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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luiz Antonio Ferrari Neto Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Meios de Uniformização da Jurisprudência no Direito Processual Civil Brasileiro MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Luiz Antonio Ferrari Neto

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Meios de Uniformização

da Jurisprudência no Direito Processual Civil Brasileiro

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2012

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Luiz Antonio Ferrari Neto

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Meios de Uniformização

da Jurisprudência no Direito Processual Civil Brasileiro

Mestrado em Direito das Relações Sociais Subárea de Direito Processual Civil Dissertação a ser apresentada à banca examinadora junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em direito, sob a orientação do professor Doutor João Batista Lopes

São Paulo

2012

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Banca Examinadora

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Ao meu querido e amado filho, que tão novo

já demonstrou com facilidade e alegria o

poder do ser humano em superar

dificuldades.

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Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos ao professor Doutor João Batista Lopes, brilhante,

paciente e que, apesar de seu vasto conhecimento jurídico, sempre demonstrou ser uma pessoa

simples e de fácil acesso, o que muito me auxiliou nas pesquisas e elaboração deste pequeno

trabalho.

Agradeço também a atenção especial que me foi dispensada pelos professores

doutores Olavo de Oliveira Neto e Rodrigo Barioni, por suas pontuais observações que foram

fundamentais para a reflexão e conclusão desta dissertação.

Não poderia deixar de agradecer a todos os professores da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, que muito contribuíram para minha inquietude diante dos problemas

que diuturnamente vivenciamos, trazendo, por consequência, a evolução do meu

conhecimento jurídico. Sinto falta de Vossas aulas...

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Resumo

Utilizando-se dos métodos indutivo e comparativo e da pesquisa à legislação, doutrina

e jurisprudência, analisaremos o incidente de resolução de demandas repetitivas, instituto

ainda em discussão no meio acadêmico e no Congresso Nacional, diante da proposta

apresentada ao Senado Federal pelo anteprojeto de Código de Processo Civil.

Num primeiro momento, visando à contextualização da ciência processual, traremos o

panorama atual, com a problemática da constante busca pela cessação da lentidão do

judiciário, sendo agregada a isto a constitucionalização do direito processual, as reformas no

intento de acelerar a prestação da tutela jurisdicional e o problema da crescente necessidade

de procura do judiciário diante da massificação das relações jurídicas.

Num segundo momento, por meio da análise de institutos existentes no direito pátrio

que têm a finalidade de uniformizar a interpretação e aplicação do direito, trataremos da

importância da jurisprudência e da necessidade de obediência ao posicionamento exarado

pelos tribunais, na qual procuramos demonstrar que essa necessidade sempre esteve presente

no Código de Processo vigente desde sua entrada em vigor, mas que apesar da tendência em

se seguir precedentes, diferentemente do sistema de países da common law, a prática brasileira

procura ignorar as peculiaridades fáticas para utilizar os julgados anteriores de forma abstrata,

o que acaba, por vezes, desvirtuando a interpretação exarada pelos tribunais.

Num terceiro momento será analisada a proposta de inclusão do novo instituto previsto

no Projeto de Código de Processo Civil, denominado incidente de resolução de demandas

repetitivas, na qual compará-lo-emos com institutos existentes no direito estrangeiro e

também com institutos previstos no direito vigente para, a partir dai, verificando as

similitudes e diferenças, podermos nos aprofundar na sua natureza, competência,

procedimento e resultados esperados, sem deixar de externar nossa opinião sobre pontos que

possam ser aprimorado.

Palavras-chave: Incidente. Demandas. Repetitivas. Uniformização. Jurisprudência.

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Abstract

Using the comparative and inductive methods and the research to the legislation,

doctrine and jurisprudence, we analyse the incident of resolution of repetitive demands,

institute that is under discussion at academia and Senate, because of the proposal submitted to

the Senate by the draft of the Civil Procedure Law Code Project.

At first, aiming to contextualize the procedural science, we will bring the current

situation with the problematic of its constant search of the cessation of the slowness of the

judiciary, aggregating the constitutionalization of the procedural law, its reforms in the intent

to accelerate the delivery of the jurisdictional activity and the problem of the growing

necessity to demand justice because of the massification of the legal relations.

In a second step, by means of analysing the Brazilian institutes that has the objective

of standardization the interpretation and application of the norms, we will treat about the

importance of the jurisprudence and the necessity of obeying the precedents of the courts,

which we will try to demonstrate that this necessity has always been present in the actual

Civil Procedural Code since its beginning, but despite the tendency to follow precedents,

unlike the countries of the common law system, the Brazilian practise seek to ignore the

factual peculiarities to utilize the earlier judgements in an abstract way, which turns out,

sometimes, distorting the interpretation drawn up by the courts.

In the third step we will analyse the proposal to include the new institute under the

Project of the Civil Procedure Code, named incident to solve repetitive demands, in which we

will compare it to another institutes existent in the foreign law and also to institutes that we

have in the actual Brazilian law to, from there, checking out the similarities and differences,

we could be able to delve in to the nature, competence, procedure and expected results,

exposing our opinion about topics that could be improved.

Key-words: Incident. Demands. Repetitive. Standardization. Jurisprudence.

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Lista de abreviaturas e siglas

ADC Ação Declaratória de Constitucionalidade

ADIn Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF Arguição por descumprimento de preceito fundamental

AI Agravo contra decisão denegatória de seguimento de recurso excepcional

AgRg Agravo Interno

CC Código Civil

CDC Código de Defesa do Consumidor

CF Constituição Federal brasileira

CNJ Conselho Nacional de Justiça

CPC Código de Processo Civil

CPR Civil Procedure Rules (Código de Processo Civil inglês, de 1998)

EAg Embargos de Divergência em Agravo

ED Embargos de declaração

EDv Embargos de divergência

GLO Group Litigation Order (ordem para litígio em grupo - procedimento do direito

inglês para resolução de demandas em grupo)

HC Habeas corpus

IUJur Incidente de Uniformização de Jurisprudência

KapMuG Kapitalanleger-Musterverfahrengesetz (Lei alemã que trata do procedimento

modelo para investidores em mercado de capitais)

LICC Lei de introdução ao direito brasileiro

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LINDB Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

PL Projeto de Lei

Rcl Reclamação Constitucional

RE Recurso Extraordinário

REsp Recurso Especial

RISTJ Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça

RISTF Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

TJ Tribunal de Justiça

TRF Tribunal Regional Federal

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

VRG Valor residual garantido

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Sumário

Introdução ............................................................................................................................ 14

CAPÍTULO I – PANORAMA ATUAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO ................. 16

1 A constante busca pela cessação da lentidão do Judiciário ...................................... 16

1.1 A Constitucionalização do Direito Processual .................................................... 17

1.2 A Emenda Constitucional 45/2004 e as reformas processuais decorrentes como forma de garantir uma tutela jurisdicional efetiva ....................................................... 19

2 A evolução da sociedade e a massificação dos negócios jurídicos ............................. 22

3 A necessidade de o Judiciário garantir a segurança jurídica na resolução das demandas ............................................................................................................................ 28

CAPÍTULO II – IMPORTÂNCIA DA JURISPRUDÊNCIA E NECESSIDADE DE SUA UNIFORMIZAÇÃO ............................................................................................................ 37

4 A existência de mecanismos dentro do sistema processual vigente que visam a impedir a existência de decisões conflitantes .................................................................... 37

4.1 O incidente de uniformização de jurisprudência ................................................ 38

4.1.1 Origem do instituto ......................................................................................... 41

4.1.2 Procedimento.................................................................................................. 43

4.1.3 Vinculação da Câmara / Turma ao decidido pelo Pleno ou Órgão Especial ... 46

4.1.4 A falta de eficácia prática do instituto em face da ausência de vinculatividade e baixa persuasão do incidente sobre os demais julgados ............................................... 48

4.1.5 A uniformização de jurisprudência nos juizados especiais federais ................. 51

4.2 A declaração incidental de inconstitucionalidade realizada pelos Tribunais .... 53

4.3 Recurso Especial e Recurso Extraordinário ....................................................... 58

4.3.1 Requisitos de sua admissibilidade ................................................................... 64

4.3.2 Hipóteses de cabimento dos recursos excepcionais ......................................... 75

4.3.3 Recursos Excepcionais representativos de controvérsias ................................ 79

4.4 Os Embargos de Divergência .............................................................................. 86

4.4.1 Pequeno histórico ........................................................................................... 87

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4.4.2 Hipóteses de cabimento .................................................................................. 89

4.4.3 Divergência .................................................................................................... 98

4.4.4 Sobre o aresto paradigma ............................................................................. 101

4.4.5 Procedimento................................................................................................ 104

4.5 Assunção de competência .................................................................................. 105

5 As deficiências do sistema e a busca por novos institutos visando à isonomia e à segurança jurídica ............................................................................................................ 109

5.1 A má interpretação do princípio da livre convicção motivada – a ausência de “discricionariedade” judicial ....................................................................................... 111

5.2 A necessidade de obediência aos posicionamentos dos Órgãos Judiciais Superiores ..................................................................................................................... 121

5.3 A insegurança gerada pela ausência de harmonização da jurisprudência ...... 122

5.3.1 A demora na resolução de causas controversas pelos tribunais superiores como geradora do aumento do número de demandas ........................................................... 125

5.4 A necessidade de estabilização da jurisprudência com fulcro na segurança jurídica e isonomia ....................................................................................................... 128

5.5 A ideia de se seguirem precedentes – a tendência no Brasil de adoção do sistema de precedentes existente nos países de common law .................................................... 130

5.5.1 Breve histórico sobre a formação dos precedentes no direito inglês .............. 130

5.5.2 Breve histórico sobre a formação dos precedentes no direito brasileiro ........ 132

5.5.3 Diferenças entre o sistema jurisprudencial da Civil Law e o sistema de precedentes da Common Law ..................................................................................... 135

5.5.4 A volta à vinculatividade no intento de aproximação ao sistema de precedentes 141

5.5.5 A criação dos enunciados de súmula vinculantes reforçando a obediência aos posicionamentos das Cortes Superiores ...................................................................... 143

5.5.6 O julgamento dos recursos repetitivos e a tendência à objetivação do controle de constitucionalidade realizado em sede de recurso extraordinário .......................... 147

CAPÍTULO IV – INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - Nova tentativa de prestar a tutela jurisdicional de forma isonômica e num prazo razoável ........... 151

6 O surgimento da ideia e suas razões ........................................................................ 151

7 Institutos assemelhados no direito estrangeiro e no direito pátrio ......................... 154

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7.1 Musterverfahren do direito alemão .................................................................... 154

7.1.1 Procedimento................................................................................................ 156

7.2 Group Litigation Order do Direito Inglês ........................................................... 160

7.3 Institutos assemelhados no direito pátrio ......................................................... 163

7.3.1 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de inconstitucionalidade ........................................................................ 164

7.3.2 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de uniformização de jurisprudência ....................................................... 168

7.3.3 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos representativos de controvérsia...................................... 172

8 O incidente de resolução de demandas repetitivas no PL 8.046/2010 – estudo detalhado .......................................................................................................................... 174

8.1 Conceito, natureza jurídica e finalidade ........................................................... 174

8.2 Idêntica questão de direito ................................................................................ 179

8.3 Requisitos de sua admissibilidade ..................................................................... 185

8.4 Competência ....................................................................................................... 189

8.5 Legitimidade para instaurar o incidente ........................................................... 193

8.6 Intervenção de terceiros no incidente de resolução de demandas repetitivas . 195

8.7 Procedimento ..................................................................................................... 199

8.8 A importância de se criar um banco de dados .................................................. 207

8.9 Ausência de escolha de “caso modelo” e de representantes ............................. 209

8.10 Desistência, transação, reconhecimento jurídico do pedido, renúncia da demanda e o incidente de resolução de demandas repetitivas .................................... 212

8.11 Recorribilidade e legitimidade recursal para atacar a decisão que julgou o incidente ....................................................................................................................... 214

8.12 Suspensão do processo ................................................................................... 217

8.13 Julgamento do incidente - criação de precedente e limites do precedente ... 220

8.14 (In)constitucionalidade na criação de precedente vinculativo ...................... 226

8.15 Valores e princípios que justificam a vinculatividade do instituto ............... 229

8.16 A vinculatividade não desobrigará o magistrado de motivar suas decisões . 231

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8.17 O incidente de resolução de demandas repetitivas e a busca pela razoável duração do processo ..................................................................................................... 232

8.18 A evolução da sociedade e a possibilidade de alteração de entendimento fixado no incidente ....................................................................................................... 235

9 A possibilidade de dois Tribunais de segundo grau julgarem o incidente de maneira diversa .............................................................................................................................. 238

10 Comparativo do incidente de resolução de demandas repetitivas com as ações coletivas previstas no microssistema (Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90) ................................ 239

11 Análise crítica do instituto ....................................................................................... 241

12 Conclusão ................................................................................................................. 245

Referências ........................................................................................................................ 254

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14

Introdução

Muitos são os problemas que levam à grande taxa de congestionamento do Judiciário

(quantidade insuficiente de juízes e servidores, estrutura administrativa por vezes precária,

informatização ultrapassada, baixa conscientização da população etc.). Em decorrência do

objeto do presente trabalho, entretanto, não nos cabe perquirir com maior aprofundamento tais

deficiências.

O Estado deve fazer sua parte, treinando constantemente os funcionários do Judiciário

(juízes e serventuários), modernizando e informatizando os tribunais; a população deve

também fazer a sua parte, pautando suas condutas de acordo com as normas preestabelecidas

e procurando resolver suas demandas por meio da conciliação; os advogados devem orientar

seus clientes sobre os riscos da demanda; enfim, muito precisa ser feito e revisto, não nos

cabendo aqui lucubrar sobre quais seriam essas mudanças e quais seus impactos, haja vista

não se tratar de uma pesquisa empírica.

Como estudiosos da ciência processual devemos nos ater a essa ciência para tentar

aprimorá-la como forma de contribuir para uma justiça mais efetiva.

O processo, como instrumento posto à disposição da jurisdição para a obtenção de sua

finalidade, que é dar a cada um aquilo a que lhe é de direito, tem sua duração fisiológica que

não pode ser deixada de lado sob pena de se ferirem mais do que princípios constitucionais,

verdadeiras cláusulas pétreas.

Assim, a Constituição brasileira prevê, a exemplo de outras, o direito de acesso à

justiça. Sabemos que esse acesso tem que ser efetivo, pois justiça tardia não pode ser

considerada justiça.

Por outro lado, justiça célere, a qualquer custo, também não é justiça. Nossa

Constituição prevê a razoável duração do processo como princípio e não a celeridade.

O contraponto entre o devido processo legal e a razoável duração do processo é o

calcanhar de Aquiles de nossa disciplina. Contrabalançar esses dois princípios não é tarefa

fácil, mas é função do processualista tentar trazer parâmetros para evolução dessa disciplina

no intuito de dar a cada um o que realmente lhe pertence e num prazo considerado razoável.

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15 Dentre outros institutos de fundamental importância para a ciência processual,

procuramos nos debruçar sobre a forma de resolução de litígios que podem se repetir perante

a sociedade e a necessidade de resolução de modo uniforme desses litígios individuais.

Uma das formas de se uniformizar esses litígios seria por meio da tutela de modo

coletivo desses direitos individuais. A evolução e o estudo da tutela coletiva de direitos e da

tutela de direitos coletivos nos últimos anos é visível. Não obstante, a nossa legislação sobre

tutela coletiva de direitos tem seus pontos de restrição, o que também contribui para o

aumento da quantidade de processos individuais, mais especificamente, os que versam litígios

de massa.

Com a massificação das relações jurídicas, por via de consequência, há maior procura

pelo Judiciário. A necessidade de adaptação deste para atender essas demandas é crucial para

a própria existência de um Estado Democrático de Direito.

Diante dessas ineficiências é que surge a tendência de se obedecer aos

posicionamentos exarados pelos Tribunais e de se objetivar os julgados por estes proferidos.

Neste trabalho pretendemos demonstrar que o sistema processual civil brasileiro

sempre visou à uniformização e a obediência dos julgados proferidos pelos Tribunais, isto em

razão da necessidade de segurança jurídica e o iminente instituto, previsto no Projeto de Lei

8.046/2010 da Câmara dos Deputados tem também a finalidade de fazer com que haja

obediência ao posicionamento exarado pelos Tribunais, visando solucionar parte dos

problemas diuturnamente enfrentados pelo Judiciário.

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16 CAPÍTULO I – PANORAMA ATUAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

1 A constante busca pela cessação da lentidão do Judiciário

A preocupação com a lentidão do Judiciário na resolução dos conflitos e o crescente

número de demandas não é assunto novo, nem problema localizado. Há também essa

preocupação em diversos outros países.

Como destacado por Maria Elizabeth de Castro Lopes, os principais processualistas já

se debruçaram sobre a revisitação de conceitos processuais; o empenho de defender a

constitucionalização do processo civil; busca pela efetividade; informalidade do processo;

quebra de paradigmas e também sobre o fortalecimento dos poderes de direção e instrução

conferidos ao juiz1, tudo no intuito de aprimorar essa ciência.

Como estudioso do direito processual podemos apenas destacar alguns dos principais

pontos que levaram o legislador a realizar reformas setoriais no processo pátrio, bem como

ainda leva o legislador a buscar novos mecanismos processuais, com o fim de tentar dar à

sociedade uma resposta aos direitos consagrados na Constituição: o direito de acesso ao

Judiciário, para obtenção da tutela jurisdicional pleiteada, num prazo razoável, obedecendo

aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A partir das constantes preocupações, e considerando a finalidade da ciência

processual, Dinamarco nos traz os escopos nos quais a jurisdição deve estar baseada (escopos

social, político e jurídico)2.

Pode-se destacar também a alteração do eixo metodológico, que, no início do século

passado, estava voltado para o estudo da ação e atualmente está voltado para o estudo da

tutela3.

1 LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: RT, 2006, p. 64-65 2 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009 3 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. vol. 1. 4. ed. São Paulo:

Saraiva, 2010

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17 Com essas considerações iniciais, passamos a nos aprofundar em alguns dos pontos

enfrentados pela comunidade jurídica na busca incessante da eliminação da morosidade

processual4.

1.1 A Constitucionalização do Direito Processual

Na evolução do direito constitucional, na qual podemos destacar a preocupação com a

proteção dos direitos de primeira, segunda e terceira gerações, também constatamos um salto

na preocupação com direitos processuais mínimos que devem ser garantidos aos cidadãos5.

A preocupação com os direitos de segunda geração surgiu com o término da primeira

guerra, quando se passaram a reconhecer direitos sociais. Pode-se citar como exemplo a

Constituição de Weimer de 19196. Após isso, três outros fatos históricos marcaram a

humanidade: a segunda guerra mundial, o fascismo e o nazismo7. Por conta disso foi

proclamada, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,

prevendo direitos processuais básicos. Com essa evolução, houve por consequência a

4 Muitas são as causas que levam à lentidão da prestação da tutela jurisdicional pelo Estado num prazo

razoável (falta de informatização, falta de mão-de-obra etc.) Não nos cabe, nesse trabalho, levantar quais são as causas dessa lentidão, nem quais seriam as melhores soluções, tendo em consideração nosso objetivo.

5 Podemos destacar alguns instrumentos históricos que visavam à proteção dos direitos mínimos das pessoas, como a declaração de Virgínia de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Constituição Americana de 1791. Esses primeiros documentos visavam à proteção dos chamados direitos de primeira geração. (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 5-6). Cappelletti fala na “positivação” do direito natural, passo que foi dado com as instituições das Constituições rígidas, se iniciando com a Constituição dos Estados Unidos. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 56)

6 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41

7 Após fazer um histórico sobre a ascensão e queda do jusnaturalismo e sobre o positivismo filosófico, para falar sobre o pós-positivismo, Luís Roberto Barros destaca que “[...] a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido”. (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 350-351)

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18 constitucionalização dos direitos fundamentais8, sendo incluídos entre eles os direitos

processuais9.

Destaca Joan Picó I Junoy que

Tras la Segunda Guerra Mundial, se produce en Europa y especialmente en aquellos países que en la primera mitad del siglo XX tuvieron regímenes políticos totalitarios, un fenómeno de constitucionalización de los derechos fundamentales de la persona, y dentro de éstos, una tutela de las garantías mínimas que debe reunir todo proceso judicial. Se pretendía con ello evitar que el futuro legislador desconociese o violase tales derechos, protegiéndolos, en todo caso, mediante un sistema reforzado de reforma constitucional10.

Por conta disso verificamos a constitucionalização de muitos dos princípios

processuais, para que os cidadãos pudessem obter proteção contra eventuais abusos do

Estado. No Direito Pátrio, após um período de ditadura militar, fomos coroados com uma

Constituição que possui um imenso rol de direitos fundamentais, destacando-se como direitos

constitucionais processuais, dentre outros, o do devido processo legal, do contraditório, da

ampla defesa, do acesso ao Judiciário, da isonomia, da motivação das decisões judiciais, do

juiz natural, do dispositivo.

Para a proteção dos direitos e garantias das pessoas faz-se necessário proteger também

os direitos processuais, haja vista que de nada adiantaria a proteção dos direitos das pessoas se

estas não tivessem a garantia de se socorrer a um processo hígido para a própria proteção de

seus direitos constitucionalmente assegurados. Para a própria existência de um Estado

Democrático de Direito é que existem garantias processuais mínimas previstas em nível

constitucional:

[...] la verdadera garantía de los derechos de la persona consiste precisamente en su protección procesal, para lo cual es necesario distinguir entre los derechos del hombre y las garantías de tales derechos, que nos son otras que los medios procesales mediante los cuales es posible su realización y eficacia11.

8 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris, 1993, p. 61-63. Afirma o autor que os “direitos fundamentais constituem o elemento central de quase todas as constituições do século XX, especialmente das promulgadas como reação aos abusos e perversões dos regimes ditatoriais que conduziram à segunda guerra mundial”, afetando também países que não foram vítimas de regimes ditatoriais e países do common law.

9 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 453-524; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 541-541 e 550-554

10 JUNOY, Joan Picó I. Las garantías constitucionales del proceso. Barcelona: Jose Maria Bosch, 2002, p. 17 11 JUNOY, Joan Picó I. Las garantías constitucionales del proceso. Barcelona: Jose Maria Bosch, 2002, p. 18

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19 Com a constitucionalização dos direitos fundamentais e, mais precisamente, dos

direitos processuais, o próprio legislador ordinário encontrou limites para sua atuação no

campo processual, pois para a elaboração de leis processuais passou a ter que observar os

ditames da Constituição12.

A partir do início do século XXI os doutrinadores de direito constitucional passam a

falar de um pós-positivismo, constitucionalismo pós-moderno ou ainda

neoconstitucionalismo.

Com vista nessa nova tendência, busca-se dar maior efetividade à Constituição, “[...]

deixando de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo, especialmente

diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais”13. Passa-se a haver

preocupação com a concretização dos direitos fundamentais14.

Apesar das grandes garantias asseguradas pela Constituição de 1988, o Constituinte

Derivado entendeu que havia necessidade de alteração na Constituição para adequação do

direito processual e do Judiciário à realidade desse novo século.

Isso porque houve aumento de procura pelo Judiciário para a solução dos conflitos e

este precisa responder aos anseios da sociedade para que cumpra sua função constitucional.

1.2 A Emenda Constitucional 45/2004 e as reformas processuais decorrentes como

forma de garantir uma tutela jurisdicional efetiva

Diante da busca incessante pela eliminação da morosidade judicial e por uma maior

efetividade do direito processual, acrescido também do apelo da mídia, em 8 de dezembro de

2004 foi promulgada a Emenda Constitucional 45, apelidada de emenda da “reforma do

12 “[...] na medida em que princípios e regras específicos de uma disciplina ascendem à Constituição, sua

interação com as demais normas daquele subsistema muda de qualidade e passa a ter um caráter subordinante. Trata-se da constitucionalização das fontes do direito naquela matéria”. (BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado. vol. 9. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, 2007, p. 19. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C7O-2007-LUIZ%20ROBERTO%20BARROSO.pdf Acesso em 26.03.2012 às 10h30)

13 LENZA, Pedro Direito Constitucional Esquematizado. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9 14 Hoje, com a existência dos princípios processuais no texto da Constituição Federal, ela passa a ser o ponto de

partida e de chegada, devendo as leis processuais ser criadas e interpretadas a luz da Constituição.

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20 Judiciário”. Por meio dela houve a inclusão do princípio da razoável duração do processo,

alteração de competências entre o STF e o STJ, alteração de competências na Justiça do

Trabalho (deslocando uma gama maior de assuntos para ser tratado por esta justiça

especializada), criação de enunciados de súmula com efeito vinculante, criação do Conselho

Nacional de Justiça, dentre outros pontos15. Não fosse apenas isso, a partir dai foi firmado o I

Pacto Republicano de Estado para uma justiça mais ágil, que contou com as assinaturas dos

chefes dos Três Poderes. Como decorrência, quarenta e um projetos de lei foram

encaminhados ao Congresso Nacional visando a uma melhora na prestação da tutela

jurisdicional pelo Estado16. Muitos desses projetos acabaram sendo aprovados e

sancionados17. Após, em 13 de abril de 2009 foi assinado o II Pacto Republicano e já foi

proposto pelo Min. Cesar Peluzo (então presidente do STF) a assinatura do III Pacto

Republicano.

Por conta dessa alteração na Constituição Federal e da junção de esforços para tentar

melhorar a sistemática processual, foram sancionadas leis alterando até mesmo conceitos

enraizados, como o da separação de processos entre cognição e execução18; houve alteração

no regime do recurso de agravo contra as decisões interlocutórias19; a criação de uma

sistemática que possibilitou a improcedência liminar pelo juiz de primeiro grau; a alteração

dos requisitos para a interposição do recurso extraordinário; a criação de procedimentos para

o julgamento de recursos por amostragem; a previsão de informatização do processo; e a

edição de enunciados de súmula vinculante.

As reformas já realizadas no direito processual civil, apesar de trazerem alguns

resultados positivos não tiveram o condão de solucionar os problemas existentes, que a cada

dia se tornam maiores. A sociedade clama por um Judiciário mais célere20. Em 2009, por

15 Vale lembrar que parte do projeto da Emenda Constitucional voltou para a Câmara dos Deputados em razão

de alterações votadas e aprovadas no Senado Federal (PEC358/05). Essa PEC ainda se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados.

16 A quantidade de projetos referem-se não apenas à área processual civil. 17 Podemos destacar, a guisa de exemplo, as Leis 11.187/05; 11.232/05; 11.276/06; 11.277/06; 11.280/06;

11.382/06; 11.417/06; 11.418/06 e 11.672/08. 18 Sobre o tema, ver: CARNEIRO, Athos Gusmão. Do cumprimento de sentença conforme a Lei 11.232/05.

Parcial retorno ao medievalismo? Por que não? Revista AJURIS. Rio Grande do Sul. ano 33, n. 102, 2006, p. 51-78

19 Apesar disso, afirma Cassio Scarpinella Bueno que a regra contida na Lei 11.187/05 não alterou a sistemática do recurso de agravo, apenas a tornou mais explicita, pois a alteração já havia ocorrido com a Lei 10.352/2001. (BUENO, Cassio Scarpinella. Nova Etapa da Reforma do Código de Processo Civil. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2006)

20 [...] “aqui e alhures não se calam as vozes contra a morosidade da justiça. O vaticínio tornou-se imediato: ‘justiça retardada é justiça denegada’ e com esse estigma arrastou-se o Poder Judiciário, conduzindo o seu

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21 determinação do Senador José Sarney, então presidente do Senado, por meio do Ato 379/2009

foi instituída comissão de juristas encarregada de elaborar proposta de anteprojeto de Código

de Processo Civil visando acelerar a tramitação de processos perante o Judiciário,

desafogando os Tribunais e garantindo à sociedade um processo mais célere. Segundo a

Exposição de Motivos do Projeto:

Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo. [...] O novo Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo. A simplificação do sistema, além de proporcionar-lhe coesão mais visível, permite ao juiz centrar sua atenção, de modo mais intenso, no mérito da causa. Com evidente redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco objetivos: 1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais coesão.

Constata-se, por meio dessa evolução, uma luta constante por parte da doutrina e

também da sociedade por maior agilidade do processo, mas essa agilidade não pode ser

concedida a qualquer custo. Como dito, a Constituição fala em razoável duração do processo,

o que não pode ser confundido com celeridade desenfreada e sem respeito aos demais

princípios constitucionais, devendo haver equilíbrio entre devido processo legal e

efetividade21. Esse é o dilema secular existente no direito processual civil para se garantir um

processo justo e equo22.

desprestígio a índices alarmantes de insatisfação aos olhos do povo”. (Trecho extraído da carta do Min. Luiz Fux, ao encaminhar o anteprojeto de CPC ao Senado Federal)

21 “[...] os valores processuais denominados ‘segurança jurídica’ e ‘celeridade’ são universalmente inconciliáveis em termos absolutos, porquanto incompatíveis entre si, na exata medida em que, aumentando-se a rapidez, naturalmente reduz-se, na mesma proporção, a segurança na prestação da tutela jurisdicional”.

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22 Essa luta constante, todavia, não fica limitada à maior efetividade do processo.

Também envolve maior busca por isonomia e segurança jurídica. Assim, os institutos

processuais precisam ser aperfeiçoados para evitar a existência de decisões antagônicas, o

que traz previsibilidade, isonomia e também segurança jurídica.

2 A evolução da sociedade e a massificação dos negócios jurídicos

No curso recente da evolução do direito processual, desde meados do século XIX,

houve grande transformação dessa disciplina como ciência autônoma, destacando-se desde a

importante polêmica entre Bernhard Windscheid e Theodor Muther, seguindo-se com

importantes obras de Oskar von Bullow, Dekengolb y Plosz e Adolf Wach e demais obras que

contribuíram sobremaneira para essa evolução.

A sociedade, em paralelo, também vinha sofrendo transformações, geradas, dentre

outros motivos, pela revolução industrial, iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII e

expandida pelo mundo em meados do século XIX23. Posteriormente, com a evolução da

(FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 301

22 Destaca-se que a Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, datada de 04.11.1950 já trazia direito a uma razoável duração do processo: Art. 6º. “Right to a fair trial. 1 In the determination of his civil rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law. Judgment shall be pronounced publicly but the press and public may be excluded from all or part of the trial in the interests of morals, public order or national security in a democratic society, where the interests of juveniles or the protection of the private life of the parties so require, or to the extent strictly necessary in the opinion of the court in special circumstances where publicity would prejudice the interests of justice”. Texto semelhante também foi introduzido no Pacto de San Jose da Costa Rica datado de 22.11.1969 (art. 8º)

23 Enzo Roppo, ao tratar da evolução do contrato, afirma que o aumento das relações negociais decorreu do surgimento do capitalismo, que acabou por contribuir para a sistematização da teoria dos contratos e sua evolução: “E se se tornar necessária uma confirmação indirecta desta estreita ligação entre a exaltação do papel do contrato e a afirmação de um modo de produção mais avançado, atente-se em que não pode certamente atribuir-se ao mero acaso o facto de as primeiras elaborações da moderna teoria do contrato, devidas aos jusnaturalistas do séc. XVII e em particular ao holandês Grotius, terem lugar numa época e numa área geográfica que coincidem com a do capitalismo nascente; assim como não é por acaso que a primeira grande sistematização legislativa do direito dos contratos (levada a cabo pelo código civil francês, code Napoleon, de 1804) é substancialmente coeva do amadurecimento da revolução industrial, e constitui o fruto político directo da revolução francesa, e, portanto, da vitória histórica conseguida pela classe – a burguesia – à qual o advento do capitalismo facultou funções de direção e domínio de toda a sociedade”. (ROPPO, Enzo. O contrato. (trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes). Coimbra: Almedina, 1988, p. 25-26)

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23 sociedade vimos o surgimento do Fordismo e com ele o surgimento da cultura da produção

em massa e também da economia de escala24.

Nessa evolução, os negócios jurídicos, que séculos antes eram poucos, passaram a

crescer ano após ano. Em decorrência da evolução da sociedade, ampliam-se os meios de

comunicação, e as pessoas que não tinham acesso a informações básicas passam a tê-la.

Vai-se implementando, ao longo da evolução histórica de nossa sociedade, a ideia do

consumismo, sendo a economia de escala grande atrativo para os empresários, que poderiam

lucrar a partir da produção em grande quantidade de produtos em série. Surge a

massificação25 e com ela a estandardização dos negócios jurídicos26.

Durante essa evolução, constatou-se o êxodo rural e a concentração das pessoas em

grandes metrópoles, cada vez mais inchadas (sem deixar de mencionar o crescimento

populacional).

O acesso aos meios de comunicação, de fundamental importância nesse processo,

decerto faz com que as pessoas alimentem o desejo por bens de consumo, porém, ao mesmo

tempo, também leva a essas mesmas pessoas mais informações sobre seus direitos e garantias.

Com isso, a justiça, que até pouco tempo era elitizada – pois os conflitos surgidos

eram, em sua grande maioria, decorrentes de discussões sobre posse, propriedade, inventário,

ou seja, justiça acessível apenas àqueles que detivessem conhecimento e fortuna – passa a

abrir suas portas para a população em geral.

24 RODRIGUES, Ruy Zoch. Ações repetitivas: casos de antecipação de tutela sem o requisito de urgência. São

Paulo: RT, 2010, p. 31 25 “Os fenômenos do nascimento do welfare state e do crescimento dos ramos legislativo e administrativo

foram por si mesmos, obviamente, o resultado de um acontecimento histórico de importância ainda mais fundamental: a revolução industrial, com todas as suas amplas e profundas consequências econômicas, sociais e culturais. Essa grandiosa revolução assumiu uma característica que se pode sintetizar numa palavra certamente pouco elegante, mas assaz expressiva: ‘massificação’. Todas as sociedades avançadas do nosso mundo contemporâneo são, de fato, caracterizadas por uma organização econômica cuja produção, distribuição e consumo apresentam proporções de massa”. (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 56-57)

26 “Um fenómeno similar de despersonalização das relações contratuais e de automatismo na actividade destinada a constituí-las é patenteado pela praxe de contratação standartizada, através do emprego de condições gerais, módulos e formulários, predispostos antecipadamente, por uma parte, para uma massa homogénea e indiferenciada de contrapartes (contratos de massa): aqui a aceitação – do consumidor, do utente, do inquilino, etc. – resume-se, no máximo, a um simples acto de adesão mecânica e passiva ao esquema pré-formulado [...]” (ROPPO, Enzo. O contrato. (trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes). Coimbra: Almedina, 1988, p. 302)

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24 Em reporte importante realizado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth constata-se a

evolução do acesso à justiça, o que foi classificado como três “ondas renovatórias”27.

Num primeiro momento buscou-se ampliar o acesso aos necessitados. Diversas

pessoas não tinham (e ainda hoje muitas delas não têm) condições de arcar com as despesas

processuais e com os honorários necessários para contratar um advogado. No Brasil, a lei que

regula o acesso à justiça, por meio da concessão da assistência judiciária gratuita, é a

1.060/1950. Ocorre que essa expansão ao acesso à justiça ocorreu bem posteriormente, com a

promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação das defensorias públicas (ressalte-se

que nem todas elas estão plenamente aparelhadas para atender a população carente, a exemplo

do que se verifica no Estado de São Paulo, porquanto apesar de ter Defensoria Pública, ainda

necessita de convênios com a OAB e faculdades para dar vazão às demandas da população

carente).

Com o aumento da densidade demográfica e a expansão dos meios de comunicação,

com o consequente incremento da quantidade de negócios jurídicos que as pessoas passaram a

realizar diariamente (massificação), acrescidos do maior acesso à informação e da facilitação

de acesso aos necessitados, as portas do Judiciário foram abertas para a resolução desses

conflitos, que até então não eram solucionados pelo Judiciário.

Num segundo momento (segunda onda renovatória), procurou-se ampliar o acesso à

justiça para proteger direitos dispersos, que não possuíam legitimados certos. Surge a

necessidade de regulamentação e proteção de direitos difusos, junto com a necessidade de

proteção de negócios celebrados pela população com grandes corporações, decorrentes dos

negócios de massa. Isso porque muitos dos danos sofridos são de pequena monta e o

custo/benefício de se demandar para ter a proteção individual não compensa na maioria das

vezes, fazendo com que a população não tenha seu direito protegido e que as grandes

corporações beneficiem-se de sua própria torpeza. Assim, pessoas que individualmente não

teriam interesse em litigar passam a ser agrupadas para que tenham maior força perante a

outra parte da demanda, com vistas a uma equalização entre as partes do processo e

viabilidade de se demandar, já que o grupo tem maior poder do que o indivíduo isolado. Com

27 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. (trad. Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 31

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25 isso o Ocidente28 se volta à criação / aperfeiçoamento de mecanismos visando à proteção dos

chamados direitos metaindividuais29.

Numa terceira etapa, chamada por Garth e Cappelletti de “enfoque de acesso à

justiça”30, em que se busca a efetivação do acesso a justiça, constata-se a necessidade de dar

vazão às demandas propostas perante o Judiciário. Nesse período, mecanismos tais como

reformas procedimentais, mudança na estrutura do Judiciário, criação de novos tribunais etc.

são adotados para tornar o acesso à justiça real e efetivo, haja vista que não adianta abrir as

portas para novas demandas e para que a população em geral tenha acesso ao Judiciário sem

que haja modificação no sistema processual, procedimental e na estrutura do Judiciário etc.

para que os litígios possam ser resolvidos num prazo razoável.

Essa evolução do acesso à justiça, no entanto, não foi acompanhada de uma

correspondente evolução do Judiciário, o qual, estagnado, hoje se vê abarrotado de processos

que aguardam, quase sem esperanças, um provimento final efetivo.

Nas últimas décadas podemos nos lembrar também da grande massificação de

negócios jurídicos surgidos com a privatização de alguns serviços que eram até então

prestados pelo Estado (energia elétrica, telefonia). Um telefone fixo, por exemplo, custava

tanto quanto um carro popular. Com a privatização e expansão da telefonia, hoje uma linha

telefônica praticamente não tem preço comercial.

Acrescente-se ainda a nova transformação pela qual estamos passando, desde a quebra

de fronteiras, por meio da globalização, até a instantaneidade das informações, sem deixar de

28 Segundo reporte de Masaaki Haga feito no XIII Congresso Mundial de Direito Processual no ano de 2007,

em Salvador, no Japão não há um sistema processual capaz de lidar com os litígios envolvendo direitos dos consumidores. Há estudos e também houve forte movimento para adoção de um sistema baseado nas class actions norte-americana, todavia, há discussões sobre se esse modelo não seria uma forma de sanção contra as sociedades empresárias. Também há discussão sobre o due process of law em razão do pequeno número de entes que poderiam litigar sem autorização. (GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: RT, 2008, p. 227-228

29 “[...] as características da vida contemporânea produzem a emersão de uma série de situações em que, longe de achar-se em jogo o direito ou o interesse de uma única pessoa, ou de algumas pessoas individualmente consideradas, o que sobreleva, o que assume proporções mais imponentes, é precisamente o fato de que se formam conflitos nos quais grandes massas estão envolvidas, e um dos aspectos pelos quais o processo recebe o impacto desta propensão do mundo contemporâneo para os fenômenos de massa: produção de massa, distribuição de massa, cultura de massa, comunicação de massa, e porque não, processo de massa? (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo. n 61. São Paulo: RT, 1991, p. 187 e ss.)

30 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. (trad. Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 31

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26 lado, por óbvio, a constante evolução tecnológica, que está também revolucionando a forma

como os negócios jurídicos estão sendo celebrados31.

Vemos, com isso, que pessoas que até bem pouco tempo sequer tinham um aparelho

de TV em suas casas hoje têm computadores, possuem aparelhos telefônicos fixo e móveis.

Isso é muito positivo e mostra que, apesar do grande abismo decorrente da desigualdade

social, nossa sociedade está cada vez mais inclusiva.

Todavia, essa grande gama de negócios jurídicos celebrados por todos acaba, de certa

forma, trazendo consigo problemas até então inexistentes, ou existentes em quantidade

diminuta.

O Estado, com isso, tem a função de resolver os conflitos surgidos e não solucionados,

haja vista que a partir do momento em que foi proibida a autotutela (como regra), ele trouxe

para si a função de por um ponto final nesses conflitos, com vistas a uma utópica paz social.

O problema é que o Estado não consegue se desincumbir de seu papel a contento, pois

são tantas as lides surgidas e diversos os problemas que o Judiciário enfrenta para solucioná-

las, que estamos à beira de um caos.

Para tentar solucionar parte desse caos, dentre outras medidas, foram trazidas para o

direito pátrio as ações coletivas.

Verificando-se a existência de demandas envolvendo direitos comuns, surge a

necessidade de proteção desses direitos, ditos metaindividuais32. Diante de litígios decorrentes

de uma origem comum, como ações indenizatórias decorrentes de acidente aéreo ou

decorrente da comercialização de produtos defeituosos ou viciados, não há porque

permanecer com o sistema tradicional para a resolução dessas questões.

Em decorrência desses “novos” direitos surge a segunda “onda renovatória”. A ideia

descrita por Cappelletti e Garth é a de proteção de pessoas em grupo contra grandes

instituições, devidamente organizadas, seja para dar maior isonomia, seja para tornar viável a

31 Uma simples compra e venda realizada presencialmente passa a ser realizada a distância, inclusive

internacionalmente, gerando diversas consequências, como até mesmo outros negócios jurídicos, como o transporte da mercadoria, por exemplo. O contrato que existia em meio físico, passa a existir em meio eletrônico. O dinheiro físico, muitos deixam até de ver, porque ele sai de uma conta e entra em outra por meio de transações eletrônicas. Compras que eram individuais, agora são feitas coletivamente etc.

32 Como o foco do trabalho é a análise do direito individual, pedimos vênia para deixar de tratar da tutela coletiva.

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27 defesa desses direitos, pois pode não ser financeiramente viável a defesa individual dessas

pessoas.

Mas não são apenas essas as razões para que os direitos individuais sejam tutelados de

forma coletiva33. A proteção coletiva de direitos individuais também tem a função de reduzir

o número de demandas perante o Judiciário. Afinal, diversas demandas seriam concentradas

numa única demanda, sem falar na segurança jurídica trazida para o sistema, pois se evitaria

que julgamentos em sentido contrário sejam proferidos em “casos idênticos”, o que por fim

garantiria a isonomia.

Noticia-se que a difusão das class actions ocorreu em 1938, nos Estados Unidos, com

a Rule 23 da Federal Rules of Civil Procedure34. As class actions norte-americanas têm

inspiração no direito inglês, no qual é possível encontrar antecedentes mais remotos35.

No Brasil, para a proteção desses novos direitos podemos destacar, dentre outras, a Lei

de Ação Popular (Lei 4.717 de 1965), a lei que trata da intervenção e liquidação extrajudicial

de instituições financeiras (Lei 6.024 de 1974), a Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347 de

1985), a Lei de proteção aos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei 7.913 de

1989), o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 1990) e a Lei do Mandado de

Segurança Individual e Coletivo (Lei 12.016 de 2009).

Apesar da existência de diversas leis que pretendem reger o sistema de tutelas

coletivas no direito pátrio, verifica-se que muitas demandas acabam sendo solucionadas por

meio do processo individual. Muitos são os problemas36 enfrentados na solução do litígio de

33 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4.

ed. São Paulo: RT, 2009, p. 34 34 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 3 35 Afirma Castro Mendes que na época medieval já houve acontecimentos que indicam a origem das demandas

coletivas: Noticia-se que o primeiro caso na Inglaterra teria surgido em 1199, perante a Corte Eclesiástica de Canterbury, na qual um pároco, Martin, teria ajuizado demanda versando direitos em face dos paroquianos de Nuthamstead. Todavia, há quem afirme que há situação mais remota, na França, quando em 1179, na cidade de Paris, os aldeões da vila de Rosnysous-Bois teriam reivindicado o fim da condição de servos. (LEAL, Marcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998, p. 21-22; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. 2. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 38)

36 Há quem afirme a falência do processo coletivo como instrumento de combate à massificação: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.

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28 forma coletiva no direito pátrio37, o que faz com que as demandas continuem na sua grande

maioria, sendo resolvidas pelo modelo tradicional de processo.

3 A necessidade de o Judiciário garantir a segurança jurídica na resolução das

demandas

Utilizando-se das palavras de Donaldo Armelin, podemos destacar que segurança

jurídica:

Constitui um elemento fundamental para a sociedade organizada, um fator básico para a paz social, o que implica estabilidade de situações pretéritas e na previsibilidade de situações futuras. No plano da atuação jurisprudencial, a previsibilidade das decisões judiciais insere-se para o usuário da jurisdição como um fator de segurança que o autoriza a optar por um litígio ou por uma conciliação. É fundamental que quem busque a tutela jurisdicional tenha um mínimo de previsibilidade a respeito do resultado que advirá de sua postulação perante o Judiciário38.

O tema segurança não é novo. Evitando-se a instabilidade social e a surpresa, a

sociedade buscou pautar-se pela segurança jurídica. Segurança esta que, por via de

consequência, traria estabilidade para o sistema.

A própria criação do Estado teve por objetivo trazer a segurança para a sociedade.

Thomas Hobbes destacou que o homem, num estado natural, era governado por sua própria

razão, podendo fazer o que quiser, inclusive quanto à outra pessoa e isso não traria segurança

para os homens, mesmo para os mais fortes ou astutos, razão pela qual celebraram um pacto,

dando poderes a um soberano e obedecendo assim as leis emanadas deste39. Rousseau, por sua

37 Apenas para se ter uma ideia da imensa problematização enfrentada na solução dos litígios de forma coletiva,

podemos citar a limitação das matérias que podem ser objeto de ação coletiva (havendo um rol de matérias que não podem ser objeto de ação civil pública – art. 1º da Lei 7.347/85); discussão sobre a necessidade de autorização e relação de associados para ajuizamento de ação coletiva; convivência entre ações individuais e ações coletivas, podendo ainda haver contrariedade entre decisões dessas ações; dificuldade em se estabelecer o juízo competente para apreciar a demanda coletiva; redução dos efeitos da coisa julgada, limitada “ao âmbito de competência do juiz prolator da decisão”; o não impedimento de ajuizamento de ações individuais, apesar da existência de coisa julgada no processo coletivo; inexistência de regulamentação das chamadas defendant class actinos. O aprofundamento do estudo sobre esses temas pela doutrina já levou a diversas propostas de alteração do sistema legal de tutela coletiva.

38 ARMELIN, Donaldo. Observância à coisa julgada e enriquecimento ilícito – postura ética e jurídica dos magistrados e advogados. Conselho da Justiça Federal. Caderno do CEJ 23, p. 292

39 “[...] it followed that in such condition every man has a right to everything, even to one another’s body. And therefore, as long as this natural right of every man to everything endureth, there can be no security to any

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29 vez, afirmara que o homem para viver em sociedade precisaria abrir mão de sua liberdade

natural. Haveria uma “alienação total, de cada associado, com todos os seus bens, à

comunidade inteira”40. Com isso deixar-se-ia de viver num estado natural passando a viver

num estado de direito.

Em tempos mais modernos e para os países de civil law, a legislação e a codificação

surgiu da própria ideia de isonomia. A criação de leis abstratas trouxe a ideia de aplicação

uniforme do direito. Isso traria não só isonomia, mas também maior segurança jurídica41.

Como bem destacou Recasens Siches a segurança se enquadra como um dos desejos

básicos da sociedade. E a lei tem papel importante para se garantir essa segurança:

Debido al hecho de que el hombre se representa el futuro y se preocupa por éste, las satisfacciones actuales no son suficientes, mientras que se perciba el porvenir como incierto. Ese deseo de seguridad incita a la creación u al desarrollo de técnicas para evitar el daño que los peligros de la Naturaleza puedan producir; para dominar fuerzas de la Naturaleza con el fin de ponerlas al servicio regular de las necesidades humanas; para garantizar unas buenas condiciones de vida; para prevenir enfermedades y para curarlas etc. Ahora bien, tales deseos de seguridad llevan también – y esto lo que importa subrayar aquí – a buscar el amparo del grupo social mediante normas e instituciones de Derecho positivo. En efecto, el deseo de seguridad es uno de los motivos radicales que lleva al hombre a producir Derecho positivo, gracias al cual pueda, hasta cierto punto, estar cierto y garantizado respecto de la conducta de los otros, y sepa a qué atenerse respecto de lo que uno pueda hacer en relación con ellos, y de lo que ellos puedan hacerle a uno42.

Quando da codificação do direito, no início do século XIX, impediu-se que os juízes

interpretassem as leis. A função dos juízes era simplesmente a de aplicar o direito abstrato ao

caso concreto sem maiores considerações43.

man, how strong or wise soever he be [...]” (HOBBES, Thomas. Leviathan. Forgotten Books. 1651. Republicado em 2008, p. 89. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=-Q4nPYeps6MC&printsec=frontcover&dq=o+leviat%C3%A3+ho&hl=pt-BR&sa=X&ei=aT7oT-PIHoim8ASQ37mVAQ&sqi=2&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false acesso em 25.06.2012 às 7h00). Para uma análise da evolução sobre o entendimento filosófico sobre segurança jurídica: MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 17-47

40 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. (trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p. 33 41 Para Rodrigues Maciel, todavia, numa análise do direito em evolução “as regras fixas e já conhecidas levam

enorme vantagem sobre o empenho em adaptar-se diariamente às constantes evoluções e involuções sociais”. Contudo, “essa postura contraria à própria natureza do homem, acaba por gerar a falsa noção de segurança jurídica e coloca em risco a existência de um sistema jurídico realmente estável”. Isso em decorrência da inexistência de uma única verdade. (MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 14).

42 SICHES, Luis Recasens. Introducción al estudio del derecho. 12. ed. México: Porrúa, 1997, p. 63 43 Destaca Alfredo Buzaid que a somente em 1837 foi concedida à Corte de Cassação francesa o poder de

interpretar a lei: “Entre os objetivos da Cassação não se compreendia, pois, o de realizar a unidade do direito

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30 Todavia, a aplicação das normas abstratas a todos os casos sem maiores distinções,

como, por exemplo, a própria ideia de que todos são iguais, quando na verdade não o são, fez

com que houvesse uma evolução na aplicação das normas, sob pena de se gerar injustiças e

também insegurança44.

Com a evolução da sociedade e, principalmente após as duas grandes guerras e à

queda dos sistemas nazista e fascista, viu-se a necessidade de se estabelecerem direitos

mínimos em nível constitucional. Vê-se a partir desse momento histórico a preocupação com

a introdução de princípios mínimos nas Constituições. A exemplo, nossa Constituição de

1988, vinda depois de um período ditatorial, é repleta de princípios45.

Com as constituições sendo principiológicas, fez-se necessário maior labor

interpretativo para conhecimento do real significado dos textos legais.

Acrescentando-se a isso, também houve maior inclusão de normas abertas no direito

positivo, deixando ao magistrado, na análise concreta do caso, verificar qual a melhor

interpretação da situação (termos como boa-fé objetiva, função social do contrato, função

social da propriedade, moralidade administrativa etc). Isso traz maior complexidade para a

interpretação das normas.

Por conta da alta carga valorativa aplicada ao direito e também pela simples razão de

que a vida em sociedade é muito mais rica e cheia de detalhes do que pode prever o

legislador, os juízes têm a necessidade de analisar o caso concreto e de interpretar o direito

para sua aplicação. Não é mais possível, em pleno século XXI, aceitar a ideia de que os juízes

sejam meras bouches de la loi.

A própria necessidade de os magistrados terem de decidir e interpretar a lei decorre da

necessidade de segurança jurídica diante das lacunas existentes no próprio ordenamento46. A

através da exegese jurisprudencial; essa função surge só mais tarde, através da lenta e segura evolução, que amplia sua atividade e lhe confere, especialmente depois da lei de 1º de abril de 1837, o poder positivo de interpretar o direito, elevando-o à eminência de máximo regulador e guia da jurisprudência, a que deviam conformar-se os juízes”. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 28)

44 “Na formulação do sistema jurídico, caso realmente se queira privilegiar a segurança, deve-se levar em conta a diversidade cultural, fugindo da homogeneização do direito”. (MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41).

45 Não que inexistisse um rol de garantias mínimas em constituições anteriores (a exemplo da Constituição de 1934).

46 Como exemplificado por Recasens Siches, há a necessidade de o juiz interpretar a lei para que não haja absurdos, como o do exemplo citado pelo autor: se diante de uma estação de trem houver uma placa dizendo

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31 simples existência de direito positivado não era suficiente para garantir a segurança jurídica

esperada.

Ao retornarmos à teoria geral do direito e à filosofia verificamos que uma das

finalidades do direito é garantir a isonomia e a segurança jurídica. Gustav Radbruch aponta,

dentre os valores inerentes ao direito, a segurança jurídica47. E isso é fundamental num Estado

Democrático de Direito, pois não se pode falar em garantias mínimas como a liberdade, por

exemplo, sem que seja garantida segurança jurídica48. Sobre o tema Jean-Louis Bergel afirma

que as finalidades do direito são múltiplas e que as opiniões sobre isso são díspares49.

É certo que as normas jurídicas devem possuir aplicação de forma isonômica, sob pena

de se trazer não apenas desigualdade50, mas também insegurança jurídica e tanto um quanto

outro são princípios garantidos por nossa Constituição Federal de 1988.

Verificamos isso pela própria leitura de nossa Constituição que garante, desde seu

preâmbulo, a “segurança”. Esse direito é reforçado no art. 5º, caput e art. 6º. Por certo que a

Constituição não fala de forma expressa sobre o direito à segurança jurídica, mas esse direito

decorre implicitamente dela, pois a crise do direito gera insegurança jurídica, que pode levar à

instabilidade social, levando a crises e fazendo com que o Estado deixe de cumprir sua função

última que é a pacificação social51. Muitas outras garantias constitucionais são pautadas na

segurança jurídica, tais como a da proibição de a lei prejudicar o direito adquirido, o ato

que é proibido o embarque com cão, uma pessoa que queira embarcar com um urso conseguirá embarcar. Todavia, se um cego pretender embarcar com um cão guia, terá tal possibilidade vetada.

47 “Esta exige positividade do direito: se não se pode identificar o que é justo, então é necessário estabelecer o que deve ser jurídico, e de uma posição que esteja em condições de fazer cumprir aquilo que foi estabelecido” (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. (trad. Marlene Holzhausen). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 108 – grifos no original)

48 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 17

49 Citando M. Villey, destaca o autor que “Segundo os autores, o direito deve tender para ‘a justa partilha, a boa conduta dos indivíduos, para a utilidade, a segurança, o bem-estar deles’... ou para ‘a potência da nação, o progresso da humanidade, o funcionamento regular do organismo social’ ... Outros evocam, além das finalidades tradicionais que a justiça, a ordem a segurança ou progresso são, finalidades políticas, como a famosa trilogia da liberdade, igualdade e fraternidade ou garantias mais especialmente econômicas e sociais materializadas pelas aspirações atuais do direito ao trabalho, à saúde, à solidariedade etc.” (BERGEL, Jean Louis. (trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão). Teoria geral do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 22)

50 Não se desconhece a existência sobre discussões filosóficas sobre o que seria isonomia, verdade e outros temas tão caros à filosofia. Não obstante, diante do objeto do presente trabalho, pedimos vênia para avançarmos no tema sem adentrar nessas peculiaridades.

51 “Numa época em que ‘crise é a palavra-chave para a economia, para as relações sociais, a saúde, a educação e as instituições democráticas, também o é para o Direito. Crise do Direito ou crise da Justiça é a base da insegurança jurídica das nações em desenvolvimento”. (SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 17)

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32 jurídico perfeito e a coisa julgada e as garantias processuais (tais como o direito de acesso ao

judiciário, o devido processo legal, o juiz natural, o duplo grau de jurisdição dentre outros)52,

haja vista que este tem por finalidade garantir também a própria existência de um Estado

Democrático de Direito.

Não obstante, de forma expressa a Constituição menciona a possibilidade de edição de

enunciados de súmula com efeito vinculante para extirpar “grave insegurança jurídica” (art.

103-A, § 1º).

A importância da segurança jurídica para o direito é tão grande que já houve a

instituição de sistemas jurídicos injustos, mas mesmo nesses, havia a segurança jurídica.

Mesmo nos sistemas autoritários, nazistas e fascistas, onde se pode falar da existência de

barbáries e injustiças, não se pode falar sobre insegurança jurídica. Não se pode verificar

sistema jurídico sem que haja segurança. “O valor segurança é intrínseco ao direito”53.

A segurança jurídica traz estabilidade e confiança. Traz previsibilidade. Ela não se

confunde com certeza, apesar de seu relacionamento estreito. A segurança jurídica deve ser

verificada de forma objetiva e a certeza é decorrência dessa segurança trazida pelo sistema

jurídico:

A segurança vem das leis firmes que o Estado promulga para o bem dos cidadãos e da sociedade; e a certeza do sujeito advém do conhecimento dessas leis, da valoração de seu conteúdo (compreende que é um bem para si e os demais; “fazer o bem, evitar o mal” é o conteúdo da previsibilidade do homo medius, razoável, comum). [...] a segurança objetiva das leis dá ao cidadão a certeza subjetiva das ações justas, segundo o Direito [...] Certeza é confiança em algo que a Segurança projeta em cada um de nós: a Segurança externa nos dá Certeza interna54.

Assim, não é a certeza que traz segurança jurídica55. Com isso, concluímos que a

criação de um sistema legal visa a garantir segurança jurídica (de modo objetivo). Entretanto,

52 Durante mesa redonda realizada em Aix-en-Provence, na França, os participantes entenderam como

elementos da segurança jurídica a não retroatividade, confiança legítima, continuidade da ordem jurídica, clareza dos texto e conhecimento das regras jurídicas. (AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.)

53 FREIRE, Fernando José de Barros. Previsibilidade dos efeitos do direito e segurança jurídica. Dissertação (Mestrado em Filosofia do Direito) – PUC-SP. São Paulo, 2007, p. 42-43

54 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 26-27 – grifos no original.

55 Para José Fabio Rodrigues Maciel, “O que traz a real segurança jurídica não é a certeza sobre a decisão que será tomada, e sim a não-surpresa sobre o conteúdo das decisões prolatadas”. (MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 4.)

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33 na resolução dos casos concretos do dia a dia poderá surgir incerteza na aplicação da Lei. Essa

incerteza terá que ser resolvida pelo Judiciário, dando às partes a certeza subjetiva, por meio

da decisão transitada em julgado. Essa decisão terá o condão de restabelecer a certeza jurídica

e também garantir a segurança jurídica que se espera do direito. A função dos Tribunais, ao

aplicar o direito abstrato aos casos concretos acaba, por vezes, aperfeiçoando a lei56.

Essa incerteza pode surgir, como mencionado alhures, da própria riqueza da vida em

sociedade, pois o legislador não será capaz de prever todas as possíveis hipóteses de aplicação

das leis. Isso fará com que em determinadas hipóteses o Judiciário intervenha, resolvendo a

questão. A incerteza pode até mesmo surgir da existência de normas abertas e

principiológicas. Isso porque o legislador deixou a questão para ser resolvida pelo magistrado

no caso concreto.

O magistrado, ao resolver esses litígios, trará a certeza que se espera do sistema, dando

às partes uma resposta sobre o caso (proferindo uma decisão que, mais tarde, transitará em

julgado).

Ocorre que, ao se aplicar e interpretar o direito, nem todos os magistrados chegam a

mesma conclusão para casos análogos, fazendo com que surjam decisões contraditórias para

casos que deveriam ser julgados da mesma forma (ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio).

Constata-se com isso a existência de posicionamentos díspares sobre um mesmo tema,

na qual a decisão judicial deveria ser a mesma, ao menos em regra57. Havendo a possibilidade

de decisões díspares em casos relativamente idênticos, o sistema processual deve prever

mecanismos para evitar a mantença dessa disparidade.

Esse é um dos papéis dos tribunais: exercer não só uma segunda verificação da

demanda, mas, principalmente, uniformizar a interpretação e aplicação das normas jurídicas.

56 “Um dos efeitos da Jurisprudência, como doutrina originária e exclusiva dos Tribunais, é precisamente o de

valorizar a Lei”. (SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 37 – grifos no original)

57 É certo que há casos semelhantes que precisam de tratamentos distintos em razão de peculiaridades, seja porque os sujeitos da relação estão inseridos em contextos diferentes, seja em razão da diversidade cultural por conta da dimensão continental do Estado Brasileiro ou até mesmo em decorrência do distanciamento temporal entre os casos. Todavia, o foco do trabalho é justamente procurar mecanismos para corrigir distorções, para que casos análogos sejam decididos de forma análoga. Se houver peculiaridades no caso concreto que façam o julgador a chegar a outra conclusão, essa outra deve prevalecer, sob pena de estagnação do sistema jurídico e, até mesmo, de se voltar ao passado quando todos eram tratados igualmente, quando na verdade não o eram.

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34 O sistema jurídico brasileiro prevê mecanismos que evitam a disparidade de

entendimentos contraditórios sobre um mesmo tema. Também prevê que se evitem a

aplicação de decisões díspares para casos análogos.

A falta de uniformização de entendimento jurisprudencial para casos análogos traz

incerteza para os jurisdicionados, gerando insegurança jurídica. Apesar de, no caso concreto,

haver a certeza sobre determinada situação, diante da formação da coisa julgada, a sociedade

pode acabar ficando sem saber como agir diante de determinadas situações porque os julgados

dos Tribunais algumas vezes se contradizem.

Se voltarmos os olhos para a Lei, veremos que ela traz, como regra, a segurança

jurídica que se espera do sistema. Entretanto, casos há em que o Judiciário precisará dar a

última palavra sobre a aplicação da lei para aquele caso. Havendo aplicação da lei em sentido

oposto para casos análogos, a sociedade não terá a segurança sobre como determinadas

normas devam ser interpretadas.

Para se ter uma ideia, utilizar-nos-emos dos enunciados de súmula 263 e 293 do

egrégio STJ. De acordo com o primeiro enunciado (que foi cancelado), “a cobrança

antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil,

transformando-o em compra e venda a prestação”. Esse enunciado foi aprovado pela 2ª

Seção do STJ em 08/05/2002. Pouco tempo depois, em 27/08/2003 a mesma 2ª Seção

deliberou por cancelar o referido enunciado. Depois disso, a Corte Especial do STJ editou o

enunciado 293 (em 05/05/2004) dispondo que “A cobrança antecipada do valor residual

garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil”.

Acrescenta-se que a edição do enunciado 263 se deu posteriormente ao julgado da

própria Corte Especial que, em 09/08/2001 havia considerado que a cobrança do VRG não

descaracterizaria o contrato de arrendamento mercantil.

Como deve o jurisdicionado se posicionar diante de posicionamentos díspares. Pode o

arrendante cobrar VRG? Ou não pode, porque haveria descaracterização do contrato? O

cidadão não pode ficar a mercê. Ele precisa saber como agir para estar dentro da lei e sem que

corra riscos.

Nesse caso específico, a nossa mais alta Corte responsável pela uniformização do

sistema infraconstitucional chegou a posicionar num sentido em 2001, depois teve esse

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35 posicionamento alterado e, novamente houve alteração de posicionamento. Isso é causa de

insegurança jurídica, pois para apreciação da questão a lei já não era suficiente para gerar a

segurança jurídica que se esperava para os casos concretos.

Diante de situações como estas, percebe-se que apesar de a codificação e o maior

apego à lei ter sido reforçado a partir do início do século XIX visando garantir isonomia e

segurança jurídica, constatou-se a necessidade de interpretação das cláusulas gerais e de

princípios. Interpretação esta que é dada em última instância, pelo Judiciário. Todavia, para se

manter a certeza do direito e garantir a segurança jurídica, faz-se necessário que essa

interpretação seja uniforme, o que não ocorreu, por exemplo, no presente caso. Situações

como esta não pode ocorrer dentro do sistema jurídico, pois trará descrédito ao Judiciário,

além de insegurança à sociedade58.

A previsibilidade é decorrência da segurança jurídica. Também decorre da segurança

jurídica a estabilidade da ordem jurídica59.

Segundo Marinoni, para que haja previsibilidade faz-se necessário haver compreensão

e confiabilidade60. A compreensão consiste no conhecimento das normas com base nas quais

as ações poderão ser qualificadas. Diante da própria evolução do direito e considerando a

necessidade de interpretação das normas pelo Judiciário nos casos concretos, faz-se

necessário aos jurisdicionados que as decisões judiciais sejam previsíveis. Não havendo essa

previsibilidade, o Judiciário fica abarrotado de demandas, pois muito comumente será

possível defender uma demanda, tanto a favor da tese do autor como do réu, em razão de

haver divergência jurisprudencial comprovada (às vezes dentro dos próprios Tribunais

Superiores)61. Não que não possam existir decisões díspares dentro do ordenamento jurídico,

58 Já em 1988, durante congresso sobre participação e processo, Vicente Paulo Tubelis destacou como uma das

causas da falta de confiança no Poder Judiciário a aleatoriedade das decisões judiciais (TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo: RT, 1988, p. 395)

59 POLICHUK, Renata. Precedente e segurança jurídica. In. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 87

60 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 123 61 “O advogado de common law tem possibilidade de aconselhar o jurisdicionado porque pode se valer dos

precedentes, ao contrário daquele que atua no civil law, que é obrigado a advertir o seu cliente que determinada lei pode – conforme o juiz sorteado para analisar o caso – ser interpretada em seu favor ou não. A lógica dessa tradição não apenas é inversa, e assim faz surgir a nítida impressão de que o direito do civil law não é tão certo quanto o direito do common law, como milita e se volta contra o próprio sistema, na medida em que estimula a propositura de ações, o aumento da litigiosidade, o acúmulo de trabalho e o aprofundamento da lentidão do Poder Judiciário”. (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, 125)

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36 ocorre que no nosso sistema esta disparidade é grande e demora-se a realizar a uniformização

de entendimento.

A falta de previsibilidade demonstra a insegurança de um sistema, pois impede que as

pessoas tomem consciência dos seus direitos, fazendo com que elas tenham dúvidas sobre

como se portar diante de determinadas situações, trazendo risco para a própria economia do

país62.

Espera-se não apenas a previsibilidade, mas também a estabilidade das decisões,

significando não apenas respeito ao direito legislado, mas também aos precedentes63. Apesar

de nosso sistema processual ser dotado de mecanismos que visam até mesmo a evitar decisões

conflitantes, em muitos casos eles deixam de ser utilizados. A guisa de exemplo podemos

citar a polêmica decisão da Colenda 4ª Turma do STJ que entendeu pela existência de

indenização por danos morais em razão, dentre outros motivos, do abandono afetivo,

julgamento esse em sentido contrário ao decidido pela 3ª Turma. Sendo verificada a

possibilidade de decisão conflitante pelo próprio tribunal e que essa decisão trará grande

repercussão para a sociedade, porque já não se utilizar da assunção de competência e afetar a

matéria à 2ª Seção?64. Como deve a sociedade se comportar diante das divergências

jurisprudenciais verificadas no judiciário e mais precisamente nos tribunais superiores?

62 Algo que pôde ser visto como positivo foi a decisão do Pleno do STF ao julgar improcedente ADIn 3934,

que visava a declaração de inconstitucionalidade dentre outros, do art. 60, parágrafo único da Lei de Falências, para que o adquirente , via alienação judicial, unidade produtiva de companhia em recuperação judicial respondesse pelos débitos da sociedade em recuperação ou falida. A decisão do pleno se deu em menos de dois anos. Supondo que essa decisão não fosse prolatada com rapidez e que existissem decisões em sentido contrário dentro do próprio ordenamento jurídico, muitas sociedades empresárias deixariam de adquirir unidades produtivas da massa falida sob o risco de responderem pelos débitos anteriores.

63 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, 129 64 Esse é um tema bem complexo, se analisado pela perspectiva da segurança jurídica e previsibilidade, pois

devemos levar em conta que não há prazo prescricional contra absolutamente incapazes. Assim, a omissão extrapatriominal de um genitor que ocorreu há mais de dez anos agora poderá ser enquadrada como ilícito. Mas até pouco tempo, considerando o posicionamento da 3ª Turma, não era. Como as pessoas devem se portar diante dessa indefinição judicial?

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37 CAPÍTULO II – IMPORTÂNCIA DA JURISPRUDÊNCIA E NECESSIDADE DE SUA UNIFORMIZAÇÃO

4 A existência de mecanismos dentro do sistema processual vigente que visam a

impedir a existência de decisões conflitantes

O sistema processual brasileiro, tal como estruturado, com existência de recursos, de

Tribunais Superiores (STF e STJ mais precisamente), de incidentes de uniformização, visa à

resolução de conflitos de forma uniforme. Não é porque somos um país de tradição romano-

germano-canônico, baseados na lei, que podemos ignorar a forma como esta é interpretada

pelos Tribunais. O problema é que, havendo lei, o âmbito de atuação dos Tribunais deve ser

reduzido, ou seja, o magistrado não tem pleno poder de interpretar o caso como bem entender.

Ele tem a função de analisar o caso e enquadrá-lo diante dos princípios constitucionais e das

leis que regulam o tema65.

A ideia do legislador ao prever recursos não é de apenas dar à parte o direito de,

inconformada, ter sua decisão reapreciada. O recurso para o Tribunal local também serve para

a uniformização da interpretação da questão no âmbito do Tribunal (Estado ou Região). O

recurso para o STJ (recurso especial) tem a finalidade de uniformizar a interpretação do

direito em âmbito federal. O recurso para o STF (recurso extraordinário), por sua vez, tem o

papel de uniformizar a interpretação das normas de acordo com a Constituição Federal.

Apesar de os recursos serem proferidos para os casos em concreto, eles devem ter um

caráter persuasivo sobre como se deve interpretar a lei em casos análogos. O sistema pátrio,

apesar de não estar baseado na tradição dos países de common law, precisa basear-se em

precedentes. Nosso sistema recursal foi criado com vistas a isso. Basta verificar a existência

do incidente de uniformização de jurisprudência, o incidente de inconstitucionalidade, o

recurso especial fundado na alínea “c” do art. 105, III, da Constituição Federal, o controle

concentrado de constitucionalidade e o recurso de embargos de divergência66. Esses institutos

65 Mas isso também não é diferente nos países da common law. Os juízes não saem por aí julgando como bem

entendem. Resolvem seus conflitos aplicando o que já foi estabelecido no passado para outro caso semelhante.

66 Sem falar no fator histórico do nosso direito, que previa a existência de assentos.

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38 foram criados com a finalidade de se garantir segurança jurídica, previsibilidade e também

isonomia aos julgados.

O objetivo do presente capítulo é demonstrar que nosso sistema foi criado com vistas à

uniformização da interpretação das normas jurídicas, havendo, entretanto, certo embaraço a

esse intento.

4.1 O incidente de uniformização de jurisprudência

Ao julgar, o juiz faz a análise do caso concreto e verifica a norma aplicável (subsunção

do fato à norma), exercendo a interpretação e aplicação desta. As normas, que são abstratas,

ganham seus contornos interpretativos na sua aplicação aos casos. Apesar de já ter sido dito

no passado que o juiz nada mais era do que “la bouche de la loi”, ao aplicar a lei o magistrado

precisa realizar não apenas uma subsunção, devendo também realizar um exercício de

interpretação para conhecer o real significado da norma.

Como são vários os magistrados, é comum que a conclusão de uns possa ser

divergente da de outros. É por meio desse exercício diário que são fixadas teses jurídicas

novas, são reforçadas teses já estabelecidas há séculos ou são reformuladas teses (seja em

razão da evolução da sociedade, em seu aspecto cultural, seja em razão da consideração de um

novo princípio aplicado ao caso, de aspectos econômicos, culturais ou políticos da sociedade

etc.)67.

Como se verifica, esse exercício pode fazer com que haja decisões em sentidos

opostos para um mesmo caso concreto idêntico. Até mesmo por aplicação do princípio

constitucional da isonomia e da segurança jurídica não é possível que o sistema permita a

67 A sociedade evolui. Com isso também deve evoluir o entendimento sobre o que os textos fixos das normas

querem transmitir. À evolução do entendimento sobre o texto normativo ou sobre sua abrangência, sem que haja alteração do texto, a doutrina de direito constitucional dá o nome de mutação. Basta lembrarmos a existência de termos como mulher honesta, que variou no tempo e também pode variar no espaço. Por isso, é natural que a jurisprudência seja alterada, acompanhando a evolução da sociedade.

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39 existência de casos apreciados de forma diversa quando as partes desses casos estejam em

situações idênticas68.

A ideia mestra do incidente de uniformização é justamente extirpar decisões

conflitantes sobre um mesmo tema dentro de um mesmo tribunal69.

O incidente de uniformização de jurisprudência, instituto previsto nos art. 476 a 479

do CPC, tem por finalidade, como o próprio nome diz, uniformizar a interpretação das normas

jurídicas dentro de um mesmo tribunal70. O instituto em comento não é recurso71. Sua

natureza jurídica é de incidente processual72. Também não é um instrumento de impugnação

de decisão judicial73.

68 Vale aqui destacar as palavras de Barbosa Moreira, ao afirmar que a existência de pluralidade de órgãos

judicantes “podem ter (e com frequência têm) de enfrentar iguais questões de direito e, portanto, de enunciar testes jurídicas em idêntica matéria. Nasce daí a possibilidade de que, num mesmo instante histórico – sem variação das condições culturais, políticas, sociais, econômicas, que possa justificar a discrepância -, a mesma regra de direito seja diferentemente entendida, e às espécies semelhantes se apliquem teses jurídicas divergentes ou até opostas. Assim se compromete a unidade do direito – que não seria posta em xeque, muito ao contrário, para a evolução homogênea da jurisprudência dos vários tribunais – e não raro se semeiam, entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da garantia jurisdicional”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 4-5 – grifos no original).

69 Cassio Scarpinella afirma que esse instrumento deve ser utilizado para a uniformização da jurisprudência no âmbito dos tribunais de segunda instância: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 366. Em que pese o posicionamento do autor, ousamos dele discordar. A uma porque o CPC não faz qualquer restrição. Assim nada impede a existência do incidente no âmbito dos Tribunais Superiores, a exemplo da previsão constante do art. 118 do Regimento Interno do STJ. Bernardo Pimentel Souza afirma que a doutrina predominante não admite o incidente no âmbito do STF. Apesar disso entende ser possível (SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 355-356). Também admitindo o incidente perante Tribunais Superiores: DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 573.

70 Para a uniformização de posicionamento de tribunais distintos há o recurso especial (art. 105., III, “c”, da Constituição Federal)

71 Em sentido contrário, dando ao instituto o nome de prejulgado, fazendo referência ao Decreto 16.273/1923: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. t. VI. 3. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 4: “Se o ponto em discussão foi resolvido em primeira instância e o corpo, onde se suscitou o prejulgado, havia de conhecer dele em grau de recurso, o prejulgado, apreciação de matéria do recurso, posto que limitado àquele ponto, recurso é”. (grifos no original)

72 Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 8; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 566; SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, p. 18-19; ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 743. Sobre a conceituação de incidente, vide abaixo quando tratamos do incidente de resolução de demandas repetitivas.

73 Em sentido contrário: SILVA, Ovídio Araujo Baptista da. Curso de processo civil. vol 1. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 447-449. Classifica o autor o incidente de uniformização como uma forma não recursal de impugnação à decisão judicial.

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40 Por meio dele, qualquer membro do Tribunal, ao dar seu voto, poderá solicitar o

pronunciamento do tribunal (pleno, órgão especial ou outro órgão indicado pelo regimento –

grupo de câmaras, por exemplo) sobre a matéria objeto do julgamento, com o intuito de

pacificar a interpretação da norma no respectivo tribunal.

Seu objetivo é agir de forma preventiva, ou seja, atua-se antes que a divergência seja

verificada no processo sub judice. A função de corrigir a divergência tendo como base decisão

já prolatada era exercida pelo recurso de revista no âmbito dos tribunais (de acordo com o

CPC de 1939) e é exercida atualmente pelos embargos de divergência (no âmbito do STF e

STJ). Não há, atualmente, meio repressivo para extirpar a divergência entre câmaras nos

tribunais de segundo grau como havia no CPC de 1939.

A divergência deve se dar entre câmaras ou turmas dentro de um mesmo tribunal. Não

há que se falar em incidente de uniformização quando houver divergência (ou possível

divergência) dentro de uma mesma câmara ou turma74.

A demanda na qual haja a divergência não fica restrita apenas aos recursos. As causas

de competência originária também poderão estar sujeitas ao incidente75.

Vale ressaltar também que esse instituto difere da previsão constante do art. 555, § 1º,

do CPC, que prevê a possibilidade de a matéria ser julgada diretamente pelo colegiado maior.

No incidente de uniformização, o colegiado maior76 não julgará o recurso (ou a ação de

competência originária). Julgará apenas a questão de direito que é prejudicial ao mérito do

recurso. Após, devolverá os autos à câmara ou turma, para que esta prossiga no julgamento,

considerando a interpretação dada pelo colegiado maior do tribunal quanto à questão de

direito que foi a este submetida. Aqui o recurso não é julgado pelo colegiado maior. Ainda, o

instituto previsto no art. 555, § 1º, pode ter caráter preventivo de ordem objetiva e não apenas

em relação ao caso em concreto, o que não ocorre no incidente, pois neste se faz necessário

74 Em sentido contrário, admitindo o incidente quando a divergência se der dentro da própria câmara:

SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 727

75 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 628; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 9; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 566.

76 Optamos por utilizar o termo “colegiado maior” tendo em vista que a competência poderá ser do Pleno, do Órgão Especial ou de outro órgão, de acordo com o Regimento Interno de cada tribunal. Em São Paulo, por exemplo, dá-se competência às Turmas Especiais para se julgar o incidente de uniformização. Essas turmas especiais representariam as seções nas quais o Tribunal se divide (direito privado, direito público)

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41 comprovar a divergência77. Por fim, o instituto previsto no art. 555, § 1º, é cabível no caso de

recursos e diante de reexame necessário78, enquanto o incidente pode ser manejado em

qualquer causa perante câmara ou turma de tribunal79.

4.1.1 Origem do instituto

Antes de ser tratada pelo CPC de 1973, essa matéria havia sido regulada pelo CPC de

1939. Esta norma previa, em seu art. 861, que qualquer dos magistrados da câmara ou turma

poderiam requerer o pronunciamento prévio das câmaras reunidas sobre qualquer norma

jurídica com o intuito de extirpar ou evitar divergência entre as câmaras ou turmas80. Esse

artigo 861 do CPC anterior teve inspiração no § 137 da Lei de Organização Judiciária da

Alemanha81.

Podemos citar como precedentes ainda mais remotos no direito pátrio o Código de

Processo Civil e Comercial do Estado de São Paulo, Lei 2.421 de 193082, e também o

77 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p.

370. 78 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 457. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181

79 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 629; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 574

80 Art 861. “A requerimento de qualquer de seus juízes, a Câmara, ou turma julgadora, poderá promover o pronunciamento prévio das Câmaras reunidas sobre a interpretação de qualquer norma jurídica, se reconhecer que sobre ela ocorre, ou poderá ocorrer, divergência de interpretação entre Câmaras ou turmas”.

81 “‘A câmara que conhece da causa pode, em questão de importância fundamental, suscitar a decisão da Grande Câmara, se, segundo se entende, o aperfeiçoamento do direito ou a segurança de jurisprudência uniforme o exige’” (Gerichtverfassungsgesetz, § 137: ‘Der erkennende Senat kann in einer Frage von grundsätzlicher Bedeutung die Entscheidung des Großen Senats herbeiführen, wenn nach seiner Auffassung die Fortbildung des Rechts oder die Sicherung einer einheitlichen Rechtsprechung es erfordert’. Foi esse texto que inspirou o Decreto nº 16.273. (PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo VI. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 7). No mesmo sentido: SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, p. 15.

82 Art. 1126. “Quando ao relator parecer que já existe divergência entre as Câmaras, proporá, depois da revisão do feito, que o julgamento da causa se effectue em sessão conjunta. § único - Decidida a questão de direito, a Câmara a que pertencer a causa, passará immediatamente a julga-la. Às partes não se dará então o recurso da revista”.

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42 prejulgado instituído pelo Decreto 16.273/1923 para uniformizar a interpretação e aplicação

sobre uma quaestio juris na então Corte de Apelação do Distrito Federal83.

Falando-se em prejulgado, verificamos ainda hoje, no Código Eleitoral a existência de

dispositivo prevendo tal instituto (art. 263)84.

Não obstante, tal artigo foi declarado inconstitucional pelo TSE, no julgamento do

recurso especial eleitoral nº. 9936-RJ85. Apesar disso, Paulo Henrique dos Santos Lucon e

José Marcelo Menezes Vigliar lamentam o posicionamento do TSE sobre referido artigo,

afirmando que:

Considerando que a segurança jurídica é um bem a ser preservado, considerando as regras que integram o devido processo legal, e considerando a necessidade de se emprestar maior credibilidade aos julgados, o art. 263 teria plena vigência, pois preceitua que o mesmo tratamento deve ser reservado aos jurisdicionados no trato, na interpretação do direito. Mostrando-se bastante atual, o dispositivo, lamentavelmente declarado inconstitucional, ainda veicula previsão inovadora para que nem mesmo o argumento do “engessamento” do Judiciário tenha condições de ser invocado, considerando que dois terços dos membros do pleno poderiam votar contra a tese até então solidificada86.

Voltando ao incidente de uniformização, verificamos que esse instituto tem inspiração

no direito português antigo, como constata Barbosa Moreira87. Ele encontra similares em

outras legislações, como por exemplo, na Itália (art. 37488) e em Portugal (art. 732-A89).

83 TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do

Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 45. 84 Art. 263. “No julgamento de um mesmo pleito eleitoral, as decisões anteriores sobre questões de direito

constituem prejulgados para os demais casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do Tribunal”

85 Acórdão nº. 12.501, rel. Min. Sepúlveda Pertence, dou. 14.09.1992, v.u. 86 LUCON, Paulo Henrique dos Santos; VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Código Eleitoral interpretado. 2.

ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 338 87 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2009, p. 7 88 Art. 374 “(Pronuncia a sezioni unite) La Corte pronuncia a sezioni unite nei casi previsti nel n. 1 dell’articolo

360 e nell’articolo 362. Inoltre il primo presidente può disporre che la Corte pronunci a sezioni unite sui ricorsi che presentano una questione di diritto già decisa in senso difforme dalle sezioni semplici, e su quelli che presentano una questione di massima di particolare importanza. In tutti gli altri casi la Corte pronuncia a sezione semplice”.

89 “1. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do plenário das secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da Jurisprudência. 2. O julgamento alargado, previsto no número anterior, pode ser requerido por qualquer das partes ou pelo Ministério Público e deve ser sugerido pelo relator, por qualquer dos adjuntos, ou pelos presidentes das secções cíveis, designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

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43 Segundo Ada Pellegrini Grinover, é possível encontrar antecedente histórico ao

incidente de uniformização de jurisprudência em Roma, no período imperial90. Destaca ainda

que nos séculos passados as tentativas de se evitar divergência nas decisões podiam ser

enquadradas em dois critérios distintos: o primeiro, da unificação por meio da força normativa

a determinadas decisões judiciais para casos futuros (Assentos); o segundo, que prevê a

possibilidade de controle por um órgão jurisdicional sobre os demais (Cortes de Cassação).

4.1.2 Procedimento

De acordo com o art. 476 do CPC, qualquer membro do Tribunal, ao proferir seu voto,

pode suscitar o incidente de uniformização de jurisprudência, seja quando verificar a

possibilidade de divergência, seja quando constatada a divergência em face do decidido por

outro órgão do Tribunal.

Também podem requerer o incidente quaisquer das partes do processo91. Até mesmo

terceiros juridicamente interessados podem requerer seja o feito submetido à apreciação de

Colegiado maior no intuito de uniformizar a interpretação da quaestio juris92. Estes podem

requerer seja o feito submetido ao procedimento de uniformização nas razões ou contrarrazões

de recurso ou por meio de petições avulsas93, acompanhadas, é claro, da comprovação da

divergência. O MP também tem legitimidade para requerer a instauração do incidente, tanto

quando atue na condição de parte quanto na condição de fiscal da lei94.

90 Na Roma, no período imperial, todavia, interrompia-se o julgamento para que o Legislativo resolvesse os

pontos duvidosos. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 136-137)

91 Em sentido contrário: TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo: RT, 1988, p. 401

92 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 727; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 366. Para Ada Pellegrini, as partes podem até requerer que o julgamento se faça obedecendo-se ao disposto nos art. 476 a 479, mas a legitimidade para a solicitação do pronunciamento prévio é do magistrado. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 147)

93 Vale acrescentar que o incidente também é admitido nos casos de ações de competência originária do Tribunal. Nesses casos o requerimento pela parte não será feito quando da interposição de recurso. Poderá ser feito por simples petição. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15-18

94 ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 745

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44 Para a realização do incidente devem estar presentes os seguintes requisitos: a) a

matéria controversa deve envolver questão de direito95; b) o julgado paradigma para contraste

deve ter sido proferido por órgão colegiado; c) a questão de direito deve ser relevante para a

análise da questão principal; d) a controvérsia jurisprudencial deve ser atual e ocorrer dentro

do mesmo tribunal, entre órgãos fracionários deste96.

O momento para a suscitação do incidente encerra-se com o encerramento do

julgamento (seja da ação originária ou do recurso no tribunal)97. Isso porque o incidente não

tem natureza recursal. Caso a decisão esteja em desacordo com o posicionamento de outra

câmara ou turma e não tenha sido suscitado o incidente, a parte só poderá se valer da via

recursal98.

Após suscitado o incidente pelo membro do tribunal, o colegiado apreciará a

solicitação, podendo rejeitá-la, não cabendo qualquer forma de recurso ou impugnação quanto

a isso99. Se o colegiado rejeitar a suscitação do incidente, prosseguirá na análise do mérito do

recurso (ou da demanda de competência originária). Se entender existente a divergência, após

a prolação do resultado será lavrado acórdão sobre essa votação e os autos serão

encaminhados para o colegiado maior (grupo de câmaras, pleno ou órgão especial – a

depender do regimento interno do tribunal).

95 LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 225. A

conceituação sobre questão de fato e questão de direito será enfrentada no capítulo III, ao discorrer o incidente de resolução de demandas repetitivas.

96 Fredie Didier Jr. Leonardo J. Carneiro afirmam que haveria outro requisito que seria a necessidade de a divergência incidir não sobre o mérito do recurso, mas sobre uma questão incidental (prejudicial). Não obstante, a lei não traz esse requisito. Apenas exige que haja divergência. DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 566. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 9-15. O que importa para o caso é que a discussão sobre o incidente possa alterar o resultado da demanda ou do recurso.

97 Encerra-se o julgamento do recurso com a proclamação do resultado pelo Presidente do Colegiado. Nesse sentido: SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 727

98 Embargos infringentes, Recurso Especial ou Recurso Extraordinário, desde que atenda aos requisitos intrínsecos e extrínsecos para a utilização destes recursos. Nos casos de decisão prolatada pelos tribunais superiores, poderá se valer ainda dos Embargos de Divergência. Vale destacar, contudo, posicionamento de Cassio Scarpinella Bueno no sentido de que seria possível a arguição do incidente se a câmara se omitisse quanto ao requerimento de instauração do incidente e, após o julgamento, houver recurso de embargos de declaração. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 369. E também o posicionamento de Humberto Theodoro Jr. na hipótese de a divergência se situar em matéria que não foi apreciada pelo acórdão e que, após a interposição dos embargos de declaração, o Tribunal tiver que se pronunciar sobre o ponto omisso (THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 629).

99 Por óbvio que se admite embargos de declaração. Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 20;

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45 Problema que pode surgir seria sobre a discricionariedade judicial quanto ao

reconhecimento da existência de divergência entre câmaras e a possibilidade ou não de se

deferir o encaminhamento dos autos ao colegiado maior. Sobre esse ponto, parece-nos que

deva prevalecer, em benefício da coletividade e também da segurança jurídica, que não haja

discricionariedade judicial na remessa dos autos para a decisão sobre o incidente, visando à

uniformização da interpretação pelo tribunal sobre aquela quaestio juris. Pensar de forma

diferente seria dar azo à existência de divergência dentro do tribunal, o que não é salutar, quer

para as partes, quer para a segurança jurídica, para a isonomia de tratamento e, inclusive, para

a imagem do tribunal perante a sociedade. Assim, demonstrada a existência de divergência, os

autos devem ser encaminhados para o colegiado maior.

Apesar disso, vale destacar que Barbosa Moreira, que entendia pela obrigatoriedade da

instauração do incidente, reviu seu posicionamento:

Nas primeiras edições deste livro, opinamos que, reconhecido o dissídio, não se poderia indeferir a solicitação ou o requerimento de remessa ao tribunal. Hoje nos parece que, não obstante a redação, à primeira vista imperativa, do art. 477, 1ª parte, e sem prejuízo do dever de motivar a decisão, cabe reconhecer-se ao órgão julgador certa margem de discrição, no exame da conveniência e da necessidade de dar-se curso ao incidente, às vezes suscitado sem motivo sério, ou até com puro manifesto protelatório100.

Apesar do posicionamento acima, ousamos dele discordar, porque ou a divergência

existe ou não existe. E existindo, deve ser prejudicial à análise da causa principal. Se há

divergência sobre a quaestio juris e esta é prejudicial ao mérito da causa (recurso ou demanda

de competência originária do tribunal), deve ser admitido o incidente. Caso contrário, não. Se

a questão é prejudicial, não pode haver intuito protelatório, porque o mérito do recurso

depende da análise sobre a questão controversa. Ainda, se a negativa for justificada na

superação da divergência (ou seja, as câmaras passaram a adotar o mesmo entendimento ou já 100 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2009, p. 15-18. No mesmo sentido: INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. HABEAS CORPUS. AGRAVO REGIMENTAL ANTERIORMENTE JULGADO. INCIDENTE EXTEMPORÂNEO. NÃO CABIMENTO. ADMISSÃO. FACULDADE DO JULGADOR. DISCRICIONARIEDADE. PEDIDO INDEFERIDO. 1. O incidente de uniformização de jurisprudência é medida preventiva, não figurando como instrumento de retificação, devendo a parte suscitá-lo nas razões do recurso ou em petição avulsa, até o julgamento do mérito da impetração. 2. De mais a mais, a provocação do incidente constitui faculdade, não vinculando o julgador, que usufrui da análise da conveniência e da oportunidade para admití-lo. 3. Pedido indeferido. (STJ. 6ª Turma. IUJur no AgRg no HC 1200.990-RS, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 21.10.2010, v.u.). Também: “[...]5. É cediço em sede doutrinária que se reconhece ao órgão julgador da primazia da suscitação do incidente de uniformização discricionariedade no exame da necessidade do incidente porquanto, por vezes suscitado com intuito protelatório. [...] STJ. 1ª Turma. REsp. 745.363-PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 20.09.2007, v.u.). Também se posicionam nesse sentido: ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 745

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46 houve posicionamento do pleno ou órgão especial sobre incidente anteriormente instaurado),

não há mais divergência, logo o incidente será negado. Mas a negativa não será porque o

tribunal tem discricionariedade, mas porque já há harmonia na interpretação da quaestio

juris101.

Por fim, acrescenta-se que da decisão do colegiado maior que decidir o incidente de

uniformização não caberá recurso. Isso porque o tribunal apenas fixará a tese a ser aplicada ao

caso (a interpretação da quaestio juris). Quem aplicará a norma com a interpretação dada pelo

colegiado maior será a câmara ou turma ao julgar o recurso (ou demanda de competência

originária do tribunal). Contra essa decisão proferida pela câmara é que a parte poderá se valer

dos recursos previstos no sistema recursal pátrio (embargos infringentes, recurso especial ou

extraordinário, a depender da análise do caso concreto)102.

4.1.3 Vinculação da Câmara / Turma ao decidido pelo Pleno ou Órgão Especial

A decisão do órgão especial ou pleno (ou outro colegiado indicado pelo regimento

interno), ao julgar o incidente de uniformização de jurisprudência, não colocará fim à

apreciação do tribunal sobre a demanda. Isso porque no incidente de uniformização a questão

apreciada não é a principal e sim a prejudicial103. Desta forma, após a apreciação da questão

prejudicial pelo colegiado maior, este deverá encaminhar os autos ao colegiado menor, para

que este aprecie a questão principal. Ao apreciar a questão principal, todavia, o colegiado

menor (câmara ou turma) deverá obedecer ao decidido pelo colegiado maior (órgão especial

ou pleno).

101 “O incidente de uniformização de jurisprudência afigura-se como garantia do jurisdicionado. Presentes seus

requisitos – impõem os valores igualdade, segurança, economia e respeitabilidade – deve ser instaurado. Trata-se de técnica processual perfeitamente identificada com os postulados mais nobres existentes em nosso ordenamento e intimamente ligada ao efetivo acesso ao Judiciário”. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de Jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 204. No mesmo sentido: DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 572

102 Nesse sentido: ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 747

103 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 628

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47 Nosso sistema processual prevê a vinculação da câmara ou turma ao que foi decidido

pelo pleno ou pelo órgão especial104. Mais interessante ainda é que isso ocorrerá sem que haja

formação da coisa julgada sobre o que foi apreciado pelo colegiado maior do tribunal105. Essa

vinculação ocorrerá quanto à interpretação e aplicação da questão de direito (sobre a forma

como deverá ser aplicada a lei naquela situação específica).

Questão que pode surgir é se os órgãos fracionados menores do tribunal ficam

vinculados ao que foi decidido no incidente ao julgarem outras demandas.

Parece-nos que a utilização do termo vinculação a esta hipótese é demasiado “forte”.

Isso porque há a livre convicção motivada do juiz, mas isso não deve ser confundido com

discricionariedade judicial106. O que deve haver é um forte caráter persuasivo ou moral107, até

mesmo por lógica do sistema. Se há um colegiado maior (pleno, por exemplo) que procura

resolver uma divergência, não é possível que o órgão fracionário possa julgar como bem

entender. É preciso que haja observância ao que foi decidido no incidente, sob pena de se

esvaziar o instituto108. A observância do posicionamento adotado pelo pleno (ou órgão

especial) pelos órgãos menores decorre da lógica do sistema. Isso, inclusive já havia sido

previsto pelo Decreto 16.273/1923, que em seu art. 103, § 1º, ao tratar do prejulgado,

mencionava que o decidido serviria de “norma aconselhável” para os casos futuros, que só

104 Nesse sentido: THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2009, p. 630; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 794-795. O mesmo ocorre com recursos. Após a apreciação de um agravo ou apelação pelo tribunal, o juiz não poderá descumprir o que foi decidido pelo tribunal. Isso vale para qualquer outro recurso.

105 Vale lembrar que a apreciação da questão prejudicial não ficará sujeita à coisa julgada material, por mais relevantes que sejam seus fundamentos. Apesar disso, por se tratar de uma questão exclusivamente de direito, o posicionamento do colegiado maior do tribunal deverá ser levado em consideração não só pelos órgãos fracionários menores do tribunal, mas também pelos demais órgãos inferiores a ele submetidos.

106 Sobre o tema, Barbosa Moreira expõe que: “Repelindo a tradição do direito pátrio, até a Emenda Constitucional nº 45 (regulamentada pela Lei 11.417, de 19.12.2006), o sistema dos precedentes vinculativos, e não podendo os órgãos do Poder Judiciário, salvo expressa autorização constitucional, editar norma genéricas e abstratas, aplicáveis a uma série indefinida de hipóteses semelhantes, a fixação prévia da tese jurídica normalmente só predetermina a decisão que se profira in specie, mas revela-se impotente para evitar que, noutro caso, a idênticos esquemas de fato se venha a aplicar tese diversa”. (grifos no original) (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 6)

107 No mesmo sentido: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 368. Até mesmo por essa eficácia objetiva retirada do incidente é que Cassio afirma ser perfeitamente possível a participação do amicus curiae.

108 Destaca João Batista Lopes que, em razão da falta de eficácia vinculativa é comum encontrar julgamentos contrários aos enunciados das súmulas decorrentes da uniformização de jurisprudência: LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 225. Apesar disso, não deveria ser tão comum quanto é encontrar julgamentos em contradição com o que foi deferido no incidente de uniformização. Vale ainda ressaltar que o instituto não vem sendo utilizado na prática em razão de seu baixo resultado prático.

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48 poderiam julgar de forma diferente por meio da instauração de novo procedimento para

reunião das câmaras109. Aprofundar-nos-emos sobre a eficácia desse julgado abaixo, ao

tratarmos do papel do magistrado e da necessidade de se seguirem posicionamentos

consolidados das cortes superiores.

4.1.4 A falta de eficácia prática do instituto em face da ausência de vinculatividade e baixa

persuasão do incidente sobre os demais julgados

O instituto não tem caráter vinculativo face aos demais julgados, ainda que proferidos

por órgão colegiado de maior hierarquia dentro do tribunal (pleno ou órgão especial). De

acordo com nossa Constituição Federal, a vinculação está expressamente prevista apenas para

os julgados decorrentes do controle concentrado de constitucionalidade e para os enunciados

de súmula vinculantes110. Também vale a pena destacar o consenso dentro do sistema jurídico

nacional de que as decisões dos tribunais superiores (STJ ou STF), como regra, não têm força

capaz de vincular os tribunais e juízes inferiores. Assim, não seria óbice ao incidente de

uniformização a existência de posicionamento consolidado em tribunal superior111. Pode-se

discutir sobre a possibilidade ou não de a lei estabelecer a vinculação ou não de determinadas

decisões, o que faremos no momento oportuno, ao tratarmos do incidente de resolução de

demandas repetitivas.

109 Art. 103. “Quando a lei receber interpretação diversa nas Câmaras de Appellação cível ou criminal, ou

quando resultar da manifestação dos votos de uma Câmara em um caso sub-judice que se terá de declarar uma interpretação diversa, deverá a Câmara divergente representar, por seu Presidente, ao Presidente da Côrte, para que este, incontinenti, faça a convocação para a reunião das duas Câmaras, conforme a matéria, fôr cível ou criminal”. “§ 1º. Reunidas as Câmaras e submettida a questão á sua deliberação, o vencido, por maioria, constitue decisão obrigatória para o caso em apreço e norma aconselhável para os casos futuros, salvo relevantes motivos de direito, que justifiquem renovar-se idêntico procedimento de installação das Câmaras Reunidas”.

110 É certo que se inicia uma forte corrente até mesmo junto STF, que entende haver um controle abstrato de constitucionalidade realizado em julgamento de recursos extraordinários, ou seja, apesar de se tratar de um julgamento de uma situação concreta, o controle deixa de ser realizado in concreto e passa a ser feito de forma abstrata (MENDES, Gilmar Ferreira. In MEIRELES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2005). No mesmo sentido, utilizando, todavia, o termo de eficácia transcendental do recurso extraordinário: LENZA, Pedro Direito Constitucional Esquematizado. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2009; e DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, estes utilizando o termo objetivação do recurso extraordinário.

111 Salvo, por óbvio a existência de enunciados de súmula vinculantes e de julgamento em controle concentrado de constitucionalidade, que também tem eficácia vinculante. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 13-14

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49 A situação, embora aparentemente simples, é sobremaneira complexa se analisada

cuidadosamente. De um lado, não se pode deixar de mencionar a existência de certa

hierarquia nos julgamentos; de outro, a livre convicção motivada, na qual o magistrado é livre

na apreciação do caso que lhe é apresentado. A pergunta que não se pode deixar de fazer é:

qual a função desse instituto, que visa à uniformização da interpretação de uma quaestio juris,

se, após o posicionamento do pleno (ou grupo de câmaras), as câmaras, isoladamente, podem

julgar como bem entenderem? Não é possível que o posicionamento de um órgão maior,

pacificando a questão, possa ser simplesmente ignorado. Foi justamente por isso que o Projeto

do CPC de 1973 previa a possibilidade de edição de assento pelo Presidente do Tribunal,

assento este que teria eficácia de lei112. Ocorre que tal proposta foi reformulada, uma vez que

para a maioria da doutrina da época seria necessário alterar a Constituição113.

Apesar de a redação final da do CPC de 1973 não prever a vinculatividade da decisão

exarada no incidente de uniformização, nem de prever a edição de assentos, não se pode

deixar de mencionar que há força persuasiva do instituto, que deve ser obedecida pelo tribunal

e pelos órgãos jurisdicionais a ele inferiores. Encarar o instituto sem o mínimo de força

persuasiva perante os órgãos fracionários menores do tribunal faz com que o instituto deixe de

ter a função para a qual foi criado. Melhor seria termos ainda hoje a redação do Decreto

16.273/1923, citado acima, que previa a necessidade de se seguir o que fora decidido pelo

pleno, salvo relevantes fundamentos que justifiquem a reunião das câmaras para a renovação

do procedimento.

112 Assim dispunha o texto: Art. 518: “A decisão tomada pelo voto da maioria absoluta dos membros efetivos

que integram o tribunal será obrigatória enquanto não modificada por outro acórdão proferido nos têrmos do artigo antecedente”. Art. 519: “O presidente do tribunal, em obediência ao que ficou decidido, baixará um assento. Quarenta e cinco (45) dias depois de oficialmente publicado, o assento terá força de lei em todo o território nacional”. (BUZAID, Alfredo. Anteprojeto de Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, 1964, p. 100)

113 O projeto do CPC de 1973 previa eficácia vinculativa ao incidente de uniformização, prevendo que o presidente do Tribunal baixaria assento que teria força de lei. Todavia, como ressalta Barbosa Moreira: “Tal sistemática foi criticada em sede doutrinária, antes de mais nada, por inconstitucional. A comissão revisora sugeriu a supressão de todo o capítulo, entendendo que, a manter-se a eficácia vinculativa dos assentos, o futuro Código se poria em contraste com a Constituição da República (viria a ser preciso emendá-lo para consagrar a chamada “súmula vinculante”); e, a eliminar-se tal eficácia, quase nenhum alcance prático teriam – como de fato vem acontecendo – as disposições relativas à uniformização da jurisprudência. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 7) . Vide também: GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 138 e 145.

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50 Veja-se que a ideia de edição de enunciado de súmula corrobora o entendimento aqui

exposto114. Diz o art. 479 do CPC que o julgamento sobre o incidente constituirá precedente

que, como dito, terá eficácia persuasiva.

Também houve, inclusive, tentativa de alteração do incidente de uniformização de

jurisprudência, para que ele servisse de precedente a ser observado pelos magistrados nos

casos futuros. Isso ocorreu por meio do PL 3.804/1993115, elaborado pelo IBDP. Houve a

aprovação do projeto na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania, bem como aprovação

de da emenda 2 de autoria do Dep. Flávio Dino. Posteriormente a isso esse projeto foi

apensado ao PL 6.025/2005, junto com outros projetos, que foram agora apensados ao PL

8.046/2010. A ideia, que ainda não saiu do papel era dar maior efetividade a esse instituto.

Por fim, acrescente-se também outro fator que corrobora para a baixa eficácia do

instituto: o momento na qual o incidente é suscitado, pois ao magistrado é dado solicitar o

incidente por ocasião do proferimento de seu voto, ou seja, quando o julgamento da demanda

já está terminando116. Nesse momento é melhor a ele já proferir seu voto ao invés de suscitar

o incidente.

114 A edição de súmula, todavia, está condicionada ao quórum de aprovação da interpretação da quaestio juris. A

maioria absoluta do colegiado deve ter a interpretação num mesmo sentido para a edição da Súmula, conforme prevê o art. 188 do Regimento Interno do TJ-SP, art. 102, § 1º do Regimento Interno do STF e art. 122, § 1º do Regimento Interno do STJ

115 Art. 1º Os dispositivos a seguir enumerados, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 478. O tribunal ou órgão competente, reconhecendo a divergência e após ouvido o Ministério Público, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir seu voto fundamentadamente. Parágrafo único. Quando adotada pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal ou o órgão competente, a interpretação será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. Art. 479. Quando várias ações envolverem a mesma questão de direito, o relator, de ofício, a requerimento da parte ou Ministério Público, ou qualquer juiz, por ocasião do julgamento, poderá propor o pronunciamento prévio do tribunal ou do órgão competente a respeito dessa questão. § 1º Acolhida a proposição, serão suspensos os processos pendentes no tribunal e relativos à mesma questão de direito, fazendo-se comunicação aos seus órgãos. § 2º Findo o prazo de quinze dias para manifestação do Ministério Público, será designada data para o julgamento. § 3º Quando adotada a decisão pelo voto da maioria absoluta dos membros do órgão competente, este fixará em súmula o entendimento a ser observado, por seus órgãos, em todos os julgamentos relativos a idêntica questão de direito. § 4º Sumulada a tese: a) será defeso, aos órgãos de qualquer grau de jurisdição, subordinados ao tribunal que proferiu a decisão, a concessão de liminar que a contrarie; b) cessará a eficácia das liminares concedidas; c) o recurso contra a decisão que contrarie a súmula terá sempre efeito suspensivo; d) nos processos pendentes e nos posteriores, com pretensão fundada na tese da súmula, poderá ser concedida a antecipação da tutela, prosseguindo o feito até final julgamento.” Art. 2º Esta Lei entra em vigor sessenta dias após a data de sua publicação.

116 “[...] deve admitir-se que, na vigência do CPC de 1939, o Prejulgado não teve sucesso. Entre os motivos para explicar seu parco uso, deve ser apontado o próprio desdobramento do julgamento, que complica sobremaneira seu procedimento”. Mais a frente, ao tratar do incidente previsto no CPC de 1973 destaca a autora que “[...] permanecem no instituto regulado pelo novo código os defeitos procedimentais que dificultaram sobremaneira a difusão do Prejulgado de 1939, com a agravante de que a oportunidade para a

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51

4.1.5 A uniformização de jurisprudência nos juizados especiais federais

Apesar de não haver previsão de instituto semelhante na Lei 9.099/1995, a Lei

10.259/2001 inseriu a uniformização de interpretação de lei federal no seu art. 14117. Tal

instituto também foi inserido na legislação que trata dos juizados especiais da Fazenda

Pública.

Denominado pela legislação como incidente, na verdade o instituto tem verdadeira

natureza recursal118, em nada se assemelhando aos incidentes de uniformização de

jurisprudência e à assunção de competência119. Isso se justifica porque o acolhimento do

pedido de uniformização de jurisprudência tem efeitos modificativos sobre o que fora

decidido. O incidente de uniformização, como visto acima, é julgado antes do próprio recurso,

o que não ocorre com o pedido de uniformização.

De acordo com o artigo mencionado, a uniformização só terá cabimento se houver

divergência sobre questões de direito material. Assim ficam de fora divergências processuais

(mesmo que seja sobre o procedimento aplicável ao próprio juizado)120. Essa divergência

deverá se dar entre turmas recursais. A divergência poderá se dar entre turmas recursais de

solicitação do pronunciamento prévio é dada ao juiz no momento de proferir seu voto: portanto, quando o julgamento já está terminando, após a sustentação oral (art. 565 do novo CPC)”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 145 e 148-149). Vale também destacar severas críticas feitas por Rodolfo Mancuso ao instituto, afirmando que o custo benefício do instituto é mínimo e que na melhor das melhores hipóteses haverá apenas a edição de uma súmula persuasiva. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 271-272)

117 Sobre críticas ao instituto, ver: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 301-306

118 Nesse sentido: TNU. QO 1. j. 12.11.2002: “Os Juizados Especiais orientam-se pela simplicidade e celeridade processual nas vertentes da lógica e da política judiciária de abreviar os procedimentos e reduzir os custos. Diante da divergência entre decisões de Turma Recursais de regiões diferentes, o pedido de uniformização tem a natureza jurídica de recurso, cujo julgado, portanto, modificando ou reformando, substitui a decisão ensejadora do pedido. A decisão constituída pela Turma de Uniformização servirá para fundamentar o juízo de retratação das ações com o processamento sobrestado ou para ser declarada a prejudicialidade dos recursos interpostos”. CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CARREIRA ALVIM, Luciana Gontijo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Curitiba: Juruá, 2005, p. 201-202

119 “[...] não deixa de ser em sua essência um ‘recurso especial’” [...] (FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 308)

120 Nesse sentido: Súmula 1 da Turma de Uniformização da 4ª Região: “Não caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando a divergência versar sobre questões de direito processual”. Nessa hipótese, todavia, o art. 18 do Provimento 7/2010 do CNJ prevê a possibilidade de consulta à Turma Nacional de Uniformização.

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52 uma mesma região ou entre turmas recursais pertencentes a regiões distintas, ou até mesmo

entre a turma recursal e súmula ou jurisprudência dominante do STJ. Na primeira hipótese a

divergência será apreciada em reunião conjunta das turmas em conflito. Nas demais, a

divergência será julgada pela Turma de Uniformização, sob a presidência do Coordenador da

Justiça Federal. Se houver, por sua vez, divergência entre a orientação firmada pela Turma de

Uniformização e súmula ou jurisprudência dominante do STJ, a divergência (que deve ser

sobre direito material) será dirimida pelo STJ, que se manifestará mediante provocação da

parte interessada.

No que tange à competência do STJ, parece-nos que a norma padeça de

inconstitucionalidade diante da previsão infraconstitucional de competência do STJ, pois a

competência desse tribunal é prevista na própria Constituição (art. 105)121.

Esse instituto prevê também a manifestação de amicus curiae122. Já em 2001 previu o

legislador o julgamento por amostragem e a retratação pelo órgão a quo quando trouxe a

disposição de retenção de julgamentos de pedidos de uniformização “idênticos” (relativos à

matéria idêntica)123 – algo que somente foi introduzido no CPC anos mais tarde (art. 543-B e

543-C). De acordo com a dicção legal do art. 14, § 6º, “Eventuais pedidos de uniformização

idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos

autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça”.

Após o julgamento do pedido de uniformização, os demais pedidos que ficaram

sobrestados serão apreciados pelas próprias turmas recursais que poderão exercer o juízo de

retratação.

Discute-se sobre a vinculatividade da decisão que julga essa uniformização. O texto

legal afirma que a turma poderá se retratar. Por sua vez, extrapolando os limites, a Resolução

22 do CJF, em seu art. 15, § 3º dispõe que o posicionamento exarado na resolução da

divergência “deve ser adotada pela turma de origem para fins de adequação ou manutenção do

121 No mesmo sentido: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed.

São Paulo: RT, 2010, p. 307-308 122 Em sentido contrário, afirmando que esse terceiro deva ser um terceiro prejudicado (algo semelhante à

assistência, mas sem mencionar este instituto): CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CARREIRA ALVIM, Luciana Gontijo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Curitiba: Juruá, 2005, p. 213

123 CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CARREIRA ALVIM, Luciana Gontijo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Curitiba: Juruá, 2005, p. 211

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53 acórdão recorrido”. Na interpretação do dispositivo, Joel Dias afirma que há vinculatividade

no dispositivo124.

Esse instituto é regulamentado pela Resolução 22 do Conselho da Justiça Federal. A

parte deverá apresentar o pedido de uniformização em 10 dias e a outra parte será intimada a

apresentar contrarrazões. De acordo com a referida resolução, o pedido será feito ao

presidente da turma recursal ou ao presidente da turma regional, que fará o juízo de

admissibilidade. Se o presidente não admitir o incidente, a parte poderá interpor agravo nos

próprios autos, no prazo de 10 dias (medida essa não prevista pela lei, mas pela resolução do

CJF), que muito se assemelha ao recurso de agravo previsto no art. 544 do CPC.

4.2 A declaração incidental de inconstitucionalidade realizada pelos Tribunais

De acordo com a Constituição Federal de 1988, o controle de constitucionalidade das

normas no direito pátrio pode ser classificado de diversas formas. Quanto ao momento de

realização do controle, ele pode ser preventivo ou repressivo. O preventivo é realizado pelo

Legislativo e pelo Executivo, evitando-se que uma norma inconstitucional passe a ter

vigência.

O controle repressivo é o exercido pelo Judiciário, podendo ser feito de duas formas:

pelo controle concentrado (via de ação) e pelo controle incidental (via de exceção ou

difuso)125.

O primeiro é exercido (quanto à Constituição Federal) exclusivamente pelo STF, por

meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade, da Ação Declaratória de Constitucionalidade e

da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental.

124 Comentando a Resolução anterior, Ricardo Chimenti afirma que é favorável à norma, apesar de questionável

sua constitucionalidade (CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos juizados especiais cíveis estaduais e federais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 254). Destaca-se também que no Pedido de Uniformização 2006.705.0000569, j. 06.09.2011, rel. Juiz José Eduardo do Nascimento, a turma decidiu que o julgado se torna precedente persuasivo, que por sua constância acabará vinculando em razão de sua alta persuasão.

125 Também há a previsão do controle de constitucionalidade por meio de ação direta de constitucionalidade interventiva e o controle de constitucionalidade por omissão inconstitucional do legislador, que pode ser atacada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ou por Mandado de Injunção e o controle de constitucionalidade interventivo. Não nos aprofundaremos sobre o tema em razão do objeto do presente trabalho.

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54 Já o controle incidental ou difuso é realizado por todos os juízes na análise dos casos

concretos. É chamado de controle incidental porque a análise da constitucionalidade da norma

será realizada como questão prejudicial126 ao mérito do caso sub judice.

No controle concentrado a decisão terá eficácia erga omnes e efeito vinculante,

gerando efeitos ex tunc, como regra, mas seus efeitos podem ser modulados no tempo. Por

essa razão, o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de

constitucionalidade servirá como um precedente obrigatório a ser seguido por todos os demais

membros do Judiciário, diante de seu efeito vinculante.

No controle incidental ou difuso (chamado por alguns de controle por via de

exceção127), a decisão gerará eficácia inter partes e efeito ex tunc. Não há previsão de efeito

vinculante no controle difuso.

O controle de constitucionalidade nos diversos ordenamentos pode ser dividido em

três modelos: o norte-americano, o modelo austríaco e o modelo francês128.

O controle norte-americano é realizado por meio da análise de casos concretos. Por

sua vez, o controle austríaco, criado pela Constituição da Áustria de 1920129, previa um

controle abstrato.

Já o modelo francês prevê um controle preventivo a ser realizado pelo Conselho

Constitucional. A partir de 23 de julho de 2008, todavia, houve alteração na Constituição

francesa, permitindo-se a partir de então o controle abstrato de constitucionalidade (a norma

declarada inconstitucional será expurgada com efeitos erga omnes, ex nunc, repristinatórios e

vinculantes para as autoridades administrativas e judiciais)130.

126 Em sentido contrário: Barbosa Moreira. Para o autor, a questão objeto da arguição pode ou não se relacionar

com o mérito (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 37)

127 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 417 128 Para uma análise comparativa e histórica do controle de constitucionalidade: CAPPELLETTI, Mauro. O

controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999

129 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 68

130 Pedro Lenza, por sua vez, prevê a divisão do controle de constitucionalidade entre o sistema austríaco (baseado em Kelsen) e o sistema norte-americano (baseado no caso Marbury vs Madison (chief John Marshall). LENZA, Pedro. Direito constitucional e esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 150-151.

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55 Ainda no direito comparado, devemos destacar que, na Alemanha, várias técnicas

surgem para resolver a rigidez da nulidade da norma inconstitucional, como a possibilidade de

apelo ao legislador, a situação da norma ainda constitucional e a declaração de

inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade.

No Brasil, o controle de constitucionalidade passou a ser previsto pela Constituição de

1891131. Nesta, previa-se apenas o controle difuso de constitucionalidade. Em 1934, foi

prevista a cláusula de reserva de plenário, segundo a qual a declaração de

inconstitucionalidade de uma norma depende do volto da maioria absoluta dos membros do

Tribunal132. Posteriormente, em 1965, surgiu o controle abstrato de constitucionalidade, por

meio da Emenda Constitucional 16133.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, todos os juízes podem exercer o

controle incidental de constitucionalidade. Poderão, ao analisar o caso concreto, se deparar

com a necessidade preliminar de verificar se uma norma é ou não constitucional, para

posteriormente julgar o mérito da ação134.

Se o controle incidental for realizado em primeiro grau de jurisdição, não há maiores

segredos. A decisão do juiz sobre aplicar a norma ou afastá-la porque é inconstitucional será

feita incidentalmente, constando essa decisão da fundamentação da sentença e, por isso, não

será hábil à formação de coisa julgada.

Já na realização do controle de constitucionalidade pelos Tribunais, se for arguida a

inconstitucionalidade da norma, o relator do recurso (ou demanda de competência originária)

deverá, após ouvido o Ministério Público, submeter o caso ao órgão fracionário. Sendo

131 A Constituição Imperial não previa qualquer forma de controle de constitucionalidade. Isso se deve, dentre

outros motivos, à existência do Poder Moderador, centralizado no Imperador, que impedia qualquer exercício de fiscalização por parte do Judiciário quanto à constitucionalidade das normas: “O Imperador, enquanto detentor do Poder Moderador, exercia uma função de coordenação; por isso, cabia a ele (art. 98) manter a ‘independência, o equilíbrio e a harmonia entre os demais poderes’. Ora, o papel constitucional atribuído ao Poder Moderador, ‘chave de toda a organização política’ nos termos da Constituição, praticamente inviabilizou o exercício da função de fiscalização constitucional pelo Judiciário”. (CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 64)

132 Art 179 – “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público”.

133 É certo, todavia, que já na Constituição de 1934 havia o controle de constitucionalidade interventivo (art. 12, § 2º).

134 Discute-se sobre a possibilidade de o juiz, em primeiro grau de jurisdição, declarar a inconstitucionalidade da lei, ou se ele deva, ao invés disso, deixar de aplicar a lei para aplicar a Constituição. “[...] conclui-se que qualquer juiz, encontrando-se no dever de decidir um caso em que seja ‘relevante’ uma norma legislativa ordinária contrastante com a norma constitucional, deve não aplicar a primeira e aplicar, ao invés, a segunda”. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 76)

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56 acolhida a arguição, após a lavra de acórdão irrecorrível os autos serão remetidos ao Pleno ou

ao Órgão Especial para manifestar-se sobre a constitucionalidade da norma. Não sendo

acolhida a arguição, não será lavrado acórdão e tal ato também é irrecorrível135.

A arguição pode ser feita por qualquer das partes, por terceiros juridicamente

interessados, pelo MP quando atuar como parte ou fiscal da lei e, em razão de envolver

quaestio juris, pode ser feita ex officio pelo relator ou por qualquer dos membros da câmara

ou turma. Essa arguição pode ser feita a qualquer momento anterior ao término da votação.

Para uma melhor análise sobre a questão, em que pese o controle ser realizado com

base numa situação fática específica, admite-se a participação do amicus curiae136.

Ao se analisar o procedimento para a arguição incidental de constitucionalidade,

constatamos que o julgamento da questão será feito por dois órgãos distintos. Haverá um

julgamento subjetivamente complexo, tal como verificado no incidente de uniformização de

jurisprudência. A câmara ou turma, ao dar provimento à arguição de inconstitucionalidade,

encaminhará os autos para o Pleno (ou Órgão Especial) e este julgará apenas a

constitucionalidade da norma. Após este julgamento os autos serão devolvidos à câmara ou

turma, que apreciará o mérito do recurso (ou demanda de competência originária do tribunal),

vinculando-se ao que foi decidido pelo Pleno (ou Órgão Especial).

A decisão sobre a constitucionalidade da norma, exarada pelo Pleno ou pelo Órgão

especial, é irrecorrível. A decisão que pode ser atacada é a da turma, após julgar o recurso ou

a demanda de competência originária, aplicando o que foi decidido pelo Pleno (ou Órgão

Especial).

Novamente, a questão que pode surgir seria sobre a eficácia vinculante ou persuasiva

da decisão do Pleno (ou Órgão Especial) que declarou a norma constitucional ou

inconstitucional. A resposta para isso será a mesma utilizada quando da análise do incidente

de uniformização de jurisprudência, qual seja: nos autos em que foi apreciada a questão, a

135 Salvo por meio dos embargos de declaração. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código

de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 48; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 799

136 Fruto da tendência na objetivação do controle incidental de constitucionalidade.

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57 decisão do Pleno vinculará a câmara ou turma137. Quanto aos demais casos, o julgado serve

apenas como um precedente com força persuasiva.

Essa eficácia persuasiva fica clara ao verificarmos que, surgindo nova arguição noutro

caso, poderá a câmara ou turma deixar de apreciar a arguição sob o fundamento de que já

houve manifestação do Pleno (ou Órgão Especial) ou, ainda, se o STF já se pronunciou sobre

o tema. Sobre a possibilidade de rejeição da arguição em razão de pronunciamento do STF,

Barbosa Moreira afirma que isso somente poderá ocorrer nos casos de controle concentrado

de constitucionalidade138, pois somente neste haveria a eficácia erga omnes.

A ideia de o legislador afirmar que não haverá submissão da questão objeto da

arguição de inconstitucionalidade ao plenário decorre da existência de um precedente, que é

persuasivo. Isto porque nada impede que a câmara, ao apreciar nova arguição, verifique que,

de acordo com aqueles fatos apresentados, a norma seria inconstitucional139.

Desse modo, havendo um precedente persuasivo, o Tribunal não poderá simplesmente

ignorá-lo. É preciso que ele verifique os fatos e os fundamentos da causa anterior para poder

confrontá-los com a causa presente a fim de constatar se a regra deve ser aplicada tal como foi

no caso anterior ou se há elementos que a distingam e, por isso, o julgamento possa se dar

noutro sentido. Reforça essa ideia o art. 52, X, da Constituição Federal, haja vista que a

137 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2009, p. 48 138 “Quanto à existência de pronunciamento do plenário do Supremo Tribunal Federal, cabe distinguir: se se

trata de “súmula vinculante”, ou se foi em ação direta que se declarou inconstitucional a lei ou o outro ato normativo, tollitur quaestio, pois semelhante decisão produz efeitos erga omnes; se, porém, o que houve foi mera declaração incidental de inconstitucionalidade, sem que o Senado Federal tenha suspendido a eficácia da norma (Constituição Federal, art. 52, nº X), fazer prosseguir pura e simplesmente o julgamento do órgão fracionário, só porque o plenário da Corte Suprema se pronunciou do modo como o fez, é procedimento que, ao nosso ver, mal se harmoniza com a Lei Maior. Realmente: o órgão fracionário estará negando aplicação, por inconstitucional, à lei ou ao outro ato normativo (o que em nada se diferencia de declarar-lhe incidentalmente a inconstitucionalidade, sem que em tal sentido haja votado o próprio tribunal julgador, pela “maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial”, conforme exige o art. 97, com a ênfase do “somente”. O plenário do Supremo Tribunal Federal e a maioria absoluta do tribunal julgador (ou de seu órgão especial) são entidades perfeitamente distintas, e o texto constitucional não atribui ao primeiro o poder de suprir a falta do pronunciamento da segunda. Inclinamo-nos, destarte, a fim de preservar a regra do art. 97, por uma interpretação restritiva do parágrafo, na cláusula atinente ao Supremo Tribunal Federal: aquele incidirá apenas quanto a Corte Suprema houver declarado a inconstitucionalidade em ação direta”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 44 – grifos no original)

139 Exemplifiquemos: diante da inexistência de defensoria pública, o Tribunal afirma que o art. 68 do Código de Processo Penal que confere legitimidade ativa ao Ministério Público para ajuizar ação civil decorrente do ilícito criminal é constitucional. Posteriormente houve a instalação da defensoria e a função de exercer a advocacia para os considerados pobres nos termos da lei pode fazer com que o Tribunal volte a se manifestar sobre a norma e agora em sentido oposto, ou seja, pela sua não recepção. Sem falar que os fatos são muito mais ricos e diversos do que pode prever o legislador, razão pela qual pode a matéria voltar a ser objeto de novo incidente de inconstitucionalidade.

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58 norma, apesar de ser declarada inconstitucional até mesmo pelo STF, na via incidental, ainda

continua dentro do ordenamento jurídico. A norma tida por inconstitucional pelo STF no

controle incidental deixará de ter vigência apenas após sua suspensão pelo Senado Federal140.

Pelo fato de o Brasil não ter uma tradição de obediência aos precedentes, o controle

difuso de constitucionalidade pode levar a decisões conflitantes sobre uma mesma causa,

quando na verdade tal fato não deveria acontecer141. A partir do momento em que foi decidido

pelo Tribunal em controle difuso a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade das leis, os

demais magistrados vinculados àquele Tribunal deveriam obedecer àquele entendimento.

4.3 Recurso Especial e Recurso Extraordinário

Outros instrumentos existentes no direito pátrio que têm por finalidade dar um norte à

aplicação das leis aos casos concretos de modo uniforme são os recursos excepcionais. Tanto

o recurso especial quanto o recurso extraordinário podem ser chamados de recursos de estrito

direito142, porque diferentemente do que ocorre com os recursos ordinários, os recursos

excepcionais não estão voltados à justiça do caso concreto, mas à uniformização da

interpretação das normas federais143. Compete aos Tribunais Superiores dar a última palavra

no que tange à interpretação do direito federal. Têm a finalidade de preservar a ordem

jurídica144.

140 Não se desconhece a tendência à objetivação do controle incidental de constitucionalidade, que será tratado

mais abaixo. 141 “Ulteriores inconvenientes do método “difuso” de controle, porque concretizado em ordenamentos jurídicos

que não acolhem o princípio do stare decisis, são os que derivam da necessidade de que, mesmo depois de uma primeira não aplicação ou de uma série de não aplicações de uma determinada lei por parte das Cortes, qualquer sujeito interessado na não aplicação da mesma lei proponha, por sua vez, um novo caso em juízo”. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 78)

142 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 243

143 Em que pese o recurso extraordinário não ter hipótese de cabimento semelhante à descrita no art. 105, III, “c”, da CF.

144 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 245: “Têm , os recursos especial e extraordinário, a função de preservar a ordem jurídica, evitando a dilaceração do sistema jurídico federal ou normativo federal, exercendo, assim, a sua função, que é a de tornar claras pautas de conduta”. Também sobre isso, vale destacar o seguinte trecho do REsp. 305.970-MG: “[...] Deve-se observar, nessas hipóteses, sob a ótica da excepcionalidade, que o Poder Judiciário deve ao jurisdicionado, em casos idênticos, uma resposta firme, certa e homogênea. Atinge-se, com isso, valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material, com a correta prestação

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59 O recurso extraordinário teve inspiração no writ of error do direito norte-americano145.

Destaca José Afonso da Silva que a finalidade desse recurso, assim como a do writ of error e

do antigo recurso de revista são as mesmas. Todavia, optou-se por adotar o writ of error

desprezando-se o recurso de origem lusitana que já era aplicado ao direito pátrio antes da

proclamação da república146.

No direito pátrio o recurso surgiu em 1890, por meio do Decreto 848147, decreto esse

que instituiu a justiça federal. Este decreto previa em seu art. 9º, parágrafo único que:

Art. 9º [...] Paragrapho unico. Haverá tambem recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos tribunaes e juizes dos Estados: a) [...] b) quando a validade de uma lei ou acto de qualquer Estado seja posta em questão como contrario á Constituição, aos tratados e ás leis federaes e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou acto; c) quando a interpretação de um preceito constitucional ou de lei federal, ou da clausula de um tratado ou convenção, seja posta em questão, e a decisão final tenha sido contraria, á validade do titulo, direito e privilegio ou isenção, derivado do preceito ou clausula.

A Constituição Federal de 1891 regulou a matéria no seu artigo 59, § 1º.

Posteriormente, em 20.11.1894 a Lei 221, no seu art. 24 previu que esse recurso

extraordinário seria cabível aos casos expressamente determinados no Decreto 848 de 1890.

Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional de 03.09.1926 houve ampliação da

hipótese de cabimento do recurso extraordinário148, passando a ser previsto o recurso na

hipótese de “dous ou mais tribunaes locaes interpretarem de modo differente a mesma lei

federal, podendo o recurso ser tambem interposto por qualquer dos tribunaes referidos ou

pelo procurador geral da Republica”.

jurisdicional, como meio de certeza e segurança para a sociedade. Afasta-se, em consequência, o rigor processual técnico, no qual se estaria negando a aplicação do direito material, para alcançar-se a adequada finalidade da prestação jurisdicional, que é a segurança de um resultado uniforme para situações idênticas. Vislumbrada a excepcionalidade do caso concreto, conheço do recurso [...]” (STJ. 5ª Turma. REsp. 305.970-MG, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 19.03.2002, v.u.)

145 BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 35-36

146 “Já tínhamos, portanto, na tradição do Direito nacional, um recurso que, devidamente adaptado às necessidades da Federação, poderia transformar-se no atual Recurso Extraordinário, sem precisar recorrer-se ao direito americano. Mas, na época, as instituições americanas constituíram-se em modêlo para as brasileiras”. (SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 29-30).

147 Apesar de o Decreto 848 e a Constituição de 1891 não utilizar a expressão recurso extraordinário quando do surgimento desse recurso, o art. 33, § 4º do Regimento Interno do STF, de 1891 trouxe a denominação de “extraordinário” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 734).

148 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 729

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60 Poder-se-ia afirmar que o STF passou também a ter a função de uniformizador da

Jurisprudência a partir dessa Emenda Constitucional, todavia, parece-nos que essa função já

seria ínsita ao STF a partir do momento em que ele foi constituído como Corte Suprema,

dando a última palavra na interpretação das leis federais e da Constituição Federal149.

Reforça-se esse posicionamento e justifica-se a própria utilização do recurso

extraordinário como recurso importante na interpretação das leis de acordo com a

Constituição Federal (mesmo sem que haja hipótese de cabimento semelhante à prevista para

o recurso especial atualmente - art. 105, III, “c”), porque é função da Corte dar a última

palavra na aplicação e interpretação do texto constitucional (e antes de 1988, das leis

federais). Quando se fala que um Tribunal julgou de forma diferente de outro tribunal uma

questão idêntica, o que se quer, no caso atual, é que o tribunal reconheça que a decisão do

tribunal local contrariou a lei federal (no caso do art. 105, III, “c”)150. Ou seja, a hipótese de

cabimento não será apenas a de que o acórdão do tribunal local está em contradição com a

decisão proferida por outro tribunal, mas de que esse acórdão fere, antes de tudo, o direito

federal. Assim, mesmo que atualmente não haja previsão de cabimento do recurso

extraordinário pelo fato de o posicionamento do tribunal a quo está em desacordo com o

posicionamento exarado por outro Tribunal, haverá a possibilidade de interposição do

extraordinário porque o julgado está em dissonância com a interpretação e aplicação que deva

ser dada à Constituição Federal151.

149 Como ressaltado por Alfredo Buzaid, ao tratar da Corte de Cassação Francesa, que foi criada com a

finalidade de obstar que os juízes proferissem sentenças contra a lei, acabou, posteriormente, tendo também a finalidade de unificar o direito: “O instituto teve fortuna singular . Construído em harmonia com a concepção democrática da divisão dos podêres, difunde-se ràpidamente o modêlo francês, seguido por grande númeo de países; a função jurisdicional é exercida por provocação do interessado, que interpõe o recurso de cassação como um remédio tendente a denunciar, do mesmo modo que a antiga querella nulitatis, os errores in iudicando in iure e os errores in procedendo; mas indubitàvelmente a sua função primordial e positiva consistia em unificar o direito e disciplinar a jurisprudência, assegurando nos Estados modernos aquêle ideal de aplicação do direito igual e uniformemente para todos; ou, em outras palavras, que todos tivessem o mesmo tratamento em face da lei ou do direito. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 28)

150 Ao tratar da revisão germânica, Alfredo Buzaid também destacou a importante função de uniformização da jurisprudência daquele recurso. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 31)

151 “Pela própria função a que se destina, o recurso extraordinário é, no Brasil, como nos Estados Unidos e na Argentina, um recurso de índole eminentemente política. Expressão do primado da Constituição e das leis federais, êle lhes assegura aplicação uniforme, mediante limitações, na esfera judiciária, ao princípio da autonomia estadual. E estas limitações não são apenas convenientes, mas necessárias e imperativas, porque, como adverte Cooley, dada a multiplicidade de jurisdições locais, seria quimera pretender uniformidade de interpretação da lei federal e da própria Constituição. Ora, interpretada e aplicada de diferentes modos, pelas diversas magistraturas locais, a lei deixaria de ser federal, regionalizando-se”. (MARTINS, Pedro Batista. Recursos e processos da competência originária dos tribunais. Atualização: Alfredo Buzaid. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 371)

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61 Devemos ressaltar que, de acordo com nossa Constituição Federal, a competência

legislativa para a maior gama de matérias importantes à vida em sociedade ficou nas mãos da

União. Dessa forma, não há outra alternativa senão haver tribunais de sobreposição para a

uniformização da interpretação da lei federal e para a interpretação destas de acordo com a

Constituição Federal. A uniformização da interpretação do direito é questão fundamental em

qualquer sociedade e no caso da sociedade brasileira, justifica-se em razão da forma

federativa de estado, na qual tanto a lei como a Constituição precisam ter interpretações

uniformes no território nacional.

Sobre a importância da uniformização do direito federal norte-americano, Cooley

destacou que:

The reasons for conferring jurisdiction of these cases upon the federal courts were manifest, and were also imperative. The alternative must be that the final decision upon questions of federal law must be left to the courts of the several States, and this multitude of courts of final jurisdiction of the same causes, arising upon the same laws, would, in the language of the Federalist, be a hydra in government from which nothing but contradiction and confusion could proceed. Uniformity of decision could seldom or never be expected, and never relied upon; and the federal law, interpreted and applied one way in one State and another way in another, would cease to be a law for the United States, because the decisions would establish no rule for the United States; and the Constitution itself thus administered would lose its uniform force and obligation [...] Any government that must depend upon others for interpretation, construction, and enforcement of its own laws, is at all times at the mercy of those on whom it thus depends, and will neither be respected at home nor trusted abroad, because it can neither enforce respect nor perform obligations152.

Nota-se que também o recurso extraordinário, apesar de não possuir hipótese de

cabimento para os casos de divergência jurisprudencial, tem a função de extirpar

posicionamentos dissonantes, pois não pode haver duas interpretações sobre a aplicação da

Constituição. Como disse Cooley, permitir que isso ocorra seria permitir a existência de

várias Constituições Federais ao invés de uma única. A diferença se dará apenas de modo

prático-processual, pois no caso do recurso especial ser cabível quando do posicionamento

dissonante com o exarado por outro tribunal, o que se visa é o ataque ao julgamento contrário

à lei federal. No caso do recurso extraordinário, o ataque à decisão não será fundado no

posicionamento em dissonância com o exarado por outro tribunal, pois o fundamento será a

ofensa à Lei Maior.

152 COOLEY, Thomas M. The general principles of Constitutional Law in the United Utates od America. New

Jersey: Lawbook Exchange, 2000, p. 109-110

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62 Sobre a natureza jurídica do recurso extraordinário, João Batista Lopes afirma que

esse recurso tem natureza de “recurso extraordinário no sentido próprio do termo, ou seja,

distingue-se de todos os outros meios impugnativos por seu fim precípuo, a salvaguarda da

Constituição Federal”, sendo um recurso de fundamentação vinculada153.

Desde aquele momento até a criação do STJ pela Constituição Federal de 1988 o STF

era o guardião não apenas do sistema constitucional federal, mas também das leis federais.

Somente com a criação do STJ é que o STF deixou de ser o guardião das leis federais.

O recurso especial é relativamente recente no direito pátrio, tendo surgido após a

criação do STJ, pela Constituição Federal de 1988. Este recurso tem por finalidade

uniformizar, em âmbito nacional, a interpretação das leis federais. A criação do STJ decorre

de ideia originária de José Afonso da Silva154. Dentre outros fatores, podemos destacar que a

criação do STJ decorreu da grande sobrecarga de trabalho no STF155 e da necessidade de

transformar esta numa corte constitucional.

Dentre outras atribuições, a que nos interessa em razão do objeto deste trabalho, é a de

realizar o 153 LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 211. Em sentido

contrário: SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 104-105: “Cremos ter demonstrado tratar-se de recurso ordinário, com caráter anormal ou excepcional, pelos motivos já vistos. Ordinário: 1º, porque se interpõe dentro da mesma instância da ação, prolongando-a até ao Juízo de grau superior; 2º, porque leva a um nôvo julgamento da causa; 3º, porque a sentença proferida em Grau de Recurso Extraordinário substitui (como na apelação), no que tiver sido objeto do recurso, a decisão recorrida; 4º, porque devolve à superior instância o conhecimento das questões in iure (só nisto se distingue a apelação) suscitadas e discutidas na ação; ainda aqui: salvo a hipótese prevista no art. 11, do Código de Processo Civil 599, do Código do Processo Penal. O qualificativo extraordinário, que lhe dá a Constituição, não tem relevância: 1º, porque êsse nome proveio, segundo João Mendes Júnior mostrou, da necessidade de distingui-lo das apelações interpostas das sentenças dos, então, juízes federais julgadas, também, pelo STF; 2º, porque foi adotado na Constituição de 34 e mantido na de 46, pela tradição, e para diferençá-lo do recurso ordinário constitucional, adotado, também, a partir de 34; ambos os recursos constitucionais eram inominados na Constituição de 91; tanto que não se distinguem, senão quanto aos pressupostos: um é normal; o outro, especial; e quanto aos objetivos: um é geral; o outro específico. Por aí, não se pode dizer que o primeiro seja ordinário e o segundo, extraordinário, por natureza; os embargos, a revista, o recurso especial eleitoral, seriam também extraordinários... Conclui-se, pois, que se trata de um recurso ordinário por natureza, embora de via excepcional, como a revista, o ordinário constitucional, o especial eleitoral”.

154 À guisa de curiosidade, discute-se a originalidade da ideia de criação do STJ. Afirma-se também que a ideia teria sido de Miguel Reale, quando da realização de um debate na Fundação Getúlio Vargas, em 1965. Por outro lado, afirma José Afonso da Silva que a ideia de criação de um tribunal superior teria sido por ele proposta na obra “Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro”, publicada em 1963, o que de fato pôde ser verificado na obra mencionada nas páginas 454 e seguintes. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 554)

155 Algo que já fora objeto de reflexão por Alfredo Buzaid, que já nos idos de 1962 a denominou de “a crise do Supremo Tribunal Federal”. Neste trabalho o autor demonstra que desde 1931 o STF não consegue manter o equilíbrio entre a quantidade de feitos protocolados e a quantidade de feitos julgados. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 39-40)

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controle da inteireza positiva, da autoridade e da uniformidade de interpretação da lei federal, consubstanciando-se aí jurisdição de tutela do princípio da incolumidade do Direito objetivo “constitui um valor jurídico – que resume certeza, garantia e ordem -, valor esse que impõe a necessidade de um órgão de cume e um instituto processual para a sua real efetivação no plano processual” 156.

A natureza do recurso especial é de recurso excepcional, de fundamentação

vinculada157.

Como mencionado, a existência de Tribunais Superiores decorre da própria forma de

estado (federado)158. Talvez isso até esteja ligado ao caos em que vivem os Tribunais

Superiores, pois diferentemente do sistema norte-americano de federação, que surgiu de um

movimento centrípeto, no qual as colônias cederam parcela de seu poder para a construção de

um estado federado, o Estado Federado Brasileiro surgiu de um movimento centrífugo, ou

seja, o poder central foi distribuído aos demais entes159. Há um federalismo formal apenas.

Verifica-se isso em função da repartição de competências160. Enquanto nos Estados Unidos

boa parte das matérias é regulada pelos Estados, no Brasil a competência legislativa dos

Estados, apesar de ser residual, é em grande medida tolhida pela competência exercida pela

União (que tem competência para legislar sobre uma imensa gama de matérias, tais como

direito civil, processo civil, penal, processo penal).

Isso faz com que as demandas acabem, cedo ou tarde, tendo que ser enfrentadas pelas

Cortes Superiores, pois caberá a elas uniformizar a interpretação e aplicação do direito

federal.

Os recursos excepcionais têm a finalidade de exercer o controle nomofilácico161. Têm

também a função de exercer o controle difuso de constitucionalidade.

Os recursos de estrito direito servem de ferramenta para proteção do direito objetivo.

Seu objetivo primordial não é proteger o direito subjetivo das partes, mas são as partes, que

156 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 562

– grifos no original. 157 LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 203 158 OLIVEIRA, Gleydson Kleber Lopes de. Recurso Especial. Recursos no processo civil 9. São Paulo: RT,

2002, p. 123 159 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 101-

102 160 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 244 161 TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do

Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 44-45. No mesmo sentido: SILVA, José Afonso. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: RT, 1963, p 27

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64 por meio dos recursos excepcionais e pretendendo ver a aplicação do direito objetivo nos seus

casos concretos, que buscarão essa finalidade nomofilácica.

Verifica-se, assim, que o recurso extraordinário serve não apenas ao controle do

direito objetivo, mas também à tutela dos interesses dos litigantes162.

4.3.1 Requisitos de sua admissibilidade

A previsão atual de cabimento dos recursos excepcionais está descrita nos artigos 102,

III, (para o recurso extraordinário) e 105, III, (para o recurso especial)163. Para que seja

cabível, todavia, também é preciso que a matéria impugnada envolva questão

predominantemente de direito164; que a decisão atacada seja de última ou única instância; que

haja o prequestionamento da questão constitucional impugnada; que a ofensa à Constituição

Federal seja direta e não reflexa; que haja repercussão geral das questões constitucionais;

além dos demais pressupostos recursais (tempestividade, preparo etc.).

Para o recurso especial também se exige que a decisão atacada seja de última ou única

instância, mas exige que essa última ou única instância seja tribunal, não cabendo então

recurso especial de decisão proferida por Colégio Recursal165, por exemplo; exige-se também

que haja o prequestionamento da questão envolvendo lei federal. Não se exige a repercussão

geral para a interposição do recurso especial.

162 Seria ingenuidade entender que os recursos excepcionais são interpostos pelas partes apenas para a proteção

do direito objetivo. Elas recorrem para a proteção de seus direitos individuais. 163 Verifica-se que as hipóteses de cabimento se resumem à ofensa à Constituição Federal e à lei federal, sendo

as demais alíneas dos artigos em comento desmembramento dessa ideia: “Para efeito de cabimento dos recursos especial e extraordinário, ofender a lei, contrariar-se a lei, negar vigência à lei são hoje expressões equivalentes. Interpretar mal o texto de lei é contrariá-lo, é negar-lhe vigência, é ofendê-lo”. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 262)

164 A diferenciação entre questão de direito e questão de fato será abordada no capitulo seguinte, quando tratarmos do incidente de resolução de demandas repetitivas.

165 Súmula 203 do STJ: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”. Em sentido contrário: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 313

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65 Em razão da proibição da utilização dos recursos excepcionais para revolver matéria

fática, não são cabíveis esses recursos para o revolvimento de provas166.

Por visarem a proteção do direito federal, mais precisamente a proteção da

Constituição Federal pelo recurso extraordinário e da lei federal pelo recurso especial, não

poderão ser manejados estes recursos para a mera interpretação de cláusulas contratuais167;

por ofensa à Lei local168; ou por ofensa à regimento interno169, pois este não é lei.

A decisão de última ou única instância, para fins de recurso extraordinário, não precisa

ser proferida por tribunal, tal como ocorre no recurso especial em razão da dicção do art. 105,

III, da Constituição Federal. Assim é cabível recurso extraordinário das decisões proferidas

em embargos infringentes pelo juiz de primeira instância nas execuções fiscais de pequeno

valor, nos termos do art. 34 da Lei 6.830/1980 e também das decisões proferidas pelo Colégio

Recursal nos juizados Especiais170.

O significado de decisão de última ou única instância é de que não deve ser passível

qualquer outro recurso da decisão (desconsiderando-se o cabimento de embargos de

declaração, que não tem a finalidade de reforma ou anulação da decisão, mas de simples

integração desta). Também não deve ser considerado para tanto a possibilidade de outros

meios de impugnação autônomos (mandado de segurança contra ato judicial, reclamação

constitucional ou ação rescisória)171.

Se, no julgamento de uma demanda originária ou recursal pelo Tribunal não houver

outro recurso cabível, entende-se que a decisão seja de última (ou única) instância. Dessa

forma, será cabível o recurso excepcional. Se, todavia, da decisão que apreciar a matéria

couber, por exemplo, recurso ordinário constitucional (art. 102, II ou 105, II, da Constituição

Federal), não será o caso de cabimento do recurso excepcional, não sendo aplicado aqui o

166 Súmula 279 do STF: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. E também: Súmula 7

do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 167 Súmula 454 do STF: “Simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a recurso extraordinário”.

E também: Súmula 5 do STJ: “A simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”. 168 Súmula 280 do STF: “Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário”. 169 Súmula 399 do STF: “Não cabe recurso extraordinário, por violação de lei federal, quando a ofensa alegada

for a regimento de tribunal”. 170 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p.

121. Também: Súmula 640 do STF: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”.

171 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 736

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66 princípio da fungibilidade172. Isso também vale se houver a possibilidade de atacar a decisão

por meio de recurso de embargos infringentes173. Todavia, se a decisão de única ou última

instância for de Tribunal Superior (do STJ, por exemplo), e dessa decisão seja passível haver

impugnação por meio de embargos de divergência, a possibilidade de interposição desse

recurso não traz impedimento à interposição de recurso extraordinário. A decisão monocrática

de tribunal, todavia, impede o ajuizamento do recurso excepcional, pois a parte ainda pode

manejar o agravo interno.

O Legislador trouxe alteração ao cabimento do recurso excepcional quando parte da

decisão puder ser atacada por embargos infringentes e parte não. De acordo com a dicção do

art. 498, caput, do Código de Processo, havendo numa decisão capítulo passível de embargos

infringentes e capítulo passível de recurso excepcional, a parte necessitará interpor embargos

infringentes da decisão não unânime para que do julgamento colegiado desse recurso seja

cabível o recurso excepcional. Da parte unânime do julgado, que não era passível de recurso

de embargos infringentes, a parte poderá interpor o recurso excepcional, porque a decisão é de

última ou única instância. O prazo, todavia, para a interposição desse recurso somente

começará a contar da intimação da decisão que julgar os embargos infringentes interpostos da

parte não unânime ou, no caso de não interposição desse recurso, no tocante à parte unânime

do acórdão, o prazo para a interposição do recurso excepcional começará a contar do término

do prazo para a interposição dos embargos infringentes, nos termos do artigo mencionado.

Vale acrescentar também que a causa decidida pode ter origem em qualquer tipo de

processo (conhecimento, execução, cautelar, procedimento especial), sendo a decisão

originária sentença ou interlocutória, podendo até mesmo ser cabível recurso das decisões em

processos de jurisdição voluntária. Não há limitação legal quanto a isso. Acrescenta-se,

entretanto que, apesar de não haver limitação, a legislação prevê a retenção do recurso

excepcional quando a decisão originária for interlocutória174.

172 Súmula 272 do STF: “Não se admite como ordinário recurso extraordinário de decisão denegatória de

mandado de segurança”. 173 Súmula 207 do STJ: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o

acórdão proferido no tribunal de origem”. E também: Súmula 281 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”.

174 Não se desconhece, entretanto, a jurisprudência restritiva do STF, vedando o recurso extraordinário diante de acórdãos que tenham deferido medidas liminares (Súmula 735 do STF: “Não cabe recurso extraordinário contra acórdão que defere medida liminar”) e contra provimentos exarados em processos que alberguem jurisdição voluntária.

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67 As decisões contra a Fazenda Pública podem ser objeto de reexame necessário. O

acórdão do Tribunal que apreciar o reexame necessário pode ser atacado por meio do recurso

excepcional175. Mesmo que o reexame necessário tenha reformado por maioria a sentença de

mérito será possível a interposição do recurso excepcional porque não são cabíveis embargos

infringentes contra decisão proferida em reexame necessário176. Outra hipótese em que

também poderá haver reforma por maioria da sentença de mérito e que já poderá ser atacada

por recurso excepcional é a decorrente de mandado de segurança, pois não cabem embargos

infringentes contra acórdão proferido por maioria em apelação que decidiu mandando de

segurança177.

No tocante especificamente ao recurso extraordinário há também a necessidade de que

a ofensa à Constituição Federal seja direta e não reflexa. Isso quer dizer que a ofensa deve ser

ao próprio texto constitucional. Isso, entretanto, não é de fácil verificação, ainda mais diante

de uma constituição principiológica como a nossa178.

João Batista Lopes destaca que o recorrente deve fazer o confronto analítico entre a

decisão recorrida e o texto constitucional. Não basta, simplesmente, alegar ofensa a

determinado princípio. É preciso que seja demonstrado no recurso em que pontos se revelou a

ofensa ao texto constitucional179.

175 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 739 176 Súmula 390 do STJ: “Nas decisões por maioria, em reexame necessário, não se admitem embargos

infringentes”. Segundo entendeu o STJ, não são cabíveis os embargos infringentes porque reexame necessário não pode ser considerado apelação e o art. 530 exige que a reforma por maioria seja proferida em apelação ou ação rescisória. Tal restrição, todavia, não existe para o excepcional, pois tanto o art. 102, III quanto o art. 105, III, falam apenas em causas decididas, o que justifica o cabimento dos recursos excepcionais, inclusive da parte não unânime que reformou a sentença de mérito.

177 Súmula 597 do STF: “Não cabem embargos infringentes de acórdão que, em mandado de segurança decidiu, por maioria de votos, a apelação”.

178 Para o STF a ofensa reflexa seria demonstrada quando para se analisar a ofensa à Constituição Federal seja necessário realizar exame sobre as normas infraconstitucionais (STF. 2º Turma. ARE 672.121 AgR-GO. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 24.04.2012). Também: “[...] O Recurso Extraordinário é incabível quando a alegada ofensa à Constituição Federal, se existente, ocorrer de forma reflexa, a depender da prévia análise da legislação infraconstitucional. Embargos de declaração conhecidos e recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento”. (STF. 1ª Turma. AI 837.155 ED-PR. Rel. Min. Rosa Weber, j. 17.04.2012)

179 LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 211

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68 4.3.1.1 Prequestionamento

Afirma Araken de Assis que o problema do prequestionamento como exigência para a interposição do recurso extraordinário já tenha surgido em 1891 com a Constituição Federal de então, ao prever no art. 59, § 1º, “a” que caberia recurso extraordinário “quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela”180.

O prequestionamento ganhou força a partir da Constituição Federal de 1946, pois de

acordo com o art. 101, III, desta Constituição o recurso extraordinário seria cabível em face

das “causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes”.

Em decorrência dessa redação o STF acabou por editar dois enunciados de Súmula:

282: É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada. 356: O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.

Em razão de os tribunais superiores serem tribunais de sobreposição, não voltados à

verificação de fatos, justifica-se o prequestionamento em razão de as matérias deverem ter

sido apreciadas pelas instâncias ordinárias. Como destacado por Teresa Wambier, os recursos

excepcionais são recursos de revisão, logo “revisa-se o que já se decidiu”181.

Apesar de a Constituição Federal de 1946 e das Constituições posteriores não

mencionarem o termo “questionar”, pacificou-se o entendimento no sentido da necessidade de

prequestionamento da matéria objeto de recurso182.

No que se refere ao prequestionamento, deve-se entender que a matéria objeto de

recurso tenha sido não apenas suscitada pela parte nas instâncias ordinárias, mas que também

tenham sido elas julgadas pelo Tribunal local183. Mesmo matérias consideradas como de

ordem pública, nas quais o juiz pode conhecer delas de ofício, se estas matérias não forem

180 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 728 181 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 401 182 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 400 183 Súmula 282 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a

questão federal suscitada”. Ainda: Súmula 211 do STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. E também: Súmula 356 do STF: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.

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69 arguidas pela parte na instância ordinária, nem apreciadas pelo tribunal local, não será

possível interpor recurso excepcional184. Se houver apenas a manifestação em voto vencido, a

matéria não é considerada como prequestionada185. Também não se considera como

prequestionada a matéria manifestada em voto que não decorra da maioria dos Ministros186.

Como afirmam os art. 102, III e 105, III, ambos da CF, as causas devem ter sido

decididas, significando que devam ter sido apreciadas então pela instância ordinária187. É dai

que surge a importância da elaboração minuciosa de um recurso de apelação, agravo de

instrumento, ou até mesmo de recurso inominado (Lei 9.099/95) e das respectivas

contrarrazões para que a matéria seja arguida pela parte e apreciada pelo tribunal a quo. Caso

o Tribunal a quo não tenha apreciado a questão vem a fundamental ferramenta para suprimir a

falta do prequestionamento, que são os embargos de declaração. Caso estes embargos sejam

interpostos e não tenham seu mérito apreciado pelo tribunal a quo, a parte poderá se valer do

recurso especial por ofensa ao art. 535 do CPC, desde que o acórdão padeça de alguns dos

vícios descritos no art. 535188.

Discute-se sobre a necessidade de o prequestionamento abranger também a indicação

do dispositivo constitucional ou de lei federal violado no acórdão recorrido. Assevera Araken

de Assis que “o ‘prequestionamento numérico’ é supérfluo” 189. Isso não deve, por óbvio, ser

confundido com a exigência de o recorrente ter de indicar, de forma expressa no recurso

excepcional, o dispositivo entendido como violados190.

184 “A não ser assim, o STF e o STJ estariam a dirimir quaestiones iuris em primeira mão, como se atuassem em

competência originária!” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 115). Ainda Dinamarco, ao conceituar prequestionamento afirma que “Questionar é, pois, manifestar dissenso quanto a um ponto de fato ou de direito. Esses conceitos concorrem para o entendimento de que um tema de direito federal suscitado no acórdão local ou um preceito federal sequer cogitado e muito menos descumprido não podem servir de fundamento à devolução do caso ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça mediante o recurso extraordinário ou especial – simplesmente porque, se não se levantou questão em torno de um ponto contido no ordenamento jurídico federal, transgredido não pode ter ficado esse ponto de direito, ou seja, uma norma contida no ordenamento da nação”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. vol. II. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.032-1.033 – grifos no original)

185 Súmula 320 do STJ: “A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”.

186 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 746 187 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 9. ed. São Paulo, 2006, p. 125 188 STJ. Corte Especial. EREsp. 1.069.897-AM, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 24.11.2011, v.u. 189 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 745 190 Vale, por fim, destacar quanto ao prequestionamento a conclusão a que chegou Dinamarco quanto à

exigência do prequestionamento, afirmando que “[...] o radical acirramento da exigência de prequestionar só tem sentido lógico e coerência sistemática quando associado àquela premissa de que o recurso especial e o extraordinário não guardariam relação alguma com a justiça das decisões [...]”.(DINAMARCO, Cândido

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70 Em razão de os tribunais superiores só analisarem via recursos excepcionais as

questões de direito, não realizando reexame dos autos, destaca Teresa Wambier a importância

de os principais fatos para a apreensão do caso estarem presentes no acórdão prolatado pelo

tribunal a quo. Se o caso, por exemplo, envolver a inadequação dos fatos ao que foi decidido,

não há como não se verificar os fatos, mas essa análise não envolverá o reexame de provas.

Os fatos principais para a adequação do caso à lei deverão constar do acórdão, o que também

justifica a interposição dos embargos de declaração com fins de prequestionamento191.

Se a questão de direito tiver sido tratada apenas no voto vencido, não houve

prequestionamento, sendo necessário interpor embargos de declaração192.

Verifica-se, na análise do prequestionamento, a existência de discussão sobre o

prequestionamento implícito e prequestionamento explícito, bem como sobre o

prequestionamento ficto. O prequestionamento explícito significa que a matéria objeto de

recurso pode ser identificada na decisão recorrida193. Quando a decisão não estiver tão clara,

faz-se necessária a interposição dos embargos de declaração. Segundo Cassio Scarpinella foi a

partir dai que surgiu o prequestionamento ficto, sendo editado enunciado de súmula 356 do

STF, mencionando que a simples interposição de embargos de declaração seria suficiente para

que a matéria fosse prequestionada, independentemente do resultado do julgado194. Esse

enunciado, que é da década de 1960 está em sentido divergente do enunciado 211 do STJ.

Ao se analisar os enunciados de súmula 356 do STF e 211 do STJ verifica-se certa

contrariedade no tocante ao prequestionamento. De acordo com o enunciado 356 do STF, o

prequestionamento pode ser ficto, ou seja, basta a interposição dos embargos de declaração

perante o tribunal local para que a matéria tenha sido considerada como prequestionada,

independentemente de o tribunal local apreciar os embargos de declaração ou não. Na outra

Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. vol. II. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.038-1.039) – grifos no original)

191 “Por isso é que cabe à parte, exercendo legitimamente sua atividade de prequestionar, isto é, fazer constar da decisão a questão federal ou a questão constitucional, pleitear do órgão a quo que faça também constar do acórdão circunstâncias fáticas aptas a demonstrar, pela mera leitura da decisão recorrida, que a solução normativa pela qual se optou na decisão impugnada (pela via do recurso extraordinário ou do recurso especial) está equivocada, estando-se, pois, assim, em face de uma ilegalidade ou de uma inconstitucionalidade. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 404 – grifos no original)

192 Súmula 320 do STJ. 193 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva,

2008, p. 242 194 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva,

2008, p. 244

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71 esteira, todavia, verificamos o enunciado 211 do STJ, que afirma haver a necessidade de um

prequestionamento real, ou seja, não basta a interposição do recurso de embargos de

declaração. Faz-se necessário também que o tribunal aprecie a questão. Se o tribunal local não

apreciar os embargos de declaração, a parte poderá até interpor o recurso especial, mas com

fundamento na ofensa ao art. 535 do CPC (desde que realmente tenha havido algumas das

hipóteses para cabimento dos embargos de declaração, pois se a questão federal não foi

suscitada a omissão foi da parte e não do judiciário).

4.3.1.2 Repercussão geral das questões constitucionais

O requisito da repercussão geral da questão constitucional foi introduzido no direito

pátrio por meio da Emenda Constitucional 45 de 8 de dezembro de 2004195, sendo este mais

um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário (não se aplicando ao especial)196.

Apesar desse requisito não ser aplicado ao recurso especial, vale destacar que Teresa

Wambier já afirmara que o legislador constituinte poderia também ter mantido a repercussão

geral para o recurso especial197. Segundo o § 3º do art. 102 o recorrente deverá demonstrar a

repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso. O Tribunal somente poderá

negar admissibilidade ao extraordinário pelo voto de 2/3 (oito Ministros) de seus membros.

Diante da função uniformizadora dos tribunais superiores, parece-nos útil a utilização

da repercussão geral como filtro para a interposição dos recursos excepcionais (apesar de

apenas ser vigente para o STF). Se o interesse nos recursos extraordinários é de âmbito

nacional, não podem os Tribunais Superiores ficar resolvendo pequenas contendas, nas quais

a causa jurídica sub judice não trará repercussão para a sociedade.

195 A necessidade de restrição dos casos que devam ser apreciados pelo STF não é tema novo. Levi Carneiro e o

Min. Filadelfo Azevedo já alertavam para a necessidade de restrição de casos que deveriam ser apreciados pela mais alta corte do país, em razão da necessidade de haver um equilíbrio entre qualidade dos jugados e quantidade destes (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 41)

196 O Pleno do STJ, contudo, aprovou proposta de encaminhamento ao Congresso Nacional de texto visando a edição de Emenda Constitucional, criando o requisito da repercussão geral também para o STJ (noticiado em 05/03/2012 no sítio do STJ). Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=104922 acesso em 05.03.2012, às 23h20.

197 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 290

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72 Independentemente de a criação da repercussão ter surgido ou não da sobrecarga de

trabalho no STF, o certo é que esse filtro pode ter seu lado positivo, qual seja: a diminuição da

carga de trabalho poderá trazer maior qualidade aos julgados proferidos pela Corte (ao menos

é o que se espera)198.

Como a redação do § 3º do art. 102 afirmava que a repercussão precisaria ser

demonstrada nos termos da Lei, entendeu-se que a norma constitucional possuía eficácia

limitada, dependendo da edição de lei federal que explicitasse o que poderia ser entendido por

repercussão geral.

Em 20.12.2006 foi publicada a Lei 11.418 (com vacacio legis de 60 dias) que incluiu

ao CPC os artigos 543-A e 543-B, prevendo no primeiro dos dispositivos citados o que seria

repercussão geral: “§ 1º. Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou

não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que

ultrapassem os interesses subjetivos da causa”199.

Nelson e Rosa Nery afirmam que a repercussão geral é um conceito legal

indeterminado200. Arruda Alvim afirma que ela deve dizer respeito

[...] a um grande espectro de pessoas ou a um largo segmento social, uma decisão sobre assunto constitucional impactante, sobre tema constitucional muito controvertido, em relação a decisão que contrarie decisão do STF; que diga respeito à vida, à liberdade, à federação, à invocação do princípio da proporcionalidade (em relação à aplicação do texto constitucional) etc.; ou

198 Defendendo a repercussão geral: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso

extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 291: “[...] pensamos que o instituto se justifica por ser realmente capaz de gerar jurisdição de melhor qualidade. As decisões do STF tenderão a ser paradigmáticas e, por conseguinte, a jurisprudência deste Tribunal terá mais visibilidade, podendo, então, exercer de modo mais firme sua função paradigmática”.

199 Em pesquisa no sítio do STF foi possível encontrar a análise de 559 temas, sendo que destes, 143 não tiveram sua repercussão geral reconhecidas: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/listarProcesso.asp acesso em 25.06.2012, às 12h10. A guisa de exemplo, já se decidiu que não têm repercussão geral: a redução da multa prevista no art. 461, § 6º, do CPC (RE 556385-MT); a indenização por danos morais em decorrência de manipulação de resultados de partidas de futebol (RE 565.138-BA); Vício de iniciativa para criação de lei que obriga o DF a instalar semáforos com dispositivos de acionamento pelos próprios pedestres (RE 565.506-7-DF). Por outro lado, já se manifestou a Corte Suprema sobre a repercussão geral nos seguintes casos, dentre outros: Base de cálculo do PIS e da COFINS sobre a importação (RE 559.607); Reserva de lei complementar para legislar sobre prazo prescricional em matéria de contribuição previdenciária (RE 560.626); Termo a quo do prazo prescricional em relação a tributos sujeitos à homologação (RE 566.621); Penhorabilidade do bem de família do fiador no contrato de locação (RE 612.360).

200 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 979

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73

ainda, outros valores conectados a Texto Constitucional que se alberguem debaixo da expressão repercussão social201.

Vale ressaltar que a repercussão geral não se confunde com a arguição de relevância

que era previsto no revogado art. 308 do Regimento Interno do STF. A arguição de relevância

não mais existe. Ela visava questões federais na vigência da Constituição Federal de 1969202,

dependia da instauração de incidente para sua verificação. A arguição de relevância dependia

de um juízo positivo de 4 Ministros203 e seu julgamento era de ordem subjetiva e, num

primeiro momento, independia de qualquer fundamentação204. Difere-se da repercussão geral,

pois o recurso, em princípio, será analisado pela Corte, só podendo ser rejeitado pelo voto de

8 Ministros. Além disso, a competência para determinar qual tema tem repercussão geral foi

dada à Lei (e não ao STF como acontecia na arguição de relevância)205.

Pode ser citado como origem da repercussão geral o writ of certiorari do direito norte-

americano. De acordo com a Rule 10 das Rules of the Supreme Court206 não se garante o

direito a esse instrumento. Não pode o writ of certiorari ser considerado um direito da parte e

sim um “privilégio”207.

Ainda no direito estrangeiro, também é possível verificar tal exigência no direito

Argentino208. Segundo Eduardo Oiteza, a ideia de se criar esse filtro ao recurso extraordinário

201 ARRUDA ALVIM, José Manoel. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa

Arruda Alvim. (Org.). Reforma do Judiciário. Revista dos Tribunais, 2005, p. 63 202 Tendo sido inserida em 1975 por meio de alteração do Regimento Interno do STF (LAMY, Eduardo de

Avelar. Repercussão geral no recurso extraordinário: a volta da argüição de relevência? In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Org.). Reforma do Judiciário. Revista dos Tribunais, 2005, p. 178)

203 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 752 204 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

689 205 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação

extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 979 206 Rule 10. “Considerations Governing Review on Certiorari

Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion. A petition for a writ of certiorari will be granted only for compelling reasons. The following, although neither controlling nor fully measuring the Court’s discretion, indicate the character of the reasons the Court considers: (a) a United States court of appeals has entered a decision in conflict with the decision of another United States court of appeals on the same important matter; has decided an important federal question in a way that conflicts with a decision by a state court of last resort; or has so far departed from the accepted and usual course of judicial proceedings, or sanctioned such a departure by a lower court, as to call for an exercise of this Court’s supervisory power; (b) a state court of last resort has decided an important federal question in a way that conflicts with the decision of another state court of last resort or of a United States court of appeals; (c) a state court or a United States court of appeals has decided an important question of federal law that has not been, but should be, settled by this Court, or has decided an important federal question in a way that conflicts with relevant decisions of this Court. A petition for a writ of certiorari is rarely granted when the asserted error consists of erroneous factual findings or the misapplication of a properly stated rule of law”.

207 ABRAHAM, Henry J. Apud ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 752 208 Art. 280 do CPC Argentino: “Art. 280.- Llamamiento de autos. Rechazo del recurso extraordinario.

Memoriales en el recurso ordinario. Cuando la Corte Suprema conociere por recurso extraordinario, la

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74 no direito argentino teria surgido em 1959, mas somente passou a ter previsão legal em 1990

com a alteração da redação do art. 280 do CPC daquele país209.

Quanto ao momento de verificação da repercussão geral da questão constitucional,

devemos destacar que trata-se de requisito de admissibilidade, mas que precisa ser decidido

por um número mínimo de Ministros (2/3 para rejeitar a repercussão geral). Diante dessa

situação, por uma questão de lógica, apenas após a análise dos demais requisitos de

admissibilidade é que a Corte deverá analisar a presença de repercussão geral, sob pena de

fazer com que a Corte se reúna para decidir pela existência de repercussão geral para,

posteriormente, a Corte acabar rejeitando o recurso pela ausência de tempestividade, por

exemplo210.

Em que pese o juízo a quo tenha competência para analisar os demais requisitos de

admissibilidade, excetuando-se a repercussão geral, pode ocorrer de o Tribunal a quo admitir

o extraordinário mesmo com a ausência de algum requisito. Por isso, parece-nos mais sensato

que a repercussão geral seja o último dos requisitos de admissibilidade a ser verificado pela

Turma ou Plenário211.

A repercussão geral é presumida, somente podendo ser afastada pela maioria

qualificada em sentido contrário (art. 324 do RISTF). De acordo com recente alteração ao

regimento interno do STF, todavia, nos casos de o Ministro afirmar que a matéria seja

infraconstitucional, poderá haver ausência de repercussão tácita (§ 2º, do art. 324).

Por fim, não se admite recurso contra a decisão que reconheceu a ausência de

repercussão geral. Caberá apenas a interposição de embargos de declaração212. Verificada a

recepción de la causa implicará el llamamiento de autos. La Corte, según su sana discreción, invocando esta norma y con adecuada fundamentación, podrá rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio federal suficiente, por manifiesta inadmisibilidad o cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia. No procederá el rechazo aludido si cuatro de los jueces que integran el Tribunal se pronuncian por la admisibilidad del recurso extraordinario. Tampoco se lo podrá denegar si la Procuración General se expidiera a favor del recurrente”.

209 Ainda, segundo o autor: “La cantidad de casos ingresados anualmente al Alto Tribunal justifica la generación de anticuerpos, que le permitan cumplir con su missión seriamente y no quedar sepultado en la ineficiencia”. OITEZA, Eduardo. El certiorari o el uso de la discrecionalidad por la Corte Suprema de la Nación sin um rumbo preciso. Revista Jurídica de La Universidad de Palermo. ano 3. Vol. 1, 1998, disponível em: http://www.palermo.edu/derecho/revista_juridica/acerca_revista.html acesso em 14.05.2012 às 12h00

210 Art. 323 do RISTF. No mesmo sentido: ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 755-756. Em sentido contrário: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 980

211 Nesse sentido: ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 755 212 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação

extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 979

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75 ausência de repercussão geral, os recursos sobrestados não serão admitidos pelo próprio

tribunal local213.

Se, por outro lado, o STF entender que há repercussão geral, apreciará os recursos

demonstrativos da controvérsia e os julgará. Aos Tribunais inferiores, onde os demais

recursos foram sobrestados competirá reapreciar o caso, levando em consideração o que foi

decidido pela Corte Suprema. De acordo com a dicção do § 4º do art. 543-B do CPC, o

Tribunal local poderá manter a decisão em sentido contrário ao que foi estabelecido pelo STF.

Caso isso ocorra e seja o recurso extraordinário contra essa decisão admitido na origem, os

autos subirão ao STF, que poderá cassar ou reformar a decisão. Isso significa que a decisão do

STF nos casos repetitivos não tem eficácia vinculante, mas deve ser obedecida pelos

Tribunais inferiores, os quais poderão até manter a decisão em sentido contrário, desde que o

façam de forma fundamentada, explicando por que aquele caso não pode ser entendido da

mesma forma como os que foram apreciados pela Corte Suprema. Para que houvesse eficácia

vinculante, de acordo com o sistema vigente, o STF precisaria proceder à edição de enunciado

de súmula vinculante, obedecidos os pressupostos para sua elaboração.

4.3.2 Hipóteses de cabimento dos recursos excepcionais

As hipóteses de cabimento do recurso extraordinário estão dispostas no art. 102, III,

alíneas “a” até “d”, da Constituição Federal. Em relação ao recurso especial, suas hipóteses de

cabimento estão previstas no art. 105, III, alíneas “a” até “c”, também da Constituição

Federal.

Todas as hipóteses de cabimento do extraordinário se voltam para ofensa ao texto

constitucional. A primeira delas cuida da ofensa porque o provimento impugnado contraria o

texto da Lei Maior. A amplitude do verbo contrariar abrange toda e qualquer interpretação

errônea ao texto constitucional214.

213 Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier essa decisão do STF sobre a existência ou não de repercussão geral

terá eficácia vinculante, devendo o órgão a quo se ater a essa decisão. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 305-306)

214 Rodolfo de Camargo Mancuso, relacionando o verbo contrariar com o termo utilizado por constituições anteriores “negar vigência” destaca que: “[...] ‘contrariar’ um texto tem um senso mais largo e abrangente do

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76 Barbosa Moreira afirma que o emprego do verbo contrariar acaba levando ao próprio

mérito do recurso e não a uma mera etapa do juízo de admissibilidade. Por essa razão que o

STF até mesmo entendia que no caso da alínea “a” só seria possível conhecer do recurso para

dar-lhe provimento.

Não é essa, porém a interpretação do dispositivo que vige naquela Corte. Basta a

alegação de forma adequada da contrariedade ao texto constitucional para o juízo de

admissibilidade215. Como bem destaca Rodolfo de Camargo Mancuso, essa verificação é feita

“in statu assertionis”216.

A segunda hipótese de cabimento do extraordinário (declarar a inconstitucionalidade

de tratado ou de lei federal) também envolve a interpretação e aplicação da Constituição. A lei

federal, a partir do momento em que entra em vigor, tem sua constitucionalidade presumida.

A inconstitucionalidade da lei deve ser verificada pelo Judiciário, podendo ser feita por

qualquer magistrado. Não obstante, a última palavra sobre a interpretação da Constituição

deve ser dada pelo STF. Por isso do cabimento do recurso nessa hipótese. Se a decisão do juiz

local ao aplicar a lei, entendê-la constitucional, não caberá recurso extraordinário (ao menos

não por essa alínea, podendo ser cabível por outra – art. 102, III, a, por exemplo), porque

como dito, as leis se presumem constitucionais, o que não afronta a constituição.

Ao ser julgada, incidenter tantum a inconstitucionalidade de uma lei por um juiz de

primeira instância, a parte poderá recorrer da decisão para o Tribunal. O juiz pode,

monocraticamente, deixar de aplicar uma lei porque entende inconstitucional. Já nos casos

dos Tribunais, como visto alhures, há a regra do full bench (cláusula de reserva de plenário),

que ‘negar-lhe vigência’. A extensão daquele primeiro termo é maior, chegando mesmo a abarcar, em certa medida, o outro; depois, a compreensão dessas locuções é diversa: ‘contrariar’ tem uma conotação mais difusa, menos contundente; já ‘negar vigência’ sugere algo mais restrito, mais rígido”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 216)

215 “[...] II. Recurso extraordinário: letra a: alteração da tradicional orientação jurisprudencial do STF, segundo a qual só se conhece do RE, a, se for para dar-lhe provimento: distinção necessária entre o juízo de admissibilidade do RE, a - para o qual é suficiente que o recorrente alegue adequadamente a contrariedade pelo acórdão recorrido de dispositivos da Constituição nele prequestionados - e o juízo de mérito, que envolve a verificação da compatibilidade ou não entre a decisão recorrida e a Constituição, ainda que sob prisma diverso daquele em que se hajam baseado o Tribunal a quo e o recurso extraordinário [...]”. (STF. Pleno. RE 298.695-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 06.08.2003). No mesmo sentido: ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 763

216 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 219

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77 ou seja, a Câmara ou Turma não poderão declarar a inconstitucionalidade da lei ou do tratado.

Somente o plenário ou Órgão Especial é que poderá assim proceder217.

Na terceira hipótese, fala-se em julgar válido lei local ou ato de governo local

contestado em face da Constituição Federal. Se o ato ou a lei local for considerada

inconstitucional pelo governo local não caberá o extraordinário (ao menos não por essa

hipótese, sendo cabível pela hipótese prevista no art. 102, III, “a”).

A última hipótese de cabimento do extraordinário decorreu de alteração da

Constituição pela Emenda Constitucional nº 45. Antes dessa emenda, a decisão que julgava

válida lei local contestada perante lei federal era considerada como hipótese de cabimento de

recurso especial218.

Com acerto, tal hipótese foi encartada como caso de cabimento do extraordinário e não

mais do recurso especial. E isso se explica porque não há hierarquia entre leis locais e leis

federais. A análise da distribuição constitucional de competências não é matéria de

competência do STJ e sim do STF, pois trata-se de conflito federativo saber que ente político

tem competência para legislar sobre o quê. Se a matéria objeto da legislação for de

competência privativa da União, a lei local será declarada inconstitucional. Se for matéria de

competência concorrente entre União e Estados, é preciso verificar se a lei local invadiu a

competência da legislação federal (na estipulação de normas gerais) ou se foi a lei federal que

avançou sobre a competência que seria atribuída aos Estados.

Nos casos de recurso especial, todas as hipóteses de cabimento estão ligadas, de

alguma forma, à ofensa da lei federal. A primeira delas prevê o cabimento do recurso quando

a decisão recorrida contrariar tratado federal ou lei federal, ou ainda, quando negar vigência a

tais diplomas. Vale aqui uma primeira ressalva: Nos casos de tratados internacionais que

versem sobre direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional com quórum qualificado

(três quintos) em dois turnos, os tratados internacionais terão estatura de norma

constitucional. Nesses casos, se a decisão de última ou única instância contrariar esses

tratados ou negar-lhes vigência, será o caso de recurso extraordinário (na hipótese da alínea

217 Súmula Vinculante nº 10. “Viola a cláusula de reserva de plenário (cf, artigo 97) a decisão de órgão

fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

218 Eis a redação anterior do art. 105, III, “b” que previa a possibilidade de recurso especial dentre outras, na seguinte hipótese: “julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal”.

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78 “a” do art. 102, III, se a decisão contrariou a CF, ou com fundamento na alínea “b” do mesmo

artigo e inciso se a decisão declarar a inconstitucionalidade do tratado)219.

Se a decisão contrariar direito local, não será o caso de cabimento do especial. O

mesmo vale para ofensa a regimento de Tribunal local220.

Na função uniformizadora do Tribunal, não poderá haver duas possíveis interpretações

para casos análogos. Uma delas estará em desacordo com a lei. Uma delas contrariará o

direito federal. Por esta razão, entendemos como não aplicável a Súmula 400 do STF221.

219 Até a presente data o único documento aprovado adotando-se o procedimento do art. 5º, § 3º, da CF foi a

Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinado em Nova York em 30.03.2007 (aprovado pelo Congresso pelo Decreto Legislativo nº 186, de 2008). Acrescenta-se que há discussão sobre a natureza dos tratados sobre direitos humanos aprovados anteriormente à EC 45/2004. Se suas normas teriam hierarquia constitucional ou legal. No HC 466.343-SP o pleno do STF, por maioria, deu status de norma supralegal à Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

220 Súmula 399 do STF: “Não cabe recurso extraordinário, por violação de lei federal, quando a ofensa alegada for a regimento de tribunal”.

221 “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. VIOLAÇÃO À LEI FEDERAL. MATÉRIA CONTROVERTIDA NOS TRIBUNAIS À ÉPOCA DA PROLAÇÃO DA DECISÃO RESCINDENDA. JURISPRUDÊNCIA DO STJ EM SENTIDO CONTRÁRIO. SÚMULA 343/STF. NÃO-APLICAÇÃO. REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA A RESPEITO. 1. A súmula 343/STF, editada antes da Constituição de 1988, tem origem na doutrina (largamente adotada à época, inspiradora também da súmula 400/STF) da legitimidade de interpretação razoável da norma, ainda que não a melhor, permitindo assim que a respeito de um mesmo preceito normativo possa existir mais de uma interpretação e, portanto, mais de um modo de aplicação. 2. Ao criar o STJ e lhe dar a função essencial de guardião e intérprete oficial da legislação federal, a Constituição impôs ao Tribunal o dever de manter a integridade do sistema normativo, a uniformidade de sua interpretação e a isonomia na sua aplicação. O exercício dessa função se mostra particularmente necessário quando a norma federal enseja divergência interpretativa. Mesmo que sejam razoáveis as interpretações divergentes atribuídas por outros tribunais, cumpre ao STJ intervir no sentido de dirimir a divergência, fazendo prevalecer a sua própria interpretação. Admitir interpretação razoável, mas contrária à sua própria, significaria, por parte do Tribunal, renúncia à condição de intérprete institucional da lei federal e de guardião da sua observância. 3. Por outro lado, a força normativa do princípio constitucional da isonomia impõe ao Judiciário, e ao STJ particularmente, o dever de dar tratamento jurisdicional igual para situações iguais. Embora possa não atingir a dimensão de gravidade que teria se decorresse da aplicação anti-isonômica da norma constitucional, é certo que o descaso à isonomia em face da lei federal não deixa de ser um fenômeno também muito grave e igualmente ofensivo à Constituição. Os efeitos da ofensa ao princípio da igualdade se manifestam de modo especialmente nocivos em sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado: considerada a eficácia prospectiva inerente a essas sentenças, em lugar da igualdade, é a desigualdade que, em casos tais, assume caráter de estabilidade e de continuidade, criando situações discriminatórias permanentes, absolutamente intoleráveis inclusive sob o aspecto social e econômico. Ora, a súmula 343 e a doutrina da tolerância da interpretação razoável nela consagrada têm como resultado necessário a convivência simultânea de duas (ou até mais) interpretações diferentes para o mesmo preceito normativo e, portanto, a cristalização de tratamento diferente para situações iguais. Ela impõe que o Judiciário abra mão, em nome do princípio da segurança, do princípio constitucional da isonomia, bem como que o STJ, em nome daquele princípio, também abra mão de sua função nomofilácica e uniformizadora e permita que, objetivamente, fique comprometido o princípio constitucional da igualdade. 4. É relevante considerar também que a doutrina da tolerância da interpretação razoável, mas contrária à orientação do STJ, está na contramão do movimento evolutivo do direito brasileiro, que caminha no sentido de realçar cada vez mais a força vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores. 5. Por todas essas razões e a exemplo do que ocorreu no STF em matéria constitucional, justifica-se a mudança de orientação em relação à súmula 343/STF, para o efeito de considerar como ofensiva a literal disposição de lei federal, em ação rescisória, qualquer interpretação contrária à que lhe atribui o STJ, seu intérprete institucional. A existência de interpretações divergentes da norma federal, antes de inibir a intervenção do STJ (como recomenda a súmula), deve, na verdade, ser o móvel propulsor para o exercício do seu papel de uniformização. Se a

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79 Também não se poderá utilizar como paradigma julgado do mesmo tribunal local, prolator da

decisão atacada, pois para se uniformizar o entendimento do tribunal local há o incidente de

uniformização de jurisprudência, razão pela qual não é admitido o recurso especial nessa

hipótese222.

Se o STJ já tiver se posicionado num determinado sentido, só poderá haver recurso

especial com fundamento na alínea “c” do permissivo constitucional se a decisão atacada tiver

sido exarada em sentido oposto ao posicionamento do STJ. Caso a decisão atacada tenha sido

prolatada no mesmo sentido firmado pelo STJ, essa decisão não poderá ser atacada (ao menos

não no tocante à divergência jurisprudencial, pois esta já não mais ocorrera)223. E isso

justifica-se: se a última palavra na interpretação da lei federal é do STJ e esse já fez a

interpretação correta, passível de recurso seria a decisão utilizada como paradigma pelo

recorrente e não a decisão recorrida, por esta estar de acordo com o posicionamento adotado

pelo STJ.

4.3.3 Recursos Excepcionais representativos de controvérsias

Visando dar maior vazão ao julgamento dos recursos excepcionais, diante do grande

número de recursos interpostos nos tribunais superiores, houve a introdução do julgamento de

recursos excepcionais por amostragem. Isso ocorreu com a alteração do Código de Processo

Civil pela Lei 11.418/2007 e, posteriormente pela Lei 11.678/2008. Por meio delas foram

introduzidos os art. 543-A a 543-C. O art. 543-A cuida da repercussão geral da matéria

constitucional, que já foi tratada anteriormente. O art. 543-B trata do julgamento por

divergência interpretativa é no âmbito de tribunais locais, não pode o STJ se furtar à oportunidade, propiciada pela ação rescisória, de dirimi-la, dando à norma a interpretação adequada e firmando o precedente a ser observado; se a divergência for no âmbito do próprio STJ, a ação rescisória será o oportuno instrumento para uniformização interna; e se a divergência for entre tribunal local e o STJ, o afastamento da súmula 343 será a via para fazer prevalecer a interpretação assentada nos precedentes da Corte Superior, reafirmando, desse modo, a sua função constitucional de guardião da lei federal. 6. Recurso especial provido. (STJ. 1ª Turma. REsp. 1.026.234-DF. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 27.05.2008, v.u.)

222 Súmula 369 do STF: “Julgados do mesmo tribunal não servem para fundamentar o recurso extraordinário por divergência jurisprudencial”. Sumula 13 do STJ: “A divergência entre julgados do mesmo tribunal não enseja recurso especial”.

223 Súmula 286 do STF: “Não se conhece do recurso extraordinário fundado em divergência jurisprudencial, quando a orientação do plenário do supremo tribunal federal já se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”. Súmula 83 do STJ: “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

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80 amostragem do recurso extraordinário e o art. 543-C do julgamento por amostragem do

recurso especial. Segundo Fredie Didier e Leonardo Cunha, o julgamento diferenciado desses

recursos decorre do princípio da adequação, impondo tratamento diferenciado para

julgamento de causas de massa224. Podemos, todavia, elencar outros princípios, como o da

razoável duração do processo, da isonomia e da segurança jurídica.

Para a constatação da “idêntica questão de direito” e dos “recursos representativos da

controvérsia”, é exigida apenas a “multiplicidade de recursos sobre um mesmo tema

jurídico”225.

De acordo com o CPC, o processamento dos recursos extraordinários “com

fundamento em idêntica controvérsia” será regulado pelo regimento interno do STF. Este, por

sua vez, prevê que o presidente ou o relator, no STF, poderá, a requerimento ou de ofício,

comunicar as instâncias ordinárias para o encaminhamento de recursos representativos da

controvérsia e sobrestamento dos demais. Isso será feito se o Presidente do tribunal de origem

não tiver selecionado o(s) recurso(s) representativo(s) de controvérsia e sobrestado os demais

com trâmite perante aquela justiça (federal ou estadual).

Para a escolha do recurso representativo de controvérsia, o STJ firmou termo de

cooperação junto aos representantes dos tribunais de segundo grau, na qual ficou definido que

os recursos especiais devam ser selecionados pelos tribunais locais, levando-se em conta,

além do preenchimento dos pressupostos recursais intrínsecos e extrínsecos, a maior

diversidade de fundamentos, julgados divergentes dentro do próprio tribunal local, dentre

outros fatores226.

Sobrestados os demais recursos na origem, estes não serão admitidos na origem caso o

STF decida pela inexistência de repercussão geral. Os recursos que, por ventura tenham sidos

encaminhados ao STF serão devolvidos ao tribunal de origem. Em princípio não ficam

224 DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3.

9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 337 225 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 307 226 “1.2 – Os recursos especiais serão selecionados levando-se em consideração o preenchimento dos requisitos

intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade e, preferencialmente: I – a maior diversidade de fundamentos no acórdão e argumentos no recurso especial; II – a questão de mérito que puder tornar prejudicadas outras questões suscitadas no recurso; III – a divergência, se existente, entre órgãos julgadores do tribunal de origem, caso em que deverá ser observada a paridade no número de feitos selecionados; IV – a inexistência de interposição de outro recurso constitucional simultâneo no mesmo processo, que possa retardar o julgamento final da tese, na forma do artigo 543-C do CPC. 1.3 – Não será selecionado como recurso representativo da controvérsia recurso especial em que haja o risco da prescrição penal”.

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81 sobrestados os recursos de agravo contra a decisão denegatória de seguimento do

extraordinário227.

Supondo que o Presidente do tribunal local tenha determinado a suspensão indevida de

um recurso (porque ele não teria similaridade com o representativo de controvérsia, por

exemplo), dúvida surge quanto à ferramenta adequada à disposição da parte para que o

recurso volte a ter o seu curso normal. Fredie Didier e Leonardo Cunha entendem que a parte

poderá se valer da reclamação constitucional em razão da usurpação de competência do STF,

sendo admitido também agravo contra decisão denegatória de seguimento ou até mesmo

medida cautelar inominada228. Teresa Wambier afirma que o recurso cabível seria o agravo do

art. 544229. Ernani Fidélis, por sua vez, afirma que essa decisão seria irrecorrível230 e, de

acordo com o entendimento do STF, exarado na reclamação 7.569231, a única medida cabível

seria agravo interno para o próprio Tribunal local. O STJ, por sua vez, já se posicionou no

sentido do não cabimento do agravo contra o sobrestamento determinado pelo presidente do

tribunal a quo, porque esse sobrestamento não tem cunho decisório232. Parece-nos que o ideal

não seria recurso para o tribunal local, pois a matéria deveria ser analisada pelo tribunal ad

quem. Nada impede, todavia, que o recurso excepcional fique sobrestado, mesmo que

indevidamente (salvo se houver prejuízo quanto ao sobrestamento, hipótese em que a parte

poderia se valer de medida cautelar inominada). A parte prejudicada poderia se valer do

recurso cabível quanto à decisão aplicada pelo tribunal após o julgamento do representativo

227 Todavia, se a matéria objeto do agravo for a mesma versada no extraordinário, será o caso de sobrestamento

do agravo: DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 337

228 “A demonstração de que há um distinguishing ou um overruling deve ser feita perante o tribunal superior, e não perante o tribunal local. Parece mais adequado que se admita uma reclamação constitucional ao tribunal superior para que determine ao tribunal local que não mantenha o recurso sobrestado, por não versar sobre o mesmo assunto do recurso escolhido para julgamento por amostragem ou por não se lhe aplicar mais o precedente, em razão de um novo contexto fático ou normativo”. (DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 338-339)

229 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 308

230 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 691. Complementa, todavia, o autor que sendo julgado monocraticamente: “evidentemente poderá haver agravo de instrumento para o Supremo Tribunal Federal com fundamento na não identificação da controvérsia”. Ou seja, para este autor, somente após o julgamento do recurso sobrestado é que ele poderia adotar alguma providência.

231 STF. Pleno. Rcl. 7.569-SP, rel. Min. Ellen Gracie, j. 19.11.2009, v.u. No caso específico, todavia, foi concedida a fungibilidade e determinado o processamento da reclamação como agravo interno.

232 STJ, 1ª Turma. AgRg no Ag 1.255.725-DF, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 01.03.2012, v.u. STJ, 2ª Turma. AgRg no REsp 1.266.921-RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 08.11.2011, v.u.

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82 de controvérsia233, afirmando que seu caso seria diferente (em razão de alguma

particularidade) do recurso apreciado como representativo de controvérsia).

Antes de julgar o extraordinário representativo de controvérsia, o STF fará a análise

sobre a existência de repercussão geral desse recurso. Verificado que há repercussão geral,

passará a julgá-lo. Todavia, não havendo repercussão geral, os demais recursos que ficaram

sobrestados na origem serão considerados como não admitidos. Julgado o recurso

extraordinário representativo de controvérsia, deve-se verificar quanto aos recursos

sobrestados se estes foram prolatados no mesmo sentido manifestado pelo STF ou em sentido

diverso. Se no mesmo sentido, o recurso será julgado prejudicado. Se o recurso sobrestado

tiver sido julgado em sentido contrário ao pronunciado pelo STF no representativo de

controvérsia, será o caso de o Tribunal poder se retratar234. Caso não se retrate, deverá

encaminhar o recurso ao STF. Em que pese a doutrina235 afirmar que a retratação é

facultatividade do tribunal a quo, a manutenção da decisão em sentido contrário ao

posicionado pelo tribunal superior deve ser fundamentada, não podendo simplesmente os

recursos ser encaminhados pelos tribunais às cortes superiores sem justificativa do porquê da

não aplicação da tese fixada no recurso representativo de controvérsia. Deverá ser feita pelo

tribunal local um distinguishing236. Verifica-se aqui uma tendência a maior obediência aos

posicionamentos exarados pelas Cortes Superiores.

Segundo Cassio Scarpinella Bueno, essas decisões do STF em recursos representativos

de controvérsia não têm efeito vinculante, também não havendo no tocante à existência ou

inexistência de repercussão geral237. Apesar de a doutrina afirmar que os recursos

233 Supondo que o tribunal superior tenha decidido a causa em sentido contrário ao do recorrente que teve seu

recurso sobrestado, este poderá, interpor agravo contra a decisão denegatória de seguimento, haja vista que o tribunal local irá denegar seguimento ao REsp (hipótese do art. 543-C, § 7º, I e do art. 543-B, § 3º).

234 Fredie Didier e Leonardo Cunha falam num efeito regressivo, mas pouco diferente do já existente no sistema recursal brasileiro. (DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 340)

235 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 983; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 306. Para estes doutrinadores somente seria obrigatória a retratação no caso de haver enunciado de súmula vinculante.

236 STJ. Corte Especial. QO no REsp. 1.148.726-RS, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 10.12.2009 237 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva,

2008, p. 265. No mesmo sentido, dentre outros, SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 694. Em sentido diverso, afirmando que as decisões sobre a inexistência de repercussão geral têm efeito vinculante: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. vol. 3. São Paulo: RT, 2007, p. 251: “Vê-se, assim, que a decisão do STF tem caráter absolutamente vinculante, quando à inadmissibilidade do recurso em razão da ausência de repercussão geral. Deverá o órgão a quo, assim, ater-se ao que tiver deliberado o STF, a respeito”. (grifos no original)

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83 representativos de controvérsia não terem efeito vinculante (havendo esse efeito apenas para

os julgamentos de ações no controle concentrado de constitucionalidade e também para as

súmulas vinculantes), constata-se que o próprio STJ afirmou que é preciso fundamentar o

porquê da manutenção da decisão em sentido contrário, o que demonstra não ser mera

faculdade do tribunal a quo em manter ou não a decisão em sentido contrário. Isso decorre das

possibilidades dadas aos tribunais de segunda instância: manter a decisão tal como prolatada

(no caso de a decisão estar em consonância com o posicionamento exarado pelo tribunal

superior); reanalisar a decisão prolatada (para retratar-se ou até mesmo para mantê-la)238. A

reanálise deve ser feita no caso de o acórdão recorrido estar dissonante do acórdão paradigma.

Se há reanálise, necessária a fundamentação da decisão num ou noutro sentido239.

Podemos até falar que não há vinculação tal como a prevista no texto constitucional,

mas há um maior poder de obediência a essas decisões, paradigmáticas. Como então

classificar essa obediência senão pela vinculatividade da decisão? Seria mera decorrência do

princípio da celeridade, como afirmam Nery e Nery240? Como já afirmado por Sálvio de

Figueiredo Teixeira ao tratar da necessidade de obediência à jurisprudência,

Respeitadas as ressalvas legais, mesmo reiterada e diuturna a jurisprudência não tem força de vincular os pronunciamentos jurisdicionais. Não se justifica, no entanto, que os órgãos julgadores se mantenham renitentes à jurisprudência sumulada, cujo escopo, dentro do sistema jurídico, é alcançar a exegese que dê certeza aos jurisdicionados em temas polêmicos, uma vez que ninguém ficará seguro de seu direito ante jurisprudência incerta241.

Voltaremos ao tema quando tratarmos do incidente de resolução de demandas

repetitivas.

238 Por óbvio que precisará haver juízo prévio de admissibilidade do recurso excepcional antes da possibilidade

de o tribunal local redecidir o caso. 239 O § 3º do art. 543-B tem redação que pode levar o leitor menos desatento a entender que o tribunal local

poderá reapreciar o decidido em qualquer hipótese. Deve-se considerar, contudo, que a reapreciação deverá ser feita caso a decisão recorrida esteja em desacordo com a prolatada pelo STF no representativo de controvérsia. Somente se a decisão sobrestada estiver em sentido contrário é que caberá reapreciação pelo tribunal local. Redação mais clara teve o art. 543-C, § 7.

240 “[...] embora seja mera faculdade dada pela norma comentada ao órgão do tribunal a quo que proferiu o acórdão impugnado, deverá, sempre que possível ser regra geral, evitando, assim, o envio desnecessário dos autos ao STF, em perda de tempo inadmissível em face da garantia constitucional da celeridade”. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 983)

241 STJ. 4ª Turma. REsp. 14.945-0-MG. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código de Processo Civil anotado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 313

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84 Em razão do julgamento por amostragem, imprescindível a participação da sociedade

no julgamento desses recursos, por meio do amicus curiae.

4.3.3.1 Desistência do recurso excepcional apresentado

Assunto que não deveria trazer controvérsia é a possibilidade ou não de o recorrente

desistir do recurso excepcional quando seu recurso tenha sido selecionado como

representativo de controvérsia. Essa questão chegou a ser enfrentada pelo STJ, que por meio

de sua Corte Especial, na questão de ordem apresentada no REsp. 1.063.343-RS entendeu

pela inadmissibilidade da desistência recursal:

Processo civil. Questão de ordem. Incidente de Recurso Especial Repetitivo. Formulação de pedido de desistência no Recurso Especial representativo de controvérsia (art. 543-C, § 1º, do CPC). Indeferimento do pedido de desistência recursal. - É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução n.º 08/08 do STJ. Questão de ordem acolhida para indeferir o pedido de desistência formulado em Recurso Especial processado na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução n.º 08/08 do STJ242

Em que pese o posicionamento da douta Corte Especial do STJ, verifica-se que a

legislação processual em vigor afirma ser um ato unilateral não reptício243 do recorrente a

desistência do recurso, não havendo necessidade de concordância da outra parte, nem de

anuência judicial244. Não se pede desistência. Apenas se desiste245. Ainda, a desistência do

recurso, diferentemente da desistência da ação, produz efeitos imediatos.

Segundo Fredie Didier e Leonardo Cunha, a afetação de um julgamento ao

procedimento descrito no art. 543-C fará com que surja um novo procedimento:

Quando se seleciona um dos recursos para julgamento, instaura-se um novo procedimento. Esse procedimento incidental é instaurado por provocação

242 STJ. Corte Especial. QO no REsp. 1.063.343-RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 17.12.2008, maioria. 243 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação

extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 985 244 Art. 501 do CPC 245 DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3.

9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 321

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oficial e não se confunde com o procedimento principal recursal, instaurado por provocação do recorrente. Passa, então, a haver, ao lado do recurso, um procedimento específico para julgamento e fixação da tese que irá repercutir relativamente a vários outros casos repetitivos. [...] Este último procedimento tem uma feição coletiva, não devendo ser objeto de desistência, da mesma forma que não se admite a desistência em ações coletivas246.

A justificativa dada no julgamento da questão de ordem foi de que, após a afetação do

recurso como representativo de controvérsia, a parte não poderia mais desistir de seu recurso,

pois ali passara a prevalecer o interesse público.

Respeitada a consideração e o voto vencedor desse julgado, parece-nos que a melhor

alternativa não seja essa, até porque a parte pode ter como condição para o estabelecimento de

uma transação, a desistência do recurso. O que o tribunal poderia fazer é manter o recurso

afeto para apreciação da causa representativa de controvérsia, mas excluir o desistente dos

efeitos dessa decisão247. Ou ainda poderia continuar a julgar a questão com base nos demais

recursos selecionados. Acrescenta-se que no caso de a parte ter desistido do recurso por má-

fé, poder-se-ia aplicar multa por litigância de má-fé.

Diante do que foi descrito, constata-se que o sistema processual hoje vigente foi

criado, assim como os Tribunais Superiores foram criados para manter a uniformidade do

sistema e também de interpretação e aplicação das normas federais (Constituição Federal e

leis federais).

Não obstante, constata-se que mesmo após a uniformização da interpretação da

questão federal pelo STJ os tribunais e juízes inferiores não ficam subordinados ao que foi

decidido pelo tribunal superior, ou seja: os tribunais locais poderão continuar julgando da

forma como vinham julgando, mantendo assim tratamento desigual para casos semelhantes.

Isso porque tanto o julgamento do recurso especial como o do recurso extraordinário não têm

efeito vinculante, de acordo com nossa Constituição, sem falar que muitas vezes há julgados

conflitantes dos próprios tribunais superiores248. Há, entretanto, uma tendência à formação de

246 DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3.

9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 321 247 Assim já se manifestou Cândido Rangel Dinamarco em arguição à candidato a mestrado na PUC-SP em

banca realizada em 15.12.2012. No mesmo sentido: DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 321-322

248 Não são poucos os casos em que as Cortes Superiores formam um posicionamento e que a doutrina de modo quase uníssono critica tais decisões. A exemplo dos limites territoriais para a formação da coisa julgada, da restrição da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Não poderia um juiz, fundamentando sua decisão nos mais variados doutrinadores e, diante da peculiaridade do caso, julgar de forma contrária ao que foi decidido

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86 precedentes e à obediência a estes. O julgamento de recursos excepcionais por amostragem é

clara amostra dessa tendência.

4.4 Os Embargos de Divergência

Ainda no intuito de manter a uniformidade da interpretação das normas aos casos

concretos, o sistema prevê os Embargos de Divergência, de aplicação no âmbito dos Tribunais

Superiores. Esse instituto e o incidente de uniformização de jurisprudência talvez sejam os

mais importantes institutos previstos no CPC desde sua entrada em vigor para a criação de

precedentes capazes de gerar alto efeito persuasivo, diante da eliminação das divergências

internas e pacificação da questão jurídica no âmbito do Tribunal.

Trata-se de um recurso interposto perante os Tribunais Superiores249, tendo por

finalidade uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal Superior. Assim como os recursos

extraordinário e especial, esse recurso não se presta para a tutela do direito subjetivo, mas sim

do direito objetivo. A proteção é do sistema jurídico250.

A doutrina é quase que uníssona em afirmar que a finalidade desse recurso é a

uniformização dos julgados dissonantes dentro do próprio Tribunal. Seu objetivo imediato é a

uniformização. Seu objetivo mediato ou secundário é reformar/anular o acórdão

embargado251.

pelas Cortes Superiores? Parece-nos que sim. Essa é a função do magistrado. Se diante do caso concreto a peculiaridade demonstrar a necessidade de decisão noutro sentido, o julgador deverá exercer seu papel. O que ele não pode é, por simples capricho querer julgar de forma diferente sem razão plausível para tanto.

249 Será abordado no presente trabalho os embargos de divergência perante o STJ e o STF, deixando claro que há a previsão de embargos de divergência junto ao TST, mas que não será abordado nesse trabalho.

250 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VIII. 2. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 193.

251 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Embargos de Divergência em Recurso Especial e em Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 19. Destaca Rodrigo da Cunha Lima Freire, citando Rodolfo de Camargo Mancuso, que o dissenso entre órgãos de um mesmo Tribunal é inevitável, por isso, “compreensível, mas não desejável” tal dissenso, pois vulnera a igualdade; a segurança jurídica, a estabilidade e a previsibilidade que se espera do direito; a respeitabilidade do Poder Judiciário e o princípio da economia processual.

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87 Esse recurso serve para que os temas apreciados sejam pacificados, mostrando a todos

como a Corte, que apesar de ser dividida, julga as matérias, dando base para atuação dos

Tribunais inferiores252.

O Recurso Especial, por exemplo, serve para uniformizar a interpretação da lei federal

quando haja divergência de interpretação entre Tribunais Locais. Os embargos de divergência

voltam-se para a uniformização da interpretação da lei federal (STJ) ou da Constituição

Federal (STF) dentro do próprio Tribunal Superior253.

A necessidade desse recurso decorre da divisão das Cortes Superiores em Turmas, o

que, inevitavelmente, acarretará julgamentos contraditórios, que embora indesejados, são

inevitáveis. Se as Cortes Superiores não fossem divididas em Turmas não haveria a

necessidade desse recurso.

4.4.1 Pequeno histórico

Na vigência da Constituição Federal de 1891, a mais alta Corte do país não podia ser

dividida. A divisão do STF passou a ser permitida a partir da Constituição Federal de 1934.

Assim a divisão da Corte ocorreu por meio do Decreto-lei 6 de 1937254.

Após a divisão da Corte Suprema em Turmas, a doutrina passou a entender cabível a

interposição do Recurso de Revista, até então previsto como meio cabível para a

252 JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano

35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss: “Observe-se, portanto, que a razão primeira dos embargos não é a uniformização da jurisprudência dos Tribunais Superiores, mas sim permitir que a decisão a ser proferida reflita, repita-se, o entendimento do Tribunal. Significa dizer que esse recurso tem por ratio essendi evidenciar a real interpretação do Tribunal a respeito de uma determinada questão jurídica. A uniformização, como dito, é mera consequência de seu julgamento”.

253 Ada Pellegrini Grinover tece críticas à existência dos embargos de divergência, pois este configura verdadeiro recurso de revista que deveria ter sido extinto, não vendo razão para dar à parte mais um recurso fundado na divergência, pois com base nas lições de Liebman a decisão errônea é que deve ser passível de recurso, não a divergente. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 141-144)

254 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 141-144

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88 uniformização do entendimento pelos Tribunais locais. Apesar disso, o STF entendeu pela sua

não aplicação, razão pela qual foi editada, posteriormente, a Lei 623/1949255.

O Recurso de Embargos foi introduzido no Código de Processo Civil de 1939256 pela

Lei 623/1949. Os embargos de divergência não tinham àquela época a restrição que têm hoje,

o que era salutar para uma correta uniformização da jurisprudência da Corte, conforme se

verifica da redação de seu art. 833: “Além de outros casos admitidos em lei, são embargáveis,

no Supremo Tribunal Federal, as decisões das Turmas, quando divirjam entre si, ou de

decisão tomada pelo Tribunal Pleno”.

Após, este recurso foi previsto pelo parágrafo único do art. 546 do Código de Processo

Civil de 1973257. Aqui já houve a restrição do âmbito de abrangência desse recurso. Com

vistas à uniformização da jurisprudência do STF e, atualmente, também do STJ, isso foi um

retrocesso.

Noutra alteração legislativa, o recurso passou a ser regulamentado pela Lei 8.038/90,

que previa os embargos de divergência apenas no âmbito do STJ258. Apesar da grave falha do

255 JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano

35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010 p. 9 e ss. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 641. Destaca o autor, nesse ponto, a infelicidade do legislador de então de criar nova figura com o nome de embargos, causando maior equivocidade do termo. Apesar disso, verifica-se que o Dec-lei 6 de 1939, o mesmo que previu a divisão do STF em turmas, também previu a existência dos Embargos. Esses embargos eram até mais amplos do que os embargos de divergência, pois ali se cuidava de embargos infringentes, de declaração e também de divergência. Vejamos:

“Art. 6º Admitem-se embargos para o tribunal pleno dos julgamentos das turmas: [...] II, quando, embora não se verifique unanimidade no julgamento, o acórdão embargado: a) [...] b) estiver em manifesta divergência com a jurisprudência do Tribunal Pleno ou da outra turma; [...]”

256 Noticia Rodrigo da Cunha que antes da Lei 623 de 1949 havia o recurso de revista para a Corte Plena dos Tribunais locais. Embargos de Divergência em Recurso Especial e em Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 3-11. Previa o Código de Processo Civil de 1939 em seu art. 853, referido recurso: “Art. 853. Conceder-se-á recurso de revista para as Câmaras Civis reunidas, nos casos em que divergirem, em suas decisões finais, duas ou mais Câmaras, ou turmas, entre si, quanto ao modo de interpretar o direito em tese. Nos mesmos casos, será o recurso extensivo à decisão final de qualquer das Câmaras, ou turmas, que contrariar outro julgado, também final, das Câmaras reunidas”.

“Parágrafo único. Não será lícito alegar que uma interpretação diverge de outra, quando, depois desta, a mesma Câmara, ou turma, que a adotou, ou as Câmaras reunidas, hajam firmado jurisprudência uniforme no sentido da interpretação contra a qual se pretende reclamar”.

257 Art. 546 na redação original do Código de Processo Civil de 1973, revogado pela Lei 8.038/1990: “O processo e o julgamento do recurso extraordinário, no Supremo Tribunal Federal, obedecerão ao que dispuser o respectivo regimento interno”.

“Parágrafo único. Além dos casos admitidos em lei, é embargável, no Supremo Tribunal Federal, a decisão da turma que, em recurso extraordinário, ou agravo de instrumento, divergir do julgamento de outra turma ou do plenário”.

258 Art. 29 da Lei 8.038/1990: “É embargável, no prazo de quinze dias, a decisão da turma que, em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial, observando-se o procedimento estabelecido no regimento interno”.

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89 legislador em não prever o cabimento desse recurso no âmbito do STF, o Regimento Interno

do STF continuou prevendo os embargos de divergência, assim como a Corte Suprema

continuou admitindo tal recurso259.

Atualmente o recurso voltou a ser tratado pelo CPC em seu art. 546, na redação dada

pela Lei 8.950/1994260, que prevê a possibilidade de os embargos de divergência serem

opostos perante o STJ ou perante o STF.

4.4.2 Hipóteses de cabimento

De acordo com a doutrina, é cabível o recurso quando o julgamento de turma, em

recurso especial, divergir do julgamento de: a) Outra Turma; b) Da Seção ou de outra Seção;

c) Da Corte Especial.

No caso de embargos de divergência no STF, o recurso é cabível quando o julgamento

de uma das Turmas, em recurso extraordinário, divergir do julgamento: a) da outra turma; b)

do plenário do STF.

Não se admite a interposição desse recurso em face de decisão monocrática. Isso

porque contra a decisão monocrática, seja qual for ela, a parte poderá fazer uso do agravo

interno. A jurisprudência nesse ponto é remansosa, apesar da existência de posicionamento

em sentido contrário261. Os embargos serão admissíveis em face da decisão que julgar o

agravo interno.

259 PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado. v. II. 5. ed. São Paulo: RT, 1994, p. 2253.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 642

260 Art. 546. É embargável a decisão da turma que: I - em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial; Il - em recurso extraordinário, divergir do julgamento da outra turma ou do plenário. Parágrafo único. Observar-se-á, no recurso de embargos, o procedimento estabelecido no regimento

interno. 261 STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Agravo de Instrumento AI 546164 EDv-

AgR / RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 22.06.2011, v.u. No mesmo sentido: JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.; LASPRO, Oreste Nestor de Souza. O Objeto dos Embargos de Divergência. Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.; Embargos de Divergência em Recurso Especial e em Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 96.-99; FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo:

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90 Interessante também a omissão quanto ao cabimento dos embargos de divergência

quando duas seções do STJ divergirem. Em que pese entendimento doutrinário negando a

possibilidade262, parece-nos que se o objetivo é a uniformização dos julgados, fazendo com

que a jurisprudência do Tribunal passe a caminhar num único sentido e considerando que

pode haver divergência entre entendimentos exarados por turmas pertencentes a seções

distintas, por que não entender que seções distintas possam ter entendimentos distintos, que

devam ser pacificados pela Corte Especial? É certo que a divisão de competência entre as

seções reduz as matérias objeto de conflito, mas basta analisarmos a questão processual que

pode ser afeta a mais de uma Turma e, até recentemente, nem mesmo a 3ª Seção ficava isenta

dela (a partir de 1º de janeiro de 2012 a 3ª Seção tem competência para processar e julgar

matéria penal apenas). Isso por si só demonstra a possibilidade de haver divergência entre

seções, o que deve ensejar o manejo do recurso em questão263.

Defendemos, noutra oportunidade, a possibilidade de cabimento desse recurso também

para as demandas de competência originária dos Tribunais Superiores, ante sua fundamental

função de uniformização de jurisprudência e criação de precedente264.

RT, 2001, p. 360; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 576. Em sentido contrário: PEREIRA, Milton Luiz. Embargos de Divergência contra decisão lavrada por relator. Revista de Processo. ano 25. vol. 101. São Paulo: RT, 2001, p. 81 e ss. Destaca o autor que: “Por esse agenciamento angular de rotinas, ao som forte das prenunciadas inovações, angaria-se a possibilidade de ser embargável a decisão comentada, porque tem a vigia de conteúdo do próprio mérito demandado”. “Afinal, a divergência vértice do imaginado recurso teria por cimeira correlato direito, cujo mérito foi resolvido pelo relator no lugar processual do colegiado, cujo pensamento o Estado entregou-lhe no campo do processo. Lembra-se que o acerto ou erro na realização do direito não residem na competência do órgão e sim na correta aplicação do direito (processual e material)”.

262 DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 355; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e Ação Rescisória. 2.ed. São Paulo: RT, p. 337; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VIII. 2. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 194. Esse, em particular de acordo com as notas do atualizador.

263 Na mesma linha de pensamento, OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Embargos de Divergência. in NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. v. 9. São Paulo: RT, 2006, p. 137. Afirma o autor que essa limitação foi “uma opção de conveniência do legislador”. Parece-nos, todavia, que se pode afirmar que o legislador dixit minus quan voluit e, dando-se interpretação extensiva, podermos afirmar que também se enquadra nas hipóteses de cabimento do recurso, a divergência surgida entre Seções ou entre Seção e a Corte Especial, no âmbito do STJ.

264 “A Lei admite apenas o manejo dos embargos de divergência quando do julgamento de recurso especial (no âmbito do STJ) e de recurso extraordinário (no âmbito do STF). Assim, não seria cabível o manejo dos embargos de divergência no julgamento do Recurso Ordinário Constitucional ou no julgamento de causas de competência originária da Corte. A pergunta que fica é: Seria realmente essa a mens legis? Penso que há equivoco em restringir um recurso tão importante ao âmbito do recurso especial e recurso extraordinário. Isso porque a própria função dos órgãos de Cúpula (Tribunais Superiores como um todo) é a de criar parâmetros para a interpretação e aplicação da Lei (em sentido lato)”. (parte do texto encaminhado para publicação)

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91 Sobre a importância dos julgados pelas Cortes Superiores, já asseverou Arruda Alvim

que,

“[...] conquanto a validade e a eficácia das decisões seja, predominantemente, circunscrita às partes, as que são proferidas pelos tribunais de cúpula transcendem o âmbito das partes e, com isto, projetam-se o prestígio e a autoridade da decisão no seguimento da atividade jurídica, de todos quantos lidam com o direito e, mesmo em espectro maior, para a sociedade toda.265

Se há a necessidade de interpretação uníssona do Direito, até mesmo para que os

demais membros do Judiciário e a sociedade como um todo entendam como pensam as Cortes

Superiores, não se pode admitir a impossibilidade de uniformização dessas decisões.

Sobre a possibilidade de embargos de divergência em recurso ordinário já se

manifestou Oreste Laspro266. Pensamos, todavia, que a ampliação da aplicação dos embargos

de divergência não se restringe apenas aos recursos, devendo ser utilizados até mesmo nos

casos de ações originárias no âmbito das Cortes Superiores, quando a decisão seja proferida

por Órgão Fracionário, seja ele Turma ou Seção.

265 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Reflexões Sobre o Cabimento dos Embargos de Divergência em Recurso

Especial in Direito Civil e Processo. In Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2008, p. 1.211

266 LASPRO, Oreste Nestor de Souza. O Objeto dos Embargos de Divergência. Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.: “Diante desse sistema, criado constitucionalmente, em uma interpretação literal do Código de Processo Civil (LGL 1973\5) , se as partes chegam ao Tribunal Superior via recurso especial ou extraordinário, teriam ainda direito - nos limites legais - aos embargos de divergência; já, pela via do recurso ordinário esse direito não existiria. Pior, se a ordem tivesse sido concedida parcialmente e, portanto, na parte que foi denegada, o recurso seria ordinário e, na parte concedida, especial ou extraordinário, quando do julgamento do especial ou extraordinário caberiam embargos de divergência e do restante não”.

“Vamos imaginar duas situações para verificar se a interpretação literal é sustentável. Em um mandado de segurança que envolve estritamente questão de direito federal, poderemos ter as seguintes situações: (a) A ordem é concedida no Tribunal a quo e o Poder Público interpõe o recurso especial. Ao recurso especial é negado provimento. O Poder Público pode interpor embargos de divergência; (b) A ordem é denegada e a parte interpõe recurso ordinário. O recurso ordinário é provido. Pela interpretação literal, o Poder Público não pode interpor os embargos de divergência. Conclusão: como o Poder Público tradicionalmente recorre, quando o mandado de segurança envolve matéria exclusivamente de direito federal é melhor para o impetrante perder no juízo a quo, do que vencer”. [...]

“Assim, parece que a solução mais adequada é a de admitir o recurso de embargos de divergência no julgamento de recurso ordinário, agregando um limite: no caso de julgamento perante o STF somente para matéria que seria examinável em extraordinário e perante o STJ somente para matéria de recurso especial. A título de exemplo: não se pode pretender reexame de direito local, mas sim de lei federal”. Em sentido contrário: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 576

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92 4.4.2.1 Análise de alguns casos de cabimento dos embargos de divergência

Embargos de divergência contra agravo de decisão denegatória – segundo a doutrina,

deve-se entender como possível a interposição dos embargos de divergência quando, superada

a questão da denegatória, o tribunal passar a analisar o mérito do recurso extraordinário, tanto

no âmbito do STJ quanto no do STF.

Há, todavia, decisão do Pleno do STF, de 2011, entendendo pelo não cabimento dos

embargos de divergência contra decisão exarada em agravo interno tirado contra agravo de

decisão denegatória de seguimento de RE, afirmando que esse caso não se encaixaria na

exceção de agravo interno que julga o mérito do extraordinário:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – ACÓRDÃO RELATIVO A AGRAVO DE INSTRUMENTO – INVIABILIDADE. Agravo regimental interposto contra ato do relator no exame de agravo de instrumento não enseja a interposição de embargos de divergência, a teor do artigo 546 do Código de Processo Civil267.

O entendimento pela possibilidade de se embargar a decisão que julga o agravo de

decisão denegatória decorre da previsão contida no art. 544, §§ 3º e 4º, do Código de Processo

Civil.268-269.

Por último, acrescente-se a redação do art. 330 do RISTF, que deveria servir para

reduzir a polêmica:

Art. 330. Cabem embargos de divergência à decisão de Turma que, em recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, divergir de julgado de outra Turma ou do Plenário na interpretação do direito federal.

267 STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Agravo Regimental no Agravo de

Instrumento AI 306.474-AgR-EDv-AgR / SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 22.06.2011, v.u. 268 Art. 544 [...] § 3º Poderá o relator, se o acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou

jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para dar provimento ao próprio recurso especial; poderá ainda, se o instrumento contiver os elementos necessários ao julgamento do mérito, determinar sua conversão, observando-se, daí em diante, o procedimento relativo ao recurso especial.

§ 4º O disposto no parágrafo anterior aplica-se também ao agravo de instrumento contra denegação de recurso extraordinário, salvo quando, na mesma causa, houver recurso especial admitido e que deva ser julgado em primeiro lugar. (Incluído pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994)

269 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 315 entende que só seriam cabíveis os embargos de divergência de agravo de instrumento quando este for convertido em RE ou REsp, nos moldes do art. 544, §§ 3º e 4º.

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93 No âmbito do STJ, a Súmula 315270 do STJ deve ser entendida como vedação ao

manejo dos embargos de divergência quando o agravo de instrumento não aprecia o mérito do

recurso especial. Esse agravo, via de regra, é julgado pelo relator, que pode negar ou dar

provimento e, dando provimento, poderá, de acordo com o Regimento Interno do STJ, pedir

dia para julgamento (art. 254 do SISTJ e art. 316 do RISTF).

Mas seria realmente essa a mens legis? No âmbito do STJ, por exemplo, a Corte aceita

como possível os embargos de divergência quando o recurso especial não é admitido. Por que

então negar esse recurso quando o agravo não é admitido? A função desse recurso de agravo é

apenas fazer com que o recurso especial suba em razão de um “filtro” feito em segunda

instância. Se não foi realizado o filtro pelo Tribunal local e o Especial subiu, cabem os

embargos de divergência, mesmo no caso de não admissão do Especial. No outro caso, em

que foi realizado o filtro e então houve a necessidade do recurso de agravo de decisão

denegatória, também deveriam ser cabíveis os embargos de divergência, mesmo no caso de

não admissão do agravo271.

Pensamos que não deveria haver restrição se a matéria fática apreciada fosse a mesma,

independentemente da admissão ou não do recurso excepcional, ou mesmo do agravo. O que

deve realmente importar é a divergência interna entre julgados, pois isso é fator de

instabilidade jurídica, capaz de causar multiplicação desnecessária de recursos e demandas,

pois dá ampla possibilidade para que as partes recorram de qualquer que seja o resultado da

demanda.

Embargos contra agravo interno que enfrenta o mérito do RE ou REsp – no âmbito do

STF o assunto era polêmico. Havia diversas súmulas sobre o tema. O STF editou a Súmula

270 Súmula 315 do STJ: “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento que não

admite recurso especial”. 271 Nesse sentido: JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de

Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss. “[...] Ora, se o acórdão que não admite o recurso especial pode ser impugnado pelos embargos, por que também não caberiam embargos de divergência contra a decisão que, em sede de agravo de instrumento, não admite o recurso especial? Uma de duas: ou os tribunais superiores mudam o entendimento - pacificado - de que cabem embargos de divergência contra o não conhecimento dos recursos excepcionais; ou, então, há que se evoluir no sentido de também admitirem-se os embargos contra acórdão que, em agravo de instrumento, decidiu a respeito da admissibilidade do recurso excepcional”.

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94 599, na época em que estava vigente a redação original do Código de Processo Civil de 1973:

“São incabíveis embargos de divergência de decisão de turma, em agravo regimental”.272

Ocorre que, com as alterações legislativas pelas quais passou o instituto, tornou-se

inaplicável a referida súmula273, pois passou a haver maior concentração de poder nas mãos

do relator274. Assim, se o relator pode julgar o mérito do recurso extraordinário e do recurso

especial, deve-se entender cabível o recurso de embargos de divergência de agravo interno

(recurso interposto contra a decisão monocrática que julgou o especial ou o extraordinário).

Na época em que editada a súmula, o recurso de agravo não servia para julgar o mérito

do recurso extraordinário275. Por conta disso, a súmula 599 do STF foi cancelada pelo

Plenário do STF no julgamento dos seguintes recursos: RE 283240 AgR-ED-EDv-AgR (DJE-

047/2008) 276, RE 285093 AgR-ED-EDv-AgR (DJE-055/2008) e RE 356069 AgR-EDv-AgR

(DJE-055/2008).

272 Súmula 233 do STF. Salvo em caso de divergência qualificada (lei 623/1949), não cabe recurso de embargos

contra decisão que nega provimento a agravo ou não conhece de recurso extraordinário, ainda que por maioria de votos.

Súmula 300 do STF. São incabíveis os embargos da lei 623, de 19/2/1949, contra provimento de agravo para subida de recurso extraordinário.

273 Redação original do art. 557. Se o agravo for manifestamente improcedente, o relator poderá indeferi-lo por despacho. Também por despacho poderá convertê-lo em diligência se estiver insuficientemente instruído.

Parágrafo único. Do despacho de indeferimento caberá recurso para o órgão a que competiria julgar o agravo. 274 Redação vigente do art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível,

improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

§ 1º-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.

§ 1º Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento.

275 ARRUDA ALVIM, José Manoel. Cabimento de embargos de divergência contra acórdão (de mérito) de turma, proferido em agravo regimental, tirado de decisão de relator de recurso extraordinário: imprescindibilidade de uma releitura da súm. 599 do STF. Revista de Processo. ano 32. vol. 144. São Paulo: RT, 2007, p. 9 e ss.

276 “Embargos de divergência – acórdão em agravo regimental – recurso extraordinário – apreciação indireta – adequação. Conforme o disposto no artigo 546 do Código de Processo Civil, interpretado presente o objetivo da norma, mostram-se cabíveis os embargos de divergência quando o acórdão atacado por meio deles implica pronunciamento quanto a recurso extraordinário.

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – ACÓRDÃO PROFERIDO EM AGRAVO REGIMENTAL – VERBETE Nº 599 DA SÚMULA DO SUPREMO. Ante o novo entendimento sobre o alcance do artigo 546 do Código de Processo Civil, não subsiste, sendo cancelado o Verbete nº 599 da Súmula do Supremo [...]” (STF. Pleno. AG nos BEM. DIV. Nos BEM DECL. No AG. RG no Recurso Extraordinário283.240-5/RS. Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio. j. 26.04.2007) .

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95 Já no âmbito do STJ a questão também se encontra pacificada, conforme se depreende

do teor da súmula 316277, que permite o manejo dos embargos de divergência quando a turma,

ao julgar o agravo interno, enfrentar o mérito do recurso especial.

Como já destacamos, ousamos dar maior amplitude a esse fundamental recurso, cuja

finalidade deve ser a de evitar qualquer controvérsia havida na interpretação da lei federal /

Constituição Federal pelos órgãos fracionários das Cortes Superiores, pois a busca por uma

interpretação unificada do pensamento destas Cortes é que deve ser a meta dos embargos de

divergência.

No que se refere à possibilidade de utilização dos embargos de divergência para sanar

divergência dentro da própria turma, opinamos não serem cabíveis, quer no âmbito do STJ278,

quer no âmbito do STF. A ideia do recurso é a uniformização da interpretação da Corte e não

a obtenção de unanimidade na interpretação da turma279.

Excepcionalmente, porém, o STF já entendeu cabível a utilização de julgamento da

mesma turma quando haja ocorrido substancial modificação na composição da turma280.

Parece-nos mais acertado o entendimento no sentido do não cabimento dos embargos

de divergência nessa hipótese, pois, se houve modificação da composição e mudança de

entendimento, deve-se passar a adotar o novo entendimento, utilizando-se a justificativa de

que o direito não deve ser estático, mas assistem a uma evolução na interpretação que os

Tribunais fazem dos artigos de leis. Todavia, numa reflexão mais profunda e levando-se em

consideração a ideia de segurança e, principalmente, previsibilidade das decisões judiciais, o 277 Súmula 316 do STJ: “Cabem embargos de divergência contra acórdão que, em agravo regimental, decide

recurso especial”. No mesmo sentido: FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo: RT, 2001, p. 360

278 GRANADO, Daniel Willian. São admissíveis embargos de divergência quando o acórdão paradigma não provém de recurso especial? - análise da orientação do STJ. in Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 270 e ss

279 “Agravo regimental nos embargos de divergência no agravo regimental no agravo de instrumento. processual civil. recurso fundado em paradigma da mesma turma: ausência de diversidade orgânica. precedentes. agravo regimental ao qual se nega provimento”. (STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento AI 707.478 AgR-EDv-AgR / RS, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 03.08.2011, v.u.). No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 991

280 STF. Pleno. RE 318.469 EDv-QO / DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 03.10.2002, v.u. “[...] Os embargos de divergência estão sujeitos, dentre os vários pressupostos que lhe condicionam a interposição, à observância do requisito da diversidade orgânica. Esse requisito impõe que o padrão de divergência - para ser validamente invocado como expressão do dissídio interpretativo - resulte de acórdão emanado, ou do Plenário ou de outra Turma do Supremo Tribunal Federal, pois não se reveste de idoneidade processual, para efeito de demonstração do conflito pretoriano, a indicação de acórdão proferido pela própria Turma de que proveio a decisão contra a qual foram opostos os embargos de divergência (Súmula 353/STF), ressalvada a hipótese excepcional de a Turma haver sofrido substancial modificação em sua composição. [...]”

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96 sistema deveria possuir mecanismos para evitar a mudança abrupta de posicionamento do

Tribunal, mas isso independe da mudança de composição do Tribunal. Não é porque houve

mudança na composição do Tribunal que seus precedentes não devem ser seguidos. Muito

pelo contrário. Os embargos de divergência, todavia, não têm essa função. Esse tema tem

fundamental importância, ainda mais nos dias atuais em que a carga de trabalho dos

magistrados de um modo geral, e dos Ministros em especial, é absurda, o que pode ocasionar

falha humana na prolação de uma ou outra decisão (falha esta possível, mas evidentemente

não querida). O que precisaria haver é a aplicação pelo Tribunal do incidente de

uniformização de jurisprudência (ou da assunção de competência) caso houvesse tendência de

mudança de posicionamento da própria turma. Novamente, é preciso, sem dúvidas, haver

mecanismos que evitem a mudança de posicionamento sobre os temas já sedimentados nos

tribunais, porém os embargos de divergência não se prestam a esse fato, prestam-se a

uniformizar a interpretação do Tribunal e não à modificação da interpretação exarada pelo

Tribunal, quer pela evolução da sociedade ou da interpretação da questão. E o mecanismo

para isso é o incidente de uniformização (ou a assunção de competência) e não os embargos

de divergência.

Embargos contra decisão que julgou embargos de declaração tirados contra decisão

que julgou REsp ou RE – no entender da doutrina dominante, são cabíveis os embargos de

divergência da decisão prolatada em sede de embargos de declaração quando estes forem

opostos contra decisão prolatada em sede de REsp ou RE, haja vista que a função desse

recurso é simplesmente integrar o julgado anterior. Para a doutrina só seria possível se os

embargos de declaração fossem interpostos contra decisão que já seria passível de embargos

de divergência. No nosso sentir, todavia, o que interessa é haver discrepância de julgados

sobre a mesma questão fática, pois a função desse recurso é mais do que a uniformização de

recursos excepcionais dissonantes. Sua função primordial é a uniformização do

posicionamento das Cortes Superiores sobre a interpretação da lei federal e da Constituição

Federal. Se houver divergência interna, independentemente da demanda onde isso ficou

constatado (ação originária ou recurso, qualquer que seja), devem ser admitidos os embargos

de divergência.

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97

Os embargos de divergência nos demais Tribunais – a doutrina nega a possibilidade

de manejo de embargos de divergência no âmbito dos Tribunais locais281. Na vigência do

Código de Processo Civil de 1939, o recurso de revista tinha essa finalidade no âmbito local.

Posteriormente, com a entrada em vigor da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, passou a

haver a previsão dos embargos de divergência para todos os Tribunais:

Art. 101 - Os Tribunais compor-se-ão de Câmaras ou Turmas, especializadas ou agrupadas em Seções especializadas. A composição e competência das Câmaras ou Turmas serão fixadas na lei e no Regimento Interno. § 1º - Salvo nos casos de embargos infringentes ou de divergência, do julgamento das Câmaras ou Turmas, participarão apenas três dos seus membros, se maior o número de composição de umas ou outras. [...] § 3º - A cada uma das Seções caberá processar e julgar: a) os embargos infringentes ou de divergência das decisões das Turmas da respectiva área de especialização; [...]

Assim, verifica-se a previsão legal para cabimento dos embargos de divergência

perante os Tribunais locais. Apesar disso, a Sessão Plenária do TJ-SP, na uniformização de

jurisprudência nos embargos de divergência 8.755-1, por maioria de votos, entendeu pela

inadmissibilidade dos embargos de divergência282. A doutrina destaca que apesar do texto da

Lei Orgânica, não é cabível esse recurso no âmbito dos tribunais locais, porque haveria

necessidade de lei que instituísse tais recursos283.

Dificilmente essa matéria será regulamentada para que os Tribunais locais possam

uniformizar sua jurisprudência, uma vez que a competência para elaboração de leis

processuais foi atribuída privativamente à União284.

281 Nesse sentido, dentre outros: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo

Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 991 282 TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo:

RT, 1988, p. 399 283 OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Embargos de Divergência. in NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER,

Teresa Arruda Alvim (coord). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. v. 9. São Paulo: RT, 2006, p. 136.

284 A não ser que se entenda que a norma regulamentadora teria natureza de norma procedimental e não processual, entendimento que não se refuta, mas que pedimos vênia para tratarmos noutra oportunidade, haja vista a grande polêmica entorno deste tema.

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98 4.4.3 Divergência

No nosso sentir, considerando a proposta de ampliação da função desse recurso

fundamental, a divergência pode dizer respeito tanto em relação ao mérito do recurso

excepcional, como também quanto à sua admissibilidade285. A doutrina afirma, no entanto,

que não se pode confrontar um acórdão que não analisou o mérito com outro que o tenha

analisado286. Apesar disso, assim como Teresa Wambier, não descartamos a possibilidade de

o mesmo tema ser enfrentado pela Corte Superior em acórdão que enfrentou o mérito e em

acórdão que analisou sua admissibilidade. Basta lembrarmo-nos de divergência sobre normas

processuais, que também devem ter sua interpretação uniformizada no âmbito dos Tribunais

Superiores287.

Sabe-se que, dentre outras funções asseguradas constitucionalmente ao STJ, está a de

processar e julgar conflitos de competência, nos termos do art. 105, I, “d”. Também sabemos

que a competência em questão é absoluta, ou seja, pode gerar a nulidade de todo o processo,

ou até mesmo sua rescisão (art. 485, II, do CPC). Dentro do STJ, pode ocorrer de uma turma 285 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. Ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2009, p. 643. 286 Nesse sentido: SHIMURA, Sérgio Seiji, Apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso

extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 338; ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 547-548. FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo: RT, 2001, p. 360; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 312, este último citando julgados afirmando que não é possível utilizar aresto que não conheceu do RE ou REsp para demonstrar a divergência com outro que teve seu mérito julgado ou vice-versa.

287 Em sentido contrário: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 338. São suas as palavras: “[...] Assim, rigorosamente, dever-se-ia encaminhar a jurisprudência para admitir embargos de divergência quando em uma decisão se tratasse da inexistência de ilegalidade ou da inconstitucionalidade e, noutra, da inexistência, ainda que fosse aquela proferida quando do exercício do juízo de inadmissibilidade e esta, quando do exercício de juízo de mérito”. Ainda corroborando com o posicionamento adotado: JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.: “Pensemos num exemplo: o acórdão recorrido não conhece do recurso especial porque faltou assinatura do advogado. Já no acórdão paradigma, o recurso especial foi conhecido - porque se permitiu fosse corrigida a irregularidade relativa a falta de assinatura - e teve, com isso, o seu mérito apreciado”.

“Fica patente, no caso, a necessidade de se admitir os embargos de divergência. Aliás, curiosamente, foi justamente a circunstância de ter um dos acórdãos adentrado no mérito do recurso, e o outro não, o que gera o dissenso quanto a essa importante questão da possibilidade ou não de correção da falta de assinatura no recurso especial”.

“O grau de cognição na análise do recurso especial não pode ser, sob essa ótica, fator de inadmissibilidade, já que o juízo de admissibilidade não se confunde com o juízo de mérito. Aliás, se a divergência encontra-se exclusivamente quanto a um dos requisitos de admissibilidade, não há que se cogitar de interferência do grau de cognição exercido no recurso especial”.

“Obviamente, o raciocínio seria diferente caso se pretendesse cotejar acórdãos relativos ao juízo de admissibilidade e ao juízo de mérito do recurso. Em tal hipótese o dissenso não se instauraria, não pelo diferente grau de cognição, mas por falta de similitude”.

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99 chegar à conclusão de que a competência em determinada matéria seja de uma justiça e, outra

turma, na mesma matéria, chegar a uma conclusão diametralmente oposta. Seria então

possível embargos de divergência em conflito de competência?

A 2ª Seção do STJ já chegou a enfrentar a questão sobre a admissibilidade ou não de

embargos de divergência quando o assunto em discussão fosse a definição do órgão

competente para a apreciação da matéria (justiça comum estadual ou justiça do trabalho). No

caso em questão, apreciado nos embargos de divergência em agravo (EAg 1.195.905288), o

STJ entendeu pelo não cabimento dos embargos de divergência, afirmando que deveriam ser

enfrentadas teses distintas, que o recurso em questão serve para uniformizar teses e não para

definir órgão competente.

Naquela oportunidade o Exmo. Min. João Otávio de Noronha destacou em seu voto

que o STJ não é instância revisora. “Se fôssemos, seríamos corte de apelação, buscaríamos o

fator justiça [...] Mas o nosso fator é outro, é de controle de legalidade, de assegurar a

efetividade do direito federal e de dissipação da jurisprudência entre os tribunais estaduais e

federais e entre estes e o próprio STJ”, concluiu.

Pergunta que não pode calar é: como assegurar a efetividade do direito federal e a

dissipação de entendimentos divergentes se há permissão para que o próprio STJ tenha dois

posicionamentos diametralmente opostos considerados como corretos? Não seria função dos

Embargos de Divergência extirpar esses posicionamentos opostos? Se é essa a função desse

recurso, ele deve ser cabível no caso em questão.

Veja-se, mais uma vez, que o recurso em questão acabou não sendo utilizado para a

sua função primordial, que é a pacificação da interpretação da lei federal. Oras, permitir que

288 “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. INDICAÇÃO DE “CONFLITO DE

COMPETÊNCIA” COMO DIVERGENTE. DESOBEDIÊNCIA AO ART. 266 DO RISTJ. NÃO CABIMENTO. 1. Acórdão indicado como paradigma proferido em conflito de competência, não se presta à configuração da divergência, uma vez que, nos termos do art. 266 do RISTJ, apenas os julgados proferidos em “recurso especial” podem ser objeto de embargos de divergência em recurso especial, ou ainda, conforme entendimento jurisprudencial, os julgados de Turma proferidos em sede de agravo regimental, seja em recurso especial, seja em agravo de instrumento, desde que apreciado o mérito do recurso especial interposto. 2. É necessário conferir ao julgado paradigma as mesmas exigências do acórdão embargado, de modo a evitar-se uma situação de privilégio processual do recorrente que obteve uma decisão em sede de recurso especial, em detrimento daquele cujo decisum se origine, por exemplo, de um conflito de competência. Em sendo os embargos de divergência uma extensão do recurso especial, seria uma contradição não se admitir embargos de divergência de decisão de Turma que não tenha sido proferida em sede de recurso especial e se pretender, agora, que essa mesma decisão seja considerada em embargos de divergência de outra decisão como paradigma a possibilitar o conhecimento desses embargos. 3. Embargos de divergência não conhecido.” STJ. 2ª Seção. EAg. 1.195.905-RS, Rel. p/ Acórdão. Min. Nancy Andrighi, j. 26.10.2011, maioria.

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100 haja divergência na interpretação da lei federal dentro do próprio STJ é permitir que as

instâncias inferiores atuem sem parâmetros. Abre a oportunidade para que tanto uma

interpretação quanto outra sejam corretas para o mesmo caso. Isso amplia sobremaneira a

quantidade de recursos das decisões inferiores, bem como coloca em cheque a própria

credibilidade do Judiciário.

Não se pode entender como correto, no exemplo acima transcrito, que tanto a justiça

comum estadual como a justiça do trabalho sejam, ambas, competentes para processar uma

mesma causa. Se a conclusão mais lógica é a da impossibilidade de competência concorrente

para a matéria em questão, não pode ser outro o entendimento, senão o de que deve haver

pacificação, em nível federal, da questão sobre o órgão competente para apreciar determinada

matéria. Afirmar que o simples fato de a matéria tratar de conflito de competência é dar

interpretação por demais restrita ao dispositivo legal, o que significa reduzir a importância

desse recurso como ferramenta para segurança jurídica de todo o sistema. Por esses motivos,

ousamos discordar do voto vencedor do Acórdão supramencionado.

No que se refere à divergência quanto à quantificação dos danos morais, a matéria

encontra-se pacificada no STJ, por meio da Súmula 420, no sentido do não cabimento do

recurso. Vale destacar, contudo, entendimento em sentido contrário, exarado por Teresa

Wambier trazendo como exemplo dois casos em que houve fixação de valores diferentes

(fixação de danos morais em R$ 100.000,00 pela perda de um dedo e outro caso em que se

fixou R$ 5.000,00 de indenização a uma mãe que perdeu um filho) 289.

Sabemos, todavia, que a quantificação do dano moral leva em consideração o grau de

culpabilidade da conduta, o poder financeiro das partes, a reincidência ou não na conduta

ilícita, o caráter punitivo e educativo, além de seu caráter de leniência, evitando-se sempre o

enriquecimento sem causa, haja vista que o dinheiro não pode reparar a dor, mas servirá para

fazer com que a pessoa tenha diminuído seu sofrimento. Em razão disso, verifica-se a

dificuldade em se apurar tanto via recurso especial quanto por meio de embargos de

divergência os valores que devam ser fixados, pois isso envolve matéria fática, da qual os

tribunais superiores devem se afastar ao julgar recursos excepcionais.

Apesar disso, o STJ entende cabível o recurso especial para questionar o valor fixado

pelas instâncias inferiores a título de danos morais. Penso que o recurso especial em questão 289 Exemplo dado em 08/11/11 no Largo São Francisco, durante o Seminário em homenagem a Cândido Rangel

Dinamarco.

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101 seria cabível em casos extremos, que ferissem, por exemplo, princípios como o da

proporcionalidade da condenação. Na mesma linha de entendimento, não seria possível tolher,

nesses casos, os Embargos de Divergência. Mas surge a partir dai a dificuldade, pois

estaríamos avançando em matéria fática, da qual o tribunal superior, em tese, deve se afastar.

Havendo pacificação sobre determinadas controvérsias, evitam-se demandas sobre

estes temas pacificados e também recursos desnecessários, pois, caso contrário, quem foi

condenado irá recorrer, assim como aquele que teve seu pleito negado noutro caso. Sempre

haverá dúvida sobre o resultado final da demanda, não pelas provas produzidas ou pelos

percalços procedimentais da demanda, mas porque há divergência de interpretação da lei

dentro das mais altas Cortes, que têm a função justamente de extirpar divergências na

aplicação da lei federal. Das duas uma: ou são admitidos os embargos de divergência, ou não

seria o caso de admissão do próprio recurso especial. A quantificação dos danos morais

envolve o revolvimento de matéria fática. Se há o revolvimento de matéria fática, não seria o

caso de recurso especial. Todavia, entendendo-se cabível o especial porque há grande

desproporcionalidade entre o valor fixado num caso e o valor fixado noutro, deve ser possível

também os embargos de divergência290.

4.4.4 Sobre o aresto paradigma

Segundo pensamos aqui também deva ser dada ampliação à letra da lei. Em primeiro

lugar porque ela não diz que o aresto paradigma deva ser exarado em recurso especial ou

recurso extraordinário291. Em segundo, pela finalidade essencial do recurso, que é a

290 Vale ressaltar o posicionamento de Araken de Assis, contrário ao cabimento do próprio recurso especial para

discussão de quantificação de danos morais, afirmando que isso acaba provocando uma “tragédia”: “Não faltam apoios à transformação paulatina do STJ em terceira instância para realizar a melhor Justiça do caso. É pouco provável que haja alguma contribuição efetiva, máxime no tocante à duração razoável do processo, nesses arroubos liberais do STJ. Para a Justiça de um país, o reexame das questões de fato pelo tribunal de superposição, relevado o interesse do vitorioso eventual, representa autêntica tragédia”. (ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 832)

291 Apesar disso, esse é o posicionamento que vem sendo adotado no âmbito do STJ: STJ. 3ª Seção. AgRg nos EREsp 793405 / RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 27.04.2011, v.u.; STJ. 1ª Seção. AgRg nos EREsp 1187845 / ES, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 25.05.2011, v.u.; STJ. Corte Especial. Pet 2398 / SP, rel. Min. Laurita Vaz, j. 12.04.2010.. Também, adotando interpretação restritiva: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 310. Sobre esse ponto, vale a pena verificar a profunda pesquisa realizada em artigo publicado na REPRO por GRANADO, Daniel Willian. São admissíveis embargos de divergência quando o acórdão paradigma não

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102 interpretação da norma federal de forma uníssona na Corte Superior, independentemente de

onde seja o acórdão exarado, se em demanda originária, recurso excepcional ou ordinário.

Sobre esse tópico, felizmente, encontramos mais vozes defendendo uma interpretação mais

aberta do artigo292.

O aresto paradigma precisa ser atual. Não se pode entender como paradigma um aresto

posteriormente superado, seja pela turma que proferiu o julgado anterior, seja por

uniformização feita pelo Plenário (no STF) ou pela Seção ou Corte Especial (no STJ). Nesse

ponto há, inclusive, súmula tanto do STJ quanto do STF293.

Se a lei revogadora tiver o mesmo conteúdo da lei revogada, não haverá impedimento

para a utilização como paradigma, porque a ideia, repisamos, é a uniformização da

interpretação dos Tribunais Superiores294.

De acordo com entendimento sumulado, não serve como paradigma aresto prolatado

por Turma que não tem mais competência para julgar a matéria. A título de exemplo, locação

era matéria de competência da 3ª Seção. Atualmente é de competência da 2ª Seção. Assim,

levando-se em consideração a aplicação do entendimento consolidado no âmbito do STJ295,

provém de recurso especial? - análise da orientação do STJ. in Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 270 e ss.

292 GRANADO destaca que: “A tendência doutrinária, a respeito dessa controvérsia, vai no sentido de admitir que todo e qualquer acórdão proferido pelo STJ é apto a servir de acórdão paradigma a ser cotejado com o acórdão embargado, desde que proferido por órgão colegiado daquele tribunal.

A esse respeito, diz Bernardo Pimentel Souza que ‘ao contrário do aresto recorrido, que só é passível de impugnação por meio de embargos de divergência se foi proferido em julgamento de recurso especial, de recurso extraordinário, dos respectivos embargos declaratórios ou de agravo interno em recurso especial e extraordinário, o acórdão paradigma pode ter sido prolatado em julgamento de qualquer recurso, bem como de ação de competência originária do tribunal superior’.

Nesse mesmo sentido, assevera Sérgio Shimura ‘o que se exige é que a decisão a ser atacada seja tomada pela Turma. Todavia, a outra decisão pode ter sido proferida em sede de outro recurso ou processo, não necessariamente em recurso especial ou extraordinário’.

Ainda nessa linha, Barbosa Moreira pontua que ‘o acórdão invocado como padrão do qual se divergiu não precisa haver sido igualmente proferido no julgamento de recurso especial’". GRANADO, Daniel Willian. São admissíveis embargos de divergência quando o acórdão paradigma não provém de recurso especial? - análise da orientação do STJ. in Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 270 e ss.

293 Súmula 168 do STJ: “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado”. Súmula 247 do STF: “O relator não admitirá os embargos da Lei 623, de 19/2/1949, nem deles conhecerá o Supremo Tribunal Federal, quando houver jurisprudência firme do plenário no mesmo sentido da decisão embargada”.

294 Nesse sentido: SHIMURA, Sérgio. Apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 339; ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 550; RT, 682/244

295 Súmula 158 do STJ: “Não se presta a justificar embargos de divergência o dissídio com acórdão de turma ou seção que não mais tenha competência para a matéria neles versada”.

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103 não se pode utilizar julgado prolatado pela 3ª Seção como parâmetro para ensejar os embargos

de divergência.

Novamente, num primeiro momento parece razoável entender que se houve mudança

de competência, não haveria razão para os embargos de divergência. Entretanto, não é porque

houve mudança de competência interna para julgamento dos recursos que o próprio Tribunal

pode ter seu posicionamento alterado. Lembre-se que há a séria necessidade de se ter

previsibilidade. Não se está discutindo o posicionamento desta ou daquela turma, mas o que

interessa é a posição do Tribunal. Não fosse apenas isso, pode ocorrer de na Corte Especial

haver Ministros da antiga Seção que poderão inverter o resultado do julgamento preferido

pela nova Seção, caso a matéria seja apreciada pela Corte Especial. Pela simples possibilidade

de isso ocorrer, cremos necessário repensar essa súmula para admitir, com maior razão, os

Embargos de Divergência nessa hipótese, pois se há divergência dentro do próprio STJ, quem

dirá na sociedade e nos órgãos inferiores. Mais uma vez, se a nova Seção competente para

apreciar a matéria decidir por modificar a interpretação que era dada por outra Seção, o ideal é

que fosse instaurado o incidente de uniformização de jurisprudência. Caso esse mecanismo

não fosse utilizado, não se pode retirar das partes o manejo dos embargos de divergência. Não

apenas pelo direito da parte em si, mas pela fundamental função de demonstrar à sociedade

qual o posicionamento a ser adotado pelo Tribunal (o anterior, exarado pela Seção que tinha

competência sobre a matéria, ou o novo, exarado pela Seção que possui competência atual

sobre o tema). Utilizando-se como exemplo a própria mudança de competência para

apreciação de matéria ligada à locação, a 2ª Seção não mudou o atual entendimento sobre a

responsabilidade do fiador até a entrega das chaves, obedecendo ao precedente da 3ª Seção.

Mas só pelo fato de, em tese, poder ser desrespeitado o precedente da 3ª Seção, deve-se

entender como cabível os Embargos de Divergência, até para garantir a segurança e isonomia

que se espera de uma Corte Superior296.

Essa questão é tranquila no âmbito dos Tribunais, posicionamento ao qual nos

filiamos297, não havendo razão para maiores dilações. Vale, todavia, destacar que no direito

296 O precedente a que nos referimos é o EREsp. 566.633-CE, 3ª Seção, j. 22.11.2006, que vem sendo seguido

pela 2ª Seção. 297 “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDORES

PÚBLICOS MUNICIPAIS. REAJUSTE. EXECUÇÃO. VIOLAÇÃO DA COISA JULGADA. 1. O cabimento dos embargos de divergência independe do trânsito em julgado do acórdão paradigma. 2. Na liquidação da sentença, o quantum debeatur a ser executado é o definido nos cálculos realizados com estrita observância da norma concreta da sentença exequenda, que não comporta modificação, pena de ofensa à coisa julgada. 3. Ofende o comando expresso no acórdão exequendo, certo em que o reajuste do mês de fevereiro de 1995 deve ser procedido na forma das Leis Municipais 10.668/1988 e 10.722/1989, a decisão do

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104 português o chamado recurso para a uniformização de jurisprudência deve utilizar como

paradigma acórdão transitado em julgado (art. 763-2).

4.4.5 Procedimento

Para a verificação da divergência, não importa a origem do acórdão paradigma, nem

do aresto recorrido. O que é preciso verificar é a identidade da questão, razão pela qual é

preciso fazer o confronto analítico dos julgados. Por isso não basta a análise de ementas,

como regra. É preciso que haja a análise dos acórdãos em sua integralidade para verificar se o

caso paradigma e o recorrido são realmente iguais ou se há um “distinguishing”, capaz de

permitir a divergência298.

Não se pode descartar, todavia, a existência de ementas que por si só são tão

completas a ponto de serem utilizadas para um cotejo analítico. Quando isso for possível, o

recurso deve ser admitido299.

Quanto aos efeitos desse recurso: não terão efeito suspensivo. Apesar da falta de

previsão legal, há previsão no art. 266, § 2º, do Regimento Interno do STJ. A doutrina é

remansosa nesse sentido300. Terá efeito devolutivo301 e não terá efeito translativo302.

juízo de execução que determina a aplicação, no cálculo, das Leis Municipais 11.722/1995 e 12.397/1997, supervenientes. 4. Embargos de divergência acolhidos”. STJ. 3ª Seção. EREsp 585.392/SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido.

298 Nesse sentido: “AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. CABIMENTO DOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO ANALÍTICA DA DIVERGÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. Para a demonstração da divergência, é indispensável que os julgados apontados como paradigma invocados digam respeito à situação jurídica idêntica à apreciada pelo acórdão embargado”. STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. AI 774.326 AgR-ED-EDv-AgR / DF, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 03.08.2011, v.u.

299 Nesse sentido: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 342; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 360

300 Nesse sentido: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 314; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 361; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 339; JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. II, 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 128; Embargos de Divergência em Recurso Especial e em

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105 O prazo de interposição é de 15 dias. O prazo de resposta também é de 15 dias, em que

pese o art. 335, § 2º, do RISTF falar em 10 dias. Não há a possibilidade de interposição de

embargos de divergência adesivos, não que se descarte a possibilidade de haver duas

divergências num acórdão (uma que beneficie o recorrido e outra que beneficie o recorrente).

Entretanto, em razão do princípio da tipicidade dos recursos, não há previsão legal para os

embargos de divergência adesivos (art. 500, II, do CPC). Admite-se a sustentação oral, tanto

no âmbito do STJ (art. 159 do RISTJ) quanto no âmbito do STF (art. 336 do RISTF).

Sobre a possibilidade de julgamento monocrático desse recurso pelo relator, temos que

é possível no caso de indeferimento dos embargos de divergência, não sendo cabível para dar

provimento ao recurso, pois seu objetivo é uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal.

Se isso fosse possível, contrariaria a razão de ser do recurso303. Sem falar no absurdo de um

relator reformar ou anular o julgamento de uma Turma, como se o posicionamento do relator

fosse superior ao posicionamento da Turma304.

4.5 Assunção de competência

A Lei 10.352/2001 introduziu ao CPC o § 1º ao art. 555, prevendo a assunção de

competência visando prevenir divergência entre câmaras ou turmas de um mesmo tribunal. De

Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 290-296; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VIII. 2. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002. Esse último, de acordo com as notas feitas pelo atualizador; ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 544-556; Em sentido pouco diverso: NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 451. De forma diferente entende o autor: “Os embargos de divergência (CPC 546), como são cabíveis no RE e REsp, que são recebidos apenas no efeito devolutivo (CPC 542, § 2º), têm também esse único efeito, sendo desprovidos de suspensividade. Entretanto, se o acórdão embargado tiver dado provimento ao RE ou REsp, os embargos de divergência serão recebidos nos efeitos devolutivo e suspensivo. Também nesse sentido pouco diverso: SHIMURA, Sérgio Seiji. Apud ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 555

301 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 445. Afirma o autor que: “A devolutividade dos embargos se restringe à matéria objeto de divergência entre a Turma e os demais órgãos do STJ ou STF. Matéria não decidida no acórdão embargado não pode constituir objeto de embargos de divergência”.

302 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 487-488. 303 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva,

2008, p. 316 304 JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano

35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss. Em sentido contrário: FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo: RT, 2001, p. 362

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106 acordo com a redação o relator poderá propor que o recurso seja julgado pelo colegiado maior

a quem o regimento indicar (Seção, Órgão Especial, Grupo de Câmaras). Diferentemente dos

embargos de divergência que têm por finalidade extirpar a divergência já surgida, a assunção

de competência evita que a câmara ou turma profira julgamento que poderá ser contrário ao

prolatado por outra câmara ou turma do mesmo tribunal. Visa este instrumento à manutenção

da uniformidade do pensamento do tribunal sobre questões de direito.

Segundo Nelson e Rosa Nery, a assunção de competência poderá “ocorrer quando

convier ao interesse público”305, o que poderá ser evidenciado nas seguintes hipóteses:

a) para prevenir divergência entre turmas ou câmaras do tribunal; b) para dirimir essas mesmas divergências; c) quando algum juiz propuser a revisão de questão de constitucionalidade já decidida pelo Pleno (RISTF 11 II); d) quando algum juiz propuser a revisão de súmula do tribunal (RISTF 11 III; RISTJ 14 I) 306.

A ideia do instituto é a de uniformizar jurisprudência, função também atribuída ao

incidente de uniformização de jurisprudência. Esse instituto, todavia, apresenta forma mais

simplificada de se obter a uniformização. Como já referido acima, quando tratamos do

incidente de uniformização de jurisprudência, podemos encontrar antecedentes tanto no

direito pátrio, como no direito estrangeiro a este instituto que se assemelha ao incidente de

uniformização de jurisprudência.

Este instituto, por ser mais simplificado em relação ao incidente de uniformização de

jurisprudência, acabou por fazer com que aquele fosse ainda menos utilizado. Assim como a

uniformização de jurisprudência, a assunção de competência não é recurso, possuindo

natureza de incidente processual307, e sua finalidade é prevenir a existência de julgados

contraditórios. Diferentemente do incidente de uniformização de jurisprudência, porém, aqui a

matéria subirá toda para o colegiado maior que não apreciará apenas a questão de direito

controvertida. O Colegiado maior julgará o próprio recurso. A assunção de competência

poderá ocorrer apenas diante de recursos e reexame necessário308, não sendo possível a

305 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação

extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 998 306 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação

extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 998 307 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 457 308 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 457. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181

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107 utilização do instituto nos casos de ações de competência originária do tribunal, algo que

também o difere do incidente de uniformização de jurisprudência.

Também há diferença quanto a legitimidade para suscitar a assunção de competência.

De acordo com o texto legal, apenas o relator do recurso é que tem legitimidade para a

assunção de competência309. Nada impedirá que outro membro da câmara ou turma sugira a

instauração da assunção de competência e que o relator encampe a ideia310. Nessa linha de

raciocínio, apesar de não ser dada legitimidade à parte para instaurar o incidente, também não

há impedimento para que a parte demonstre ao relator a divergência, para que o relator

instaure a assunção de competência. Araken de Assis vai além, afirmando que até mesmo

outros podem provocar, nos debates orais, a suscitação do incidente e os demais membros do

colegiado decidam pela instauração do incidente, mesmo com voto contrário do relator311.

No que se refere à quaestio juris ela não precisa, necessariamente, estar ligada ao

mérito da causa, basta que esta questão de direito seja “madura” ou que ela “tenha

expressão”312.

Para a instauração da assunção não há necessidade de que já haja divergência sobre a

matéria entre câmaras ou turmas. Poderá ser suscitado no caso de matérias novas, evitando-se

o surgimento da divergência ou até mesmo quando se verificar tendência na mudança de

posicionamento do Tribunal. O relator, verificando a tendência na mudança de orientação do

tribunal, poderá suscitar esse incidente.

Suscitada a assunção de competência pelo relator, o colegiado (câmara ou turma) que

originariamente julgariam o recurso analisará essa questão preliminar. Se entender que a

matéria deva ser afetada ao colegiado maior indicado pelo regimento interno (órgão especial,

pleno, grupo de câmaras seção), os autos serão encaminhados a esse colegiado maior. Dessa

decisão da câmara ou turma sobre a afetação do recurso ao colegiado maior não cabe recurso.

Isso porque o recurso não foi julgado ainda. Somente após o julgamento desse é que a parte

poderá recorrer. Admitida a afetação pela câmara ou turma ao colegiado maior (pleno, órgão

especial, seção ou grupo de câmaras), este fará o juízo de admissibilidade e julgará o próprio

309 Anota-se que no PL 8.046/2010 o art. 900 prevê que “deverá o relator, de ofício ou a requerimento das partes

ou do Ministério Público” dar início à assunção de competência. 310 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010,

p. 181; 311 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 371 312 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

Paulo: RT, 2009, p. 458

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108 recurso. Se, ao fazer o juízo de admissibilidade, o colegiado maior entender que não seja o

caso de uniformização do entendimento do tribunal (porque a questão já se encontra

pacificada, por exemplo), os autos serão devolvidos à câmara ou turma de origem para

julgamento da matéria, não cabendo qualquer recurso dessa decisão.

Como a assunção de competência somente poderá ser instaurada pelo relator e não

pelas partes, havendo divergência jurisprudencial dentro do tribunal, caberá às partes instaurar

o incidente de uniformização de jurisprudência313. Não o fazendo, não poderão questionar a

atitude do relator em dar início ou não à assunção de competência314.

Apesar de ser mais comum a utilização da assunção de competência em relação à

uniformização de jurisprudência, pois aqui não há vaivém de processo315, destaca Marcelo

Vigliar a superioridade da uniformização de jurisprudência em relação a este instituto, pois a

uniformização é decidida de forma objetiva e não concreta como ocorre com a assunção de

competência316.

O julgamento da matéria pelo colegiado maior, pacificando a quaestio juris no âmbito

do tribunal não terá o condão de vincular os demais membros daquela corte. Todavia,

havendo no caso subsequente similitude fática e jurídica, faz-se necessário seguir o

precedente317.

313 Nada impede, todavia, que as partes levantem a questão e a câmara ou turma encampe a ideia. 314 Marcelo Vigliar chega a mencionar que é discricionariedade do tribunal, ficando na conveniência e

oportunidade desse. (VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 194)

315 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181; ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 370

316 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 195

317 Carlos Maximiliano, ao tratar da jurisprudência como conjunto de decisões uniformes afirma que ela “[...] é a fonte mais geral e extensa de exegese, indica soluções adequadas às necessidades sociais, evita que uma questão doutrinária fique eternamente aberta e dê margem a novas demandas: portanto diminue os litígios, reduz ao mínimo os inconvenientes da incerteza do Direito, porque de antemão faz saber qual será o resultado das controvérsias". (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 221)

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109 5 As deficiências do sistema e a busca por novos institutos visando à isonomia e à

segurança jurídica

O sistema processual, e mais precisamente o sistema recursal, foi criado no intuito de

proporcionar uniformidade das interpretações sobre as questões legais. Se imaginarmos a

existência de uma hierarquia piramidal sobre as interpretações dadas pelos órgãos do

Judiciário, acrescidos da função uniformizadora dos Tribunais (principalmente dos Tribunais

Superiores), verificamos que ela existe, ao menos em tese.

Todavia, essa hierarquia apenas existe para os casos em concreto. Assim, o que foi

decidido pelo STF num recurso extraordinário vale apenas para aquele caso. Sua eficácia é

persuasiva e não vinculante.

Com o crescimento demográfico, com a concentração das pessoas em grandes centros

urbanos, com o aumento das relações negociais entre as pessoas, com o aumento da

exploração educacional por entidades privadas, colocando a cada dia mais profissionais no

mercado de trabalho318, considerando-se o baixo custo para se litigar no Brasil, a quantidade

de processos sobe exponencialmente a cada dia, num rumo que parece não ter fim.

Para se ter uma ideia da carga de trabalho de que estamos falando, em 2004, na justiça

estadual paulista, em primeiro grau de jurisdição (excluídos os Juizados Especiais), havia

10.242.524 processos pendentes de apreciação. Em 2008, esse número saltou para

14.609.684. Um aumento de 42% da carga de trabalho em 4 anos. O número de magistrados,

por sua vez, aumentou em apenas 18,6%, saindo de 1.526 para 1.810. Considerando-se ainda

que cada magistrado profere sempre menos sentenças do que a quantidade de casos novos, o

aumento do congestionamento no Judiciário é realidade que precisa de uma solução

urgente319.

Os juízes, desembargadores e Ministros não têm condição de proferir a quantidade de

decisões que a carga de trabalho imposta lhes exige. O sistema está à beira de um colapso e os

318 No nosso caso específico, com a grande quantidade de advogados. 319 Relatórios do CNJ – Justiça em Números. http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-

modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios Acesso em 14.02.2012, às 14h00. Deixamos de considerar os dados de 2009 e de 2010, tendo em vista que houve alteração na forma de elaboração dos relatórios, impedindo a comparação com os dados anteriores.

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110 instrumentos processuais postos à disposição, apesar de tecnicamente adequados, não são

capazes de dar vazão à imensa carga de trabalho.

No dia-a-dia verifica-se que os instrumentos acabam até mesmo sendo utilizados de

forma equivocada. Desejoso de dar uma rápida resposta para evitar novos recursos, súmulas

são editadas e utilizadas sem que haja similitude fática com casos anteriormente analisados

pelos próprios tribunais (basta lembrar de enunciados como os 214, 263, 293 e 375 do STJ).

Como afirmar que a litigiosidade deve diminuir se nem mesmo os Tribunais

Superiores se entendem em relação aos seus próprios precedentes?

Outro exemplo também problemático decorre do enunciado de súmula vinculante nº

4320, que estabeleceu a proibição da vinculação do salário mínimo como indexador da base de

cálculo de gratificações, incluídas a o adicional de insalubridade, alterando orientação

consolidada pelo TST no enunciado 228321. A partir da redação da súmula vinculante 4, o

TST reviu seu enunciado 228, prevendo que o adicional de insalubridade passaria a ter como

base de cálculo o salário básico do empregado. Em Reclamação ajuizada pela Confederação

Nacional da Indústria, Rcl. 6.266-MC, decidiu-se por suspender a eficácia daquele enunciado

do TST que, diga-se de passagem estava de acordo com o enunciado da súmula vinculante 4

do STF322.

Diante dessas constatações, acrescida da alta demanda de trabalho, nem os

magistrados, nem os advogados se dão o trabalho de pesquisar a fundo os precedentes citados.

Basta utilizar-se de um sistema simples de busca de ementas para inseri-las em teses que, não

necessariamente, tratam de situações completamente distintas. Isso faz com que tenhamos

decisões das mais diversas sobre temas idênticos. Permite-se também que Tribunais

Superiores acabem por utilizar determinados precedentes para casos que não são próximos,

fazendo com que haja divergência de entendimento.

320 “Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de

cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. 321 O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário-mínimo de que cogita o art. 76 da

Consolidação das Leis do Trabalho 322 Constou da decisão do Min. Gilmar Mendes que: “Dessa forma, com base no que ficou decidido no RE

565.714/SP e fixado na Súmula Vinculante n° 4, este Tribunal entendeu que não é possível a substituição do salário mínimo, seja como base de cálculo, seja como indexador, antes da edição de lei ou celebração de convenção coletiva que regule o adicional de insalubridade”. Ocorre, contudo, que no RE 565.714, rel. Min. Carmen Lúcia, esta afirmou que o a expressão “salário mínimo da região” não poderia ser confundida com salário mínimo nacional e que caberia à justiça do trabalho definir a base de cálculo do adicional de insalubridade.

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111 Diuturnamente também acabamos lidando na prática com outra situação, qual seja, a

de que nem todos os magistrados estão preocupados com o que foi decidido pelos Tribunais

Superiores323.

O magistrado deve ter seu livre convencimento motivado. Isso definitivamente não

pode ser tolhido dele, mas até onde vai essa liberdade?

5.1 A má interpretação do princípio da livre convicção motivada – a ausência de

“discricionariedade” judicial

A questão sobre a discricionariedade ou não da atividade judicial não é nova. Sobre

ela já encontramos obras do início do século passado tratando do assunto. Hoje, na era da

constitucionalização dos direitos e garantias e de frente para o modelo constitucional do

processo, torna-se ainda mais difícil se falar em discricionariedade do juiz.

É comum aos administrativistas tratar dos “poderes” vinculados e discricionários,

sendo que no “poder” vinculado não há margem de escolha ao administrador, ao passo que no

“poder” discricionário há uma liberdade na escolha do ato quanto à sua conveniência e

oportunidade324. Contudo, mesmo no campo do direito administrativo, a discricionariedade

não é plena, conforme ressaltam a doutrina e jurisprudência, razão pela qual se admite o

323 Seja em função da criticável forma de escolha de Ministros para as Cortes Superiores, seja por convicção

própria, ideologia, religião etc. 324 “[...] os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a

autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade. No entanto, esse regramento pode atingir vários aspectos de uma atividade determinada; nesse caso se diz que o poder da Administração é vinculado, porque a lei não deixou opções; ela estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. Por isso mesmo se diz que, diante de um poder vinculado, o particular tem um direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial. Em outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 205

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112 controle judicial sobre os atos administrativos sob seus aspectos forma, competência e

finalidade do ato, pois a lei impõe limitações325.

Quanto ao aspecto da atuação judicial, sabe-se que, na evolução do pensamento

filosófico e jurídico, Montesquieu, aprimorando um pensamento aristotélico, afirmou que o

Poder do Estado, embora uno, deveria ser distribuído. Com base nessa ideia surge a tripartição

de “poderes”.

Ocorre que, para o próprio Montesquieu, em decorrência até mesmo do momento

histórico vivido, os juízes eram vistos como membros da aristocracia.

Basta lembrarmos que o iluminismo e a revolução francesa refletem a revolução dos

burgueses contra a aristocracia. O juiz, visto como membro da aristocracia, tinha a função de

julgar, mas de julgar de acordo com as leis. O juiz não era nada além do que a boca que

pronuncia a lei326.

Entendia-se, naquele momento histórico, que o juiz poderia fazer somente aquilo que a

lei permitisse. O juiz não poderia ir além da lei, até por uma questão de segurança da

sociedade da época em face aos desmandos da aristocracia. Falava-se em um poder até

mesmo nulo ou invisível327.

A ideia de um direito legislativo, segundo o qual caberia ao legislativo reger a vida em

sociedade, acabou fazendo com que fossem criadas leis para reduzir ou neutralizar a atuação

325 “O percurso do direito administrativo retrata a lenta e inevitável transição do autoritarismo para a

democracia. Atualmente, não mais se admite a ideia de “ato discricionário”, reconhecendo-se que apenas alguns aspectos do ato administrativo envolvem margem de liberdade de escolha para o agente público. Os controles à atividade administrativa do Estado são cada vez mais amplos. É inquestionável que toda liberdade atribuída ao agente estatal tem de ser exercitada de modo compatível com os princípios e regras fundamentais. O conceito original de Estado de Direito foi sendo enriquecido pela evolução histórica. As experiências trágicas dos regimes totalitários alemão, italiano e soviético, vividas ao longo do século XX, conduziram à constatação de que nenhum poder político pode ser legitimado sem respeito à soberania popular e aos direitos fundamentais. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se não apenas pela supremacia da Constituição, pela incidência do princípio da legalidade e pela universalidade da jurisdição, mas pelo respeito aos direitos fundamentais e pela supremacia popular. Também envolve o compromisso com a realização da dignidade dos indivíduos, inclusive por meio de uma atuação ativa e interventiva” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 14)

326 MARINONI, Luiz Guilherme. Prova. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 30; SILVA, Ovídio Araujo Batista da; GOMES, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 58; CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 32. Para este último, o pensamento de que o juiz apenas declara o direito é mera ilusão.

327 SILVA, Ovídio Araujo Batista da; GOMES, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 58

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113 judicial. Cappelletti descreve, todavia, que foram tantas as leis criadas na intenção de

neutralizar a atuação judicial, que o efeito acabou sendo inverso328.

Com a evolução da sociedade e, por via de consequência, do direito, passou-se a

entender que o juiz teria uma certa autonomia ao julgar, porém uma autonomia limitada ao

que permitia a lei.

Essa autonomia decorre da possibilidade dada pelo legislador ao juiz para fazer

determinadas escolhas, estabelecendo termos indeterminados de conceitos e cláusulas

gerais329.

Baseado nas lições, dentre outros, de Chief Barwick, afirma Cappelletti que, mesmo

havendo essa enxurrada de leis e ainda que se empregue “a melhor arte de redação das leis”,

sempre haverá lacunas que precisarão ser preenchidas pelo juiz330.

José Roberto dos Santos Bedaque, um dos grandes defensores do aumento de poderes

do juiz, também deixa claro que as cláusulas abertas e termos indeterminados servem para dar

maior possibilidade de o juiz adaptá-las ao caso concreto, mas isso não quer significar

discricionariedade331.

A possibilidade de interpretação e aplicação da lei e de preenchimento das cláusulas

abertas ou indeterminadas não pode ser entendida como permissão à conveniência e

oportunidade do magistrado!

Não se pode confundir a atividade interpretativa do magistrado ao aplicar o direito e a

existência de termos indeterminados e cláusulas gerais com discricionariedade332. Não há

328 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris, 1993, p. 18-19 329 Basta lembrarmos de conceitos como “bons costumes”, “mulher honesta” (hoje não mais existente no Código

Penal), “dignidade da pessoa humana”, “boa-fé”. 330 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris, 1993, p. 20-21. Continua o autor afirmando que interpretação e criação do direito não são conceitos opostos e que não estaria ai o problema: “O verdadeiro problema, portanto, não é o da clara oposição, na realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários”.

331 “Quanto mais o legislador valer-se de formas abertas, sem conteúdo jurídico definido, maior será a possibilidade de o juiz adaptá-las às necessidades do caso concreto. Esse poder não se confunde com a denominada discricionariedade judicial, mas implica ampliação da margem de controle da técnica processual pelo julgador”. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 110

332 Em sentido contrário: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 21. Destaca o autor que: “Especialmente no fim do

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114 juízo de conveniência nem de oportunidade na aplicação da lei pelo juiz333. A avaliação de

provas também não se confunde com discricionariedade, pois o juiz exerce a atividade de

interpretar e aplicar o direito334. A fundamentação de sua decisão é indispensável para a

demonstração de que ele julgou o caso de acordo com o sistema legal, obedecendo-se aos

princípios da legalidade e imparcialidade, garantindo-se com isto o devido processo legal335.

Gisele Santos Fernandes Góes traz algumas conclusões sobre a diferenciação entre os

termos indeterminados e cláusulas gerais em relação à discricionariedade, chegando com

clareza à conclusão da ausência de discricionariedade judicial como juízo de conveniência e

oportunidade336.

século passado e no curso do nosso, vem formando no mundo ocidental enorme literatura, em muitas línguas, sobre o conceito de interpretação. O intento ou o resultado principal desta amplíssima discussão foi o de demonstrar que, com ou sem consciência do intérprete, certo grau de discricionariedade, e pois de criatividade, mostra-se inerente a toda interpretação, não só à interpretação do direito, mas também no concernente a todos outros produtos da civilização humana, como a literatura, a música, as artes visuais, a filosofia etc.” Mais a frente continua o autor afirmando, todavia , que essa “discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos”. (p. 23-24)

333 “[...] a interpretação da lei, segundo os critérios propostos pela doutrina, é tarefa que se impõe ao juiz, ou seja, não há como aplicar a lei sem interpretá-la, já que há muito se abandonou o brocardo in claris cessat interpretatio. Mas a interpretação da lei não se confunde com o poder discricionário conferido ao administrador público, isto é, não se pode interpretar a lei segundo critérios de conveniência ou oportunidade. A interpretação rege-se por critérios ou métodos (alguns preferem falar em técnicas), como o método sistemático, o teleológico etc. Em nosso direito positivo, deve atender aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum (LICC, art. 5º). Também não há confundir conceitos vagos com discricionariedade. A utilização de conceitos vagos pelo legislador constitui uma técnica que concede ao aplicador certo espaço para fixar o conteúdo da norma no caso concreto, atendendo às suas peculiaridades, mas sem abandonar os critérios jurídicos de interpretação”. (LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Anotações sobre a discricionariedade judicial. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (Coord). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p. 95-96)

334 “É necessário que se abra, aqui, um parêntesis, para ressaltar que, há muito tempo, temos insistido em não identificar a liberdade judicial e a margem de flexibilidade interpretativa gerada pelo fato de o comando normativo ter um conceito vago em sua formulação com fenômeno discricionariedade. Assim, por uma série de razões, mencionadas de passagem a seguir, pensamos também que não se deve chamar de discricionária a liberdade que tem o juiz de examinar as provas” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Omissão judicial e embargos de declaração. São Paulo: RT, 2005, p. 359)

335 “Interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionariedade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo de legalidade é atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto. Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente. Uma e outra são praticadas em distintos planos lógicos”. (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 283 – grifos no original)

336 “a) vigora uma pluralidade de soluções justas no poder discricionário, enquanto que, nos conceitos indeterminados, só é permitida uma única solução justa, assim como nas cláusulas gerais, porém, nelas devem ser trabalhados os vetores de razoabilidade e proporcionalidade; b) há a liberdade de opção entre alternativas justas na discricionariedade e, ao contrário, nos conceitos subsiste apenas a subsunção a uma categoria legal circunscrita ao caso concreto. Nas cláusulas gerais, não vigora uma subsunção, porque não está na lei, devendo ser extraída a partir da solução adequada para o caso concreto; c) o poder discricionário se fundamenta em critérios extrajurídicos, como no caso em que o Poder Público resolve designar funcionários para as eleições e se pauta sob determinados critérios. Na esfera dos conceitos jurídicos

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115 Não se pode confundir a interpretação e aplicação do direito exercidas pelo magistrado

com discricionariedade337. O juiz, no caso concreto, verificará diante das alegações

devidamente provadas qual o direito a ser aplicado à espécie e fará isso de forma

fundamentada, o que também demonstra a ausência de discricionariedade judicial.

Nesse ponto, podemos trazer à baila a Lei de Introdução às Normas do Direito

Brasileiro (LINDB), outrora denominada Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que

afirma em seu artigo 4º que na ausência de lei o juiz deverá julgar de acordo com a analogia,

com os costumes e com os princípios gerais de direito.

Ao se consultar os doutrinadores de direito civil, verificar-se-á que eles (Silvio

Rodrigues338, dentre outros) interpretavam o dispositivo na respectiva ordem, ou seja,

inicialmente o juiz aplicaria a lei se esta não fosse omissa. Na ausência dela e apenas nessa

hipótese, aplicaria a lei análoga. Se tampouco houvesse esta, aplicaria os costumes. Somente

por último é que seriam aplicados os princípios gerais de direito. Esse posicionamento é

adotado até hoje por muitos doutrinadores339. Não há discricionariedade.

No campo filosófico, podemos afirmar que a interpretação do artigo 4º da LINDB já

era outra. Assim, ao revisitarmos a obra de Miguel Reale, verificaremos a afirmação de que

não há ordem na supressão da lacuna deixada pelo legislador340.

Discutia-se sobre a possibilidade da aplicação da equidade. Por conta disso, a lei,

expressamente veda a aplicação da equidade pelo juiz, permitindo-a apenas como forma de

exceção341.

indeterminados, não incide a vontade do aplicador; e d) o juiz não detém poder de fiscalização no rumo da discricionariedade e, na direção oposta, os conceitos indeterminados dão ensanchas à atividade judicial fiscalizadora, posto que se parte de uma situação determinada”. (GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade x termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (Coord). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p. 89

337 Há, todavia, fatos extrajurídicos que podem dar margem maior à escolha do juiz. Não obstante, sua escolha fica limitada aos termos e à finalidade da norma e à valoração do caso concreto. Exemplo disso seria a possibilidade de utilização de outros meios de coerção para o cumprimento de obrigação de fazer, não fazer, ou ainda para a obtenção do resultado equivalente, prevista no art. 461, § 5º, do CPC. Mesmo nesse caso entendemos não haver discricionariedade.

338 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol 1. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1996 339 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro 1. Teoria Geral do Direito Civil. 28. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 83-111; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010

340 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23. ed. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 310-311. 341 Art. 127 do CPC. O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei.

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116 Para Miguel Reale, com a redação do art. 127 do Código de Processo Civil vigente

houve um retrocesso face ao art. 114342 do Código de Processo Civil de 1939343. Nalini vai

além: traz em sua obra posicionamento sobre a inconstitucionalidade do art. 127 do Código de

Processo Civil344.

No que tange à equidade, apesar de não haver unanimidade sobre o seu real conceito,

prevalece entre nós que a equidade é a justiça do caso concreto345.

Na evolução da interpretação do direito e tendo por base a estrutura normativa

nacional, na qual temos no topo uma Constituição, que é principiológica, vemos uma

reviravolta sobre todo esse contexto, dando margem a uma discussão calorosa e bastante

produtiva.

A partir daí, e utilizando-se da obra de Luís Roberto Barroso346, verificamos que a

Constituição Federal pode ser interpretada de várias formas. Uma delas é a partir da lei. Não

necessariamente a Constituição Federal precisa ser interpretada de acordo com a lei. Com esta

constatação, pode-se chegar a uma interpretação da Constituição Federal, chegando-se a

afirmar que determinada lei não tem aplicação ou está em descompasso com a Lei Maior, ou

até mesmo de que aquela não é a melhor interpretação, segundo a própria Constituição

Federal.

Desta forma, há uma maior “liberdade” ao juiz, pois ao se analisar o caso concreto a

partir da aplicação da lei, mas tendo por base uma Constituição principiológica, a margem

para divergência acaba sendo grande347, mas repita-se, isso se insere não no campo da

discricionariedade judicial, mas no da interpretação e aplicação do direito.

342 Assim dispunha o CPC de 1939 em seu art. 114: Quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a

norma que estabeleceria si fosse legislador. 343 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23. ed. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 295. 344 NALINI, José Renato. Filosofia e Ética Jurídica. São Paulo: RT, 2008 345 NALINI, José Renato. Filosofia e Ética Jurídica. São Paulo: RT, 2008 346 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009 347 Não se pode confundir a interpretação da norma com discricionariedade. (FAZZALARI, Elio. Instituições de

direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2006, p. 418-419. Afirma o autor que a interpretação da norma substancial não contém componente de discricionariedade, porque esta está ligada ao conteúdo e não à valoração. Para o autor há discricionariedade quando houver necessidade de adequação do conteúdo do ato a determinada causa. A discricionariedade é moldada “de acordo com a flexibilidade a ser atingida”. Também afirma ser errôneo falar em discricionariedade sobre o juízo de fato: “De resto, ainda quando se fala de ‘livre convencimento’ do juiz em relação à prova e ao fato, decerto se pressupõe e se exige o emprego, por parte do juiz, dos instrumentos e das proposições verificadas de que se disse, sem a qual o convencimento seria abandonado ao arbítrio e ao capricho, e até mesmo não poderia se formar” (p. 461). Mais a frente confirma “[...] o perfil da ‘discricionariedade’, como escolha de comportamento desenvolvido no âmbito do dever; e

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117 Num passado recente, a ideia era a da interpretação da Constituição Federal de acordo

com a lei. Nessa seara, o restrito campo de liberdade do julgador estaria previsto apenas nos

casos em que fosse permitida a equidade.

O manejo da equidade é fundamental para se fazer a “justiça do caso concreto”,

prevista para ser utilizada na arbitragem, nos Juizados e também com maior aplicabilidade no

Código Civil.

Para que se tenha segurança, não seria necessário vedar o uso da equidade, até porque

ela existe como forma de eliminar a desigualdade. Difícil também é falar que bastaria ter a

equidade e resolvido estaria o problema da isonomia. Talvez, por meio dela, teríamos outro

problema, que é o da previsibilidade e o da segurança jurídica. Pensamos que, dentro do nosso

sistema jurídico, a liberdade do juiz deve ficar adstrita não à sua consciência, mas à

Constituição Federal.

Ao estudarmos a interpretação do direito, verificamos que várias podem ser as

interpretações extraídas de uma norma. Não apenas por conta do método de interpretação

utilizado, como também por influência de fatores externos.

Podemos dizer que o juiz analisará os fatos, buscará na norma jurídica os fundamentos

para o caso e, após essa análise, chegará ao resultado final que é a sentença.

Ocorre que isso é uma doce ilusão, ou no dizer de Marinoni348, não passa de pura

ingenuidade. O processo de elaboração de uma decisão judicial é inverso. Ele analisa o caso

concreto, tira sua própria convicção e, após isso, procura dentro do sistema legal fundamentos

para dar suporte à sua decisão. E isso decorre da influência externa que o ser humano sofre

(senso comum, religião, experiência de vida etc)349, mas que pela letra da lei não deveria

sofrer.

O sistema não deveria ser assim. O juiz não age com discricionariedade. Ele deve agir

nos termos da lei e da Constituição. A margem de atuação que lhe sobra decorre da margem

interpretativa da lei face aos princípios constitucionais.

delineia-se com evidência a distinção entre ‘dever de conteúdo vinculado’ e ‘dever de conteúdo discricionário’”. (p. 498 – grifos no original)

348 MARINONI, Luiz Guilherme. Prova. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 37 349 TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Aula inaugural proferida na

UFPR em 05 de março de 2001. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco.

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118 Assim, ao analisarmos alguns dos dispositivos processuais (seja civil, seja penal)

verificaremos que não há discricionariedade. Como exemplo, citamos a concessão de tutela

antecipada350.

Voltando para Montesquieu, a ideia da criação de sistemas jurídicos baseados em leis

e a codificação iniciada na França e espalhada por toda Europa continental serviam de base

para que o juiz na resolução dos casos aplicasse o que já havia sido estabelecido de forma

abstrata. Desta forma, a função do juiz é aplicar a lei abstrata aos casos concretos,

interpretando o direito. Não pode o juiz ignorar as normas, sob pena de se criar “a ditatura

judiciária, o absolutismo da toga”351. A liberdade do julgador não é plena. É condicionada,

ou seja, é exercida “dentro dos limites do conteúdo de Direito que se encontra nos textos” 352.

Mesmo quem usa o termo discricionariedade não o aplica no mesmo sentido dado ao direito

administrativo353.

Desta feita, considerando que as leis possuem textos abstratos, cabe ao juiz, antes de

julgar, interpretá-las, o que dá margem para que, numa mesma situação, haja decisões

diferentes. Vale aqui destacar as palavras de Piero Calamandrei ao falar como nascem as

decisões judiciais:

Na origem delas há sempre um procedimento indutivo: um remontar-se do caso singular a um juízo que se supõe ser de caráter geral. As leis, embora se afirme que o ordenamento jurídico não tem lacunas, não podem prever pontualmente todos os casos que a realidade, muito mais rica que a mais febril imaginação, suscita perante o juiz: de maneira que também no sistema

350 “[...] 3. O conhecimento das questões de ordem pública – art. 267, §3o do Código de Processo Civil – não

constitui uma faculdade conferida ao julgador, mas um poder-dever de que se pronuncie sobre a existência das condições da ação e dos pressupostos de desenvolvimento válido do processo. Não o fazendo, o juiz incorre em omissão sanável via embargos declaratórios. [...]”. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 556). Ainda: “[...] Presentes as condições que ensejam o julgamento antecipado da causa, é dever do juiz, e não mera faculdade, assim, proceder. [...]" (STJ. 4ª T. REsp 2.832-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j 14.08.1990)

351 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 108

352 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 105

353 Quando se fala em discricionariedade judicial “no se piensa tanto en un régimen dentro del cual el magistrado puede actuar aun contra la prueba de autos, sino más bien en un método de liberación no es un mero arbitrio, sino un margen mayor de amplitud que el que es habitual en el sistema de nustros países; peo se halla, en todo caso, gobernado por ciertas normas lógicas y empíricas, que deben también exponerse en los fundamentos de la sentencia” (COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1969, p. 274-275). Também Emilio Betti usa o termo discricionariedade, mas o distingue da discricionariedade do legislador e do administrador. Este admite uma atuação discricionária nos juízos de equidade. Novamente, como destacado acima, não se pode confundir interpretação e aplicação da lei com discricionariedade. BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 73-88.

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119

da legalidade toda lei permite ao juiz uma certa margem de discricionariedade, dentro da qual ele vem a ser, mediante a interpretação e aplicação, ainda que não o perceba e desde que se mantenha dentro daquelas margens, criador de direito. Quando se diz que no sistema da legalidade o juiz não é mais que um intérprete da lei, não se deve crer que ele não seja mais que o porta-voz inanimado e mecânico da lei, la bouche de la loi, como queria Montesquieu; ao contrário, a lei, mesmo a mais precisa e minuciosa, deixa ao juiz não só na reconstrução do fato, mas também na busca da relação que medeia entre o fato e o preceito jurídico, um certo âmbito de movimento e de escolha dentro do qual o juiz não só pode, mas deve buscar a resposta, mas que na lei, e sua própria consciência. A sentença não surge diretamente da lei: surge da consciência do juiz, estimulada por múltiplos motivos psicológicos entre os quais a lei constitui o mais importante, mas não o único [...] Não há norma, pode-se dizer, que não permita ao juiz um certo ar de liberdade criadora: o sistema da legalidade não é a abolição do direito livre, e sim a redução, o racionamento dele dentro das gavetas da lei354.

Todavia essa interpretação deve ser harmonizada pelos Tribunais superiores. É preciso

haver coerência dentro do sistema jurídico. É óbvio que haverá pontos de discórdia entre as

pessoas sobre vários assuntos e haverá possíveis interpretações da Constituição Federal e das

leis sobre temas polêmicos, mas apenas uma delas é que deve prevalecer.

O juiz, ao julgar, não fica vinculado, como regra, a decisões anteriores suas ou de

outro Tribunal355. Muitos hoje criticam a possibilidade de decisões conflitantes sobre um

mesmo tema, descrevendo que isso levaria ao descrédito do Judiciário, o que de fato não pode

ser ignorado. Parece-nos, todavia, que o julgador também não pode perder sua função

constitucional de resolver o caso concreto, sob pena de se tornar um autômato356. O grande

problema surge justamente com relação aos litígios de massa: pode um determinado tributo

ser considerado constitucional para um e inconstitucional para outro? Pode a tarifa básica de

354 CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. vol. 3. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2003, p.

207-208 355 “Gino Gorla parecchi anni or sono sottolineava la peculiare ambiguità dialettica sottesa alla tematica del

precedente giurisprudenziale, scrivendo che il principio di certezza garantito da una prassi ispirata allo stare decisis << deve essere combinato o armonizzato con quello di una certa libertà di interpretazione in ogni giudice o collegio giudicante, e così con l'esigenza dello sviluppo o progresso e moto del diritto nel detto momento interpretativo >>”. (CHIARLONI, Sergio. Efficacia del precedente giudiziario e tipologia dei contrasti di giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano XLIII, vol. 1. Milão: Giuffrè, 2007, p. 118)

356 “A contrário do que pode parecer à primeira vista, as divergências que surgem entre sentenças relativas às mesmas questões de fato e de direito, longe de revelarem a fragilidade da jurisprudência, demonstram que o ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador. Como veremos, as divergências mais graves, que ocorrem no exercício da jurisdição, encontram nela mesma processos capazes de atenuá-las, quando não de eliminá-las, sem ficar comprometida a força criadora que se deve reconhecer aos magistrados em sua tarefa de interpretas as normas, coordená-las, ou preencher-lhes as lacunas. Se é um mal o juiz que anda à cata de inovações, seduzido pelas “últimas verdades”, não é mal menor o julgador que se converte em autômato a serviço de um fichário de arestos dos tribunais superiores”. (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 168)

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120 telefonia ser considerada legal para um e ilegal para outro? Os expurgos inflacionários

decorrentes de depósitos em cadernetas de poupança devem ser pagos a uns e não a outros?

Haveria razão lógica para essa distinção? Será que o juiz não deve observar as decisões dos

tribunais, nas questões que envolvam a simples interpretação e aplicação da quaestio juris?357.

Esses casos, praticamente idênticos, deveriam ser tratados de modo uniforme, razão pela qual

a utilização do processo coletivo poderia resolver o problema, sob pena de até mesmo

transformar o juiz noutra coisa que não um julgador, pois a ele caberia apenas repetir o que já

foi decidido (por ele ou pelos tribunais)358.

A ideia de se seguir o posicionamento consolidado dos tribunais evita a proliferação

de demandas359, pois as partes já saberão qual será o resultado do litígio. Para isso, seria

necessário que as próprias Cortes Superiores obedecessem a seus próprios precedentes e,

quando do julgamento de forma distinta, demonstrassem juridicamente o porquê da decisão

diferenciada.

Aos juízes inferiores, verificando a uniformidade da interpretação e aplicação da lei

pelos Tribunais, caberia a análise do caso concreto em confronto com a lei e, subsidiados pelo

posicionamento dos Tribunais, julgar o caso, adotando o posicionamento já exarado

anteriormente, salvo se o momento histórico, político, econômico, social ou a realidade do

caso fosse distinta, a justificar decisão noutro sentido.

357 “[...] quando uma mesma regra ou princípio é interpretado de maneira diversa por Juízes ou Tribunais em

casos iguais, isso gera insegurança jurídica, pois, para o mesmo problema, uns obtêm e outros deixam de obter a tutela jurisdicional. [...] se é necessário assegurar aos juízes liberdade para interpretar o Direito, essa liberdade não pode ser absoluta, porque dá margem à existência do fenômeno da jurisprudência lotérica, o qual compromete a legitimidade do exercício do poder jurisdicional pelo Estado-Juiz”. (CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais. vol. 786. RT: São Paulo, 2001, p. 108 e ss.)

358 Ciente dessa situação a reforma legislativa criou a improcedência liminar da demanda (art. 285-A), mas não resolveu o problema quando o juiz já tenha julgado procedente diversas demandas anteriores.

359 “[...] quando se ‘descobriu’ que a lei é interpretada de diversas formas, e, mais visivelmente, que os juízes do civil law rotineiramente decidem de diferentes modos os ‘casos’ iguais, curiosamente não se abandonou a suposição de que a lei é suficiente para garantir a segurança jurídica. Ora, ao se tornar incontestável que a lei é interpretada de diversas formas, fazendo surgir distintas decisões para casos iguais, deveria ter surgido, ao menos em sede doutrinária, a lógica conclusão de que a segurança jurídica apenas pode ser garantida frisando-se a igualdade perante as decisões judiciais, e, assim, estabelecendo-se o dever judicial de respeito aos precedentes. [...] A advertência de que a lei é igual para todos, que sempre se viu escrita sobre a cabeça dos juízes nas salas do civil law, além de não mais bastar, constitui piada de mau gosto àquele que, em uma das salas do Tribunal e sob tal inscrição, recebe decisão distinta a proferida – em caso idêntico – pela Turma cuja sala se localiza metros mais adiante, no mesmo longo e indiferente corredor do prédio, que antes de tudo, deveria abrigar a igualdade de tratamento perante a lei”. MARINONI, Luiz Guilherme. A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 9

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121 5.2 A necessidade de obediência aos posicionamentos dos Órgãos Judiciais

Superiores

A ausência de uniformidade na interpretação e aplicação do direito gera incerteza e

insegurança jurídica360, sem falar na ausência de isonomia. Isso causa descrédito do Judiciário

frente aos jurisdicionados. Advogados não são capazes de afirmar com precisão qual será o

resultado de determinadas demandas em razão da ausência de posicionamento uniforme sobre

a aplicação das leis.

Considerando que nosso sistema constitucional atribuiu grande parte da competência

legislativa à União, compete aos Tribunais Superiores a uniformização da aplicação das

normas federais. Assim agindo, os juízes e Tribunais inferiores também devem seguir o

posicionamento exarado pelas Cortes Superiores, não por conta de uma força vinculante de

precedentes, mas por uma questão hierárquica, visando à própria lógica do sistema361. Mesmo

nos países de common law, nos quais há a existência de precedentes, não se fala em

vinculatividade, podendo os juízes julgar de forma diferente do que foi decidido no caso

anterior (por meio do overruling ou do distinguishing), mas isso deve ser feito de forma

justificada. Mesmo após 1966, quando a House of Lords na Inglaterra afirmara que poderia

deixar de obedecer seus precedentes, ela ainda os obedece362.

Nosso sistema não pode ser interpretado como se o juiz e o tribunal pudessem chegar à

conclusão que bem entendessem, para somente após anos de tramitação do processo a questão

ser pacificada pelas Cortes Superiores. Se já era sabido desde o início que a interpretação do

360 “Pronunciamentos diversos sobre teses idênticas proporcionam uma excessiva insegurança ao jurisdicionado,

porque concretizam a idéia de mais de um direito possível a reger uma mesma hipótese fática”. (VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 198)

361 Vale destacar, todavia, entendimento contrário, dentre outros, de Carlos Maxiliano, que tece críticas ao que ele chama de subserviência intelectual: “Aos magistrados que acham meritório não ter as suas sentenças reformadas (prova apenas de subserviência intelectual) e seguem, por isso, de modo absoluto e exclusivo, a orientação ministrada pelos acórdãos dos tribunais superiores, Pessina recorda o verso de Horário: os demasiado cautos e temerosos da procela não se alteriam ao prestígio, nem à glória: arrastam-se pela terra, como serpentes – serpit humi tutus mimium timidusque procellae”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 225)

362 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 85. De acordo com palestra proferida por Neil Andrews na PUC em maio/2012 no lançamento de uma de suas obras, desde 1966 apenas 29 vezes a mais alta corte deixou de seguir seus próprios precedentes. Vale destacar, todavia, a afirmação de Ada Pelegrini Grinover, de que o sistema do stare decisis obriga o próprio tribunal à sua observação, o que, como vimos, não acontece no direito inglês. (GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo – estudos e pareceres. 2. ed. São Paulo: DPJ, 2009, p. 30)

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122 STJ ou do STF para aquela situação específica era uma, o juiz não poderia julgar de forma

diferente. O mesmo vale em relação ao Tribunal local. Não é razoável nem isonômico que

uma pessoa obtenha a tutela jurisdicional de plano e outra pessoa, num caso idêntico, somente

obtenha a tutela jurisdicional se conseguir chegar até a Corte Superior363.

Não fossem apenas a demora e a exigência de dispêndio na condução do processo, há

ainda a sobrecarga desnecessária dos Tribunais.

Antonio Joaquim Ribas já afirmara que é uma lógica do sistema, decorrente da

estruturação hierárquica do Judiciário, a existência de força das decisões das Cortes

Superiores sobre as inferiores364. Isso ocorre para que os órgãos inferiores adotem a opinião

dos superiores, evitando-se assim uma “luta estéril em prejuízo das partes”365.

5.3 A insegurança gerada pela ausência de harmonização da jurisprudência

A ausência de decisões harmônicas dentro de um mesmo Tribunal gera crise na

aplicação do direito, pois podemos até mesmo falar que, em decorrência da contrariedade, não

há jurisprudência do Tribunal sobre determinados assuntos. Isso porque o próprio termo

Jurisprudência significa conjunto harmônico de julgados de um Tribunal num mesmo sentido.

Nos dizeres de Carlos Maximiliano, “chama-se jurisprudência, em geral, - ao conjunto das

soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito; relativamente a um caso particular,

denomina-se jurisprudência – a decisão constante e uniforme dos tribunais sôbre

determinado ponto de Direito”366. Se não há uniformidade, não pode haver jurisprudência.

363 Mesmo Cappelletti, que afirma ter o juiz poder criativo do direito em razão de sua interpretação, utilizando-

se, inclusive do termo “discricionariedade”, destaca que essa criatividade irá sendo reduzida pela cristalização da regra do stare decisis (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 85)

364 Apud TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004

365 TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 44.

366 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 217

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123 Isso é algo complicado, mas real dentro do sistema brasileiro e também verificado no sistema

italiano, conforme demonstra Michele Taruffo367.

Na evolução da palavra jurisprudência e num sentido atécnico verificamos que ela não

é utilizada apenas para designar o conjunto harmônico de julgados, mas para designar

julgados harmônicos ou não. De acordo com Rodolfo de Camargo Mancuso, o termo

jurisprudência, no seu sentido técnico processual, deve ser entendido como “a coleção

ordenada e sistematizada de acórdãos consoantes e reiterados, de um certo tribunal, ou de uma

dada Justiça, sobre um mesmo tema jurídico”368. Todavia, por ser um termo equívoco, há

outras acepções para ela:

[...] a) num sentido largo, corresponde ao que usualmente se denomina “ciência do direito”, ou seja, o ramo do conhecimento, espécie do gênero Ética, voltado ao estudo sistemático das normas de conduta social de cunho coercitivo (nesse sentido, na Itália, algumas Faculdades de Direito se chamam “Facoltà di Giurisprudenza”, como se dá, v.g., em Florença); b) etimologicamente, vem a ser o Direito aplicado aos casos concretos pelos operadores do Direito – advogados, juízes, promotores de justiça, árbitros, conciliadores – como na antiga Roma se dava com os prudentes, agentes estatais então investidos do jus respondendi; c) sob o ângulo exegético, ou hermenêutico, pode ainda significar a interpretação teórica do Direito, feita pelos jurisconsultos e doutrinadores (juristas) em artigos, teses, livros ou mesmo pareceres, sem, portanto, necessária afetação a um caso concreto, acepção essa que hoje aparece assimilada à palavra doutrina; d) sob o ângulo da distribuição da justiça, tem a ver com a imensa massa judiciária, a somatória global dos julgados dos Tribunais, harmônicos ou não, ou seja, a totalização dos acórdãos produzidos pela função jurisdicional do Estado369.

Em decorrência da utilização do termo jurisprudência em seu sentido atécnico é que

alguns falam em jurisprudência dominante, jurisprudência minoritária, pacífica.

A ausência de uniformização entre os julgados de um mesmo tribunal pode decorrer

de vários fatores, dentre os quais podemos destacar a utilização de elementos linguísticos

polissêmicos, de expressões abertas existentes nas leis, de alta carga axiológica, capazes de

367 TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI,

vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 713-714 368 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT,

2010, p. 42 (grifos no original) 369 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT,

2010, p. 41-42 (grifos no original)

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124 levar o intérprete para direções diversas370, assim como a existência de mais de uma câmara

julgando a mesma matéria etc371.

O próprio sistema normativo está ciente da possibilidade de decisões conflitantes e

prevê a utilização de remédios para eliminar as divergências que porventura possam existir

entre decisões que julguem casos semelhantes (recurso especial em razão de divergência

jurisprudencial, embargos de divergência, incidente de uniformização de jurisprudência).

O que o sistema processual não permite é que casos idênticos sejam julgados de forma

distinta, sob pena de serem feridos princípios constitucionais, dentre os quais podemos citar a

segurança jurídica e a isonomia372.

O legislador previu a possibilidade de decisões conflitantes e, por isso, previu também

ferramentas para eliminar as eventuais divergências surgidas, justamente para evitar que a

decisão, ao final, dependa da sorte das partes no momento da distribuição da petição para esta

ou aquela Vara.

A Constituição da República de 1891 já previa a obediência à jurisprudência. O art.

59, § 2º, mandava a justiça federal consultar a jurisprudência dos tribunais estaduais e, estes a

jurisprudência dos tribunais federais quando tivessem que interpretar leis federais373. A ideia

de uniformização da interpretação da lei é antiga e não está ligada apenas aos países que

adotam precedentes374.

A problemática surge pela forma como se trazem acórdãos como fundamentos para as

petições e para as decisões judiciais. Simplesmente são feitas consultas a ementas, 370 Basta lembrarmos da existência de termos como dignidade da pessoa humana, boa-fé objetiva etc. 371 Não se pode deixar de mencionar a influência psicológica sofrida pelo juiz em razão do meio em que vive, no

que tange aos aspectos políticos, culturais e econômicos que, apesar de não fazerem parte da forma com a qual o magistrado deve proferir seus julgados, acaba por influenciar sua decisão. Não nos cabe, contudo, o aprofundamento sobre esse tema.

372 “[...] decisioni successivamente contrastanti contravvengono al principio di uguaglianza nel contravvenire al principio di coerenza, cosicché sembra doversi consentire con l'osservazione di recente avanzata che <<uguaglianza e (ossequio del) precedente rappresentano, rispettivamente, il profilo spaziale e il profilo temporale del più largo principio normativo della coerenza>>” (CHIARLONI, Sergio. Efficacia del precedente giudiziario e tipologia dei contrasti di giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano XLIII, vol. 1. Milão: Giuffrè, 2007, p. 121)

373 Art. 59 “[...] § 2º - Nos casos em que houver de aplicar leis dos Estados, a Justiça Federal consultará a jurisprudência dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos Estados consultarão a jurisprudência dos Tribunais Federais, quando houverem de interpretar leis da União”.

374 “A jurisprudência é a fonte mais geral e extensa de exegese, indica soluções adequadas às necessidades sociais, evita que uma questão doutrinária fique eternamente aberta e dê margem a novas demandas: portanto diminue os litígios, reduz ao mínimo os inconvenientes da incerteza do Direito, porque de antemão faz saber qual será o resultado das controvérsias” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 221)

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125 esquecendo-se do caso por detrás que serviu de base para aquela decisão. Muitas vezes ocorre

a utilização de julgados em épocas completamente distintas, para demonstrar a existência de

um posicionamento que já foi superado há muito pelo Tribunal. Estes são alguns dos

problemas que ocasionam uma desarmonia no sistema. Mas isso também não é assunto novo.

Carlos Maximiliano já havia alertado sobre esse problema:

Em virtude da lei do menor esfôrço e também para assegurarem os advogados o êxito e os juízes inferiores a manutenção das suas sentenças, do que muitos se vangloriam, preferem, causídicos e magistrados, às exposições sistemáticas de doutrina jurídica os repositórios de jurisprudência. Basta a consulta rápida a um índice alfabético para ficar um caso liquidado, com as razões na aparência documentadas cientìficamente. Por isso, os repertórios de decisões em resumo, simples compilações, obtêm esplêndido êxito de livraria375.

Pior ainda ficamos hoje na era da informática, em que bastam alguns cliques para

obtermos emendas dos mais diversos tribunais do país e que bastam mais alguns comandos

para inseri-los nas peças processuais, sem que haja qualquer real trabalho de análise sobre a

similitude ou não entre os casos, causando sérios riscos de distorção do entendimento dos

tribunais376. Acrescenta-se a isto a problemática, por vezes existente nos enunciados de

súmulas que, por vezes, não condizem com seus precedentes (a exemplo das Súmulas 214 e

375 do STJ).

5.3.1 A demora na resolução de causas controversas pelos tribunais superiores como

geradora do aumento do número de demandas

Não fossem apenas as deficiências do sistema de tutela coletiva de direitos individuais

homogêneos e a ausência de harmonização da jurisprudência, há demandas que versam sobre

litígios de massa que são paradigmáticas, mas ficam anos aguardando para serem julgadas.

Vejamos alguns exemplos:

375 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941,

p. 223 376 Continua o doutrinador criticando o processo de simples cópia de julgados sem qualquer critério: “O

processo é erradíssimo. Os julgados constituem bons auxiliares de exegese, quando manuseados criteriosamente, criticados, comparados, examinados à luz dos princípios, com os livros de doutrina, com as exposições sistemáticas do Direito, em punho. A jurisprudência, só por si, isolada, não tem valor decisivo, absoluto. Basta lembrar que a forma tanto os arestos brilhantes, como as sentenças de colégios judiciários onde reinam a incompetência e a preguiça [...] Logo, a citação mecânica de acórdãos não pode deixar de conduzir a erros graves”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 224)

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126 Muito ainda se discute sobre a desaposentação, apesar de haver posicionamento do

STJ pela possibilidade de as pessoas aposentadas que continuarem trabalhando e recolhendo

contribuições previdenciárias requerer a renúncia e realização de novo cálculo de

aposentadoria, incluindo nesse cálculo as novas contribuições.

Numa das teses, discute-se sobre a possibilidade de o aposentado renunciar seu direito

à aposentadoria para que sejam feitos novos cálculos levando-se em consideração as

contribuições previdenciárias posteriores à concessão do benefício. Também se discute sobre

necessidade de devolução ou não dos valores recebidos.

No STJ já há posicionamento sobre a possibilidade de renúncia à aposentadoria, sem

que haja necessidade de devolução dos valores percebidos.

Mas até que o STJ firmasse entendimento nesse sentido, o TRF da 3ª Região entendia

que aqueles que tivessem se aposentado e que continuassem trabalhando não teriam direito a

renunciar a aposentadoria para a realização de cálculo de novo benefício. No TRF da 4ª

Região, por outro lado, entendia-se que o aposentado teria o direito de renunciar o benefício

recebido, só que para isso teria que devolver todas as contribuições recebidas. Em São Paulo,

o TRF chegou até a admitir a aplicação pelos juízes do art. 285-A377.

Apesar de esses tribunais se renderem ao posicionamento do STJ, que já exarara

posicionamento em favor dos segurados em 2005378 (há mais de sete anos), verifica-se que na

5ª Região ainda são encontrados julgados em sentido contrário ao do STJ379.

Mais recentemente, diante da divergência do posicionamento da Turma Nacional de

Uniformização verificada nos autos 0503644-88-2007.4.05.8400, que se originaram da 7ª

Vara do Juizado Especial Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, houve

interposição de pedido de uniformização perante o STJ (Pet. 9.231-DF)380, distribuído ao

377 TRF 3ª Região, Autos nº. 0000484-64.2008.4.03.6127, rel. Des. Márcia Hoffmann, j. 02.08.2010. 378 STJ. 6ª Turma. REsp. 692.628-DF, rel. Min. Nilson Naves, j. 17.05.2005, v.u. Apesar desse primeiro

precedente tratando do regime geral de previdência, verifica-se que apenas em 2008 a 6ª Turma aderiu a esse entendimento (3 anos depois) – REsp. 557.231-RS, rel. Min. Paulo Gallotti, j. 08.04.2008, v.u.

379 2ª Turma, Autos nº 0006986-19.2011.4.05.8500, rel. Des. Francisco Barros Dias, j. 26.06.2012; 4ª Turma, Autos nº. 0008834-59.2011.4.05.8300, rel. Des. Ivan Lira de Carvalho, j. 19.06.2012; 1ª Turma, Autos nº. 0003287-29.2011.4.05.8400, rel. Des. Francisco Cavalcanti, j. 31.05.2012.

380 STJ. Pet. 9.231-DF, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 19.06.2012.

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127 Exmo. Min. Napoleão Nunes, que determinou a suspensão de demandas que tratam de

desaposentação, nos termos do art. 2º da Resolução 10 de 2007381.

Apesar de já haver posicionamento do STJ firme no sentido da possibilidade de

desaposentação sem devolução de valores, encontra-se pendente no STF o RE 381.367-RS.

Esse recurso foi distribuído em 15.04.2003 no STF. No mesmo ano houve substituição o

relator (Exmo. Sr. Min. Marco Aurélio), que proferiu seu voto em sessão de 16.09.2010.

Após, o Exmo. Sr. Min. Dias Toffoli pediu vista e ainda não proferiu voto. Em suma, já se

foram quase 10 anos de indefinição judicial. Enquanto isso o STJ vem tentando uniformizar o

entendimento nacional, que poderá até ser alterado com a decisão do STF. Se já houvesse

posicionado no sentido de cabimento da desaposentação, todos aqueles que continuam

trabalhando e recolhendo contribuição social poderiam fazer seus pedidos de desaposentação

administrativamente. Se, por outro lado, a decisão do STF fosse pela improcedência de tal

direito, as pessoas deixariam de ajuizar as demandas, pois os advogados já orientariam seus

clientes sobre o insucesso da demanda.

Outra questão que também envolve milhares de processos é a correção dos ativos que

estavam depositados em cadernetas de poupança e sofreram correção a menor que a inflação

(expurgos inflacionários). No STF pende de julgamento os RE 591.797 e RE 626.307. O

primeiro dos recursos foi distribuído no STF em 13.08.2008. Quase dois anos após foi

reconhecida a repercussão geral do recurso (16.04.2010) e em 27.08.2010 houve a suspensão

de todos os demais processos que estejam tramitando e que versem sobre o tema objeto de

discussão. Não obstante, mais dois anos se passaram sem que tenha ainda sido resolvida essa

controvérsia382.

É preciso que haja prioridade no julgamento dos recursos representativos de

controvérsia, pois a manutenção de julgamentos dessas causas traz instabilidade e causa

abarrotamento desnecessário de demandas perante o judiciário. Não podemos nos esquecer da

existência do princípio constitucional da razoável duração do processo, que decorre do

próprio art. 5º, XXXV, e que agora se encontra expressamente previsto. A manutenção da

demora em se julgar recursos paradigmáticos pelo próprio Judiciário acaba por sobrecarregar

381 Art. 2º. “Admitido o incidente, o relator: I - poderá, de ofício ou a requerimento da parte, presentes a

plausibilidade do direito invocado e o fundado receio de dano de difícil reparação, deferir medida liminar para suspender a tramitação dos processos nos quais tenha sido estabelecida a mesma controvérsia; [...]”

382 O número de ações sobre o tema só não aumentou mais em razão do prazo prescricional para ajuizamento das ações.

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128 esse mesmo órgão, diante das inúmeras demandas que acabam sendo propostas todos os dias,

pois ninguém esperará haver uma decisão para ajuizar sua demanda. Os próprios advogados

orientação seus clientes a ajuizarem as demandas para que não percam sua pretensão pela

prescrição.

Infelizmente não temos informações sobre a grande quantidade de demandas ajuizadas

que estão tramitando aguardando uma definição que ainda não foi exarada pelos tribunais

superiores, o que dificulta ainda mais a sensibilização não só do STF, mas da sociedade e do

Legislativo, para que haja estipulação de prazos razoáveis para o julgamento de demandas

repetitivas.

No STJ o próprio tribunal se reuniu com representantes dos demais tribunais de

segundo grau e assinaram um acordo de cooperação para julgamento dos recursos repetitivos.

Ao final do encontro (realizado nos dias 26 e 27.06.2012) o Min. Ari Pargendler afirmou que

o STJ está buscando mecanismos para julgar os recursos repetitivos em até seis meses383.

5.4 A necessidade de estabilização da jurisprudência com fulcro na segurança

jurídica e isonomia

Atualmente vivemos num grande círculo vicioso: os advogados afirmam que, por

haver decisões no mesmo sentido da tese defendida, não lhes pode ser tolhido o direito de

recorrer. Os Tribunais, por sua vez, afirmam que há excesso de recursos384. Esse é um dos

fatores que levam a um grande número de demandas385.

Uma maior estabilização da jurisprudência diminuiria bastante o número de demandas,

ainda mais no tocante a causas repetitivas, além de servir de base para maior segurança

jurídica aos cidadãos e aumento de credibilidade do Judiciário.

383 http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106212 Acesso em

28.06.2012, às 8h00 384 Em 07.11.2011 o Min. Sidnei Benetti, no seminário em homenagem a Cândido Rangel Dinamarco, realizado

no Largo São Francisco afirmou que havia recebido 1.596 novos processos somente em outubro daquele ano. Que possuía 3.785 processos conclusos.

385 Como já dissemos, muitas são as causas que levam à enorme litigiosidade vivida atualmente pela sociedade. Não nos cabe neste trabalho descrever suas causas.

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129 Verifique-se a problemática hoje enfrentada: num eventual litígio coletivo para defesa

de direitos individuais homogêneos o julgador pode chegar ao final da demanda entendendo

que ela é improcedente. A decisão fará coisa julgada, mas não impedirá que os consumidores,

individualmente considerados, ajuízem demandas individuais para pleitear o mesmo objeto

que havia sido pleiteado na demanda coletiva. Os resultados das demandas individuais podem

ser dos mais variados, ocorrendo o mesmo nos tribunais. Se houvesse obediência a

precedentes, isso não ocorreria.

O ideal seria a realização de uma análise de semelhança com o caso pretérito já

julgado pelas cortes superiores. Não se pode simplesmente com base numa decisão qualquer

afirmar que ela sirva de parâmetro para outra, sob pena de vermos esse caos. É preciso que

haja um confronto analítico, nos moldes do existente para os recursos especiais fundados em

dissídio jurisprudencial e para os embargos de divergência. Aqui estaríamos numa situação

mais próxima da utilização de precedentes do que a realizada hoje. Basta lembrarmos de

alguns enunciados de súmulas que, diante da alta abstração de sua redação, acabam por dizer

uma coisa, quando na verdade deveriam dizer outra386.

É fundamental que não se cite simples trecho de ementa sem que haja um confronto

analítico da situação paradigmática com a atual, assim como também seria essencial que os

enunciados de súmulas fossem menos abstratos, sob pena de perpetuarmos o mencionado

círculo vicioso: os advogados recorrendo porque há decisões conflitantes e os Tribunais

386 A exemplo dos recursos que deram ensejo à edição da súmula 214 e 375 do STJ. Referidos recursos que

deram suporte à primeira súmula se referiam a aditamentos escritos, que não poderiam prejudicar o fiador que não participou dos aditamentos e no segundo, que diziam respeito à alienação sucessiva, na qual aquele que comprou bem de terceiro não poderia ser prejudicado, salvo prova de má-fé. Apesar dos precedentes servirem para casos específicos, a redação das súmulas acabaram por dar interpretação diversa para outros casos, como a desobrigação do fiador nos casos de renovação automática do contrato de locação, apesar de este ter se comprometido como garante até a entrega das chaves, com base em texto legal da Lei de Locações (art. 39). O mesmo se deu em relação à má redação do enunciado 375, afirmando que precisaria haver prova da má-fé do terceiro adquirente para constatação da fraude à execução, quando esta somente é necessária nos casos de alienações sucessivas. Sobre esse enunciado específico, consultar: FERRARI NETO, Luiz Antonio. Fraude contra credores vs. fraude à execução e a polêmica trazida pela súmula 375 do STJ. Revista de Processo. ano 36. vol. 195. São Paulo: RT, 2011. Vale acrescentar também a divergência surgida com o enunciado de súmula vinculante nº 4, haja vista que em decorrência de alguns casos houve uma generalização no texto, o que acabou por ficar em descompasso com a realidade. Se a proposta abaixo, elaborada pelo Min. Cesar Peluso fosse aprovada, talvez não gerasse o caos que gerou a referida súmula: “não pode o adicional de insalubridade, previsto no artigo 3º da Lei Complementar 432/85, do Estado de São Paulo, ser calculado sobre o total dos vencimentos ou da remuneração, a despeito da inconstitucionalidade do seu § 1º”. Conforme manifestação do Min. Cezar Peluso no RE 565.714.

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130 afirmando que correm o risco de julgar de forma equivocada diante da grande quantidade de

recursos387.

Justifica-se que eventuais equívocos possam decorrer da desumana carga de trabalho.

Há o risco diuturno de se cometer equívoco, ainda mais se eventual comparação com

posicionamento exarado anteriormente não estiver embasado na peculiaridade do caso

concreto anterior, que pode ser diferente do atual, o que demonstraria a necessidade da

diferença da decisão388.

Uma alternativa para a redução dessa litigiosidade seria a obediência aos

posicionamentos das Cortes Superiores, mas para isso é preciso que não haja divergência

entre elas e que elas mesmas também procurassem obedecer a seus posicionamentos

anteriores.

5.5 A ideia de se seguirem precedentes – a tendência no Brasil de adoção do sistema

de precedentes existente nos países de common law

5.5.1 Breve histórico sobre a formação dos precedentes no direito inglês

Já nos primeiros escritos sobre o sistema da common law, no século XIII, encontramos

na obra de Henri Bracton a preocupação com decisões judiciais conflitantes. Afirmava o

referido autor que casos análogos deveriam ser decididos de modo análogo389. Bracton era

juiz e, por isso, tinha acesso direto aos casos julgados. Ele tinha por hábito selecionar casos 387 Como observado por Lenio Streck, “[...] continuamos a achar que – e essa discussão vai além das súmulas

(vinculantes formalmente ou não) – é possível construir conceitos jurídicos (enunciados jurisprudenciais) aptos a prever todas as futuras hipóteses de aplicação. [...] como se a realidade coubesse no interior dos enunciados”. RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010 - prefácio

388 Para se ter uma ideia da carga de trabalho do Judiciário, de acordo com o relatório Justiça em Números, elaborado pelo CNJ, em 2010, cada juiz paulista recebeu, em média 1.903 novos processos para julgamento. No Rio de Janeiro, a quantidade foi ainda maior: 2.277 processos novos por magistrado em primeiro grau. A carga de trabalho acumulada em São Paulo média é de 9.300 processos. No Rio de Janeiro esse número sobe para 18.183. Ainda, de acordo com o relatório, cada magistrado paulista prolatou cerca de 1.384 sentenças, em média. Os magistrados cariocas, por sua vez, prolataram 3.436 sentenças. Fonte: CNJ: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relat_estadual_jn2010.pdf acesso em 13.02.2012, às 16h00

389 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 153-154

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131 julgados e guardar todas as peças processuais desses casos. De início, ele procurava fazer

relatórios sobre esses casos. Posteriormente, passou a escrever de forma crítica os casos,

tecendo suas considerações, visando a influenciar os julgadores da época390.

Não havia, no início do sistema de formação de precedentes, a ideia de vinculatividade

do caso anterior ao posterior, porém havia a ideia de se obedecer aos julgados anteriores para

gerar certeza e continuidade ao direito391 (“esse hábito objetivava apenas evitar transtornos

entre os próprios julgadores e o povo”)392. Ainda na evolução do sistema britânico, o juiz não

era obrigado a seguir a decisão anterior quando verificasse que a aplicação do precedente

afrontasse a razão ou a lei divina.

Para a resolução de casos importantes e complexos, os juízes das Cortes de Justiça

tinham o hábito de se reunir para a discussão desses casos. Isso ocorria desde a época em que

foram criadas diferentes Cortes de Justiça na Inglaterra.

Criara-se o procedimento de serem enviados à Exchequer Chamber (“Câmara

Exchequer”) os casos mais complicados, para que os juízes, nas reuniões realizadas nessa

Corte, decidissem o caso por maioria. Após isso, devolviam os casos às Cortes de origem para

que estas julgassem, aplicando o entendimento exarado anteriormente pela Exchequer

Chamber393.

Coke, também juiz, no final do século XVI chegou a afirmar, contudo, que a

obrigatoriedade de se obedecer a precedentes poderia levar a inconvenientes394.

A partir do início do século XIX é estabelecida a ideia de vinculação absoluta

aos precedentes judiciais. Em 1861, a House of Lords estabeleceu, no caso Beamisch vs

Beamisch que a própria Corte estaria obrigada a acatar seus precedentes, como forma de

390 “O mais importante foi que Bracton conseguiu influenciar os juristas da época a fazerem uso dos casos já

decididos ao pleitearem perante as Cortes de Justiça. Esses juristas dirigiam-se ao rei ou ao juiz mencionando a forma como um caso semelhante ao que estava em questão havia sido julgado anteriormente. O julgado não era compelido a julgar da mesma forma, mas sentia-se influenciado a fazê-lo. Era quase o início da era do Case Law”. (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 111-112)

391 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 154 392 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 113 393 “Em 1483, numa das decisões tomadas por maioria pela Câmara Exchequer, o Juiz-Chefe, ao pronunciar o

julgamento, explicou que, apesar de discordar da decisão da Câmara, ele era obrigado a adotar a opinião da maioria”. (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 115)

394 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 116

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132 evitar afronta à separação dos Poderes . Em 26 de julho de 1966, o Lord Chancellor

(Gardner), em conjunto com os demais Lords, pronunciou a Practice Statement of Judicial

Precedent, afirmando que a Corte não ficaria mais vinculada aos seus próprios precedentes.

Afirmou-se na ocasião que a aderência rígida aos precedentes pela própria Corte poderia levar

a injustiças, além de restringir o desenvolvimento da lei. Isso gerou polêmica na época em

razão da própria ideia de vincular a Corte aos seus próprios precedentes, evitando que o

Judiciário invadisse esfera do Legislativo395.

5.5.2 Breve histórico sobre a formação dos precedentes no direito brasileiro

No direito brasileiro, a ideia de seguir precedentes também não é nova. Ainda na

época do Brasil Colônia, havia nas Ordenações Filipinas a previsão de assentos. Em 1769, a

Lei da Boa Razão previu que os assentos aprovados pelas Relações poderiam ter força

vinculante, mas desde que aprovados pela Casa de Suplicação de Lisboa. Em 10 de maio de

1808, foi conferida à Relação do Rio de Janeiro o status de Casa de Suplicação do Brasil, com

poderes para aprovar assentos396. Em 23 de outubro de 1875, foi aprovado o Decreto

Legislativo 2.684, prevendo a possibilidade de o então Supremo Tribunal de Justiça aprovar

assentos com eficácia vinculante397. O regime de assentos vigorou até a proclamação da

República.

Apesar disso, podemos destacar que o Decreto 23.055 de 9 de agosto de 1933, previa

em seu artigo primeiro que “As justiças dos Estados, do Distrito Federal e do Território do

395 Como mencionado acima, não obstante essa decisão, a mais alta corte inglesa ainda procura seguir seus

precedentes, sendo que de 1966 até 2011 houve apenas 29 casos em que o precedente não foi seguido. 396 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do Estado e da Constituição. Direito

constitucional positivo. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 522. 397 Art. 2º “Ao Supremo Tribunal de Justiça compete tomar assentos para a inteligência das leis civis, comerciais

e criminais, quando na execução delas ocorrerem dúvidas manifestadas por julgamentos divergentes havidos no mesmo Tribunal, Relações e Juízos de primeira instância nas causas que cabem na sua alçada”. § 1º “Estes assentos serão tomados, sendo consultadas previamente as Relações”. § 2º “Os assentos serão registrados em livro próprio, remetidos ao Governo Imperial e a cada uma das Câmaras Legislativas, numerados e incorporados à coleção das leis de cada ano; e serão obrigatórios provisoriamente até que sejam derrogados pelo Poder Legislativo”. § 3º “Os assentos serão tomados por dois terços do número total dos Ministros do Supremo Tribunal de Justiça e não poderão mais ser revogados por esse Tribunal”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 43)

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133 Acre devem interpretar as leis da União de acôrdo com a jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal”.

Em que pese encontrarmos no histórico do direito pátrio hipóteses de vinculatividade

de decisões judiciais, constata-se que nosso direito repele a ideia de precedentes

vinculantes398.

Verifica-se, entretanto, uma volta à tendência de obediência aos precedentes. Afirma

Cappelletti que vem se atenuando a diferença entre civil law e common law399. Leonardo

Greco diz que há uma tendência crescente na aproximação dos dois sistemas e que isso

decorre “da crescente perda de credibilidade ou de confiança da sociedade na sua justiça”400.

Isso faz com que haja uma busca no outro sistema por mecanismos capazes de atender aos

anseios da sociedade.

Já não há grande distinção, como ocorria no passado entre as famílias da civil law e da

common law401. Mencionava-se que o sistema da common law era fundado com base nos

precedentes, não havendo lei, e os juízes julgavam os casos tendo por base o que fora

decididos noutros casos semelhantes anteriores, sendo que esses casos anteriores apenas

declaravam402 o costume403 local. E para os países da Europa continental, mencionava-se que

o direito era baseado num sistema de leis404.

398 TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do

Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 46 399 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris, 1993, p. 123-124 400 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil. vol. I. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 3 401 Não há dúvida que o papel do atual juiz do civil law, e especialmente o do juiz brasileiro, a quem é deferido o

dever-poder de controlar a constitucionalidade da lei no caso concreto, muito se aproxima da função exercida pelo juiz do common law, especialmente a da realizada pelo juiz americano. Acontece que, apesar da aproximação dos papéis dos magistrados de ambos os sistemas, apenas o common law devota respeito aos precedentes”. MARINONI, Luiz Guilherme. A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 8

402 Grande foi a discussão na Inglaterra sobre se os juízes declaravam o direito decorrente dos costumes ou se eles, juízes criavam o direito. Vale aqui a célebre frase de Jeremy Bentham, que era a favor de um sistema legal como o existente na França e criticava a forma como as normas surgiam no Reino Unido: “It is the judges (as we have seen) that make the common law. Do you know how they make it? Just as a man makes law for his dog. When your dog does anything you want to break him of, you wait till he does it, and them beat him for it. This is the way you make laws for your dog: and this is the way the judges make law for you and me”. (BENTHAM, Jeremy. The works of Jeremy Bentham. vol 5. Edimburgo: Simpkin, Marshall & Co, 1838, p. 235). Descrevendo a discussão sobre se os juízes exerciam tarefa constitutiva ou declarativa: MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 24-33

403 Vale destacar uma crítica à ideia de que a common law seja baseada em costumes: “Para a Common Law, os costumes são geralmente mencionados como ‘fontes históricas’ de direito. É como se os costumes fossem os ‘ancestrais’ das lei. Entretanto, como afirmam Slapper & Kelly, essa não passa de uma visão romântica da Common Law. É ‘bonito’ dizer que a lei evolui dos costumes porque assim a lei é vista como a vontade do povo – uma forma de democracia. No entanto, a própria história da Common Law contraria esse

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134 Na evolução do direito verificamos que a Europa continental, foram criadas grandes

codificações405. A criação dessas codificações acabou causando uma ruptura com o direito

romano da época clássica406.

Hoje, todavia, verificamos que já não é tão simples a diferenciação entre os dois

sistemas. Discute-se sobre uma aproximação entre os sistemas de civil law e common law407 e

até mesmo sobre a impossibilidade de se falar atualmente em sistemas de civil law408 e

common law409, ante as peculiaridades dos países oriundos de cada um dos sistemas410.

ensinamento. Na maioria das vezes, as leis saíam da Corte Real para serem obedecidas por todos. Basta lembrar o conceito dado por Hall à Common Law: ‘(...) a lei estabelecida pela Corte do Rei, comum a todo homem livre (...), quer queiram, quer não’”. (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 140)

404 Para um estudo mais aprofundado sobre as diferenças entre os sistemas de civil law e de common law e a aproximação dos dois sistemas: DAMASKA, Mirjan. The faces of justice and State authority: a comparative approach to the legal process. New Haven and London: Yale University Press: 1986; DAMASKA, Mirjan. The common law / civil law divide: residual truth of a misleading distinction. Conferência de Toronto de 2009. A íntegra do texto pode ser encontrada no sítio da Associação Internacional de Direito Processual: http://www.iapl2009.org/documents/1MirjanDamaska.pdf Acesso em 25.05.2011 às 7h50

405 DAMASKA, Mirjan. The faces of justice and State authority: a comparative approach to the legal process. New Haven and London: Yale University Press: 1986. Alfo Ross destaca ainda que “associativamente às grandes codificações, o legislador, na vã esperança de preservar sua obra, tem proibido, amiúde, a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito. Já Justiniano proibiu decisões de acordo com precedentes (non exemplis, sed legibus judicandum est). No Código Prussiano (Allgemeines Ladrecht) de 1794 encontramos preceitos similares. Na Dinamarca, depois da aprovação do Código Dinamarquês, em 1683, proibiu-se que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema. A medida foi rescindida em 1771. Essas proibições drásticas se provaram ineficazes, tornando preponderante na Europa continental o ponto de vista de que no interesse da certeza das decisões prévias dos tribunais superiores, em particular as da Corte Suprema, deviam ser respeitadas, embora não dispusessem de força obrigatória formal como acontecia com o direito legislado”. (ROSS, Alf. Direito e Justiça. 2. ed. Bauru: Edipro, 2007, p. 112

406 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 11 407 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris, 1993, p. 111-128. Segundo a análise das diferenças e similitudes das duas famílias, verificamos que o Brasil esta adotando experiências existentes nos países de common law, pois possui uma Corte Constitucional com poucos magistrados (onze); há vinculatividade a determinadas decisões de nossa Corte Suprema; há filtros para acesso a esse tribunal, tentando reduzir a quantidade de julgados por essa Corte. Podemos ainda destacar a tendência cada vez maior à adoção de precedentes.

408 “Reduzindo a poucas linhas discurso que exigiria análise comparatística aprofundada, podem-se sublinhar dois aspectos particularmente importantes: a) na realidade, jamais existiu um modelo homogêneo e unitário de processo civil de civil law; b) nos últimos decênios, ocorreram tantas e tais transformações em vários ordenamentos processuais da referida área, que provavelmente se perdeu toda possibilidade de fazer referência em termos sintéticos e unitários aos modelos tradicionais”. (TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Revista de processo. ano 28. vol. 110. São Paulo: RT, 2003, p. 141-158)

409 TARUFFO, Michele. Icebergs do common law e civil law? Macrocomparação e microcomparação processual e o problema da verificação da verdade. Revista de processo. ano 35. vol. 181. São Paulo: RT, 2010, p. 167-172. O autor critica a ideia de tentativa de uniformização de sistemas, afirmando que mesmo os membros de um mesmo sistema devem ser tratados como pertencentes a uma família que estão se afastando. Afirma não ser possível fazer uma comparação macro entre civil law e common law, em razão das distinções entre o direito inglês e o direito norte-americano.

410 TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Revista de processo. ano 28. vol. 110. São Paulo: RT, 2003, p. 141-158. Muitas das diferenças tradicionalmente comentadas entre as famílias de civil law e common law, tais como processo adversarial x inquisitorial; oral x escrito; julgado pelo júri x julgado pelo juiz não servem para distinguir as duas famílias.

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135 Deixando de lado essa discussão, podemos constatar a existência de um Código de Processo

Inglês, exercendo a lei forte influência no direito naquele país411, bem como a tendência

registrada em alguns países de civil law no sentido de adotar um sistema de precedentes, não

que estes já não existissem em países de tradição do civil law, como no caso do Brasil, como

bem assevera José Rogério Cruz e Tucci412.

Essa tendência de se obedecer aos precedentes não ocorre apenas no Brasil. Dentre

outros países, podemos citar também a Itália, sobre cujo sistema processual envolvendo

precedentes Michelle Taruffo e Sergio Chiarloni, que já se debruçaram por diversas vezes.

5.5.3 Diferenças entre o sistema jurisprudencial da Civil Law e o sistema de precedentes da

Common Law

Vale a pena destacar algumas diferenças entre nosso sistema de jurisprudência e o

sistema de precedentes existentes em países como os Estados Unidos e Inglaterra.

Precedente não é sinônimo de jurisprudência. Jurisprudência, do latim jurisprudentia,

que vem da união das palavras jus (direito) e prudentia (sabedoria), pode ser entendida, em

sua literalidade, como "ciência do direito vista com sabedoria”413. Assim, a jurisprudência é a

sábia interpretação e aplicação das leis, criando o hábito de interpretar e aplicar as leis aos

fatos concretos. Precedente, por sua vez, vem do latim praecedere, trazendo-nos a ideia do

que vem antes414.

A formação da jurisprudência, diferentemente do que ocorre com o precedente, não

ocorre isoladamente. Faz-se necessária a existência de sucessivas e uniformes decisões num

411 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na

Inglaterra. São Paulo: RT, 2009, p. 39 412 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 142 e ss. 413 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 12. ed. vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 34. A definição

de jurisprudência dada por Ulpiano era de conhecimento das coisas dividas e humanas e a ciência do justo e do injusto. (NUNES, Pedro. Dicionário de tecnologia jurídica. vol. II. 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976, p. 543). Não se desconhece a polêmica que gira em torno dos diversos conceitos sobre o termo jurisprudência, citado anteriormente.

414 A definição clássica do conceito de jurisprudência é dada por Ulpiano: “divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia” “o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto” (SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, p. 2-3)

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136 mesmo sentido415. Por isso, costuma-se dizer que jurisprudência é um conjunto de julgados de

um Tribunal num mesmo sentido416.

Segundo Cappelletti, a expansão da jurisprudência decorreu da própria expansão do

direito legislativo, tendo em vista a necessidade de os juízes interpretarem e aplicarem as

normas417.

Esse conjunto de julgados de um Tribunal (Jurisprudência) serve de base para a

adoção do mesmo posicionamento aos casos futuros418. No sistema de precedentes, o juiz do

caso presente busca num caso passado as razões de decidir para aplicar a mesma razão ao

caso atual:

Cumpre esclarecer que a ratio decidendi não é pontuada ou individuada pelo órgão julgador que profere a decisão. Cabe aos juízes, em momento posterior, ao examinarem-na como precedente, extrair a norma legal (abstraindo-a do caso) que poderá ou não incidir na situação concreta419.

Na formação do precedente, a preocupação do juiz é com o caso concreto a julgar. Não é esse

juiz que afirmará ser aquele um precedente, mas o juiz do caso futuro, pois é este quem vai

verificar se o caso passado pode ou não servir como paradigma para a decisão que está por

proferir420. Não é o juiz que julgou o leading case que afirma ser aquele caso que servirá de

paradigma para os demais. É o juiz do caso futuro que, ao analisar o litígio posto, confrontará

a situação atual com uma anterior já julgada e afirmará se o caso anterior tem similitude com

o presente e por isso servirá de precedente.

Ainda, a jurisprudência é formada por diversos julgados. Já o precedente surge de um

único julgado:

415 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 12. ed. vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 34 416 FRANÇA, Rui Limongi (Coord). Enciclopédia Saraiva do Direito. vol. 47. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 142 417 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris, 1993, p. 18. Remetemos o leitor para o tópico supra quando tratamos da discricionariedade judicial.

418 CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. vol. 3. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2003, p. 205

419 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 175 – grifos no original)

420 Após destacar que, no direito norte-americano são os advogados que levam em suas petições os argumentos a favor e contra a aplicação de determinados precedentes, Charles Cole destaca que“a corte, tanto de instância inferior quanto superior, precisa determinar a autoridade do precedente que lhe é oferecido, indicando se ele é vinculante ou meramente persuasivo”. (COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O sistema de precedente vinculante do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss.)

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137

Uma decisão isolada não constitue jurisprudência; é mister que se repita, e sem variações de fundo. O precedente, para constituir jurisprudência, deve ser uniforme e constante. Quando esta satisfaz os dois requisitos grangeia sólido prestígio, impõe-se como revelação presuntiva do sentir geral, da consciência jurídica de um povo em determinada época; deve ser observada enquanto não surgem razões muito fortes em contrário: minime sunt mutanda quae interpretationem certam semper habuerunt – ‘altere-se o menos possível o que teve constantemente determinada interpretação’421.

Sobre o tema Alfredo Buzaid traz a mesma ideia, porém utiliza o termo “antecedente

judiciário” em vez de precedente:

Mas o que constitui verdadeiramente a jurisprudência é a interpretação sucessiva e idêntica da mesma norma jurídica; um caso julgado pode ser antecedente judiciário; não é, contudo, jurisprudência no sentido em que esta palavra é geralmente empregada. A jurisprudência consiste, pois, em uma interpretação constante e uniforme da regra legal422.

No sistema anglo-americano, já destacava Piero Calamandrei que, na resolução do

caso, o que importa é a análise do caso singular, diferentemente do nosso sistema, em que há

uma norma criada de antemão423.

Na Itália, onde se adota também o sistema de jurisprudência, verifica-se semelhança

em relação ao direito brasileiro no que tange à formação de sua jurisprudência, existência de

excessivo número de recursos e de incontáveis contradições entre os julgados, sem falar nas

alterações repentinas de orientação das Cortes:

Come si è accennato, la giurisprudenza è formata da un insieme di sentenze, o meglio: da un insieme di sottoinsiemi o di gruppi di sentenze, ognuno dei quali può includere una elevata quantità di decisioni. In questa direzione non si può non accennare ad un fenomeno gravemente patologico, che rappresenta uno dei maggiori fattori di crisi del nostro sistema giurisdizionale: si tratta dell’abnorme numero di sentenze che la Corte di cassazione pronuncia ogni anno, e che non è paragonabile a quanto accade nella maggior parte delle altre corti supreme. [...]

Per altro verso, il numero incontrollato delle decisioni favorisce una ulteriore degenerazione, ossia, il frequente verificarsi di incoerenze, e spesso di evidenti contraddizioni, e di repentini mutamenti di indirizzo, nell’àmbito della medesima giurisprudenza della Cassazione424.

421 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941,

p. 226 – grifos no original 422 BUZAID, Alfredo in SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, prefácio. 423 CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. vol. 3. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2003, p.

203 424 TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI,

vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 713-714

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138 A formação da nossa jurisprudência, na maioria dos casos, baseia-se unicamente na

comparação de ementas. A formação da jurisprudência baseada em ementas deixa de trazer a

peculiaridade do caso concreto para que se justifique a decisão exarada naquele caso425.

Diferencia-se também neste ponto do precedente, pois o precedente é constituído pelo inteiro

teor da ratio decidendi426. No Brasil, assim como na Itália, não se incluem fatos na formação

da jurisprudência427. No direito inglês há uma “descrição minuciosa dos fundamentos” da

sentença428 e esses fundamentos são baseados em fatos.

O mais interessante de tudo é que nosso sistema legal conhece essa falha, ao não

admitir recurso especial por divergência jurisprudencial (art. 105, III, “c”), quando a parte

afirma ter havido ofensa a enunciado de súmula ou confronta o julgado atual com simples

ementa de julgado anterior sem fazer o confronto analítico entre os julgados. Tanto no recurso

especial decorrente de divergência jurisprudencial quanto nos embargos de divergência há a

necessidade de se fazer o confronto analítico dos julgados, razão pela qual se demonstra

imprescindível a análise da norma naquele contexto fático.

A simples questão de não se trazerem à baila os fatos na comparação entre julgados

poderá levar os Tribunais, juízes a eles subordinados e advogados a interpretações

equivocadas, como as já destacadas, decorrentes até mesmo da redação dos enunciados de

Súmula do STJ 214 e 343, sendo que os acórdãos que serviram de base para a formação do

enunciado tratavam de um assunto, e o enunciado, de tão sucinto que ficou, parece ter

aplicação mais ampla, distorcendo, ampliando indevidamente a interpretação do próprio

Tribunal.

425 Algo semelhante também ocorre na Itália. Segundo Taruffo, ao explicar as diferenças entre jurisprudência e

precedente, descreve que “la giurisprudenza: si trata, come è noto, soprattutto delle massime elaborate dall’apposito ufficio che esiste presso la Corte di cassazione. La caratteristica più importante delle massime è che si tratta di enunciazioni, concentrate in una o in poche frasi, che hanno ad oggetto regole giuridiche. Queste regole hanno solitamente un contenuto più specifico rispetto al dettato testuale della norma di cui costituiscono una interpretazione, ma sono pur sempre formulate come regole, ossia come enunciazioni generali di contenuto precettivo.” (TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI, vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 712)

426 Sobre o conceito de ratio decidendi, expõe Cruz e Tucci que a ratio decidendi “[...] constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of the law). É essa regra de direito (e, jamais de fato) que vincula os julgamentos futuros inter alia. Sob o aspecto analítico, três são os elementos que a integram: a) a indicação dos fatos relevantes (statement of material facts); b) o raciocínio lógico jurídico da decisão (legal reasoning); e c) o juízo decisório (judgement)”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 175 – grifos no original)

427 E como bem ressalta Cruz e Tucci, “[...] todo precedente judicial é composto por duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 12 – grifos no original)

428 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 119

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139 Verificamos junto aos Tribunais Superiores a tendência na uniformização da

jurisprudência, por meio da adoção de um sistema de precedentes. Para isso, todavia, parece-

nos ideal que passemos a estudar os leading cases, para deles serem extraídas sua ratio

decidendi429. A partir dessa análise sobre o que seria essencial, poderíamos entender por que a

norma foi aplicada de determinada maneira naquele caso concreto, o que justificaria a

aplicação de forma diversa noutro caso (distinguishing). A simples generalização de um caso

anterior, como se a aplicação da norma a um caso concreto servisse para todos os casos

possíveis e imagináveis, é função da lei. A função da generalização de condutas foi dada pelo

constituinte à lei. Esta, por sua vez, é criada de forma genérica, pois não há como se prever a

grande diversidade de casos em que deva ser aplicada. A vida é muito mais dinâmica e

complexa que a letra fria da lei e, por isso, existe o Judiciário com a função de aplicar aquela

norma abstrata ao caso concreto, chegando ao melhor resultado possível. Se passarmos a

utilizar simplesmente a generalização da interpretação de julgados sem considerarmos a

peculiaridade dos casos concretos poderemos chegar ao ponto de nulificar a razão de ser do

Judiciário.

De fato, precisamos nos aproximar dos sistemas inglês e americano para não

distorcermos o sistema de precedentes que se quer adotar. A ideia de adoção, por exemplo, de

súmula vinculante não nos aproxima do sistema de precedentes da common law. Muito pelo

contrário, pois os precedentes não possuem abstração e gereralidade. Após sabermos as

peculiaridades e diferenças existentes entre o sistema de precedentes e o nosso sistema,

baseado em jurisprudência, é que poderemos passar a segui-lo com maior precisão.

No sistema de precedentes comum dos países de common law, afirma-se a existência

de precedentes persuasivos e precedentes vinculativos430. Apesar disso, Michele Taruffo

critica essa afirmação, pois descreve que mesmo nos países de common law os juízes podem,

por meio de técnicas argumentativas, chegar a decisões distintas, aplicando técnicas chamadas

429 Ao tratar do ensino jurídico no direito norte-americano Charles D. Cole destaca a importância do estudo de

caso e da análise sobre os fatos, afirmando que “O relatório do caso precisa ser suficientemente detalhado para indicar os fatos relevantes que a Corte considerou necessários para decidi-lo, a questão legal decidida e os fundamentos que a Corte utilizou para decidir o caso”. (COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O sistema de precedente vinculante do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss)

430 “Dependendo do sistema em que se engasta, a decisão monocrática ou colegiada, é classificada em precedente vinculante (binding authority: sistema da common law) e precedente persuasivo, ou de fato, ou revestido de valor moral (persuasive authority: em regra, sistema da civil law)”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 12 – grifos no original). No mesmo sentido: COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O sistema de precedente vinculante do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss.

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140 de distinguishing431 e overruling432. Por meio disso, eles demonstram que não ficariam

vinculados ao precedente433. É notável, contudo, a força que esses precedentes exercem sobre

o juízo de grau inferior, mas afirma o autor que essa força é sempre defeasible434.

No nosso sistema, não se pode deixar de atribuir força à jurisprudência. Decerto a

jurisprudência exerce força persuasiva sobre os casos futuros, mas essa força persuasiva é

menor do que a força atribuída pelos países da common law aos precedentes435.

Além disso, devemos destacar que a simples forma como utilizamos na prática a

comparação entre casos acaba por levar a equívoco. Não devemos simplesmente descartar o

caso concreto para citar uma ementa como paradigma do caso futuro. É muito comum vermos

ementas e enunciados de súmulas sendo utilizados para casos distintos do que a Corte

enfrentou quando da prolação do acórdão ou da aprovação da ementa. Em razão disso,

acabamos por encontrar decisões aparentemente contraditórias dentro do próprio Tribunal436,

o que não deveria ocorrer.

431 A ideia de distinção decorra da possibilidade de um caso ser julgado de maneira diversa, não se aplicando o

precedente, porque os fatos do caso futuro são distintos dos fatos verificados no precedente: “[...] um caso pode ser considerado distinto de outro de acordo com os fatos narrados, uma vez que a ratio decidendi de um caso é, por definição, baseada em seus fatos materiais”. (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 126)

432 Pelo overruling haveria a “revogação” do precedente, na qual a Corte Superior exara julgado em sentido contrário ao precedente, passando a formar novo precedente em sentido oposto ao anterior. Na Inglaterra, o overruling tem efeito ex tunc, atingindo toda a sociedade. Já nos Estados Unidos, a superação do precedente tem eficácia ex nunc (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 127-128)

433 TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI, vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 716

434 Mesmo a antiga House of Lords britânica que em 1966 afirmou que poderia não seguir mais seus próprios precedentes ainda continuou seguindo na grande maioria dos casos.

435 Não é porque o nosso sistema se baseia em leis que o julgador não deve observar o posicionamento dos tribunais. Desta feita, ao contrário do provérbio latino non exemplis sed legibus judicandum est, o magistrado deve sim observar a lei, mas na interpretação desta, não pode deixar de considerar o posicionamento doutrinário e também o dos Tribunais, sob pena de cada julgador decidir da forma como bem entende.

436 Se ainda levarmos em conta o excessivo número de recursos que cada magistrado processa e julga, verificaremos que é humanamente impossível processar e julgar tamanha quantidade de processos sem que o magistrado tenha o suporte de uma equipe, o que também poderá até mesmo contribuir para eventuais equívocos e divergências de decisões sobre uma mesma questão.

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141 5.5.4 A volta à vinculatividade no intento de aproximação ao sistema de precedentes

Com a criação do controle concentrado de constitucionalidade e, posteriormente, com

a ampliação desse controle por meio da ação declaratória de constitucionalidade voltamos, à

vinculatividade dos Tribunais inferiores ao que foi decidido pela mais alta Corte do Judiciário

brasileiro, conforme expressamente passou a constar na Constituição Federal a partir da

Emenda 45 de 2004.

Ainda em decorrência dessa Emenda surgiu a possibilidade de criação de enunciados

de súmula com eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Posteriormente, sobreveio a alteração do sistema recursal perante o STF e o STJ com o

julgamento de recurso representativo de controvérsia, dando a lei a entender que o juízo

inferior ficaria vinculado ao que foi decidido pelo Tribunal Superior.

Atualmente se fala em objetivação do recurso extraordinário, algo discutível, mas que

volta a demonstrar o caminho do sistema brasileiro para um sistema de obediência aos

precedentes.

A tendência em se obedecer aos precedentes volta à ideia básica de se aplicar a mesma

razão para a mesma circunstância fática. Contudo, não podemos afirmar que a adoção desse

sistema fará com que os juízes fiquem vinculados ao que foi decidido pela Corte Superior,

seja por conta da diferença de situações fáticas entre os casos, seja em decorrência das

condições históricas, econômicas e sociais que influenciaram a decisão anterior437, hipóteses

em que será permitido o distinguishing438. Como regra, todavia, já deveria haver obediência

437 “I precedenti potrebbero operare come le strutture dissipative di cui si parla nelle teorie della complessità,

ossia come momenti di formazione di arre di ordine all’interno del disordinato fuire del caso della giurisprudenza. Essi, infatti, potrebbero costituire importanti fattori di razionalizzazione, di uniformità pur flessibile, di prevedibilità e di uguaglianza di trattamento, nell’ incontrollabile quantità e varietà dei casi che vengono decisi dalle corti. Perché ciò accada, tuttavia, è necessario che essi non siano a loro volta un elemento di disordine e di variazione casuale legata alle specificità dei singoli casi concreti: occorre dunque che si tratti di precedenti in senso proprio, e quindi che essi presentino i caratteri distintivi di <<rarità>>, autorità e universalizzabilità in funzione dei quali essi possono emergere dal caos indistinto della prassi giudiziaria” (TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI, vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 724-725)

438 A distinção dos fatos poderá levar à não aplicação do precedente: “Obviamente, porém, se alguém sabe como determinar o precedente de um caso e como limitar apropriadamente a aplicação daquele caso precedente, esse alguém poderá, por vezes, distinguir o caso precedente em consideração de tal maneira que a decisão formal do caso precedente seja considerada não vinculante no caso em julgamento que seria tido como diferente quanto aos fatos”. (COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O

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142 ao posicionamento exarado pelas Cortes Superiores simplesmente em razão da ordem

hierárquica na interpretação da lei.

Essa tendência, como visto, não ocorre apenas no Brasil e tem por premissa garantir a

isonomia, segurança jurídica, coerência entre as decisões e previsibilidade439. Com isto, sem

dúvida haverá um aumento na credibilidade do Judiciário frente aos jurisdicionados440.

A ideia de se seguir precedentes evita rediscutir questões já analisadas pelo tribunal no

passado441. Vale destacar as palavras de Barbosa Moreira, proferidas ao tratar do incidente de

uniformização de jurisprudência, mas que se encaixam perfeitamente no presente tópico:

Não se trata, nem seria concebível que se tratasse, de impor aos órgãos judicantes uma camisa-de-força, que lhes tolhesse o movimento em direção a novas maneiras de entender as regras jurídicas, sempre que a anteriormente adotada já não corresponda às necessidades cambiantes do convívio social. Trata-se, pura e simplesmente, de evitar, na medida do possível, que a sorte dos litigantes e afinal a própria unidade do sistema jurídico vigente fiquem

sistema de precedente vinculante do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss)

439 Sobre a previsibilidade, afirma Sergio Chiarloni que “Questo argomento, di tutti il più diffuso, sottolinea come sia preferibile una prassi ispirata al rispetto del precedente, perché essa riduce la conflittualità e permette una maggiore sicurezza e programmabilità del traffico giuridico, consentendo ai soggetti di un rapporto di meglio prevedere le future conseguenze delle loro azioni, proprio in base agli indirizzi impartiti dai passati orientamenti giurisprudenziali, meglio se consolidati”. (CHIARLONI, Sergio. Efficacia del precedente giudiziario e tipologia dei contrasti di giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano XLIII, vol. 1. Milão: Giuffrè, 2007, p. 121). Carlos Maximiliano, que apesar de afirmar que o juiz deve obediência às leis e não às decisões de casos semelhantes, escreve que “sem estudo sério, motivos ponderosos e bem examinados, não deve um tribunal superior mudar a orientação dos seus julgados; porque da versatilidade a tal respeito decorre grande abalo para toda a vida jurídica da circunscrição em que êle exerce autoridade. É preciso que os interêsses privados possam contar com a estabilidade: judex ab auctoritate rerum perpetuo similiter judicatarum, non facile recedere debet – “não deve o juiz com facilidade afastar-se da autoridade dos casos constantemente julgados de como semelhante”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 228 – grifos no original). Também Cappelletti, assegurando que “a criatividade jurisprudencial tendo, portanto, efeito retroativo, fica em conflito com os valores da certeza e da previsibilidade; e enquanto tal, é também ‘iniqua’, pois ‘colhe a parte de surpresa’”. (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 85)

440 “Já para os regimes jurídicos regrados pelo direito codificado, nas quais as decisões judiciais não possuem autoridade vinculante, a técnica de invocar precedentes, se bem utilizada, aumenta em muito a previsibilidade da decisão e, portanto, a segurança jurídica. Opera, outrossim, como importante fator a favorecer a uniformização da jurisprudência. Essa função nomofilácica atende também ao interesse público da unidade da jurisprudência”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 17 – grifos no original)

441 Em Wall vs. Radford, Popplewell J. afirmou que “Although a separate duty is owed to another driver from that owed to a passenger that does not mean in the instant case that the duty are identical and liability for that breach of duty is identical . . . It is not different duty. It is the same duty owed to a different person . . . The object of the courts must be to do justice between the parties with expedition and without undue technicality. I ask myself what justice is there in allowing one party to have a second bite at cherry? What expedition is there allowing the relitigation of identical facts which have already been decided? The answer to booth those questions is plain” (HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 45)

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na dependência exclusiva da distribuição do feito ou do recurso a este ou àquele órgão442.

O Min. Luiz Fux já teve a oportunidade de se manifestar num de seus votos-vista

sobre a aproximação do nosso modelo brasileiro à adoção de precedentes, típicos dos países

de common law443.

Não se pode deixar de mencionar, contudo, que o precedente criado por qualquer meio

que não seja o decorrente de julgamento em controle concentrado de constitucionalidade e o

decorrente da edição de enunciado de súmula vinculante não pode ter eficácia vinculante. A

eficácia gerada é persuasiva. Caso a parte infrinja precedente persuasivo e procure

procrastinar o litígio, utilizando-se de recurso manifestamente protelatório, caberá ao

magistrado impor-lhe as penalidades pecuniárias previstas em lei444.

5.5.5 A criação dos enunciados de súmula vinculantes reforçando a obediência aos

posicionamentos das Cortes Superiores

Como destacado acima, a ideia da existência de vinculação no direito brasileiro não é

nova. Apenas ficou adormecida por um período, retomando sua força a partir da instituição do

controle concentrado de constitucionalidade, que surgiu em 1965 com a Emenda

Constitucional nº. 16. Essa vinculatividade no controle abstrato passou a constar de forma

expressa da Constituição Federal de 1988 por força da Emenda Constitucional 3 de 1993,

posteriormente alterada pela Emenda Constitucional 45 de 08.12.2004.

442 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2009, p. 5 443 “A submissão dos acórdãos locais ao decisum representativo conspira em prol da finalidade constitucional do

Recurso Especial, cabível pela alínea c, exatamente para pacificar o dissídio jurisprudencial nacional”. “Essa força da jurisprudência dos Tribunais Superiores informa o hodierno sistema, unindo as famílias do civil Law e da common Law, de sorte que, não perpassa pelo princípio da razoabilidade poder a Corte local decidir diversamente do que assentou a Corte”. ( STJ. Corte Especial. QO no Ag. 1.154.599-SP, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 16.02.2011, maioria – voto-vista).

444 Talvez um dos problemas hoje enfrentados esteja na baixa força gerada pela aplicação das penalidades decorrentes do intuito manifesto protelatório dos recursos contrários a posicionamentos consolidados, algo que não nos cabe analisar no presente trabalho.

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144 Por força dessa mesma emenda constitucional houve a permissão para criação de

enunciados de súmulas445 do STF com eficácia erga omnes e efeito vinculante446.

De acordo com o procedimento instituído pela Lei 11.417/2006, a criação dos

enunciados dependerá de procedimento próprio e do enfrentamento de diversos recursos que

envolvam a questão a ser objeto de enunciado vinculante, pois, diferentemente do controle

concentrado de constitucionalidade, em que há análise da questão de forma abstrata, no

controle difuso, de acordo com os próprios termos da Constituição, é preciso que haja um

amadurecimento do posicionamento firmado pelo Tribunal447.

Diante da abstração do texto do enunciado de súmula, faz-se necessário que haja

diversos casos apreciados pelo STF, para que o próprio texto não se refira a uma situação

isolada, mas a uma situação que envolva a maior quantidade de casos possíveis.

A criação desses enunciados vinculantes, apesar de estar baseada na ideia de

obediência de forma vinculante ao posicionamento da Corte Suprema, difere-se do sistema de

precedentes dos países de common law. O juiz do caso anterior não estava preocupado com os

casos futuros, apenas estava procurando resolver aquele litígio, uma vez que é o juiz do caso

futuro que verificará se o julgado anterior servirá ou não de precedente. Acrescente-se ainda

que, na tradição da common law, não se fala em obediência a decisões judiciais abstratas ou

com conteúdo abstrato. A obediência é verificada em relação a um determinado julgado

(naquele caso específico, diante daquela situação, a decisão foi tomada num determinado

sentido). Lá os precedentes não têm números, têm nomes. Como demonstrado acima, nem

mesmo há ementas nos precedentes, o que evita a generalização da questão. Ainda, o

precedente é verificado pelas razões de decidir (ratio). A súmula vinculante, por sua vez,

decorre da existência de vários julgados num determinado sentido, mostrando uma certa

445 Vale destacar que a origem da palavra está relacionada à suma, síntese, da jurisprudência de um determinado

tribunal, assim não haveria a palavra súmula no plural. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 372. DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 572-573

446 Antes da aprovação da Emenda Constitucional a doutrina já discutia o tema. Como favorável à adoção das súmulas vinculantes, podemos citar: CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais. vol. 786. RT: São Paulo, 2001, p. 108 e ss.

447 “Pela sua ‘gravidade’ o conteúdo da súmula vinculante não pode representar apenas o pensamento imediato e isolado do STF. Deve ter sido objeto de discussões e maturação ao longo do tempo e das demais instâncias judiciais, o que sempre contribuirá para a formação do pensamento do STF” (TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417 de 19.12.2006. 2. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 17)

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145 generalidade, impessoalidade e universalidade do julgado, razão pela qual seu enunciado

possui abstração448.

Mais próximos estaríamos do sistema de precedentes se a vinculação fosse feita à ratio

decidendi dos julgados que deram base ao enunciado de súmula e não a um texto abstrato e

genérico como um enunciado.

Um dos pontos críticos que podemos destacar sobre o sistema de adoção de

enunciados de súmula com efeito vinculante é a generalidade com a qual estas são redigidas,

assemelhando-se à redação de leis. Para uma interpretação conforme a Constituição,

pensamos que a mesma ressalva feita ao legislador deve ser feita ao Judiciário na redação

destes enunciados. O legislador não consegue prever todas as hipóteses de cabimento da

norma quando de sua elaboração. O Judiciário, por sua vez, para editar um enunciado

vinculante se depara com alguns casos concretos. A criação do enunciado como se ele

servisse para todos os futuros casos tem o condão de reduzir a divergência jurisprudencial

sobre o tema, mas pode gerar injustiça em razão da aplicação indiscriminada do enunciado

sem consideração sobre o caso concreto. Por mais que se alegue que os enunciados estariam

ligados à aplicação das questões de direito, é impossível desmembrar o direito dos fatos. Pode

ocorrer de, em determinado caso concreto, o juiz chegar à conclusão diversa da que chegou o

STF em razão da peculiaridade do caso. Essa não é uma análise simplesmente de direito, mas

de direito e de fato449. Por isso não se pode simplesmente aplicar o enunciado de súmula a

todos os casos indistintamente como se a existência de enunciado vinculante resolvesse toda a

questão de aplicação de direito ao caso concreto. Ao julgador ainda caberá a análise dos fatos

448 Apesar do que expusemos aqui e do quanto pôde ser dito em relação às diferenças entre precedentes e

jurisprudência sinalizadas por Taruffo e por nós mencionadas acima, há quem entenda haver aproximação entre os institutos: “O mencionado e reiterado distanciamento entre os dois modelos teóricos (civil law e common law), na prática, tem diminuído. É nesse contexto que se deve compreender a introdução, no sistema de Direito legislado brasileiro, da súmula vinculante, para muitos instituto próximo do stare decisis. Essa comparação que se faz entre stare decisis e súmula vinculante está baseada em algumas circunstâncias comuns a ambos institutos: i) preocupação exclusiva com casos concretos; ii) necessidade de fazer surgir, a partir de decisões concretas, uma diretriz a ser adotada em outros casos similares (um certo ‘processo de objetivação’ das decisões concretas)”. (TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417 de 19.12.2006. 2. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 23 – grifos no original)

449 Isso pode ser melhor exemplificado com a decisão do STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 4, na qual foi declarada constitucional a proibição à concessão de tutela antecipada em face do Poder Público. Havendo decisão com efeito vinculante, proibindo a concessão de tutela antecipada que preveja desembolso de quantia pelo Poder Público em razão do princípio da dotação orçamentária, os tribunais inferiores ficariam vinculados a essa interpretação. Apesar disso, o próprio STF já concedeu tutela antecipada para a liberação de benefício assistencial e para a concessão de benefícios previdenciários antecipadamente. A peculiaridade do caso concreto demonstrou que a decisão precisaria ser outra (STF. Pleno. Rcl. 1603-0/SE, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 21.11.2002, v.u.; STF. Pleno. Rcl. 2.377-0/SP – MC, rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.09.2004, v.u.)

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146 e até mesmo a análise sobre o cabimento ou não da aplicação do enunciado de súmula ao caso

sub judice, acrescida da análise sobre a distinção do caso concreto em relação aos casos que

deram origem ao enunciado vinculante. Por óbvio, os limites de interpretação da norma pelo

juiz serão reduzidos, mas não serão nulos.

Na aplicação da decisão, se o juiz verificar a existência de enunciado de súmula

vinculante, mas entender que o caso sub judice deveria ter tratamento diferenciado, ele

precisará afastar a aplicação da súmula e isso poderá ser feito por meio da análise dos

precedentes que deram origem ao enunciado de sumula450. Com isso o magistrado

demonstrará que seu caso se difere daqueles que deram origem ao enunciado e por conta da

sua peculiaridade, deverá ser afastada a aplicação do verbete. Ele não estará julgando em

sentido contrário ao enunciado. Ele estará demonstrando a existência de peculiaridade que

torna o caso diferente dos precedentes analisados pelo STF e, por isso, deverá fundamentar a

não aplicação do enunciado àquela hipótese. Isso somente ocorrerá porque o caso concreto

assim o exigiu (distinguishing, como no caso da nota de rodapé mencionada acima).

Afirmamos isso pela convicção de que, em função da abstração dos enunciados, estes também

deverão ser interpretados (assim como as leis, não podemos conviver com a ideia de que in

claris cessat interpretatio)451.

Se os precedentes que deram origem ao enunciado vinculante forem análogos à nova

demanda, objeto de análise pelo juiz, este não poderá deixar de aplicar a súmula, pois deverá

o julgador se ater à interpretação do direito dada pelo STF452. Se o juiz discordar do

entendimento firmado pelo STF ele poderá até expor isso ao fundamentar sua decisão, mas

deverá se ater ao posicionamento do STF.

450 Lembremos que nosso sistema está ciente disso, ao dispor sobre o não cabimento de embargos de divergência

fundado em enunciado de súmula ante sua abstração. O paradigma deverá ser os julgados anteriores que serviram de base para a edição do verbete. Nesse sentido: STJ. Corte Especial. AgRg nos EAg 1.415.559-RS, rel. Min. Gilson Dipp, j. 14.06.2012, v.u.)

451 “A súmula vinculativa não implica em capitis deminutio para a atividade judicante, porque não altera, em substância, a tarefa do julgador de interpretar e aplicar o texto de regência aos fatos da lide, certo que esse texto (= o ordenamento positivo) agora abrange o precedente judicial obrigatório, o qual, por sua vez, não dispensará a devida interpretação, para que se alcance seu melhor significado, inclusive interessando aferir sobre sua efetiva adequação ao caso concreto, sub judice”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 391-392)

452 Para Lenio Luiz Strecck a institucionalização das súmulas vinculantes representa retrocesso hermenêutico, fazendo com que voltemos ao modelo formal-burguês. (RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010 – prefácio)

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147 5.5.6 O julgamento dos recursos repetitivos e a tendência à objetivação do controle de

constitucionalidade realizado em sede de recurso extraordinário

Ainda no tocante à ideia de se uniformizar o entendimento dos casos que tenham por

fundamento a mesma questão de direito, e considerando-se a imensa quantidade de recursos

que são submetidos aos Tribunais todos os dias453, criou-se uma forma de se julgar casos por

amostragem no âmbito do Recurso Extraordinário e do Recurso Especial (assunto já tratado

no item 4 supra). Assim, apenas alguns casos são escolhidos e apreciados pela Corte. O

resultado do julgamento será estendido aos demais recursos que ficaram sobrestados.

De acordo com a dicção do art. 543-B do CPC, o Tribunal a quo poderá selecionar um

ou mais recursos representativos da controvérsia. Essa seleção dos recursos representativos da

controvérsia é feita pelo Presidente (ou Vice) do Tribunal a quo, que selecionará um ou mais

recursos representativos da controvérsia. A lei não fala como deve ser feita a seleção. Esta,

todavia, não pode ser feita subjetivamente. Deverá o Presidente do Tribunal a quo analisar,

dentre os recursos que se repetem, quais demonstram melhor a controvérsia, com bons

argumentos em ambos os sentidos, para dar maior subsídio ao Tribunal ad quem a fim de que

este julgue a matéria do melhor modo possível.

Devem ser selecionados os recursos que apresentem teses das mais variadas sobre o

tema objeto de decisão do Tribunal. Ou seja, não basta recurso que aborde de forma adequada

um ponto de vista. É preciso mais recursos que abordem tanto a situação a favor quanto a

contrária a uma determinada tese. Além disso, os recursos selecionados devem trazer diversas

fundamentações num e noutro sentido, haja vista que o resultado do recurso servirá de base

para diversos outros casos que foram sobrestados. Isso pode prejudicar alguma das partes,

pois nem sempre os recursos selecionados representarão toda a controvérsia sobre as questões

que devem ser enfrentadas e que foram objeto de outros recursos que permaneceram

453 De acordo com o Min. Sidnei Benetti há em torno de 300.000 recursos envolvendo companhias telefônicas e

750.000 recursos sobre planos econômicos. Mas o problema de excesso de recursos não é peculiaridade da justiça brasileira. A Corte de Cassação italiana também tem uma quantidade enorme de recursos a julgar todos os anos. De acordo com Michele Taruffo, a Corte de Cassação pronuncia cerca de 50.000 sentenças por ano. TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI, vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 714-715. Giovanni Verde destaca que a Corte pronuncia cerca de 30.000 decisões apenas em matéria cível. VERDE, Giovanni. Profili del processo civile. vol. 2. 4. ed. Nápoles: Jovene, 2008, p. 247

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148 sobrestados. Daí ser perfeitamente possível a intervenção no recurso admitido como

representativo de controvérsia na qualidade de amicus curiae.

Vale salientar que, em pesquisa junto aos regimentos internos dos Tribunais de Justiça

de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, TRF da 3ª Região, STF e STJ, não foram

encontrados dispositivos prevendo como deva ser feita essa seleção.

Sobre essa seleção, afirmam Theotônio Negrão et al que o Tribunal ad quem deve

fazer a fiscalização sobre os recursos selecionados454.

A ideia da reforma do CPC com a introdução desse novo procedimento é impedir que

os demais recursos subam ao tribunal, pois permanecerão sobrestados no tribunal local.

Verifica-se o aumento na tendência de se seguir os precedentes examinados pelas

Cortes Superiores. Isso se deve, dentre outros fatos, à criação do regime de julgamento dos

recursos “repetitivos”. Se o Tribunal de origem tiver julgado no mesmo sentido do Tribunal

Superior, pela estruturação do sistema a parte ainda poderia recorrer ao STJ por ofensa à lei

federal. O Tribunal local, todavia, poderia negar seguimento ao recurso especial porque a

questão já foi apreciada pelo STJ e a decisão do Tribunal a quo está de acordo com o

posicionamento do Tribunal Superior. A parte poderia então se valer do agravo contra a

decisão denegatória de seguimento de recurso especial. Esse agravo, que é interposto no

Tribunal local, deveria ser apreciado pelo Ministro Relator no STJ. No entanto, recentemente

e contrariando o sistema recursal vigente, o STJ entendeu que o próprio Tribunal local poderia

negar seguimento ao agravo455. Em que pese o posicionamento exarado pela Corte Especial

do STJ sobre o tema, pensamos que a solução para a questão estaria na necessidade de

fundamentação da decisão, explicando o porquê de aquele caso específico necessitar de

454 “O tribunal ad quem deve fiscalizar se os recursos selecionados pelo tribunal a quo efetivamente representam

a controvérsia. Caso se entenda que a controvérsia não está devidamente representada por tais recursos, o procedimento programado para o julgamento de recursos repetitivos não deve seguir adiante. Nessas circunstâncias, deve o julgador comunicar o tribunal a quo para a pronta revogação do sobrestamento dos recursos especiais representados na origem ou tomar as providências necessárias para a seleção de novos recursos”. (NEGRÃO, Theotônio et al. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 733)

455 Segundo trecho do voto condutor da questão de ordem (Ministro Cesar Asfor Rocha), o Tribunal local poderia negar seguimento ao agravo: “A pergunta é: pode o Tribunal de origem, através do seu órgão competente, impedir a subida do agravo de instrumento aplicando a regra do art. 543-C do CPC? Penso que sim, anotando, desde logo, que tal decisão, obstando o prosseguimento do agravo, não representa, em princípio, usurpação da competência desta Corte. Isso por se tratar de recurso absolutamente incabível, não previsto em lei para a hipótese em debate e, portanto, não inserido na competência do Superior Tribunal de Justiça”. (STJ. Corte Especial. QO no Ag. 1.154.599-SP, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 16.02.2011, maioria).

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149 decisão contrária à exarada pela Corte Superior. Não se pode negar o direito de recorrer,

assim como também não se pode ignorar a existência de posicionamento consolidado na corte

superior.

Essa tendência também pode ser verificada pelo que foi discutido no I Encontro da

Associação dos Magistrados Brasileiros e da Escola Nacional da Magistratura. Os temas

centrais da discussão foram os recursos repetitivos e a repercussão geral do recurso

extraordinário. Lá foi definido que:

1. A aplicação imediata da lei dos recursos repetitivos, diferentemente da repercussão geral, atinge os processos em curso, restando razoável a sua aplicação aos temas sumulados pacificados pelas Seções; 2. Afetados os recursos por cada Relator, o recurso representativo da controvérsia de um deles, quando julgado, servirá de paradigma para os demais; 3. A tese firmada no recurso representativo da controvérsia admitirá revisão na forma prevista na resolução do Superior Tribunal de Justiça, a ser expedida oportunamente; 4. O rejulgamento a que se refere a lei pelas instâncias locais deve obedecer a tese firmada no recurso representativo da controvérsia, ressalvada a ausência de identidade jurídica da matéria456.

Acrescida a essa tendência, podemos destacar também a chamada objetivação do

recurso extraordinário, tendência que não pode ser ignorada, mas que de acordo com o

sistema vigente ainda não pode ser aplicada, pois, de acordo com os defensores dessa

objetivação, o julgamento de determinado tema pelo Pleno do STF em sede de recurso

extraordinário teria o condão de estender seus efeitos para a sociedade como um todo, ou seja,

teria os mesmos efeitos que uma decisão em controle abstrato. Entretanto, não se pode ignorar

que a própria Constituição Federal previu a edição de enunciados de súmula vinculante

apenas após maior reflexão da questão e maturação por parte do Tribunal, enfrentando

diversos casos e estabelecendo procedimento próprio para sua aprovação, com quórum

diferenciado. Simplesmente admitir a abstração do controle difuso sem atentar às

peculiaridades previstas pelo Constituinte Derivado para a edição das súmulas vinculantes

seria afrontar a Constituição.

Apesar de contrários à objetivação do controle difuso de constitucionalidade em razão

do regime constitucional hoje vigente, não podemos ignorar essa tendência, que terá cada vez

456 Trecho extraído do voto-vista exarado pelo Min. Luiz Fux: STJ. Corte Especial. QO no Ag. 1.154.599-SP,

rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 16.02.2011, maioria

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150 mais efetividade prática com a obediência pelos magistrados de instância inferior ao que for

decidido pelos tribunais superiores.

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151 CAPÍTULO IV – INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS -

Nova tentativa de prestar a tutela jurisdicional de forma isonômica e num prazo

razoável

6 O surgimento da ideia e suas razões

Não é de hoje a existência de discussão sobre casos “idênticos”, que precisam de

solução idêntica. A estruturação e evolução de um sistema processual voltado para a

resolução das questões de massa teve grande evolução por todo ocidente no século passado457.

Todavia, destacamos algumas das deficiências existentes no sistema processual

brasileiro, pois os indivíduos acabam, como regra, não vinculados ao que foi decidido, quer

em relação às demandas individuais, quer em relação às demandas coletivas. Apesar de não

haver essa vinculação em muitos dos casos, essa situação poderia ser resolvida pela força do

precedente, mas, como vimos, há pouquíssimos casos de precedentes vinculantes no direito

brasileiro.

A manutenção do sistema processual tal como está, permitindo a existência de

demandas individuais quando estas deveriam ser tratadas por meio de processos coletivos, faz

com que sejam permitidas decisões conflitantes sobre um mesmo tema, o que trará por

consequência insegurança jurídica para os jurisdicionados, pois para casos praticamente

idênticos, há decisões conflitantes458.

Não fosse apenas isso, na era da massificação das relações negociais, os litígios

passam a se multiplicar. Para isso, a sociedade jurídica deve se mobilizar para encontrar a

solução mais viável para proteger, de modo eficaz, a tutela coletiva de direitos.

457 Para a elaboração do presente capítulo foi considerado o texto do projeto de lei tal como aprovado pelo

Senado Federal e que ingressou na Câmara dos Deputados sob o nº 8.046/2010, ante a atual discussão sobre o projeto nesta casa.

458 “A divergência jurisprudencial verificada nos conflitos de massa traz perplexidade para as coletividades concernentes, acarreta insegurança nas relações negociais, além de sobrecarregar os Tribunais com iterativos recursos, que, em sua larga maioria, são manejados pelo próprio Poder Público, cliente habitual do Judiciário”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 178)

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152 Em paralelo a isso, diante da constatação dos problemas acima mencionados, surge a

ideia da Comissão de Processualistas encarregada de elaborar o Anteprojeto do CPC de se

criar um incidente de resolução de demandas repetitivas visando a atender aos princípios da

segurança jurídica459, isonomia e prestação da tutela jurisdicional num prazo razoável.

Por meio desse incidente, pretendeu a comissão fazer com que casos idênticos tenham

a mesma resposta do Judiciário, fazendo com que essa resposta seja dada diretamente pelo

tribunal local, com vistas a acelerar a resolução da questão e evitando que diversas demandas

sejam ainda analisadas pelo Judiciário. A ideia inicial é de redução da quantidade de

demandas de massa, pressupondo-se que litígios de massa precisam de uma solução também

de massa, mas sem fazer uso de ações coletivas460.

Diante da necessidade de reestruturação da sistemática processual, na visão de parte da

doutrina461, em 2009, por determinação do Senador José Sarney, então presidente do Senado

Federal, por meio do Ato 379/2009 foi instituída comissão de juristas encarregada de elaborar

proposta de anteprojeto de Código de Processo Civil. Fizeram parte desta Comissão, dentre

outros, o Exmo. Sr. Ministro do STF Luiz Fux, que a presidiu, Teresa Arruda Alvim

Wambier, relatora da Comissão, José Roberto dos Santos Bedaque, Adroaldo Furtado

Fabrício e Humberto Theodoro Junior.

Durante a realização dos trabalhos pela Comissão, o Ministro Luiz Fux solicitou aos

membros a realização de uma proposta para resolução de demandas que envolvessem idêntica

questão de direito. Foram apresentadas propostas, sendo escolhida pelos membros a constante

do Projeto de Lei do Senado 166/2010. Após apresentação de substitutivo ao texto entregue

ao Senado pela Comissão, o texto foi votado e aprovado, sem que tenha ocorrido qualquer

459 “A segurança jurídica seria garantida mediante a certeza advinda da subordinação do juiz à lei. Contudo, é

interessante perceber que a certeza jurídica adquiriu feições antagônicas no civil law e no common law. No common law fundamentou o stare decisis, enquanto que no civil law, foi utilizada para negar a importância dos tribunais e das suas decisões”. MARINONI, Luiz Guilherme. A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 9. A criação do incidente seria uma reação contra a sistemática atual, com vistas à segurança jurídica, para que casos idênticos tenham respostas idênticas.

460 Em 2007 Antonio do Passo Cabral já teve oportunidade de escrever sobre outra forma de solução de litígios de massa: “Procuram-se métodos de decisão em bloco que partam de um caso concreto entre contendores individuais. Trata-se da instauração de uma espécie de incidente coletivo dentro de um processo individual. Preserva-se, dentro da multiplicidade genérica, a identidade e a especificidade do particular. Cada membro do grupo envolvido é tratado como uma parte, ao invés de uma "não-parte substituída." É a tentativa de estabelecer "algo análogo a uma class action, mas sem classe”. (CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss.)

461 Há doutrinadores, como Antonio Cláudio da Costa Machado que defendem a desnecessidade de elaboração de novo Código de Processo Civil.

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153 alteração (nem de conteúdo, nem gramatical) nos artigos que cuidam do incidente de

resolução de demanda repetitiva. O texto aprovado no Senado ingressou na Câmara dos

Deputados sob o nº 8.046/2010, onde se encontra atualmente.

Segundo a exposição de motivos apresentada pela própria Comissão de Juristas462:

Criou-se o incidente de julgamento conjunto de demandas repetitivas, a que adiante se fará referência. Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos mortos” (= períodos em que nada acontece no processo). [...] Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional. [...] Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão463, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta464.

De acordo com a própria comissão, o instituto tem inspiração no direito alemão.

Diante disto, cabe uma análise sobre os institutos assemelhados no direito estrangeiro e

também no direito pátrio.

462 Exposição de motivos que integrou o Projeto de Lei 166/2010. 463 No direito alemão a figura se chama Musterverfahren e gera decisão que serve de modelo (= Muster) para a

resolução de uma quantidade expressiva de processos em que as partes estejam na mesma situação, não se tratando necessariamente, do mesmo autor nem do mesmo réu. (RALF-THOMAS WITTMANN. Il “contenzioso di massa” in Germania. In GIORGETTI ALESSANDRO e VALERIO VALLEFUOCO, Il Contenzioso di massa in Italia, in Europa e nel mondo. Milão: Giuffrè, 2008, p. 178).

464 Tais medidas refletem, sem dúvida, a tendência de coletivização do processo, assim explicada por RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO: “Desde o último quartel do século passado, foi tomando vulto o fenômeno da ‘coletivização’ dos conflitos, à medida que, paralelamente, se foi reconhecendo a inaptidão do processo civil clássico para instrumentalizar essas megacontrovérsias, próprias de uma conflitiva sociedade de massas. Isso explica a proliferação de ações de cunho coletivo, tanto na Constituição Federal (arts. 5º, XXI; LXX, ‘b’; LXXIII; 129, III) como na legislação processual extravagante, empolgando segmentos sociais de largo espectro: consumidores, infância e juventude; deficientes físicos; investidores no mercado de capitais; idosos; torcedores de modalidades desportivas etc. Logo se tornou evidente (e premente) a necessidade da oferta de novos instrumentos capazes de recepcionar esses conflitos assim potencializado, seja em função do número expressivo (ou mesmo indeterminado) dos sujeitos concernentes, seja em função da indivisibilidade do objeto litigioso, que o torna insuscetível de partição e fruição por um titular exclusivo” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução de conflitos e a função judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 379-380).

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154 7 Institutos assemelhados no direito estrangeiro e no direito pátrio

7.1 Musterverfahren do direito alemão

Na Alemanha, há restrição quanto à legitimidade extraordinária, o que acaba por

prejudicar o desenvolvimento do estudo sobre ações coletivas naquele país. Não que inexista

a proteção à tutela coletiva. Existe a proteção de tutela coletiva na Alemanha, só que ela não

permite a condenação por danos individuais465. Há restrição na Alemanha quanto aos

processos coletivos representativos, nos moldes das class actions466.

Uma das justificativas trazidas por alguns quanto à desnecessidade de tutela coletiva

na Alemanha decorre da fiscalização efetivamente exercida pela Administração naquele

país467. Por outro lado, noticia-se que no Brasil, os grandes vilões da proliferação de

processos repetidos seja o próprio Estado468.

465 As associações têm legitimidade para a proteção dos direitos difusos e coletivos, mas o Verbandsklage não

autoriza a tutela ressarcitória individual: “È interessante notare come nell’azione di cui all’art. § 8 della Legge sulla concorrenza (UWG) le associazione non siano legittimate a richiedere il risarcimento del danno, che, ai sensi e per gli effetti del successivo art. § 9, rimane riservato ai concorrenti per il ristoro del danno eventualmente subito dalle attività anticoncorrenziali”. (WITTMANN, Ralf-Thomas. Il ‘contenzioso di massa’ in Germania. In GIORGETTI, Alessandro; VALLEFUOCO, Valerio. Il contenzioso di massa in Italia, in Europa e nel mondo. Profili di comparazione in tema di azioni di classe ed azioni di gruppo. Milano: Giuffrè, 2008, p. 170). Ainda, segundo Remo Caponi, o sistema alemão prevê a Verbandsklage. De acordo com esse sistema, há a atuação de forma preventiva e também extrajudicial de associações previamente constituídas (p. 1.241). Mais abaixo assevera que “Il ponto più debole della tutela assicurata dall’azione dell’associazioni è che essa è diretta esclusivamente ad impedire la continuazione o la ripetizione della condotta illecita per il futuro, mentre i proventi di quest’ultima realizzati nel passato non vengono sottratti all’autore”. (CAPONI, Remo. Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Vol. LXI, n. 4. Milão: Giuffrè, 2007, p. 1.244)

466 Conforme Burkhard Hess no relatório do XIII Congresso Mundial de Direito Processual, “The pre-dominant opinion in Germany does not favor any class actions of American style. The experiences of German and other European litigants with American class actions are largely perceived from a defendant’s perspective. Accordingly, class-action-litigation in the US is often considered as a “nightmare” by European (e.g. German) enterprises”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: RT, 2008, p. 145-146)

467 Remo Caponi traz, como uma das diferenças entre a necessidade de maior poder enérgico das class actions nos Estados Unidos, o baixo controle público e atividade regulatória: “In altri termini, negli Stati Uniti il sistema della giustizia civile è considerato come un importante elemento di regolazione delle condotte sociali ed economiche, nonché frequentemente come unico strumento di compensazione dei pregiudizi economici subiti in conseguenza di incidenti, a causa dell’assenza di un sistema pubblico di assistenza. Viceversa, negli ordinamenti europei, la maggiore attività di regolazione e di controllo pubblici, ad esempio nel settore della protezione del consumatore nei confronti dei prodotti difettosi, può ridurre il bisogno di attivare la leva delle iniziative giudiziarie private per conseguire gli stessi obiettivi di politica pubblica”. (CAPONI, Remo.

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155 A instituição de procedimentos modelo na Alemanha surgiu no Código de Justiça

Administrativa Alemão em 1991, posteriormente alterado em 1996. No ZPO, por sua vez, não

há estabelecimento de normas sobre processos modelo. As partes que possuem demandas

paralelas com questões análogas, de fato ou de direito, têm a possibilidade de celebrar um

acordo, ficando suspensas as demandas enquanto se decide a questão de direito ou de fato.

Após a decisão no processo modelo, o juiz ficará vinculado e decidirá as demais causas de

acordo com o estabelecido no caso modelo469.

Em 16.08.2005 foi criada a Gesetz zur Einführung von Kapitalanleger –

Musterverfharen (Lei que institui o procedimento modelo para os investidores em mercado de

capitais), que entrou em vigor em 01.11.2005.

O surgimento desse procedimento modelo decorreu de falsas informações contidas nos

prospectos informativos por ocasião da colocação das ações da Deutsche Telekom no

mercado, que ocorreu respectivamente nos anos de 1999 e 2000. Os prospectos continham

informações equivocadas, apresentando valorização imobiliária do patrimônio muito acima do

valor real470.

Para se chegar ao valor mobiliário apresentado, foi utilizado método de cálculo que

estava em desacordo com as determinações legais. Em função disso, os investidores

adquiriram as ações da companhia, mas logo depois ocorreu grande desvalorização das ações

em razão das falsas informações. Isso levou cerca de 17.000 investidores ao Tribunal de

Frankfurt para reclamarem seus prejuízos471.

Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Vol. LXI, n. 4. Milão: Giuffrè, 2007, p. 1.232)

468 Essa é a afirmação de Ada Pellegrini Grinover: “A verdadeira vilã da proliferação dos processos repetitivos é a Administração Pública, direta e indireta, responsável por mais de 80% dos recursos pendentes nos tribunais superiores, perante os quais a situação é gravíssima”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo – estudos e pareceres. 2. ed. São Paulo: DPJ, 2009, p. 27)

469 CAPONI, Remo. Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Vol. LXI, n. 4. Milão: Giuffrè, 2007, p. 1.250)

470 CAPONI, Remo. Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Vol. LXI, n. 4. Milão: Giuffrè, 2007, p. 1.250

471 As informações sobre a quantidade de ações não são precisas. Citando o número acima referido: CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 894. Afirmando que se tratava de 2.500 ações, envolvendo 754 advogados e 14.447 investidores: WITTMANN, Ralf-Thomas. Il ‘contenzioso di massa’ in Germania. In GIORGETTI, Alessandro; VALLEFUOCO, Valerio. Il contenzioso di massa in Italia, in Europa e nel mondo. Profili di comparazione in tema di azioni di classe ed azioni di gruppo. Milano: Giuffrè, 2008, p. 176-177

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156 A Lei que instituiu o Musterverfahren tinha prazo certo de vigência. Perderia sua

eficácia em 01.11.2010, de acordo com o seu § 20. Todavia, houve prorrogação de seu prazo

de vigência até 31.10.2012472. Há proposta encaminhada pelo Ministro de Justiça alemão para

que o instituto permaneça no direito alemão sem prazo de vigência473.

O surgimento dessa norma se deu em função do fato específico acima descrito e sua

aplicação também se restringe a algumas hipóteses específicas do mercado de capitais - § 1

(1)474.

7.1.1 Procedimento

De acordo com a KapMuG475, busca-se uma decisão coletiva sobre questões comuns a

litígios individuais. Por meio dele, procura-se resolver os litígios individuais de modo

uniforme. Diferentemente do previsto no incidente de resolução de demandas repetitivas, o

procedimento alemão prevê a resolução tanto de questões de fato quanto de questões de

direito476. No procedimento alemão, decidem-se apenas alguns pontos litigiosos de forma

coletiva, havendo assim uma cisão do julgamento: num primeiro momento será decidida a

questão coletiva e, posteriormente a isso, decide-se a peculiaridade do caso concreto,

obedecendo-se ao que foi definido de forma coletiva477.

472 AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de

resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss. 473 HALFMEIER, Axel. Reform of German Model Proceedings Act planned. Carta enviada para a universidade

de Standford. Disponível em: http://globalclassactions.stanford.edu/sites/default/files/documents/Reform%20of%20German%20Model%20Proceedings%20Act%20planned.pdf acesso em 18.07.2012, às 15h35

474 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 901. A proposta de permanência do KapMuG no sistema alemão prevê um pequeno alargamento para incluir a possibilidade de outras ações que envolvam falsas informações no mercado de capitais.

475 Kapitalanleger-Musterverfahrengesetz - Lei do procedimento modelo para os investidores em mercado de capitais

476 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss.

477 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol. LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 899

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157 Neste procedimento, o objeto da demanda pode ser ampliado até o final do

procedimento, desde que o juízo de origem repute pertinente a ampliação478.

Diferentemente do previsto para o incidente brasileiro, no procedimento alemão não

poderá haver a instauração do Musterverfahren de ofício. Somente pode ser instaurado por

meio de pedido do autor ou do réu, junto ao juízo do processo individual. A parte que requerer

a instauração do procedimento deverá destacar quais são os pontos que necessitam ser

resolvidos de forma coletiva, cabendo a ela também descrever quais serão os meios de prova

utilizados para a comprovação das alegações.

A decisão sobre a instauração do procedimento modelo cabe ao juiz de origem da

demanda, havendo previsão legal de hipóteses de não admissibilidade do procedimento479.

Instaurado o procedimento, prevê o sistema alemão um cadastro eletrônico público e

gratuito, facilitando a consulta pública sobre os procedimentos modelo.

Admitido o procedimento modelo pelo juízo a quo, provoca-se o tribunal a decidir

sobre a questão coletiva. Para que seja admitido o procedimento modelo, deve haver o

requerimento de pelo menos 10 procedimentos modelos onde haja a mesma causa de pedir

num período de 4 meses (requerimento feito ao mesmo juízo ou não). Não havendo número

mínimo de requerimentos, o juiz deverá rejeitar o procedimento modelo, julgando a demanda

de forma individual.

Admitido o procedimento pelo juízo a quo, o feito passará a tramitar perante o

Tribunal, que ficará vinculado à questão da admissibilidade, devendo enfrentar o

procedimento modelo480.

Para que a pessoa possa participar da controvérsia coletiva, ela deverá iniciar uma

demanda individual. Se admitido o procedimento modelo, a decisão deste lhe servirá e a

478 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e

Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol. LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 904 479 “Não é admitido requerimento para instauração de Procedimento-Modelo quando a causa estiver pronta para

julgamento, quando puder prolongar ou postergar indevidamente o processo, quando o meio de prova requerido for inadequado, quando as alegações não se justifiquem dentro dos objetivos do procedimento, ou ainda quando um ponto controvertido não aparentar necessidade de ser aclarado com eficácia coletiva (KapMuG §1 (3)). Em verificando tais hipóteses, deve o juízo rejeitar o requerimento”. (CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss.)

480 CAPONI, Remo. Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Vol. LXI, n. 4. Milão: Giuffrè, 2007, p. 1.252

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158 demanda individual será posteriormente apreciada considerando o que foi decidido no

procedimento modelo481.

Instaurado o procedimento perante o tribunal, será feita a escolha de um líder para os

autores e de outro para os réus. Estes representantes atuarão como interlocutores perante o

Tribunal482.

Na sequência, o tribunal determinará a publicação da instauração do procedimento

modelo, contendo: o decidido pelo juízo de origem quanto à admissibilidade do

procedimento; o objetivo do procedimento; a descrição dos líderes das partes e de seus

representantes legais, se o caso.

Após a publicação, haverá suspensão de ofício de todas as demandas que versem sobre

questões a serem decididas no procedimento modelo. Por fim, o tribunal julgará o

procedimento modelo.

Prevê ainda o sistema alemão a intervenção de terceiros interessados (Beiladung) que

poderão, inclusive, ampliar o objeto da demanda, incluindo outras questões comuns, sejam

elas de fato ou de direito.

Há discussão sobre a qualidade da participação dos demais litigantes dos processos

individuais suspensos. De acordo com o § 8, (3), eles são convocados a fazer parte do

procedimento modelo. Discute-se a qualidade desses, se assumiriam o papel de partes483 ou de

terceiros intervenientes484. De uma forma ou de outra, aqueles que fizerem parte de demandas

individuais suspensas ficarão vinculados ao que for decidido no procedimento modelo.

De acordo com o § 16 (1), a decisão do procedimento modelo vincula os juízos de

origem e afeta as partes do processo, inclusive os intervenientes. Não há um sistema de opt

out485. Debate-se na doutrina sobre a vinculatividade do julgado ou a formação de coisa

481 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e

Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol. LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 898 482 Algo semelhante também ocorre no Group Litigation Order do direito inglês. 483 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e

Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol. LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 905 484 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às

ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss. 485 HESS, Burkhard. In GRINOVER, Ada Pellegrini. Os processos coletivos nos países de civil law e common

law: uma análise de direito comparado. São Paulo: RT, 2008, p. 148

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159 julgada486, pois não fica claro no texto da lei, que menciona vinculatividade e coisa julgada,

que são conceitos distintos.

Na interpretação do dispositivo, baseado na doutrina alemã, Antonio do Passo

Cabral487 discorre sobre a possibilidade de que a decisão não seria vinculativa, mas poderia

afetar os terceiros intervenientes no limite da intervenção, algo semelhante à justiça da

decisão que não poderá ser questionada pelo assistente no direito pátrio (art. 55 do CPC), ou

seja, trata-se do efeito decorrente da intervenção, que na KapMuG ocorre independentemente

da vontade das partes que possuam processos individuais, nos termos do § 8 (3). Todavia,

chega à conclusão de que se trata da formação de coisa julgada havendo uso de técnica da

ampliação dos efeitos da coisa julgada, por esta abranger também matéria fática na

KapMuG488.

Em sentido oposto, todavia, Ralf Thomas Wittmann afirma haver uma tentativa de

recepção do mecanismo de precedentes do direito anglo-saxão:

[...] questo tipo di azione tenta di recepire nel sistema tedesco il principio anglosassone dello stare decisis su di un precedente giurisprudenziale, con l’immancabile problematica che, la differenza di quanto accade nelle giurisdizioni di Common Law, il precedente non è in alcun modo vincolante489.

Parece-nos que pela descrição do dispositivo, apesar de confusa, seja o caso de

formação de coisa julgada, afetando as partes e os demais juízos em razão dos efeitos da

imutabilidade da decisão.

Quanto ao recurso da decisão que julga a ação de grupo alemão, a KapMuG prevê

recurso no § 15 (Rechtsbeschwerde). Esse recurso, para ser admitido, precisa ter requisitos

específicos e fundamentação vinculada. Deve ser demonstrada a significação fundamental do

recurso. A decisão do juízo de origem que admitiu o procedimento modelo é irrecorrível. A

decisão do Tribunal, por sua vez, que julgou a demanda coletiva é recorrível.

486 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às

ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss. 487 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às

ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss. 488 Remo Caponi afirma que a ideia da formação da coisa julgada estaria ligada a uma propagação transnacional

da decisão. CAPONI, Remo. Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Vol. LXI, n. 4. Milão: Giuffrè, 2007, p. 1.253

489 WITTMANN, Ralf-Thomas. Il ‘contenzioso di massa’ in Germania. In GIORGETTI, Alessandro; VALLEFUOCO, Valerio. Il contenzioso di massa in Italia, in Europa e nel mondo. Profili di comparazione in tema di azioni di classe ed azioni di gruppo. Milano: Giuffrè, 2008, p. 176

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160 Têm legitimidade, além das partes, os terceiros interessados intervenientes. Caso os

líderes (Musterkläger ou o Musterbeklagte) não recorram, ou desistam dos recursos por

ventura interpostos, a lei prevê a nomeação de outros líderes.

7.2 Group Litigation Order do Direito Inglês

No direito inglês há três formas de resolução de litígios de massa. Um deles é pelo

Group Litigation Order, o segundo é por meio de ação representativa e o terceiro por meio de

legislação fragmentada sobre diferentes problemas490. Ater-nos-emos à primeira das formas.

No direito inglês, em meados da década de 80 surgiu uma multiplicidade de

demandas, sem que houvesse sequer regra específica para tutela coletiva de direitos

individuais491. A doutrina cita o caso do benzodiazepínicos como exemplo dessa litígio de

massa492. Antes desse caso, cita-se o problema da focomelia (má formação) causada pela

talidomida, tendo sido necessárias duas décadas para resolver os problemas decorrentes desse

medicamento, o que teve início nos idos de 1960493.

A regulamentação legal da GLO494 ocorreu com a edição do Código de Processo Civil

Inglês (CPR).

De acordo com o Código Inglês, a GLO é considerada uma ação de grupo. As ações de

grupo são diferentes das ações de classe, porque nas ações de grupo cada membro do grupo é

considerado litigante495. Por conta disso, ao contrário do que ocorre no direito americano, aqui

490 MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito

comparado. São Paulo: RT, 2008, p. 260 491 Apesar de as class actions terem origem nas ações representativas da Inglaterra, ainda no século passado

houve grande restrição às demandas indenizatórias, porque elas poderiam ser ajuizadas individualmente. 492 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 11 493 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 11. No direito

brasileiro criou-se a Lei 7.070/1982 para conceder pensão especial aos portadores da “síndrome da talidomida”. Talidomida era um medicamento indicado para náuseas que acabou causando efeitos colaterais gerando má formação fetal.

494 Group Order Litigation 495 “Group actions are different from class actions because each group litigant is a member of a procedural class

as a party, rather than as a represented non–party. (ANDREWS, Neil. Multi-party proceedings in England: representative and group actions. Duke Journal of Comparative & International Law, vol. 11. Durham: 2001, p. 249)

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161 estaremos diante do ingresso de terceiros na demanda e não da exclusão (mecanismo do opt

in, diferentemente das class actions em que se adota o opt out)496.

As questões que poderão dar ensejo à formação do grupo poderão ser tanto de direito

como de fato, semelhantemente ao que acontece no direito alemão e diferentemente do

previsto no incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro.

Na GLO, os poderes dos juízes são mais amplos para controle eficiente do julgado497.

A “Multi-party action” difere-se das “class actions” do sistema norte americano, pois

nestas há vinculação de todos os membros daquele grupo ao resultado da demanda498.

A doutrina cita como casos passíveis se serem enfrentados por meio desse

procedimento os decorrentes de responsabilidade civil499. Citam-se problemas decorrentes do

manuseio de amianto por trabalhadores, bebidas quentes servidas pelo Mc Donald’s, remoção

de órgãos de crianças falecidas, trombose decorrente de voos longos etc500.

Por admitir a análise de questões de fato, o julgamento afeta apenas as partes de outras

demandas já propostas que fizeram parte do registro da GLO ao tempo do julgamento, salvo

se a corte decidir de forma diferente.

Aqui adota-se o sistema opt in, pois o Tribunal estabelece uma data final para que

novos litigantes façam parte da demanda e possam se beneficiar com o resultado do

processo501. Os indivíduos deverão aderir ao processo em grupo. Pode também o Tribunal

determinar que as ações individuais ajuizadas separadamente sejam agrupadas numa GLO502.

496 MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito

comparado. São Paulo: RT, 2008, p. 260; ANDREWS, New. Multi-party litigation in England: current arrengements and proposals for change. Revista de processo. vol 167. São Paulo: RT, 2009, p. 271 e ss

497 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 12 498 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 13 499 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 24 500 Para informação sobre as GLO: http://www.justice.gov.uk/guidance/courts-and-tribunals/courts/group-

litigation-orders.htm Acesso em 19.11.2011, às 9h50 501 Há certa semelhança com o chamado litisconsorzio aggregato do direito italiano, pois lá a parte poderá optar

por aderir à demanda e assim o fazendo, sua sorte dependerá do resultado da demanda coletiva. E, segundo Tarrufo, a decisão coletiva terá caráter persuasivo sobre a ação individual futura. TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di diritto e procedura civile. 2007, p. 712.

502 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. São Paulo: RT, 2009, p. 345

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162 No sistema Inglês há a previsão do julgamento de uma ação teste (Rule 19.15), que

vinculará as demais demandas previamente registradas, salvo se a Corte decidir de forma

diferente (Rule 19.12.1.a).

Não há vinculação com as demandas futuras (as partes podem aderir à demanda, sendo

estabelecida uma data de corte – cut of date). Apesar de haver uma data limite para a afetação

daqueles que optaram pelo seu ingresso, o resultado da ação deverá ser considerado pelo

Tribunal como leading case para o julgamento das ações futuras. De acordo com a

sistemática, haverá a vinculação apenas daqueles que aderiram ao grupo. Não há vinculação

para casos futuros, diferente do que é previsto para o incidente de resolução de demandas

repetitivas. Não obstante, anota Christopher Hodges que o fato de não vincular causas futuras

não significa que as partes podem ajuizar demandas sem que tragam fatos novos. Permite-se o

ajuizamento de novas ações porque se houver novas provas o Tribunal poderá julgar de forma

diferente503. Ao que tudo indica, a questão seria similar à formação da coisa julgada num

processo coletivo e não a efeito vinculante da decisão. Ocorre que a coisa julgada nesse caso

seria formada não secundum eventum litis, mas secundum eventum probationis, não

impedindo o manejo de ação individual, porque a parte poderá trazer elementos novos;

todavia, se não os trouxer, poderá estar praticando um abuso no direito de demandar.

No total, até 19/11/2011 as Group Litigation Orders que tramitavam perante Queen’s

Bench somavam o total de 75 demandas504.

A instauração do procedimento poderá decorrer de iniciativa de qualquer das partes ou

mesmo de ofício pelo juiz505 (difere-se do sistema alemão, na qual o juiz não poderá dar início

ao Musterverfahren).

As GLO são registradas e esse registro é mantido pelo Senior Master e pela Law

Society. Na High Court há previsão de uma audiência para tentativa de acordo, da qual

poderão participar até 100 advogados, representando 3.400 autores e 3 réus. “Pode haver até

seis Silks na linha de frente e grupos de Junior Barristers e solicitors atrás delas” 506.

503 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 43-46 504 http://www.justice.gov.uk/guidance/courts-and-tribunals/courts/group-litigation-orders.htm Acesso em

19.11.2011, às 9h50 505 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni collettive alla prova: Inghilterra e

Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. vol. LX, n. 3. Milão: Giuffrè, 2006, p. 899 506 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na

Inglaterra. São Paulo: RT, 2009, p. 345. Silks são os Queen’s Consels. Barristers são advogados que atuam

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163 De acordo com o então507 Senior Master da Queen’s Bench Division (que seria como

um órgão da High Court criado para casos maiores, fazendo parte do Tribunal em 1º Grau),

nas ações em que ele esteve envolvido foi possível a realização de acordo ou prolação de

decisões em cerca de um terço ou metade do tempo previsto para o trâmite de uma demanda

comum508.

Verifica-se outra diferença em relação ao incidente de resolução de demandas

repetitivas brasileiro: no direito inglês há a possibilidade de transação. Pensamos que no

direito brasileiro, em razão de defendermos o posicionamento de que o incidente formará

precedente sobre a forma com a qual a lei deva ser interpretada e aplicada, não poderão as

partes transacionar sobre isso509.

7.3 Institutos assemelhados no direito pátrio

No direito pátrio, os primeiros trabalhos sobre o tema descrevem que o incidente de

resolução de demandas repetitivas assemelha-se ao incidente de declaração de

inconstitucionalidade (no controle difuso realizado pelos Tribunais) e ao incidente de

uniformização dos julgados perante as Turmas Recursais nos Juizados Especiais Federais (art.

14 da Lei 10.259/2001)510. Podemos destacar que o incidente tem relação próxima também

nos Tribunais. Diferentemente do Brasil, a atuação por advogado no Tribunal não é feita por qualquer advogado.

507 Hoje aposentado 508 “Em GLOs nas quais estive envolvido, conseguimos acordos ou chagamos a decisões em cerca de metade ou

um terço do tempo que um litígio normal levaria. Em todos os casos, as partes saíram satisfeitas com os resultados. A quantidade de processos no tribunal foi drasticamente reduzida. Diversas pessoas, que de outra forma não conseguiriam indenização justa, obtiveram a compensação desejada, que nem mesmo tentariam obter não fosse o sistema de GLO”. ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. São Paulo: RT, 2009, p. 350.

509 Em sentido contrário: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.

510 Afirmando se tratar de um incidente de uniformização de jurisprudência de caráter vinculante: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010, p. 177. Afirmando similitude entre o incidente do projeto e os incidentes de uniformização de jurisprudência e de declaração de inconstitucionalidade: ROSSONI, Igor Bimkowski. O “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” e a Introdução do Group Litigation no Direito Brasileiro: Avanço ou Retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/50-artigos-dez-2010/7360-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso, acesso em 07.11.2011, às 11h13. No mesmo sentido: BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de Código de Processo Civil: apontamentos

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164 com a recente experiência dos recursos representativos de controvérsia, previstos nos artigos

543-B e 543-C. Abaixo procuraremos demonstrar as similitudes e diferenças do incidente de

resolução de demandas repetitivas com cada um desses institutos.

7.3.1 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o

incidente de inconstitucionalidade

No incidente de inconstitucionalidade realizado pelos Tribunais, a ação originária ou o

recurso acaba sendo desmembrado, ficando a cargo do Pleno ou Órgão Especial o controle de

constitucionalidade e a cargo do órgão fracionário a apreciação das demais questões.

Diferentemente do que ocorre com o incidente de resolução de demandas repetitivas, em que

a ação estará tramitando, como regra, na primeira instância e será deslocada para o Tribunal

para a resolução da questão de direito controversa, no incidente de inconstitucionalidade os

autos já se encontrarão sob a análise do Tribunal. Como regra, de acordo com o PL

8.046/2010 o incidente terá início em primeiro grau de jurisdição, sendo encaminhado

posteriormente para o presidente do Tribunal. Nada impede, todavia, que o incidente seja

instaurado numa demanda que já esteja em segundo grau de jurisdição, haja vista que o

próprio art. 930, § 1º, I, prevê a possibilidade de o relator da demanda (recursal ou originária)

no Tribunal instaurar o incidente.

Quanto à competência, não há diferença entre os institutos. A apreciação do incidente

de resolução de demandas repetitivas será do Pleno ou do Órgão Especial do Tribunal (art. 45,

parágrafo único, e 933 do projeto)511. No incidente de inconstitucionalidade, a competência

também será do Pleno ou do Órgão Especial em razão da cláusula de reserva de plenário

prevista no art. 97 da CF. O juízo monocrático não terá competência para o incidente de

resolução de demandas repetitivas.

iniciais. In. FUX, Luiz. (coord.) O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 435 e ss.

511 Ao tratarmos da competência do instituto abordaremos as críticas à opção do legislador em atribuir a competência ao pleno ou ao órgão especial

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165 O juiz em primeiro grau poderá dar início à instauração do incidente de resolução de

demandas repetitivas, mas não poderá provocar o Tribunal para apreciar o incidente de

inconstitucionalidade.

O incidente de constitucionalidade poderá ocorrer tanto nos Tribunais locais quanto

nos superiores. O incidente de resolução de demandas repetitivas prevê, num primeiro

momento, que a apreciação do incidente será realizada nos Tribunais locais. Não parece haver

a possibilidade de resolução do incidente de demandas repetitivas em Tribunal Superior512.

Decidido o incidente de resolução de demandas repetitivas, o projeto fala que a “tese

jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito e que

tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal” (art. 938 do PL). Na resolução do

incidente de inconstitucionalidade, por sua vez, não há previsão de uma força vinculante, mas

o CPC prevê que “Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao

órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento

destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão” (art. 481, parágrafo

único, do CPC). Verifica-se que no incidente de inconstitucionalidade, se o Pleno ou Órgão

Especial entenderem que a norma é inconstitucional, os órgãos fracionários não precisarão

submeter novamente o caso à apreciação do colegiado maior. Poderá o relator, até mesmo

monocraticamente, aplicar o posicionamento adotado pelo Pleno ou Órgão Especial. Isso não

impedirá, todavia, que a câmara ou turma entenda que a norma seja constitucional em casos

futuros. Somente no caso de a câmara ou turma entender que a norma seja inconstitucional

(apesar de declarada constitucional pelo Pleno, por exemplo) é que esta deverá encaminhar

novamente a questão para apreciação do Pleno (ou Órgão Especial).

No incidente de resolução de demandas repetitivas, uma vez definida a questão, a

princípio não haverá nova submissão da matéria ao Pleno513.

A ideia da legislação em ambos os casos será a de obediência dos Órgãos fracionários,

bem como dos juízes a quo, ao posicionamento do Tribunal a que estão, de certa forma,

vinculados. Essa vinculatividade deveria ocorrer não por obrigação da lei ou da Constituição,

mas por lógica do sistema. A redação para o incidente de resolução de demandas repetitivas

512 Abaixo, ao tratarmos da competência no incidente de resolução de demandas repetitivas explicaremos a

questão com maior detalhe. 513 Nada impede que seja novamente suscitado o incidente diante de alteração legislativa, cultural ou da

peculiaridade do caso concreto, que não foi objeto de análise pelo Tribunal, mas que seja plausível de fazer com que o posicionamento do Tribunal seja alterado (vide art. 882 e § 1º do Projeto).

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166 parece dar maior força ao precedente do que a gerada com a redação do CPC para o incidente

de inconstitucionalidade.

De acordo com a previsão constitucional hoje vigente, não se pode falar que o

incidente de resolução de demandas repetitivas terá efeito vinculante. Também não se pode

falar que o controle difuso de constitucionalidade tenha essa característica, pois esta pertence

ao controle concentrado de constitucionalidade.

O incidente de inconstitucionalidade trata de matéria de direito, que seria da

competência do STF no controle concentrado e atribuído a todos os juízes no controle difuso.

Não há nenhuma vedação no projeto de lei quanto à aplicação do incidente de

resolução de demandas repetitivas tendo como controvérsia a constitucionalidade ou

inconstitucionalidade de lei. Exemplifiquemos: discute-se se determinada lei Y que trata de

matéria tributária estaria ofendendo ou não o princípio da anterioridade (art. 150, III, da CF).

Diante disso, diversas serão as demandas propostas, na qual as partes pretendem a repetição

do tributo pago a maior em razão da inconstitucionalidade da norma Y. Se uma demanda

individual chegar ao Tribunal, a Câmara não poderá entender por inconstitucional a norma em

razão da cláusula de reserva de plenário, devendo ser instaurado o incidente de

inconstitucionalidade, para que a matéria seja apreciada pelo Pleno ou Órgão Especial.

Resta saber se poderia ser suscitado, no presente caso, o incidente de resolução de

demandas repetitivas. Haveria usurpação de competência do STF caso o Tribunal local julgue

a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo diante da Constituição

Federal (lembrando-se que o resultado do julgamento do incidente afetará todos no âmbito de

competência do Tribunal local)?

Quando da análise de questão semelhante decorrente da apreciação de matéria

constitucional em ação civil pública, o STF teve a oportunidade de se manifestar pela

possibilidade dessa análise, uma vez que a análise da constitucionalidade da norma teria sido

realizada como questão prejudicial na ação coletiva e, em razão disto, não faria coisa julgada

erga omnes514, porque a análise da questão prejudicial teria sido realizada na fundamentação

da decisão e não na parte dispositiva. Assim, de acordo com o CPC, os motivos da decisão,

ainda que importantes, não ficam acobertados pelo manto da coisa julgada.

514 No caso de procedência de demanda que envolva direito difuso, por exemplo.

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167 No incidente de resolução de demandas repetitivas, entretanto, não se fala em

formação de coisa julgada, mas de vinculação ao precedente515.

Numa primeira análise poderíamos chegar à conclusão de que haveria usurpação da

competência do STF, todavia discordamos de tal ideia. Os Tribunais já realizam hoje o

controle de constitucionalidade de forma difusa. Em razão disso, por uma lógica do sistema,

os juízes e as câmaras do Tribunal deveriam obedecer ao posicionamento exarado pelo

Tribunal no controle difuso. Há um precedente que, apesar de não ser vinculante, exerce força

persuasiva que deve ser levada em consideração pelos órgãos fracionários do Tribunal e pelo

juízo a quo.

Não se está afirmando que qualquer cidadão poderá dar início por meio de um

incidente de resolução de demandas repetitivas a um controle concentrado de

constitucionalidade exercido por um Tribunal local. O que se está afirmando é que a matéria

constitucional também poderá ser apreciada no incidente, assim como já ocorre no incidente

de inconstitucionalidade.

Acrescente-se a essa justificativa a previsão de recurso extraordinário da decisão que

apreciar o incidente. Se o legislador do projeto previu a possibilidade de interposição de

recurso extraordinário é porque o incidente poderá apreciar matéria constitucional.

Não haveria razão em se prever a possibilidade de recurso extraordinário da decisão

que julga o incidente de resolução de demandas repetitivas se este não puder apreciar a

constitucionalidade ou não da quaestio juris.

515 Considerando que o resultado do incidente afeta os demais membros do Judiciário e da Administração

Pública Direta e Indireta ao que foi decidido no incidente, pensamos que não se trata de formação de coisa julgada, na qual são as partes ficarão sujeitas à eficácia da decisão. As partes somente ficarão sujeitas à coisa julgada após a prolação pelo juiz da decisão (juízo a quo). Esse juiz deverá julgar o caso individual aplicando a mesma tese firmada no julgamento do incidente. Sobre a possibilidade de aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes: STF. Rcl. 2.986-MC/SE. Rel. Min. Celso de Mello, j. 11.03.2005; STF. Pleno. Rcl. 1.987-0-DF. Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05.06.2002. Mais recentemente, contudo, o STF vem se posicionando pela inadmissibilidade de aplicação dessa teoria.

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168 7.3.2 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o

incidente de uniformização de jurisprudência

O incidente de resolução de demandas repetitivas tem em comum com o incidente de

uniformização de jurisprudência a análise de questões apenas de direito. Tanto num como no

outro não se resolverão questões de fato516. Também tem como semelhança a existência de

dois órgãos distintos para apreciar a matéria, todavia no novo instituto processual, como

regra, a demanda será iniciada em primeira instância e, havendo a instauração do incidente, a

matéria objeto do incidente será encaminhada para o pleno ou órgão especial, que terá

competência para apreciar apenas a questão de direito. No incidente de uniformização de

jurisprudência a demanda já estará tramitando perante a câmara ou turma do tribunal, onde

haverá a suscitação do incidente que será encaminhado ao pleno ou órgão especial (ou outro

órgão que o Regimento Interno do Tribunal indicar).

No incidente de resolução de demandas repetitivas o órgão previsto como competente

pelo projeto de lei para julgar a demanda será o pleno ou órgão especial. Já no incidente de

uniformização de jurisprudência, os artigos 476 a 479 do CPC se referem apenas ao Tribunal,

sendo a matéria tratada pelos regimentos internos dos tribunais.

No novo instituto, haverá a suspensão de outras demandas que envolvam idênticas

questões de direito, o que não ocorre com o atual incidente de uniformização de

jurisprudência.

O incidente de uniformização pode ser requerido por qualquer das partes, pelo

Ministério Público ou por qualquer dos julgadores da demanda. Até mesmo terceiros

juridicamente interessados podem requerer a instauração do incidente de uniformização de

jurisprudência517. O incidente de resolução de demandas, por sua vez, prevê também a

legitimidade da defensoria e do juiz de primeiro grau.

Como exposto acima (ao tratar do incidente de uniformização de jurisprudência),

entendemos que não há faculdade do julgador em instaurar ou não o incidente de

516 Abaixo trataremos da distinção entre questões de direito e de fato. 517 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p.

366. Para Ada Pellegrini, as partes podem até requerer que o julgamento se faça obedecendo-se ao disposto nos art. 476 a 479, mas a legitimidade para a solicitação do pronunciamento prévio é do magistrado. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 147)

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169 uniformização (apesar de não haver recurso contra a decisão de admissibilidade do

incidente)518. Ou há divergência e o incidente requerido deve ser instaurado ou não há

divergência e, por esse motivo não deverá ser instaurado519.

Resolvido o incidente de uniformização, os autos são devolvidos à Câmara ou Turma,

que ficará vinculada ao que foi decidido pelo Pleno ou Órgão Especial. A depender do

quórum no julgamento do incidente de uniformização (maioria absoluta), será editado

enunciado de súmula, constituindo precedente na uniformização da jurisprudência.

Apesar de se estar diante de um caso concreto no incidente de uniformização de

jurisprudência, será feita a abstração da matéria de fato, para que o tribunal julgue apenas a

matéria de direito, sendo os autos devolvidos para que o colegiado menor (câmara ou turma)

julgue a demanda, vinculando-se ao que foi decidido pelo colegiado maior (essa vinculação

ocorrerá apenas em relação ao caso em que foi suscitado o incidente de uniformização de

jurisprudência). Da decisão do colegiado maior não haverá a possibilidade de interposição de

recursos. Será recorrível a decisão da câmara ou turma que julgar a ação de competência

originária do tribunal ou que julgar o recurso e decidir com base no que foi estabelecido no

incidente de uniformização de jurisprudência.

Em relação ao incidente de resolução de demandas repetitivas, por sua vez, a decisão

sobre a questão de direito será recorrível. A decisão poderá ser passível de recurso especial ou

518 Nesse sentido: “O incidente de uniformização de jurisprudência afigura-se como garantia do jurisdicionado.

Presentes seus requisitos – impõem os valores igualdade, segurança, economia e respeitabilidade – deve ser instaurado. Trata-se de técnica processual perfeitamente identificada com os postulados mais nobres existentes em nosso ordenamento e intimamente ligada ao efetivo acesso ao Judiciário”. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de Jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 204. No mesmo sentido: DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 572

519 Em sentido contrário: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15-18. No mesmo sentido: INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. HABEAS CORPUS. AGRAVO REGIMENTAL ANTERIORMENTE JULGADO. INCIDENTE EXTEMPORÂNEO. NÃO CABIMENTO. ADMISSÃO. FACULDADE DO JULGADOR. DISCRICIONARIEDADE. PEDIDO INDEFERIDO. 1. O incidente de uniformização de jurisprudência é medida preventiva, não figurando como instrumento de retificação, devendo a parte suscitá-lo nas razões do recurso ou em petição avulsa, até o julgamento do mérito da impetração. 2. De mais a mais, a provocação do incidente constitui faculdade, não vinculando o julgador, que usufrui da análise da conveniência e da oportunidade para admití-lo. 3. Pedido indeferido. (STJ. 6ª Turma. IUJur no AgRg no HC 1200.990-RS, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 21.10.2010, v.u.). Também: “[...]5. É cediço em sede doutrinária que se reconhece ao órgão julgador da primazia da suscitação do incidente de uniformização discricionariedade no exame da necessidade do incidente porquanto, por vezes suscitado com intuito protelatório. [...] STJ. 1ª Turma. REsp. 745.363-PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 20.09.2007, v.u.). Também se posicionam nesse sentido: ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 745

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170 de recurso extraordinário, o que não acontece com a decisão do tribunal ao julgar o incidente

de uniformização de jurisprudência.

No incidente de resolução de demandas repetitivas não se prevê a edição de enunciado

de súmula. Está previsto apenas que “a tese jurídica será aplicada a todos os processos que

versem idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo

tribunal” (art. 938 do PL 8.046/210).

Se já tivéssemos adotado a ideia de obediência aos precedentes, o incidente de

resolução de demandas repetitivas não teria razão de ser, porque o incidente de uniformização

de jurisprudência (que já previa a criação de precedente) justificaria sua função prevista pelo

legislador de 1973.

Como destacado acima, em razão da ausência de vinculatividade e do

desmembramento do julgamento, o incidente de uniformização acabou caindo em desuso.

Como os juízes e os próprios membros dos tribunais não obedecem à uniformização

de sua jurisprudência, o incidente de uniformização perdeu a razão de ser. O Projeto de Lei

8.046/2010 não traz tanta inovação nesse ponto. Como verificado acima, ao tratarmos do

incidente de uniformização de jurisprudência, estava previsto no projeto de lei do CPC de

1973 a edição de assentos que tornariam vinculativos os posicionamentos exarados nos

incidentes de uniformização de jurisprudência. Todavia, em razão da duvidosa

constitucionalidade sobre a edição de assentos, houve a exclusão da possibilidade de sua

edição, havendo apenas a possibilidade de edição de enunciados de súmulas persuasivas pelos

tribunais. O novo instituto, ao prever o julgamento de forma objetiva do incidente de

resolução de demandas repetitivas trouxe consigo a mesma necessidade já verificada para o

incidente de uniformização de jurisprudência, qual seja: a necessidade de os demais

magistrados obedecerem aos precedentes exarados pelos colegiados maiores do Tribunal. O

futuro desse novo instituto dependerá da adaptação da cultura jurídica nacional à obediência

aos precedentes. Não há vinculação obrigatória como há para os enunciados de súmula

vinculantes do STF ou para as ações que tramitam pelo controle concentrado de

constitucionalidade. A vinculação aqui se dará pela persuasão. Talvez fosse prudente a

redação de dispositivo semelhante ao previsto no 103, § 1º, do Decreto 16.273/1923520 ou até

520 Art. 103. “Quando a lei receber interpretação diversa nas Câmaras de Appellação cível ou criminal, ou

quando resultar da manifestação dos votos de uma Câmara em um caso sub-judice que se terá de declarar uma interpretação diversa, deverá a Câmara divergente representar, por seu Presidente, ao Presidente da

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171 mesmo o acréscimo de um artigo ou parágrafo afirmando que para o magistrado deixar de

julgar no mesmo sentido do incidente de resolução de demandas repetitivas deverá haver

fundamentação no sentido de demonstrar o porquê a tese fixada no incidente não deva ser

aplicado àquele caso específico.

A ideia do incidente de resolução de demandas repetitivas será útil se houver mudança

na mentalidade dos operadores do direito, pois a continuarmos com a ideia ainda vigente de

que o magistrado é livre para interpretar qualquer matéria, até mesmo indo contra

interpretação consolidada nos tribunais superiores, sem ao menos fundamentar o porquê da

decisão em sentido contrário (em razão da evolução da sociedade, da peculiaridade local, dos

fatos serem distintos etc.), fará esvaziar o instituto521.

Há proposta apresentada por doutrinadores de alteração do art. 930 para que dele

conste que a tese adotada no incidente terá eficácia vinculante.

Parece que essa deve ser a ideia, até mesmo porque os operadores do direito, no dia-a-

dia não saberão obedecer à formação de um precedente meramente persuasivo. A obediência,

todavia, não deverá decorrer de uma obrigatoriedade imposta, mas sim de uma constância em

razão de uma fundamentação plausível e escorreita, capaz de fazer com que os casos idênticos

sejam julgados de forma idêntica.

A problemática prática será a propagação, no meio jurídico, de que o incidente de

resolução de demandas repetitivas tenha eficácia de precedente persuasivo, isto porque poderá

não haver o comprometimento em se justificar o porquê de o magistrado julgar em sentido

contrário. Mais uma vez, talvez fosse o caso de acrescentar no texto do projeto que o

magistrado deverá verificar as similitudes de diferenças do caso sub judice com o incidente de

resolução de demandas repetitivas, para que possa fundamentar sua decisão no mesmo sentido

(em razão da similitude) ou em sentido diverso (em razão de alguma peculiaridade).

Côrte, para que este, incontinenti, faça a convocação para a reunião das duas Câmaras, conforme a matéria, fôr cível ou criminal”. “§ 1º. Reunidas as Câmaras e submettida a questão á sua deliberação, o vencido, por maioria, constitue decisão obrigatória para o caso em apreço e norma aconselhável para os casos futuros, salvo relevantes motivos de direito, que justifiquem renovar-se idêntico procedimento de installação das Câmaras Reunidas”.

521 Pode até haver casos, como de fato há, em que o juiz, assim como as partes, poderão se valer de entendimento doutrinário em sentido contrário às teses fixadas pelos tribunais superiores para justificar decisão em sentido contrário a estes tribunais. Como já asseverava Carlos Maximiliano, citando Geny, os julgados devem ser observados quando acordes com a doutrina. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 225)

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172 Se não houver mudança de mentalidade dos operadores do direito correremos o risco

de o instituto cair em desuso, assim como aconteceu com o incidente de uniformização de

jurisprudência.

Por fim, uma última diferença decorre da previsão legal para o incidente de resolução

de demandas repetitivas, que sugere a existência de relações jurídicas de massa, que poderão

fazer surgir litígios de massa522, envolvendo idêntica questão de direito. No incidente de

uniformização de jurisprudência o que poderá servir de apoio para sua instauração é a

divergência dentro do Tribunal, que poderá ocorrer entre dois julgados apenas. No incidente

de resolução de demandas repetitivas fala-se em “potencial de gerar relevante multiplicação

de processos”.

7.3.3 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o

julgamento dos recursos representativos de controvérsia

Conforme destacado acima, após a reforma do Judiciário, por meio da Emenda

Constitucional 45 de 08.12.2004, ocorreu alterações no CPC com vistas a agilizar a prestação

da tutela jurisdicional e a desafogar os Tribunais Superiores523. Na sequência, houve a

inclusão dos artigos 543-A e 543-B e, posteriormente, do art. 543-C ao CPC.

A partir dai os Tribunais Superiores podem analisar recursos excepcionais por

amostragem quando verificarem a multiplicidade de recursos “com idêntica controvérsia” (art.

543-B) ou “idêntica questão de direito” (art. 543-C)524.

Tanto num como no outro caso estaremos diante de questão de direito, o que também

ocorre com o incidente de resolução de demandas repetitivas.

522 Não há qualquer restrição legal no incidente quanto às relações de consumo apenas, mas o que se prevê são

repetições de litígios envolvendo a mesma tese jurídica. 523 De acordo com Flávio Dino, em pesquisa realizada no STF, 45 assuntos representam a massa de 65% dos

processos existentes do STF. Ainda 8 assuntos respondem por 30% dos processos. Conforme exposição no Seminário A Reforma do Processo Civil Brasileiro, realizada em 29 de março de 2005. A Reforma do Processo Civil Brasileiro. Brasília: Artcor, 2005, p. 24-25

524 No projeto, esse tema é tratado nos artigos 990 a 995.

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173 Os procedimentos previstos nos art. 543-B e 543-C ficam a cargo do presidente do

Tribunal a quo ou do próprio relator do recurso excepcional, enquanto a instauração do

incidente de resolução de demandas repetitivas poderá ser requerida também pelas partes.

O resultado tanto no incidente como no julgamento do recurso repetitivo que tramitou

pelo procedimento descrito no art. 543-B ou 543-C deverá ser aplicado às demais causas.

O incidente prevê a suspensão das demais demandas pendentes que envolvam a

discussão da mesma questão de direito. O recurso excepcional, como regra, todavia, não prevê

a suspensão de todas as demandas. Pode haver o “represamento” dos recursos excepcionais

em segundo grau (§ 1º dos artigos 543-B e 543-C). Não se desconhece que tenha já o STF

decidido pela suspensão de todas as demandas, inclusive em primeiro grau de jurisdição na

questão envolvendo correção dos créditos existentes em cadernetas de poupança (RE 591.797

e RE 626.307).

O julgamento de recursos repetitivos prevê a seleção pelo presidente do Tribunal a

quo de casos representativos da controvérsia. Não se fala em quantos deverão ser

solucionados, mas a ideia é a de levar a conhecimento do Tribunal Superior as mais variadas

teses tanto num sentido como no outro, ante a objetivação do resultado do recurso.

No incidente de resolução de demandas repetitivas haverá apenas a análise de um

único caso. O caso no qual foi requerida a instauração do incidente pode nem ser o que tenha

bons argumentos num ou noutro sentido. Parece-nos que isso prejudicará a objetivação que se

espera do resultado do julgamento do incidente.

O incidente de resolução de demandas repetitivas será julgado pelos Tribunais de

segundo grau. O julgamento dos recursos excepcionais repetitivos será feito pelos Tribunais

Superiores. O julgamento de recursos repetitivos ocorrerá nas hipóteses de recursos especial e

extraordinário. Já o incidente de resolução de demandas repetitivas poderá ocorrer nas

hipóteses de ações originárias que tramitam perante o juiz em primeiro grau de jurisdição,

ações originárias de competência dos Tribunais (desde que atendidos os requisitos), e nos

casos de julgamento de recursos pelos Tribunais.

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174 8 O incidente de resolução de demandas repetitivas no PL 8.046/2010 – estudo

detalhado

Feitas as primeiras considerações sobre o instituto, procuraremos nos aprofundar no

estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas.

8.1 Conceito, natureza jurídica e finalidade

Não se trata de um novo recurso, novo processo ou ação, mas de um incidente.

Classificar esse novo instituto como incidente nos leva, antes de tudo, a conceituar incidente.

O termo incidente tem sua origem no verbo incidir, do latim incidere. Segundo De

Plácido e Silva, incidente pode ser conceituado como “a superveniência de fato ou de

questão, que ocorre quando se trata de outro fato ou questão, de que se mostra acessório, e

esta, a principal”525.

De acordo com sua origem etimológica aquilo “que cai em cima de algo em

movimento, interrompendo seu curso normal”526. Por sua vez, incidente processual significa

“aquilo que se insere no processo, podendo interromper seu movimento, podendo

obstaculizar o seu caminhar” 527.

Assim verificamos que o incidente de resolução de demandas repetitivas, por sua

natureza, é algo estranho ao processo na qual ele se insere, não se constituindo em ato ou

termo essencial do processo. Justificamos a natureza do instituto, afirmando que não pode ser

processo, pois esse novo instituto somente surge no curso de um processo. Para que ele possa

ser instaurado se faz necessário que exista um processo. Também não se trata de recurso, haja

vista que não há decisão anterior que se requer reforma ou anulação528.

525 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 12. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 445 526 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 29 527 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 29 528 “[...] o recurso é dirigido contra uma precedente decisão e o incidente introduz uma nova questão que será

resolvida mediante apreciação jurisdicional. No incidente há uma indagação colateral, substancialmente estranha ao thema decidendum ainda que a ele ligado; o recurso pretende um novo julgamento a respeito do

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175 Dizer apenas que esse novo instituto tem natureza de incidente, todavia, não é

suficiente, pois o incidente pode estar relacionado à solução de certas questões, que produz

uma simples dilatação no curso do processo; pode provocar a formação de um procedimento

lateral ao processo; ou até mesmo provocar a constituição de um novo processo (processo

incidental).

Parece-nos que no caso em questão estamos diante de um incidente processual529. Não

se trata de processo incidente porque não resulta num direito de ação. Não há nova relação

jurídica processual, nem pretensão autônoma. Representa ele uma alteração da marcha

processual530.

A questão de direito objeto do incidente de resolução de demandas repetitivas pode ser

resolvida no curso do próprio processo, sem alteração procedimental. Todavia, havendo

requerimento para instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas, formar-se-á

um procedimento separado para resolução destas questões de direito. Para que haja a

resolução da questão de direito de forma objetiva, foge-se à normalidade do processo.

Esse incidente que ocorrerá numa demanda individual (ou até mesmo coletiva) e terá

por finalidade a objetivação da questão de direito existente na(s) lide(s) selecionada(s).

Descartamos também a possibilidade de enquadramento do instituto como processo, tendo em

vista que o juiz também poderá dar início a ele (se fosse processo, o juiz não poderia, como

regra, iniciá-lo531). A questão controvertida capaz de gerar a multiplicidade de processos será

submetida ao Tribunal, para posteriormente o juízo a quo prosseguir na análise das demais

questões do processo, aplicando-se o entendimento exarado pelo Tribunal no tocante à

quaestio juris.

No que tange à objetivação e à multiplicidade de processos que envolvam as mesmas

questões de direito, o projeto não fala quantas demandas devem ser propostas para que sejam

consideradas repetitivas a ponto de ser passível o incidente.

que já foi objeto de resolução anterior”. (FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 39)

529 Em sentido contrário, entendendo que se trata não de incidente processual, mas de “avocação pelo tribunal de parcela das questões relevantes para o mérito”: YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo. ano 37. vol. 206. São Paulo: RT, 2012, p. 243 e ss. A prevalecer tal conclusão, o próprio incidente de uniformização de jurisprudência também não é incidente, com o que não concordamos.

530 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 41 531 Há exceções à inércia do juiz. São elas: a possibilidade de abertura de inventário de ofício e a concessão de

habeas corpus de ofício.

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176

No direito inglês, o CPR nada fala sobre o tema. Apesar disso, afirma-se lá que não se

fará a ordem para a reunião de demandas se não houver, pelo menos, dez demandas

ajuizadas532.

Podemos mencionar que essa objetivação da solução da questão de direito pode

decorrer de uma atuação preventiva, diferentemente do que ocorre com os julgamentos de

recursos representativos de controvérsias. Isso porque a submissão do recurso ao

procedimento do art. 543-C, por exemplo, é realizada de forma a atacar o maior número de

recursos “repetitivos”. Os recursos já são vários e, por isso, o STJ submeteu um ou alguns

deles ao procedimento do art. 543-C. Já a instauração do incidente de resolução de demandas

repetitivas poderá ocorrer sem que haja a grande repetitividade de demandas, bastando a mera

potencialidade capaz de gerar “grave insegurança jurídica”.

Poder-se-ia dizer que isso tornaria o Tribunal em órgão consultivo? A resposta deve

ser negativa. O fato de não haver demanda perante o Tribunal e de a mera potencialidade em

gerar multiplicação dar ensejo ao incidente por si só não faz com que o Tribunal seja utilizado

como órgão consultivo. Muito pelo contrário. O Tribunal estará, desde já se pronunciando em

casos concretos sobre sua forma de interpretar e aplicar o direito abstrato àquele caso concreto

e a outros a ele similares.

A desnecessidade de multiplicação de demandas faz com que poucos sejam os

argumentos levados ao Tribunal para apreciação da causa com a objetivação esperada.

Segundo Leonardo José Carneiro da Cunha, melhor seria que houvessem decisões tanto num

sentido como noutro para que o Tribunal tivesse melhores subsídios para apreciar a questão

de forma objetiva533. Não obstante, pensamos que não haveria necessidade de haver decisões

num ou noutro sentido, como ocorrem com os “recursos repetitivos” processados pelos art.

532 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 30 “The Rules do

not prescribe a minimum number of claims for which a GLO order will be made. The Practice Direction is also silent on the point, although a draft of it had stated that, in general, the court will not make an order unless there are at least ten separate claims raising common issues. The number ten had been mentioned from 1992 to 1997 under Legal Aid Board’s Arrangements, which defined a multi-party action as: any action or actions in which 10 or more assisted persons have causes of action which involve common issues of fact or law arising out of the same cause or event”.

533 “Seria mais adequado prever o incidente quando já houvesse algumas sentenças antagônicas a respeito do assunto. Vale dizer que, para caber o incidente, seria mais adequado haver, de um lado, sentenças admitindo determinada solução, havendo, por outro lado, sentenças rejeitando a mesma solução. Seria, enfim, salutar haver uma controvérsia já disseminada para que, então, fosse cabível o referido incidente. Dever-se-ia, na verdade, estabelecer como requisito para a instauração de tal incidente a existência de prévia controvérsia sobre o assunto”. (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss)

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177 543-B ou 543-C do CPC. O fundamental é que haja diversas demandas com os mais variados

argumentos jurídicos, tanto num como noutro sentido.

Como o projeto não traz essa consideração e também permite que apenas uma

demanda sirva de base para a análise da questão de direito, pensamos que a vinculação

prevista se daria apenas aos argumentos analisados pelo Tribunal, excluindo da

vinculatividade demandas idênticas, mas que tenham fundamentação diversa daquela ou

daquelas que foram objeto de análise pelo Tribunal.

Sobre a definição de demandas repetitivas, o projeto também não traz menção sobre

qual o critério para verificação se uma demanda é ou não repetida.

Sabemos que os elementos da ação (partes, causa de pedir e pedido) servem para

identificar uma demanda e que a identidade destes três elementos leva à identidade de ação,

fazendo com que uma deva ser extinta (em razão da litispendência ou, se a anterior já

transitou materialmente em julgado, em função da formação da coisa julgada).

Uma coisa é certa: não se esta aqui a falar da identidade de elementos. Quais seriam

então os subsídios para identificar uma demanda repetitiva? Na dicção do art. 930 do projeto

fala-se na existência de controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de

processos. Mas como determinar se há possibilidade de verificar esse surgimento de relevante

multiplicação de processos? Não seria pela identidade de partes, e também não seria pela

existência de uma parte ser autora ou ré em diversas demandas que haveria a repetitividade

referida. Também não decorreria da repetição de pedidos. Os pedidos podem até ser

semelhantes, mas o pedido poderá ser diverso e restar configurada a repetitividade534. Apesar

de o art. 930 do projeto falar em idêntica questão de direito, o direito não se desvincula dos

fatos, tanto que a causa de pedir engloba fatos e fundamentos. O incidente, em tese, não se

preocupa com os fatos, mas não podemos ignorá-los na análise do incidente. Assim a questão

que precisará ser verificada no incidente são os fatos e fundamentos da demanda, ou seja, a

causa de pedir, mas isso não significa que precisa haver identidade de causa de pedir.

Exemplificando, numa discussão sobre a nulidade de determinada cláusula contratual porque

abusiva, cada pessoa ajuizará sua demanda tendo como fato a celebração de seu contrato. Os

534 Pensamos que, via de regra, os pedidos serão similares, mas poderá haver situações em que o pedido é diverso

e haverá repetitividade, como no caso de ação constitutiva negativa e ação condenatória, mas fundados em causas de pedir similares. Em sentido contrário: BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito necessário para o processamento das demandas de massa. Revista de processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 87 e ss.

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178 fatos são distintos, logo não há identidade de causa de pedir. O que precisa haver é similitude

e não identidade entre as diversas demandas, que será verificada por meio da semelhança em

relação aos fatos e fundamentos. A essas situações semelhantes, consideradas pelo projeto

como demandas repetitivas, Antonio Adonias Aguiar deu o nome de “situações jurídicas

homogêneas”535.

Desta forma, entendemos que haverá “demandas repetitivas” quando a causa de pedir

for idêntica, independentemente de as partes ou os pedidos serem diferentes (não importa,

num primeiro momento, se a parte é o consumidor A, B ou C, ou se a ré é a pessoa jurídica X,

Y ou Z, ainda se o pedido feito for de restituição ou condenação).

Os fatos, apesar de aparentemente não serem essenciais para a análise da questão,

devem necessariamente ser analisados, sob pena de desvirtuamento do procedimento536.

Para Igor Bimkowski, apenas os direitos considerados individuais homogêneos é que

poderiam ser enquadrados como demandas repetitivas537. Apesar dessa consideração,

pensamos que possa haver repetição de demandas envolvendo direitos coletivos stricto sensu

como, por exemplo, a legalidade ou não da cláusula existente em contrato de consórcio,

afirmando que em caso de desistência os valores somente serão devolvidos ao término do

prazo do grupo538. Nesse caso, afetará até mesmo direitos difusos, pois se for legal a inclusão

da cláusula, futuros consorciados terão que se submeter a ela. Se for ilegal, os agentes

financeiros terão que excluir tal cláusula dos futuros contratos.

É certo que a maioria dos casos a serem tratados pelo Judiciário como demandas

repetitivas envolvem relações de massa e poderão ser enquadradas como direitos individuais

homogêneos, mas não devemos ter isso como regra, pois o incidente de resolução de

535 “Cuida-se de demandas-tipo, decorrentes de uma relação-modelo, que ensejam soluções-padrão. Os

processos que versam sobre os conflitos massificados lidam com conflitos cujos elementos objetivos (causa de pedir e pedido) se assemelham, mas não chegam a se identificar. Cuida-se de questões afins, cujos liames jurídicos materiais concretos são similares, entre si, embora não consistam num só e mesmo vínculo” (BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito necessário para o processamento das demandas de massa. Revista de processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 87 e ss.)

536 Voltaremos a tratar dos fatos quando tratarmos da “idêntica questão de direito”. 537 ROSSONI, Igor Bimkowski. O “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” e a Introdução do Group

Litigation no Direito Brasileiro: Avanço ou Retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/50-artigos-dez-2010/7360-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso, acesso em 07.11.2011, às 11h13

538 No mesmo sentido: BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito necessário para o processamento das demandas de massa. Revista de processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 87 e ss.

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179 demandas repetitivas veio para solucionar não apenas um problema coletivo539, mas também

um problema decorrente da não obediência a precedentes dos Tribunais.

Considerando o exposto, podemos conceituar o instituto como sendo um incidente

processual, instituído em primeiro ou segundo grau de jurisdição, com a finalidade de

objetivação da solução de uma questão de direito passível de multiplicidade de demandas,

para que a tese jurídica resolvida no incidente seja aplicada aos demais processos.

8.2 Idêntica questão de direito

Antes de definirmos o que seja questão de direito é preciso definirmos o que seja

questão. E para isso utilizar-nos-emos das palavras de Carnelutti:

Cuando una afirmación comprendida en la razón (de la pretensión o de la discusión) pueda engrendrar dudas y, por tanto, haya de ser verificada, se convierte en una cuestión. Lá cuestión se puede definir, pues, como un punto dudoso, de hecho o de derecho, y su noción es correlativa de la afirmación [...] Pero aunque coincidiede, no por eso seria menos clara la diferencia entre la cuestión y el litigio, puesto que la primeira consiste en una pugna, no de intereses, sino de opiniones540.

Questão pode assim ser entendida como ponto541 controvertido ou duvidoso542.

Antes de definirmos o que seja “idêntica questão de direito” devemos lembrar que o

juiz, ao julgar, analisa questões de direito e questões de fato.

A distinção sobre questão de direito de questão de fato já se inicia com o complicador

de não haver um unitário conceito jurídico de fato, nem de direito543. O problema da distinção

entre questão de fato e questão de direito é metodológico544.

539 Abaixo procuraremos detalhar melhor as diferenças e similitudes entre o incidente de resolução de demandas

repetitivas e as ações coletivas. 540 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil. t. II. (trad. Niceto Alcalá Zamora Y Castillo e

Santiago Sentis Melendo). Buenos Aires: Uteha, 1944, p. 15 541 Ponto, por sua vez, “é o fundamento de uma afirmação referente ao mérito, ao processo ou à ação”.

(FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 44) 542 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 43 543 NEVES, António Castanheira. Questão de facto – Questão de direito ou o problema metodológico da

juridicidade. Coimbra, Almedina, 1967, p. 17

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180 Jeremy Bentham foi um dos primeiros a tentar distinguir questões de fato de questões

de direito:

To be certain that he is acting in conformity with the law, the judge has, on every occasion, two points to consider; the one is a question of fact, the other a question of law. The first consists in assuring himself that a given fact existed in a given place, at a given time; the second consists in assuring himself, that the law has laid down a rule of such or such a nature, applicable to this individual fact. The question of law is decided by the text of the law, or when there is no written law, by previous decisions. The question of fact is decided by evidence. All depends on facts545.

Não se mostra fácil distinguir questão de direito de questão de fato. Não há divisão

pura e simples, pois direito e fatos estão sempre relacionados. A distinção é meramente

artificial546. Afirma Teresa Wambier547 que na doutrina espanhola há doutrinadores que se

mostram perplexos ao pretender separar questões de fato de questões de direito, havendo

também na Alemanha vozes nesse sentido. Dentro do direito pátrio podemos até nos lembrar

da citação por alguns de existência de processos sem fatos, na qual é mencionado o controle

concentrado de constitucionalidade. Não obstante, mesmo nesses processos há fatos. O que

importa é a predominância548 das questões de fato ou das questões de direito549.

544 NEVES, António Castanheira. Questão de facto – Questão de direito ou o problema metodológico da

juridicidade. Coimbra, Almedina, 1967 545 BENTHAM, Jeremy. A treatise on judicial evidence. London: Messrs. Baldwin, Cradock, and Joy,

Paternoster-Row, 1825, p. 9 546 “A distinção entre o fato e o direito é, porém, artificial em certos casos. A interpretação dos contratos,

considerada uma questão de fato, parece ser uma questão de direito para contratos de adesão ou cláusulas-padrão que as partes não negociaram. Trata a lei estrangeira como uma questão de fato é contestável. Esse artifício talvez ateste a indissociabilidade essencial entre o fato e o direito”. (BERGEL, Jean Louis. (trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão). Teoria geral do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 411

547 “Tem-se dito, com acerto, que rigorosamente, seria impossível fazer-se esta distinção, pelo menos no plano ontológico, já que o fenômeno direito ocorre, de fato, no momento de incidência da norma, no mundo real, no universo empírico.” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 363-364 – grifos no original);

548 “[...] o que se pode dizer é que, se de um lado, o fenômeno jurídico envolve necessariamente fato/direito, a nosso ver pode-se falar em questões que sejam predominantemente de fato e predominantemente de direito. Ou seja, o fenômeno jurídico é de fato e é de direito, mas o problema (= a questão) pode estar girando em torno do aspecto fático ou em torno do aspecto jurídico. Queremos com isso dizer que, embora indubitavelmente o fenômeno jurídico não ocorra senão diante de fato e de norma, o aspecto problemático desse fenômeno pode estar lá ou cá”. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 364 – grifos no original)

549 Vide COSTA, Henrique Araujo. Reexame de prova em recurso especial. Dissertação de Mestrado defendida na PUC-SP em 2006, p. 33, na qual o autor traz defensores da impossibilidade de separação entre fato e direito.

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181 Sobre o tema, citando a obra francesa de G. Marty (La distinction du ait et du Droit),

Pedro Batista Martins afirma que enquadra-se como questão de direito a qualificação de um

fato, ficando de fora a apreciação do fato e o exame de provas550.

Partindo-se desse raciocínio, podemos entender que a questão relativa à interpretação

do texto de lei será sempre questão de direito551. Também pode ser entendido como questão

de direito saber qual norma deva ser aplicada ao caso concreto (qualificação jurídica dos

fatos), quando não há dúvidas sobre as questões de fato552, ou até mesmo, não importando,

num primeiro momento, saber se existe dúvida ou não sobre a situação fática553.

Vale destacar que idêntica questão de direito não significa que os casos sejam

idênticos, mas que a lei deve de ser aplicada de modo uniforme554. Pode haver diferença entre

os sujeitos ou até mesmo entre as formas com as quais as relações jurídicas foram realizadas,

mas o que importa para identificar a idêntica questão de direito é que essas diferenças

existentes não influenciarão no coração da questão. Exemplo claro seria a constitucionalidade

da cobrança de tributo sobre a renda. Não importa a origem da renda, se decorrente de

atividade lícita ou ilícita, se adquirida por idoso, jovem ou incapaz, se a pessoa é física ou

jurídica ou mesmo ente despersonalizado, se o tributo foi realmente recolhido ou não. Para a

constatação do dever de pagar o respectivo tributo é preciso verificar apenas o que se

enquadra como renda. Seria também questão de direito saber se o recebimento de verba

indenizatória se enquadraria no conceito renda ou não. Não se enquadrando, também seria

questão de direito a análise sobre o que se pode entender por verba indenizatória.

550 MARTINS, Pedro Batista. Recursos e processos da competência originária dos tribunais. Atualização:

Alfredo Buzaid. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 377 551 No mesmo sentido: OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Recurso especial – Algumas questões de

admissibilidade, in TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord). Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 183; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 374;

552 Como exemplo, podemos citar a questão da legalidade ou ilegalidade na cobrança da tarifa básica de telefonia. Não importa para o caso se a pessoa vem pagando a conta em dia e outra não, se um consumidor é idoso e o outro jovem ou incapaz. O que importa para o caso o confronto entre a previsão contratual da cobrança e sua legalidade. Ou seja, os fatos até podem ser outros, mas em princípio, a resposta dada pelo Judiciário deverá ser a mesma.

553 Ocorre que, para fins do incidente de resolução de demandas repetitivas, a análise feita pelo Tribunal será objetiva, ou seja, analisará a questão tendo por base alguns fatos descritos e apreciados nos casos em exame. Não obstante, poderá haver casos que não foram enfrentados pelo Tribunal ao julgar o incidente, que poderão, em decorrência de fatos distintos, levar a um distinguishing, permitindo o juízo do caso singular deixar de aplicar o que foi decidido pelo Tribunal ao julgar o incidente de resolução.

554 Secondo una prospettiva di concretezza assoluta, è chiaro che nessun caso è uguale a un altro, poiché ciascuno è dotato di una sua irripetibile unicità. (CHIARLONI, Sergio. Efficacia del precedente giudiziario e tipologia dei contrasti di giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano XLIII, vol. 1. Milão: Giuffrè, 2007, p. 125)

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182 Exemplos: análise sobre a legalidade ou não de determinada previsão contratual;

reajuste de planos de saúde em razão de a pessoa atingir determinada idade; previsão de

cláusula de adesão em contrato de consumo prevendo a arbitragem de forma compulsória;

legalidade da cobrança básica de telefonia; responsabilidade ou não dos bancos pela

recomposição dos valores existentes nas cadernetas de poupança dos correntistas.

Como regra, o fato não importará para a análise da questão. Esse deve ser o

entendimento da expressão “idêntica questão de direito”.

Deve-se, contudo, levar em consideração os fatos em determinadas hipóteses. Não se

pode deixar de levar em consideração peculiaridades do caso concreto que não foram

apreciadas pelo Tribunal e que poderão levar a um distinguishing. Explicamos: imagine que

existem várias demandas, como de fato existem, nas quais o consumidor deixa de pagar por

um número X de meses a tarifa de energia elétrica ou de água. Passado esse número X de

meses a concessionária, após prévia notificação, procede ao corte no fornecimento do serviço.

Os consumidores inadimplentes ingressam com demanda perante o Judiciário alegando que o

corte no fornecimento é ilegal e afronta os princípios da continuidade das prestações dos

serviços públicos essenciais e a dignidade da pessoa humana. Verificando a existência de

várias demandas com essa idêntica questão de direito instaura-se o incidente. No Tribunal, a

questão é apreciada e chega-se à conclusão de que o corte no fornecimento de energia ou água

é possível desde que a inadimplência fique caracterizada por um número X de meses e de que

haja prévia notificação ao consumidor.

Futuramente aparece uma ação movida por um hospital público em face da

concessionária em razão do iminente corte no fornecimento de energia elétrica devido ao

inadimplemento daquele, o que poderá causar sérios riscos à saúde dos pacientes. Pode

parecer que a questão de direito, num primeiro momento, se enquadre nos casos analisados

até então pelo Tribunal. Ocorre que foram agregados novos fatos que não podem deixar de ser

levados em consideração para a análise da questão de direito, o que levará o magistrado a

julgar de forma diferente do incidente apreciado pelo Tribunal. E isso poderá ocorrer quer o

processo seja instaurado anteriormente ao incidente, quer seja posteriormente. Não haverá

vinculação555.

555 A possibilidade de os juízes, no caso concreto, se afastarem da decisão sobre as questões de direito em razão

das peculiaridades fáticas é inegável. E isso decorre da própria riqueza de detalhes dos exemplos trazidos pelo dia-a-dia. Por mais objetivo que pretenda ser o Tribunal ao julgar a questão de direito, ele não

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183 Em suma, apesar de a apreciação da questão ficar voltada à idêntica questão de direito,

levando em consideração os casos ali apresentados, como regra, mesmo que se mudem os

fatos, a interpretação da norma deverá ser a mesma. Numa questão envolvendo a legalidade

ou não de tarifa básica de telefonia, não importa se o consumidor é branco, negro, homem,

mulher, pessoa jurídica, ente público, ente despersonalizado, capaz ou incapaz, pobre ou rico.

O que importa é saber se a cobrança da tarifa é legal ou não. Qualquer outra questão periférica

não importará no resultado dessa demanda. Nem mesmo se o consumidor pagou ou não as

tarifas importará para a resolução da questão (ou seja, a análise da questão de direito

independe de prova do pagamento das mensalidades pelo autor, para que ele tenha eventual

direito à repetição – a questão a ser resolvida é anterior: a da legalidade ou não da tarifa).

Outro exemplo que poderia demandar repetição de demandas é a aplicação de regras

especiais para aposentadoria de servidores em decorrência de trabalho em local insalubre.

Quando se fala em idêntica questão de direito não se está falando que não existam fatos. Fala-

se que eles, num primeiro momento, não importam. Assim, para a análise da idêntica questão

de direito (norma a ser aplicada para contagem de prazo de aposentadoria de servidor em

trabalho insalubre) não importa saber se o servidor trabalha em local insalubre ou não. Aquela

é uma questão prejudicial a esta e que por isso precisa ser analisada em primeiro lugar.

Dai se verifica que apesar de se decidir questões de direito, há, em determinadas

hipóteses, que se verificar os fatos sob os quais aqueles direitos são inseridos. Também se faz

importante analisar um dos maiores problemas enfrentados pelos países da common law, que

é identificar qual seria o principal ponto (o coração) do julgado – a ratio decidendi e para isso

se faz necessário também analisar quais são os fatos relevantes para o julgamento do caso. Por

isso, para a criação de um precedente, os fatos sobre o qual se fundamentou o julgador são

fundamentais. Sobre a importância dos fatos para a verificação de eventual distinguishing,

Chales D. Cole destacou que:

É de suma importância entender que o Juiz ou advogado ao tentarem verificar o precedente de um caso anterior saibam que o precedente precisa ser determinado com base em análise dos fatos relevantes que a corte usou para decidir e o princípio de direito que a Corte aplicou aos fatos relevantes. O precedente de um caso é simplesmente o princípio de direito ou regra de direito que foi aplicado aos fatos relevantes para decisão com relação à questão ou questões de mérito apresentadas à Corte no caso em julgamento.

conseguirá colocar, naquela decisão sobre o incidente, todas as possíveis e imagináveis situações e contextos em que aquela norma será aplicada.

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184

Todas as declarações da Corte que não são necessárias para a decisão naquele caso são dicta556.

Apoiando-se nas explicações acima expostas e utilizando-se os mesmos exemplos

dados acima, verificamos que no caso do corte de fornecimento de energia elétrica, o fato de a

pessoa ser jovem ou idosa, pessoa física ou jurídica não importa para a possibilidade do corte,

pois são fatos acidentais. O que poderá influenciar é o fato de a pessoa devedora prestar

relevante serviço para a sociedade (hospital), ou até mesmo o fato de o devedor sofrer de

doença crônica, que dependa de aparelhos elétricos para viver (aparelhos estes que não podem

ser desligados), isto porque esses fatos não são acidentais na análise da questão de direito.

Passam a ser fatos essenciais. No outro exemplo, da legalidade ou não da cobrança de tarifa

básica de telefonia, temos que o fato de a pessoa ter pago ou não as faturas não influencia na

decisão do tribunal sobre a legalidade ou ilegalidade da cobrança557.

Também se destaca a necessidade de interpretação de norma abertas e aqui também há

problemas. Em que medida a interpretação e aplicação de normas abertas pode ser enquadrada

como questões de direito. Para nós isso é importante, na medida em que, sendo enquadrada

como questão de direito, matéria que envolva possibilidade de multiplicação de processos

poderá dar ensejo ao incidente de resolução de demandas repetitivas.

De acordo com o pensamento de Teresa Wambier, a existência de conceitos vagos não

permite a coexistência de decisões conflitantes558. Considerando a necessidade de isonomia e

segurança jurídica se os casos forem realmente próximos, não é ideal a coexistência de

decisões conflitantes. Todavia, diferentemente da análise das demais normas, a análise de

normas abertas requer maior aproximação com os fatos. Aqui os fatos serão sempre

importantes, não serão acidentais. Por esta razão, pensamos não ser possível a utilização do 556 COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O sistema de precedente vinculante

do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss. 557 A importância dos fatos para a formação de um precedente é fundamental. Como destacado acima, no direito

estrangeiro não há preocupação com a elaboração de ementas, diferentemente do que ocorre no Brasil e na Itália, por exemplo. Dai já surge um ponto crucial para a utilização do precedente, pois a mesma razão deve ser aplicada para o mesmo caso. Na tradição brasileira os fatos parecem não ter importância. Deveríamos ter uma maior preocupação com os fatos, pois é a partir deles que o magistrado deve aplicar o direito. Em muitos dos casos ele pode não influenciar mas, como demonstramos, isso não se dá em toda e qualquer análise sobre questões predominantemente de direito.

558 É imprescindível afirmar-se que a zona de incerteza, ínsita dos conceitos indeterminados, que, sob certo aspecto, pode ser “tolerada” sob o ponto de vista linguístico, deve ser eliminada no mundo jurídico. Assim, e por isso, o fato de os Tribunais decidirem com base em normas que contêm conceitos vagos não pode servir de “pretexto” para justificar (e manter) jurisprudência conflitante, criando insegurança no sistema. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 296 – grifos no original). No mesmo sentido: TRINDADE, Ariadne Maués. Da distinção entre questão de fato e questão de direito para fins de cabimento dos recursos extraordinário e especial. Dissertação de Mestrado defendida na PUC-SP em 2003, p. 150

Page 185: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC … Antonio Ferrari... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luiz Antonio Ferrari Neto Incidente de Resolução

185 incidente de resolução de demandas repetitivas quando a multiplicação de processos tiver

origem na interpretação e aplicação de normas abertas. A criação de norma aberta pelo

legislador tem por finalidade dar ao juiz abertura para analisar o caso concreto e, diante de

suas peculiaridades, julgar a questão da melhor forma possível. Uniformizar normas, de modo

geral e abstrato, que foram criadas justamente param se amoldarem às peculiaridades acabaria

por contrariar a própria essência da existência de normas abertas559.

Sendo impossível a separação dos fatos do direito e, partindo-se da premissa de que o

incidente deverá ser utilizado para a uniformização da interpretação e aplicação das normas

sobre determinadas situações, essa interpretação não será realizada considerando todas as

hipóteses fáticas possíveis por detrás dos casos presentes e futuros. Ou seja, os fatos podem

influenciar o resultado de uma questão de direito560. Para isso se faz necessário analisar quais

fatos são importantes para a apreciação da questão e se esses fatos importantes foram objeto

de análise pelo Tribunal quando do julgamento do incidente. Vale frisar que os fatos não

apreciados no incidente poderão fazer com que seu julgamento deixe de ser considerado como

precedente em alguns casos futuros em razão da importância do fato naquele caso específico.

8.3 Requisitos de sua admissibilidade

De acordo com a dicção do projeto, são requisitos para a instauração do incidente a

existência de a) “controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos; b)

que essa multiplicidade se refira à idêntica questão de direito”; c) que essa multiplicação de

processos possa causar grave insegurança jurídica; d) que haja pedido de instauração do

incidente.

559 “De certas normas todos reconhecem com facilidade que devem ser aplicadas do mesmo modo em todo o

território nacional; entre elas, sem dúvida, em linha de princípio, as normas constitucionais. Já com relação a outras pode mostrar-se mais aconselhável dar espaço a porção menor ou maior de flexibilidade interpretativa, capaz de levar em conta variáveis regionais ou locais, a cuja luz também se justifique uma variação nas soluções. É o que sucede, por exemplo, com disposições legais que se valham de conceitos jurídicos indeterminados – como ‘bons costumes’, ‘conduta desonrosa’, ‘elevado valor’ e outros cuja concretização se sujeite à influência de fatores culturais dificilmente redutíveis à uniformidade, sobretudo em país com as dimensões e as desigualdades do nosso”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 307-308)

560 Citando Dumoulin – “’modica facti differentia magnam inducit juris diversitatem’ – pequena diferença de facto induz grande diversidade de Direito” (Apud MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 224 – grifos no original

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186 A controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos está

ligada, na grande maioria dos casos, à massificação das relações na sociedade. Seja a

massificação decorrente das relações de consumo, seja a decorrente das relações para com os

entes públicos (tributação, prestação de serviços públicos, como educação, saúde etc.).

Mencionamos acima que a sociedade evoluiu e o direito precisa acompanhar essa

evolução. Anteriormente, os negócios jurídicos eram realizados entre particulares. Após as

revoluções industriais, acrescidas do consumismo, vivemos numa sociedade que trava

relações de consumo diárias. Em razão disso, temos de um lado grandes corporações

(fornecedores) e de outro os consumidores. Os negócios jurídicos acabam se tornando

repetitivos. Se um banco, por exemplo, cobrar ilegalmente pela prestação de um serviço aos

correntistas, essa cobrança ilegal se repetirá por todos os consumidores.

Essa controvérsia múltipla não ocorrerá apenas diante de relações de consumo. Poderá

ocorrer nas relações com entes estatais, como a discussão sobre a obrigatoriedade ou não de

fornecimento de medicamentos aos enfermos pelo Estado, a legalidade/constitucionalidade de

determinados tributos etc.

Não obstante, o projeto não restringe a utilização do instituto apenas às relações de

massa. De sua nomenclatura extraímos a repetitividade e do art. 930 extraímos a

potencialidade “de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão

de direito”. Diante disso, outras demandas que envolvam questões de direito que possam

multiplicar-se no seio da sociedade também poderão ser objeto do incidente de resolução de

demandas repetitivas.

A preocupação que nos fica reside na falta de maturidade para a decisão da questão,

pois a simples potencialidade em se gerar a multiplicação de processos poderá ensejar o

incidente. Não será preciso que haja um número mínimo de demandas. Uma única demanda

poderá ser o suficiente para se instaurar o incidente, o que poderá ter por consequência a

possibilidade de diversos outros casos futuros serem decididos de forma diversa em razão de

suas peculiaridades ou de fundamentações distintas561.

561 Ao tratar da uniformização da jurisprudência Ada Pellegrini asseverou que “Geny apontou a necessidade de

cautela e amadurecimento na uniformização da jurisprudência. E a jurisprudência francesa, estabilizada lentamente pelo método preconizado – percebendo a conveniência até mesmo de que subsistissem certas interpretações divergentes, até filtrar e sedimentar as opiniões contrastantes – é o exemplo de como se deva proceder”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 142)

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187 Ainda na análise desse requisito, deve-se destacar que o Judiciário não é órgão

consultivo, devendo aplicar a norma aos casos concretos que lhes são apresentados. Se apenas

uma ou poucas demandas são propostas e o Tribunal fixar tese com aplicação ampla e

irrestrita, sem considerar outras fundamentações legais ou constitucionais ou até mesmo

peculiaridades fáticas, estará fugindo de sua função constitucional para exercer função

atribuída ao Legislativo.

Leonardo José Carneiro da Cunha afirma que não seria a melhor interpretação do texto

a possibilidade de instauração do incidente com a mera potencialidade de geração de

demandas múltiplas. Afirma que cabe ao legitimado demonstrar a necessidade da instauração

do incidente562 e que essa demonstração deverá ser feita por meio de prova documental

apenas, não sendo cabível outro meio de prova. Realmente, permitir que o incidente seja

instaurado sem que haja um mínimo de controvérsia e discussão na comunidade jurídica

poderá ter o efeito de subverter a finalidade do instituto. Ideal seria que houvesse um mínimo

de controvérsia comprovada no seio da sociedade com um mínimo de processos tramitando na

qual se discutam as mesmas questões, para que também seja possível haver um mínimo de

amadurecimento sobre o tema no que tange às fundamentações pró e contra determinado

posicionamento.

Já tratamos do segundo requisito, de forma separada, acima.

O terceiro dos requisitos que decorre da insegurança jurídica é inspirado no caos hoje

vivido em razão da ausência de obediência aos precedentes. Nem mesmo os Tribunais

Superiores acabam obedecendo friamente seus precedentes563. Isso é um problema sério,

porque a interpretação da legislação pelo Tribunal não deve refletir o pensamento deste ou

562 “[...] cabe ao legitimado, ao suscitar o incidente, demonstrar a existência de efetivo, real e concreto dissenso,

indicando sentenças antagônicas proferidas a respeito do tema a ser examinado pelo tribunal. Deve o legitimado, como se percebe, demonstrar a conveniência de definir a tese a ser aplicada a todos os casos”. (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss). Também criticando a possibilidade de instauração do incidente sem que haja um mínimo de controvérsia por meio de sentenças antagônicas: ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. ano 37. vol. 208. São Paulo: RT, 2012, p. 203 e ss. No mesmo sentido: YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo. ano 37. vol. 206. São Paulo: RT, 2012, p. 243 e ss.

563 As razões para isso ocorrer podem ser das mais variadas, como por exemplo a mudança de composição da Turma, a alteração de competência interna do Tribunal, deslocando matéria de uma Seção para outra, o excessivo número de recursos, capaz de fazer com que o Tribunal acabe por se equivocar num ou noutro caso, a redação sintética de enunciados de súmula que acaba induzindo a aplicação errônea do posicionamento do tribunal etc.

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188 daquele membro. Deve refletir o posicionamento da Corte. As alterações de composição não

devem afetar posicionamento do Tribunal. A mudança de posicionamento do Tribunal

simplesmente em decorrência da mudança de composição da corte também não é saudável,

demonstrando instabilidade da própria instituição564.

Se no Tribunal determinadas questões são tratadas de maneira distinta pelas Turmas,

não havendo uniformidade, como poderemos querer que os juízes em primeiro grau tenham

uniformidade?

Por via de consequência, os juízes a quo acabam também interpretando a legislação

como bem entendem, sem sequer observar o posicionamento dos Tribunais Superiores, o que

é uma falha gravíssima, pois os juízes inferiores devem verificar qual ou quais as

interpretações dadas pelos Tribunais Superiores para que possa justificar a sua.

Apesar de termos no histórico do nosso direito a existência de assentos, é da nossa

tradição rejeitarmos a ideia de precedentes. Assim, qualquer demanda acaba por ser julgada

pelo Judiciário das mais diversas formas. Acrescente-se que o sistema previu essas

imperfeições e possibilitou a reunião de demandas pela conexão para evitar decisões

contraditórias. Essa reunião, todavia, acaba não ocorrendo, fazendo com que haja as mais

variadas decisões sobre o mesmo tema, demonstrando-se uma insegurança jurídica em razão

da falta de uniformidade no tratamento das quaestio juris. Verificada a possibilidade de

divergência nas causas que podem se multiplicar, já haverá atendimento ao terceiro requisito.

O quarto requisito trata da necessidade de requerimento para instauração do incidente.

Por ora limitar-nos-emos a destacar que o pedido de instauração do incidente pode ser feito

por qualquer das partes, terceiros intervenientes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria

Pública e também pelo juiz ou relator da demanda. Aqueles por meio de petição e estes dois

últimos por meio de ofício dirigido ao presidente do Tribunal.

564 Como já noticiado, mesmo após 1966 na qual a House of Lords decidiu que não ficaria vinculada aos seus

próprios precedentes, a mais alta Corte Britânica somente deixou de seguir seus precedentes em 29 vezes (de acordo com palestra proferida por Neil Andrews na PUC em maio/2012 no lançamento de uma de suas obras).

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189 8.4 Competência

A competência para apreciar o incidente é funcional565, de acordo com o texto do art.

45, parágrafo único, do projeto. Caberá ao Tribunal Pleno ou ao Órgão Especial a apreciação

do incidente.

O simples fato de haver deslocamento da matéria para ser apreciada diretamente pelo

Pleno ou pelo Órgão Especial do Tribunal de segundo grau já traz certa economia processual,

pois evitará que as demandas continuem tramitando pelas instâncias ordinárias para, somente

após longos anos, serem resolvidas pelo Tribunal. Esse é um ponto positivo ao projeto, pois

evita a demora na formação de jurisprudência e pacificação do tema566. No sistema atual, por

exemplo, a pacificação só ocorreria muitos anos após, quando as demandas começassem a

chegar aos Tribunais Superiores567.

Pensamos que esse deslocamento para que o Tribunal se pronuncie sobre a quaestio

juris antes mesmo que tenha o juiz se manifestado sobre o assunto (nos casos de incidente

565 Sobre o conceito de competência, optamos por destacar as seguintes: “La competencia es una medida de jurisdicción. Todos los jueces tienen jurisdicción; pero no todos tienen competencia para conocer en un determinado asunto. Un juez competente es, al mismo tiempo, juez con jurisdicción; pero un juez incompetente es un juez con jurisdicción y sin competencia. La competencia es el fragmento de jurisdicción atribuido a un juez” (COUTURE, Eduardo. Fundamentos Del Derecho Processal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1969, p. 29). “Essa esfera de ofícios que a lei atribui a cada um dos juízes, dentro da hierarquia judicial, distribuindo entre eles o exercício prático da jurisdição, constitui para cada juiz sua própria “competência”; esta, tradicionalmente, costuma definir-se como “medida” de jurisdição, porquanto o Estado, ao determinar qual é concretamente a parcela de jurisdição atribuída a um juiz, vem a traçar com isso os limites recíprocos de atividade entre esse juiz e todos os demais juízes. Portanto, a competência é acima de tudo uma determinação dos poderes judiciais de cada um dos juízes” (CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. vol II. 2. ed. Traduzido por Douglas Dias Ferreira. Campinas: Bookseller, 2003, p. 107-108). “La competenza viene tradizionalmente definita come La <<misura>> o la <<frazione>> di giurisdizione che appartiene nell’ambito dell’ordinamento ad un merito la controversia. La competenza stabilisce quindi una ripartizione di giurisdizione tra uffici giudiziari e non regola invece i rapporti all’interno dell’ufficio [...]” (COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI; Corrado; TARUFFO Michele. Lezioni sul processo civile vol. I. 4. ed. Bologna: Mulino, 2006, p. 132).

566 O Min. Sidnei Beneti já demonstrou a preocupação com a demora na decisão de questões repetitivas, descrevendo os prejuízos que essa demora pode trazer para o próprio Judiciário: “A demora na consolidação jurisprudencial relativa às macrolides provoca a elevação do número de processos em todos os graus de jurisdição, contribuindo decisivamente para o congestionamento da máquina judiciária. A urgência na definição impõe ao sistema processual a adoção de instrumentos capazes de conduzir ao resultado de julgamento absolutamente prioritário, a fim de que rapidamente se forme diretriz jurisprudencial que oriente o agir do meio jurídico e negocial, de modo a frustrar-se o surgimento de novas lides”. (BENETI, Sidnei Agostinho. Assunção de competência e fast-track recursal. Revista de Processo. ano 34. vol. 171. São Paulo: RT, 2009, p. 12

567 Apenas destacamos a observação feita acima, no que se refere à necessidade de haver real controvérsia por meio de várias demandas, para que seja possível extrair dessas demandas, riquezas na argumentação pro et contra determinada tese jurídica.

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190 instaurado quando a demanda ainda esteja em primeira instância, por exemplo) não implicará

em ofensa ao princípio do juiz natural568. Analogicamente, poderíamos utilizar a aplicação da

teoria da causa madura, prevista no art. 515, § 3º, do CPC, na qual se permite que o Tribunal

adentre ao mérito sem que tenha o juiz de primeira instância se manifestado sobre o tema. Se

a matéria em última análise deva ser julgada pelo Tribunal em grau de recurso, que poderá

reformar a decisão do juiz de primeira instância, por que pensar que isso seria

inconstitucional. Poder-se-ia falar, todavia, que na teoria da causa madura a questão seja

apreciada pela câmara e não por um colegiado maior dentro do tribunal. Isso, entretanto, não

altera nossa conclusão, porque mesmo nesses casos poder-se-ia utilizar do incidente de

uniformização de jurisprudência ou até mesmo da assunção de competência (e não há

discussão em sentido contrário sobre essa possibilidade).

A lei não menciona a possibilidade de o incidente ser instaurado perante Tribunal

Superior. Assim, num primeiro momento a competência seria dos Tribunais de Segundo

Grau, tanto da justiça comum estadual como da justiça comum federal. A partir dessa

constatação, algumas questões precisam ser solucionadas: Havendo demanda passível de

gerar multiplicação de processos em mais de um Estado (exemplo: São Paulo e Rio de

Janeiro), qual deles terá competência para processar e julgar o incidente? Ainda, havendo

multiplicação de processos dentro de um mesmo estado, mas envolvendo competência

distribuída a justiças distintas – Federal e Estadual – (exemplo: demanda que envolva bancos

– Caixa Econômica Federal e outro banco qualquer), qual Tribunal será o competente para

apreciar a demanda?

O projeto prevê que a decisão do Tribunal local servirá de precedente para seus

desembargadores e juízes, não afetando magistrados alheios ao Tribunal. Com isso, se um

determinado assunto puder ser alvo de multiplicação de demandas por mais de um Estado,

cada Tribunal Estadual terá competência para processar e julgar o incidente, resolvendo as

demandas em seu respectivo Estado Membro. Não há previsão de assunção de competência

pelo STJ ou STF para que este pacifique a matéria. A previsão existente no projeto é de que

os legitimados para a instauração do incidente possam requerer ao STJ ou ao STF a suspensão

568 Em sentido contrário, afirmando que o Tribunal teria apenas competência recursal para essas hipóteses:

YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo. ano 37. vol. 206. São Paulo: RT, 2012, p. 243 e ss.

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191 de todos os processos que tramitem perante o território nacional e que versem sobre a questão

objeto do incidente569.

O mesmo vale para matéria que possa ser discutida perante a Justiça Comum Estadual

e a Justiça Comum Federal. Não podemos pensar que a questão seria deslocada para a Justiça

Federal, porque o resultado servirá de precedente. No histórico do nosso país, de restrição à

ideia de precedentes, não estamos suficientemente amadurecidos para aceitarmos um

precedente horizontal (que a decisão de um Tribunal possa gerar efeitos sobre outro tribunal

que não lhe é subordinado)570. Ainda, a ideia do incidente é de obediência à hierarquia. Se o

tribunal decidiu, todos os demais membros daquele tribunal deverão respeitar a decisão.

Sendo a decisão proferida por outro Tribunal (TRF da 3ª Região, por exemplo), não haverá

obediência por parte do Tribunal Estadual Paulista em relação à tese adotada pelo TRF. Isso

fará com que a questão seja enfrentada tanto pelo TRF quanto pelo TJ e, pior, poderá fazer

com que haja decisões conflitantes para vizinhos, simplesmente porque um possuía conta

junto à Caixa Econômica Federal e outro junto ao Banco do Brasil, por exemplo.

Para isto, a saída foi a previsão constante do art. 937 para suspensão dos demais

processos em todo o território nacional. Não obstante, deve ser levado em conta que o

incidente deverá ser julgado no curtíssimo prazo de 6 meses, o que sabemos ser praticamente

impossível, considerando o congestionamento atual do Judiciário Brasileiro. Ainda, prever

um prazo para julgamento sem que haja previsão de sanção pelo seu descumprimento não

trará qualquer efeito prático ou moral, razão pela qual não acreditamos que essa regra será

cumprida.

569 Talvez essa ausência de instauração de incidente perante os Tribunais Superiores seja justificada pela

necessidade de maior maturidade do tema, ou seja, de maior discussão jurídica perante o Judiciário para a pacificação do tema. Essa maior discussão jurídica não ocorreria se o Tribunal Superior pudesse realizar a assunção de competência e já julgar o incidente. Isso não seria salutar, diante da própria divergência cultural do país. Parece-nos que o mais adequado no âmbito dos Tribunais Superiores seja a pacificação do tema por meio dos recursos representativos de controvérsias. “Em qualquer assunto, o dissenso inicial gera ambivalência, incerteza e, até mesmo, ignorância a respeito da amplitude das questões envolvidas e de suas implicações na vida de cada um dos sujeitos interessados no tema. A essa altura, quando ainda se iniciam as discussões e se instaura a polêmica, ainda não se chegou ao melhor momento para que o tribunal se posicione e fixe uma tese jurídica a ser aplicável a casos futuros. Tolerar o dissenso por algum tempo é, na verdade, uma maneira de permitir que o debate continue até que se alcance maior clareza sobre o assunto. Uma decisão sobre os pontos em disputa, que fixe a tese jurídica para casos futuros, não estabelece, de uma vez por todas, a ratio decidendi a ser seguida, ficando a questão em aberto e sujeita a novos questionamentos, com a apresentação de outros argumentos ainda não apreciados e sobre os quais não houve reflexão, análise, ponderação, exame pelo tribunal. É manifestamente alto o risco de haver sucessivas decisões afastando a aplicação do precedente, em razão de algum distinguishing, overruling ou overriding”. (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss)

570 Mesmo no direito comparado, a decisão de um tribunal sobre outro que não lhe seja vinculado serve como precedente meramente persuasivo.

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192 Não fosse apenas isso, demandas que precisem de adoção de tutelas de urgência não

serão vetadas pelo projeto (até porque, se o fossem, tal obstáculo seria inconstitucional), o que

poderá aumentar a instabilidade sobre as questões objeto de discussões, pois o Tribunal de um

Estado decide de uma forma e, o de outro, decide em sentido contrário.

Pensar numa eventual assunção de competência da matéria para que ela seja julgada

por um Tribunal Superior poderá reduzir o tempo de discussão do litígio de massa, o que

poderá ser útil à sociedade, mas poderá fazer com que se fira o princípio do juiz natural (sem

deixar de mencionar que a competência do STF e STJ é prevista constitucionalmente). Com

isto evita-se que o Tribunal Superior possa avocar a competência de determinadas matérias

por questões políticas ou outras quaisquer, acrescentando a previsão de suspensão das

demandas nas instâncias ordinárias e a maior maturidade que o Tribunal Superior terá ao

enfrentar a matéria, ante os argumentos das partes e os constantes do(s) Tribunal(is),

acreditamos que a melhor alternativa seja a suspensão das demandas individuais.

A última problemática a ser abordada sobre o tema competência refere-se à dicção do

projeto em atribuir competência para o julgamento do incidente de resolução de demandas

repetitivas ao Pleno ou ao Órgão Especial do Tribunal.

Na uniformização de jurisprudência, prevista no CPC vigente, o legislador deixou a

cargo do regimento interno atribuir qual órgão seria o competente para a dissipação da

divergência. O PL 8.046/2010, todavia, não teve a mesma cautela. Dentro do Tribunal há

desembargadores que estão há anos atuando em determinados ramos específicos do direito,

estando, por isso distanciado da realidade em relação às demais áreas (direito público, direito

privado, direito criminal). Permitir que apenas o Pleno julgue os incidentes de resolução de

demandas repetitivas, que poderá ser composto por desembargadores que atuem em outra

área, que não é mais da especialidade deles, poderá trazer prejuízo na busca do real

significado do direito. Com o passar do tempo, eles acabam se especializando em

determinadas áreas (por exemplo, direito penal, processual penal). Permitir que essas questões

sejam resolvidas pelo Pleno em detrimento de outro órgão mais apropriado, designado pelo

regimento interno do Tribunal não será salutar571.

571 “A definição da competência dos órgãos que o compõem, além de ser uma atribuição privativa do tribunal,

insere-se no âmbito da sua organização interna. Só ao tribunal cabe definir se o incidente de resolução de causas repetitivas será processado, admitido e julgado pelo plenário, pela corte especial ou por outro órgão que lhe pareça mais adequado” (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de

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8.5 Legitimidade para instaurar o incidente

No direito inglês, o autor, o réu e também a Corte têm legitimidade para requerer a

aplicação do caso ao procedimento do Group Litigation Order, podendo ser feito a qualquer

momento572. Antes da Rule 19, apenas as partes tinham legitimidade para requerer a análise

da questão. No direito alemão, por sua vez, apenas as partes têm competência, não podendo o

juiz instaurar o procedimento modelo (Musterverfahren) de ofício.

No projeto brasileiro, de acordo com o art. 930, tanto o juiz (primeira instância) como

o relator (instância superior) poderão instaurar o incidente por meio de ofício ao presidente do

Tribunal. Além do magistrado, também poderão instaurar o incidente as partes, o Ministério

Público e a Defensoria. As partes, que são legitimadas ordinárias para a demanda individual

da qual fazem parte, acabam se tornando parte do incidente que não afetará apenas ela, mas

uma quantidade maior de sujeitos determinados ou determináveis. No direito inglês, todas as

partes das demandas individuais serão incluídas no GLO. No direito brasileiro não há essa

previsão. Parece-nos que a ideia do legislador não será criar uma coisa julgada coletiva, mas

simplesmente resolver uma quaestio juris numa demanda que servirá de precedente a ser

obedecido por todos no âmbito daquele tribunal.

O Ministério Público terá legitimidade para instaurar o incidente. Resta saber se ele

terá legitimidade para atuar em todos os eventuais casos que envolvam demandas repetitivas.

O incidente poderá versar sobre tema que seria objeto de direitos individuais homogêneos, o

que poderia trazer restrição à legitimidade do MP para defesa de direitos individuais

homogêneos. Não obstante, não estamos diante de uma ação coletiva, mas de uma

uniformização de entendimento do Tribunal sobre uma questão de direito. Entendemos que,

de acordo com a prescrição do § 3º do art. 930, que afirma ser a atuação do MP obrigatória

como fiscal da lei quando este não for parte, ele terá legitimidade para atuação em todos os

casos. A função dele aqui será a de contribuir para a melhor interpretação e aplicação das

questões de direito submetidas ao Tribunal. Pensamos que não haveria necessidade de

Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss). O autor chega a mencionar que a norma do projeto seria, inclusive, inconstitucional.

572 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 31

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194 comprovação de pertinência temática para o MP requerer a instauração do incidente.

Reforçando o entendimento aqui defendido, temos que uma das funções essenciais ao

Ministério Público, previsto no art. 127, caput, da Constituição Federal é a defesa da ordem

jurídica. Deste modo, havendo potencialidade de grande número de demandas, capaz de gerar

insegurança jurídica, tem o MP, por dever funcional, legitimidade para requerer a instauração

do incidente de resolução de demandas repetitivas573.

Quanto à Defensoria, pensamos que ela deva atuar apenas nos casos que envolvam a

proteção de interesses de pessoas consideradas pobres, na acepção jurídica do termo, devendo

então este órgão demonstrar sua pertinência temática para requerer a instauração do incidente.

Se o litígio versar sobre normas que envolvam investidores no mercado de capital, por

exemplo, a Defensoria não teria legitimidade ante a ausência de pertinência temática, pois

diferentemente do MP a Defensoria tem sua atuação ligada à defesa dos necessitados.

A lei não dá legitimidade para associação, sindicato ou entes públicos para requerer a

instauração do incidente. Nada impede que esses órgãos estejam atuando em demandas

individuais e, por conta disso, na qualidade de partes, requeiram a instauração do incidente.

Eles ainda poderão atuar na figura de amici curiae.

Diz o inciso I do § 1º do art. 930 que o juiz ou o relator poderão iniciar o incidente.

Seria qualquer juiz? Incluindo-se o juiz dos juizados especiais? A resposta é positiva, devendo

em qualquer desses casos haver a apreciação do incidente pelo Tribunal e não por turma

recursal.

Dúvida poderia surgir sobre a legitimidade do relator. Seria apenas o relator do recurso

ou da demanda originária no Tribunal local ou também haveria a possibilidade de a demanda

ser instaurada perante Tribunal Superior, por requerimento de Ministro Relator?

Para responder essa pergunta dependeremos do posicionamento adotado quanto à

competência para processar e julgar o incidente. Se entendermos que, de acordo com a dicção

573 Em sentido contrário, todavia, já se manifestou Leonardo José Carneiro da Cunha: “[...] Quer isso dizer que a

legitimidade do Ministério Público para suscitar o incidente de resolução de demandas repetitivas deve, na mesma linha da legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos, ser aferido concretamente, somente sendo reconhecida, se transparecer, no caso, relevante interesse social”.

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195 dos artigos do projeto o incidente deva ser instaurado em segundo grau de jurisdição, Ministro

Relator não terá legitimidade para instauração do incidente574.

Se entendermos que o STJ tem competência para processar e julgar o incidente

originariamente (e não por meio de recurso), seria dada legitimidade para instauração do

incidente ao relator. Como afirmamos acima, o incidente deve ser instaurado perante o

Tribunal local e, caso haja ou possa haver divergência em âmbito maior do que o de atuação

do Tribunal, os legitimados poderão requerer a suspensão de todas as demandas que versem

sobre a mesma quaestio juris até que o Recurso Excepcional seja julgado.

8.6 Intervenção de terceiros no incidente de resolução de demandas repetitivas

O Código de Processo Civil vigente prevê algumas formas de intervenção de

terceiros575. São elas: assistência simples e litisconsorcial576; denunciação da lide577;

oposição578; nomeação à autoria579 e chamamento ao processo580.

No incidente de resolução de demandas repetitivas não será possível a utilização da

nomeação à autoria, da oposição, do chamamento ao processo e nem da denunciação da lide.

A demanda que dará origem ao incidente de resolução de demandas repetitivas até poderá

conter uma dessas hipóteses de intervenção de terceiros, mas isso não fará com que seja

574 Segundo Teresa Wambier, em aula ministrada na PUC-SP no segundo semestre de 2011, a ideia dos

membros da Comissão que elaboraram o anteprojeto era de que não haveria necessidade de instauração do incidente perante Tribunal Superior porque nesses há a competência para julgamento de recursos repetitivos.

575 Optamos por realizar o estudo da possibilidade de intervenção de terceiros em face das modalidades hoje vigentes em detrimento das alterações realizadas pelo projeto, tendo em vista a necessidade de maior aprofundamento sobre as alterações propostas e o objeto do presente trabalho.

576 Tratada nos artigos 308 a 313 do projeto. 577 A denunciação à lide, que havia sido substituída pelo chamamento em garantia no anteprojeto, voltou ao PL

8.046/2010, por meio do substitutivo sobre a denominação de denunciação em garanti, tratada nos art. 314 a 318.

578 Vale destacar que a oposição não foi contemplada pelo PL 8.046/2010 como uma forma de intervenção de terceiros. Durante a votação da matéria no Senado houve proposta de emenda para reinserção dessa modalidade interventiva, tendo sido rejeitada ao argumento de que: “O instituto é utilizado raramente, o que, portanto, não justifica a manutenção de um capítulo especifico no Código para tratar do tema. Para veicular em juízo pretensão hoje contemplada na oposição, a parte poderá se valer de ação própria, que tramitará pelo procedimento comum, a ser dirigida contra os litigantes no outro processo, que hoje são denominados de opostos”. (conforme justificativa para rejeição à emenda nº 129, proposta pelo Senador Marconi Perillo)

579 A nomeação à autoria também não foi contemplada como forma de intervenção de terceiros. De acordo com o texto do art. 328 do projeto, se o réu alegar que é “parte ilegítima ou não ser o responsável pelo prejuízo invocado (pelo autor) na inicial, o juiz facultará ao autor” a emenda da inicial.

580 Tratada no Projeto nos artigos 319 a 321.

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196 possível uma dessas formas de intervenção de terceiros no incidente de resolução de

demandas repetitivas.

A nomeação à autoria, forma de correção do polo passivo, não terá cabimento, porque

para a instauração do incidente basta que a pessoa seja parte da demanda que deu origem ao

incidente. Não haverá correção do polo no incidente, podendo haver a correção do polo

passivo na lide originária581. O chamamento ao processo também não poderá ocorrer, haja

vista que sua finalidade é trazer aos autos o cofiador, o devedor principal ou o codevedor

solidário ou aquele que pela lei ou pelo contrato for corresponsável perante o autor582, para

que, em caso de eventual condenação, possa o chamante exercer seu direito de exigir do

corresponsável ou do devedor principal a cota parte deste, algo que não tem relação com o

incidente de resolução de demandas repetitivas. A oposição também não será cabível porque

nesta o terceiro pretende para si objeto de discussão entre as partes do processo e no incidente

não se está discutindo objeto litigioso, mas tese jurídica583. A denunciação da lide, relacionada

ao direito de regresso também não será possível porque por meio dela visa-se o direito de

regresso em face do garante e no incidente não haverá também sentença condenando a parte,

mas como se disse, apenas a fixação de tese jurídica a ser aplicada.

Como dito anteriormente, o que poderá haver é a intervenção de terceiros na causa que

deu origem ao incidente de resolução de demandas repetitivas. Isso não quer dizer que se

admita essas formas de intervenção no incidente. Se já houver a intervenção do terceiro – ex.:

denunciação da seguradora à lide –, esta terá legitimidade para requerer a instauração do

incidente, mas isto não significa que será admitida a denunciação no incidente de resolução de

demandas repetitivas. O mesmo raciocínio vale para o chamamento ao processo. Na lide

originária poderá ocorrer o chamamento ao processo. Aquele que foi chamado poderá

requerer a instauração do incidente, o que também não significa que se admitirá o

chamamento ao processo no incidente de resolução de demandas repetitivas.

No que se refere à assistência, pensamos ser possível a intervenção ante a falta de

melhor regulamentação da questão como no direito inglês e alemão. Explicamos: no direito

alemão há a escolha de um líder para a defesa da tese do autor e de outro líder para a defesa

da tese do réu (Musterkläger ou o Musterbeklagte). No direito inglês, por sua vez, não há

581 Que na dicção do projeto não ocorrerá mais por meio de intervenção de terceiros, mas pela possibilidade de o

autor emendar a inicial para inclusão do verdadeiro legitimado passivo. 582 Na dicção do art. 319, IV do projeto. 583 Acrescentando-se ainda que tal instituto não foi previsto pelo projeto.

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197 previsão sobre a escolha do advogado que defenderá os interesses do grupo, mas a doutrina

afirma que é conveniente que se forme um grupo de advogados e que seja escolhido um líder,

tudo feito por escrito, para que este advogado líder defenda os interesses do grupo584.

Como não há previsão de qual caso será o caso escolhido, nem de que o Tribunal,

admitindo a questão, determine aos juízes e desembargadores relatores a remessa de outros

casos que tenham riqueza de argumentações num e noutro sentido, o que seria salutar, é

essencial garantir a participação de outros litigantes que tenham suas demandas suspensas,

para que eles possam também apresentar argumentações num e noutro sentido, dando maior

subsídio para que o Tribunal possa apreciar a questão da maneira mais objetiva possível.

Se a ideia do incidente é decidir a questão de forma objetiva, parece-nos fundamental

a riqueza de argumentação. Pode-se dizer que a participação de outros que tiveram suas

demandas suspensas trará o efeito de enriquecer o debate sobre a quaestio juris controvertida.

Numa interpretação analógica desse instituto, podemos nos utilizar do julgamento de

recursos representativos de controvérsia. Para Teresa Wambier é possível a intervenção do

recorrente, que teve seu recurso sobrestado, na qualidade de amicus curiae, afirmando que

este poderá trazer novos argumentos, posicionamento com o qual concordamos585. Todavia a

1ª Seção do STJ vem se posicionando em sentido contrário, afirmando haver na espécie mero

interesse subjetivo586.

Embasados nas lições de Cassio Scarpinella Bueno, que distingue as figuras do

assistente e do amicus curiae, pensamos que a intervenção nesses casos não deva ser feita na

qualidade de amicus curiae e sim na qualidade de assistente, pois aqueles que terão seus

processos suspensos (assim como aqueles que terão seus recursos suspensos, no caso de

julgamento dos recursos excepcionais por amostragem) poderão ser indevidamente587 afetados

pelo resultado da demanda, pois correrão o risco de não terem seu direito acolhido sem que

584 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 32; ROSSONI, Igor

Bimkowski. O “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” e a Introdução do Group Litigation no Direito Brasileiro: Avanço ou Retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/50-artigos-dez-2010/7360-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso, acesso em 07.11.2011, às 11h13

585 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 304 e 308. Pensamos, todavia, que não apenas o recorrente pode intervir, mas o recorrido também, pois este também será afetado pelo resultado da demanda.

586 STJ. 1ª Seção, Rcl. 4982-SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 27.04.2011. 587 Indevidamente, porque se a fundamentação é outra, ou se a peculiaridade fática requer distinção, pensamos

que o juízo a quo não ficará subordinado à tese fixada no incidente.

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198 tenha sido analisada sua argumentação (que pode ser diferente da apresentada no(s) caso(s)

selecionado(s)).

Como bem destaca Cassio Scarpinella, amicus curiae e assistente são figuras distintas,

que não podem ser confundidas:

O assistente, simples ou litisconsorcial, é um interveniente egoísta no sentido de atuar em tutela de um direito ou de um interesse seu, que, de alguma forma, será afetado, presente ou futuramente, pelo que vier a ser decidido em juízo. [...] Tais características não existem (não podem e não devem existir) em se tratando do amicus curiae. Sua atuação tende a ser, por definição, altruísta. [...] O que releva para ele – e é por isso que intervém no processo – é que o “direito objetivo” seja adequadamente aplicado, em conformidade com suas finalidades institucionais ou, quando menos, que as informações das quais é titular, justamente em função de sua missão institucional perante a sociedade civil organizada ou perante o próprio Estado, em suas diversas ramificações e especializações, parecem-lhe relevantes para o proferimento de melhor decisão jurisdicional588.

Assim, pensamos que o ideal seria um melhor detalhamento da matéria para que

houvesse a previsão legal de formação de grupos com a escolha de advogados líderes, a

exemplo do direito comparado. Com essa formação dos grupos, a apresentação dos

argumentos num ou noutro sentido seriam mais ricas, aumentando ainda mais a objetividade

do julgado. Não obstante, como não se prevê essa formação de grupos, é preciso encontrar um

meio de tornar a discussão sobre a quaestio o mais rica possível. Desta feita, pensamos que a

permissão da assistência seria uma forma adequada para que isso ocorra. A justificar isso

temos o próprio art. 50, parágrafo único, que autoriza a intervenção em qualquer

procedimento e em todos os graus de jurisdição589. Isso em razão de ausência de proibição e

da própria falta de melhor regulamentação quanto à formação de grupos líderes, como

existente no direito alemão590 e inglês591.

588 BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro – um terceiro enigmático. 2. ed. São

Paulo: Saraiva, 2008, p. 443-444 589 Redação semelhante permanece no projeto, no art. 308, parágrafo único. 590 Vale destacar que o sistema alemão ainda prevê a intervenção de terceiros interessados (Beiladung) que

poderão, inclusive, ampliar o objeto da demanda, incluindo outras questões comuns, sejam elas de fato ou de direito.

591 No mesmo sentido, também admitindo a assistência no incidente de resolução de demandas repetitivas: CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss: “Enquanto não definida a tese jurídica a ser aplicada aos casos repetitivos, as partes de cada um dos respectivos processos podem intervir no mencionado incidente, contribuindo com o convencimento do tribunal. Tais partes têm interesse jurídico no resultado a ser obtido com o julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas. Quer isso dizer que as partes das causas repetitivas, cujo processamento deve suspender-se ante a instauração do aludido incidente, podem nele intervir, fazendo-o na condição de assistentes litisconsorciais, exatamente porque a questão jurídica discutida também lhes diz

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199 Não obstante, uma melhor regulamentação da matéria evitaria retardamento no

julgamento do incidente e pedidos de intervenção sem que o interveniente tenha trazido

argumentação nova, capaz de enriquecer e aumentar a objetivação da decisão sobre a quaestio

juris do incidente. A falta de maior detalhamento da questão poderá causar atraso no

julgamento do incidente, pois não há limitação temporal para essa admissão de terceiros

assistentes.

Também será possível haver a intervenção do amicus curiae, figura essa que não se

confunde com a assistência592, conforme demonstramos acima. Esse amigo da corte pode ser

uma entidade ou órgão representante de classe (legitimados para as ações coletivas, OAB,

CVM, INPI, CADE, por exemplo) ou até mesmo uma pessoa física, desde que haja

representatividade adequada e interesse institucional593. O ideal seria haver previsão expressa

na lei de ciência à órgãos públicos e entidades de classe para que haja a participação da

sociedade na decisão do incidente. Quanto maior for a publicidade, maior será a participação

da sociedade e, por consequência, maiores serão os argumentos num e noutro sentido,

reduzindo-se a hipótese de exceções à aplicação da tese fixada pelo Tribunal.

8.7 Procedimento

A instauração do incidente se dará por meio de petição endereçada ao Presidente do

Tribunal local (ou quando o requerimento for formulado pelo juiz ou relator, estes expedirão

ofício ao Presidente do Tribunal local).

O projeto não deixa clara a forma pela qual se dará o incidente, se nos mesmos autos

ou se a parte deverá formar um instrumento. Ainda: se for realizado pedido direto no

Tribunal, por meio da formação de um instrumento, como se dará a comunicação ao juízo a

quo, quais seriam os documentos essenciais à formação do incidente, a partir de quando

respeito. Na verdade, o referido incidente representa a controvérsia, concentrando, no tribunal, todas as demandas que se fundam na questão jurídica a ser ali examinada. As partes de cada processo repetitivo podem tornar-se, igualmente, partes no mencionado incidente, nele intervindo na condição de assistentes litisconsorciais”.

592 BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro – um terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 442

593 BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro – um terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 653-654

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200 haveria suspensão da demanda em primeira instância? Ou, se for realizado o pedido nos

próprios autos por qualquer das partes, não há previsão de juízo de admissibilidade pelo juiz

ou relator, nem de intimação da parte adversa para se manifestar sobre o pedido.

Ao se analisar a dicção dos §§ 1º e 2º do art. 930 e do art. 932 do projeto, constata-se

que o pedido de instauração do incidente deverá ser dirigido ao Presidente do Tribunal e que

esse pedido será instruído com os documentos necessários à demonstração dos requisitos de

admissibilidade para instauração do incidente (§ 2º do art. 930). Prevê ainda o art. 932 que o

relator do incidente “poderá requisitar informações ao órgão em cujo juízo tem curso o

processo originário, que as prestará em 15 dias”. Ora, se os autos já estivessem no Tribunal,

não haveria como o juiz prestar informações. Em razão disso, entendemos que o incidente

deverá ser realizado por meio de instrumento.

Acrescente-se que o art. 930 do projeto não trata de demandas que envolvam

exclusivamente questões de direito. Afirma apenas que o incidente poderá ocorrer sobre

questões de direito. Assim a demanda poderá conter cumulação de pedidos, podendo um ou

alguns serem questões de direito e, ainda, um deles ser objeto de incidente e os outros não.

Com base nisso, não haveria razão para que os autos ficassem no Tribunal e para que as

demais questões que não dependam do incidente não sejam apreciadas pelo juízo a quo.

Citamos como exemplo o fornecimento de determinada tintura que acabou ocasionando a

perda de cabelos por mulheres, além de queimaduras. A causa envolve matéria de fato, mas

um dos pedidos poderá estar ligado à questão de direito. Imagine que diversas mulheres que

utilizaram esse produto e sofreram danos ingressem com demandas pleiteando a indenização

por danos materiais, morais e também estéticos. Será questão de direito saber se pode haver

ou não cumulação de dano moral com dano estético594. Em razão disso, o incidente poderia

versar apenas sobre esse ponto da demanda, não impedindo que ela prossiga quanto aos

demais pontos em primeiro grau de jurisdição, ficando apenas impossibilitada a prolação de

sentença (ou julgamento do acórdão quando os autos já estiverem no Tribunal).

Superada essa primeira etapa é preciso então formar o instrumento. E para a sua

formação precisamos trazer cópia dos documentos considerados essenciais para apreciação do

incidente. Dentre as cópias essenciais, podemos destacar a petição inicial, contestação

(quando houver), procuração outorgada aos advogados das partes, documentos que

594 Questão pacificada pelo STJ por meio do enunciado de súmula 387

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201 comprovem a possibilidade de multiplicação de demandas sobre a mesma questão. Não será

possível prova testemunhal, inspeção judicial ou pericial para a admissão do incidente595.

Feita a petição e distribuída no Tribunal, a parte deverá comunicar ao juiz ou relator

sobre o requerimento de instauração do incidente, juntando cópia da petição de interposição.

O comunicado aqui, diferentemente do que ocorre com o agravo de instrumento, que visa à

retratação do magistrado, tem por finalidade requerer a suspensão do processo pelo juízo a

quo, em função da prejudicialidade do incidente. Isso porque, de acordo com a dicção do art.

934, a suspensão legal dos processos ocorrerá apenas após a superação do juízo de

admissibilidade pelo Tribunal. Diante do risco de a parte que deu início ao incidente ter sua

demanda julgada antes mesmo de ser julgado o incidente, parece que a lei deveria prever a

suspensão da demanda na qual o incidente foi requerido em momento anterior ao juízo de

admissibilidade do incidente pelo Tribunal (suspensão apenas quanto a questão prejudicial,

impedindo a prolação de sentença). Caso não haja a suspensão dos autos em primeiro grau

antes da realização do juízo de admissibilidade, a parte que deu início ao incidente pode ser

prejudicada com eventual decisão em primeiro grau sendo obrigada a recorrer apenas para

evitar a formação de coisa julgada, para que sua demanda seja julgada no mesmo sentido do

incidente. Pensar de forma contrária poderia levar a demanda originária a ser julgada num

sentido enquanto não tenha sido feito o juízo de admissibilidade no incidente. Após realizado

o juízo de admissibilidade, suponha-se que o Tribunal julgue a demanda noutro sentido e a

parte que deu início ao incidente acabe, por qualquer razão, por não recorrer da sentença. Isso

levaria a um antagonismo: a pessoa que deu início ao incidente em seu processo não poderá se

valer da decisão do incidente. E mais, como uma decisão poderia ser proferida antes de seu

incidente, que resolverá questão prejudicial daquela mesma demanda? Por essa razão seria

prudente que houvesse previsão de suspensão da demanda originária com a simples

distribuição do incidente perante o Tribunal e comunicação dessa distribuição em primeiro

grau (ou perante a Câmara). Também seria prudente que houvesse previsão de prazo para a

comunicação e comprovação do pedido de instauração do incidente, sob o risco de a

demanda.

Se a instauração do incidente decorrer de iniciativa do magistrado, pensamos que

também deverão ser encaminhadas cópias das peças essenciais para a resolução do incidente,

595 (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas

previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss)

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202 nos termos do § 2º do art. 930 do projeto. A partir do requerimento do incidente pelo

magistrado, os autos ficarão suspensos naquilo que depender da questão de direito objeto do

incidente por conta de sua prejudicialidade.

O projeto também acaba por se omitir sobre como poderá ser feita essa distribuição, se

diretamente, pelo correio ou utilização do sistema de protocolo integrado. Seria importante

que constasse disposição semelhante ao § 2º do art. 971 do projeto, que cuida do agravo de

instrumento596.

Distribuída a petição ou o ofício, considerar-se-á instaurado o incidente, devendo

haver o registro dele num banco de dados a ser organizado pelo Tribunal local, devendo

também haver a comunicação da instauração do incidente ao CNJ, que fará um controle do

cadastro em âmbito nacional.

Na sequência, os autos serão encaminhados a um relator, que poderá requisitar

informações ao órgão em cujo juízo tem curso a demanda originária. Este deverá prestar as

informações no prazo improrrogável de 15 dias597.

De acordo com a dicção do art. 932 do projeto, será solicitada data para a inclusão do

incidente na pauta do Pleno ou Órgão Especial598, para que seja julgada a admissibilidade do

incidente. O Ministério Público, quando não for parte, deverá ser intimado, podendo se

manifestar.

Mas antes mesmo dessa solicitação de inclusão do incidente na pauta do Pleno ou

Órgão Especial, caberá ao relator a realização do relatório, preparando seu voto, nos termos

do processamento das demandas perante os Tribunais (previsto no projeto nos artigos 884 e

seguintes).

As partes deverão ser intimadas da data designada para a realização da audiência de

admissibilidade do incidente. Para ela, todavia, não há previsão de sustentação oral.

596 § 2º No prazo do recurso, a petição será protocolada no tribunal, postada no correio sob registro com aviso de

recebimento ou interposta por outra forma prevista na lei local 597 Apesar de improrrogável o prazo, não há previsão no CPC para o descumprimento dessa obrigação pelo juiz,

tratando-se de prazo impróprio, que poderá ter como consequência penalidade administrativa. 598 Como mencionamos acima, melhor teria sido que o projeto deixasse a cargo do Tribunal fixar qual órgão

competente para a fixação da tese, tal como ocorre hoje com o incidente de resolução de demandas repetitivas.

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Se o incidente não for admitido, a demanda originária volta a ter seu curso perante o

juiz em primeiro grau de jurisdição. Não há previsão de recurso dessa decisão que admite ou

não o incidente.

Não admitido o incidente, nada impede que diante de outros fatos, seja novamente a

questão levada para apreciação do Tribunal. Supondo que na primeira hipótese a questão

ainda estava prematura e não se visualizava a possibilidade de multiplicação de demandas e

por esta razão o incidente não foi admitido pelo Tribunal. Posteriormente a multiplicação de

demandas se torna patente. Como há fatos distintos, poderá haver pedido de instauração do

incidente, que deverá ser apreciado pelo Tribunal.

Admitido o incidente, o projeto diz que o Presidente do Tribunal determinará a

suspensão dos processos pendentes em primeiro e segundo graus que dependam da resolução

da questão de direito objeto do incidente.

O art. 933, § 1º, do projeto traz redação delicada ao mencionar que o Tribunal poderá

analisar a “conveniência” de se admitir o incidente para a prolação de uma decisão

paradigmática.

Haveria discricionariedade judicial na instauração do incidente? Em que se basearia

essa discricionariedade? Na conveniência? Fundada em quê?

Como destacamos acima, o juiz não exerce discricionariedade. O juiz, ao julgar, não

faz juízo de conveniência e oportunidade. Ele interpreta e aplica a lei aos casos que lhe são

submetidos. Essa foi a conclusão a que chegamos, fundada nas doutrinas acima referidas.

O projeto, por sua vez, surpreende ao prever que o juiz poderá verificar a

“conveniência” na adoção do procedimento. Pedimos vênia para discordar desse termo. Não

haverá discricionariedade judicial. Talvez fosse melhor a utilização pelo legislador de outros

termos, pois pode ocorrer que a adoção de uma decisão paradigmática possa trazer reflexos na

economia e na sociedade, de forma que não deva ser adotado o procedimento, o que seria um

contrassenso. Conveniência significa que o Tribunal poderá não admitir o incidente sem que

haja necessidade de fundamentação, e a Constituição Federal preza pela motivação das

decisões judiciais. Estas, por sua vez, devem ser embasadas nas normas jurídicas. Apesar

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204 disso, ressalta-se que no direito inglês a formação do GLO é tida por decisão discricionária da

Corte. Não há critério legal sobre a formação do GLO599.

No Brasil, o projeto ainda traz os requisitos do art. 930 citados acima, mas acrescenta

a conjunção “e”, bem como o termo ”conveniência”.

Como essa decisão é de única instância, proferida por um tribunal, se houver ofensa à

lei federal, por exemplo, porque estão presentes os requisitos e mesmo assim o tribunal não

admitiu o incidente, o prejudicado (que poderá ser, no caso, qualquer das partes) poderá

interpor recurso especial. Da admissibilidade de instauração do incidente, todavia, pensamos

que não seja possível recorrer. Em que pese haver decisão, esta não trará prejuízo para as

partes e, para que haja interesse recursal, faz-se necessário demonstrar interesse recursal.

A ideia dos autores do anteprojeto, ao prever que caberá ao Tribunal verificar a

conveniência de instauração do incidente talvez seja justamente a de se evitar recursos contra

a admissibilidade ou não do incidente. O contraponto realmente tem fundamento, pois poderá

ocorrer de partes inescrupulosas requererem a instauração do incidente em casos que já foram

até mesmo apreciados pelo tribunal, em casos nos quais não haja a menor comprovação do

preenchimento dos requisitos etc. Todavia, pensamos que seja possível dar poderes ao relator

para que afaste o incidente nestas hipóteses e, qualquer recurso que seja interposto não terá

efeito suspensivo e não impedirá o andamento do processo, que se encontrará, como regra, em

primeiro grau de jurisdição. Se a atitude da parte for descabida ao requerer a instauração do

incidente há instrumentos processuais para corrigir o desvio de conduta desta.

Em relação à suspensão do processo, parece haver certo antagonismo entre a redação

do art. 934 e a redação do art. 933, § 2º, do projeto. Isso porque o § 2º do 933 fala que se

houver rejeição do incidente “o curso dos processos será retomado” e o art. 934 fala que se for

admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na própria sessão, a suspensão dos

processos pendentes.

A única saída que vemos para esse antagonismo seria a existência de suspensão dos

processos nos quais foi requerida a instauração do incidente, a partir de seu requerimento,

como descrevemos acima. Como o incidente é requerido por meio da formação do

instrumento, a parte, para não ser prejudicada, deverá ter a demanda originária suspensa,

assim como o juiz deverá suspender a demanda quando expedir ofício ao Tribunal requerendo 599 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 33-34

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205 a instauração do incidente. Essas demandas é que terão seus cursos retomados caso não seja

admitido o incidente, porque a suspensão delas ocorrerá em momento anterior, conforme

explicamos acima.

Se admitido o incidente, por sua vez, o Tribunal expedirá ofício a todos os demais

membros a ele vinculados para que haja a suspensão de qualquer discussão em processos que

estejam tramitando e que cuidem da questão de direito objeto do incidente.

Após, as partes serão intimadas na pessoa de seus advogados, para que possam se

manifestar. Terceiros juridicamente interessados, bem como os amici curiae, também poderão

se manifestar. De acordo com o texto do projeto, a admissibilidade desses terceiros será

solicitada ou admitida pelo relator, não havendo qualquer possibilidade de recurso por parte

destes terceiros600. O papel do amicus curiae é fundamental para a objetivação do julgamento

da demanda, pois será dada a oportunidade para a sociedade ser ouvida antes de a decisão ser

proferida, afetando a coletividade.

A manifestação das partes, dos terceiros interessados e dos amici curiae deverá

ocorrer no prazo comum de 15 dias, após os quais o Ministério Público será intimado

pessoalmente para se manifestar também em 15 dias. Nessas manifestações poderão ser

juntados novos documentos.

Terminado o prazo para as manifestações, o relator pedirá dia para julgamento do

incidente.

Na data designada, o relator fará a exposição da causa, após será dada a palavra ao

autor, ao réu e ao Ministério Público. Novamente o projeto não foi claro quanto ao tempo

designado para sustentação oral, se comum ou individual601, nem sobre se haveria alteração na

sustentação oral no caso de solicitação do incidente pelo réu e não pelo autor, ou mesmo no

caso de a solicitação ter sido feita pelo recorrente ou recorrido (quando os autos estiverem no

Tribunal).

Quanto ao prazo, pensamos que seja individual, isto porque, de acordo com o art. 892

do projeto, o prazo para sustentação previsto no procedimento dos recursos é individual de

600 Art. 322 do projeto. 601 Art. 936, § 1º “Feita a exposição do incidente pelo relator, o presidente dará a palavra, sucessivamente, ao

autor e ao réu do processo originário, e ao Ministério Público, pelo prazo de trinta minutos, para sustentar suas razões”.

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206 quinze minutos. No incidente, que será julgado de forma objetiva, pensamos que o prazo não

poderia ser comum, pois cada parte e o representante do MP teriam prazo individual de dez

minutos. É certo que não há no dispositivo algo que afirme ser o prazo comum, mas também

nada fala sobre o prazo ser individual.

Quanto à ordem para manifestação do incidente, pensamos que deva primeiro falar o

autor e depois o réu e, nos casos de instauração do incidente quando a demanda já esteja no

Tribunal, primeiro deverá ser ouvido o recorrente e depois o recorrido. De qualquer forma,

pensamos que, em razão da objetivação da quaestio juris, não haveria prejuízo à parte na

manutenção de uma ordem única, tal como previsto no projeto.

Após, todos os demais interessados poderão se manifestar no prazo comum de trinta

minutos. Aqui há previsão de prazo comum602. Somente poderão sustentar oralmente os

terceiros caso estes realizem a inscrição para sustentação oral perante a Secretaria do Tribunal

com quarenta e oito horas de antecedência603.

Terminadas as sustentações orais, o presidente dará a palavra ao relator, que proferirá

seu voto. Na sequência, os demais desembargadores votarão sobre a questão. Apesar de não

previsto no capítulo que trata do incidente, o art. 895604 do projeto, que trata da possibilidade

de pedido de vista pelos demais desembargadores (e até mesmo pelo próprio relator), deve ser

aplicado à espécie605. Encerrado o julgamento, será lavrado acórdão e a tese jurídica

vencedora será aplicada a todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito

objeto de decisão no incidente, nos limites da competência territorial do Tribunal prolator da

decisão. Assim, o juiz da ação que deu origem ao incidente, bem como os demais magistrados

que suspenderam os processos que tratavam da mesma quaestio juris, deverão julgar as lides,

aplicando a tese fixada pelo Tribunal. Nota-se que, semelhantemente ao que acontece na

602 Art. 936 [...] § 2º. “§ 2º Em seguida, os demais interessados poderão se manifestar no prazo de trinta minutos,

divididos entre todos, sendo exigida inscrição com quarenta e oito horas de antecedência”. 603 Mais uma vez, mostra-se necessário haver a escolha de líderes, como no direito comparado, para a

sustentação das teses. Permitir a muitos falar, com o curto tempo que terão será o mesmo que não permitir que defendam suas teses. Pode ser muito provável que as teses dos terceiros tenham muito mais riqueza do que as teses das partes. Por esta razão, melhor seria permitir que alguns poucos representantes pro et contra determinada tese sustentem perante o Tribunal, trazendo o maior número de argumentos, cada um em favor de sua posição.

604 Art. 895. “Qualquer juiz, inclusive o relator, que não se considerar habilitado a proferir imediatamente seu voto, poderá pedir vista pelo prazo máximo de dez dias, após o que o recurso será reincluído em pauta para julgamento na sessão seguinte à data da devolução”.

605 Se levarmos em consideração a possibilidade de pedido de vista por cada um dos membros do Pleno ou do Órgão Especial, acrescidos dos prazos para manifestação das partes, o tramite processual poderá superar os seis meses previstos em lei.

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207 Alemanha, o processo que deu origem ao incidente tem o julgamento bipartido606. A quaestio

juris que tem potencial de se multiplicar noutros processos será fixada pelo Tribunal, ao julgar

o incidente. A sentença do processo, todavia, será proferida pelo magistrado, aplicando a tese

fixada607.

8.8 A importância de se criar um banco de dados

A importância de um banco de dados, tanto no que tange aos incidentes em curso,

quanto aos que já foram julgados é fundamental. Também é fundamental a centralização

destas informações num único órgão oficial. Quando da instauração de incidentes, deverá ser

dada publicidade de sua instauração para que a sociedade possa participar na formação da

tese. Sobre isso, diz o art. 931 do projeto que “A instauração e o julgamento do incidente

serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro

eletrônico no Conselho Nacional de Justiça”. Falta clareza quanto à ampla e específica

divulgação, pois dá a entender que essa divulgação ocorrerá por meio de registro eletrônico no

sítio do Conselho Nacional de Justiça. Pensamos que deveria haver previsão de comunicação

dos incidentes instaurados aos órgãos de classe, entidades voltadas para a proteção dos

direitos discutidos em litígio (Procon, por exemplo) etc. As informações precisam ficar

centralizadas e assim ficarão, sendo o CNJ o responsável por essa centralização. Não

obstante, poderia haver a previsão para que as entidades, associações ou até mesmo

606 Em sentido contrário, afirmando que o Tribunal julgará a própria lide: BARBOSA, Andrea Carla;

CANTOARIO, Diego Martinez. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In. FUX, Luiz. (coord.) O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 504-505: “O incidente é sempre um procedimento que se instaura a partir de um processo já em andamento. A demanda de que se origina passará à competência do órgão ad quem, para que sobre ela haja decisão, a partir do que ficar assentado com respeito à questão de direito discutida. Então, para a ‘ação-rainha’, aquela alçada à condição de líder, de porta voz do grupo de ações, aquela que ‘fala’ por todas as outras, enfim, que transmite a discussão sobre a questão de direito ao Tribunal, haverá decisão não apenas da questão jurídica controvertida (e, claro, das demais questões), mas da própria lide”.

607 Ao tratar do Musterverfahren, Antonio do Passo Cabral afirma que “A cognição judicial, nos incidentes, é cindida: neles seriam apreciadas somente questões comuns a todos os casos similares, deixando para um procedimento complementar a decisão de cada caso concreto. No incidente coletivo é resolvida parte das questões que embasam a pretensão, complementando-se a atividade cognitiva no posterior procedimento aditivo. A efetividade do incidente coletivo é proporcional, portanto, à possibilidade de que as questões nele decididas sejam fundamentos de muitas pretensões similares, e que possam tais questões ser resolvidas coletiva e uniformemente para todas as demandas individuais”. (CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss.)

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208 particulares pudessem se cadastrar junto ao sítio do CNJ para receber a comunicação de novos

incidentes instaurados. Desta forma, as municipalidades, organizações sociais (e até mesmo as

universidades, por quê não?) poderiam acompanhar os temas em discussão perante os vários

tribunais do país.

No que tange aos incidentes já julgados, a criação de um banco de dados servirá para

que as partes e mesmo os juízes consultem esse banco antes mesmo de procederem a eventual

requerimento de instauração do incidente.

Se uma parte procurar um advogado em razão de um litígio não resolvido, caberá ao

advogado, ao elaborar a inicial, demonstrar que já há decisão do tribunal resolvendo a questão

de direito, descrevendo a similitude de seu caso com o que fora julgado pelo Tribunal, para

que o juiz não necessite instaurar o incidente e para que possa até mesmo, se for o caso,

conceder a tutela da evidência.

Ao advogado da outra parte, a existência desse banco de dados servirá para afirmar

que a pretensão do autor não tem fundamento porque, em incidente, o Tribunal adotou

posicionamento contrário ao do autor.

Para o juiz, a existência do banco evitará que ele expeça ofício de forma desnecessária,

além de servir de base para sua decisão, já que ele deverá adotar o posicionamento exarado

pelo Tribunal.

No direito inglês, cabe à parte, antes de propor a realização do Group Litigation

Order, se certificar da existência ou não de demanda anterior ou pendente de tramitação

envolvendo a mesma questão608 (que lá pode ser de fato ou de direito).

A existência desse banco de dados será fundamental para que as pessoas pautem suas

condutas de acordo com a lei, devidamente interpretada naquelas situações, pelo

entendimento dos Tribunais.

608 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 32. A parte deve

consultar o serviço de informações das “Multi-party action da Law Society.

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209 8.9 Ausência de escolha de “caso modelo” e de representantes

O direito pátrio não descreve qual será o caso modelo adotado para julgamento,

porque a instauração do incidente será realizada no curso de um processo qualquer. Se forem

vários os pedidos de instauração do incidente realizados, pensamos que todos devam ser

apensados, uns aos outros, para que o Tribunal possa apreciar o tema.

No direito inglês, há críticas quanto à escolha do caso que servirá de modelo, pois um

será escolhido e praticamente o grupo inteiro não terá acesso à Corte609. Isso também acabará

por ocorrer no Brasil. As partes dos demais processos que ficarão suspensos poderão até

requerer sua intervenção, mas diante da multiplicidade de requerimento de intervenções o

Tribunal poderá acabar recusando-as, pois haveria tumulto processual.

O projeto fala apenas sobre o caso considerado como incidente, dando a entender que

é o advogado do caso escolhido que acabará por defender a causa, o que poderá trazer

prejuízo para terceiros caso este não tenha bons argumentos a favor de sua tese.

Seria muito importante que houvesse a escolha de casos modelos, porém isso não foi

previsto pelo projeto. Também seria importante a previsão de acordo entre os litigantes para

escolha de advogado líderes, pois várias podem ser as fundamentações tanto num quanto no

outro sentido. Pode ocorrer de o advogado da causa onde fora instaurado o incidente ter

concentrado sua defesa em um ou em poucos fundamentos e a tese firmada pelo Tribunal será

julgada considerando as fundamentações que lhe foram apresentadas. Poderia, ao menos,

haver um dispositivo dizendo que o Relator, no Tribunal, poderia solicitar o encaminhamento

de processos que contenham riqueza de argumentação tanto num quanto noutro sentido.

O mais interessante é que nosso legislador já tem ciência disso, quando menciona que

no julgamento dos recursos repetitivos (art. 543-B e 543-C) os Tribunais selecionarão

recursos que representem a controvérsia. Ou seja, a análise do caso, para que tenha uma

eficácia objetiva, deverá levar a maior quantidade de fundamentos tanto num sentido quanto

no outro.

609 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 16-17

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210 Por conta desse raciocínio, pensamos que a objetivação do incidente ocorrerá, mas nos

limites dos fatos e fundamentos considerados para a interpretação e aplicação da quaestio

juris. Pensamos que a tese julgada no incidente deverá ser aplicada aos demais casos que

ficaram suspensos, devendo ser considerado os fatos e fundamentos analisados pelo Tribunal.

Deve-se prezar por uma comparação analítica com o caso modelo. A ideia de obediência ao

que foi julgado no incidente deve ser realizada não apenas comparando-se friamente o

resultado do julgamento no incidente, sob o risco de continuarmos no caos que vivemos hoje.

Ante a inexistência de análise pormenorizada por conta da ausência de diversas demandas,

nas quais vários fundamentos possam ser apreciados, fazendo com que o Tribunal analise o

caso da forma mais ampla possível, pensamos que o juízo a quo poderá chegar a um resultado

diferente na demanda individual, pela simples constatação e demonstração de que seu caso,

analiticamente considerado, não se enquadra no incidente, ou ainda em razão de outra

fundamentação legal ou constitucional que não fora objeto de análise pelo Tribunal.

Exemplificando, imaginemos que determinado consumidor tenha ajuizado demanda

requerendo a devolução dos valores pagos em razão da desistência num contrato de consórcio,

alegando a nulidade da cláusula que prevê a devolução dos valores apenas ao final do

consórcio. Essa matéria pode vir a ser objeto de incidente de resolução de demandas

repetitivas. Nessa hipótese, o que será discutido no Tribunal, de acordo com as informações

dos autos, é se a retenção dos valores pagos e sua devolução apenas ao final é lícita ou se a

cláusula que prevê isso é abusiva e, por isso, ilegal.

Numa segunda hipótese, imaginemos que outro consumidor vá a juízo alegando que as

informações prestadas pelo vendedor do consórcio no momento da celebração do negócio

jurídico foram diversas das constantes do contrato, ou seja: houve proposta feita num sentido

diverso daquele existente no contrato assinado por uma pessoa de baixa instrução. A análise

aqui não será sobre a legalidade ou ilegalidade da cláusula, será sobre se essas informações

prestadas pelo fornecedor na elaboração da proposta integram ou não o contrato e também

sobre o que prevaleceria diante da existência de divergência – a proposta ou o contrato.

Caberá à parte demonstrar, analiticamente, que sua demanda não se enquadra no incidente em

razão de suas peculiaridades.

Por mais que afirmemos que a utilização do instituto se dará sobre questões de direito,

já mencionamos que todas as questões jurídicas envolvem fatos. E que, quando se fala em

questões de direito, quer-se referir a questões predominantemente de direito. E para a

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211 interpretação dessas questões predominantemente de direito, o juiz terá que analisar o caso

concreto. E é dessa análise do caso concreto que o tribunal trará a forma pela qual a norma

deverá ser interpretada. Dai a importância da análise analítica entre o que foi apreciado pelo

tribunal e a demanda futura, para saber se o caso futuro deverá ser julgado da mesma forma

que fora julgado o incidente (porque há similitude) ou não, porque há peculiaridades que o

distingue do precedente.

A prevalecer a redação do instituto tal como está, sem que haja a escolha de casos

modelos com riqueza de argumentação, tanto num sentido quanto no outro, os demais casos

que ficaram suspensos, aguardando a decisão do incidente e a fixação da tese, poderão não

ficar subordinados à tese fixada no incidente. É preciso que haja a objetivação do julgamento

do incidente para que a definição das questões de direito possam abranger o maior número de

casos possíveis.

Como justificar a aplicação da tese fixada no julgamento de um incidente a um

processo na qual a parte traz fundamentação jurídica diferente da que foi objeto de análise

pelo Tribunal? Novamente exemplificando, imaginemos que determinado contribuinte

requeira a repetição do indébito tributário e a questão de direito estaria relacionada ao prazo

prescricional para essa repetição. Se seria aplicada a lei “A” ou a lei “B”. Verificando a

tendência de repetição de demandas sobre a mesma questão, instaura-se o incidente de

resolução de demandas repetitivas e o Tribunal, ao argumento de que a lei “A” é específica,

em relação à lei “B”, entende como correto o prazo prescricional fixado pela lei “A”, que é

menor (supondo seja de cinco anos, contra o prazo de dez anos da lei “B”).

Continuando o raciocínio, noutro caso que ficou suspenso, na qual a parte não tenha

conseguido sua intervenção610, ou mesmo noutro caso em que o particular sequer tenha

ajuizado a demanda, este agora pede a repetição do indébito tributário com a aplicação do

prazo prescricional de dez anos ao argumento de que a lei “A” não poderia ser aplicada

porque se trata de lei ordinária, quando a Constituição determina que a matéria deva ser

regulada por meio de lei complementar.

Em suma, quer-se demonstrar que a aplicação da tese somente poderá ser feita nos

limites das argumentações enfrentadas pelo Tribunal ao julgar o incidente. A mesma ressalva

já feita anteriormente ao legislador, de que ele não conseguiria prever todas as possíveis e 610 A exemplo do que já se pode verificar no julgamento de demandas repetitivas, na qual o STJ afirmou que não

seria possível a intervenção da parte na qualidade de amicus curiae, conforme tratamos acima.

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212 imagináveis situações em que a lei seria aplicada, também se aplicará ao Tribunal. Este

também não terá condições de prever todas essas situações. Diante disso e considerando a

ausência de escolha de caso com riqueza de argumentação, bem como a ausência de

apensamento de outros autos com riqueza em argumentação, a objetivação da tese fixada no

incidente de resolução de demandas repetitivas dependerá da intervenção dos amici curiae e

assistentes e a tese será fixada nos limites das questões apreciadas pelo Tribunal. Admitir a

fixação de uma tese de forma abstrata para todos os possíveis e imagináveis casos futuros,

sem que haja profundidade nas discussões seria o mesmo que admitir o retorno aos assentos,

que deixaram de ser instituídos no Código de 1973 e foram extirpados do direito português

ante sua inconstitucionalidade611.

Defendermos que o incidente de resolução de demandas repetitivas criará um

precedente e, por isso, ressaltamos a importância da análise do caso fático anterior para

aplicação da mesma razão no caso sub judice, desde que haja similitude tanto no que tange

aos fatos, como no que tange aos argumentos612.

8.10 Desistência, transação, reconhecimento jurídico do pedido, renúncia da

demanda e o incidente de resolução de demandas repetitivas

No caso de a parte autora da ação na qual foi requerido o incidente pretender desistir

de sua ação, pensamos que ela deva ter esse direito assegurado, aplicando-se as regras de

direito processual quanto a isso, que no projeto continuam as mesmas (art. 472, § 4º do

projeto613). Essa desistência da ação não afetará o incidente já instaurado, que deverá

611 Diferentemente de Júlio César Rossi (ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o

incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. ano 37. vol. 208. São Paulo: RT, 2012, p. 203 e ss), que afirma que o incidente de resolução de demandas repetitivas vinculará para todos os casos futuros, aproximando-se dos assentos portugueses, pensamos que o instituto não terá toda a abstração imaginada em razão dos fatos mencionados acima e diante também de uma interpretação conforme a Constituição Federal, pois pensar de forma contrária seria admitir que o Judiciário invadisse atividade privativa do legislativo, o que já fora considerado inconstitucional no passado, não só pela doutrina brasileira, como também pela doutrina portuguesa, de onde o Brasil herdara os assentos.

612 A observação é de Maurício Ramires: “[...] é preciso cuidado para não hiperintegrar o direito, usando um precedente como uma norma que vá além dos seus fatos e que extrapole o limite do seu campo gravitacional. É preciso estar atento às distinções e identificações exigidas pelas especificidades dos casos”. (RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 130)

613 Art. 472, § 4º. “Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação”.

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213 continuar sendo apreciado perante o Tribunal614. Mesmo nas demais demandas que foram

suspensas em primeiro ou segundo graus também poderá haver desistência, desde que se

apliquem as regras comuns quanto à desistência. Neste caso, se não houver outra parte

assumindo a titularidade do incidente, pensamos que o Ministério Público deva assumir a

titularidade. Não obstante, melhor seria se isso ficasse claro no projeto.

Também poderá haver desistência de eventual recurso interposto da decisão que julga

o caso. Não se permitirá, todavia, desistência do recurso da decisão que aprecia o incidente,

porque esse recurso trata de matéria que está afetada a toda uma coletividade, havendo

objetivação e, por isso, não tendo a parte legitimidade para requerer a desistência do recurso

sobre o incidente.

Considerando-se que a demanda estará tramitando em primeira instância e o incidente

será resolvido pelo Tribunal e que o processo poderá tratar de outras matérias que não apenas

a questão de direito objeto do incidente, a ação poderá ter seu curso normal em primeira

instância, havendo apenas a impossibilidade de prolação da sentença ante a prejudicialidade

do incidente. Poderá ser interessante para as partes a resolução da lide por meio de acordo. A

simples existência da afetação de uma ou algumas das questões de direito ao Tribunal por

meio do incidente não pode tirar das partes a possibilidade de transação sobre a questão ou

mesmo a desistência, reconhecimento jurídico do pedido ou renúncia do pedido (tratando-se

de direitos disponíveis).

No que se refere ao incidente, pensamos que ele acabará por ganhar vida própria, não

podendo haver desistência dele, nem mesmo reconhecimento jurídico do pedido, transação615

ou renúncia ao direito. Isso porque o resultado do incidente servirá de paradigma para as

demais demandas. Difere-se aqui, por exemplo, do que ocorre com as tutelas coletivas, nas

quais o réu pode reconhecer juridicamente a pretensão do autor ou haver transação sobre o

modo como a obrigação deva ser satisfeita616. Por estarmos diante da formação de um

precedente, ele afetará não apenas aquelas partes da demanda, mas toda a sociedade. Pode-se

pensar, num primeiro momento, que a discussão estará envolvendo um único réu e diversos

614 Isso talvez sirva para reforçar a ideia de que o processamento do incidente deva ser feito por instrumento,

dando-lhe autonomia e desvinculação em relação à demanda individual. 615 Em sentido contrário, entendendo possível a transação: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança,

massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.

616 Pensamos que, por se tratar de direito pertencente a uma coletividade, nas ações coletivas o legitimado extraordinário a possibilidade de transação somente ocorrerá sobre a forma como a obrigação deva ser satisfeita.

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214 autores individuais, como ocorre nas tutelas coletivas. Mas na formação e resolução do

incidente de demandas repetitivas a questão é tratada de forma diferente. Imagine a discussão

sobre os expurgos inflacionários e a correção de valores aplicados nas cadernetas de

poupança. Se estivéssemos diante de uma ação coletiva, o banco poderia reconhecer

juridicamente o pedido, porque o resultado daquela demanda só a ele prejudicaria. No

incidente, a questão deve ser tratada de forma diferente, pois, como o resultado da tese servirá

para todos os demais casos que envolvam a mesma quaestio juris, eventual acordo, renúncia

ou reconhecimento do pedido sobre o incidente acabaria por afetar os demais bancos. Por

isso, o incidente deverá ser apreciado pelo Tribunal, não havendo como impedir esse

julgamento depois de admitido o incidente.

Em suma, nada impedirá a desistência, reconhecimento jurídico do pedido, transação

ou renúncia nas demandas individuais, quando se tratar de direitos disponíveis, aplicando-se

as regras já previstas no projeto (art. 472, § 4º), que acabam por repetir as regras hoje

vigentes. Todavia, em relação ao incidente, não haverá desistência, renúncia, reconhecimento

jurídico do pedido ou transação, porque se trata da criação de um precedente, havendo

objetivação da análise da quaestio juris. E pelas mesmas razões, não poderá haver desistência

do recurso excepcional interposto contra a decisão que julgou o incidente.

8.11 Recorribilidade e legitimidade recursal para atacar a decisão que julgou o

incidente

O projeto prevê a possibilidade de a parte prejudicada interpor recurso especial ou

recurso extraordinário. Mesmo que não existissem tais disposições no projeto, é certo que

esses recursos seriam admissíveis ante a dicção dos art. 102, III, e 105, III, ambos da

Constituição Federal.

No direito inglês, a parte que foi afetada pela vinculação ao julgamento pode recorrer

da decisão617. No direito alemão, no qual a questão também é decidida por um tribunal, há a

previsão de recurso, que deve possuir fundamentação vinculada.

617 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 43

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215 A interposição dos recursos especial e extraordinário deverá ser simultânea, perante o

presidente do Tribunal a quo, que não fará juízo prévio de admissibilidade. Apenas

determinará a intimação da outra parte para contrarrazoar o recurso.

Têm legitimidade para a interposição do recurso as partes, o Ministério Público,

terceiro interessado, sendo incluído aqui terceiros que tenham demanda sobre a mesma

quaestio juris. O amicus curiae não terá legitimidade recursal618, todavia, interposto o recurso

por outrem, este poderá novamente solicitar sua intervenção. Mesmo aqueles terceiros que

tenham suas demandas tramitando fora da área de abrangência do Tribunal serão legitimados

a recorrer. Isso porque o próprio art. 937, parágrafo único, do projeto lhes deu legitimidade

para requerer junto aos Tribunais Superiores a suspensão do processo. Se já há legitimidade a

ele para requerer a suspensão dos demais processos, também haverá legitimidade para

recorrer da decisão que lhe for desfavorável. Pensar de forma diferente seria apenas permitir a

protelação das demandas que tramitem perante outros tribunais. Exemplificando mais uma

vez, se não houver recurso da decisão do Tribunal de Justiça do Estado “X”, de que adiantou

o requerimento de suspensão de todas as demandas para o STJ, se o juiz do Estado “Y” não

precisará observar o precedente do outro Estado?

Interposto o recurso, ele será recebido no efeito suspensivo e, independentemente de

juízo prévio pelo Presidente do Tribunal a quo, os autos serão encaminhados para o STJ ou

STF. Aqui haverá presunção legal de existência de repercussão geral, não podendo o recurso

deixar de ser conhecido em razão de ausência de repercussão geral. No Tribunal Superior o

recurso será julgado adotando-se o procedimento dos recursos repetitivos, devendo ser

julgado pelo Pleno no STF. No STJ, o recurso será julgado Corte Especial ou por alguma de

suas seções, obedecido o procedimento descrito nos art. 990 a 995 do projeto (atuais 543-B e

543-C).

Segundo o texto do projeto (art. 940, parágrafo único), não haverá qualquer juízo de

admissibilidade. O presidente do Tribunal não poderá nem mesmo apreciar a ausência de

legitimidade recursal, a tempestividade do recurso ou preparo. Enfim, não poderá analisar

quaisquer dos pressupostos intrínsecos ou extrínsecos do recurso. Considerando a ideia de

formação de precedente e a multiplicação de demandas que precisa ser solucionada de modo

uniforme (ou seja, considerando a objetivação desse recurso excepcional), pensamos que o

juízo de admissibilidade deva ser realizado diretamente pelo Tribunal ad quem. Nada impede

618 Art. 322, parágrafo único, do projeto.

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216 que o Presidente do Tribunal a quo encaminhe os autos à instância superior, apontando a

ausência de pressuposto recursal.

Preocupação que pode surgir decorrerá do flagrante não atendimento dos pressupostos

recursais. Parece que em casos de flagrante ausência de pressupostos recursais o presidente do

Tribunal local poderá negar seguimento ao recurso, cabendo à parte que se julgar prejudicada

manejar o “agravo de admissão” (atual agravo de decisão denegatória de seguimento de RE

ou REsp).

O projeto nada fala sobre a necessidade de haver prequestionamento da matéria objeto

de recurso. Hipoteticamente, pode acontecer de o incidente ter sido suscitado em função da

aplicação de um artigo de lei ou que determinada prática de consumo seja ilegal. Julgado o

incidente, poderia a parte interpor recurso extraordinário, afirmando que aquela prática, além

de ser ilegal, fere diretamente a Constituição? Considerando-se que a exigência de

prequestionamento para acesso aos Tribunais Superiores é tratada diretamente pela

Constituição, pensamos que o requisito do prequestionamento deve ser observado na

interposição dos recursos excepcionais619.

O juízo de admissibilidade será feito pelo relator do Recurso. O projeto previu que o

juízo de admissibilidade do incidente será realizado pelo Pleno ou Órgão Especial do Tribunal

local, mas não trouxe a mesma previsão para o julgamento do recurso excepcional dessa

decisão. Considerando este fato e aplicando as regras sobre os recursos excepcionais, o relator

é quem fará o juízo de admissibilidade, podendo inclusive, superado o juízo de

admissibilidade, julgar da demanda monocraticamente, como hoje lhe é permitido (aplicando-

se ao caso as disposições do art. 888 do projeto)620.

619 Acrescente-se a isso, a ideia aqui defendida de que o juiz dos casos singulares poderá apreciar a questão de

direito de forma diferente diante de outras fundamentações não apreciadas pelo Tribunal. 620 Art. 888. “Incumbe ao relator: I - dirigir e ordenar o processo no tribunal; II - apreciar o pedido de tutela de

urgência ou da evidência nos recursos e nos processos de competência originária do tribunal; III - negar seguimento a recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha atacado especificamente os fundamentos da decisão ou sentença recorrida; IV – negar provimento a recurso que contrariar: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. V - dar provimento ao recurso se a decisão recorrida contrariar: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; VI - exercer outras atribuições estabelecidas nos regimentos internos dos tribunais”.

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217 O recurso excepcional será recebido no seu efeito suspensivo. Caso não seja

conhecido monocraticamente pelo relator, o recurso cabível dessa decisão – agravo interno

(previsto no projeto no art. 975)621 – também deverá ser recebido no efeito suspensivo (o

mesmo raciocínio deve ser aplicado nas hipóteses excepcionais – acima mencionadas – de

inadmissibilidade do recurso excepcional realizado pelo Presidente do Tribunal a quo).

Apesar de não haver disposição expressa nesse sentido no projeto, essa deveria ser a ratio

legis, sob risco de se criar insegurança jurídica maior do que a hoje existente, pois a decisão

do tribunal deveria ser seguida pelos seus próprios órgãos fracionários e juízos a quo; mas,

posteriormente, se o entendimento do Tribunal Superior for noutro sentido, os juízos a quo

deverão vincular-se noutro sentido, o que não é sadio para o próprio sistema processual.

Como a ideia do instituto não está ligada à formação da coisa julgada para além das

partes, mas à obediência a precedentes, não se fala em formação de coisa julgada, mas o ideal

é que houvesse alguma saída, como por exemplo uma disposição no projeto que tornasse claro

que a tese decidida no incidente deveria ser obedecida pelos órgãos inferiores após o trânsito

em julgado de sua decisão e que os recursos interpostos das decisões no curso no incidente

tenham efeito suspensivo.

8.12 Suspensão do processo

Prevê o projeto que a suspensão do processo ocorrerá após a admissão do incidente

pelo presidente do Tribunal local (art. 934). Por outro lado, também prevê que, caso não seja

admitido o incidente, “o curso dos processos será retomado” (art. 932, § 2º). A primeira

questão que surge decorre do momento em que haverá início a suspensão dos processos, se da

admissibilidade do incidente pelo Pleno ou Órgão Especial do Tribunal ou se isso terá

ocorrido em momento anterior. E se ocorrer em momento anterior, qual seria esse momento?

621 Art. 975. “Ressalvadas as hipóteses expressamente previstas neste Código ou em lei, das decisões proferidas

pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão fracionário, observadas, quanto ao processamento, as regras dos regimentos internos dos tribunais. § 1º O recurso será dirigido ao órgão colegiado competente, e, se não houver retratação, o relator o incluirá em pauta para julgamento colegiado, na primeira sessão. § 2º Quando manifestamente inadmissível o agravo interno, assim declarado em votação unânime, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito prévio do respectivo valor, ressalvados os beneficiários da gratuidade de justiça que, conforme a lei, farão o pagamento ao final”.

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218 Diante do nosso posicionamento acima, sobre o processamento do incidente por meio

de instrumento, pensamos que nas causas em que foi requerida a instauração do incidente, a

suspensão deva se dar a partir da instauração do incidente perante o Tribunal, cabendo à parte

provar perante o juízo a quo ou à câmara onde tramita o recurso a distribuição do

requerimento de instauração do incidente. Com isso, teríamos a justificativa da previsão do

art. 932, § 2º, que fala sobre a retomada do curso dos processos nos casos de rejeição do

incidente pelo Tribunal.

Caso haja necessidade de concessão de tutelas de urgência, caberá ao juízo a quo por

onde tramita a demanda analisar tais pedidos.

Resta saber se após o julgamento do incidente as demandas continuarão suspensas ou

se o curso de seus prazos serão retomados. Pensamos que os demais processos terão seu curso

retomado apenas na hipótese de ausência de recurso sobre a decisão do incidente. Se houver

recurso sobre a decisão que julga o incidente, de acordo com o projeto, tanto o recurso

especial como o recurso extraordinário serão recebidos no efeito suspensivo. Em função

disso, os demais processos permanecerão suspensos (art. 940 do projeto).

Os demais processos voltarão ao seu curso após o julgamento do incidente pelo

Tribunal, sem que haja a interposição de recurso, havendo então o trânsito em julgado.

Outra questão que surge decorre dessa suspensividade, que somente ocorrerá pelo

prazo de 6 meses, que é o prazo no qual o incidente deverá ser julgado. Não há previsão legal

para o descumprimento desse prazo. O que se pode enxergar como consequência é que, se o

incidente não for julgado em seis meses, volta-se ao caos, pois os juízes não terão parâmetro

para julgamento da causa, podendo cada um aplicar a lei de forma diferente do outro. Para se

evitar isso, o § 1º do art. 939 prevê a possibilidade de o relator, por meio de decisão

fundamentada, manter a suspensão dos demais processos, mas não se menciona se haveria um

tempo máximo para isso. Diante da omissão legal, nos resta a aplicação do art. 5º, LXXVIII,

da CF, que prevê a duração razoável do processo. Isso impedirá que um incidente fique anos

sem ser julgado, mas não nos será dado quanto tempo poderia ser considerado razoável para

julgamento de um incidente. Isso porque as peculiaridades do caso podem exigir maior

participação da sociedade e maior reflexão por parte dos membros do Tribunal622.

622 Basta lembrarmo-nos da possibilidade de cada desembargador poder pedir vista dos autos para que o

julgamento do incidente supere o prazo de 6 meses.

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219 Quanto à suspensão de demandas, prevê o art. 937 a realização de pedido de suspensão

de processos em âmbito nacional. Tal solicitação poderá ser feita pelas partes, Defensoria,

Ministério Público e também por qualquer pessoa que tenha demanda, dentro do território

nacional, na qual se discuta a mesma tese objeto do incidente. O projeto nada fala sobre a

forma pela qual esse pedido se realizará. Seria importante descrever a forma pela qual o

pedido de suspensão do incidente deva ser processado. Como não há descrição alguma, resta a

dúvida se isso poderia ser feito por simples petição ou se seria necessário ajuizar uma cautelar

junto ao Tribunal. Parece-nos que o ideal seria o ajuizamento de uma cautelar, na qual a parte

junte documentos comprobatórios não só da existência de um incidente noutro tribunal, mas

também da identidade entre seu caso e o objeto do incidente.

Por meio desse pleito feito ao Tribunal Superior, todas as demandas que estejam

tramitando em âmbito nacional e que versem sobre a mesma tese do incidente deverão ser

suspensas. As demandas que já foram julgadas e estão pendentes de recurso também deverão

ser suspensas. As demandas já transitadas em julgado não serão alteradas.

Nova problemática surge quanto à ausência de recurso contra a decisão que

determinou a suspensão do processo. De acordo com o explicitado, a suspensão do processo

ocorrerá por determinação do Presidente do Tribunal e afetará todos os casos em trâmite na

área de competência daquele Tribunal (isso se não houver requerimento de suspensão em

âmbito nacional). Como a parte de uma demanda individual suspensa irá recorrer daquela

decisão prolatada no incidente, da qual ela não faz parte? Pensar que as partes possam

recorrer da decisão proferida pelo Presidente do Tribunal acabaria por abarrotar o Tribunal de

recursos, o que inviabilizaria sua atividade. Deixar a parte sem instrumento para demonstrar o

equívoco também não deve ser considerado como atitude plausível. Parece-nos que caberá à

parte, junto ao juiz onde esteja tramitando o processo, demonstrar que seu caso não se

enquadra naquele objeto do incidente e, por isso, deva continuar tramitando. Se for verificado,

no caso concreto, que a suspensão da demanda partiu do juiz, em decisão fundamenta, caberá

à parte interpor recurso de agravo de instrumento perante o Tribunal competente. Se a decisão

de suspensão for de relator, quando a demanda estiver tramitando no tribunal, caberá à parte

se valer do agravo interno.

Por fim, vale acrescentar que a instauração do incidente de resolução de demandas

repetitivas não terá o condão de interromper ou suspender eventual prazo prescricional ou

decadencial. Diante disso, as partes que entendam estar sofrendo lesão ou ameaça a direito

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220 deverão continuar ajuizando suas demandas normalmente. Estas, no entanto, ficarão

suspensas logo após sua distribuição. Não poderá, em função da ausência de disposição

expressa quanto à interrupção ou suspensão de prazo prescricional, haver qualquer

impedimento à distribuição de demandas623.

8.13 Julgamento do incidente - criação de precedente e limites do precedente

Diz o art. 938 do projeto que “Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a

todos os processos que versem idêntica questão de direito e que tramitem na área de

jurisdição do respectivo tribunal”.

Diante dessa previsão legal, falamos que há formação de precedente. Não se trata de

formação de coisa julgada erga omnes nos limites da competência do órgão prolator624.

Cabe-nos aqui destacar algumas diferenças entre a coisa julgada e o precedente. A

coisa julgada impede a rediscussão da lide por qualquer das partes do processo. O precedente

não está ligado com o caso em si. Está ligado com os efeitos da decisão perante demais casos

idênticos. O precedente não afeta diretamente as partes, mas o Judiciário.

Para a formação da coisa julgada há a necessidade de identidade dos elementos da

ação625. No precedente não se está diante de demandas idênticas, mas de similitude das

questões discutidas diante dos fatos apresentados. No caso específico do incidente, haverá

discussão sobre uma mesma quaestio juris. A coisa julgada visa à segurança jurídica

623 Apesar de aparentar absurdo o impedimento à distribuição de demandas, já se noticiou que determinados

juizados especiais estavam impedindo a distribuição de demandas em razão de determinação de suspensão de todos os processos que versem sobre índices de correção das cadernetas de poupança em razão dos planos econômicos Bresser, Verão e Collor I (RE 591.797 e RE 626.307). Caso isso esteja ocorrendo, será possível utilizar-se de mandado de segurança contra ato ilegal do magistrado, da qual não cabe recurso em razão de não haver ação tramitando.

624 Em sentido contrário: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.

625 E no caso de legitimados extraordinários, estes também ficarão afetados, porque se os colegitimados “podem expor em juízo apenas uma única relação jurídica material, o trânsito em julgado da sentença torna imutável a declaração sobre essa relação jurídica às partes materiais e também aos legitimados extraordinários – que, afinal, nada mais são que longa manus dos titulares do direito, com autorização legal para agirem em seus nomes. [...] É que a relação jurídica material foi julgada. (MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia vinculante: a ênfase à ratio decidendi e à força obrigatória dos precedentes. Revista de Processo. ano 35. vol. 184. São Paulo: RT, 2010, p. 12 – grifos no original)

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221 impedindo a rediscussão da causa. O precedente também visa a segurança jurídica, mas não é

ele quem impede a rediscussão da causa e sim a coisa julgada. Ele apenas serve como

parâmetro para que os demais membros do Judiciário o obedeçam626 (previsibilidade). A coisa

julgada não visa à isonomia, diferentemente da obediência ao precedente. O precedente pode

ser alterado, de acordo com a evolução da sociedade, pois direito evolui e sua interpretação e

aplicação também. Assim, pode haver mudança de entendimento sobre matéria objeto de

precedente. A modificação da coisa julgada pode ocorrer apenas em hipóteses excepcionais e

elas não estão ligadas à evolução da sociedade, mas a determinadas situações previamente

estabelecidas em lei (que, de acordo com o direito vigente, são as situações previstas no art.

485 do CPC).

Ainda, de acordo com o CPC, como regra, “não fazem coisa julgada os motivos, ainda

que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”. No precedente,

o que vincula é sua ratio decidendi, ou seja, as razões do decisum, que nos dizeres do Cruz e

Tucci, se trata da “tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto”627.

Superada a diferenciação entre coisa julgada e precedente, é preciso verificar se a

formação desse precedente estabelecido no projeto é vinculante ou persuasivo.

No sistema inglês, o juiz fica vinculado aos precedentes das suas Cortes Superiores.

Importando a ideia para o Brasil, teríamos que o juiz deve obedecer aos precedentes do seu

Tribunal (Estadual ou Federal). O Tribunal local deve obedecer aos precedentes do Superior

Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça deve obedecer aos precedentes do

Supremo.

O projeto prevê, de forma geral, a ideia da adoção do sistema de precedentes, ao

prever, no art. 882 a observação pelos juízos inferiores do posicionamento dos Tribunais628.

626 E, por via de consequência, para que a sociedade paute sua conduta na aplicação da norma de acordo com o

entendimento não mais apenas baseado na letra fria da lei, mas na letra da lei interpretada e aplicada agora pelos Tribunais, evitando-se aplicações e interpretações distorcidas.

627 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 175. 628 Art. 882. “Os tribunais, em princípio, velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência,

observando-se o seguinte: I - sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante; II - os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estiverem vinculados, nesta ordem; III - a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar as decisões de todos os órgãos a ele vinculados; IV - a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade e da isonomia; V - na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de

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222 Para o incidente, o art. 938 do projeto não menciona que a tese julgada no incidente

servirá de orientação. Fala que a decisão sobre a tese jurídica do incidente “será aplicada a

todos os processos que versem idêntica questão de direito”. Isso nos leva a crer que o

precedente exarado no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas será

vinculante629. E será vinculante para todos os demais casos que versem sobre idêntica questão

de direito e que estejam tramitando pelos demais órgãos fracionários do tribunal ou que

estejam tramitando perante a primeira instância subordinada ao Tribunal prolator da decisão.

No caso de a decisão ser atacada por recurso especial ou extraordinário, a vinculação

se dará em âmbito nacional. Eis aqui a limitação espacial do precedente. Como regra, ele será

limitado ao âmbito de atuação do Tribunal prolator da decisão. Se houver recurso, todavia, o

STJ ou o STF criará precedente de âmbito nacional

Outra dúvida que surge ainda sobre a eficácia do precedente, é se ele teria eficácia

apenas para as demandas já existentes ou se afetaria também demandas futuras. Ou seja, qual

o limite temporal do precedente?

No direito inglês a vinculação gerada pelo GLO abrange apenas as partes das

demandas registradas ao tempo do julgamento, salvo se o tribunal ordenar de outra forma.

Apesar disso, a parte que acabou sendo afetada pelo julgamento quando sua demanda foi

registrada após o julgamento da GLO, não poderá apelar do julgamento da GLO ou solicitar

sua anulação, mas poderá recorrer afirmando que a decisão do GLO não a vincula630.

julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 1º A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas. § 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação da matéria”. Vale acrescentar que o texto originário do PL 166/2010 não previa em seu art. 847 a expressão “em princípio”, introduzida no caput do artigo, o que poderá diminuir a eficácia que se espera do artigo diante da tradicional resistência à observância dos precedentes (YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo. ano 37. vol. 206. São Paulo: RT, 2012, p. 243 e ss.)

629 Pela vinculatitivade do precedente exarado no incidente de resolução de demandas repetitivas: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196. ano 36. São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.; BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In. FUX, Luiz. (coord.) O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 480.

630 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 43

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223 Todavia, afirma Christopher Hodges que, apesar de a decisão vincular (binding

effect)631 apenas as pessoas que possuíam demanda até a data limite estipulada, as demais

pessoas que não tinham demandas não ficarão vinculadas à decisão, mas não poderão

simplesmente ajuizar demanda sem que traga algum fato que a distinga da questão

apreciada632.

No direito alemão também não há vinculação para processos futuros. Nesse sentido

Wolfgang Lüke, citado por Antonio do Passo Cabral:

Estaríamos diante do efeito vinculante? A resposta parece inclinar-se pela negativa. Isso porque, caso se tratasse do Bindungswirkung, os fundamentos determinantes da decisão no Procedimento-Modelo seriam vinculantes para quaisquer futuros processos. Porém, isso não ocorre: os autores futuros não são atingidos pela decisão coletiva, porque o § 16 (1), ao afirmar que o julgado atinge os processos que dependam das questões resolvidas no incidente coletivo, exige litispendência dos processos individuais no momento da decisão do Tribunal. Ou seja, para que haja vinculação, o processo deve estar ajuizado naquele marco temporal. Por esta razão, poucos são os autores que consideram ser um típico efeito vinculante e parte da doutrina vem falando em um "efeito vinculante igual à eficácia da intervenção"633.

No direito pátrio a vinculação ocorrerá não apenas em relação às demandas existentes

quando do momento da instauração do incidente, ou às demandas que já haviam sido

propostas até a data do julgamento do incidente. Abrangerá os casos futuros também.

Também servem de subsídio para o posicionamento aqui adotado os seguintes artigos

do projeto: o art. 12, § 2º, II, que prevê o julgamento em bloco dos processos que tenham

como objeto de discussão a mesma tese firmada em incidente de resolução de demandas

repetitivas634; art. 278, IV, que trata da possibilidade de concessão de tutela da evidência635;

631 Apesar da utilização do termo binding, traduzido como vinculação, parece-nos que neste momento a

interpretação não deva estar relacionada à vinculatividade e sim à coisa julgada em relação às partes do processo, pois de acordo com Neil Andrews, a GLO é uma particular forma de litisconsórcio. Ora, se é uma forma de fazer com que todos que tenham demanda sejam considerados como parte, estaremos diante de coisa julgada: “A GLO is a special form of multiple joinder, by listing of claims on a group register”. (ANDREWS, Neil. Multi-party litigation in England: current arrangements and proposals for change. Revista de processo. ano 34. vol 167. São Paulo: RT, 2009, p. 271 e ss)

632 Por óbvio que no direito inglês assim como deve ser no Brasil, a decisão anterior tem efeito de precedente para os casos futuros: “It is obvious that issues which are decided as preliminary issues or in the lead actions in multi-party litigation can have a profound effect on the remaining actions”. HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 43

633 (CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss.)

634 Art. 12. “Os juízes deverão proferir sentença e os tribunais deverão decidir os recursos obedecendo à ordem cronológica de conclusão. [...] § 2º Estão excluídos da regra do caput: [...] II – o julgamento de processos em bloco para aplicação da tese jurídica firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em recurso repetitivo”;

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224 art. 307, III, que trata da possibilidade de julgamento de improcedência liminar quando o

pedido da parte “contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas

repetitivas”636; e também pelo art. 941, que afirma ser cabível reclamação ao Tribunal quando

a decisão for prolatada em desacordo com a tese firmada pelo Pleno ou Órgão Especial no

incidente de resolução de demandas repetitivas637.

Quanto à limitação material, pensamos que a vinculação ocorrerá apenas em relação

aos casos apreciados e nos limites das argumentações analisadas pelo tribunal. Não haverá

vinculação em relação a toda e qualquer argumentação. Isso porque apesar de o incidente

pretender a objetivação da interpretação e aplicação do direito realizada pelo Tribunal, essa

objetivação ocorrerá apenas em relação às matérias devidamente apreciadas pelo tribunal e

nos limites do que foi apreciado. Ou seja, isso não impedirá o ajuizamento de demandas,

desde haja fundamentação distinta da analisada pelo Tribunal.

Caberá, todavia, à parte que mover a demanda sabendo da existência do resultado do

incidente, diante da publicidade realizada pelo Tribunal local e pelo CNJ, provar que seu caso

se difere do apreciado no incidente, ou que houve evolução do contexto social, político,

econômico ou cultural da sociedade, ou ainda que, em função de outra fundamentação (legal

ou constitucional), o caso deva ser apreciado (distinguishing).

Explicamos: Suponha-se que existam várias demandas, como de fato existem, nas

quais o consumidor deixa de pagar por um número X de meses a tarifa de energia elétrica ou

de água. Passado esse número X de meses a concessionária, após prévia notificação, procede

ao corte no fornecimento do serviço. Os consumidores inadimplentes ingressam com

demanda perante o Judiciário alegando que o corte no fornecimento é ilegal, afronta o

princípio da continuidade das prestações dos serviços públicos essenciais e a dignidade da

pessoa humana. Verificando a existência de várias demandas com essa idêntica questão de

direito instaura-se o incidente. No Tribunal, a questão é apreciada e chega-se à conclusão de

635 Art. 278. “A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de risco de dano

irreparável ou de difícil reparação, quando: [...]IV – a matéria for unicamente de direito e houver tese firmada em julgamento de recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em súmula vinculante”.

636 Art. 307. “O juiz julgará liminarmente improcedente o pedido que se fundamente em matéria exclusivamente de direito, independentemente da citação do réu, se este: [...]III - contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência”.

637 Art. 941. “Não observada a tese adotada pela decisão proferida no incidente, caberá reclamação para o tribunal competente”.

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225 que o corte no fornecimento de energia ou água é possível desde que a inadimplência fique

caracterizada por um número X de meses e de que haja prévia notificação ao consumidor.

Futuramente aparece uma ação na qual um hospital público move em face da

concessionária em razão do iminente corte no fornecimento de energia elétrica devido ao

inadimplemento daquele, o que poderá causar sérios riscos à saúde dos pacientes. A questão

de direito, num primeiro momento, parecia se enquadrar nos casos analisados até então pelo

Tribunal. Ocorre que foram agregados novos fatos que não podem deixar de ser levados em

consideração para a análise da questão de direito, o que levará o magistrado a julgar de forma

diferente da que foi apreciada pelo Tribunal. E isso poderá ocorrer quer o processo seja

instaurado anteriormente ao incidente, quer seja posteriormente. Não haverá vinculação.

Outro exemplo também nítido e que já descrevemos decorreu da análise da ADC 4, na

qual o STF entendeu constitucional a vedação à concessão de tutela antecipada em

determinadas hipóteses em face da Fazenda Pública (hipóteses ligadas basicamente à saída de

dinheiro dos cofres públicos). Apesar disso, em julgados posteriores à concessão da cautelar

na ADC, o próprio STF afirmou que não se aplicaria o que foi ali decidido diante de questões

previdenciárias ou assistenciais638.

E isso é fácil de se verificar, pois para a análise das questões de direito o tribunal teve

que fazer a análise sobre os fatos (mesmo que de modo superficial). O que interessou para os

casos analisados é que, independentemente da prova de terem aqueles fatos ocorridos, a

resposta não mudaria. Entretanto, a vida em sociedade é por demais complexa e mais

profunda do que os casos imaginados pelo legislador e também pelo julgador, razão pelas

quais poderá, no futuro, surgir uma demanda que, em razão de suas peculiaridades, fará com

que o magistrado deixe de julgar de acordo com o precedente.

Lembremos que no direito inglês será o juiz do caso futuro que verificará se o caso

anterior lhe servirá de precedente. Isso porque ele fará a análise das questões de fato e de

direito e aplicará a mesma razão do caso anterior ao caso sub judice. Na Inglaterra a própria

norma que regula o GLO prevê que as partes dos casos futuros não ficarão vinculados ao que

foi decidido no GLO. Se lá, que é o berço da adoção do sistema de precedentes, o legislador

afirma que os casos futuros não ficarão vinculados aos precedentes, porque aqui no Brasil eles

ficariam vinculados, de forma indiscriminada? 638 Súmula 729 do STF: “A decisão na ADC-4 não se aplica à antecipação de tutela em causa de natureza

previdenciária”.

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226 Como ressaltado por Christopher Hodges, não é porque não há vinculação que as

partes podem sair demandando contra o que foi decidido na GLO. Para isso seria necessário

trazer nova fundamentação que não tenha sido objeto de análise na GLO. Desta forma,

pensamos que no Brasil também deverá ser observado o precedente, mas não de uma forma

indiscriminada e sim, nos limites do que for apreciado pelo Tribunal.

8.14 (In)constitucionalidade na criação de precedente vinculativo

Como já mencionamos, apesar de termos na história do direito pátrio a adoção de um

sistema de precedentes, é da nossa tradição procurarmos nos afastar desse sistema. A ideia de

vinculatividade sempre foi alvo de discórdia no mundo jurídico. Alguns entendem que para

haver vinculação deverá haver alteração na Constituição. O nosso problema, nesse ponto,

talvez não seja sequer jurídico, mas de outra ordem, pois se há uma estrutura, prevendo um

Tribunal que servirá para uniformizar a interpretação da lei, dando ele a última palavra sobre

o tema (no caso do STF), porque os Tribunais e juízos a ele vinculados poderão julgar de

forma diversa? Qual seria a razão plausível para isso? A criatividade judicial? A livre

convicção motivada? A discricionariedade judicial?

Lembre-se do que foi mencionado por Taruffo e por nós citado acima, ao diferençar

precedente de jurisprudência, quando afirmou Taruffo que o juiz da common law não fica

totalmente vinculado ao precedente, pois há formas de ele deixar de aplicar a mesma razão em

razão de alguma peculiaridade, aplicando as técnicas do overruling e do distinguishing639.

A existência de vinculatividade não significa que o juiz terá amarras das quais não

poderá se libertar. O juiz deverá sim seguir o precedente. Não obstante, poderá haver por

parte do magistrado a demonstração de que o caso apreciado posteriormente é distinto do

anterior, razão pela qual aquele não o vincula (se é distinto, não haverá vinculatividade) ou

que há outra fundamentação diversa da que fora objeto de analise no caso anterior (hipótese

639 “Da un lato, non è appropriato dire che il precedente di common law è vincolante, nel senso che ne derivi un

vero e proprio obbligo del secondo giudice di attenersi al precedente. È noto che anche nel sistema inglese, che pare essere quello in cui il precedente è dotato di maggiore efficacia, i giudici usano numerose e sofisticate tecniche argomentative, tra cui il distinguishing l’overruling, al fine di non considerarsi vincolati dal precedente che non intendono seguire”. TARUFFO, Michelle. Precedente e giurisprudenza. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. ano LXI, vol. 3. Milão: Giuffrè, 2007, p. 716

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227 não apreciada pelo órgão anterior). É função do magistrado analisar o caso, podendo verificar

a existência de peculiaridades fáticas ou de argumentações jurídicas capaz de levá-lo a outra

interpretação que não seja a fixada no precedente. Se não houver peculiaridades ou

argumentações outras que não as já verificadas pelo tribunal, o juiz não poderá apreciar a

questão de outra forma. Mesmo que ele não concorde com o precedente, deverá aplicá-lo.

Se foi dada aos tribunais a função de interpretação e uniformização do direito e estes

tiverem exercido seu mister, não caberá ao juiz aplicar o direito de outra forma se não houver

fundadas razões para isso. Não pode haver descumprimento da vinculatividade por capricho

ou qualquer outra razão imotivada. O juiz não pode decidir exclusivamente em função de suas

impressões pessoais, crenças religiosas ou políticas.

Por mais que a decisão seja polêmica, como por exemplo, a recente decisão que

reconheceu a possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo do Pleno do STF

(ADPF 132-RJ e ADin 4.277-DF) o juiz não poderá entender de forma diversa porque, por

exemplo, a própria Constituição estabelece que o estado deverá facilitar a conversão da união

entre homem e mulher640. A impressão pessoal do magistrado ou sua crença não poderá afetar

o resultado de seu julgamento, porque deverá ficar vinculado.

Os doutrinadores Ada Pellegrini Grinover, Carlos Alberto Carmona, Cassio

Scarpinella Bueno e Paulo Henrique dos Santos Lucon apresentaram proposta de alteração ao

art. 938 do projeto para dele constar expressamente que “O julgamento do incidente será

vinculante e a tese jurídica nele definida será aplicada a todos os processos que versem

idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal”.

Continuam os doutrinadores citados, em proposta de inclusão de outro artigo a afirmar

que essa vinculatividade também afetará os casos futuros641.

Considerando a obediência que os juízes devem ter aos posicionamentos adotados

pelos Tribunais e estes, por sua vez, aos posicionamentos dos Tribunais Superiores, a

vinculatividade decorre pura e simplesmente da lógica do sistema, não havendo razão

640 Verificar, no caso concreto, se há laços de afetividade é matéria de fato. Todavia, saber se pessoas do mesmo

sexo podem manter união estável ou não é matéria de direito. Assim como também é matéria de direito saber se pessoas do mesmo sexo podem ou não se casar.

641 “Art. 938-A. A tese jurídica será aplicada também aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar na área de jurisdição do respectivo tribunal até que o Tribunal revise-a. Parágrafo único. O Tribunal, de ofício, e os legitimados para exercer o controle concentrado de constitucionalidade poderão pleitear ao Tribunal a revisão da tese jurídica, observando-se, no que couber, o disposto no art. 882, § 2º”.

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228 plausível para que o juiz possa simplesmente ignorar o entendimento das Cortes

Superiores642.

Nota-se que essa vinculação já ocorre em relação aos julgamentos de recursos

repetitivos, previstos nos artigos 543-B e 543-C, tendo o STJ, inclusive, por meio de sua

Corte Especial, se manifestado pela obrigatoriedade da adoção da tese firmada no julgamento

dos recursos repetitivos643.

Se, por outro lado, pensarmos que há ausência de vinculatividade, praticamente nada

de novo haverá na instituição do incidente de resolução de demandas repetitivas. Lembre-se

que o próprio incidente de uniformização de jurisprudência já prevê, desde 1973, a edição de

enunciado de súmula quer servirá como precedente (art. 479) e sobre isso a doutrina já se

manifestou no sentido de que o instituto pouco contribuiu para a uniformização da

jurisprudência ante a ausência de maior força ao precedente criado644.

642 Talvez nosso problema seja cultural, pois na Justiça do Trabalho os juízes e Tribunais acatam sem maiores

restrições os posicionamentos do TST. Este, por sua vez, procura fazer periodicamente a revisão de seus enunciados de súmulas e orientações jurisprudenciais, para o aprimoramento do sistema, algo que não acontece na Justiça Comum.

643 STJ. Corte Especial. REsp 1.111.743-DF. Rel. p/ Acórdão. Min. Luiz Fux, j. 25.02.2010 644 “Se o juiz é singular, e, ao decidir, verifica que, a respeito do que tem de decidir, há interpretações

discrepantes da regra jurídica, deve ele apontar decisões que contenham a divergência, expondo os argumentos que se apresentaram e os seus, como elementos básicos para a atitude no plano da interpretação. Aliás, nada obsta a que ele tenha a mesma posição se a jurisprudência lhe pareça errada. Observamos que o art. 479 não impôs aos juízes e aos tribunais respeito abstrato ao que se tem por assente. Apenas se considera a súmula um ‘precedente na uniformização da jurisprudência’”. Noutro trecho, todavia, dá o autor a entender que adota o posicionamento inverso: “Não se trata de assentos com ‘força de lei’ que o Anteprojeto inserira no seu texto; porém não retiremos aos textos de 1973 a criação de dever dos juízes das turmas, das câmaras ou dos grupos de câmaras, de respeitar as decisões das maiorias absolutas, postas em súmula. A expressão ‘precedente’ na uniformização da jurisprudência de modo nenhum pode ser entendida como simples ocorrência sem eficácia. Outra expressão, ‘predominante’, que adjetiva a jurisprudência inserta em súmula, conforme o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, revela que há eficácia, contra a qual só se há de advertir fundamentação tal que leve a mudança de atitude por parte de nova maioria absoluta. O Código de 1973 tenta, com acerto, começar já de baixo a uniformização da jurisprudência, que irá até a função magna do Supremo Tribunal Federal” (PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo VI. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 3 e p. 31)

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229 8.15 Valores e princípios que justificam a vinculatividade do instituto

Não há previsão expressa no projeto de lei sobre a vinculatividade ou não do que for

decidido no incidente de resolução de demandas repetitivas645. Afirma-se aqui a necessidade

de se seguir o que fora determinado, não por haver disposição expressa nesse sentido, quer da

Constituição Federal, quer do próprio projeto, mas em razão de valores e princípios que o

processo civil moderno deve se pautar. Dentre outros, podemos citar isonomia; segurança;

respeitabilidade; confiabilidade; previsibilidade; e prestígio. A manutenção de decisões

aleatórias para casos idênticos é uma das razões que leva à descrença do Poder Judiciário646.

A ideia de se criar o incidente é salutar, na medida em que previne divergências,

agilizando a solução da controvérsia. Todavia, entender que os juízes poderão julgar com base

em seu livre convencimento motivado, como se estivessem descartando o posicionamento do

tribunal afronta a própria finalidade da jurisdição. A manutenção de decisões conflitantes

dentro do sistema judiciário vai de encontro ao esperado pelo próprio sistema jurisdicional647,

criando desigualdade para situações que deveriam ser tratadas de maneira igual. Se a própria

Constituição afirma que todos devem ser tratados de maneira igual648 e ninguém discorda

sobre a impossibilidade de uma lei tratar pessoas substancialmente iguais de maneira distinta,

por que então se pode admitir decisões díspares para casos substancialmente idênticos? Se as

pessoas não se encontram em situação de igualdade (como no exemplo do corte de

fornecimento de energia elétrica de hospital), não será o caso de se seguir o precedente diante

das especificidades que colocam os casos em situações diversas – não há igualdade e por isso

a permissão de um distinguishing.

Como assevera Gutterres Taranto:

Não há processo efetivo e ordem jurídica justa se a atividade jurisdicional limitar-se a opiniões isoladas de cada aplicador ou julgador, despojando o Poder Judiciário da qualidade de instituição constitucional, responsável pela uniformização do ius in thesi, ao se colocar a independência do juiz (individualmente considerado) acima, até mesmo, do legislador. O acesso à

645 Não obstante, o art. 938 afirma que a tese jurídica fixada no incidente “será aplicada a todos os processos que

versem idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal”. 646 TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo:

RT, 1988, p. 395 647 TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo:

RT, 1988, p. 396 648 Observada a máxima aristotélica do tratamento desigual na medida das desigualdades

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Justiça, assim, estaria comprometido pela álea em descompasso com o constitucional princípio da igualdade649.

A previsibilidade também acaba por refletir na segurança jurídica. O Poder Judiciário

acaba, de certo modo, influenciando a tomada de ações pelas pessoas (físicas ou jurídicas,

públicas ou privadas). Apesar de o Judiciário não legislar, suas ações se refletem no seio

social. As pessoas e os tribunais inferiores procuram pautar-se pelas interpretações exaradas

pelos tribunais de grau superior650.

Acrescenta-se a isso que a ideia de obediência ao que foi decidido também traz

economia não só processual, mas também de recursos, pois de que adianta o juiz julgar em

sentido contrário ao decidido pelo tribunal? Diferentemente de independência, isso demonstra

teimosia e vaidade e fará com que todos tenham mais labor: as partes, pois aquele que teve

sua decisão em descompasso com o posicionamento do tribunal irá recorrer; o próprio juiz

deverá fazer o juízo de admissibilidade recursal; os serventuários da vara onde tramita o

processo também terão mais trabalho de forma desnecessária, além de sobrar trabalho extra

também para o tribunal. Tudo isso sem falar no retardo para a prestação da tutela

jurisdicional651.

Partindo-se da premissa que o posicionamento do Tribunal seja firme num

determinado sentido e, com isso haja realmente a formação de uma jurisprudência (no sentido

de conjunto de decisões harmônicas)652, o Judiciário ganhará maior credibilidade por parte

dos jurisdicionados, que não mais verão casos idênticos serem julgados de forma distinta.

O direito brasileiro sempre procurou obediência ao posicionamento firmado pelos

Tribunais e, nos últimos anos, essa tendência aumentou. Exemplo disso é o maior poder dado

ao relator (art. 557 do CPC); a possibilidade de inadmissão de apelação quando a decisão for

prolatada no mesmo sentido de súmula do STJ ou STF (art. 518, § 1º) e o julgamento de

improcedência liminarmente feito nas hipóteses do art. 285-A do CPC.

649 TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição

constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 123 650 “[...] os indivíduos sujeitos à sua jurisdição e os respectivos consultores se orientam pela jurisprudência, que

é seguida pelos tribunais inferiores”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 217)

651 Apenas frisando, a obediência se dará em relação às questões enfrentadas pelo Tribunal. Se houver algum fundamento diferente ou peculiaridade fática, poderá haver distinção.

652 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 217; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 42

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231 Não obstante a importância em se seguir precedentes, vale destacar que isso não

servirá como camisa de força aos juízos inferiores, mas exigirá destes, por sua vez, maior

poder argumentativo ao prolatarem seus julgados, o que enriquecerá e muito não só o debate

judicial, mas o próprio direito653.

O que deve ficar claro é que essa vinculatividade não deve ser cega, aplicada sem

qualquer critério. O precedente formado não terá a abstração de um enunciado de súmula.

Será mais completo. Conterá fatos e os argumentos apresentados e, diante deles será extraída

a tese.

8.16 A vinculatividade não desobrigará o magistrado de motivar suas decisões

Não podemos nos esquecer de que a motivação das decisões judiciais é princípio

insculpido na Constituição Federal e deve também ser entendida como cláusula pétrea, apesar

de não estar inserida expressamente no rol dos direitos e garantias fundamentais, mas está

prevista no art. 93 da Constituição e decorre do princípio do devido processo legal.

Pode-se pensar que a partir do momento em que houver o julgamento do incidente de

resolução de demandas repetitivas não haverá mais a necessidade de se fundamentar as

decisões judiciais. Que bastará, a partir de então, utilizar-se de um argumento de autoridade (o

julgamento do incidente, que deverá ser seguido).

Não deve ser esse, contudo, o raciocínio a ser formado. Deve o juiz analisar os fatos e

fundamentos da causa apresentada pela parte. Se o posicionamento exarado no incidente for

em sentido contrário ao que pleiteia o autor, por exemplo, o juiz já poderá julgar

improcedente, liminarmente, a demanda, nos termos do art. 307, III, do projeto654, mas deverá

fazê-lo fundamentando sua decisão.

653 Acrescente-se, por fim, o posicionamento de Júlio César Rossi, que afirma haver vinculatividade da tese

fixada no incidente em razão da admissibilidade de reclamação constitucional ao tribunal local, afirmando ser inconstitucional a redação do art. 941 do PL 8.046/2010. (ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. ano 37. vol. 208. São Paulo: RT, 2012, p. 203 e ss.)

654 Art. 307. “O juiz julgará liminarmente improcedente o pedido que se fundamente em matéria exclusivamente de direito, independentemente da citação do réu, se este: I - contrariar súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo

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232 Pode ocorrer de a parte já trazer em sua própria inicial, de forma destacada,

argumentos do porquê seu caso deve se diferir do analisado no incidente ou ainda trazer

outros fundamentos jurídicos, que não foram analisados pelo tribunal, ao julgar o incidente,

fazendo com que o juiz deva apreciar detidamente a causa para decidir. E essa apreciação

detida poderá ser verificada pela fundamentação apresentada pelo magistrado ao decidir.

Não é porque o juiz deverá obedecer ao posicionamento do tribunal que ele não

precisará fundamentar sua decisão. Ela deve ser fundamentada quer obedeça ao precedente do

tribunal ou não. É por meio dela que o magistrado demonstrará o porquê de aquele caso estar

sujeito ao precedente ou o porquê não está sujeito ao precedente.

Caso o magistrado simplesmente prolate decisão dizendo que, por exemplo, julga

improcedente liminarmente a demanda porque contraria a tese fixada no julgamento do

incidente nº XYZ exarado pelo Tribunal, sem trazer maiores considerações sobre o porquê

aquele caso fático tem similitude com o anterior, a parte prejudicada poderá se valer dos

meios judiciais cabíveis para suprir a omissão (embargos de declaração) ou até mesmo

apelação, caso a omissão não tenha sido suprida.

8.17 O incidente de resolução de demandas repetitivas e a busca pela razoável duração

do processo

Com o incidente de resolução de demandas repetitivas não será necessário aguardar,

como ocorre hoje, que a demanda demore anos para chegar aos Tribunais, gerando

insegurança e multiplicação desnecessária de processos. O encurtamento do caminho, com o

deslocamento da quaestio juris para ser apreciada diretamente pelo Tribunal, que terá um

curto prazo para julgamento da questão, trará economia processual e também evitará que os

juízes demandem tempo para solucionar questões repetitivas. Após a fixação da tese pelo

Tribunal, o juiz poderá julgar todas as demandas que ficaram suspensas em bloco, aplicando a

tese firmada pelo Tribunal no incidente (art. 12, § 2º, II do projeto). Não fosse apenas isso,

haverá uma inversão quanto ao ônus decorrente do tempo do processo, pois será possível a

Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência”;

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233 concessão da tutela da evidência (art. 278, IV, do projeto). O que hoje é tratado como algumas

das hipóteses de tutela antecipada (art. 273, II e art. 273, § 6º, do CPC) passará a ser tratado

como hipóteses de tutela da evidência655, sendo acrescentada a possibilidade de concessão

quando o pedido do autor se fundar em tese fixada em incidente de resolução de demandas

repetitivas656, não havendo razão plausível para que a demora do processo sirva de benefício

para aquele que não tem razão657.

Devendo o juiz se submeter à tese fixada no incidente, se houver a propositura de

demanda pleiteando algo em sentido contrário ao que foi fixado no incidente, o juiz poderá,

de plano, julgar improcedente a demanda individual (art. 307, III, do projeto).

O incidente também servirá para a dispensa da remessa necessária, que ainda

continuará prevista no projeto (art. 483, § 3º, III, do projeto). A existência de entendimento

fixado em incidente de resolução de demandas repetitivas também poderá servir de base para

dispensa da exigência de caução para o cumprimento provisório da sentença (art. 507, IV, do

projeto). Assim a parte poderá ajuizar a demanda e, se tiver posicionamento favorável fixado

em incidente de resolução de demanda repetitiva, ela poderá obter a tutela da evidência e já

executar a decisão (execução provisória) não sendo necessário garantir o juízo para a

satisfação do seu direito.

O relator do recurso também poderá negar, monocraticamente, provimento ao recurso

que contrariar tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 888, IV, c,

do projeto) e poderá também dar provimento de forma monocrática ao recurso quando a

655 FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela da evidência: fundamentos da tutela antecipada. São Paulo:

Saraiva, 1996 656 Destaca-se a tese de doutorado de Rui Zoch Rodrigues sobre a possibilidade de antecipação da tutela nas

hipóteses de demandas repetitivas na qual já haja posicionamento dos tribunais no mesmo sentido pleiteado. (RODRIGUES, Ruy Zoch. Ações repetitivas: casos de antecipação de tutela sem o requisito de urgência. São Paulo: RT, 2010)

657 Vale citar a crítica de Ovídio Baptista quanto à demora do sistema processual vigente: “[...] ao estabelecer, como princípio, que o autor não terá reconhecido seu direito senão depois de prova exaustiva de sua existência, o processo civil romano-canônico suprimiu o princípio da verossimilhança, igualando todos os demandantes, ao iniciar-se o procedimento judicial, oferecendo-lhes o duvidoso privilégio de se servirem do mesmo instrumento processual, qual seja o procedimento ordinário, indiferente ao maior ou menor grau de verossimilhança de suas respectivas alegações. Quer dizer, o processo de conhecimento ordinário por natureza e propósitos, parte da suposição de que o demandante, qualquer que ele seja, não tem razão, a não ser que prove o contrário”. (SILVA, Ovídio Araujo Batista da; GOMES, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 23) Essa crítica assaz continuará a ecoar no direito processual, mas diante da existência de uma tese firmada pelos Tribunais, nas quais os juízes devem obedecer, não haveria razão de se aguardar todo o tempo do processo, como se o autor não tivesse razão, quando é evidente que o tenha.

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234 decisão contrariar a tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 888,

V, c, do projeto).

A ideia do projeto quanto ao incidente é de obediência ao precedente, procurando

minimizar os riscos de decisões contraditórias, fazendo com que a mesma interpretação da

quaestio juris seja aplicada às mesmas situações, trazendo isonomia e segurança jurídica.

A fixação do precedente no incidente de resolução de demandas repetitivas trará

estabilidade e previsibilidade. Isso será importante para, no decorrer do tempo, diminuir a

quantidade de litígios sobre determinadas demandas. Não havendo mais dúvidas sobre a

aplicação da lei em determinadas questões, pessoas poderão se sentir desencorajadas a querer

interpretar a lei de modo diverso ao fixado pelo Tribunal. Isso poderá ocorrer não porque

haverá alguma penalidade para a conduta contrária, mas em função de a pessoa pautar sua

conduta conforme a lei658.

Não obstante, vale mencionar que a objetivação do julgamento feito no incidente de

resolução de demandas repetitivas dependerá dos fundamentos levados para apreciação do

Tribunal. A possibilidade de julgamento de improcedência liminar ou até mesmo de

concessão da tutela de evidência dependerá da similitude entre os casos, que deverá ser feita

pelo juiz. Caberá aos advogados, ao ajuizarem suas demandas ou recursos o labor de

fundamentarem no sentido da submissão ou não de seus casos ao que foi decidido no

incidente de resolução de demandas repetitivas.

As previsões legais acima descritas que visam a agilizar a prestação da tutela

jurisdicional não poderão, todavia, ser interpretadas como a dispensa de análise pelo

magistrado das similitudes entre o caso sub judice e o paradigma. Caberá ao magistrado

demonstrar em sua fundamentação que o caso em questão tem as mesmas peculiaridades do

caso anterior, razão pela qual ele aplicará o precedente. Havendo distinção, será o caso de o

magistrado verificar se a distinção poderá ou não levar a um julgamento distinto659. Não

658 Ao tratar da formação do precedente no direito norte-americano, Charles D. Cole destaca que: “[...] o uso do

precedente na cultura jurídica americana leva a uma estabilidade no direito considerando os objetivos do processo decisório, e, além disso, fornece base para que o militante jurídico possa prever a decisão que a corte deverá tomar com relação a casos que aquele militante traga perante a corte para decisão”. (COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O sistema de precedente vinculante do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss)

659 A exemplo da possibilidade de concessão de tutela antecipada contra a Fazenda envolvendo questões previdenciárias, mesmo diante da vinculatividade da ADC 4, conforme súmula 729 do STF

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235 permitir isso seria tentar corrigir uma injustiça (a de que casos iguais devam ser julgados de

modo igual), praticando outra (considerando iguais situações que seriam diferentes).

8.18 A evolução da sociedade e a possibilidade de alteração de entendimento fixado no

incidente

Sabemos que é função de outro “Poder”660 estatal a criação e revisão de leis. Todavia,

a forma como essas leis devem ser aplicadas aos casos concretos, ou seja, a interpretação e

aplicação destas, é função do Judiciário.

O sistema criado procura dar interpretação uniforme às normas jurídicas. Essas

interpretações deverão servir de base para que os demais magistrados profiram suas decisões.

Evoluindo a sociedade, o direito também deve evoluir. No entanto, sabemos que o

Legislativo, que é a casa correta para que as evoluções das normas sejam realizadas, não age

dentro do tempo necessário. Por conta disso, o Judiciário sai a frente, pois é o primeiro órgão

estatal a enfrentar as adversidades surgidas em função da evolução da sociedade. Deve-se

permitir que haja evolução das interpretações normativas realizadas pelo Judiciário. Vale aqui

destacar as palavras de Calamandrei: “Seria absurdo desejar que a jurisprudência, que por

sua mutabilidade no tempo é a mais sensível e mais preciosa registradora das oscilações

mesmo leves da consciência jurídica nacional, fosse cristalizada e contida em sua liberdade

de movimento e de expansão”661.

É impossível querer estratificar o direito, pois a sociedade evolui e por consequência o

direito também662. Por conta disso, deve-se permitir revisão das teses fixadas em julgamentos

660 O termo Poder está entre aspas porque, de acordo com a doutrina clássica, o Poder é uno e pertence ao

Estado. Sendo o Poder uno, ele não pode ser subdividido. O que se divide são as funções estatais (Função Executiva, Legislativa e Judiciária). Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 351. Também: LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: RT, 2006, p. 67

661 CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. vol. 3. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2003 662 Sobre a problemática da estratificação do direito e da disformidade de sua interpretação: “Temos para nós que

a estratificação do Direito pela uniformização imutável da jurisprudência é um mal tão grande quanto o da poliformia jurisprudencial contemporânea. E, no entanto, curiosamente, reunidos os dois males, reparadas as arestas, burilados os conceitos e trabalhadas as idéias que os geraram, se pode chegar a um objetivo comum: justiça igual. Para tanto, é preciso que os enunciados uniformizadores não sejam desprezados, mas também que não se estratifiquem, que não se perpetuem”. (SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, p. 8). No direito norte-americano, admitindo a evolução do direito por meio da

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236 repetitivos. Todavia, essa revisão deve também garantir a segurança em relação às teses já

fixadas e, a depender da situação, é preciso verificar se já é possível aplicar a nova tese, ou se

é caso de haver uma sinalização da possível mudança de entendimento jurisprudencial. Isto

porque as mudanças de entendimento do Tribunal podem trazer sérias consequências

econômico-financeiras capazes de afetar a economia. Não se pode deixar de lado a função

econômica do direito.

A fixação de determinadas teses pelo Judiciário, seja em incidente de resolução de

demandas repetitivas, seja por outro meio qualquer (julgamento de recursos repetitivos ou

controle de constitucionalidade, por exemplo), não tem o condão de estancar a evolução da

sociedade.

Como destacado acima, até mesmo nos países em que há a tradição em se seguir

precedentes há a possibilidade de deixar de segui-los663. A evolução da sociedade faz com que

o direito evolua e, por via de consequência, a interpretação dos tribunais também deve

evoluir.

O texto pode até mesmo não sofrer alteração material, mas pode haver a alteração de

seu significado. No direito constitucional, os doutrinadores tratam da chamada mutação

constitucional, ou seja, da mudança do significado de suas normas em decorrência da

evolução da sociedade, mas sem que haja alteração de seu texto664. Isso pode ocorrer com as

teses fixadas no incidente de resolução de demandas repetitivas.

O próprio projeto prevê a possibilidade de alteração pelo Tribunal de posicionamento

fixado no incidente, estabelecendo, inclusive, a possibilidade de modulação dos efeitos dessa

mudança de entendimento sobre a tese fixada para que se evite insegurança jurídica (art. 882,

alteração de precedente: Charles D. Cole, ao afirmar que “[...] um precedente na cultura jurídica dos Estados Unidos não está cravado em pedra. A lei básica pode ser mudada em relação ao precedente pelo legislador, o passar do tempo e a evolução cultural podem tornar o precedente obsoleto, ou a maioria da Corte pode mudar sua filosofia jurídica de modo que o precedente anterior seja reformado e seja estabelecido um novo precedente”. (COLE, Charles D. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados unidos. O sistema de precedente vinculante do common law. Revista dos Tribunais. Vol. 752. São Paulo: RT, 1998, p. 11 e ss).

663 Pelo overruling haveria a “revogação” do precedente, na qual a Corte Superior exara julgado em sentido contrário ao precedente, passando a formar novo precedente em sentido oposto ao anterior. Na Inglaterra, o overruling tem efeito ex tunc, atingindo toda a sociedade. Já nos Estados Unidos, a superação do precedente tem eficácia ex nunc (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 127-128)

664 Sobre o conceito de mutação, vide: BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. Dissertação de Mestrado defendida na PUC-SP em 2005.

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237 V, do projeto)665. Diferentemente do que é previsto para os julgamentos de ações do controle

concentrado de constitucionalidade, em que a modulação dos efeitos da decisão tem quórum

preestabelecido, o projeto não traz qualquer menção quanto a isso, prevendo apenas que cabe

aos regimentos dos tribunais estabelecerem a forma como a revisão dos posicionamentos se

dará, descrevendo apenas que isso será feito em procedimento autônomo.

O texto deveria ser mais claro quanto à forma pela qual o Tribunal pode alterar sua

interpretação, pois os parágrafos do art. 882 do projeto parecem contradizerem-se. O

primeiro, em conjunto com caput, afirma que a mudança de entendimento deva ser feita de

forma fundamentada. O segundo fala que o Tribunal deve prever um procedimento para

alteração de sua jurisprudência, por meio de procedimento autônomo. Já poderia o projeto

prever que na existência de possibilidade de julgamento em sentido diverso por qualquer das

Câmaras do Tribunal, visualizando possível alteração no entendimento da Corte, a instauração

de procedimento para manter a unicidade da interpretação do Tribunal, semelhante ao que já

foi previsto para o prejulgado pelo art. 103, § 1º, do Decreto 16.273/1923666. Também deveria

ficar claro no projeto que o procedimento para alteração da tese fixada em incidente também

possua ampla publicidade, sendo assegurada a participação de órgãos e entidades na qualidade

de amici curiae.

Sendo verificada a possibilidade de alteração da tese fixada, isso poderia ser realizado

pela instauração de outro incidente, para que o Tribunal voltasse a se pronunciar sobre a

questão.

665 Art. 882. “Os tribunais, em princípio, velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência,

observando-se o seguinte: [...] V - na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 1º A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas. § 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação da matéria”.

666 Art. 103. “Quando a lei receber interpretação diversa nas Câmaras de Appellação cível ou criminal, ou quando resultar da manifestação dos votos de uma Câmara em um caso sub-judice que se terá de declarar uma interpretação diversa, deverá a Câmara divergente representar, por seu Presidente, ao Presidente da Côrte, para que este, incontinenti, faça a convocação para a reunião das duas Câmaras, conforme a matéria, fôr cível ou criminal”. “§ 1º. Reunidas as Câmaras e submettida a questão á sua deliberação, o vencido, por maioria, constitue decisão obrigatória para o caso em apreço e norma aconselhável para os casos futuros, salvo relevantes motivos de direito, que justifiquem renovar-se idêntico procedimento de installação das Câmaras Reunidas”.

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238 9 A possibilidade de dois Tribunais de segundo grau julgarem o incidente de maneira

diversa

Pode acontecer de um processo individual dar início a um incidente de resolução de

demandas repetitivas num determinado estado ou região. Instaurado o incidente, o Tribunal

do Estado “A” decide a questão e nenhuma das partes recorre, fazendo com que a decisão

transite em julgado, devendo então ser obedecida a tese fixada naquele Estado por todos os

seus magistrados. Posteriormente, ou mesmo em paralelo, o mesmo tema acaba sendo

apreciado pelo Tribunal “B”. Supondo que o Tribunal “B” fixe entendimento em sentido

contrário ao do Tribunal “A” e ninguém recorra da decisão. Isso não impedirá a proliferação

de demandas em ambos os Estados, muito menos a proliferação de recursos, que só terá fim

quando o STJ ou STF julgar recursos decorrentes de demandas individuais, utilizando-se do

procedimento de recursos repetitivos, para que pacifique a matéria.

Note-se que enquanto não houver posicionamento de Tribunal Superior quanto à

questão o juiz vinculado ao Tribunal “A” deve obedecer ao precedente desse Tribunal e o juiz

do Tribunal “B” deve obedecer ao precedente de seu Tribunal. Isso somente seria evitado se

houvesse o requerimento de suspensão das demandas em todo o território nacional e, após a

decisão por um Tribunal, houvesse a efetiva interposição de recurso excepcional.

O projeto só prevê a possibilidade de requerimento de suspensão das demandas em

âmbito nacional. Mas se houver a suspensão e depois não houver recurso excepcional o

julgamento por um Tribunal local não vinculará os outros Tribunais. O dispositivo em

comento (art. 937, parágrafo único) só teria razão de ser com a interposição de recurso

excepcional, pois sem ele, após a decisão do incidente por um Tribunal “X”, somente seus

magistrados é que ficarão vinculados ao que foi decidido, de nada tendo adiantado a

suspensão nos outros Estados e Regiões. Sem que haja a interposição de recurso excepcional,

a suspensão só servirá para atrasar o andamento das demandas.

Caso ninguém recorra da decisão proferida no incidente pelo Tribunal “X”, os

jurisdicionados do Estado “Y” poderão requerer a instauração do incidente sobre o mesmo

tema perante seu Tribunal (“Y”). Após a decisão por este, os membros do Judiciário deste

ficarão vinculados ao que foi decidido. Se o Tribunal “Y” decidir de forma diversa e também

não houver recurso por qualquer das partes, será necessário que uma demanda chegue até o

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239 Tribunal Superior, para que o tema seja pacificado em âmbito nacional. Se não houver esse

recurso, a divergência e conflituosidade continuarão.

10 Comparativo do incidente de resolução de demandas repetitivas com as ações

coletivas previstas no microssistema (Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90)

O incidente de resolução de demandas repetitivas, como visto, não se insere dentro do

sistema de ações coletivas. Apesar de o incidente visar a resolução de modo uniforme de

litígios de massa, a forma pela qual se dará a solução não será por meio de uma ação coletiva,

nem por meio de coletivização de uma ação individual, como acontece na Alemanha e na

Inglaterra667. Será por meio da objetivação do julgamento da quaestio juris, com a adoção de

um precedente668.

Muitas são as diferenças, devendo haver convivência harmônica entre o incidente e as

demandas coletivas669.

É certo que o incidente vem como forma de corrigir as deficiências existentes também

nas ações coletivas, deficiências essas já citadas ao final do primeiro capítulo.

Passamos a discorrer sobre as principais diferenças entre ambos os institutos.

Nas ações coletivas há um rol predeterminado pela lei de legitimados extraordinários

que poderão ajuizar a ação coletiva em face de uma ou de algumas pessoas. O incidente de

resolução de demandas repetitivas será instaurado como incidente de um processo, que pode

ser individual ou até mesmo coletivo. O que é preciso verificar é a existência de possibilidade

de multiplicação de processos. Além das partes, o juiz e o relator no Tribunal também

poderão dar início à instauração do incidente. A ação coletiva será processada e julgada pelo

667 Em que pese nossa conclusão, fundada no texto dos artigos do projeto, verifica-se que na exposição de

motivos fala-se na criação de um “incidente de julgamento conjunto de demandas repetitivas”. Não encontramos no texto nada que fale sobre o julgamento dos processos de forma conjunta. O que nos parece é que haverá a fixação de uma tese que deverá ser observada.

668 LÉVY, Daniel de Andrade. O incidente de resolução de demandas repetitivas no anteprojeto do novo Código de Processo Civil exame à luz da group litigation order britânica. Revista de Processo. ano 36. vol. 196. São Paulo: RT, 2011, p. 165 e ss.

669 “Sempre bom salientar que se trata de mecanismos que devem conviver, e não se sobrepor”. (CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo. ano 32. vol. 147. São Paulo: RT, 2007, p. 123 e ss.)

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240 magistrado em primeiro grau de jurisdição. O incidente será julgado pelo Pleno ou Órgão

Especial do Tribunal. Na ação coletiva a discussão poderá versar sobre matéria de direito e de

fato. O incidente somente poderá versar sobre matéria de direito. O resultado da ação coletiva

poderá fazer coisa julgada em relação a terceiros, mas a existência dessa coisa julgada não

impedirá as partes de, por meio de demanda individual, requerer o mesmo pedido, em face do

mesmo réu e com base no mesmo fundamento. No incidente não se fala em coisa julgada, mas

em obediência ao precedente, que afetará os magistrados e colegiados vinculados ao Tribunal

prolator da decisão; neste, a coisa julgada ocorrerá no processo após não caber mais recurso

da decisão do magistrado que tiver aplicado a tese adotada no incidente pelo Tribunal.

A ação coletiva poderá versar questões envolvendo direitos individuais homogêneos,

difusos ou até mesmo direitos coletivos. O incidente poderá até versar sobre direitos difusos,

mas não será essa a regra670. Estará voltado para litígios que envolvam a mesma questão de

direito de forma repetida.

A ação coletiva tem como um de seus fundamentos a proteção de direitos que não têm

legitimados certos (difusos, por exemplo), os direitos de pequena monta, nas quais as pessoas

individualmente consideradas acabam não sendo estimuladas a demandar e os direitos que,

mesmo sendo divisíveis, causam danos que poderiam ser defendidos de forma individual, mas

por economia processual e equilíbrio na relação acabam sendo defendidos de forma coletiva.

O incidente de resolução de demandas repetitivas não terá por finalidade, a princípio, a defesa

de direitos difusos671. Também não envolverá litígios de pouca monta que acabem não sendo

atrativos para a litigância individual. O conflito individual deverá ser ao menos compensador

para que pessoas procurem ir a juízo individualmente discutir a questão, pois caso contrário

não haverá risco de multiplicação de demandas672.

670 Andrea Carla Barbosa e Diego Martinez Fervenza Cantoario trazem em seus estudos semelhanças e

dessemelhanças entre o incidente e a ação coletiva para proteção de direitos individuais homogêneos: BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In. FUX, Luiz. (coord.) O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 493 e ss.

671 Diz-se a princípio, porque o incidente decorrerá de demanda individual, mas que em razão do resultado uma coletividade indeterminada poderá ficar sujeita ao que foi decidido no incidente, como por exemplo a existência de discussão envolvendo a legalidade ou ilegalidade de determinada cláusula prevista em contrato de mútuo feneratício. Se a cláusula for considerada legal ela continuará a sendo incluída em contratos futuros feitos pelos agentes financeiros. Se, por outro lado, a cláusula for considerada ilegal, os novos contratos que serão firmados não poderão mais conter aquela cláusula.

672 Dificilmente o incidente de resolução de demandas repetitivas surgirá para discutir, por exemplo, o que deve ser entendido por “variações decorrentes” da natureza do produto que tem quantidade menor do que a descrita. O CDC prevê que os fornecedores respondem pelos vícios de qualidade ou quantidade (art. 18).

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241 Se houver uma sentença de procedência numa ação coletiva que verse sobre direitos

individuais homogêneos, os indivíduos lesados não precisarão ajuizar demanda cognitiva com

vistas à obtenção do reconhecimento sobre seus direitos. Esses direitos já estão reconhecidos,

cabendo aos indivíduos apenas promover a liquidação de seus danos individuais. Nas ações

individuais, quando tenha havido um incidente, o juiz primeiro julgará o caso individual

aplicando a tese fixada no incidente por seu Tribunal. Se a demanda for proposta

posteriormente à fixação da tese, o juiz poderá até conceder a tutela da evidência, sendo

permitido o cumprimento provisório até mesmo sem a prestação de caução, mas isso não

coloca fim à essa etapa cognitiva, como ocorre na ação coletiva.

Poderá até mesmo haver repetições de ações coletivas. Imagine-se que sejam

propostas ações coletivas distintas (em face de diferentes bancos, por exemplo, ou em face de

várias operadoras de telefonia). Seriam diversas as demandas coletivas. Isso já não ocorreria

com o incidente, que seria único dentro da delimitação de atuação daquele Tribunal.

Há limitação quanto ao rol de matérias que pode ser objeto de tutela coletiva (matéria

tributária, por exemplo). A única limitação que o incidente sofre é quanto à questão de fato,

que não pode ser objeto de apreciação no incidente.

11 Análise crítica do instituto

O incidente de resolução de demandas repetitivas não é, como se verificou, uma ideia

tão nova. Constatamos que na discussão sobre o projeto do CPC de 1973 já havia a previsão

de que após o julgamento do incidente de uniformização de jurisprudência poderia haver a

edição de assentos que deveriam ser cumpridos por todos os membros do Judiciário

subordinados àquele Tribunal que os expediu. Isso nada mais era do que uma forma de

vincular o magistrado ao posicionamento de seu Tribunal. Naquela oportunidade, diante das

grandes discussões sobre a eventual inconstitucionalidade de o Tribunal editar assentos, em

razão da abstração e generalidade destes, o texto do projeto foi alterado e constou do texto

aprovado a possibilidade de edição de enunciado súmula que passaria a servir de precedente.

Raramente haverá uma demanda individual para discutir como deva ser interpretado esse dispositivo, pois a variação, muitas das vezes, acaba sendo pequena e não compensa a pessoa litigar individualmente.

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242 Como esse precedente tinha uma força apenas moral (persuasiva), o instituto do

incidente de uniformização de jurisprudência acabou por cair em desuso.

A previsão do incidente de resolução de demandas repetitivas tem estrito laço com o

incidente de uniformização de jurisprudência e com o incidente de inconstitucionalidade (por

óbvio, com as diferenças já vistas acima).

Esse incidente terá como ponto positivo o fortalecimento da ideia de se seguirem

precedentes. Acreditamos que esse será seu principal resultado. Mas esse resultado não terá o

condão de reduzir o número de demandas decorrentes de ações que envolvam matéria de fato.

Ações indenizatórias, por exemplo, decorrentes da colocação de produtos defeituosos ou que

causem danos aos consumidores, não estarão acobertados pelo incidente, diferentemente do

que ocorre com o Musterverfharen, que surgiu justamente para tratar de ações indenizatórias

de investidores que foram lesados por informações equivocadas. No GLO, que também é uma

ação de grupo e não tem a restrição de sua aplicação como a KapMuG, verificamos que sua

aplicação decorre de danos sofridos em decorrência de medicamentos, exposição ao amianto,

acidentes aéreos, o que não poderá ser apurado pelo incidente de resolução brasileiro.

Não fosse apenas isso, a simples resolução do incidente servirá de base para que os

magistrados apliquem a tese fixada, mas isso não fará sumir as demandas repetitivas. Elas

ainda continuarão sendo propostas.

Não houve a previsão de consequência mais drástica para aqueles que optem por

litigar contra posicionamento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas. A

ideia de acesso à justiça (primeira onda) por todos e sem maiores consequências tem seu lado

negativo, que é a possibilidade de se litigar sem risco. Isso faz com que pessoas continuem

indo ao Judiciário para litigar mesmo que haja teses sedimentadas em sentido contrário. Basta

vermos a existência de diversas teses já firmadas em julgamento de recursos repetitivos e o

contínuo número de demandas sendo movidas para defender tese justamente oposta à fixada

pelo procedimento do art. 543-C. A título de exemplo, ainda há pessoas pleiteando a

ilegalidade de tarifa básica de telefonia673.

673 No mesmo sentido: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um

“incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.: “Alguns outros fatores combinados acabam contribuindo de forma importante para a massificação de litígios. Referimo-nos ao aumento descontrolado do número de Faculdades de Direito em todo o país, associado ao assistencialismo da Justiça Gratuita e à quase inimputabilidade dos litigantes

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243 Não que não possam existir demandas nas quais se discutam novamente tese já fixada

no incidente, mas pensamos que para isso ocorrer seja necessário que a parte leve a juízo

novos argumentos ou peculiaridades fáticas capazes de dar outro entendimento ao caso em

razão de sua peculiaridade. A simples cópia de peças processuais pelos advogados citando

teses superadas pelo tribunal no simples anseio de se vencer a lide pela sorte da distribuição

da inicial deve encerrar.

Comparado com o direito inglês, demandar no Brasil não é caro. Acrescente-se a isso

que no Juizado as pessoas podem demandar sem arcar com custas e ainda não correm o risco

de arcarem com honorários sucumbenciais, o que acaba por aumentar a vantagem para quem

quer litigar sem risco. A ideia de criação do incidente de resolução de demandas repetitivas é

muito benvinda, mas não solucionará esse problema.

Some-se a isso que não há previsão para que eventuais culpados cumpram

voluntariamente com suas obrigações decorrentes do que foi decidido no incidente.

Explicamos:

Imagine-se que em incidente de resolução de demandas repetitivas seja fixada a tese

de que a cobrança de determinado valor para a celebração de um contrato de mútuo seja

considerada ilegal.

Como a decisão no incidente servirá de tese para as demandas existentes e para as

futuras e eventuais demandas, a simples fixação de tese não terá força suficiente para

compelir o agente financeiro a agir de acordo com a tese fixada. Diante disso, os prestadores

de serviço de mútuo podem ainda continuar cobrando mensalmente uma tarifa julgada ilegal,

em incidente de resolução de demandas repetitivas. Isso fará com que aqueles que se sentirem

prejudicados ajuízem ação para a repetição da tarifa674.

Outro exemplo: supondo que tenha sido fixada em incidente de resolução de demandas

repetitivas que os bancos devam pagar aos poupadores a diferença da correção em relação ao

contumazes e de má-fé. Com o mercado da advocacia saturado, verifica-se o oportunismo de determinados profissionais, que assediam clientes – na mídia inclusive – propondo soluções milagrosas para salvá-los de toda e qualquer dificuldade, mesmo que esta se consubstancie no estrito cumprimento dos compromissos livremente pactuados. O Judiciário não é rigoroso na análise da concessão da Justiça Gratuita – tornando o processo um negócio sem risco para o autor da ação –, e ainda não reage de forma vigorosa para punir a litigância de má-fé e aventureira. Já os órgãos de classe não punem com rigor a publicidade dos serviços de advocacia que incita ao litígio”.

674 Outro fator que poderá levar a isso é a tendência ainda presente de grandes instituições e do Poder Público de somente acatar a decisão do STF, como se as decisões dos demais tribunais não tivessem valor.

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244 índice aplicado em determinado período. Isso servirá para que todos os juízes daquele Estado

apliquem essa tese, mas não terá o condão de fazer com que se evite o ajuizamento de

demandas. Não haverá nenhuma consequência para as instituições financeiras que optem por

não cumprir com a obrigação sem que haja demanda judicial.

Seria imprescindível que houvesse não apenas a vinculação dos magistrados aos

precedentes, mas que também a sociedade ficasse, de certo modo, sujeita ao que foi decidido,

com previsão de consequências negativas, por meio de atuação dos agentes reguladores

(ANATEL, ANEEL, ANS, Banco Central etc.), aplicando multas administrativas, pelo

descumprimento. Ou também por meio de multa nos processos em razão do manifesto

propósito protelatório (haja vista que a outra parte só conseguiu garantir o seu direito por

meio de demanda judicial, não houve boa-fé na conduta daquele que procurou agir em sentido

contrário à tese fixada)675.

Poder-se-ia falar em aumento do ônus da sucumbência nos casos de litigância em

sentido contrário à tese fixada sem que haja razão plausível para tanto.

Nas demandas coletivas que gerem danos não haverá alternativa senão se socorrer das

ações coletivas (ou individuais), pois o incidente não servirá para apreciar matéria fática. Por

isso, nesses casos o incidente de resolução de demandas repetitivas não trará benefício.

Apesar de o Projeto mencionar que o incidente de resolução de demandas repetitivas é

inspirado no Musterverfahren alemão, o incidente não é uma ação de grupo como o processo

modelo alemão, nem como o inglês (Group Litigations Order).

O instituto mais se liga à uniformização da jurisprudência, com efeito para além das

partes, do que com as ações de classe ou de grupo, ou seja, sua similitude é maior a um

instituto já conhecido do direito pátrio do que com outros institutos estrangeiros.

Também pensamos que haverá problema na forma como o precedente poderá ser

formado. Pensamos que a obediência deverá ocorrer de acordo com os fatos e

fundamentações analisadas pelo Tribunal. Em razão da falta de clareza do art. 938 (do PL

8.46/2010) em relação a esse ponto, que poderá levar o aplicador do direito a entender que a

tese fixada poderá ser aplicada indistintamente aos casos futuros, independentemente dos

fatos e fundamentos serem similares ou não, o efeito que se espera do incidente de resolução

675 Considerando-se a ausência de novas argumentações contra a tese fixada.

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245 de demandas repetitivas poderá ser inverso, fazendo com que os Tribunais sejam

sobrecarregados com mais um instrumento processual (reclamação constitucional). Outro

problema que poderá ocorrer decorrente da aplicação indistinta do incidente aos demais casos,

sem a análise de suas peculiaridades ou diferentes fundamentações será o efeito inverso:

tratamento igualitário para situações distintas.

Casos há também em que uma questão de direito não poderá ser interpretada de modo

uniforme para todo o território ou para todos demais casos diante das peculiaridades

regionais. Supondo que haja diversos processos para serem apreciados pelo Judiciário na qual

a questão de direito sub judice versa sobre a possibilidade ou não de utilizar apenas prova

testemunhal para negócios jurídicos de valor superior a dez salários mínimos676. Uma decisão

no sentido da impossibilidade de utilização de prova testemunhal para todas as hipóteses, sem

considerar as peculiaridades regionais do Estado (ou até mesmo do país – vide art. 938,

parágrafo único do projeto) acabará por desconsiderar o costume de determinadas localidades

e permitir enriquecimento ilícito de alguns. Apesar de nossa legislação possuir, na sua grande

maioria, caráter nacional, em razão da grande competência legislativa atribuída à União, não

se pode desconsiderar as peculiaridades regionais, diante da dimensão continental de nosso

país. Neste caso, os fatos podem até ser os mesmos, mas a peculiaridade que fará com que

haja distinção no caso concreto decorrerá dos costumes locais, que também devem ser

observados e poderão fazer com que o incidente não seja aplicado677.

12 Conclusão

Diante de tudo que procuramos expor no presente trabalho, constatamos que a

evolução da sociedade e a massificação das relações jurídicas, dentre outras causas, trouxe um

incremento de acesso ao Judiciário, fazendo com que o número de processos aumentasse a

cada ano.

676 Não se pode descartar a possibilidade de a repetitividade não estar vinculada a relações de massa, até porque

o Projeto não limita a utilização do incidente para relações de massa 677 Lembremos dos casos de contratos de compra e venda de gados ocorridas, dentre outras localidades, em

Barretos-SP, na qual os negócios eram celebrados sem que houvesse qualquer prova documental da transação comercial.

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246 O Estado surgiu da própria necessidade do cidadão pela segurança. A codificação do

direito também tem por mote a segurança, no intuito de tratar todos de modo igual. O juiz,

num primeiro momento, era impedido de interpretar a lei, pois isso seria uma afronta ao

direito na época e poderia trazer insegurança. O Judiciário francês da época era um poder

nulo”.

Todavia, verificou-se que não seria possível tratar todos os casos possíveis e

imagináveis utilizando-se da mera letra fria da lei, sendo necessário que o juiz interpretasse a

lei para garantir a justiça do caso concreto. Ganhou importância o papel do juiz na realização

dos direitos fundamentais.

Ocorre que a lei não conseguiu ser tão rica a ponto de prever todas as possíveis e

inimagináveis situações decorrentes da vida em sociedade, razão pela qual houve a

necessidade de interpretação da lei pelo julgador. Acrescente-se a esse fato a existência do

neoconstitucionalismo e de uma Constituição Principiológica, capaz de dar maior margem de

interpretação às normas pelo juiz.

A potencial existência de divergência dentro do Judiciário não é assunto novo e por

isso o sistema processual vigente, com uma estrutura verticalizada decorrente da existência

não só de tribunais locais, mas também de tribunais superiores, tem por finalidade fazer com

que a aplicação do direito seja uniforme em todo território nacional. Isso já poderia ser visto

pela própria estrutura do CPC (que prevê incidentes de uniformização e de

inconstitucionalidade, recursos especial, extraordinário e embargos de divergência, sem falar

nos atuais institutos da súmula vinculante e dos recursos “repetitivos”) e do Judiciário.

Há uma hierarquia dentro do Judiciário que deve ser obedecida para a aplicação das

leis aos casos concretos, sob pena de os resultados das demandas serem contraditórios, em

que pese a semelhança das causas. Não podem as partes ter seus conflitos resolvidos pela

sorte de serem eles julgados pelo juiz A ou B, havendo a necessidade de uniformização do

sistema, ainda mais diante de litígios de massa.

A constitucionalização do processo acrescido do novo enfoque dado ao direito por

meio do neoconstitucionalismo, visando à efetivação das normas constitucionais, exige nova

óptica na aplicação e interpretação das normas processuais.

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247 Em que pese essa busca de maior efetividade ao texto constitucional, faz-se necessária

a edição de normas para regulamentar o processo de forma a atender os anseios da sociedade.

Vemos esse labor constante desde meados da década de noventa, com as “etapas” de reforma

ao CPC vigente, com a reforma do Judiciário e agora com o projeto de um Novo Código de

Processo Civil. Esta é uma nova tentativa de dar à população o tão esperado direito de obter a

tutela jurisdicional do Estado num prazo razoável, obedecendo-se ao contraditório e à ampla

defesa.

Dentre outros fatores que levaram à necessidade de reforma da legislação processual,

está a massificação das relações jurídicas. Isso porque nosso Código de Processo vigente foi

baseado num direito material (Código Beviláqua) de cunho eminentemente individualista. Ele

procura resolver as lides por meio de demandas individuais.

É certo que desde o início do século passado já poderiam ser encontrados estudos

demonstrando a necessidade de alteração dos modelos processuais, com vistas à resolução de

forma coletiva das tutelas individuais. Apesar disto, foi a partir da década de setenta que esses

estudos foram aprofundados na Europa continental.

No Brasil, em 1985, entrou em vigor a Lei da Ação Civil Pública, mas o triunfo na

defesa coletiva de direitos individuais surgiu somente após 1990, com a entrada em vigor do

Código de Defesa do Consumidor.

Esse triunfo, contudo, não foi pleno, pois o sistema processual coletivo foi sendo

alterado no decorrer dos anos, algumas vezes por meio de edição de medidas provisórias de

constitucionalidade questionável, reduzindo sua eficácia como instrumento capaz de

solucionar os litígios de forma isonômica, num prazo razoável, pois se eliminaria uma grande

gama de ações individuais.

Citamos algumas das causas que reduzem a aplicação do modelo coletivo de tutela de

direitos individuais no direito pátrio. A doutrina, sabedora desses pontos delicados do

processo coletivo, apresentou diversas propostas para tentar dar maior efetividade à tutela

coletiva de direitos. Contudo, a proposta mais adiantada acabou sendo rejeitada pelo

Legislativo.

Não fosse apenas esse o problema, o que também dificulta a resolução das demandas

repetitivas de forma adequada é a falta de obediência às decisões dos tribunais superiores.

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248 Em que pese o CPC de 1973 ter sido criado prevendo institutos que visassem à

obediência ao posicionamento dos Tribunais, não é isso que se verifica no nosso direito. Há

institutos como o incidente de uniformização de jurisprudência que serviriam para resolver as

quaestiones juris, determinando qual deveria ser a interpretação do Tribunal sobre

determinada matéria. Em razão do baixo poder de persuasão desse incidente ele não vem

sendo utilizado pelos Tribunais, pois de nada adianta o Tribunal decidir como deva ser

interpretada determinada norma se os juízes e desembargadores pertencentes ao Tribunal

podem julgar em sentido completamente diverso deste, sem que nada aconteça.

Apesar de na história do direito brasileiro ser possível verificar a existência de efeitos

vinculantes, como acontecia com a edição de assentos, nossa doutrina rechaçou por muito

tempo a ideia de obediência aos posicionamentos exarados pelos Tribunais.

A situação começa a mudar já no final do século passado, quando se verifica uma

tendência à criação de enunciados de súmulas vinculantes. Apesar de não ser a melhor das

formas de se criar uma vinculatividade, ante o alto grau de abstração do enunciado, que força

o magistrado a interpretar o enunciado, podendo chegar a uma decisão completamente oposta

à súmula, demos um importante passo rumo à obediência dos posicionamentos dos Tribunais.

Também em decorrência da reforma do Judiciário e posteriores reformas legislativas, houve o

acréscimo dos artigos 543-B e 543-C do CPC, o que nos aproximou mais um pouco da

adoção de precedentes (com as distinções já mencionadas), pois os Tribunais passam a ter que

obedecer ao decidido pelas Cortes Superiores.

Uma das causas que pode ser destacada em relação à ausência de obediência ao

posicionamento dos tribunais, que tem por consequência a insegurança dos jurisdicionados

em razão da ausência de isonomia, é a distorção havida em relação à discricionariedade

judicial. Ressaltamos que não podemos entender como discricionariedade judicial a

interpretação e aplicação das leis. O juiz tem sua livre convicção motivada e deverá utilizar-se

da hermenêutica para solucionar os litígios, o que significa que ele não poderá julgar

decidindo com base em opiniões pessoais, crença, ou outros fatores que influem na sua

formação pessoal (afinidade política, esportiva etc.). Imperioso acrescentar que a existência

de Tribunais Superiores também deve ser levada em consideração pelos magistrados para que

estes considerem os posicionamentos dos Tribunais no momento de decidir. Se os Tribunais

Superiores existem para uniformizar a interpretação das normas federais (legal ou

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249 constitucional), não há razão para que o juiz simplesmente ignore o posicionamento do

Tribunal ao julgar.

A forma como os advogados e magistrados, em sua grande maioria, citam os julgados

(por meio de citação exclusiva de ementas), bem como a alta abstração na edição de

enunciados de súmulas, acaba gerando má aplicação dos julgados, em razão da ausência de

análise das peculiaridades dos casos concretos, causando em alguns casos distorção do

posicionamento dos Tribunais e, consequentemente, trazendo insegurança jurídica. É mister

que se faça uma análise pormenorizada do nosso modelo para que se evitem distorções nos

julgados futuros.

Diante da imensidão de casos repetitivos, a proposta de tentar acelerar a formação de

um precedente para ser obedecido pelos demais membros de um mesmo Tribunal é benvinda.

Todavia, não podemos nos esquecer de que a formação desse precedente difere-se da forma

como os precedentes são formados no direito estrangeiro, em que são levadas em

consideração as peculiaridades fáticas.

A ideia de obediência aos precedentes não significa engessamento do Judiciário, mas

aplicação uniforme do direito para casos análogos num mesmo momento histórico. Apesar de

estarmos tratando de questões de direito, a aplicação da norma exige a análise do fato.

Havendo necessidade de aplicação diferenciada da norma em razão da peculiaridade fática, o

juiz deverá demonstrar as peculiaridades que justifiquem a distinção em relação ao

precedente. Ainda, assim como a sociedade está em constante transformação, o direito

também é mutável para acompanhar essa evolução, razão pela qual, mudando as

circunstâncias culturais, sociais, políticas ou econômicas, a interpretação do direito pode (ou

mesmo deve) ser alterada.

O Projeto do Novo Código de Processo Civil traz essa ideia de obediência aos

precedentes. Isso é salutar para a obtenção da segurança jurídica, isonomia e previsibilidade.

Essa ideia (de obediência aos precedentes) é reforçada pela previsão do incidente de

resolução de demandas repetitivas.

Apesar de o incidente de resolução de demandas repetitivas possuir inspiração no

direito alemão (mais precisamente, na KapMuG, criada em decorrência do grande número de

investidores que foram vítimas de informações equivocadas sobre as ações da Deutsche

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250 Telekom), verifica-se que esse instituto, assim como o Group Litigation Order, trata de ação

de grupo, ou seja de um meio de tutela coletiva de direitos individuais e não de formação de

precedente.

Há institutos no direito pátrio vigente que mais se assemelham ao incidente de

resolução de demandas repetitivas, sendo que o instituto mais próximo é o incidente de

uniformização de jurisprudência, com a peculiaridade de gerar um precedente com maior

poder de persuasão. Apesar da similaridade, há diferenças, dentre as quais podemos destacar:

a possibilidade de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas antes mesmo

de o processo chegar ao Tribunal; estar limitado aos Tribunais de segundo grau; efeito

vinculante678 da tese fixada neste novo incidente.

O instituto ora analisado possui natureza jurídica de incidente processual, não gerando

processo novo, tendo por finalidade a formação de precedente com efeito vinculante em

relação aos magistrados pertencentes ao Tribunal prolator da decisão que julga o incidente.

Diferentemente dos institutos estrangeiros citados como fonte inspiradora do incidente de

resolução de demandas repetitivas, este só poderá versar sobre questões de direito.

No que se refere às questões de direito e de fato, sabemos que essa separação é

impossível, pois sempre haverá fatos. O que deve ser levado em consideração é a

predominância da questão de direito sobre a questão de fato. Dessa forma, podemos entender

que a questão relativa à interpretação do texto de lei será sempre questão de direito;

qualificação jurídica dos fatos; ausência de dúvidas sobre as questões de fato ou a indiferença

quanto à existência ou não de dúvidas sobre a situação fática, pois isso não será capaz de

alterar o resultado da demanda (ao menos a princípio, como já demonstrado).

A instauração do incidente poderá ser realizada de forma preventiva, evitando-se a

multiplicação de processos com decisões conflitantes, o que evitará insegurança jurídica e

descrédito do Judiciário junto à população.

Sendo semelhante ao incidente de uniformização de jurisprudência e tendo por

finalidade a formação de um precedente, apenas os Tribunais de segundo grau terão

competência para processar e julgar o incidente. Não há previsão de assunção de competência

678 Como dito acima, todavia, essa vinculatividade não decorre de obrigação legal, mas de lógica do sistema e de

aplicação dos princípios da segurança jurídica, isonomia, previsibilidade dentre outros fatores já expostos.

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251 caso haja dois Tribunais distintos apreciando a matéria. O que poderá haver é o requerimento

de suspensão do trâmite dos processos em âmbito nacional.

Precisaria haver maiores detalhes sobre a forma como se processará o incidente.

Defendemos que ele deva ser processado por meio de instrumento.

Novamente, em relação aos institutos inspiradores dessa nova figura processual, não

haverá escolha de caso ou casos modelos, assim como também não haverá a possibilidade de

escolha de representantes para o grupo (advogados líderes), o que nos força a defender uma

menor objetivação da tese apreciada no incidente, pois muitas outras peculiaridades fáticas

poderão fazer com que a norma seja aplicada de forma diversa noutros casos que não foram

apreciados pelo Tribunal ao julgar o incidente.

Eis aqui o ponto crucial no que se refere à formação do precedente. As peculiaridades

fáticas e as fundamentações legais devidamente apreciadas e julgadas pelo Tribunal é que

darão os contornos da objetividade do julgamento do incidente de resolução de demandas

repetitivas.

A mesma observação feita ao legislador de que ele não teria a capacidade de observar

todos os possíveis e imagináveis casos em que a norma seria aplicada também vale no que

tange ao julgamento do incidente. Não será possível ao Tribunal imaginar todas as possíveis e

imagináveis causas em que o precedente será aplicado. Por essa razão, a obediência deverá

ficar limitada aos fatos e fundamentos devidamente analisados pela Corte para a formação do

precedente, sob pena de, para deixar de cometer uma injustiça (tratar de forma diferente

situações iguais), ser feita outra (tratar de forma igual situações diferentes).

O incidente não fará diminuir o labor do advogado, nem do magistrado. Caberá a

estes, ao elaborarem suas peças (petições, decisões) fundamentar o porquê de aquela situação

fática enquadrar-se ou não no precedente exarado pelo Tribunal.

No julgamento do incidente, poderá haver transação, renúncia, reconhecimento

jurídico do pedido ou desistência da ação originária, mas isso não afetará, de forma alguma, o

incidente. O interesse na resolução do incidente pelo Tribunal não pertence exclusivamente às

partes, mas passará a ser interesse do próprio Tribunal, pois evitará dispersão na aplicação das

quaestio juris.

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252 Por se diferenciar das ações coletivas, nas quais apenas uma demanda ou poucas

demandas seriam propostas para a solução de um número indeterminado de ações, o incidente

não impedirá a propositura de milhares de demandas. Apenas terá o condão de fazer com que

essas ações sejam julgadas de forma mais célere. Ainda, mesmo após a prolação da decisão,

se estivermos diante de um litigante habitual, pode ser que este não resolva alterar seus

procedimentos internos de forma voluntária (ex.: proibição na inclusão de determinadas

cláusulas contratuais ou de cobrança de determinadas tarifas). Isso fará com que as pessoas

continuem tendo que se socorrer do Judiciário para terem garantido seus direitos. Não se

prevê uma penalidade administrativa para aqueles que continuem a agir em desacordo com a

determinação fixada em incidente, evitando-se demandas futuras.

Por outro lado, pode também ocorrer de o litigante eventual continuar a demandar

mesmo após o resultado desfavorável no incidente. Isso porque, diferentemente de outros

países, o custo para se litigar no Brasil é baixo ou até mesmo inexistente (como nos juizados

especiais em primeiro grau de jurisdição), além de haver advogados que acabam financiando

a demanda, ao estipularem honorários contratuais condicionados ao êxito da ação. Num

primeiro momento, a decisão sobre uma determinada questão poderá não ter o efeito

esperado, pois muitos dos assuntos acabam sendo resolvidos apenas pelo STJ ou STF. Veja-se

a título de exemplo a questão da “desaposentação” na justiça federal. O TRF da 3ª Região, por

exemplo, vinha entendendo era incabível tal tese. Mesmo assim muitos continuam

demandando, pois o STJ afirmou ser possível aplicar essa tese. Em razão dessa decisão, o

TRF da 3ª Região passou a obedecer ao precedente do STJ, todavia, o assunto ainda não está

encerrado, pois todos esperam um posicionamento do STF, que poderá reverter novamente a

situação. Verifica-se que é fundamental também haver um julgamento rápido das questões

paradigmáticas pelos Tribunais Superiores, sob pena de o instituto não atender à função para

qual fora criado. Em suma, enquanto não houver pacificação da questão pelos Tribunais

Superiores, a matéria ainda poderá ser entendida pela população e pelos advogados como

objeto de controvérsia, razão pela qual estes continuarão demandando, até que haja

cristalização da interpretação pelo próprio STF, não bastando o posicionamento do STJ (basta

analisarmos o conflito entre alguns enunciados de súmulas desses dois Tribunais – a exemplo

a Súmula Vinculante 5 e a Súmula 343 do STJ, que cuidam da necessidade ou não de

advogado nos processos administrativos).

Encerrando o presente trabalho, entendemos que a proposta trazida pela Douta

Comissão é salutar, porquanto abre caminho para a obediência aos precedentes judiciais,

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253 dando lógica e coerência ao sistema e garantindo a efetividade de princípios como a isonomia

e segurança jurídica no âmbito processual. Não obstante, se mal aplicado, poderá trazer a

injustiça inversa (tratar de modo igual situações distintas). E por fim, vale acrescentar que se

faz necessário retomar os estudos das propostas de alteração do processo coletivo para que os

litígios de massa sejam solucionados de forma satisfativa, pois, em que pese a excelência do

incidente de resolução de demandas repetitivas, ele não substituirá as demandas coletivas.

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