(s) envolvidas e nos efeitos perante terceiros.

4.1 Incidência e concreção

Os contratos complexos, pela sua atipicidade, não permitem uma relação de

identidade (integral) com tipos contratuais, portanto as relações (quando existirem

elementos correspondentes a determinados tipos) a ser efetuadas serão relações de

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correspondência e, por tal razão, em situações que requeiram decisões, não será

possível encontrar a solução mediante uma atividade de índole sistemático-dedutiva;

outros raciocínios devem ser convocados (MARTINS-COSTA, 2015).

Concreção, conforme Martins-Costa (2008, p. 486),

[...] designa a construção, no caso, do significado da norma jurídica (legal ou contratual) levando-se em consideração as circunstâncias concretas do caso analisado (elementos fáticos) em sua correlação com determinados elementos normativos, a saber, os princípios, os postulados normativos e as regras jurídicas consideradas relevantes para aquele caso.

Ao cuidar do tema de incidência, interpretação e concreção, alcançando a

norma individual e concreta, é importante consignar que o contrato celebrado como

norma individual e concreta construída no âmbito da autonomia privada não

demarca o fim da concreção da norma geral e abstrata (ou do conjunto de normas

gerais e abstratas) de que ele se originou. Cabe salientar que a incidência, que está

na raiz do direito, dá-se por meio da inclusão de um indivíduo numa classe

(mediante operações lógicas). Não é possível transitar do “dever ser” para o “ser”

sem uma solução de continuidade. Assim, a incidência sempre dependerá da

atividade humana; e não se trata de um caminho de fácil percurso: mesmo que seja

a incidência de normas contratuais.

Ainda cabe frisar que pode ocorrer de tal norma individual e concreta,

também, ser objeto de nova incidência até que se possa alcançar o inteiro teor da

sua juridicidade.211 Por essa razão, é importante manter o pressuposto de que a

norma jurídica tem aptidão à incidência enquanto puder (nos limites de tempo,

espaço e destinatários) tal fenômeno ocorrer. Acrescente-se que a norma individual

e concreta incide na realidade social (daí a necessidade da linguagem competente,

tendo em vista a passagem da linguagem do “dever ser” para o “ser’). Na norma

individual e concreta, surge uma relação entre sujeitos determinados em dado tempo

e espaço.

O direito como sistema de comunicação — cujas unidades são ações

comunicativas e, como tais, devem ser observadas e exploradas — impõe que

211 Conforme Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 169) “Há que se destacar a importância e a necessidade da concreção da norma geral e abstrata para que ela possa alcançar o inteiro teor da sua juridicidade”.

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qualquer iniciativa para intensificar o estudo desses fenômenos leve em conta o

conjunto, percorrendo, conforme Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 164), o estudo

do emitente, da mensagem, do canal e do receptor, devidamente integrados no

processo dialético do acontecimento comunicacional.

Os contratos complexos carreiam em seu programa contratual uma série de

obrigações, prestações, deveres e ônus a ser cumpridos. Ao celebrar o contrato

complexo, os fatos sociais existentes na realidade ou nas expectativas das partes,

desde que tenha sido utilizada a linguagem competente (do próprio sistema jurídico)

e mesmo que não esteja textualmente expressa, passam a integrar o programa

contratual de um negócio jurídico atípico. Não se trata da aplicação de uma norma

escrita pela regra legislativa, mas pela autonomia privada. Portanto, é justamente

nesse contexto contratual que deve ocorrer a interpretação do disposto no contrato,

para que se possa aplicar tais regras, seja para a operacionalização do contrato,

seja para a sua interpretação visando a uma decisão caso ocorra conflito.

Um ponto relevante a explorar no âmbito da aplicação do contrato complexo é

o da interpretação da linguagem contida no contrato — a escrita e a não escrita —212

e as declarações preceptivas e enunciativas.213 O aplicador (intérprete julgador) terá

de analisar um caso concreto com suas circunstâncias para, então, verificar

eventuais tipos jurídicos envolvidos ou sua ausência, verificar os usos do tráfico

comercial, lidar com as regras particulares que tenham sido previstas ou lidar com a

ausência de regras específicas, ressaltando a grande incidência de incompletudes

propositais nos contratos complexos. Tal operação implica diversas operações

lógicas, de raciocínio, da análise das circunstâncias do caso, bem como análise de

todos os elementos que a linguagem pode lhe proporcionar.

Conforme a lição de Perlingieri (2002, p. 67), ao dizer que a interpretabilidade

do direito é sua positividade, “A ligação entre texto e intérprete requer a presença de

ambos”. Tácio Lacerda Gama (2003, p. 33) ao tratar da versão linguística dos

acontecimentos que serão interpretados expõe que

212 O Código Civil, ao imprimir a regra geral da liberdade das formas, permitiu a declaração tácita e o comportamento expressivo ou concludente como formas de exteriorização da autonomia privada. 213 No dizer de Marino (2011, p. 81), “Parece bastante claro que as declarações enunciativas, enquanto formas representativas, isto é, meio pelos quais o declarante alcança a sensibilidade e a inteligência alheias, também devem ser interpretadas. Por outro lado, não se pode olvidar que a diferença de função entre tais normas representativas — função meramente semântica ou comunicativa, nas declarações enunciativas, função também teleológica, nas declarações preceptivas — acarreta a necessidade de considerar critérios hermenêuticos distintos”.

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[...] compreender é interpretar a linguagem da vida. Se o acesso ao mundo se dá pela linguagem, aquilo que é passível de compreensão é, pois, linguagem. Quando se fala em “objetos”, “fatos”, “fenômenos”, o que se tem, neste novo paradigma, é uma versão linguística dos acontecimentos. Logo, compreender é interpretar a linguagem que constitui a realidade.

Daí que a interpretação do contrato já parte de uma norma concreta, e não se

enxerga outra forma de interpretação do contrato complexo que não seja pela

concreção, que deve partir da reconstrução de todos os elementos, todas os eventos

e todas as circunstâncias de sua formação, suas fases de operacionalização para

cumprimento de suas obrigações e, se for o caso, eventos pós-contratuais.214

Tal análise permitirá formar uma linguagem que atribuirá os significados

competentes, permitindo a decisão acerca do objeto da interpretação: uma

controvérsia advinda do contrato. O referido método utiliza a linguagem contratual

alinhada no sistema jurídico, vinculando a interpretação ao problema de forma não

linear e flexibilizando as operações de abertura do sistema215 a fim de alcançar a

metacontratualidade, constituída com base em normas que foram abstraídas do

próprio sistema contratual complexo para, sobre ele, reincidirem visando à solução

do conflito.

4.1.1 Ordem temporal como pauta para concreção — a (re)constituição (da

formação) do contrato complexo A interpretação dos contatos complexos como um sistema requer a

ordenação de seus elementos — ainda que mínima. Isso implica um ponto de

partida que, nesse caso, será a análise da situação da relação contratual concreta

no momento de sua criação.

214 Nas palavras de Martins-Costa (2008, p. 486), “A concreção é um método hermenêutico pelo qual as normas de dever-ser consideradas como ‘modelos de ordenamento materialmente determinados’ são compreendidas ‘em essencial coordenação com o caso concreto, que os complementa e lhes garante força enunciativa’, assim se possibilitando a sua determinação ou especificação. [...] O termo concreção designa a construção, no caso, do significado da norma jurídica (legal ou contratual) levando-se em consideração as circunstâncias concretas do caso analisado (elementos fáticos) em sua correlação com determinados elementos normativos, a saber, os princípios, os postulados normativos e as regras jurídicas consideradas relevantes para aquele caso. Por essa razão, concretizar implica sopesar os referidos elementos fáticos e normativos, de modo que ao ‘tornar concreto’, o intérprete adota uma atitude de ordenação e de estabelecimento de relações compondo e entretecendo elementos de ordem fática e normativa. A questão está em estabelecer como se realiza a construção do significado por via da concreção”. 215 Freitas (2010, p. 85) entende a “[...] interpretação sistemática como operação tópica que consiste em atribuir determinada e preferencial significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às regras e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto”.

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Conforme Francisco M. de B. P. Coelho (2014, p. 191), essa reconstrução,

compreensão e avaliação têm, naturalmente, de fazer-se com referência à inteira

formação contratual complexa e a todos os demais elementos interpretativos

relevantes. Mas não — obviamente — com referência ao estrito círculo de

elementos pertinentes a cada procedimento negocial.

Assim, o primeiro critério para a concreção será a catalogação dos elementos

existentes no momento (e dos momentos que precederam) da criação do sistema

contratual complexo. A catalogação deve partir das pautas a seguir elencadas; estas

não têm o condão de exaurir toda a concretude de tal momento, mas abarcam a

possibilidade de identificar os principais elementos a ser ordenados.

Assim, a importância do momento da gênese do contratual é crucial, e tal

ordem temporal envolve a análise destes aspectos:

(i) indicar número de partes envolvidas em cada polo contratual;

(ii) verificar os fatores de confiança (quais os fatores que estabeleceram o

vínculo de confiança entre as partes — renome, capacidade técnica

notória, forma de negociação, dentre outros); analisar as negociações

no período pré-contratual;

(iii) elencar os elementos que compõem o objeto do contrato;

(iv) verificar a disponibilidade técnica do(s) item(ns) que se relacionam ao

objeto;

(v) indicar a natureza da complexidade (subjetiva, normativa, volitiva,

objetiva, econômica, tecnológica);

(vi) identificar a eventual relevância de determinado elemento que compõe

a complexidade (quando objetiva), apontando se algum deles é

tipificado em lei, jurisprudência ou no tráfico comercial;

(vii) verificar a existência de previsão de condições suspensivas ou

resolutivas que determinavam um crescente de complexidade (se tal

objeto for cumprido, passa-se para o seguinte, como no exemplo da

matéria-prima que dependia do resultado da pesquisa e da pesquisa

que só poderia ser realizada se não utilizasse animais como cobaias);

(viii) verificar se foram utilizados recursos discursivos advindos de outras

áreas técnicas e, em caso positivo, se tais recursos estão aclarados no

contrato ou atraem ambiguidades e/ou vaguezas; indicar a qualidade

da linguagem utilizada;

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(ix) verificar a existência de incompletudes: se existentes, indicar (quando

possível) se tem caráter intencional ou não, se os riscos foram

analisados;

(x) indicar se o contrato pode ser considerado como de duração, lacunoso,

de colaboração e/ou relacional;

(xi) indicar o esquema econômico subjacente ao contrato, apontando

valores envolvidos e a existência de estruturas de crédito e/ou

financiamento; se existe a previsão de bônus por performance;

(xii) identificar a causa do contrato complexo (ou a causa unificadora, se

tratando de contratos a ele coligados, bem como a causa dos contratos

considerados individualmente); identificar o propósito supracontratual.

(xiii) verificar se se está diante de unidade ou pluralidade contratual; se

foram firmados contratos coligados ao contrato complexo ou se podem

ser firmados contratos coligados a partir da execução do contrato

complexo;216 se existe algum contrato existencial coligado ao contrato

complexo;

(xiv) indicar contradições (se existentes) entre os termos no contrato

complexo e entre contratos (quando existirem contratos coligados ao

contrato complexo);

(xv) aferição do momento econômico global e do momento econômico

individual das partes;

(xvi) elencar os riscos que foram mensurados pelas partes (quais riscos

eram possíveis de ser identificados naquele momento) e se existiam

riscos que não foram mensurados;

(xvii) verificar a inclusão (ou não) de penalidades para o inadimplemento —

na hipótese de contratos coligados, ao contrato complexo verificar a

existência de cláusulas cruzadas nos contratos (o inadimplemento em

um contrato atinge os demais); nos complexos, verificar para quais

216 Konder (2006, p. 195) pondera que “A consideração dos demais contratos envolvidos pode servir a esclarecer pontos obscuros do contrato isolado ou, ao contrário, pode deixar transparecer contradições entre negócios que, isoladamente, pareciam claros — o dever de prover uma interpretação condizente com a modalidade negocial, contudo, persiste”.

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obrigações o seu descumprimento impõe penalidades e se existe

gradação de penalidades;

(xviii) verificar a existência de normas legais (ainda que incidentalmente)

aplicáveis, indicando se são cogentes ou dispositivas;

(xix) indicar se do contrato podem advir eventuais efeitos sociais, efeitos

perante terceiros e efeitos para a sociedade;

(xx) verificar a existência de regras para solução de conflitos (cláusulas

normativas e afins), verificar se tais regras são de caráter geral e/ou

específico; e, se forem ausentes tais regras, identificar a razão de tal

ausência; verificar a existência de complexidade normativa;

(xxi) identificar se existiam parâmetros sociais (incluindo o tráfico comercial)

para o referido contrato, em sua plenitude, ou seja, se a despeito da

atipicidade decorrente da junção de diversos objetos existia uma forma

parametrizada de condução daquela forma de contratação, ainda que

no direito estrangeiro.

A análise de tais circunstâncias pela lógica temporal do momento da

celebração do contrato é fundamental para preservar o momento da gênese do

contrato, verificar se ocorreu alguma patologia em tal momento e, se sim, esta se é

curável ou se fere de morte o contrato.

Na presente proposta, a análise das circunstâncias do momento da

celebração do contrato (incluindo as tratativas pré-contratuais) é de extrema

relevância para que se possa avaliar as normas autônomas de caráter técnico e

normativo que foram criadas com a formação do contrato. A análise da eventual

alteração das circunstâncias será avaliada com base na identificação de todos os

aspectos que envolveram a gênese do contrato.

Após a identificação das circunstâncias da gênese do contrato, tais elementos

devem ser catalogados segundo sua função socioeconômica, revelada pela causa

concreta e pelas demais pautas propostas, para então ser confrontados com

eventuais normas imperativas incidentes. Também devem ser filtrados, canalizados

e ponderados conforme cláusulas gerais, em particular a da boa-fé, a da função

social e a do equilíbrio contratual. Entretanto — cabe frisar —, o filtro deve ser

baseado na efetividade e na realidade concreta, enquanto as ponderações devem

levar em consideração o ambiente negocial, pois entre iguais o poder corretivo

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externo (heterônomo) é mitigado, as regras legais são majoritariamente dispositivas

e supletivas.217 Cabem aqui as palavras de Martins-Costa (2008, p. 480):

[...] a interpretação contratual está cifrada no entrecruzar (complexo, dialético, escalonado) entre heteronomia e autonomia, conduzindo, como diz Scognamiglio, “al cuore stesso dell’autonomia privata”218 [...] na interpretação dos contratos, nos defrontamos com o momento em que as regras derivadas de uma ordem de autonomia entram em contato com a ordem de heteronomia, uma e outra compondo o ordenamento jurídico (grifo da autora).

Com esse contato entre autonomia e heteronomia (identificando eventuais

normas cogentes incidentes), as efetivas regras do jogo — conforme delineadas

pelas partes — devem ser identificadas. Ressalte-se que o objeto deste estudo são

os contratos paritários, cujo sinalagma foi estabelecido pelo consenso de partes, em

tese, devidamente informadas e assistidas tecnicamente, nos aspectos operacional

e jurídico.

A primeira identificação relevante é qual é o “jogo” escolhido. Em especial,

cabe identificar se existiam condições a serem superadas, riscos total ou

parcialmente imponderáveis — implicando uma zona aleatória (no exemplo inicial do

capítulo, seria o resultado da pesquisa) —, se tais riscos seriam assumidos apenas

por uma parte ou por todas as partes envolvidas e se tal zona de risco representava

uma condição para o negócio ocorrer e/ou se manter (complexidade condicionada).

Convém destacar uma questão relevante nesse momento (inicial) de

concreção: se determinadas regras (no momento de instituição do contrato) não

estiverem claras o suficiente para ser identificadas (o que ocorre por diversas

situações) e se não se tratar de contrato incompleto, então o intérprete, nesse

momento inicial de interpretação (identificação das circunstâncias do momento da

celebração do contrato), terá de: (i) aclarar tais regras, se, minimamente, foram

introduzidas no contrato (em sentido amplo); (ii) identificar se, do conjunto contratual,

é possível identificar que tais regras estão implícitas; (iii) identificar a ausência de

estabelecimento de tais regras no momento da celebração do contrato.

Também pode integrar esse primeiro momento de concreção a identificação

de quais foram as alternativas possíveis na época da celebração do contrato que

217 Nesse sentido, vide Martins-Costa (2015, p. 574). 218 Conforme a citação da autora, a obra de Scognamiglio é Interpretazione del contrato e interessi dei contraenti, Pádua, CEDAM, 1992, p. 1.

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foram descartadas. Isso porque, dentro da tríade proposta por Luhmann —

complexidade, seletividade e contingência —, o processo de criação privada da

norma contratual pelas partes requer escolhas feitas com base em inúmeras

possibilidades (advindas da sociedade complexa). Assim, a análise do processo de

escolha — incluindo em tal análise o que foi (ainda que hipoteticamente) descartado

(mas que era possível de ser escolhido) — pode contribuir de forma valiosa para a

interpretação do contrato complexo.

Em diversas situações — convém salientar —, a negociação entre as partes

não esgota a totalidade dos riscos envolvidos. Nesse aspecto, a negociação é muito

próxima de um “jogo”, pois as partes identificam (até mesmo em razão das

assessorias técnicas de parte a parte alertar para isso) determinados riscos, mas

podem fazer a opção de não presumir a possibilidade de tal risco ocorrer no

contrato. Assim, a despeito de se conhecer a possibilidade do risco, não se inclui

nenhuma forma de “remédio”, pois a discussão acerca de a regra a incidir na

hipótese de tal risco se concretizar pode ser tão custosa que, não raro, impediria a

celebração do contrato. Como num “jogo de azar”, a parte que abriu mão de incluir a

regra para a eventual incidência do risco “arriscou” que este não ocorreria. Não se

trata de confiança na outra parte. Trata-se de uma “aposta” de que o evento danoso

não ocorreria.

Daí a importância de, no momento da interpretação pela concreção, identificar

(ou buscar identificar) se determinada hipótese não foi analisada como possível ou

se o que ocorreu foi um silêncio intencional. Tal análise pode ser feita verificando-se

se era possível, no momento da celebração do contrato (e das discussões que

antecederam), identificar tal risco.

Com base no exposto acima, podem ser identificadas situações distintas: (i)

riscos não identificados mesmo com sua previsibilidade; (ii) riscos imprevisíveis de

ser previstos na época da celebração do contrato; (iii) riscos identificados e previstos

de forma clara no contrato; (iv) riscos identificados e apesar de não ser previstos no

contrato, as regras gerais previstas no próprio contrato são suficientes para a

interpretação integradora; (iv) riscos identificados e intencionalmente não previstos

no contrato.

Assim, a análise das circunstâncias que envolveram o momento da

celebração do contrato permitirá analisar o passado (em relação ao momento da

interpretação) e, com base na interpretação, estabelecer uma sincronia; afinal —

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diria Luhmann (2016, p. 124) —, “[...] fatos passados ou futuros podem receber

significados no tempo presente. Desse modo, o sistema ganha em capacidade de

sincrozinação”.

Nesse mesmo sentido, conforme Vicenzi (2011, p. 34),

[...] a tarefa do intérprete consiste, portanto, em enquadrar a lei contemporaneamente, eis que, como escopo resultante do sistema jurídico, se determinada na atualidade, no tempo da presente interpretação. Já na interpretação do contrato, o intérprete visualiza o acordo na sua totalidade, numa espécie de período histórico, já definido e exaurido. Daí a interpretação do contrato como interpretativo ex tunc, contraposta à interpretativo ex nunc própria da lei.

Como norma autônoma, individual e concreta, o contrato já representa uma

concreção, pois não tem o caráter geral e abstrato da norma jurídica. Ao se

estabelecer em linguagem própria o programa contratual, já ocorre incidência de

normas heterônomas: os requisitos de validade, por exemplo, representam a

aplicação de uma norma heterônoma para dar validade à norma autônoma.

A celebração do contrato complexo implica incidências simultâneas de

normas heterônomas e autônomas em sua formação. Com sua celebração, novas

normas são criadas na própria operacionalização do contrato, e a realidade da

execução contratual, sobretudo se demonstrar uma prática reiterada, pode

representar uma nova regra contratual (se tal prática não estivesse prevista) ou ser

contraditória à regra prevista no programa contratual. Além disso, a execução de um

objeto pode influenciar de forma diversa (em relação à previsão contratual) para a

execução dos demais objetos incluídos no programa contratual.

Assim, a análise das circunstâncias do momento da celebração do contrato

não pode ser considerada estática, pois todos os elementos se relacionam, embora

retratem um momento específico.

4.1.2 Ordem temporal II: reconstituição da operacionalização do contrato complexo e

delimitação dos conflitos dele decorrentes A realidade da operacionalização do contrato é apresentada aos intérpretes

em suas diversas categorias (de intérpretes) de formas diferentes. Se ao intérprete

operador a linguagem é basicamente técnica, direcionada ao fazer, ao intérprete

julgador que tem de solucionar um conflito a linguagem que as partes utilizam para

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apresentar suas razões é argumentativa. Também o intérprete julgador utiliza a

argumentação. Com efeito, conforme Luhmann (2016, p. 486), a argumentação

jurídica

[...] tem de ser capaz de propor uma decisão acerca do lícito e do ilícito, e de justificá-la. [...] Toda e qualquer argumentação jurídica que apresente interpretações de texto faz referência a uma decisão e, na verdade, uma referência a decisões em questões de outrem. Por isso, a argumentação jurídica tem de ser orientada pela comunicação.

A interpretação do contrato complexo importa em atividades de seleção — a

qual implica escolhas para reduzir as complexidades — a fim de alcançar uma

decisão. Para que se possa dirimir um conflito, a concreção é paradoxal: ao mesmo

tempo, impõe a realidade com todas as circunstâncias que a envolvem e a

necessidade de decisão. Para se decidir, as complexidades têm de ser filtradas, a

fim de que se possa ter um caminho escolhido. Noutros termos, faz-se necessário

reduzir as complexidades. Daí que a argumentação jurídica proposta por Luhmann

envolve três distinções: (i) operação/observação; (ii) auto-observação/hetero-

observação; (iii) controverso/incontroverso219 — ter ao final, justamente, a análise do

controverso/incontroverso, pois é sobre o controverso que se tem de dirimir e decidir

com base no código binário lícito–ilícito.

Assim, ante a interpretação fundada em dos atos de operacionalização

(execução) do contrato complexo, tem-se que o filme do momento da criação do

contrato está revelado, a causa do contrato está identificada, e o intérprete (julgador)

deve iniciar um processo hermenêutico dinâmico. Ele pode fazê-lo retomando os

caminhos trilhados pelos operadores do referido contrato para analisar a forma como

interpretaram as disposições contratuais a fim de cumprir suas obrigações;

confrontando com as circunstâncias que se revelaram ao longo do tempo — entre a

criação do contrato, sua execução e a identificação da controvérsia/conflito —, com

as normas heterônomas eventualmente incidentes e com os princípios contratuais

(por meio das cláusulas gerais). Assim, forma-se a “espiral hermenêutica”, que

Antônio Junqueira de Azevedo (2005b, p. 240) assim explica:

219 Luhmann (2016, p. 469) diz que “[...] formulamos o conceito da argumentação de maneira completamente independente da pergunta sobre as tão boas razões, com o auxílio de três distinções: 1) operação/observação; 2) auto-observação/hetero-observação; 3) controverso/incontroverso”.

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Toda e qualquer interpretação se constitui num processo mental de ir-e-vir entre o objeto a interpretar e a ideia que desse objeto inicialmente fazemos, de tal forma que os resultados progressivamente obtidos vão sendo conformados ou reformados à medida que o entendimento avança. Esse processo de ir-e-vir é o que alguns autores denominam de “círculo hermenêutico” e, com mais propriedade, tendo em vista o aperfeiçoamento, uma ascensão, que se visa obter com o procedimento, poder-se-ia chamar de “espiral hermenêutica”. No caso da interpretação jurídica, especialmente a contratual, vai-se várias vezes do fato ao direito e do direito ao fato, e isto deve levar normalmente à melhor compreensão desses dois pólos, fato e direito.

Portanto, nessa fase da interpretação, devem se adicionar às pautas de

interpretação indicadas para o momento da celebração do contrato as seguintes

pautas quanto ao caso concreto:

(i) verificar se, entre os programas contratuais previstos e os executados,

ocorreram distorções, contradições, inadimplementos e, se sim, qual foi a causa de

tais efeitos: ruídos de linguagem, comportamento das partes, alteração do mercado,

alteração das circunstâncias, dentre outros;

(ii) indicar os (eventuais) comportamentos das partes que podem ser

identificados como complementares à disposição contratual inaugural e se

demonstraram como prática habitual entre as partes; evidenciar tais

comportamentos, em especial nos contratos de colaboração e/ou nos relacionais;

(iii) indicar os (eventuais) comportamentos das partes que podem ser

identificados como contrários ao disposto no contrato inaugural, bem como a reação

da outra parte em relação a tal comportamento diverso ao pactuado;

(iv) tratando-se de contratos lacunosos, identificar como foram tratadas as

incompletudes, se foram objeto de novo acordo — nesse caso, se este foi tácito ou

expresso —, se foi completada por uma das partes, se as partes recorreram ao

tráfico comercial, se ficaram incompletas e até se a incompletude é causa (ainda que

parcial) da controvérsia;

(v) identificar se ocorreu alteração na base objetiva do contrato;

(vi) identificar a ocorrência de circunstâncias extracontratuais, em particular

no mercado de atuação do contrato, ou efeitos dos contratos perante terceiros, que

de alguma forma atingiram a relação contratual complexa;

(vii) delimitar o conflito estabelecido.

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Supondo-se que a relação contratual foi concluída, importa acrescentar, na

investigação, a verificação do o comportamento das partes no momento pós-

contratual. A identificação de tais pautas servirá para o confronto com as normas

autônomas e heterônomas (quando e se incidentes), o que permitirá a observação,

pelo intérprete julgador, de como as partes operacionalizaram (inclusive por meio de

interpretações e de criação de novas normas jurídicas concretas) o programa

contratual, formando a espiral hermenêutica. Mas terá de utilizar filtros para que tal

observação possa ser efetuada em consonância com o sistema jurídico, sobretudo

com o sistema dos contratos complexos.

4.1.3 Circunstâncias do caso como vetor de concreção e filtro de ponderação para

interpretação dos contratos complexos Em diversas passagens, o Código Civil de 2002 menciona “circunstâncias”,

como “particularidades do negócio”, “usos e costumes”, “conforme as

circunstâncias”, “circunstâncias que a acompanharem”, “circunstâncias do negócio”,

“circunstâncias do caso”, “conforme uso”, “conforme usos e costumes”, “conforme as

circunstâncias exigirem”, “uso a que se destina”, “fim a que se destina.220 As

“circunstâncias do caso” (tratado de forma ampla, abarcando todas as situações que

aludem ao caso concreto) são postulados normativos.

Conforme Ávila (2014), a interpretação de qualquer objeto cultural submete-se

a algumas condições essenciais sem as quais não pode sequer ser entendido. A

essas condições essenciais dá-se o nome de postulados. Há os postulados

meramente hermenêuticos, destinados à compreensão geral do direito, e os

aplicativos, cuja função é estruturar a sua aplicação concreta. São normas que

oferecem critérios precisos para aplicar o direito.221

Ao se tratar de “circunstâncias do caso”, tal postulado reporta-se a questões

de ordem real, fáticas e normativas. Portanto, devem ser tratadas como postulados

fático-normativos a ser observados conforme determinados elementos de concreção

220 Nesse sentido, vide, a título de exemplo, os artigos 24, 74 (parágrafo único), 94, 111, 113 133, 138, 142, 151 (parágrafo único), 152, 156 (§ único), 188 (II), 223 (§ único), 233, 311, 320 (§ único), 327, 427, 429, 500 (§ único), 569 (i), 690, 765, 766, 869 (§ 1º), 953 (§ único), 974 (§ 1º), 1297, (§ 1º), dentre outros. 221 Ávila (2014, p. 163–5) explica ainda que os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas.

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(MARTINS-COSTA, 2008, p. 494). Tais “circunstâncias do caso” têm uma dimensão

maior nos contratos complexos e nos contratos coligados, sobretudo pela

pluralidade de elementos neles contidos.

Como diz Luhmann (2008) acerca dos sistemas diferentes, pela lógica da

especificidade funcional nenhuma pessoa, física ou jurídica, apresenta exclusividade

sistêmica: os sujeitos estão em tantos sistemas quanto sejam suas funções, suas

poiesis, processando, contínua e constantemente, inúmeras relações entre os

sistemas dos quais participa. Daí a necessidade de filtros, pois sem eles se chegaria

a uma hipercomplexidade que impediria qualquer solução de conflito.

Segundo Martins-Costa (2008), as circunstâncias do caso servem para filtrar

o comportamento das partes, o papel social que as partes representam, o ambiente

econômico e social em que se desenvolve o contrato, a função econômica do

contrato. Para cada caso, para cada contrato, diz essa autora,

[...] serão as circunstâncias que darão o tom, vale dizer — constituirão o filtro —, pelo qual devem ser ponderados e sopesados os princípios e as regras contratuais, por isso, tendo importância decisiva no modo e na escala de aplicação dos princípios, permitindo discernir entre o seu valor facial, ou meramente nominativo e o seu valor propriamente hermenêutico (p. 493).

Nessa dinâmica da interpretação da operacionalização do contrato utilizando

as circunstâncias do caso como postulado fático normativo, faz-se necessário

identificar o padrão de comportamento das partes, como a forma de agir para

cumprir as regras estabelecidas pelo autorregramento, que deve ser exercido na

ampla liberdade concedida aos particulares no âmbito da autonomia negocial.222

Embora seja farta doutrina sobre a boa-fé objetiva, sobretudo após a vigência

do Código Civil de 2002, e muito se escreva sobre padrões de comportamento, não

é tarefa fácil, ao se defrontar com o caso concreto — sobretudo nos contratos

atípicos que são os complexos —, identificar se determinado padrão de

comportamento está ou não em conformidade com a boa-fé. Os casos clássicos de

agir conforme ou desconforme à boa-fé são de fácil identificação, mas os casos

limites, os casos não catalogados, em especial quando se trata de contrato atípico

222 Para Vicenzi, (2011, p. 33) “A relação jurídica nascida de um contrato deve ser interpretada, sempre de forma objetiva, segundo a autonomia privada, referida à coerência entre os interesses visados e os princípios da política jurídica”.

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(inclusive socialmente atípico), como ocorre em inúmeros casos de contratos

complexos, classificar um comportamento como lícito ou ilícito requer uma análise

apurada e objetiva. Deve se levar em conta que tais contratos são firmados com

base em um sinalagma. São paritários. As partes (na grande maioria das vezes)

estão devidamente assessoradas. Não se revela hipossuficiência de uma parte em

relação à outra. O modus operandi do empresário (em sentido amplo) tem suas

peculiaridades que não se pode ignorar.

Conforme ressalta Forgioni (2015a, p. 82), “[...] certa malícia nas negociações

é inerente ao tráfico mercantil”. Para tanto, cita um julgado do Tribunal de Justiça de

São Paulo,223 que dispõe que “[...] o dolus bonus é aceito e admitido pelo direito

contratual, e assim arremata: cabe ao agente econômico contra ele acautelar-se, se

entender necessário e conveniente”.224 A análise a ser efetuada é se as partes

agiram em conformidade com o pactuado. O padrão de comportamento deve estar

voltado ao programa contratual estabelecido. Se a operacionalização para o

cumprimento do estabelecido no contrato for objeto de controvérsia, então há que

indagar se existe uma controvérsia de fato ou um descontentamento da outra parte,

ou ainda se a expectativa da outra parte quanto à forma de cumprimento das

obrigações pela outra parte não está idealizada de modo incompatível com a

realidade do tráfico negocial.

Conforme já delineado, nas tratativas que antecedem o negócio, cabe às

partes verificarem os riscos a que estarão submetidas com a celebração do contrato.

Luhmann, quando trata de “confiança”, o faz em relação ao risco — esse vocábulo

passou a utilizado no período moderno, substituindo a ideia de fortuna e destino. A

confiança pressupõe consciência das circunstâncias de risco (o que não ocorre com

223 Apelação n. 994.09.339794-0, julgada em 8 de abril de 2010, com relatoria do desembargador Enio Zuliani. 224 Nesse mesmo sentido, vide a Apelação com Revisão TJSP nº 0610706-58.1998.8.26.0100, cujo relator foi o desembargador Luis Fernando Nishi: “E, portanto, como bem anotado pelo julgador: ‘A escolha dos requerentes pelo investimento no empreendimento das rés foi acompanhada de má avaliação dos riscos do empreendimento que lhes estava sendo oferecido. A própria novidade representada pelo direcionamento das vendas para atacadistas e revendedores em sistema de shopping center já deveria produzir um alerta para os lojistas. Não há prova nos autos que se trata de experiência testada e aprovada no mercado em que seria implantado o empreendimento, o que por si só já recomenda cautela’” (fls. 1468). Ainda que, por hipótese, tenha havido certo exagero na oferta por parte do empreendedor, isso obviamente não pode ser tido senão como o que a doutrina costuma denominar de “dolus bonus”, que é tolerado, porque sua verificação não exige senão uma prudência ordinária e prática comum de negócios para ser evitado.

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a crença), pois o indivíduo considera, conscientemente, as alternativas para seguir

um curso específico de ação.225

As partes não firmam contratos para estabelecer relações pessoais, mas para

estabelecer relações patrimoniais, negociais. O pano de fundo é econômico.226 Ao

se tratar de contratos complexos na forma como analisada no presente trabalho, não

se está lidando com partes ingênuas, tampouco desprendidas de bens materiais. Há

que levar em conta que não se pode dar vazão a um discurso denominado

(impropriamente) como “ético” que tenta incorporar um padrão de comportamento

idealizado e totalmente desvinculado da realidade.

A realidade (como cotidiano) requer pagar despesas, fornecedores e tributos,

contratar funcionários, manter departamentos focados em novas tecnologias etc.,

visando sobreviver num mercado competitivo e de constante evolução. Não se pode

admitir falcatruas; tampouco se pode esperar que as partes ajam com benemerência

na atividade negocial. Infelizmente, em algumas situações, é assim interpretado o

denominado padrão de boa-fé objetiva, cujos julgadores, por vezes, aparentam estar

distantes da realidade negocial. Como expõe Martins-Costa (2015, p. 11),

O panorama da aplicação da boa-fé é, portanto, paradoxal: de um lado, encontra-se o seu desenvolvimento por obra de uma jurisprudência responsável, pois ciente da conexão entre o fato e a configuração que terá, no caso, o princípio da boa-fé, bem como atenta ao mandamento constitucional de fundamentação da sentença; de outro, encontra-se o seu emprego traduzido no subjetivismo hermenêutico, vindo então a ser invocada a boa-fé objetiva ora como mero argumento de autoridade distanciado dos fatos cuja ordenação é a sua razão de ser; ora como escusa ao

225 Baseado nas colocações de Giddens (1991 p. 42), que não concorda de todo com a posição de Luhmann, pois entende que a confiança é muito mais um estado contínuo do que a proposição de Luhmann implica. Para ele, “[...] em condições de modernidade, a confiança existe no contexto de: (a) a consciência geral de que a atividade humana — incluindo nesta expressão o impacto da tecnologia sobre o mundo material — é criada socialmente, e não dada pela natureza das coisas ou por influência divina; (b) o escopo transformativo amplamente aumentado da ação humana, levado a cabo pelo caráter dinâmico das instituições sociais modernas. O conceito de risco substitui o de fortuna, mas isto não porque os agentes nos tempos pré-modernos não pudessem distinguir entre risco e perigo. Isto representa, pelo contrário, uma alteração na percepção da determinação e da contingência, de forma que os imperativos morais humanos, as causas naturais e o acaso passam a reinar no lugar das cosmologias religiosas. A ideia de acaso, em seus sentidos modernos, emerge ao mesmo tempo que a de risco”. 226 Grau et al. (2005 p. 283) postulam que “[...] são os empresários que, no quadro do direito mercantil, criam as fórmulas adequadas à solução de seus problemas concretos. Por isso Chiovenda (in Instituizoni di diritto processuale civile, vol. I, Napoli, Jovene, 1933, p. 88) chamava a atenção para o fato de que, por trás de cada negócio, há uma racionalidade própria incrustrada no bojo do sistema jurídico: as partes não estipulam contratos pelo mero prazer de trocar declarações de vontade, mas tendo em vista certas finalidades, por conta delas estabelecendo relações recíprocas”.

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personalismo de um julgador por tudo infenso à contrabilidade democrática; ora flatus vocis que nada agrega ao convencimento, racional e sistematicamente ancorado, sobre a pertinência do argumento.

O comportamento das partes deve ser analisado em todo o percurso da

formação, celebração, execução e extinção (caso tenha ocorrido) do contrato. É

primordial verificar se existiu uma constância na forma de atuar de parte a parte, ou

se após determinado evento houve mudança de comportamento e, nesse caso,

como a outra parte agiu diante de tal alteração.

O “comportamento” é relativo a cada parte. Portanto, tem um viés de

subjetividade. Mas os padrões a seguir são objetivos e pautados na regra

estabelecida. A análise do comportamento é objetiva e requer, na interpretação

voltada à decisão, que seja devidamente demonstrado como o comportamento se

deu e a forma de tal demonstração ocorre por meio de uma linguagem competente,

que são as denominadas provas.

Ressalte-se que só pela linguagem se pode ter subsídios para que o

comportamento (como fato) seja revelado, pois ele já aconteceu (fato: particípio

passado do verbo fazer) e não se pode mais tocá-lo. Assim, conhecer a “verdade

dos fatos” é algo inatingível (tendo em vista que metafísico) pelo direito. Portanto,

será necessário um relato dos eventos sociais para que se possa ter fundamento a

constituir um fato jurídico.

Todavia, como sistema (fechado, na teoria de Luhmann), o direito prevê

formas para que tal relato possa ser produzido, ou seja, por meio das provas em

direito admitidas. Nesse sentido, segundo Aurora T. de Carvalho (2012, p. 485), “[...]

a linguagem das provas (em sentido estrito) é o modo pelo qual os fatos (alegados)

do mundo social sustentam-se juridicamente, sendo passíveis de serem

juridicizados, para constituírem-se numa realidade do sistema”.

O comportamento das partes será analisado pelo intérprete aplicador do

direito. Destinatário das provas, ele vai analisá-las à luz das regras do sistema. Não

existe uma única forma de analisá-las, de declarar o conjunto probatório suficiente

ou não. A análise das provas é um processo interpretativo, utilizando, muitas vezes,

os recursos da intertextualidade. Também é um processo individual de cada

aplicador — porém adstrito às regras do sistema, que impõe, dentre outros, que é

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vedado ao aplicador decidir com base em elementos diversos dos constantes na

linguagem das provas em direito admitidas.

Conforme Antônio Junqueira de Azevedo (2005b, p. 252),

[...] interpretar o contrato de acordo com a vontade hipotética objetiva das partes, levando em conta o justo equilíbrio de interesses, nada mais é do que interpretá-lo em suas circunstâncias, conforme a boa-fé objetiva, os usos e a função econômico-social do contrato (consubstanciada no tipo contratual, se o contrato é típico, ou, em si mesma, concretamente, se atípico).227

Embora os contratos complexos demandem, em sua criação, recursos de

linguagem mais sofisticados com a finalidade de dirimir vaguezas e ambiguidades, de

permitir a definição (para aquele contrato) de conceitos técnicos e até de conceitos

simples que poderiam gerar controvérsias,228 na esfera empresarial os contratos

encontram uma fonte normativa relevante, também, nos usos e costumes, no mercado.

Por sua vez, o mercado é um organismo vivo cuja dinamicidade atrai a

informalidade, a atipicidade e a internacionalidade.229 Mas essa dinamicidade não

pode comprometer a segurança jurídica, por isso a tensão latente entre

informalidade e segurança deve ser mitigada com a interpretação conforme padrões

de comportamento advindos dos usos e costumes reiterados e tido como lícitos.

Com efeito, conforme Benacchio (2011, p. 382), “[...] a interpretação por meio

dos usos tem dupla utilidade social, face ao seu caráter de razoabilidade econômica

de um lado; e sua previsibilidade, de outro lado”.

No exemplo de abertura do capítulo, as partes estabeleceram que as

pesquisas com a matéria-prima não poderiam utilizar animais. Conforme relatado

sobre o exemplo, os pesquisadores alertaram as partes que, para indicar os efeitos

de certos elementos que compunham a matéria-prima, partiriam de estudos

realizados no início do século passado e não se teria como afirmar que não tinham

sido utilizados, em tais estudos, animais como cobaias. Ao revelar tal dúvida à

contratante, a contratada agiu em conformidade com a boa-fé objetiva: suspendeu

as pesquisas até que fosse tomada uma decisão de abortar o projeto ou continuar.

As partes se reuniram. Na qualidade de intérpretes operadores, tiveram de utilizar

227 Em parecer fundamentado em Betti, Larenz e Menezes Cordeiro 228 É comum verificar a definição de termos como dia útil, ano calendário, dentre outros. 229 Nesse sentido, vide Martins-Costa (2015, p. 286 et seq.).

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recursos advindos do mercado de pesquisas de substâncias similares para dirimir o

impasse.

O que se verificou é que aquele elemento/substância já tinha sido objeto de

muitos estudos, que seus efeitos eram tidos como notórios havia mais de um século

e que não era objeto da pesquisa nem poderia sê-lo: tal pesquisa seria inútil, pois

todo o mercado desse ramo de atividade, há mais de cem anos, utiliza tal elemento

para aquela função. O uso daquela substância constitui uma boa prática em tal

mercado, é recomendada em razão da segurança da notoriedade de seus efeitos.

Assim, a conclusão das partes, em consenso, foi que a utilização daquela

substância não seria contrária à condição de não utilização de animais nas

pesquisas, inclusive porque a referida condição incide sobre atos do presente e do

futuro, e não sobre atos do passado. Se assim fosse, então seria preciso negar

todas as conquistas e evoluções de tal mercado.

Nesse exemplo, os próprios operadores do contrato enfrentaram uma dúvida

e utilizaram as regras da interpretação pela concreção, analisando o tráfico

comercial, a linguagem técnica das pesquisas — baseadas num comportamento

fundado na boa-fé objetiva (lealdade em revelar a problemática, em buscar

informações técnicas e objetivas sobre a questão) —, na função social (uma das

vertentes da interpretação também diz respeito à necessidade de evolução, abortar

o projeto teria como consequência abrir mão da possibilidade de ter um produto final

com eficiência técnica a ser oferecido aos consumidores) e no equilíbrio econômico

(encerrar o projeto por um motivo em que as partes não tiveram nenhuma ingerência

e, sendo um dado aceito pela comunidade científica há mais de um século, seria

desproporcional). Tal exemplo corrobora o entendimento de que recorrer aos usos e

costumes como uma das formas de concreção, buscando elementos objetivos no

seio negocial quanto à prática de determinado ato, é uma forma de mover a espiral

hermenêutica e interagir com o dinamismo do mercado230.

Com efeito, Forgioni (2015a, p. 136) ressalta que, por brotarem da praxe

mercantil, os usos e costumes sofrem certa “seleção natural”, que é efetuada pelo

não só pelo mercado, mas também pela jurisprudência. Formam um repertório de

230 Comiran (2011, p. 621) assevera que “[...] somente assim, e com o auxílio dos usos, será possível atender à intenção consubstanciada pelas partes (ar.112, CC/2002), sempre analisando as circunstâncias do caso, mas, na sua insuficiência, buscando a solução no modelo consuetudinário incidente naquela hipótese”.

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experiências bem-sucedidas que, ao permitir maior grau de previsibilidade do

comportamento, transforma o mercado em repositório de memórias julgadas, pois

usos e costumes refletem a interação complexa entre texto normativo, atos dos

comerciantes e jurisprudência.

A análise das circunstâncias do caso segundo a lógica do comportamento das

partes e a dos usos e costumes invoca o princípio da boa-fé objetiva. Pode ocorrer

que um uso do tráfico comercial seja, na aparência, contrário à boa-fé objetiva;

nesse caso, em primeiro lugar, isso requer analisar se o padrão outorgado como de

boa-fé objetiva não está fora da caracterização do empresário, da atividade negocial;

isso porque — cabe frisar — trata-se de um padrão do mercado, do comércio, com

todas as implicações que advêm de tal atividade; inclusive a de verificar, na fase de

análise dos riscos, o ramo de atuação da outra parte a fim de medir o alcance de

determinada declaração. Como esclarece Marino (2011, p. 190),

[...] os usos terão maior relevância no âmbito dos contratos celebrados entre empresários, uma vez que é quase sempre inerente à atividade empresarial a cristalização de comportamentos habituais largamente conhecidos por aqueles atuantes nos segmentos empresariais específicos.231

Exemplo citado por Grau e Forgioni (2005, p. 273 et seq.) do uso comercial é

o das cláusulas de não concorrência ou de não restabelecimento. Muito utilizadas

pelo mercado, possuem uma função típica reconhecida por qualquer agente

econômico e que deve ser considerada e orientar a exegese contratual. Sendo a

empresa atualmente encarada também como uma teia de contratos (lato sensu), de

relações mantidas com fornecedores, clientes, empregados, distribuidores etc., a

referida cláusula tem por finalidade permitir que essa organização passe a ser

231 Marino (2011, p. 189) cita Larenz (Derecho civil) em sua crítica à posição de Flume (El negocio jurídico), que entendia que, no caso de indivíduos pertencentes a ramos diversos (comerciantes e não comerciantes, por exemplo) e de usos existentes em um dos ramos, ou de usos diversos de cada um deles, é problemático aplicar tais usos como fator de interpretação. Em geral, só se poderá afirmar que o comportamento habitual existente no âmbito profissional de uma parte é invocável em prejuízo dessa parte, mas não no da parte cujo círculo não contenha tal comportamento. A crítica de Larenz tem por fundamento entender o critério proposto por Flume muito geral, tendo em mente as possibilidades de conhecimento do destinatário da declaração, pois se o destinatário sabe que o declarante pertence a outro ramo negocial, ou se tem motivos para supor que ele possa ter atribuído à declaração sentido distinto, deve averiguar o que o declarante pretendeu dizer, tendo por base as circunstâncias que possa conhecer.

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efetivamente conduzida pelo comprador. Eis por que, de forma consciente, os

agentes econômicos adotam essa cláusula restritiva como uso comercial autêntico.

Na sociedade complexa contemporânea, os usos e costumes se relacionam,

também, com os efeitos da globalização e dos contratos transnacionais, com a

incidência de usos e costumes de localidades distintas232 e com toda a revolução

que a internet e as mídias sociais on-line acarretaram às práticas comerciais. O filtro

aplicado deve ser sincrônico com o mercado. Nos contratos de duração, como

assinalado, o tempo pode carrear a alteração das circunstâncias, a alteração dos

usos e das práticas comerciais; e tais alterações podem estar no campo da

previsibilidade ou na imprevisibilidade, acarretando a análise dos riscos assumidos

ou não — o que foi objeto de considerações anteriores.

4.1.4 A concreção e a linguagem da doutrina

A interpretação fundada na situação concreta, no “levantamento” de todos os

elementos que integraram o sistema contratual complexo requer uma linguagem que

enseje a operabilidade para que a manifestação ética e social do direito se dê no

caso concreto. Por muitas vezes aqui se referiu ao direito como fenômeno

comunicacional e à relevância da linguagem textual e contextual. Mas a versão da

linguagem fática para a linguagem jurídica, que, voltada para a operabilidade, estará

apta à decisão, prescinde de recursos que advêm de um sistema com as aberturas

permitidas (para que não se configure uma algazarra, um vale-tudo, um “tudo-pode”

para a decisão, incorrendo em decisões arbitrárias), como o fez o Código Civil de

2002, em especial por meio das cláusulas gerais.

A concretude desnuda a realidade. A linguagem, que também analisa as

entrelinhas do que não integrou o sistema contratual pactuado, revela os limites (ou

a ausência) éticos que pautaram o comportamento das partes. Convém notar que

causa espanto para alguns a inclusão, em contratos, de regras tais como: “é proibida

a utilização de mão de obra escrava, ou em situação similar, bem como de trabalho

infantil” — em geral incluídas nos contratos que envolvem prestação de serviços.

Entretanto, mais espanto causa deparar — em pleno século XXI e num Estado

Democrático de Direito, em que a dignidade da pessoa humana é um dos valores

232 Forgioni (2015a, p. 142) assevera que “[...] a aplicação do direito brasileiro não pode abraçar princípios diversos daqueles cristalizados em nosso ordenamento jurídico, sob pena de dar lugar a açodado transplante, incompatível com nossa realidade”.

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máximos — com notícias de que empresas de renome no mercado utilizam tais

práticas, ainda que sob contratos coligados (subcontratações).

Também se tornou usual incluir cláusulas relativas à Lei Anticorrupção (Lei n.

12.846/2013), regras de compliance, acerca de eventual incidência de normas do

Conselho de Controle de Atividades Financeiras. É relativamente comum que nas

contratações se inclua que a outra parte tem conhecimento do manual de conduta

da contratante, sobretudo nos contratos transnacionais, em que dada conduta pode

ser aceita em um país, mas não em outro. O que se quer demonstrar com tais

exemplos é que no campo da interpretação dos contratos complexos empresariais

há um movimento pelo resgate da eticidade.

Para Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 245), “[...] o resgate da ética não

significa apenas o anseio do retorno ao período em que a palavra dada afiançava

um compromisso sério, mas também a efetiva imposição de um vetor deontológico

como regra do direito”.

Faz-se necessária uma linguagem que retrate tal resgate ético, que possa

impregnar tal eixo de conduta, que não pode ser outro senão o caminho das

cláusulas gerais a conduzir a interpretação pelo norte da ética.

No universo tão plural e diverso a que se tem referido aqui, a forma de obter tal

recurso ético por meio da linguagem tem de ser intermediada por “tradutores”

preparados para tanto. Faz-se necessário lançar os olhares para a doutrina, para o

intérprete doutrinário. A interpretação do caso concreto não é um ato automático. Os

recursos interpretativos devem vir dos doutrinadores para que estes possam demarcar

os limites da abertura do sistema, para que exerçam a função de instrumentalizar a

abertura cognitiva do sistema. Sem conhecimento, sem análise de casos e precedentes,

sem análise histórica, sem utilização da linguagem da técnica e da ciência, a

interpretação da situação concreta pode vir a ser um “achismo”, um discurso vazio.

Ao tratar da irreversibilidade do pluralismo e do improvável consenso (em

escala mundial) sobre visões de mundo, Bauman (2010. p. 196–7) relata que a

comunicação entre tradições passa a ser o maior problema de nosso tempo: o

mundo globalizado pode ser um mundo onde as tradições impeçam a comunicação.

Daí que sua proposta para tal questão é a arte da conversação civilizada:233

233 O autor explica que, “[...] como o pluralismo é irreversível, um consenso em escala mundial sobre visões de mundo e valores improvável, e toda Weltanschauungen ainda existente, baseada com

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Falar com as pessoas em vez de brigar com elas; entendê-las em vez de repudiá-las ou aniquilá-las como mutantes; incrementar sua própria tradição bebendo com liberdade na experiência de outros grupos, em vez de excluí-los do comércio de idéias. É isso que a tradição própria dos intelectuais, constituída pelas discussões em curso, prepara as pessoas para fazerem bem. A arte da conversação civilizada é algo de que o mundo pluralista necessita com premência. Ele só pode negligenciar esta arte às suas expensas. Conversar ou sucumbir.

O diálogo com a doutrina se faz necessário. O tão falado “diálogo” das fontes

tem que ter um intérprete intermediador, que não pode ser outro senão quem se

incumbe da doutrina. Mas a doutrina não pode exercer um papel simplista. Ávila

(2011, p. 15–6)234 bem retrata essa necessidade:

É preciso, entretanto, chamar a atenção para o fato de que, além de uma virada linguística, é preciso uma virada institucional. Os enunciados doutrinários não podem nem ser genéricos e vagos demais, nem desconsiderar o fato de que eles serão utilizados por instituições reais e pessoas de carne e osso. Não existe o Judiciário ideal, que julga com total transparência e plena eficiência, nem o juiz Hércules, que tem todo o tempo e todo o conhecimento do mundo à sua disposição. Existe apenas o Judiciário real, que tem centenas de milhares de processos para julgar, com deficiência de estrutura e de pessoas, e o juiz real, que tem pouco tempo e, não raras vezes, pouco conhecimento e parca experiência. É precisamente por isso que a doutrina não pode limitar-se a produzir enunciados vagos e imprecisos, nem se circunscrever ao apelo a princípios ou valores fundamentais, como se eles se tornassem realidade por proclamação ou por apologia. Nenhuma ideia vaga e nenhum princípio fundamental se tornam realidade sem a intermediação de instituições e sem o fornecimento de critérios minimamente operacionais que lhes sirvam de orientação. Por essas razões, a doutrina deve fornecer critérios claros e operacionais que possibilitem a passagem dos grandes valores às decisões individuais. Um modelo hermenêutico só serve de modelo se for minimamente operacional. Desse modo, é preciso incluir, nas proposições doutrinárias, dois elementos: elementos institucionais e efeitos sistêmicos. Não se

firmeza em suas respectivas tradições culturais (de maneira mais correta, nas suas respectivas institucionalizações autônomas de poder), a comunicação entre tradições se torna o maior problema do nosso tempo. Ele já não parece mais temporário, não se pode esperar que seja resolvido ‘de passagem’ por uma espécie de conversão maciça, garantida pela marcha incontida da Razão. Em vez disso, é provável que permaneça conosco por muito tempo (a menos que sua longevidade seja abreviada de forma drástica pela ausência de um tônico apropriado). Portanto, o problema clama, com urgência, por especialistas em tradução entre tradições culturais. E coloca-os em lugar dos mais centrais entre os peritos que a vida contemporânea possa exigir. Trocando em miúdos, a especialização proposta se resume à arte da conversação civilizada. Este é, naturalmente, um tipo de reação, ao conflito permanente de valores para o qual os intelectuais, graças às suas habilidades discursivas, estão mais bem preparados”. 234 “Notas sobre o papel da doutrina na interpretação. Conversa sobre a interpretação do direito”, set. 2011.

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pode, por exemplo, sustentar que a interpretação de toda regra depende dos princípios constitucionais e que estes devem ser aplicados mediante ponderação, sem atentar para quem irá fazê-lo e para quais os efeitos que isso irá provocar para a realização do Direito em geral, como insegurança jurídica, desigualdade e ativismo judicial. A doutrina não pode apenas perguntar qual é o sentido de certos textos; deve também indagar como certas instituições, com suas distintas habilidades e limitações, interpretariam certos textos. Essas considerações demonstram que alguma medida de realidade deve ser incluída na atividade doutrinária, sob pena de se construir uma doutrina ideal, mas totalmente irreal.

Sem a intermediação da doutrina que com ela carrega os estudos dos

antepassados, a realidade do presente e a projeção do futuro, não há como ter uma

interpretação que abarque todos os elementos advindos da complexidade atual.

Conforme assinalado no primeiro capítulo, foram séculos que se passaram da divindade,

à racionalidade, à cientificidade, às dúvidas, às críticas. Entender e assimilar a

complexidade como inerente à humanidade requer compreender a evolução do

pensamento.

Contudo, tal momento da sociedade requer a presença de tradutores,

doutrinadores que saibam verter a linguagem do ambiente social, do ambiente

econômico, das diversas experiências cotidianas para a linguagem jurídica, para o

sistema que tem como eixo de comunicação o lícito e o ilícito, a conduta jurídica e a

antijurídica. Vive-se um momento em que o conhecimento é generalizado, porém pouco

aprofundado. Todos sabem pouco de muitos assuntos, com a falsa percepção que

sabem muito de muitas coisas. Sem um aprofundamento das discussões, em breve o

sistema jurídico tradicional, em particular o Judiciário, estará atolado de decisões sem

rigor doutrinário e sem infusões no caso concreto. Ferraz Júnior (2012, p. 221) ensina que

[...] o propósito básico do jurista não é simplesmente conhecer um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento. [...] o que se busca na interpretação jurídica é, pois alcançar um sentido válido não meramente para o texto normativo, mas para a comunicação normativa, que manifesta uma relação de autoridade. Trata-se, portanto, de captar a mensagem normativa, dentro da comunicação, como um dever ser vinculante para o agir humano.

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O diálogo do direito com as circunstâncias concretas requer intermediação de

juristas, cientistas do direito. Como fenômeno comunicacional, o direito não pode

abrir mão disso, sob pena de não ter um resgate da ética, e sim meros

tendencionismos nas decisões. A reflexão sobre temas relevantes pode demandar

tempo, investigação; e somente o pesquisador, o jurista podem investir tempo e têm,

em razão do rigor científico, isenção para tanto. Se a tecnologia saiu dos muros

acadêmicos e foi para as empresas e das empresas para a vida das pessoas

comuns, o cientista do direito também deve integrar cada vez mais a espiral

hermenêutica, cada vez mais utilizar todos os recursos acadêmicos para aplicar aos

casos concretos. Não é à toa que cada vez mais a arbitragem tem sido eleita para

dirimir conflitos decorrentes dos contratos complexos; e são indicados árbitros com o

viés doutrinário, que sabem utilizar os recursos da ciência do direito e aplicá-los ao

caso concreto.

4.2 A Metacontratualidade

A diversidade típica da sociedade contemporânea requer uma dinâmica das

relações, inclusive daquelas contratuais complexas, as quais, como subsistema do

sistema jurídico, abrem-se aos demais sistemas que compõem a sociedade. A inter-

relação dos elementos que compõem o contrato complexo — cabe frisar — não

permite hierarquizar, à primeira vista, se determinado elemento ou dada

circunstância são mais importantes ou relevantes que outro, bem como se

determinado regramento típico tem incidência na relação. Da mesma forma, por se

transitar na área de liberdade negocial, qualquer ingerência heterônoma terá de ser

avaliada, pois se trata de âmbito de autorregramento entre particulares.

É inerente ao processo interpretativo a mobilidade dos elementos que

compõem o sistema contratual complexo, no que se refere a não existir

hierarquização de situações umas sobre as outras. A possibilidade de mobilidade

dos elementos retrata que só a análise da situação concreta será a reveladora do

papel desempenhado por cada um deles, na teia única ou conexa (se coligados) de

elementos ou contratos propriamente ditos (quando coligados). Mobilidade denota

dinamismo que é o ponto de partida para a reconstituição de todo o sistema

contratual complexo.

O método proposto parte da reconstituição dos elementos que estiveram

presentes (por qualquer linguagem, e assim sendo partindo do texto escrito, mas

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também das circunstâncias do caso, em seu sentido amplo) no momento da

celebração do contrato, para, após, reconstituir os elementos que estiveram

presentes na execução e conclusão do contrato. Os elementos foram identificados e

alocados conforme suas funções socioeconômicas (causa concreta).

Também se propõe verificar os limites do conflito (da matéria controversa) e

relacioná-lo com o conjunto do contrato complexo formado pelos elementos que

foram reconstituídos. Entre os dois momentos de reconstituição do conjunto (de

elementos que formam o contrato complexo), foram aplicados os filtros e feitas

ponderações segundo normas autônomas e heterônomas, dentre as quais, as

cláusulas gerais da boa-fé objetiva, da função social e do equilíbrio contratual,

analisando-as pela lógica da complexidade, da liberdade negocial e da utilidade do

negócio pactuado.

Assim, os elementos foram identificados e colocados em suas funções

contratuais. A controvérsia foi identificada. Foi estabelecida a relação desta com os

elementos contratuais que sobre ela tiveram influência. Os elementos relevantes e

os controvertidos foram filtrados, ponderados com base em regras para composição

de conflitos previstas contratualmente e regras gerais (cláusulas gerais) incidentes

nos contratos complexos. Ao se aplicar tal dinâmica, estabeleceu-se a

metacontratualidade, pois os elementos contratuais, os filtros de seleção e as

escolhas foram efetuadas de acordo com o sistema do contrato complexo, donde se

extraíram normas concretas de interpretação para a solução da controvérsia.

Diz-se metacontratualidade, pois se trata de uma dinâmica que, ao final,

estabelece as normas, advindas do próprio sistema contratual complexo, que

deverão reincidir sobre tal sistema. Assim, se o comportamento das partes se

estabeleceu sob determinado padrão, tal padrão vai orientar toda a interpretação

que dele dependa. Se os usos e costumes indicaram um padrão de mercado no qual

determinada forma de pagamento (por exemplo) é habitual, então a referida conduta

será utilizada como padrão. O que é interessante anotar é que a

metacontratualidade pode ter sido definida, ainda que parcialmente, pelas partes,

sobretudo se estas expandiram a autonomia negocial para estabelecer regras de

caráter normativo (o que revela a complexidade normativa do contrato). Nesse

sentido, os contratos quadro, as condições gerais de contratação, desde que

celebradas de forma consensual, com paridade e bilateralidade, poderão ser

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dotados da característica da metacontratualidade, como se fosse uma

metalinguagem de interpretação que incide sobre a linguagem contratual.

Portanto, da relação contratual complexa, por ser uma norma jurídica

concreta (com capacidade de novas concreções, podendo criar normas jurídicas

contratuais dela decorrentes) por meio de atos realizados mediante a concreção,

que implicam na análise da linguagem contratual, das circunstâncias, dos valores do

sistema, extraem-se as normas interpretativas (metanormas) que incidirão para a

interpretação dirigida a dirimir um conflito. A metacontratualidade decorre de uma

análise acurada do caso concreto, em que cada particularidade pode representar um

diferencial no conjunto.

A aplicação das regras metacontratuais reduz as complexidades com base no

que o próprio (sub)sistema contratual complexo elegeu como filtro seletivo. Trata-se

de um desdobramento da ideia de autopoiesis utilizada neste trabalho: é a própria

norma (contratual complexa) criando novas normas (interpretativas) para selecionar

(reduzir) as complexidades e, por meio da comunicação jurídica, admitir o que é

lícito ao sistema jurídico.

Portanto, a metacontratualidade exerce a função de extrair do esquema

contratual complexo as regras em que o intérprete poderá atuar; e exerce, quando

necessário, a função de limitar,235 no âmbito da autonomia privada, com eventuais

(quando necessárias) ingerências da regra imperativa, o terreno da interpretação e,

mais que isso, indicar quais são as metanormas que vão incidir sobre o contrato

complexo.

235 Nesse sentido, Reale (1992 p. 243) afirma que: [...] a liberdade do intérprete fica, em suma, sempre contida nos limites de uma “estrutura objetivada”. A limitação do poder do intérprete não resulta, pois, de eventual deficiência ou carência de meios de pesquisa, mas é uma condição inerente à natureza mesma do ato interpretativo: a atividade interpretativa, em verdade, tem como um de seus princípios essenciais o da fidelidade ao esquema ou estrutura objetivada, em função da qual pode se mover o investigador com relativa liberdade, desde que não desnature ou deforme a estrutura objetivada a que se acha vinculado.

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5 CONTRATOS COMPLEXOS E FORO PARA DECISÕES DE CONFLITOS Os conflitos decorrentes de contratos complexos e dos contratos a eles

coligados podem advir de situações diversas, inclusive daquelas comuns aos não

complexos. A implicação principal que diferencia a interpretação de tais contratos —

cabe frisar — decorre de sua complexidade, da atipicidade, da diversidade de

elementos que afetam a interpretação (que não tem modelo padronizado

legalmente, como ocorre nos contratos típicos). Sua interpretação tem de ser

realizada com base no conjunto desses elementos para que, com o método de

concreção, possam ser extraídas normas de interpretação para incidir sobre tais

contratos — a metacontratualidade.

Em especial na esfera negocial, os particulares têm buscado cada vez mais o

autorregramento. Convém reiterar que, ao se tratar da complexidade normativa, verifica-

se uma tendência crescente a se incluírem nos contratos regras para dirimir conflitos,

não apenas elegendo o foro (judicial ou arbitral), mas também com regras para

autorresolução de conflitos, a exemplo de comitês de resolução, indicação de peritos

para certas questões técnicas ou ainda regras a incidir no processo judicial ou arbitral.

Assim, os particulares tendem a alargar o âmbito de sua atuação negocial para dirimir

conflitos; o que se compatibiliza com o estágio da sociedade contemporânea, em

especial no que concerne às estruturas empresariais e de mercado.

Todavia, nem sempre é possível a autocomposição de controvérsias, além de

haver necessidade de eleger um foro para as disputas decorrentes dos contratos

complexos. Daí ser relevante verificar se a esfera judicial ou a arbitral, ou se ambas,

estão vocacionadas a interpretar tais contratos.

5.1 Esfera judicial para decisão de conflitos decorrent es de contratos

complexos Uma vez apresentado o método, fundado na situação concreta, para

interpretar contratos complexos e uma vez indicadas previamente as características

de tais contratos (ser atípicos, ser de duração, ser lacunosos, ter diversidade de

regramentos, requintados esquemas econômicos e utilização de tecnologia, dentre

outras), cabe ressaltar que, analisando-se o sistema judicial atual, depreende-se que

tal sistema não está vocacionado para dirimir conflitos de tal ordem. Ao buscar

referências na jurisprudência judicial, três situações se apresentaram. (i) Raramente

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um contrato é catalogado como complexo; em geral, a jurisprudência o trata como

misto ou não trata diretamente de sua complexidade, ou ainda deixa de perceber e

analisar todas as vertentes da complexidade (subjetiva, normativa etc.). (ii) A

atipicidade atrai dificuldade em adentrar o regramento jurídico fundamentado no

caso concreto, pois há tendência a buscar um tipo (contratual) que seja aplicável.

Cabe citar o que afirma Penteado (2007a, p. 469):

[...] o contrato atípico raramente é enfrentado. Pode-se falar, nas lides judiciais, de uma freqüente e insistente fuga para o típico, na medida em que muitas vezes opta-se por um regime normativo já conhecido e de larga experiência judicante, em vez de assumir que a figura é atípica e tem regime que precisa ser construído. O atípico é novo e sempre clama por uma solução especial, uma atenção cuidadosa.

(iii) O sistema processual civil é vocacionado para as lides dos contratos

típicos e sem complexidades. O acúmulo de processos, a ausência de varas

especializadas em lides negociais complexas (a despeito de alguns tribunais terem

varas e/ou câmaras especializadas em direito empresarial), o número exorbitante de

processos atribuídos a varas/juiz, câmaras/desembargador denotam que tais

circunstâncias representam um quase impeditivo à análise detalhada e profunda que

tais casos requerem. O tempo despendido entre o ajuizamento da ação e seu

trânsito em julgado é longo demais e pode obstar qualquer solução com viés prático

à lide, pois quando a decisão efetivamente ocorrer o seu resultado poderá não ser

mais útil a nenhuma das partes. Como expõe Faria (1996, p. 163),

Em termos organizacionais, o Judiciário foi estruturado para “administrar” os processos civil, penal e trabalhista, cujos prazos e ritos são incompatíveis com a multiplicidade de lógicas, ritmos e horizontes temporais presentes na economia globalizada. O tempo do processo judicial é o tempo diferido. O tempo da economia globalizada é real, isto é, o tempo da simultaneidade. Além disso, o Judiciário também não costuma dispor de meios materiais nem de condições técnicas para tornar possível a compreensão, em termos de racionalidade substantiva, dos litígios inerentes a um contexto econômico cada vez mais complexo e transnacionalizado. Não é por acaso que as corporações empresariais e financeiras transnacionais fogem deliberadamente dos burocratizados e ineptos tribunais e do direito positivo por eles aplicado. Uma fuga em três dimensões complementares: primeiramente, tendem a acatar seletivamente as distintas legislações nacionais, optando por concentrar seus investimentos apenas nos países onde elas lhes são mais favoráveis; em segundo lugar tendem a se valer de instâncias alternativas especializadas, seja no âmbito governamental, sob a forma de

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autoridades administrativas independentes com poder de decisão, com prerrogativas de regulação, controle e fiscalização e com capacidade técnica tanto para apreciar litígios quanto para aplicar sanções; seja no âmbito privado, por meio de mediações e arbitragens; e, por fim, tendem a acabar criando, elas próprias, as regras de que necessitam e a estabelecer mecanismos de auto-resolução dos conflitos

Para configurar o acima exposto visando ilustrar o tratamento da

jurisrpudência aos contratos complexos e aos contratos a eles coligados (e sem o

objetivo de fazer uma análise estatística de casos julgados), apresentam-se quatro

casos concretos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.

5.1.1 Caso 1: contrato de locação coligado a contratos relacionados com contratos

complexos de reorganização societária (cisão) O primeiro caso considerado para análise é o Recurso Especial n. 1.206.723/MG

(2010/0139018-0),236 cujo relator foi o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, cujo

recorrente foi a empresa Comardi Comercial Ltda. e cujo recorrido foi a Companhia

Brasileira de Distribuição. No texto da ementa da decisão do Recurso se lê:

Locação. Ação revisional de aluguel. Qualificação jurídica de atos e fatos. Análise que não esbarra nos óbices das súmulas 5 e 7/STJ. Protocolo de cisão, acordo de acionistas e locação. Contratos coligados. Função econômica comum. Art. 19 da lei do inquilinato. Instrumento para manutenção do equilíbrio econômico do contrato. Situação original da avença não alterada por turbulências econômicas. O preço do aluguel caracteriza elemento essencial do ajuste, justificando, no contexto complexo do negócio jurídico, a sua desvinculação das cotações de mercado. A presente ação revisional não se adstringe ao restabelecimento do equilíbrio econômico inicial, ao contrário, reflete aspiração da empresa locatária de obter a mudança do critério de determinação do valor do aluguel, distanciando-se dos parâmetros originalmente estabelecidos. Falta de legítimo interesse de agir. A pretensão da empresa locatária de reduzir o valor pactuado para o aluguel, sem relevante modificação do contexto econômico, revela comportamento contraditório e desleal, incompatível com a manifestação de vontade acertada na celebração do contrato de locação. Conduta que viola o princípio da boa-fé objetiva. Recurso especial provido para julgar extinta a demanda revisional, sem exame de mérito, por carência da ação.

236 Consta do anexo 1 deste trabalho o inteiro teor da decisão monocrática do recurso especial 1.206.723/MG (2010/0139018-0) e a ementa da decisão do agravo regimental no recurso especial 1.206.723. O inteiro teor do referido recurso encontra-se disponível em <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201001390180&dt_publicacao=11/10/2012>.Outros recursos e medidas judiciais foram apresentados em face da referida decisão, que foi mantida.

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O caso em epígrafe demonstra a existência de contratos complexos de

reorganização societária em que se estabeleceu um contrato de locação de

estabelecimento empresarial, atribuindo, em consenso e consonância com o que

constou nos demais contratos, um determinado valor locatício estipulado em função

de tais negócios societários. Ficou claro que o contrato de locação (e a atribuição do

valor locatício) estava coligado ao plexo de contratos de cunho societário. A

empresa locatária (recorrido no recurso especial) pretendia, por meio da ação

originária, rever o valor da locação, alterando os critérios de determinação do valor

da locação e invocando a previsão legal contida no artigo 19 da Lei n. 8.245/1991.

Mantendo a sentença de primeira instância que acolheu o pleito do locatário,

o Tribunal de Minas Gerais (TJMG) proferiu acórdão com a seguinte ementa:

Ação revisional de aluguel — preço de mercado — contratação diversa — não existência — prova pericial — critérios objetivos — prevalência. O amparo legal a viabilizar o manejo da ação revisional de aluguel está no art. 19 da Lei 8.245/91, devendo a questão ser dirimida consoante as cláusulas contidas no contrato de locação efetivamente firmado pelas partes. 2. O laudo pericial, produzido mediante o indispensável estudo técnico do imóvel e do mercado imobiliário, baseado em critérios objetivos, deve prevalecer como instrumento hábil a sustentar a fixação do valor da locação, mormente quando não apontado consistente vício capaz de inquinar referida prova técnica (fls. 1.223).

Portanto, o TJMG desconsiderou o sistema contratual complexo que

fundamentou a atribuição do valor locatício ao imóvel com base apenas — e tão

somente — na Lei 8.245/1991 (Lei de Locações), como se o contrato de locação

fosse isolado dos demais. Igualmente, avaliou se tratar de relação contratual com

objeto único, sem qualquer outro elemento que pudesse vir a influenciar a avença.

Entretanto, por se tratar de contrato coligado aos contratos de cunho

societário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), revertendo a decisão do TJMG,

entendeu que a pretensão do locatário de alterar o critério de atribuição do valor

locatício (sem que tenha ocorrido um desequilíbrio econômico-financeiro em relação

à situação inicial do contrato que foi gerada em uma trama complexa de contratos)

contraria a boa-fé objetiva. Nesse caso, o STJ privilegiou o entendimento de

coligação contratual a um contrato complexo, afastando a incidência de artigo da lei

locatícia, pois entendeu que o valor da locação integrava a finalidade comum de

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toda a coligação contratual complexa. Constou da decisão monocrática do Recurso

Especial (fls. 3 e 4) que:

9. Do compulsar dos autos, dessume-se que para formalização da retirada do sócio Arnaldo dos Santos Diniz da Companhia Brasileira de Distribuição (Grupo Pão de Açúcar) foram elaborados o protocolo de cisão, o acordo de acionistas e o contrato de locação, para a empresa cindida, de imóveis que, na cisão, foram transferidos à empresa COMARDI COMERCIAL LTDA., ora recorrente, constituída por Arnaldo dos Santos Diniz, o sócio retirante. 10. Nesse contexto, a interdependência dos referidos contratos é evidente, haja vista a unidade dos interesses representados, principalmente econômicos, constituindo o que a doutrina convencionou denominar de contratos coligados. 11. [...] 12. Logo, embora seja possível visualizar de forma autônoma cada uma das figuras contratuais entabuladas, exsurge cristalina a intervinculação dos acordos firmados, revelando a inviabilidade da revisão estanque e individualizada de contratos que estão coligados por uma função econômica comum. [...] 31. Na situação sub examine, o preço do aluguel compunha um elemento essencial do ajuste, justificando, no contexto complexo do negócio jurídico, a sua desvinculação das cotações e de mercado. Nessa linha, a postura da empresa locatária ao pleitear a redução do valor pactuado, sem relevante alteração superveniente da conjuntura econômica, reflete comportamento contraditório e injurídico, incompatível com a manifestação de vontade acertada no momento em que firmado o contrato de locação.

Vale ressaltar que, se não fosse pelo STJ, não se teria tal decisão, pois o

TJMG não havia privilegiado o entendimento do caso segundo a relação contratual

complexa, que inclui a coligação contratual. A fim de reformar a decisão monocrática

proferida em recurso especial, o locatário apresentou recursos e medidas judiciais

diversos, dentre os quais: agravo regimental no recurso especial, embargos de

declaração, embargos de divergência, agravo nos embargos de divergência, recurso

extraordinário (ao STF) e ação rescisória. Mas não logrou êxito.

Convém dizer que, além de discussões de caráter formal, discutiu-se a

eventual incidência das súmulas 5 e 7 do STJ.237 No voto vencedor prolatado no

Agravo Regimental no Recurso Especial, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho

assim asseverou (fls 13):238

237 Súmula 5: “A simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”. Súmula 07: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 238Para consultar o referido voto, ir para: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201001390180&dt_publicacao=11/10/2012>.

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16. A análise proposta, acerca do contrato de locação e de sua vinculação a uma teia de acordos que se perfaz num negócio jurídico complexo, mas de um só e único objetivo econômico, não esbarra nos óbices impostos pelas Súmulas 5 e 7 deste Tribunal Superior, pois as consequências jurídicas decorrem da qualificação do ato de vontade que motiva a lide, não dependendo de reexame fático-probatório, ou de cláusulas do contrato. 17. O reexame que se veda na via especial cinge-se à existência ou correção dos fatos delimitados na sentença ou no acórdão recorrido. Nesse passo, é perfeitamente possível a esta Corte Superior, no julgamento do RESP, conferir nova qualificação jurídica a um fato, uma vez que sua errônea definição pode impedir que sobre ele incida a correta regra jurídica. O debate, portanto, fica adstrito a matéria de direito e não de fato.

As súmulas 5 e 7 do STJ — como se lê adiante — representam óbices para

que questões contratuais, em especial as complexas, sejam analisadas. O caso-

objeto dessa análise denota como tal questão é controvertida entre os tribunais de

justiça e entre os próprios ministros. Conforme se depreende do voto da ministra

Laurita Vaz, o Recurso Especial interposto pela locadora teve seu seguimento

negado pelo terceiro vice-presidente do TJMG. Ante tal negativa, foi interposto o

competente agravo de instrumento distribuído ao ministro Napoleão Nunes Maia

Filho, que de início negou provimento por decisão monocrática mediante aplicação à

espécie dos óbices das súmulas 5 e 7 do STJ. Apenas mediante agravo regimental

foi que uma decisão unipessoal determinou a subida do recurso especial para um

exame com mais escrutínio.

Para ilustrar a controvérsia, cumpre consignar que a citada ministra — que foi

vencida — assim votou:239

Nessas condições, a meu sentir, com a devida vênia ao i. relator e aos ministros que o acompanharam, na espécie não se está diante de "valoração da prova" coligida aos autos, hipótese que, em tese, pode ser albergada nos restritos contornos do recurso especial. In casu, a meu sentir, a pretendida inversão do julgado implicaria, necessariamente, o reexame das provas carreadas aos autos e de cláusulas dos citados contratos – locação e acordo de acionistas —, o que não se coaduna com a via eleita, consoante os enunciados das Súmulas n.º 05 e 07 do Superior Tribunal de Justiça.

239 A íntegra do voto e o inteiro teor do referido recurso estão disponíveis em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201001390180&dt_publicacao=11/10/2012>.

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Divergindo também do voto do ministro relator, o ministro Gilson Dipp assim

fez constar em seu voto vista:240

Cuidando-se de discussão no âmbito do controle de legalidade infraconstitucional, e em jurisdição que inadmite a apreciação ou valorização de provas que não constitua a estrita valorização jurídica delas, tenho que a decisão do Ministro Relator, com a devida vênia, não pode prevalecer. Com efeito, afirma-se, como assentou o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em passagem transcrita pela agravante, que “não há qualquer elemento de prova a demonstrar que o preço do aluguel tenha sido estabelecido com a finalidade de quitação de quotas e/ou ações cedidas ao sócio dissidente”. Ora, para chegar a conclusão diversa ou contrária, primeiro seria necessário reavaliar todo o conjunto da prova pelo seu conteúdo, e depois, admitir que isso possa ser suscitado contra o acórdão local como valorização jurídica da prova. Mesmo quando as circunstâncias dos negócios envolvendo o sócio dissidente a quem tocou a empresa locadora, e que ora é agravado, tenham sido pactuados do modo pretendido pela decisão agravada, o âmbito de jurisdição do Superior Tribunal de Justiça longe está de admitir uma nova apreciação de fatos e provas, tal qual propôs o Ministro Relator. Basta reler os excertos que fiz transcrever acima, todos eles, a meu juízo, intensamente relacionados com os fatos da causa, para justificar claramente a recusa da intervenção deste Juízo Superior, sendo, por conseguinte, evidentemente inadequado afirmar como valorização jurídica o que, na essência, efetivamente não o é. Se as partes, avençaram contratos com determinadas características, as quais levaram o Tribunal de Justiça a declarar que: “pela interpretação que se faz da cláusula “1.1” do Acordo de Acionistas, transcrita na f. 974, pode-se concluir que a referência ali contida apenas veio garantir a locação mediante o pagamento de aluguéis mínimos, em obediência ao que foi estabelecido no contrato de locação, nada mais que isso”. Revela-se induvidoso que o que o Tribunal de Justiça fez foi interpretar cláusula contratual, aliás, duas vezes, porque interpretou o acordo de acionistas e, por conta desse, o contrato de locação. De outra parte, ao afirmar a interconexidade ou coligação de contratos firmados pelas partes (nomeadamente, cisão de empresas, acordo de acionistas e contrato de locação), disso procurando extrair a vinculação jurídica e pois a dependência da locação ao acordo de acionistas, o voto do Ministro Relator, a meu juízo, desatende frontalmente a proibição de interpretar os contratos tanto quanto a de discernir neles os aspectos fáticos que teriam a qualidade de produzir os efeitos fáticos para isso.

Portanto, resta evidente a controvérsia acerca de tal matéria, o que corrobora

o entendimento de que a análise de contratos complexos pelo Judiciário encontra

240 A íntegra do voto e o inteiro teor do referido recurso estão disponíveis em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201001390180&dt_publicacao=11/10/2012>.

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dificuldades, pois não há dúvida de que, em primeira e segunda instâncias, não se

privilegiou a análise sistemática fundamentada da situação concreta para o caso em

questão. Por sua vez, no Tribunal Superior não existe entendimento uníssono

quanto à possibilidade de se analisarem os contratos em razão da incidência das

súmulas 5 e 7.

Por fim, cabe consignar a morosidade do Judiciário. O tempo entre a

autuação do recurso especial (27/9/2010) e a decisão dos Embargos de Declaração

nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com

Agravo (11/11/2014)241 soma mais de quatro anos de tramitação na esfera superior.

5.1.2 Caso 2: contratos complexos (relacionados com a revenda de combustíveis

automotivos) e coligados — exceção de contrato não cumprido242 O segundo caso considerado para análise se refere ao Recurso Especial

985.531/SP (2007/0221223-2), cujo relator foi o ministro Vasco Della Giustina

(desembargador convocado do TJ/RS), cujo recorrente foi a Companhia Brasileira

de Petróleo Ipiranga e cujo recorrido foi o Autoposto Copacabana Ltda. e outros. Eis

a ementa:

Recurso Especial. Embargos à execução. Ofensa ao art. 535 do CPC não configurada. Ausência de prequestionamento. Súmulas 282 e 356 do STF. Dissídio jurisprudencial. Cotejo analítico Necessidade. Contratos coligados. Unidade de interesses econômicos. Relação de interdependência evidenciada. Exceção de contrato não cumprido. Título executivo. inexigibilidade.

O presente caso tem como tema os contratos relacionados com a revenda de

combustíveis automotivos, um dos exemplos de contratos complexos e coligados no

presente trabalho. Verifica-se, pelo relato do caso no voto do ministro Vasco Della

Giustina, que, dentre o plexo de contratos firmados entre a revenda e a distribuidora,

foi celebrado um contrato de financiamento de valores (sendo a distribuidora a

241 Conforme informação disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4578945>. Acesso em: 7 dez. 2016). 242 Constam do anexo 2 deste trabalho a ementa e acórdão da decisão monocrática do recurso especial n. 985.531/SP (2007/0221223-2), bem como a ementa da decisão do embargos de divergência no recurso especial n. 985.531/SP (2007/0221223-2). O inteiro teor do voto do recurso especial 985.531/SP (2007/0221223-2) encontra-se disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200702212232&dt_publicacao=28/10/2009>.

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financiadora e a revenda a financiada) para que a revenda destinasse todo o referido

valor financiado na atividade de comercialização dos combustíveis. Os valores

deveriam ser pagos, pela revenda à distribuidora, em 48 parcelas. Mas, após o

pagamento de 24 parcelas, a revenda deixou de efetuar os pagamentos, e a

distribuidora, então, executou tais valores em juízo.

A revenda apresentou embargos à execução, alegando que deixou de efetuar

os pagamentos porque a distribuidora deixou de cumprir com suas obrigações

advindas dos contratos coligados ao contrato de financiamento. Essa tese foi

acatada em parte na primeira instância. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)

reformou a sentença para acolher por completo a tese de exceção de contrato não

cumprido, que foi mantida pelo STJ, em voto prolatado com remissões diversas à

doutrina e a precedentes, conforme se pode verificar na ementa (vide ANEXO 2) e

no website do STJ, com a íntegra do voto. No voto do ministro relator,243 destacam-

se as seguintes passagens:

O Tribunal de origem, com base no exame das cláusulas contratuais, consignou que o contrato de financiamento se destinou, exclusivamente, à aquisição de produtos da Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga, havendo sido firmado com o propósito de incrementar a comercialização dos produtos de sua marca no Posto de Serviço Ipiranga, obrigando-se o Posto revendedor a aplicar o financiamento recebido na movimentação do Posto de Serviço Ipiranga , conforme se extrai da leitura do voto condutor, merecendo destaque, por elucidativo, os seguintes trechos: Na espécie sob exame, a conexão dos contratos está evidenciada. Note-se que no contrato de financiamento, na cláusula n. 1, ficou estabelecido que “A IPIRANGA concede ao REVENDEDOR um financiamento no valor indicado no campo 14 que lhe é entregue do acordo com o disposto no campo 15, obrigando-se o REVENDEDOR a aplicar o financiamento recebido na movimentação do Posto de Serviço Ipiranga situado no endereço indicado no campo 11.” (fls. 28 dos autos da execução) (grifo não original). Tal conexão ainda pode ser analisada à luz da manifestação de vontade das partes na cláusula n. 3, do contrato, em que se estabelece que “O REVENDEDOR recebe o presente financiamento como meio de auxilio da IPIRANGA para incrementar a comercialização dos produtos de sua marca no Posto de Serviço Ipiranga”. (fls. 28 dos autos da execução). As cláusulas acima transcritas mostram que a contratação do financiamento se destinou, exclusivamente, à aquisição de produtos da Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga (fl. 1.128). A partir de tais premissas, o acórdão recorrido extraiu a conclusão de que as prestações

243 Disponível no site: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200702212232&dt_publicacao=28/10/2009>.

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assumidas pelas partes nos contratos de financiamento e de fornecimento de produtos são interdependentes (fl. 1.130), considerando evidenciada a conexão entre os contratos. [...] Na esteira desse entendimento, considerando que a finalidade das partes ao celebrar o contrato de financiamento, no caso concreto, era, em última análise fomentar a atividade principal de distribuição e revenda de combustíveis, mostra-se evidente a relação de interdependência entre os contratos, a ensejar a possibilidade da argüição da exceção de contrato não cumprido, nos termos dos artigos 1.092 do Código Civil de 1916, 582 e 615, inciso IV, do Código de Processo Civil, independentemente da existência de cláusula expressa

Nesse caso, foi privilegiado o entendimento esposado ao longo do trabalho de

que os efeitos do inadimplemento de determinado contrato devem ser analisados

com base no conjunto de todo o sistema contratual complexo.

5.1.3 Caso 3: contrato complexo entre empresas — aplicação de regras do Código

de Defesa do Consumidor de forma equivocada pelo tribunal de origem244 O terceiro caso em análise é o Agravo em Recurso Especial 218.620/RJ

(2012/0170749-0). Seu relator foi ministro Marco Buzzi, enquanto o agravante foi

a Bankamerica International Investment Corporation e o agravado, a companhia

Esta Comércio e Participações S/A e Outros. Esse caso demonstra como a

interpretação de contratos complexos requer a análise devida do caso concreto e

análise devida de qual regramento legal deve ser aplicável (na hipótese de

incidência obrigatória).

O Tribunal de Justiça do Rio do Janeiro (TJRJ) ignorou as circunstâncias do

caso concreto e aplicou, ainda que indiretamente, regras extremamente protetivas

advindas do Código de Defesa do Consumidor; ou seja, regras sem vínculo algum

com a realidade do contrato, que trata da compra e subscrição de ações, de

acionistas e de penhor de ações, ou seja, de relações contratuais complexas típicas

de empresários. Constou da decisão monocrática de lavra do ministro relator Marco

Buzzi que:

244 Consta do anexo 3 deste trabalho o inteiro teor da decisão monocrática do agravo em recurso especial n. 218.620/RJ (2012/0170749-0), bem como a ementa da decisão do agravo interno no agravo em recurso especial 218.620/RJ (2012/0170749-0). O inteiro teor do voto do agravo interno no agravo em recurso especial 218.620/RJ (2012/0170749-0) está disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201201707490&dt_publicacao=28/10/2016>.

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203

Na espécie, não se verifica a utilização de qualquer enunciado sumular ou jurisprudência dominante pertinente na decisão monocrática de fls. 3067/3099. O que se verifica, isso sim, é que, embora não tenha ressaltado a incidência da legislação consumerista ao caso concreto, a decisão monocrática se valeu de precedentes do próprio Tribunal local (fl. 3085) e de decisões monocráticas e Colegiadas proferidas em sede de recurso especial relacionadas a casos envolvendo, em sua maioria, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (fls. 3086/3098). Utilizar precedentes desta Corte Superior proferidos sob a ótica de uma legislação protetiva (CDC) ou sobre contratos que possuem legislação, peculiaridades e exames casuísticos que lhes são inerentes é, com a devida vênia ao Colegiado local, não utilizar precedente algum. Não é demais lembrar que, no Tribunal, a regra é o julgamento Colegiado, de modo que, para a prolação de julgamento monocrático, os requisitos previamente estabelecidos pela lei devem ser preenchidos. Apenas para corroborar, cumpre destacar que enquanto o caso dos autos versa sobre contratos complexos entabulados entre pessoas jurídicas não vulneráveis (compra e subscrição de ações, de acionistas e de penhor de ações), os precedentes elencados na decisão monocrática de fls. 3067/3099 versam sobre cláusulas abusivas em contratos de plano de saúde e em contratos de (i) cessão de passe de jogador de futebol, (ii) locação de imóveis, (iii) arrendamento mercantil e (iv) contrato de financiamento para construção de obra de fornecimento de energia.

Verificando-se o que consta na ementa e no voto do Agravo ao Recurso

Especial, como na ementa do Agravo Regimental no Agravo ao Recurso Especial,

percebe-se a desconexão entre a realidade do caso concreto e o teor do julgamento

no TJRJ, que tratou o contrato em questão como contrato em que uma das partes

fosse hipossuficiente sem analisar a situação concreta de forma ampla. Tal

dissonância entre o pactuado e o julgado pelo tribunal foi corrigida, sob mãos fortes,

pelo STJ, que o fez repelindo a invocação de precedente e/ou de regras protetivas

em contratos claramente complexos celebrados entre empresas.

5.1.4 Caso 4: franquias — cláusula compromissória245

O quarto caso considerado aqui como objeto de analise é relativo ao Recurso

Especial n. 1.602.076/SP (2016/0134010-1), cujo relator foi a ministra Nancy

Andrighi, cujo recorrente foi a Odontologia Noroeste Ltda. e cujo recorrido foi

Gougrupo Odontológico Unificado Franchising Ltda. Na ementa se lê

245 Encontra-se no anexo 4 a ementa e acórdão do recurso especial n. 1.602.076/SP (216/0134010-1). Inteiro teor disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201601340101&dt_publicacao=30/09/2016>.

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Recurso Especial. Direito civil e processual civil. Contrato de franquia. Contrato de adesão. Arbitragem. Requisito de validade do art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96. Descumprimento. Reconhecimento prima facie de cláusula compromissória “patológica”. Atuação do poder judiciário. Possibilidade. Nulidade reconhecida. Recurso provido.

Os contratos de franquia — convém frisar — são complexos e firmados entre

empresários. A despeito de serem padronizados, inclusive em razão da necessidade

da minuta de o contrato integrar a circular de oferta e franquia, trata-se de relação

em que a liberdade contratual está presente: o franqueado não está adstrito a

contratar com determinado franqueado. Antes mesmo de iniciar a relação

propriamente dita, ele toma conhecimento de todos os detalhes da relação de

franquia e pode optar por celebrar ou não o contrato de franquia.

Nesse sentido, a eleição da arbitragem por meio da cláusula compromissória

deve ser considerada válida, sem a necessidade de meios protetivos específicos

(cláusula em apartado, em negrito, anuência específica), inclusive em razão de o

franqueado ter recebido a circular de oferta de franquia onde deveria constar tal

previsão. É claro, não se trata de contrato cuja assinatura é imediata, sem reflexões

mais detidas. Ao contrário, a legislação impõe um prazo mínimo de dez dias entre o

recebimento de todas as informações relativas à franquia (a minuta do contrato é

uma das informações que deve ser entregue) para que o franqueado possa avaliar e

negociar, com o franqueador, as condições específicas da relação a ser celebrada.

Entretanto, não foi esse o entendimento da ministra Nancy Andrighi, relatora

do Recurso Especial referido acima. Pelo que consta no processo, o TJSP

reconheceu a validade da referida cláusula — julgando o feito extinto, sem

julgamento de mérito — por maioria de votos em decisão de agravo de instrumento

ante a decisão interlocutória de primeira instância a qual afastou a preliminar de

contestação que argumentava pela validade da cláusula compromissória em

contrato de franquia. Confira-se a ementa da decisão:

COMPETÊNCIA ABSOLUTA Ação anulatória de circular de oferta de franquia e contrato de franquia cumulada com pedido de indenização. Existência de cláusula compromissória. Preliminar de incompetência absoluta da Justiça Comum Estadual deduzida na defesa. Rejeição em despacho saneador. Contrato de franquia celebrado entre empresários, afastando a incidência da legislação de consumo. Validade da cláusula compromissória. Extinção do processo, sem resolução do mérito declarada (CPC, art. 267, VII) Agravo provido.

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205

O Recurso Especial foi interposto em face da referida decisão. Com base em

precedentes do próprio Superior Tribunal, a ministra afastou a incidência das regras

do Código de Defesa do Consumidor sobre a relação de franquia. Todavia, seu

entendimento quanto à incidência do disposto no art. 4º, § 2º da Lei de Arbitragem

foi o seguinte:246

Compulsando os autos, percebe-se que a controvérsia se iniciou com a aplicação do mencionado § 2º do art. 4º da Lei de Arbitragem pelo juízo singular, que acarretou a declaração da cláusula compromissória. Assim, neste ponto específico da controvérsia, é necessário avaliar: (a) se a franquia é um contrato de adesão a atrair os requisitos do mencionado dispositivo legal; e (b) se, por não se tratar de uma relação de consumo, o art. 4º, § 2º, da Lei de Arbitragem ainda é aplicável aos contratos de franchising. [...] Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96.

No tocante à questão da competência do Judiciário para dirimir tal questão

relativa à validade de cláusula compromissória em contrato de franquia, assim

entendeu a ministra:247

Como regra geral, a jurisprudência desta Corte Superior indica a prioridade do juízo arbitral para se manifestar acerca de sua própria competência e, inclusive, sobre a validade ou nulidade da cláusula arbitral. Toda regra, porém, comporta exceções para melhor se adequar a situações cujos contornos escapam às situações típicas abarcadas pelo núcleo duro da generalidade e que, pode-se dizer, estão em áreas cinzentas da aplicação do Direito. Obviamente, o princípio kompetenz-kompetenz deve ser privilegiado, inclusive para o indispensável fortalecimento da arbitragem no País e sua aplicação no REsp 1.602.696-PI é irretocável. Por outro lado, é inegável a finalidade de integração e desenvolvimento do Direito a admissão na jurisprudência desta Corte de cláusulas compromissórias “patológicas” — como os compromissos arbitrais vazios no REsp 1.082.498/MT mencionado acima e aqueles que não atendam o requisito legal específico (art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96) que se está a julgar neste momento – cuja apreciação e declaração de nulidade podem ser feitas pelo Poder Judiciário mesmo antes do procedimento arbitral. São, assim, exceções que permitem uma melhor acomodação do princípio competência-competência a

246 Conforme voto (inteiro teor da decisão) disponível: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201601340101&dt_publicacao=30/09/2016>. Acesso em: 7 dez. 2016. 247 Conforme voto (inteiro teor da decisão) disponível: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201601340101&dt_publicacao=30/09/2016> Acesso em: 7 dez. 2016.

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situações limítrofes à regra geral de prioridade do juízo arbitral. Levando em consideração todo o exposto, o Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral “patológico”, i. e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula instituidora da arbitragem, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. Forte nessas razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial, para reformar o acórdão recorrido e restabelecer a decisão interlocutória do Juízo de 1º grau de jurisdição (e-STJ fl. 324), que declarou a nulidade da cláusula arbitral contida no contrato celebrado entre recorrente e recorrida, por ausência dos requisitos legais previstos no art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96.

Conforme o que foi exposto em tópico próprio, o contrato de franquia, ainda

que considerado pelos tribunais como contrato de adesão, não pode ser

considerado como contrato em que existe uma assimetria de tal sorte que torna o

franqueado vulnerável. O sistema de franquia requer a colaboração recíproca. Não

se pode confundir a necessidade de observância a regras para manter a

uniformidade da utilização de uma marca e de todos os elementos que constituem

tal sistema com uma fórmula que divide as partes entre fortes e fracos

economicamente, como ocorre ao se considerar o franqueado como vulnerável ou

hipossuficiente, ou ainda ao não distinguir contratos de adesão entre empresários e

entre não empresários. Nesse sentido, afastar uma cláusula contratual de

compromisso arbitral parece contrário a tal entendimento e desfavorece o sistema

de franquia ao invés de fortalecê-lo.

Convém aqui o que diz Thiago Rodovalho (2016, p. 166):

[...] em se tratando de contrato de adesão empresarial ou interempresarial (= relações empresariais, caracterizadas pelo escopo comum de ambas ou todas as partes envolvidas pela “busca do lucro” e presumidamente “simétricas”) sem que se faça presente de fato e in concreto a disparidade de forças (inexistência de hipossuficiência ou vulnerabilidade) — a regra e a presunção devem ser no sentido da validade da cláusula arbitral inserta nesse contrato de adesão, não incidindo, pois, a regra especialmente protetiva da Lei de Arbitragem, art. 4º., § 2º.

Aparentemente, a decisão do STJ não analisou o caso concreto de forma a

considerar todos os seus elementos. Apenas ao se analisar quem são as partes é

que se verifica se tratar de franquias de serviços de odontologia, ou seja, serviços

especializados próprios de uma profissão regulamentada por lei que requer

procedimentos específicos. Além de se tratar de um empresário, o objeto da franquia

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207

(serviços odontológicos) implica franqueados cujo padrão de conduta e

comportamento reconhece cláusulas contratuais específicas. Nesse sentido, não

aparenta existir nessa situação uma assimetria quanto ao acesso às informações

contratuais, que ensejaria a nulidade de tal cláusula. Assim, com o devido respeito,

entende-se que a referida decisão não privilegiou a situação concreta e a

complexidade própria do contrato de franquia.

5.1.5 Considerações sobre os julgados analisados

Nem sempre é possível averiguar se os elementos e as circunstâncias do

caso foram devidamente ponderados apenas pela análise de julgados e acórdãos

em repertórios de jurisprudência. Mas se sabe que a sobrecarga do Judiciário é,

muitas vezes, um óbice para que lides complexas sejam analisadas em detalhe. Nos

casos 1 e 3, o STJ reformou a decisão do Tribunal de Justiça estadual respectivo.

Em ambos os casos não havia sido considerada a complexidade e/ou coligação.

É com preocupação que se verifica que apenas o STJ demonstre tal

entendimento, ainda mais com a vigência das súmulas 5 e 7, que representam

entraves para que os recursos a tal tribunal sejam admitidos. As súmulas 5 (“A

simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”) e 7 (“A

pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”) do STJ põem

em xeque a possibilidade de o sistema ser capaz de ponderar, por meio das

cláusulas abertas — em especial da boa-fé objetiva, da função social e do equilíbrio

contratual —, as questões contratuais complexas.

Se os artigos que sustentam o ingresso dos princípios mobilizados por tais

cláusulas estão no ordenamento jurídico, e se a aplicação de tais princípios impõe

uma interpretação a eles conforme, então negar ao órgão superior a possibilidade de

interpretar o contrato ou reexaminar as provas (em especial porque se propõe uma

interpretação fincada na concretude) aparenta uma contradição do sistema cuja

solução deveria tender à interpretação e análise do conjunto probatório.

Contudo, não é o que se verifica na habitualidade. Após as mudanças

derivadas do Código Civil de 2002, não há como o Judiciário, em nenhuma

instância, deixar de apreciar o disposto no contrato para cotejar com o sistema.

Analisar a situação em concreto como na forma ora proposta significa outorgar

transparência, consistência e coerência ao processo decisório, indicando critérios,

aclarando paradigmas utilizados e parâmetros indicativos dos valores do sistema.

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Fazer isso requer retomar, ou melhor, reforçar, o diálogo com a doutrina, o que

demanda dedicação e disponibilidade de tempo.

Não se perde de vista a realidade de nosso país, com milhares de processos

à espera de julgamento, mas não se pode buscar uma solução para tal questão que

o Judiciário enfrenta, impondo regras, tais como as que emanam das Súmulas 5 e 7,

que impedem que processos que requeiram a análise da aplicação e da

interpretação do contrato em conformidade com a lei, pelo Superior Tribunal de

Justiça, não tenham tal acesso a tal órgão. Esse impedimento parece ferir a própria

razão de ser de tal órgão superior, prevista na Constituição Federal.

Além disso, ainda se verifica nos tribunais judiciais uma tendência ao

protecionismo exacerbado da parte que, aos olhos de tais órgãos, possa ser

considerada vulnerável. O julgado apresentado como caso 4 demonstra

preocupação para todos os que militam na área do direito contratual ao se verificar a

decisão que considerou nula a cláusula compromissória arbitral num contrato de

franquia. Considerar empresários como vulneráveis numa relação complexa como é

a do sistema de franquias parece contrariar todo esse sistema focado na

colaboração, no fortalecimento de uma rede de franquias, por todos que a integram.

Aliado à inaptidão do Judiciário em lidar com o tempo real que o mundo atual

e globalizado requer e às dificuldades de um sistema atolado e obstruído por um

número de processos superior à sua capacidade,248 tal protecionismo, por vezes

exacerbado, impacta na convivência entre os sistemas jurídico, econômico e político.

Dentre outros efeitos desse impacto, o particular, em especial o empresário que

celebra contratos complexos, passa a buscar outras formas de composição, seja de

autocomposição, seja pela via arbitral. Convém consignar que tais considerações

não são direcionadas ao juiz ou à sua capacidade técnica de decisão. São

direcionadas — isso sim — ao Judiciário, ao processo judicial. Mesmo com sua

248 Conforme as colocações de Faria (1996, p. 163) acima transcritas, o Judiciário não tem aptidão para atender às lides no tempo que precisam ser atendidas, que é o tempo real; além disso, não dispõe de meios técnicos (inclusive peritos, contadores, pesquisadores) para auxiliar na interpretação de tais lides. Quem milita perante o Judiciário pátrio bem conhece o tempo e os percalços que, por exemplo, uma perícia técnica pode envolver, entre nomeação de perito (que nem sempre tem a aptidão técnica para aquele caso, mas é o perito de nomeação do juiz), apresentação de quesitos, indicação de assistentes, a perícia propriamente dita, apresentação de laudo, impugnação de laudo, laudo complementar, todos estes atos permeados por juntadas de petição, remessa do processo ao juiz, que devolve para as partes se manifestarem. Noutros termos, o processo judicial tem o seu tempo diferido. As decisões estão em discordância com o tempo que a sociedade contemporânea complexa, em especial no campo negocial, exige.

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reforma — vide Lei 13.105/2015 —, ainda não supre as necessidades reais de

questões envolvendo contratos complexos.

5.2 Eleição da arbitragem para disputas relativas a c ontratos complexos

A interpretação dos contratos complexos na forma como proposta aparenta

estar mais propensa a ser aplicada pelos árbitros, ou seja, na esfera arbitral.249 Para

Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 97), a expertise do árbitro constitui o grande

diferencial no tema, ressaltando que a arte da hermenêutica, sobretudo nos

contratos complexos e atípicos, é difícil, exige — para seu êxito — ingredientes

como prudência, experiência, sabedoria e familiaridade cultural com a matéria-objeto

da avença e seu mercado e/ou indústria.

Wald (2005, p. 15), ao tratar da arbitragem e dos contratos empresariais

complexos, assevera que:

Efetivamente, é preciso que, em tais processos, tenhamos julgadores especializados, conhecedores da realidade econômica e técnica do contexto no qual vão decidir a causa, dispondo, outrossim, do tempo necessário para examinar todas as peculiaridades de cada caso que pode ser de dias, semanas, meses e até anos. Há necessidade de uma justiça sob medida, que conheça o passado e o presente dos negócios e possa prever razoavelmente o futuro, ou seja, as conseqüências da decisão proferida. Cabe-lhe também considerar as situações peculiares das partes, o espírito no qual os contratos foram assinados e ainda a evolução do meio ambiente, ou seja, do contexto no qual estão sendo executados, para garantir a justiça equilibrada com certa dose de equidade, sem sair das linhas gerais estabelecidas no acordo firmado entre as partes.250

249 Grossi (2010 p. 77) afirma que “A práxis econômica (em primeira linha, sobretudo, as grandes transnational corporations, e, sobretudo, norte-americanas ou de irradiação norte-americana), com o auxílio de aparelhados consultores jurídicos (em primeira linha, sobretudo, as grandes empresas profissionais, as law firms, e sobretudo, norte-americanas ou de irradiação norte-americana), produzem para os seus objetivos e no seu âmbito de um direito novo, o qual, na eventualidade de uma controvérsia, não encontrará tutela e, portanto, possibilidade de aplicação graças aos juízes dos Estados e às suas sentenças, mas sim graças a árbitros e a decisões arbitrais, ou seja, a juízes privados aceitos pelas partes desde o momento de subscrição do contrato. Árbitros, ou seja, juízes privados, quase sempre grandes juristas escolhidos devido a sua preparação, cultura, sensibilidade e munidos de uma grande prestígio em nível internacional”. 250 Wald, no artigo “A arbitragem e os contratos empresariais complexos” (2005, p. 15) expõe que: “Essa função altamente construtiva do árbitro se distingue, pois, da desempenhada pelo Poder Judiciário, tanto pelas exigências dos clientes, como pela necessidade de compreender a visão dos problemas de cada um deles e de conciliar as pretensões de ambos, considerando suas respectivas perspectivas. Há, pois, uma diferença entre o juiz e o árbitro no modo de julgar os conflitos entre as partes. A escolha da arbitragem pelos interessados revela que querem ser julgados por alguém que tenha experiência nos negócios, tendo um modo próprio de fazer prevalecer a justiça, dando ao direito maior flexibilidade”.

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Ante problemas muitas vezes incontornáveis que o Judiciário impõe251 —

morosidade, publicidade dos atos como regra (tendo em vista que o sigilo do

processo é exceção), dificuldades próprias do engessamento do sistema na

necessidade de perícia técnica, ausência de varas especializadas por assuntos e

atolamento de processos que dificultam ao juiz da causa uma dedicação de tempo a

causas de maior complexidade252 —, verifica-se, conforme Cahali e Rodovalho

(2016, p. 256), que estudos recentes feitos em grandes empresas revelam a

preferência maior (e crescente) pela utilização da arbitragem como meio adequado

para resolver certos tipos de controvérsias empresariais (conflitos societários e obras

complexas de construção civil).

Dentre as características da arbitragem, destacam-se: informalidade — da

adaptação dos procedimentos à conveniência das partes —, flexibilidade das regras,

opção de escolhas de câmaras, confidencialidade, economia de tempo na obtenção

de decisão, possibilidade de nomeação dos árbitros com base em sua

especialidade, experiência, cultura, tempo disponível para dedicação ao assunto e

confiança que a parte deposita na pessoa que deverá julgar a avença (NANNI, 2014,

p. 96–7). Eis aí diferenciais em relação à corte estatal que a colocam como mais

adequada a tais contratos.

A interpretação do contrato complexo fundada na concreção — na análise do

caso concreto — e com pautas de interpretação visando à metacontratualidade para,

a partir de metanormas, interpretar o contrato (donde tais metanormas foram

extraídas) é tarefa que requer conhecimento, dedicação e disponibilidade, além de

meios técnicos à disposição. Se assim o for, então a via arbitral se mostra a melhor

via a ser eleita para dirimir conflitos decorrentes de contratos complexos.

251 Timm e Rodrigues (2009 p. 74) dizem que o “Poder Judiciário é ineficaz para dirimir lides complexas em tempo hábil e possui características próprias, tais como a publicização de seus atos, que não se pode evitar a fim de priorizar o interesse das partes. Não se deve esquecer ainda que a escolha dos árbitros especialistas permite uma maior acuidade da decisão. 252 Para Giovanni Ettore Nanni (2014, p. 231), “Da fuga para o juiz, cabe falar hoje em fuga do juiz. Diante da admissão de um árbitro para dirimir conflitos, da possibilidade de prática de atos pelos próprios privados, como notificação, resolução do contrato, a existência pluralista de organismos que decidem com base em seus próprios códigos deontológicos ou entidades como a Justiça Desportiva e a Bolsa de Valores, vê-se que a lei e o juiz ficarão para os casos extremos. O paradigma jurídico, portanto, que passara da lei ao juiz, está mudando, agora, do juiz ao caso. A centralidade do caso — é este o eixo em torno do qual gira o paradigma jurídico pós-moderno”.

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CONCLUSÃO

A complexidade é inerente à humanidade. Há muito se discute a

diferenciação entre universais e singulares, entre o geral e o específico, assim como

se discute o transitar da diversidade entre tais polos. Entre os séculos que dividiram

o culto absoluto ao divino e a desconstrução típica da pós-modernidade, muito se

avançou para entender a sociedade em todas as suas possibilidades. De tal modo,

não basta chegar à lua: de alguma forma, esse feito e o conhecimento dele derivado

devem ser aplicados à humanidade; não basta que os satélites detectem a

localização de aeronaves: tal tecnologia deve servir para que o traçado dos

caminhos possa melhorar a mobilidade; não basta a escrita no papel: os

documentos e suas informações devem estar acessíveis à consulta não importa a

hora nem o lugar. Muitos seriam os exemplos para demonstrar como a sociedade

contemporânea é inquieta e o quanto as atividades empresariais fizeram cair os

muros do conhecimento científico para que seus efeitos chegassem às portas dos

cidadãos comuns, em forma de facilidades — tecnologias — que forjam a

complexidade efetiva.

As negociações tipificadas pela legislação ou pelo tráfico social dão lugar a

requintadas estruturas, em que se combinam diferentes tipos negociais e/ou se

criam novos conceitos, novos esquemas econômicos. A sociedade contemporânea

não aceita paradigmas estanques e anacrônicos e tende a alargar o âmbito negocial.

Os contratos complexos passam a integrar o âmbito negocial.

Visto que a complexidade é exponencial, corre-se o risco de se retornar à

torre de Babel, por isso a sociedade se organiza em seus sistemas. Os sistemas —

convém frisar Luhmann — são operativamente fechados e cognitivamente abertos.

Nessa lógica, os sistemas jurídico, político e econômico se organizam em seus

próprios códigos. São autopoiéticos: norma jurídica cria norma jurídica por meio de

norma jurídica, que tem por função distinguir o licito e o ilícito. Ainda assim,

comunicam-se por meio de acoplamentos estruturais que ocorrem intermediados

pela linguagem.

O contrato denota o acoplamento entre o sistema jurídico e o sistema

econômico. O contrato complexo impõe a necessidade de criar maneiras de acoplar

tais sistemas com uma linguagem diferenciada, com estruturas que permitam a

diversidade, mas que incluam formas de reduzir a complexidade que dela advém,

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por meio de canais de seleção próprios do sistema jurídico, com aberturas e

mobilidade que carreie os valores do ordenamento para o âmbito privado. O direito

—reitera Robles — é um fenômeno comunicacional; daí que lhe importa não só o

texto escrito, mas também o conjunto do que, apesar de não ser escrito, seja

traduzível em linguagem.

A linguagem é fundamental à interpretação de contratos, em especial dos

complexos, em razão da atipicidade, da variedade de elementos que os compõem.

Como muitas vezes os contratos complexos incorporam questões técnicas, isso

impõe a necessidade de uma tradução de tal linguagem técnica em linguagem

jurídica, bem como utiliza o recurso da intertextualidade com outros ramos de

conhecimento. A linguagem utilizada nos contratos complexos deve buscar mitigar

os ruídos de linguagem (em particular, os decorrentes da vagueza e ambiguidade).

A ideia de complexidade contratual (que inclui os contratos complexos e os

contratos a ele coligados) deve ser concebida como sistema, pois carregam

pluralidade de elementos dotados de unidade (em um único contrato ou em vários

contratos coligados). A caracterização do contrato como complexo segue critérios da

complexidade subjetiva, volitiva, normativa e objetiva que inclui a complexidade

econômica e tecnológica, sem perder de vista que os contratos complexos, em

geral, são de duração. Além disso, por envolverem multiplicidade e serem

influenciados pelo tempo, geralmente os contratos complexos não abrangem em seu

programa todas as vicissitudes. Há lacunas que impõem a necessidade de

estabelecer confiança recíproca das partes com a colaboração e readequação

contínuas à realidade. Assim, uma maioria expressiva são contratos relacionais.

Em geral, as faces da complexidade não atuam isoladamente. A

complexidade é verificada no conjunto da situação concreta.

A complexidade subjetiva demonstra a tendência a parcerias e fusões de

centros de interesse, como ocorre com as joint ventures e os consórcios. Também

pode decorrer das disposições imperativas que impõem a solidariedade, como é o

caso da cadeia de fornecedores prevista no Código de Defesa do Consumidor (na

eventualidade de existir um contrato de consumo na cadeia de contratos coligados

ao contrato complexo). A complexidade volitiva decorre das manifestações de

vontade que podem ocorrer num mesmo contrato, em especial nos de duração.

A complexidade normativa amplia o âmbito da autonomia privada: percebe-se

um movimento do particular, nas relações simétricas, de se autorregulamentar, seja

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por meio de cláusulas de renegociação, de contratos-quadro, de negócio jurídico

processual ou de compromisso arbitral, dentre outros. Certo é que o particular

percebeu que, quanto mais fugir das decisões emanadas de órgãos públicos, mais

poderá manejar as suas escolhas.

A complexidade objetiva relaciona-se com a ideia de atipicidade, também

calcada na liberdade contratual. A complexidade objetiva acarreta a pluralidade de

elementos, com diversos regramentos incidentes, o que gera a necessidade de a

interpretação ser focada na situação concreta.

Não há dúvidas de que o mercado e a práxis econômica atuam para a criação

de esquemas econômicos que, somados à avidez por novas tecnologias, forçam o

sistema jurídico a criar formas de contratação que culminam em contratos

complexos e em coligação contratual. A coligação contratual requer contratos unidos

por força de lei ou de convenção entre as partes, por um propósito supracontratual,

uma causa concreta. Ela implica efeitos na categorização, na interpretação, nos

planos de validade e de eficácia dos contratos, ensejando muitas discussões

doutrinárias e jurídicas, em particular no tocante à aplicação de penalidades, de

eventual efeito “dominó” na hipótese de inadimplemento e/ou de rescisão de um dos

contratos coligados.

A coligação contratual é um fenômeno crescente, pois riqueza gera riqueza,

mercado gera mercado. Assim, no sistema contratual complexo, é habitual a

combinação de contratos coligados com os complexos — como é o caso das

franquias, dos contratos de infraestrutura e daqueles relativos à revenda de

combustíveis. A interpretação dos contratos complexos e dos a ele coligados não

parte de modelos prontos, pois requer método que privilegie a situação concreta.

Para tanto, estabelecem-se premissas de interpretação.

Os intérpretes do contrato complexo são: os intérpretes operadores (partes),

que são os que interpretam a norma autônoma para operacionalizá-la; o intérprete

julgador e o intérprete doutrinador. A interpretação dos contratos complexos não

pode seguir um sistema piramidal, hierarquizado, estático e deve partir de elementos

que se encontram na situação concreta e têm mobilidade — ou seja, transitam na

realidade.

As normas concretas advindas do programa contratual devem ser

interpretadas de forma interligada e dinâmica, respeitando a liberdade negocial,

contemplando a abertura do sistema, por meio dos princípios, das cláusulas gerais e

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dos conceitos jurídicos indeterminados. As cláusulas gerais da boa-fé objetiva, da

função social dos contratos e do equilíbrio contratual devem ser vistas e aplicadas à

luz da complexidade dos contratos, da liberdade concedida aos particulares, da

utilidade, da confiança (credibilidade) aplicada ao mercado.

A causa dos contratos, tida como causa concreta: razão prática do contrato

complexo e identificação da causa que conecta os contratos a eles coligados, é

determinante para interpretar tais sistemas contratuais complexos. Isso porque

revelam a função prática da complexidade e atuam com mobilidade de cláusula

geral, alocando os elementos conforme suas funções na complexidade.

Também há de ter como premissa que a incompletude é inerente à

complexidade. É impossível catalogar todas as possibilidades que decorrem de tal

pluralidade. Daí a integração ser prática habitual e própria da interpretação dos

contratos complexos.

A distinção entre contratos complexos e coligados deve ser efetuada de forma

dinâmica com base em coordenadas, pois, quando ligados por um propósito

supracontratual, integram o mesmo sistema. Contudo, os efeitos são diversos entre

elementos numa mesma unidade contratual e em pluralidade contratual.

A interpretação dos contratos complexos e dos coligados requer que se

extraia, da própria relação concreta, as normas de interpretação, o que se denomina

metacontratualidade.

A interpretação dos contratos complexos se inicia antes da celebração do

contrato, com a aproximação das partes, na fase pré-negocial. Nesse momento,

dentre outras questões, as partes (como intérpretes operadores) se avaliam

reciprocamente, avaliam os riscos envolvidos, interpretam em perspectiva as

possíveis vicissitudes para, então, elaborar o programa contratual.

As normas interpretativas poderão constar do programa contratual; mas

também são criadas ao longo da relação contratual, pois o contrato, ao ser

executado por seus “atores”, cria novas normas: a autopoiesis da realidade

contratual (norma contratual criando norma contratual), que não utiliza,

necessariamente, a linguagem jurídica habitual, mas, em geral, uma linguagem

compreensível a cada parte, ou ao menos para aquele “ator” que executa total ou

parcialmente as obrigações advindas do programa contratual.

Pela sua atipicidade e multiplicidade de elementos, os contratos complexos

não permitem uma relação (integral) de identidade com tipos contratuais, razão por

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que não é possível encontrar a solução mediante uma atividade automatizada. O

intérprete julgador terá de analisar os elementos contidos na situação concreta,

incluindo os que advenham das circunstâncias do caso, as regras particulares e a

(eventual) incidência de normas cogentes, além de tratar das incompletudes próprias

de tal relação.

A interpretação do contrato complexo deve ser efetuada mediante a

concreção como método hermenêutico, que deve partir da reconstrução dos

elementos, dos eventos e das circunstâncias da formação do contrato, de suas fases

de operacionalização para cumprimento de suas obrigações e, se for o caso,

eventos pós-contratuais. Tal análise permitirá formar uma linguagem que atribuirá os

significados competentes, permitindo a decisão acerca do objeto da interpretação:

uma controvérsia advinda do contrato.

O referido método utiliza a linguagem contratual em alinhamento com o

sistema jurídico, vinculando a interpretação ao problema de forma não linear e

flexibilizando as operações de abertura do sistema para alcançar a

metacontratualidade, constituída das normas que foram extraídas do sistema

contratual complexo para, sobre ele, reincidirem visando à solução do conflito.

Esse método propõe a reconstituição do contrato complexo por meio de

pautas (tópicos) em dois momentos: o da formação do contrato e o da

operacionalização. A análise de tais circunstâncias pela lógica temporal do momento

da celebração do contrato é fundamental para preservar o momento de sua gênese

e verificar, inclusive, se ocorreu alguma patologia em tal momento e, se sim, se é

curável ou se fere de morte o contrato.

As pautas para a análise da situação concreta do momento da formação do

contrato envolvem, por exemplo, a catalogação dos elementos que identificam as

partes indicando os fatores de confiança estabelecidos entre as mesmas, dos

elementos que constituem o objeto e que denotam a natureza da complexidade, que

indicam o esquema econômico, dentre outros.

Tais elementos devem ser catalogados segundo sua função socioeconômica,

revelada pela causa concreta, bem como pelas demais pautas propostas, para então

ser confrontados com as eventuais normas imperativas incidentes. Também devem

ser filtrados, canalizados e ponderados por meio de utilização de cláusulas gerais,

sobretudo a da boa-fé, da função social e do equilíbrio contratual. O filtro deve ser

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baseado na efetividade e na realidade concreta, e as ponderações devem levar em

consideração o ambiente negocial.

A análise das circunstâncias que envolveram o momento da celebração do

contrato permite analisar o passado (em relação ao momento da interpretação) e,

com base na interpretação, estabelecer uma sincronia. Assim, conforme os atos de

operacionalização (execução) do contrato complexo, tem-se que o filme do momento

da criação do contrato está revelado, a causa do contrato está identificada. Assim, o

intérprete (julgador) deve iniciar um processo hermenêutico dinâmico, retomando os

caminhos trilhados pelos operadores do referido contrato, para analisar a forma

como interpretaram as disposições contratuais a fim de cumprir suas obrigações,

confrontando com as circunstâncias que se revelaram ao longo do tempo — entre a

criação do contrato, sua execução e a identificação da controvérsia/conflito —, com

as normas heterônomas eventualmente incidentes e com os princípios contratuais

(por meio das cláusulas gerais).

As pautas para a verificação da situação concreta da operacionalização do

contrato envolvem a verificação se, entre os programas contratuais previstos e os

executados, ocorreram distorções, contradições, inadimplementos; se existiram

incompletudes e como foram tratadas. Envolvem a verificação dos (eventuais)

comportamentos das partes que podem ser identificados como complementares à

disposição contratual inaugural e que se demonstraram como prática habitual entre

as partes, bem como aqueles que podem ser identificados como contrários ao

disposto no contrato inaugural. Enfim, envolvem a análise de eventual alteração na

base objetiva do contrato, da identificação de ocorrência de circunstâncias

extracontratuais e devem delimitar o conflito estabelecido.

As circunstâncias do caso servem para filtrar o comportamento das partes, o

papel social que estas representam, o ambiente econômico e social em que se

desenvolveu o contrato e a função econômica deste. Isso permite formar um vetor

de concreção. Também devem ser concebidas como postulado fático normativo.

O comportamento das partes deve ser analisado em todo o percurso da

formação, celebração, execução e extinção (se esta chegou a ocorrer) do contrato.

Ressalte-se que deve se esperar um comportamento empresarial (que visa à

circulação de riquezas com lucros) e que não se pode idealizar um comportamento

guiado por benemerência e favores.

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Na esfera empresarial, o filtro a ser aplicado deve ser sincrônico com o

mercado, pois os usos e costumes, na sociedade complexa contemporânea,

também se relacionam com os efeitos da globalização e dos contratos

transnacionais, com incidência de usos e costumes de localidades distintas, bem

como com toda a revolução que a internet e as mídias sociais acarretaram às

práticas comerciais.

Nos contratos de duração, o tempo pode carrear a alteração das

circunstâncias, a alteração dos usos e das práticas comerciais; e tais alterações

podem estar no campo da previsibilidade ou imprevisibilidade, acarretando a análise

dos riscos assumidos ou não.

A interpretação fundada na situação concreta, no “levantamento” de todos os

elementos que integraram o sistema contratual complexo, requer uma linguagem

que enseje a operabilidade para que a manifestação ética e social do direito se dê

no caso concreto. Eis por que os recursos interpretativos devem vir, também, dos

doutrinadores, para que exerçam a função de instrumentalizar a abertura cognitiva

do sistema.

Os doutrinadores são os grandes facilitadores da arte da conversação

civilizada, do diálogo da pluralidade de fontes com a realidade, que podem propiciar

uma virada institucional e um resgate ético, ao oferecer critérios para a interpretação

do caso concreto, das medidas de ponderação e de aplicação de cláusulas abertas

para o âmbito negocial. Assim, conforme asseverado ao longo deste trabalho, o

método da concreção para que se possa extrair do sistema complexo contratual as

normas para interpretação da (mesma) relação contratual pressupõe identificar os

elementos e os alocar em suas funções contratuais, delimitar a controvérsia e

estabelecer sua relação com os elementos contratuais que sobre ela tiveram

influência.

Contudo, a análise de casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça de

contratos complexos (e dos contratos a eles coligados) demonstra como a atividade

judiciária, com todos os conhecidos problemas que a afetam, inclusive a ausência de

sincronia entre a decisão judicial definitiva e a realidade negocial, dificulta uma

análise detalhada do caso concreto. Verifica-se, no sistema judicial, que raramente

um contrato é catalogado como complexo (sob uma análise ampla da

complexidade); a jurisprudência trata tal contrato como misto ou não trata

diretamente de sua complexidade. A atipicidade atrai uma dificuldade em adentrar o

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regramento jurídico (advindo da análise do caso concreto) aplicável, pois há uma

tendência à busca de um tipo (com regramento legislado) que seja aplicável. Além

disso, o sistema processual civil, em especial as súmulas 5 e 7 do Superior Tribunal

de Justiça, são verdadeiros entraves para que questões relevantes atinentes aos

contratos complexos sejam aí julgados.

A interpretação dos contratos complexos com base na concreção — na

análise do caso concreto com pautas de interpretação visando à

metacontratualidade para, pelas metanormas, interpretar o contrato (donde tais

metanormas foram extraídas) — é tarefa que requer conhecimento, dedicação e

disponibilidade. Não por acaso, atrai a eleição da arbitragem para dirimir seus

conflitos. Noutros termos, a interpretação dos contratos complexos requer que se

extraiam, da relação contratual complexa mesma, as regras de sua interpretação —

a metacontratualidade —, as quais decorrem da autopoiesis (norma jurídica

contratual gerando norma jurídica interpretativa contratual) fundamentada no âmbito

da autonomia privada, na liberdade contratual e alinhada nos valores do sistema

jurídico. Assim, os contratos complexos e sua interpretação revelam um circuito

próprio de produção do direito característico da sociedade contemporânea, que

congrega muitos elementos e roga por soluções úteis, sincrônicas, técnicas e éticas.

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235

Anexo 1 – RECURSO ESPECIAL 1.206.723/MG

RECURSO ESPECIAL Nº 1.206.723 - MG (2010/0139018-0) RELATOR: MINISTRO

NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO RECORRENTE: COMARDI COMERCIAL LTDA

ADVOGADO: ROBERTO CORREA DA SILVA BLESER E OUTRO(S)

RECORRIDO: COMPANHIA BRASILEIRA DE DISTRIBUIÇÃO ADVOGADOS:

OSMAR MENDES PAIXÃO CÔRTES E OUTRO(S)

GUILHERME GOMES PEREIRA E OUTRO(S) LUIZ CARLOS LOPES MADEIRA E

OUTRO(S)

DECISÃO

LOCAÇÃO. AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DE

ATOS E FATOS. ANÁLISE QUE NÃO ESBARRA NOS ÓBICES DAS SÚMULAS 5 E

7/STJ. PROTOCOLO DE CISÃO, ACORDO DE ACIONISTAS E LOCAÇÃO.

CONTRATOS COLIGADOS FUNÇÃO ECONÔMICA COMUM. ART. 19 DA LEI DO

INQUILINATO. INSTRUMENTO PARA MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO

ECONÔMICO DO CONTRATO. SITUAÇÃO ORIGINAL DA AVENÇA NÃO

ALTERADA POR TURBULÊNCIAS ECONÔMICAS. O PREÇO DO ALUGUEL

CARACTERIZA ELEMENTO ESSENCIAL DO AJUSTE, JUSTIFICANDO, NO

CONTEXTO COMPLEXO DO NEGÓCIO JURÍDICO, A SUA DESVINCULAÇÃO

DAS COTAÇÕES DE MERCADO. A PRESENTE AÇÃO REVISIONAL NÃO SE

ADSTRINGE AO RESTABELECIMENTO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO

INICIAL,AO CONTRÁRIO, REFLETE ASPIRAÇÃO DA EMPRESA LOCATÁRIA DE

OBTER A MUDANÇA DO CRITÉRIO DE DETERMINAÇÃO DO VALOR DO

ALUGUEL, DISTANCIANDO-SE DOS PARÂMETROS ORIGINALMENTE

ESTABELECIDOS. FALTA DE LEGÍTIMO INTERESSE DE AGIR. A PRETENSÃO

DA EMPRESA LOCATÁRIA DE REDUZIR O VALOR PACTUADO PARA O

ALUGUEL, SEM RELEVANTE MODIFICAÇÃO DO CONTEXTO ECONÔMICO,

REVELA COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO E DESLEAL, INCOMPATÍVEL

COM A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE ACERTADA NA CELEBRAÇÃO DO

CONTRATO DE LOCAÇÃO. CONDUTA QUE VIOLA O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

OBJETIVA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARA JULGAR EXTINTA A

DEMANDA REVISIONAL, SEM EXAME DE MÉRITO, POR CARÊNCIA DA AÇÃO.

1) Trata-se de Recurso Especial interposto por COMARDI COMERCIAL LTDA, com

fundamento na alínea a do art. 105, III da Constituição Federal, no qual se insurge

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236

contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim

ementado:

AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL — PREÇO DE MERCADO —

CONTRATAÇÃODIVERSA — NÃO EXISTÊNCIA — PROVA PERICIAL —

CRITÉRIOS OBJETIVOS — PREVALÊNCIA. O amparo legal a viabilizar o manejo

da ação revisional de aluguel está no art. 19 da Lei 8.245/91, devendo a questão ser

dirimida consoante as cláusulas contidas no contrato de locação efetivamente

firmado pelas partes. 2. O laudo pericial, produzido mediante o indispensável estudo

técnico do imóvel e do mercado imobiliário, baseado em critérios objetivos, deve

prevalecer como instrumento hábil a sustentar a fixação do valor da locação,

mormente quando não apontado consistente vício capaz de inquinar referida prova

técnica (fls. 1.223).

2) Aduz a recorrente infringência aos arts. 19 da Lei 8.245/91; 112 e 422 do

CCB/2002. Sustenta, em síntese, que o Tribunal local, ao acolher a pretensão

revisional para mensurar o aluguel com base no valor de mercado, desprezando o

valor contábil do imóvel, pautou-se exclusivamente no contrato de locação firmado

entre as partes, deixando de considerar que o referido instrumento integra um

negócio jurídico complexo, formado por uma série de contratos que regulam a cisão

parcial de uma empresa e a forma de pagamento do sócio que se retirou.

3) Pugna seja provido o Recurso Especial para que se reconheça que a autora não

detém legítimo interesse para propor a Revisional de Aluguel, sendo carecedora do

direito de ação, ou para que seja julgada improcedente a pretensão revisional por

ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.

4) Foram apresentadas contra-razões às fls. 1.288/1.310.

5) De início, insta destacar que a solução da presente contenda parte da premissa

de discernir a natureza do acordo de vontade celebrado e, com isso, aferir os efeitos

jurídicos irradiantes.

6) Frise-se, por oportuno, que a análise proposta, acerca da natureza da contrato de

locação e de sua vinculação a uma teia de acordos que se perfaz num negócio

jurídico complexo, não esbarra nos óbices impostos pelas Súmulas 05 e 07 deste

Tribunal Superior, pois as conseqüências jurídicas decorrem da qualificação do ato

de vontade que motiva a lide, não dependendo de reexame fático-probatório, ou de

cláusulas do contrato.

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237

7) O reexame que se veda na via especial cinge-se à existência ou correção dos

fatos delimitados na sentença ou no acórdão recorrido. Nesse passo, é

perfeitamente possível a esta Corte Superior, no julgamento do Recurso Especial,

conferir nova qualificação jurídica a um fato, uma vez que sua errônea definição

pode impedir que sobre ele incida a correta regra jurídica. O debate, portanto, fica

adstrito a matéria de direito e não de fato.

8) A corroborar o aludido entendimento, colaciona-se o seguinte precedente:

Recurso especial. Não ofende o princípio da Súmula 7 emprestar-se, no julgamento

do especial, significado diverso aos fatos estabelecidos pelo acórdão recorrido.

Inviável é ter como ocorridos fatos cuja existência o acórdão negou ou negar fatos

que se tiveram como verificados (AgRg no EREsp. 134108/DF, Rel. Min. EDUARDO

RIBEIRO, Corte Especial, DJU 16.08.1999).

9) Do compulsar dos autos, dessume-se que para formalização da retirada do sócio

Arnaldo dos Santos Diniz da Companhia Brasileira de Distribuição (Grupo Pão de

Açúcar) foram elaborados o protocolo de cisão, o acordo de acionistas e o contrato

de locação , para a empresa cindida, de imóveis que, na cisão, foram transferidos à

empresa COMARDI COMERCIAL LTDA., ora recorrente, constituída por Arnaldo dos

Santos Diniz, o sócio retirante.

10) Nesse contexto, a interdependência dos referidos contratos é evidente, haja

vista a unidade dos interesses representados, principalmente econômicos,

constituindo o que a doutrina convencionou denominar de contratos coligados.

11) Com efeito, o quadro negocial revela que o imóvel, objeto da Ação Revisonal

subjacente, foi transferido à empresa do sócio retirante, conforme pactuado no

protocolo de cisão , e locado à Companhia Brasileira de Distribuição, nos termos

previamente estabelecidos no acordo de acionistas , assegurando a possibilidade da

empresa cindida continuar a exercer suas atividades nos imóveis transferidos, onde

estão instaladas grandes lojas, bem como garantiu ao sócio dissidente um

rendimento certo, representado pelo valor do aluguel acertado na ocasião, com

esteio em percentual de rendimento, limitado por um preço mínimo.

12) Logo, embora seja possível visualizar de forma autônoma cada uma das figuras

contratuais entabuladas, exsurge cristalina a intervinculação dos acordos firmados,

revelando a inviabilidade da revisão estanque e individualizada de contratos que

estão coligados por uma função econômica comum.

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238

13) Cumpre, outrossim, destacar que o patrimônio vertido para a empresa, que

atualmente ostenta a razão social Comardi Comercial Ltda, foi avaliado com esteio

em critérios contábeis, consoante expressamente fixado no protocolo de cisão,

concebido para perfectibilizar a retirada do sócio Arnaldo dos Santos Diniz do Grupo

Pão de Açúcar.

14) Dest'arte, tomando-se em conta que as partes optaram, quando da cisão

empresarial, pela adoção do critério contábil para a avaliação dos bens vertidos para

o sócio retirante, não parece lógico que o valor estipulado a título de aluguel,

acertado no mesmo conjunto negocial, refletisse, unicamente, o preço locatício de

mercado.

15) Nesta esteira, vale frisar que, consoante disposto nos arts. 17 e 18 da Lei

8.245/91, não há empeço à livre pactuação do valor do aluguel que, a depender das

particularidades e das convenções negociais, pode fugir do parâmetro usual de

mercado.

16) A seu turno, o art. 19 da Lei do Inquilinato, ao regular a possibilidade de revisão

judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado, consagrou a adoção da

teoria da imprevisão no âmbito do direito locatício, oferecendo às partes contratantes

um instrumento para a manutenção do equilíbrio econômico do contrato.

17) Cumpre esclarecer que ao se interpretar a Lei 8.245/91 é importante visualizar o

contexto histórico e ter em mente que o legislador, com o receio de que convulsões

de ordem político-econômica pudessem resultar em superveniente e imprevisível

alteração das bases iniciais do contrato, acarretando excessiva onerosidade para

uma das partes e lucro desmedido para a outra, estabeleceu a regra inserta no art.

19 como meio de viabilizar o restabelecimento do equilíbrio contratual originário.

18) A aplicação do texto da lei não deve violar a razão de ser da norma jurídica, a

fim de se preservar a mens legis que justamente inspirou a sua criação.

19) Assim, adotando uma interpretação normativa sistemática e teleológica, é

forçoso concluir que a intervenção do Poder Judiciário no contrato de locação,

regido pela autonomia de vontade, por meio da Ação Revisional, não tem a simplista

finalidade de adequar o acordo, legitimamente firmado, aos padrões e valores de

mercado.

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239

20) No caso dos autos, depreende-se que a equação econômica inicialmente

observada não foi modificada por turbulências econômicas supervenientes a

justificar a aplicação do principio norteador da Ação Revisional, qual seja: a

recuperação do equilíbrio contratual vergastado por elementos imprevisíveis.

21) Outrossim, importa frisar que, por extrapolar os seus limites, a Ação Revisional

não comporta discussões sobre eventual desproporcionalidade originária do

contrato: essa matéria é vencida e superada.

22) Partindo das premissas expostas, é de fácil conclusão que a Ação Revisional

subjacente não se adstringe ao restabelecimento do equilíbrio econômico inicial do

contrato, ao contrário, reflete pretensão de obter a alteração do critério de

determinação do valor do aluguel, distanciando-se do parâmetros originalmente

estabelecidos.

23) Logo, se o objeto da Ação proposta refoge aos limites do art. 19 da Lei 8.245/91,

não há legítimo interesse jurídico dos autores a ser preservado,mas mero interesse

econômico.

24) Confira-se, a propósito, o emblemático precedente a seguir transcrito:

RESP – CIVIL – LOCAÇÃO – ALUGUEL – REVISÃO – A REVISIONAL DE

ALUGUEL VISA A MANTER O EQUILÍBRIO ECONÔMICO DO CONTRATO.

ADMISSÍVEL, PORTANTO, DESDE QUE NECESSÁRIO RESTABELECE-LO,

INDEPENDENTEMENTE DE PRAZO LEGAL, OU CONTRATUAL. VIGÊNCIA DA

CLAUSULA REBUS SIC STANTIBUS (REsp. 87.442/SP, Rel. Min. LUIZ VICENTE

CERNICCHIARO, DJU 04.11.1996).

25) A Ação Revisional, como instrumento jurídico, submete-se ao princípio da

adequação, a significar que deve ter aptidão suficiente para operacionalizar, no

plano jurisdicional, a devida e integral proteção do direito material; somente assim

será instrumento adequado e útil.

26) In casu, é patente que Ação prevista no art. 19 da Lei 8.245/91 não foi utilizada

para manter ou restabelecer o equilíbrio inicial da locação, não sendo, portanto,

adequada à obtenção da tutela jurisdicional almejada, o que revela a falta do

interesse jurídico de agir, ante a completa inadequação da via eleita, sendo de rigor

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240

o reconhecimento da carência do direito de ação por ausência de interesse

processual.

27) Noutro norte, ainda que fosse possível superar a constatação de que não está

presente o interesse de agir, por a ação aviada não ser o instrumento necessário e

adequado ao fim a que se propõe, melhor sorte não socorreria a pretensão inicial,

haja vista o proeminente fundamento da desatenção ao princípio da boa-fé objetiva.

28) É da essência dos contratos o princípio da exigibilidade ou obrigatoriedade das

convenções, consagrando que obedecidos os requisitos legais, um contrato faz lei

entre as partes, constituindo liame tal entre os contratantes que, havendo

inadimplemento, a parte lesada é aparelhada com instrumentos judiciais que lhe

garantam a reparação das conseqüências advindas do descumprimento da

obrigação. A essencialidade do princípio deriva da necessidade de segurança dos

negócios jurídicos.

29) No ordenamento jurídico brasileiro, hodiernamente, são aclamados os princípios

gerais do direito que buscam a justiça contratual, em especial, com a ratificação da

boa-fé objetiva no art. 422 do Código Civil, a regular todo o direito obrigacional.

30) Como é cediço, o princípio da boa-fé objetiva impõe aos contratantes um padrão

de conduta pautada na probidade, assim na conclusão do contrato, como em sua

execução.

31) Na situação sub examin e, o preço do aluguel compunha um elemento essencial

do ajuste, justificando, no contexto complexo do negócio jurídico, a sua

desvinculação das cotações de mercado. Nessa linha, a postura da empresa

locatária ao pleitear a redução do valor pactuado, sem relevante alteração

superveniente da conjuntura econômica, reflete comportamento contraditório e

injurídico, incompatível com a manifestação de vontade acertada no momento em

que firmado o contrato de locação.

32) Verifica-se, nesta álea, que a conduta da autora, ao tentar desvincular o valor do

aluguel, e o próprio contrato de locação, do objetivo central do avençado entre as

partes, qual seja: a operacionalização da cisão de uma empresa de grande porte,

distancia-se do arquétipo social de probidade e lealdade, de tal forma que não há

como não inquinar o seu comportamento de violador da boa-fé objetiva.

33) Com efeito, os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a

vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), impedem

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que a parte, após praticar ato em determinado sentido, venha a adotar

comportamento posterior e contraditório (AgRg. no REsp. 1.099.550/SP, Rel. Min.

ARNALDO ESTEVES LIMA, DJe 29.03.2010).

34) Ante o exposto, com fundamento art. 557, § 1o.-A do CPC, dá-se provimento ao

Recurso Especial para julgar extinta a Ação Revisional, sem exame de mérito, nos

termos do art. 267, VI do CPC, considerando a ausência de utilidade/necessidade

concreta do exercício da jurisdição, carecendo a parte autora de legítimo interesse

de agir.

35) Invertidos os ônus de sucumbência, mantido o quantum fixado

na origem.

36) Publique-se. Intimações necessárias.

Brasília, 14 de dezembro de 2010

NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO

MINISTRO RELATOR

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Anexo 1.1 – AgRg no RECURSO ESPECIAL 1.206.723/MG

AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.206.723 - MG (2010/0139018-0) RELATOR: MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO AGRAVANTE: COMPANHIA BRASILEIRA DE DISTRIBUIÇÃO ADVOGADO: LUIZ CARLOS LOPES MADEIRA E OUTRO(S) AGRAVADO: COMARDI COMERCIAL LTDA ADVOGADO: ROBERTO CORREA DA SILVA BLESER E OUTRO(S) EMENTA AGRAVO REGIMENTAL EM RESP. REVISIONAL LOCATÍCIA. PREVENÇÃO: ART. 71, § 3º. DO RISTJ. NULIDADE RELATIVA SUSCITADA APÓS O JULGAMENTO. RECURSO FUNDAMENTADO. PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DE ATOS/FATOS. NÃO INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 5 E 7/STJ. CISÃO, ACORDO DE ACIONISTAS E LOCAÇÃO. CONTRATOS COLIGADOS. FUNÇÃO ECONÔMICA COMUM. ART. 19 DA LEI 8.245/91. MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO DOS PACTOS. AVENÇA NÃO ALTERADA. REVISIONAL QUE NÃO VISA AO RESTABELECIMENTO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO SOCIAL. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. VIOLAÇÃO À BOA-FÉ OBJETIVA. RESP. PROVIDO. ART. 557, § 1o.-A DO CPC. REVISIONAL EXTINTA, SEM EXAME DO MÉRITO. CARÊNCIA DE AÇÃO. ART. 267, VI DO CPC. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1) Vindo o recurso especial ao STJ por força de decisão monocrática do relator em agravo de instrumento anterior à Emenda Regimental 11/2010, fica ele prevento para o julgamento do próprio Apelo Raro e dos eventuais incidentes (art. 71, § 3o. do RISTJ); redistribuindo o feito por prevenção, sem objeção até a apreciação do recurso, não merece acolhida a insurgência posterior ao seu julgamento. Precedentes. 2) A decisão monocrática de recurso é prevista no art. 557, § 1o.-A do CPC, quando se trata de matéria pacificada, em harmonia com entendimento judiciais anteriores consolidados, e, malgrado a oposição inicial de alguns doutrinadores, tem hoje o respaldo jurisprudencial das Cortes do País, em apreço à celeridade dos julgamentos e ao princípio da efetividade do processo. 3) Fundando-se o recurso em violação ao art. 19 da Lei 8.245/91, ao argumento de descabimento da Revisional, tema efetivamente debatido na origem, acha-se atendido o requisito de prequestionamento, não se requerendo que a decisão

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recorrida mencione expressamente o dispositivo legal tido por afrontado, bastando que a matéria tenha sido analisada pelo Tribunal local, tratando-se neste, caso, do chamado prequestionamento implícito. 4) A análise de contrato de locação conexo a outras avenças, e de sua violação a uma teia de acordos que se perfaz num negócio jurídico de trama complexa, não esbarra nos óbices impostos pelas Súmulas 5 e 7/STJ, pois as consequências jurídicas decorrem da qualificação dos atos de vontade que motivam a lide, não dependendo de reexame fático-probatório ou de cláusulas de avença. 5) A interdependência, a conexidade ou a coligação dos contratos firmados pelas partes (cisão de empresa, acordo de acionistas e contrato de locação) resultam claras e evidentes, haja vista a unidade dos interesses representados, principalmente os de natureza econômica, constituindo esse plexo de avenças o que a doutrina denomina de contratos coligados; em caso assim, embora possível visualizar de forma autônoma cada uma das figuras contratuais entabuladas, exsurge cristalina a intervinculação dos acordos de vontade assentados, revelando a inviabilidade da revisão estanque e individualizada de apenas um dos pactos, quando unidos todos eles pela mesma função econômica comum. 6) O art. 19 da Lei 8.245/91, ao regular a revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado, consagrou a adoção da teoria da imprevisão no âmbito do Direito Locatício, oferecendo às partes contratantes um instrumento jurídico para a manutenção do equilíbrio econômico do contrato; no caso sub judice, porém, a Revisional não objetiva o restabelecimento do equilíbrio econômico inicial do contrato, mas reflete pretensão de obter a alteração do critério de determinação do valor do aluguel, distanciando-se dos parâmetros originais, por isso que refoge aos limites do art. 19 da Lei 8.245/91, dai não haver legítimo interesse jurídico dos autores a ser preservado, mas mero interesse econômico. Precedente. 7) A ação prevista no art. 19 da Lei 8.245/91 não foi utilizada para manter ou restabelecer o equilíbrio inicial da locação, afetado por fatos imprevistos, não sendo, portanto, apta à obtenção da tutela jurisdicional almejada, o que revela a falta de interesse jurídico de agir, ante a completa inadequação da via eleita, sendo de rigor o reconhecimento da carência de ação por ausência de interesse processual, a teor do art. 267, VI do CPC. 8) O pleito de redução do valor locatício pactuado, sem relevante alteração superveniente da conjuntura econômica ou do mercado, desvincularia o aluguel e o próprio contrato de locação do objetivo central avençado entre as partes, qual seja, a cisão de uma empresa de grande porte, afrontando o arquétipo da lealdade contratual, de tal arte que se reveste de violação da boa-fé objetiva.

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9) Agravo Regimental desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir: Prosseguindo no julgamento, a turma, por maioria, negou provimento ao agravo regimental. Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Jorge Mussi (art. 52, IV, "b", RISTJ). Os Srs. Ministros Jorge Mussi e Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ) votaram com o Sr. Ministro Relator. Votaram vencidos os Srs. Ministros Gilson Dipp e Laurita Vaz Não participou do julgamento o Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze (art. 162, §2º do RISTJ). Brasília (DF), 17 de maio de 2012(Data do Julgamento) MINISTRO JORGE MUSSI Relator

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Anexo 2 – RECURSO ESPECIAL 985.531/SP

RECURSO ESPECIAL Nº 985.531 - SP (2007/0221223-2) RELATOR: MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) RECORRENTE: COMPANHIA BRASILEIRA DE PETRÓLEO IPIRANGA ADVOGADO: LUIZ RODRIGUES WAMBIER E OUTRO(S) RECORRIDO: AUTO POSTO COPACABANA LTDA E OUTROS ADVOGADO: FRANCISCO MÔNACO NETO EMENTA RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. COTEJO ANALÍTICO. NECESSIDADE. CONTRATOS COLIGADOS. UNIDADE DE INTERESSES ECONÔMICOS. RELAÇÃO DE INTERDEPENDÊNCIA EVIDENCIADA. EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO. TÍTULO EXECUTIVO. INEXIGIBILIDADE. 1) Não há falar em negativa de prestação jurisdicional nos embargos declaratórios quando as instâncias ordinárias enfrentaram a matéria posta em debate na medida necessária para o deslinde da controvérsia. A ofensa ao art. 535 do CPC somente se configura quando, na apreciação do recurso, o Tribunal de origem insiste em omitir pronunciamento sobre questão que deveria ser decidida, e não foi, o que não ocorreu na hipótese dos autos. 2) À luz dos enunciados sumulares 282/STF e 356/STF, é inadmissível o recurso especial que demande a apreciação de matéria sobre a qual não tenha se pronunciado a Corte de origem. 3) A demonstração do dissídio jurisprudencial pressupõe a realização de cotejo analítico a demonstrar a similitude fática entre o acórdão recorrido e os julgados paradigmas. 4) A unidade de interesses, principalmente econômicos, constitui característica principal dos contratos coligados. 5) Concretamente, evidenciado que o contrato de financiamento se destinou, exclusivamente, à aquisição de produtos da Companhia Brasileira de Petróleo

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Ipiranga, havendo sido firmado com o propósito de incrementar a comercialização dos produtos de sua marca no Posto de Serviço Ipiranga, obrigando-se o Posto revendedor a aplicar o financiamento recebido na movimentação do Posto de Serviço Ipiranga , está configurada a conexão entre os contratos, independentemente da existência de cláusula expressa. 6) A relação de interdependência entre os contratos enseja a possibilidade de argüição da exceção de contrato não cumprido. 7) Na execução, a exceção de contrato não cumprido incide sobre a exigibilidade do título, condicionando a ação do exequente à comprovação prévia do cumprimento de sua contraprestação como requisito imprescindível para o ingresso da execução contra o devedor. 8) Recurso especial desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ/BA) e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti. Brasília-DF, 1º de setembro de 2009. (data do julgamento) MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) Relator

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Anexo 2.1 – EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP 985.531/SP

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 985.531 - SP (2010/0004435-9)

RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES

EMBARGANTE: COMPANHIA BRASILEIRA DE PETRÓLEO IPIRANGA

ADVOGADO: LUIZ RODRIGUES WAMBIER E OUTRO(S)

EMBARGADO: AUTO POSTO COPACABANA LTDA E OUTROS

ADVOGADO: FRANCISCO MÔNACO NETO

DECISÃO

Trata-se de embargos de divergência opostos por COMPANHIA BRASILEIRA DE

PETRÓLEO IPIRANGA contra acórdão da Terceira Turma, assim ementado:

"RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. OFENSA AO ART. 535 DO

CPC NÃO CONFIGURADA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS

282 E 356 DO STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. COTEJO ANALÍTICO.

NECESSIDADE. CONTRATOS COLIGADOS. UNIDADE DE INTERESSES

ECONÔMICOS. RELAÇÃO DE INTERDEPENDÊNCIA EVIDENCIADA. EXCEÇÃO

DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO. TÍTULO EXECUTIVO. INEXIGIBILIDADE.

1) Não há falar em negativa de prestação jurisdicional nos embargos declaratórios

quando as instâncias ordinárias enfrentaram a matéria posta em debate na medida

necessária para o deslinde da controvérsia. A ofensa ao art. 535 do CPC somente

se configura quando, na apreciação do recurso, o Tribunal de origem insiste em

omitir pronunciamento sobre questão que deveria ser decidida, e não foi, o que não

ocorreu na hipótese dos autos.

2) À luz dos enunciados sumulares 282/STF e 356/STF, é inadmissível o recurso

especial que demande a apreciação de matéria sobre a qual não tenha se

pronunciado a Corte de origem.

3) A demonstração do dissídio jurisprudencial pressupõe a realização de cotejo

analítico a demonstrar a similitude fática entre o acórdão recorrido e os julgados

paradigmas.

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4) A unidade de interesses, principalmente econômicos, constitui característica

principal dos contratos coligados.

5) Concretamente, evidenciado que o contrato de financiamento se destinou,

exclusivamente, à aquisição de produtos da Companhia Brasileira de Petróleo

Ipiranga, havendo sido firmado com o propósito de incrementar a comercialização

dos produtos de sua marca no Posto de Serviço Ipiranga, obrigando-se o Posto

revendedor a aplicar o financiamento recebido na movimentação do Posto de

Serviço Ipiranga, está configurada a conexão entre os contratos, independentemente

da existência de cláusula expressa.

6) A relação de interdependência entre os contratos enseja a possibilidade de

argüição da exceção de contrato não cumprido.

7) Na execução, a exceção de contrato não cumprido incide sobre a exigibilidade do

título, condicionando a ação do exequente à comprovação prévia do cumprimento de

sua contraprestação como requisito imprescindível para o ingresso da execução

contra o devedor.

8) Recurso especial desprovido." (REsp 985.531/SP, Rel. Ministro VASCO DELLA

GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA,

julgado em 01/09/2009, DJe 28/10/2009)" (fls. 1215/1216)

Afirma a recorrente divergência com julgados da Quarta Turma, de cujas ementas se

colhe:

"PROCESSO CIVIL E DIREITO CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535, II, DO CPC. NÃO-

OCORRÊNCIA. ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. MULTA.

AFASTAMENTO. SÚMULA N. 98/STJ. AÇÃO DE COBRANÇA. CLÁUSULA PENAL.

EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO-CUMPRIDO. NÃO APLICABILIDADE. PEDIDO

CONTRAPOSTO.

1) Não há por que falar em violação do art. 535, II, do CPC nas hipóteses em que o

acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração,

dirime, de forma expressa, as questões suscitadas nas razões recursais.

2) Afigura-se inviável a aplicação de multa em sede de embargos de declaração, se

estes foram opostos com o manifesto intento de prequestionar a matéria deduzida

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249

no apelo especial, e não com o propósito de procrastinar o feito. Aplicação da

Súmula n. 98/STJ.

3) O exercício da exceção do contrato não-cumprido dá-se quando uma das partes

que compõe o contrato bilateral suspende ou recusa o cumprimento da obrigação

que lhe compete até que outra parte contratante ofereça a prestação que lhe

incumbe.

4) Na ação em que se controverte acerca da legitimidade da cobrança de quantia

resultante do cumprimento de cláusula penal, não cuidando de tema inerente à

exigência do cumprimento das obrigações pactuadas na avença bilateral – no caso,

a prestação do serviço contábil e respectiva contraprestação por esse serviço – não

há como conferir aplicabilidade à exceção do contrato não-cumprido.

5) O pedido contraposto, a teor do disposto no art. 278, § 1º, do CPC, constitui

instituto processual que permite ao réu, em sede de procedimento sumário, deduzir

pedido na peça contestatória, limitado, portanto, nos mesmos fatos articulados pelo

autor na petição inicial.

6) Recurso especial não-conhecido." (REsp 712343/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO

DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 06/05/2008, DJe 19/05/2008)

"PROMESSA DE VENDA E COMPRA. AÇÃO DE RESCISÃO POR

INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. NÃO SENDO CUMPRIDA PELO

PROMITENTE-VENDEDOR A SUA OBRIGAÇÃO, TOCANTE A ENTREGA DO

IMÓVEL EM CONDIÇÕES DE SOLIDEZ E SEGURANÇA, NÃO LHE E DADO

EXIGIR O IMPLEMENTO DA DOS COMPROMISSÁRIOS-COMPRADORES

QUANTO AO PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES REMANESCENTES

AVENÇADAS. ''EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS'' ACOLHIDA.

RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO." (REsp 2330/SC, Rel. Ministro BARROS

MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 08/05/1990, DJ

28/05/1990 p. 4735)

"RESOLUÇÃO DO CONTRATO. Contratos coligados. Inadimplemento de um deles.

Celebrados dois contratos coligados, um principal e outro secundário, o primeiro

tendo por objeto um lote com casa de moradia, e o segundo versando sobre dois

lotes contíguos, para área de lazer, a falta de pagamento integral do preço desse

segundo contrato pode levar à sua resolução, conservando-se o principal, cujo preço

foi integralmente pago. Recurso não conhecido." (REsp 337040/AM, Rel. Ministro

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RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 02/05/2002, DJ

01/07/2002 p. 347)

Busca a recorrente ver reconhecida a tese de que, não havendo correlação e

dependência entre contratos diversos, firmados pelas mesmas partes, não há

espaço para alegar a exceção de contrato não cumprido. Sustenta que, no caso

concreto, não poderia a parte ex adversa deixar de cumprir o contrato de

financiamento, em face do não cumprimento de uma obrigação relativa a um

comodato de um bem, em contrato diverso, embora firmados, ambos, pelas mesmas

partes. Para a recorrente a simples coligação dos contratos não é suficiente para a

exceptio non adimpleti contractus. A súplica, contudo, não prospera, porquanto não

há similitude entre os casos confrontados. Com efeito, os dois primeiros arestos,

trazido a título de paradigmas, a esse mister não se prestam, pois não contemplam a

principal e necessária nuance para viabilizar qualquer juízo de comparação, ou seja,

a existência de contratos coligados. Ambos os julgados referem-se a apenas um

contrato, o primeiro (REsp 712343/RJ), tratando de avença de prestação de serviço

contábil, com viés trabalhista (prevê gratificação natalina) e o segundo (REsp

2330/SC), de uma compra e venda imobiliária. O mesmo se pode dizer do terceiro

pretenso paradigma (REsp 337040/AM) que, não obstante fazer menção à contrato

coligados, também trata de compra e venda de imóveis. Veja-se que, no caso

concreto, a conclusão acerca da aplicação ou não da exceção de contrato não

cumprido tem íntima e inarredável ligação com a especificidade do tema tratado, é

dizer, a relação obrigacional e suas diversas avenças firmadas entre uma pessoas

jurídica exploradora do negócio de posto de combustíveis e a distribuidora. Isso se

pode depreender não só pela simples leitura da ementa do acórdão recorrido, como

também pelas próprias razões da ora embargante, quando assevera:

"Nesse sentido, está-se admitindo, por exemplo, que se alegue que não houve

pagamento de um contrato de financiamento, porque o credor deste contrato não

cumpriu obrigação relativa ao comodato de um bem, utilizado na mesma atividade

econômica, mas sem relação de causa e efeito. A identidade de interesses, que

correspondente ao fato de a atividade econômica subjacente aos contratos ser a

mesma, não equivale e nem pressupõe a existência de obrigações correlatas e

interdependentes. Daí a necessidade de que esse E. STJ uniformize o entendimento

sobre o tema, limitando à aplicação do art. 1.092 do CC às obrigações constantes de

um mesmo contrato bilateral, caracterizadas pela reciprocidade, simultaneidade e

interdependência." (fls. 1331)

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Ante o exposto, indefiro liminarmente os embargos de divergência (art. 266, §3º c/c o

art. 34, XVIII do RISTJ).

Publicar.

Brasília, 04 de fevereiro de 2010.

MINISTRO FERNANDO GONÇALVES, Relator

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Anexo 3 – AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 218.620/RJ

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 218.620 - RJ (2012/0170749-0) RELATOR: MINISTRO MARCO BUZZI AGRAVANTE: BANKAMERICA INTERNATIONAL INVESTMENT CORPORATION E OUTRO ADVOGADOS: ROBERTO TEIXEIRA E OUTRO(S) CRISTIANO ZANIN MARTINS E OUTRO(S) AGRAVADO: ESTA COMÉRCIO E PARTICIPAÇÕES S/A E OUTROS ADVOGADO: SPENCER DALTRO DE MIRANDA FILHO E OUTRO(S) ADVOGADA: MARIA CAROLINA LEÃO DIOGENES MELO E OUTRO(S)

DECISÃO

Trata-se de agravo interposto por BANKAMERICA INTERNATIONAL INVESTMENT CORPORATION e DK PARTNERS I em face de decisão de inadmissibilidade do recurso especial. O apelo extremo, fundamentado na alínea “a” do permissivo constitucional, objetivou reformar acórdão proferido pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado (fl. 3140): AGRAVO INTERNO NA APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA. CAUTELAR INOMINADA. CONTRATOS COMPLEXOS. OPERAÇÃO EM MOEDA NORTE-AMERICANA. CLÁUSULAS CONTRATUAIS. REDAÇÃO DUVIDOSA. PROEMINÊNCIA EXCESSIVA DE UMA DAS PARTES. CLÁUSULA POTESTATIVA. ILEGALIDADE. ART. 122 DO CCB. PRECEDENTES DO STJ. JULGAMENTO MONOCRÁTICO PROFERIDO NOS TERMOS DO § 1º-A, DO ART. 557 DO CPC EM RAZÃO DA CLARA CONTRARIEDADE DA SENTENÇA COM A ORIENTAÇÃO FIRMADA PELO E. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM TESE DE CLÁUSULAS POTESTATIVAS. Contendo os ajustes celebrados entre as partes, cláusulas contratuais com redação imprecisa e duvidosa, as quais conferem vantagens excessivas a uma parte em detrimento da outra, devem ser interpretadas como potestativas e portanto, ilegais. Declaração de ilegalidade que se prolata, reformando-se a sentença para julgar procedente o pleito inicial. Recurso improvido.

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Opostos embargos de declaração (fls. 3175/3184), esses restaram rejeitados (fls. 3194/3197). Nas razões do recurso especial, foram sustentadas as seguintes teses pelos recorrentes (fls. 3204/3226): a) Impossibilidade de julgamento monocrático na espécie e cerceamento de defesa (violação aos arts. 551, 554 e 557, § 1º-A, do CPC/1973). Asseveraram que os precedentes deste STJ utilizados pelo relator na decisão monocrática de fls. 3067/3099 não se relacionam com o caso dos autos, não servindo, consequentemente, como justificativa para o julgamento com amparo no art. 557, § 1º-A, do CPC/1973. No ponto, defenderam estar caracterizado o cerceamento de defesa, porquanto, em virtude do julgamento monocrático, não foi possível a revisão ou o exercício da sustentação oral; b) nulidade do acórdão de fls. 3138/3171 (violação ao art. 535 do CPC/1973). Aduziram a existência de contradição e omissão no acórdão recorrido, sendo a primeira em virtude de o Tribunal de origem, desconsiderando a ausência de recurso em face da multa, ter julgado completamente improcedente a reconvenção e a segunda em decorrência da ausência de pronunciamento acerca dos arts. 467, 468, 515, 551, 554, 557, § 1º-A, do CPC/1973; e 113, 122 e 422 do CC/2002; c) formação de coisa julgada sobre a multa decorrente do atraso na abertura do Parque Terra Encantada (violação aos arts. 467, 468 e 515 do CPC/1973). Afirmaram que, além da ausência de contestação em face do cabimento da multa decorrente do atraso na abertura do Parque Terra Encantada, a mesma não foi objeto de recurso pelas recorridas, de modo que, à luz dos arts. 467, 468 e 515 do CPC/1973, deve ser reconhecida a formação de coisa julgada sobre a condenação ao seu pagamento; e d) validade das cláusulas contratuais entabuladas entre as partes (violação ao arts. 113, 122 e 422 do CC/2002). Argumentaram que o Tribunal de origem julgou a apelação como se tratasse de uma relação de consumo, ignorando completamente as provas dos autos, que demonstram a celebração de negócio jurídico entre partes preparadas e bem assessoradas juridicamente. No ponto, destacaram que são perfeitamente lícitas e comuns em acordos de acionistas cláusulas de opção de venda (“Put”), não se podendo aceitar que, em um investimento milionário, não se permita a elaboração de cláusulas que objetivem reduzir o risco de eventual insucesso do projeto. Contrarrazões às fls. 3274/3323. Em sede de juízo de admissibilidade (fls. 3410/3416), o Terceiro Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro inadmitiu o recurso especial em virtude dos seguintes fundamentos: (i) ausência de violação ao art. 535 do CPC/1973; (ii) incidência do Enunciado n. 5 da Súmula do STJ; e (iii) incidência do

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Enunciado n. 7 da Súmula do STJ. Daí o presente agravo em recurso especial (fls. 3420/3442), por meio do qual os insurgentes refutam os óbices expendidos e reiteram a efetiva violação à legislação federal. No que tange aos Enunciados ns. 5 e 7 da Súmula do STJ, aduzem “que não se está requerendo a este E. Tribunal Superior que interprete o contrato ou suas cláusulas, mas tão-somente que reconheça que a jurisprudência aplicável a contratos de adesão não pode servir de parâmetro para o julgamento do presente caso, de valores vultosos e no qual as partes contaram com ampla assessoria na discussão das cláusulas contratuais e consecução do negócio celebrado”. Contraminuta às fls. 3469/3518. É o relatório. Decido. O inconformismo merece prosperar. 1) De fato, parte da matéria devolvida a este Superior Tribunal de Justiça independe da interpretação de cláusulas contratuais e do revolvimento de provas, bastando uma simples leitura da decisão monocrática e dos subsequentes acórdãos proferidos pelo Tribunal de origem para aferir a ocorrência, ou não, de violação à legislação federal. Dessa forma, por não incidirem os referidos óbices expendidos sobre todas as teses defendidas no recurso especial, mostra-se de rigor o exame do mérito do recurso especial. 2) Segundo a reiterada jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a despeito de o art. 557, caput, do CPC/1973, vigente à época, autorizar o relator a, monocraticamente, negar seguimento a recurso em confronto com jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, o § 1º-A do mesmo dispositivo impunha requisitos bem mais rigorosos para o provimento monocrático do recurso, determinando que, nesse caso, a decisão recorrida deveria estar em manifesto confronto com enunciado sumular ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior. Nesse mesmo sentido, confiram-se os seguintes julgados anteriormente proferidos: RECURSOS ESPECIAIS. PROCESSUAL CIVIL. ART. 557, § 1º-A, DO CPC. VIOLAÇÃO CONFIGURADA. Tratando-se de questão jurídica complexa, o julgamento com base no art. 557, § 1º-A, do CPC exige que a decisão recorrida esteja em manifesto confronto com "súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior". No caso, além de não haver jurisprudência sedimentada acerca do tema decidido, o procedimento adotado na Corte de origem acarretou prejuízo às partes, ausentes a publicação de pauta, a apresentação de memoriais e a sustentação oral. Recurso especial da CLS São Paulo Ltda. provido, prejudicado o

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recurso da Fazenda Nacional. (REsp 1248228/RJ, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 10/08/2012, sem grifos no original) PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. PROVIMENTO POR DECISÃO MONOCRÁTICA. FUNDAMENTO EXCLUSIVAMENTE EM JULGADO DO PRÓPRIO TRIBUNAL A QUO . IMPOSSIBILIDADE. ART. 557, § 1º-A, DO CPC. 1) De acordo com o art. 557, § 1º-A, do CPC, o Relator poderá dar provimento ao recurso "se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior". 2) Na hipótese, o julgamento monocrático está fundamentado apenas em julgado do próprio Tribunal Regional Federal, o que contraria a norma em comento. Precedentes do STJ. 3) Não há como considerar sanado o vício processual pela confirmação da decisão pelo Colegiado, tendo em vista o obstáculo à manifestada intenção de realizar sustentação oral. 4) Agravo Regimental não provido. (AgRg no AgRg no REsp 1198542/SC, Rel. Ministro Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 16/03/2011, sem grifos no original) PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. DECISÃO MONOCRÁTICA. ART. 557, § 1º-A, do CPC. DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR QUE DÁ PROVIMENTO A RECURSO. DECISÃO RECORRIDA "EM MANIFESTO CONFRONTO COM SÚMULA OU COM JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, OU DE TRIBUNAL SUPERIOR" (CPC, ART. 557, § 1º-A). APRECIAÇÃO DO RECURSO PELO ÓRGÃO COLEGIADO. 1) O caput do art. 557 do CPC autoriza o relator a negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. 2) O § 1º-A do mesmo dispositivo, porém, impõe requisitos mais rigorosos para o provimento monocrático do recurso, determinando que, nesse caso, a decisão recorrida deve estar em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

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3) O relator, no tribunal de origem, somente pode dar provimento à apelação, monocraticamente, quando a decisão recorrida estiver em confronto com súmula ou jurisprudência de Tribunal Superior ou do STF (art. 557, § 1º-A, CPC). O provimento do apelo por decisão monocrática com simples invocação da jurisprudência do Tribunal local vai de encontro à exegese do citado artigo do CPC e à jurisprudência do STJ (Precedentes: Resp. 794.253/RS, Rel. Min. José Delgado, DJ 01/02/2007; AgRg. 920.307/SP, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 07/02/2008; Resp. 533.188/RS e Resp 771221 ambos do Rel. Min. Teori Zavascki, DJ. 07/06/2004). 4.Agravo regimental provido. (AgRg no Ag 975759/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/03/2009, DJe 14/04/2009, sem grifos no original) PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR QUE DÁ PROVIMENTO A RECURSO. DECISÃO RECORRIDA "EM MANIFESTO CONFRONTO COM SÚMULA OU COM JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, OU DE TRIBUNAL SUPERIOR" (CPC, ART. 557, § 1º-A). APRECIAÇÃO DO RECURSO PELO ÓRGÃO COLEGIADO. 1) O caput do art. 557 do CPC autoriza o relator a negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. 2) O § 1º-A do mesmo dispositivo, porém, impõe requisitos mais rigorosos para o provimento monocrático do recurso, determinando que, nesse caso, a decisão recorrida deve estar em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. 3) Ofende o art. 557, § 1º-A, do CPC, portanto, a decisão monocrática do relator que dá provimento a recurso apenas com base em jurisprudência do próprio órgão fracionário a que se vincula. 4. Recurso especial a que se dá provimento. (REsp 771221/RS, Rel. Ministro Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/03/2006, DJe 24/04/2006, p. 370, sem grifos no original) Na espécie, não se verifica a utilização de qualquer enunciado sumular ou jurisprudência dominante pertinente na decisão monocrática de fls. 3067/3099. O que se verifica, isso sim, é que, embora não tenha ressaltado a incidência da legislação consumerista ao caso concreto, a decisão monocrática se valeu de precedentes do próprio Tribunal local (fl. 3085) e de decisões monocráticas e Colegiadas proferidas em sede de recurso especial relacionadas a casos envolvendo, em sua maioria, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (fls. 3086/3098).

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Utilizar precedentes desta Corte Superior proferidos sob a ótica de uma legislação protetiva (CDC) ou sobre contratos que possuem legislação, peculiaridades e exames casuísticos que lhes são inerentes é, com a devida vênia ao Colegiado local, não utilizar precedente algum. Não é demais lembrar que, no Tribunal, a regra é o julgamento Colegiado, de modo que, para a prolação de julgamento monocrático, os requisitos previamente estabelecidos pela lei devem ser preenchidos. Apenas para corroborar, cumpre destacar que enquanto o caso dos autos versa sobre contratos complexos entabulados entre pessoas jurídicas não vulneráveis (compra e subscrição de ações, de acionistas e de penhor de ações), os precedentes elencados na decisão monocrática de fls. 3067/3099 versam sobre cláusulas abusivas em contratos de plano de saúde e cláusulas potestativas em contratos de (i) cessão de passe de jogador de futebol, (ii) locação de imóveis, (iii) arrendamento mercantil e (iv) contrato de financiamento para construção de obra de fornecimento de energia. Ora, ao se limitar a invocar precedentes que não possuem pertinência temática com o caso dos autos, é notável que os recorrentes tiveram prejuízo com a impossibilidade de proferir sustentação oral e explicar, sob o seu ponto de vista, a particularidade atinente ao caso dos autos, de modo a influenciar o entendimento dos demais desembargadores que integravam a 12ª Câmara Cível do TJ/RJ. Confira-se o teor do art. 202 do Regimento Interno do TJ/RJ, vigente à época, que reforça esse entendimento: Art.202 - Salvo a hipótese prevista no § 2º do art. 162 deste Regimento [agravo em ação penal originária], não caberá sustentação oral no agravo regimental o qual também não se presta à complementação de requisitos que deviam ter sido preenchidos antes da interposição do recurso. Sobre a importância da sustentação oral, confira-se o escólio de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha: À exceção do relator e, em alguns casos, também do revisor, os demais membros do tribunal ou órgão colegiado julgam em virtude do que escutam na sessão de julgamento, não tendo acesso aos autos do processo. Proferir julgamento, levando em conta o que se ouve, pode privar o magistrado de, eventualmente, não perceber determinado detalhe ou pode fazer com que seja desviada sua atenção ou perdida a concentração ou, ainda, que lhe escape uma particularidade do caso que lhe foi submetido a exame, influenciando no resultado da decisão a ser tomada. Por essa razão e em virtude dos princípios do contraditório e da ampla defesa, permite-se que o advogado, na sessão de julgamento, sustente oralmente as razões do recurso ou da ação erigida ao crivo do tribunal. Aliás, constitui direito do advogado apresentar a sustentação oral, segundo estabelece o art. 7º, IX, do Estatuto da Advocacia e da

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OAB - EOAB: "Art. 7°. São direitos do advogado: IX - sustentar oralmente as razões ele qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto cio relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior for concedido". (Curso de Direito Processual Civil – Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processos nos Tribunais - Volume 3. Bahia: Editora Juspodivm, 2014, p. 591). Além disso, na visão contemporânea do processo civil, o contraditório não significa mais tão-somente a observância do binômio informação e possibilidade de reação. É imprescindível, atualmente, se reconhecer o poder de influência das partes na formação do convencimento do juiz. Como bem esclarece Daniel Amorim Assumpção Neves: Percebeu-se, muito por influência de estudos alemães sobre o tema, que o conceito tradicional de contraditório fundado no binômio "informação + possibilidade de reação " garantia tão somente no aspecto formal a observação desse princípio. Para que seja substancialmente respeitado, não basta informar e permitir a reação, mas exigir que essa reação no caso concreto tenha real poder de influenciar o juiz na formação de seu convencimento. A reação deve ser apta a efetivamente influenciar o juiz na prolação de sua decisão, porque em caso contrário o contraditório seria mais um princípio "para inglês ver", sem grande significação prática. O "poder de influência " passa a ser, portanto, o terceiro elemento do contraditório, tão essencial quanto os elementos da informação e da reação. Essa nova visão do princípio do contraditório reconhece a importância da efetiva participação das partes na formação do convencimento do juiz, mas a sua real aplicação depende essencialmente de se convencerem os juízes de que assim deve ser no caso concreto. Posturas como a do juiz que recebe a defesa escrita em audiência nos Juizados Especiais e sem sequer folhear a peça passa a sentenciar certamente não vai ao encontro da nova visão do contraditório. O mesmo ocorre quando desembargadores conversam, leem, ou excepcionalmente se ausentam enquanto o advogado faz sustentação oral perante o Tribunal. Como observa a melhor doutrina, somente por meio de um constante e intenso diálogo do juiz com as partes se concretizará o contraditório participativo, mediante o qual o poder de influência se tomará uma realidade. (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método; 2015, p. 83/84). Dessa forma, tratando-se de decisão monocrática que não se amparou em jurisprudência pertinente do STF ou do STJ, cerceando, consequentemente, o direito de os recorrentes proferirem sustentação oral perante o Colegiado, o provimento do recurso especial é medida que se impõe.

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3. Do exposto, com fulcro no art. 932, V, do CPC/2015, c/c o Enunciado n. 568 da Súmula deste STJ, dou provimento ao agravo em recurso especial a fim de (i) declarar a violação aos arts. 554 e 557, § 1º-A, do CPC/1973, (ii) cassar as decisões monocráticas de fls. 3067/3099 e 3128/3130 e os subsequentes acórdãos de fls. 3138/3171 e 3194/3197 e (iii) determinar a apreciação do recurso de apelação diretamente pelo órgão colegiado, ocasião na qual, os insurgentes (recorridos na apelação) poderão exercer o seu direito de sustentação oral. Em virtude do acolhimento da preliminar de impossibilidade de julgamento monocrático e cerceamento de defesa, resta prejudicado o exame das demais teses aventadas no recurso especial. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 04 de agosto de 2016.

MINISTRO MARCO BUZZI Relator

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Anexo 3.1 – AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 218.620/RJ AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 218.620 - RJ (2012/0170749-0)

RELATOR: MINISTRO MARCO BUZZI

AGRAVANTE: ESTA COMÉRCIO E PARTICIPAÇÕES S/A E OUTROS

ADVOGADO: SPENCER DALTRO DE MIRANDA FILHO E OUTRO(S) -

DF017615

ADVOGADA: MARIA CAROLINA LEÃO DIOGENES MELO E OUTRO(S) -

RJ114825

AGRAVADO: BANKAMERICAINTERNATIONAL INVESTMENT CORPORATION

E OUTRO

ADVOGADOS: ROBERTO TEIXEIRA E OUTRO(S) - SP022823

CRISTIANO ZANIN MARTINS E OUTRO(S) - SP172730

EMENTA

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO (ART. 544 DO CPC/73) – AÇÃO

DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS E AÇÃO

RECONVENCIONAL DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – DECISÃO MONOCRÁTICA DA

LAVRA DESTE SIGNATÁRIO QUE CONHECEU DO AGRAVO PARA DAR

PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL DAS RÉS.

IRRESIGNAÇÃO DAS AUTORAS.

1) A jurisprudência desta Corte Superior admite o "prequestionamento implícito"

quando embora o órgão julgador não faça indicação numérica dos artigos legais,

aprecia e decide com amparo no seu conteúdo normativo. Precedentes.

2) Segundo a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a despeito de o

artigo 557, caput, do CPC/1973, vigente à época, autorizar o relator a,

monocraticamente, negar seguimento a recurso em confronto com jurisprudência

dominante do respectivo Tribunal, o § 1º-A do mesmo dispositivo impunha requisitos

bem mais rigorosos para o provimento monocrático do recurso, determinando que,

nesse caso, a decisão recorrida deveria estar em manifesto confronto com

enunciado sumular ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal

ou de Tribunal Superior. Precedentes.

Na espécie, a Corte originária se valeu de precedentes do próprio Tribunal local e de

decisões monocráticas e julgamentos colegiados proferidos em sede de recurso

especial relacionados a casos envolvendo a aplicação do Código de Defesa do

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Consumidor em contratos de plano de saúde e o reconhecimento de cláusulas

potestativas em negócios jurídicos envolvendo cessão de passe de jogador de

futebol, locação de imóveis, arrendamento mercantil e financiamento para

construção de obra de fornecimento de energia, circunstâncias efetivamente

diversas do caso concreto que lhe foi submetido (contratos complexos entabulados

entre pessoas jurídicas não vulneráveis relacionados à compra e subscrição de

ações, de acionistas e de penhor de ações). Reconhecimento da nulidade dos

julgamentos monocráticos e dos subsequentes acórdãos que se impõe.

3) Agravo interno desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, negar provimento ao agravo interno, nos termos do voto do Sr.

Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti

(Presidente) e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 20 de outubro de 2016 (Data do Julgamento)

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI

Presidente

MINISTRO MARCO BUZZI

Relator

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Anexo 4 – RECURSO ESPECIAL 1.602.076/SP RECURSO ESPECIAL Nº 1.602.076 - SP (2016/0134010-1) RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI RECORRENTE: ODONTOLOGIA NOROESTE LTDA ADVOGADOS: FERNANDO RISTER DE S LIMA - SP199386 MARIA BEATRIZ CRESPO FERREIRA - SP276438 RECORRIDO: GOU – GRUPO ODONTOLOGICO UNIFICADO FRANCHISING LTDA ADVOGADOS: JOÃO PAULO DUENHAS MARCOS - SP257400 ANTÔNIO FERNANDO DE MOURA FILHO - SP306584 EMENTA RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE FRANQUIA. CONTRATO DE ADESÃO. ARBITRAGEM. REQUISITO DE VALIDADE DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. DESCUMPRIMENTO. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA “PATOLÓGICA”. ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. NULIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO. 1) Recurso especial interposto em 07/04/2015 e redistribuído a este gabinete em 25/08/2016. 2) O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico. 3) Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96. 4) O Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral “patológico”, i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. 5) Recurso especial conhecido e provido. ACÓRDÃO

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Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 15 de setembro de 2016(Data do Julgamento)

MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE

Presidente

MINISTRA NANCY ANDRIGHI Relatora