pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo puc … cristina... · pontifÍcia universidade...
Embed Size (px)
TRANSCRIPT
-
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP
ngela Cristina Borges Marques
UMBANDA SERTANEJA.Cultura e religiosidade no serto norte-mineiro.
MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO
SO PAULO
2007
-
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP
ngela Cristina Borges Marques
UMBANDA SERTANEJA.Cultura e religiosidade no serto norte-mineiro.
MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO
Dissertao apresentada BancaExaminadora da PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obtenodo ttulo de MESTRE em Cincias daReligio, sob orientao do ProfessorDoutor Silas Guerriero.
SO PAULO
2007
-
Banca Examinadora
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
-
A espiritualidade vive da gratuidade e da
disponibilidade, vive da capacidade de
enternecimento e de compaixo, vive da honradez
em face da realidade e da escuta da mensagem
que vem permanentemente desta realidade.
Quebra a relao de posse das coisas para
estabelecer uma relao de comunho com as
coisas. Mais do que usar, contempla. H dentro de
ns uma chama sagrada coberta pelas cinzas do
consumismo, da busca de bens materiais, de uma
vida distrada das coisas essenciais. preciso
remover tais cinzas e despertar a chama sagrada.
E ento irradiaremos. Seremos como um sol.
(Leonardo Boff)
minha me Emerenciana Dias Borges.
quela que me iniciou no caminho da espiritualidade, Nega Lourdes.
Ao meu pai espiritual Nelson Dias.
Moa Bonita Margarida.
-
Primeiramente, agradeo ao meu pai, Geraldo Borges, por ter provocado em
meu interior, desde a infncia, a necessidade da busca pelo conhecimento.
minha famlia: Denas, Ivna, Denas Jnior, Daniel, Lidiane e Victor pelo
apoio e pacincia em funo das longas horas de estudo e ausncia.
Elizete, Raquel e Neivaldo, Iran e Elaine, irmos e amigos que estimulam
minhas buscas e vibram com minhas vitrias.
Aos amados amigos Delurdes, Lliam e Csar pelo apoio, companheirismo e
amizade incondicional.
Aos queridos amigos Jnio Marques, Regina Caleiro, Mrcia Pereira e Luciano
Pereira, pelo companheirismo, amizade e trocas estimulantes.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Silas Guerriero por ter acreditado neste estudo e
vibrado com minhas descobertas, pelo olhar e sorrisos estimuladores, pela imensa
pacincia e seriedade com que me acompanhou.
Ao amigo e Prof. Dr. nio Jos da Costa Brito, que numa gratuidade
irresistvel, me apontou direes a serem seguidas e desafios a serem superados.
Ao colega e amigo Admilsom Prates por ter dividido comigo toda a trajetria
deste estudo.
Ao amigo Joo Batista Jnior e sua me, Dona Maria, pelas informaes,
conselhos e afeio.
Ao Recanto de Pai Joo Velho e Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo, nas
pessoas de Nair Lopes Dias, Norivaldo Lopes Dias e Maurcio Pereira de Jesus, por terem
me acolhido e permitido minha presena, muitas vezes incmoda, em seus rituais.
espiritualidade maior representados nos amigos Prof. Frederico, Pai Joo
Velho, Vov Rosa, Sete Pingo, Serena e Pilo pela permisso e orientao espiritual.
Divina Mahr y, pela irradiao de amor e desejo, presente que me
concedeu nos ltimos anos.
-
Resumo
O presente trabalho analisa o processo histrico-antropolgico da Umbanda na
regio norte do estado de Minas Gerais a partir de meados de 1940 at a atualidade. Neste
sentido, tece reflexes sobre a construo dialtica de um umbandismo tipicamente
sertanejo formado do encontro nesta regio de dois tipos de Umbanda: a do sudeste e a do
nordeste.
O umbandismo, resultante do choque entre as tendncias citadas carrega em
seus rituais e atividades, elementos sertanejos que denunciam o ethos construdo
historicamente na regio a partir do encontro cultural entre baianos e paulistas.
Pretendemos apresentar neste trabalho que ao seguir a linha do povoamento desta regio, a
Umbanda sofreu e sofre influncias traduzindo desta forma a hibridez prpria de regies
sertanistas e fronteirias.
O procedimento metodolgico utilizado neste estudo foi o qualitativo,
composto por: fontes orais atravs de depoimentos de pessoas que conheceram e se
inseriram nesta religio nas dcadas de 40, 50 e 60, de sacerdotes e umbandistas da
atualidade com a utilizao de gravador e conversas informais; levantamento documental
em acervos pblicos e privados; trabalho de observao de campo com a descrio de
rituais e uso de fotografias. Desta forma, a partir do cruzamento dos dados obtidos no
campo, chegamos s seguintes concluses: a Umbanda Sertaneja traduz em seus rituais e
relaes sociais, a questo axiolgica presente na histria da regio: a tenso entre o bem e
o mal; a chegada na regio do Candombl tem provocado a insero nesta religio de
sacerdotes umbandistas, sem, contudo caracterizar o abandono da Umbanda; em alguns
terreiros, a insero provoca a formao de um continuum religioso formado pela trade
Umbanda, Quimbanda e Candombl assinalando a emergncia de uma nova lgica
religiosa; a figura do Exu se apresenta nesta nova lgica como personalidade principal
medida que estabelece na trade citada, a funo de eixo e conexo alm de revelar
aspectos do ethos norte-mineiro.
Palavras-chaves: Hibridismo, fronteira, ambivalncia, ethos norte-mineiro, bem e mal na
Umbanda.
-
Abstract
The present paper analyses the historic-anthropologic process of umbanda in the
North of Minas Gerais State from the mid 1940s to present days. In this sense, it ponders
on the dialectical construction of an umbandismo typical from Northern Minas Gerais,
formed by the meeting of two types of umbanda in the region: the one from the Southeast
and the one from the Northeast.
The umbandismo resulting from the shock between the cited trends carries on its
rituals and activities elements from the North of Minas Gerais, which denounce the ethos
historically constructed in the region, from the cultural meeting between the people from
the states of Bahia and So Paulo. We intend to present with this paper that, by following
this region's populating process line, the umbanda has suffered and suffers influences,
hence translating the hybridization peculiar to the sertanistas and bordering regions.
The methodological procedure used in this paper was qualitative, composed by:
oral sources with testimony of people who knew and introduced themselves in this religion
in the decades of 40, 50 and 60, and of current priests and umbandistas by means of tape
recorder and informal conversations; documental survey in public and private heritage;
field observation work with the description of rituals; photographs as data source.
Thus, from the data crossing obtained in the field, we have come to the following
conclusions: the Umbanda Sertaneja translates in its rituals and social relations the
axiological issue present in the history of the region, the tension between the good and the
evil; the arrival of camdombl in this region at a posterior time has provoked the
introduction of umbandistas priests in this religion without, however, characterizing the
abandonment of umbanda; in some temples, this introduction provokes the formation of a
religious continuum formed by the triad umbanda, quimbanda and candombl which
signals the emergence of a new religious logic; the figure of Exu presents itself in this new
logic as the main personality insofar as it establishes, in the mentioned triad, the role of
axis and connection besides revealing aspects of the norte mineiro ethos.
Keywords: Hybridization, border, ambivalence, " norte mineiro ethos ", good and evil in
Umbanda.
-
Lista de figuras
FIGURA 01: Representao da Floresta prxima a Rio So Francisco ........................... 18
FIGURA 02: O Serto norte-mineiro ............................................................................... 20
FIGURA 03: Jos Fernandes Guimares e Eliezer Gomes de Arajo ............................. 75
FIGURA 04: Convite para festa de Oxum do Terreiro Filhos de Pai Gonzaga/1960 ...... 93
FIGURA 05: Convite para festa de Oxum do Terreiro Filhos de Pai Gonzaga/1961 ...... 94
FIGURA 06: Programao da festa de Oxum do Terreiro Filhos de Pai Gonzaga/1961. 94
FIGURA 07: Primeiro toque com atabaques do Centro Divino Esprito Santo/1952 ...... 101
FIGURA 08: A sacerdotisa Jesuna Porto Santos em gira de quimbanda ........................ 106
FIGURA 09: O sacerdote Norivaldo Lopes Dias ............................................................. 120
FIGURA 10: O sacerdote Maurcio Pereira de Jesus ....................................................... 121
FIGURA 11: Pej e pio do Recanto de Pai Joo Velho .................................................. 128
FIGURA 12: Cabocla no Recanto de Pai Joo Velho ...................................................... 129
FIGURA 13: Gruta de Preto-Velho no Recanto de Pai Joo Velho................................. 131
FIGURA 14: Cachoeira das guas no Recanto de Pai Joo Velho.................................. 131
FIGURA 15: A dana de Ogum no Recanto de Pai Joo Velho ...................................... 135
FIGURA 16: Banho na cachoeira no Recanto de Pai Joo Velho.................................... 135
FIGURA 17: O sacerdote Messias Branco ....................................................................... 137
FIGURA 18: Os sacerdotes Maurcio P. de Jesus e Maria do Carmo Pereira Santos ...... 141
FIGURA 19: Sada de feitura de santo de Maurcio Pereira de Jesus .............................. 144
FIGURA 20: Casas do Marujo e Caboclo, Tempo e Catend da Roa G. U. M.............. 146
FIGURA 21: Gruta do Baiano da Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo......................... 146
FIGURA 22: Casas de Exu e Ogum da Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo................ 147
FIGURA 23: Atabaqueiro do Recanto de Pai Joo Velho................................................ 161
FIGURA 24: Orientao aos atabaqueiros no Recanto de Pai Joo Velho ...................... 162
FIGURA 25: Ritual de Energizao na Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo................ 175
FIGURA 26: Boiadeiro na Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo ................................... 180
FIGURA 27: Boiadeiro saudando o tempo e o serto na Roa G. U. M.......................... 182
FIGURA 28: Oferenda a Ogum no Recanto de Pai Joo Velho....................................... 200
FIGURA 29: Jogo de Bzios da Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo........................... 209
FIGURA 30: Consagrao do Ogam na Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo............... 211
-
FIGURA 31: Ritual de Quimbanda na Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo................. 211
FIGURA 32: Batismo na Umbanda na Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo ................ 212
FIGURA 33: Escora no Terreiro Divino Esprito Santo................................................... 218
FIGURA 34: Receitas emitidas por Jos Fernandes Guimares em 1951 ....................... 234
FIGURA 35: Carteirinha de scio do Terreiro Filhos de Pai Gonzaga ............................ 234
FIGURA 36: Artigo sobre Jos Fernandes e Joozinho da Gomia................................. 235
FIGURA 37: Alvar do Terreiro de Umbanda Divino Esprito Santo ............................. 236
FIGURA 38: Primeiro registro em cartrio de um terreiro de Umbanda no norte de Minas
Gerais datado de 1955....................................................................................................... 237
FIGURA 39: Ata do Terreiro de Umbanda Divino Esprito Santo .................................. 238
-
Sumrio
INTRODUO................................................................................................................ 10
1. O SERTO NORTE-MINEIRO .................................................................................. 181.1. Vislumbrando a Cultura Sertaneja............................................................................. 33
2. HIBRIDISMO E SINCRETISMO NO SERTO NORTE-MINEIRO ....................... 382.1. Hibridao Cultural.................................................................................................... 432.1.1. Hibridismo cultural no serto norte-mineiro .......................................................... 542.2. Sincretismo Religioso ................................................................................................ 642.2.1. Sincretismo religioso no serto norte-mineiro........................................................ 67
3. A FORMAO DA UMBANDA SERTANEJA........................................................ 753.1. Do Centro Esprita Nossa Senhora do Rosrio ao Terreiro de Umbanda Filhos de Pai Gonzaga ............................................................................................................... 813.2. Terreiro Divino Esprito Santo .................................................................................. 973.3 A Institucionalizao: Associao Espiritualista Umbandista Folclrica dos Cultos Afro-Brasileiros do Norte de Minas................................................................ 107
4. RETRATOS ATUAIS DA UMBANDA SERTANEJA .............................................. 120
4.1. Do Centro Irmo Felipe ao Terreiro Recanto de Pai Joo Velho .............................. 1214.2. Da Seara de Umbanda de Pai Zeca Baiano a Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo 1364.3. Os Rituais................................................................................................................... 1504.3.1. A Festa das Moas no Recanto de Pai Joo Velho ................................................. 1534.3.2. Ritual de Preto Velho e Boiadeiro na Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo......... 168
5. UMA UMBANDA SERTANEJA................................................................................ 1865.1.Umbanda e Quimbanda: irmanao dos contrrios .................................................... 1875.2. Umbanda, Quimbanda e Candombl: tenso moral produtora do novo religioso..... 1975.2.1. Laroi Exu! Laroi Meu Cumpadre! ..................................................................... 216
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 220
REFERNCIAS................................................................................................................ 226
ANEXOS .......................................................................................................................... 234
-
10
Introduo
O objeto de estudo que este trabalho busca analisar a Umbanda na regio
norte do Estado de Minas Gerais, sistema religioso construdo neste territrio - a partir de
meados da dcada de 40 - mediante um processo dialtico determinado pelo fluxo cultural
prprio de regies entre, ou melhor, prprio de entre-lugares geogrficos e culturais.
O contato com a prtica de Umbanda em regies diferentes - norte de Minas e
sul de Minas - chamou nossa ateno para a sua diversidade e natureza sincrtica que,
consequentemente, nos despertou para outra questo: o fato de o homem norte-mineiro
possuir uma cultura diversa1 da cultura considerada tradicionalmente como mineira. Em
2003, por ocasio de elaborao de um artigo, iniciamos uma investigao histrica sobre
os terreiros de Umbanda no norte de Minas Gerais e nos surpreendemos com os dados
encontrados na Associao Espiritualista Umbandista Folclrica dos Cultos Afro-
Brasileiros do Norte de Minas. Naquele ano, havia em torno de 187 terreiros registrados na
regio que somados aos no registrados extrapolaria o nmero de 200 terreiros. claro que
este nmero suscitou a nossa curiosidade. Imediatamente, algumas questes emergiram:
onde se localizavam esses terreiros? quem os freqentava? como eram seus ritos? Em
campo, constatamos recentemente que os nmeros deparados naquele ano no
correspondiam com a realidade. Muitos templos foram fechados acusando a perda de
espao desta religio no campo religioso norte-mineiro. Entretanto, embora o espao
umbandista no seja o mesmo, a sua presena no territrio sertanejo forte e como
qualquer universo religioso denuncia o modo de ser do seu habitante. Nesta perspectiva,
iniciamos a nossa investigao no intuito de compreendermos a influncia cultural do
homem sertanejo no processo de formao da Umbanda na regio norte-mineira.
A questo da cultura e da religiosidade, assim como a sua articulao, j foi
levantada por vrios autores demonstrando a discusso sobre estas categorias como
pertinente ao mundo intelectual, uma vez que pode nos revelar mais sobre outra categoria:
a identidade. Geertz (1989), em A Interpretao das Culturas, percebe a cultura como um
enredo de significados construdo pelo prprio homem, ou seja, cultura a morada do
homem que se identifica com as suas instituies, entre elas a religio, o que nos leva a
1 Estudos recentes apontam a diversidade cultural existente entre o Norte de Minas e as demais regies doestado de Minas Gerais. De acordo com estes estudos a tradicional cultura mineira no se aplica ao Norte deMinas.
-
11
vislumbrar o sistema cultural norte-mineiro como resultante da coexistncia daqueles que o
povoaram, desenvolvendo assim uma cultura peculiar. No que se refere articulao desta
categoria a religiosidade umbandista, Renato Ortiz (1991), em A morte branca do feiticeiro
negro, discute entre outras questes o fato desta religio ter se legitimado ao integrar os
valores propostos pela sociedade, ou seja, este autor considera a Umbanda na sua relao
com a sociedade, e consequentemente, inserida na cultura que esta adquiriu. Neste mesmo
sentido, sob um prisma diferente, Maria Helena Villas Boas Concone (1972), autora de
Uma Religio Brasileira: Umbanda, abordou esta religio como uma viso particular do
mundo, um sistema simblico que denuncia uma cosmologia local. Outra perspectiva
empreendida por Lsias Nogueira Negro (1999), em sua obra Entre a Cruz e a
Encruzilhada, que enfoca a diversidade da Umbanda, das relaes que mantm com o
Kardecismo e do ethos dos umbandistas e simpatizantes, bem como faz uma retrospectiva
histrica da sua formao at a dcada de 90 na cidade de So Paulo. Enfim, os autores
citados, assim como muitos outros, em perspectivas diferentes, discutiram a temtica
cultura e religiosidade, tensionando-a diretamente ou no questo da identidade.
Sobre o modus vivendi do serto norte-mineiro, estudos recentes apontam para a
seguinte questo: a regio se apresenta diferenciada se comparada s outras regies que
compem o Estado de Minas Gerais. A distino se aplica dimenso geogrfica, poltica,
econmica e cultural. O antroplogo norte-mineiro Joo Batista de Almeida Costa (2000,
2001, 2003), em suas obras O Ser da Sociedade Sertaneja e a invisibilizao do Negro no
Serto Norte de Minas Gerais; Sentir-se norte-mineiro, as razes de nossa regionalidade, e
Mineiros e Baianeiros: Englobamentos, Excluso e Resistncia, discute a identidade do
sertanejo norte-mineiro apresentando-a como diferente da identidade mineira, isto , em
relao ao que vulgarmente se conhece como Ser mineiro. Para este autor, a especificidade
da cultura sertaneja produto do processo de povoamento do norte de Minas.
Como veremos no presente trabalho, durante o seu processo de povoamento, o
serto norte-mineiro esteve longos perodos longe dos olhos do poder oficial, o que
contribuiu para o desenvolvimento na regio de uma cultura marcada pela liberdade,
aspecto que a distingue da regio mineradora ao produzir um choque de valores
contraditrios. O norte-mineiro, ento, no seria nem mineiro e nem baiano, sua identidade
transitaria entre um e outro reproduzindo culturalmente sua localizao geogrfica: a
fronteira. O fato de ser uma regio fronteiria posio que sugere idias simultneas de
-
12
fim, incio e recomeo, algo que estar por se fazer ou devir - associada s condies em
que foi povoada propiciou o surgimento de uma cultura singular e peculiar, o que,
certamente se reflete na religiosidade do seu povo, especificamente na religiosidade afro-
sertaneja2 que, como veremos neste trabalho, tambm traduz a idia de recomeo.
No intuito de verificar as influncias da cultura sertaneja na religio
umbandista, empreendemos leituras que envolvem estas categorias objetivando conhec-
las, ou seja, nos acercamos da histria da Umbanda e da regio norte-mineira. Samos a
campo numa investigao que incluiu visitas aos seus principais terreiros, gravaes de
udio e entrevistas (aproximadamente quarenta horas), cerca de 800 fotos, vinte rituais,
entrevistas a sacerdotes e testemunhas da histria desta religio na regio, levantamentos
de dados nas fichas da Associao Espiritualista Umbandista Folclrica dos Cultos Afro-
Brasileiros do Norte de Minas, cerca de cinqnta horas pesquisando fichas, livros e atas
em cartrio, processos criminais, jornais da poca. De posse de uma literatura que nos
subsidiasse nesta abordagem, cruzamos os dados levantados em campo, o que nos permitiu
relacionar a histria do serto norte-mineiro produo de uma cultura compatvel ao seu
processo histrico e sua localizao geogrfica. Considerando ser esta regio um espao
fronteirio, pensamos ser relevante lanarmos mo de uma perspectiva terica adequada a
este tipo de espao. As fronteiras emergem como interstcios culturais, locais de trnsito
cultural, sendo dinmicas e sincrticas. Neste sentido, acreditamos ser as noes de
hibridao e sincretismo cultural as mais apropriadas para abordar o serto norte-mineiro,
que, como veremos, se coloca como interstcio espacial e cultural.
Por fim, para compreendermos o ethos norte-mineiro presente nas prticas desta
religio, aps visitarmos vrios terreiros elegemos dois deles como amostra e neles
concentramos nossa ateno. Os terreiros possuem semelhanas, diferenas e, de certa,
forma, divergncias. Seus lderes, representantes da atual da gerao de sacerdotes
sertanejos, iniciaram suas vidas religiosas na Umbanda, no entanto, um deles assumiu h
alguns anos a prtica do Candombl, seguindo uma tendncia afro-sertaneja: a insero
total ou parcial dos sacerdotes umbandistas nesta religio. O outro, mesmo permanecendo
na prtica umbandista, tem promovido alteraes no terreiro conduzindo suas atividades de
forma diferente do seu fundador. Embora distintos, o terreiro Recanto de Pai Joo Velho
2 Religiosidade que se manifesta nas religies afro presentes no serto norte-mineiro.
-
13
e a Roa Gongobiro Unguzu Moxicongo retratam o campo afro-sertanejo3, cenrio hbrido
e sincrtico onde a tenso entre o Bem e o Mal, presente desde o seu povoamento, se
desvela na relao entre Umbanda e Quimbanda e na coexistncia destas com o
Candombl.
Dividimos nossa exposio em cinco captulos. No primeiro, num vis
histrico-antropolgico, abordamos o processo de formao scio-econmico e cultural do
norte de Minas. Situado na fronteira com a Bahia e possuindo clima, fauna e flora
semelhantes rea nordestina, a regio recebeu os primeiros colonizadores em meados do
sculo XVI. No entanto, a regio se manteve longe do aparelho colonizador durante mais
de um sculo, atraindo nesse perodo aqueles que no se subordinavam ao controle
portugus. Terra inspita, o serto abrigou bandos que saqueavam o litoral, a presena
destes e a ausncia estatal o tornou uma terra sem lei, ou melhor, uma terra com suas
prprias leis.
O retorno das expedies no sculo XVII marcou o incio do povoamento com
o estabelecimento das primeiras famlias s margens do Rio So Francisco. No entanto,
mesmo a presena de colonos - paulistas e baianos - no evitou que a violncia se tornasse
marco da regio. Para a sua sobrevivncia, o norte-mineiro, livre do esquema colonial
portugus, desenvolveu uma moral prpria baseada na violncia e no choque de valores
contraditrios. Objetivava manter seus potentados adquiridos durante a ocupao. A
descoberta do ouro favoreceu a regio que se tornou a maior fornecedora de gneros
alimentcios para a rea mineradora. Sem o rigor tributrio os potentados sertanejos
concentraram riquezas e poder. Frente atuao de um poder privado, o estado portugus
interveio de forma controladora e, diante da resistncia sertanista, no mediu esforos para
obter o controle da regio usando da violncia e isolando-a. Somente com a chegada da
ferrovia no incio do sculo XX o serto se abriu ao pas.
A histria do serto norte-mineiro demonstra que a partir do seu povoamento,
do tipo de relaes existentes entre a regio e a Coroa portuguesa no perodo colonial e das
relaes sociais estabelecidas na regio, produziu uma cultura diversa da cultura mineira.
Ainda neste captulo pontuamos alguns aspectos prprios desta regio que auxiliam no
vislumbramento do ethos norte-mineiro. Dentre os aspectos, consideramos como o mais
3 Para fazer referncia ao campo religioso de natureza afro no serto o denominamos de Campo afro-sertanejo.
-
14
relevante a tenso entre o Bem e o Mal, questo axiolgica presente na histria e no
universo simblico sertanejo.
No segundo captulo, a partir dos conceitos de hibridismo e sincretismo,
tecemos reflexes sobre o universo cultural norte-mineiro. O serto concebido neste
estudo como lugar dinmico que transcende o espao fsico e os modelos culturais
dominantes. No possvel obter sua dimenso mltipla fsica, scio-cultural e
existencial - pelo acesso da lgica racionalista. O alcance do serto est na des-razo, pois
o espao das contradies, das ambivalncias e ambigidades, do provisrio constante e
do imprevisvel. preciso, portanto, para alcan-lo se pr na fronteira, posio que o
prprio ambiente sertanejo exige. Sua leitura s possvel mediante uma narrativa capaz
de captar sua dinmica hbrida e sincrtica, um dizer tambm fronteirio. Sendo assim,
recorremos filosofia, poesia e religiosidade popular a fim de focalizar o dinamismo
hbrido e sincrtico que suplanta a imagem do serto como um simples espao fsico.
Atual e irreverente, a perspectiva terica do hibridismo cultural consente, na
realidade ps-moderna, o vislumbramento de particularidades culturais veladas pelos
discursos nacionais. O avano tecnolgico e o fenmeno globalizador permitiram que
singularidades culturais at ento submersas se revelassem, desconstruindo e colocando em
xeque o discurso da uniformidade, a idia de que o ethos de uma nao nico. Neste
horizonte se coloca a cultura norte-mineira que resultou de condies histrico-sociais
especficas, portanto, possui suas particularidades. Para revelar o hibridismo cultural
sertanejo, recorremos aos seus poetas, que em momentos diferentes da histria norte-
mineira, retratam atravs da poesia a sofisticao da matutice sertaneja.
Essencialmente sincrtica, a Umbanda tem sofrido mutaes exigindo que suas
abordagens sejam contextualizadas. Sobre o constante processo de formao da Umbanda,
Assuno (2006, p.107) expe:
Do que vimos tratando sobre a formao e expanso da Umbandabrasileira, queremos retomar a partir da idia da Umbanda como umaconstruo dinmica inserida em um processo em constante formao,selecionando elementos religiosos de tradies diversas e reorganizando-os em novas formas de concepes de crenas e prticas rituais. Nesseprocesso, a Umbanda absorve os cultos regionais, difusos na cultura ereligiosidade popular e , por sua vez, assimilada por eles. Nas ltimasdcadas, tal processo tem sido denominado de umbandizao doscultos populares.
-
15
A noo de sincretismo religioso, ento, melhor se aplica religiosidade
umbandista no campo afro-sertanejo j que o processo de formao desta religio
constantemente sincrtico ao absorver no apenas noes universalizantes de outras
religies, mas, tambm os cultos regionais. Estes, naturalmente, retratam vises de mundo
locais. Neste sentido, utilizamos o Congado norte-mineiro como ponte ao universo afro-
sertanejo, uma vez que grande parte dos seus participantes so tambm integrantes da
Umbanda no serto.
O terceiro captulo versa sobre o processo de formao da Umbanda Sertaneja a
partir da dcada de 40, quando chegam regio os principais atores deste processo: os
sacerdotes Jos Fernandes Guimares, Waldemar e Laurinda Pereira Porto e Eliezer
Gomes de Arajo. A partir de fontes orais, registros em cartrios, artigos de jornais e
processos criminais, resgatamos a histria e a contribuio destes personagens na formao
da Umbanda no serto. exemplo do seu processo de povoamento, duas vertentes
umbandistas, uma do sudeste e outra do nordeste, se encontraram no serto norte-mineiro
na dcada de 40, chamando a ateno dos seus habitantes para mais uma alternativa
religiosa. A Umbanda no se restringiria mais a uma macumba4, pois se tornaria a partir da
dcada de 40 uma religio cada vez mais respeitada, principalmente em funo do trabalho
divulgador do sacerdote Jos Fernandes Guimares e da criao, no final dos anos 60, da
Associao Espiritualista Umbandista Folclrica dos Cultos Afro-Brasileiros do Norte de
Minas.
Na dcada de 50 o Candombl chega regio, sendo que no mesmo perodo o
serto recebe outros sacerdotes da religio e da Magia Negra, influenciando, desta forma,
com novos elementos, a prtica umbandista. Um fenmeno, ento, se inicia na dcada de
60: a insero no Candombl pelos sacerdotes de Umbanda. Junto a este acontecimento
cresce a presena das religies afro-brasileiras no serto que passam a possuir um
diferencial: Umbanda, Quimbanda e Candombl constituem um continuum religioso em
quase todos os terreiros e, em alguns, tal convivncia acena para a instituio de uma nova
lgica religiosa.
Para apresentar o campo religioso afro-sertanejo considerando, inclusive o
continuum citado, construmos trs organogramas tendo como referenciais: Jos Fernandes
4 Termo pejorativo usado para fazer referencia as religies afro-brasileiras que lidam com a magia.
-
16
Guimares, o casal Waldemar e Laurinda Pereira Porto e Eliezer Gomes de Arajo. Devido
s transformaes do prprio campo, sentimos dificuldades em levantar uma genealogia
que o retratasse tal como se encontra. Portanto, o que aqui apresentaremos retrata apenas
parte de uma totalidade, ou seja, aquela considerada pelos prprios adeptos como mais
relevante.
De posse da histria do campo afro-sertanejo - a partir da Umbanda -
apresentamos no quarto captulo os terreiros - j citados - que acreditamos serem retratos
deste campo religioso na atualidade. Desta forma, esta parte oferece a histria dos terreiros,
a origem de seus respectivos sacerdotes, o processo de afirmao e legitimao de suas
lideranas e as transformaes que sofreram no decorrer da construo de suas vidas
espirituais. Com o objetivo de facilitar a compreenso e o conhecimento dos terreiros,
fizemos a descrio de cada um deles pontuando os aspectos pertencentes Umbanda,
Quimbanda e ao Candombl. Um quadro com o calendrio de atividades de cada um dos
templos foi construdo a fim de proporcionar um panorama dos seus principais rituais ao
mesmo tempo em que demonstra a tendncia religiosa a que se inclinam. Dentre as
atividades dos terreiros, fizemos a narrativa de um de seus rituais, aqueles que ao nosso
olhar so referenciais no apenas no conjunto dos seus ritos, mas tambm no universo afro-
sertanejo. Os rituais foram apresentados em detalhes, a fala e os cantos das entidades e
sacerdotes foram mantidos em sua ntegra. Os detalhes expem claramente a tenso entre o
Bem e o Mal, questo axiolgica reveladora do ethos sertanejo.
No quinto captulo empreendemos uma anlise sobre a Umbanda Sertaneja.
Munidos do arcabouo histrico e terico nos debruamos sobre os terreiros mencionados,
bem como sobre seus rituais, retirando deles elementos hbridos e sincrticos presentes na
cultura sertaneja. Neste sentido, identificamos em seus rituais aspectos hbridos que
evidenciam as influncias do mundo globalizado ao mesmo tempo em que revelam
elementos denunciadores do ethos sertanejo. Como elemento principal destaca-se a tenso
entre o Bem e o Mal. A articulao axiolgica est presente na relao entre Umbanda e
Quimbanda - relao vislumbrada por ns como irmanao dos contrrios -, e na
coexistncia destas com o Candombl.
A trade, Umbanda, Quimbanda e Candombl acena para a institucionalizao
de uma nova religio. Foi detectado no imaginrio religioso dos adeptos onde a trade
uma realidade um deslocamento metafsico de carter espiritual, ou seja, uma nova viso
-
17
de espiritualidade e de mundo espiritual emergiu da coexistncia destas religies que
passaram a ser vistas como energias. Movimenta, alimenta e mantm o continuum
integrado um ser to hbrido e ambivalente quanto o serto, a personalidade - Exu. Presente
nas trs energias, Exu exerce em cada uma delas uma funo prpria ao mesmo tempo
em que se desdobra como elo e conexo. Situado na fronteira dos valores contraditrios
esta entidade, como veremos, manifesta e desvenda a personalidade do homem sertanejo.
Enfim, este estudo viabiliza a compreenso e a identificao do ethos norte-
mineiro a partir da prtica da Umbanda. Formado pelo fluxo de imprecises,
ambigidades, misturas e contradies, o serto norte-mineiro reproduz em seus universos
simblicos, em especial o umbandista, o ethos resultante da sua histria. A Umbanda
Sertaneja, nas relaes que mantm com a Quimbanda e com o Candombl , portanto,
produto cultural do carter oscilante e fronteirio presente nesta regio.
-
18
Captulo 01. O serto norte-mineiro
FIGURA 1: Representao da floresta prxima ao Rio So Francisco Fonte: COSTA, 2004, p. 91.
O senhor sabe: serto onde manda quem forte, com as astcias. Deus mesmo quando vier, que venha armado! (Guimares Rosa)
-
19
Neste captulo apresentaremos uma sntese histrica sobre a formao social do
serto norte-mineiro com o objetivo de proporcionar conhecimentos sobre esta regio.
Num primeiro momento, objetivamos ampliar conhecimentos histricos acerca da regio
relembrando seu povoamento e, num segundo momento, apresentamos alguns dos seus
aspectos culturais no intuito de colocar o leitor em contato com o universo sertanejo.
Acreditamos que a compreenso da Umbanda nele praticada passa pela compreenso da
histria da regio, o que certamente possibilitar entender o porqu desta religio possuir
particularidades que a tornam sertaneja. No h, portanto, no nosso entendimento, uma
perspectiva metodolgica mais adequada para se atingir esta finalidade do que a histrica,
uma vez que nos remete tambm s perspectivas econmica, poltica e social. Conceber
uma abordagem cultural que ignore as condies histricas originais da organizao social,
o papel do indivduo e as suas necessidades bsicas nos parecem impossveis.
O serto norte-mineiro estende-se por todo o norte do estado de Minas Gerais.
banhado pelos rios So Francisco, Jequita, Verde Grande, Gorutuba, Jequitinhonha, Rio
Pardo e Rio das Velhas. Situa-se prximo Bahia e com este Estado estabelece fronteira.
Pertence regio Sudeste, mas possui caractersticas semelhantes ao nordeste brasileiro,
sendo portanto, uma rea de transio. Sua vegetao nativa composta pelo cerrado e
pela caatinga - esta ltima predominante na regio nordeste - o clima tropical e semi-
rido com ndice pluviomtrico anual de 600/650 milmetros, o que explica o perodo de
seca com durao entre 4 a 8 meses. No que se refere ao relevo, grande parte deste
pertence Depresso Sertaneja do So Francisco que se estende at o norte do litoral
nordestino.
Sobre a regio norte-mineira, o economista Cardoso (1996, p. 04) afirma que,
[...] o Norte de Minas considerado como sendo uma Regio detransio entre o Nordeste e o Sudeste brasileiros, ou seja, uma reapertencente a um Estado do Sudeste, mas que possui inmerascaractersticas geo-scio-econmicas semelhantes quelas verificadasnas regies nordestinas. uma rea geogrfica que desde o seupovoamento nunca deixou de receber fortes influncias do Nordeste... ...Esta , na realidade, uma das regies do Estado [Minas Gerais] scio eeconomicamente mais carente, e que enfrenta maiores adversidadesclimticas.
Tais caractersticas, portanto, conferem ao norte de Minas maior proximidade
com o nordeste do que com o sudeste brasileiro e esta proximidade certamente se estende
-
20
dimenso cultural.
Historicamente, o estado de Minas Gerais conjugou dois plos distintos e
opostos: a regio aurfera, expresso histrica da civilizao mineira; e a regio dos currais
da Bahia (norte de Minas Gerais) onde se desenvolveu uma economia agro-pastoril que
expressa um modus vivendi sertanejo, diverso da tradicional cultura mineira. No entanto, a
tradio acadmica sempre se interessou mais pela rea mineradora. A importncia do ouro
para as economias mercantilistas de Portugal e Inglaterra nos sculos XVI e XVII
inquestionvel. No entanto, a quase exclusividade dos estudos relativos a esta rea talvez
tenha colaborado para o esquecimento acadmico do territrio extremo da capitania de
Minas Gerais: o serto norte-mineiro, o que talvez explique a pouca quantidade de estudos
referentes a esta regio. Muito recentemente que esta regio tem despertado o interesse
de investigadores ligados economia, antropologia e historiografia brasileira, sendo
ainda uma rea carente de estudos.
FIGURA 2: Serto de Minas Gerais e sua cidade Plo. Fonte: FONSECA, D. S. R, 2007.
-
21
De acordo com a literatura consultada5, o povoamento do serto norte-mineiro
est associado ao processo de interiorizao pela pecuria extensiva ao longo do So
Francisco e as bandeiras baianas e paulistas. Mas, para Sol (1991, p.1), h cerca de 10.000
anos grupos indgenas j habitavam o norte de Minas sobrevivendo da caa, pesca e
extrativismo. Posteriormente, surgiram outros grupos que, para seu sustento, praticavam
uma agricultura rudimentar. A chegada na regio de expedies no sculo XVI e XVII,
progressivamente, desagregou esta estrutura.
Sobre as primeiras expedies, Cardoso (1996, p. 12) nos informa que,
[...] ocorreram vrias expedies para o interior do pas, ficando estesculo XVI conhecido como o sculo do descobrimento. Desta poca,tem-se notcia das primeiras expedies a atingirem o Norte de Minasatravs do Rio So Francisco. A primeira foi aquela sobresponsabilidade de Spinoza Navarro em 1554. Posteriormente, vieramas Bandeiras de Sebastio Tourinho, em 1573 e de Gabriel Soares, em1590.
A primeira expedio a penetrar os sertes das Gerais foi a de Spinoza Navarro
que partiu de Porto Seguro. Sobre esta empreitada Vasconcelos (1974, p. 14) informa que
em carta datada de 24 de junho de 1555, um dos integrantes desta comitiva, Padre Joo
Navarro escreveu Provincial dos Jesutas: fomos at a um rio mui caudal por nome Par,
que, segundo os ndios informaram, o rio de S. Francisco. Parte deste rio banha o serto
norte-mineiro, a regio, portanto, ficou conhecida pelos colonizadores e, posteriormente,
denominada pelos historiadores como serto do So Francisco.
O serto do So Francisco foi um dos primeiros territrios a ser pisado pelos
colonizadores. No entanto, da expedio de Spinoza Navarro em 1553 do bandeirante
Matias Cardoso em 1690, no se tem registro da sua presena na regio. Apenas de ndios
nativos e ex-habitantes do litoral que vivia dispersos na regio, fugindo do controle
portugus, a esse respeito, Vasconcelos (1974, p. 16) coloca que:
Aqui se achavam ndios aldeados e hospitaleiros, ali nomadas e cruis,hoje, amigos, amanh, inimigos, inteligentes uns, e dceis, estpidosoutros, e ferozes, mas todos alarmados, impelindo-se uns contra osoutros, e pelo terror a fugirem diante da conquista. Aldeias seencontravam nas quais se falava a mesma lngua dos ndios da comitiva,viam-se a utenslios j imitados, e usava-se de anzis de ferro.Conhecia-se nelas o nome cristo do rio, e a confiana, com que
5 Apresentada na Introduo.
-
22
receberam o Padre, foi parte para se crer que j sabiam como nos jesutastinham benfeitores e amigos [...].
Aos ndios sertanejos se juntaram ndios domesticados6 que fugiam do litoral, e
brancos e mestios perseguidos pela justia. Aliados aos ndios do serto, estes se tornaram
elementos perigosos, pois inquietavam fazendas e as vilas do litoral, espalhando horror e
medo. Aps suas investidas rumavam de volta para o serto, onde no podiam ser
encontrados. Ao permanecer por mais de um sculo ausente da presena dos colonizadores,
que l no encontraram riquezas, o serto abrigava aqueles que fugiam do esquema
colonial portugus. No se submeter a Portugal numa terra, inicialmente inspita, tornava a
marginalidade7 um recurso necessrio.
A presena no serto norte-mineiro de bandos formados por marginalizados
pela ordem colonial que assolavam o litoral, levou o Governo-Geral a restaurar no sculo
XVII as bandeiras sertanejas. A inteno era que estas pacificassem a regio e
conquistassem o rio So Francisco, uma vez que este norteava os aventureiros no
adentramento ao interior. As bandeiras expulsaram bandidos e libertaram aldeias da sua
influncia, a exemplo dos vales do rio Jequita e Rio das Velhas. Nestes vales havia
brancos que habitavam os aldeamentos indgenas e com eles conviviam pacificamente. A
presena de brancos no serto, mesmo que poucos - mas fora do banditismo - interessava
Coroa, pois significava que, progressivamente, a regio estava sendo habitada.
A importncia das expedies na histria do norte de Minas incontestvel. As
comitivas expedicionrias do sculo XVII no apenas expulsaram os indesejveis, mas na
medida em que se embrenharam serto adentro deixaram como saldo a demarcao de
caminhos a partir do litoral, facilitando a interiorizao pela regio de outras expedies e
com estas o estabelecimento na regio das primeiras famlias. Anastasia (1983, p. 32)
afirma que, bandeirantes paulistas descobriram um caminho entre as Vilas de So Paulo e
o rio So Francisco e o denominaram de Caminho Geral do Serto, pelo qual entraram
serto adentro, conquistando ndios tapuias e alcanando Bahia, Pernambuco e Maranho.
O trnsito por esse caminho tornou-se to freqente que muitos bandeirantes o usaram para
transportar suas famlias e se estabelecerem s margens do rio dando incio ao povoamento
branco. Outro fator responsvel pelo traado das linhas do povoamento foi a presena do
6 Termo utilizado por Diogo de Vasconcelos em seu livro Histria Mdia de Minas Gerais.
-
23
gado baiano, que tornou o norte de Minas conhecido como os Currais da Bahia. O gado,
medida que se interiorizava, demarcava caminhos e guiava o homem mata adentro. Torres
(1944) afirma que, simultaneamente s entradas dos paulistas, fazendeiros baianos
empurraram seus gados pelo rio So Francisco e como conseqncia um caminho foi
traado ligando o litoral baiano s Minas.
Em relao povoao desta regio, os estudos ainda so incipientes e de, certa
forma, contraditrios, no que se refere s datas. No entanto, os autores consultados para
este estudo possuem um ponto em comum: a expedio do bandeirante paulista Matias
Cardoso de Almeida, foi a mais importante. A partir dela que se d a fundao dos
primeiros povoados. o que nos informam o economista Jos Maria Cardoso, os
historiadores Diogo de Vasconcelos, Carla Maria Junho Anastasia e o antroplogo Joo
Batista de Almeida Costa em estudos que empreenderam sobre a regio. De acordo com
Cardoso (1996, p.13) Matias Cardoso,
[...] desceu o Rio So Francisco em 1689, instalando-se em localdenominado Arraial do Cardoso. Neste local, Matias Cardoso esperoupor um ano o Coronel Amaro, que ali chegou acompanhado de 600homens. Aps quatro anos de campanha, em que grupos indgenas queali estavam estabelecidos foram massacrados e/ou transformados emescravos, os integrantes da expedio, [...] criaram povoados, e seestabeleceram na Regio como criadores de gado. Como exemplosdesses povoados pode-se citar: Matias Cardoso, primeiro da Regio,cujo nome homenageia o seu fundador; Barra do Rio das Velhas,posteriormente conhecido como Guaicu; Olhos dgua e Formigas, hojeconhecidos respectivamente como Bocaiva e Montes Claros, [...]; almde So Romo e Porto do Salgado (Hoje, Januria) [...].
Vasconcelos (1974, p.22) afirma que Matias Cardoso de Almeida fundou, s
margens do So Francisco arraial de seu nome, fixando assim a era definitiva da
conquista e que depois dos arraiais fundados por Ferno Dias, em caminho do pas das
esmeraldas, foi este de Matias Cardoso o mais antigo do nosso territrio.
Anastasia (1983, p.31) faz meno as bandeiras e entradas na regio, de acordo
com a autora,
Desde que se constituiu como economia bsica da Capitania de SoVicente a do apresamento dos ndios tapuias, foram organizadas paraeste fim, bandeiras e entradas. Foram responsveis por estas bandeiras,
7 Isto , o banditismo parecia ser a nica forma de sobrevivncia para aqueles que no aceitavam se sujeitarao sistema colonial.
-
24
transformadas em meados do sculo XVII em prescrutadoras de metaispreciosos, os formadores dos ncleos criatrios e comerciais do norte daCapitania de Minas Gerais.
e recorre Taunay (1948, apud ANASTASIA, 1983, p.32) para nos informar sobre o
bandeirante Matias Cardoso:
Os dois mais clebres destes criadores, donos de incontveis lguasquadradas foram Matias Cardoso de Almeida e Antnio GonalvesFigueira, grandes sertanistas, cheios de servios de guerra como jvimos. A muitos de seus parentes e amigos arrastavam para perto de si,tornaram-se fundadores de novos e grandes currais como naquele tempose dizia. Em torno de Antnio Gonalves Figueira [fundador do Arraialde Formigas, hoje Montes Claros] fixaram-se seu pai, irmos ecunhados. Tiveram colossais propriedades, sobretudo no Rio VerdeGrande.
Sobre Matias Cardoso, Costa (2003, p. 146) nos diz que,
Como um annimo, organizou uma bandeira e desde meados do sculoXVII empreendeu uma guerra contra os indgenas, para aprisionamentoe venda no mercado escravista paulista e baiano, e contra os quilombolaspara extermin-los [...].
[...] Ao retornar a rea do rio Verde Grande, Mathias Cardoso deAlmeida e seu grupo, formado por outros paulistas, indgenas e negrosescravizados, instalaram-se em seu arraial em construo. Entretanto, noh registro que precise a data desses eventos.
Em funo de suas vitrias como expedicionrio, este bandeirante conseguiu
junto ao Governo Geral o direito de tomar posse da terra.
At o momento podemos concluir que a gnese da sociedade norte-mineira est
intimamente associada pecuria extensiva, s margens do rio So Francisco e ao encontro
entre povos de etnias diversas que na regio conviveram praticamente isolados.
Apesar de a pecuria ter se expandido rapidamente, se consolidando como
atividade mais relevante, a minerao tambm contribuiu na ocupao do territrio norte-
mineiro. Encontrou-se ouro no rio Jequita, no rio Paracatu, rio Pardo (na poca rio das
Ourinas) e na cabeceira do rio Jequitinhonha. Da surgindo novas povoaes ao atrair
grande quantidade de baianos. O diamante tambm foi encontrado prximo cidade de
Gro Mogol. Cada vez mais habitado, no serto as povoaes surgiam dispersas e a
distncia entre uma e outra era considervel. A grande extenso do territrio e a ausncia
-
25
do aparato estatal continuava a atrair aventureiros, fugitivos da justia e negros
quilombolas. Sobre a presena de negros no serto, Costa (1999, p.12) coloca que indcios
histricos,
[...] nos aponta para a existncia de um conjunto de grupos negroslocalizados em margens de lagoas e rios que formam a bacia do rioVerde Grande, afluente da margem direita do rio So Francisco e que ase localizaram devido s condies que foram favorveis a queinstalassem formas alternativas de resistncia no contexto de domnioescravocrata ento vigente no pas. Recorrendo ao conceito histrico decampo negro, criado para dar conta das relaes estabelecidas entrenegros aquilombados e a sociedade que os circundava, postulo aexistncia de um campo negro no interior das matas do vale do rio VerdeGrande.
No desconhecido da historiografia brasileira que, economicamente, a
colonizao do nosso pas iniciou-se pelo litoral, onde a vigilncia da Coroa portuguesa era
intensa devido aos seus interesses econmicos. Regies que, aos olhos da Coroa no
ofereciam lucro imediato, eram ignoradas e, em funo deste descaso, a partir dos seus
prprios recursos naturais, procuraram se auto-sustentar. Foi o que aconteceu com o norte
de Minas Gerais. Mesmo sem o incentivo estatal, numerosos paulistas fundaram grandes
fazendas de gado no Vale do Rio So Francisco e enriqueceram-se beneficiados por dois
fatores:
- s margens do rio foram abertas no sculo XVI rotas terrestres. Mais tarde,
vias de acesso entre So Paulo e o interior e que se tornou um dos trs caminhos que
permitiam o trnsito para a rea mineradora8;
- localizao estratgica da regio que, geograficamente, se tornou centro de
intercmbio entre a rea mineradora e o nordeste e centro-oeste brasileiro.
Estas condies permitiram ao serto norte-mineiro, de acordo com Anastasia
(1983, p.37), [...] intermediar o fluxo de mercadorias, que envolveram tanto o setor
minerador da prpria capitania, quanto Bahia, Maranho, Gois e Mato Grosso e, ainda,
montar seus ncleos prprios de produo. Progressivamente, a regio se consolidou
8 Em relao ao caminho do rio So Francisco, Anastasia (2005, p.32) nos diz que este caminho era tambmchamado caminho geral do serto, comum a Bahia, Pernambuco, Maranho e outras regies [...].Diferentemente do Caminho Novo, no qual as roas eram elementos referenciais do trajeto, o caminho do SoFrancisco vinha pontuado de currais. Partindo das capitanias da Bahia, Pernambuco e Maranho, podia-sechegar por terra ao rio So Francisco, na altura do arraial de Matias Cardoso, seguindo pelas margens desterio at atingir o rio das Velhas. Era considerado o melhor caminho para transporte de criaes e escoamentode mercadorias, por ser mais plano, abundante em guas e bastante povoado em sua extenso.
-
26
como forte fornecedora das regies mineradoras, dando sustentao a esta atividade na
Capitania, principalmente Vila Rica, Diamantina e Sabar, e comerciando com as minas de
Gois, com o fornecimento de gneros alimentcios (carne, mandioca, arroz e acar),
couro e algodo. As relaes comerciais com as minas estimularam a produo e propiciou
a acumulao interna de capital. Anastasia (1983, p.45) reitera que,
O fluxo de mercadorias atravs do caminho do So Francisco naprimeira metade do sculo XVIII, para a regio mineradora, ainexistncia de atividades produtivas que no as de extrao do ouro narea mineratria e levando-se em considerao que a totalidade dosarraiais do norte de Minas tinham a pecuria e os gneros de subsistnciacomo base de sua economia, lembrando a baixa capitalizao daatividade pastoril, as facilidades para o desenvolvimento das lavouras eo alto preo que o gado e os demais gneros obtinham nas minaspermitem inferir a alta lucratividade dos criadores da regio, isto semlevar em conta os lucros da intermediao comercial, e uma significativaacumulao de capital norte-mineiro.
Enfim, no processo de ocupao da regio norte-mineira, que ocorreu via
criatrio de gado, minerao e, possivelmente, em algumas reas, a conjugao da
minerao com a agropecuria, a iniciativa foi particular em funo da necessidade de
sobrevivncia. Sendo assim, este processo no se deu segundo as caractersticas da poltica
metropolitana que, diante de uma rea a ser ocupada, montava um rigoroso aparelho
tributrio e fiscal. Sem o rigor tributrio, o excedente no serto norte-mineiro permitiu o
desenvolvimento de reas de domnio particulares onde a ordem que se estabeleceu foi a
privada. Como veremos isto causou grande incmodo ao governo portugus.
margem da dinmica colonial e da sua ausente mquina administrativa9, mas
realizando uma prtica econmica independente, ao se dedicar nesta dimenso ao
abastecimento interno da colnia, o norte-mineiro desenvolveu formas autoritrias de
dominao interna. Como exemplo, a criao de uma moral prpria na resoluo dos
problemas, principalmente em relao segurana de suas terras e de suas famlias,
defendendo-as dos aventureiros que circulavam livres pela regio. Este modelo de
autoritarismo estruturou o serto norte-mineiro como um reduto da ordem privada. Os
grandes proprietrios, atravs de uma moral poltica prpria, detiveram o controle do
9 O poder estatal lusitano dedicava-se especialmente as reas includas no circuito direto do capital mercantil.Excludas deste circuito, algumas reas ficaram a margem do predomnio do poder pblico o que facilitouaos proprietrios de terras a dominao interna.
-
27
excedente, resultante das atividades agro-pastoris e comerciais, concentrando, desta forma,
riqueza e poder.
Anastasia (2005), em sua obra A Geografia do Crime: Violncia nas Minas
Setencentistas, dedica metade de um dos captulos ao serto do So Francisco, que, para a
autora, junto Comarca do Rio das Mortes era Terra de Ningum10. Segundo ela, dizia-se
desta terra, parte integrante da comarca do Rio das Velhas, que era lugar onde nunca havia
conhecido rei. Sobre os proprietrios de terra nesta obra a autora (p.69) afirma:
A riqueza desses grandes proprietrios, aliada ausncia de autoridadesnaquela rea, exceo do Juiz de rfos de So Romo e alguns poucosjuzes de vintena, permitiu a consolidao de territrios de mando dospotentados e trouxe, conseqentemente, a dificuldade para controlar opoder desses patronos e a violncia, derivados da baixainstitucionalizao poltica da rea.
O Estado portugus, ento, frente atuao de um poder privado, empreendeu
tentativas para destru-lo e, por conseguinte, conquistar o poder local. Martins (1973, p.22),
referindo-se estrutura de povoamento no Brasil, nos coloca que o sistema colonial
portugus sempre procurou impedir o aparecimento de um sistema de produo dirigido
para o mercado interno. E, simultaneamente, procurou obstaculizar a formao de estratos
intermedirios capazes de produzir alteraes no binmio senhor escravo. O sistema
colonial portugus, atravs de sua mquina administrativa, acionava formas de represso a
fim de evitar que surgissem em suas colnias o autoritarismo e relaes de dependncia
internas que no lhe fossem prprias. As revoltas insurgidas na rea mineradora no sculo
XVIII11 exemplificam tal preocupao na medida em que as represses a estes movimentos
ocorriam com alto grau de violncia. Antes destas, medidas legais tambm faziam parte da
represso. Uma das medidas causou o levante de motins na regio norte-mineira.
Na terceira dcada do sculo XVIII, em Minas Gerais, o poder pblico, atravs
da taxa de capitao, procurou evitar fraudes, contrabandos e descaminhos do ouro.
Especialmente em relao ao serto agro-pastoril do So Francisco, o objetivo principal era
desmantelar o poder privado, exercido pelos potentados e colocar sob o domnio do estado,
10 No conhecemos a fonte da autora que a levou a esta denominao, mas podemos afirmar que pelaoralidade do serto norte-mineiro, at a dcada de 70 do sculo XX, era possvel ouvir esta referencia aonorte de Minas: Terra de Ningum ou Mundo de Deus sem Cancela.11 Guerra dos Emboabas, Revolta de Felipe dos Santos, Inconfidncia Mineira.
-
28
a regio. Mas, quais medidas a tomar, especialmente em relao regio? Melo e Souza
(1999, p.86) indaga:
Como introjetar o poder e as normas nas lonjuras do serto? Comoenquadrar os potentados, contornar o desejo de mando das CmarasMunicipais, ordenar a populao heterognea composta de vrias gamasde mestios, conter a violncia sempre represada do contingenteescravo?
Ciente da dificuldade em enquadrar a regio no seu aparelho tributrio - em
funo da distncia entre esta e a sede da provncia, da imensa extenso do serto e do fato
deste ter se desenvolvido longe dos seus olhos - a Coroa portuguesa tomou medidas
flexveis12 se comparadas rea mineradora. Entretanto, a flexibilidade do estado
portugus no convenceu aos senhores dos potentados, acostumados liberdade de
dominar segundo seus interesses13. Uma das medidas era a presena na regio do
comissrio Andr Moreira de Carvalho que alm de fazer valer a cobrana da taxa de
capitao, deveria conscientizar a populao sertaneja, acostumada liberdade, de que o
poder supremo era o da Coroa.
O mal-estar, gerado pelo estabelecimento de uma autoridade, ocasionou um
levante na regio: a sedio de 173614 na cidade de So Romo, mas que compreendeu
vrios motins pelo serto, entre eles o de Montes Claros. Esta revolta pode ser vista como
uma tentativa de manuteno da ordem privada e de reteno do excedente. Os grandes
proprietrios de terra resistiam a serem incorporados na poltica administrativa, implantada
na capitania, tentando escapar da fiscalizao. Certamente, entendiam que seu sucesso
econmico e seus potentados rurais foram possibilitados pela quase inexistncia do poder
pblico na regio. Este, no incio do sculo XVIII, antes da sedio, tentou impedir a
circulao no caminho do So Francisco, no intuito de evitar o contrabando e garantir a
cobrana de impostos. No entanto, a relevncia desta via de acesso s Minas tornou a
12 Vide Carla Maria Junho Anastasia (1983).13 Entre as disposies especiais para a taxa de capito no Norte de Minas Gerais, pensamos ser estas as quemais incomodaram dos donos de terra: - o comissrio deveria exercer rigorosa vigilncia para que nohouvesse a possibilidade de fuga dos moradores e / ou escravos, ao tempo do pagamento, atravs do Rio SoFrancisco para a regio do Carinhanha, Brejo do Salgado, Urucuia, Paracatu e Caminhos de Gois; - oComissrio tinha autorizao para prender e enviar para a cadeia de Sabar qualquer pessoa que resistisse acapito. ( Anastasia, 1983, 59)14 Mais detalhes sobre essa revolta, ver dissertao de mestrado em Cincia Poltica de Carla Maria JunhoAnastasia, 1983.
-
29
tentativa da Coroa, frustrada. Restava ento instalar, na regio seu representante legal para
fazer valer seus direitos de metrpole.
Vrios motins eclodiram, culminando na Sedio de So Romo. Segundo
Anastasia (1983, p.84),
Em 1736, eclodiu no serto do So Francisco uma srie de motins contraa cobrana da taxa de capitao, sistema de cobrana do quinto queconsistia em um imposto per capita, isto no pagamento anual de umaquantia fixa, calculada em oitavas de ouro sobre cada escravo,empregado nas diversas atividades econmicas da capitania. Osmoradores do serto que no haviam, at ento sido tributados, aexceo do dzimo da Ordem de Cristo, levantaram-se contra a cobranado novo imposto [...].
[...] Esses motins foram, no incio, liderados pelos grandes potentados doserto, que no conseguiram ao longo do processo, controlar as camadasmais baixas da populao, tambm participantes do movimento. Osmotins no serto explicitam a existncia dessas zonas de non-droit, ondea exacerbao da violncia era regra.
A sedio foi reprimida violentamente, contando a Coroa com o apoio de
alguns proprietrios que temiam o descontrole e a violncia dos motins, cada vez mais
populares. Apesar da ameaa do poder oficial, o receio de perder o controle sobre o povo
causava maior preocupao.
Com relao sedio a Coroa foi intransigente:
- conseguiu acabar com os motins;
- aprisionou seus lderes, entre eles a lendria Maria da Cruz,
potentado que resistiu ao controle portugus;
- e estabeleceu o serto como zona fechada ocupao.
Intransigente, mas no certeira. Mesmo usando da violncia, que sempre
caracterizou sua posio diante das sublevaes, a Coroa no destruiu o poder rural. Os
potentados permaneceram. Segundo Anastasia (2005, p.36), a demarcao das reas
proibidas e a tentativa de controlar a constituio de territrios de mando nos sertes no
surtiram resultados. Na verdade, ao determinar o norte de Minas Gerais como zona
proibida, a Coroa estimulava a ao de desbravadores clandestinos na regio e,
conseqentemente, a presena de aventureiros, contrabandistas, fugitivos da justia e
quilombolas. Como visto anteriormente, eram estes os responsveis pelo clima de
instabilidade na regio. Cada vez mais crescente o mandonismo bandoleiro, aps a
Sedio, tornou o serto ainda mais violento.
-
30
Em 1766, as investidas agressivas aos sertanejos chamaram a ateno do rei de
Portugal, D. Jos I. Atendendo s queixas dos moradores da capitania sobre as aes dos
malfeitores, o monarca portugus determinou que os moradores do territrio sertanejo
estabelecidos longe das povoaes se mudassem para estas. Sua inteno no era assegurar
os que viviam dispersos, mas, sim, evitar que estes continuassem a exercer o mandonismo
bandoleiro, causa do clima de insegurana e terror dos sertanejos. Outra medida tomada
por D. Jos I que reforava o poder dos proprietrios de terras e escravos, foi de conceder
aos roceiros o direito de prender todos os homens encontrados dispersos nos caminhos e
embrenhados nas matas do serto. Aqueles que se recusassem a se estabelecerem nas
povoaes seriam vistos como bandidos e punidos com rigor. A Coroa, sem condies
estruturais para moralizar a regio norte-mineira, concedia essa funo a outrem.
Legitimados pela Coroa, os proprietrios rurais passaram a exercer o poder com a mesma
pretenso de antes: garantir seus potentados e o controle sobre o excedente que os
enriqueciam.
No incio do sculo XIX, a violncia era uma realidade incontida, Anastasia
(2005, p.85) coloca que.
Mas, como j se mostrou, ainda no incio do sculo XIX, todas asmedidas para conter os perigos previsveis e imprevistos naquela regiose mostraram infrutferas e as autoridades e moradores continuavam aenfrentar o mandonismo bandoleiro e a violncia incontida nos sertesdo So Francisco.
A Sedio de 1736, segundo Machado (1991, p.41), marcou o fim do domnio
econmico sertanejo em relao rea mineradora. As restries impostas pela Coroa e o
estabelecimento de novas rotas comerciais ligando Minas a outras regies, originou um
processo de crescente isolamento do norte de Minas, que s foi totalmente rompido em
meados do sculo XX. Em funo do isolamento o sertanejo, frente ao desinteresse estatal,
buscou condies autnomas para atender suas necessidades, estabelecendo, desta forma,
intensas relaes comerciais com Gois e Nordeste.
margem dos interesses metropolitanos, no sculo XIX, o norte de Minas
recebe um grande contingente populacional proveniente da decadncia da rea mineradora.
Os novos habitantes, pela pecuria e pela minerao de diamantes, se integram na
dinmica econmica e social do serto. Ao voltar-se para si, a regio norte-mineira passa a
explorar efetivamente seus recursos naturais. Alm dos artigos derivados do boi, como o
-
31
couro, o sertanejo dedica-se atividade algodoeira e extrao do ltex. Sobre o algodo
nos diz Cardoso (1996, p.35),
A expanso algodoeira, segundo Stralen, provocou um crescimento maisacentuado de Montes Claros, na medida em que motivou a intensificaode suas relaes comerciais tanto com a Bahia quanto com o Centro deMinas Gerais. De fato, pode-se dizer que at mesmo o preldio daexperincia fabril da referida localidade, esteve, em grande medida,relacionado tradio algodoeira.
O perodo algodoeiro no favoreceu apenas Montes Claros. Em Pirapora, a
Companhia Cedro Cachoeira implantou um depsito de compra de algodo e venda de
tecidos. Outro produto explorado e que trouxe mais gente para a regio foi a borracha. A
extrao de ltex, prximo ao municpio de Januria, atraiu, a exemplo da Amaznia, um
grande contingente de pessoas, em sua maioria, os nordestinos.
Concordamos com Cardoso (1996, p.31), quando este afirma que se faz
necessrio empreender uma anlise mais pontuada das implicaes do isolamento norte-
mineiro a fim de compreender detidamente suas conseqncias polticas, econmicas e
sociais. Entendemos como o autor, que tal isolamento influiu na determinao de algumas
caractersticas econmicas, sociais e polticas que a regio veio a evidenciar no futuro
Acreditamos tambm que entre a Sedio de 1736 e os anos 50 do sculo XX o isolamento
e o descaso do Estado reforaram as relaes sociais, sendo estas fundamentais para o
desenvolvimento de um modus vivendi prprio da regio, como tambm afirma o
antroplogo norte-mineiro Joo Batista de Almeida Costa (2003, p.295),
Enquanto na regio das minas gerais a explorao do ouro e a ampliaodo escopo administrativo colonial propiciam estabelecer uma sociedadecomplexa, com diversificao das funes urbanas e a gnese de umaestratificao social, no norte sertanejo o chamado isolamento do sertosanfranciscano torna propcio a consolidao de uma sociedadedistintamente hierarquizada, possibilitando a instaurao de dinmicassociais especficas pela ausncia da administrao colonial, que a se fazpresente apenas em momentos de tenses sociais.
Nas primeiras dcadas do sculo XX, a implantao da ferrovia inicia a quebra do
isolamento cortando o territrio norte-mineiro, e as cidades de Montes Claros e Pirapora
tornam-se entrepostos comerciais. Montes Claros, por sua localizao geogrfica (localiza-se
no centro da regio), passa a ser o principal centro poltico. Com a ferrovia e a poltica de
-
32
desenvolvimento pela industrializao centralizada inicialmente em So Paulo e,
posteriormente, espalhando-se por outros centros, desenvolve-se na regio relaes capitalistas
de produo, deflagrando um lento processo de desarticulao da organizao produtiva. At
ento, historicamente, podemos afirmar, do ponto de vista econmico e demogrfico, que as
influncias baiana e nordestina eram dominantes. Com o sistema ferrovirio as relaes com o
Rio de Janeiro, Belo Horizonte e So Paulo intensificaram. A ferrovia integra o norte de Minas
na dinmica econmica do pas e, progressivamente, as relaes sociais de compadrio,
desenvolvidas durante a era dos potentados, foram desarticuladas. Apesar de lento, o processo
de modernizao da regio se inicia para, efetivamente, ocorrer nos anos 60, com a integrao
do territrio rea mineira da Sudene15.
Como dito anteriormente, evidente a semelhana entre as caractersticas do
nordeste brasileiro e o norte de Minas. A semelhana se estende aos planos econmicos e
sociais. Segundo documento datado de 1970, da ASPAS16, a estrutura produtiva, os
costumes e hbitos, a origem da populao e as partes fsica e ecolgica do territrio norte-
mineiro so indicadores do subdesenvolvimento comuns ao Nordeste. crena entre os
norte-mineiros que tal semelhana influenciou na admisso da regio rea da Sudene.
Mas no nos deteremos nesta questo, considerada polmica pelos economistas e cientistas
sociais. Para este estudo, o que nos interessa que as condies climticas e sociais do
territrio norte-mineiro no foram ignoradas, por ocasio da sua incluso na rea da
Sudene, demonstrando a associao entre este territrio e o nordeste brasileiro.
Com a Sudene, a vida do sertanejo apresentou alteraes: ampliaram-se as
relaes com o centro-sul, instalaram-se na regio condies estruturais para a reproduo
capitalista e, certamente, houve modificaes nos aspectos sociais, econmicos e culturais.
Abrir-se ao novo, sem por ele ser influenciado e no influenci-lo, parece-nos impossvel.
A ao industrializadora da Sudene, que incentivou a construo de um plo industrial em
Montes Claros e a instalao de grandes projetos agropecurios na regio, a exemplo da
Jaba, demandou a desarticulao de relaes sociais no campo. O processo de
industrializao provocou uma exploso demogrfica. Neste perodo, cidades como
Montes Claros, receberam milhares de sertanejos. Desagregadas no campo, as relaes so
15 SUDENE. Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste. Com a Sudene surgem as condies paraque progressivamente a industrializao se desenvolva.16 Assessoria Para Assuntos da SUDENE.
-
33
reafirmadas na cidade, na medida em que os sertanejos, que para l se mudavam, atraam
tambm seus parentes.
Nos ltimos trinta anos o norte de Minas experimentou um crescimento
assustador. A industrializao, urbanizao e modernizao da regio provocaram um
intenso crescimento populacional que se reflete em seus universos culturais cada vez mais
modernos, bem como na questo social, com a concentrao de riqueza nas mos de
poucos. Os potentados rurais foram substitudos por potentados agroindustriais, e o
sertanejo, apesar de ter perdido muito da sua matutice em funo da modernidade, ainda
sofre com a presena dos grandes latifndios. Apesar das transformaes prprias do
mundo globalizado, alguns aspectos culturais do universo sertanejo foram mantidos, sendo
identificados e assimilados como prprios desta cultura.
1.1.Vislumbrando a cultura norte-mineira.
Deus ensinou o caminho, o Diabo, o desvio.Ento bra o bco. (Ditado sertanejo)
sabido que o homem desenvolve hbitos, modo de vida e viso de mundo
conforme a histria, o tempo, o espao geogrfico, a fauna e a flora em que est inserido.
O homem norte-mineiro tambm desenvolveu costumes vitais relacionados ao seu contexto
histrico-geogrfico.
Neste sentido, tentaremos traar alguns aspectos prprios do serto das Gerais
que muito nos auxiliaro no vislumbramento do ethos norte-mineiro. No nos possvel
consumir todo o assunto. Sendo assim, nos restringiremos apenas a aspectos considerados
comuns e que de, alguma forma, esto relacionados aos rituais da Umbanda Sertaneja. No
entanto, pensamos ser necessrio um estudo que se aprofundem mais sobre o modo de vida
norte-mineiro. Ao nosso olhar, este tem chamado mais a ateno das narraes folclricas
voltadas para o resgate de uma identidade tida como perdida no tempo, do que de
investigadores que poderiam colaborar na elucidao da sua histria e sua identidade.
No imaginrio social brasileiro, Minas Gerais uma realidade vinculada ao
ouro colonial. A imagem mental daquele que invoca seu signo a de uma paisagem
composta por montanhas e cidades histricas. No entanto, esta imagem no se aplica ao
serto norte-mineiro. Esta regio requisita um outro signo. Sua imagem est associada aos
-
34
Currais da Bahia, a pecuria, aos fazendeiros, ao clima quente, poeira solta, ao chapu de
couro que protege o vaqueiro solitrio tocando a boiada. De acordo com Costa (1997, p84),
o homem sertanejo organiza seus modos de comportamento, sua reproduo, suas crenas
e lendas numa cosmoviso marcada pela presena do boi. Guimares Rosa (1978, p.216),
ao tentar diferenciar as regies mineiras disse o seguinte sobre o norte de Minas: O Norte,
sertanejo, quente, pastoril, um tanto baiano em trechos, ora nordestino na intratabilidade
das caatingas e calcrio, ameno, aberto alegria de todas as vozes novas.
Ao entrar em contato com a histria e a cultura norte-mineira, entendemos o
fascnio causado pela obra de Guimares Rosa (1985) que, poeticamente, retrata a regio e
o sertanejo. Para falar do serto faz-se necessrio colocar-se no prprio serto, numa
atitude quase metafsica. A imagem deste espao cega os olhos de quem intenciona
descrev-lo mediante uma linguagem simples e didtica. Descrev-lo mergulhar em si
mesmo, buscar em si impresses sobre uma realidade quase indecifrvel pela linguagem
convencional. Talvez, por isso, Guimares Rosa se colocasse em Riobaldo17 que, ao falar
de si, fala do serto e ao falar do serto fala do sertanejo. A existncia individual retrata a
existncia de um territrio que mais que uma regio a morada, o modo de vida, o serto
espao mtico que traduz a vida de quem nele vive. Quando se refere ao seu universo, o
sertanejo demonstra uma atitude quase religiosa de admirao, respeito e esperana, parece
falar de um ser que no tem existncia prpria, pois, para isso, necessita do seu sentimento,
do seu pensamento e da sua linguagem. O serto vida na boca do seu morador, o que
possvel de se entender, pois, deste universo retira a sua sobrevivncia, estabelece relaes
consigo mesmo, com o mundo, com os homens e com o transcendente.
O isolamento imposto, o fato de contar consigo mesmo durante dcadas
desenvolveu no norte-mineiro uma viso de mundo nos quais os valores so expressos no
seu modo de ser, de pensar e de falar, isto , na sua condio humana que revela seu estilo
de viver e sobreviver. Para Bosi (1992, p.27), a condio traz em si as mltiplas formas
concretas da existncia interpessoal e subjetiva, a memria e o sonho, as marcas do
cotidiano no corao e na mente, o modo de nascer, de comer, de morrer e ser sepultado.
O territrio norte-mineiro visto pelo sertanejo como terra de gente rude e corajosa, de
camarada valente e sem medo onde a lei maior a de quem pode mais: a daquele com
maior fora fsica e com maior proteo espiritual a fim de ter condies de viver a
17 Personagem sertanejo.
-
35
Condio Sertaneja.
H, claramente, na histria da regio norte-mineira a existncia de uma tenso
entre o bem e o mal. De acordo com Brito (2007), esta tenso produz uma viso de mundo
assentada nos contrrios, valores filosficos, lingsticos e religiosos em tenso produzem
contrrios. A religio diz: deve-se crer na bondade de Deus, no serto tal afirmao quando
no se transforma em dvida ou num problema pode ressoar como contrria, isto , o
sertanejo confia sim na bondade divina, mas desconfiando. A distncia entre Deus e o
sertanejo parece ter o tamanho da imensido do serto e sua dura realidade: numa terra
onde nem mesmo Deus parece habitar, sobreviver uma preocupao imediata e a
violncia se legitima. A tenso entre o bem e o mal est nas palavras do sertanejo de Rosa:
Deus quando vier que venha armado, ou seja, nesta terra, a moral existente a do
sertanejo. Para este, Deus mostra o caminho e, o Diabo o desvio. No sendo possvel optar
por um ou por outro, se esgueire pelo serto, ou seja, sobreviva. H, portanto, o conflito
entre bem e mal, e este conflito se revela no universo umbandista sertanejo atravs de
figuras como de Exu, Escora e Pomba-gira. Na verdade, todos estes elementos so Exus,
mas o Escora o Exu amigo que defende que d segurana e abre caminhos pelas matas do
progresso. A Pomba-Gira, vulgarmente vista como elemento ligado luxria, no serto
pode unir casais, defender casamentos, manter a harmonia no lar. A viso de Exu confirma
que o sertanejo convive numa harmonia instvel, no serto o homem se v como nos diz
Brito (2007) peregrino, contingente, limitado e poroso ao diablico e ao divino.
O norte-mineiro um tanto baiano, um tanto mineiro, nem um, nem outro,
talvez baianeiro cansado como denominado pelos mineiros do sul o que demonstra que a
fronteira no apenas geogrfica. Lingisticamente, o norte-mineiro se aproxima mais do
baiano, sua forma de falar morosa, quase baiana. No seu vocabulrio palavras e termos
como trem, trem doido, troo, o conhecido uai, prprio do Estado mineiro, Ar
Maria e Aff Maria, prprio dos nordestinos esto presentes no cotidiano. No que se
refere personalidade, o norte-mineiro no ensimesmado e nem to desconfiado, como o
mineiro. aberto, franco, extrovertido e recebe os visitantes com fartura. Mas tambm no
ingnuo. Diz o ditado que sertanejo baianeiro d uma boiada para entrar na briga, e se
perder parte para a violncia. Levar desaforo para casa, s morto.
A natureza do serto generosa e a ela que seu morador recorre para suprir a
falta de alimento. Desta forma, utiliza recursos de origem vegetal como o pequi, que
-
36
substitui a carne, o buriti, a cagaita, o coco macaba, o araticum e a mangaba, que so
empregados na alimentao; a madeira de lei para a construo de currais, cercas, cancelas,
esteios, telhados, mveis para a casa, esculturas, etc. a terra lhe oferece o feijo, o arroz, a
mandioca, o milho, a mamona, o maxixe, o algodo, a cana-de-acar, alm da melancia,
do quiabo e da abbora. Em funo da seca, o gado ainda criado na solta aproveitando o
mato do serto como alimento. Os conhecimentos indgenas e quilombolas sobre as ervas
medicinais presentes na flora do serto so responsveis entre os sertanejos, pelas famosas
garrafadas 18 e pela presena ainda comum na regio do raizeiro19 e/ou benzedeira. Estes
elementos, que verificamos como caractersticos no modo de vida sertanejo, podem ser
identificados no seu universo religioso, especificamente neste estudo, no umbandista.
Enfim, traamos brevemente a histria do serto norte-mineiro desde seu
povoamento e pontuamos alguns de seus aspectos culturais. Resumidamente, determinadas
questes devem ser consideradas para melhor compreenso deste mundo cultural,
especificamente o religioso:
- seu povoamento se deu a partir da conjugao de lgicas culturais
diferenciadas.
- sua localizao geogrfica e o isolamento portugus favoreceram a prtica
da violncia e o surgimento de uma ordem privada;
- o gado, tambm responsvel pela sua interiorizao e principal personagem
econmico, se tornou elemento primordial para formao de uma sociedade
tipicamente sertaneja e de uma economia independente;
- o isolamento sugere a criao de uma cultura especfica e diferente, em
relao rea mineradora e prxima ao serto nordestino.
- as condies climticas semelhantes ao nordeste brasileiro, muito
possivelmente foram responsveis pela sua incluso na rea da Sudene;
- integrada na dinmica do centro-sul, via Sudene, recebeu mais influncias de
outras regies.
O serto, enfim, um mundo misturado onde o arcaico e o moderno se
combinam, se entrelaam provocando ambigidades e ambivalncias. Assim Guimares
Rosa (1985) o desvenda, como um mundo hbrido que procurou situar nas falas de
18 Mistura de ervas medicinais com bebida alcolica. Dependendo da erva, recomendada pelos raizeirospara a cura de males como pedra nos rins e at mesmo para o aborto.19 No Mercado Central da cidade de Montes Claros a presena do raizeiro comum.
-
37
Riobaldo e na cultura que este expressa: O serto do tamanho do mundo (p.68), Lhe
falo do serto. Do que no sei. Um grande serto! No sei. Ningum ainda no sabe
(p.93), Serto o penal, criminal. Serto onde homem tem de ter a dura nuca e mo
quadrada (p.102), Serto, - se diz -, o senhor querendo procurar, nunca no encontra
(p.356), O serto no tem janelas nem portas. E a regra assim: ou o senhor bendito
governa o serto, ou o serto maldito vos governa... (p.462). A sntese histrica, aqui
apresentada sobre a formao social do norte de Minas, nos desafia a empreender uma
anlise scio-cultural sobre a regio, com o objetivo de compreender melhor o ethos
sertanejo. No entanto, nossa pretenso no discutir a identidade em si20 do norte-mineiro.
O que pretendemos demonstrar que pela Umbanda, religio presente na regio, possvel
identificar elementos do ethos norte-mineiro, ethos este evidenciado em aspectos culturais
sertanejos presentes em seus rituais, relaes sociais, linguagem, vestimentas, identidade
de suas entidades, comidas e cantos. Para tanto pensamos ser necessrio nos deter
analiticamente sobre este territrio. Com este propsito, no captulo seguinte enfocaremos
a dinmica hbrida e sincrtica do serto.
20 Discusso feita pelo antroplogo sertanejo Joo Batista de Almeida Costa em tese de doutoramento.
-
38
Captulo 02. Hibridismo e sincretismo no serto norte-mineiro
Uma fronteira no o ponto ondealgo termina, mas, como os gregos
reconheceram, a fronteira o ponto a partir doqual algo comea a se fazer presente.
(Martin Heidegger, Construir,Habitar, Pensar).
Devemos dar mais ateno apalavras como misturas, confuso,
combinao e outras mais, que designamaquilo que verdadeiramente necessrio
conhecer: os interstcios e assimultaneidades ou, como tenho afirmado no
meu trabalho, as relaes (Roberto daMatta).
A partir dos conceitos de hibridismo e sincretismo teceremos reflexes sobre o
universo cultural norte-mineiro. Para tanto, esclareceremos o porqu da utilizao de tais
conceitos, aproximando-os da dinmica cultural sertaneja, recorrendo a autores
considerados aptos para nos subsidiar nesta empreitada. Contudo, no nos privamos dos
riscos de uma anlise independente, lanando assim, mo da filosofia, da poesia e da
religiosidade congadeira no intuito de proporcionar o vislumbramento do serto como um
cenrio cultural hbrido e sincrtico. Notadamente, nos dedicamos mais explicitao da
dinmica hbrida e menos sincrtica. O que nos levou a esta escolha metodolgica foi o
fato da perspectiva hbrida ser recente, inovadora e, de certa maneira, polmica, exigindo
desta forma, no apenas uma apresentao, mas, sobretudo, uma reflexo. J o sincretismo,
uma noo largamente utilizada e amplamente discutida, dispensando maiores
explicaes. Apesar deste conceito ter sido tradicionalmente revestido de pr-juzos que o
aproximavam de binmios culturais, como o de Superior-Inferior, recentemente, sua
desmistificao comprova que o mais apropriado nas abordagens de religies sincrticas.
Como explicitado no captulo anterior, notria a presena do sincretismo
cultural na formao social do serto norte-mineiro. O isolamento durante sculos de
pessoas provenientes de diversas etnias, numa regio inspita, muito possivelmente causou
o surgimento de um modo de vida local e diverso. Este modus vivendi, certamente, se
-
39
refletiu e ainda reflete em seus sistemas culturais. Nos ltimos cinqenta anos, a exemplo
de quase todo o planeta, a regio sertaneja tem experimentado grandes transformaes em
funo do processo de mundializao. Neste processo, culturas locais antes ignoradas tm
se revelado. A perspectiva terica que recentemente tem se projetado como a mais
adequada na anlise de singularidades culturais, desvelando-as para o conhecimento de
todos, o conceito de hibridismo cultural. Da sua escolha, neste estudo, para refletir sobre
a cultura norte-mineira, na atualidade.
Quase simultaneamente s transformaes ocasionadas pelo processo de
mundializao a Umbanda chega regio. medida que, a cultura norte-mineira se
distancia da tradicional matutice sertaneja, provocada pela urbanizao e modernizao, no
universo umbandista tambm se verificam transformaes dinmicas em movimentos de
adequao cultura local e de recepo de novos elementos culturais. Desta forma, o
conceito de sincretismo religioso nos parece ser o mais apropriado na anlise da Umbanda
Sertaneja, uma vez que alm deste processo dinmico, a Umbanda , naturalmente,
sincrtica. Reconhecemos que para um leitor desavisado, hibridismo e sincretismo parecem
dizer a mesma coisa. No desconsideramos a identificao entre estes conceitos. Para ns a
justificativa para us-los de maneira diferenciada se encontra no tempo. A noo de
hibridismo cultural melhor se aplica quando direcionada a reflexes sobre identidades no
mundo ps-moderno e globalizado, mundo de trocas e de fronteiras cada vez mais fluidas;
j o conceito de sincretismo religioso, aplicado a uma religio originria e essencialmente
sincrtica como a Umbanda, tem a funo de subsidiar explicaes sobre reaes ocorridas
nesta prtica religiosa diante das transformaes no serto provocadas pela globalizao.
Estes conceitos se tornam interessantes, pois, ao fugirem das abordagens
tradicionais que ao nosso olhar demonstram ser insuficientes ao no considerarem o
diferente, desvelam singularidades culturais historicamente desconsideradas. Estas
perspectivas, se colocam como adequadas no estudo de culturas e religies locais, na
medida em que focalizam o dinamismo espacial, presente nesses universos ativados pela
interao, integrao, afirmao e negao de elementos culturais diversos. Tal dinamismo,
tradicionalmente, foi considerado como produto dos processos de aculturao e
enculturao. No entanto, a concepo de tais processos ignora a complexidade da dialtica
cultural, real responsvel pelo que se denomina de cultura.
Bosi (1992, p.16), apresenta cultura como conjunto das prticas, das tcnicas,
-
40
dos smbolos e dos valores que se devem transmitir s novas geraes, para garantir a
reproduo de um estado de coexistncia social. Este significado reitera, o autor, o mais
abrangente e se conserva at os nossos dias. Embora inicialmente, este significado traduza
cultura como algo simples e pouco dinmico, Bosi empreende uma reflexo sobre a
terminao urus em culturus, que para ele enforma a idia de porvir ou de movimento
em sua direo e que nas sociedades densamente urbanizadas, cultura foi tomando
tambm o sentido de condio de vida mais humana, digna de almejar-se, termo final de
um processo cujo valor estimado [...] por todas as classes e grupos. Nestas sociedades,
portanto, cultura vista como ideal de status e nesta perspectiva aparece em Roma,
relacionada Paidea. De toda maneira, cultura supe um acordo coletivo que, sendo
produtivo, desentranha da vida presente os projetos para o futuro. Permanece em seu
significado a idia de porvir, de posteridade, que tambm esteve presente na Renascena e
na r