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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Daniel Dalmoro
Tempo da representação em
A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2013
1
Daniel Dalmoro
Tempo da representação em
A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em
filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Peter Pál Pelbart.
SÃO PAULO
2013
2
Banca Examinadora
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____________________________________________
____________________________________________
3
Dedico este trabalho à memória de meu avô João Gorte e à nossa risada cúmplice
e sem maior motivo que uma troca de olhares em silêncio, na hora da sopa.
4
Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da
PUC-SP, por ter me dado a oportunidade de me aprofundar no autor que era do meu interesse
– Guy Debord. Agradeço ao professor Peter Pál Pelbart pela orientação, que soube respeitar
meu tempo (foram cinco anos!), assim como meu estilo um tanto arredio, teve paciência com
minhas invencionices e piadas sem graça e fora de hora, e soube intervir em momentos
oportunos. Aos professores Jeanne Marie Gagnebin e Vladimir Safatle, pelos preciosos
comentários na qualificação deste trabalho, em 2011 – à primeira, ainda, pela ajuda no recorte
do tema e na formulação do projeto, em 2007. Ao professor Sérgio Salomé Silva, da
Unicamp, que me apresentou pela primeira vez Guy Debord, uma década atrás; aos
professores Márcio Alves da Fonseca e, em especial, Marcelo Perine, da PUC-SP, pelos
cursos a que assisti e que influenciaram em muito minha forma de me perceber e me engajar
no mundo.
Dentre os amigos, não listo todos aqui não por receio de esquecer alguém –
definitivamente –, mas para não ficar cansativo, e porque espero que todos tenham
consciência de que estes meus agradecimentos são a eles também. Destaco alguns que foram
de grande importância nas minhas últimas ecdises, que me ajudaram a me perder e com isso
abriram a possibilidade de me encontrar. Patrícia Misson, Beatriz Sampaio, Ricardo Dias
Almeida, Aílton Piva Júnior e Wladimir Vaz, por estarem nas cercanias e dispostos ao diálogo
em horas que muito precisei do contato com o Outro. Paulo Fernando Facioli Pestana – meu
“irmão mais velho” – e Daniel Vannucci Dóbies, pela amizade de longa data e enormes
afinidades, mesmo depois de tantas mudanças. Marise Filizola, que muitas vezes me lembrou
que, apesar dos meus desejos serem muitos, como todo ser humano, estou inserido no ciclo de
um dia e preciso escolher o que fazer nesse tempo – não posso abarcar tudo. Camila Saori
Goishi e, especialmente, Patrícia Yumi Fujisawa, por terem me apresentado o tempo em sua
intensidade. Huang Fei Shuang, por me ensinar o tempo em sua calma.
Por fim, agradeço a meu irmão, Fabrício Dalmoro, pela amizade e estímulo, e
principalmente aos meus pais, Dejanir Dalmoro e Marilda Gorte, pelo carinho e pelo apoio
ponderado e incondicional que me dedicam pacientemente há trinta anos.
5
Resumo
Este trabalho versa sobre a obra A sociedade do espetáculo, do polemista francês
Guy Debord (1931-1994). Num primeiro momento são levantadas as influências com quem o
autor dialoga – direta ou indiretamente –, o marxismo, a filosofia francesa, as vanguardas
artísticas do século XX. A seguir se debruça mais detidamente sobre o livro referido, em
especial na questão da representação – a representação na política, a representação na
linguagem, a representação do tempo. Enfim, há um breve cotejamento crítico com o texto de
1988, Comentários sobre a sociedade do espetáculo.
Palavras-chave: Debord, Guy (1931-1994); Internacional Situacionista; filosofia francesa;
marxismo; vanguardas artísticas do século XX.
6
Absctract
This work focuses in the book The Society of Spectacle, from the french
polemicist Guy Debord (1931-1994). Initially, there is the study regarding the influences to
whom the author dialogues – directly or indirectly – Marxism, French philosophy, the artistic
avant-gardes of the twentieth century. Subsequently, it follows more closely to the refered
book, in particular in the matter of representation – the representation in politics,
representation in language and representation of time. Finally, there is a brief critical readback
of the 1988's text, Comentaries about the Society of Spectacle.
Key-words: Debord, Guy (1931-1994); Situationist International; french philosophy;
marxism; artistic avant-gardes of the twentieth .
7
Sumário
Prefácio/introdução/qualquer outro nome ........................................................... 9
Texto .................................................................................................................... 12
Bibliografia básica .............................................................................................. 178
Bibliografia auxiliar ........................................................................................... 182
8
Prefácio/introdução/qualquer outro nome
“– Pelo que pude notar, você é um homem teimoso, não é mesmo? – indagou.
– Não sou teimoso. Apenas tenho o meu próprio sistema de raciocínio.
– Sistema de raciocínio? – perguntou-me e novamente mexeu no lóbulo da orelha.
– Esse tipo de coisa já não tem nenhum significado, sabia? É como um amplificador
valvulado, feito à mão. Em vez de perder tempo com isso, é melhor ir a um shopping
especializado em áudio e comprar um novo modelo de amplificador transistorizado, que será
muito mais barato e a qualidade do som, muito melhor. Se quebrar, tem garantia. Na compra
de um produto novo, eles aceitam o velho como parte do pagamento. Não estamos numa
época em que se pode falar em sistema de raciocínio. Houve épocas em que esse tipo de coisa
tinha algum valor. Mas hoje, não. Hoje, o dinheiro compra tudo. Até mesmo o pensamento.
Compre um que te sirva e é só conectar. É simples. Pode-se usar no mesmo dia. É só conectar
o A no B. Num piscar de olhos, tudo está pronto. Se ficar obsoleto, é só trocar. Assim é mais
prático. Se você ficar tentando viver no seu próprio sistema, vai acabar sendo deixado para
trás. Perde o jogo de cintura e as pessoas te fazem sentir depreciado.”
Haruki Murakami, Dance, dance, dance. pp. 257-258
Este prefácio rompe um pouco com a harmonia e um dos objetivos deste trabalho:
a apresentação de um texto sem quebras – as explícitas, ao menos. Contudo, como dentre seus
objetivos está também obtenção de um título universitário, me pareceu necessário alguma
nota prévia.
Debord, é sabido – e será comentado adiante, de qualquer forma –, foi um anti-
acadêmico em sua vida, assim como em sua obra. Não que ele tenha se mantido alheio aos
debates acadêmicos – afinal, é um dos pólos de produção e divulgação de conhecimento da
sociedade contemporânea –, mas fez questão de não se enquadrar neste saber tantas vezes
baço, tantas vezes estéril – porque não raro alienado da realidade sobre a qual versa. A
sociedade do espetáculo é um livro que traz essas marcas muito claramente: discute produção
de conhecimento, hermenêutica marxista, estruturalismo; porém o faz em aforismos, negando
o encadeamento racional do discurso, se apropriando de citações alheias sem fazer referência
ou deferências. Tanto que se trata de uma obra de difícil classificação – assim como o autor.
Este trabalho pretende, na medida do possível – possibilidade dada tanto pela
abertura oferecida pela academia quanto pelas capacidades do autor –, ser tributário do
9
questionamento debordiano à instituição universitária e à sua forma de produzir
conhecimento, tentando ser algo mais do que uma apresentação e análise d'A sociedade do
espetáculo. Há aqui uma preocupação com a forma e um intento de provocação (adolescente,
talvez). Não, ele não foi escrito em aforismos, nem rejeitou a construção lógica do argumento.
Ele tampouco se quer hermético, e se assim parecer, é falha do escriba. A tentativa de
questionamento da e pela forma se deve ao modo como o texto é apresentado: sem
subdivisões, sem capítulos, sem seguir uma linearidade dura, passando, às vezes, de um tema
a outro sem maiores explicações, deixando a impressão de ser fruto de uma associação livre
surgida no momento; abusando de recortes dos autores estudados – método usado de maneira
explícita pelas vanguardas e mais comedida pela academia, daí as quase mil e quinhentas
notas de rodapé – e dos cortes bruscos de um autor a outro. Por questões de tempo (e saúde
também), admito não ter conseguido levar a cabo com plena satisfação seu intento, sendo
perceptível dois blocos bem distintos – um pré e um pós qualificação –, ainda que a presença
destes blocos possa ser justificada como a apresentação dos rastros do trabalho de pesquisa e
escrita – há correções e interpolações, mas o grosso de cada um foi escrito começando pelo
início e chegando ao seu final, sem controls cês, controls vês.
A intenção em escrever sem quebras – dependesse de mim, não haveria sequer
parágrafos, deixando ao leitor a tarefa de elaborar as rupturas e retornos e pausas no texto;
porém isso soaria antes como um problema de escrita – é de tentar mimetizar a própria forma
do livro sobre o qual me debruço, assim como este, na minha interpretação, mimetiza a forma
do capitalismo e do espetáculo: uma forma circular, que para melhor compreensão exige a
leitura do todo. Destarte, no correr da leitura, haverá trechos que parecem excessivos; outros,
incompletos; outros ainda, sem sentido. O que espero é que se encaixem até o fim do trabalho
coerentemente.
A recusa em seguir os padrões de citação da ABNT tem o intuito de dar mais
fluidez e velocidade ao texto, e de questionar a necessidade de se pôr em pedestal o
conhecimento produzido.
Já a utilização da terceira pessoa do singular, ao invés da primeira do plural, como
é praxe na academia tupiniquim, além de reproduzir a linguagem típica de um dos modos
mais visíveis da produção espetacular – a pretensa imparcialidade do jornalismo, que a
academia tem alguns curiosos pudores em assumir, por mais que se afirme (parte dela)
imparcial –, é um convite. Não iremos a ponto algum com este texto: percorri já um trajeto,
fruto de minhas leituras e vivências (por exemplo, a pesquisa sobre os situacionistas acabou
10
por me inspirar a lançar uma revista eletrônica de “artes antiartes heterodoxias”, a Casuística,
em 2009), e aqui o apresento. O convite é para que os leitores sigam uma direção, a qual
possui uma miríade de caminhos – formados pelas leituras e vivências de cada um –, que
chegam a pontos mais interessantes e que não fui capaz de alcançar. Não quero, ao fim da
leitura, que meus leitores estejam no mesmo ponto que eu: os quero próximos, para que
possamos, enfim, dialogar.
11
Texto
“Com a ajuda de Mefistófeles, todos os desejos de Fausto são logo satisfeitos. Ou
melhor, para dizer as coisas como de fato são, Fausto obtém o equivalente em ouro de tudo
quanto deseja.
- E não estais contente?
- Pensava que riqueza fosse o diverso, o múltiplo, o mutável, e só vejo peças de
metal uniformes que vão e que vêm e se acumulam, e que só servem para se multiplicarem a
si mesmas, sempre iguais.
Tudo o que suas mãos tocam se transforma em ouro. Logo a história do doutor
Fausto se confunde também com a do Rei Midas, na carta Ás de Ouros que representa o globo
terrestre transformado numa esfera de ouro maciço, ressecada em sua abstração de moeda,
incomestível e invisível”.
Ítalo Calvino, “Duas histórias nas quais se procura e se perde”. In: O castelo dos
destinos cruzados (A taverna dos destinos cruzados). pp. 121-122.
Em A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricoeur questiona “a relação do
dever de memória com a idéia de justiça”1: em que o excesso de rememoração na Europa
implicaria no abuso da memória, para além “de manipulações no sentido delimitado pela
relação ideológica do discurso com o poder, mas, de modo mais sutil, no sentido de uma
direção de consciência que, ela mesma, se proclama porta-voz da demanda de justiça das
vítimas”2 – a história apropriada e transformada em comemoração acrítica3 (do que foi e do
que é). Se no “velho mundo”, com seus muitos anos documentados e seus traumas de guerra,
pede-se o direito ao esquecimento, no Brasil, por outro lado, a reivindicação é pela lembrança
– ao menos de parte desses traumas mal resolvidos. O Comitê Nacional da Verdade, instituído
em 2012 no governo Dilma Rousseff, traz em seu regimento a finalidade de “efetivar o direito
à memória e à verdade histórica”4 sobre os anos da recente ditadura civil-militar, obliterada e
temida por uma parcela da sociedade. São dois pontos de um mesmo problema, questões que
se põem em pólos distintos pelas especificidades locais – o direito ao esquecimento, o direito
à memória –, mas que trazem a mesma disputa sobre o controle da memória – que implica não
apenas no poder de veridicção sobre o passado como também sobre o presente. É aquilo que 1 RICOEUR, A memória, a história, o esquecimento, p. 101.2 Idem, ibidem, p. 102.3 Idem, ibidem, p. 103.4 Regimento Interno da Comissão Nacional da Verdade, Capítulo I, artigo 1°.
12
Napoleão formulara como projeto, o “de 'dirigir monarquicamente a energia das lembranças”,
e que, conforme Debord, encontra “sua concretização total” sob o espetáculo, “em uma
manipulação permanente do passado, não apenas nos significados mas também nos fatos”5. O
detalhe destas disputas citadas serem mediadas pelo Estado é um indicativo de que não se
trata de um evento isolado de todo o contexto histórico, social e econômico. Daí que este
trabalho, motivado pela questão da história e da memória, ao se pretender estudar o tempo n'A
Sociedade do Espetáculo, faz antes uma apresentação da obra toda – complementada pelos
Comentários de 1988 –, e ainda antes, uma breve genealogia, se não da obra de Debord, do
contexto em que ela foi produzida, das diversas correntes de pensamento presentes na década
de 1960 com as quais o autor – direta ou indiretamente – dialoga6.
Dentre as muitas influências que permeiam a obra de Debord, pode-se, grosso
modo, agrupar as principais em três grandes tradições – a despeito de toda imperfeição de se
utilizar desse termo: a tradição filosófica francesa, a tradição marxista, e a tradição das
vanguardas artísticas, com o surrealismo e o dadaísmo. Tradições que não apenas confluem
como se confundem, fazendo aflorar com maior evidência sua filiação marxista. Como
Kristeva comentou em curso no Collegè de France de 1994 – Sentido e contra-senso da
revolta –, sobre o suicídio de Debord em 30 de novembro daquele ano, tratava-se de “um
homem revoltado”, que analisou a sociedade contemporânea apelando a um estilo
“ultraclássico”7, com as partes se subordinando ao todo8 – o que não deixa de ser uma
interpretação discutível, visto que Debord começava seu questionamento pela forma de
produção e reprodução do conhecimento na sociedade contemporânea, o que implica também
no questionamento da instituição mais importante para isso: a universidade. De qualquer
forma, a análise pode ter sido ultraclássica, mas sua apresentação esteve longe dos padrões
clássicos aceitos pela academia – não apenas da época, como ainda de hoje. A começar que
Debord é autor de um livro só: apesar de possuir uma esparsa obra, que vai de textos a
colagens e filmes, passando por performances, intervenções e ações políticas diretas, livro ele
possui apenas um, apenas A sociedade do espetáculo, lançado em fins de 1967. Se a data de
lançamento, pouco antes das agitações de maio de 1968 na França, foi acaso ou foi visionada,
vale destacar que o livro surgiu num momento oportuno para o que se pretendia: dar corpo às
5 DEBORD, A sociedade do Espetáculo, tese 108. [Doravante SdE]6 Pela proximidade da temática, era de se esperar um cotejo, mesmo que breve, com Adorno e Horkheimer.
Isso foi deliberadamente evitado aqui.7 KRISTEVA, Sentido e contra-senso da revolta, p. 93.8 BÜRGER, Teoria da Vanguarda, p. 148.
13
críticas teóricas e às agitações práticas9 que desde 1957 eram empreendidas pela Internacional
Situacional – grupo de vanguarda artístico-política, do qual Debord é o expoente-mor –, se
apresentando como mais do que um estudo, do que uma análise sobre a sociedade da época –
tal como parece ser o legado seu e o do situacionismo hoje10 –, um livro de estratégia para a
sua superação. Debord, no prefácio à quarta edição italiana, de 1979, põe a teoria do
espetáculo – e, conseqüentemente, seu livro – não apenas como desveladores da verdade
sobre a sociedade contemporânea, mas também como “a única teoria que apresentava novas
acusações estrepitosas”11 contra o sistema capitalista em maio de 1968, “a única teoria da
temível revolta de maio”12. Esta é sua versão, e é polêmica o suficiente para que se concorde
ou não com ela. Contudo não parece exagerado quando ele diz que A sociedade do espetáculo
“não cabe em nenhuma categoria de produção intelectual que a sociedade dominante aceita
levar em consideração, e que não está escrito da perspectiva de nenhuma das profissões
especializadas que essa sociedade promove”13: não é ensaística, não é panfletária, não é
didática, não é acadêmica. Deveras, apesar de aluno de direito na Sorbonne14, sua matrícula na
faculdade sempre teve o intuito de aproveitar o auxílio estudantil, como a moradia, e não de
levar em frente o curso. E isso parece ser uma boa síntese de sua relação com a academia:
apesar de estar por dentro do que acontecia nela, de estar inserido em seus debates, não a
rejeitando de todo, como irrelevante, tampouco a aceitou de todo: o objetivo e,
principalmente, a forma com que seu livro foi escrito são amostras disso.
A sociedade do espetáculo é escrito em aforismos, se apropriando de idéias de
diversos autores sem relativizá-las – ou mesmo contextualizá-las –, com as referências às
citações feitas de maneira incompleta – isso quando as citações eram apresentadas como tais,
e não simplesmente incorporadas ao texto, sem-mais. Um livro que, como toda sua obra e sua
vida, leva ao radicalismo a crítica de Lukács à reificação na produção do conhecimento
crítico, quando este diz que para “um marxista a objetividade do estudo acadêmico é tão
repreensível quanto alguém que acredite que a vitória da revolução mundial pode ser
garantida pelas 'leis da natureza'”15, pois “a unidade da teoria e da prática não existe somente
na teoria mas também para a práxis”16 (na época do lançamento d'A sociedade do espetáculo,
9 DEBORD, SdE, p.149 [prefácio à quarta edição italiana de]10 JAY, Downcast Eyes, p. 417.11 DEBORD, SdE, p. 151.12 Idem, ibidem.13 Ibidem, p. 14914 BOURSEILLER, Vie et mort de Guy Debord, p. 47.15 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 131.16 Idem, ibidem.
14
meados da década de 1960, ganhava corpo dentro do marxismo Ocidental e da academia
francesa a tese oposta). Com esse intuito, Debord – também por conta da tradição dadá e
surrealista17 – deliberadamente atenta contra as regras da linguagem dominante, o que choca o
gosto daqueles educados e sempre inseridos nessa linguagem18. O que não quer dizer que seja
hermético: negar a linguagem clara do espetáculo (e da academia) não implica na busca de
uma linguagem obscura, como em Bataille19, nem rebaixá-la, como eram acusados os
surrealistas por Lefebvre20. O ponto é que Debord possui um outro público, um outro uso,
diferentemente dos livros ordinários21; mas que por se utilizar – ainda que de modo
desvirtuado, dialeticamente – da linguagem dominante do espetáculo, poderia ser
compreendido por aqueles que estão totalmente submersos nessa linguagem, desde que
rompam com os grilhões que os prendem às formas fetichistas de captar, pensar e apreender o
mundo. Debord se aproxima, portanto, de Hegel, para quem, conforme Safatle, “a clareza de
inspiração matemática que guia o uso ordinário da linguagem do senso comum é
mistificadora, pois clarifica o que não é objetivamente claro”22.
A ênfase na linguagem pode ser destacada também como conseqüência da
influência surrealista sobre o autor. Segundo Breton, o surrealismo se situou “inicialmente
quase que só no plano da linguagem”23. Destarte, a questão da linguagem para Debord não é
nada irrelevante, muito pelo contrário. Ela é um dos três eixos principais que podem ser
identificados, e em torno dos quais gira a obra aqui analisada, e que estão sempre
profundamente imbricados: o Estado, a linguagem, a história. É uma organização estatal ou
proto-estatal que determina o sentido da história; é uma nova vivência da história que funda
uma nova linguagem. Da história surgem novas organizações estatais, estabelecendo novas
linguagens, que influenciam o modo como a história será vivida, contada, lembrada. Isto pode
parecer esquemático, mas o entrelaçamento entre os três eixos deve mostrar que não há como
isolar um deles, no máximo pode-se dar maior relevância a um ou outro.
A linguagem, por ser o ponto mais evidente – mas nem por isso menos profundo –
do que se chamou sociedade do espetáculo, por intermédio do qual o espetáculo organiza a
sociedade de maneira simbólica e ideológica – sendo que “nesse caso, a ideologia não é
simplesmente uma conseqüência da estrutura econômica da sociedade, mas, ao mesmo tempo,
17 JAY, Marxism and totality, p. 290.18 DEBORD, SdE, § 205.19 JAY, Donwcast Eyes, p. 228.20 Ibidem, p. 290.21 DEBORD, op. cit., p. 146.22 SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 1.23 BRETON, “Segundo manifesto surrealista”, p. 126.
15
o pressuposto do seu funcionamento pacífico”24 –, de modo a garantir legitimidade para sua
dominação e a perpetuação do modo de produção que ele sustenta e que o sustenta, servirá de
ponto de ancoragem também neste trabalho. Para Aquino, “a apreensão da crítica marxiana do
fetichismo mercantil por Debord tem sua especificidade numa nucleação – pelo conceito de
espetáculo – da questão da linguagem, sob o horizonte comunicativo”25. Ainda que se mova
dentro do contexto do marxismo inaugurado por Lukács, “que via na ideologia uma 'falsa
consciência'”26, fruto de uma leitura, segundo Arlindo Machado, distorcida do trecho de A
ideologia alemã, em que Marx e Engels dizem que “em toda ideologia os homens e suas
relações aparecem invertidos como em uma camera obscura”27, Debord, sem enunciá-lo
claramente, ultrapassa o “idealismo do projeto teleológico”28 do pensador húngaro, e supera a
idéia de ideologia como situado “no terreno de uma quimérica 'consciência'”29, como mero
reflexo de visões equivocadas na consciência das pessoas numa dada realidade histórico-
social. É isso também, mas vai além: o polemista francês não rejeita a consciência, nem
mesmo o proletariado como meta-sujeito da história, contudo, a ideologia possui um
substrato, uma “materialidade”, fundado na linguagem (que é fundada, em última análise, a
partir do modo de produção). Isso acaba por remeter às teses de V. N. Volochinov, ligado ao
“Círculo de Bakhtin”, que em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem advoga que “a
realidade material da ideologia são os signos, entidades elementares que constituem todos os
sistemas de representação”30, e são criados pelos grupos sociais e modificados no correr da
luta de classes31. “O signo existe, grosso modo, para remeter para alguma coisa fora dele
mesmo, ou seja, para 'representar' algo que não é ele próprio; daí a definição clássica de signo:
aquilo que está no lugar de alguma coisa”32, e que, conforme Saussure, só tem significado a
partir da relação que estabelece com os signos que o cercam33. Assim, se é possível concordar
com Merleau-Ponty, quando este diz que “se o signo só quer dizer algo na medida em que se
destaca dos outros signos, seu sentido está totalmente envolvido na linguagem, a palavra
intervém sempre sobre um fundo de palavra, nunca é senão uma dobra no imenso tecido da
fala”34, é preciso salientar que o signo não se esgota em relações herméticas da linguagem, e
24 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 473.25 AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 40.26 MACHADO, A ilusão especular, p. 13.27 MARX & ENGELS, apud MACHADO, A ilusão especular, p. 13.28 MACHADO, op. cit., p. 16.29 Ibidem, p. 20.30 Ibidem, pp. 19-20.31 Ibidem, p. 20.32 Idem, ibidem.33 MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, p. 67.34 Ibidem, p. 71.
16
remete a objetos fora dela, representando-os dentro desse “imenso tecido da fala”. De tal
modo que para Volochinov “essa 'representação' das coisas se dá de forma dupla e
contraditória: os signos, ao mesmo tempo, refletem e refratam a realidade visada pela
representação”35, ou seja, apresentam um objeto a um sujeito, e no mesmo ato de apresentação
modificam esse objeto – pode-se dizer que Volochinov quebra com a separação radical entre
númeno e fenômeno de Kant, sem, contudo, conseguir dar ao signo o estatuto de uma unidade
dialética. Talvez porque, como Merleau-Ponty tempos depois afirmará, a linguagem é mais do
que um meio, “é algo como um ser”, que possui uma opacidade “que não cessa em parte
alguma para dar lugar ao sentido puro”36. A “distorção” ou “inversão” operada pela ideologia,
pela própria questão da linguagem, fundante do recorte da percepção do mundo, “não implica,
em todas as circunstâncias, uma 'falsificação' ou um 'ocultamento' das relações efetivas do
mundo, mas sim a marca (ou seja, o ponto de vista, a perspectiva, a estratégia operativa) da
classe social que as forjou”37. Por esta senda, pode-se, portanto, falar tanto em ideologia
burguesa quanto em ideologia revolucionária, sendo que a diferença principal “está no fato da
primeira ocultar o seu caráter de classe, fazendo-se passar por uma abstrata universalidade,
enquanto a segunda explicita esse caráter, desnuda o seu acento ideológico e manifesta aquilo
que é: um ponto de vista oposto e irreconciliável com o da classe dominante”38. Conforme
Machado. Debord não encampa a tese de ideologia revolucionária de tal forma, antes como
uma variação da ideologia dominante – uma falsa consciência, portanto –, representada de
maneira contundente pela Segunda Internacional e seus desdobramentos: o projeto
revolucionário acalentado pelo francês ainda visa à superação de toda cisão social, dentre elas
a da linguagem. Para ele, quando homem e mundo (humano) estiverem envolvidos um no
outro em uma mesma tessitura, é que a linguagem poderá deixar a condição de um objeto em
separado ou de um meio, para se tornar um ser indistinto do próprio homem. O que não pode
ser confundido com o ideal cientificista para a linguagem de cada palavra ter seu significado
claro, seu significante bem específico, dados de antemão e imutáveis (ou aspirantes a uma
definição definitiva): implica antes na aceitação radical de sua fluidez em função do contexto
e dos usos que os desdobramentos que cada pessoa, cada classe, cada sociedade, cada época
pode dar às palavras, em acordo com o mundo por ser produzido conscientemente por sujeitos
inseridos na história.
Dentro do debate marxista, salientar a linguagem dialética, como posto acima, 35 MACHADO, A ilusão especular, p. 20.36 MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, p. 71.37 MACHADO, op. cit, p. 15.38 Idem, ibidem.
17
ajuda a evidenciar a posição de onde Debord parte: ao apelar seguidamente para a questão da
totalidade, se filia à tradição nomeada de marxismo ocidental, em especial na senda teórica
aberta por Lukács e sua História e consciência de classe – livro tido por inaugural desta
vertente do marxismo –, mas também na de Karl Korsch. São livros que ganharam destaque a
partir da sua publicação em francês, no final dos anos 1950, início dos anos 196039. Do
primeiro, as influências são visíveis, por exemplo, na noção de totalidade histórica40, no
freqüente apelo à consciência de classe41, na possibilidade normativa de uma vida histórica
desreificada42, tendo o proletariado como iminente classe universal43, como meta-sujeito dessa
história44, desde que agindo a partir de uma práxis unitária teórico-prática45. Do segundo,
também a compreensão da época capitalista como um todo unificado e coerente46, ademais, a
crítica feroz à hierarquização e ao burocratismo dos partidos representantes da classe operária
– em especial os de influência soviética –47, e o purismo sectário que Debord aplicou à
Internacional Situacionista – que Jay identificara em Korsch por conta da sua construção
altamente idealizada do proletariado, o que teria impedido sua adesão ao stalinismo e
influenciado grupos de extrema-esquerda48, como os próprios situacionistas. Convém salientar
que, a despeito de muitas semelhanças, o marxismo ocidental não se constituiu em um corpo
de doutrina, estando antes ligado ao movimento anti-leninista49, graças ao qual manteve as
esperanças libertárias e emancipatórias da tradição socialista50.
O ponto fulcral do marxismo ocidental, que perpassa seus diversos pensadores, é
a noção de totalidade; o que não é privilégio exclusivo seu: há toda uma ampla tradição de
pensamento holístico no ocidente no século XX51 – e mesmo na França dos séculos XVIII e
XIX52 –, que possui pontos convergentes com o holismo marxista, e por isso não podem ser
isolados, ainda que não possam ser tratados como equivalentes53. As raízes destes
pensamentos holísticos, conforme Martin Jay, remontam à Grécia Antiga, onde “em
39 AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 34.40 JAY, Marxism and Totality, p. 105 .41 Ibidem, p. 114.42 Ibidem, p. 170.43 Ibidem, p. 121.44 Ibidem, p. 161.45 Ibidem, p. 102.46 Ibidem, p. 146.47 Ibidem, pp. 130-131.48 Ibidem, p. 143.49 ARONOWITZ, The crisis of historical Materialism apud JAY, Marxism and Totality, p. 1, nota 1.50 MERLEAU-PONTY, As aventuras da dialética apud JAY, Marxism and Totality, p. 251 JAY, Marxism and Totality, p. 24.52 Ibidem, p. 71.53 Ibidem, p. 24.
18
acréscimo às análises descritivas do todo ou do Uno”, herança da questão posta por
Parmênides, “o pensamento grego também acolheu idéias normativas de totalidade, as quais
culminaram na elaboração neo-platônica de tentar superar a contingência da finitude da
existência humana por intermédio do restabelecimento da sua unidade perdida com o
universo”54. Uma importante diferença está no fato de que o pensamento grego, assim como o
pensamento medieval, quando a tratar do holismo na sociedade – ou, como no caso de Platão
e Aristóteles, no Estado, então ainda ponto de totalização da vida social da época55 –, tem
como norte um conceito organicista de totalidade, algo que Marx e posteriormente os
marxistas, rejeitam. Por mais que Marx muitas vezes tenha adotado a terminologia organicista
ou metáforas naturalistas, ele nunca as teria empregado para justificar o status quo, tal qual se
costumava empregar não somente até então, como mesmo depois dele – o caso dos
darwinistas sociais, por exemplo.
Tomando Marx por uma linha muito mais dialética do que materialista, o
marxismo ocidental, além da de Hegel, tem também a forte influência de Kant e Schiller –
deixando claro, portanto, o peso da tradição filosófica alemã, em especial do Idealismo
alemão e da centralidade da razão56, particularmente quando se pensa em Lukács.
De Kant, é tomada de empréstimo a noção de totalidade normativa, uma
totalização histórica que possui coerência e estrutura como um todo – ou “longitudinal”, como
o chama Jay57 –, com forte caráter moral58. Até por conta da noção teleológica da natureza que
possui, a qual deve ser entendida mais epistemologicamente do que ontologicamente, como
uma forma do homem de encarar o mundo, já que lhe é impossível conhecê-lo de fato59, a
totalidade normativa, para Kant, é posta no futuro e não no passado60 – contrariamente a seus
contemporâneos –, e está à mercê de lutas e disputas para se chegar a ela. Conforme Jay, a
diferença para a idéia hegeliana de contradição ou para a noção marxiana de luta de classes
como motor da história é pequena, fundamentalmente que Kant “não concebeu o processo em
termos socioeconômicos; ele imaginou-o, ao invés disso, politicamente, com a criação de um
mundo de federado de nações em que cada estado possuiria uma constituição perfeita”61,
pautado na crença da tendência natural da humanidade para superar a desarmonia62.
54 JAY, Marxism and Totality, p. 25.55 Ibidem, p. 25.56 Ibidem, p. 53.57 Ibidem, p. 47.58 Ibidem, p. 49.59 Ibidem, p. 48.60 Ibidem, pp. 47-48.61 Ibidem, p. 47.62 Ibidem, p. 50.
19
De Schiller, o desenvolvimento da estetização da vida – idéia advinda de Kant –,
é acompanhado da noção de que a arte é uma espécie de jogo63, e somente através desse jogo
o tempo é domado, só através do “impulso para o jogo” é possível alcançar “a extinção do
tempo no tempo e a reconciliação do sendo com o ser absoluto, da variação com
identidade”64; ou seja, é o jogo o que permite ao homem atingir o senso de totalidade, e a arte
é tão-somente “um artifício para a suspensão do tempo, uma forma de evitar a ilimitada
imensidão do infinito"65. Bürger, argumentando dentro de seu referencial de instituição da
arte, defende que a arte, em Schiller, “em razão de sua autonomia, de sua não vinculação a
propósitos imediatos”66, “por negar toda e qualquer intervenção direta na realidade, está apta a
restaurar a totalidade do homem”67, fragmentado com a divisão do trabalho e a conseqüente
sociedade de classes. Mas esta, ainda de acordo com a leitura de Schiller feita por Bürger,
“não pode ser abolida por meio de revolução política, porque a revolução só pode ser
naturalmente feita pelos homens que, cunhados pela sociedade da divisão do trabalho, não
puderam educar-se para a humanidade”68. A arte teria, portanto, a tarefa de “tornar a unir as
'metades' do homem que foram arrancadas uma da outra. Quer dizer, já dentro da sociedade da
divisão do trabalho, a arte deve possibilitar a formação da totalidade das capacidades humanas
que o indivíduo, em sua esfera de atividades, se vê impedido de desenvolver”69. A
interpretação de Bürger é bem afim à de Lukács, que também vê na proposta estética para
superação das dissonâncias e fragmentações de Schiller uma tentativa de “resposta à divisão
capitalista do trabalho”70. Em Debord, a questão da estetização da vida e do jogo como
momento de completude serão centrais no desenvolvimento da sua alternativa ao sistema
capitalista: a posse efetiva da “comunidade do diálogo” e do “jogo com o tempo, que foram
representados pela obra poético-artística”71, permite ao homem ser o “sujeito da história”, isto
é, “o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se mestre e possuidor de seu mundo que é a
história, e existindo como consciência de seu jogo”72. Hegel também reconhece em Schiller
um pensador arguto, cujo senso artístico e filosófico levou à exigência de um princípio de
totalidade e reconciliação, se opondo ao infinito abstrato do pensamento, presente na teoria
63 JAY, Marxism and Totality, p. 49.64 SCHILLER, On the Aesthetic Educations of Man in a Series of Letters apud JAY, Marxism and Totality, p.
50.65 JAY, op. cit., p. 51.66 BÜRGER, Teoria da vanguarda, pp. 87-88.67 Ibidem, p. 91.68 Ibidem, p. 89.69 Ibidem, p. 90.70 JAY, Marxism and Totality, p. 52.71 DEBORD, SdE, § 187.72 Ibidem, § 74.
20
kantiana, marcado por antinomias abstratas e ahistóricas73. Para Hegel, tal superação rumo à
totalidade só é possível pelo pensamento dialético, dentro de um sistema74.
Hegel justifica epistemológica, ontológica e politicamente a necessidade da
totalidade por ele proposta. Para o filósofo de Iena, contrariamente a Kant, é possível
conhecer as coisas na sua essência, com a condição de que se sobrepuje a imediaticidade do
fato e que o encare desde um ponto de vista dinâmico, contextualizado na história – história
da qual participa o próprio sujeito, cuja racionalidade permeia o todo75. A essência, para
Hegel, de acordo com Safatle, “é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido,
contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a essência se
põe como determinação reflexiva e relacional”76. Conhecer as essências é plausível porque o
conhecimento não está dado: é primeiramente um processo, e neste processo a consciência,
após abandonar a contingência da aparência, chega à consciência-de-si, alcança a experiência
do objeto como “duplicação da estrutura da consciência-de-si e, enquanto duplicação, a
reflexão sobre a estrutura da consciência-de-si será, necessariamente, uma reflexão sobre a
estrutura do objeto”77. Além disso, “toda operação de conhecimento depende de uma
configuração prévia de um 'background' normativo socialmente partilhado, no qual todas as
práticas sociais aceitas como racionais estão enraizadas, e aparentemente não-problemático
que orienta as aspirações da razão em dimensões mais amplas”78. Esta configuração prévia é
possível porque o objeto a ser conhecido foi criado pelo sujeito, na duplicação da consciência-
de-si: “a consciência nada sabe, nada concebe, que não esteja em sua experiência”79 – objeto
e sujeito possuem, portanto, identidade80. O ponto culminante será a totalização do
conhecimento em um sistema comandado pelo Espírito Absoluto, verdadeiro meta-sujeito da
história, criador e criatura. Conforme Jay, o Espírito Absoluto seria “uma combinação do
Logos grego com a divindade cristã, que serviu para unificar o fundamento de toda
existência”81. O Espírito Absoluto, inserido na história que ele próprio cria, tem como
processos de desvelamento da verdade – e como motores da história, nestes processos – a
contradição e a negação determinada82, frutos do próprio método dialético, que “é esse
73 JAY, Marxism and Totality, pp. 53-54.74 Ibidem, p. 54.75 Idem, ibidem76 SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 14.77 Ibidem, aula 13.78 Idem, ibidem.79 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, §63.80 JAY, Marxism and Totality, p. 54.81 Idem, ibidem.82 Ibidem, p. 55.
21
processo imanente de transcendência, em que o caráter unilateral e limitado das
determinações do entendimento apresentam-se como aquilo que são, isto é, como sua
negação”83. Ou seja, a negação determinada, pressuposto do processo de conhecimento para
Hegel, “é a operação que constrói processos de relação na experiência, e não deduções de
relações”. O resultado desta operação de negação determinada é “a realização da
correspondência final entre conceito e objeto”, alcançada “a partir da dinâmica do conceito”.
Por ser pressuposto de sua filosofia, Safatle reafirma a tautologia de que “o conceito, em
Hegel, não é aquilo que submete o diverso da intuição sob a forma de uma representação
genérica. Antes, ele é estrutura de relações pensadas a partir da negação determinada.”84
Nesse percurso, o conhecimento-de-si que caminha para o Espírito Absoluto se
volve cada vez mais intrincado nas suas mediações e inter-relações, distanciando-se da
imediaticidade primordial e desvelando um universo ricamente articulado – o oposto da noção
empírica de concretude85. Tais mediações se dão em relações internas entre totalidades
menores, parciais, existente em todos os níveis da meta-totalidade que compreendem o todo86.
Contudo, não se deve crer que essas relações que formam a sociedade humana sejam um mero
agregado homogêneo87, pois o qualitativo que a homogeneidade nega é fator fundamental para
a composição da totalidade. O ponto aonde o Espírito Absoluto, com o processo de
desenvolvimento histórico de suas inter-relações de sub-totalidades, irá chegar é a verdade de
si próprio na sua totalidade88. Ou seja, a totalidade é histórica, anti-transcendental89 e auto-
reflexiva90: é atuando sobre si na história, em um progresso cíclico e não linear91, “justificado
ora como aquisição verdadeira, ora como pausa, ora como refluxo e retrocesso para um novo
impulso”92 – por conta da razão dialética e do movimento da história total –, que o Espírito
Absoluto chegará a si como fruto desta história – história que é a “maturação de um futuro no
presente, não o sacrifício do presente a um futuro desconhecido, e nele a regra da ação não é
ser eficaz a qualquer preço, mas principalmente ser fecunda”93. Isso demonstra, primeiro, que
a história, para Hegel, não tem limites: ela é totalizante, não havendo nada fora dela, nenhum
83 HEGEL, Encyclopädie, tese 81, apud LUKÁCS, História e consciência de classe, pp. 355-356.84 SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 585 JAY, Marxism and Totality,, p. 58.86 Ibidem, p. 59.87 Idem, ibidem.88 Idem, ibidem89 Ibidem, p. 56.90 Idem, ibidem.91 Ibidem, pp. 55-5692 MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In: O olho e o espírito, p. 104.93 Ibidem, p. 106.
22
absoluto94; e, segundo, que o autor possui uma imagem circular do tempo, composto de um
duplo aspecto: o tempo é ao mesmo tempo contínuo e coinstantâneo95. Ele é unidirecional, e
flui dialeticamente enquanto o Espírito Absoluto expressa suas dimensões potenciais e torna
objetiva a sua subjetividade, reconciliando, no final, suas contradições – em especial entre
sujeito e objeto –, e adequando a realidade ao seu conceito. Mas também a qualquer instante
deste processo o Espírito Absoluto é imanente, estando presente todos os elementos do todo96.
Na interpretação de Debord97, a reconciliação final do sujeito e objeto já está dada no
resultado das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII: daí que para o francês, Hegel é
“a realização filosófica da filosofia”, a glorificação do que existe, que só superou as
contradições em pensamento, e na sua reconciliação, apagou todas as feridas históricas – fruto
“do paradoxo que consiste em atrelar o sentido de toda realidade à sua realização histórica, e
ao mesmo tempo, revelar esse sentindo constituindo-se como realização da história”98. Para
Debord, a filosofia de Hegel, ao pôr o Espírito Absoluto – “herói absoluto que fez o que quis e
quis o que fez”99, por conta da sua teleologia realizada no presente – numa relação exterior
com relação à história atual, nega a própria noção de história – o que poderia ser
exemplificado pelo fato de, para Hegel, as rupturas entre burguês e cidadão, público e privado
não serem motivos de pesar, tal como as diversas instituições políticas e sociais, que se
contrabalançam e destarte resistem à homogeneização abstrata100. Merleau-Ponty vê nesta
exterioridade diante da história atual a homogeneização, a abstração, a perda da potência e das
condições de possibilidade da história pregressa do pensamento, ao dizer que “Hegel é o
museu, é todas as filosofias, (...) mas privadas de sua finitude e de seu poder de impacto,
embalsamadas transformadas, acredita ele, nelas mesmas, a bem dizer transformadas nele”101.
Ou seja, se por um lado102 a dialética hegeliana soube interpretar o momento, a época
revolucionária inaugurada pela ascensão da burguesia e pela idéia de história, se centrando
não na busca do sentido do sendo, mas pondo o conhecimento na apreensão da dissolução de
tudo o que é – no movimento que dissolve toda a separação –; por outro se deixou enredar na
própria ideologia burguesa de fim da história, ao tratar a história de um ponto de vista
distanciado, contemplativo. Para salvar o pensamento da história, teria sido necessária a
94 JAY, Marxism and Totality, p. 58.95 Ibidem, p. 56.96 Idem97 DEBORD, SdE, § 76.98 Idem, ibidem99 Idem, ibidem.100JAY, op. cit., p. 58.101MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In: O olho e o espírito, p. 117.102DEBORD, op. cit., § 75.
23
emergência consciente do sujeito da história, pondo em prática tal pensamento, ao agir sobre a
totalidade do seu mundo. Tal sujeito é, para Marx, como para Debord, o proletariado103. É a
ação do proletariado que demonstraria não apenas a falsidade da conclusão do pensamento da
história hegeliano, como, ao mesmo tempo, confirmaria seu método104. E é por ter como base
o método filosófico hegeliano – que sempre foi história da filosofia e filosofia da história ao
mesmo tempo105 –, que Marx pôde constituir uma teoria deveras revolucionária – apesar de
haver forte corrente no marxismo que põe a ligação com o método hegeliano como o ponto
fraco da teoria marxiana, como é o caso de Bernstein106. Isso a se seguir a senda lukácsiana,
compartilhada por Debord, que aceita o que foi exposto no ensaio “O que é marxismo
ortodoxo?”107, no qual o filósofo húngaro põe como ortodoxia marxista seguir o método
dialético de Marx108 – inclusive a necessidade da revolução, por conta do declínio do
capitalismo, é posta como uma questão metodológica e não factual109 –, e não encarar seus
textos como textos bíblicos110, aos que se deve “fé” e se exige a exegese como de um livro
sagrado111. A questão do marxismo está na relação da teoria e da prática, “e não somente no
sentido em que Marx a entendia em sua primeira crítica hegeliana, quando dizia que a 'teoria
torna-se forma material desde que se apodere das massas'”112. Pelo próprio fato de estar
inserido na história, muitas das teses de Marx foram desmentidas pelo seu desenrolar, pelo
desenvolvimento do capitalismo e das lutas de classes, que não são lineares, teleológicos nem
cientificamente previsíveis – por mais que os alicerces do sistema sobre a qual se debruçou
Marx permaneçam. Como ele diz em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “os homens fazem a
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim
sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”113.
A teoria do espetáculo pode ser vista como uma reinterpretação do capitalismo,
tendo como base o método dialético, as relações entre teoria e prática, a partir das idéias de
Marx, mas centrada na sociedade e conhecimentos da época – meados da década de 1960 –,
em suas novas formas de organização do processo de produção, da estrutura socio-estatal, dos
103DEBORD, SdE, § 78.104Ibidem, § 77.105LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 116106DEBORD, op. cit., § 79.107LUKÁCS, op. cit., pp. 63-104.108Ibidem, p. 64.109Ibidem, p. 131.110Ibidem, p. 63.111Ibidem, p. 64.112MARX, Einleitung zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie apud LUKÁCS, História e consciência de
classe, p. 65.113MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p. 329.
24
métodos de dominação ideológica. Por esse mesmo princípio, ele revisa em alguns detalhes
sua teoria nos Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, de 1988 – em apenas um
detalhe, ao menos no plano teórico, segundo o próprio.
Para Lukács, o marxismo ortodoxo, ou seja, o método dialético, consiste na forma
como a teoria revolucionária penetra nas massas – para Jay, História e consciência de classe
“pôs a relação entre teoria e prática no centro do debate marxista de tal modo que transcendeu
as limitações tanto do culturalismo revolucionário, quanto da ortodoxia da Segunda
Internacional”114 –, ou, de modo mais direto: “trata-se, por fim, de desenvolver a essência
prática da teoria a partir da teoria e da relação que estabelece com seu objeto” 115 – lacuna que
Marx teria deixado em seu trabalho teórico116. Nota-se, portanto, que Lukács aceita a
identidade hegeliana entre sujeito-objeto, ao menos como necessidade normativa de uma vida
desreificada, ainda a ser alcançada117 – as divisões entre sociedade civil e Estado, homem e
cidadão, que Marx aponta n'A questão judaica, significariam que a totalidade na qual se insere
a unidade sujeito-objeto não é uma atualidade118. Ainda na esteira de Marx, o húngaro
desaprova a atitude contemplativa para com a totalidade em Hegel, em que quem age e quem
compreende a história são pessoas diferentes119: para ele, o sujeito adquire a unidade com o
objeto não apenas porque o produziu, mas porque segue a produzi-lo. Este sujeito construtor
do mundo, meta-sujeito da história universal, advindo da ascensão do modo de produção
capitalista, é o proletariado – a única classe capaz de ter consciência do seu ser no mundo120,
por estar no centro do processo produtivo. E o marxismo ortodoxo, para levar a cabo seu fim,
tem como função não a “liquidação definitiva de falsas tendências, mas uma luta
incessantemente renovada contra a influência perversora das formas de pensamento burguês
sobre o pensamento do proletariado”121. Afinal, todo conhecimento da realidade – seja o
dialético, seja o burguês – parte dos fatos – sejam fatos empíricos ou fatos da linguagem. Uma
primeira questão está em “saber quais dados da vida e em que contexto metódico merecem ser
considerados como fatos importantes para o conhecimento”122. Para a ciência burguesa, presa
às formas fetichistas de apreensão da realidade123 – convém ressaltar que o método científico
114JAY, Marxism and Totality, p. 102.115LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 65. Grifo meu.116DEBORD, SdE, § 85.117JAY, op. cit., p. 182.118Ibidem, p. 64.119Idem, ibidem.120LUKÁCS, op. cit., p. 66.121Ibidem, p. 104.122Ibidem, p. 70.123Ibidem, p. 105.
25
nasce do ser social de um classe, e que essa classe tem suas raízes num dado modo de pensar
cujas origens são muito anteriores a ela –, ela deve partir de “fatos puros”124: um fenômeno da
vida, para ser conhecido, precisa ser isolado e “transportado, realmente ou em pensamento,
para um contexto que permite estudar as leis às quais ele obedece sem a intervenção
perturbadora de outros fenômenos”125. Com isso, ele acaba reduzido à sua “pura essência
quantitativa, à sua expressão em número e em relações de número”126, o que apenas reforça a
impressão supra-histórica desses fenômenos, incapacitando cada vez mais a ciência para
perceber o caráter histórico dos mesmos – e de si mesma, conseqüentemente. Não que para
Lukács a investigação científica não acarrete sempre certo isolamento e abstração dos
elementos. O ponto está na autonomia com que tais elementos são tratados127. Na ânsia de
melhor apreender o fenômeno estudado, a ciência burguesa, por razões de exatidão científica
exigida pelos métodos consagrados nas ciências naturais, se especializa e divide cada vez
mais seu objeto, o que faz com que perca a visão da totalidade e, junto, o caráter histórico que
cerca e determina tal fenômeno – por mais que esse fato possa, eventualmente, ser encarado a
princípio de maneira histórica, é preciso descartar sua característica de estar em permanente
transformação128. Isso está afim com o seu ser social, de fragmentação do processo de trabalho
e atomização da sociedade em indivíduos isolados129, para não falar da paralisia da história130.
No fim, a ciência burguesa acaba por perder “cada vez mais o sentido verdadeiro dos
problemas reais”131. É interessante notar que o que a ciência burguesa perde não é o
problema, mas o sentido necessário para compreendê-lo e solucioná-lo: ela pode até estar no
ponto de partida correto, mas por conta do método se perde no seu desenvolvimento: a perda
da base histórica do seu objeto faz com que ela perca a própria cientificidade que com tanto
ímpeto se aferra132. Abdicar do processo histórico é um imperativo do método racional: a
busca por leis – que eventualmente podem ainda não terem se estabelecidas por completo –
exige que se fixe um ponto inaugural a partir do qual se fará a apologia da ordem existente133.
É o pressuposto das chamadas “ciências duras” – a física newtoniana, em especial –, que o
pensamento burguês tenta expandir para as demais esferas do conhecimento – incluindo as
124LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 71.125Idem.126Idem, ibidem.127Ibidem, pp. 106-107.128Ibidem, p. 74.129Ibidem, p. 105.130DEBORD, SdE, § 158.131LUKÁCS, op.cit., p. 118. Grifo meu.132Ibidem, p. 73.133Ibidem, p. 136.
26
artes. É o que Hegel vê como dinâmica típica da Modernidade, em que se busca “realizar as
expectativas de auto-fundamentação nas múltiplas esferas da vida social (...), [num] processo
histórico animado pelas promessas de uma razão una do ponto de vista de suas dinâmicas de
racionalização”134. A primeira perda – fundamental – deste método de raciocinar é que esses
fatos “são – precisamente na estrutura de sua objetividade – produtos de uma época histórica
determinada: a do capitalismo”135. E captar isso é impossível à ciência burguesa porque,
inserida nas formas reificadas de apreensão, ela “reconhece como fundamento do valor
científico a maneira como os fatos são imediatamente dados [...], aceitando sem crítica sua
essência, sua estrutura de objeto e suas leis como um fundamento imutável da 'ciência'”136. O
fato de, para Lukács, a ciência burguesa ser capaz de ao menos tangenciar o problema real,
leva-o a uma posição de não rejeitá-la de todo, muito pelo contrário: assim como para Marx
negar o método burguês em nome de uma “ciência pura” do proletariado é uma atitude que
“poderia dar origem apenas a uma nova economia vulgar com um sinal de mais e menos
invertido”137, para o autor de História e consciência de classe os avanços da ciência burguesa
devem ser aproveitados dentro da metodologia dialética, nunca descartados, uma vez que a
dialética “considera os problema de toda sociedade capitalista como problemas das classes
que a constituem, sendo a dos capitalistas e a dos proletários apreendidas como conjuntos”138.
Como dito acima, todo conhecimento parte dos fatos, e estes são dados necessariamente no
presente – por mais que se refiram a fatos passados. Para o marxismo ortodoxo lukácsiano
conhecer significa, primeiro, não se prender à imediaticidade dos fatos, antes buscar as
relações que os determinam. Com isso, tem-se que o conhecimento começa no presente, mas
também termina nele: ponto de partida e de chegada são os mesmos – a situação atual da
sociedade –, a questão está na forma como o presente será encarado – tanto teórica quanto
praticamente – depois do percurso crítico da dialética. Aqui se encaixa o princípio utilizado
por Debord em A sociedade do espetáculo: por um lado a obra é uma denúncia do capitalismo
tardio, sua forma de produção, reprodução e dominação – nada, portanto, que não seja
passível de ser conhecido, se se romper com as formas reificadas de apreensão da realidade –;
por outro, Debord se negou a fazer um livro pedagógico: o trabalho de compreensão da obra,
do conceito de espetáculo e, concomitantemente, da sociedade que ela desvela, cabe ao leitor
– exigindo dele, ao se reconhecer na linguagem espetacular, superá-la dialeticamente. Assim,
134SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 17.135LUKÁCS,História e consciência de classe, p. 74. Grifo do autor.136Idem, ibidem.137Ibidem, p. 108.138Idem, ibidem.
27
se “o conceito de espetáculo unifica e explica uma diversidade de fenômenos aparentes”139,
Debord apenas lança, no correr da obra, essa diversidade de fenômenos que “o espetáculo é”,
apresentando-os como um dado – tal qual o próprio espetáculo se apresenta, algo dado, pronto
e acabado –, e a partir dessa série de dados fixos, o autor proporciona ao leitor as chaves para
notar sua fluidez, fazendo uma síntese deles, transformando-os em um produto de sua
reflexão. Para tanto, ele se utiliza, em partes, da própria lógica espetacular: analisar e separar
de maneira arbitrária e artificial seus elementos sintéticos, inseparáveis na prática – tal qual o
espetáculo faz com a vida, com a ciência, com a sociedade, decompostas em diversas esferas
(aparentemente) independentes e (apresentadas como) autônomas. Utilizar-se dessa lógica e
desse método significa, no fim, se apropriar da linguagem espetacular140, não como aceitação
da inefabilidade do espetáculo, tal qual o espetáculo proclama, mas, antes, como uma das
estratégias para tornar evidente pelo plágio141, pelo uso desviado142 – que não se fundamenta
em nada “exterior à sua própria verdade como crítica presente143 – os limites e as armadilhas
de tal lógica, de tal linguagem, de como “conclusões críticas passadas cristalizadas em
verdades respeitáveis”144 se tornam mentiras, por exemplo, apontando possíveis lacunas
presentes no discurso oficial e a possibilidade de organizações da vida realmente extra-
espetaculares, de forma a questionar a coerência monolítica que o espetáculo não tem, mas
cuja aparência consegue sustentar145. Ou como fala Aquino: “a crítica dialética deve buscar
renverser (desarranjar, revirar, reverter) a inversão aí realizada e recolocar em jogo a crítica
que as revoluções sociais e, junto a estas, a poesia moderna fizeram à sociedade produtora de
mercadorias”146. Há o risco, contudo, de tal crítica ser anulada pelo próprio espetáculo;
Debord está ciente disso, e aponta Marx como um caso em que a teoria revolucionária é
prejudicada por ter submergido na linguagem oficial147. Espetáculo pode se tornar um
conceito crítico de tudo e não do todo, que no fim se torna a retórica vazia do nada, uma
aparência de crítica e uma crítica das aparências148, a qual apenas reafirma –
apologeticamente, ainda que de maneira negativa – o espetáculo149.
Partir de um ponto para chegar ao mesmo, após um percurso crítico, está bem
139DEBORD, SdE, § 10.140Ibidem, § 11.141Ibidem, § 207.142Ibidem, § 208.143Ibidem, § 208.144|Ibidem, § 205.145Ibidem, § 72.146AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 177.147DEBORD, op. cit., § 85.148Ibidem, § 203.149Ibidem, § 197. § 203.
28
afim à filosofia hegeliana, para a qual “a verdadeira tarefa filosófica não consiste em tentar
esclarecer previamente a significação de conceitos primeiros para a estruturação de todo saber
possível (...). A verdadeira tarefa filosófica consiste em partir do uso ordinário desses
conceitos para mostrar como sua significação não é universalmente conhecida, como poderia
parecer primeiramente (...). [A filosofia] deve mostrar que a produção dos conceitos que
norteiam o saber é o resultado de um processo, e não a pressuposição de uma evidência. A
dialética deve começar sem conceitos próprios, apenas conjugando os conceitos do
entendimento em outra gramática”150. Portanto, A sociedade do espetáculo parte dos conceitos
dados pelo espetáculo e os ressignifica dialeticamente, de modo a permitir ao leitor desnudá-
los. A obra, como a Fenomenologia do Espírito, é “estruturada como um movimento circular
que é retomado sempre em estágios mais englobantes”151, com a diferença de que a
circularidade em Debord instiga o leitor a ampliar sua visão sobre os processos do espetáculo
– não é ela mesma mais englobante. A estrutura formal do livro não se restringe apenas ao
estilo hegeliano, a circularidade e a fragmentação da sua apresentação também estão afins
com a forma como espetáculo se apresenta. Destarte, se o espetáculo, conforme seus próprios
termos, “é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana – isto é, social –
como simples aparência”152, o percurso crítico permite chegar à sua verdade, descobrindo-o
“como a negação visível da vida; como negação da vida que se tornou visível”153. Fechar esse
ciclo não é algo simples, nada tem de imediato – e não é uma mera atividade teórica: é mister
que seja acompanhada da prática: por isso o privilégio da classe proletária. E a apropriação do
método hegeliano está não apenas em sua concepção cíclica de conhecimento154, como
também na concepção dual do tempo, que, neste caso, se fecha em um ciclo: o conhecimento
do proletariado, ao mesmo tempo em que avança para um maior autoconhecimento da sua
situação – autoconhecimento que coincide com o conhecimento da totalidade –, chega, por
fim, à situação inaugural de onde partiu para seu processo de conhecimento – mostra de que o
todo já estava, desde o início, presente. Essa circularidade se deve ao fato da história ser
encarada como um processo unitário155, o que autoriza a inteligibilidade deste processo, desde
que feito a partir do ponto de vista da totalidade.
O ponto de vista da totalidade, dentro desta senda do marxismo ocidental, é o
150SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 4.151Ibidem, aula 13.152DEBORD, SdE, § 10. Grito do autor.153Ibidem, § 10. Grifo do autor154JAY, Marxism and Totality, p. 56.155LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 82.
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grande trunfo do proletariado, é o que o distingue da classe capitalista. Ele está apto a tê-lo
porque está no centro do sistema produtivo, no centro do modo de produção capitalista, numa
época em que a economia domina e determina a sociedade como nunca dantes156, e que tem as
pessoas como ontologicamente iguais por natureza e igualmente determinadas socialmente,
nos seus aspectos mais gerais – será a classe a que pertencem que dará atributos mais
específicos aos indivíduos, de acordo com a premissa do materialismo de que “não é a
consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que
determina sua consciência”157. Participando – obrigado – do processo de feitura do mundo, o
proletariado pela primeira vez não é estranho à história158, e por estar na tarefa prática de
construção do mundo, é capaz de apreender as relações que determinam a sociedade para
além das relações numéricas – como o fazem os capitalistas –, ele está apto a apreendê-las
qualitativamente, e com isso romper o véu de naturalidade que a imediaticidade dos fatos
apresenta159. Além disso, nesse desvelar ele apreende as próprias formas fetichistas de
objetividade “engendradas necessariamente pela produção capitalista”, o que permite “vê-las
como mera ilusões, que não são menos ilusórias por serem vistas como necessárias”160.
Debord corrobora esta idéia de Lukács, visto que um dos véus de que o espetáculo se utiliza
para encobrir a realidade está na concepção fetichista da pura objetividade161, replicada nas
ciências, na imprensa, na filosofia, nas formas de apreensão da realidade. É sobre essas
ilusões necessárias que se funda, ao mesmo tempo em que sustenta ideologicamente a
sociedade de classes: “elas são, portanto, objetos do conhecimento, mas o objeto conhecido
nessas formas fetichistas e através delas não é a própria ordem capitalista de produção, mas a
ideologia da classe dominante”162, e “a 'falsidade' e a 'ilusão' contidas em tal situação real não
são arbitrárias, não são opostas de acordo com um ideal acima delas, ao contrário, são a
expressão mental da estrutura econômica e objetiva”163. A ideologia, portanto, diferentemente
do que afirma Machado sobre Lukács, não é descartada como mera falsa aparência: ela possui
também algo de verdadeiro – que seja a estrutura da própria ideologia. Debord, sem aceitar a
tese de ruptura epistemológica em Marx, assume o conceito de falsa consciência de Marx em
suas várias fases: é uma ilusão, um véu produzido historicamente, fruto das relações de
156DEBORD, SdE, § 88157LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 94.158DEBORD, op. cit., § 143.159LUKÁCS, op. cit., p. 86.160Ibidem, p. 85.161DEBORD, op. cit., § 24.162LUKÁCS, op. cit., p. 86.163Ibidem, p. 143.
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trabalho, que impede a apreensão, por parte dos sujeitos, das relações escamoteadas pelo
sistema de produção capitalista, mas é também a expressão da “essência real” desse sistema,
“da qual a ilusão não constitui um epifenômeno, mas um momento constitutivo”164. “Romper
com esse véu para se chegar ao conhecimento histórico”165, à visão da totalidade, é, de acordo
com Lukács, “uma necessidade vital, uma questão de vida ou morte” do proletariado; o que
justificaria o indivíduo empenhar não apenas sua ação, mas o próprio ser no movimento
político proletário – concepção sobre a qual, conforme Rosenberg, Lenin erigiu sua doutrina
para além do marxismo166. Evitar que a história irrompa – ao menos controlar a forma como
ela desponta na sociedade – é uma das tarefas que o espetáculo se auto-impõe.
O ponto de vista da totalidade que o proletariado possui – ponto de vista que parte
da práxis social –, dá a ele a oportunidade para romper com essa bruma ilusória, visto que ele,
consciente de sua posição no mundo capitalista, determina não somente o objeto, como o
próprio sujeito do conhecimento: “a totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a
determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem
de pensar o objeto como totalidade. Somente as classes representam esse ponto de vista da
totalidade como sujeito na sociedade moderna”167. Esse princípio de totalização a partir da
classe e não individualmente, Lukács toma emprestado de Hegel, para quem, do ponto de
vista do indivíduo, “totalização pessoal era impossível fora do contexto da totalização
global”168. E tal totalização global pressupõe, em Hegel, “que nunca conhecemos objetos
isolados, mas sempre relações de objetos. Assim, só podemos conhecer um objeto ao
conhecermos o conjunto de relações que determinam a significação dos objetos”169. A ciência
burguesa, por seu turno, “– de maneira consciente ou inconsciente, ingênua ou sublimada –
considera os fenômenos sociais sempre do ponto de vista do indivíduo. E o ponto de vista do
indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito o de levar a aspectos de um
domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a 'fatos' desconexos
ou a leis parciais abstratas”170. Assim, o máximo que a ciência burguesa pode chegar é a um
essencialismo, um “formalismo incapaz de conceber as formações sócio-históricas em sua
essência verdadeira”171 – isto é, sua condição dinâmica e relacional –, que mistifica as formas
164ROUANET, A razão cativa, p. 89.165LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 86.166ROSENBERG, A tradição do novo, p. 142.167LUKÁCS,op. cit., p. 107.168JAY, Marxism and Totality, p. 59.169SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 4.170LUKÁCS, op. cit., p. 107.171Ibidem, p. 137.
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sociais em relações naturais, fixas e imutáveis em sua essência, e que desemboca na rejeição
da práxis transformadora, seja em nome de uma política de melhor adaptação do indivíduo
para se dar bem em tal sistema, ou em nome de uma ética, “uma forma de atividade do
indivíduo isolado”172.
A história, aqui, aparece como tarefa insolúvel ao pensamento burguês, incapaz de
dominá-la e compreendê-la – a própria filosofia hegeliana da história, ainda segundo Lukács,
ao tentar dominar o processo histórico pelo pensamento, teria nesse ponto um dos seus
limites173. A concepção dialética, por seu turno, ao pressupor a realidade inserida num
processo histórico, com os fenômenos sendo determinados pelas suas relações, pelas ações
recíprocas, dialéticas e contínuas, apresenta a inteligibilidade desse objeto “a partir de sua
função na totalidade determinada na qual ele funciona”. Com isso, a concepção dialética da
totalidade, ao unir teoria e prática e buscar a compreensão do mundo em sua negatividade, é
“a única capaz de compreender a realidade como devir social”174. O próprio projeto da
Fenomenologia do Espírito, como aponta Safatle, é o “da reconciliação entre pensar e ser, em
seu devir”175. No caso específico de Lukács, ele alia a filosofia crítica de Marx, uma meta-
filosofia que é “uma teoria da teoria, uma consciência da consciência”, e que significa, em
muitos aspectos, “uma crítica histórica”176, e a qual tem como mérito maior dissolver
“sobretudo o caráter fixo, natural e não realizado das formações sociais”, desvelando-as
“como surgidas historicamente e, como tal, submetidas ao devir histórico em todos os
aspectos, portanto, como formações predeterminadas ao declínio histórico”177, com o conceito
instrumental de “categoria da possibilidade objetiva”178: “tipos fundamentais claramente
distintos uns dos outros e cujo caráter essencial é determinado pela tipologia da posição dos
homens no processo de produção”179. É dessa tipologia que se deduz a consciência de classe,
que não é “nem a soma, nem a média do que cada um dos indivíduos que formam a classe
pensam, sentem, etc”180, numa clara influência de Max Weber e seu conceito de tipo ideal,
acrescido de uma dimensão ontológica181. A possibilidade objetiva, ao cabo da revolução e da
conseqüente desreificação da sociedade, seria atualizada, destarte desaparecendo a lacuna
172LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 95.173Ibidem, p. 136.174Ibidem, p. 85. Grifos do autor.175SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 3. Grifo meu.176LUKÁCS, op. cit., p. 135.177Idem, ibidem.178Ibidem, p. 141.179Ibidem, pp. 141-142.180Ibidem, p. 142.181JAY, Marxism and Totality, p. 112.
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hegeliana entre essência e aparência182.
Para poder utilizar essa categoria metodológica, porém, é preciso saber qual a
função prática da consciência de classe, que pode ser “do ponto de vista abstrato e formal (...),
ao mesmo tempo uma inconsciência, determinada conforme a classe, de sua própria situação
econômica, histórica e social”183. Portanto, a possibilidade objetiva do proletariado de tomar
consciência do seu ser social e realizar a revolução social – dar prosseguimento com a era das
revoluções inaugurada pela burguesia –, se deve ao fato – e exclusivamente a ele, conforme o
filósofo húngaro – “de ser capaz de considerar a sociedade a partir do seu centro, como um
todo coerente e, por isso, agir de maneira centralizada, modificando a realidade; no fato de,
para sua consciência de classe, teoria e práxis coincidirem e também, por conseguinte, de
poder lançar conscientemente sua própria ação na balança do desenvolvimento social como
fator decisivo”184. Ação esta que não se prende às formas burguesas, ao “domínio de validade”
que a ciência e o pensamento burguês dão à história, segundo os quais “a história significaria
apenas mudança de conteúdos, de homens, de situações, etc., com princípios eternamente
válidos”185 e tendendo a um fim – a história teria, inclusive, a missão de alcançar esse fim. A
ação do proletário se dá a partir da “história dessas formas, sua transformação como formas da
reunião dos homens em sociedade, como formas que, iniciadas a partir de relações
econômicas objetivas, dominam todas as relações dos homens entre si”186.
Essa fixação na consciência – principalmente na questão da práxis –, em Lukács,
pode ser mais bem compreendida se se enxergar História e consciência de classe como “a
mais articulada expressão, no nível teórico, dos eventos de 1917, dividindo na prática todas as
suas inevitáveis ambigüidades”187, ou seja, se se encarar História e consciência de classe, a
despeito da centralidade da questão da consciência e da articulação com a prática que o livro
traz188, como imbuído da concepção leninista de partido de vanguarda, visto por Lukács como
a tendência do impulso espontâneo das massas, quando na tomada de consciência189. Dentre as
ambigüidades levantadas por Jay, está o fato da consciência de classe precisar ser imputada na
classe trabalhadora, que, se deixada a si própria, não conseguiria ir além do desenvolvimento
de uma consciência sindical (trade-union conscience), reformista – idéia esta também
182JAY, Marxism and Totality, p. 112.183LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 143. Grifo do autor.184Ibidem, p. 172.185Ibidem, p. 136. Grifo do autor.186Idem, ibidem187JAY, op. cit., p. 103.188Ibidem, p. 102.189LUKÁCS, op. cit., p. 130.
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presente em Que fazer?, de Lenin190. Isso acaba por reforçar, ainda que indiretamente, a
necessidade, apontada por Rosenberg, da construção mitológica de Lenin como um herói
moderno, marcado “'por sua inabalável convicção da própria integridade' baseada na 'ciência'
marxista”191, o que, no fundo, influenciou a concepção do homem comunista, como sendo
feito “da substância abstrata dos heróis”192. Rosenberg chega a escarnecer desse homem
comunista, feito à imagem e semelhança de Lenin, ao dizer que ele, “em uma frente de
batalha não se limita, como um comandante de outros exércitos, a dar ordens e fazer com que
sejam cumpridas. Mais como um anjo disfarçado, ou o fantasma de César fantasiado de chefe
dos escoteiros, ele ostenta uma aura de percepção de que se acha predestinado”193. Isso que foi
chamado de mitologia, diga-se de passagem, é um objetivo que soa comum à época, e pode
ser encontrado também em várias vanguardas artísticas do século XX: dadá era mais que um
movimento artístico, era um modo de vida que exigia um engajamento completo194, enquanto
os surrealistas criam na visão profética dos artistas como guia transformadora da realidade,
com Breton defendendo explicitamente, em texto de 1937, “que o surrealismo deve dar-se
como tarefa 'a elaboração do mito coletivo de nossa época', cujo papel ao mesmo tempo
erótico e subversivo seria análogo ao papel desempenhado no final do século XVIII, pouco
antes da Revolução Francesa, pelo roman noir”195. No caso dessas vanguardas, em especial do
surrealismo, além da influência dos partidos revolucionários, deve-se levar em conta também
o legado de Rousseau196, e deixar bem marcada a diferença de que se tratavam de tentativas
deliberadas de construção de mitologias, de exigência de engajamento completo criados
dentro de pequenos grupos, sem o aval, o estímulo e o financiamento do aparato de poder
estatal – como no caso da figura do comunista, em especial de Lênin. Retornando a Lukács,
esse detalhe – nada insignificante – de encarar o todo como dotado de coerência, também de
inspiração hegeliana, aponta para certa crença em alguns pressupostos iluministas, que serão
criticados com mais veemência tanto pelos filósofos da chamada Escola de Frankfurt197, como
por Althusser, e que também será posta em dúvida pela teoria do espetáculo de Debord.
Contudo, estar apto à tomada da consciência de classe por parte da classe operária
não significa tê-la, nem equivale a pô-la em prática, necessariamente. Trata-se de um processo
190JAY, Marxism and Totality, p. 112.191WOLFE, Bertram. Os três que fizeram uma revolução apud ROSENBERG, A tradição do novo, p. 130.192ROSENBERG, A tradição do novo, p. 130.193Idem, ibidem.194DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 135.195BRETON, “La claire tour” apud LÖWY, A estrela da manhã, p. 25.196STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, cap. III197JAY, op. cit., p. 274.
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inserido na história de superar o pensamento reificado dominante na sociedade – pensamento
que é também paralisante da práxis –, em favor de outro, auto-reflexivo e dialético. Primeira e
principal dificuldade está no fato de que a forma de pensar dominante – fragmentada,
parcelar, especializada, formalista – está fortemente imbricada com a própria forma de
produção da sociedade: pode ser vista como um reflexo na consciência da estrutura da
sociedade capitalista. Daí, inclusive, a aparente naturalidade com que emerge e a dificuldade
em desvelá-la. A própria filosofia, a despeito do seu cabedal crítico, não consegue ir além
dessa estrutura, “vai se assemelhando a uma teoria econômica-administrativa”198, se tornando,
via de regra, homologadora do status quo, linha auxiliar da ciência burguesa, para quem
justifica post festum o mundo tal qual está e o seu método de investigação: “a filosofia vai se
aproximando da dinâmica da época”199.
A necessidade de ação do proletariado, inclusive sobre si próprio, repercute
diretamente na forma de organização deste, e na forma como será conduzida a luta de classes
na sociedade. A tentativa de comprovação determinista-científica da revolução por Marx é um
legado que deixou seqüelas profundas no movimento operário posterior; foi, conforme
Debord, “a brecha pela qual penetrou o processo de 'ideologização'”, ainda enquanto ele
vivia200. Com esse processo, o marxismo ulterior pôde muitas vezes ser comparado às
correntes utópicas do pensamento – que eram utópicas, a despeito de “fundadas
historicamente na crítica da organização social existente”201, por rejeitarem a história, “isto é,
a luta real em curso, tanto quanto o movimento para além da perfeição imutável de sua
imagem de sociedade feliz”202. Rejeição à história esta devida ao forte cientificismo que
impregnava tais correntes, crentes no poder social da demonstração científica, a ponto de
acreditar que assim se chegaria à tomada do poder, como no caso de Saint-Simon, o que levou
Sombart a zombar: “Como queriam eles arrancar pela luta o que deve ser provado?”203
Raciocínio semelhante, ainda que menos tosco, norteia a Segunda Internacional e a social-
democracia. Calcado no comentário de Engels, feito em 1895, de que os fracassos das lutas
proletárias revolucionárias ao longo do século XIX teriam se dado não por problemas de
estratégia de luta, antes de análise teórica, visto que “o desenvolvimento econômico no
continente estava então muito longe de se mostrar maduro”204, deduzia-se, em acordo com “a
198MURAKAMI, Dance, dance, dance. p. 82199Idem, ibidem.200DEBORD, SdE, § 84.201Ibidem, § 83202Idem, ibidem.203Idem, ibidem. Grifo do autor.204ENGELS apud DEBORD, SdE, § 84.
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ciência das revoluções, [que] a consciência sempre chega cedo demais, e deverá ser
ensinada”205, para que o proletariado esteja preparado para levar adiante o grande dia da
revolução comunista. Foi esta a tarefa auto-outorgada pelo “marxismo ortodoxo”206 da
Segunda Internacional: entregar aos professores a educação da classe operária. A “forma de
organização da social-democracia era adequada a essa aprendizagem passiva”207.
Se se seguir pelo pensamento de Lukács, a tática de postergar a revolução em
favor de uma “pedagogia revolucionária” tende apenas a tornar tais tarefas – a pretensa
educação do proletariado e a revolução – mais árduas, visto que “a 'maturidade' para a
revolução é um processo longo e difícil, e tanto mais complicado quanto mais altamente
desenvolvidos forem o capitalismo e a cultura burguesa em questão; quanto mais, por
conseguinte, o proletariado estiver contagiado ideologicamente pelas formas capitalistas de
vida”208 – o espetáculo seria um estágio avançado dessa contaminação. O detalhe é que
mesmo sob a influência do partido, para o pensador húngaro, a formação do proletariado para
a revolução deve ser autodidata, e não hetero-dirigida, sob o risco de se acabar na caricatura
descrita por Rosenberg, em que o proletariado, ao aderir ao Partido, se torna membro de “uma
elite dos conscientes”, um intelectual, mas um intelectual desobrigado de pensar, pois a
verdade ser-lhe-á ensinada pelo Partido, de forma que “o comunista costuma ser criticado por
sua renúncia ao pensamento independente. De que vale a atividade mental se se pode saber
mais renunciando a ela?”209 No fim, o ponto aonde se chegou com essa política foi o reforço
da lógica e da dominação espetacular sobre a sociedade. O que não quer dizer que a Segunda
Internacional não entrou em lutas políticas e econômicas concretas: a questão é que tais lutas
eram “profundamente” não-críticas210: a contestação ao sistema era, na verdade, mera
aparência, sendo, no fundo, um estímulo ao seu aperfeiçoamento, com a burocracia sindical –
assistida por jornalistas, deputados e intelectuais – a transformar os operários em “corretores
da força de trabalho, a ser vendida como mercadoria pelo preço justo”211 – que, sempre
confinados em limites seguros, “não só deixam intocados os fundamentos do sistema
capitalista, mas também asseguram sua reprodução em escala crescente”212. Não era o que
argumentava tanto a ciência burguesa quanto a ciência das revoluções: a justificativa desta
205DEBORD, SdE, § 84.206Ibidem, § 95, aspas do autor.207Ibidem, § 96.208LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 478.209ROSENBERG, A tradição do novo, p. 133.210DEBORD, op. cit., § 96.211Ibidem, § 96.212MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 193.
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para esse tipo de ação – anunciada como revolucionária – era a de que o sistema capitalista
não suportaria “economicamente esse reformismo que ele tolerava politicamente na agitação
legalista”213. Ambas as ciências garantiam que esse caminho levaria ao impasse do
capitalismo; “a história os desmentia a cada momento”214 – o que não chega a ser um
problema dentro da organização espetacular da sociedade. A falha das lutas proletárias no
presente, contudo, devia ser encarada como falta de condições objetivas, e a revolução
postergada um tempo mais, em favor do amadurecimento dessas condições, tempo durante o
qual a classe operária seria melhor educada, melhor preparada, cabendo a ela, no fundo, muito
pouco fazer em termos práticos, além de estar de corpo presente no momento oportuno para
agir conforme as ordens dos líderes do partido215, garantindo a substituição do Estado burguês
e o avanço do “Estado revolucionário”, pós tomada do poder. Ocorre que, para o partido
operário adepto da ciência das revoluções, esse momento oportuno para agir é sempre
prorrogado, “a vinda do sujeito histórico é adiada para depois, e a ciência histórica por
excelência, a economia, tende de modo cada vez mais alargado a garantir a necessidade de sua
própria negação futura”216, pondo o movimento operário em pausa, em um permanente estado
de espera, a revolução numa latência eterna, a tomada, finalmente, da história pelos homens
num futuro breve – mas sempre futuro. A Segunda Internacional, cuja ideologia recobra “a
confiança na demonstração pedagógica que caracterizava o socialismo utópico, mas acrescida
de uma referência contemplativa ao curso da história”217, toma a ortodoxia marxista como
exegese de textos sagrados, como doutrina – e não como método –, identificando sua verdade
nos elementos puramente estruturais da sociedade, no processo objetivo da economia,
ignorando as ações recíprocas da superestrutura. Ou seja, descarta qualquer noção de
totalidade – seja a história total de Hegel, seja a imagem imóvel da totalidade, presente na
crítica utópica218 –, em favor de uma visão parcial e unidirecional. O resultado da pedagogia
calcada nessa ideologia foi o de repelir qualquer prática revolucionária de fato para fora do
campo de visão teórica do proletariado219. Pior: mesmo nos momentos oportunos, a prática
revolucionária foi rechaçada. Na leitura de Debord, houve dois momentos emblemáticos,
demonstrativos de que “a hierarquia social-democrata não tinha conseguido educar
213DEBORD, SdE, §96.214Ibidem, §96.215MICHELS, Robert. Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna: investigação sobre
as tendências oligárquica da vida dos agrupamentos políticos.216DEBORD, op. cit., §84.217Ibidem, §95. Grifo do autor.218Idem, ibidem.219Ibidem, §84.
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revolucionariamente, não havia tornado teóricos os operários alemães: primeiro, quando a
grande maioria do partido se juntou à guerra imperialista [a Primeira Guerra Mundial];
segundo, quando, na hora da derrota, ela esmagou os revolucionários espartaquistas”220. Se
Lenin e os bolcheviques foram além da prática reformista, foi simplesmente porque a
ideologia revolucionária da Segunda Internacional não permitia outro tipo de ação nas
condições russas: “Lenin foi apenas, como pensador marxista, um kautsquista fiel e
conseqüente”221.
A explicação debordiana para Marx não ter dado a devida atenção à questão da
organização do proletariado é que, na época em que se fundava o movimento operário, a
teoria revolucionária tinha o caráter unitário, “vindo do pensamento da história,” que tinha se
dado como tarefa “desenvolver até uma prática histórica unitária”222: construída na própria
luta, na premência dos embates, ela teria até conseguido, diante dos seus primeiros êxitos, “se
libertar das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam”223, garantindo o
meio prático que dava validade à teoria224. Contudo, a subseqüente forte reação, e a rápida
derrota e repressão da Internacional, sacramentaram a questão da organização como “o lugar
da inconseqüência” da teoria revolucionária, “ao admitir o uso de métodos estatais e
hierárquicos tirados da revolução burguesa”225. As duas concepções da revolução proletária
que surgiram a partir daí resultaram na negação da formação revolucionária e autodidata da
classe obreira – a única forma, de acordo com Lukács, em que o proletariado “consegue se
libertar da sua dependência ideológica relativa às formas de vida criadas pelo capitalismo”,
com a qual “ele aprende a impedir que elas influenciem internamente suas ações” e “consegue
vê-las como motivos sem menor importância”226 –, pois as duas continham “uma dimensão
autoritária, que [fazia] com que a auto-emancipação consciente da classe [fosse] deixada de
lado”227; ou seja, faziam com que se tornasse impossível uma verdadeira revolução social, em
que as pessoas agem como sujeitos inseridos na história que eles mesmo constroem. De um
lado, os marxistas, do outro, os bakuninistas. Cada um com suas críticas parcialmente
verdadeiras, e cada um como ideologia da revolução operária. Acerca da necessidade do
Estado numa sociedade pós-revolução – tema de vital importância para a organização da luta
220DEBORD, SdE, §97.221Ibidem, §98.222Ibidem, §90. Grifos do autor.223Ibidem, §91.224Ibidem, §90.225Idem, ibidem.226LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 478.227DEBORD, op. cit., §91.
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naquele momento –, “Bakunin combatia a ilusão de que as classes pudessem ser abolidas pelo
uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante
burocrática e a ditadura dos mais doutos ou dos assim considerados. Marx acreditava que um
amadurecimento inseparável das contradições econômicas e da educação democrática dos
operários reduziria o papel do Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas
relações sociais que se imporiam objetivamente”228. Marx sustentava sua posição com base
não apenas na compreensão da história, do momento histórico e da disputa de classes, como
também se sustentava excessivamente em argumentos científicos229. O posicionamento de
Marx na querela com Bakunin teria sido de grande influência àqueles que o seguiram de
maneira acrítica, dogmaticamente – de que a Segunda Internacional e seu marxismo ortodoxo
são a forma mais bem acabada. Kautsky e a social-democracia alemã são o desenvolvimento
deste Marx ideológico e de sua prática mais conseqüente: “a ideologia científica da revolução
socialista”230. Tal ideologia, ao se ater à letra dos textos marxianos, ignorando que seu cerne é
o método, ganha traços do pensamento religioso, na própria questão da convicção no dia da
revolução redentora, e não apenas na exegese e interpretação da obra de Marx: “o ex-operário
Ebert [primeiro presidente da Alemanha, político moderado do Partido Social-Democrata
Alemão] ainda acreditava no pecado, pois confessava odiar a revolução 'tanto quanto o
pecado'”231.
Uma leitura acurada de Marx, conforme Debord, ou mesmo Lukács, deixaria
evidente que o filósofo da práxis nunca abandonou o pensamento unitário, de que teoria e
prática não podem estar separadas, por mais que a forma de demonstração por ele utilizada
tenha sido fragmentada, presa “no terreno do pensamento dominante ao adotar a forma de
críticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da
sociedade burguesa, a economia política”232. Ter sido obrigado a defender e explicar sua teoria
“no trabalho erudito separado, no Museu Britânico, implicava uma perda da própria teoria”233,
era a mostra de que “a teoria revolucionária ainda não atingira sua própria existência total”234.
Pior: “as justificativas científicas tiradas do futuro desenvolvimento da classe operária e a
prática organizacional combinada com essas justificativas tornar-se-ão os obstáculos à
228DEBORD, SdE, § 91.229Ibidem, § 89.230Ibidem, § 95.231Ibidem, § 96.232Ibidem, §84233Ibidem, §85234Idem, ibidem.
39
consciência proletária num estágio mais avançado”235, ou seja, serão novas barreiras à visão
da totalidade, numa lógica que será utilizada para reforçar o espetáculo. Isso em parte porque
se Marx soube – com consciência – se apropriar e superar a filosofia hegeliana, acabou se
vendo estreitamente ligado ao pensamento científico burguês da época, de forma a não
conseguir ter o mesmo discernimento para superá-lo criticamente. A ligação a este
pensamento seria perceptível, por exemplo, na “compreensão racional das forças que se
exercem na sociedade”236. A sua superação, ao notar que se trata “de uma compreensão da
luta, e não da lei: 'Conhecemos uma única ciência: a ciência da história', diz A ideologia
alemã”237. A superação do pensamento científico sem a mesma consciência em relação ao
pensamento hegeliano resultou, por fim, na falha teórica que implicou nas diretrizes da
Segunda Internacional, as quais redundaram na perda do caráter revolucionário do movimento
operário, que sob tais diretrizes agiram; pois a falta de consciência permite retrocessos e acaba
muitas vezes por balizar a teoria e a conseqüente prática em pontos que haviam sido
superados. Não por acaso, Debord diz que “o projeto de Marx é o de uma história
consciente”238, e isso deveria valer para tudo, tanto no que tange à prática, em que “o
quantitativo que surge no desenvolvimento cego das forças produtivas meramente econômicas
deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa”239, quanto à teoria, em que “a
crítica da economia política é o primeiro ato desse fim da pré-história”240, marcada pela
supremacia do quantitativo. Contudo, a crítica da economia política, isolada do seu contexto
de luta, desembocou naquilo que Debord encarou como o resumo de “toda insuficiência
teórica na defesa científica da revolução proletária”241: a identificação do objetivo do
proletariado com o que foi o objetivo da revolução burguesa - a tomada revolucionária do
poder através da apropriação e reforma do Estado242. Isso porque esta teoria científica da
revolução parte de uma série de premissas equivocadas já desde o próprio Marx.
Especificamente no caso do Estado, Marx teria descuidado do seu papel econômico na gestão
da sociedade classes, ignorando que ele é um instrumento ativo e positivo do
desenvolvimento da economia burguesa: o “laisser faire, laisser passer” do liberalismo
esconde um poder central de gestão calculada do processo econômico243, muito diferente do
235DEBORD, SdE, § 85.236Ibidem, § 81.237Idem, ibidem.238Ibidem, § 80.239Idem, ibidem.240Idem. Grifo do autor.241Ibidem, § 86. Grifo do autor.242Idem, ibidem.243Ibidem, § 87.
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balcão de negócios da burguesia, mero facilitador – “não-atrapalhador” – da economia. A
oposição e o desenvolvimento autônomo da burguesia frente o Estado se deram apenas
enquanto este era instrumento de opressão de classe numa economia estática, ou seja, o
Estado Antigo, feudal, medieval244. Mesmo no Estado Absolutista, com sua corte dispendiosa,
sob a gestão econômica mercantilista, não havia a oposição entre Estado e burguesia, muito
pelo contrário; e, por mais que esta logo passasse a não considerar tal desenho estatal sua
forma mais bem acabada, para aquele momento histórico foi fundamental – até para instituir
certa racionalidade necessária ao sistema capitalista245.
No bonapartismo, em compensação, em que o que se destaca é a questão política,
assunto ao qual Marx se mostrou mais sensível, já é esboçada uma descrição da burocracia
estatal – “fusão do capital e do Estado, constituição de um 'poder nacional do capital sobre o
trabalho, de uma força pública organizada para a sujeição social'”246 –, e é possível extrair
algo próximo a um tipo ideal de raio de ação política desejada (e praticada) pela burguesia
para as outras classes, assim como para si mesma: igualar todas no mesmo nada político. Se
deveras acontece de os avanços democráticos garantirem uma ampliação do conceito de
cidadania e uma maior igualdade entre os cidadãos, independentemente da classe, é porque
enquanto aproximam os direitos de proletários e burgueses, o que ocorre de fato é um
nivelamento por baixo entre ambos – a perda da participação política efetiva de todos247. Para
Debord, essa tendência é um dos elementos constitutivos do Estado moderno, cujos
aperfeiçoamentos institucionais nunca mudaram de rota, a despeito – ou melhor, com a ajuda
– das agitações legalistas e das práticas reformistas do movimento operário, calcadas na
Segunda Internacional. Logo, o Estado moderno, o Estado burguês, com todo seu aparelho
burocrático, com toda sua capacidade de organização e gestão, “a violência concentrada e
organizada da sociedade”248, não pode ser instrumento do proletariado, nem com práticas
reformistas e ganhos graduais de direitos legais, nem com sua tomada jacobina: se tal Estado
serviu para “ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção
em capitalista”, abreviando a transição249, o mesmo não se dá na revolução proletária:
“nenhuma ideologia lhe pode servir para disfarçar objetivos parciais em objetivos gerais,
porque ele não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efetivamente dele”250. E
244DEBORD, SdE, § 87.245MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p 84.246DEBORD. op. cit., § 87.247Idem, ibidem.248MARX, op. cit., livro I, Tomo II, p. 286.249Idem.250DEBORD, op. cit. § 88.
41
não há como pôr o Estado a serviço de todos: ele foi fundado sob princípios conservadores,
para impor uma visão de mundo específica, para atender aos interesses de uma determinada
classe social, a burguesia – o que o torna, por princípio, impeditivo de uma visão da
totalidade. Trata-se de um instrumento enviesado por sua própria constituição: um Estado
intrinsecamente burocratizado, hierarquizado, separado em esferas especializadas, com vistas
à sujeição social; em suma, o Estado burguês é um Estado gestor do processo econômico e do
processo político, apto a garantir a progressão da história da economia e o congelamento da
história dos homens, bem de acordo com o ethos burguês – após ter feito sua revolução e se
firmado no poder – de abdicar de toda política, de toda história, “que não seja sua redução à
história econômica das coisas”251.
“Houve história, mas já não há”252. Debord vê no nascimento deste Estado
burguês moderno – nascimento que se deu sob o signo do bonapartismo – as bases
sociopolíticas do espetáculo, que se refletirão na organização estatal tanto do bloco capitalista
quanto do bloco comunista. Para ele, aceitar qualquer política estatal, qualquer migalha que
venha sob o rótulo de ampliação de direitos – que trazem embutidos o custo de maior
cerceamento político-histórico –, é coadunar com esse Estado, é aceitar a história econômica
como única história: por isso a recusa do espetáculo só é efetiva se for radical 253. E é a partir
da recusa dessa organização sócio-estatal, que é também a negação de seu ser social, fruto de
seu “conhecimento da sociedade burguesa”254, que, pela negativa, o proletariado se afirma
como a única classe pretendente à vida histórica255, como única classe disposta ao gládio
permanente, ao embate político quotidianamente – inclusive porque a classe proletária só se
constitui como sujeito durante a organização das lutas revolucionárias e na organização da
sociedade no momento revolucionário256. Tal como a social-democracia, Debord admitiria que
há, sim, um momento oportuno – um kairós – para o levante revolucionário. Todavia,
contrariamente à ideologia revolucionária, toda a propedêutica à revolução que os partidos de
vanguarda pretendem ensinar aos operários para esse momento não passa de reforço à lógica
espetacular de contemplação do curso da história, incapaz de torná-los sujeitos históricos: “a
fusão do conhecimento e da ação precisa realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que
cada um desses termos coloque no outro a garantia de sua verdade”257. Quer dizer, desde que o
251DEBORD. SdE, § 87.252Ibidem, § 143.253Ibidem, § 122.254LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 378.255DEBORD, op. cit., § 87.256Ibidem, § 90. Grifo do autor.257Idem, ibidem.
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ponto de vista da totalidade esteja presente e atuante conscientemente, a todo instante.
O ponto de vista da totalidade, acrescido da recusa radical do espetáculo – em boa
medida conseqüência dessa perspectiva –, não pode ser confundido com a recusa da imagem
enquanto tal, por maior que seja a desconfiança de Debord para com “as categorias do ver”,
que dominam o pensamento Ocidental desde a Grécia Antiga no seu modo de compreender a
atividade e são, segundo ele, “a fraqueza do projeto filosófico ocidental”258 – o que faz com
que ele bem se enquadre em certa tradição filosófica francesa, levantada por Martin Jay no
livro Downcast Eyes.
Uma das apresentações de Debord do conceito de espetáculo é uma releitura do
fetichismo da mercadoria, que Marx tomara de empréstimo de E. G. Wakefield, que
“descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas intermediada
por coisas”259: “por um lado, vê-se aqui como o intercâmbio de mercadorias rompe as
limitações individuais e locais do intercâmbio direto de produtos e desenvolve o metabolismo
do trabalho humano. Por outro lado, desenvolve-se todo um círculo de vínculos naturais de
caráter social, incontroláveis pelas pessoas atuantes”260. Para o polemista francês, o espetáculo
é “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”261, uma “Weltanschauung que se
tornou efetiva, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou”262. Trata-se,
portanto, de mais do que “um conjunto de imagens”263, do que “o abuso de um mundo da
visão, o produto das técnicas de difusão maciça de imagens”264, como será reforçado na crítica
espetacular do espetáculo nos anos subseqüentes à sua teoria265: é um ponto de vista que tem
suas bases no modo de produção e que ganha, graças à sua linguagem peculiar – o abuso da
imagem –, auxiliada pelas novas tecnologias, o poder de ser mais do que ideologia, de se
tornar algo sensível. Para Aquino, “o que Debord tem em vista sob o conceito de 'imagem' são
justamente as relações sociais fetichistas, fundadas na autonomização do valor e estendidas à
totalidade do uso social do tempo, do espaço, para além do trabalho assalariado, mas
essencialmente obedecendo à sua lógica disciplinar e contemplativa”, não sendo “uma
referência estrita à visão 'sensível'”, como julga Mario Perniola266. Ao se lidar com o
espetáculo não se está lidando com uma mera questão de apreensão do mundo pelo indivíduo,
258DEBORD, SdE, § 19.259MARX, O Capital, livro I, Tomo II, p. 296.260Ibidem, livro I, Tomo I, p. 99.261DEBORD. op. cit., § 4.262Ibidem, § 5.263Ibidem, § 4.264Ibidem, § 5.265DEBORD, Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, III.266AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 70.
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mas de construção empírica e simbólica – via processos produtivos e via linguagem – deste
mundo, o engajamento do sujeito nesse enorme processo de emaranhadas relações sociais.
São questões teóricas e práticas, epistemológicas e políticas que estão em jogo.
A relação da filosofia ocidental com o sentido da visão não é unidirecional, linear
ou progressiva. Sua origem remonta à Grécia Antiga, acompanha a ascensão de um mundo
ocularcêntrico no início da Idade Moderna267 – que encontrou na França um domínio maior e
mais evidente268 –, e tem seu ponto de inflexão na filosofia francesa no século XVIII, em
especial com Jean-Jacques Rousseau, sendo Descartes – considerado por muitos, como
Richard Rorty, “o pai fundador do paradigma visualista moderno”269 – e o cartesianismo os
principais interlocutores do pensador genebrino.
De início, pode parecer incongruente que o pensador que duvidou de todos os
sentidos para começar a constituir sua filosofia seja tido como um filósofo que reforçou a
ordem ocularcêntrica do mundo. O ponto em Descartes, entretanto, está em que, após a
dúvida radical do início, sua filosofia é construída a partir da noção de representações que
existiriam na mente270. A visão é, antes de tudo, a visão dessas idéias na mente, representações
imagéticas do mundo exterior – este, sim, visto com o sentido da visão, mas factível de falhas,
se não se tiver uma clara compreensão delas. Ao ter o conhecimento como a visão clara da
representação do mundo produzida em nossa mente pelos sentidos, Descartes “foi o fundador
da tradição especulativa da reflexividade identitária, na qual o sujeito é tão-somente sua
imagem no espelho”271: não apenas o mundo, mas o próprio sujeito perde sua imediaticidade,
se tornando um duplo de si mesmo. Sua teoria do conhecimento, por conseguinte, se assenta
não na semelhança ou similaridade do conhecimento com relação ao objeto, mas na
representação desse objeto – de que Kant posteriormente se apropriará ao afirmar que a razão
só é capaz de conhecer a representação das coisas, e não a coisa-em-si. Nessa transposição da
coisa e sua semelhança para a representação pura e simplesmente, nessa necessidade de
mediação para o conhecimento, transpassa um corte lingüístico – tido por natural e ahistórico
–, com o qual, conforme Jay, “Descartes estava sutilmente abrindo a porta para a
epistemologia não-visual, linguisticamente orientada de veridicção”272. A posição, o
posicionamento de Descartes pode ser melhor compreendido a partir do contexto da época, do
267JAY, Downcast eyes, p. 44.268Ibidem, p. 69.269Ibidem, p. 70 270RORTY apud JAY, Downcast Eyes, p. 70.271JAY, op. cit., p. 70.272Ibidem, p. 80.
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processo de revalorização da imagem que corria então. De acordo com a leitura de Martin Jay,
não é o caso de que tenha havido durante a chamada Idade Média européia hostilidade para
com a visão, como sugerem Lucien Febvre e Robert Mandrou273: ela apenas ocupava o
terceiro posto na hierarquia dos sentidos, atrás do tato e da audição274 – o que não implica
num papel subalterno, se se tiver em vista “a luz brilhante que cobre as catedrais góticas (uma
luz cuja importância metafísica foi enfatizada pelo Abade Suger), o culto às relíquias visuais
e, finalmente, a iluminação vívida dos manuscritos”275. Jay identifica três pontos principais da
relação medieval com a visão, que direcionaram o mundo ocularcêntrico que surgiria na
Europa a seguir. Primeiro, a metafísica medieval da luz, adaptação religiosa carregada de
platonismos, que manteve a visão como o mais nobre dos sentidos, apesar do perigo dela fazer
surgir pensamentos lascivos. Segundo, a longa disputa acerca das implicações da idolatria
desta metafísica, e a diferenciação entre representação e fetichismo, iconolatria e idolatria.
Isto – somado à separação entre visual e textual – acabou por ajudar a preparar “o caminho
através do qual se pode dizer que houve a autonomização secular do visual como um domínio
para si mesmo”, o que foi crucial para a emergência da visão de mundo (worldview,
Weltanschauung) científica276. Por fim, o terceiro ponto é que a visão nunca perdeu sua
capacidade persuasiva no campo sacro. Ajudada pelas novas tecnologias – como imprensa e
perspectivismo –, se tornou dominante no mundo Moderno, servindo a novos senhores277.
Esse domínio não implica, todavia, em uniformidade, e é claro que houve disputas pela
hegemonia sobre o campo visual que emergia com força.
Uma dessas tensões foi a presença do regime ocular barroco, em disputa com o
ordenamento visual científico ou “racionalizado”278, derivado do Renascimento. Essa
“racionalização do olhar”279 vem de um processo que abrange mudanças sociais, políticas e
estéticas, além das inovações técnicas, contribuindo para aquilo que Norbert Elias chamou de
“processo civilizador”, em que os elaborados rituais de corte de exibição, inventados para
marcar as articulações da hierarquia social, “levaram a uma desvalorização dos sentidos mais
íntimos, como o cheiro e o toque, em favor de uma visão distanciada”280. A função política
deste espetáculo da corte foi a emergência de um “aparato mecânico no qual o poder do
273JAY, Downcast eyes, p. 36.274Ibidem, p. 34.275Ibidem, p. 41.276Ibidem, p. 44.277Ibidem, p. 45.278Idem, ibidem.279IRVIN apud JAY, Donwcast Eyes, p. 49.280JAY, op.cit, p. 49;
45
controle visual estava despersonalizado”281, em que os indivíduos estavam constantemente sob
vigilância – dado sua localização no centro de uma rede de canais visuais. Concomitante, a
imagem vai desvencilhando seu caráter figurativo do textual282, com a representação valendo
por si e a perda da função narrativa do campo ocular: “um elemento importante numa
mudança maior da mudança de ler o mundo como um texto inteligível (o 'livro da natureza')
para a aparência de um objeto observável, mas sem sentido, onde Foucault e outros
argumentam estar o símbolo da nova ordem epistemológica”283.
Característica fundamental desta mudança está na percepção do espaço, tanto nas
artes quanto nas ciências: ele muda de significado, altera sua forma de apreensão, cresce em
importância. O fim da necessidade textual – que só será alcançado plenamente no século XX,
com a pintura abstrata284 – abre espaço para signos carregados de significados simbólicos, que
surgem em profusão e confusão nas obras de Botticelli, Giorgione, Carpaccio e Bosch, por
exemplo, conforme estudo de Albert Cook285. Ao trabalhar com o simbólico, a preocupação se
desloca da sua posição na narrativa para a localização na tela, já sob as regras da perspectiva,
da técnica de ilusão tridimensional na tela plana e bidimensional286. Ilusão esta que ganha ares
de neutralidade, de ahistoricidade, que na representação textual podia ser posta em questão,
tão cedo caísse o argumento de autoridade287. “O espaço e não os objetos nele passam a ter
importância crescente”288. E com a separação da estética em campo isolado do religioso – em
especial após a Reforma –, a “perspectiva estava livre para seguir seu próprio curso e se tornar
a cultura visual naturalizada de uma nova ordem artística”289 e urbana290. De maneira
semelhante acontece a mudança na percepção e utilização do espaço pela ciência. Também
neste caso, “o espaço estava despojado de sua qualidade de ser um significante independente
para se tornar um sistema ordenado e uniforme de coordenadas lineares abstratas. Enquanto
tal, ele era menos a plataforma para o desenvolvimento de uma narrativa do que o recipiente
infinito de processos objetivos”291. Ou seja, “a conseqüência imediata da revolução científica,
com seus débitos para a noção perspectiva do espaço, foi a narrativa ser banida do método
281JAY, Downcast eyes, p. 50.282Ibidem, p. 51.283Ibidem, p. 51.284Idem, ibidem.285COOK, Albert. Changing the signs: The fifteenth-century breakthrough apud JAY, Downcast Eyes, p. 51.286JAY, op. cit., p. 51.287Ibidem, nota 104, pp. 51-52.288Ibidem, p. 52.289Idem, ibidem.290MUMFORD, A cidade na história, p. 397.291JAY, op. cit., pp. 52-53.
46
cognitivo que produz 'a verdade' sobre a realidade exterior”292. Isso significou a
matematização de todas as relações aspirantes à veridicção sobre o mundo, reduzindo-as a
grandezas e abstrações espaciais.
Em suma, ao mesmo tempo em que o visual passa a predominar na ordenação do
mundo, este não é a visão dos sentidos: a substituição do mundo visual pelo campo visual,
conforme Gibson293, é antes um recorte da realidade que passa pela abstração desse campo,
tanto no início quanto no final do seu processo de conhecimento. A perspectiva cria um
espaço cenográfico teatralizável294: uniforme, infinito, isotrópico; nas artes, na arquitetura e
no urbanismo, nas ciências, na política, na economia. Jay assevera, independente do peso
relativo que possa ter, que a ascensão da perspectiva e o prosperar do capitalismo ocorreram
simultaneamente e em acordo295 – possuem “afinidades eletivas”, termo que Weber tomou de
empréstimo de Goethe para suas análises da sedimentação do capitalismo296 –, e cita como um
exemplo de invasão da esfera capitalista pela abstração que dominava o espaço a invenção
renascentista do “'dinheiro imaginário' sem qualquer lastro prévio em metais valiosos, como
ouro”297.
É com esse cabedal, a partir desse contexto que Descartes irá refletir e construir
sua filosofia, sua epistemologia, sacramentando filosoficamente a mudança do paradigma de
mundo visual para campo visual298, em que Deus deixa de ser absoluto para se tornar mero
fiador de um conhecimento, fruto de uma ordem lingüística humana – uma linguagem que
busca o máximo de clareza e distinção para nomear as representações do mundo que encontra
em si. Trata-se de um mundo visível que foi organizado “para o espectador como o universo
outrora fora disposto para Deus”299, e que Descartes reforça ao dizer que “sua própria
investigação filosófica [era] uma excursão na qual ele tentou 'ser um espectador ao invés de
um ator' nos assuntos do mundo”300. O legado de Descartes no iluminismo francês pode ser
notado, por exemplo, em Voltaire, que, apesar de não partir do pressuposto das idéias inatas,
“usou 'idéia' para se referir a uma representação interna na consciência humana, uma imagem
no olho da mente. Idéias não são mais realidades externas objetivas à mente subjetiva, como o
292JAY, Downcast eyes, p. 53.293Ibidem, p. 55.294FRANCASTEL apud JAY, Downcast eyes, p. 57.295JAY, op. cit., p. 59.296GOETHE, J. W. As afinidades eletivas. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.297ROTMAN, Brian. Signifying nothing: the semiotics of zero apud JAY, Downcast eyes, p. 58.298JAY, op. cit., p. 81.299BERGER, John. Ways of seeing apud JAY, Downcast Eyes, p. 54.300DESCARTES, Discourse on method apud JAY, Downcast Eyes, p. 81.
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Eidos platônico”301. Ou então em Montesquieu, cujo método de compreensão era baseado em
captar o mundo num instante, numa visão panorâmica do cenário, tanto social quanto natural,
o que o punha como espectador envolvido apenas de longe com o objeto de sua observação
(“não é para se surpreender que Montesquieu tenha sido muito venerado como o pai da
ciência social imparcial, em busca de formas eternas da vida política e social”302).
Contudo, o trajeto de racionalização e abstração do espaço e da visão não foi este
trajeto em linha reta pintado até agora. No meio do caminho havia o barroco, disputando a
supremacia sobre a ordem visual emergente na Modernidade – e que terá grande apelo no
século XX, em Debord como em outros filósofos, que se oporão à racionalidade técnica-
científica da época. O barroco surgiu em conexão com a contra-reforma, a resposta da Igreja
Católica às mudanças operadas pela Reforma Protestante, pela revolução científica e pelas
explorações além-mar do século XVII303. No âmbito da reforma, o barroco apela à sedução
dos sentidos para tentar reaver o rebanho perdido, se opondo assim à radical suspeição
protestante frente à visão em favor da palavra de Deus proferida sem mediações304. Nas
ciências, o barroco se choca com a visão da razão científica, subvertendo sua ordenação com
seu desprezo pela claridade lúcida e pelas formas essenciais. Ao invés de aspirar uma visão
totalizadora, a visão barroca celebra, de acordo com Buci-Glucksmann, “a confusa interação
entre forma e caos, superfície e profundidade, transparência e obscuridade”305, fazendo uso de
uma “sobrecarga do aparato visual com um excedente de imagens numa pluralidade de planos
espaciais”306, como se percebe em sua arte. Essa “loucura da visão”307 resulta numa
perspectiva deslumbrante e distorcida, oposta à clara e tranqüila perspectiva da verdade do
mundo exterior. O barroco, em suma, tenta representar o irrepresentável e invariavelmente
falha nessa sua tarefa: daí que ele expresse a melancolia característica do período: “o
entrelaçamento da morte e do desejo”308, a fixação no singular, insatisfatória e destituída de
esperanças, porque vinculada “à consciência de que a realidade, enquanto algo a ser
conformado, escapa ao indivíduo”309. Walter Benjamin, a partir da sua pesquisa sobre o
barroco, trabalha em cima do conceito de “alegoria”. Bürger tenta destrinchá-lo em suas
partes constitutivas e apresenta o seguinte esquema: “1. O alegorista arranca um elemento à
301JAY, Downcast eyes, p. 84.302Ibidem, p. 90.303Ibidem, p. 45.304Ibidem, p. 46.305Ibidem, p. 47.306Ibidem, pp. 47-48.307BUCI-GLUCKMANN apud JAY, Downcast eyes, p. 47.308JAY, op. cit., p. 48.309BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 130.
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totalidade da vida. Ele o isola, priva-o de sua função. Daí ser a alegoria essencialmente um
fragmento e se situar em oposição ao símbolo orgânico (...). 2. O alegorista junta os
fragmentos da realidade assim isolados e, através desse processo, cria sentido. Este é, pois,
um sentido atribuído; não resulta do contexto original dos fragmentos. 3. Benjamin interpreta
a atividade do alegorista como expressão da melancolia (...). 4. Também a esfera da recepção
é considerada por Benjamin. A alegoria, que pela sua natureza é fragmento, apresenta a
histórica como decadência”310. Jeanne Marie Gagnebin, por seu turno, enfatiza a relação entre
alegoria e tempo. Conforme a autora, “a reabilitação da alegoria é, tal como Benjamin a
empreende, como uma reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao ideal
de eternidade que o símbolo encarna”311. Temporalidade esta que começa no próprio fato da
alegoria ser depreciada pela tradição filosófica clássica, por conta da “sua historicidade e pela
sua arbitrariedade”312. A retomada desse conceito como chave para explicar não apenas o
drama barroco como a lírica baudelairiana no contexto da modernidade, assim como a força
questionadora das vanguardas do século XX, está de acordo com base marxista de crítica da
história: assumir uma posição clara de onde se está falando – o ponto de vista do proletariado
–, que é uma posição arbitrária, ditada pelo modo de produção; assim como reconhecer o
caráter histórico de tudo o que é social e humano, recusando qualquer trans-historicidade ou
ahistoricidade. A unificação destes momentos distintos, barroco e modernidade, sob o mesmo
conceito articulador de uma chave interpretativa é também uma crítica do autor ao
historicismo. Frente ao preenchimento do tempo vazio e homogêneo com uma enumeração
oca de acontecimentos, Benjamin defende “um encontro secreto, marcado entre as gerações
precedentes e a nossa”313, em que “a história que se lembra do passado também é sempre
escrita no presente e para o presente”314, ou seja, trata-se de “articular historicamente o
passado”, o que “não significa conhecê-lo 'como ele é de fato'. Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”315 – e a classe operária está
permanentemente sob risco. Esses destaques de pontos isolados da história – passada e
presente – “só serão verdadeiramente salvos quando formarem uma constelação”, quando
receberem um nome e um traço comum que as reunirá316: “o esboço de uma ligação inédita
entre dois fenômenos histórico; graças a esta ligação, dois elementos (ou mais) adquirem um
310BÜRGER, Teoria da vanguarda, pp. 127-128.311GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 31.312Idem, ibidem.313BENJAMIN, “Sobre o conceito de história”, tese 2.314GAGNEBIN, op. cit., p. 97.315BENJAMIN, op. cit., tese 6.316GAGNEBIN, op. cit., p. 15.
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novo sentido e desenham um novo objeto histórico, até aí insuspeitado, mais verdadeiro e
mais consistente que a cronologia linear”317. Para se contrapor ao tempo mecanicista,
Benjamin se baseia no modelo epistemológico da “teologia judaica, da grande esperança
religiosa e histórica afirmada na História do Exílio e da Redenção”, além dos modelos da
historia naturalis e da filosofia de Platão, culminando os três na teoria do Ursprung
(origem)318. “A origem seria, por assim dizer, uma Idéia que só pode se realizar
verdadeiramente historicamente: 'Em cada fenômeno de origem se determina a forma com
[sob] a qual uma idéia se confronta [sempre de novo] com o mundo histórico, até que ela
atinja a plenitude na totalidade sua história'. Uma definição que coloca em questão não só a
eternidade da Idéia platônica, mas também uma representação abstrata e vazia do tempo
histórico como sucessão infinita de pontos que somente a ordem de sua aparição
interligaria”319. Assim, “'a alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno
coexistem mais intimamente'. Por isso ela floresce na idade barroca, dilacerada entre os
dogmas da fé cristã e a cruel imanência do político, por isso também voltará num Baudelaire,
dividido entre a visão de uma 'vida anterior' harmoniosa e a de uma modernidade
autodevoradora”320. Ou seja, o alegorista coleta fragmentos de ordens díspares que coexistem
e não se harmonizam, e os inscreve no tempo presente, em busca de um sentido em meio a
essa sensação de luto, de morte: “a dolorosa resignação ao transitório e ao fugidio”321.
Portanto, ele se opõe à defesa exultante da ordem vindoura e seu porvir, e denuncia uma
ordem social essencialmente cindida. Da mesma forma, a própria interpretação alegórica se
apresenta como “produção abundante de sentido, a partir da ausência de um sentido último,
expõe as ruínas de um edifício do qual não sabemos se existiu, um dia, inteiro”322.
Outro ponto de questionamento e perda de confiança na visão tal qual posta pela
racionalidade hegemônica da Modernidade, Starobinski encontra no fim do século XVII, a
partir de duas tendências: uma nova valorização da penumbra, tida como um complemento
necessário – até mesmo como fonte – da luz323; e a revivificação neo-platônica de um ideal de
beleza que não pode ser percebidos pelos olhos normais, na observação mundana324. Estes
pontos fazem com que se retome a relação ambígua com a visão não só de Platão, como da
317GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p 15.318Ibidem, p. 12.319Ibidem, p. 15.320Ibidem, p. 37.321Ibidem, p. 42.322Ibidem, p. 46.323JAY, Downcast eyes, p. 107.324Ibidem, p. 106.
50
filosofia grega. Conforme Jay, na senda de Jonas, a questão da visão, do visível, sempre foi
muito forte entre os gregos. “A palavra teatro, como é constantemente anotado, divide a
mesma raiz das palavras teoria, theoria, que significa olhar para algo de modo atento,
observar, contemplar. Assim também ocorre com teorema, o que autoriza alguns
comentadores a enfatizar o privilégio da visão na matemática grega, com sua ênfase em
geometria”325. Segundo Jonas, “Platão, e com ele a filosofia ocidental, fala do 'olho da alma' e
da 'luz da razão'. Nas primeiras linhas da 'Metafísica', Aristóteles relaciona o natural desejo de
todos os homens por conhecimento com o prazer universal com as percepções dos sentidos,
acima de qualquer outro a visão”326. Ao mesmo tempo, a visão guarda certo aspecto maligno,
expresso em alguns mitos centrais da cultura grega, tais como Narciso, Orfeu e Medusa327. Em
situação diversa, mas complementar, a ausência da visão pode ser também encarada na cultura
grega como algo positivo, em geral ligado à predição do futuro, a uma percepção mais
profunda do que se passa no mundo, como se a não-apreensão espacial abrisse uma janela
para a apreensão temporal numa magnitude maior328. Em Platão, essa ambiguidade é
reproduzida no Timeu, em que o sentido da visão é apresentando como criado junto com a
inteligência humana e a alma – enquanto os demais sentidos são postos como do ser material
do homem329 –, e no mito da caverna, em que um dos pontos fulcrais é a desconfiança para
com os sentidos, inclusive a visão. A suspeição frente ao visual pode ser notada também n 'A
República, onde ele hostiliza as artes miméticas, em especial a pintura330. Contudo, o trajeto
de Platão – a crer na cronologia atribuída atualmente aos seus diálogos – não permite que se
afirme com Jay que Platão, “que nos disse no Timeu que a visão é o maior dom da
humanidade, também nos adverte contra as ilusões de nossos olhos imperfeitos”331. Mais
condizente parece ser dizer que Platão, após longa cruzada contra os sentidos, todos muito
falíveis, inclusive pelas e nas artes – apenas a música, com sua proporção matemática, seria
capaz de alcançar a forma sem ser enganadora332 –, acaba por admitir, a despeito das possíveis
falhas, que a visão, ao menos, é imprescindível para o ser humano atingir as formas
verdadeiras – a questão talvez estivesse na forma como a visão é utilizada, ou mal utilizada.
Aqui se pode voltar a concordar com Jay, quando este diz que, para Platão, os verdadeiros
325JAY, Downcast eyes, p. 23.326JONAS, O princípio da vida, p. 159.327JAY, op. cit., p. 28.328Ibidem, p. 26.329PLATÃO, Timeu, 61d-68e apud JAY, Downcast eyes, p. 26.330JAY, op. cit., p. 27.331Idem, ibidem.332Idem, ibidem..
51
filósofos “não são mero 'excursionistas', conselho tomado em consideração de maneira
absoluta por pesadores posteriores, como Democritus, de quem se diz que se cegou para 'ver'
com seus intelecto”333. A vitória da filosofia sobre o sofismo pela forma autêntica de
homologação da veridicidade, afinal de contas, é justa à vitória da visão, eidon, sobre a
palavra, o logos, da episteme sobre a doxa, da razão monológica sobre a dialógica. A retórica
passa a ser incapaz de atingir o justo, o belo e o verdadeiro, com conseqüências para o
diálogo, enquanto a verdade se torna passível de ser “tão despida quanto um corpo nu”334,
numa alusão ao ideal grego do corpo desnudo, mostrado nas competições atléticas335 ou
presente na escultura, por exemplo – diferentemente da ênfase hebraica no vestuário, ou da
vergonha persa das funções excretórias336 –, que Mario Perniola vê como “em harmonia com
o viés pela claridade e transparência visuais”337. A mesma alteração do retórico para o visual
pode ser observada na polis grega – tanto no seu desenvolvimento, quanto no
desenvolvimento do seu ideal –, de acordo com Mumford. A formação do cidadão grego, diz
o pensador estadunidense, se dava não tanto pelas escolas e academias, mas antes “através de
todas as atividades, de todos os deveres públicos, de todos os pontos de encontro e de
conversa”338, de modo que “os ateniense, não apenas pela fria reflexão ou contemplação,
como erroneamente aconselhavam os filósofos, mas pela ação e participação, incentivadas
pelas emoções fortes e por uma detida observação e direto intercurso de face a face,
conduziam suas vida”339. Contraposta a essa cidade baseada no diálogo, a cidade ideal de
Platão – que “subestimava os estímulos e desafios vitais ao crescimento: a variedade, a
desordem, o conflito, a tensão, a fraqueza e até mesmo o fracasso temporário”340 –, se tivesse
sido levada a cabo, “teria transformado o diálogo urbano num estéril monólogo do poder
totalitário”341. Já Aristóteles, se conseguiu estabelecer uma função e uma extensão sensata
para sua cidade ideal, não deixou de aprofundar a supremacia da visão, ao defender que “'o
melhor limite da população da cidade, pois, é o maior número suficiente para as finalidades da
vida e que pode ser abrangido de um único olhar'. De um único olhar: eis aí uma concepção
ao mesmo tempo estética e política de unidade urbana”342, e mais do que urbana. Para muitos
333JAY, Downcast eyes, p. 27.334Ibidem, p. 24.335MUMFORD, A cidade na história, p. 185.336Ibidem, p. 183.337PERNIOLA apud JAY, Downcast eyes, p. 24.338MUMFORD, op. cit., p. 188.339Ibidem, p. 187.340Ibidem, p. 197.341Ibidem, p. 201.342Ibidem, p. 206.
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autores, esta supremacia do visual acabou por fazer com que a filosofia grega se inclinasse
para a abstração, na sua consciência dialética de permanência e mudança, culminando numa
verdade definida epistemologicamente de modo desinteressado e monológico, baseado no
visual343.
Para Hans Jonas, o viés visual da filosofia grega, que já celebrava a visão como o
sentido mais excelente344, não forneceu apenas analogias para a superestrutura intelectual – as
metáforas da theoria seriam tiradas predominantemente da esfera visual345 –, “serviu também
em larga escala como modelo da percepção em geral, e com isto como padrão e medida para
os outros sentidos”346. Se por um lado a visão, para exercer seu ofício de reconhecer, precisa
ser completada por outros sentidos e funções, por outro, sua autonomização faz emergir três
características muito singulares e de vital importância na forma como se construiu a apreensão
e inserção no mundo do homem ocidental: “1) simultaneidade na apresentação de uma
variedade, 2) neutralização da causa da afecção do sentido, 3) distância no sentido espacial e
espiritual”347. Enquanto sentidos como audição e tato “constroem suas 'unidades do
múltiplo'”348, e necessitam estar imiscuídos com o tempo para terem existência, são processos,
se desenrolam no tempo e dependem da memória para a percepção completa – o tato a exigir
o movimento para que se construa a informação sobre aquilo que se percebe349; a audição
porque “a duração do som ouvido é exatamente igual à duração do ouvir”, e o som “não é um
objeto, mas sim um acontecimento dinâmico no lugar do objeto”350 –, a visão, na sua
possibilidade de apreensão da simultaneidade do que lhe é apresentado, prescinde do nexo
causal: ela capta em um relance dados múltiplos que os demais sentidos exigiriam o tempo,
dando uma dimensão deste “que do contrário lhe permaneceria fechada, isto é, a presença,
como algo que ultrapassa a experiência pontual da fugacidade do agora”351, como são as
percepções táteis e sonoras: “em todos os outros sentidos, nenhum momento é fechado em si,
e nenhum dado momentâneo fala por si só”352. Assim sendo, “o tempo transcorrido durante a
observação não é experimentado como uma passagem de conteúdos que no fluxo do acontecer
dêem lugar a novos conteúdos, mas sim como uma duração dos mesmos, como uma
343HAVELOCK, Eric. ARNHEIM, Rudolf apud JAY, Downcast eyes, p. 26.344JONAS, O princípio da vida, p. 159.345Idem, ibidem.346Idem, ibidem.347Idem, ibidem.348Ibidem, p. 160.349Ibidem, p. 164.350Ibidem, p. 161.351Ibidem, p. 167.352Ibidem, p. 168.
53
identidade que é a extensão do agora momentâneo, e portanto a presença imóvel
continuada”353. Essa simultaneidade paralisante da visão e conseqüente não necessidade de
contiguidade entre duas imagens gerou a questão posta por Hume, de que “a 'causação' não
está presente entre os conteúdos da percepção dos sentidos”354, e seria antes uma crença
adquirida com o hábito. Na verdade, tal interpretação pode ser vista como fruto de um pensar
ocularcêntrico do autor, herança do “padrão ontológico da objetividade”355 criada pela visão e
apropriada para o pensamento conceitual. Kant assume a descoberta negativa de Hume, mas
para tratar a causalidade não como uma crença, antes como uma categoria da razão. Este
expediente, ao pôr a ligação causal como uma função sintética transcendental, obriga a
percepção a abstrair todo conteúdo sensível – qualitativo – do objeto em seu processo,
transformando-o em uma série de dados desconectados da realidade do observador, “com isto
sendo privados também das características que poderiam explicar sua ligação mútua”356.
Ontológica e epistemologicamente, Kant reforça a “idéia de um sujeito teórico separável da
prática, e mais ainda, a idéia da natureza passiva ou receptiva da sensibilidade 'pura' e do
conhecimento sensível”357. Sem negar por completo a passividade da percepção, Merleau-
Ponty a põe como resultado do ocularcentrismo kantiano, e não como uma necessidade da
razão: “a visão não é um certo modo do pensamento ou presença de si: é o meio que é dado
estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, ao término da qual
somente me fecho sobre mim”358. A impossibilidade da apreensão da coisa-em-si estaria na
barreira posta pelo próprio sujeito do conhecimento, que se apropria à distância – com o
auxílio da visão – do mundo que o cerca, ao invés de engajar-se nele de corpo inteiro. A
capacidade de simultaneidade da visão, portanto, traz como uma de suas conseqüências
principais a neutralização completa da apreensão imediata do conteúdo dinâmico da
causalidade359 – a “'função imagem' da visão”360 –, com a possibilidade de se chegar
conceitualmente à essência do ser – se se encarar a essência do ser como algo estático e
imutável, diferentemente da concepção hegeliana –; e a captação de um agora que se
prolonga, um “agora ampliado”361: não por acaso Jonas trata da audição e do tato como
353JONAS, O princípio da vida, p. 168.354Ibidem, p. 35.355Ibidem, p. 42.356Ibidem, p. 41.357Ibidem, p. 176.358MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 42. 359JONAS, op. cit., p. 170.360Ibidem, p. 171.361Ibidem, p. 168.
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“sentidos não do ser, mas sim do vir-a-ser”362, e a visão como fornecedora da “base sensorial
sobre a qual o espírito pode começar a apreender a idéia do eterno, daquilo que nunca se
modifica e que está sempre presente”363. Esta possibilidade da visão de não se comprometer
com aquilo que visa permite separar a imagem do objeto, ou seja, a divisão entre forma e
matéria, essência e existência364. Este não-comprometimento garante que tanto sujeito quando
objeto permaneçam fechados em si365, dando assim a deixa ao sujeito para a observação
distanciada, o que implica em uma imagem neutra e que “diferentemente do 'efeito', pode ser
contemplada e comparada, conservada na memória e recordada, variada na imaginação e
recomposta a bel prazer”366: não há a resistência empírica do objeto à penetração do sujeito –
tal como no tato –, que garanta a veridicidade do objeto, ao exigir a realidade do próprio
sujeito, que precisa fazer algum esforço na relação com o “outro-fora-de-mim”367. A ciência
moderna, constituída sobre tais bases, “manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Estabelece
modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações
permitidas por sua definição, só de longe em longe confronta com o mundo real.”368 Assim, a
visão bastando por si só, a ausência do engajamento completo do sujeito na percepção, ao
lidar tão-somente com o visual – imagens distanciadas –, “serve de base para a abstração, e
com isto, para todo livre pensar”369 – liberdade essa que tem seus pontos positivos, mas acaba
também por tornar a visão o menos realista dos sentidos370.
É o que também afirma Guy Debord, ao dizer que a visão é “o sentido mais
abstrato, e mais sujeito à mistificação”371. E é sobre este sentido que o espetáculo se erige, se
sustenta e domina: “o espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações
especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como o
sentido privilegiado da pessoa humana”372. Servir-se da visão, não implica em ignorar os
outros sentidos, eles são necessários para dar um senso de realidade ao que é visto, para o
sujeito engajar-se no mundo, como na descrição de Proust “quanto ao surdo integral, visto que
a perda de um sentido acrescenta tanta beleza ao mundo como o não faria a sua aquisição, é
com delícia que passeia agora por uma Terra quase edênica onde o som ainda não foi criado.
362JONAS, O princípio da vida, p. 168.363Idem, ibidem.364Ibidem, p. 170.365Ibidem, p. 172.366Idem, ibidem.367Ibidem, p. 171.368MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 13.369JONAS, op. cit., p. 170.370Ibidem, p. 171.371DEBORD, SdE, § 18.372Idem, ibidem.
55
As mais altas cascatas se desenrolam, para os seus olhos apenas, mais calmas que o mar
imóvel, como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez; a forma
perceptível sob a qual jazia a causa de um movimento, os objetos movidos sem rumor
parecem movidos sem causa”373. Ciente destes efeitos, o espetáculo agrega outros sentidos ao
olhar, em especial a audição. Se se encarar o olhar com esses anexos, ele segue como
bastando por si, desencarnado, contemplativo, distanciado que não avança para o objeto, para
o mundo palpável de forma consciente, engajada nos seus atos: ele inverte a percepção e
apresenta o mundo como estando diante e não ao redor do sujeito374.
Uma das questões é como o espetáculo se utiliza do privilégio da visão para
construir sua hegemonia, construção que se sustenta na tradição filosófica ocidental – de
quem ele “é o herdeiro de toda a fraqueza”, identificada justo pela ênfase da compreensão da
atividade por intermédio das categorias do ver375 – e na teologia – de quem a filosofia nunca
conseguiu se separar, uma vez que sempre se manteve como “poder do pensamento separado
e pensamento do poder separado”376. Aqueles três aspectos do privilégio da imagem desde a
filosofia grega levantados por Hans Jonas serão tecnicamente equipados para a construção da
hegemonia de uma classe e de um modo de produção sob o espetáculo377 – o desenvolvimento
da racionalidade e da técnica correspondente é decorrente deste próprio pensamento. Assim,
mesmo a filosofia crítica pré-Marx que tentou vencer as limitações postas pela supremacia da
visão, colocando a ênfase novamente no devir dinâmico sobre o ser estático, por não romper
com a separação entre pensamento e mundo, teoria e prática, se viu incapaz de superar a
herança filosófica ocidental: ainda conforme Debord, Hegel, apesar de acertado no método
dialético em interpretar não o mundo, mas a transformação do mundo, acaba, por fim, não
fazendo mais “que a realização filosófica da filosofia”, reconciliando o Espírito com o
resultado das revoluções burguesas378. Ou seja, a filosofia pré-Marx não teria rompido com a
“filosofização” da realidade que levou ao espetáculo, ao não tornar a filosofia efetivamente
prática379, no sentido marxista do termo. Afinal, filosofia prática distinta da teórica, Kant já
possuía em seu sistema. Entretanto, no filósofo de Konisberg, a prática possui dois momentos:
num primeiro, na crítica da razão teórica, ela está separada da ação, identificada com a
373PROUST, O caminho de Guermantes, p. 69.374MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 33.375DEBORD, SdE, § 19.376Ibidem, § 20.377Ibidem, § 19.378Ibidem, § 76.379Ibidem, § 19.
56
organização dos estímulos recebidos passivamente380; é num segundo momento, em uma
prática que se converte em uma ética, centrada no dever do indivíduo e sem acesso ao ser-em-
si, sem possibilidade de mudança da essência do ser, que ela passa à ação, mas a uma ação
impossibilitada de se converter em práxis – pelo seu próprio caráter auto-centrado e
individual. Isto devido, em parte, por sua epistemologia partir do espaço e não do tempo, e
por se sustentar, como dito acima, no sentido visão. É essa estaticidade e esse distanciamento,
que vêm do pensamento grego (o paradoxo de Zenão nada mais é que esse aspecto da noção
atemporal do espaço levado ao extremo381) e perdura até a Modernidade – ficando limitado à
geometria dos raios luminosos, em termos da geometria euclidiana –, que servirão de
ancoradouro da física newtoniana, da qual Kant retirará elementos para a elaboração da sua
crítica da razão pura teórica.
Uma das conseqüências do renascimento neo-platônico do século XVIII, segundo
Jay, foi “a substituição da sensação passiva por uma vontade mais ativa como marca da
subjetividade nas filosofias dominantes do início do século XIX”382. Outra foi a volta da
estética do sublime sobre a do belo – inaugurada por Kant e Burke383. Por último, Jay destaca
a temática romântica da noite oposta ao dia384.
Na filosofia francesa, talvez quem melhor tenha encarnado este neo-platonismo –
com suas ambiguidades, é claro – foi Jean-Jacques Rousseau, ainda no século XVIII. Para ele,
diante da perda de seu virginal estado de natureza, não cabe à humanidade outra coisa que não
aprofundar a vida em sociedade. Este aprofundamento, contudo, não significa insistir no curso
que a história das relações humanas tomou. Segundo Starobinski, para o pensador genebrino
“a história nos propõe uma tarefa de resistência e recusa”385. Essa tarefa deve ser feita tendo
como ideal normativo o restabelecimento de uma natureza humana386, obscurecida no correr
da história, visto que “o tempo histórico, que para Rousseau não exclui a idéia do
desenvolvimento orgânico, permanece carregado de culpabilidade; o movimento da história é
um obscurecimento, é mais responsável por uma deformação do que por um progresso
qualitativo. Rousseau apreende a mudança como uma corrupção; no curso do tempo, o
homem se desfigura se deprava”387. O estado de natureza pode nunca ter existido para
380JONAS, O princípio da vida, p. 176.381JAY, Downcast eyes, pp. 24-25.382Ibidem, p. 107.383Idem, ibidem.384Ibidem, pp. 107-108.385STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 24.386Ibidem. p. 36.387Ibidem. p. 29.
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Rousseau, contudo, o que importa na sua filosofia, de acordo com Cassirer, é que se tenha
essa idéia como parâmetro para julgar a condição atual da sociedade388. O que Rousseau
buscaria com isso seria a reconciliação do homem com a natureza389, em que se restauraria o
paraíso da “transparência recíproca das consciências, a comunicação total e confiante”390. Ele
sabe, entretanto, que seu alvo é utópico: a comunicação entre duas consciências não se faz na
intuição imediata – que é antes domínio de deus que dos homens –, mas no discurso, na
linguagem, na sucessão e no encadeamento dos meios, o que faz com que o saber humano
seja sempre incompleto, que o pensamento “se transmita sempre de maneira precária e
adulterada”, que os “sentimentos permaneçam, no fundo, incompreensíveis àqueles mesmos
que acreditam compartilhá-los”391. Rousseau, contrariamente ao círculo que freqüentava, se
afastou da glorificação da razão, e apelou “às forças mais fundas do 'sentimento' e da
'consciência'”392, sem que isso tenha feito com que negasse a razão – chegando até a enaltecê-
la393. O grande problema estaria no conhecimento reivindicar primazia absoluta, elevando-se
acima da vida e se separando dela394. Uma tentativa de equilíbrio entre razão, sentimento e
consciência parece ser o ideal desejado pelo genebrino – na impossibilidade de se basear
somente nos dois últimos, visto a perda do estado de natureza. Rousseau reconhece que os
homens vivendo em sociedade são carentes da mediação lingüística, de “sinais que
interrompem a pura reciprocidade dos olhares”395. Desejando algo próximo, seu ideal seria a
“restauração de uma linguagem primitiva, natural, em que os obstáculos da fala moderna, com
seus conceitos gerais e impessoais, pudessem ser superados”396. Ao aceitar a interpretação de
Starobinski, os pontos chaves para compreender a crítica de Rousseau à sociedade da época –
e sua proposta de superação – são, além da existência de uma essência humana imutável, a
identidade entre o parecer e o mal397, fruto de uma sociedade que se estabeleceu negando a
natureza, sem conseguir suprimi-la398: “as pessoas são todas inocentes, mas suas relações
estão corrompidas pelo parecer e pela injustiça”399. A supremacia da aparência em detrimento
da essência é ao mesmo tempo fruto e alimento de um véu, de máscaras que mediam a relação
388CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 391.389STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 48.390Ibidem. p. 19.391Ibidem. p. 191.392CASSIRER, op. cit., p. 382.393Idem, ibidem.394Ibidem, p. 396.395JAY, Donwcast Eyes, p. 92.396Idem, ibidem.397STAROBINSKI, op. cit.. p. 12.398Ibidem. p. 38.399Ibidem. p. 20.
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entre as pessoas400. A proposta de Rousseau é – a exemplo de Platão, com quem Starobinski o
compara – a de levantar o véu da aparência e revelar a verdade essencial que há por baixo,
restabelecer uma imagem que equivale “à história autêntica da espécie inteira e que ressuscita
o passado perdido para revelá-lo como o presente eterno da natureza”401. Em suma, o ideal de
uma comunidade feita pelos homens e para os homens, em que os padrões de visibilidade dos
salões da corte, ou da omnisciência divina são substituídos pelo de uma comunidade humana
totalmente transparente – transparente ao olhar do outro, com o olhar sobre si mesmo
também402 – em que todos estão em observação permanente, numa “utopia de benefícios
mútuos da vigilância sem reprovação ou repressão”403.
O véu, para Rousseau, não apenas ocultaria a verdade, como turvaria o
conhecimento dos homens sobre o mundo em que vivem e, acima de tudo, acerca de si
próprios (não por acaso, a crítica rousseauniana da sociedade se transmutaria em uma epifania
da consciência pessoal404), falseando, assim, todos os seus atos, pervertendo suas vidas405. Tal
véu, como já dito, não chega a alterar a essência humana, apenas faz com que o homem se
aliene em sua aparência406, perdendo o contato com sua essência, e com isso fundando uma
rede de relações viciadas, assentadas na heteronomia, e que visam os chamados interesses
pessoais – que não correspondem aos seus reais desejos –, o que acaba por estabelecer
relações mediadas por coisas407, e levar as pessoas a se tornarem escravas uma das outras408.
Segundo o próprio Rousseau, “ninguém se importa com a realidade, todos ancoram sua
essência na ilusão. Escravos de seu amor-próprio, e iludidos por ele, os homens não vivem
por viver, mas para fazer crer aos outros que viveram”409. Não que o homem seja plenamente
autônomo para Rousseau: desde a origem, a consciência de si depende da possibilidade de
tornar-se um outro410, de conseguir se pôr fora de si, no outro, para então retornar a si. A
questão é que essa possibilidade está obnubilada por conta do desconhecimento de si próprio
e da ausência da troca imediata com as outras consciências. As principais formas de mediação
entre os homens que acabaram se desenvolvendo no correr da história foram o dinheiro e a
400STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 35.401Ibidem. p. 33.402JAY, Donwcast Eyes, p. 91.403Ibidem, p. 92.404STAROBINSKI, op. cit.. p. 65.405Ibidem. p. 14.406Ibidem. p. 44.407Ibidem. p. 39.408Ibidem. p. 45.409ROUSSEAU, Rousseau juge de Jean-Jaques, terceiro diálogo. apud CASSIRER, op. cit., p. 392.410STAROBINSKI, op. cit.. p. 17.
59
linguagem. O dinheiro, intermediário abstrato das trocas entre os homens411, e que, uma vez
adentrado na relação humana, impede todo gozo imediato, visto que ele próprio não pode ser
usufruído imediatamente por si, servindo apenas de meio para atingir outras metas412, e como
meio se transforma em fim da atividade humana, com o produto do trabalho sem direito a uma
existência autônoma, antes existindo sob a forma de objeto a ser vendido ou riqueza a ser
acumulada413. Já a mediação lingüística gera uma série de representações – da representação
artística à representação política – calcadas em conceitos gerais impessoais. Conforme Jay,
“Rousseau era platônico na sua hostilidade à estética, assim como às representações
políticas”414.
De acordo com Starobinski, o local privilegiado de mediação na sociedade, para
Rousseau, seria o teatro415, o qual, ao assumir sua forma moderna graças ao patrocínio
aristocrático, por volta do século XV416, “era agora um auditório coberto, no qual os
espectadores se sentavam de acordo com sua posição hierárquica e sua capacidade de pagar, e
onde, de suas posições fixas, tornaram-se os passivos espectadores do drama que é visto, por
assim dizer, através de uma vitrina transparente”417 – Jay vê esse privilégio nos ritos da corte,
no espetáculo que cerca o trono e o altar418. O teatro seria o exemplo de uma comunhão
mediada, em que depois de se abandonarem à solidão de cada um, e “atraídos para fabulosos
longes”419, os homens se reencontrariam na ação interpretada em cena que todos olham420. Há,
portanto, além da representação e da alienação de si em favor de uma cena, a exigência de
passividade por parte dos espectadores, reduzidos à contemplação do que se desenrola no
palco em sua frente. Se isso é encarado pelo genebrino como virtude no homem primitivo,
que “é 'bom' porque não é bastante ativo para fazer o mal”421, uma vez alterado esse equilíbrio
natural, não há volta, e o homem passa a depender do seu trabalho – é o trabalho quem torna
“o homem humano, eleva-o acima da condição dos animais: o homem se define doravante
como o ser laborioso e livre que emprega meios e instrumentos pelos quais se opõe à natureza
para transformá-la”422. Assim, a comunhão realizada pela mediação do teatro não é “uma
411STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 147.412Ibidem. p. 148.413Ibidem. p. 151.414JAY, Downcast eyes, p. 92.415STAROBINSKI, op. cit.. p. 133.416MUMFORD, A cidade na história, p. 410.417Idem, ibidem.418JAY, op. cit., p. 94.419STAROBINSKI, op. cit.. p. 133.420Ibidem,. p. 134.421Ibidem. p. 41.422STAROBINSKI, op. cit., p. 149.
60
comunhão verdadeira: vale dizer que este é o reino da solidão e da dispersão infeliz. Ali onde
nos é fácil reconhecer uma comunhão mediatizada, Jean-Jacques vê uma comunicação
interrompida”423. A solução proposta por Rousseau para toda ilusão da sociedade é a festa,
“imagem da inocência dos primeiros tempos”424, transformação do espetáculo do teatro em
uma comunicação imediata, radicalmente presente, sem traços “memorativos” ou
comemorativos, sem ligação com alguma tradição ou ritual425: apenas “a satisfação alegre que
nasce nos corações na medida em que realizam os atos conforme o dever”426, ou seja,
conforme a essência humana e não os ditames das aparências. Se, para Rousseau, “não existe
alegria que não seja pública”427, a festa, ao substituir o escuro do teatro e sua mediação entre
as consciências pela reunião ao livre, sob o céu, é também a oposição do mundo de
transparência ao mundo da opacidade428: nela “vê-se suceder ao objeto opaco do espetáculo
uma comunidade de consciências abertas que se põem em movimento umas em direção às
outras. A separação é suplantada pela reciprocidade das consciências”429. Isso significa que o
véu que falseia as relações desaparece, “e o espectador, tornando-se também menos opaco,
desaparece na luz para a qual é agora transparente”430. Com isso, são borrados os limites da
existência pessoal e todo gozo passa a ser imediato431. Pela festa e pelo conseqüente
desaparecimento do véu levarem ao gozo imediato, ela não pode ser algo que tenha sua
permanência garantida: só perdura enquanto for “pura invenção, criação livre, desembaraçada
de qualquer forma pré-estabelecida”432. Para Derrida, a festa seria o local em que as
representações seriam abolidas, assim como a distinção entre “o objeto visto e o ver o
objeto”433. Para o autor da Gramatologia, o elemento dessa liberdade e comunhão seria a voz,
“a liberdade de um sopro que não quebra nada em pedaços”434: a palavra falada como
amálgama da antiga distinção sujeito-objeto – que põe em xeque a própria experiência visual,
se levada a cabo435. Percebe-se que, apesar da festa romper com a representação, Rousseau, ao
não ignorar a necessidade do elemento de comunicação entre as consciências, aceitaria a
existência de alguma opacidade; e que não prescinde da liberdade entre elas para que a festa 423STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 134.424Ibidem. p. 129.425Idem426Idem.427Lettre à d'Alembert, p. 249 apud STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 134.428STAROBINSKI, op. cit.. p. 132.429Ibidem. p. 133.430Ibidem. p. 114.431Idem, ibidem.432Ibidem. p. 129.433DERRIDA, Jacques Of grammatology apud JAY, Downcast eyes, p. 93.434Idem, ibidem.435JAY, Downcast eyes, p. 93.
61
tenha sentido. Starobinski interpreta a festa como a expressão “no plano 'existencial' da
afetividade tudo aquilo que o Contrato formula no plano da teoria do direito. Na embriaguez
da alegria pública, cada um é ao mesmo tempo ator e espectador; reconhece-se facilmente a
dupla condição do cidadão depois da conclusão do contrato: ele é a uma só vez 'membro do
soberano' e 'membro do Estado', é aquele que quer a lei e aquele que obedece a lei” 436. A
imediaticidade do fim da representação seria a festa da pura presença, que implica também na
festa da iconoclastia437: e teria sido este ideal o que guiou a Revolução Francesa nos seus
sentimentos contraditórios com relação ao poder sedutor das imagens. Tanto que a Revolução
destrói os ícones visíveis da sociedade de corte, porém eleva princípios abstratos – a
liberdade, a igualdade, a fraternidade e, principalmente, a razão – a novos ídolos, não menos
ocularcêntricos – com direito a representações visuais e tudo o mais, com a restauração dos
modelos clássicos greco-romanos, pelo pintor e militante jacobino Jacques Louis David438.
Outro pensador da época que questionou a supremacia da visão foi Diderot. Para
Jay, ao acusar a separação radical entre a verdade e a representação do mundo, em 1765, ele
teria antecipado a destruição jacobina das imagens: “'meu amigo, se nós amamos a verdade
mais do que as belas artes, rezemos a Deus por alguns iconoclastas'”439. O autor oferecia duas
razões para destronar a visão do topo da hierarquia sensorial440. Primeiro, a crença no toque
como fonte mais poderosa de conhecimento do que a visão441; segundo, a questão da
mediação lingüística na relação entre a percepção em geral e a linguagem: “se não há espaço
uniforme, inato dando suporte a diferentes experiências perceptivas do mundo, então como
podem tais experiências serem comparadas umas às outras?”442 Trata-se, na verdade, de
questão quente da Modernidade – idéias inatas ou apreendidas –, que ganha mais lenha em
1728, com o chamado “problema de Molyneux”, quando o médico William Cheselden opera
com sucesso a catarata de um garoto cego de nascença, que passa a apresentar dificuldades
em se orientar pela visão no pós-cirúrgico, pondo em xeque tanto a imediatez da visão quanto
da forma de percepção – e conseqüente nomeação – do que é visto443. Opondo-se à tese das
idéias inatas, Diderot defende uma tradução que ocorre lingüisticamente através de sinais
convencionados que são aprendidos444. De modo similar a Rousseau, Diderot também sonha
436STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseu. p. 135.437STAROBINSKI, The invention of liberty apud JAY, Downcast eyes. p. 95.438JAY, Downcast eyes. p. 95.439DIDEROT apud JAY, Downcast eyes, 98.440JAY, op. cit., p. 100.441Idem, ibidem.442Ibidem, p. 101.443BENITEZ; ROBLES; SILVA. El problema de Molyneux.444JAY, op. cit., p. 101.
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com uma transparência perfeita, no caso não dos olhares, mas dos sinais – aos quais chama de
hieróglifos –, porém tem ciência da “inevitável diferença entre nossa experiência sensória e
sua mediação lingüística”445. Mais centrado nessa questão da representação via imagem do
que na representação nos ritos da corte, segundo Jay, Diderot tem sua versão para o festival de
Rousseau na desteatralização da relação pintura-observador, o que implicaria no colapso da
distância entre o olho que observa e a cena observada446. Distância esta que garantia o que
Walter Benjamin denominou de “aura”, “uma peculiar fantasia de espaço e tempo: a aparição
única de algo distante, por mais próximo que possa estar”447. “A aura tem sua origem no ritual
de culto, mas para Benjamin, o modo de recepção aurático continua sendo característico
também da arte que deixou de ser sacra, desenvolvida a partir do Renascimento. Para ele, não
é a cesura entre a arte sacra da Idade Média e a arte profana do Renascimento que parece ser
decisiva para a história da arte, mas aquela perda da aura. Em Benjamin, tal cesura é derivada
da transformação das técnicas de reprodução (...). Em lugar da recepção contemplativa
característica do indivíduo burguês, deve surgir uma recepção característica das massas, ao
mesmo tempo distraída e racionalmente verificadora. Em lugar de basear-se no ritual, ela se
funda, daí por diante, na política”448. Tanto a distância entre arte e público/observador, quanto
o fim da aura da obra-de-arte, serão questões proeminentes de muitas das vanguardas do
século XX.
Menos entusiasta que Benjamin, Brecht salientava que as possibilidades de
emancipação abertas pelo desenvolvimento técnico – emancipação mesmo desse culto
aurático – não implicavam necessariamente na sua concretização: dependiam, antes, da forma
com que seria utilizado449. Assim, durante o século XIX o distanciamento com relação ao
objeto visado, que poderia entrar em declínio, teve, contudo, um aprofundamento: a despeito
do perspectivismo cartesiano ter sido posto em dúvida, segundo Wylie Sypher, o século XIX
foi um dos períodos mais visuais da cultura Ocidental, com seu ideal de observação precisa,
“uma visão-espectadora compartilhada por romancistas, pintores, cientistas e, por extensão,
por poetas, que se tornaram 'visionários', ainda que a visão poética não seja sempre um meio
de observação”450. O aprimoramento e invenção de aparelhos que aumentam a capacidade
humana de observação – cuja história remonta aos jogos de espelho das lunetas
445JAY, Downcast eyes, p. 102.446Ibidem, p. 103.447BENJAMIN, “Pequena história da fotografia”, p. 228.448BÜRGER. Teoria da vanguarda, pp. 61-62.449Ibidem, p. 66.450SYPHER, Wylie, Literature and technology: the alien vision apud Jay, Downcast eyes, p. 113.
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renascentistas451 –, em especial da fotografia, levaram mais longe esse ideal. Contudo, a
pretensa representação como análogon perfeito da realidade452 – que a fotografia
aparentemente transforma em algo automático e objetivo – exige elementos cênicos que
foram elaborados muito antes de suas possibilidades tecnológicas. Trata-se da técnica do
chiaroscuro, utilizada por Rembrand e Caravaggio em suas pinturas453, em que o jogo de luzes
é aplicado para reconstruir e redimensionar o espaço, sem passar a impressão de que houve
manipulação ou violência, e que só se tornariam possíveis na realidade com o advento da
iluminação artificial, com os spots de luz, por exemplo454. Em “afinidades eletivas”, no correr
dos séculos, culminando no século XIX, artes, filosofia e ciência alteram seu foco, das leis
geométricas da ótica e da transmissão mecânica da luz para as dimensões físicas da visão
humana455, o que demonstra também a alteração no foco da atenção da época, centrada
primeiramente no sujeito transcendental do que no objeto em si – inclusive com o sujeito
cognoscente passando a ganhar relevância como objeto de conhecimento, como atesta, por
exemplo, o nascimento da psicologia e da psicanálise. Neste aspecto, o advento da fotografia
surge para salvar a perspectiva renascentista, então posta em xeque de modo mais
contundente pela primeira vez por Cézanne456. A quebra da perspectiva linear do Quattrocento
pelo pintor de Aix-en-Provence implicou no questionamento radical de certo estado de técnica
e, principalmente, da ordem social do mundo457. Assim, a fotografia, segundo Machado, não
deve ser dissociada da ideologia da técnica projetiva458, que visa manter um dado discurso
acerca da realidade – em que a representação é assumida como a realidade mesma – e da
(única) forma de apropriação dela de modo autêntico e não-mediado459, graças ao seu “efeito
real”460. E essa forma de apropriação, conforme a ideologia dominante, se dá pela
contemplação do mundo – ao que Marx (dentre outros) contrapunha o conhecimento como
ação sobre o mundo461.
Esse efeito real é reforçado pelo papel que a fotografia arrola, de continuidade da
tradição da pintura figurativa, por mais que seu método de composição seja radicalmente
451ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos.452MACHADO, A ilusão especular, p. 40.453Ibidem. p. 127.454Ibidem. p. 129.455CRARY, Jonathan, Techniques of the observer: on vision and modernity in nineteenth century apud JAY,
Downcast eyes, p. 151.456MACHADO, op. cit.. p. 74.457Ibidem. p. 64.458Ibidem. p. 65.459Ibidem. p. 40.460Ibidem, p. 66.461Ibidem, p. 40.
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diferente, permanecendo apenas a questão da perspectiva monolocular e do sujeito
transcendental462. Ao registrar um instante, a fotografia perde “aquele tempo ideal e
privilegiado, pleno de sentido e intenção”, no qual o momento retratado pela pintura se
preenche, pois o que ela capta é o aqui e agora463: daí a necessidade – principalmente no foto-
jornalismo – de se bombardear um evento com fotos sucessivas e depois escolher “aquela foto
ideal, onde os acidentes do acaso estejam menos evidentes e o efeito de 'realidade' mais
próximo do padrão pictórico que o informa”464. Este “efeito de realidade” é a tentativa de
“censurar aos olhos do receptor os mecanismos ideológicos” do meio, “esconder o trabalho de
inversão e de mutação operado pelo código” de representação465, de modo a garantir o
análogon inquestionável entre representação e realidade. Esta questão da representação leva à
interrogação acerca do estatuto da fotografia, desde a década de 1840, em que nos círculos
intelectuais, três aspectos são levantados466, e até hoje perduram de alguma forma: a relação
entre a fotografia e a verdade ótica ou ilusão; se a fotografia é arte; e o seu impacto na
sociedade. Para Virilio467, a fotografia ajudou na desnaturalização da experiência visual
convencional e no desatrelamento da visão de sua associação com a forma estática. André
Bazin, na sua interpretação desta desnaturalização da experiência visual convencional, vai
além, propondo uma nova naturalização para a experiência visual fotográfica, em que “pela
primeira vez uma imagem do mundo é formada automaticamente, sem a intervenção criativa
do homem... A fotografia nos afeta como um fenômeno na natureza”468, ignorando que a
própria invenção do meio técnico já é fruto da criatividade humana, e que, assim como o ato
de tirar retratos é conseqüência de uma escolha estética, com influências da pintura469, a
apreensão da fotografia exige um adestramento, uma alfabetização do olhar470. Em linha
similar, Roland Barthes, no ensaio “A mensagem fotográfica”, afirma que “seguramente a
imagem não é a realidade, mas de qualquer modo é seu analogon perfeito, e é exatamente
essa perfeição analógica que, para o senso comum, define a fotografia. Deste modo pode ser
visto o estatuto especial da imagem fotográfica: ela é a mensagem sem um código”471. A
justificativa – ideológica, conforme Machado – dada por Barthes para a fotografia como
462MACHADO, A ilusão especular. p. 43.463Idem, ibidem.464Ibidem, p. 50.465Ibidem, p. 28.466JAY, Downcast eyes, pp. 125-126.467VIRILIO, The aesthetics of disappearance apud JAY, Downcast eyes, p. 133.468BAZIN, “The ontology of the photographic image” apud JAY, Downcast eyes, p. 126.469BENJAMIN, “Pequena história da fotografia”. p. 225.470Ibidem, p. 240.471BARTHES apud JAY, Downcast eyes, p. 126.
65
analogon perfeito do que ela retrata pode ser sintetizada por sua ênfase exclusiva no referente,
e “a concepção da fotografia como reflexo bruto da 'realidade'”472. Machado complementa:
sem referente não há fotografia, ok, porém “só com o referente, muito menos. Se não existir a
câmera escura, a lente com seu poder organizador dos raios luminoso, um diafragma
rigorosamente aberto como manda a análise da luz operada pelo fotômetro, um obturador com
velocidade compatível com a abertura do diafragma e a sensibilidade da película, se não
houver ainda uma fonte de luz natural ou artificial modelando o referente e [principalmente]
um operador regendo tudo isso, também não haverá fotografia, muito embora o candidato a
referente possa estar disponível”473.
O resultado é não apenas a exigência de uma alfabetização do olhar para saber ler
a fotografia, a que se refere Benjamin, como também uma educação para a pose – a
fotografia, tecnologia avançada, reaviva um componente de antanho, uma “'armadura
arcaizante', como se se tivesse tornado parasita de um organismo atrofiado”474. Isso porque,
ainda na senda de Machado, “diante de uma câmera, sempre posamos (...). Nós nos
petrificamos diante [do obturador], como uma estátua grega ou renascentista, e forjamos no
bronze de nosso próprio corpo a imagem ideal que supomos ser ou que queremos ser”475. Ao
comentar o trabalho de Diane Arbus, que explorava certo constrangimento – ou inconsciência
do seu papel – das pessoas que retratava – deserdados da sorte obrigados a forjar uma imagem
positiva de si –, Machado reafirma que “descendente direta de uma tradição pictórica
aristocrática, de que é também um resquício ideológico, a pose nem sempre se deixa
compatibilizar com as facilidades democráticas da câmera fotográfica: ela impõe, antes, uma
certa sublimação do motivo e uma espécie de 'seleção natural' do referentes”476. De maneira
similar, nas fotos jornalísticas mais marcantes para a cultura ocidental, Machado advoga que
seu impacto está “na coincidência – acidental ou premeditada – com certos arquétipos
pictóricos que povoam o inconsciente de nossa civilização”477. Assim, “longe de encarar o
verismo essencial que lhe querem creditar os 'realistas', a câmera tem um poder transfigurador
do mundo visível que chega a ser devastador nas suas conseqüências. Diante de uma câmera,
não há realidade que permaneça intacta: tudo se altera, tudo se arranja, tudo concorre para a
ordem ideal do monumento (...). Toda desordem – física, mental social – será substituída por
472MACHADO, A ilusão especular, p. 39.473Idem, ibidem.474Ibidem, p. 52.475Ibidem, p. 51.476Ibidem, pp. 57-58.477Ibidem, p. 62.
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uma paisagem homogênea e asséptica”478. Mas essa “paisagem fotográfica” não ocorre apenas
no momento da fotografia: os seus elementos de visibilidade são incorporados à própria
organização da cidade – auxiliada pelo advento de novas tecnologias, pelos traços culturais
que ascendem junto com o capitalismo, e pela influência do exército e do mosteiro479 – foi no
mosteiro, afirma Mumford, “que o valor prático da restrição, da ordem, da regularidade, da
honestidade e da disciplina interior foi estabelecido, antes que tais qualidades fossem passadas
à cidade medieval e ao capitalismo pós-medieval, sob a forma de invenções e práticas de
negócios: o relógio, o livro de contabilidade, o dia ordenado”480. Com a formação dos Estados
nacionais, com suas monarquias despóticas, e dos exércitos permanentes, Mumford vê a
cidade como expressão destes poderes. A guerra deixa de ser uma atividade espasmódica para
se tornar um evento contínuo481, e a cidade passa a ser tratada como apêndice da forma
militar482: a avenida, novo baluarte da organização urbana, permite a circulação em alta
velocidade dos coches, assim como a movimentação das tropas – Alberti, em seu tratado de
urbanismo, chama-a de via militaris483 –, cabendo ao cidadão o papel de espectador fixo: “a
vida marcha diante dele, sem necessitar da sua licença, sem a sua assistência: pode utilizar-se
dos olhos, mas se deseja abrir a boca ou sair do seu lugar, o melhor que faz é pedir licença
primeiro”484. Ela determina a arquitetura que a envolve, seja nos seus aspectos artísticos, “em
que o edifício serve de cenário para a avenida”485, uma vez que na caminhada, movimento
típico da cidade medieval, em que a abertura estava não nas ruas, mas em espaços espalhados
pela cidade, “o olhar corteja a variedade, mas, em ritmo mais acelerado, o movimento exige
repetição das unidades que se hão de ver: somente assim é que a parte individual, à medida
que se desloca velozmente, pode ser recuperada e reconstituída”486; seja nos seus aspectos
militares, visto que “em ruas irregulares, mal pavimentadas, com grande quantidade de pedras
soltas e lugares de esconder, as formações espontâneas de pessoas não treinadas levam
vantagem sobre uma soldadesca adestrada: os soldados não podem atirar pelas esquinas nem
podem proteger-se contra tijolos caídos do alto de chaminés. Não foram as antigas ruas
medievais de Paris um dos últimos refúgios das liberdades urbanas?”487
478MACHADO, A ilusão especular p. 54.479MUMFORD, A cidade na história, p. 376.480Ibidem, p. 271.481Ibidem, p. 393.482Ibidem, p. 391.483Ibidem, p. 400.484Ibidem, p. 402.485Ibidem, p. 401.486Ibidem, p. 400.487Ibidem, p. 401.
67
Destarte, tem-se Paris passando pela sua modernização, se tornando menos opaca,
de mais fácil locomoção, com as intervenções de inspiração militar de Haussmann488 –
Machado fala da afinidade técnica e operacional entre o fuzil e a câmera fotográfica489 –;
simultaneamente, a progressiva melhora da iluminação artificial, além de contribuir para a
diminuição da opacidade da cidade, permite um rearranjo do dia e da noite, numa
racionalização do tempo, dando regularidade à hora do trabalho, abrindo novas oportunidades
de entretenimento490. Ao mesmo tempo, o instantâneo do momento ganhava vez com o
advento da fotografia491 – ou do daguerreótipo, como era chamado na época –, criando o que
Walter Benjamin chamou de culto da imagem492, e a inundação do mercado com imagens de
anônimos, numa nova forma de poluição visual, conhecida a partir da década de 1860 por
“kitsch”493. O kitsch pode ser interpretado como a utilização de elementos artísticos em
produtos destinados a um público considerado “capaz de consumir e fluir objetos culturais
menos primários que os oferecidos pela 'masscult'”494. Seria o que Macdonald, no contexto da
sociedade e da sociologia estadunidense, chamou de “midcult”, uma estratificação da
indústria cultural que se pretende séria e digna, chegando a imitar vanguardas artísticas, mas
pasteurizada, esvaziada de sua ideologia e de sua crítica, de modo a anular seu potencial
contestatório, restando a polêmica-como-entretenimento: “'pour épater le bourgeois' foi o
slogan desafiador das vanguardas do século XIX, mas agora a burguesia desenvolveu a paixão
de ser chocada”495. Como será visto adiante, os dadaístas sentirão essa mudança de postura do
público da arte. Para Rosenberg “o kitsch é a arte que segue regras estabelecidas numa época
em que todas as regras de arte são postas em discussão por cada artista”496, ou seja, o kitsch se
apropria dos elementos da vanguarda ao mesmo tempo que os nega na raiz: no
questionamento das regras da arte e na ascensão de um sujeito autônomo questionador do
status quo. Kundera, em seu romance A insustentável leveza do ser, comenta a respeito do
kitsch, depois de determiná-lo como totalitário: “se digo 'totalitário' é porque, nesse caso, tudo
aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda
discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem
começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do
488JAY, Downcast eyes, p. 117.489MACHADO, A ilusão especular, p. 41.490JAY, op. cit., p. 123.491Ibidem, p. 152.492Ibidem, p. 122.493Idem, ibidem.494MACDONALD apud BOSI, Cultura de massa e cultura popular. p. 80.495Idem, ibidem.496ROSENBERG, A tradição do novo, p. 196.
68
kitsch tudo tem que ser levado a sério)”497. De volta a Rosenberg, “o kitsch é, pois, arte
produzida segundo admissões básicas da Arte dos Séculos: a admissão de que as formas
tradicionais podem ser postas em novos usos através de recursos técnicos; a admissão de que
estas formas conservam um poder intrínseco de emocionar as pessoas”498. Conforme Bosi, “o
'kitsch' é uma técnica de solicitação ideológica e emotiva que procura adequar-se ao universo
de aspirações do público médio e estimular nele a procura comercial”499. Kundera reforça esta
idéia da exploração da emotividade: “o kitsch faz nascer, uma após a outra, duas lágrimas de
emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda
lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de
crianças correndo no gramado! Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja
kitsch”. E conclui: “a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base
senão o kitsch”500. “A vida e o kitsch tornaram-se inseparáveis”501, seja sob regime comunista,
seja sob regime capitalista.
Nessa afirmação de pertencimento a um grupo e delimitação dos papéis sociais
com base na emoção, Bourdieu afirma que a fotografia popular ganha o estatuto de “um culto
doméstico (...): ela se inscreve no ritual e tem por função sancionar, consagrar a união familiar
(...). As pessoas se fazem fotografar porque a fotografia realiza a imagem que o grupo faz de
si mesmo: o que ela registra em seu suporte fotossensível não são propriamente os indivíduos
enquanto tais, mas os papéis sociais que cada um desempenha: pai, mãe, avô, tio, marido,
debutante, militar, turista”502. Conforme Umberto Eco, “'o kitsch' se identifica com as formas
mais vistosas de uma cultura de massa, de uma cultura média e, em geral, de uma cultura de
consumo”503. Numa sociedade em que o mercado – ou seja, o consumo – passa a ser o centro
da vida social – aqui incluída a esfera da arte –, o kitsch passa a ser elemento constitutivo da
vida social: neste contexto “a fotografia não teria conseguido uma penetração tão profunda
das camadas populares se ela não possibilitasse esculpir e celebrar nas figuras os mais
arcaicos valores culturais”504, se não fossem vocações a aspiração da pose e o desejo de
ascensão social. A fotografia pode ser tida como sagração do evento fundamental da Idade
Moderna, segundo Heidegger: “a conquista do mundo como retrato/imagem”505. Conquista
497KUNDERA, A insustentável leveza do ser. p. 254.498ROSENBERG, A tradição do novo, p. 196.499BOSI, Cultura de massa e cultura popular. p. 79500KUNDERA, op. cit.. p. 253.501ROSENBERG, op. cit., p. 195.502MACHADO, p. 55.503ECO apud BOSI, op. cit.. p. 80.504MACHADO, A ilusão especular, p. 55.505HEIDEGGER, “The age of the world picture” apud Jay, Downcast eyes, p. 272.
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esta que pode ser interpretada também “como apropriação do referente, não para fins de
conhecimento, mas para garantir uma posse, um poder, ou pelo menos um controle”, com o
objetivo principal de “apreender a qualquer custo, para fixar, catalogar, arquivar e manter sob
controle, ao alcance da mão”506. Mais: contraditoriamente, o fim da aura provocada pela
reprodução em série da fotografia, que trouxe “as coisas para mais perto” das massas507, criou
uma nova espécie de distanciamento, pela reificação da fotografia, pelo seu uso sob a forma
industrial, inicialmente sob a forma de cartões de visitas508, que transformou mais do que a
foto – então rivalizadora da pintura nas artes –, como o próprio indivíduo em mercadoria:
conforme Anne McCauley, o cartão de visitas foi um passo em direção à simplificação da
complexidade da personalidade – justo no momento em que, rompidas as amarras da
sociedade tradicional, personalidades complexas eram uma possibilidade aberta a todos –,
tornando o indivíduo em ator coreografado e imediatamente compreensível: a auto-
transformação do trabalhador em mercadoria maleável509. Para Jonh Tagg, numa interpretação
foucaultiana, a imagem padronizada do cartão é um exemplo do sujeito disciplinado e
normalizado, produzido pelas modernas técnicas de poder510. O distanciamento oriundo da
emergência da fotografia também fica evidenciado no seu uso para o retrato do curioso, do
exótico, contribuindo para tornar o mundo naquilo que os historiadores chamam de “mundo
como exposição”511, semente do “turismo de massa baseado na apropriação visual de lugares
exóticos, e os não menos fotogênicos nativos (ou fauna) que os habita”512, processo que em
alguma medida combinou a nova expansão colonial francesa, que dá início a “toda uma fácil e
equivocada produção artística e literária dedicada ao exotismo”513. Proust encontra no
distanciamento temporal algo de positivo na fotografia: é quando ela “ganha um pouco da
dignidade que lhe falta, quando deixa de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que
não existem mais”514. Como reprodução da realidade, ele critica justamente a perda da aura:
“o que eu vi até agora eram fotografias dessa igreja, e destes Apóstolos, desta Virgem do
Pórtico, tão famosos, tão-somente as moldagens. Agora é a própria Igreja, a própria estátua,
são elas; elas, as únicas, e isto é ver muito mais”515.
506MACHADO, A ilusão especular, p. 41.507BENJAMIN, “Pequena história da fotografia”. p. 228.508Ibidem, p. 220.509MCCAULEY, Disdéri apud JAY, Downcast eyes, p. 142-143.510JAY, Downcast eyes, p. 142.511MITCHEL apud JAY, op. cit., p. 140.512JAY, op. cit., p. 140.513DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 43.514PROUST, À sombra das raparigas em flor, p. 264.515Ibidem, p. 184.
70
Nas conseqüências sociais, Siegfried Kracauer, em 1927, levantava a questão de
que a fotografia é uma barreira para a memória verdadeira: “'nos jornais ilustrados', ele nota,
'o mundo é transformado em um presente fotografável e o presente fotografado é
completamente eternizado. Parece ter sido arrancado da morte; na realidade, ele se resigna a
isso'”516. Bergson, em linha similar e afim à sua filosofia, também admite que “fotografar (...)
não é lembrar”517. A longo prazo, Jay aponta a fotografia como um dos fatores que ajudaram a
“minar a crença na autoridade dos olhos, o que ajudou a preparar a forma como se interrogou
a visão no pensamento francês do século XX. Ao invés de confirmar a capacidade do olho em
conhecer a natureza e a sociedade, a fotografia pode ter tido o efeito oposto”518.
É desse contexto de tensão entre artes e os avanços tecnológicos que emergem
tanto as filosofias quanto as vanguardas do século XX, com as quais Debord dialoga – às
vezes de modo explícito, outras de modo velado. Na filosofia, o movimento que se percebe é
a tentativa de suplantar o perspectivismo cartesiano e outras epistemologias “espectadoras”,
então em descrédito, com alternativas que “explorassem o caráter corporalizado e
culturalmente mediado da visão”519. Quando posta em dúvida a primazia do visual (e porque
posta em dúvida), Jay destaca três mudanças que despontam na filosofia: “a primeira diz
respeito ao que pode ser denominado de detranscendentalização da perspectiva; a segunda, a
recorporificação do sujeito cognitivo; e a terceira, a revalorização do tempo sobre o
espaço”520. Ademais, contraditoriamente à dissolução do padrão da perspectiva na pintura e do
ponto de vista autoral ou narrativo na literatura, na filosofia observa-se o desabrochar de um
tímido “perspectivismo” auto-consciente, cujo passo inaugural foi dado na Alemanha, por
Gustav Teichmüller e seu Die wirkliche und die scheinbare Welt, de 1882, cuja influência é
admitida Friedrich Nietzsche521, autor que levou o perspectivismo até um ponto radical, ao
insistir que todo ponto de vista é carregado de valor, sempre522, de modo a rejeitar a noção de
verdade absoluta523. Nietzsche insistiu que “visão era mais projetiva do que receptiva, assim
como mais ativa que passiva”524, de tal forma que é impossível ao sujeito se abster da sua
posição para conhecer. E tal posição, tal perspectiva, é não apenas cognitiva, como corpórea:
Nietzsche enfatizou a existência de um corpo concreto que sustenta o hipotético sujeito do
516KRACAUER, “Die Photographie” apud JAY, Downcast eyes, p. 135.517JAY, Downcast eyes, p. 193.518Ibidem, p. 136.519Ibidem, p. 150.520Ibidem, p. 187.521Ibidem, p. 188.522Ibidem, p. 191.523Idem, ibidem.524Ibidem, ibidem.
71
conhecimento – a exemplo do que antes dele fizera Feuerbach e Marx, situando suas teorias
no contexto da experiência vivida corporeamente525.
Diante dessa revalorização do corpo, o dualismo iniciado na filosofia grega entre
sujeito e objeto começa a ruir também526. Na filosofia francesa, Bergson, se não é o primeiro,
é um dos filósofos de maior destaque a apresentar o corpo como instrumento de ação, e não
de representação: “uma verdade fundamental sobre o corpo vivido, em oposição ao corpo
como objeto de contemplação, é seu movimento no mundo, sua habilidade em ser um veículo
de escolha humana”527. A liberdade humana, para ele, depende da irredutibilidade da
temporalidade à espacialidade528. Daí a importância do tempo experimentado, o que faz com
que se oponha frontalmente à hipertrofia da visão, que implica em conceber o espaço como
locus privilegiado do emergir da consciência humana. (Para Lacan, a consciência, fundada a
partir do espaço, é herança da filosofia cartesiana, na qual o sujeito não seria mais que um
ponto geométrico, baseado no ponto gerador da perspectiva529). De acordo com Bergson, a
dominação da visão se faz sentir na espacialização do tempo – o tempo encarado como uma
sucessão de pontos no espaço –, em que, desde a Idade Média, “ritmos temporais naturais e as
temporalidades excêntricas das experiências pessoais foram subordinadas à inflexível e
uniforme série de pontos numa linha unidirecional que nós agora automaticamente
identificamos com o tempo em si”530. Teria sido este, segundo o francês, o grande erro de
Kant: conceber o tempo em si como um meio homogêneo531. No início do século XIX Hegel
já havia – apesar de insistir na hipótese de uma história em si, e na possibilidade da sua
observação omnisciente – ido de encontro à epistemologia kantiana, ao pôr o tempo como
paradigma da intuição532. Essa análise de Bergson influenciou, não por acaso, o principal
nome do marxismo hegeliano, Lukács, que “incluiria a espacialização do tempo nas suas
análises da reificação capitalista, em particular da força de trabalho dos operários, os quais
passaram a ser mais rigorosamente controlados com a introdução, no século XX, dos métodos
tayloristas de ajuste de desempenho”533. Bergson, contudo, afirma Jay, confia na visão: sua
hostilidade é com o ocularcentrismo do pensamento Ocidental534: o francês não vê a
525JAY, Downcast eyes, p. 191.526Ibidem, p. 190.527Ibidem, p. 193.528Ibidem, p. 197.529MACHADO, A ilusão especular, p. 74.530JAY, op. cit., p. 195.531Ibidem, p. 196.532SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 7.533JAY, op. cit., p. 196.534Ibidem, p. 202.
72
linguagem como alternativa à percepção visual, pois elas compartilham do mesmo defeito: a
tendência para abstrações atemporais – “todas as formas de intelecção, baseadas que são em
simbolização, são suscetíveis a essa tendência”535.
Outra fonte inspiradora do questionamento à visão na filosofia francesa é a
filosofia alemã que, “já desde a Reforma, parece ter sido menos inclinada positivamente à
visão do que a francesa”536, privilegiando a experiência auditiva – música, poesia537. Ela
adentrou o solo gaulês via fenomenologia – Husserl e Heidegger –, em especial após o
encontro entre filósofos alemães e franceses ocorrido em Davos, Suíça, em março e abril de
1929538. Husserl, apesar do viés visual da sua filosofia – a escolha em “chamar a intuição
eidética de uma Wesenschau (literalmente um olhar para as essências) sugere a persistência
das premissas ocularcêntricas no seu pensamento”539 –, solapa “a distância espectadora entre o
sujeito que observa e o objeto que é observado da tradição epistemológica cartesiana”540: a
consciência é sempre consciência de algo, possui uma intencionalidade para com o objeto
visado, de forma que é impossível ao objeto ficar à parte do seu observador, disponível para
uma observação e uma representação neutras: o seu famoso chamado para retornar às coisas
mesmas implica na apreensão do objeto necessariamente para além do mero aspecto visual541,
e acarreta o entrelaçamento entre sujeito e objeto – “que fora perdida com todas as filosofias
dualísticas”542. Já Heidegger, a exemplo de Bergson, “lamenta a negligência da temporalidade
na metafísica Ocidental, desde Heráclito, em favor de uma ontologia espacial baseada no
sincronismo da contemplação de uma determinada posição”543: “na theoria transformada em
contemplatio”, ele escreveu, “vem à frente o impulso, já preparado no pensamento grego, de
um observar que separa e compartimentaliza. Uma espécie de intruso que avança por passos
sucessivos interligados em direção àquilo que deve ser compreendido pelo olho, se
constituindo em conhecimento normativo”544. Para Heidegger, a própria metáfora visual
pressupõe distância e separação, daí ele preferir termos auditivos, que enfatizam o
pertencimento do Dasein no Ser545.
Sartre, na trilha do autor de Ser e tempo, afirma que a hipertrofia da precedência
535JAY, Downcast eyes, p. 200.536Ibidem, p. 265.537Idem, ibidem.538Idem, Marxism and totality, p. 334.539Idem, Downcast eyes, p. 266.540Ibidem, p. 267.541Ibidem, p. 268.542Idem, ibidem.543Ibidem, p. 270.544HEIDEGGER, “Science and reflection” apud JAY, Downcast eyes, p. 270.545JAY, op. cit., p. 272.
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do visual levou a uma epistemologia problemática, cúmplice da dominação da natureza, e que
deu sustento à hegemonia do espaço sobre o tempo. Ademais, “também levou a distúrbios
profundos nas relações intersubjetivas, e à construção de uma versão perigosamente
inautêntica de si (do self)”546 – inautenticidade (termo empregado também por Heidegger)
combatida pela psicanálise existencial e que tem como meta a integridade unificada do self e a
responsabilidade absoluta do sujeito nos seus atos547. Sartre, a exemplo de Heidegger, vê o
mundo profundamente alienado, nas mais diversas formas548, para além da mera alienação da
força de trabalho enfatizada pelo marxismo – isto mesmo quando o autor passa a tentar
conciliar existencialismo com marxismo, já que no início de sua carreira, na época de Ser e
nada, por exemplo, ele vagamente possuiria algumas tendências esquerdistas. Tal alienação,
atingindo as relações interpessoais, impede uma visão de totalidade: sem um deus ou uma
entidade externa, a humanidade permaneceria para sempre fragmentada e em um conflito549
em que o “nós” não alcança a condição de uma consciência inter-subjetiva, por mais que o
indivíduo possa fazer parte de uma comunidade550: “o senso temporal de comunidade entre os
indivíduos era produzido somente por um olhar objetivante de um observador externo, que
criava um 'nós-objeto'”551. Está no olhar a questão da alienação para Sartre – tanto para este
Sartre fundamentalmente existencialista, quanto para o posterior, afeito também marxismo.
Isto porque a dominação do mundo objetivo pressupõe o olhar, o que por si põe o sujeito – ele
se põe – à distância do que é observado, e esse modelo se tornou o modelo também para as
relações interpessoais552. Dois problemas podem ser levantados disso: um deles, o da não-
reciprocidade e conseqüente relação de poder que há entre quem vê e quem é visto,
transformado em objeto553 – problema inspirado na interpretação de Kojève da dialética
senhor-escravo de Hegel554 –; o outro, de que “visão é assim insuficiente como meio de
conceber o sujeito, ou o que ele chamará de 'para-si', e não menos problemático na sua
tentativa de conceitualizar o objeto, ou o 'em si'”555. De início rejeitando o marxismo –
ignorando ao menos –, com o correr dos anos, o pensador tentou conciliá-lo com o
existencialismo. Sem nunca ter assumido por completo a dialética e o conceito de totalidade
546JAY, Downcast eyes, p. 276.547Idem, Marxism and totality, p. 342.548Ibidem, p. 337.549Ibidem, p. 340.550Ibidem, p. 339.551Ibidem, p. 340.552JAY, Downcast eyes, p. 287.553Ibidem, p. 288.554Ibidem, p. 287.555Ibidem, p. 286.
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histórica de Lukács – ou mesmo Kojève –, de que a natureza é adialética e, logo, não pode ser
confundida com a história556, Sartre, de acordo com Jay, parte do princípio de que o sujeito é
antes de qualquer coisa um corpo, o qual precede a autoconsciência557. Ele está, portanto,
preso a um quê de natural que não pode ser de todo superado: “o corpo serve como um
impedimento para qualquer possibilidade de totalização intersubjetiva, porque o que Sartre
chama de 'corpo-para-os-outros' estava inevitavelmente congelado em um objeto pelo olhar
das outras subjetividades. Esta percepção objetificada era então internalizada pela consciência
original como uma realidade reificada do corpo, o qual então se tornou alienado de si mesmo
ao invés de da sua base pré-conceitual”558. O ocularcentrismo resultaria na cisão do indivíduo
em sujeito que observa e objeto que é observado, tendo como origem a aceitação da auto-
alienação que está na raiz do cogito cartesiano559. Sua proposta em idade mais avançada é não
a de uma totalidade, mas a de uma totalização: a diferença estaria que “enquanto a totalidade é
inerte e como uma coisa, a totalização é dinâmica, viva e, mais importante, inerentemente
instável”560, de tal forma que a unidade sintética não é uma atividade, mas o vestígio do
passado: Sartre crê que sempre haverá alguma alienação. O autor encara como a forma
privilegiada de totalização a linguagem, que deve ser entendida como que “desenvolvendo
constantemente uma totalização orgânica”561, e assim como o tempo, que não existe em-si e
no qual não estão inseridos o homem e suas atividades, é antes “uma qualidade concreta da
história, é feita pelo homens com base nas suas temporalizações originais”562. É a linguagem,
fluida na dinâmica do tempo, criada pelos homens ao produzir sua história, que Sartre, na
interpretação de Jay, vê a possibilidade uma totalização futura, menos alienada, capaz de
conhecer a realidade – não o todo, o que é impraticável pela natureza localizada do nosso
ponto de vista563 – e capaz de criar uma comunidade com sentido564. Não por acaso que ele
sugere que “linguagem deva ser estudada nos mesmos termos que o dinheiro: como um meio
circulante, de materialidade neutra, que unifica o disperso”565 em um dado momento.
Dois outros fortes críticos do ocularcentrismo e que merecem breve nota neste
trabalho são Jacques Lacan e seu aluno Louis Althusser. Seguindo a leitura de Martin Jay,
556JAY, Marxism and totality, p. 340.557Ibidem, p. 341.558Idem, ibidem.559JAY, Downcast eyes, p. 290.560JAY, Marxism and totality, p. 351. 561Ibidem, p. 357.562Ibidem, p. 355.563Idem, Downcast eyes, pp. 290-291.564Ibidem, p. 290.565JAY, Marxism and totality, p. 357.
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pode-se dizer que Lacan identifica tanto na sociedade quanto na filosofia Ocidental a
tendência a uma estagnação no desenvolvimento saudável, não-alienado dos sujeitos566. O
pensamento ocularcêntrico, por sua hipervalorização do olho e do olhar, obsta a representação
simbólica da castração, fazendo com que a sociedade como um todo fique impedida de entrar
de fato no simbólico – onde o falo opera como um significante do desejo inalcançável,
separando o ego567 –, presa na chamada “fase do espelho”568 – que em sua teoria acompanha a
criança do sexto ao décimo oitavo mês de vida –, fase dominada pelo imaginário, em que
imagem e realidade aparecem fundidas, confusamente imiscuídas uma na outra569. A
superação dessa fase, a saída do imaginário e a entrada no simbólico, passaria pela superação
da díade do espelho – relação em que o sujeito encontra um sentimento de todo, mas um todo
narcisista, baseado na “alegre compreensão da sua imagem especular”570 – pela tríade do
drama edipiano, única forma possível de uma intersubjetividade não narcisista, uma
intersubjetividade “no qual a alteridade do não-próprio é preservada ao invés de destruída”571:
só quando o desejo de fusão é substituído pela aceitação da proibição do desejo, representado
pela introjeção da proibição do pai contra o incesto, é que o sujeito pode superar a fase do
estágio do espelho572. Ou seja, o sujeito, para Lacan, conforme Jay, deve tentar abdicar da
unidade aparente que a representação meramente visual do espelho dá pela aceitação do outro
não como uma imagem de si – como em Rousseau –, mas como limite a si mesmo. A
psicologia do ego – ou mesmo, como visto, a psicanálise existencial de Jean-Paul Sartre573 –,
que visa um ego forte e integrado seria equivocada e contribuiria para a alienação, uma vez
que, segundo Lacan, “o ego representa o centro de todas as resistências ao tratamento dos
sintomas”574.
É também esse sujeito centrado o sujeito ideológico para Althusser – de acordo
com Jay. Definindo ideologia como “a relação imaginária dos indivíduos com suas reais
condições de existência”575, ele conclui, inspirado no estruturalismo então em voga e em
Lacan, que ideologia é uma constante humana, independente de quão perfeita seja a
sociedade: o objeto real é distinto do objeto do conhecimento, e neste intervalo sempre há
566JAY, Downcast eyes, p. 352.567Ibidem, p. 355.568Ibidem, pp. 358-359.569Ibidem, p. 355.570Ibidem, p. 345.571Ibidem, p. 351.572Ibidem, pp. 351-352.573JAY, Marxism and totality, p. 342.574LACAN, “Agressivity in psychoanalysis” apud JAY, Downcast eyes, p. 348.575ALTHUSSER, “Ideology and ideological state apparatuses” apud JAY, Downcast eyes, p. 375.
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falhas na identificação, produzidas pelo imaginário576. Rompendo com a ligação entre
ideologia e falsidade, ao ver a ideologia como uma constante – inevitável – da sociabilidade
humana, passa-se a encará-la como uma forma de conhecimento577, distinto do conhecimento
científico – o qual, “ele alega, opera no nível da produção conceitual, na qual a verificação
experimental não tem qualquer papel; ela é, não obstante, materialista porque pressupõe uma
coerência fundamental entre objetos pensados e mundo real”578. A partir disso, a ciência seria
capaz de ver através da ideologia, por mais que seja incapaz de acabar com seu poder sob a
experiência vivida579. A “arte verdadeira” teria uma função parecida: apesar de não oferecer
um conhecimento stricto senso, científico, permitiria perceber certas relações dos indivíduos
com o conhecimento, que de outra forma, imersos no quotidiano, não seriam percebidas580.
Seus críticos, contudo, vêem na posição de Althusser sobre a ciência apenas uma nova versão
da divisão do trabalho, a separação entre trabalho intelectual e manual, em que o intelectual
marxista, dotado de sua visão científica, teria a capacidade de ter a visão do todo, enquanto as
massas permaneceriam no nível ideológico imposto pela vida prática do dia-a-dia581: uma
apresentação marxista (involuntária) da abstração do mundo, da compartimentalização das
funções, típicas do espetáculo, levantadas por Debord. No âmbito do ocularcentrismo e da
filosofia, mais especificamente, Althusser identifica a ideologia com a confiança em qualquer
tipo de visão, e toda filosofia que põe um sujeito centrado como ideológica582 – daí porque o
marxismo hegeliano inspirado em Lukács, confiante no operariado como meta-sujeito da
história, atuante a partir do centro do sistema de produção capitalista, seria tão-somente uma
visão não científica e, portanto, ideológica, da realidade. Pelas suas análises, interpreta Jay, a
totalidade em Marx, ao empreender sua ruptura epistemológica com a filosofia hegeliana –
que tem como marco A ideologia alemã – seria um todo sem centro, sem um ponto genético
de origem e sem um ponto teleológico de chegada583. A idéia de uma história racional
controlada pelos homens não cabe a Althusser, para quem “mesmo depois da revolução, os
homens estariam sustentando uma estrutura cujas origens eles não são os responsáveis e cujos
objetivos eles não podem determinar”584: pensando a história como processo, o homem se vê
alijado de uma práxis global e, diante dessa ausência de um sujeito efetivo atuante
576JAY, Downcast eyes, p. 374-375.577Idem, Marxism and totality, p. 401.578Idem, ibidem.579Ibidem, p. 404.580ALTHUSSER, Lenin and philosohpy apud JAY, Marxism and totality, p. 415.581JAY, Marxism and totality, p. 405.582JAY, Downcast eyes, p. 375.583Idem, Marxism and totality, p. 406.584Ibidem, p. 411.
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racionalmente na história, fica impossibilitada também uma totalidade normativa585: uma
sociedade revolucionada seria apenas a emergência da hegemonia de uma outra estrutura de
dominação586. A hegemonia de uma estrutura de dominação sobre outras – secundárias, que
continuam ativas –, implica, entretanto, em pensar não uma multiplicidade de centros, “mas a
ausência radical de um centro”587. No que tange à questão do tempo, esses diferentes níveis
estruturais possuiriam cada um uma temporalidade distinta, relativamente autônoma, mas
dependente do todo em última instância, e que “'não podem mais serem pensados na co-
existência do presente hegeliano, de um presente ideológico no qual a presença temporal
coincide com presença da essência com o seu fenômeno.' Por conseguinte, 'o modelo de um
tempo contínuo e homogêneo no qual tem lugar a existência imediata, o qual é o lugar da
existência imediata desse presente progressivo, não pode mais ser tido como o tempo da
história'”588.
Também com influência do estruturalismo, porém fora das correntes marxistas, o
trabalho de Michel Foucault, junto com o de Debord, de acordo com Jay, não foi de rejeição
ao ocularcentrismo, mas antes de inversão do seu valor: “visão ainda era o sentido
privilegiado, mas o que esse privilégio produziu no mundo moderno foi condenado como que
quase totalmente nefasto”589. O que Foucault tratou mais especificamente foi a visão dentro de
um contexto de visibilidades, as quais “não se definem pela visão, antes são complexos de
ações e de paixões, de ações e de reações, complexos multi-sensoriais que acedem à luz”590 –
sendo que a luz, conforme Deleuze, seria a nova forma de intuição espaço-temporal591. As
visibilidades – como os enunciados – por um lado são elementos puros, “condições a priori
sob as quais todas as idéias se formulam num momento, e os comportamentos se
manifestam”592, por outro, não mantêm esta pureza, estando em permanente transformação
com o processo histórico – o a priori, para Foucault, é um a priori histórico: “cada estrato,
cada formação histórica implica uma repartição do visível e do enunciável que sobre ela se
faz; por outro lado, de um estrato a outro há variação da repartição, visto que a própria
visibilidade muda de modo e os próprios enunciados mudam de regime”593. Assim sendo,
Deleuze afirma que “as visibilidades formam, com as suas condições, uma Receptividade, e
585JAY, Marxism and totality, p. 411.586Ibidem, p. 407.587ALTHUSSER, Reading Capital apud Jay, Marxism and totality, p. 411.588Idem, ibidem, p. 409.589JAY, Downcast eyes, p. 384.590DELEUZE, Foucault, p. 86.591Ibidem, p. 88.592Ibidem, p. 87.593Ibidem, p. 74.
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os enunciados, com as suas, uma Espontaneidade. Espontaneidade da linguagem e
receptividade da luz (...). Receptivo não quer dizer passivo (...). Espontâneo não quer dizer
ativo”594. A genealogia da visão está imbricada nos dizeres sobre o que é visto, sendo que o
enunciado detém o primado sobre a visão: “uma 'época' não é preexistente aos enunciados que
a exprimem nem às visibilidades que a preenchem”595, “aquilo que Foucault espera da
História é essa determinação dos visíveis e dos enunciáveis em cada época, que ultrapassa os
comportamentos e as mentalidades, as idéias, pois que é ela que os torna possíveis”596; porque,
a exemplo dos enunciados, que dizem tudo o que podem em função das suas condições de
enunciado597, as visibilidades, “apesar de não estarem nunca ocultas, não é por isso que são
imediatamente vistas ou visíveis. Elas são inclusive invisíveis, enquanto se ficar pelos objetos,
pelas coisas ou pelas qualidades sensíveis, sem se chegar até à condição que as abra. E as
coisas se fecham sobre si, as visibilidades esfumam-se ou confundem-se a um tal ponto que as
'evidências' se tornam inapreensíveis numa outra época”598. Abrir as palavras, os ditos, a
linguagem, assim como abrir a visão, as visibilidades: eis o trabalho do arqueólogo, do
genealogista. Em tal genealogia, Foucault – para quem, em acordo com Sartre, haveria uma
verdade ontológica para além da experiência sensitiva599 – apresenta o triunfo da história
natural, na Idade Clássica, como o triunfo de uma nova ordem visual600. Posteriormente, ao
substituir esse ordenamento científico da visão – estático, de tabelas de classificação empírica
– pela biologia, há uma “nova ênfase nas estruturas invisíveis, anatômicas e orgânicas”601,
reforçada pela emergência da consciência histórica602. O ideal de observação científica
precisa, atenta às mudanças ínfimas que ocorrem com o passar do tempo, se faz notar no
campo social no expediente do panóptico, idealizado por Bentham, no início do século XIX:
“um lugar onde se pode em qualquer momento ver sem ser visto”603, ou melhor, um lugar
onde quem é observado sabe que o pode estar sendo, sem saber se realmente está, e sem a
contrapartida de poder devolver o olhar: trata-se de um dispositivo que garante de fato e de
direito dissimetria, desequilíbrio, diferença na troca de olhares604 – que Sartre já levantava, em
outros termos, em um plano não tão institucional, quando falava da objetivação de quem é
594DELEUZE, Foucault, p. 88.595Ibidem, p. 74.596Ibidem, p. 75.597Ibidem, p. 87.598Ibidem, p. 84.599JAY, Downcast eyes, p. 387.600Ibidem, p. 404.601Ibidem, p. 405.602Idem, ibidem.603DELEUZE, op. cit., p. 74.604JAY, op. cit., p. 410.
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observado605. Internalizado, este desequilíbrio na troca de olhares remonta à questão religiosa,
do “olhar de Deus” sobre cada detalhe606: a mesma ausência de um sujeito concreto, de uma
punição efetiva, mas com o medo permanente dela, aliviado com sua submissão aos
ordenamentos postos, encarado como virtude. Esta nova condição de ser visto não altera,
contudo, o essencial na visibilidade, de que “a condição com que a visibilidade se relaciona
não é, no entanto, a maneira de ver de um sujeito: o sujeito que vê é, ele próprio, um lugar na
visibilidade, uma função derivada da visibilidade (é o caso do lugar do rei na representação
clássica, ou então do lugar de qualquer observador no regime das prisões)”607: a diferença está
na ampliação de quem é sujeito, ou seja, quem tem direito à existência, à visibilidade dentro
da sociedade na Idade moderna – daí a ampliação da visibilidade ostensiva e ritual da Idade
Clássica, para o modelo panopticista. A supremacia deste, diz Foucault, se deu com a
Revolução Francesa, sob o reinado de Napoleão Bonaparte608: o sonho de Rousseau, “de uma
sociedade transparente, visível e legível em cada parte, o sonho de não haver mais zonas de
escuridão”609. O panóptico, se é a instrumentalização do sonho de Rousseau de visibilidade
por um lado, por outro, se apresenta despido do ideal igualitário e de liberdade: “o
'Iluminismo', que descobriu as liberdades', ele argumentou, 'também inventou as
disciplinas'”610.
Também foram influenciadas por esse movimento de questionamento do olhar –
ou das visibilidades, para utilizar o termo foucaultiano –, as vanguardas artísticas dos séculos
XIX e XX (que tiveram Paris como seu epicentro), seja dentro do próprio domínio da arte,
seja num contexto mais amplo de transformação social.
Elas podem ser tidas como “um fenômeno cultural de signo crítico, negativo e
combativo”611, que têm sua origem no esfacelamento da unidade espiritual e cultural do século
XIX612, e que vêem não na evasão do mundo, mas “na presença ativa dentro da realidade”
uma alternativa à perda dos valores de antanho613. A arte moderna, portanto, segundo de
Micheli, “não nasceu como uma evolução da arte do século XIX; ao contrário, ela surgiu de
uma ruptura dos valores daquele século”614, almejando “uma superação [Aufhebung] da arte –
605JAY, Downcast eyes, p. 408.606Ibidem, p. 410.607DELEUZE, Foucault, p. 84.608JAY, op. cit., p. 411.609Idem, ibidem.610Idem, ibidem.611SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 49.612DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 5.613Ibidem, p. 46.614Ibidem, p. 5.
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no sentido hegeliano da palavra: a arte não deve simplesmente ser destruída, mas transportada
para a práxis vital, onde, ainda que metamorfoseada, ela seria preservada”615. Isso implicou no
engajamento do artista não apenas na cultura, como na sociedade, na tentativa de apreendê-las
“como um todo, e transformá-las de acordo com as recém-descobertas categorias estéticas e
utópicas”616. Por serem utópicas, Home põe as vanguardas artísticas do século XX como
expressão similar aos movimentos heréticos da Idade Média: “a tradição utópica sempre
almejou a integração de todas as atividades humanas. Os heréticos da Idade Média buscavam
abolir o papel da Igreja e realizar o paraíso na Terra, enquanto seus equivalentes do século XX
buscam o fim da separação social, confrontando política e cultura simultaneamente”617. Esta
ruptura, todavia, é construída de modo gradual, sendo feita conforme o contexto da época –
levantes de 1848, Comuna de Paris, as duas guerra mundiais –, e em grande medida não
abdica dos ideais Iluministas e da Revolução Francesa, podendo ser tida como uma expressão
plástica de muitas teorias filosóficas do Ocidente – por mais que se tenha buscado inspiração
no Oriente ou nas artes dos ditos povos primitivos. Nos termos de sua prática, a ânsia de
transformação da realidade põe as vanguardas artísticas em afinidade com as vanguardas
políticas – quando não as põem em contato direto, como no caso dos situacionistas, para ficar
apenas no exemplo que mais cabe aqui.
Subirats apresenta dois axiomas sobre os quais se assentaria a teoria da vanguarda
política de teóricos como Rosa Luxemburgo, Lênin ou Lukács: “sua força organizativa que
permite dirigir as massas e possibilitar através das estratégias adequadas a vitória política, ou
seja, a revolução social, e em segundo lugar, seu sentido utópico ou seu caráter antecipador de
uma nova realidade social”618. Estes axiomas, nas artes, vão impulsionar as questões do estilo
e da autonomia da esfera artística – isso desde os primórdios dos movimentos de contestação,
com o expressionismo alemão, que se opôs ao positivismo, ao naturalismo e ao
impressionismo, ao rejeitar o olhar objetivo e distanciado dessas correntes para defender o
engajamento na realidade619. Na questão do estilo, acabou-se por retomar a acepção classicista
de estilo num sentido civilizatório. Para Goethe e Schinkel, o estilo é tanto a “representação e
expressão de um sentir geral, seja de um povo, seja de uma época histórica”; quanto detentor
de um caráter formador, educador, identificado com a idéia alemã de Bildung620, que pode ser
615BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 96-97.616SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 56.617HOME, Assalto à cultura, p. 15.618SUBIRATS, op. cit., p. 54.619DE MICHELI, As vanguardas artísticas, pp. 60-61.620SUBIRATS, op. cit., p. 55.
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entendida como “a formação da pessoa no sentido de sua autonomia interior, de sua realização
moral e estética, e de sua liberdade”621. Na raiz de Bildung está a palavra Bild, que significa
“figura, forma, imagem ou cópia”622, e que remete, portanto, ao conceito grego eidos, o qual
possui duplo significado: pode tanto “designar a aparência sensível das coisas, identifica-se
com a forma visível”, quanto estar “ligado a uma determinação interior e essencial das
coisas”, conforme a filosofia platônica623. Ademais, “originalmente, a palavra Bildung
relacionava-se com o pensamento religioso e místico”624. Por caminhos outros, o grande
inspirador das vanguardas contestatórias, Cézanne, era, segundo Merleau-Ponty, uma pessoa
com profundo laços com a religião, na qual ele buscava, por medo da vida e da morte, a
necessidade de fixar a vida num ponto e abandoná-la625.
No quesito da arte como esfera autônoma, exemplos como a Bauhaus sinalizam
no sentido da arte como “um fator da produção e reprodução social”626. A destruição da
autonomia da arte está ligada a “uma exigência crítica: a superação do conflito entre
idealismo poético e realidade alienada, entre o sonho transcendente de felicidade que a arte
transforma como realização autônoma de beleza, e a existência social submetida a um
princípio coercitivo de dominação e desigualdade”627. Para melhor sistematizar a arte
moderna, Subirats elabora a noção de “estética cartesiana” a partir dos aspectos que ele julga
fundamentais da epistemologia de Descartes. São estes aspectos: “a ruptura com o passado, o
questionamento de si mesmo, a exigência sempre reformulada de voltar às origens, de partir,
uma vez mais, do zero”628, assim como “a recusa da imaginação e da fantasia, a negação da
memória histórica e da tradição, a negação da memória biográfica individual, a recusa
absoluta da natureza interior do homem ou o questionamento dos elementos sensíveis da
experiência”629. Merleau-Ponty destaca também o fato de “o modelo cartesiano da visão ser o
tato”630. Na confluência dessas duas linhas, de cartesianismo e Bildung, Paul Klee, por
exemplo, afirmava que a aspiração do artista devia ser a de se inserir nas forças criadoras da
natureza, de modo que ela “possa, através dele, gerar fenômenos novos, novas realidades,
novos mundos. Segundo Klee, portanto, o artista deve tornar-se uma espécie de médium, em
621SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 92.622Idem, ibidem.623Ibidem, p. 84.624Ibidem, p. 93.625MERLEAU-PONTY, “A dúvida de Cénzanne”, p. 124.626SUBIRATS, op. cit., p. 56.627Ibidem, p. 57.628Ibidem, p. 60.629Ibidem, pp. 60-61.630MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 24.
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comunicação com o 'ventre da natureza'”631. Natureza esta que não é a natureza pura, do bom
selvagem do ideal rousseauniano: de acordo com Subirats, “a arte da vanguarda, conforme à
estética do absoluto do século XIX, proclamara a necessidade de criar uma segunda
natureza”632. Talvez mais acertado seja dizer recriar essa segunda natureza humana. Para tais
propósitos, as vanguardas rejeitam o que Bürger chamou de obra de arte orgânica, calcada no
simbólico, cuja unidade do geral e do particular (definição de obra de arte, num sentido geral,
conforme o autor) é estabelecida sem mediação633, em que o artista “manipula seu material
como algo vivo, cuja significação advinda de situações concretas de vida, ele respeita”634. No
seu lugar, as vanguardas oferecem uma obra não orgânica, alegórica (ainda que “na
vanguarda, à depreciação deste em favor do outro mundo contrapõe-se uma quase entusiástica
afirmação do mundo”635), em que a unidade é mediada636 e o material é só material, sendo
função do artista “matar a 'vida' do material, isto é, arrancá-lo ao seu contexto funcional, que é
o que lhe empresta significado”637. De acordo com esta leitura de Bürger, o vanguardista se
propõe a fazer a denúncia de um mundo fragmentado já na própria forma, e a desvelar o
caráter absolutamente humano, social, daquilo que é apresentado: ele oferece sua arte “como
produto artificial, a ser reconhecido como artefato”638; ele recusa aquilo que Lukács
denominou “encobrimento”, ou seja, “a produção da aparência de natureza”639. É certo que os
surrealistas, ao procurarem “restaurar a originalidade da experiência”, acabam por estabelecer
“como natural o mundo produzido pelo homem. Com isso, no entanto, a realidade social fica
protegida contra a idéia de uma possível mudança. A história feita pelo homem não é
transformada em história-da-natureza, mas petrificada em imagem natural. A metrópole é
vivenciada como natureza enigmática, na qual o surrealista se move como o primitivo na
verdadeira natureza: em busca de um sentido que deve poder ser encontrado naquilo que é
dado”640. Os dois expedientes utilizados pelas vanguardas para tentar alcançar seus propósitos
– acompanhando Bürger – são a lógica do choque e a montagem. Neste ponto, via de regra, as
vanguardas teriam aderido àquilo que Subirats chamou de “utopia do maquinismo”: a crença
na cultura ocidental, vinda desde Descartes, de que a máquina seria “a máxima expressão e o
631DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 93.632SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 43.633BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 106.634Ibidem, p. 129.635Ibidem, p. 131.636Ibidem, p. 106.637Ibidem, p. 129.638Ibidem, p. 132.639Idem, ibidem.640Ibidem, p. 131.
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mais decisivo meio de poder humano sobre a natureza e, conseqüentemente, como
instrumento emancipador”641, adquirindo “funções demiúrgicas, proféticas, messiânicas, bem
como demoníacas, infernais e destrutivas”642, no contexto da modernidade estética. “No
manifesto 'o que é o Dadaísmo e o que ele pretende na Alemanha?', Richard Huelsenbeck
exigia a 'introdução progressiva de mais tempo livre através da mecanização gradativa de
todos os campos de atividade' e o estabelecimento de um conselho dadaísta para a
remodelagem da vida em todas as cidades com mais de 50 mil habitantes”643. Com a apologia
da máquina, as vanguardas estéticas, afins ao pensamento do seu tempo, tendiam a aceitar os
três pressupostos da consciência moderna: “a idéia de uma ruptura radical com a história e o
começo de uma nova era; a concepção racionalista de história como triunfo absoluto da razão
no tempo e no espaço e, com ela, das idéias de justiça social e de paz; e, por último, a fé em
um progresso indefinido fundado no desenvolvimento cumulativo e linear da indústria”644.
Ainda conforme Subirats, esta postura positiva de crença no maquinismo será um dos motivos
pelos quais as vanguardas acabarão, dialeticamente, se tornando o oposto do que eram
originalmente: de movimentos contestatórios passam a ser movimentos conservadores.
A história das vanguardas artísticas, iniciada com o expressionismo como uma
arte de oposição, talvez tenha encontrado seu ápice ainda nos primórdios do século XX, com a
negação dadaísta. Enquanto Klee, por exemplo, anunciava a possibilidade de se afastar das
leis que a teoria põe, e que “aquele que segue as regras com rigor excessivo perde-se num
campo estéril”, de forma que defendia o movimento livre quase como um dever moral645, os
dadaístas não se propunham ao afastamento ou questionamento das regras, e sim ao extremo
de destruí-las: seus alvos não deixam de ser os mesmos que os dos expressionistas, mas seus
meios são muito mais radicais. De acordo com de Micheli, dadá é “antiartístico, antiliterário,
antipoético”, é “contra as leis da lógica, contra imobilidade do pensamento, contra a pureza
dos conceitos abstratos, contra o universal em geral. É, ao contrário, a favor da liberdade
desenfreada do indivíduo, da espontaneidade, daquilo que é imediato, atual, aleatório, da
crônica contra a temporalidade, daquilo que é espúrio contra aquilo que é puro, da
contradição, do não onde os outros dizem sim e do sim onde os outros dizem não, da anarquia
contra a ordem, da imperfeição, contra a perfeição. Portanto, em seu rigor negativo é também
contra o modernismo, isto é, contra o expressionismo, o cubismo, o futurismo, o
641SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 23.642Ibidem, p. 26.643HOME, Assalto à cultura, p. 16.644SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, pp. 12-13.645DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 101.
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abstracionismo, julgando-os em última análise subprodutos daquilo que foi ou está para ser
destruído, isto é, dos novos pontos de cristalização do espírito, o qual jamais deve ser
aprisionado na camisa de força de uma regra, ainda que nova e diferente, mas deve estar
sempre livre, disponível, solto no contínuo movimento de si mesmo, na contínua invenção da
sua existência”646. Ou seja, sua negação é ativa, exige um engajamento completo do indivíduo
num modo de vida – não se restringe, portanto, a um movimento artístico647: originado do
questionamento da instituição arte (e não apenas de um estilo)648, ele vai além da negação
disso; abrange toda a sociedade e tudo aquilo que está relacionado aos costumes e tradições649.
“Quando os vanguardistas colocam a exigência de que a arte novamente devesse se tornar
prática, tal exigência não diz que o conteúdo das obras de arte devesse ser socialmente
significativo”650: seu objetivo não é integrar a arte à práxis vital burguesa, ou seja, “a um
mundo ordenado pela racionalidade-voltada-para-os-fins”, e sim de organizar uma nova
práxis vital651. No contexto atual, “o burguês, reduzido na sua práxis vital a uma função
parcial (ação ligada à racionalidade-voltada-para-os-fins), experimenta-se na arte como 'ser
humano'”652, “experimenta a si mesmo como personalidade. Mas como o status da arte se
encontra dissociado da práxis quotidiana, essa experiência não produz conseqüências, isto é,
não pode ser integrada a essa práxis”653. Ela serve, assim, à neutralização da crítica, o que está
“em estreita conexão com a função assumida pela arte na formação da subjetividade
burguesa”654. Ao atacar a instituição artística, as vanguardas desenvolvem “uma crítica das
relações de bens de consumo”655. E ao fazerem aflorar a inadequação à sua obra, à sua arte,
por parte do receptor – cujo “procedimento para apropriação de objetivações intelectuais”
foram moldados no contato com obras de arte que Bürger chamou de orgânicas656, ou seja, a
arte não-vanguardista –, abrem espaço para que este questione sua práxis vital e tenha ciência
da necessidade de transformá-la657. “Por conseguinte, a obra vanguardista provoca na
recepção uma ruptura” que é análoga tanto ao caráter fragmentário da obra (sua não
organicidade)658, quanto ao caráter fragmentário do próprio indivíduo na sociedade capitalista. 646DE MICHELI, As vanguardas artísticas, pp. 134-135.647Ibidem, p. 135.648BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 96.649DE MICHELI, op. cit., p. 134.650BÜRGER, op. cit., p. 96.651Ibidem, p. 97.652Ibidem, p. 95.653Ibidem,, p. 38.654Ibidem, p. 39.655HOME, Assalto à cultura, p. 180.656BÜRGER, op. cit., p. 142.657Idem, ibidem.658Ibidem, p. 146.
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Ela agride a burguesia na sua racionalidade voltada para fins, afronta sua fruição estética,
habituada à harmonização das partes659, em uma imagem projetada de reconciliação entre
homem e natureza660 – “em vez de tentar 'resolver' as contradições, a 'vanguarda' as coloca
para 'trabalhar' como o motor de mais uma 'desordem' desconhecida”661. Esse efeito é
conseguido com aquilo que Benjamin chamou de “estética do choque”: o choque é aquilo que
é sentido pelo transeunte na multidão662, o mover-se através do tráfego663, assim como a
vivência do operário frente à máquina664 – situações banais da sociedade contemporânea, mas
que tornam o homem “um caleidoscópio dotado de consciência”, de acordo com
Baudelaire665. Ao sujeito cabe criar mecanismos para apreender e se situar na cidade e na
modernidade: lidar com essa série de sinais, de informações, de perigos, sem que disso resulte
em trauma. Destarte, o choque exige um treinamento no controle dos estímulos, que pode
acontecer através do sonho e da lembrança, mas que depende principalmente do consciente
desperto666, de forma que “quanto maior é a participação do fator choque em cada uma das
impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger
contra os estímulos”667. O cinema, com sua forma de recepção ao mesmo tempo atenta e
distraída aos seguidos golpes dados pelas mudanças de ângulos e lugares668, seria uma
resposta técnica à exigência deste “treinamento de natureza complexa”669. Com isso é
amortecida essa torrente de estímulos que atingem o indivíduo. Ao mesmo tempo, é tornada
estéril para a experiência poética670. A obra de arte nesse contexto em que o choque é norma,
seria viável graças a um “alto grau de conscientização”, à “idéia de um plano atuante em sua
composição”671, em que a experiência do choque está no âmago do seu trabalho artístico672. É
o que Benjamin encontra em Baudelaire, nos dadaístas, no cinema. O principal recurso para
alcançar tal efeito, de acordo com Bürger, é a montagem: “a obra 'montada' aponta para o fato
de ter sido composta a partir de fragmentos da realidade. Ela rompe com a aparência de
totalidade. Assim, a intenção vanguardista de destruição da instituição arte, paradoxalmente, é
659BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 147.660Ibidem, p. 139.661HOME, Assalto à cultura, p. 186.662BENJAMIN, “Sobre alguns temas em Baudelaire”, p. 126.663Ibidem, p. 124.664Ibidem, p. 126.665Ibidem, p. 125.666Ibidem, p. 110.667Ibidem, p. 111.668Idem. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 192, p. 194.669Idem. op. cit., p. 125.670Ibidem, p. 110.671 Idem, ibidem.672Ibidem, p. 111.
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realizada na própria obra de arte”673. Com a montagem “é rompido um sistema de
representação que se apoiava na reprodução da realidade, isto é, no princípio de que o sujeito
artístico deve operar a transposição da realidade”674, isto é, “o material montado interrompe o
contexto no qual é montado”675. No cinema, a montagem de imagens é um procedimento
técnico fundamental, não uma técnica artística676. Para Bürger, Benjamin teria notado a
antecipação da queda da aura entre os vanguardistas, em especial os dadaístas, antes mesmo
dos meios técnicos para isso – eles teriam buscado produzir os efeitos do cinema através da
pintura e da literatura677. Conforme Benjamin, “uma das tarefas mais importantes da arte foi
sempre a de gerar uma demanda cujo atendimento integral só poderia produzir-se mais tarde.
A história de toda forma de arte conhece épocas críticas em que essa forma aspira a efeitos
que só podem concretizar-se sem esforço num novo estágio técnico, isto é, numa nova forma
de arte”678. Essa empreitada teria tomado corpo através da tentativa de tornar suas obras
“impróprias para qualquer utilização contemplativa”679, ao desvalorizarem seu material,
apelando recorrentemente para produtos de produção em série, de uso quotidiano, que,
recortados e colados em contexto alienígenas, privados de sentido680, causavam o choque, o
incômodo tanto com a arte quanto com o quotidiano – incômodo reforçado pelo seu
comportamento social baseado no escândalo681. Convém lembrar que Benjamin era entusiasta
das potencialidades emancipatórias abertas pela técnica682.
Entretanto, como aponta Subirats, essa negação dadaísta ficou no meio do
caminho: se Duchamp negou a arte, “sua dimensão poética e transcendente, sua promessa
utópica”, não foi capaz de negar a obra de arte, “seu valor ritual e social, seu caráter fetichista,
sua dimensão sagrada como arcaico objeto de sacrifício para consagração das novas normas
sociais”683. Apesar de incompleta, a proposta dadá não era a de fazer confluir a arte com a
vida, como nos expressionistas, antes de soldar a fratura entre elas, transformar a poesia em
ação – como anunciaram antes deles Van Gogh e Rimbaud684 –, alcançar com isso uma
“verdade humana não deturpada”685. A poesia no sentido dadaísta não é um meio de 673BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 132.674Ibidem, p. 138.675BENJAMIN, “O autor como produtor”, p. 133.676BÜRGER, op. cit., p. 135.677BENJAMIN, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 191.678Ibidem, p. 190.679BÜRGER, op. cit., p. 63.680Ibidem, p. 142.681BENJAMIN, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 191.682BÜRGER, op. cit., p. 65.683SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 80.684DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 135.685 Ibidem, p. 141.
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expressão, mas uma atividade do espírito; não se trata de “manifestação secundária da
inteligência e da vontade”, antes de uma maneira de ser, de viver686 uma vida “aberta, ativa,
impetuosa, provisória, comprometedora”687. No que exatamente resultaria essa atitude
negativa, essa vida aberta, os dadaístas não sabiam: tinham claro apenas a importância do
gesto ser maior do que a da obra688 – daí os recorrentes apelos às polêmicas, às provocações,
aos escândalos –, que não deviam se pôr de modo estético diante da vida, pois ser estético
implicaria num certo distanciamento para retratá-la, e dadá negava qualquer
distanciamento689: conforme o primeiro manifesto dadaísta, “os artistas são os criadores da sua
época”690, o que implica muitas vezes em “ser comerciante, mais político do que artista, não
ser artista por acaso”691. Contudo, essa defesa ferrenha da liberdade, feita sempre pela
negativa, impunha como limite ao dadaísmo, por sua própria lógica, matar-se a si próprio,
antes que se tornasse, ele também, um movimento engessado692. Quem deu prosseguimento
aos ideais de liberdade dadaístas foi o movimento surrealista.
O surrealismo abandona a via inteiramente negativa e tenta fundamentar uma
“doutrina” da liberdade defendida pelos dadaístas, realizável positivamente: “o surrealismo
substitui a rejeição total, espontânea, primitiva de dadá, pela pesquisa experimental, científica,
baseada na filosofia e na psicologia”693. Apesar desse plano positivo, o surrealismo também
“se define como uma atitude do espírito ante a realidade e a vida, não como um conjunto de
regras formais, de medidas estéticas”694. Löwy entusiasticamente diz que “o surrealismo não
é, nunca foi e nunca será uma escola literária ou um grupo de artistas, mas propriamente um
movimento de revolta do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de re-
encantamento do mundo, isto é, de restabelecer, no coração da vida humana, os momentos
'encantados' apagados pela civilização burguesa”695. Mais conseqüente do que o dadaísmo,
não será no gesto, mas no conteúdo que se buscará a força da contestação696 e o caminho para
uma posição revolucionária em prol da liberdade – individual e social. Seu projeto é o de
conciliar Marx e Rimbaud: combinar a mudança da vida com a transformação do mundo697, o
686DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 148.687 Ibidem., p. 249.688 Ibidem, p. 135.689 Ibidem, p. 142.690 Ibidem, p. 140.691 Ibidem, p. 141.692 Ibidem, p. 148.693 Ibidem, p. 151.694 Ibidem, p. 170.695LÖWY, A estrela da manhã, p. 9.696DE MICHELI, op. cit., p. 170.697JAY, Downcast eyes, pp. 236-237.
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que levou muitos de seus membros a se aproximarem e se filiarem a partidos comunistas e
trotskistas, e a nutrirem acerca de si próprios uma auto-imagem de profetas. O profeta, alguém
agraciado por uma visão reveladora e dotado da palavra: apesar de terem o que de Micheli
chamou de um “sistema de conhecimento”698, os surrealistas rejeitavam os modelos
ocularcêntricos predominantes na cultura ocidental, ou seja, o da razão especulativa e o da
observação mimética, e defendiam apenas a iluminação visionária: a negação, portanto, do
que é observado em favor do que vai além do visível699. E assim como a visão por eles
defendida implica em um além, eles trabalharão a fundo a linguagem – literária ou figurativa
–, como forma de traduzir esse regime de visão. Seu objetivo já não é mais superar a cisão
entre arte e vida, como no dadá, e sim a cisão entre sonho e realidade. Por um lado, isso
resultou em um elogio da passividade no cinema, notado pelo crítico Jules Romains, em 1911,
como uma ligação com o sonho700; por outro, a fotografia surrealista, ao quebrar com suas
colagens o instantâneo, pondo nelas uma espécie de distanciamento temporal – renegando o
olho inocente de Breton em favor da posição de Bataille701, que “rejeitava o materialismo
baseado na imagem visual da matéria pelo de uma experiência corpórea da materialidade”702,
e afirmava, indo de encontro a Sartre e toda a tradição ocularcêntrica ocidental, que a
verdadeira comunicação entre duas subjetividades exigia o máximo de obscuridade703 –, deve
ser encarada, conforme Jay, “como uma das contribuições mais importantes para a crise do
ocularcentrismo no século XX”704, contribuindo, conforme Krauss, para “extrair uma nova
ordem visual dos escombros do perspectivismo cartesiano”705, que não é coisa outra que a
racionalização do perspectivismo renascentista, que penetrou em todas as esferas da vida.
Para de Micheli, a quebra dessa ordem já havia sido iniciada por Cézanne, de quem se deve
destacar “a profunda estruturação que fez da realidade que o envolvia, cujo destino era sua
tela; sua tendência a geometrizar a paisagem; e sua disposição em captar objetos a partir de
pontos de vista heterodoxos em relação às leis da perspectiva tradicional”706.
Essas “anomalias” tiveram seu auge com aquilo nomeado por Micheli como
“platonismo cubista”, que dava vida a “uma nova dimensão do espaço pictórico, a saber, o
sentido de uma dimensão que excluía a idéia da distância, do vazio e da medida, enfim do
698DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 151.699JAY, Downcast eyes, p. 236.700Ibidem, p. 255.701Ibidem, p. 250.702Ibidem, p. 228.703Ibidem, p. 230.704Ibidem, p. 253.705KRAUS, apud JAY, Downcast eyes, p. 250.706Coleção Folha Grandes mestres da pintura, Paul Cézanne, p. 13.
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espaço material, em favor de um espaço evocativo, verdadeiro, não ilusório no qual os objetos
podiam se abrir, estender-se, sobrepor-se, subvertendo as regras da imitação e permitindo ao
artista uma nova 'criação' do mundo segundo as leis de um critério intelectual particular”707.
Para Jay, com o cubismo, a decomposição da ordem espacial implicava no “colapso prático
daquela noção transcendental de uma perspectiva compartilhada, já solapada teoricamente por
Nietzsche. E com o qual foi possível o retorno de todos os demônios aparentemente
reprimidos pelo 'processo civilizatório', o qual estava enraizado em significativa medida na
dominação do olhar desapaixonado”708. Segundo de Micheli, Bombardeio de Guernica, de
Picasso, “conclui positivamente o período dos movimentos de vanguarda, resumindo seus
postulados formais e de conteúdo com uma eficácia que não tem igual em toda a arte
contemporânea. A partir desse momento, os problemas que se colocarão diante dos artistas
não mais poderão fazê-lo em termos de puro vanguardismo, mas deverão forçosamente tender
a uma superação deste”709.
É parte do projeto encampado por Debord e os situacionistas – concepção filtrada
também “pelas idéias de August von Cieszkowki, cujo tomo 1838 de Prolegomena zur
Historiosophie dedicava-se à idéia de que 'o feito e a atividade social vai superar (suplantar) a
filosofia'”710, segundo Home. Assumindo a filiação aos dadaístas e surrealistas – que estariam
“historicamente ligados e, ao mesmo tempo, em oposição” –, ele vê no projeto de cada uma
dessas vanguardas limitações para as quais a posição prático-crítica dos situacionistas levaria
à sua superação. Limitações seriam conseqüência de não possuírem consciência plena do seu
papel – afinal, são duas correntes que estão na transição da arte moderna para a
contemporânea, marcam “o fim da arte moderna” –, e por estarem em um momento de refluxo
do movimento operário revolucionário, cujo fracasso “os deixou encerrados no próprio campo
artístico do qual haviam proclamado e caducidade”, imobilizando-os. Assim, conforme
Debord, “o dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte
sem suprimi-la”. Baseados nestes dois aspectos que consideravam necessários, mas
insuficientes, os situacionistas buscavam a superação da arte, através da sua supressão e
realização711. Para Home, este projeto situacionista era o de uma falsa superação: um regresso
“à categoria final de arte romântica no sistema hegeliano, ou seja, à poesia”712: “tudo o que os
707DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 182.708JAY, Downcast eyes, p. 215.709DE MICHELI, op. cit., p. 199.710HOME, Assalto à cultura, p. 182.711DEBORD, SdE, § 191.712HOME, op. cit., p. 182.
90
situacionistas realmente conseguiram fazer foi reafirmar os fracassos do Dadá e do
Surrealismo em terminologia hegeliana”713.
A exemplo do que Starobinski comenta sobre Rousseau, para quem o êxito da arte
representativa “desemboca no silêncio da arte. Se tudo deve terminar na alegria vivida, a vida
faz desaparecer a arte”714, Debord segue por um caminho parecido na sua crítica radical a toda
representação e fragmentação – na arte, na política, no dia-a-dia –, e vê na sociedade libertada
o fim da arte tal qual a conhecemos hoje. Sua versão para a festa rousseauniana seriam os
conselhos operários revolucionários. Os conselhos são apresentados como local privilegiado
de organização e participação na atividade revolucionária: situações abertas no correr das
lutas de classes que permitem um primeiro vislumbre da superação de toda fragmentação e
separação capitalista-espetacular Neles, “a teoria prática controla a si mesma e vê sua
ação”715, e os sujeitos têm a oportunidade de se tornarem conscientes de si como sujeitos
históricos, sem mistificações, conscientes do seu fazer no mundo, do seu fazer-se no mundo716
– e conscientes da necessidade de dissolução de toda separação e da realização da democracia
desalienada717. Eles tentam dar conta do que Rosa Luxemburgo chamou de “contradição
dialética do movimento socialdemocrata”, em que “pela primeira vez na história, as próprias
massas populares, e contra todas as classes dominantes, impõem sua vontade, mas essa
vontade só pode ser satisfeita além dos limites da sociedade atual e acima dela. Por outro
lado, no entanto, somente na luta cotidiana contra a ordem existente, portanto somente no
âmbito dessa ordem, podem as massas desenvolver sua vontade”718. A existência efetiva dos
Conselhos, contudo, não teve mais do que alguns esboços, logo combatidos e vencidos “por
diferentes forças de defesa da sociedade de classes, entre as quais é preciso muitas vezes
considerar a própria falsa consciência”719. Conforme Debord, para que os conselhos possam
emergir novamente, uma organização revolucionária deve fazer oposição radical ao sistema e
a toda forma de separação: a única separação que ela deve reconhecer é “com o mundo da
separação”720, ou seja, uma separação que garanta a não contaminação pelas formas reificadas
de organização, e permita a unidade teórico-prática, imprescindível, conforme o polemista
francês, para a revolução ter vez. O papel das vanguardas – que não podem mais ser
713HOME, Assalto à cultura, p. 182.714STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, p. 100.715DEBORD, SdE §221.716Ibidem, §74.717Ibidem, §221.718LUXEMBURGO, Rosa. Staat und revolution, p. 79. apud LUKÁCS, Gyorgy. História e consciência de
classe, pp. 519-520.719DEBORD, op. cit., § 116.720Ibidem, § 119.
91
distinguidas entre artísticas e políticas – deve ser o de manter a unidade entre teoria e prática,
o que só pode ser feito se em ação conjunta com o proletariado, nas lutas quotidianas, e assim
promover a agitação prática que provoque, estimule, desperte o desejo de revolução latente na
sociedade, que desencadeará a luta por ela e dará forma, conforme o desenrolar do processo
revolucionário, ao poder dos Conselhos721. Os Conselhos seriam, em suma, a organização
proletária revolucionária gestada nas formas desenvolvidas do capitalismo industrial – devido
aos seus avanços técnicos, tanto de produção quanto de dominação –, e que por estar dentre as
possibilidades abertas pelo capitalismo, prescinde das organizações partidárias centralizadas a
conduzi-la: sua gestão seria feita pelos próprios trabalhadores, em contato direto, em
comunicação desreificada – que Rosa Luxemburgo tratava como o verdadeiro princípio
revolucionário, presente na “espontaneidade elementar das massas”722. Movimento
espontâneo que não deve ser confundido com movimento automático, natural: longe de
qualquer teleologia ou determinismo, para Debord não se deve encarar a revolução e os
conselhos como frutos necessários do desenvolvimento capitalista, eles são o
desenvolvimento possível (e desejado) das lutas quotidianas contra a dominação espetacular,
desde dentro do sistema. O empenho na prática do proletariado é condição sine qua non dos
conselhos da revolução, pois, como afirma Debord, “nenhuma idéia pode levar além do
espetáculo existente, mas apenas além das idéias existentes sobre o espetáculo. Para destruir
de fato a sociedade do espetáculo, é preciso que homens ponham em ação uma força
prática”723. É preciso ser em mente que a superação do atual estado de coisas é importante – e
não é simples –, mas exige o engajamento na mudança, que deve ir além dos discursos ou das
práticas isoladas, exige o engajamento por completo do sujeito contra a dominação
espetacular – que é inócuo se meramente individual.
Destarte, não cabe nunca a uma vanguarda representar uma classe, ensinar o
proletariado, muito menos conduzir uma revolução724. Porque, ao aceitar um grupo que se
arrola o papel de representante, de professor, de condutor da revolução está se admitindo
implicitamente que esse grupo possui um conhecimento ou uma capacidade mais elevada que
a dos conduzidos, cujas diferenças, ainda que justificadas como provisórias e em nome da
revolução725, revelariam que tal processo apontado como revolucionário traria em seu âmago
um dos princípios que fundamentam e condicionam a sociedade espetacular: a especialização
721DEBORD, SdE, § 119722LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 509.723DEBORD, op. cit., § 203.724Ibidem, § 119.725Ibidem, § 120.
92
e a conseqüente separação do poder. Como afirma o autor: “a mais velha especialização
social, a especialização do poder, encontra-se na raiz do espetáculo”726. E uma organização
revolucionária não pode reproduzir em si aquilo que critica na sociedade dominante: sua
crítica deve permanecer unitária teórico-prática727. Daí, para Debord, a teoria revolucionária
ser inimiga da ideologia revolucionária728 (não entendida aqui no sentido dado por Machado),
de tal forma que o horizonte de toda vanguarda revolucionária legítima – artística ou política
ou, no caso situacionista, artístico-política – ser necessariamente a sua supressão. Supressão
seja por conta da realização do seu projeto revolucionário, o que acarretaria a dissolução de
toda cisão e a tornaria dispensável729, seja pela impossibilidade desse projeto diante da
alteração da conjuntura, de modo que sua supressão seria a forma de evitar que essa
vanguarda e seu projeto se cristalizassem em um discurso dogmático e morto, não
revolucionário, apesar de guardar a verve explosiva – ideológico, em uma palavra –, bunker
para oportunistas em busca de poder no sistema espetacular730. Sistema que tem suas portas
abertas para todos os que desejarem cerrar fileiras em sua defesa – consciente ou
inconscientemente –, com a promessa de “crescimento pessoal”. Isso pode se dar tanto por
intermédio de partidos ditos revolucionários, como pela ampliação de direitos dentro do
Estado de direito731. O espetáculo é a organização tardo-capitalista dessa forma de inclusão e
cooptação das massas via distribuição de miçangas institucionais e produção abundante de
quinquilharias para o consumo das massas732. Pois o capitalismo teria se dado conta, no correr
das lutas de classes, que a classe proletária é a classe da negatividade em ação, da recusa
radical do sistema de exploração capitalista, e tentaria anulá-la a todo custo. Por estar na base
do sistema produtivo, numa sociedade em que, pela primeira vez, a própria base está apta
também a participar da história733, por ter a possibilidade de uma comunicação prática, e de
ocupar uma posição que não é de exclusão, mas que, tampouco, é de inclusão plena, o
operariado tem a oportunidade de ter uma compreensão do sistema que os capitalistas, por
exemplo, não têm. É importante ressaltar que, além de não ser possível se colocar fora do
sistema734, mas apenas à sua margem, é a própria classe que precisa se pôr nessa situação: o
sistema, por si só, abre essa possibilidade, porém não a estimula, pelo contrário: desde que se
726DEBORD, SdE, § 23 727Ibidem, § 121.728Ibidem, § 124.729Ibidem, § 120.730Ibidem, § 98.731Ibidem, §25.732Ibidem, §43.733Ibidem, §143.734Ibidem, §42. §47.
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deu conta do perigo que pode ser uma massa de trabalhadores urbanos reunidos, em
comunicação direta e conscientes do seu estar em sociedade – explorados pelo sistema e como
os verdadeiros produtores do mundo –, o movimento corre na direção inversa, na de incluir o
proletariado no sistema – como produtores735, como eleitores736, como consumidores737. Essa
inclusão, claro, é feita de maneira controlada738, de modo a deixá-los sempre alijados do poder
de fato.
Além da organização material da sociedade, o espetáculo é também sua
organização simbólica – uma ideologia, com forte substrato material. O que não é nenhuma
grande novidade, não apenas pela idéia das palavras terem uma materialidade, como porque
“a ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da
história”739. De acordo com Rouanet, “a essência da ideologia, enquanto produto da história, é
ignorar a história, ou deformá-la. Mas essa deformação é em si um momento da história, uma
ilusão socialmente condicionada, produzida por uma realidade social que só na ilusão pode
reproduzir-se”740. O grande diferencial na sociedade espetacular frente às formas menos
desenvolvidas de capitalismo, é o poder que a ideologia adquire, graças ao “êxito concreto da
produção econômica autonomizada”741, de se efetivar como materialidade742, possibilidade
que nenhuma organização social do trabalho ou estruturação de Estado até então tivera: “o
espetáculo é a ideologia por excelência”743, e pode expor e manifestar “em sua plenitude a
essência de todo o sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida
real”744. Faz isso, por um lado, ao “impor o pseudoconcreto de seu universo”745, no qual as
coisas inanimadas ganham vida e são, por si mesmas, automaticamente tornadas as donas da
vida social, ao mesmo tempo que, pela mediação técnica de signos e sinais, um ideal abstrato
é materializado e ganha forma746; por outro, quando é materialmente “'a expressão da
separação e do afastamento entre o homem e o homem'”747, em que a necessidade de expansão
infinita do espetáculo se opõe à vida, e toda a vida social passa a ser regida pelo princípio do
dinheiro, tal qual concebido por Hegel na Realphilosophie de Iena: “a vida do que está morto 735DEBORD, SdE, § 31.736Ibidem, §87.737Ibidem, §43.738Ibidem, §96.739Ibidem, § 212.740ROUANET, A razão cativa, p. 86.741DEBORD, op. cit., § 212.742Ibidem, § 5.743Ibidem, § 215.744Idem, ibidem.745Ibidem, § 216.746Idem, ibidem.747Ibidem, § 215.
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se movendo em si mesma'”748. É nesse momento que a ideologia espetacular se realiza:
quando o acesso à vida histórica está bloqueado à sociedade749. Logo, se “os fatos ideológicos
nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais,
fatores reais que exercem uma ação deformante”750; na sociedade moderna, a ideologia se
encontra legitimada751 pelos fatos, se imiscuindo e se confundindo com a realidade social,
graças ao sucesso em “recortar todo o real de acordo com seu modelo”752 – de tal forma que o
espetáculo “adquire uma espécie de chã exatidão positivista: já não é uma escolha histórica,
mas uma evidência”753, e a própria ciência espetacular está aí para provar a inexistência da
ideologia, transformada em base epistemológica, além de qualquer fenômeno ideológico754: “a
eterna presença de um sistema que jamais foi criado e jamais acabará”755, tal qual apregoa o
estruturalismo756. Como pedra angular desse sistema ideológico, Debord identifica a
abstração, cujos fundamentos remontam, como já visto, à filosofia grega, e poderiam ser
encontrados, em uma origem mais recente, conforme Foucault, no desenvolvimento dos
Estados nacionais e na sedimentação das trocas comerciais mundiais, a partir dos séculos
XVI, XVII, em que “a ativação da circulação monetária [...] fez a existência humana entrar no
mundo abstrato e puramente representativo da mercadoria e do valor de troca”757 – ainda que
para Foucault o que o século XVII manifesta é algo bem diverso dessa “entrada da existência
humana no mundo abstrato da mercadoria”758, e que não cabe no escopo deste trabalho. Marx
também marca o comércio e o mercado mundial do século XVII como o início da “moderna
história da vida do capital” – “a circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital” 759.
A convergência dessa tradição de pensamento e desse modo específico de organização da
produção e da economia, leva à abstração da sociedade como um todo – que Foucault, como
Debord, vê uma unidade essencial760. O Estado, como fiduciário último da moeda (pela
garantia das reservas em metais preciosos ou pela simples credibilidade), acaba por se tornar,
em última instância, o centro da vida social, ao organizar o mercado, estimular a ciência, se
apropriar de inovações técnicas. Um dos conceitos de que ele se apropria no estágio 748DEBORD, SdE, § 215.749Ibidem, § 214.750Ibidem, § 212.751Ibidem, § 213.752Ibidem, § 212.753Ibidem, § 213.754Idem, ibidem.755Ibidem, § 201.756Idem, ibidem.757FOUCAULT, Segurança, Território, População, p. 455.758Ibidem, p. 455.759MARX, O Capital, Livro I, tomo I, p. 125.760FOUCAULT, op. cit., p. 455.
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espetacular é o de massa: conceito que ganha importância não apenas por conta da supremacia
do quantitativo frente ao qualitativo, como também pelo fato do aumento da massa global de
lucro ser o álibi que escamoteia a queda tendencial da taxa de lucro761. O povo tratado como
massa passa a reger as análises das clivagens políticas, a construção das cidades, a dispersão
da população pelo território, a concentração em grupos de consumidores. Por outro lado, é a
força de massas que move o capitalismo762, e que abre a possibilidade – se reassumida pelas
massas qualitativamente – de empreender a revolução social que a burguesia deixou a meio
caminho andado.
Na organização da técnica, feita a partir das necessidades do sistema produtivo, de
valorização do capital, da sociedade moldada, adequada e dependente de tais necessidades, do
Estado fiador dessa ordem – convém destacar que já para Rousseau o Estado não atendia aos
desejos da população, mas era ele quem criava os súditos que lhe convinham, através da
educação –, em toda essa organização da e baseada na técnica, o capitalismo consolidou a
distinção entre teoria e prática, entre funções de comando e atividades práticas, estabelecendo
clivagens baseadas em classes sociais (que ele tenta ocultar), que repercutem na educação
dessas classes, e na cobrança de especialização dos indivíduos para as funções exigidas pela
maquinaria – direta ou indiretamente. Em conformidade com o movimento do capitalismo e
da sociedade sob sua égide, o desenvolvimento da ciência, mesmo para fins práticos – como o
taylorismo –, teve como principal característica a ampliação da abstração da sociedade atual:
do trabalho, da produção763, do tempo764, do território765. O fundamento da sua dominação é a
abstração, segundo Debord, em 1967 – daí sua oposição radical. Contudo, é de se questionar
qual o alcance dessa recusa. Herbert Marcuse, por seu turno, apresenta uma posição mais
nuançada, e afirma que a possibilidade de se identificar e definir alternativas ao sistema social
atual “exige uma série de abstrações iniciais [...]. A teoria crítica deve abstrair-se da
organização e utilização práticas dos recursos da sociedade, bem como dos resultados dessa
organização e utilização. Tal abstração, que se nega a aceitar o universo de fatos dado como o
contexto final da validação, tal análise 'transcendente' aos fatos à luz de suas possibilidades,
captadas e negadas, pertence à própria estrutura da teoria social”766. Ainda conforme o alemão,
o problema da abstração seria a crítica recuar para um nível elevado, por “falta de agentes e
761MARX, O Capital, Livro III. p 166.762Ibidem, Livro I, tomo I, p. 260.763DEBORD, SdE, § 29.764Ibidem, § 147.765Ibidem, § 173.766MARCUSE. A ideologia na sociedade industrial, p. 15.
96
veículos de transformação social”767. O ponto, portanto, talvez não seja o de rejeitar a
abstração, mas de distinguir os diversos modos e as diversas dosagens possíveis, para que não
se torne um saber artificial, um poder hostil ao homem, em nome da racionalidade do sistema
– apesar de Debord pôr sua crítica à abstração em termos bastante contundentes, ele não
afirma explicitamente que toda abstração seja maléfica, e sim a abstração do todo, a abstração
generalizada da sociedade da época768.
Alcançar o equilíbrio no quanto se deve abstrair a realidade sem se perder numa
teoria contemplativa não é algo simples. A recusa debordiana à academia se daria por esse
saber abstrato, desvinculado da prática, desvitalizado, lá produzido, via de regra, pelas
próprias condições que é produzido. E o próprio marxismo seria um exemplo da adesão
equivocada a tal forma de pensar e fazer ciência. Conforme Debord, Marx cometeu um erro
ao se propor à defesa científica de sua teoria, tentando provar aos moldes da ciência burguesa
a validade da sua tese da luta de classes e da necessidade da revolução proletária769. Com essa
atitude, primeiramente, o filósofo da práxis abriu caminho para a organização ideológica e
pseudo-revolucionária do operariado, cuja Segunda Internacional seria sua conseqüência mais
imediata. Não é falha isolada de Marx: é de toda a luta revolucionária de sua época, cujo
operariado não decretou a revolução permanente na Alemanha, em 1848, e a Comuna acabou
por sucumbir isolada770. Contrapondo-se aos teóricos da social-democracia como Bernstein771,
Debord afirma a profunda e inseparável ligação entre Hegel e Marx e o movimento proletário
revolucionário. O maior mérito de Hegel teria sido o abandono da interpretação da realidade
como um dado em favor do pensamento da história. Contudo, teria permanecido preso ao
Idealismo, pondo o pensamento numa posição externa, contemplativa, alheio à prática; Hegel
apenas teria interpretado a transformação, reconciliando o resultado e superando a separação
apenas em pensamento. Ou seja, ao considerar a sociedade de então a realização do Espírito,
Hegel teria, por fim, negado a própria história no presente772. Na época em que se
desenvolviam as lutas de classe, a dialética hegeliana, ao não se deter “na busca do sentido do
sendo”773, mas do movimento que leva à superação do que há, “que se eleva ao conhecimento
da dissolução de tudo o que é”774, deu uma importante contribuição ao movimento proletário
767MARCUSE. A ideologia na sociedade industrial, p. 16.768DEBORD, SdE, § 18.769Ibidem, § 85.770Idem, ibidem.771Ibidem, § 79.772Ibidem, § 76.773Ibidem, § 75.774Idem, ibidem.
97
revolucionário. Porém, ao interpretar apenas a transformação do mundo, deixando de lado a
interpretação do mundo, Hegel nada mais fez que “a realização filosófica da filosofia”775. Por
conta da sua filiação ao Idealismo, o pensamento teria sido posto numa posição exterior,
contemplativa, e Hegel teria tentado “compreender um mundo que se faz a si mesmo”776,
reconciliando-se com o resultado das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII777, e não
chegando à sua superação de fato. Tratar-se-ia de um pensamento da história em que a
consciência chega sempre atrasada, apenas para enunciar a justificativa post festum778: a
realização de “um projeto prévio do Espírito” “que coincide com o presente”779. “Assim, a
filosofia que termina no pensamento da história só pode glorificar seu mundo negando-o,
pois, para tomar a palavra, é-lhe necessário supor terminada essa história total à qual ela
reduziu tudo e encerrada a sessão do único tribunal no qual pode ser proferida a sentença da
verdade”780. O proletariado, por seu turno, não apenas reaviva o pensamento da história de
Hegel, ao afirmar a transformação contra uma sociedade estática em um mundo dado, como,
por pô-lo em prática em atos – seja no seu quotidiano, seja nas lutas revolucionárias –,
desmente a conclusão hegeliana na medida em que confirma a validade do método
dialético781: “o pensamento da história só pode ser salvo ao se tornar pensamento prático; e a
prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser nada menos que a consciência
histórica agindo sobre a totalidade de seu mundo”782, o que implica em afirmar a separação
real e fundamental existente na sociedade, assim como em negar toda tentativa de superação
falsa ou parcial dessa separação783 – como, na visão de Debord, a tentada por Hegel –, por se
ver capaz de uma transformação total, revolucionária dessa realidade. Marx segue no mesmo
compasso de seus contemporâneos. Partindo da prática, ele aceita o pensamento e o método
hegeliano, porém nega sua conclusão. Ao contrário do que defende Bernstein, para Debord, a
aceitação do método dialético não é um ponto fraco – pelo contrário –, e marca a posição
revolucionária da teoria marxiana desde o seu início: “o caráter inseparável da teoria de Marx
e do método hegeliano é inseparável do caráter revolucionário dessa teoria, isto é, de sua
doutrina”784. Equivoca-se, contudo, quem vê a incorporação do pensamento da história e do
775DEBORD, SdE, § 76. Grifo do autor.776Idem, ibidem.777Idem, ibidem.778Idem, ibidem.779Idem, ibidem.780Idem, ibidem.781Ibidem, § 77.782Ibidem, § 78.783Ibidem, § 122.784Ibidem, § 79.
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método dialético hegeliano por Marx como mera transposição materialista, substituindo o
percurso do Espírito pelo desenvolvimento das forças produtivas785. Na leitura debordiana,
enquanto em Hegel a história possuiria um telos – a realização do Espírito, momento em que
toda a história se vê acabada e redimida num Espírito unitário “cuja objetivação é idêntica à
sua alienação e cujos ferimentos históricos não deixam cicatrizes”786 –, Marx, levando ao
extremo o fim de todo absoluto em favor da historização de tudo inaugurado pela revolução
burguesa, rejeita qualquer finalidade para a história, qualquer fim da história. O máximo da
proposta de Marx seria a finalidade para uma ação, um fim para uma conjuntura787, o fim da
pré-história788 e o início da história consciente – porém, de forma alguma o fim da história, o
congelamento do tempo em um novo éden, em uma sociedade ideal definitiva: “o projeto de
Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que surge no desenvolvimento cego das
forças produtivas meramente econômicas deve transformar-se em apropriação histórica
qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro ato desse fim da pré-história”789. “Foi
essa mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constituiu o 'marxismo'”790, auto-
referido como a “ciência da revolução”, alcunha utilizada como álibi, como forma de
justificar o próprio engodo à classe proletária, para o permanente e injustificado adiamento
das lutas revolucionárias, do embate contra a classe capitalista e o sistema de produção
explorador da sua mão-de-obra.
Segundo, para atender aos cânones da ciência burguesa, Debord afirma que Marx
teria sido obrigado a uma grande simplificação da forma como lidava com os elementos
históricos em favor de um modelo apriorístico elaborado para dar crédito a uma observação a
posteriori – algo que o próprio Marx rejeita como simples impressão, insistindo que sua
investigação se apoderou inicialmente da matéria, as diferentes formas de desenvolvimento
das forças produtivas, para daí perquirir a conexão íntima entre elas e, só então, descreveu o
movimento real791. Para justificar a derrubada do capitalismo pelo poder proletário, além de
remeter à própria dinâmica interna do sistema capitalista, o qual necessita de uma exploração
cada vez maior dos recursos naturais e humanos para prosseguir com seu crescimento cego,
seu acúmulo puramente quantitativo, Marx teria recorrido, para dar legalidade científica a
esse poder advindo da realidade de exploração típica tão-somente desse sistema – uma
785DEBORD, SdE, § 80.786Idem, ibidem.787Ibidem, § 214.788Ibidem, § 80.789Idem, ibidem.790Ibidem, § 84.791Ibidem, Posfácio à segunda edição, p. 20
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economia de base urbana, com uso de mão-de-obra intensiva acumulada e concentrada em
cidades –, a experiências passadas de sociedade de classes, com exploração de uma classe por
outra e superação do sistema produtivo que se mantinha graças a esta exploração. Dessas
experiências passadas ele tirou quatro grandes modelos de modos de produção: o asiático, o
antigo, o feudal e o burguês moderno792, cada um com suas peculiaridades no
desenvolvimento das forças produtivas, todos com os mesmos princípios (formais) que os
moviam até o ponto de serem revolucionados: o desenvolvimento das forças produtivas e a
luta de classes. “Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais
da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada
mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais
aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas
essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução
social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma
com maior ou menor rapidez”793. Para o desenvolvimento dos modos de produção, seria a luta
de classes que serve de dinâmica interna às sociedades – o motor da história – desde o modo
de produção asiático, e que as leva a culminar sempre “'numa transformação revolucionária de
toda a sociedade ou na destruição comum das classes em luta'”794. Fiando-se nesta
interpretação da teoria marxiana, haveria, logo, um modelo a priori, um esquema
praticamente natural à sociabilidade humana – uma estrutura, para usarmos um termo
anacrônico –, com o qual se justificaria cientificamente que a luta de classes do sistema
capitalista redundaria inevitavelmente no fim desse sistema. Esta demonstração contradiz
abertamente a apresentação debordiana da leitura que Marx faz de Hegel, de que a história
não possui um telos: ainda que em Marx não haja um fim absoluto manifesto, a forma como a
história caminha por si própria permite que seja acalentada, sim, uma teleologia; ademais, ao
menos antes da sociedade comunista, é prescindível ao proletariado o processo de tomada de
consciência do seu momento e da sua prática: basta estar de corpo presente na luta, de forma a
garantir o colapso do sistema; a consciência cairá no momento certo. O que se percebe,
portanto, seguindo a leitura de Debord, é que a ideologia científica obrigou Marx a sustentar
uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção, obscurecendo dessa forma
seu pensamento histórico, sua observação da história. Para que seu modelo funcionasse
conforme os cânones científicos, Marx desprezou com seu esquema linear o fato de que “a
792MARX, Para a crítica da economia política, p. 52.793Idem, ibidem.794DEBORD, SdE, § 87.
100
burguesia é a única classe revolucionária que sempre venceu”795: foi ela quem derrubou o
sistema feudal – não os servos, que por um milênio foram a classe explorada. Assim como em
todas as demais sociedades, por mais que tenham sido presenciados conflitos de classes em
seu interior, não foram esses conflitos que fizeram com que entrassem em colapso, ou mesmo
que as puseram em movimento, pois, na “realidade observável da história, da mesma forma
que 'o modo de produção asiático', como Marx o constatava em outro lugar, conservou sua
imobilidade a despeito de todos os confrontos de classes, assim também as revoltas de servos
nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos na Antiguidade derrotaram os homens
livres”796.
Na prática, o resultado dessa falha de Marx foi que as duas experiências mais
radicais concretizadas pelo movimento operário sob os auspícios da ciência da revolução e do
partido constituído junto com ela, no século XX, o chamado comunismo real da União
Soviética e da China, nunca foram questionadoras da essência do sistema capitalista, do
sistema espetacular, ou seja, da forma-mercadoria. A falsa oposição capitalismo-comunismo –
que durou setenta e dois anos e que na época do lançamento do livro tinha meio século – não
teria sido mais que uma reedição, uma atualização da divisão mundial do trabalho, construída
como “divisão mundial das tarefas espetaculares”797. Bem de acordo com o ethos espetacular,
apesar de falsas, as lutas dessa pseudo-oposição eram ao mesmo tempo reais, “na medida em
que expressam o desenvolvimento contraditório desigual e conflitante do sistema”798, tanto
entre classes e subclasses internas dos países quanto entre países dentro de cada um dos
blocos, como entre os dois blocos antagônicos. Esses conflitos eram sempre internos, bem
delimitados, e não traziam riscos ao sistema, pelo contrário, ajudavam a mantê-lo, na medida
em que garantiam permanentemente opções de escolha: o confronto de prioridades, no
capitalismo avançado; a decisão quanto às particularidades da produção e do poder, na gestão
totalitária da economia799; a escolha de programa para classe dirigente ou para classe
revolucionária, nos países atrasados800. Essas diversas oposições marcadas por interesses
contraditórios nas disputas pelo poder estatal selaram a permanente aparência de disputa entre
antagônicos espetaculares, que culminaram, por fim, na disputa entre duas concepções
distintas de sociedades – a partir de uma base comum, a produção de mercadorias, o trabalho
795DEBORD, SdE, § 87. Grifo do autor.796Idem, ibidem.797Ibidem, § 57.798Ibidem, § 56.799Idem, ibidem.800Ibidem, § 57.
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alienado, a produção econômica abstrata, o movimento de auto-valorização do valor. Porém, o
que haveria de particularidade em cada setor a ser defendido frente ao seu oposto, na verdade
residia no sistema universal que a todos continha, isto é, “no movimento único que
transformou o planeta em seu campo, o capitalismo”801: “um único estilo de sociedade torna-
se possível em toda parte: uma sociedade baseada em burocracias eficientes e na produção de
grandes quantidades de bens”802 – bens esses que passam a ser identificados com
mercadorias803. Diante desse movimento que arrasta o mundo todo, a sociedade portadora do
espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas não somente pela hegemonia econômica,
“domina-as como sociedade do espetáculo”804 - mesmo onde a base material está ausente-
ligadas a uma ou outra forma de organização espetacular do Estado e da sociedade. Em
resumo, no fundo, “a contradição oficial se apresenta como a luta de poderes que se
constituíram para a gestão do mesmo sistema socioeconômico e que, na verdade, são partes da
unidade real; isso, tanto em escala mundial quanto dentro de cada nação”805.
A oposição tolerada de sindicatos e partidos social-democratas no âmbito interno
das democracias liberais e o equilíbrio nas relações internacionais pautado nos princípios
liberais atestam que as aparentes oposições se fundavam sobre uma base consentida: “o
espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido”806. Essa base
unitária, contudo, não é um monobloco naturalmente posto, mas antes um fruto de um
processo histórico que teve como origem o esfacelamento de uma pretensa unidade, e é sobre
esse esfacelamento que sociedade e espetáculo construíram sua unidade807. A idéia de uma
possível unidade homem-mundo (humano) em Debord remete a Lukács e, por conseqüência,
a Hegel. De acordo com Safatle, “foi particularmente forte para a geração de Hegel (e mesmo
para o Hegel de juventude; ver, por exemplo, seu Sistema da eticidade), principalmente após a
crítica rousseauista à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir
uma alternativa à modernidade através do recurso a formas de vida e modos de socialização
próprios a uma Grécia antiga idealizada e paradigmática”808. E foi pressupondo uma
caracterização da era homérica também idealizada que Lukács escreveu seu livro Teoria do
Romance, que tem suas diferenças para História e consciência de classe – afinal, trata-se de
801DEBORD, SdE, § 56.802RIESMAN, A multidão solitária, p. 37803DEBORD, op. cit., § 44.804Ibidem, § 57. Grifo do autor.805Ibidem, § 55.806Ibidem, § 54.807Idem, ibidem.808SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 25.
102
uma obra de sua fase pré-marxista –, mas não pode ser considerado como um ponto
discrepante do seu pensamento da época. A exemplo do uso de Rousseau do conceito de
estado de natureza, Lukács utiliza a era homérica como “um princípio regulador abstrato”
para avaliar os períodos posteriores, como posto por Mészáros809, sem que isso implique num
desejo de volta a esse mundo tal qual. Conforme Jay, ela dá uma boa perspectiva da totalidade
normativa defendida por Lukács neste período. “Para o Lukács da Teoria do romance, a
totalidade normativa carece de qualquer diferenciação ontológica; o mundo homérico era 'um
mundo homogêneo e mesmo a separação entre homem e mundo, entre 'eu' e 'você' não
perturbava essa homogeneidade.' Neste mundo homogêneo, não há a distinção kantiana entre
moralidade e inclinação, dever e desejo, forma e vida”810. Ademais, o mundo homérico não
possui mudança histórica, não conhece as formas da passagem do tempo, de modo que as
experiências passadas e presentes não possuem distinção qualitativa: “tempo é uma forma de
corrupção e a totalidade normativa exige sua suspensão”811. Além disso, não há uma real
individualidade: “uma estrutura individual é simplesmente o produto de um equilíbrio entre a
parte e o todo, mutuamente determinantes um do outro; não é nunca o produto de uma
polêmica auto-contemplação por uma personalidade perdida e solitária”812. Por fim, a forma
épica “revela um mundo em que homem e natureza estão em harmonia. Não há nenhuma
separação significativa entre o social ou histórico e o natural. Desta maneira, a totalidade
épica deve ser compreendida organicamente”813, como uma totalidade concreta, em que está
ausente qualquer segunda natureza – a qual seria uma marca da destotalização. Em História e
consciência de classe, a totalidade normativa da era homérica é substituída pela totalidade
histórica814 que o sujeito consciente da história pode ter, e a normatividade que o filósofo
húngaro vislumbra não é a da indistinção entre homem e natureza, mas entre homem e mundo
humano: a possibilidade de uma vida histórica desreificada815, em que estariam superadas as
contradições da sociedade capitalista-espetacular. Porém, quando tais contradições internas
ameaçam irromper, o espetáculo tem a capacidade – por deter a linguagem hegemônica – de
inverter seu sentido, mostrando a divisão como unitária e a unidade como dividida816,
falsificando a realidade social e internalizando a contradição em uma oposição pasteurizada,
809MÉSZÁROS, Lukács' concept of dialectic, p. 61. apud JAY, Marxism and totality, p. 93.810JAY, Marxism and totality, p. 93.811Ibidem, p. 94.812LUKÁCS, The theory of the novel, pp. 66-67. apud JAY, Marxism and totality, p. 94.813JAY, op. cit., p. 95.814Ibidem, p. 105.815Ibidem, p. 170.816DEBORD, SdE, § 54.
103
incapaz de ações fora das previstas e aceitas pelo sistema, sem “externalidades” (para usar um
termo do jargão econômico). A divisão de classes – a verdadeira divisão, a contradição
fundante da sociedade capitalista – é ocultada sob uma aparente unidade, em que capital e
trabalho unem forças para o bem do povo e felicidade geral da nação – ambos “sociedade de
trabalho”, como definiu Kurz –, o que garante que toda crítica daí resultante parta de uma
base mínima de concordância, que toda disputa se faça apelando para a mesma promessa817.
Desse modo, aquilo que é apresentado como dividido, as diversas oposições espetaculares,
que vão do nível macro – os dois sistemas antagônicos que disputam o globo – ao nível micro
– mercadorias de boutique que brigam entre si pelo pescoço da madame –, escondem a
verdadeira unidade espetacular, a unidade da miséria818: “por trás de uma infinidade de
pseudodivergências midiáticas, fica dissimulado o que é exatamente o oposto: o resultado de
uma convergência espetacular buscada com muita tenacidade”819. E “conforme as
necessidades do estágio particular da miséria que o espetáculo nega e mantém, ele [existia]
sob a forma concentrada ou sob a forma difusa”820, isso em 1967. De qualquer forma, tais
oposições se apresentam sempre sob a máscara da “escolha total”821, promessa falaciosa, tanto
pelo termo escolha, ao consumidor (e ao eleitor) sempre uma pseudo-escolha entre opções
pré-determinadas indiferentes aos verdadeiros desejos dos homens822 – porque sob a forma
mercadoria a verdadeira escolha já foi na produção, e as diferenças aparentes servem apenas
para açular a banalidade quantitativa que resta ao consumidor823 –; quanto pelo termo total,
porque sendo fruto de uma produção segmentada, o que o sistema tem a oferecer são
fragmentos dessa produção824.
Quanto às duas formas inaugurais de organização sócio-estatal do espetáculo, elas
não passam “de uma imagem de uma unificação feliz cercada de desolação e pavor”, em que
o espetáculo ocupa o centro tranqüilo da desgraça825, pois ele está em sua casa826. O
espetacular concentrado é o estágio em que o desenvolvimento do espetáculo ainda é tosco – e
em que, graças a isso, permite-se a observação de maneira mais crua de alguns fenômenos que
no espetacular difuso acabam ficando velados –, fruto do desenvolvimento da sociedade
817DEBORD, SdE, § 63.818Ibidem, § 63. Grifo do autor.819Ibidem, Comentários, III.820Ibidem, § 63.821Idem, ibidem.822Ibidem, § 57.823Ibidem, § 62.824Ibidem, § 60.825Ibidem, § 63.826Ibidem, § 217.
104
mercantil, que chega ao “ponto de recriar para seus próprios fins a dominação de classe que
lhe é necessária: o que equivale dizer que a burguesia criou um poder autônomo que,
enquanto subsistir essa autonomia, pode até prescindir da burguesia”827; prova do atraso desse
desenvolvimento – que repercute também no subdesenvolvimento da classe dominante828. É a
forma típica do capitalismo burocrático, porém, não raro “importado como técnica de poder
estatal em economias mistas mais atrasadas ou em momentos de crise do capitalismo
avançado”829, como nos movimentos fascistas pós-Primeira Guerra, “e tem como única
perspectiva recuperar o atraso desse desenvolvimento em algumas regiões do mundo”830.
Apesar do primitivismo do espetáculo local, seu papel foi “essencial ao desenvolvimento do
espetáculo mundial”831. Neste estágio, a propriedade, pulverizada em vários agentes
econômicos, se concentra em uma propriedade burocrática apenas, as disputas econômicas
migram do seu local natural, o mercado, para a esfera da burocracia, e os agentes econômicos,
os proprietários do capital, são substituídos por burocratas individuais, que só têm “relação
com a posse da economia global por intermédio da comunidade burocrática”832. O “mercado
planejado” seria a aparência da ausência de concorrência, substituída pela “pura economia
distribuidora estatista (economia não monetária, comunismo imediato), sem circulação
alguma”. Porém, “a abolição efetiva da circulação, pela lógica, deveria ser idêntica à abolição
do dinheiro e da instituição do mercado, como tal. Mas então, conseqüência igualmente
lógica, acabaria também a necessidade, e até a possibilidade, do Estado, pois este, no processo
da modernidade, nada mais é que o elemento contraditório imanente do sistema produtor de
mercadorias”833. Assim, o que ocorre é que “a propriedade privada capitalista enfraquecida é
substituída por um subproduto simplificado, menos diversificado, concentrado em
propriedade coletiva da classe burocrática”834. Tal qual a propriedade, a produção de
mercadorias também é concentrada, e concentrada do início ao fim: “a mercadoria que a
burocracia controla é o trabalho social total”835. No final da cadeia, não cabe às massas
nenhuma margem significativa de escolha, sob o risco de levar o sistema à sua destruição
completa, por mais insignificante que tal escolha seja – música ou alimentação836: em troca, o
827DEBORD, SdE, § 104.828Idem, ibidem.829Ibidem, § 64.830Ibidem, § 104.831Ibidem, § 105.832Ibidem, § 64.833KURZ, O colapso da modernização, p. 73-74.834DEBORD, op. cit., § 104.835Ibidem, § 64.836Idem, ibidem.
105
que a ditadura da economia burocrática “revende à sociedade é a sobrevivência como um
todo”837. A industrialização acelerada que tem vez neste tipo de espetáculo – na época
stalinista, por exemplo – se dá porque “nos estágios menos desenvolvidos da produção
capitalista, empreendimentos que requerem longo período de trabalho, logo, grande gasto de
capital por terem tempo mais longo, só podem ser executados em larga escala, ou não são
realizados ao todo em base capitalista, construídos à custa da comunidade ou do Estado”838. É
esse o caso no século XX: “nas condições de um nível de desenvolvimento já relativamente
alto do sistema produtor de mercadorias no Ocidente e de uma luta de concorrência já muito
avançada no mercado mundial, todo novo impulso de modernização nas regiões ainda pouco
desenvolvidas tinha que assumir o caráter de um desenvolvimento recuperador,
particularmente forçado, em que não apenas se repetia o estatismo dos inícios da época
moderna, mas que também se apresentava numa forma muito mais pura, conseqüente e
rigorosa que a dos originais ocidentais esquecidos há muito tempo”839. Pela sua lógica
imanente, o “mercado planejado” “leva ao extremo todas as irracionalidades do sistema
produtor de mercadorias, em vez de pelo menos começar a eliminá-las”840 – a diferença seria
apenas gradual. Por conta disso, Debord afirma que o espetáculo concentrado é a
“continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil que
mantém o trabalho-mercadoria”841, ou seja, a continuação da produção baseada na
expropriação do mais trabalho dos produtores diretos842 – muda a forma de gerência dos frutos
desse espólio. O caráter mais rudimentar dessa forma de reprodução do capital, todavia, faz
com que a alteração de qualquer coisa que a perturbe signifique seu fim, daí que “essa
ditadura tenha que ser acompanhada de violência permanente”843, mesmo depois de passado o
estágio de acumulação primitiva.
Contudo, não basta ter o controle da produção: para o domínio da sociedade é
preciso também ter legitimidade, a qual não se alcança apenas pelo terror – é preciso uma
legitimidade que seja capaz de justificar o próprio terror. A coesão necessária para o
estabelecimento da sociedade é garantida pela ideologia, ao se concentrar espetacularmente e
totalitariamente na figura de um só homem – a vedete do poder844, na verdade uma
837DEBORD, SdE, § 64.838MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 174.839KURZ, O colapso da modernização, p. 39.840Ibidem, p. 102.841DEBORD, op. cit., § 104.842MARX, op. cit., Livro I, Tomo II, p. 292.843DEBORD, op. cit., § 64.844Ibidem, § 61.
106
pseudovedete que personaliza o poder governamental845 –, modelo para todos sob seu domínio
– a imagem imposta do bem846 –, e com quem todos devem se identificar ou desaparecer,
“porque não há outra coisa para ser”: “cada chinês tem de aprender Mao e, assim, tornar-se
Mao”847, de forma que “onde o espetacular concentrado domina, a polícia também domina”, e
domina de maneira intensiva e extensiva, porém não domina sozinha.
Por seu turno, “o espetacular difuso acompanha a abundância de mercadorias, o
desenvolvimento não perturbado do capitalismo moderno”848. Na época do lançamento d'A
sociedade do espetáculo, ele era o estado mais bem acabado do espetáculo, o espetáculo se
apresentando em seu Estado mais bem acabado, tinha seu epicentro nos Estados Unidos, e era
sintetizado pelos mercados e pelas democracias liberais do Ocidente, onde “afirmações
inconciliáveis se chocam no palco do espetáculo da economia abundante; diferentes
mercadorias célebres sustentam simultaneamente seus projetos contraditórios de planificação
da sociedade”849. Ao mesmo tempo concorrente e complementar ao espetacular concentrado,
necessitando da oposição deste para seu desenvolvimento850, em muitos momentos o
espetacular difuso parece se confundir com o próprio espetáculo851, pelo grau de avanço da
sua indústria e pelo refino na organização do quotidiano daqueles que vivem sob seus
cuidados. Ele soube estruturar “a organização espetacular da defesa da ordem existente”852 por
toda a sociedade. Não suprimiu a polícia, por exemplo, porém soube distribuir parte das suas
tarefas entre todos, tirando-as apenas das mãos do Estado e pondo aos pretensos libertadores a
incumbência de policiar legitimamente o proletariado, para que garantissem a ordem e o bom
andamento dos negócios853– concepção de Estado que lembra a gramsciana, em que o poder
repressivo segue nas mãos do Estado, na sociedade política, mas há um trabalho “de base” das
instituições ditas privadas (igrejas, escolas, sindicatos, clubes, meios de comunicação de
massa) que cimentam a formação social ao criar o consenso entre todas as classes da visão da
classe hegemônica854. A distinção entre as duas formas de organização espetacular – que no
fundo são o mesmo espetáculo – não está no fato de que no espetacular difuso o espetáculo
estaria espalhado e atingiria toda a sociedade; isso também acontece no espetacular
845DEBORD, SdE, § 60.846Ibidem, § 64.847Idem, ibidem.848Ibidem, § 65.849Idem, ibidem.850Ibidem, § 104.851Ibidem, § 66.852Ibidem, § 101.853Ibidem, § 96.854ROUANET, A razão cativa, p. 107.
107
concentrado. A marca distintiva estaria no fato de a organização do espetáculo se espalhar por
toda a sociedade, e não mais se concentrar diretamente nas mãos do Estado – que passa a
funcionar antes como fiador da ordem. O que encontramos no espetacular difuso é a
sociedade, o espetáculo e a sua organização se imiscuindo de tal forma que passa a ser difícil
distingui-los: eles começam a se misturar e a se unir de maneira orgânica, como se fossem
uma coisa só, como se tudo fosse espetáculo855 – pois o espetáculo, realizado como ideologia
total, se dissolve no conjunto da sociedade, formando uma mistura homogênea, indistinta856.
Essa união apenas aparentemente natural – mas a partir de certo momento efetivamente
necessária – é engendrada pela cisão existente na sociedade, cuja história não começa com o
capitalismo, mas se desenvolve ao paroxismo com ele, ao ponto de se transformar em
espetáculo857.
Neste estágio, ao estar dissolvido no conjunto da sociedade, a prática, sempre
mediada, fica desagregada da ação consciente, produtores não se reconhecem naquilo que
produzem, de modo que o que subsiste é apenas o trabalho reificado e a contemplação. Tendo
este cenário como fundo, o acesso à vida histórica fica bloqueado858 pela impossibilidade da
práxis, e a ideologia pode desaparecer enquanto tal: deixa de ser falsa consciência para ser
simplesmente a consciência do possível859 – utopia do real. Tal como Rouanet comenta sobre
a falsa consciência em Marx, o discurso fetichista “é um discurso que adere à superfície do
real, e o papel da consciência é simplesmente o de produzir um discurso segundo, que duplica
o primeiro”860. Sob tal consciência, a separação espetacular – com a conseqüente reunião –
passa a fazer parte da unidade inquestionável861 de um mundo “onde nenhuma 'questão
central' pode ser colocada 'aberta e honestamente'”862. E é o próprio espetáculo quem se
apresenta como instrumento de unificação da sociedade – unificação de uma separação da
qual ele é fruto, a qual ele alimenta, da qual ele se alimenta. Porém, mais do que fator de
união, o espetáculo se apresenta também como parte da sociedade – a parte que concentra
todo o olhar e toda a consciência – e, simultaneamente, se apresenta como a própria
sociedade. Em resumo, o espetáculo é a parte, o todo e o tertium que os une863, o princípio e o
fim de toda ação social – é a nova santíssima trindade que, tal qual a original, se apresenta
855DEBORD, SdE, § 2.856Ibidem, § 214.857Ibidem, § 32858Ibidem, § 214.859Ibidem, § 217.860ROUANET, A razão cativa, p. 104.861DEBORD, op. cit., § 7.862Ibidem, § 101.863Ibidem, § 3.
108
como nunca criada. Esse setor separado, ao realizar a unificação para chegar a si mesmo,
agora como um todo, reúne o separado, mas apenas enquanto separado864, mantendo assim,
por trás das aparências, a insatisfação que faz o sistema girar: “a unificação que realiza é tão-
somente a linguagem oficial da separação generalizada”865. Algo próximo do que afirmava
Rousseau sobre o teatro: os espectadores, em uma comunhão mediada, estão, na verdade,
presos em suas solidões866. Contudo, o espetáculo não apenas reúne, ele também reconcilia: a
linguagem oficial da separação é, no fundo, “a destruição extrema da linguagem”867 que acaba
sendo encarada como um valor positivo oficial, pois serve para “demonstrar uma
reconciliação com o estado predominante das coisas”868. Essa linguagem, não custa lembrar,
não é apenas a linguagem dos mass media, é também a linguagem do Estado, da burocracia,
da ciência, da filosofia, das artes, e mais. A partir desse esquema de mediação da união entre a
parte e o todo, o espetáculo garante também a si a função de mediar a relação entre as
pessoas, o que faz com que se torne algo bem mais complexo do que uma mera apresentação
de um conjunto de imagens. Mesmo sendo identificado majoritariamente com a parte em
separado, ele não pode mais ser compreendido como o “produto das técnicas de difusão
maciça das imagens”869, a começar porque o espetáculo, para além dos seus meios, é “uma
relação social entre pessoas, mediada por imagens”870. Ao influenciar sobremaneira as bases
sobre as quais as pessoas assentam suas construções e suas trocas simbólicas, ou seja,
enquanto instrumento de unificação social, ele é capaz, graças à forma como é utilizado
aparato técnico, de impor sua visão de mundo de maneira efetiva. Utilizando-se do sentido
mais abstrato e mais sujeito à mistificação – a visão –, e da sua capacidade de fazer ver871,
com os avanços das técnicas de produção e difusão de imagens, o espetáculo pôde ter sua
Weltanschauung traduzida “materialmente”: “uma visão de mundo que se objetivou”872. Como
predomínio da visão e da contemplação, o espetáculo pode ser inserido como um momento da
tradição filosófica ocidental. Rousseau, na interpretação de Cassirer, já fazia crítica ao modus
operandi da filosofia de seu tempo: ela teria abandonado “a linguagem do ensino da
sabedoria” para falar a linguagem da época, se adequando – e reforçando, por conseguinte –
864DEBORD, SdE, § 29.865Ibidem, § 3.866STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, pp. 133-134.867DEBORD, op. cit., § 192.868Idem, ibidem.869Ibidem, § 5.870Ibidem, § 4.871Ibidem, § 18.872Ibidem, § 5.
109
aos “pensamentos e interesses predominantes no período”873, ou, em termos um pouco mais
marxistas, atendendo aos interesses da classe dominante. Assim, a linguagem vinculada à
visão, que vem desde a Grécia clássica, se enraíza no Iluminismo, antes de se desenvolver
materialmente em espetáculo.
Com o Iluminismo a filosofia se arrolou o papel de livrar o mundo das sombras –
das superstições, das crendices, do medo –, deixando-o pretensamente livre para que a
realidade pudesse ser vista sem qualquer empecilho – dir-se-ia “cristalino” na linguagem
comum –, com o próprio futuro podendo ser visto desanuviado, graças às previsões científicas
– tanto da ciência positiva quanto da ciência da revolução – e ao caminho livre para a
concretização do preceito bíblico de sujeitar a Terra e dominar o que há sobre ela. Pode-se ver
o espetáculo como tributário a este momento – assim como às expansões ultramarinas
européias – quando Debord o apresenta como o sol que nunca se põe874, radiante a iluminar o
tempo todo o mundo transformado em seu império. Ocorre que a realidade sempre possui
sombras – as do devir, em último caso. O mundo sem sombras que a ciência parece a cada dia
se aproximar não é a realização da filosofia, é a filosofização da realidade: a degradação da
vida concreta em universo especulativo875 e a materialização desse universo especulativo em
um mundo pseudoconcreto876. Conservando e ajustando caracteres ideológicos tanto do
materialismo quanto do idealismo para isso, o espetáculo consegue ir de encontro ao projeto
resumido nas Teses contra Feuerbach, que diz que a oposição entre materialismo e idealismo
seria superada com a realização da filosofia na práxis877. No espetáculo, o aspecto
contemplativo de ambos é completado: ao velho materialismo, que concebe o mundo como
representação e não como atividade – o que acaba por fim em idealizar a matéria –, o
espetáculo oferece coisas concretas que “são automaticamente donas da vida social”878; ao
idealismo, a mediação técnica de signos e sinais, permite a materialização de um ideal
abstrato, dando realidade à atividade sonhada879. Ao indivíduo, mesmo o trabalhador braçal
mais baixo na escala social, mesmo aquele alheio à existência da filosofia, o espetáculo é a
democratização desse universo especulativo a toda a sociedade – quase um mass-Mênon.
Ironicamente, essa especulação é feita pelo próprio espetáculo, e não pelo sujeito, que deve
seguir passivo, obediente – tal qual no mundo sombrio sob domínio dos mitos, das crendices,
873CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 387.874DEBORD, SdE, § 13.875Ibidem, § 19.876Idem, ibidem.877Idem, ibidem.878Idem, ibidem.879Idem, ibidem. Grifo do autor.
110
da Igreja –, sob o risco de se desvirtuar do reto caminho da razão, das luzes e da ciência.
Logo, a realização de um mundo esclarecido implica na rejeição de um dos princípios mais
aclamados do Iluminismo: a recusa da autonomia do indivíduo, a começar como sujeito
pensante – tão caro aos apologistas do primado da contemplação sobre a ação –, de modo que
não lhe resta outra alternativa senão a heteronomia também enquanto sujeito atuante na
história.
Essa inversão do concreto em especulativo apenas atesta que a filosofia, enquanto
pensamento fundado na cisão da sociedade, precisa da sociedade cindida para garantir seu
poder, isto é, tornar o universo especulativo predominante sobre a vida concreta a garante
como poder do pensamento separado e pensamento do poder separado880. É por manter essa
cisão, essa inversão, por reforçar a contemplação, é por coadunar com o poder que, para
Debord, a filosofia nunca conseguiu, por si só, superar a teologia881. Originada desta,
aparentemente contraposta a ela, tal oposição nunca foi verdadeiramente no sentido de superar
a teologia porque nunca teve por fim derrubar as condições que deram origem a ela: a
especialização do poder, a mais velha especialização social – origem e fundamento do
espetáculo882, cuja raiz Mumford encontra no estabelecimento da cidadela, em que seus
senhores, além de governá-la, “fixaram um novo molde da civilização, que combinava a
máxima diferenciação social e vocacional possível, coerente com os processos cada vez mais
amplos de unificação e integração”883. Assim, a realização da filosofia é em grande medida a
realização dessa diferenciação que funda a teologia, ou seja, a manutenção da divisão social e
da separação do poder frente ao resto da sociedade. A persistência da heteronomia reforça a
insistência na mesma captura das potencialidades humanas que outrora os homens haviam
abdicado voluntariamente em favor da religião. O espetáculo, sendo conseqüência do
desenvolvimento da filosofia das luzes e da acumulação capitalista, apenas comprovou que
esta era a filha pródiga da teologia: “com a condensação e a fragmentação, o capital foi
elevado ao nível conceitual. Falando de maneira extrema, chegou a ser até um movimento
religioso. As pessoas reverenciavam a dinâmica que o capital possui. Idolatravam seu caráter
mitológico”884. O espetáculo vai além, ao utilizar todo seu aparato técnico para a
“reconstrução material da ilusão religiosa”885, com direito ao acúmulo de indulgências da
880DEBORD, SdE, § 20.881Ibidem, § 20.882Ibidem, § 23.883MUMFORD, A cidade na história, p. 47.884MURAKAMI, Dance dance dance, p. 81.885DEBORD, op. cit., § 20.
111
mercadoria e à efusão religiosa entre os fiéis886: “adoravam o preço do terreno em Tóquio e o
que simboliza o Porsche que brilha reluzente. Pois, além dessas coisas, neste mundo já não
resta mitologia nenhuma”887. Marx, segundo Rouanet, já apresentava a própria realidade como
teológica888 – apenas lhe faltava o moderno aparato ilusionista. Como reconstrução material
da ilusão religiosa, o espetáculo se apresenta como um pseudo-sagrado: produto de si próprio
e das regras que se impôs a si como condição de existência889, que se estende a toda a vida
social. Sendo a trindade da sociedade – parte dela, toda ela e o tertium que une esses dois
elementos890 –, o espetáculo traz para uma base terrestre as nuvens religiosas nas quais os
homens haviam colocado suas potencialidades891, ele faz o caminho inverso daquele da
religião, denunciado por Feuerbach, de que “a base temporal se destaca de si mesma, e se fixa
nas nuvens, constituindo um reino autônomo”892. O ar rarefeito das estratosferas religiosas,
porém, persiste: “desse modo, é a vida mais terrestre que se torna opaca e irrespirável. Ela já
não remete para o céu, mas abriga dentro de si sua recusa absoluta, paraíso ilusório893”.
Com a manutenção da divisão social, da especialização do poder, numa sociedade
amplamente hierarquizada – ainda que os avanços não apenas técnicos, como de organização
social, não a dividam mais em rudimentares castas, mas tendam ao nivelamento entre os
operários894, originalmente hierarquizados na manufatura895, e autorizem, até mesmo, “ampla
mobilidade social”–, o espetáculo, enquanto parte da sociedade, enquanto atividade
especializada destacada para responder por todas as outras, assume o papel de representante
diplomático “da sociedade hierárquica diante de si mesma”896, para si mesma. Tendo o
espetáculo tal função, toda outra fala que não a espetacular é banida – banida não porque o
espetáculo fale tudo, mas porque tudo o que se fale é com a fala do espetáculo897. Por isso,
fundador das relações sociais através da produção reificada e mediador dessas mesmas
relações por intermédio da produção e propagação de imagens898 – do qual ele detém o
monopólio899 –, o espetáculo passa a se tornar um sistema cada vez mais fechado e auto-
886DEBORD, SdE, § 67.887MURAKAMI, Dance dance dance, p. 81.888ROUANET, A razão cativa, p. 101.889DEBORD, op. cit., § 25.890Ibidem, § 3.891Ibidem, § 20.892MARX, Die Deutsche Ideologie, apud ROUANET, A razão cativa, p. 83.893DEBORD, op. cit., § 20.894MARX, O capital, livro I, Tomo II, p. 41.895Ibidem, livro I, Tomo I, p. 276.896DEBORD, op. cit., § 23.897Ibidem, § 203.898Ibidem., § 4.899Ibidem, § 12.
112
referenciado em que qualquer coisa para ter existência de direito, precisa do seu aval, precisa
passar pelo seu crivo, pela sua pasteurização – a linguagem se torna cada vez mais espetacular
na medida em que o mundo também o é. Rousseau, conforme a leitura de Cassirer, levantava
questão semelhante acerca da linguagem: “a pior e mais dura forma de coerção da sociedade
reside nesse poder que exerce não só sobre nossas ações externas como também sobre todos
os nossos impulsos interiores, todos os nossos pensamentos e juízos. Este poder frustra toda
independência, toda a liberdade e originalidade de julgamento. Não somos mais nós que
pensamos e julgamos: a sociedade pensa em nós e por nós. Não precisamos mais procurar a
verdade: ela nos é enfiada à força nas mãos, recém-saída da casa da moeda onde foi
cunhada”900. E a liberdade que resta aos indivíduos sob tal dominação da linguagem – ainda
mais sob o espetáculo – é a mesma que ele tem com relação ao dinheiro: é obrigado a tê-lo (o
que pressupõe algum meio de ganhá-lo antes) e a pensar e agir conforme sua racionalidade.
Nesse processo, o espetáculo acaba por realizar – de maneira deturpada – um outro aspecto da
filosofia moderna, mais especificamente do projeto kantiano de delimitação das fronteiras do
limite da razão humana: o controle da produção e o controle sobre a práxis humana, o
monopólio da aparência, a supremacia sobre a linguagem, permitem-no definir até que ponto
é possível – possibilidade aqui não no sentido de potencialidade, mas de autorização901 – ao
sujeito espetacular refletir, questionar, pensar. A aceitação passiva que é exigida do
indivíduo902 – para o estabelecimento dos seus limites de pensamento e de ação – acaba
acontecendo sem explosões de fúria, primeiro por ser ele oriundo de um processo de educação
que adestra para a obediência à hierarquia e para a passividade, através da contemplação –
não apenas a educação formal, como a educação do proletariado sob a responsabilidade dos
partidos revolucionários903. Segundo, pelo modo de aparecer sem réplica do espetáculo, graças
ao seu monopólio da aparência904, às “especializações totalitárias do discurso e da
administração”905, sua comunicação feita “sob a forma de cascata de sinais hierárquicos”906,
em que até mesmo a crítica a ele, feita de dentro, é uma crítica espetacular, por admitir suas
pressuposições e seus métodos907 – como a crítica espetacular do espetáculo908 empreendida
pela moderna sociologia, “que estuda a separação com a ajuda dos instrumentos conceituais e
900CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 387.901DEBORD, SdE, § 25.902Ibidem, § 12.903Ibidem, § 96.904Ibidem, § 12.905Ibidem, § 57.906Ibidem, § 202.907Ibidem, § 197.908Ibidem, § 196. Grifo do autor.
113
materiais outorgados pela separação”909, sem a crítica imanente910 que o método dialético
permite911, e por isso “não consegue compreender toda a profundidade de uma sociedade da
imagem”912, não consegue chegar à sua “verdade”913 (em 1988, Debord apresenta essa crítica
como ainda mais precária, mais descaradamente ideológica: uma discussão vazia centrada em
um aspecto parcial, que versa sobre os recursos da mídia, e não dos usos do espetáculo914). O
que resta “é o discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma, seu
monólogo laudatório”915, cuja fala “não diz nada além de 'o que é bom aparece, o que aparece
é bom'”916, numa petição de princípio que ele tem o poder de cometer sem ser questionado,
pois o poder que possui é “absoluto no interior de seu sistema de linguagem sem resposta” 917.
“Ele (a eternidade, na qual se abraçam todos os seres e seus feitos, em que tudo que pode ser
é, e tudo que pode acontecer acontece) está próximo de nós. Fadado a permanecer secreto –
eternamente além de nossa compreensão”918. Nesse trecho Bauman está apresentando Deus a
partir de Kafka, mas bem poderia ser o espetáculo, o qual “se apresenta como uma enorme
positividade, indiscutível e inacessível”; possui suas leis naturais, que são tais quais são, não
há o que possa ser feito, salvo tentar descobri-las para melhor se adaptar a elas – e o
estruturalismo é a ciência chancelada pelo Estado, legitimamente apto para provar a validade
trans-histórica do espetáculo e essas suas leis naturais919. Contudo, por trás dessa “aparência
fetichista de pura objetividade”920, em que parece haver uma segunda natureza que “domina,
com leis fatais, o meio em que vivemos”921, o espetáculo – suas organizações e relações –
esconde, torna invisíveis922 as relações entre homens e entre classes; e as pretensas leis
naturais do espetáculo não vêm da natureza: são frutos de disputas travadas no correr da
história: desenvolvimento técnico, organização social e estatal, formas de relações
interpessoais, nada disso é natural ou necessário, e sim histórico, contingente às necessidades
de uma dada forma de dominação de classe923: “considerado em sua totalidade, o espetáculo é
909DEBORD, SdE, § 196.910Ibidem, § 197.911Ibidem, § 205.912Ibidem, § 199.913Idem, ibidem.914Idem, Comentários, III915Ibidem, § 24.916Ibidem, § 12.917Ibidem, § 195.918BAUMAN, Amor líquido, p. 35.919DEBORD, op. cit., § 202.920Ibidem, § 24.921Idem, ibidem.922ROUANET, A razão cativa, p. 89.923DEBORD, op. cit., § 24.
114
ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um
suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo
da sociedade real”924, ou seja, a realização do fetichismo da mercadoria, um dos fundamentos
do capitalismo, apontado por Marx.
Tendo como e sendo base do desenvolvimento do modo de produção baseado na
divisão e especialização do trabalho e na divisão da sociedade, sua dominação técnica, estatal
e ideológica leva a um aprofundamento da perda da unidade do mundo humano925 – cuja
origem remonta à especialização do poder, à perda da organicidade na relação do homem com
seu entorno e seu porvir –, que chega a um nível tal que se consuma na cisão interior do
próprio ser humano926. O espetáculo é uma alteração quantitativa que se torna também
mudança qualitativa. Ele “domina os homens vivos quando a economia já os dominou
totalmente”927, é a materialização do “capital como potência econômica da sociedade
burguesa, que domina tudo”928: aqui os indivíduos não estão mais alienados do mundo apenas
pelo produto de seu trabalho929, sua alienação já alcança sua vida em detalhes930, em seu
próprio desejo931, a ponto de não ser percebida. A forma-mercadoria pode exercer sua
dominação sob o apelo visual, materializando a ideologia, dirigindo o consumo e o
comportamento932, sem que isso soe absurdo ao homem dividido. O espetáculo tem a
separação como seu alfa e ômega933 – institucionalizado934, justificado935, exaltado936 –,
começando na produção, passando pelas cidades e culminando na vida quotidiana mais
ordinária de cada pessoa; daí que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas
condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”937 – num
aprofundamento da denúncia de Marx, de que “à primeira vista, a riqueza burguesa aparece
como uma enorme acumulação de mercadorias”938 –, em que as diversas esferas da vida
passam a ter existência prioritariamente enquanto representações, enquanto imagens, do que
924DEBORD, SdE, § 6.925Ibidem, § 29.926Ibidem, § 20.927Ibidem, § 16.928MARX, Para a crítica da economia política, p. 45929DEBORD, op. cit., § 33.930Idem, ibidem.931Ibidem, § 30.932Ibidem, § 60.933Ibidem, § 25.934Ibidem, § 88.935Ibidem, § 20.936Ibidem, § 67.937Ibidem, § 1.938MARX, op. cit., p. 57
115
como vivências939. Comparando as denúncias feitas por Debord, logo no início d'A sociedade
do espetáculo, à de Marx, na abertura do livro Para a crítica da economia política, pode-se
notar alguns avanços na dominação do capitalismo. Primeiro, a penetração maior na
sociedade do fetichismo da mercadoria: Debord não fala mais da riqueza burguesa
especificamente, mas já de toda a vida. Segundo, a mercadoria, mais do que a autonomia,
ganhou vida própria: ela já não aparece (erscheint) como se recém-surgida, ela já está
presente e ela própria se apresenta, se mostra (s'annonce). Por fim, a mercadoria entra num
nível tal de abstração, que passa a se mostrar não mais como a abstração-mercadoria, mas
como a abstração-espetáculo. Nesse contexto, de pobreza de toda a vida social em meio à
pretensa riqueza do modo de produção burguês, a vida humana perde seu senso de
completude, sua organicidade (que não deve ser confundida com alguma pretensa forma
natural de integração do homem com a natureza), fica fragmentada. A posterior reunião desses
diversos espetáculos em que ela foi quebrada se dá pela fusão em um fluxo comum das
imagens que se destacaram de cada um desses aspectos – ou seja, se inserem em um
movimento imposto desde fora, já arrastando tudo. Movimento este que é o movimento do
capital – afinal, “o capital só pode ser entendido como movimento e não como coisa em
repouso”940, pois é na esfera da circulação que ele realiza a mais-valia expropriada na
produção –, pseudo-movimentos na superfície que dissimulam o verdadeiro movimento da
sociedade: o capital em seu processo de auto-valorização de si próprio941. O resultado dessa
reunião fica muito longe da unidade humanamente coerente da vida942, da “medida humana”,
como fala Mumford, perdida quando esta é fragmentada e depois reunida, primeiro como
acumulação de unidades parcelares, depois como movimento ditado sob o mesmo ritmo para
tudo e para todos, no mesmo fluxo comum, sem atentar para nuances qualitativas. “A
realidade considerada parcialmente”, em cada um desses aspectos da vida – todos eles bem
divididos, delimitados, estudados e compreendidos por especialistas –, “apresenta-se em sua
própria unidade geral como um pseudomundo à parte”943, sem qualquer relação com o todo ao
qual estão unidos por esse fluxo comum – pelo fato de tal fluxo ser uma imposição externa e
não algo brotado das próprias relações intrínsecas. O todo, o mundo, é dependente das partes,
de cada uma das esferas em que a vida foi trucidada, mas as partes independem do todo, como
se cada esfera prescindisse do mundo para seguir suas leis. E os homens, diante dessas leis –
939DEBORD, SdE, § 1.940MARX, O Capital, Livro II, p. 78. 941Ibidem, Livro I, p. 244. 942DEBORD, op. cit., § 2.943Ibidem, § 2. Grifos do autor.
116
de uma objetividade dura, teoricamente desvendáveis apenas pela ciência – terão o único
direito de contemplar o seu desenrolar nesse pseudomundo944. Conseqüentemente, “o
espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo”:
no espetáculo é o dinheiro, são as coisas, é a representação da vida, são as imagens que se
movem, enquanto os homens, que reproduzem movimentos alienados para produzir o mundo
realmente, ficam parados observando o movimento do fruto do seu trabalho, da sua ação945.
Há uma inversão radical entre o vivido e o representado, entre o real e o espetáculo, que a
cada volta mais se imiscuem, num círculo que se retroalimenta, se tornando, ao fim do
processo, uma coisa só: “não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a
atividade social efetiva: esse desdobramento também é desdobrado”946. A realidade invertida
do espetáculo não é a mera inversão da realidade, pois “no mundo realmente invertido, a
verdade é um momento do que é falso”947, invertendo a tese hegeliana, de forma que a própria
realidade já está, ela também, falsificada pelo espetáculo – a realidade deixa de ter o poder de
desmistificar a falsa consciência, pois a própria realidade “deixou de ser crítica, e passou a ser
mistificada”948. Se num primeiro momento a imagem, o espetáculo, consegue se autonomizar
frente ao mundo, num segundo, estas imagens passam a se especializar sobre o mundo e ter
poder de veridicção sobre ele949, e o espetáculo, um produto da realidade, passa a ser
chancelador do real. O espetáculo como ideologia realizada – “o despotismo do fragmento
que se impõe como um pseudo-saber de um todo estático, visão totalitária”950 –, materializada
em um pseudoconcreto951 visível, transformando o mundo em simples imagens952, torna toda a
sociedade naquilo que a ideologia já era953: a falsa consciência, a negação da vida real. A
realidade, materialmente invadida e desmaterializada pelo espetáculo, tomada pela sua
linguagem, se vê obrigada a aderir de maneira positiva às suas ordens para existir, apesar do
espetáculo só existir na medida em que existir o real954. Ou seja, são as imagens que
condicionam o real a agir para que essas mesmas imagens possam ter existência para poderem
agir sobre esse mesmo real. O indivíduo, tendo que existir em meio a essas duas realidades, se
944DEBORD, SdE, § 2.945Ibidem, § 30.946Ibidem, § 8.947Ibidem, § 9.948ROUANET, A razão cativa, p. 102.949DEBORD, op. cit., § 2.950Ibidem, § 214. Grifos do autor.951Ibidem, § 216.952Ibidem, § 18.953Ibidem, § 217.954Ibidem, § 8.
117
vê preso em um universo achatado e limitado pela tela do espetáculo955, o que na vida
quotidiana implica na imposição da “desinserção da práxis, e a falsa consciência dialética que
a acompanha”956. Com o reforço ao contemplativo e à falsa consciência, o espetáculo pode
organizar com sistematicidade a “falha na faculdade do encontro”, substituindo o encontro
autêntico por um simulacro de, pela “ilusão do encontro”. Necessitado do contato com o outro
para se reconhecer como sujeito – ou em termos hegelianos, como na epígrafe do capítulo IX
d'A sociedade do espetáculo, a consciência de si necessita do reconhecimento de outras
consciências de si para existir957 –, contudo tendo apenas a ilusão do encontro ao seu alcance,
o indivíduo não consegue ser reconhecido por ninguém e, por conseqüência, se torna incapaz
de reconhecer a si próprio e a sua própria realidade. Como Proust ao reconhecer a
impossibilidade de saber se Françoise o estimava ou detestava: foi com o contato com o Outro
que o autor de Em busca do tempo perdido descobriu que uma pessoa não está “nítida e
imóvel diante de nossos olhos, com suas qualidades, seus defeitos, seus projetos, suas
intenções para conosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros,
através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual
não existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de
palavras e até de atos, palavras e atos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás
contraditórias”958. Reconhecer isso no Outro é reconhecer também em si. Quando muito, a
consciência espectadora conhece “interlocutores fictícios que a entretêm unilateralmente com
sua mercadoria e com a política de sua mercadoria”959 e pseudo-respostas a essa comunicação
sem resposta feita do reconhecimento no consumo960, encenando assim “a falsa saída de um
autismo generalizado”961. O espetáculo se oferece, em toda sua extensão, como “sua 'imagem
do espelho'”962, um duplo da consciência espectadora, que mais do que um duplo de si é
também um duplo do Outro e do próprio espetáculo, num jogo de espelhos, de presença-
ausência, que apaga os “limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu” diante dessa
realidade ambígua, assim como suprime os “limites do verdadeiro e do falso pelo
recalcamento de toda verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela
organização da aparência”963. Ele é a mimetização falsificada e falsificadora da realidade e da
955DEBORD, SdE, § 218. Grifo do autor956Ibidem, § 217.957HEGEL apud DEBORD, SdE, Capítulo IX, epígrafe.958PROUST, O caminho de Guermantes, p. 60.959DEBORD, op. cit., § 218.960Ibidem, § 219.961Ibidem, § 218.962Ibidem, § 218.963Ibidem, § 219.
118
vida humana: a carência do Outro persiste e o resultado se aproxima da denúncia feita por
Rousseau, para quem “ninguém se importa com a realidade, todos ancoram sua essência na
ilusão. Escravos de seu amor-próprio e iludidos por ele, os homens não vivem por viver, mas
para fazer crer aos outros que viveram!”964
Debord identifica sinais de dissociação esquizofrênica na sociedade do espetáculo:
a realidade objetiva está dos dois lados965, sendo que “cada noção se fundamenta em sua
passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”966, e o
indivíduo não tem alternativas senão aderir ele também ao espetáculo, enquanto sobrevive no
mundo real. Esta necessidade de fundamentação de um termo no outro não é necessariamente
um problema: vale destacar que para a filosofia da práxis “a fusão do conhecimento e da ação
precisa realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que cada um desses termos coloque
no outro a garantia de sua verdade”967. O ponto está que sob o espetáculo o encontro não é
real, antes a falsa consciência do encontro, “um fato alucinatório social”968. Enquanto
Mumford encontra na cidade murada a origem das estruturas coletivas de personalidade que
são encontradas até hoje, em que “a divisão do trabalho e das castas, levada ao extremo, veio
tornar normal a esquizofrenia; ao passo que o trabalho repetitivo e compulsório imposto a
uma grande parte da população urbana, sob a escravidão, reproduziu a estrutura de uma
neurose compulsiva”969, Debord, citando Gabel (que Rouanet critica por “medicalizar a
história”970), nota o paralelismo entre ideologia e esquizofrenia, já que esta apresenta, nos
quadros clínicos, “a decadência da dialética da totalidade (que tem como forma extrema a
dissociação) e a decadência da dialética do devir (que tem como forma extrema a
catatonia)”971; estilhaçamento da personalidade, fragmentação, perda do sentimento de
totalidade, perda da vontade própria, perda da capacidade de integrar ação e pensamento
conscientemente em uma práxis transformadora - “quem sofre de modo passivo seu destino
quotidianamente estranho é levado a uma loucura que reage de modo ilusório a esse destino,
pelo recurso a técnicas mágicas”972 -: o consumo e a imitação do estilo de representação
espetacular ofertado pelas vedetes – especialização do vivido aparente que promete
964ROUSSEAU, Rousseau juge de Jean-Jacques, Terceiro diálogo apud CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 392.
965DEBORD, SdE, § 8.966Idem, ibidem.967Ibidem, § 90.968Ibidem, § 217.969MUMFORD, A cidade na história, p. 56.970ROUANET, A razão cativa, p. 138.971DEBORD, op. cit., § 218.972Ibidem, § 219.
119
compensar todo “o estilhaçamento das especializações produtivas de fato vividas”973. Ainda
citando Gabel, “a necessidade de imitação que o consumidor sente é esse desejo infantil,
condicionado por todos os aspectos de sua despossessão fundamental”974.
Nessa situação (no mínimo confusa) em que a realidade existe, mas se torna
etérea, perde materialidade e ganha consistência quase onírica, as imagens ganham a realidade
que falta ao mundo encarado desde uma perspectiva contemplativa e passam a ser
“motivações eficientes de um comportamento hipnótico”975, ditando necessidades a serem
sonhadas por toda a sociedade. Necessidades que fazem do espetáculo “a principal produção
da sociedade atual”976. Para Marx, o que o que é produzido no capitalismo não são
mercadorias, e sim a mais-valia, a autovalorização do capital977. E é para a sua reprodução que
os homens devem trabalhar (e consumir): “a prática social, diante da qual se coloca o
espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão dessa
totalidade mutila a ponto de fazer parecer que o espetáculo é seu objetivo”978. Com a
totalidade da prática social voltada para o desenvolvimento do espetáculo, a economia passa a
girar por conta própria979, aparentemente como moto-perpétuo, com o capital alcançando um
grau tal de acumulação nesse processo que se torna ele também imagem980 – e destarte pode
prosseguir seu processo de auto-acumulação infinita de si próprio. Nesse movimento,
enquanto imagem da economia e do capital, o espetáculo “é o reflexo fiel da produção das
coisas, e a objetivação infiel dos produtores”981. Tendo recoberto todo o mundo com seu
modus operandi, com a divisão espetacular do trabalho se sobrepondo à antiga divisão
internacional do trabalho, o espetáculo, travestido das mais diversas formas, se apresenta
como a imagem móvel da imobilidade, pois não há ponto a chegar que não seja a si mesmo982,
que não seja ao ponto onde se está: “uma vez que a economia tenha se dirigido para a
expansão, os meios rapidamente se transformam em fins e o 'prosseguir torna-se meta'”983. Se
seu fim é seu meio, não há fim para o espetáculo, para a acumulação quantitativa capitalista: o
que ele busca é a acumulação de mais do mesmo984.
973DEBORD, SdE, § 60.974Ibidem, § 219.975Ibidem, § 18.976Ibidem, § 15.977MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 105.978DEBORD, op. cit., § 7.979Ibidem, § 16.980Ibidem, § 34.981Ibidem, § 16.982Ibidem, § 14.983MUMFORD, A cidade na história, p. 588.984DEBORD, op. cit., § 13.
120
Entretanto, mesmo sendo imagem, mesmo sendo o acúmulo de si mesmo, o
espetáculo segue dependente de um substrato real para subsistir. Esse substrato é a produção.
Ocorre que o aperfeiçoamento das forças produtivas, além de induzir à queda da taxa de lucro,
tinha um limite ainda mais perigoso ao sistema: “a estreita base sobre a qual repousa[vam] as
relações de consumo”985, fruto da distribuição desigual das riquezas sociais produzidas –
característica comentada por Marx no livro III d'O Capital. A “descoberta” do operariado
como consumidor foi uma das formas encontradas pelo capitalismo para superar a carência de
uma base de consumo correspondente à da produção. Essa fórmula, entretanto, também tinha
seus limites. A sociedade do espetáculo é escrito mais ou menos na época desta crise, que
atingia tanto capitalistas quanto consumidores: quanto aos primeiros, a falta de novos
consumidores e a necessidade de permanência do consumo, ou seja, de como manter o
contínuo fluxo de circulação de mercadorias, necessário para a realização da mais-valia; aos
segundos, a evidência da pobreza de vida em meio à riqueza de quinquilharias que garantem
uma vida material confortável – e tediosa. “Sujeitar-se a um emprego e depois relacionar-se
com a vida através de o consumo não basta (...). O lazer em si não é capaz de salvar o
trabalho, mas fracassa juntamente com ele, e só poderá ser significativo para a maioria dos
homens se o trabalho o for”, comenta Paul Goodman, em meados da década de 1950986. Para o
capital, a primeira solução encontrada foi a ampliação da internacionalização da produção, o
que garantia um valor mais baixo aos seus produtos, graças aos preços mais baratos dos
elementos do capital – constante e variável –, e levava também a uma ampliação do número
de consumidores. A outra foi acelerar o giro da circulação de mercadorias, de modo a criar a
necessidade permanente de consumo nos consumidores já consolidados: “as indústrias que
são favorecidas por tal expansão [do mercado consumidor] devem, para manter a produção,
dedicar-se a bens que são prontamente consumíveis, quer pela sua natureza, quer por serem
tão apressadamente fabricados que logo devam ser substituídos. Pela moda e pela obsolência
inerente, as economias da produção mecânica, em vez de produzir o lazer e a riqueza durável,
são devidamente canceladas em conseqüência do consumo obrigatório, numa escala cada vez
mais ampla”987. A indução a esse consumo, além da obsolência programada, precisou também
de uma nova forma de formação da subjetividade do sujeito, que o identificasse cada vez mais
ao consumidor – que também o identificava cada vez mais a um produto. De acordo com
Riesman, há uma mudança da forma tradicional de vida, marcada pelo trabalho, para uma
985MARX, O Capital, Livro III, p. 176.986RIESMAN, A multidão solitária, p. 60987MUMFORD, A cidade na história, p. 588.
121
moderna, em que os indivíduos se fundamentam no consumo988. Ao se alicerçar no consumo,
no lazer programado, o sistema capitalista consegue se apropriar “produtivamente” das
possibilidades abertas pelo aprimoramento das forças produtivas – a cada dia a exigir menos
trabalho humano –, afinal, “se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então
rouba ao capitalista”989, nada como garantir perdas zero, através da apropriação do tempo livre
do trabalhador com o consumo alienado, consumo de bens produzidos sob a forma alienada,
vinculado à “atividade produtora: depende dela, é uma submissão inquieta e admirativa às
necessidades e resultados da produção; a própria inatividade é um produto da racionalidade da
produção”990. Logo, não se vê uma mudança significativa da forma do espetáculo àquela
descrita por Marx, para quem “dentro do sistema capitalista, todos os métodos para a elevação
da força produtiva social do trabalho se aplicam à custa do trabalhador individual; todos os
meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e
exploração do produtor, mutilam o trabalhador, transformando-o num ser parcial, degradam-
no, tornando-o um apêndice da máquina; aniquilam, com o tormento de seu trabalho seu
conteúdo, alienam-lhe as potências espirituais do processo de trabalho na mesma medida em
que a ciência é incorporada a este último como potência autônoma; desfiguram as condições
dentro das quais ele trabalha, submetem-no, durante o processo de trabalho, ao mais
mesquinho e odiento despotismo, transformam o seu tempo de vida em tempo de trabalho”991.
No espetáculo, como antes do consumo, há a produção, que só existe na medida em que
houver braços para fazer as máquinas funcionarem. O trabalhador, para seguir produzindo
para o espetáculo não deve mudar sua relação de estranhamento com sua força de trabalho: o
sistema precisa que sua força siga independente dele, para que dela o sistema siga se
apoderando992. Ou seja, é imperativo sobre o espetáculo a manutenção da cisão: o trabalhador
não pode nunca ser um sujeito unitário, precisa estar sempre dividido. Foi da divisão entre ele
e sua força que se originou a “separação generalizada entre o trabalhador e o que ele
produz”993. É sobre esta separação do produtor e o produto do seu trabalho, transformado em
mercadoria, que Marx começa por elaborar sua teoria da falsa consciência: de acordo com os
Manuscritos Econômicos-Filosóficos é com o confisco da “objetividade humana, fazendo o
produto do seu trabalho aparecer, não como uma coisa sua, mas como uma coisa alheia, na
988RIESMAN, A multidão solitária, p. 70989MARX, O Capital, Livro I, tomo I, p. 189.990DEBORD, SdE, § 27.991MARX, op. cit., livro I Tomo II, p. 209-210.992DEBORD, op. cit., § 31.993Ibidem, § 26.
122
qual ele não se reconhece, na qual ele se desconhece”994, que a consciência é falsa, num
determinado contexto histórico, e a realidade e a ilusão surgem invertidas. N'O Capital ele
retoma a forma-mercadoria do produto do trabalho – “a conduta atomística dos homens em
seu processo de produção social”995 – como uma das manifestações da reificação do
proletariado. As análises de Debord seguem por esse caminho. De início, o trabalho sob a
forma de trabalho-mercadoria teria levado à perda do ponto de vista unitário sobre a atividade
realizada, o que acabou por levar à perda de toda comunicação pessoal direta entre os
produtores – com a unidade e a comunicação se tornando atributos exclusivos da direção do
sistema996 –, e que culminou no espetáculo, com sua propagação a toda a sociedade. Principia
que a própria linguagem espetacular é constituída de sinais da produção reinante997, uma
“produção separada como produção do separado”998, que afeta não somente os produtores.
Primeiro porque essa produção chega à casa de todos pelo consumo999, segundo, e
principalmente, porque a experiência fundamental na sociedade espetacular (em 1967) estava
em vias de se deslocar do trabalho, da atividade de cada um, para a não-atividade, para o não-
trabalho. Portanto, não é mais necessário ser operário fabril para se igualar a um: a
massificação do consumo de luxo (ou seja, artigos que não são necessários para a reprodução
da força de trabalho1000) é “a vitória do sistema econômico da separação é a proletarização do
mundo”1001 – Marx comentava que o capitalista, com o desenvolvimento das forças produtivas
e a transformação do capital em uma força social, se tornava tão-somente um funcionário
desse capital. A proletarização do mundo implica na universalização de uma característica que
no início do capitalismo era típica do operariado e das fábricas, numa época em que o
operariado migrava para onde estavam as fábricas, as quais se instalavam onde estavam as
matérias primas: o alastramento do sentimento de não-pertencimento1002, e as promessas de
solução para esse sentimento, para o distanciamento entre os homens1003, para o
desmoronamento da vida em comum1004, que apenas aprofundam o isolamento que prometem
resolver: “o sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do
994ROUANET, A razão cativa, p. 77995MARX, O Capital, livro I, p. 85.996DEBORD, SdE, § 26.997Ibidem, § 7.998Ibidem, § 27.999Ibidem, § 69.1000MARX, op. cit., Livro III, Tomo I, p. 79.1001DEBORD, op. cit., § 26.1002Ibidem, § 30.1003Ibidem, § 171.1004Ibidem, § 172.
123
isolamento”1005, por mais que para o indivíduo sejam seus contemporâneos sua fonte da
orientação “– tanto aqueles que lhes são conhecidos, quanto aqueles que elas conhecem
indiretamente, através de amigos e dos meios de comunicação de massa (...). Esta forma de se
manter em contato com os outros permite uma estreita conformidade de comportamento”1006;
a relação com o outro não é a da troca, da alteridade, mas a do mero ajustar-se para ser aceito.
Assim como na divisão social do trabalho a divisão de tarefas fabris não criou solidariedade
orgânica entre os trabalhadores, igualmente os bens para consumo que prometem unir, vencer
distâncias – do automóvel à televisão –, são selecionados para o “reforço constante das
condições de isolamento das 'multidões solitárias'”1007: “o isolamento fundamenta a técnica;
reciprocamente, o processo técnico isola”1008. Diante dessa lógica, no espetáculo pode ser
afirmada a realização técnica do exílio1009, sendo que o espectador, alienado em favor do
objeto contemplado, “quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-
se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu
próprio desejo”1010, maior sua heteronomia, guiado por uma série de estímulos externos, da
publicidade à opinião do grupo cômpar – Riesman chama o tipo ideal de caráter desta época
de “alter-dirigido” –; quanto melhor inserido no sistema, maior seu desconforto, seu
sentimento de não-pertencimento. Diante de um mundo que não é seu, apesar de produzi-lo
cada vez mais em seus detalhes1011, “o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o
espetáculo está em toda parte”1012, inclusive dentro do próprio homem1013, “que quanto mais
sua vida se torna seu produto”, fruto de trabalho alienado, “tanto mais ele se separa da
vida”1014. Porque é próprio do capitalismo identificar o produto do trabalho com o produto-
mercadoria (conseqüência da identificação do trabalho com trabalho-mercadoria), o qual
precisa se alienar em valor de troca para poder se realizar como valor de uso: pela forma de
produção capitalista, uma mercadoria é produzida para um uso, mas ela não é valor de uso
para quem a possui, quem a produz (seja com a exploração do trabalho alheio, seja fruto do
próprio trabalho) para o mercado, como valor de troca. Logo, para seu primeiro possuidor
uma mercadoria não satisfaz a função para a qual foi produzida: a mercadoria só ganhará
1005DEBORD, SdE § 28.1006RIESMAN, A multidão solitária, p. 86.1007DEBORD, op. cit., § 28.1008Idem, ibidem.1009Ibidem, § 20.1010Ibidem, § 30.1011Ibidem, § 33.1012Ibidem, § 30.1013Ibidem, § 20.1014Ibidem, § 33.
124
valor de uso nas mãos de seu comprador, que a comprará por um equivalente em dinheiro, e a
utilizará, aí sim, para satisfazer suas necessidades1015. Esse duplo uso de um produto é notado
por Aristóteles, para quem “todo bem pode servir para dois usos (...) Um é próprio à coisa
como tal, mas o outro não o é, assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também
pode ser trocada”1016. Todavia, há uma diferença que é ao mesmo tempo qualitativa e
quantitativa entre a sandália de Aristóteles e a do capitalista, a ponto daquele poder dizer que
os dois casos são “valores de uso da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de
que necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da sandália como sandália. Contudo,
não é este o seu modo natural de uso. Pois a sandália não foi feita para a troca”1017. Bem
diferente ocorre no sistema capitalista, no qual “os valores de uso das mercadorias vêm a ser,
portanto, valores de uso, mudando de lugar por toda a parte, saindo das mãos que a utilizaram
como meio de troca para as mãos que a utilizam como objeto de uso. É apenas através dessa
alienação multilateral das mercadorias que o trabalho contido nelas se torna trabalho útil”1018.
Levando essa lógica ao extremo, “o espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação
concreta de alienação. A expansão econômica é sobretudo a expansão dessa produção
industrial específica”1019, seu sucesso “volta ao produtor como abundância da
despossessão”1020: a acumulação de produtos alienados, frutos do trabalho alienado. O tempo
e o espaço de seu mundo se tornam estranhos a ele – abstrações afins ao desenvolvimento do
capital1021 –, a ponto de precisar ser socorrido pelo espetáculo, que fornece o mapa desse novo
mundo, que é o seu território1022, que é a sua casa1023.
“O que cresce com a economia que se move por si mesma só pode ser a alienação
que estava em seu núcleo original”1024, mas que ainda não pode ser considerada alienação no
início do desenvolvimento das forças produtivas, que para Debord é “a história real
inconsciente que constituiu e modificou as condições de existência dos grupos humanos”1025 –
permitindo aos homens saírem de um estágio de sobrevivência, ao gerar excedentes de
produção, dando origem a uma base econômica para trocas mercantis. Desse
desenvolvimento, desses excedentes, a produção de mercadorias – “que implica a troca de
1015MARX, Para a crítica da economia política, p. 69.1016ARISTÓTELES, De república, apud Marx, Para a crítica da economia política, p. 57.1017Idem, ibidem.1018MARX, op. cit., p. 69.1019DEBORD, SdE, § 32.1020Ibidem, § 31.1021Ibidem, § 168.1022Ibidem, § 311023Ibidem, § 217.1024Ibidem, § 32.1025Ibidem, § 40.
125
produtos diferentes entre produtores independentes”1026 – por longo período foi uma atividade
econômica artesanal e marginal, em que estava dissimulada sua “verdade quantitativa”1027.
Segundo Debord, sua dominação neste estágio ainda era oculta, “pois a própria economia,
como base material da vida social, era despercebida ou incompreendida”1028. Contudo, a
produção de mercadorias deixou de ser marginal e assumiu o controle total da economia tão
logo encontrou condições sociais que assim o permitiram, com o grande comércio e a
acumulação de capitais. Toda a economia passou então a se modelar conforme as suas
necessidades, ou seja, “tornou-se um processo de desenvolvimento quantitativo”1029 e de
rebaixamento qualitativo – o que não deixa de implicar numa mudança qualitativa –,
transformando o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em trabalho assalariado1030 – em
especial com a revolução industrial, com o fim da base natural da economia e a divisão social
do trabalho1031.
O trabalho assalariado tem uma série de particularidades, muito além do fato de
ser uma forma de ocupação do esforço humano em uma dada época, por uma dada forma de
produção. Marx pressupõe o trabalho como “condição natural da existência humana”1032,
“processo pelo qual o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo
com a natureza”1033 “independentemente da sua forma social”1034, e que, “ao atuar sobre a
natureza, modifica a sua própria”1035. “Ao contrário, o trabalho que põe valor de troca é uma
forma especificamente social do trabalho”1036, mais do que uma mera transformação da
natureza pelo artifício humano. Neste caso, a produção tem como base o conceitos de
“trabalho humano geral”1037, “trabalho social médio”, abstrações efetivas, e não apenas
teóricas, da força de trabalho, aplicadas para produzir qualquer produto. Pois uma mercadoria
entra na esfera da circulação para ser intercambiada por outras mercadorias como mero valor
de troca: sua diferença para com as demais é apenas quantitativa – as diferenças qualitativas,
de valor de uso, interessam somente na medida em que fazem a mercadoria se efetivar em
valor de troca. Assim, um trabalho só é trabalho útil e o trabalhador assalariado só é
1026DEBORD, SdE, § 401027Idem, ibidem.1028Ibidem, § 41.1029Ibidem, § 40.1030Idem, ibidem.1031Ibidem, § 41.1032MARX, Para a crítica da economia política, p. 65.1033Idem, O Capital, livro I, Tomo I, p. 1491034Idem, Para a crítica da economia política, p. 65.1035Idem, O Capital, livro I, Tomo I, p. 1491036Idem, Para a crítica da economia política, p. 65.1037Ibidem, p. 60.
126
remunerado por aquilo que faz na medida em que o produto-mercadoria desse trabalho entra
na esfera da circulação como valor de troca1038. A medida usada para igualar todas as
mercadorias é o tempo de trabalho objetivado1039. Para tanto, não se pode considerar o
trabalho em suas particularidades: o trabalho que cria mercadoria deve ser ele também uma
mercadoria indiferente, igual a qualquer outro trabalho. Trabalho simples, uniforme, sem
diferenças, que possa ser calculado por uma medida geral, equivalente a todos os trabalhos.
Tal medida é o tempo de trabalho, “modo de ser quantitativo do movimento”1040, cujo ritmo,
cuja produtividade é dada pelo desenvolvimento das forças produtivas e determina o valor do
trabalho de qualquer pessoa. Essa medida traz implícita a concepção do tempo como vazio e
homogêneo.
Nos primórdios do capitalismo, a manufatura era vantajosa frente ao artesanato
porque, ao reunir um grande número de trabalhadores para a realização da mesma tarefa – ou
de tarefas contíguas para produção de um bem –, as diferenças de rendimento entre cada
trabalhador eram anuladas – o ritmo de trabalho mais lento de um era superado pela maior
habilidade de outro –, resultando em um tempo de trabalho médio para a confecção do que
fosse – o que acabava por ser lucrativo ao capitalista. Com a revolução industrial, esse
trabalho médio passa a ser uma imposição da máquina ao operário: são os meios de produção
que ditam qual é o ritmo do trabalho social médio. É a máquina que é a virtuose do sistema –
ao operário cabe ajustar seus movimentos ao ritmo ditado desde fora1041. E, no fundo, o
trabalho é indiferente à forma particular do trabalho. Tem-se aqui uma série de relações
baseadas na indiferença: o capitalista é indiferente ao valor de uso produzido1042, já que o que
ele realmente produz é mais-valia, o trabalhador, que pode “passar com facilidade de um
trabalho a outra e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito”, é indiferente àquilo
que faz, visto que se trata de um trabalho alienado, que não confunde com ele em sua
particularidade1043. Sob um ritmo que não é o seu, o operário produz para outrem um valor de
troca que irá satisfazer necessidades que não são as suas.
Afim à Lógica de Hegel, retomada por Marx1044, Debord afirma que “esse
desenvolvimento que exclui o qualitativo também está sujeito, como desenvolvimento, à
1038MARX, Para a crítica da economia política, p. 70.1039Idem, ibidem.1040Ibidem, p. 59.1041Idem, O Capital, livro I, p. 242.1042Idem, Para a crítica da economia política, p. 59.1043Ibidem, p. 43. 1044Idbem, O Capital, livro I, p. 243.
127
passagem qualitativa”1045: é no estágio da industrialização que a alienação finalmente surge
inequivocamente, alterando em cada detalhe a paisagem do globo e as relações humanas. Com
isso, “a mercadoria aparece como uma força que vem ocupar a vida social”1046, e o espetáculo
é o momento em que ela se apodera “totalmente da vida social”1047, em que “não apenas a
relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela”1048, todas as
relações sociais são mediadas por ela. Ademais, a mercadoria não é apenas “visível e
ofuscante”1049, ela impõe seu movimento, ou antes ela não impõe movimento algum, mas
abduz da atividade humana aquilo que lhe serve, e a partir daí generaliza seu movimento para
toda a sociedade. Porque a mercadoria não existe por conta própria, sem apropriação do
trabalho humano. O movimento que ela impõe é o movimento apresentado por Marx n'O
Capital, e, antes disso, em Para a crítica da economia política, de 1859, e que Debord
identifica com o movimento essencial do espetáculo: “retomar nele tudo o que existia na
atividade humana em estado fluido, para possuí-lo em estado coagulado”1050. “Na denúncia da
falsificação da vida, da pseudo-realidade, da falsificação das necessidades, Debord busca
afirmar não uma suposta realidade primeira e autêntica que, por sua fixidez, seria o critério de
crítica do presente, mas antes constata criticamente a fixidez de um presente aprisionado ao
arcaísmo da forma-valor que impede, recalca e substitui por imagens oníricas as
possibilidades historicamente constituídas de elaboração e realização efetiva do desejo
consciente”1051.
Ao se apropriar da atividade humana, desde a dedicada à produção para o sistema
até aquela nos momentos que seriam para usufruto próprio, a primeira como apropriação
direta da força de trabalho do proletariado, como operários tão-somente; a segunda como
consumidores, com o humanismo da mercadoria1052 (contradizendo a análise de Marx sobre o
capitalismo do século XIX, de que “o capital não tem a menor consideração pela saúde do
trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a tê-la”1053); todos esses momentos
marcando a percepção, a comunicação e as relações sociais com sua linguagem, forçando
todos a se inserirem no seu campo de existência, o espetáculo força a um mesmo ritmo, ditado
pela cadência da produção – mesmo enquanto consumidores, em seus momentos de lazer.
1045DEBORD, SdE, § 39.1046Ibidem, § 41.1047Ibidem, § 42. Grifo do autor.1048Idem, ibidem.1049MARX, O Capital, Livro I, nota I, p. 85. 1050DEBORD, op. cit., § 35. Grifos do autor.1051AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 82.1052DEBORD, op. cit., § 43.1053MARX, op. cit., Livro I, p. 215.
128
Convém ressaltar que a cadência da produção, se serve para melhor atender ao interesse do
capital de auto-valorização, é fruto da engenhosidade e do trabalho humano. Esse
enquadramento vai além da dominação aberta ou semi-aberta imposta por um determinado
compasso. Muito veladamente – e aqui a linguagem tem um papel marcante – o espetáculo
tira dos homens a espontaneidade, o inesperado que relações horizontais e livres entre as
pessoas poderiam fazer brotar, não para paralisar tais atividades, mas para dar a elas uma
outra consistência – uma outra existência –, mais afim às suas necessidades, de modo a gerir a
ação humana de maneira positiva ao sistema. Insinuando-se pela linguagem, algo
aparentemente tão natural, não fica difícil ao espetáculo ganhar o mesmo aspecto. “O discurso
fetichista não é nem sequer um discurso ilusório sobre a realidade, mas o discurso da própria
realidade: a ideologia é um momento da realidade”1054. Os termos que Debord toma
emprestado de Marx auxiliam numa compreensão neste sentido. Ao falar em “estado fluído da
atividade humana”, convém notar que os fluidos – líquidos e gasosos – são corpos que tomam
a forma do recipiente onde são colocados. No latim, fluidus pode ser tanto o que escorre
quanto, figurativamente, o amplo, o largo, o farto1055. Disso pode-se deduzir que para Debord
a atividade humana não possui nem uma ontologia a priori, nem uma teleologia imanente.
Essa atividade ter um fim, ainda mais um fim útil, utilitário, é uma possibilidade, não uma
necessidade. Da mesma maneira, seu desenrolar, quando desimpedido, fluido, torna a ação
humana rica, farta de significados e desdobramentos que fogem ao controle da razão. Para
Marx, todas as mercadorias, enquanto valores de troca, “são apenas medidas de tempo de
trabalho coagulado”1056: trabalho objetivado, trabalho morto, trabalho passado acumulado sob
a forma de mercadorias alienadas. O tempo de trabalho é o modo de ser quantitativo do
trabalho, porque o tempo foi identificado como o modo de ser quantitativo do movimento1057.
E sendo o trabalho sob a mercadoria um trabalho despido de toda qualidade, reduzido a
trabalho simples, mero movimento, dispêndio de força humana, ele passa a ser encarado como
trabalho humano geral, uma abstração de trabalho, e posto sob um tempo abstrato, de forma
que o trabalho medido pelo tempo da produção “aparece não como o trabalho de diferentes
sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros
órgãos do trabalho”1058, peças indiferentes e facilmente substituíveis para sua função. Essa
produção com base em um conceito abstrato, o trabalho médio, é um passo além na maior
1054ROUANET, A razão cativa, p. 105.1055SARAIVA, Novíssimo Dicionário Latino-Português, p. 494.1056MARX, Para a crítica da economia política, p. 59. Grifo do autor.1057Ibidem, p. 60.1058Ibidem, p. 138. Grifo do autor.
129
abstração da vida social que Debord tanto denuncia, que no século XX ganha um peso extra
ao se tornar materialmente visível. Ao adotar o termo coagulado e não sólido, evita-se passar
a idéia do espetáculo – como a mercadoria –, se impondo já com forma bem determinada,
como algo coeso. O espetáculo é um sólido viscoso, coalhado, sem uma forma fechada de
início. Seu enquadramento é permissivo, o que garante uma aparente liberdade aos indivíduos,
reforçando sua ideologia de uma sociedade livre, quando o que se constata é que tais sutilezas
dificultam não só a possibilidade de percebê-las, como a de se opor a elas: daí a necessidade
da linguagem dialética, do plágio, do uso desviado1059 apontar esses engessamentos sutis do
espetáculo. Esta passagem do fluido ao coagulado também pode ser remetida a uma metáfora
biológica, do sangue. Diante de uma ferida por onde o sangue em estado fluido sai, o
organismo reage coagulando-o, tomando a forma da ferida, de modo a impedir sua vazão para
fora do corpo, para fora do seu controle. Não é, destarte, algo que é imposto a partir de fora,
mas uma solução natural que brota do próprio organismo, para controlar o caminho que o
sangue fazia, redirecionando-o para a rota correta e evitando prejuízos ao ser. Ao transformar
o fluido em coagulado, sutilmente o espetáculo restringe essa liberdade, sem necessidade de
impedimentos externos: é a partir do próprio interior que ele cerceará a atividade humana.
Logo, não dominaria a ação humana a partir de fora, mas a partir de dentro. Ele, num primeiro
momento, pode até dar certa liberdade aos indivíduos para agirem, mas logo retoma, se
apropria novamente de tal atividade, pondo-a num estado viscoso que permite possuí-la e, tão
importante quanto, não permite que escoe e fuja, nem que seja prejudicial ao organismo
social. Mas o espetáculo retoma a atividade humana como coisas: ela será objetivada em
mercadorias, imagens-objetos que comporão a riqueza e o brilho da miséria da sociedade
atual, e que são a sua principal produção: o próprio espetáculo1060. Poderia ser dito que essa
idéia da retomada da atividade em estado coagulado quando deveria ser em estado fluido
evidencia uma dominação transparente: se enxerga através dela, mas não ela própria – por
causa da forma como surge, como algo natural, graças à série de mediações que o espetáculo
cria na vida social, numa cadeia tão longa que aparenta ter sempre existido. Ou, como
Rouanet comenta sobre o fetichismo da mercadoria: “designa a propriedade necessária que
têm as relações sociais do capitalismo de se manifestarem numa forma objetiva em que elas se
tornam invisíveis. Seu espaço de aparição é também um espaço de desaparecimento”1061. Ao
indivíduo, este movimento essencial consiste não apenas na perda da completude das suas
1059DEBORD, SdE, § 207, § 208.1060Ibidem, § 15.1061ROUANET, A razão cativa, p. 89.
130
atividades, pela segmentação de tudo e de todos, mas também em ser ele estancado, ganhar
uma consistência, uma viscosidade, uma essência, uma permanência no tempo que não tem,
de forma a poder ser comparado em um antes e um depois como se fosse o mesmo, de tal
forma que ele, tal qual sua atividade, passa a ter “valor em virtude da formulação pelo avesso
do valor vivido”1062. Ou seja, o que vai dar valor e sentido à atividade humana é essa
permanência – o trabalho morto que domina o trabalho vivo –, o que vai dar valor ao homem
é sua personalidade estável; o que ganha valor na sociedade espetacular é tudo o que não flui,
o que pode ser medido e calculado, tudo aquilo em que o particular e o qualitativo podem ser
postos de lado – “encarnação uniforme da mesma substância de valor, [que] diferem entre si
apenas do ponto de vista da quantidade”1063. A relação com o mundo e com o Outro se torna
oposta àquela descrita por Proust: “toda criatura se destrói quando deixamos de vê-la; seu
aparecimento seguinte é uma criação nova, diversa da imediatamente anterior, senão de
todas”1064. Tudo ganha uma realidade por demais segura – e impalpável.
O avesso do vivido – o representado. Aquilo que deveria ser espontâneo,
autêntico, mas que é mediado de tal forma pelo espetáculo que faz com que os próprios gestos
daquele que age “já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele”1065. Assim,
para onde quer que se olhe, o que se vê é o mundo da mercadoria1066 dominando a vida
humana, da produção aos sonhos dos homens – a produção dos sonhos dos homens –,
transformando tudo em imagens, dependente de imagens. Nessa realidade, na qual “o mundo
sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele e que ao mesmo
tempo se faz reconhecer como o sensível por excelência”1067 – achatando o sensível das suas
profundidades1068 –, o princípio do fetichismo da mercadoria, “a dominação da sociedade por
'coisas supra-sensíveis embora sensíveis'”1069, se realiza completamente. Coisas sensíveis
porque, por mais que tenham se desmaterializado em imagens, possuem um substrato real,
fruto do trabalho humano alienado: daí o combate radical de Debord a esta forma de trabalho,
ao trabalho sob a forma de trabalho-mercadoria, o trabalho desprovido de qualidades,
quantificado, do qual principia o ciclo da mercadoria. É dele que se origina a perpetuação do
sistema: a dominação pode ser feita por imagens, mas é a dominação de um sistema de
1062DEBORD, SdE, § 35, grifo do autor.1063MARX, Para a crítica da economia política, p. 91.1064PROUST, À sombra das raparigas em flor, p. 379.1065DEBORD, SdE, § 30.1066Ibidem, § 42.1067Ibidem, § 36.1068Ibidem, § 218.1069Ibidem, § 36.
131
produção, em que o trabalho assalariado é conservado “como o único lugar de origem da
mercadoria”1070, afinal, “todo sistema de produção capitalista repousa no fato de que o
trabalhador vende sua força de trabalho como mercadoria”1071. O papel de Midas que o
espetáculo incorporou para si, transformando tudo aquilo que cai sob seu campo de existência
em ouro – o que implica em uma evidente perda de qualidade –, “traduz o caráter fundamental
da produção real que afasta a realidade: sob todos os pontos de vista, a forma-mercadoria é a
igualdade confrontada consigo mesma, a categoria do quantitativo. Ela desenvolve o
quantitativo e só pode se desenvolver nele”1072 – “o globo terrestre transformado numa esfera
de ouro maciço, ressecada em sua abstração de moeda”1073. Contudo, o desenvolvimento que
exclui o qualitativo enquanto desenvolvimento está sujeito à passagem qualitativa ao transpor
o limiar de sua própria abundância, do qual o espetáculo é a prova1074: “isto só é verdade
localmente em alguns lugares, mas já é verdade em escala universal, que a referência original
da mercadoria, referência que seu movimento prático confirmou, ao unificar a Terra como
mercado mundial”1075 – umas das condições necessárias para o capital se contrapor à queda
tendencial da taxa de lucro1076. Esse avanço, contudo, não é feito pacificamente, sem
resistências: “o espetáculo é uma permanente Guerra do Ópio para fazer com que se aceite
identificar bens a mercadorias”1077. Para essa guerra, o espetáculo se armou de uma série de
armas e assessores, na tentativa de vencer resistências, destruir barreiras. Primeiro a
constituição e o desenvolvimento de uma ciência social burguesa, a economia política –
ciência dominante e ciência da dominação1078 –, para justificar o que há, para prever o que
será, e que nos primórdios do capitalismo, afim às necessidades do sistema, não via no
proletariado mais do que um operário, o qual não necessitava mais do que o indispensável
para sua manutenção, para a conservação da sua força de trabalho1079. Com o desenvolvimento
do capitalismo até o ponto de se tornar espetáculo, quando “todo o trabalho vendido de uma
sociedade se torna globalmente a mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir”1080, ou seja,
quando as forças produtivas – que operam como um conjunto – conseguiram alienar por
1070DEBORD, SdE, § 45.1071MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 48.1072DEBORD, op. cit., § 38.1073CALVINO, “Duas histórias nas quais se procura e se perde”. In: O castelo dos destinos cruzados (A taverna
dos destinos cruzados), p. 121.1074DEBORD, op. cit., § 39.1075Ibidem, § 39.1076MARX, O capital, Livro III, capítulo XIV.1077DEBORD, op. cit., § 44.1078Ibidem, § 41.1079Ibidem, § 43.1080Ibidem, § 42. Grifo do autor.
132
completo os produtores da sua força de trabalho, a qual, estrangeira, deve retornar
fragmentada, em forma de produtos, para o indivíduo fragmentado1081; nesse ponto a
economia política já não dá mais conta de lidar com essa sociedade dividida em uma miríade
de pseudomundos autônomos1082 e necessita se especializar, de forma que “se estilhaça em
sociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia, etc., e controla a auto-regulação de todos os
níveis do processo”1083. Neste estágio, o proletário passa a ter uma obrigação extra para com o
sistema, que é não apenas o de produzir, como também o de consumir. A partir de então
crescem as preocupações com seu bem-estar por parte do Estado e por parte das organizações.
É o “humanismo da mercadoria”, encarregado dos lazeres e da humanidade do trabalhador, de
prestar atenção àquilo que ele precisa para ser mais feliz e produtivo – sempre
individualizado, atomizado. Trata-se do desenvolvimento do mito do indivíduo sem peias, “a
democratização da concepção barroca do príncipe despótico”1084, para além do chefe da
empresa: como consumidor, qualquer um é rei. Concomitantemente a esse cuidado quase
maternal, como se o trabalhador fosse incapaz se divertir por si próprio – e ele acaba mesmo
se tornando dependente –, ele passa, conforme Debord, a ser tratado, enquanto consumidor,
como adulto respeitável1085, tratamento que ele não encontra na outra ponta do sistema que
sustenta. De ponta a ponta, entretanto, o que une esse indivíduo fragmentado pela produção e
pelo consumo é o caráter alienado de todas as suas ações: no espetáculo, “'a negação total do
homem' assumiu a totalidade da existência humana”1086. E é preciso que assim seja: uma
primeira função das ciências particulares é não permitir o dar-se conta de que o atual
desenvolvimento das forças produtivas torna prescindível o trabalho humano reificado, e que
quem dele verdadeiramente necessita é o sistema capitalista.
Com o desenvolvimento da automação e de outras formas de aumento da
produtividade, para manter o tempo de trabalho social necessário na escala da sociedade o
sistema criou uma gama de empregos supérfluos no setor terciário, trabalhos de suporte para
distribuição e promoção das mercadorias atuais. A necessidade desse trabalho, conforme
Debord, “decorre da própria artificialidade das necessidades relacionadas a tais
mercadorias”1087. E tão artificial quanto a necessidade dessas mercadorias é a necessidade dos
1081DEBORD, SdE, § 42.1082Ibidem, § 2.1083Ibidem, § 42.1084MUMFORD, A cidade na história, p. 485.1085DEBORD, op. cit., § 43.1086Idem, ibidem.1087Ibidem, § 45.
133
empregos relacionados a elas. Se não criam mais-valia1088, esses empregos no setor terciário
auxiliam na circulação da mercadoria e no processo de reprodução do capital, que necessita de
“funções improdutivas mas necessárias”1089. Neste caso, “quanto mais o tempo de circulação
for próximo de zero, tanto mais funciona o capital, maior sua produtividade e
autovalorização”1090, uma vez que o tempo de circulação limita o tempo de produção, seu
processo de valorização: para o capital, o ideal é que tudo seja para agora. Porém, se o
trabalho como mercadoria é o único lugar de origem da mercadoria1091, e esse trabalho se
contabiliza em horas dispendidas de trabalho alienado em favor do sistema, o sistema deve
fazer os homens trabalharem, por mais que não seja necessário. O sistema busca modos de
contornar o desemprego tecnológico, que Keynes, em texto de 1930, identifica como “um
desemprego causado pela nossa descoberta de meios para economizar o emprego do trabalho,
a um ritmo maior do que aquele pelo qual conseguimos encontrar novas utilizações para a
força de trabalho”1092. Ora, se as máquinas são capazes de fazer boa parte do serviço, utilizar a
força de trabalho para quê? Neste mesmo texto, empolgado pelas conquistas da ciência e dos
juros compostos, Keynes acreditava que em meados do século XXI a jornada de trabalho
estaria reduzida a quinze horas semanais, simplesmente porque os homens, forjados pela
moralidade do trabalho, precisariam “fazer algum trabalho para ter satisfação”1093, sendo que
esse trabalho é necessariamente identificado com o trabalho alienado. O grande equívoco do
economista nesse exercício de futurologia talvez tenha ocorrido por não ter se dado conta de
que o mundo transformado em mundo da mercadoria1094 se torna um mundo natural, com leis
absolutas, para além dos desígnios humanos e alheias aos desejos dos homens, embora sejam
feitas a partir da utilização da força de trabalho humana, que se aliena em uma
pseudonatureza que exige que o homem prossiga com sua labuta infinitamente. Mumford
identifica traços originários dessa tendência desenvolvida pela mercadoria na mudança dos
costumes da aldeia para cidade. Para o estadunidense, a “criação artificial de escassez em
meio à crescente abundância natural foi um dos primeiros triunfos característicos da nova
economia da exploração civilizada”1095. A rejeição a essa lei da pseudonatureza implica em
risco de morte – segui-la é, portanto, uma questão de sobrevivência: “todos sabem que devem
1088MARX, O Capital, livro II, p. 97. 1089Idem, ibidem.1090Ibidem, p. 91.1091DEBORD, SdE, § 45. Grifo do autor.1092KEYNES, “As possibilidades econômicas de nossos netos” p. 154.1093Ibidem, p. 156.1094DEBORD. op. cit., § 40.1095MUMFORD, A cidade na história, p. 45.
134
submeter-se a ela ou morrer”1096. Para Kurz, “a forma de reprodução social da mercadoria
torna-se uma 'segunda natureza', cuja necessidade apresenta-se aos indivíduos igualmente
insensível e exigente como a da 'primeira natureza', apesar de sua origem puramente
social”1097. O moderno retomando o mais arcaico1098. É o que Debord chama de sobrevivência
ampliada1099: quando a questão primeira da sobrevivência, posta sob a forma assalariada, é
resolvida de maneira a retornar sempre, e cada vez num grau superior1100, sem que os homens
estejam liberados da antiga penúria – porém sem o uso da chantagem reles de comer e
morar1101. Ou seja, contrariamente ao desenrolar natural ansiado por Keynes – que não estava
de todo equivocado no seu vislumbrar, antes na sua crença de que o “pessimismo dos
revolucionários” estaria errado ao crer que não há salvação a não por ser “violentas
transformações”1102 –, o desenvolvimento das forças produtivas deixadas sob as atuais formas
de exploração não liberaram os homens para se desfazerem “de todo tipo de costumes sociais
e práticas econômicas que influem na distribuição da riqueza e dos prêmios e castigos
econômicos, por mais repugnantes e injustos que possam parecer em si, pelo fato de serem
tremendamente úteis para promover a acumulação do capital”1103. O espetáculo se aproveitaria
do que Debord identificou como uma constante da economia capitalista, “a baixa tendencial
do valor de uso”1104, para desenvolver uma nova forma de privação1105, que consiste na
fabricação ininterrupta de pseudonecessidades impostas pelo consumo. Isto é, quando a
“satisfação que a mercadoria abundante já não pode dar no uso começa a ser procurada no
reconhecimento de seu valor como mercadoria”1106: o uso da mercadoria bastando por si,
bastando a si1107 – não apenas invertendo, como anulando a dialética do duplo valor da
mercadoria, exposta por Marx em Para a crítica da economia política. Tais
pseudonecessidades, por mais que sejam supridas pelo consumo, implicam em uma
insatisfação que prossegue em constante aumento, infinitamente, como a acumulação no
espetáculo1108, porque a satisfação oferecida “não pára de conter em si a privação”1109 para
1096DEBORD, SdE, § 47.1097KURZ, O colapso da modernização, p. 25.1098DEBORD. op. cit., § 23.1099Ibidem,§ 40.1100Idem, ibidem.1101Ibidem, § 47.1102KEYNES, “As possibilidades econômicas de nossos netos”, p. 151.1103KEYNES, op. cit., p. 157.1104DEBORD. op. cit., § 45. Grifo do autor.1105Ibidem, § 47.1106Ibidem, § 67.1107Idem, ibidem.1108Ibidem, § 14.1109Ibidem, § 44. Grifo do autor.
135
aquilo que promete sanar – mostra de que são criadas para, na verdade, atender às
necessidades de manutenção do reino da mercadoria1110, em substituição às necessidades
humanas, surgidas das relações livres entre as pessoas. Assim, a riqueza ilusória de que o
trabalhador corre atrás é uma ilusão que disfarça a penúria da qual ele realmente foge: “o
consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real,
e o espetáculo é sua manifestação geral”1111.
A versão mais humanizada e cativante dessa ilusão se dá na figura da vedete, “a
representação espetacular do homem vivo”1112, representação viva do valor de troca, que
personifica e difunde a “especialização do vivido aparente”, o ideal de uma vida aparente e
sem profundidade, livre para agir globalmente, “que deve compensar o estilhaçamento das
especializações de fato vividas”1113. Pode ser vista como a encarnação da corte barroca
incorporada ao ideal democrático e “pervertido sob o capitalismo, num esforço de popularizar
a imagem da vida galante como a desejável consumação da existência humana e a retribuição
final do 'sucesso': sufocante luxúria, exagerado dispêndio, extravagante desperdício, insensato
gosto pelas novidades e sensações, tudo isso organizado num carnaval de trivialidades, com o
único objetivo de manter em funcionamento uma economia em expansão”1114. Ela concentra
em si toda a trivialidade da mercadoria “ao concentrar em si a imagem de um papel
possível”1115, papel este aparentemente desvinculado da alienação do trabalho social, ou acima
dela. É possível encará-la como uma tentativa de retomar a aura perdida com a modernidade,
transferindo-a da obra-de-arte para a figura do artista, num processo de estetização da vida1116
(numa estetização política, se se encarar a vida em sociedade como imanentemente política).
A vedete pode se apresentar como pseudovedete do poder governamental – no caso da
pseudovedete do espetacular concentrado, ela soa antes como o ideal que a vedete do
espetacular difuso deseja alcançar –, ou como “vedete do consumo que se submete a
plebiscito como pseudopoder sobre o vivido”1117. No espetacular avançado, cada vedete existe
para representar um tipo variado de estilo de vida e de compreensão de sociedade1118, pronta
para ser seguida pelos demais indivíduos, sem o mesmo acesso que ela à totalidade do
consumo, e sem a mesma possibilidade, portanto, de acesso à aparente felicidade nesse
1110DEBORD, Sde, § 51.1111Ibidem, § 47.1112Ibidem, § 60.1113Idem, ibidem.1114MUMFORD. A cidade na história, p 409.1115DEBORD. op. cit., § 60.1116BENJAMIN. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 1961117DEBORD. op. cit., § 60.1118Idem, ibidem.
136
consumo1119. Porém, as vedetes não são nem globais nem variadas1120, elas apenas “encarnam
o resultado inacessível do trabalho social, imitando subprodutos desse trabalho que são
magicamente transferidos acima dele como sua finalidade: o poder e as férias”1121. Ao surgir
no espetáculo como modelo de identificação, a vedete renuncia “a toda qualidade autônoma
para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas”1122. Como o ator
Gotanda, no romance Dance dance dance, de Haruki Murakami, quando fala da sua vida
parecer compor um quadro: “mas, pensando bem, sinto que na verdade não fiz escolhas.
Quando acordo no meio da noite e penso sobre isso, sinto um grande medo. Onde estará o ser
chamado eu? Onde estará a minha verdadeira essência? O que fiz até agora foi apenas encenar
cada papel que me davam. Eu nunca fiz escolhas”1123.
E seja com vedetes, seja com estilos de vida, seja com objetos, “a falsa escolha em
meio à abundância espetacular”1124 gera um ambiente de pseudoconflitos espetaculares, “luta
de qualidades fantasmáticas destinadas a açular a adesão à banalidade quantitativa”1125, nos
quais renascem arcaísmos que transfiguram em “superioridade ontológica fantástica a
vulgaridade dos lugares hierárquicos no consumo”1126. Um processo que o espetáculo
desenvolve desde o berço, com o treinamento de crianças sobre o consumo adulto, acerca de
questões que versam sobre a diferenciação marginal entre produtos equivalentes – Cadillacs e
Lincolns, por exemplo –, onde “o que importa (...) é a capacidade de desdenhar
continuamente os gostos dos outros”, sem que com isso o sujeito se torne significativamente
diferente desses mesmos outros: “foi sempre verdade, nas classes sociais dominadas pela
moda, que, para escapar ao perigo de ser deixado para trás por uma guinada da moda, é
necessária a habilidade para adotar facilmente as novas modas; para a pessoa não correr o
risco de uma condenação por ser diferente dos 'outros', cumpre que possa ser diferente – em
aparência, conversa e modo – de si mesma, tal como ela era no dia anterior”1127. Essa disputa é
visível, por exemplo, nos subúrbios das grandes cidades, região de “multidão de casas
uniformes, identificáveis, alinhadas de maneira inflexível, a distâncias uniformes, em estradas
uniformes, num deserto comunal desprovido de árvores, habitado por pessoas da mesma
classe, mesma renda, mesmo grupo de idade, assistindo aos mesmos programas de televisão,
1119DEBORD, SdE, § 61.1120Ibidem, § 60.1121Idem, ibidem. Grifo do autor.1122Ibidem, § 61.1123MURAKAMI. Dance, dance, dance, pp. 185-186.1124DEBORD, op. cit., § 62.1125Idem, ibidem.1126Idem, ibidem.1127RIESMAN, A multidão solitária, p. 139.
137
comendo os mesmos alimentos pré-fabricados e sem gosto, guardados nas mesmas geladeiras,
conformando-se no aspecto externo como no interno, a um modelo comum, manufaturado na
metrópole”1128, em que se desenvolve uma vida marcada por “um ameno ritual de gastos
competitivos”1129: quem tem mais, quem possui o produto equivalente de preço mais elevado.
Tais pseudoconflitos, entretanto, não se dão apenas entre vizinhos abastados. Pode-se ver
disputas e rivalidades entre “comunidades”, bairros, cidades, regiões. Nada de novo, o
moderno que retoma o mais arcaico: “Roma foi o grande moinho de salsichas que
transformou outras culturas, em toda a sua variedade de forma e conteúdo, em seus próprios
elos uniformes. Onde os romanos deixaram certa medida de liberdade municipal, não se
destinava ela a promover a variedade, mas manter uma desconfiança e uma inveja de longa
data entre cidades vizinhas, para garantir, graças a sua própria divisão, o governo não dividido
de Roma”1130. Pode-se ver o mesmo também dentro das próprias casas: no caso da sociedade
contemporânea, o primeiro desses conflitos entre papéis ilusórios é a oposição espetacular
entre juventude e adultos: “são as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se
substituem sozinhas”1131, os indivíduos, jovens ou velhos, surgem apenas para representar o
papel que tais coisas deles exigem nas encenações de época. A possibilidade de unir
harmonicamente a aceitação dócil do que existe e a revolta puramente espetacular “mostra
que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância
econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento dessa matéria-prima”1132.
Esses pseudoconflitos, contudo, não deixam de ser reais: “cada mercadoria
específica luta por si mesma” e pretende se impor sobre todas as outras, em todas as partes,
como se fosse única; e o espetáculo é o canto que exalta não “os homens e suas armas, mas as
mercadorias e suas paixões”1133; “assim, por uma astúcia da razão mercantil, o que é
particular da mercadoria gasta-se no combate, ao passo que a forma-mercadoria caminha para
sua realização absoluta”1134 e “é nessa luta que cega que cada mercadoria, ao seguir sua
paixão, realiza de fato na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria,
que também é o devir-mercadoria do mundo”1135.
Porque o canto do espetáculo, canto humano de que ele se apropriou para louvar a
1128MUMFORD, A cidade na história, p. 525.1129Ibidem, p. 533.1130Ibidem, p. 230.1131DEBORD, SdE, § 62. Grifo do autor.1132Ibidem, § 59.1133Ibidem, § 66.1134Idem, ibidem. Grifo do autor.1135Idem, ibidem.
138
mercadoria, não foi a única coisa tomada: ele também tomou o compasso desse canto. Não só
a linguagem se vê sob o jugo da linguagem espetacular como também o ritmo: o tempo é
dominado pelo tempo espetacular. Tal qual o processo utilizado com a linguagem, o tempo
também é apresentado à sociedade como sendo algo natural, um desenrolar causal, sem
alternativa de escolha, pois haveria uma única temporalidade possível. Uma vez senhora da
linguagem e do tempo, a mercadoria penetra a constituição da natureza humana (natureza que
não é a priori nem estática); aliada à expropriação da sua força, ela domina a construção do
mundo e da sua história. Dentro da apresentação feita por Debord, pode-se dizer que a
apropriação do tempo humano nada mais é que a conseqüência da apropriação da linguagem
pela mercadoria, uma vez que a história humana é constituída a partir da troca entre os
indivíduos, cabendo também ao tempo, substrato último da história, esse mesmo caráter
relacional. Se com a linguagem a mercadoria domina o homem a partir do momento em que
impede o reconhecimento do indivíduo por seus pares por meio do encontro1136 e de uma
comunicação prática feita a partir de uma linguagem extraída da produção da história1137, não
resta aos homens nada mais que encarar o tempo também de maneira exteriorizada, como um
fluxo que jorra desde fora, num ritmo constante e alheio – em uma palavra, reificado.
Dentro da concepção debordiana, pode-se encarar a dominação humana pela
mercadoria por intermédio da apropriação do tempo como uma marca a mais na reificação da
sociedade capitalista. Fortemente influenciada por Hegel e pela moderna experiência poética
francesa1138, o francês vê identidade entre homem e tempo: este seria o meio de
desenvolvimento do humano, a alienação necessária, “em que o sujeito se realiza ao se
perder, tornando-se outro para tornar-se a verdade de si mesmo”1139. Porém, para o sujeito
poder se realizar e ganhar autonomia para “tornar-se verdade de si mesmo”, não basta
somente ter direito ao tempo, antes ter direito ao uso qualitativo dele, o único que permite tal
desenvolvimento. E é a partir da relação homem-tempo, nessa relação de identidade e
alienação, que se abre a possibilidade para o homem de se inserir na história como sujeito
ativo1140 – o que não acontece necessariamente de maneira consciente. O caminho até essa
consciência é uma rota de formação e apropriação do homem da sua própria natureza
humana1141, que é também a apropriação do desenrolar de todo o universo1142. Apropriação que
1136DEBORD, SdE, § 217.1137Ibidem, § 133.1138AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 52.1139DEBORD, op. cit., § 161.1140Ibidem, § 163.1141Ibidem, § 126.1142Ibidem, § 125.
139
não é um mero ato de paulatinamente obter o controle da natureza, mas de transformar-se
concomitantemente a isso: “antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a
Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu
metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força
natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e
pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua
própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”1143. Ou seja, utilizando-se
da sua natureza para se distanciar do meramente biológico, o homem se constitui em mais do
que um ser na história (na história natural, inclusive), mas em um ser histórico: “a história
sempre existiu, mas nem sempre sob a forma histórica”1144. E um ponto marcante desse
apropriar-se e transformar a natureza está ligado à forma de produção, cujo “desenvolvimento
das forças produtivas foi a história real inconsciente”1145 dos grupos humanos na sua relação
com o meio, com os conseqüentes reflexos que isso acarreta à sociedade, à sociabilidade e aos
homens. Daí a necessidade de reconstrução de uma genealogia desse apropriar-se do tempo
pela sociedade e pelos indivíduos, pois “a temporalização do homem, tal como se efetua pela
mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo”1146, ou seja, o mergulho do
homem no tempo, quando ele sai de um ponto atemporal que não conhece mais que o agora, o
presente, quando efetuado pela mediação de uma sociedade, pelo contato direto, pelo diálogo
com outras pessoas, é equivalente à humanização do tempo, visto que este passa a ter sua
passagem marcada por eventos humanos, históricos ou mitológicos, ficando, dessa forma,
vinculado não apenas aos movimentos dos astros, mas também aos dos homens. O que o
espetáculo atinge é justo essa mediação1147, influenciando essa relação recíproca entre
temporalização e humanização.
No capítulo V d'A sociedade do espetáculo, Debord faz uma breve história do
tempo, visando levantar elementos arcaicos que poderiam ter sido superados, mas foram
recuperados pelo espetáculo – e com isso apontar para possibilidades de superação dessa
organização social do tempo. De acordo com o autor, por muito tempo, a despeito dos
desenvolvimentos empreendidos nas técnicas de produção, as sociedades seguiram vivendo
conforme o ritmo das estações do ano, em uma organização cíclica do tempo, isso para a base
1143MARX, O capital, Livro I, Tomo I, p. 149.1144DEBORD, SdE, § 125.1145Ibidem, § 40. Grifo do autor.1146Ibidem, § 125.1147Ibidem, § 4.
140
da sociedade, alheia ao movimento histórico de que as classes dominantes, com o desenrolar
dos séculos, passaram a ter consciência e a exercitá-lo1148. Com as revoluções burguesa e
industrial, no início da Idade Moderna, a sociedade toda teve a possibilidade, enfim, tanto de
se ver livre do jugo do tempo natural-terrestre quanto de estar ciente do movimento histórico
dos homens1149. Na sociedade do espetáculo poderia ser notada a retomada do que havia nas
sociedades mais antigas – revivendo muitos dos aspectos mais arcaicos da relação do homem
com o tempo – pelo moderno aparato técnico desenvolvido pela indústria1150, de forma a
tornar novamente oculto o movimento histórico, o momento histórico, a história real das
forças produtivas, o uso do tempo que esse momento permite. “'Houve história, mas já não
há'"1151: a burguesia congelou a história real desde que tomou o poder.
Na visão de Debord, a relação entre homem e tempo nunca foi harmônica no
curso da história: reiteradamente houve resistência em admitir a presença do tempo, da sua
passagem, da existência da história – desde quando os homens e as sociedades começaram a
dar-se conta dela. Uma sociedade que domina uma linguagem e uma técnica já seria produto
de sua própria história, e a consciência do tempo se resumiria ao presente: a sociedade presa a
um presente perpétuo, em que todo o conhecimento – limitado à memória dos mais antigos –
é conduzido pela lembrança dos que estão vivos, dos que estão presentes1152. “Nem a morte
nem a procriação são entendidas como lei do tempo”, que permanece imóvel, como um
espaço fechado1153: essa sociedade é muito restrita na sua abrangência da compreensão do
mundo e da ação sobre ele. A percepção do tempo como um presente perpétuo e imóvel nessa
sociedade não implica que ela não aja sobre seu meio, que seja estacionária, apenas que não
se dá conta do seu agir e da sua história.
Nas sociedades mais complexas, quando tomam consciência do tempo e de sua
passagem, sua reação consiste, antes, na negação desse processo, pois o que vêem no tempo é
o que volta, não o que passa: trata-se do modelo do tempo cíclico, o qual é baseado na
experiência imediata da natureza – o modelo de organização temporal das sociedades ditas
estáticas1154. Dentre os povos nômades, o tempo cíclico é dominante, pois as condições
previamente vividas por esses povos retornam reiteradamente, a cada momento de sua
passagem pelo seu trajeto. Debord, seguindo Hegel, aponta que “'a errância dos nômades é
1148DEBORD, SdE, § 128.1149Ibidem, § 141.1150Ibidem, § 23.1151Ibidem, § 143.1152Ibidem, § 126.1153Idem, ibidem.1154Idem, ibidem.
141
apenas formal, porque está limitada a espaços uniformes'”1155. Nesse espaço limitado em que
as condições se repetem, os povos nômades acabam por percorrer o tempo no seu vagar pelo
espaço. O limite do espaço e o limite do tempo se entrecruzam no reencontro periódico de
determinadas condições em determinadas paisagens, servindo cada termo de limite ao
outro1156, porém, já dando aos homens uma maior consciência do espaço, do tempo e do
mundo que percorrem – limitados, mas não mais fechados como no início –, cujo intervalo
necessário para percorrer essas fronteiras dá a medida desse tempo – não mais pontual, e que
por isso pode retornar. Ao se fixar em um local, “o retorno temporal a lugares semelhantes
passa a ser o puro retorno do tempo em um mesmo lugar”1157: agora é o tempo que retorna à
sociedade, e não mais a sociedade que caminha junto ao tempo. O tempo ganha autonomia
frente ao espaço e ao percorrer dos homens, ficando vinculado apenas aos ciclos da natureza.
Aquele espaço que se repetia junto a certo intervalo de tempo passa a ser um intervalo de
tempo que exige a repetição de uma série de gestos num dado espaço: “a passagem do
nomadismo pastoral à agricultura sedentária é o fim da liberdade preguiçosa e sem conteúdo,
o início do labor”1158. A dominação da sociedade pelo ritmo das estações, ditada pelo modo de
produção agrária, “é a base do tempo cíclico plenamente constituído”, em que a eternidade lhe
é interior1159: o retorno do mesmo é a garantia de um tempo que passa e que volta, num
perpétuo recomeçar que nunca avança além do que já foi – nem vai além deste mundo. Nesse
contexto, emerge a figura do mito, construção unitária do pensamento homologadora de uma
ordem social já dada, que a partir de então fica justificada dentro da disposição de uma ordem
cósmica, dando a toda essa sociedade o caráter unitário1160. No afã de manter certo
ordenamento, um equilíbrio constante na “sua oposição ao ambiente natural e humano, e suas
oposições internas”1161, certas sociedades tentam desacelerar ao máximo sua história – as
chamadas “sociedades frias”1162 –, de modo a garantir a perpetuação do tempo cíclico “em
estado puro”, em que ele se apresenta como um tempo sem conflito1163, de harmonia
aparentemente perfeita. Porém, já nessa infância do tempo, o conflito estaria instalado1164, e o
medo posto para aqueles que vivem em tais sociedades, com a ruptura desse equilíbrio e
1155DEBORD, SdE, § 127.1156ARANTES, Hegel – a ordem do tempo, capítulo 1.1157DEBORD, op. cit., § 127.1158Idem, ibidem.1159Idem, ibidem.1160Idem, ibidem.1161Ibidem, § 130.1162Idem, ibidem.1163Ibidem, § 129.1164Idem, ibidem.
142
conseqüente irrupção do conflito, não é o de cair na história que suga e perturba, e sim o de
“recair na animalidade sem forma”1165. Daí o conformismo absoluto das práticas sociais, a
estruturação definitiva da enorme gama de instituições existente para garantir essa paralisia da
história: “aqui, para permanecerem humanos, os homens têm de continuar os mesmos”1166. As
estruturas que deram origem a essas instituições, contudo, não foram dadas a priori, são
construções tão históricas quanto as próprias instituições criadas para barrar a história. E uma
vez eclodido o conflito que o tempo guarda em si com a emergência do tempo histórico – por
mais que tenha sido evitado como fator alienígena e indesejado –, ele traz de volta “a
inquietação negativa do homem, que estivera na origem de todo o desenvolvimento que
adormecera”1167. Esse tempo histórico, todavia, não vem para todos. Na base da vida social, a
organização coletiva do tempo segue o modelo estático. São os senhores de uma sociedade
dividida em classes que podem, a partir do modelo de organização do trabalho social imposto
para toda a sociedade, possuir “só para si o tempo irreversível do ser vivo”1168. Essa
organização do trabalho é também a organização do tempo, a apropriação da mais-valia do
trabalho é acompanhada da apropriação da mais-valia temporal, e essas mais-valias se
concentram no círculo do poder, que se destaca da base da sociedade – cujas massas
camponesas seguirão conhecendo apenas o tempo cíclico1169. Esse tempo de superfície,
comenta Debord, é o tempo da aventura e da guerra, no qual os senhores da sociedade cíclica
gozam dos acontecimentos vividos enquanto realizam sua história pessoal – que faz brotar
novamente a identidade negativa homem-tempo –, “e é também o tempo que aparece no
choque das comunidades estrangeiras, no desarranjo da ordem imutável da sociedade”1170, e
que, uma vez desarranjada pela história, torna irreversível esse movimento do tempo que não
mais retorna.
O processo que se aprofunda com o nascimento do poder político é o de
distanciamento do tempo dos ciclos naturais: “a partir de então a sucessão das gerações
escapa da esfera do puro movimento cíclico natural para tornar-se acontecimento orientado,
sucessão de poderes”1171. Na superfície da sociedade já não são mais as estações ou os anos
que estabelecem os ciclos, mas as dinastias: são elas a primeira forma de medir o tempo
1165DEBORD, SdE, § 130.1166Ibidem, § 130.1167Ibidem, § 128.1168Idem, ibidem.1169Ibidem, § 132.1170Ibidem, § 128.1171Ibidem, § 131.
143
irreversível1172. O estabelecimento dessa nova forma de relação com o tempo, marcada pela
nova forma de relação com a história, e estabelecida concomitante ao surgimento das cidades
e do poder político, precisou de uma nova ferramenta para poder garantir sua hegemonia, e a
encontrou na escrita1173. O desenvolvimento dessa nova linguagem, que prescinde da
mediação direta entre as consciências, teria ocorrido num momento em que o poder separado
se viu independente do seu papel de mediação com a sociedade1174. Sua função, inicialmente,
é administrativa: uma memória impessoal que garante a independência geral do poder
separado com relação à sociedade que domina1175: “nas transações diárias, a mesma
necessidade de anotações e sinais permanentes era ainda mais evidente [que para a
transmissão da cultura]: para operar à distância, por meio de agentes e prepostos, para dar
ordens e fazer contratos, eram necessários alguns artifícios extrapessoais”1176. A novidade
inaugurada por essa linguagem é o aparecimento de “uma consciência que já não é sustentada
e transmitida na relação imediata dos vivos”1177, o que favorece não só a administração estatal,
como também deixa para a posteridade o sentido da história, por intermédio das cronologias.
Nesta perspectiva, “a crônica é a expressão do tempo irreversível do poder”1178 e o
instrumento que reforça a progressão desse tempo no sentido estabelecido. “Por meio de tais
documentos, os governantes da cidade viviam uma múltipla vida: primeiro na ação, depois em
monumentos e inscrições, e ainda outra vez no efeito dos acontecimentos documentados sobre
o espírito dos povos posteriores, fornecendo-lhes modelos para imitação, advertências de
perigo, incentivos de realização. Viver pelo documento e para o documento tornou-se um dos
grandes estigmas da existência urbana: na verdade, a vida tal como era registrada [...] muitas
vezes tendia a se tornar mais importante que a vida tal como era vivida”1179. Todavia, a
história dos senhores, que se desenrola na superfície da sociedade sob o tempo irreversível,
acaba ganhando significado apenas na medida em que se vincula à base social que sustenta os
possuidores da história. Nas sociedades despóticas, nos impérios do Oriente1180, sua história se
resume, para nós, conforme Debord, à história das religiões: a história da superfície é a
história de como os detentores da propriedade privada da história, sob a proteção do mito,
asseguravam miticamente o tempo cíclico para a base da sociedade, quando eles próprios
1172DEBORD, SdE, § 131.1173MUMFORD, A cidade na história, p. 112.1174DEBORD, op. cit., § 131.1175Idem, ibidem.1176MUMFORD, op. cit., p. 112.1177DEBORD, op. cit., § 131.1178Ibidem, § 132.1179MUMFORD, op. cit., p. 113.1180DEBORD, op. cit., § 132.
144
conseguiam com isso relativa libertação: pela posse ilusória da história, com o rearranjo
imaginário do passado1181. Essa “seca cronologia sem explicação do poder divinizado”, tida
como a “execução terrestre dos mandamentos divinos”1182 só pôde ser superada quando a
participação na história real passou a ser vivida por grupos maiores, tornando-se assim
história consciente.
“Participação na história real” significa não somente sair do tempo cíclico e ser
arrastado pelo tempo irreversível, tendo consciência de que o tempo passa, mas também
experimentar ativamente esse tempo, experimentar “a riqueza qualitativa dos acontecimentos
como sua atividade” e da sua época1183, praticada em conjunto com aqueles outros que se
reconhecem como detentores de um “presente singular”. A comunicação resultante dessa
atividade prática inserida em um tempo irreversível exige uma nova linguagem: “a linguagem
geral da comunicação histórica”1184: sujeitos ativos da história, eles se descobrem sujeitos à
ação do tempo irreversível: ao memorável e à ameaça do esquecimento; “Heródoto de
Halicarnasso aqui apresenta os resultados de sua pesquisa, a fim de que o tempo não apague
os trabalhos dos homens...”1185.
É na Grécia que surge, com a democracia dos senhores da sociedade, o momento
em que se compreende e se discute o poder e sua mudança, o que implica compreender e
discutir sobre a história1186. É nesse período que Debord vai em busca da sua “referência
normativa da crítica do presente”1187, isto é, a da linguagem comum, da linguagem prática da
comunicação histórica – segundo Aquino. Ainda conforme este, “Debord concebe o uso
histórico da linguagem pelos senhores gregos, como linguagem dialogam e decisória
(portanto, prática), precisamente nos termos de uma 'linguagem geral da comunicação
histórica'. A consciência histórica, como 'história consciente' da passagem do tempo, significa
para ele – considerando a experiência democrática dos senhores gregos – a assunção prática
de sua própria época enquanto sua atividade, assunção que é indissociável da participação
dialogal, da linguagem compartilhada e disputada que quer, e pode, não apenas se expressar,
mas decidir e realizar. É essa linguagem dialogal que se faz 'comunicação histórica' no duplo
e inseparável sentido de uma possessão prática da sua própria época, enquanto jogo e gozo da
1181DEBORD, SdE, § 132. Grifo do autor.1182Ibidem, § 133.1183Idem, ibidem.1184Idem, ibidem.1185HERÓDOTO apud DEBORD, SdE, § 133.1186DEBORD, op. cit., § 134.1187AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 41.
145
passagem do tempo, uso da destruição que ele provoca e da criação que ele possibilita”1188.
As comunidades gregas, contudo, se por um lado democratizaram o poder a um número maior
de pessoas, saindo dos salões palacianos, por outro não conseguiram superar as cisões na sua
sociedade: a despeito da viva vida social, a produção seguia estática na classe servil, de modo
que “só vive quem não trabalha”1189. Entre as cidades-estado, esse mesmo princípio de
separação impediu sua união não apenas para enfrentar a invasão, como para a unificação dos
diversos calendários: foi esta Grécia que sonhara a história universal. Nela, “o tempo histórico
tornou-se consciente, mas ainda não consciente de si próprio”1190. A queda das suas condições
de existência, que permitiram o florescer grego, teria implicado na “regressão do pensamento
histórico ocidental”, não a ponto de reconstituir as antigas organizações míticas. No embate
entre os povos do mediterrâneo, na ascensão e queda do Estado Romano, surgiram as
religiões monoteístas semi-históricas, que em um novo rearranjo entre mito e história1191 “se
tornavam fatores fundamentais da nova consciência do tempo e da nova armadura do poder
separado”1192.
Fundadas numa época ainda dependente do tempo cíclico na produção, mas
profundamente marcado pelo tempo irreversível dos enfrentamentos entre os povos, que já
não eram mais acontecimentos restritos à superfície da sociedade, as religiões procedentes do
judaísmo trataram de democratizar o tempo irreversível a todos. Contudo, o fizeram no
ilusório, ao orientarem esse tempo para um único acontecimento final: “o reino de Deus está
próximo”. Nascidas do solo da história, estabelecidas de um ponto de partida qualitativo – o
nascimento de Cristo, a fuga de Maomé –, as religiões semi-históricas negam a história ao
inverter o sentido do tempo, pondo-o em contagem regressiva para aceder ao outro mundo, o
mundo da verdade, da eternidade – que sai do tempo cíclico para se pôr “do outro lado do
tempo irreversível, como puro elemento pontual em que o tempo cíclico entrou e se
aboliu”1193. A eternidade aqui não é mais o tempo que não passa porque retorna, como a
eternidade no tempo cíclico; a eternidade é o tempo que ultrapassou o tempo que passa e por
isso deixou de passar. Como diz Bossuet, citado por Debord: “'por meio do tempo que passa,
entramos na eternidade que não passa'”1194. Na Idade Média européia, esse arranjo entre mito e
história construiu um mundo mítico inacabado – pois a perfeição não se encontrava mais
1188AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 53. Grifos do autor.1189DEBORD, SdE., § 134.1190Idem, ibidem.1191Ibidem, § 136.1192Ibidem, § 135.1193Ibidem, § 136. Grifo do autor.1194Ibidem, § 136.
146
dentro dele1195, como nas sociedades míticas arcaicas. Ainda assim, foi “o último mundo em
que a segurança do mito ainda equilibrava a história”1196. Entretanto, a própria história tratou
de corroer o tempo cíclico que servia de base ao pensamento mítico1197, tanto na base da
sociedade quanto na sua superfície. Na base, ao conceder a todos certa temporalidade
irreversível, na sucessão das idades da vida, e na consideração da vida como uma viagem,
como a passagem por um mundo no qual o sentido está alhures: “o peregrino é o homem que
sai desse tempo cíclico para ser efetivamente o viajante que cada um de nós prenuncia”1198. Na
superfície, nas esferas do poder, que é onde a história pessoal pode se realizar, o tempo
irreversível é partilhado com base na confiança armada, em um mundo nascido da “'estrutura
organizacional do exército conquistador tal como se desenvolveu durante a conquista' com as
'forças produtivas encontradas no país conquistado' (A ideologia alemã)”, sob a linguagem
religiosa1199. Em meio a essa diversidade de vida histórica possível, o tempo irreversível da
burguesia conduzia inconscientemente a sociedade profunda1200, a burguesia se aproveitava da
“fragmentação feudal de poderes equilibrados”1201 para desenvolver seu poder econômico
autônomo1202 “na produção de mercadorias, na fundação e expansão de cidades, na descoberta
comercial da Terra – a experimentação que destrói para sempre toda a organização mítica do
cosmos”1203. Quando as Cruzadas, a grande empreitada histórica oficial do mundo feudal,
fracassaram, já havia uma nova organização do tempo e da história sendo germinada.
Até que a burguesia começasse de fato o processo de dominação total do tempo,
por intermédio das monarquias absolutistas e seu monopólio também sobre a vida
histórica1204, no intervalo entre a Idade Média e o assentamento dessa nova configuração
estatal na Europa, Debord identifica no florescimento do Renascimento – especialmente na
península itálica – mais do que a negação da ordem imediatamente anterior: mas o gozo da
passagem do tempo trazido pela posse da vida histórica que, inspirada na Antigüidade,
rompeu feliz com a eternidade1205. O Renascimento teria sido a consciência do quanto esse
tempo irreversível tem de fugidio e como todo o momento inscrito na história é arrastado com
esse tempo – sem retorno e sem eternidade. Isso tanto para os Estados – e a obra de
1195DEBORD, SdE, § 137.1196Ibidem, § 138.1197Ibidem, § 137.1198Idem, ibidem.1199Idem, ibidem.1200Idem, ibidem.1201Ibidem, § 87.1202Idem, ibidem.1203Ibidem, § 137.1204Ibidem, § 140.1205Ibidem, § 139.
147
Maquiavel poderia ser vista como um alerta sobre o tempo – quanto para os homens, como
canta Lourenzo de Médicis: “'como é bela a juventude – que passa tão depressa'”1206. E
deveras depressa passou. A vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas1207, foi
passageira, atropelada pelos Estados absolutistas e o tempo não do gozo e das festas, mas o do
trabalho1208. De acordo com Aquino, apesar do elogio às experiências democráticas nas
comunidades da Grécia clássica e da península itálica renascentista, elas não se constituem
“em quaisquer formas de modelos a partir dos quais ele faz a crítica do presente. Menos ainda
se constituem em modelos de 'comunidades' ligadas à tradição e às linguagens comuns
tradicionais: bem pelo contrário, são formas de saída da tradição e de experimentação da
história, contudo limitadas pelas próprias condições excepcionais e locais que as
possibilitaram, condições estas marcadas por uma essencial separação”1209. Haveria, ali,
possibilidades abertas e não concretizadas, por conta do domínio da concepção burguesa de
mundo.
A ascensão da burguesia, ainda que não como classe detentora do poder do
Estado, não foi a primeira vez que o tempo do trabalho se pôs como tempo predominante de
toda a sociedade. Entretanto, foi a primeira vez que esse tempo esteve liberado do tempo
cíclico e pôde se inserir no tempo irreversível, no tempo histórico: com a burguesia o trabalho
foi admitido como a força motriz das transformações históricas1210. Pela primeira vez na
história o trabalho foi considerado como um valor: um modo da burguesia, que se identificava
com esse trabalho, se auto-valorizar, enquanto desbancava privilégios que não fossem dele
oriundos. A vida social ficava restrita à pobreza ornamental da corte1211, sendo que, de acordo
com Mumford, “a rotina diária do príncipe e do cortesão era comparável à de um operário
numa linha de montagem de automóveis: todos os seus detalhes eram traçados e fixos, tanto
para o soberano como para o seu séquito (...). Ser 'visto', ser 'reconhecido', ser 'aceito' eram os
supremos deveres sociais, aliás, obras de toda uma existência (...). [Assim], como em tantos
outros setores da vida, a corte barroca antecipava, nesse passo, o ritual e a reação psíquica da
metrópole do século XX. Opressão semelhante; tédio semelhante; igual tentativa de buscar
refúgio nas 'distrações' da opressão tirânica, que se transformara em rotina, e da rotina, que se
tornara uma opressão insuportável”1212. Enquanto isso, a burguesia teria imposto à sociedade
1206DEBORD, SdE, § 139.1207Idem, ibidem.1208Ibidem, § 140.1209AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 57.1210DEBORD, op. cit., § 140.1211Idem, ibidem.1212MUMFORD, A cidade na história, pp. 408-409.
148
“a vitória do tempo profundamente histórico, porque é o tempo da produção econômica que
transforma a sociedade de modo permanente e absoluto”1213: “a indústria moderna nunca
encara nem trata a forma existente de um processo de produção como definitiva. Sua base
técnica é, por isso, revolucionária, enquanto a de todos os modos de produção anteriores era
essencialmente conservadora. Por meio da maquinaria, de processos químicos e de outros
métodos, ela revoluciona de forma contínua, com a base técnica da produção, as funções dos
trabalhadores e as combinações sociais do processo de produção. Com isso, ela revoluciona
de modo igualmente constante a divisão do trabalho no interior da sociedade e lança sem
cessar massas de capital e massas de trabalhadores de um ramo da produção para outro”1214.
“Tudo o que era absoluto torna-se histórico”1215. A preocupação com a produtividade, com o
progresso do trabalho, com a acumulação do capital, fez emergir uma nova lógica, tanto nas
relações de trabalho e produção, quanto na maneira de encarar a ocupação do tempo, pelos
indivíduos e por toda a sociedade, que a partir de então passa a ter outra base temporal1216 – a
ponto de anular as forças ligadas ao movimento da tradição de esboçarem um freio a esse
movimento1217 –, e vê alterada sobremaneira o sentido da história: deixa de aparecer como “o
movimento apenas dos indivíduos da classe dominante, escrita como história factual”1218, e
passa a ser compreendida como um movimento geral que arrasta toda uma época, sacrificando
os indivíduos1219. Finalmente se percebe, com a economia política, essa base que por tanto
tempo esteve inconsciente na história: o desenvolvimento das forças produtivas. Todavia, a
história profunda não chega à superfície1220, e deve permanecer inconsciente: a economia
mercantil a democratizou apenas como uma nova fatalidade indomável, para além do alcance,
da intervenção, do controle humano1221. Pois o triunfo completo do tempo irreversível que
veio com a burguesia, explica Debord, foi a metamorfose em tempo das coisas: o processo
que garantiu a libertação do trabalho dos ciclos da natureza foi o trabalho que produziu
objetos em série, conforme as leis da mercadoria1222. Para tal triunfo, o primeiro produto a ser
democratizado foi a própria história. A Revolução Francesa, com a tomada do poder pela
burguesia com o apoio do povo, e a inauguração de um novo calendário, marcando uma nova
1213DEBORD, SdE, § 141. Grifo do autor.1214MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 89.1215DEBORD, op. cit., § 73.1216Ibidem, § 140.1217Ibidem, § 141.1218Idem, ibidem.1219Idem, ibidem.1220Ibidem, § 142.1221Ibidem, § 141.1222Ibidem, § 142. Grifo do autor.
149
época, poderia ser a coroação dessa democratização. Quando a vontade real da sociedade da
mercadoria vestida à romana anteviu o risco da erupção da história inconsciente, satisfeita de
já haver conseguido o que necessitava para seguir progredindo, isto é, derrubar um estado
cuja arquitetura um dia fora útil, mas então já engessava seu pleno desenvolvimento,
impedindo a liberdade de comércio – ou, como dissera Marx, “de formas de desenvolvimento
essa relações [jurídicas] se transformam em seus grilhões”1223 –, e que a passividade que antes
ela abalara para derrubar o antigo reinado, novamente era necessária para ela reinar, não
hesitou em reatar com o cristianismo e com “seu culto do homem abstrato... o complemento
religioso mais conveniente (O capital)”1224 para seus propósitos. Esse acordo também se
expressou no tempo: a burguesia aceitou abdicar do seu calendário – que, como os das
religiões semi-históricas começa com um evento qualitativo –, “e seu tempo irreversível volta
a moldar-se na era cristã, cuja sucessão ele prossegue”1225, aguardando pelo dia do Juízo Final.
E enquanto os homens esperam, a mercadoria avança. O que resta da história democratizada,
por fim, é a história reificada: história do capital que “sustenta-se e multiplica-se nela [na
circulação], retorna aumentado dela e recomeça do mesmo ciclo sempre de novo”1226,
“história do movimento abstrato das coisas, que domina todo uso qualitativo da vida”1227.
Assim, Debord denuncia: se anteriormente o tempo cíclico sustentava uma parte
do tempo histórico vivido por indivíduos e grupos, agora o tempo irreversível da produção
tende a eliminar socialmente esse tempo vivido1228. Ou seja, “a burguesia mostrou e impôs à
sociedade um tempo histórico irreversível, mas lhe recusa o uso desse tempo”1229, ao negar
aos homens a possibilidade da vida histórica, restringindo a história à história econômica e ao
uso do tempo que ela impõe: qualquer outro emprego irreversível do tempo deve ser
rechaçado como ameaça1230. A essa história oficial – reificada –, tida como a única possível
pela classe dominante, deve-se atrelar seu destino como forma de garantir sua posição na
sociedade: daí a importância vital da manutenção de uma nova imobilidade na história;
“houve história, mas já não há”1231. Ao menos não como a de 1789. A história que agora existe
é a do desenvolvimento das forças produtivas, a do lançamento de novos produtos, da
abertura de mercados, da expansão do capitalismo – em que o expropriado não é mais “o
1223MARX, Para a crítica da economia política, p. 52.1224DEBORD, SdE, § 144.1225Idem, ibidem.1226MARX, O Capital, Livro I, Tomo I, p. 131.1227DEBORD, op. cit., § 142.1228Idem, ibidem.1229Ibidem, § 143. Grifo do autor.1230Idem, ibidem.1231Idem, ibidem.
150
trabalhador economicamente autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores”,
conseqüência da centralização dos capitais, uma das “leis imanentes da própria produção
capitalista”1232 –, da unificação, “do entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial”1233. Unificação dos mercados que é também a unificação mundial do tempo
irreversível da mercadoria, que reuniu o mundo inteiro para se desenvolver sob o mesmo
compasso, dando à história universal – outrora sonhada pela Grécia1234 – uma nova
realidade1235: em todo lugar é o mesmo “abandono da história que se erige sobre a base do
tempo histórico”1236, a mesma “recusa intra-histórica da história”1237 – tal qual as religiões
semi-históricas, de que por um instante a burguesia pensou em se livrar1238 –, porque por todo
mundo o tempo reinante é o mesmo tempo, indiferente às especificidades locais, indiferente
aos homens. É o tempo vazio e homogêneo, o tempo da produção, o tempo da mercadoria, o
tempo da ideologia, o tempo do espetáculo, que se afirma oficialmente como “o tempo geral
da sociedade”, quando na verdade se trata de “um mero tempo particular”, atendendo a
interesses particulares1239.
O tempo que se impôs com a produção em série de mercadorias é ele próprio uma
mercadoria: o tempo-mercadoria, uma acumulação infinita de intervalos equivalentes e
intercambiáveis1240, característica notada por Marx como fundamental do processo de
abstração do trabalho sob o sistema de produção de mercadorias, em que o trabalho é
objetivado na mercadoria como valor de troca, como uma medida de “tempo de trabalho
coagulado”1241, desprovida de qualquer qualidade, mero trabalho simples (sob uma potência
mais ou menos elevada) despendido em determinado intervalo de tempo1242. Esse tempo da
produção é “a abstração do tempo irreversível” e, quantificado, “todos os seus segmentos
devem provar pelo cronômetro sua mera igualdade”1243. Dentro dessa realidade de dominação
do tempo-mercadoria, assim como o trabalho medido pelo tempo “aparece não como trabalho
de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como
meros órgãos do trabalho”1244, o tempo não apenas deixa de ser o campo para o 1232MARX, O capital, Livro I, Tomo II, p. 293.1233Idem, Ibidem.1234DEBORD, SdE, § 134.1235Ibidem, § 145.1236Ibidem, § 158.1237Ibidem, § 145.1238Ibidem, § 144.1239Ibidem, § 146.1240Ibidem, § 147.1241MARX, Para a crítica da economia política, p. 59.1242Ibidem, p. 60.1243DEBORD, op. cit., § 147.1244MARX, Para a crítica da economia política, p. 60.
151
desenvolvimento humano, como inverte completamente as posições: “'o tempo é tudo, o
homem não é nada: no máximo, ele é a carcaça do tempo' (Miséria da filosofia)”. Em um
primeiro momento de dominação social desse tempo, o sistema precisou expropriar
violentamente o tempo dos produtores e aplicá-lo na produção, para a acumulação da mais-
valia temporal, que revertia, no fim, em mais-valia monetária1245. Dado certo estágio, já sob o
espetáculo desenvolvido1246, esse tempo da produção pôde voltar aos próprios produtores
expropriados – agora também consumidores – “sob o aspecto complementar de um tempo
consumível”1247, o qual eles são livres para usufruir1248 onde preferirem, assim como são livres
para decidir onde empregar seu tempo de trabalho – desde que trabalhem, desde que
consumam, ou seja, desde que esse tempo seja tempo-mercadoria. Como comenta Thompson,
“na sociedade capitalista madura, todo o tempo deve ser consumido, negociado, utilizado”1249,
“o tempo agora é moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta”1250. O tempo consumível, em
que o produtor do tempo-mercadoria é também o consumidor desse tempo, garante que todo
trabalho de uma sociedade se torne mercadoria total. Ele exige, porém, a permanente
manutenção desse ciclo1251 para não entrar em colapso: a produção do tempo-mercadoria
precisa que ele seja integralmente consumido pela sociedade: o tempo consumível retorna à
vida quotidiana como um tempo pseudocíclico1252.
O tempo pseudocíclico é a organização do tempo transformado pela indústria1253,
um tempo que se baseia na moderna produção de mercadorias, afim à linha de produção,
“recortado em fragmentos abstratos iguais”1254, em que todas as partes são equivalentes e
intercambiáveis1255. É a versão micro do “caráter fundamentalmente tautológico do
espetáculo”1256, repetição, reprodução e acúmulo quantitativo infinito de si próprio, em que os
meios são ao mesmo tempo o fim1257: concomitante a ser uma mercadoria consumível,
mercadoria total – que reúne em si tudo o que na sociedade pré-industrial era unitário e foi
fragmentado com a ascensão da modernidade1258 –, o tempo serve também de matéria-prima
1245DEBORD, SdE, § 159.1246Ibidem, § 153.1247Ibidem, § 148.1248Ibidem, § 159.1249THOMPSON, Costumes em comum, p. 298.1250Ibidem, p. 272.1251DEBORD, op. cit., § 42.1252Ibidem, § 148.1253Ibidem, § 151.1254Ibidem, § 145.1255Ibidem, § 149.1256Ibidem, § 13.1257Idem, ibidem.1258Ibidem, § 151.
152
para novos produtos, os quais, ao serem consumidos, reforçarão os “empregos socialmente
organizados do tempo”1259, fechando e reforçando esse ciclo necessário ao sistema espetacular,
de um mesmo tempo que retorna – apesar da base irreversível do tempo da sociedade. No seu
retorno sob o disfarce de tempo consumível1260, o tempo pseudocíclico não é outra coisa senão
o tempo do consumo da sobrevivência econômica moderna, o tempo da sobrevivência
ampliada1261, isto é, o retorno ampliado do mesmo. “Porque há um desenvolvimento linear da
produção capitalista, manifesto de um modo reificado na ampliação e no aumento
quantitativos das mercadorias, e que, na superfície do consumo, reitera o retorno do mesmo –
da mesma forma-mercadoria, ainda que sobre outros valores de uso – cuja mesmidade é já
dada na produção, na lógica cíclica do próprio salariato, dos gestos mecânicos e repetitivos do
trabalho”1262, como salienta Aquino, e que se expandem para todas as esferas da vida. O
tempo-mercadoria é o fruto que se extrai do trabalho-mercadoria, de onde decorre a
necessidade de manutenção do trabalho alienado e o dispêndio da força e do tempo humano
nele, a despeito das possibilidades técnicas já permitirem a libertação dos homens desse
fardo1263. Quando ocorre a inserção desse mesmo tempo também no circuito do consumo
alienado – naquilo que Debord chamou de “negação total do homem”1264 –, o vivido
quotidiano fica privado de qualquer decisão relevante em toda sua extensão, num esquema em
que a vida sob o espetacular concentrado pode ser encarada como uma versão mal burilada
não admitida: a começar pelo humanismo da mercadoria, que, preocupado com os lazeres e a
humanidade do trabalhador, trata de direcionar seu tempo “livre”1265, em que ele é livre para
escolher entre falsas opções – falsas porque já foram pré-determinadas pela produção1266 e são
diferentes apenas no superficial1267; “o tamanho da massa de mercadorias criadas pela
produção capitalista é determinada pela escala dessa produção e pela necessidade constante de
ampliação dessa última, e não por um círculo predestinado de procura e oferta, de
necessidades a serem satisfeitas”1268. Depois, porque submetido agora não mais à ordem dos
ciclos naturais, “mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado”, o tempo
pseudocíclico acaba por naturalmente se reencontrar com o antigo tempo cíclico das
1259DEBORD, SdE, § 1511260Ibidem, § 149.1261Ibidem, § 150.1262AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p 63.1263DEBORD, op. cit., § 45.1264Ibidem, § 43.1265Idem, ibidem.1266Ibidem, § 6.1267Ibidem, § 66.1268MARX, O Capital, livro II, p. 57.
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sociedades tradicionais, pré-industriais1269, cujos resquícios o tempo irreversível da burguesia
uma vez pôde extirpar de todo o globo1270. Pôde, mas não o fez; e agora faz uso deles: além do
tempo, o espetáculo faz questão de retomar muito da organização das sociedades tradicionais.
Com o suporte do urbanismo, as cidades – “o espaço da história”1271 – são destruídas e
transformadas em pseudocampos, afins ao tempo pseudocíclico, recriando um novo
campesinato artificial, “pelas condições de hábitat e de controle espetacular”1272. Do mesmo
modo que a sobrevivência ampliada não apela à chantagem reles de ameaçar diretamente com
a fome caso não se submeta – antes promete o paraíso dos últimos gadgets1273 –, o tempo
pseudocíclico tampouco se restringe a simplesmente repetir os ciclos da natureza: ele “cria
novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o descanso semanais, a volta dos
períodos de férias”1274. Na verdade, para a produção, a parte irredutivelmente biológica do
homem que continua presente no trabalho – a dependência do ciclo da vigília e do sono, a
evidência do tempo irreversível do passar de uma vida – se torna acessória1275, relevada nas
preocupações sobre o aumento da produtividade, onde é encarada como um limitador natural
da máquina1276, quando não combatida, visível nos bombardeios publicitários, onde “é
nitidamente proibido envelhecer”1277, e nos quais o indivíduo é culpabilizado pela publicidade
do seguro de vida de morrer sem ter garantido a regulação do sistema1278: é o american way of
death1279. A proibição de envelhecer, a tentativa de manter um “capital-juventude”1280 – no
fundo prova da negação do tempo irreversível humano por parte do espetáculo, um tempo que
passa mas não deveria, ou que passou sem que tivesse sido aproveitado, desfrutado, gozado
nessa passagem –, se insere na dinâmica do sistema na medida em que o tempo
pseudocíclico, enquanto “tempo destinado ao atraso da vida quotidiana concreta – e à
manutenção desse atraso –”1281, precisa disfarçar sua real natureza, de modo a satisfazer
possíveis aspirações dos homens a uma vida qualitativamente rica – ou que assim se pareça.
Esse tempo surge então carregado de pseudovalorizações, numa seqüência de momentos
1269DEBORD, SdE, § 150.1270Ibidem, § 141.1271Ibidem, § 176.1272Ibidem, § 177.1273Ibidem, § 47.1274Ibidem, § 150.1275Ibidem, § 160.1276MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 29.1277DEBORD, op. cit., § 160.1278Idem, ibidem.1279Idem, ibidem. Grifo do autor.1280Idem, ibidem.1281Ibidem, § 149.
154
falsamente individualizados1282. Momentos que vão da escolha dos nomes dos filhos1283 ao
consumo de produtos banais oferecidos pelas vedetes do espetáculo1284, até momentos de
efusão coletiva – pois o espetáculo se mostra essencialmente como a época do “giro acelerado
de múltiplas festividades”1285. Entretanto, na realidade, trata-se de uma época sem festas: sem
comunidade e sem luxo, o que resta são pseudofestas vulgarizadas do que havia no tempo
cíclico: nada mais que a paródia de diálogo e de doação, que acrescidas ao gasto econômico
excedente apenas geram frustração1286 - como todos os desejos desta época, são feitos para
serem insatisfeitos. O gozo da passagem do tempo, como na renascença italiana1287, não é aqui
uma possibilidade: sob o espetáculo, quanto menor for o valor de uso – e maior o valor de
troca –, mais há de se vangloriar, e a promessa para compensar a decepção resultante desse
gasto sem que tenha havido um retorno prazeroso é a repetição da mesma decepção1288: a
promessa do gozo neste mundo vem sempre acompanhada de repressão, é um pseudogozo,
cujo final se sabe de antemão qual é, mas ainda assim se insiste, na pseudo-esperança de que o
próximo papel ou objeto a ser escolhido altere esse resultado1289, conforme anuncia
propaganda que se sabe mentirosa, porque cada anúncio publicitário “é também a confissão
da mentira” do anúncio anterior1290. A realidade do tempo, em suma, foi substituída pela
publicidade do tempo1291, e o dispêndio nas pseudofestas espetaculares mostra de maneira
mais clara como o que há ali é apenas a exibição de um tempo exterior, e que por isso não há
como fruí-lo – a começar pela própria contradição dessas festas com a sua época, que em nada
difere da contradição do consumo do tempo espetacular da sua base real.
Se na sociedade antiga o consumo do tempo se coadunava com o trabalho real
desta sociedade, de acordo com o tempo cíclico1292, na sociedade espetacular o tempo do
trabalho e o consumo do tempo estão organizados de maneira diferente, de modo que entram
em contradição. O primeiro se move sob o tempo irreversível, abstrato – tempo irreversível a
serviço da mercadoria, que exclui o qualitativo e o desenvolvimento do homem do seu campo
de possibilidades –; o segundo é consumido sob o tempo pseudocíclico1293, de modo que os
1282DEBORD, SdE, § 149.1283Ibidem, § 69.1284Ibidem, § 60.1285Ibidem, § 154.1286Idem, ibidem.1287Ibidem, § 139.1288Ibidem, § 154.1289Ibidem, § 59.1290Ibidem, § 70.1291Ibidem, § 154.1292Ibidem, § 155.1293Idem, ibidem.
155
eventos sempre retornam e se repetem – formalmente ao menos. Se no tempo espetacular, que
se move conforme o tempo irreversível abstrato, há uma história que é a história das coisas,
em que o desenvolvimento está voltado para a produção das coisas, no consumo dessas
coisas, em que se está sob outra regência temporal, as novidades trazidas por esse
desenvolvimento no processo produtivo não são sentidas1294 – por se consumir apenas
fragmentos de mercadoria, separados “das forças produtivas que operam como um
conjunto”1295 –, por mais que no consumo haja o retorno ampliado desse processo. Ou seja, o
espetáculo, fazendo uso do seu ardil de inverter o sentido de uma contradição para desmenti-
la1296, apresenta o tempo pseudocíclico como tempo fundante da sociedade, sendo que ele é
subproduto do tempo irreversível1297, vivido apenas ilusoriamente: “o tempo cíclico era o
tempo da ilusão imóvel, vivido realmente; o tempo espetacular é o tempo da realidade que se
transforma, vivido ilusoriamente”1298. Entretanto, o espetáculo consegue com isso a aparência
de uma unidade entre tempo pseudocíclico da superfície e tempo irreversível da produção que
não existe, e acaba por garantir de fato a perpetuação deste tempo, ao garantir o ciclo do
capital – o ciclo da produção e consumo alienados. Ademais, o fato das inovações técnicas da
produção não serem notadas na hora do consumo mantém mascarado que toda inovação está
vinculada à produção, quer dizer, que toda inovação tem por base o trabalho morto, de modo
que não se percebe que ele segue subjugando o trabalho vivo e que, a despeito da impressão
inversa, “no tempo espetacular o passado domina o presente”1299, a ponto da vida histórica
geral, diante dessa história, desse passado reificado, ficar prejudicada1300: o passado a dominar
o presente acaba servindo de freio ao mesmo, restringindo – coagulando – possibilidades de
futuro, por não permitir que a atividade humana aconteça simplesmente, pois necessitam
serem sempre cerceadas por valores que são avessos ao valor vivido1301, o que resulta em
relações de causa e conseqüência que remontam uma cadeia sem fim de acontecimentos, feita
de ações necessárias, não espontâneas, sendo por isso alienígenas aos indivíduos, alienados de
seu presente na mesma razão que de seus atos.
Desse modo, a vida individual é obrigada a abdicar de viver realmente, ou seja, é
uma vida ainda sem história, em prol de pseudo-acontecimentos que não foram vividos
1294“Retrouve”, na tradução brasileira “encontra”1295DEBORD, SdE, § 42.1296Ibidem, § 54.1297Ibidem, § 149.1298Ibidem, § 155.1299Ibidem, § 156.1300Ibidem, § 157.1301Ibidem, § 35.
156
diretamente por quem a eles assiste1302, os quais se desenrolam em um pseudomundo à parte
que não permite mais que a contemplação1303, que o acompanhar distanciado – tal qual a
pretensa objetividade das ciências. Inclusive porque a vivência está impedida – visto que na
sociedade do espetáculo está bloqueada de antemão a possibilidade do encontro e do diálogo,
uma vez que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”1304 –, o que
resta, aquilo que se considera vivência no espetáculo, não vai muito além da escolha dentre
um dos modelos de vivido aparente que as vedetes de consumo oferecem para ser seguido –
nada mais que modelos de obediência ao desenrolar da história reificada1305, história que vem
dada, pronta, e não aberta para intervenções, para o devir. Os acontecimentos realmente
vividos, os que não foram destacados de cada aspecto da vida para depois se unir num todo
que já não é uma unidade, num fluxo comum ditado pelo espetáculo1306, esses acontecimentos
que de alguma forma resistem a ter relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e
estão em oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo1307,
ou seja, os acontecimentos que tentam se afirmar no terreno do tempo irreversível histórico,
este vivido quotidiano enquanto atividade individual, ao não ter como ser comunicado com
outros que compartilham de experiências de mesma qualidade, de viver esse mesmo tempo,
“fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico a seu próprio passado, não registrado
em lugar algum”1308. Isolado, o vivido individual acaba “incompreendido e esquecido em
proveito da falsa memória espetacular do não-memorável”1309. Pode-se concordar com
Birman, que diz que na sociedade do espetáculo apresentada por Debord (assim como a
cultura do narcisismo, por Lasch) “o sujeito perde suas relações com as idéias de tempo e de
história. com isso, o que importa é a pontualidade do momento, do estrito tempo no presente,
que se avoluma na existência do sujeito. Conseqüentemente, a memória tende ao silêncio pela
ênfase atribuída ao presente. Da mesma forma, o horizonte de futuro se estreita, pois, ao se
sublinhar a imediatez da presença, o sujeito perde a dimensão do devir”1310.
A própria reorganização do espaço feita pelo capital já induz a isso. O mercado,
inicialmente complementar às demais funções da cidade, passa a exercer as funções do antigo
1302DEBORD, SdE, § 157.1303Ibidem, § 2.1304Ibidem, § 1.1305Ibidem, § 61.1306Ibidem, § 2.1307Ibidem, § 157.1308Idem, ibidem.1309Idem, ibidem.1310BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p. 246.
157
fórum ou ágora1311, até se tornar mercado abstrato – com as navegações e a criação da bolsa,
em Bruges1312. Pelo “carácter internacional do regime capitalista”1313, a unificação mundial em
um mercado único1314, que é também a unificação do tempo1315, não é apenas uma mudança
nas relações comerciais – uma das causas contrariantes à lei da queda tendencial da taxa de
lucro1316 –, é também uma mudança no espaço, que, tal qual o tempo, passa a ser encarada de
maneira abstrata. Isso implica no rompimento das especificidades locais – que perdem suas
qualidades e sua autonomia – em favor da produção em série para o mercado1317. Sob as
intervenções do urbanismo, as cidades passam a ser encaradas a partir da lógica do capital:
como uma abstração1318, espaços que podem (e devem) ser modelados conforme as
necessidades da mercadoria, modificados e reconstruídos a todo instante1319 para se tornarem,
a cada vez, mais idênticos ao espaço exigido pela mercadoria1320, absolutamente banal,
completamente indiferente com relação ao seu entorno e à sua história – modificações que
aproximam ao máximo a cidade “da monotonia imóvel”1321 que a mercadoria reserva à
história dos homens. A intervenção sobre as cidades não é por acaso: “a história universal
nasceu nas cidades e atingiu a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o
campo”1322. Conforme Marx, “a base de toda divisão do trabalho desenvolvida e mediada pelo
intercâmbio de mercadorias é a separação entre a cidade e o campo. Pode-se dizer que toda a
história econômica da sociedade resume-se no movimento dessa antítese”1323. Mumford se
centra menos nesse embate e mais nos limites do urbano: teriam sido os primeiros senhores
das cidadelas que “fixaram o novo molde da civilização, que combinava a máxima
diferenciação social e vocacional possível, coerente com os processos cada vez mais amplos
de unificação e integração”1324. Para Debord, “a cidade é o espaço da história”1325, onde se
concentram ao mesmo tempo o poder social – que torna possível a empreitada histórica – e a
consciência do passado. É nela que tanto a liberdade quanto a tirania da administração estatal
1311MUMFORD, A cidade na história, p. 334.1312Ibidem, p. 447.1313MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 293.1314DEBORD, SdE, § 39. § 145.1315Ibidem, § 145.1316MARX, op. cit., Livro III, p. 171.1317DEBORD, op. cit., § 165.1318Ibidem, § 173.1319Ibidem, § 166.1320Idem, ibidem, § 166. 1321Idem, ibidem.1322Ibidem, § 176.1323MARX, op. cit., Livro I, Tomo I, p. 278.1324MUMFORD, op cit, p. 47.1325DEBORD, op. cit., § 176.
158
têm vez e se combatem, ainda sem um lado vencedor1326. Para atender às necessidades do
capital, que na sua produção circular de isolamento1327 impôs o automóvel como “produto-
piloto da primeira fase da abundância mercantil”1328, o urbanismo se viu autorizado a destruir
a cidade e reconstruí-la sob a lógica do pseudocampo1329, orientada para a organização técnica
do consumo, com a dominação da auto-estrada e a dispersão dos antigos centros, num
processo que “levou a cidade a se consumir a si mesma”1330, com a dispersão suburbana.
Mumford dedica um capítulo do seu A cidade na história para analisar o fenômeno. Os
subúrbios teriam surgido em resposta à devastação das cidades pelas indústrias e pelas vias de
transporte, no século XIX, tanto no quesito de alojamentos quanto de vivência, a tal ponto
que, conforme o autor, nesses ambientes, “era preciso que se tivesse todos os sentidos
embotados para ser feliz”1331. “'Cortiço, semicortiço e supercortiço – a isso chegou a Evolução
das Cidades'”1332, declarou Patrick Geddes. Mumford, no correr do seu livro, mostra que os
aspectos vistos como típicos das cidades medievais, moradias precárias, medo do ataque
exterior, confinamento, sujeira, insalubridade, foram, na verdade, características da cidade
crescida com o capitalismo – que ele chama de “barroca”. Com a queda das muralhas que a
delimitavam, autorizando a expansão, houve o processo de fuga desse ambiente decaído, por
parte de quem tinha condições, estimulado pelos meios de locomoção. Concordando com
Kropotkin, o estadunidense chega a ver possibilidades positivas nos subúrbios: a
descentralização das funções em pequenas unidades, com a chance de uma vida local mais
responsável1333 – possibilidades que não foram concretizadas, muito pelo contrário. Em
contrate com a cidade, “ambiente multiforme e não segregado”, o espírito do subúrbio pode
ser sintetizado na expressão vitoriana “nós nos mantemos dentro de nós mesmos”1334: um asilo
para a preservação de uma ilusão, a de um mundo inocente1335, em que impera a padronização
do ambiente, de classe, de gostos, de hábitos1336. São casas com seus jardins protegidos dos
vizinhos, dispersas em longas extensões de terra cortadas por ampla malha viária, que “devora
espaço e consome tempo, com atrito e frustração cada vez maiores, enquanto que, sob o
pretexto plausível de aumentar a velocidade das comunicações, o que realmente faz é obstruí-
1326DEBORD, SdE, § 176.1327Ibidem, § 28.1328Ibidem, § 174.1329Ibidem, § 177.1330Ibidem, § 174.1331MUMFORD, A cidade na história, p. 510.1332Ibidem, p. 469.1333Ibidem, p. 556.1334Ibidem, p. 533.1335Ibidem, p. 534.1336Ibidem, p. 525.
159
las e negar a possibilidade de fáceis reuniões e encontros, dispersando os fragmentos de uma
cidade ao acaso por toda uma região”1337. Uma produção de isolamento numa vida cada vez
mais privada do contato com o Outro e marcada pelo tédio1338.
A conseqüência de todo esse processo é a dispersão da multidão solitária pelo
espaço abstrato construído pelo urbanismo, marcado pelo culto da velocidade e do espaço
vazio1339, fruto de uma ideologia em que a força e a velocidade são desejáveis em si
mesmas1340. Oferecendo poucas oportunidades de reunião, de conversação, de debate coletivo
e de ação comum, reforça-se a mentalidade estreita tipicamente atribuída ao ambiente rural.
Tais características, que “sempre impediram o campesinato de empreender uma ação
independente e de se afirmar como força histórica criadora”1341, reaparecem agora sob a forma
de “um conformismo silencioso”, ao invés da rebelião ou do contra-ataque. “Assim, tornou-se
o Subúrbio o lar preferido de um novo tipo de absolutismo: invisível mas todo-poderoso”1342.
Nessas “cidades novas”1343, consumação da tendência à liquidação da cidade1344,
prova da subordinação da consciência histórica à economia1345 – a ponto de levar à paralisia
do “desenvolvimento histórico total, em proveito apenas do movimento independente da
economia”1346 –, onde a oposição cidade-campo desaparece não porque é superada, mas
porque a distinção não faz sentido diante da destruição de ambos1347, nota-se uma clara ruptura
com o tempo histórico que a cidade encarna, sobre o qual a cidade é erigida, borrando delas
toda história e toda passagem do tempo, passado ou futuro: “aqui, nunca acontecerá nada, e
nada nunca aconteceu”1348. E se avança um passo mais no caminho rumo ao fim da história
que a burguesia tomara após Revolução Francesa1349, transformando as cidades sob o domínio
da mercadoria em verdadeiros espaços abstratos e sem qualidades – afim à vida social, ao
trabalho reificados –, sem pontos onde os indivíduos possam fixar locais de memória, onde
possam ter acesso material ou simbólico a experiências vividas, que não aquelas que
ocorreram sob a égide reificada da mercadoria: são “as forças da ausência da história” que
passam a compor a paisagem, se aproveitando de “que a história que é preciso liberar nas 1337MUMFORD, A cidade na história p. 548.1338Ibidem, pp. 533-534.1339Ibidem, p.550.1340Ibidem, p. 448.1341DEBORD, SdE, § 177.1342MUMFORD, op. cit., p. 554.1343DEBORD, op. cit., § 177.1344Ibidem, § 176.1345Idem, ibidem.1346Idem, ibidem.1347Ibidem, § 175.1348Ibidem, § 177.1349Ibidem, § 143.
160
cidades ainda não foi liberada”1350. Mumford já dizia que “em relação à cidade, o capitalismo
foi, desde o princípio, anti-histórico”1351.
A forma como o espetáculo lida com o espaço urbano talvez seja uma forma mais
palpável de como ele se relaciona com a história. Tendo em vista o sentido que põe no
tempo1352, a forma como organiza o tempo na sociedade atual, pelo ritmo pseudocíclico na
superfície e irreversível abstrato na sua base – o que contradiz todo um processo de tomada de
consciência do tempo e da história por parte dos homens – o espetáculo “é a falsa consciência
do tempo”1353. Ele oferece como perpétuo o que é fundado na mudança, e que deve mudar
com sua base. Ele sabe que nada pára, que esse é seu estado natural, por sua base ser o tempo
irreversível, mas que ao mesmo tempo a mudança é contrária à sua propensão1354, dado que
isso tende a trazer mudanças que podem levar à sua ruína: a mudança na organização social
do tempo é a mudança de toda a sociedade1355. Sua luta é para garantir a realização da não-
história espetacular1356, a paralisia da história e da memória1357 de toda a sociedade, porém sem
que isso se torne consciente – como não pode se tornar consciente o tempo histórico
irreversível que ela escamoteia em favor do tempo irreversível abstrato da mercadoria.
“Houve história, mas já não há”1358: substituído pela sucessão de disputas entre mercadorias,
numa pseudohistória que marca apenas o devir-mercadoria do mundo1359, ele consegue com
isso manter a sociedade entretida em “confrontos ridículos, que mobilizam um interesse
sublúdico”1360, pseudo-atividades que não alteram a passividade real dos sujeitos e mantêm
longe a possibilidade de algo que faça surgir uma centelha que ponha o sistema em perigo.
Além disso, para a classe obreira, o espetáculo potencializa o movimento de
“afastamento dos homens entre si e em relação a tudo o que produzem”1361: para evitar um
possível encontro autêntico entre os indivíduos que possa fazer com que tomem consciência
de seu papel como sujeitos históricos, frutos da luta de classes, produtos e produtores de
história, “no momento em que a sociedade descobre que depende da economia, a economia,
de fato, depende da sociedade”1362. 1350DEBORD, SdE, § 177.1351MUMFORD, A cidade na história, p. 448.1352DEBORD, op. cit., § 132.1353Ibidem, § 158.1354Ibidem, § 71.1355Ibidem, § 143.1356Ibidem, § 217.1357Ibidem, § 158.1358Ibidem, § 143.1359Ibidem, § 69.1360Ibidem, § 62.1361Ibidem, § 37.1362Ibidem § 52.
161
Daí a função de transformar a cidade em pseudocampo1363: dispersar, isolar e
garantir a “manutenção da atomização do trabalhador que as condições urbanas tinham
perigosamente reunido”1364. Como comenta em 1988, trata-se da concretização da “aldeia
global”, apregoada por McLuhan na década de 1960, com suas “múltiplas liberdades”, “de
acesso instantâneo a todos, sem esforço”: “as aldeias, ao contrário das cidades, sempre foram
dominadas pelo conformismo, pelo isolamento, pelo controle mesquinho, pelo tédio, pelos
mesmo mexericos sobre as mesmas famílias”1365. A distância geográfica que marca a dispersão
no campo e que havia sido suprimida pela cidade é revertida, ou então interiorizada como
separação espetacular1366, e os indivíduos isolados são reintegrados pelo sistema como
“indivíduos isolados em conjunto”1367, em pseudocoletividades que vão da célula familiar às
fábricas, centros culturais e condomínios residenciais1368. Assim isolados em
pseudocomunhão, desprovidos de comunicação direta entre si, os indivíduos são mais
docilmente controláveis e domináveis: “o emprego generalizado de aparelhos receptores da
mensagem espetacular faz com que esse isolamento seja povoado pelas imagens dominantes,
imagens que adquirem sua plena força por causa desse isolamento”1369; “a dona-de-casa
citadina, que há meio século [ou seja, no início do século XX,] conhecia pessoalmente o
açougueiro, o merceeiro, o leiteiro, seus vários outros fornecedores locais, como pessoas
individuais, com histórias e biografias que a impressionavam, num intercâmbio diário, goza
agora do benefício de uma única expedição semanal ao supermercado impessoal, onde só por
acaso tem probabilidade de encontrar uma vizinha”. Se antes a relação entre pessoas era
mediada pela mercadoria, o espetáculo tenta agora acabar até com esta. “Seus verdadeiros
companheiros, seus amigos, seus mentores, seus amantes, os que preenchem sua vida não
vivida, são sombras na tela do televisor ou vozes ainda menos personificadas. Pode ela
responder-lhes, mas não se pode fazer ouvir: o resultado que se alcançou foi um sistema de
mão única”1370. A vida nos subúrbios de massa perde até “as vantagens do grupo primário de
vizinhança”, restando “uma vida enclausurada, passada cada vez mais dentro de um
automóvel ou dentro de uma câmara escura, ante um aparelho de televisão”, de modo que
“cada uma das partes dessa vida virá pelos canais oficiais e estará sob supervisão. Não tocada
1363DEBORD, SdE, § 177.1364Ibidem, § 172.1365Idem, Comentários, XII.1366Ibidem, § 167.1367Ibidem, § 172.1368Idem, ibidem.1369Idem, ibidem.1370MUMFORD, A cidade na história, pp. 552-553.
162
pela mão humana num extremo: não tocada, no outro, pelo espírito humano. Aqueles que
aceitam essa existência poderiam perfeitamente ser metidos num foguete lançado no espaço,
tão reduzidas são as suas escolhas, tão limitadas e deficientes as suas reações permitidas. É aí
que vamos encontrar 'A Multidão Solitária'”1371. Trata-se de uma denúncia que muito se
aproxima da de Rousseau sobre o teatro: sem impelir a uma solidão absoluta, ele estabelece
“uma comunhão mediata: somos reunidos indiretamente pelo intermédio da ação cênica com
a qual minha atenção me liga de modo direto [...]. É o reino da solidão e da dispersão infeliz”,
da interrupção da comunicação1372.
Evitar que se rompa o isolamento entre os trabalhadores, e que com isso haja o
contato direto entre os reais produtores da história: eis outro aspecto que a falsa memória
espetacular do não-memorável precisa evitar. É da comunicação prática entre pessoas que
compartilham da vivência histórica em uma mesma conjuntura1373 que a linguagem histórica
pode ressurgir do seu cativeiro, desbancando a linguagem espetacular, a passividade
contemplativa a que o espetáculo induz, a ditadura da mercadoria, e toda a organização social
que ele apresenta como dada e acabada. De onde se chega à afirmação de Debord de que a
reivindicação de viver o tempo histórico é “o centro inesquecível do projeto revolucionário”
atual, pois “pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente
estranho à história”1374: não é mais pela superfície, nas cortes palacianas, nas dinastias, que se
faz e se escreve a história – na sociedade capitalista não é a partir de cima, mas “por sua base
que a sociedade se move irreversivelmente”1375. O grande ponto é como transformar essa
reivindicação por uma sociedade revolucionada em teoria e prática revolucionária, e não em
ideologia revolucionária1376. Como, antes de tudo, dar-se conta de que o tempo pseudocíclico,
o tempo ideológico do consumo, é um tempo que contribui para a história girar em falso, para
“a paralisia atual do desenvolvimento histórico total”1377, em que o tempo irreversível é
sutilmente corrompido, metamorfoseado “em tempo das coisas”1378, em tempo reificado. Pois
o espetáculo sabe que o fim da história pura e simplesmente é também o seu fim 1379, como
também sabe que a emergência da história também o é1380. De forma que se, por um lado, seu
1371MUMFORD, A cidade na história, p. 553.1372STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, p. 134.1373DEBORD, SdE, § 133.1374Ibidem, § 143.1375Idem, ibidem.1376Ibidem, § 124.1377Ibidem, § 175. Grifo do autor.1378Ibidem, § 142.1379Ibidem, § 108.1380Ibidem, § 143.
163
ideal é o projeto formulado por Napoleão “de 'dirigir monarquicamente a energia das
lembranças'”1381, manipulando permanentemente o passado, “não apenas nos significados mas
também nos fatos”1382, graças ao aniquilamento do pensamento da história, que atinge “a
própria história, no nível do conhecimento mais empírico”, que já não pode mais existir1383,
por outro, “o preço dessa libertação em relação a toda realidade histórica é, porém, a perda da
referência racional indispensável à sociedade histórica do capitalismo”1384. Na sociedade
burocrática do espetacular concentrado, essa ideologia do fim da história se realiza no retorno
ao tempo das hordas humanas primitivas1385, o presente perpétuo1386, mas o faz à custa de
deixar o tempo e “tudo o que aconteceu” “como um espaço acessível à sua polícia”1387;
enquanto na economia a perda desse senso histórico racional “constitui uma de suas
deficiências principais com relação ao desenvolvimento capitalista normal”1388. Por isso o
espetáculo bem azeitado evita essa implosão da história e mantém o tempo irreversível
abstrato, a “busca do movimento independente da economia”1389. Contudo, apesar do enorme
esforço contrário, o prosseguir com o desenvolvimento das forças produtivas deixa em aberto
o risco para o próprio sistema. Primeiro porque a acumulação de capital é a multiplicação do
proletariado1390: avançar com a industrialização sobre novas áreas, conforme a divisão
mundial de tarefas espetaculares1391, faz com que se crie – e acumule – proletariado num país
onde não existia, ou seja, o espetáculo cria “seu próprio desmentido”1392. Segundo, ao não
poder sufocar por completo o espectro que ronda o mundo, o espectro da história, à espreita
para emergir das profundezas da sociedade com esse proletariado, se apropria do tempo e
submete todo o espaço a esse tempo vivido1393. De acordo com Debord, o espetáculo sabe que,
“ao serem atirados na história, ao terem que participar das tarefas e lutas que a constituem, os
homens se vêem obrigados a encarar suas relações sem ilusão”1394. Por isso seu trabalho em
evitar as lutas reais1395, em rechaçar como ameaça a história autêntica1396, em reforçar a
1381DEBORD, SdE, § 108.1382Idem, ibidem.1383Idem, ibidem.1384Idem, ibidem. Grifo do autor.1385Ibidem, § 126.1386Ibidem, § 108. § 126.1387Ibidem, § 108.1388Idem, ibidem.1389Idem, § 175.1390MARX, O Capital, livro I, Tomo II, p. 188.1391DEBORD, op. cit., § 57.1392Ibidem, § 113.1393Ibidem, § 178.1394Ibidem, § 74.1395Ibidem, § 96.1396Ibidem, § 143.
164
heteronomia1397. Pelo mesmo motivo, mas pela negativa1398, o proletariado é a classe da
consciência1399; seu drama é ainda estar “subjetivamente afastado de sua consciência prática
de classe”1400, sem conhecer nada além da impotência e da mistificação da velha política1401
diante de um desenvolvimento que o oprime cada vez mais, a ponto de fazê-lo perder, nos
países industriais, “toda afirmação de sua perspectiva autônoma”1402. E diante da perda de
“todo poder sobre o uso da própria vida”1403 – que é a realidade da “imensa maioria” dos
trabalhadores –, o proletariado mostraria na prática que o seu ser ele não perdeu1404: ao tomar
consciência da sua real situação, do seu momento histórico, de ser a força exteriorizada que
reforça a sociedade capitalista, sob a forma de trabalho, como também “sob a forma de
sindicatos, de partidos ou de poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar,
descobre também pela experiência histórica concreta que é a classe totalmente inimiga de toda
exteriorização rígida e de toda especialização do poder”1405. E foi nos Conselhos Operários
revolucionários que o movimento operário teria descoberto a forma de emancipação
econômica do trabalho – ainda que suas experiências concretas não tenham passado de
esboços1406. É sob seu poder que o proletariado poderá negar “a negação espetacular da
vida”1407 e se afirmar positivamente: agindo desde a base da sociedade, desde onde a história
real acontece, o proletariado com sua própria existência em atos manifesta que o pensamento
da história como transformação do mundo não foi esquecido1408.
E a partir dessa memória viva ele elabora na prática o projeto revolucionário de
uma sociedade sem classes, o que equivale ao de uma vida histórica generalizada, em que
nada existiria independente dos indivíduos1409, sequer o tempo, plenamente aberto como
“campo de desenvolvimento humano”1410, por meio “de um enfraquecimento da medida social
do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e grupos,
modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados”1411. É o
1397DEBORD, SdE, § 33.1398Ibidem, § 114.1399Ibidem, § 88.1400Ibidem, § 114.1401Idem, ibidem.1402Idem, ibidem.1403Idem, ibidem.1404Idem, ibidem.1405Idem, ibidem.1406Ibidem, § 116.1407Ibidem, § 117.1408Ibidem, § 77.1409Ibidem, § 163.1410Ibidem, § 147.1411Ibidem, § 163.
165
tempo dos Conselhos Operários, “da dominação permanente do presente sobre o passado”1412,
o contrário do espetáculo, onde o “passado domina o presente”1413. A inversão, contudo, é do
espetáculo1414: o Conselho seria a reapropriação de tudo aquilo que o espetáculo tomara.
Inversão apenas pelo caminho, com a teoria crítica, que deve se apropriar das armas do
espetáculo para combatê-lo1415: se o espetáculo mimetiza e inverte o real, a teoria crítica
inverte o espetáculo, abrindo caminho para que o movimento proletário se reapodere do real.
É uma teoria, mas deve fazer isso na prática: “a fusão do conhecimento e da ação precisa
realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que cada um desses termos coloque no outro
a garantia da sua verdade”1416. Algo que em muito lembra o espetáculo, quando este inverte o
real, e a realidade vivida e a ordem espetacular acabam se fundamentando reciprocamente1417.
Há, porém, uma diferença fundamental: no espetáculo esta alienação recíproca é fundada na
cisão da sociedade e serve para reforçá-la; na teoria crítica, conhecimento e ação serem a
garantia da verdade um do outro é a certeza do pensamento histórico unitário, a resistência
desde a essência1418 contra a cisão generalizada na sociedade dominante. Verdade que, para
Debord, no texto de 1967, se consumará no Conselho Operário, “lugar onde as condições
objetivas de consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação direta ativa, na
qual terminam a especialização, a hierarquia e a separação, na qual as condições existentes
foram transformadas 'em condições de unidade'”1419 e os trabalhadores ganham a posse direta
de todos os momentos de sua atividade1420, posse esta que reverbera na posse da história e na
abertura do devir. Ali, sendo o desejo da consciência não mais um projeto1421, a consciência do
sujeito proletário seria “igual à organização prática que ela mesma se propôs, porque essa
consciência é inseparável da intervenção coerente na história”1422 – coerente com as
necessidades humanas. Destarte, o movimento proletário passa a ser seu próprio produto, e
esse produto, o seu próprio produtor1423: “ele é seu próprio fim”1424. Novamente, algo
aparentemente próximo, mas essencialmente diferente acontece sob o espetáculo, quando seus
1412DEBORD, SdE, § 114.1413Ibidem, § 156.1414Ibidem, § 2.1415Ibidem, § 206.1416Ibidem, § 90.1417Ibidem, § 8.1418Ibidem, § 121.1419Ibidem, § 116.1420Ibidem, § 53.1421Ibidem, § 53.1422Ibidem, § 116.1423Ibidem, § 117.1424Idem, ibidem.
166
meios são ao mesmo tempo seu próprio fim1425: além do fato dos homens estarem alienados da
história, ser o próprio fim para o espetáculo significa mais do que ele próprio ser sua
finalidade, significa ser seu ponto final: não avançar, girar em falso – ou se aproximar ao
máximo disso, como antigamente as chamadas “sociedades frias” tentavam frear ao máximo a
história1426 –, como acaba por bem simbolizar o tempo pseudocíclico que a história impõe aos
homens.
Como já dito anteriormente, em Debord, a prática do pensamento unitário da
história, por mais que não tenha sido formulado teoricamente, é uma exigência da teoria
crítica para que ela seja verdadeira1427. Assim, “as formas históricas surgidas na luta”1428 vão
ao encontro da teoria marxiana: para Marx, conforme a interpretação do francês, ao destruir
“a posição separada de Hegel diante do que acontece”, “a história que se tornou real já não
tem fim”1429: “o sujeito da história só pode ser o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se
mestre e possuidor de seu mundo que é a história, e existindo como consciência de seu
jogo”1430. Nesse mundo que lhe pertence, que é a história, haveria a emergência de uma nova
forma de comunidade, a “comunidade do diálogo”1431, que é também a “real comunidade
histórica”1432. De acordo com Aquino, a idéia de comunidade para Debord não tem traços
românticos, da busca de uma identidade perdida com a ascensão do capitalismo. Ele “ampara
sua perspectiva comunista de uma nova comunidade apenas e exclusivamente nas
contradições da própria existência presente e na práxis negativa em face delas”1433. Que não
seja uma volta ao passado, o francês não dá mesmo sinais de passadismo, contudo é difícil
crer que ele não acabe por se utilizar de referências pretéritas – a democracia da Grécia
clássica, o Renascimento italiano – para, junto com sua crítica das condições presentes,
propor uma direção para a sociedade pós-revolucionada, em que se retomariam “as
referências de uma linguagem efetivamente comum”1434, perdidas com o fim da sociedade do
mito e que persistem enquanto “a cisão da comunidade inativa” não for superada1435 –
recuperação que se dará sem a necessidade de ressuscitar o antigo mito1436 ou “reintroduzir um
1425DEBORD, SdE, § 14.1426Ibidem, § 130.1427Ibidem, § 90.1428Idem, ibidem.1429Ibidem, § 80. Grifo do autor.1430Ibidem, § 74.1431Ibidem, § 187.1432Ibidem, § 186.1433AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 189.1434DEBORD, op. cit., § 186.1435Idem, ibidem.1436Ibidem, § 109.
167
apego exclusivo ao solo”1437. “Essa linguagem precisa ser reencontrada na práxis, que reúne
em si a atividade direta e sua linguagem. Trata-se de possuir efetivamente a comunidade do
diálogo e o jogo com o tempo, que foram representados pela obra poético-artístico”1438, da
época em que a sociedade vivia cindida. Ou seja: toda representação, não apenas a
representação política, como também a artística, seria superada nos Conselhos, na medida em
que toda representação implica na separação frente àquilo que se está representando: o
espetáculo, que se reconstitui sempre que há representação independente1439, tem poucas
chances de ressuscitar sob os Conselhos Operários. E, diferentemente das comunidades
tradicionais, enquanto os locais – por intermédio da crítica da geografia humana – ganham
autonomia para se redesenharem conforme a apropriação da sua história total, em um “espaço
movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo”1440, os indivíduos,
mesmo que participem desses lugares, não têm necessidade de se verem presos a ele: a
revolução proletária pode “trazer de volta a realidade da viagem, e da vida entendida como
uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido”1441. Para que tudo isso aconteça,
seria preciso “emancipar-se das bases materiais da verdade invertida”1442, tarefa que não cabe
nem ao indivíduo isolado, nem à “multidão atomizada e sujeita à manipulação”, e sim “à
classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma
desalienante da democracia realizada, o Conselho”1443, único local onde “os indivíduos estão
'diretamente ligados à história universal'”1444.
Essa posição bastante otimista de 1967 quanto às possibilidades de uma revolução
proletária – e para breve – não aparece nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo,
lançados em 1988. Debord não nega a possibilidade de revolução, só não a põe como uma
possibilidade objetiva para breve: “seja pela ação, seja o discurso, tudo precisa ser medido
pelo tempo. É preciso querer quando se pode; pois nem a estação nem o tempo esperam por
ninguém”1445. Se o francês vislumbrava a revolução em 1967, oportunidade desperdiçada, ele
dá esperanças de que uma ação estratégica – “o emprego das vitórias a fim de atingir as
finalidades da guerra”, conforme Clausewitz1446 – poderia abrir novamente um momento
1437DEBORD, SdE, § 178.1438Ibidem, § 187.1439Ibidem, § 18.1440Ibidem, § 178.1441Ibidem, § 178.1442Ibidem, § 221.1443Idem, ibidem.1444Idem, ibidem.1445GRACIÁN, apud DEBORD, Comentários, XXXI.1446DEBORD, Comentários, XXXII.
168
oportuno. Na direção contrária, ele alerta, o espetáculo se organiza para se antecipar na
negação de si próprio1447. Estes pontos não estão ditos de forma aberta. Logo no início do
texto de 1988 ele salienta que não poderia “falar com inteira liberdade”, e escreveria, uma vez
mais, “de forma incomum”1448. Entre a apresentação do espetáculo em 1967 e a de 1988,
Debord admite, explicitamente, apenas uma mudança, um detalhe teórico1449, no panorama
espetacular: o espetáculo “continuou a se afirmar por toda parte. Alastrou-se até os confins e
aprofundou sua densidade no centro”1450, e fez emergir uma nova forma de organização do seu
mundo, em substituição às duas primeiras, não dividindo mais o globo em dois modos
distintos e pseudo-antagônicos de gestão do Estado: o espetacular difuso e o espetacular
concentrado. Ainda não havia acontecido a queda do Muro de Berlim quando o francês teceu
seus comentários – ele já alertara, em 1967, que sob o espetacular concentrado, a mínima
“escolha que lhe seja exterior, referente à alimentação ou à música, representa a sua
destruição completa”1451, de modo que políticas como a glasnost, na então URSS, já
permitiam antever o fim do bloco dito comunista –, mas ele já afirmava que o que há agora é
apenas uma única forma de espetáculo: o espetacular integrado. A necessidade que o
espetacular difuso tinha de uma oposição temida – o espetacular concentrado – e que o fizesse
a melhor opção, foi substituída pelo espetáculo ser temido por si próprio e apresentado como
uma perfeição frágil1452. “A sociedade moderna, que até 1968, ia de sucesso em sucesso, e
estava persuadida de ser amada, teve a partir daí de desistir de todos esses sonhos; ela prefere
ser temida. Sabe que seu 'ar de inocência não volta mais'”1453. Precisou “incorporar novos
procedimentos defensivos, como costuma acontecer com o poder quando se vê atacado”1454,
daí o apelo a essa perfeição frágil da sociedade que se declara democrática: “assim, ela não
deve ser exposta a ataques, porque é frágil; e já não é atacável, por ser perfeita como nenhuma
outra sociedade o foi”. Fragilidade que é real, mas apresentada ideologicamente: “é uma
sociedade frágil porque tem grande dificuldade para dominar sua perigosa expansão
tecnológica”; perfeição que também é real, e também apresentada ideologicamente: “é a
sociedade perfeita para ser governada; a prova disso é que todos os que aspiram ao governo
querem governar essa sociedade, com os mesmos procedimentos, e mantê-la quase
1447Ibidem, XXX.1448Ibidem, I.1449Ibidem, IV.1450Ibidem, II1451DEBORD, SdE, § 64.1452Idem, Comentários, VII1453Ibidem, XXX.1454Ibidem, II.
169
exatamente como é”1455. A parte oculta dessa ideologia da perfeição frágil é que ela é perfeita
para a manutenção do espetáculo e do reino da mercadoria, e é frágil porque depende
diretamente daqueles que a sustentam, ou seja, os homens e sua labuta. Com isso, “liquidaram
com a inquietante concepção, que predominara por mais de duzentos anos, segundo a qual
uma sociedade podia ser criticada e transformada, reformada ou revolucionada”1456.
Os fundamentos do espetáculo seguem iguais aos de 1967, até mesmo
exacerbados. Se o espetacular concentrado pode ser tido como uma versão tosca do
espetacular difuso, o espetacular integrado pode ser encarado como um pequeno
desenvolvimento deste, necessário para que realidade e espetáculo não mais pareçam
imiscuídos, como dito anteriormente, mas para que efetivamente o sejam: quando o
espetacular era concentrado – “a ideologia concentrada em torno de uma personalidade
ditatorial, [que] havia acompanhado a contra-revolução totalitária, fosse nazista ou stalinista”
–, “a maior parte da sociedade periférica lhe escapava; quando era difuso” – em que os
assalariados eram instados a “escolherem livremente entre uma grande variedade de
mercadorias novas que se enfrentavam”, numa “americanização do mundo” –, “uma pequena
parte; hoje, nada lhe escapa”1457. Debord vê na França e na Itália do pós-guerras os lugares
predominantes no desenvolvimento desse tipo de espetáculo, graças a “uma série de fatores
históricos comuns: papel importante de partido e sindicato stalinistas na vida política e
intelectual, fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido
governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de
repente”1458. E identifica cinco aspectos dessa nova forma de organização espetacular: “a
incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a
mentira sem contestação e o presente perpétuo”1459. Como se vê, apenas o desenvolvimento –
a conseqüência lógica – de aspectos da organização espetacular levantados em 1967.
Desenvolvimento que fez com que Debord reafirmasse o “irrealismo da sociedade real”1460: se
em 1967 ele dizia que o devir-mundo da mercadoria era também o devir-mercadoria do
mundo1461, em 1988, ele apresenta esse irrealismo sem a embalagem da mercadoria: “a
experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo
mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do
1455DEBORD, Comentários, VIII.1456Idem, ibidem.1457Ibidem, IV.1458Idem, ibidem.1459Ibidem, V.1460Idem, SdE, § 6.1461Idem, § 66.
170
mundo”1462, em que “não existe nada, na cultura ou natureza, que não tenha sido transformado
e poluído segundo os meios e os interesses da indústria moderna”1463. Entrar na lógica da
indústria moderna seria entrar, na terminologia de 1967, na lógica da abstração e da
contemplação.
A forma como Debord tece seus Comentários traz algumas diferenças importantes
frente ao texto de vinte anos antes, principalmente no que tange à questão do tempo, da
história, e da classe revolucionária. A problemática da identidade homem-tempo, a
temporalização do homem e a humanização do tempo, é abandonada, e o autor trata deste
aspecto – merecedor de destaque, novamente – sob a forma da história e sua relação com o
espetáculo – influenciada tanto pelos aspectos de governo quanto da linguagem. É uma
apresentação bem menos idealista do que a de 1967, inclusive o operariado não é mais
apresentado como meta-sujeito da história – ainda que Debord tampouco recuse o que havia
dito em 1967 quanto a isso.
Com o texto de 1988, Debord se insere nos debates sobre o espetáculo, se
aproveitando da lógica espetacular de reverência por quem fala1464: se o assunto volta à tona,
nada como aquele que primeiro o denunciou – sendo acusado de ter exagerado, apesar dos
fatos terem comprovado sua teoria – para demonstrar que a discussão sobre o espetáculo foi
retomada de um modo enviesado, ideológico, em que se oculta o essencial: “outros, depois, ao
publicarem novos livros sobre o mesmo assunto, demonstraram que era perfeitamente
possível omitir tanto coisa a esse respeito. Bastou-lhes substituir o todo e seu movimento por
um único detalhe estático da superfície do fenômeno”1465. A perda da visão do todo e tratar de
forma estática um aspecto da realidade, dois aspectos já levantados sobre o pensamento
científico e reificado - isso, Debord recusa, porém em outros pontos ele se insere na lógica do
espetáculo. Ao fazer isso, pretende, uma vez mais, usá-la de modo desviado, para explicitar
aquilo que o espetáculo tenta ocultar: como este, recusa o diálogo; simplesmente apresenta o
que o espetáculo é; se se deve referência ao especialista, ele se apresenta (veladamente) como
especialista, para denunciar que “todos os especialistas são midiáticos-estatais, e só dessa
forma são reconhecidos como especialistas”, e que “todo especialista serve a seu senhor, pois
as antigas possibilidades de independência foram praticamente reduzidas a zero pelas
condições de organização da sociedade atual”1466, e servir ao seu senhor significa o
1462DEBORD, Comentários, IV.1463Idem, ibidem.1464Ibidem, X.1465Ibidem, II.1466Ibidem, VII.
171
especialista tranqüilizar o indivíduo comum, que “já não consegue reconhecer nada
sozinho”1467, para que ele não se dê conta de sua real condição de vida, de possibilidade de
pensamento, de possibilidade de ação. O primeiro livro poderia ser dado por suficiente por
Debord, e a discussão e denúncia serem prosseguidas por outros autores, mas no momento em
que escreveu os comentários, Debord cria “que mais ninguém iria fazer isso”1468.
Esse uso mutilado do conceito e a discussão adestrada sobre o espetáculo não
surpreende, era uma possibilidade levantada pelo autor em 1967: “sem dúvida, o conceito
crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica
sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do
sistema espetacular”1469. De acordo com o texto de 1988, o espetáculo é “o maior
acontecimento produzido neste século [o XX], e também o que menos se tentou explicar”1470.
O engajamento de intelectuais revolucionários na contestação do espetáculo se mostrou, na
verdade, um pseudoengajamento de pseudointelectuais pseudorevolucionários, com o
comprometimento para com a revolução e a profundidade das vedetes do espetáculo: “a teoria
crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação da
sociedade”1471, sem a recusa radical e sem uma força prática que pusesse à prova a teoria
revolucionária, o espetáculo como mera crítica acadêmica-teórica perde seu vigor, é anulado,
fagocitado pela lógica daquilo que se diz criticar, e esvaziado de sua crítica. Contribuiu para
isso a desarticulação de locais de contestação e a afirmação da luta de classes, com a extinção
de “qualquer tendência revolucionária organizada ao suprimir os terrenos sociais onde ela
conseguira mais ou menos se expressar: do sindicalismo aos jornais, da cidade aos livros”1472,
assim como a desqualificação de toda práxis em favor da contemplação passiva. Uma
caricatura deste pseudointelectual pseudoengajado é dada por Vila-Matas, em Paris não tem
fim, quando o protagonista comenta das suas convicções políticas: “devo dizer que um mês
depois de tomar posse de minha chambre, minhas idéias de estudante espanhol antifranquista
já haviam mudado e eu passara a ser de esquerda radical linha-dura, da linha situacionista,
com Guy Debord como mestre. Passei a pensar que ser antifranquista era muito pouca coisa e,
sob a influência das idéias situacionistas, com meu cachimbo e meus dois óculos falsos,
comecei a passear pelo bairro convertido no protótipo do intelectual poético e secretamente
1467DEBORD, Comentários, VII.1468Ibidem, XXVII.1469Idem, SdE, § 203.1470Idem, Comentários, XXVII.1471Idem, SdE, § 203.1472Idem, Comentários, XXIX.
172
revolucionário. Mas na realidade era situacionista sem ter lido uma só linha de Guy Debord;
era, pois, da extrema esquerda mais radical, mas somente de ouvido. E, como disse, não
militava, dedicava a sentir-me de extrema esquerda e ponto”1473. Destarte, a “organização
espetacular da defesa da ordem existente, o reino social das aparências onde já nenhuma
'questão central' pode ser colocada 'aberta e honestamente'”1474 – muito menos pelo próprio
espetáculo –, que tem como sua lei fundamental que “'se uma coisa existe, já não é preciso
falar dela'”1475, a discussão é posta para que não se discuta nada de relevante (como tudo no
espetáculo), concentrando-se na questão do domínio da mídia e sobre seus recursos, e não
sobre seus usos1476 – como se a forma como esses recursos são utilizados fosse a única
possível. Logo, apresentado como “domínio da mídia”1477, escamoteia-se do grande público
espectador o fato do espetáculo ser “o reino autocrático da economia mercantil que a cedera
ao status de soberania irresponsável e o conjunto de novas técnicas de governo que
acompanham esse reino”1478.
Como governo, o que o espetáculo comunica são ordens travestidas de liberdade
de escolha, que ganham forma não apenas por editos, como pelos meios de comunicação, na
chamada opinião pública, nas vedetes apolíticas do consumo. Assim, a sociedade do
espetáculo se afirma amplamente transparente, salvo em poucas exceções – que correspondem
tão-somente ao essencial. A aceitação disso por parte do respeitável público se dá pela
educação e pela dominação da linguagem – aspectos por ele já levantados no texto de 1967:
“o espectador é suposto ignorante de tudo, não merecedor de nada. Quem fica sempre
olhando, para saber o que vem depois, nunca age: assim deve ser o bom espectador”1479,
levado pelo “fluxo de imagens [que] carrega tudo; outra pessoa comanda a seu bel-prazer esse
resumo simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do
que deve aí manifestar-se, como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum tempo
para a reflexão, tudo isso independente do que o espectador possa entender ou pensar”1480. A
afirmação de que haveria um sujeito a organizar esse resumo do mundo é uma pequena
diferença para o texto de 1967, em que ele punha em termos impessoais: “as imagens que se
destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum”1481. Porém a conclusão é a
1473VILA-MATAS, Paris não tem fim, p. 49.1474DEBORD, SdE, § 101.1475Idem, Comentários, III.1476Idem, Ibidem.1477Idem, Ibidem.1478Ibidem, II.1479Ibidem, VIII.1480Ibidem, X.1481Idem, SdE, § 2.
173
mesma: “a realidade considerara [...] um pseudomundo à parte, objeto de mera
contemplação”1482 de um sujeito incapaz de agir1483 – incapacidade delimitada pelo próprio
espetáculo. Ao interromper a comunicação entre os produtores, por conta dessa dominação da
e pela linguagem1484, a lógica, conforme Debord, também se perde, pois “no plano dos
recursos de pensamento das populações contemporâneas, a primeira causa da decadência
decorre claramente do fato de que o discurso apresentado no espetáculo não deixa espaço para
resposta; ora, a lógica só se forma socialmente pelo diálogo”1485. Não bastasse a falta de
abertura para a resposta – ou seja, para o diálogo – Debord lamenta que em favor da leitura
esteja em decadência da leitura, “que exige um verdadeiro juízo a cada linha e é a única capaz
de dar acesso à vasta experiência humana antiespetacular”1486 – ainda que seja de se
questionar em que medida a leitura também não pode, ela também, ser assimilada pelo
espetáculo. Assim, com a perda da capacidade de verificação da conclusão a partir das
premissas, o espetáculo consegue mais facilmente se desdizer o tempo todo, retificando seu
passado a todo instante1487, reduzindo a verdade “a uma hipótese que nunca poderá ser
demonstrada”1488: como senhor da linguagem e sem qualquer possibilidade de réplica, “o
discurso do espetáculo faz calar, além do que é propriamente secreto, tudo o que não lhe
convém. O que ele mostra vem sempre isolado do ambiente, do passado, das intenções, das
conseqüências. É, portanto, totalmente ilógico”1489. Se eventualmente questionado, ele se
reafirma tautologicamente: “o movimento da demonstração espetacular se prova
simplesmente pela marcha em círculo: ao retornar, ao se repetir, ao continuar a afirmar no
único terreno onde reside doravante o que pode ser afirmado publicamente, e se fazer
acreditado, já que é apenas disso que todo mundo será testemunha”1490.
Logo, “o governo do espetáculo [Estado e órgãos para-estatais], que no presente
momento detém todos os meios para falsificar o conjunto da produção tanto quanto da
percepção, é senhor absoluto das lembranças, assim como é senhor incontrolado dos projetos
que modelam o mais longínquo futuro”1491. O que quer dizer ser senhor absoluto também do
presente: “aquilo de que o espetáculo deixa de falar durante três dias é como se não
1482DEBORD, SdE, § 2.1483Ibidem, § 25.1484Ibidem, § 67.1485Idem, Comentários, X.1486Idem, ibidem.1487Idem, ibidem.1488Ibidem, V.1489Ibidem, X.1490Ibidem, VII.1491Ibidem, IV.
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existisse”1492, de modo que “o espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que
acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de tudo, conseguiu ser
conhecido”1493. Com isso, o polemista reafirma o que dissera em 1967, de que “o projeto, já
formulado por Napoleão, de 'dirigir monarquicamente a energia das lembranças' encontrou
sua concretização total em uma manipulação permanente do passado, não apenas nos
significados mas também nos fatos”1494. Assim, com a destruição da história – e a negação do
momento presente como momento histórico –, “o próprio acontecimento contemporâneo logo
se afasta para uma distância fabulosa, em meio a narrativas inverificáveis, estatísticas
incontroláveis, explicações inverossímeis e raciocínios insustentáveis”1495. O indivíduo vive
nessa fábula de terror, em que a inverdade do mundo tem efeitos muito reais, e as cores
sempre vivas ocultam o cheiro de morte – a “guerra aberta da economia contra a humanidade;
não apenas contra as possibilidades de vida do homem, mas também contra as de sua
sobrevivências”1496. Jogado de um lado para o outro, conforme as conveniências do sistema,
está cada vez mais afastado “da possibilidade de conhecer experiências autênticas e, por isso,
de descobrir preferências individuais”1497 – e mesmo de dar-se conta disso, por falta de
diálogo não mediado com os demais. O resultado é que “a supressão da personalidade
acompanha fatalmente as condições da existência submetida às normas espetaculares”1498, em
favor de modelos pré-fabricados para o consumo pelo espetáculo, levantado no texto de duas
décadas antes. “O indivíduo deve desdizer-se sempre, se desejar receber dessa sociedade um
mínimo de consideração”1499 – o tipo alter-dirigido levantado por Riesman. “Essa existência
postula uma fidelidade sempre cambiante a uma série de adesões constantemente
decepcionantes, a produtos ilusórios”1500, apresentados, conforme o texto de 1967, “como um
atalho fulgurante para enfim aceder à terra prometida do consumo total”1501, e que perdem sua
aura e deixam evidentes a sua precariedade, tão-logo entram na casa do consumidor, ao
mesmo tempo que na de todos os outros1502. “Trata-se de correr atrás da inflação dos sinais
depreciados da vida. A droga ajuda a pessoa a se conformar com essa organização das coisas;
1492DEBORD, Comentários, VII.1493Ibidem, VI.1494Idem, SdE, § 108.1495Idem, Comentários, VII.1496Ibidem, XIV.1497Ibidem, XII.1498Idem, ibidem.1499Idem, ibidem.1500Idem, ibidem.1501Idem, SdE, § 69.1502Idem, ibidem.
175
a loucura ajuda a evitá-la”1503. Ou, como comenta Birman sobre os psicotrópicos no contexto
do fim do século XX: “seja pelo narcotráfico, pela farmacodependência ou peso
psicofármacos, o que está sempre em pauta é a transformação do sujeito inseguro, deprimido
e panicado em cidadão da sociedade do espetáculo”1504. Aqueles que se pretendem críticos do
espetáculo, contudo marcados pelo seu pensamento, acabam por se colocar a serviço da
ordem: “o uso intensivo do espetáculo, como era de se esperar, tornou ideólogos quase todos
os contemporâneos, embora apenas aos arrancos e por fragmentos”1505 – a linguagem
espetacular leva a um adestramento e não ao pensamento1506, ela teme e desqualifica o
pensar1507. A ideologia defendida – mesmo que inconscientemente – começa pelo apagamento
da memória e fim da história. “O domínio da história era o memorável, a totalidade dos
acontecimentos cujas conseqüências se manifestariam por muito tempo”1508. Ocorre que sob o
espetáculo, nem a totalidade dos conhecimentos é passível de ser conhecida – e isso vale para
a vida do próprio indivíduo, pois “sob o espetacular integrado, a pessoa vive e morre no ponto
de convergência de inúmeros mistérios”1509 –, nem o que é conhecido é passível de ser
rememorado: com o espetáculo a trabalhar diretamente sobre as lembranças e os
esquecimentos, o indivíduo sob sua lógica perde a capacidade de rememorar por si e com seus
pares. Sem a possibilidade de uma contra-história para enfrentar a história oficial, o
espetáculo adquire o poder de anular a história e recontá-la sempre nova, de novo, como lhe
convém – uma “marginalização da história”, afim ao embotamento do “espírito histórico da
sociedade” que ele acarretou1510. A vantagem que o espetáculo tira para si desse processo é a
de fazer esquecer a sua própria história, “o movimento de sua recente conquista do mundo.
Seu poder já soa familiar, como se sempre tivesse estado presente. Qualquer usurpador tenta
fazer esquecer que acabou de chegar”1511. Sem história, ou melhor, sendo o espetáculo o
detentor do conhecimento histórico, não há como aferir a verdade sobre o passado, o que é
necessário para o pseudomovimento de incessante novidade do mesmo: “quem vende a
novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de aferi-la”, e “a história era a
medida da verdadeira novidade”1512. “Quando o importante se torna socialmente reconhecido
1503DEBORD, Comentários, XII.1504BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p. 248.1505DEBORD, op. cit., XI.1506Ibidem, XIV.1507Ibidem, XIII.1508Ibidem, VI.1509Ibidem, XVIII.1510Ibidem, VI.1511Idem, ibidem. Grifos do autor.1512Idem, ibidem.
176
como o que é instantâneo, e vai sê-lo um instante depois – diferente e igual –, e que sempre
substituirá uma outra importância instantânea, pode-se também dizer que o meio utilizado
garante uma espécie de eternidade dessa não-importância, que fala tão alto”1513. Assim, pode-
se afirmar que “o fim da história é um agradável repouso para todo poder presente”1514, e
concretiza o primeiro intuito da dominação espetacular, que “era fazer sumir o conhecimento
histórico geral”1515, em favor “da história do movimento abstrato das coisas, que domina todo
uso qualitativo da vida”1516 – como ele já levantara em 1967. A história como história
quantitativa, do automovimento em falso e sem fim do capital, contudo, é um risco também
ao próprio sistema espetacular: “um Estado em cuja gestão se instala por muito tempo um
grande déficit de conhecimentos históricos já não pode ser conduzido estrategicamente”1517. É
desse déficit que pode ser imaginada a possibilidade de uma brecha por onde atacar o
espetáculo. Brecha que o autor imagina não estar pronta para o ataque em 1988, e ainda não
compreendida plenamente do ponto de vista teórico. Brecha que põe em gládio as forças
práticas da sociedade, de um lado, e os governantes do espetáculo, do outro – em disputas
internas das várias correntes, em formas de conspiração1518. Até lá, “velhos preconceitos,
desmentidos em toda parte, precauções tornadas inúteis e até vestígios de escrúpulos de outros
tempos ainda dificultam no pensamento de vários governantes” a compreensão da mudança
radical na arte de governar, “que a prática mostra e confirma a cada dia. Não apenas se faz
crer aos sujeitados que eles ainda estão, quanto ao essencial, num mundo que já desapareceu,
mas os próprios governantes sofrem às vezes os efeitos da inconseqüência de pensarem ainda
viver nesse mundo, sob alguns aspectos. Chegam a pensar numa parte do que suprimiram
como se permanecesse uma realidade, que deve continuar presente em seus cálculos. Esse
atraso não vai durar muito”1519.
1513DEBORD, Comentários, VI.1514Idem, ibidem.1515Idem, ibidem.1516Idem, SdE, § 142.1517Idem, Comentários, VII.1518Ibidem, XXXII.1519Idem, ibidem.
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