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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Daniel Dalmoro Tempo da representação em A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2013 1

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Daniel Dalmoro

Tempo da representação em

A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2013

1

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Daniel Dalmoro

Tempo da representação em

A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em

filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Peter Pál Pelbart.

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

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Dedico este trabalho à memória de meu avô João Gorte e à nossa risada cúmplice

e sem maior motivo que uma troca de olhares em silêncio, na hora da sopa.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da

PUC-SP, por ter me dado a oportunidade de me aprofundar no autor que era do meu interesse

– Guy Debord. Agradeço ao professor Peter Pál Pelbart pela orientação, que soube respeitar

meu tempo (foram cinco anos!), assim como meu estilo um tanto arredio, teve paciência com

minhas invencionices e piadas sem graça e fora de hora, e soube intervir em momentos

oportunos. Aos professores Jeanne Marie Gagnebin e Vladimir Safatle, pelos preciosos

comentários na qualificação deste trabalho, em 2011 – à primeira, ainda, pela ajuda no recorte

do tema e na formulação do projeto, em 2007. Ao professor Sérgio Salomé Silva, da

Unicamp, que me apresentou pela primeira vez Guy Debord, uma década atrás; aos

professores Márcio Alves da Fonseca e, em especial, Marcelo Perine, da PUC-SP, pelos

cursos a que assisti e que influenciaram em muito minha forma de me perceber e me engajar

no mundo.

Dentre os amigos, não listo todos aqui não por receio de esquecer alguém –

definitivamente –, mas para não ficar cansativo, e porque espero que todos tenham

consciência de que estes meus agradecimentos são a eles também. Destaco alguns que foram

de grande importância nas minhas últimas ecdises, que me ajudaram a me perder e com isso

abriram a possibilidade de me encontrar. Patrícia Misson, Beatriz Sampaio, Ricardo Dias

Almeida, Aílton Piva Júnior e Wladimir Vaz, por estarem nas cercanias e dispostos ao diálogo

em horas que muito precisei do contato com o Outro. Paulo Fernando Facioli Pestana – meu

“irmão mais velho” – e Daniel Vannucci Dóbies, pela amizade de longa data e enormes

afinidades, mesmo depois de tantas mudanças. Marise Filizola, que muitas vezes me lembrou

que, apesar dos meus desejos serem muitos, como todo ser humano, estou inserido no ciclo de

um dia e preciso escolher o que fazer nesse tempo – não posso abarcar tudo. Camila Saori

Goishi e, especialmente, Patrícia Yumi Fujisawa, por terem me apresentado o tempo em sua

intensidade. Huang Fei Shuang, por me ensinar o tempo em sua calma.

Por fim, agradeço a meu irmão, Fabrício Dalmoro, pela amizade e estímulo, e

principalmente aos meus pais, Dejanir Dalmoro e Marilda Gorte, pelo carinho e pelo apoio

ponderado e incondicional que me dedicam pacientemente há trinta anos.

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Resumo

Este trabalho versa sobre a obra A sociedade do espetáculo, do polemista francês

Guy Debord (1931-1994). Num primeiro momento são levantadas as influências com quem o

autor dialoga – direta ou indiretamente –, o marxismo, a filosofia francesa, as vanguardas

artísticas do século XX. A seguir se debruça mais detidamente sobre o livro referido, em

especial na questão da representação – a representação na política, a representação na

linguagem, a representação do tempo. Enfim, há um breve cotejamento crítico com o texto de

1988, Comentários sobre a sociedade do espetáculo.

Palavras-chave: Debord, Guy (1931-1994); Internacional Situacionista; filosofia francesa;

marxismo; vanguardas artísticas do século XX.

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Absctract

This work focuses in the book The Society of Spectacle, from the french

polemicist Guy Debord (1931-1994). Initially, there is the study regarding the influences to

whom the author dialogues – directly or indirectly – Marxism, French philosophy, the artistic

avant-gardes of the twentieth century. Subsequently, it follows more closely to the refered

book, in particular in the matter of representation – the representation in politics,

representation in language and representation of time. Finally, there is a brief critical readback

of the 1988's text, Comentaries about the Society of Spectacle.

Key-words: Debord, Guy (1931-1994); Situationist International; french philosophy;

marxism; artistic avant-gardes of the twentieth .

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Sumário

Prefácio/introdução/qualquer outro nome ........................................................... 9

Texto .................................................................................................................... 12

Bibliografia básica .............................................................................................. 178

Bibliografia auxiliar ........................................................................................... 182

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Prefácio/introdução/qualquer outro nome

“– Pelo que pude notar, você é um homem teimoso, não é mesmo? – indagou.

– Não sou teimoso. Apenas tenho o meu próprio sistema de raciocínio.

– Sistema de raciocínio? – perguntou-me e novamente mexeu no lóbulo da orelha.

– Esse tipo de coisa já não tem nenhum significado, sabia? É como um amplificador

valvulado, feito à mão. Em vez de perder tempo com isso, é melhor ir a um shopping

especializado em áudio e comprar um novo modelo de amplificador transistorizado, que será

muito mais barato e a qualidade do som, muito melhor. Se quebrar, tem garantia. Na compra

de um produto novo, eles aceitam o velho como parte do pagamento. Não estamos numa

época em que se pode falar em sistema de raciocínio. Houve épocas em que esse tipo de coisa

tinha algum valor. Mas hoje, não. Hoje, o dinheiro compra tudo. Até mesmo o pensamento.

Compre um que te sirva e é só conectar. É simples. Pode-se usar no mesmo dia. É só conectar

o A no B. Num piscar de olhos, tudo está pronto. Se ficar obsoleto, é só trocar. Assim é mais

prático. Se você ficar tentando viver no seu próprio sistema, vai acabar sendo deixado para

trás. Perde o jogo de cintura e as pessoas te fazem sentir depreciado.”

Haruki Murakami, Dance, dance, dance. pp. 257-258

Este prefácio rompe um pouco com a harmonia e um dos objetivos deste trabalho:

a apresentação de um texto sem quebras – as explícitas, ao menos. Contudo, como dentre seus

objetivos está também obtenção de um título universitário, me pareceu necessário alguma

nota prévia.

Debord, é sabido – e será comentado adiante, de qualquer forma –, foi um anti-

acadêmico em sua vida, assim como em sua obra. Não que ele tenha se mantido alheio aos

debates acadêmicos – afinal, é um dos pólos de produção e divulgação de conhecimento da

sociedade contemporânea –, mas fez questão de não se enquadrar neste saber tantas vezes

baço, tantas vezes estéril – porque não raro alienado da realidade sobre a qual versa. A

sociedade do espetáculo é um livro que traz essas marcas muito claramente: discute produção

de conhecimento, hermenêutica marxista, estruturalismo; porém o faz em aforismos, negando

o encadeamento racional do discurso, se apropriando de citações alheias sem fazer referência

ou deferências. Tanto que se trata de uma obra de difícil classificação – assim como o autor.

Este trabalho pretende, na medida do possível – possibilidade dada tanto pela

abertura oferecida pela academia quanto pelas capacidades do autor –, ser tributário do

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questionamento debordiano à instituição universitária e à sua forma de produzir

conhecimento, tentando ser algo mais do que uma apresentação e análise d'A sociedade do

espetáculo. Há aqui uma preocupação com a forma e um intento de provocação (adolescente,

talvez). Não, ele não foi escrito em aforismos, nem rejeitou a construção lógica do argumento.

Ele tampouco se quer hermético, e se assim parecer, é falha do escriba. A tentativa de

questionamento da e pela forma se deve ao modo como o texto é apresentado: sem

subdivisões, sem capítulos, sem seguir uma linearidade dura, passando, às vezes, de um tema

a outro sem maiores explicações, deixando a impressão de ser fruto de uma associação livre

surgida no momento; abusando de recortes dos autores estudados – método usado de maneira

explícita pelas vanguardas e mais comedida pela academia, daí as quase mil e quinhentas

notas de rodapé – e dos cortes bruscos de um autor a outro. Por questões de tempo (e saúde

também), admito não ter conseguido levar a cabo com plena satisfação seu intento, sendo

perceptível dois blocos bem distintos – um pré e um pós qualificação –, ainda que a presença

destes blocos possa ser justificada como a apresentação dos rastros do trabalho de pesquisa e

escrita – há correções e interpolações, mas o grosso de cada um foi escrito começando pelo

início e chegando ao seu final, sem controls cês, controls vês.

A intenção em escrever sem quebras – dependesse de mim, não haveria sequer

parágrafos, deixando ao leitor a tarefa de elaborar as rupturas e retornos e pausas no texto;

porém isso soaria antes como um problema de escrita – é de tentar mimetizar a própria forma

do livro sobre o qual me debruço, assim como este, na minha interpretação, mimetiza a forma

do capitalismo e do espetáculo: uma forma circular, que para melhor compreensão exige a

leitura do todo. Destarte, no correr da leitura, haverá trechos que parecem excessivos; outros,

incompletos; outros ainda, sem sentido. O que espero é que se encaixem até o fim do trabalho

coerentemente.

A recusa em seguir os padrões de citação da ABNT tem o intuito de dar mais

fluidez e velocidade ao texto, e de questionar a necessidade de se pôr em pedestal o

conhecimento produzido.

Já a utilização da terceira pessoa do singular, ao invés da primeira do plural, como

é praxe na academia tupiniquim, além de reproduzir a linguagem típica de um dos modos

mais visíveis da produção espetacular – a pretensa imparcialidade do jornalismo, que a

academia tem alguns curiosos pudores em assumir, por mais que se afirme (parte dela)

imparcial –, é um convite. Não iremos a ponto algum com este texto: percorri já um trajeto,

fruto de minhas leituras e vivências (por exemplo, a pesquisa sobre os situacionistas acabou

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por me inspirar a lançar uma revista eletrônica de “artes antiartes heterodoxias”, a Casuística,

em 2009), e aqui o apresento. O convite é para que os leitores sigam uma direção, a qual

possui uma miríade de caminhos – formados pelas leituras e vivências de cada um –, que

chegam a pontos mais interessantes e que não fui capaz de alcançar. Não quero, ao fim da

leitura, que meus leitores estejam no mesmo ponto que eu: os quero próximos, para que

possamos, enfim, dialogar.

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Texto

“Com a ajuda de Mefistófeles, todos os desejos de Fausto são logo satisfeitos. Ou

melhor, para dizer as coisas como de fato são, Fausto obtém o equivalente em ouro de tudo

quanto deseja.

- E não estais contente?

- Pensava que riqueza fosse o diverso, o múltiplo, o mutável, e só vejo peças de

metal uniformes que vão e que vêm e se acumulam, e que só servem para se multiplicarem a

si mesmas, sempre iguais.

Tudo o que suas mãos tocam se transforma em ouro. Logo a história do doutor

Fausto se confunde também com a do Rei Midas, na carta Ás de Ouros que representa o globo

terrestre transformado numa esfera de ouro maciço, ressecada em sua abstração de moeda,

incomestível e invisível”.

Ítalo Calvino, “Duas histórias nas quais se procura e se perde”. In: O castelo dos

destinos cruzados (A taverna dos destinos cruzados). pp. 121-122.

Em A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricoeur questiona “a relação do

dever de memória com a idéia de justiça”1: em que o excesso de rememoração na Europa

implicaria no abuso da memória, para além “de manipulações no sentido delimitado pela

relação ideológica do discurso com o poder, mas, de modo mais sutil, no sentido de uma

direção de consciência que, ela mesma, se proclama porta-voz da demanda de justiça das

vítimas”2 – a história apropriada e transformada em comemoração acrítica3 (do que foi e do

que é). Se no “velho mundo”, com seus muitos anos documentados e seus traumas de guerra,

pede-se o direito ao esquecimento, no Brasil, por outro lado, a reivindicação é pela lembrança

– ao menos de parte desses traumas mal resolvidos. O Comitê Nacional da Verdade, instituído

em 2012 no governo Dilma Rousseff, traz em seu regimento a finalidade de “efetivar o direito

à memória e à verdade histórica”4 sobre os anos da recente ditadura civil-militar, obliterada e

temida por uma parcela da sociedade. São dois pontos de um mesmo problema, questões que

se põem em pólos distintos pelas especificidades locais – o direito ao esquecimento, o direito

à memória –, mas que trazem a mesma disputa sobre o controle da memória – que implica não

apenas no poder de veridicção sobre o passado como também sobre o presente. É aquilo que 1 RICOEUR, A memória, a história, o esquecimento, p. 101.2 Idem, ibidem, p. 102.3 Idem, ibidem, p. 103.4 Regimento Interno da Comissão Nacional da Verdade, Capítulo I, artigo 1°.

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Napoleão formulara como projeto, o “de 'dirigir monarquicamente a energia das lembranças”,

e que, conforme Debord, encontra “sua concretização total” sob o espetáculo, “em uma

manipulação permanente do passado, não apenas nos significados mas também nos fatos”5. O

detalhe destas disputas citadas serem mediadas pelo Estado é um indicativo de que não se

trata de um evento isolado de todo o contexto histórico, social e econômico. Daí que este

trabalho, motivado pela questão da história e da memória, ao se pretender estudar o tempo n'A

Sociedade do Espetáculo, faz antes uma apresentação da obra toda – complementada pelos

Comentários de 1988 –, e ainda antes, uma breve genealogia, se não da obra de Debord, do

contexto em que ela foi produzida, das diversas correntes de pensamento presentes na década

de 1960 com as quais o autor – direta ou indiretamente – dialoga6.

Dentre as muitas influências que permeiam a obra de Debord, pode-se, grosso

modo, agrupar as principais em três grandes tradições – a despeito de toda imperfeição de se

utilizar desse termo: a tradição filosófica francesa, a tradição marxista, e a tradição das

vanguardas artísticas, com o surrealismo e o dadaísmo. Tradições que não apenas confluem

como se confundem, fazendo aflorar com maior evidência sua filiação marxista. Como

Kristeva comentou em curso no Collegè de France de 1994 – Sentido e contra-senso da

revolta –, sobre o suicídio de Debord em 30 de novembro daquele ano, tratava-se de “um

homem revoltado”, que analisou a sociedade contemporânea apelando a um estilo

“ultraclássico”7, com as partes se subordinando ao todo8 – o que não deixa de ser uma

interpretação discutível, visto que Debord começava seu questionamento pela forma de

produção e reprodução do conhecimento na sociedade contemporânea, o que implica também

no questionamento da instituição mais importante para isso: a universidade. De qualquer

forma, a análise pode ter sido ultraclássica, mas sua apresentação esteve longe dos padrões

clássicos aceitos pela academia – não apenas da época, como ainda de hoje. A começar que

Debord é autor de um livro só: apesar de possuir uma esparsa obra, que vai de textos a

colagens e filmes, passando por performances, intervenções e ações políticas diretas, livro ele

possui apenas um, apenas A sociedade do espetáculo, lançado em fins de 1967. Se a data de

lançamento, pouco antes das agitações de maio de 1968 na França, foi acaso ou foi visionada,

vale destacar que o livro surgiu num momento oportuno para o que se pretendia: dar corpo às

5 DEBORD, A sociedade do Espetáculo, tese 108. [Doravante SdE]6 Pela proximidade da temática, era de se esperar um cotejo, mesmo que breve, com Adorno e Horkheimer.

Isso foi deliberadamente evitado aqui.7 KRISTEVA, Sentido e contra-senso da revolta, p. 93.8 BÜRGER, Teoria da Vanguarda, p. 148.

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críticas teóricas e às agitações práticas9 que desde 1957 eram empreendidas pela Internacional

Situacional – grupo de vanguarda artístico-política, do qual Debord é o expoente-mor –, se

apresentando como mais do que um estudo, do que uma análise sobre a sociedade da época –

tal como parece ser o legado seu e o do situacionismo hoje10 –, um livro de estratégia para a

sua superação. Debord, no prefácio à quarta edição italiana, de 1979, põe a teoria do

espetáculo – e, conseqüentemente, seu livro – não apenas como desveladores da verdade

sobre a sociedade contemporânea, mas também como “a única teoria que apresentava novas

acusações estrepitosas”11 contra o sistema capitalista em maio de 1968, “a única teoria da

temível revolta de maio”12. Esta é sua versão, e é polêmica o suficiente para que se concorde

ou não com ela. Contudo não parece exagerado quando ele diz que A sociedade do espetáculo

“não cabe em nenhuma categoria de produção intelectual que a sociedade dominante aceita

levar em consideração, e que não está escrito da perspectiva de nenhuma das profissões

especializadas que essa sociedade promove”13: não é ensaística, não é panfletária, não é

didática, não é acadêmica. Deveras, apesar de aluno de direito na Sorbonne14, sua matrícula na

faculdade sempre teve o intuito de aproveitar o auxílio estudantil, como a moradia, e não de

levar em frente o curso. E isso parece ser uma boa síntese de sua relação com a academia:

apesar de estar por dentro do que acontecia nela, de estar inserido em seus debates, não a

rejeitando de todo, como irrelevante, tampouco a aceitou de todo: o objetivo e,

principalmente, a forma com que seu livro foi escrito são amostras disso.

A sociedade do espetáculo é escrito em aforismos, se apropriando de idéias de

diversos autores sem relativizá-las – ou mesmo contextualizá-las –, com as referências às

citações feitas de maneira incompleta – isso quando as citações eram apresentadas como tais,

e não simplesmente incorporadas ao texto, sem-mais. Um livro que, como toda sua obra e sua

vida, leva ao radicalismo a crítica de Lukács à reificação na produção do conhecimento

crítico, quando este diz que para “um marxista a objetividade do estudo acadêmico é tão

repreensível quanto alguém que acredite que a vitória da revolução mundial pode ser

garantida pelas 'leis da natureza'”15, pois “a unidade da teoria e da prática não existe somente

na teoria mas também para a práxis”16 (na época do lançamento d'A sociedade do espetáculo,

9 DEBORD, SdE, p.149 [prefácio à quarta edição italiana de]10 JAY, Downcast Eyes, p. 417.11 DEBORD, SdE, p. 151.12 Idem, ibidem.13 Ibidem, p. 14914 BOURSEILLER, Vie et mort de Guy Debord, p. 47.15 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 131.16 Idem, ibidem.

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meados da década de 1960, ganhava corpo dentro do marxismo Ocidental e da academia

francesa a tese oposta). Com esse intuito, Debord – também por conta da tradição dadá e

surrealista17 – deliberadamente atenta contra as regras da linguagem dominante, o que choca o

gosto daqueles educados e sempre inseridos nessa linguagem18. O que não quer dizer que seja

hermético: negar a linguagem clara do espetáculo (e da academia) não implica na busca de

uma linguagem obscura, como em Bataille19, nem rebaixá-la, como eram acusados os

surrealistas por Lefebvre20. O ponto é que Debord possui um outro público, um outro uso,

diferentemente dos livros ordinários21; mas que por se utilizar – ainda que de modo

desvirtuado, dialeticamente – da linguagem dominante do espetáculo, poderia ser

compreendido por aqueles que estão totalmente submersos nessa linguagem, desde que

rompam com os grilhões que os prendem às formas fetichistas de captar, pensar e apreender o

mundo. Debord se aproxima, portanto, de Hegel, para quem, conforme Safatle, “a clareza de

inspiração matemática que guia o uso ordinário da linguagem do senso comum é

mistificadora, pois clarifica o que não é objetivamente claro”22.

A ênfase na linguagem pode ser destacada também como conseqüência da

influência surrealista sobre o autor. Segundo Breton, o surrealismo se situou “inicialmente

quase que só no plano da linguagem”23. Destarte, a questão da linguagem para Debord não é

nada irrelevante, muito pelo contrário. Ela é um dos três eixos principais que podem ser

identificados, e em torno dos quais gira a obra aqui analisada, e que estão sempre

profundamente imbricados: o Estado, a linguagem, a história. É uma organização estatal ou

proto-estatal que determina o sentido da história; é uma nova vivência da história que funda

uma nova linguagem. Da história surgem novas organizações estatais, estabelecendo novas

linguagens, que influenciam o modo como a história será vivida, contada, lembrada. Isto pode

parecer esquemático, mas o entrelaçamento entre os três eixos deve mostrar que não há como

isolar um deles, no máximo pode-se dar maior relevância a um ou outro.

A linguagem, por ser o ponto mais evidente – mas nem por isso menos profundo –

do que se chamou sociedade do espetáculo, por intermédio do qual o espetáculo organiza a

sociedade de maneira simbólica e ideológica – sendo que “nesse caso, a ideologia não é

simplesmente uma conseqüência da estrutura econômica da sociedade, mas, ao mesmo tempo,

17 JAY, Marxism and totality, p. 290.18 DEBORD, SdE, § 205.19 JAY, Donwcast Eyes, p. 228.20 Ibidem, p. 290.21 DEBORD, op. cit., p. 146.22 SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 1.23 BRETON, “Segundo manifesto surrealista”, p. 126.

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o pressuposto do seu funcionamento pacífico”24 –, de modo a garantir legitimidade para sua

dominação e a perpetuação do modo de produção que ele sustenta e que o sustenta, servirá de

ponto de ancoragem também neste trabalho. Para Aquino, “a apreensão da crítica marxiana do

fetichismo mercantil por Debord tem sua especificidade numa nucleação – pelo conceito de

espetáculo – da questão da linguagem, sob o horizonte comunicativo”25. Ainda que se mova

dentro do contexto do marxismo inaugurado por Lukács, “que via na ideologia uma 'falsa

consciência'”26, fruto de uma leitura, segundo Arlindo Machado, distorcida do trecho de A

ideologia alemã, em que Marx e Engels dizem que “em toda ideologia os homens e suas

relações aparecem invertidos como em uma camera obscura”27, Debord, sem enunciá-lo

claramente, ultrapassa o “idealismo do projeto teleológico”28 do pensador húngaro, e supera a

idéia de ideologia como situado “no terreno de uma quimérica 'consciência'”29, como mero

reflexo de visões equivocadas na consciência das pessoas numa dada realidade histórico-

social. É isso também, mas vai além: o polemista francês não rejeita a consciência, nem

mesmo o proletariado como meta-sujeito da história, contudo, a ideologia possui um

substrato, uma “materialidade”, fundado na linguagem (que é fundada, em última análise, a

partir do modo de produção). Isso acaba por remeter às teses de V. N. Volochinov, ligado ao

“Círculo de Bakhtin”, que em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem advoga que “a

realidade material da ideologia são os signos, entidades elementares que constituem todos os

sistemas de representação”30, e são criados pelos grupos sociais e modificados no correr da

luta de classes31. “O signo existe, grosso modo, para remeter para alguma coisa fora dele

mesmo, ou seja, para 'representar' algo que não é ele próprio; daí a definição clássica de signo:

aquilo que está no lugar de alguma coisa”32, e que, conforme Saussure, só tem significado a

partir da relação que estabelece com os signos que o cercam33. Assim, se é possível concordar

com Merleau-Ponty, quando este diz que “se o signo só quer dizer algo na medida em que se

destaca dos outros signos, seu sentido está totalmente envolvido na linguagem, a palavra

intervém sempre sobre um fundo de palavra, nunca é senão uma dobra no imenso tecido da

fala”34, é preciso salientar que o signo não se esgota em relações herméticas da linguagem, e

24 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 473.25 AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 40.26 MACHADO, A ilusão especular, p. 13.27 MARX & ENGELS, apud MACHADO, A ilusão especular, p. 13.28 MACHADO, op. cit., p. 16.29 Ibidem, p. 20.30 Ibidem, pp. 19-20.31 Ibidem, p. 20.32 Idem, ibidem.33 MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, p. 67.34 Ibidem, p. 71.

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remete a objetos fora dela, representando-os dentro desse “imenso tecido da fala”. De tal

modo que para Volochinov “essa 'representação' das coisas se dá de forma dupla e

contraditória: os signos, ao mesmo tempo, refletem e refratam a realidade visada pela

representação”35, ou seja, apresentam um objeto a um sujeito, e no mesmo ato de apresentação

modificam esse objeto – pode-se dizer que Volochinov quebra com a separação radical entre

númeno e fenômeno de Kant, sem, contudo, conseguir dar ao signo o estatuto de uma unidade

dialética. Talvez porque, como Merleau-Ponty tempos depois afirmará, a linguagem é mais do

que um meio, “é algo como um ser”, que possui uma opacidade “que não cessa em parte

alguma para dar lugar ao sentido puro”36. A “distorção” ou “inversão” operada pela ideologia,

pela própria questão da linguagem, fundante do recorte da percepção do mundo, “não implica,

em todas as circunstâncias, uma 'falsificação' ou um 'ocultamento' das relações efetivas do

mundo, mas sim a marca (ou seja, o ponto de vista, a perspectiva, a estratégia operativa) da

classe social que as forjou”37. Por esta senda, pode-se, portanto, falar tanto em ideologia

burguesa quanto em ideologia revolucionária, sendo que a diferença principal “está no fato da

primeira ocultar o seu caráter de classe, fazendo-se passar por uma abstrata universalidade,

enquanto a segunda explicita esse caráter, desnuda o seu acento ideológico e manifesta aquilo

que é: um ponto de vista oposto e irreconciliável com o da classe dominante”38. Conforme

Machado. Debord não encampa a tese de ideologia revolucionária de tal forma, antes como

uma variação da ideologia dominante – uma falsa consciência, portanto –, representada de

maneira contundente pela Segunda Internacional e seus desdobramentos: o projeto

revolucionário acalentado pelo francês ainda visa à superação de toda cisão social, dentre elas

a da linguagem. Para ele, quando homem e mundo (humano) estiverem envolvidos um no

outro em uma mesma tessitura, é que a linguagem poderá deixar a condição de um objeto em

separado ou de um meio, para se tornar um ser indistinto do próprio homem. O que não pode

ser confundido com o ideal cientificista para a linguagem de cada palavra ter seu significado

claro, seu significante bem específico, dados de antemão e imutáveis (ou aspirantes a uma

definição definitiva): implica antes na aceitação radical de sua fluidez em função do contexto

e dos usos que os desdobramentos que cada pessoa, cada classe, cada sociedade, cada época

pode dar às palavras, em acordo com o mundo por ser produzido conscientemente por sujeitos

inseridos na história.

Dentro do debate marxista, salientar a linguagem dialética, como posto acima, 35 MACHADO, A ilusão especular, p. 20.36 MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, p. 71.37 MACHADO, op. cit, p. 15.38 Idem, ibidem.

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ajuda a evidenciar a posição de onde Debord parte: ao apelar seguidamente para a questão da

totalidade, se filia à tradição nomeada de marxismo ocidental, em especial na senda teórica

aberta por Lukács e sua História e consciência de classe – livro tido por inaugural desta

vertente do marxismo –, mas também na de Karl Korsch. São livros que ganharam destaque a

partir da sua publicação em francês, no final dos anos 1950, início dos anos 196039. Do

primeiro, as influências são visíveis, por exemplo, na noção de totalidade histórica40, no

freqüente apelo à consciência de classe41, na possibilidade normativa de uma vida histórica

desreificada42, tendo o proletariado como iminente classe universal43, como meta-sujeito dessa

história44, desde que agindo a partir de uma práxis unitária teórico-prática45. Do segundo,

também a compreensão da época capitalista como um todo unificado e coerente46, ademais, a

crítica feroz à hierarquização e ao burocratismo dos partidos representantes da classe operária

– em especial os de influência soviética –47, e o purismo sectário que Debord aplicou à

Internacional Situacionista – que Jay identificara em Korsch por conta da sua construção

altamente idealizada do proletariado, o que teria impedido sua adesão ao stalinismo e

influenciado grupos de extrema-esquerda48, como os próprios situacionistas. Convém salientar

que, a despeito de muitas semelhanças, o marxismo ocidental não se constituiu em um corpo

de doutrina, estando antes ligado ao movimento anti-leninista49, graças ao qual manteve as

esperanças libertárias e emancipatórias da tradição socialista50.

O ponto fulcral do marxismo ocidental, que perpassa seus diversos pensadores, é

a noção de totalidade; o que não é privilégio exclusivo seu: há toda uma ampla tradição de

pensamento holístico no ocidente no século XX51 – e mesmo na França dos séculos XVIII e

XIX52 –, que possui pontos convergentes com o holismo marxista, e por isso não podem ser

isolados, ainda que não possam ser tratados como equivalentes53. As raízes destes

pensamentos holísticos, conforme Martin Jay, remontam à Grécia Antiga, onde “em

39 AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 34.40 JAY, Marxism and Totality, p. 105 .41 Ibidem, p. 114.42 Ibidem, p. 170.43 Ibidem, p. 121.44 Ibidem, p. 161.45 Ibidem, p. 102.46 Ibidem, p. 146.47 Ibidem, pp. 130-131.48 Ibidem, p. 143.49 ARONOWITZ, The crisis of historical Materialism apud JAY, Marxism and Totality, p. 1, nota 1.50 MERLEAU-PONTY, As aventuras da dialética apud JAY, Marxism and Totality, p. 251 JAY, Marxism and Totality, p. 24.52 Ibidem, p. 71.53 Ibidem, p. 24.

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acréscimo às análises descritivas do todo ou do Uno”, herança da questão posta por

Parmênides, “o pensamento grego também acolheu idéias normativas de totalidade, as quais

culminaram na elaboração neo-platônica de tentar superar a contingência da finitude da

existência humana por intermédio do restabelecimento da sua unidade perdida com o

universo”54. Uma importante diferença está no fato de que o pensamento grego, assim como o

pensamento medieval, quando a tratar do holismo na sociedade – ou, como no caso de Platão

e Aristóteles, no Estado, então ainda ponto de totalização da vida social da época55 –, tem

como norte um conceito organicista de totalidade, algo que Marx e posteriormente os

marxistas, rejeitam. Por mais que Marx muitas vezes tenha adotado a terminologia organicista

ou metáforas naturalistas, ele nunca as teria empregado para justificar o status quo, tal qual se

costumava empregar não somente até então, como mesmo depois dele – o caso dos

darwinistas sociais, por exemplo.

Tomando Marx por uma linha muito mais dialética do que materialista, o

marxismo ocidental, além da de Hegel, tem também a forte influência de Kant e Schiller –

deixando claro, portanto, o peso da tradição filosófica alemã, em especial do Idealismo

alemão e da centralidade da razão56, particularmente quando se pensa em Lukács.

De Kant, é tomada de empréstimo a noção de totalidade normativa, uma

totalização histórica que possui coerência e estrutura como um todo – ou “longitudinal”, como

o chama Jay57 –, com forte caráter moral58. Até por conta da noção teleológica da natureza que

possui, a qual deve ser entendida mais epistemologicamente do que ontologicamente, como

uma forma do homem de encarar o mundo, já que lhe é impossível conhecê-lo de fato59, a

totalidade normativa, para Kant, é posta no futuro e não no passado60 – contrariamente a seus

contemporâneos –, e está à mercê de lutas e disputas para se chegar a ela. Conforme Jay, a

diferença para a idéia hegeliana de contradição ou para a noção marxiana de luta de classes

como motor da história é pequena, fundamentalmente que Kant “não concebeu o processo em

termos socioeconômicos; ele imaginou-o, ao invés disso, politicamente, com a criação de um

mundo de federado de nações em que cada estado possuiria uma constituição perfeita”61,

pautado na crença da tendência natural da humanidade para superar a desarmonia62.

54 JAY, Marxism and Totality, p. 25.55 Ibidem, p. 25.56 Ibidem, p. 53.57 Ibidem, p. 47.58 Ibidem, p. 49.59 Ibidem, p. 48.60 Ibidem, pp. 47-48.61 Ibidem, p. 47.62 Ibidem, p. 50.

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De Schiller, o desenvolvimento da estetização da vida – idéia advinda de Kant –,

é acompanhado da noção de que a arte é uma espécie de jogo63, e somente através desse jogo

o tempo é domado, só através do “impulso para o jogo” é possível alcançar “a extinção do

tempo no tempo e a reconciliação do sendo com o ser absoluto, da variação com

identidade”64; ou seja, é o jogo o que permite ao homem atingir o senso de totalidade, e a arte

é tão-somente “um artifício para a suspensão do tempo, uma forma de evitar a ilimitada

imensidão do infinito"65. Bürger, argumentando dentro de seu referencial de instituição da

arte, defende que a arte, em Schiller, “em razão de sua autonomia, de sua não vinculação a

propósitos imediatos”66, “por negar toda e qualquer intervenção direta na realidade, está apta a

restaurar a totalidade do homem”67, fragmentado com a divisão do trabalho e a conseqüente

sociedade de classes. Mas esta, ainda de acordo com a leitura de Schiller feita por Bürger,

“não pode ser abolida por meio de revolução política, porque a revolução só pode ser

naturalmente feita pelos homens que, cunhados pela sociedade da divisão do trabalho, não

puderam educar-se para a humanidade”68. A arte teria, portanto, a tarefa de “tornar a unir as

'metades' do homem que foram arrancadas uma da outra. Quer dizer, já dentro da sociedade da

divisão do trabalho, a arte deve possibilitar a formação da totalidade das capacidades humanas

que o indivíduo, em sua esfera de atividades, se vê impedido de desenvolver”69. A

interpretação de Bürger é bem afim à de Lukács, que também vê na proposta estética para

superação das dissonâncias e fragmentações de Schiller uma tentativa de “resposta à divisão

capitalista do trabalho”70. Em Debord, a questão da estetização da vida e do jogo como

momento de completude serão centrais no desenvolvimento da sua alternativa ao sistema

capitalista: a posse efetiva da “comunidade do diálogo” e do “jogo com o tempo, que foram

representados pela obra poético-artística”71, permite ao homem ser o “sujeito da história”, isto

é, “o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se mestre e possuidor de seu mundo que é a

história, e existindo como consciência de seu jogo”72. Hegel também reconhece em Schiller

um pensador arguto, cujo senso artístico e filosófico levou à exigência de um princípio de

totalidade e reconciliação, se opondo ao infinito abstrato do pensamento, presente na teoria

63 JAY, Marxism and Totality, p. 49.64 SCHILLER, On the Aesthetic Educations of Man in a Series of Letters apud JAY, Marxism and Totality, p.

50.65 JAY, op. cit., p. 51.66 BÜRGER, Teoria da vanguarda, pp. 87-88.67 Ibidem, p. 91.68 Ibidem, p. 89.69 Ibidem, p. 90.70 JAY, Marxism and Totality, p. 52.71 DEBORD, SdE, § 187.72 Ibidem, § 74.

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kantiana, marcado por antinomias abstratas e ahistóricas73. Para Hegel, tal superação rumo à

totalidade só é possível pelo pensamento dialético, dentro de um sistema74.

Hegel justifica epistemológica, ontológica e politicamente a necessidade da

totalidade por ele proposta. Para o filósofo de Iena, contrariamente a Kant, é possível

conhecer as coisas na sua essência, com a condição de que se sobrepuje a imediaticidade do

fato e que o encare desde um ponto de vista dinâmico, contextualizado na história – história

da qual participa o próprio sujeito, cuja racionalidade permeia o todo75. A essência, para

Hegel, de acordo com Safatle, “é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido,

contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a essência se

põe como determinação reflexiva e relacional”76. Conhecer as essências é plausível porque o

conhecimento não está dado: é primeiramente um processo, e neste processo a consciência,

após abandonar a contingência da aparência, chega à consciência-de-si, alcança a experiência

do objeto como “duplicação da estrutura da consciência-de-si e, enquanto duplicação, a

reflexão sobre a estrutura da consciência-de-si será, necessariamente, uma reflexão sobre a

estrutura do objeto”77. Além disso, “toda operação de conhecimento depende de uma

configuração prévia de um 'background' normativo socialmente partilhado, no qual todas as

práticas sociais aceitas como racionais estão enraizadas, e aparentemente não-problemático

que orienta as aspirações da razão em dimensões mais amplas”78. Esta configuração prévia é

possível porque o objeto a ser conhecido foi criado pelo sujeito, na duplicação da consciência-

de-si: “a consciência nada sabe, nada concebe, que não esteja em sua experiência”79 – objeto

e sujeito possuem, portanto, identidade80. O ponto culminante será a totalização do

conhecimento em um sistema comandado pelo Espírito Absoluto, verdadeiro meta-sujeito da

história, criador e criatura. Conforme Jay, o Espírito Absoluto seria “uma combinação do

Logos grego com a divindade cristã, que serviu para unificar o fundamento de toda

existência”81. O Espírito Absoluto, inserido na história que ele próprio cria, tem como

processos de desvelamento da verdade – e como motores da história, nestes processos – a

contradição e a negação determinada82, frutos do próprio método dialético, que “é esse

73 JAY, Marxism and Totality, pp. 53-54.74 Ibidem, p. 54.75 Idem, ibidem76 SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 14.77 Ibidem, aula 13.78 Idem, ibidem.79 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, §63.80 JAY, Marxism and Totality, p. 54.81 Idem, ibidem.82 Ibidem, p. 55.

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processo imanente de transcendência, em que o caráter unilateral e limitado das

determinações do entendimento apresentam-se como aquilo que são, isto é, como sua

negação”83. Ou seja, a negação determinada, pressuposto do processo de conhecimento para

Hegel, “é a operação que constrói processos de relação na experiência, e não deduções de

relações”. O resultado desta operação de negação determinada é “a realização da

correspondência final entre conceito e objeto”, alcançada “a partir da dinâmica do conceito”.

Por ser pressuposto de sua filosofia, Safatle reafirma a tautologia de que “o conceito, em

Hegel, não é aquilo que submete o diverso da intuição sob a forma de uma representação

genérica. Antes, ele é estrutura de relações pensadas a partir da negação determinada.”84

Nesse percurso, o conhecimento-de-si que caminha para o Espírito Absoluto se

volve cada vez mais intrincado nas suas mediações e inter-relações, distanciando-se da

imediaticidade primordial e desvelando um universo ricamente articulado – o oposto da noção

empírica de concretude85. Tais mediações se dão em relações internas entre totalidades

menores, parciais, existente em todos os níveis da meta-totalidade que compreendem o todo86.

Contudo, não se deve crer que essas relações que formam a sociedade humana sejam um mero

agregado homogêneo87, pois o qualitativo que a homogeneidade nega é fator fundamental para

a composição da totalidade. O ponto aonde o Espírito Absoluto, com o processo de

desenvolvimento histórico de suas inter-relações de sub-totalidades, irá chegar é a verdade de

si próprio na sua totalidade88. Ou seja, a totalidade é histórica, anti-transcendental89 e auto-

reflexiva90: é atuando sobre si na história, em um progresso cíclico e não linear91, “justificado

ora como aquisição verdadeira, ora como pausa, ora como refluxo e retrocesso para um novo

impulso”92 – por conta da razão dialética e do movimento da história total –, que o Espírito

Absoluto chegará a si como fruto desta história – história que é a “maturação de um futuro no

presente, não o sacrifício do presente a um futuro desconhecido, e nele a regra da ação não é

ser eficaz a qualquer preço, mas principalmente ser fecunda”93. Isso demonstra, primeiro, que

a história, para Hegel, não tem limites: ela é totalizante, não havendo nada fora dela, nenhum

83 HEGEL, Encyclopädie, tese 81, apud LUKÁCS, História e consciência de classe, pp. 355-356.84 SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 585 JAY, Marxism and Totality,, p. 58.86 Ibidem, p. 59.87 Idem, ibidem.88 Idem, ibidem89 Ibidem, p. 56.90 Idem, ibidem.91 Ibidem, pp. 55-5692 MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In: O olho e o espírito, p. 104.93 Ibidem, p. 106.

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absoluto94; e, segundo, que o autor possui uma imagem circular do tempo, composto de um

duplo aspecto: o tempo é ao mesmo tempo contínuo e coinstantâneo95. Ele é unidirecional, e

flui dialeticamente enquanto o Espírito Absoluto expressa suas dimensões potenciais e torna

objetiva a sua subjetividade, reconciliando, no final, suas contradições – em especial entre

sujeito e objeto –, e adequando a realidade ao seu conceito. Mas também a qualquer instante

deste processo o Espírito Absoluto é imanente, estando presente todos os elementos do todo96.

Na interpretação de Debord97, a reconciliação final do sujeito e objeto já está dada no

resultado das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII: daí que para o francês, Hegel é

“a realização filosófica da filosofia”, a glorificação do que existe, que só superou as

contradições em pensamento, e na sua reconciliação, apagou todas as feridas históricas – fruto

“do paradoxo que consiste em atrelar o sentido de toda realidade à sua realização histórica, e

ao mesmo tempo, revelar esse sentindo constituindo-se como realização da história”98. Para

Debord, a filosofia de Hegel, ao pôr o Espírito Absoluto – “herói absoluto que fez o que quis e

quis o que fez”99, por conta da sua teleologia realizada no presente – numa relação exterior

com relação à história atual, nega a própria noção de história – o que poderia ser

exemplificado pelo fato de, para Hegel, as rupturas entre burguês e cidadão, público e privado

não serem motivos de pesar, tal como as diversas instituições políticas e sociais, que se

contrabalançam e destarte resistem à homogeneização abstrata100. Merleau-Ponty vê nesta

exterioridade diante da história atual a homogeneização, a abstração, a perda da potência e das

condições de possibilidade da história pregressa do pensamento, ao dizer que “Hegel é o

museu, é todas as filosofias, (...) mas privadas de sua finitude e de seu poder de impacto,

embalsamadas transformadas, acredita ele, nelas mesmas, a bem dizer transformadas nele”101.

Ou seja, se por um lado102 a dialética hegeliana soube interpretar o momento, a época

revolucionária inaugurada pela ascensão da burguesia e pela idéia de história, se centrando

não na busca do sentido do sendo, mas pondo o conhecimento na apreensão da dissolução de

tudo o que é – no movimento que dissolve toda a separação –; por outro se deixou enredar na

própria ideologia burguesa de fim da história, ao tratar a história de um ponto de vista

distanciado, contemplativo. Para salvar o pensamento da história, teria sido necessária a

94 JAY, Marxism and Totality, p. 58.95 Ibidem, p. 56.96 Idem97 DEBORD, SdE, § 76.98 Idem, ibidem99 Idem, ibidem.100JAY, op. cit., p. 58.101MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In: O olho e o espírito, p. 117.102DEBORD, op. cit., § 75.

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emergência consciente do sujeito da história, pondo em prática tal pensamento, ao agir sobre a

totalidade do seu mundo. Tal sujeito é, para Marx, como para Debord, o proletariado103. É a

ação do proletariado que demonstraria não apenas a falsidade da conclusão do pensamento da

história hegeliano, como, ao mesmo tempo, confirmaria seu método104. E é por ter como base

o método filosófico hegeliano – que sempre foi história da filosofia e filosofia da história ao

mesmo tempo105 –, que Marx pôde constituir uma teoria deveras revolucionária – apesar de

haver forte corrente no marxismo que põe a ligação com o método hegeliano como o ponto

fraco da teoria marxiana, como é o caso de Bernstein106. Isso a se seguir a senda lukácsiana,

compartilhada por Debord, que aceita o que foi exposto no ensaio “O que é marxismo

ortodoxo?”107, no qual o filósofo húngaro põe como ortodoxia marxista seguir o método

dialético de Marx108 – inclusive a necessidade da revolução, por conta do declínio do

capitalismo, é posta como uma questão metodológica e não factual109 –, e não encarar seus

textos como textos bíblicos110, aos que se deve “fé” e se exige a exegese como de um livro

sagrado111. A questão do marxismo está na relação da teoria e da prática, “e não somente no

sentido em que Marx a entendia em sua primeira crítica hegeliana, quando dizia que a 'teoria

torna-se forma material desde que se apodere das massas'”112. Pelo próprio fato de estar

inserido na história, muitas das teses de Marx foram desmentidas pelo seu desenrolar, pelo

desenvolvimento do capitalismo e das lutas de classes, que não são lineares, teleológicos nem

cientificamente previsíveis – por mais que os alicerces do sistema sobre a qual se debruçou

Marx permaneçam. Como ele diz em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “os homens fazem a

história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim

sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”113.

A teoria do espetáculo pode ser vista como uma reinterpretação do capitalismo,

tendo como base o método dialético, as relações entre teoria e prática, a partir das idéias de

Marx, mas centrada na sociedade e conhecimentos da época – meados da década de 1960 –,

em suas novas formas de organização do processo de produção, da estrutura socio-estatal, dos

103DEBORD, SdE, § 78.104Ibidem, § 77.105LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 116106DEBORD, op. cit., § 79.107LUKÁCS, op. cit., pp. 63-104.108Ibidem, p. 64.109Ibidem, p. 131.110Ibidem, p. 63.111Ibidem, p. 64.112MARX, Einleitung zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie apud LUKÁCS, História e consciência de

classe, p. 65.113MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p. 329.

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métodos de dominação ideológica. Por esse mesmo princípio, ele revisa em alguns detalhes

sua teoria nos Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, de 1988 – em apenas um

detalhe, ao menos no plano teórico, segundo o próprio.

Para Lukács, o marxismo ortodoxo, ou seja, o método dialético, consiste na forma

como a teoria revolucionária penetra nas massas – para Jay, História e consciência de classe

“pôs a relação entre teoria e prática no centro do debate marxista de tal modo que transcendeu

as limitações tanto do culturalismo revolucionário, quanto da ortodoxia da Segunda

Internacional”114 –, ou, de modo mais direto: “trata-se, por fim, de desenvolver a essência

prática da teoria a partir da teoria e da relação que estabelece com seu objeto” 115 – lacuna que

Marx teria deixado em seu trabalho teórico116. Nota-se, portanto, que Lukács aceita a

identidade hegeliana entre sujeito-objeto, ao menos como necessidade normativa de uma vida

desreificada, ainda a ser alcançada117 – as divisões entre sociedade civil e Estado, homem e

cidadão, que Marx aponta n'A questão judaica, significariam que a totalidade na qual se insere

a unidade sujeito-objeto não é uma atualidade118. Ainda na esteira de Marx, o húngaro

desaprova a atitude contemplativa para com a totalidade em Hegel, em que quem age e quem

compreende a história são pessoas diferentes119: para ele, o sujeito adquire a unidade com o

objeto não apenas porque o produziu, mas porque segue a produzi-lo. Este sujeito construtor

do mundo, meta-sujeito da história universal, advindo da ascensão do modo de produção

capitalista, é o proletariado – a única classe capaz de ter consciência do seu ser no mundo120,

por estar no centro do processo produtivo. E o marxismo ortodoxo, para levar a cabo seu fim,

tem como função não a “liquidação definitiva de falsas tendências, mas uma luta

incessantemente renovada contra a influência perversora das formas de pensamento burguês

sobre o pensamento do proletariado”121. Afinal, todo conhecimento da realidade – seja o

dialético, seja o burguês – parte dos fatos – sejam fatos empíricos ou fatos da linguagem. Uma

primeira questão está em “saber quais dados da vida e em que contexto metódico merecem ser

considerados como fatos importantes para o conhecimento”122. Para a ciência burguesa, presa

às formas fetichistas de apreensão da realidade123 – convém ressaltar que o método científico

114JAY, Marxism and Totality, p. 102.115LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 65. Grifo meu.116DEBORD, SdE, § 85.117JAY, op. cit., p. 182.118Ibidem, p. 64.119Idem, ibidem.120LUKÁCS, op. cit., p. 66.121Ibidem, p. 104.122Ibidem, p. 70.123Ibidem, p. 105.

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nasce do ser social de um classe, e que essa classe tem suas raízes num dado modo de pensar

cujas origens são muito anteriores a ela –, ela deve partir de “fatos puros”124: um fenômeno da

vida, para ser conhecido, precisa ser isolado e “transportado, realmente ou em pensamento,

para um contexto que permite estudar as leis às quais ele obedece sem a intervenção

perturbadora de outros fenômenos”125. Com isso, ele acaba reduzido à sua “pura essência

quantitativa, à sua expressão em número e em relações de número”126, o que apenas reforça a

impressão supra-histórica desses fenômenos, incapacitando cada vez mais a ciência para

perceber o caráter histórico dos mesmos – e de si mesma, conseqüentemente. Não que para

Lukács a investigação científica não acarrete sempre certo isolamento e abstração dos

elementos. O ponto está na autonomia com que tais elementos são tratados127. Na ânsia de

melhor apreender o fenômeno estudado, a ciência burguesa, por razões de exatidão científica

exigida pelos métodos consagrados nas ciências naturais, se especializa e divide cada vez

mais seu objeto, o que faz com que perca a visão da totalidade e, junto, o caráter histórico que

cerca e determina tal fenômeno – por mais que esse fato possa, eventualmente, ser encarado a

princípio de maneira histórica, é preciso descartar sua característica de estar em permanente

transformação128. Isso está afim com o seu ser social, de fragmentação do processo de trabalho

e atomização da sociedade em indivíduos isolados129, para não falar da paralisia da história130.

No fim, a ciência burguesa acaba por perder “cada vez mais o sentido verdadeiro dos

problemas reais”131. É interessante notar que o que a ciência burguesa perde não é o

problema, mas o sentido necessário para compreendê-lo e solucioná-lo: ela pode até estar no

ponto de partida correto, mas por conta do método se perde no seu desenvolvimento: a perda

da base histórica do seu objeto faz com que ela perca a própria cientificidade que com tanto

ímpeto se aferra132. Abdicar do processo histórico é um imperativo do método racional: a

busca por leis – que eventualmente podem ainda não terem se estabelecidas por completo –

exige que se fixe um ponto inaugural a partir do qual se fará a apologia da ordem existente133.

É o pressuposto das chamadas “ciências duras” – a física newtoniana, em especial –, que o

pensamento burguês tenta expandir para as demais esferas do conhecimento – incluindo as

124LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 71.125Idem.126Idem, ibidem.127Ibidem, pp. 106-107.128Ibidem, p. 74.129Ibidem, p. 105.130DEBORD, SdE, § 158.131LUKÁCS, op.cit., p. 118. Grifo meu.132Ibidem, p. 73.133Ibidem, p. 136.

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artes. É o que Hegel vê como dinâmica típica da Modernidade, em que se busca “realizar as

expectativas de auto-fundamentação nas múltiplas esferas da vida social (...), [num] processo

histórico animado pelas promessas de uma razão una do ponto de vista de suas dinâmicas de

racionalização”134. A primeira perda – fundamental – deste método de raciocinar é que esses

fatos “são – precisamente na estrutura de sua objetividade – produtos de uma época histórica

determinada: a do capitalismo”135. E captar isso é impossível à ciência burguesa porque,

inserida nas formas reificadas de apreensão, ela “reconhece como fundamento do valor

científico a maneira como os fatos são imediatamente dados [...], aceitando sem crítica sua

essência, sua estrutura de objeto e suas leis como um fundamento imutável da 'ciência'”136. O

fato de, para Lukács, a ciência burguesa ser capaz de ao menos tangenciar o problema real,

leva-o a uma posição de não rejeitá-la de todo, muito pelo contrário: assim como para Marx

negar o método burguês em nome de uma “ciência pura” do proletariado é uma atitude que

“poderia dar origem apenas a uma nova economia vulgar com um sinal de mais e menos

invertido”137, para o autor de História e consciência de classe os avanços da ciência burguesa

devem ser aproveitados dentro da metodologia dialética, nunca descartados, uma vez que a

dialética “considera os problema de toda sociedade capitalista como problemas das classes

que a constituem, sendo a dos capitalistas e a dos proletários apreendidas como conjuntos”138.

Como dito acima, todo conhecimento parte dos fatos, e estes são dados necessariamente no

presente – por mais que se refiram a fatos passados. Para o marxismo ortodoxo lukácsiano

conhecer significa, primeiro, não se prender à imediaticidade dos fatos, antes buscar as

relações que os determinam. Com isso, tem-se que o conhecimento começa no presente, mas

também termina nele: ponto de partida e de chegada são os mesmos – a situação atual da

sociedade –, a questão está na forma como o presente será encarado – tanto teórica quanto

praticamente – depois do percurso crítico da dialética. Aqui se encaixa o princípio utilizado

por Debord em A sociedade do espetáculo: por um lado a obra é uma denúncia do capitalismo

tardio, sua forma de produção, reprodução e dominação – nada, portanto, que não seja

passível de ser conhecido, se se romper com as formas reificadas de apreensão da realidade –;

por outro, Debord se negou a fazer um livro pedagógico: o trabalho de compreensão da obra,

do conceito de espetáculo e, concomitantemente, da sociedade que ela desvela, cabe ao leitor

– exigindo dele, ao se reconhecer na linguagem espetacular, superá-la dialeticamente. Assim,

134SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 17.135LUKÁCS,História e consciência de classe, p. 74. Grifo do autor.136Idem, ibidem.137Ibidem, p. 108.138Idem, ibidem.

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se “o conceito de espetáculo unifica e explica uma diversidade de fenômenos aparentes”139,

Debord apenas lança, no correr da obra, essa diversidade de fenômenos que “o espetáculo é”,

apresentando-os como um dado – tal qual o próprio espetáculo se apresenta, algo dado, pronto

e acabado –, e a partir dessa série de dados fixos, o autor proporciona ao leitor as chaves para

notar sua fluidez, fazendo uma síntese deles, transformando-os em um produto de sua

reflexão. Para tanto, ele se utiliza, em partes, da própria lógica espetacular: analisar e separar

de maneira arbitrária e artificial seus elementos sintéticos, inseparáveis na prática – tal qual o

espetáculo faz com a vida, com a ciência, com a sociedade, decompostas em diversas esferas

(aparentemente) independentes e (apresentadas como) autônomas. Utilizar-se dessa lógica e

desse método significa, no fim, se apropriar da linguagem espetacular140, não como aceitação

da inefabilidade do espetáculo, tal qual o espetáculo proclama, mas, antes, como uma das

estratégias para tornar evidente pelo plágio141, pelo uso desviado142 – que não se fundamenta

em nada “exterior à sua própria verdade como crítica presente143 – os limites e as armadilhas

de tal lógica, de tal linguagem, de como “conclusões críticas passadas cristalizadas em

verdades respeitáveis”144 se tornam mentiras, por exemplo, apontando possíveis lacunas

presentes no discurso oficial e a possibilidade de organizações da vida realmente extra-

espetaculares, de forma a questionar a coerência monolítica que o espetáculo não tem, mas

cuja aparência consegue sustentar145. Ou como fala Aquino: “a crítica dialética deve buscar

renverser (desarranjar, revirar, reverter) a inversão aí realizada e recolocar em jogo a crítica

que as revoluções sociais e, junto a estas, a poesia moderna fizeram à sociedade produtora de

mercadorias”146. Há o risco, contudo, de tal crítica ser anulada pelo próprio espetáculo;

Debord está ciente disso, e aponta Marx como um caso em que a teoria revolucionária é

prejudicada por ter submergido na linguagem oficial147. Espetáculo pode se tornar um

conceito crítico de tudo e não do todo, que no fim se torna a retórica vazia do nada, uma

aparência de crítica e uma crítica das aparências148, a qual apenas reafirma –

apologeticamente, ainda que de maneira negativa – o espetáculo149.

Partir de um ponto para chegar ao mesmo, após um percurso crítico, está bem

139DEBORD, SdE, § 10.140Ibidem, § 11.141Ibidem, § 207.142Ibidem, § 208.143Ibidem, § 208.144|Ibidem, § 205.145Ibidem, § 72.146AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 177.147DEBORD, op. cit., § 85.148Ibidem, § 203.149Ibidem, § 197. § 203.

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afim à filosofia hegeliana, para a qual “a verdadeira tarefa filosófica não consiste em tentar

esclarecer previamente a significação de conceitos primeiros para a estruturação de todo saber

possível (...). A verdadeira tarefa filosófica consiste em partir do uso ordinário desses

conceitos para mostrar como sua significação não é universalmente conhecida, como poderia

parecer primeiramente (...). [A filosofia] deve mostrar que a produção dos conceitos que

norteiam o saber é o resultado de um processo, e não a pressuposição de uma evidência. A

dialética deve começar sem conceitos próprios, apenas conjugando os conceitos do

entendimento em outra gramática”150. Portanto, A sociedade do espetáculo parte dos conceitos

dados pelo espetáculo e os ressignifica dialeticamente, de modo a permitir ao leitor desnudá-

los. A obra, como a Fenomenologia do Espírito, é “estruturada como um movimento circular

que é retomado sempre em estágios mais englobantes”151, com a diferença de que a

circularidade em Debord instiga o leitor a ampliar sua visão sobre os processos do espetáculo

– não é ela mesma mais englobante. A estrutura formal do livro não se restringe apenas ao

estilo hegeliano, a circularidade e a fragmentação da sua apresentação também estão afins

com a forma como espetáculo se apresenta. Destarte, se o espetáculo, conforme seus próprios

termos, “é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana – isto é, social –

como simples aparência”152, o percurso crítico permite chegar à sua verdade, descobrindo-o

“como a negação visível da vida; como negação da vida que se tornou visível”153. Fechar esse

ciclo não é algo simples, nada tem de imediato – e não é uma mera atividade teórica: é mister

que seja acompanhada da prática: por isso o privilégio da classe proletária. E a apropriação do

método hegeliano está não apenas em sua concepção cíclica de conhecimento154, como

também na concepção dual do tempo, que, neste caso, se fecha em um ciclo: o conhecimento

do proletariado, ao mesmo tempo em que avança para um maior autoconhecimento da sua

situação – autoconhecimento que coincide com o conhecimento da totalidade –, chega, por

fim, à situação inaugural de onde partiu para seu processo de conhecimento – mostra de que o

todo já estava, desde o início, presente. Essa circularidade se deve ao fato da história ser

encarada como um processo unitário155, o que autoriza a inteligibilidade deste processo, desde

que feito a partir do ponto de vista da totalidade.

O ponto de vista da totalidade, dentro desta senda do marxismo ocidental, é o

150SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 4.151Ibidem, aula 13.152DEBORD, SdE, § 10. Grito do autor.153Ibidem, § 10. Grifo do autor154JAY, Marxism and Totality, p. 56.155LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 82.

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grande trunfo do proletariado, é o que o distingue da classe capitalista. Ele está apto a tê-lo

porque está no centro do sistema produtivo, no centro do modo de produção capitalista, numa

época em que a economia domina e determina a sociedade como nunca dantes156, e que tem as

pessoas como ontologicamente iguais por natureza e igualmente determinadas socialmente,

nos seus aspectos mais gerais – será a classe a que pertencem que dará atributos mais

específicos aos indivíduos, de acordo com a premissa do materialismo de que “não é a

consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que

determina sua consciência”157. Participando – obrigado – do processo de feitura do mundo, o

proletariado pela primeira vez não é estranho à história158, e por estar na tarefa prática de

construção do mundo, é capaz de apreender as relações que determinam a sociedade para

além das relações numéricas – como o fazem os capitalistas –, ele está apto a apreendê-las

qualitativamente, e com isso romper o véu de naturalidade que a imediaticidade dos fatos

apresenta159. Além disso, nesse desvelar ele apreende as próprias formas fetichistas de

objetividade “engendradas necessariamente pela produção capitalista”, o que permite “vê-las

como mera ilusões, que não são menos ilusórias por serem vistas como necessárias”160.

Debord corrobora esta idéia de Lukács, visto que um dos véus de que o espetáculo se utiliza

para encobrir a realidade está na concepção fetichista da pura objetividade161, replicada nas

ciências, na imprensa, na filosofia, nas formas de apreensão da realidade. É sobre essas

ilusões necessárias que se funda, ao mesmo tempo em que sustenta ideologicamente a

sociedade de classes: “elas são, portanto, objetos do conhecimento, mas o objeto conhecido

nessas formas fetichistas e através delas não é a própria ordem capitalista de produção, mas a

ideologia da classe dominante”162, e “a 'falsidade' e a 'ilusão' contidas em tal situação real não

são arbitrárias, não são opostas de acordo com um ideal acima delas, ao contrário, são a

expressão mental da estrutura econômica e objetiva”163. A ideologia, portanto, diferentemente

do que afirma Machado sobre Lukács, não é descartada como mera falsa aparência: ela possui

também algo de verdadeiro – que seja a estrutura da própria ideologia. Debord, sem aceitar a

tese de ruptura epistemológica em Marx, assume o conceito de falsa consciência de Marx em

suas várias fases: é uma ilusão, um véu produzido historicamente, fruto das relações de

156DEBORD, SdE, § 88157LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 94.158DEBORD, op. cit., § 143.159LUKÁCS, op. cit., p. 86.160Ibidem, p. 85.161DEBORD, op. cit., § 24.162LUKÁCS, op. cit., p. 86.163Ibidem, p. 143.

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trabalho, que impede a apreensão, por parte dos sujeitos, das relações escamoteadas pelo

sistema de produção capitalista, mas é também a expressão da “essência real” desse sistema,

“da qual a ilusão não constitui um epifenômeno, mas um momento constitutivo”164. “Romper

com esse véu para se chegar ao conhecimento histórico”165, à visão da totalidade, é, de acordo

com Lukács, “uma necessidade vital, uma questão de vida ou morte” do proletariado; o que

justificaria o indivíduo empenhar não apenas sua ação, mas o próprio ser no movimento

político proletário – concepção sobre a qual, conforme Rosenberg, Lenin erigiu sua doutrina

para além do marxismo166. Evitar que a história irrompa – ao menos controlar a forma como

ela desponta na sociedade – é uma das tarefas que o espetáculo se auto-impõe.

O ponto de vista da totalidade que o proletariado possui – ponto de vista que parte

da práxis social –, dá a ele a oportunidade para romper com essa bruma ilusória, visto que ele,

consciente de sua posição no mundo capitalista, determina não somente o objeto, como o

próprio sujeito do conhecimento: “a totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a

determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem

de pensar o objeto como totalidade. Somente as classes representam esse ponto de vista da

totalidade como sujeito na sociedade moderna”167. Esse princípio de totalização a partir da

classe e não individualmente, Lukács toma emprestado de Hegel, para quem, do ponto de

vista do indivíduo, “totalização pessoal era impossível fora do contexto da totalização

global”168. E tal totalização global pressupõe, em Hegel, “que nunca conhecemos objetos

isolados, mas sempre relações de objetos. Assim, só podemos conhecer um objeto ao

conhecermos o conjunto de relações que determinam a significação dos objetos”169. A ciência

burguesa, por seu turno, “– de maneira consciente ou inconsciente, ingênua ou sublimada –

considera os fenômenos sociais sempre do ponto de vista do indivíduo. E o ponto de vista do

indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito o de levar a aspectos de um

domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a 'fatos' desconexos

ou a leis parciais abstratas”170. Assim, o máximo que a ciência burguesa pode chegar é a um

essencialismo, um “formalismo incapaz de conceber as formações sócio-históricas em sua

essência verdadeira”171 – isto é, sua condição dinâmica e relacional –, que mistifica as formas

164ROUANET, A razão cativa, p. 89.165LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 86.166ROSENBERG, A tradição do novo, p. 142.167LUKÁCS,op. cit., p. 107.168JAY, Marxism and Totality, p. 59.169SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 4.170LUKÁCS, op. cit., p. 107.171Ibidem, p. 137.

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sociais em relações naturais, fixas e imutáveis em sua essência, e que desemboca na rejeição

da práxis transformadora, seja em nome de uma política de melhor adaptação do indivíduo

para se dar bem em tal sistema, ou em nome de uma ética, “uma forma de atividade do

indivíduo isolado”172.

A história, aqui, aparece como tarefa insolúvel ao pensamento burguês, incapaz de

dominá-la e compreendê-la – a própria filosofia hegeliana da história, ainda segundo Lukács,

ao tentar dominar o processo histórico pelo pensamento, teria nesse ponto um dos seus

limites173. A concepção dialética, por seu turno, ao pressupor a realidade inserida num

processo histórico, com os fenômenos sendo determinados pelas suas relações, pelas ações

recíprocas, dialéticas e contínuas, apresenta a inteligibilidade desse objeto “a partir de sua

função na totalidade determinada na qual ele funciona”. Com isso, a concepção dialética da

totalidade, ao unir teoria e prática e buscar a compreensão do mundo em sua negatividade, é

“a única capaz de compreender a realidade como devir social”174. O próprio projeto da

Fenomenologia do Espírito, como aponta Safatle, é o “da reconciliação entre pensar e ser, em

seu devir”175. No caso específico de Lukács, ele alia a filosofia crítica de Marx, uma meta-

filosofia que é “uma teoria da teoria, uma consciência da consciência”, e que significa, em

muitos aspectos, “uma crítica histórica”176, e a qual tem como mérito maior dissolver

“sobretudo o caráter fixo, natural e não realizado das formações sociais”, desvelando-as

“como surgidas historicamente e, como tal, submetidas ao devir histórico em todos os

aspectos, portanto, como formações predeterminadas ao declínio histórico”177, com o conceito

instrumental de “categoria da possibilidade objetiva”178: “tipos fundamentais claramente

distintos uns dos outros e cujo caráter essencial é determinado pela tipologia da posição dos

homens no processo de produção”179. É dessa tipologia que se deduz a consciência de classe,

que não é “nem a soma, nem a média do que cada um dos indivíduos que formam a classe

pensam, sentem, etc”180, numa clara influência de Max Weber e seu conceito de tipo ideal,

acrescido de uma dimensão ontológica181. A possibilidade objetiva, ao cabo da revolução e da

conseqüente desreificação da sociedade, seria atualizada, destarte desaparecendo a lacuna

172LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 95.173Ibidem, p. 136.174Ibidem, p. 85. Grifos do autor.175SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 3. Grifo meu.176LUKÁCS, op. cit., p. 135.177Idem, ibidem.178Ibidem, p. 141.179Ibidem, pp. 141-142.180Ibidem, p. 142.181JAY, Marxism and Totality, p. 112.

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hegeliana entre essência e aparência182.

Para poder utilizar essa categoria metodológica, porém, é preciso saber qual a

função prática da consciência de classe, que pode ser “do ponto de vista abstrato e formal (...),

ao mesmo tempo uma inconsciência, determinada conforme a classe, de sua própria situação

econômica, histórica e social”183. Portanto, a possibilidade objetiva do proletariado de tomar

consciência do seu ser social e realizar a revolução social – dar prosseguimento com a era das

revoluções inaugurada pela burguesia –, se deve ao fato – e exclusivamente a ele, conforme o

filósofo húngaro – “de ser capaz de considerar a sociedade a partir do seu centro, como um

todo coerente e, por isso, agir de maneira centralizada, modificando a realidade; no fato de,

para sua consciência de classe, teoria e práxis coincidirem e também, por conseguinte, de

poder lançar conscientemente sua própria ação na balança do desenvolvimento social como

fator decisivo”184. Ação esta que não se prende às formas burguesas, ao “domínio de validade”

que a ciência e o pensamento burguês dão à história, segundo os quais “a história significaria

apenas mudança de conteúdos, de homens, de situações, etc., com princípios eternamente

válidos”185 e tendendo a um fim – a história teria, inclusive, a missão de alcançar esse fim. A

ação do proletário se dá a partir da “história dessas formas, sua transformação como formas da

reunião dos homens em sociedade, como formas que, iniciadas a partir de relações

econômicas objetivas, dominam todas as relações dos homens entre si”186.

Essa fixação na consciência – principalmente na questão da práxis –, em Lukács,

pode ser mais bem compreendida se se enxergar História e consciência de classe como “a

mais articulada expressão, no nível teórico, dos eventos de 1917, dividindo na prática todas as

suas inevitáveis ambigüidades”187, ou seja, se se encarar História e consciência de classe, a

despeito da centralidade da questão da consciência e da articulação com a prática que o livro

traz188, como imbuído da concepção leninista de partido de vanguarda, visto por Lukács como

a tendência do impulso espontâneo das massas, quando na tomada de consciência189. Dentre as

ambigüidades levantadas por Jay, está o fato da consciência de classe precisar ser imputada na

classe trabalhadora, que, se deixada a si própria, não conseguiria ir além do desenvolvimento

de uma consciência sindical (trade-union conscience), reformista – idéia esta também

182JAY, Marxism and Totality, p. 112.183LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 143. Grifo do autor.184Ibidem, p. 172.185Ibidem, p. 136. Grifo do autor.186Idem, ibidem187JAY, op. cit., p. 103.188Ibidem, p. 102.189LUKÁCS, op. cit., p. 130.

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presente em Que fazer?, de Lenin190. Isso acaba por reforçar, ainda que indiretamente, a

necessidade, apontada por Rosenberg, da construção mitológica de Lenin como um herói

moderno, marcado “'por sua inabalável convicção da própria integridade' baseada na 'ciência'

marxista”191, o que, no fundo, influenciou a concepção do homem comunista, como sendo

feito “da substância abstrata dos heróis”192. Rosenberg chega a escarnecer desse homem

comunista, feito à imagem e semelhança de Lenin, ao dizer que ele, “em uma frente de

batalha não se limita, como um comandante de outros exércitos, a dar ordens e fazer com que

sejam cumpridas. Mais como um anjo disfarçado, ou o fantasma de César fantasiado de chefe

dos escoteiros, ele ostenta uma aura de percepção de que se acha predestinado”193. Isso que foi

chamado de mitologia, diga-se de passagem, é um objetivo que soa comum à época, e pode

ser encontrado também em várias vanguardas artísticas do século XX: dadá era mais que um

movimento artístico, era um modo de vida que exigia um engajamento completo194, enquanto

os surrealistas criam na visão profética dos artistas como guia transformadora da realidade,

com Breton defendendo explicitamente, em texto de 1937, “que o surrealismo deve dar-se

como tarefa 'a elaboração do mito coletivo de nossa época', cujo papel ao mesmo tempo

erótico e subversivo seria análogo ao papel desempenhado no final do século XVIII, pouco

antes da Revolução Francesa, pelo roman noir”195. No caso dessas vanguardas, em especial do

surrealismo, além da influência dos partidos revolucionários, deve-se levar em conta também

o legado de Rousseau196, e deixar bem marcada a diferença de que se tratavam de tentativas

deliberadas de construção de mitologias, de exigência de engajamento completo criados

dentro de pequenos grupos, sem o aval, o estímulo e o financiamento do aparato de poder

estatal – como no caso da figura do comunista, em especial de Lênin. Retornando a Lukács,

esse detalhe – nada insignificante – de encarar o todo como dotado de coerência, também de

inspiração hegeliana, aponta para certa crença em alguns pressupostos iluministas, que serão

criticados com mais veemência tanto pelos filósofos da chamada Escola de Frankfurt197, como

por Althusser, e que também será posta em dúvida pela teoria do espetáculo de Debord.

Contudo, estar apto à tomada da consciência de classe por parte da classe operária

não significa tê-la, nem equivale a pô-la em prática, necessariamente. Trata-se de um processo

190JAY, Marxism and Totality, p. 112.191WOLFE, Bertram. Os três que fizeram uma revolução apud ROSENBERG, A tradição do novo, p. 130.192ROSENBERG, A tradição do novo, p. 130.193Idem, ibidem.194DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 135.195BRETON, “La claire tour” apud LÖWY, A estrela da manhã, p. 25.196STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, cap. III197JAY, op. cit., p. 274.

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inserido na história de superar o pensamento reificado dominante na sociedade – pensamento

que é também paralisante da práxis –, em favor de outro, auto-reflexivo e dialético. Primeira e

principal dificuldade está no fato de que a forma de pensar dominante – fragmentada,

parcelar, especializada, formalista – está fortemente imbricada com a própria forma de

produção da sociedade: pode ser vista como um reflexo na consciência da estrutura da

sociedade capitalista. Daí, inclusive, a aparente naturalidade com que emerge e a dificuldade

em desvelá-la. A própria filosofia, a despeito do seu cabedal crítico, não consegue ir além

dessa estrutura, “vai se assemelhando a uma teoria econômica-administrativa”198, se tornando,

via de regra, homologadora do status quo, linha auxiliar da ciência burguesa, para quem

justifica post festum o mundo tal qual está e o seu método de investigação: “a filosofia vai se

aproximando da dinâmica da época”199.

A necessidade de ação do proletariado, inclusive sobre si próprio, repercute

diretamente na forma de organização deste, e na forma como será conduzida a luta de classes

na sociedade. A tentativa de comprovação determinista-científica da revolução por Marx é um

legado que deixou seqüelas profundas no movimento operário posterior; foi, conforme

Debord, “a brecha pela qual penetrou o processo de 'ideologização'”, ainda enquanto ele

vivia200. Com esse processo, o marxismo ulterior pôde muitas vezes ser comparado às

correntes utópicas do pensamento – que eram utópicas, a despeito de “fundadas

historicamente na crítica da organização social existente”201, por rejeitarem a história, “isto é,

a luta real em curso, tanto quanto o movimento para além da perfeição imutável de sua

imagem de sociedade feliz”202. Rejeição à história esta devida ao forte cientificismo que

impregnava tais correntes, crentes no poder social da demonstração científica, a ponto de

acreditar que assim se chegaria à tomada do poder, como no caso de Saint-Simon, o que levou

Sombart a zombar: “Como queriam eles arrancar pela luta o que deve ser provado?”203

Raciocínio semelhante, ainda que menos tosco, norteia a Segunda Internacional e a social-

democracia. Calcado no comentário de Engels, feito em 1895, de que os fracassos das lutas

proletárias revolucionárias ao longo do século XIX teriam se dado não por problemas de

estratégia de luta, antes de análise teórica, visto que “o desenvolvimento econômico no

continente estava então muito longe de se mostrar maduro”204, deduzia-se, em acordo com “a

198MURAKAMI, Dance, dance, dance. p. 82199Idem, ibidem.200DEBORD, SdE, § 84.201Ibidem, § 83202Idem, ibidem.203Idem, ibidem. Grifo do autor.204ENGELS apud DEBORD, SdE, § 84.

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ciência das revoluções, [que] a consciência sempre chega cedo demais, e deverá ser

ensinada”205, para que o proletariado esteja preparado para levar adiante o grande dia da

revolução comunista. Foi esta a tarefa auto-outorgada pelo “marxismo ortodoxo”206 da

Segunda Internacional: entregar aos professores a educação da classe operária. A “forma de

organização da social-democracia era adequada a essa aprendizagem passiva”207.

Se se seguir pelo pensamento de Lukács, a tática de postergar a revolução em

favor de uma “pedagogia revolucionária” tende apenas a tornar tais tarefas – a pretensa

educação do proletariado e a revolução – mais árduas, visto que “a 'maturidade' para a

revolução é um processo longo e difícil, e tanto mais complicado quanto mais altamente

desenvolvidos forem o capitalismo e a cultura burguesa em questão; quanto mais, por

conseguinte, o proletariado estiver contagiado ideologicamente pelas formas capitalistas de

vida”208 – o espetáculo seria um estágio avançado dessa contaminação. O detalhe é que

mesmo sob a influência do partido, para o pensador húngaro, a formação do proletariado para

a revolução deve ser autodidata, e não hetero-dirigida, sob o risco de se acabar na caricatura

descrita por Rosenberg, em que o proletariado, ao aderir ao Partido, se torna membro de “uma

elite dos conscientes”, um intelectual, mas um intelectual desobrigado de pensar, pois a

verdade ser-lhe-á ensinada pelo Partido, de forma que “o comunista costuma ser criticado por

sua renúncia ao pensamento independente. De que vale a atividade mental se se pode saber

mais renunciando a ela?”209 No fim, o ponto aonde se chegou com essa política foi o reforço

da lógica e da dominação espetacular sobre a sociedade. O que não quer dizer que a Segunda

Internacional não entrou em lutas políticas e econômicas concretas: a questão é que tais lutas

eram “profundamente” não-críticas210: a contestação ao sistema era, na verdade, mera

aparência, sendo, no fundo, um estímulo ao seu aperfeiçoamento, com a burocracia sindical –

assistida por jornalistas, deputados e intelectuais – a transformar os operários em “corretores

da força de trabalho, a ser vendida como mercadoria pelo preço justo”211 – que, sempre

confinados em limites seguros, “não só deixam intocados os fundamentos do sistema

capitalista, mas também asseguram sua reprodução em escala crescente”212. Não era o que

argumentava tanto a ciência burguesa quanto a ciência das revoluções: a justificativa desta

205DEBORD, SdE, § 84.206Ibidem, § 95, aspas do autor.207Ibidem, § 96.208LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 478.209ROSENBERG, A tradição do novo, p. 133.210DEBORD, op. cit., § 96.211Ibidem, § 96.212MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 193.

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para esse tipo de ação – anunciada como revolucionária – era a de que o sistema capitalista

não suportaria “economicamente esse reformismo que ele tolerava politicamente na agitação

legalista”213. Ambas as ciências garantiam que esse caminho levaria ao impasse do

capitalismo; “a história os desmentia a cada momento”214 – o que não chega a ser um

problema dentro da organização espetacular da sociedade. A falha das lutas proletárias no

presente, contudo, devia ser encarada como falta de condições objetivas, e a revolução

postergada um tempo mais, em favor do amadurecimento dessas condições, tempo durante o

qual a classe operária seria melhor educada, melhor preparada, cabendo a ela, no fundo, muito

pouco fazer em termos práticos, além de estar de corpo presente no momento oportuno para

agir conforme as ordens dos líderes do partido215, garantindo a substituição do Estado burguês

e o avanço do “Estado revolucionário”, pós tomada do poder. Ocorre que, para o partido

operário adepto da ciência das revoluções, esse momento oportuno para agir é sempre

prorrogado, “a vinda do sujeito histórico é adiada para depois, e a ciência histórica por

excelência, a economia, tende de modo cada vez mais alargado a garantir a necessidade de sua

própria negação futura”216, pondo o movimento operário em pausa, em um permanente estado

de espera, a revolução numa latência eterna, a tomada, finalmente, da história pelos homens

num futuro breve – mas sempre futuro. A Segunda Internacional, cuja ideologia recobra “a

confiança na demonstração pedagógica que caracterizava o socialismo utópico, mas acrescida

de uma referência contemplativa ao curso da história”217, toma a ortodoxia marxista como

exegese de textos sagrados, como doutrina – e não como método –, identificando sua verdade

nos elementos puramente estruturais da sociedade, no processo objetivo da economia,

ignorando as ações recíprocas da superestrutura. Ou seja, descarta qualquer noção de

totalidade – seja a história total de Hegel, seja a imagem imóvel da totalidade, presente na

crítica utópica218 –, em favor de uma visão parcial e unidirecional. O resultado da pedagogia

calcada nessa ideologia foi o de repelir qualquer prática revolucionária de fato para fora do

campo de visão teórica do proletariado219. Pior: mesmo nos momentos oportunos, a prática

revolucionária foi rechaçada. Na leitura de Debord, houve dois momentos emblemáticos,

demonstrativos de que “a hierarquia social-democrata não tinha conseguido educar

213DEBORD, SdE, §96.214Ibidem, §96.215MICHELS, Robert. Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna: investigação sobre

as tendências oligárquica da vida dos agrupamentos políticos.216DEBORD, op. cit., §84.217Ibidem, §95. Grifo do autor.218Idem, ibidem.219Ibidem, §84.

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revolucionariamente, não havia tornado teóricos os operários alemães: primeiro, quando a

grande maioria do partido se juntou à guerra imperialista [a Primeira Guerra Mundial];

segundo, quando, na hora da derrota, ela esmagou os revolucionários espartaquistas”220. Se

Lenin e os bolcheviques foram além da prática reformista, foi simplesmente porque a

ideologia revolucionária da Segunda Internacional não permitia outro tipo de ação nas

condições russas: “Lenin foi apenas, como pensador marxista, um kautsquista fiel e

conseqüente”221.

A explicação debordiana para Marx não ter dado a devida atenção à questão da

organização do proletariado é que, na época em que se fundava o movimento operário, a

teoria revolucionária tinha o caráter unitário, “vindo do pensamento da história,” que tinha se

dado como tarefa “desenvolver até uma prática histórica unitária”222: construída na própria

luta, na premência dos embates, ela teria até conseguido, diante dos seus primeiros êxitos, “se

libertar das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam”223, garantindo o

meio prático que dava validade à teoria224. Contudo, a subseqüente forte reação, e a rápida

derrota e repressão da Internacional, sacramentaram a questão da organização como “o lugar

da inconseqüência” da teoria revolucionária, “ao admitir o uso de métodos estatais e

hierárquicos tirados da revolução burguesa”225. As duas concepções da revolução proletária

que surgiram a partir daí resultaram na negação da formação revolucionária e autodidata da

classe obreira – a única forma, de acordo com Lukács, em que o proletariado “consegue se

libertar da sua dependência ideológica relativa às formas de vida criadas pelo capitalismo”,

com a qual “ele aprende a impedir que elas influenciem internamente suas ações” e “consegue

vê-las como motivos sem menor importância”226 –, pois as duas continham “uma dimensão

autoritária, que [fazia] com que a auto-emancipação consciente da classe [fosse] deixada de

lado”227; ou seja, faziam com que se tornasse impossível uma verdadeira revolução social, em

que as pessoas agem como sujeitos inseridos na história que eles mesmo constroem. De um

lado, os marxistas, do outro, os bakuninistas. Cada um com suas críticas parcialmente

verdadeiras, e cada um como ideologia da revolução operária. Acerca da necessidade do

Estado numa sociedade pós-revolução – tema de vital importância para a organização da luta

220DEBORD, SdE, §97.221Ibidem, §98.222Ibidem, §90. Grifos do autor.223Ibidem, §91.224Ibidem, §90.225Idem, ibidem.226LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 478.227DEBORD, op. cit., §91.

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naquele momento –, “Bakunin combatia a ilusão de que as classes pudessem ser abolidas pelo

uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante

burocrática e a ditadura dos mais doutos ou dos assim considerados. Marx acreditava que um

amadurecimento inseparável das contradições econômicas e da educação democrática dos

operários reduziria o papel do Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas

relações sociais que se imporiam objetivamente”228. Marx sustentava sua posição com base

não apenas na compreensão da história, do momento histórico e da disputa de classes, como

também se sustentava excessivamente em argumentos científicos229. O posicionamento de

Marx na querela com Bakunin teria sido de grande influência àqueles que o seguiram de

maneira acrítica, dogmaticamente – de que a Segunda Internacional e seu marxismo ortodoxo

são a forma mais bem acabada. Kautsky e a social-democracia alemã são o desenvolvimento

deste Marx ideológico e de sua prática mais conseqüente: “a ideologia científica da revolução

socialista”230. Tal ideologia, ao se ater à letra dos textos marxianos, ignorando que seu cerne é

o método, ganha traços do pensamento religioso, na própria questão da convicção no dia da

revolução redentora, e não apenas na exegese e interpretação da obra de Marx: “o ex-operário

Ebert [primeiro presidente da Alemanha, político moderado do Partido Social-Democrata

Alemão] ainda acreditava no pecado, pois confessava odiar a revolução 'tanto quanto o

pecado'”231.

Uma leitura acurada de Marx, conforme Debord, ou mesmo Lukács, deixaria

evidente que o filósofo da práxis nunca abandonou o pensamento unitário, de que teoria e

prática não podem estar separadas, por mais que a forma de demonstração por ele utilizada

tenha sido fragmentada, presa “no terreno do pensamento dominante ao adotar a forma de

críticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da

sociedade burguesa, a economia política”232. Ter sido obrigado a defender e explicar sua teoria

“no trabalho erudito separado, no Museu Britânico, implicava uma perda da própria teoria”233,

era a mostra de que “a teoria revolucionária ainda não atingira sua própria existência total”234.

Pior: “as justificativas científicas tiradas do futuro desenvolvimento da classe operária e a

prática organizacional combinada com essas justificativas tornar-se-ão os obstáculos à

228DEBORD, SdE, § 91.229Ibidem, § 89.230Ibidem, § 95.231Ibidem, § 96.232Ibidem, §84233Ibidem, §85234Idem, ibidem.

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consciência proletária num estágio mais avançado”235, ou seja, serão novas barreiras à visão

da totalidade, numa lógica que será utilizada para reforçar o espetáculo. Isso em parte porque

se Marx soube – com consciência – se apropriar e superar a filosofia hegeliana, acabou se

vendo estreitamente ligado ao pensamento científico burguês da época, de forma a não

conseguir ter o mesmo discernimento para superá-lo criticamente. A ligação a este

pensamento seria perceptível, por exemplo, na “compreensão racional das forças que se

exercem na sociedade”236. A sua superação, ao notar que se trata “de uma compreensão da

luta, e não da lei: 'Conhecemos uma única ciência: a ciência da história', diz A ideologia

alemã”237. A superação do pensamento científico sem a mesma consciência em relação ao

pensamento hegeliano resultou, por fim, na falha teórica que implicou nas diretrizes da

Segunda Internacional, as quais redundaram na perda do caráter revolucionário do movimento

operário, que sob tais diretrizes agiram; pois a falta de consciência permite retrocessos e acaba

muitas vezes por balizar a teoria e a conseqüente prática em pontos que haviam sido

superados. Não por acaso, Debord diz que “o projeto de Marx é o de uma história

consciente”238, e isso deveria valer para tudo, tanto no que tange à prática, em que “o

quantitativo que surge no desenvolvimento cego das forças produtivas meramente econômicas

deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa”239, quanto à teoria, em que “a

crítica da economia política é o primeiro ato desse fim da pré-história”240, marcada pela

supremacia do quantitativo. Contudo, a crítica da economia política, isolada do seu contexto

de luta, desembocou naquilo que Debord encarou como o resumo de “toda insuficiência

teórica na defesa científica da revolução proletária”241: a identificação do objetivo do

proletariado com o que foi o objetivo da revolução burguesa - a tomada revolucionária do

poder através da apropriação e reforma do Estado242. Isso porque esta teoria científica da

revolução parte de uma série de premissas equivocadas já desde o próprio Marx.

Especificamente no caso do Estado, Marx teria descuidado do seu papel econômico na gestão

da sociedade classes, ignorando que ele é um instrumento ativo e positivo do

desenvolvimento da economia burguesa: o “laisser faire, laisser passer” do liberalismo

esconde um poder central de gestão calculada do processo econômico243, muito diferente do

235DEBORD, SdE, § 85.236Ibidem, § 81.237Idem, ibidem.238Ibidem, § 80.239Idem, ibidem.240Idem. Grifo do autor.241Ibidem, § 86. Grifo do autor.242Idem, ibidem.243Ibidem, § 87.

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balcão de negócios da burguesia, mero facilitador – “não-atrapalhador” – da economia. A

oposição e o desenvolvimento autônomo da burguesia frente o Estado se deram apenas

enquanto este era instrumento de opressão de classe numa economia estática, ou seja, o

Estado Antigo, feudal, medieval244. Mesmo no Estado Absolutista, com sua corte dispendiosa,

sob a gestão econômica mercantilista, não havia a oposição entre Estado e burguesia, muito

pelo contrário; e, por mais que esta logo passasse a não considerar tal desenho estatal sua

forma mais bem acabada, para aquele momento histórico foi fundamental – até para instituir

certa racionalidade necessária ao sistema capitalista245.

No bonapartismo, em compensação, em que o que se destaca é a questão política,

assunto ao qual Marx se mostrou mais sensível, já é esboçada uma descrição da burocracia

estatal – “fusão do capital e do Estado, constituição de um 'poder nacional do capital sobre o

trabalho, de uma força pública organizada para a sujeição social'”246 –, e é possível extrair

algo próximo a um tipo ideal de raio de ação política desejada (e praticada) pela burguesia

para as outras classes, assim como para si mesma: igualar todas no mesmo nada político. Se

deveras acontece de os avanços democráticos garantirem uma ampliação do conceito de

cidadania e uma maior igualdade entre os cidadãos, independentemente da classe, é porque

enquanto aproximam os direitos de proletários e burgueses, o que ocorre de fato é um

nivelamento por baixo entre ambos – a perda da participação política efetiva de todos247. Para

Debord, essa tendência é um dos elementos constitutivos do Estado moderno, cujos

aperfeiçoamentos institucionais nunca mudaram de rota, a despeito – ou melhor, com a ajuda

– das agitações legalistas e das práticas reformistas do movimento operário, calcadas na

Segunda Internacional. Logo, o Estado moderno, o Estado burguês, com todo seu aparelho

burocrático, com toda sua capacidade de organização e gestão, “a violência concentrada e

organizada da sociedade”248, não pode ser instrumento do proletariado, nem com práticas

reformistas e ganhos graduais de direitos legais, nem com sua tomada jacobina: se tal Estado

serviu para “ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção

em capitalista”, abreviando a transição249, o mesmo não se dá na revolução proletária:

“nenhuma ideologia lhe pode servir para disfarçar objetivos parciais em objetivos gerais,

porque ele não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efetivamente dele”250. E

244DEBORD, SdE, § 87.245MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p 84.246DEBORD. op. cit., § 87.247Idem, ibidem.248MARX, op. cit., livro I, Tomo II, p. 286.249Idem.250DEBORD, op. cit. § 88.

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não há como pôr o Estado a serviço de todos: ele foi fundado sob princípios conservadores,

para impor uma visão de mundo específica, para atender aos interesses de uma determinada

classe social, a burguesia – o que o torna, por princípio, impeditivo de uma visão da

totalidade. Trata-se de um instrumento enviesado por sua própria constituição: um Estado

intrinsecamente burocratizado, hierarquizado, separado em esferas especializadas, com vistas

à sujeição social; em suma, o Estado burguês é um Estado gestor do processo econômico e do

processo político, apto a garantir a progressão da história da economia e o congelamento da

história dos homens, bem de acordo com o ethos burguês – após ter feito sua revolução e se

firmado no poder – de abdicar de toda política, de toda história, “que não seja sua redução à

história econômica das coisas”251.

“Houve história, mas já não há”252. Debord vê no nascimento deste Estado

burguês moderno – nascimento que se deu sob o signo do bonapartismo – as bases

sociopolíticas do espetáculo, que se refletirão na organização estatal tanto do bloco capitalista

quanto do bloco comunista. Para ele, aceitar qualquer política estatal, qualquer migalha que

venha sob o rótulo de ampliação de direitos – que trazem embutidos o custo de maior

cerceamento político-histórico –, é coadunar com esse Estado, é aceitar a história econômica

como única história: por isso a recusa do espetáculo só é efetiva se for radical 253. E é a partir

da recusa dessa organização sócio-estatal, que é também a negação de seu ser social, fruto de

seu “conhecimento da sociedade burguesa”254, que, pela negativa, o proletariado se afirma

como a única classe pretendente à vida histórica255, como única classe disposta ao gládio

permanente, ao embate político quotidianamente – inclusive porque a classe proletária só se

constitui como sujeito durante a organização das lutas revolucionárias e na organização da

sociedade no momento revolucionário256. Tal como a social-democracia, Debord admitiria que

há, sim, um momento oportuno – um kairós – para o levante revolucionário. Todavia,

contrariamente à ideologia revolucionária, toda a propedêutica à revolução que os partidos de

vanguarda pretendem ensinar aos operários para esse momento não passa de reforço à lógica

espetacular de contemplação do curso da história, incapaz de torná-los sujeitos históricos: “a

fusão do conhecimento e da ação precisa realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que

cada um desses termos coloque no outro a garantia de sua verdade”257. Quer dizer, desde que o

251DEBORD. SdE, § 87.252Ibidem, § 143.253Ibidem, § 122.254LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 378.255DEBORD, op. cit., § 87.256Ibidem, § 90. Grifo do autor.257Idem, ibidem.

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ponto de vista da totalidade esteja presente e atuante conscientemente, a todo instante.

O ponto de vista da totalidade, acrescido da recusa radical do espetáculo – em boa

medida conseqüência dessa perspectiva –, não pode ser confundido com a recusa da imagem

enquanto tal, por maior que seja a desconfiança de Debord para com “as categorias do ver”,

que dominam o pensamento Ocidental desde a Grécia Antiga no seu modo de compreender a

atividade e são, segundo ele, “a fraqueza do projeto filosófico ocidental”258 – o que faz com

que ele bem se enquadre em certa tradição filosófica francesa, levantada por Martin Jay no

livro Downcast Eyes.

Uma das apresentações de Debord do conceito de espetáculo é uma releitura do

fetichismo da mercadoria, que Marx tomara de empréstimo de E. G. Wakefield, que

“descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas intermediada

por coisas”259: “por um lado, vê-se aqui como o intercâmbio de mercadorias rompe as

limitações individuais e locais do intercâmbio direto de produtos e desenvolve o metabolismo

do trabalho humano. Por outro lado, desenvolve-se todo um círculo de vínculos naturais de

caráter social, incontroláveis pelas pessoas atuantes”260. Para o polemista francês, o espetáculo

é “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”261, uma “Weltanschauung que se

tornou efetiva, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou”262. Trata-se,

portanto, de mais do que “um conjunto de imagens”263, do que “o abuso de um mundo da

visão, o produto das técnicas de difusão maciça de imagens”264, como será reforçado na crítica

espetacular do espetáculo nos anos subseqüentes à sua teoria265: é um ponto de vista que tem

suas bases no modo de produção e que ganha, graças à sua linguagem peculiar – o abuso da

imagem –, auxiliada pelas novas tecnologias, o poder de ser mais do que ideologia, de se

tornar algo sensível. Para Aquino, “o que Debord tem em vista sob o conceito de 'imagem' são

justamente as relações sociais fetichistas, fundadas na autonomização do valor e estendidas à

totalidade do uso social do tempo, do espaço, para além do trabalho assalariado, mas

essencialmente obedecendo à sua lógica disciplinar e contemplativa”, não sendo “uma

referência estrita à visão 'sensível'”, como julga Mario Perniola266. Ao se lidar com o

espetáculo não se está lidando com uma mera questão de apreensão do mundo pelo indivíduo,

258DEBORD, SdE, § 19.259MARX, O Capital, livro I, Tomo II, p. 296.260Ibidem, livro I, Tomo I, p. 99.261DEBORD. op. cit., § 4.262Ibidem, § 5.263Ibidem, § 4.264Ibidem, § 5.265DEBORD, Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, III.266AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 70.

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mas de construção empírica e simbólica – via processos produtivos e via linguagem – deste

mundo, o engajamento do sujeito nesse enorme processo de emaranhadas relações sociais.

São questões teóricas e práticas, epistemológicas e políticas que estão em jogo.

A relação da filosofia ocidental com o sentido da visão não é unidirecional, linear

ou progressiva. Sua origem remonta à Grécia Antiga, acompanha a ascensão de um mundo

ocularcêntrico no início da Idade Moderna267 – que encontrou na França um domínio maior e

mais evidente268 –, e tem seu ponto de inflexão na filosofia francesa no século XVIII, em

especial com Jean-Jacques Rousseau, sendo Descartes – considerado por muitos, como

Richard Rorty, “o pai fundador do paradigma visualista moderno”269 – e o cartesianismo os

principais interlocutores do pensador genebrino.

De início, pode parecer incongruente que o pensador que duvidou de todos os

sentidos para começar a constituir sua filosofia seja tido como um filósofo que reforçou a

ordem ocularcêntrica do mundo. O ponto em Descartes, entretanto, está em que, após a

dúvida radical do início, sua filosofia é construída a partir da noção de representações que

existiriam na mente270. A visão é, antes de tudo, a visão dessas idéias na mente, representações

imagéticas do mundo exterior – este, sim, visto com o sentido da visão, mas factível de falhas,

se não se tiver uma clara compreensão delas. Ao ter o conhecimento como a visão clara da

representação do mundo produzida em nossa mente pelos sentidos, Descartes “foi o fundador

da tradição especulativa da reflexividade identitária, na qual o sujeito é tão-somente sua

imagem no espelho”271: não apenas o mundo, mas o próprio sujeito perde sua imediaticidade,

se tornando um duplo de si mesmo. Sua teoria do conhecimento, por conseguinte, se assenta

não na semelhança ou similaridade do conhecimento com relação ao objeto, mas na

representação desse objeto – de que Kant posteriormente se apropriará ao afirmar que a razão

só é capaz de conhecer a representação das coisas, e não a coisa-em-si. Nessa transposição da

coisa e sua semelhança para a representação pura e simplesmente, nessa necessidade de

mediação para o conhecimento, transpassa um corte lingüístico – tido por natural e ahistórico

–, com o qual, conforme Jay, “Descartes estava sutilmente abrindo a porta para a

epistemologia não-visual, linguisticamente orientada de veridicção”272. A posição, o

posicionamento de Descartes pode ser melhor compreendido a partir do contexto da época, do

267JAY, Downcast eyes, p. 44.268Ibidem, p. 69.269Ibidem, p. 70 270RORTY apud JAY, Downcast Eyes, p. 70.271JAY, op. cit., p. 70.272Ibidem, p. 80.

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processo de revalorização da imagem que corria então. De acordo com a leitura de Martin Jay,

não é o caso de que tenha havido durante a chamada Idade Média européia hostilidade para

com a visão, como sugerem Lucien Febvre e Robert Mandrou273: ela apenas ocupava o

terceiro posto na hierarquia dos sentidos, atrás do tato e da audição274 – o que não implica

num papel subalterno, se se tiver em vista “a luz brilhante que cobre as catedrais góticas (uma

luz cuja importância metafísica foi enfatizada pelo Abade Suger), o culto às relíquias visuais

e, finalmente, a iluminação vívida dos manuscritos”275. Jay identifica três pontos principais da

relação medieval com a visão, que direcionaram o mundo ocularcêntrico que surgiria na

Europa a seguir. Primeiro, a metafísica medieval da luz, adaptação religiosa carregada de

platonismos, que manteve a visão como o mais nobre dos sentidos, apesar do perigo dela fazer

surgir pensamentos lascivos. Segundo, a longa disputa acerca das implicações da idolatria

desta metafísica, e a diferenciação entre representação e fetichismo, iconolatria e idolatria.

Isto – somado à separação entre visual e textual – acabou por ajudar a preparar “o caminho

através do qual se pode dizer que houve a autonomização secular do visual como um domínio

para si mesmo”, o que foi crucial para a emergência da visão de mundo (worldview,

Weltanschauung) científica276. Por fim, o terceiro ponto é que a visão nunca perdeu sua

capacidade persuasiva no campo sacro. Ajudada pelas novas tecnologias – como imprensa e

perspectivismo –, se tornou dominante no mundo Moderno, servindo a novos senhores277.

Esse domínio não implica, todavia, em uniformidade, e é claro que houve disputas pela

hegemonia sobre o campo visual que emergia com força.

Uma dessas tensões foi a presença do regime ocular barroco, em disputa com o

ordenamento visual científico ou “racionalizado”278, derivado do Renascimento. Essa

“racionalização do olhar”279 vem de um processo que abrange mudanças sociais, políticas e

estéticas, além das inovações técnicas, contribuindo para aquilo que Norbert Elias chamou de

“processo civilizador”, em que os elaborados rituais de corte de exibição, inventados para

marcar as articulações da hierarquia social, “levaram a uma desvalorização dos sentidos mais

íntimos, como o cheiro e o toque, em favor de uma visão distanciada”280. A função política

deste espetáculo da corte foi a emergência de um “aparato mecânico no qual o poder do

273JAY, Downcast eyes, p. 36.274Ibidem, p. 34.275Ibidem, p. 41.276Ibidem, p. 44.277Ibidem, p. 45.278Idem, ibidem.279IRVIN apud JAY, Donwcast Eyes, p. 49.280JAY, op.cit, p. 49;

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controle visual estava despersonalizado”281, em que os indivíduos estavam constantemente sob

vigilância – dado sua localização no centro de uma rede de canais visuais. Concomitante, a

imagem vai desvencilhando seu caráter figurativo do textual282, com a representação valendo

por si e a perda da função narrativa do campo ocular: “um elemento importante numa

mudança maior da mudança de ler o mundo como um texto inteligível (o 'livro da natureza')

para a aparência de um objeto observável, mas sem sentido, onde Foucault e outros

argumentam estar o símbolo da nova ordem epistemológica”283.

Característica fundamental desta mudança está na percepção do espaço, tanto nas

artes quanto nas ciências: ele muda de significado, altera sua forma de apreensão, cresce em

importância. O fim da necessidade textual – que só será alcançado plenamente no século XX,

com a pintura abstrata284 – abre espaço para signos carregados de significados simbólicos, que

surgem em profusão e confusão nas obras de Botticelli, Giorgione, Carpaccio e Bosch, por

exemplo, conforme estudo de Albert Cook285. Ao trabalhar com o simbólico, a preocupação se

desloca da sua posição na narrativa para a localização na tela, já sob as regras da perspectiva,

da técnica de ilusão tridimensional na tela plana e bidimensional286. Ilusão esta que ganha ares

de neutralidade, de ahistoricidade, que na representação textual podia ser posta em questão,

tão cedo caísse o argumento de autoridade287. “O espaço e não os objetos nele passam a ter

importância crescente”288. E com a separação da estética em campo isolado do religioso – em

especial após a Reforma –, a “perspectiva estava livre para seguir seu próprio curso e se tornar

a cultura visual naturalizada de uma nova ordem artística”289 e urbana290. De maneira

semelhante acontece a mudança na percepção e utilização do espaço pela ciência. Também

neste caso, “o espaço estava despojado de sua qualidade de ser um significante independente

para se tornar um sistema ordenado e uniforme de coordenadas lineares abstratas. Enquanto

tal, ele era menos a plataforma para o desenvolvimento de uma narrativa do que o recipiente

infinito de processos objetivos”291. Ou seja, “a conseqüência imediata da revolução científica,

com seus débitos para a noção perspectiva do espaço, foi a narrativa ser banida do método

281JAY, Downcast eyes, p. 50.282Ibidem, p. 51.283Ibidem, p. 51.284Idem, ibidem.285COOK, Albert. Changing the signs: The fifteenth-century breakthrough apud JAY, Downcast Eyes, p. 51.286JAY, op. cit., p. 51.287Ibidem, nota 104, pp. 51-52.288Ibidem, p. 52.289Idem, ibidem.290MUMFORD, A cidade na história, p. 397.291JAY, op. cit., pp. 52-53.

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cognitivo que produz 'a verdade' sobre a realidade exterior”292. Isso significou a

matematização de todas as relações aspirantes à veridicção sobre o mundo, reduzindo-as a

grandezas e abstrações espaciais.

Em suma, ao mesmo tempo em que o visual passa a predominar na ordenação do

mundo, este não é a visão dos sentidos: a substituição do mundo visual pelo campo visual,

conforme Gibson293, é antes um recorte da realidade que passa pela abstração desse campo,

tanto no início quanto no final do seu processo de conhecimento. A perspectiva cria um

espaço cenográfico teatralizável294: uniforme, infinito, isotrópico; nas artes, na arquitetura e

no urbanismo, nas ciências, na política, na economia. Jay assevera, independente do peso

relativo que possa ter, que a ascensão da perspectiva e o prosperar do capitalismo ocorreram

simultaneamente e em acordo295 – possuem “afinidades eletivas”, termo que Weber tomou de

empréstimo de Goethe para suas análises da sedimentação do capitalismo296 –, e cita como um

exemplo de invasão da esfera capitalista pela abstração que dominava o espaço a invenção

renascentista do “'dinheiro imaginário' sem qualquer lastro prévio em metais valiosos, como

ouro”297.

É com esse cabedal, a partir desse contexto que Descartes irá refletir e construir

sua filosofia, sua epistemologia, sacramentando filosoficamente a mudança do paradigma de

mundo visual para campo visual298, em que Deus deixa de ser absoluto para se tornar mero

fiador de um conhecimento, fruto de uma ordem lingüística humana – uma linguagem que

busca o máximo de clareza e distinção para nomear as representações do mundo que encontra

em si. Trata-se de um mundo visível que foi organizado “para o espectador como o universo

outrora fora disposto para Deus”299, e que Descartes reforça ao dizer que “sua própria

investigação filosófica [era] uma excursão na qual ele tentou 'ser um espectador ao invés de

um ator' nos assuntos do mundo”300. O legado de Descartes no iluminismo francês pode ser

notado, por exemplo, em Voltaire, que, apesar de não partir do pressuposto das idéias inatas,

“usou 'idéia' para se referir a uma representação interna na consciência humana, uma imagem

no olho da mente. Idéias não são mais realidades externas objetivas à mente subjetiva, como o

292JAY, Downcast eyes, p. 53.293Ibidem, p. 55.294FRANCASTEL apud JAY, Downcast eyes, p. 57.295JAY, op. cit., p. 59.296GOETHE, J. W. As afinidades eletivas. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.297ROTMAN, Brian. Signifying nothing: the semiotics of zero apud JAY, Downcast eyes, p. 58.298JAY, op. cit., p. 81.299BERGER, John. Ways of seeing apud JAY, Downcast Eyes, p. 54.300DESCARTES, Discourse on method apud JAY, Downcast Eyes, p. 81.

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Eidos platônico”301. Ou então em Montesquieu, cujo método de compreensão era baseado em

captar o mundo num instante, numa visão panorâmica do cenário, tanto social quanto natural,

o que o punha como espectador envolvido apenas de longe com o objeto de sua observação

(“não é para se surpreender que Montesquieu tenha sido muito venerado como o pai da

ciência social imparcial, em busca de formas eternas da vida política e social”302).

Contudo, o trajeto de racionalização e abstração do espaço e da visão não foi este

trajeto em linha reta pintado até agora. No meio do caminho havia o barroco, disputando a

supremacia sobre a ordem visual emergente na Modernidade – e que terá grande apelo no

século XX, em Debord como em outros filósofos, que se oporão à racionalidade técnica-

científica da época. O barroco surgiu em conexão com a contra-reforma, a resposta da Igreja

Católica às mudanças operadas pela Reforma Protestante, pela revolução científica e pelas

explorações além-mar do século XVII303. No âmbito da reforma, o barroco apela à sedução

dos sentidos para tentar reaver o rebanho perdido, se opondo assim à radical suspeição

protestante frente à visão em favor da palavra de Deus proferida sem mediações304. Nas

ciências, o barroco se choca com a visão da razão científica, subvertendo sua ordenação com

seu desprezo pela claridade lúcida e pelas formas essenciais. Ao invés de aspirar uma visão

totalizadora, a visão barroca celebra, de acordo com Buci-Glucksmann, “a confusa interação

entre forma e caos, superfície e profundidade, transparência e obscuridade”305, fazendo uso de

uma “sobrecarga do aparato visual com um excedente de imagens numa pluralidade de planos

espaciais”306, como se percebe em sua arte. Essa “loucura da visão”307 resulta numa

perspectiva deslumbrante e distorcida, oposta à clara e tranqüila perspectiva da verdade do

mundo exterior. O barroco, em suma, tenta representar o irrepresentável e invariavelmente

falha nessa sua tarefa: daí que ele expresse a melancolia característica do período: “o

entrelaçamento da morte e do desejo”308, a fixação no singular, insatisfatória e destituída de

esperanças, porque vinculada “à consciência de que a realidade, enquanto algo a ser

conformado, escapa ao indivíduo”309. Walter Benjamin, a partir da sua pesquisa sobre o

barroco, trabalha em cima do conceito de “alegoria”. Bürger tenta destrinchá-lo em suas

partes constitutivas e apresenta o seguinte esquema: “1. O alegorista arranca um elemento à

301JAY, Downcast eyes, p. 84.302Ibidem, p. 90.303Ibidem, p. 45.304Ibidem, p. 46.305Ibidem, p. 47.306Ibidem, pp. 47-48.307BUCI-GLUCKMANN apud JAY, Downcast eyes, p. 47.308JAY, op. cit., p. 48.309BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 130.

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totalidade da vida. Ele o isola, priva-o de sua função. Daí ser a alegoria essencialmente um

fragmento e se situar em oposição ao símbolo orgânico (...). 2. O alegorista junta os

fragmentos da realidade assim isolados e, através desse processo, cria sentido. Este é, pois,

um sentido atribuído; não resulta do contexto original dos fragmentos. 3. Benjamin interpreta

a atividade do alegorista como expressão da melancolia (...). 4. Também a esfera da recepção

é considerada por Benjamin. A alegoria, que pela sua natureza é fragmento, apresenta a

histórica como decadência”310. Jeanne Marie Gagnebin, por seu turno, enfatiza a relação entre

alegoria e tempo. Conforme a autora, “a reabilitação da alegoria é, tal como Benjamin a

empreende, como uma reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao ideal

de eternidade que o símbolo encarna”311. Temporalidade esta que começa no próprio fato da

alegoria ser depreciada pela tradição filosófica clássica, por conta da “sua historicidade e pela

sua arbitrariedade”312. A retomada desse conceito como chave para explicar não apenas o

drama barroco como a lírica baudelairiana no contexto da modernidade, assim como a força

questionadora das vanguardas do século XX, está de acordo com base marxista de crítica da

história: assumir uma posição clara de onde se está falando – o ponto de vista do proletariado

–, que é uma posição arbitrária, ditada pelo modo de produção; assim como reconhecer o

caráter histórico de tudo o que é social e humano, recusando qualquer trans-historicidade ou

ahistoricidade. A unificação destes momentos distintos, barroco e modernidade, sob o mesmo

conceito articulador de uma chave interpretativa é também uma crítica do autor ao

historicismo. Frente ao preenchimento do tempo vazio e homogêneo com uma enumeração

oca de acontecimentos, Benjamin defende “um encontro secreto, marcado entre as gerações

precedentes e a nossa”313, em que “a história que se lembra do passado também é sempre

escrita no presente e para o presente”314, ou seja, trata-se de “articular historicamente o

passado”, o que “não significa conhecê-lo 'como ele é de fato'. Significa apropriar-se de uma

reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”315 – e a classe operária está

permanentemente sob risco. Esses destaques de pontos isolados da história – passada e

presente – “só serão verdadeiramente salvos quando formarem uma constelação”, quando

receberem um nome e um traço comum que as reunirá316: “o esboço de uma ligação inédita

entre dois fenômenos histórico; graças a esta ligação, dois elementos (ou mais) adquirem um

310BÜRGER, Teoria da vanguarda, pp. 127-128.311GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 31.312Idem, ibidem.313BENJAMIN, “Sobre o conceito de história”, tese 2.314GAGNEBIN, op. cit., p. 97.315BENJAMIN, op. cit., tese 6.316GAGNEBIN, op. cit., p. 15.

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novo sentido e desenham um novo objeto histórico, até aí insuspeitado, mais verdadeiro e

mais consistente que a cronologia linear”317. Para se contrapor ao tempo mecanicista,

Benjamin se baseia no modelo epistemológico da “teologia judaica, da grande esperança

religiosa e histórica afirmada na História do Exílio e da Redenção”, além dos modelos da

historia naturalis e da filosofia de Platão, culminando os três na teoria do Ursprung

(origem)318. “A origem seria, por assim dizer, uma Idéia que só pode se realizar

verdadeiramente historicamente: 'Em cada fenômeno de origem se determina a forma com

[sob] a qual uma idéia se confronta [sempre de novo] com o mundo histórico, até que ela

atinja a plenitude na totalidade sua história'. Uma definição que coloca em questão não só a

eternidade da Idéia platônica, mas também uma representação abstrata e vazia do tempo

histórico como sucessão infinita de pontos que somente a ordem de sua aparição

interligaria”319. Assim, “'a alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno

coexistem mais intimamente'. Por isso ela floresce na idade barroca, dilacerada entre os

dogmas da fé cristã e a cruel imanência do político, por isso também voltará num Baudelaire,

dividido entre a visão de uma 'vida anterior' harmoniosa e a de uma modernidade

autodevoradora”320. Ou seja, o alegorista coleta fragmentos de ordens díspares que coexistem

e não se harmonizam, e os inscreve no tempo presente, em busca de um sentido em meio a

essa sensação de luto, de morte: “a dolorosa resignação ao transitório e ao fugidio”321.

Portanto, ele se opõe à defesa exultante da ordem vindoura e seu porvir, e denuncia uma

ordem social essencialmente cindida. Da mesma forma, a própria interpretação alegórica se

apresenta como “produção abundante de sentido, a partir da ausência de um sentido último,

expõe as ruínas de um edifício do qual não sabemos se existiu, um dia, inteiro”322.

Outro ponto de questionamento e perda de confiança na visão tal qual posta pela

racionalidade hegemônica da Modernidade, Starobinski encontra no fim do século XVII, a

partir de duas tendências: uma nova valorização da penumbra, tida como um complemento

necessário – até mesmo como fonte – da luz323; e a revivificação neo-platônica de um ideal de

beleza que não pode ser percebidos pelos olhos normais, na observação mundana324. Estes

pontos fazem com que se retome a relação ambígua com a visão não só de Platão, como da

317GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p 15.318Ibidem, p. 12.319Ibidem, p. 15.320Ibidem, p. 37.321Ibidem, p. 42.322Ibidem, p. 46.323JAY, Downcast eyes, p. 107.324Ibidem, p. 106.

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filosofia grega. Conforme Jay, na senda de Jonas, a questão da visão, do visível, sempre foi

muito forte entre os gregos. “A palavra teatro, como é constantemente anotado, divide a

mesma raiz das palavras teoria, theoria, que significa olhar para algo de modo atento,

observar, contemplar. Assim também ocorre com teorema, o que autoriza alguns

comentadores a enfatizar o privilégio da visão na matemática grega, com sua ênfase em

geometria”325. Segundo Jonas, “Platão, e com ele a filosofia ocidental, fala do 'olho da alma' e

da 'luz da razão'. Nas primeiras linhas da 'Metafísica', Aristóteles relaciona o natural desejo de

todos os homens por conhecimento com o prazer universal com as percepções dos sentidos,

acima de qualquer outro a visão”326. Ao mesmo tempo, a visão guarda certo aspecto maligno,

expresso em alguns mitos centrais da cultura grega, tais como Narciso, Orfeu e Medusa327. Em

situação diversa, mas complementar, a ausência da visão pode ser também encarada na cultura

grega como algo positivo, em geral ligado à predição do futuro, a uma percepção mais

profunda do que se passa no mundo, como se a não-apreensão espacial abrisse uma janela

para a apreensão temporal numa magnitude maior328. Em Platão, essa ambiguidade é

reproduzida no Timeu, em que o sentido da visão é apresentando como criado junto com a

inteligência humana e a alma – enquanto os demais sentidos são postos como do ser material

do homem329 –, e no mito da caverna, em que um dos pontos fulcrais é a desconfiança para

com os sentidos, inclusive a visão. A suspeição frente ao visual pode ser notada também n 'A

República, onde ele hostiliza as artes miméticas, em especial a pintura330. Contudo, o trajeto

de Platão – a crer na cronologia atribuída atualmente aos seus diálogos – não permite que se

afirme com Jay que Platão, “que nos disse no Timeu que a visão é o maior dom da

humanidade, também nos adverte contra as ilusões de nossos olhos imperfeitos”331. Mais

condizente parece ser dizer que Platão, após longa cruzada contra os sentidos, todos muito

falíveis, inclusive pelas e nas artes – apenas a música, com sua proporção matemática, seria

capaz de alcançar a forma sem ser enganadora332 –, acaba por admitir, a despeito das possíveis

falhas, que a visão, ao menos, é imprescindível para o ser humano atingir as formas

verdadeiras – a questão talvez estivesse na forma como a visão é utilizada, ou mal utilizada.

Aqui se pode voltar a concordar com Jay, quando este diz que, para Platão, os verdadeiros

325JAY, Downcast eyes, p. 23.326JONAS, O princípio da vida, p. 159.327JAY, op. cit., p. 28.328Ibidem, p. 26.329PLATÃO, Timeu, 61d-68e apud JAY, Downcast eyes, p. 26.330JAY, op. cit., p. 27.331Idem, ibidem.332Idem, ibidem..

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filósofos “não são mero 'excursionistas', conselho tomado em consideração de maneira

absoluta por pesadores posteriores, como Democritus, de quem se diz que se cegou para 'ver'

com seus intelecto”333. A vitória da filosofia sobre o sofismo pela forma autêntica de

homologação da veridicidade, afinal de contas, é justa à vitória da visão, eidon, sobre a

palavra, o logos, da episteme sobre a doxa, da razão monológica sobre a dialógica. A retórica

passa a ser incapaz de atingir o justo, o belo e o verdadeiro, com conseqüências para o

diálogo, enquanto a verdade se torna passível de ser “tão despida quanto um corpo nu”334,

numa alusão ao ideal grego do corpo desnudo, mostrado nas competições atléticas335 ou

presente na escultura, por exemplo – diferentemente da ênfase hebraica no vestuário, ou da

vergonha persa das funções excretórias336 –, que Mario Perniola vê como “em harmonia com

o viés pela claridade e transparência visuais”337. A mesma alteração do retórico para o visual

pode ser observada na polis grega – tanto no seu desenvolvimento, quanto no

desenvolvimento do seu ideal –, de acordo com Mumford. A formação do cidadão grego, diz

o pensador estadunidense, se dava não tanto pelas escolas e academias, mas antes “através de

todas as atividades, de todos os deveres públicos, de todos os pontos de encontro e de

conversa”338, de modo que “os ateniense, não apenas pela fria reflexão ou contemplação,

como erroneamente aconselhavam os filósofos, mas pela ação e participação, incentivadas

pelas emoções fortes e por uma detida observação e direto intercurso de face a face,

conduziam suas vida”339. Contraposta a essa cidade baseada no diálogo, a cidade ideal de

Platão – que “subestimava os estímulos e desafios vitais ao crescimento: a variedade, a

desordem, o conflito, a tensão, a fraqueza e até mesmo o fracasso temporário”340 –, se tivesse

sido levada a cabo, “teria transformado o diálogo urbano num estéril monólogo do poder

totalitário”341. Já Aristóteles, se conseguiu estabelecer uma função e uma extensão sensata

para sua cidade ideal, não deixou de aprofundar a supremacia da visão, ao defender que “'o

melhor limite da população da cidade, pois, é o maior número suficiente para as finalidades da

vida e que pode ser abrangido de um único olhar'. De um único olhar: eis aí uma concepção

ao mesmo tempo estética e política de unidade urbana”342, e mais do que urbana. Para muitos

333JAY, Downcast eyes, p. 27.334Ibidem, p. 24.335MUMFORD, A cidade na história, p. 185.336Ibidem, p. 183.337PERNIOLA apud JAY, Downcast eyes, p. 24.338MUMFORD, op. cit., p. 188.339Ibidem, p. 187.340Ibidem, p. 197.341Ibidem, p. 201.342Ibidem, p. 206.

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autores, esta supremacia do visual acabou por fazer com que a filosofia grega se inclinasse

para a abstração, na sua consciência dialética de permanência e mudança, culminando numa

verdade definida epistemologicamente de modo desinteressado e monológico, baseado no

visual343.

Para Hans Jonas, o viés visual da filosofia grega, que já celebrava a visão como o

sentido mais excelente344, não forneceu apenas analogias para a superestrutura intelectual – as

metáforas da theoria seriam tiradas predominantemente da esfera visual345 –, “serviu também

em larga escala como modelo da percepção em geral, e com isto como padrão e medida para

os outros sentidos”346. Se por um lado a visão, para exercer seu ofício de reconhecer, precisa

ser completada por outros sentidos e funções, por outro, sua autonomização faz emergir três

características muito singulares e de vital importância na forma como se construiu a apreensão

e inserção no mundo do homem ocidental: “1) simultaneidade na apresentação de uma

variedade, 2) neutralização da causa da afecção do sentido, 3) distância no sentido espacial e

espiritual”347. Enquanto sentidos como audição e tato “constroem suas 'unidades do

múltiplo'”348, e necessitam estar imiscuídos com o tempo para terem existência, são processos,

se desenrolam no tempo e dependem da memória para a percepção completa – o tato a exigir

o movimento para que se construa a informação sobre aquilo que se percebe349; a audição

porque “a duração do som ouvido é exatamente igual à duração do ouvir”, e o som “não é um

objeto, mas sim um acontecimento dinâmico no lugar do objeto”350 –, a visão, na sua

possibilidade de apreensão da simultaneidade do que lhe é apresentado, prescinde do nexo

causal: ela capta em um relance dados múltiplos que os demais sentidos exigiriam o tempo,

dando uma dimensão deste “que do contrário lhe permaneceria fechada, isto é, a presença,

como algo que ultrapassa a experiência pontual da fugacidade do agora”351, como são as

percepções táteis e sonoras: “em todos os outros sentidos, nenhum momento é fechado em si,

e nenhum dado momentâneo fala por si só”352. Assim sendo, “o tempo transcorrido durante a

observação não é experimentado como uma passagem de conteúdos que no fluxo do acontecer

dêem lugar a novos conteúdos, mas sim como uma duração dos mesmos, como uma

343HAVELOCK, Eric. ARNHEIM, Rudolf apud JAY, Downcast eyes, p. 26.344JONAS, O princípio da vida, p. 159.345Idem, ibidem.346Idem, ibidem.347Idem, ibidem.348Ibidem, p. 160.349Ibidem, p. 164.350Ibidem, p. 161.351Ibidem, p. 167.352Ibidem, p. 168.

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identidade que é a extensão do agora momentâneo, e portanto a presença imóvel

continuada”353. Essa simultaneidade paralisante da visão e conseqüente não necessidade de

contiguidade entre duas imagens gerou a questão posta por Hume, de que “a 'causação' não

está presente entre os conteúdos da percepção dos sentidos”354, e seria antes uma crença

adquirida com o hábito. Na verdade, tal interpretação pode ser vista como fruto de um pensar

ocularcêntrico do autor, herança do “padrão ontológico da objetividade”355 criada pela visão e

apropriada para o pensamento conceitual. Kant assume a descoberta negativa de Hume, mas

para tratar a causalidade não como uma crença, antes como uma categoria da razão. Este

expediente, ao pôr a ligação causal como uma função sintética transcendental, obriga a

percepção a abstrair todo conteúdo sensível – qualitativo – do objeto em seu processo,

transformando-o em uma série de dados desconectados da realidade do observador, “com isto

sendo privados também das características que poderiam explicar sua ligação mútua”356.

Ontológica e epistemologicamente, Kant reforça a “idéia de um sujeito teórico separável da

prática, e mais ainda, a idéia da natureza passiva ou receptiva da sensibilidade 'pura' e do

conhecimento sensível”357. Sem negar por completo a passividade da percepção, Merleau-

Ponty a põe como resultado do ocularcentrismo kantiano, e não como uma necessidade da

razão: “a visão não é um certo modo do pensamento ou presença de si: é o meio que é dado

estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, ao término da qual

somente me fecho sobre mim”358. A impossibilidade da apreensão da coisa-em-si estaria na

barreira posta pelo próprio sujeito do conhecimento, que se apropria à distância – com o

auxílio da visão – do mundo que o cerca, ao invés de engajar-se nele de corpo inteiro. A

capacidade de simultaneidade da visão, portanto, traz como uma de suas conseqüências

principais a neutralização completa da apreensão imediata do conteúdo dinâmico da

causalidade359 – a “'função imagem' da visão”360 –, com a possibilidade de se chegar

conceitualmente à essência do ser – se se encarar a essência do ser como algo estático e

imutável, diferentemente da concepção hegeliana –; e a captação de um agora que se

prolonga, um “agora ampliado”361: não por acaso Jonas trata da audição e do tato como

353JONAS, O princípio da vida, p. 168.354Ibidem, p. 35.355Ibidem, p. 42.356Ibidem, p. 41.357Ibidem, p. 176.358MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 42. 359JONAS, op. cit., p. 170.360Ibidem, p. 171.361Ibidem, p. 168.

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“sentidos não do ser, mas sim do vir-a-ser”362, e a visão como fornecedora da “base sensorial

sobre a qual o espírito pode começar a apreender a idéia do eterno, daquilo que nunca se

modifica e que está sempre presente”363. Esta possibilidade da visão de não se comprometer

com aquilo que visa permite separar a imagem do objeto, ou seja, a divisão entre forma e

matéria, essência e existência364. Este não-comprometimento garante que tanto sujeito quando

objeto permaneçam fechados em si365, dando assim a deixa ao sujeito para a observação

distanciada, o que implica em uma imagem neutra e que “diferentemente do 'efeito', pode ser

contemplada e comparada, conservada na memória e recordada, variada na imaginação e

recomposta a bel prazer”366: não há a resistência empírica do objeto à penetração do sujeito –

tal como no tato –, que garanta a veridicidade do objeto, ao exigir a realidade do próprio

sujeito, que precisa fazer algum esforço na relação com o “outro-fora-de-mim”367. A ciência

moderna, constituída sobre tais bases, “manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Estabelece

modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações

permitidas por sua definição, só de longe em longe confronta com o mundo real.”368 Assim, a

visão bastando por si só, a ausência do engajamento completo do sujeito na percepção, ao

lidar tão-somente com o visual – imagens distanciadas –, “serve de base para a abstração, e

com isto, para todo livre pensar”369 – liberdade essa que tem seus pontos positivos, mas acaba

também por tornar a visão o menos realista dos sentidos370.

É o que também afirma Guy Debord, ao dizer que a visão é “o sentido mais

abstrato, e mais sujeito à mistificação”371. E é sobre este sentido que o espetáculo se erige, se

sustenta e domina: “o espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações

especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como o

sentido privilegiado da pessoa humana”372. Servir-se da visão, não implica em ignorar os

outros sentidos, eles são necessários para dar um senso de realidade ao que é visto, para o

sujeito engajar-se no mundo, como na descrição de Proust “quanto ao surdo integral, visto que

a perda de um sentido acrescenta tanta beleza ao mundo como o não faria a sua aquisição, é

com delícia que passeia agora por uma Terra quase edênica onde o som ainda não foi criado.

362JONAS, O princípio da vida, p. 168.363Idem, ibidem.364Ibidem, p. 170.365Ibidem, p. 172.366Idem, ibidem.367Ibidem, p. 171.368MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 13.369JONAS, op. cit., p. 170.370Ibidem, p. 171.371DEBORD, SdE, § 18.372Idem, ibidem.

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As mais altas cascatas se desenrolam, para os seus olhos apenas, mais calmas que o mar

imóvel, como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez; a forma

perceptível sob a qual jazia a causa de um movimento, os objetos movidos sem rumor

parecem movidos sem causa”373. Ciente destes efeitos, o espetáculo agrega outros sentidos ao

olhar, em especial a audição. Se se encarar o olhar com esses anexos, ele segue como

bastando por si, desencarnado, contemplativo, distanciado que não avança para o objeto, para

o mundo palpável de forma consciente, engajada nos seus atos: ele inverte a percepção e

apresenta o mundo como estando diante e não ao redor do sujeito374.

Uma das questões é como o espetáculo se utiliza do privilégio da visão para

construir sua hegemonia, construção que se sustenta na tradição filosófica ocidental – de

quem ele “é o herdeiro de toda a fraqueza”, identificada justo pela ênfase da compreensão da

atividade por intermédio das categorias do ver375 – e na teologia – de quem a filosofia nunca

conseguiu se separar, uma vez que sempre se manteve como “poder do pensamento separado

e pensamento do poder separado”376. Aqueles três aspectos do privilégio da imagem desde a

filosofia grega levantados por Hans Jonas serão tecnicamente equipados para a construção da

hegemonia de uma classe e de um modo de produção sob o espetáculo377 – o desenvolvimento

da racionalidade e da técnica correspondente é decorrente deste próprio pensamento. Assim,

mesmo a filosofia crítica pré-Marx que tentou vencer as limitações postas pela supremacia da

visão, colocando a ênfase novamente no devir dinâmico sobre o ser estático, por não romper

com a separação entre pensamento e mundo, teoria e prática, se viu incapaz de superar a

herança filosófica ocidental: ainda conforme Debord, Hegel, apesar de acertado no método

dialético em interpretar não o mundo, mas a transformação do mundo, acaba, por fim, não

fazendo mais “que a realização filosófica da filosofia”, reconciliando o Espírito com o

resultado das revoluções burguesas378. Ou seja, a filosofia pré-Marx não teria rompido com a

“filosofização” da realidade que levou ao espetáculo, ao não tornar a filosofia efetivamente

prática379, no sentido marxista do termo. Afinal, filosofia prática distinta da teórica, Kant já

possuía em seu sistema. Entretanto, no filósofo de Konisberg, a prática possui dois momentos:

num primeiro, na crítica da razão teórica, ela está separada da ação, identificada com a

373PROUST, O caminho de Guermantes, p. 69.374MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 33.375DEBORD, SdE, § 19.376Ibidem, § 20.377Ibidem, § 19.378Ibidem, § 76.379Ibidem, § 19.

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organização dos estímulos recebidos passivamente380; é num segundo momento, em uma

prática que se converte em uma ética, centrada no dever do indivíduo e sem acesso ao ser-em-

si, sem possibilidade de mudança da essência do ser, que ela passa à ação, mas a uma ação

impossibilitada de se converter em práxis – pelo seu próprio caráter auto-centrado e

individual. Isto devido, em parte, por sua epistemologia partir do espaço e não do tempo, e

por se sustentar, como dito acima, no sentido visão. É essa estaticidade e esse distanciamento,

que vêm do pensamento grego (o paradoxo de Zenão nada mais é que esse aspecto da noção

atemporal do espaço levado ao extremo381) e perdura até a Modernidade – ficando limitado à

geometria dos raios luminosos, em termos da geometria euclidiana –, que servirão de

ancoradouro da física newtoniana, da qual Kant retirará elementos para a elaboração da sua

crítica da razão pura teórica.

Uma das conseqüências do renascimento neo-platônico do século XVIII, segundo

Jay, foi “a substituição da sensação passiva por uma vontade mais ativa como marca da

subjetividade nas filosofias dominantes do início do século XIX”382. Outra foi a volta da

estética do sublime sobre a do belo – inaugurada por Kant e Burke383. Por último, Jay destaca

a temática romântica da noite oposta ao dia384.

Na filosofia francesa, talvez quem melhor tenha encarnado este neo-platonismo –

com suas ambiguidades, é claro – foi Jean-Jacques Rousseau, ainda no século XVIII. Para ele,

diante da perda de seu virginal estado de natureza, não cabe à humanidade outra coisa que não

aprofundar a vida em sociedade. Este aprofundamento, contudo, não significa insistir no curso

que a história das relações humanas tomou. Segundo Starobinski, para o pensador genebrino

“a história nos propõe uma tarefa de resistência e recusa”385. Essa tarefa deve ser feita tendo

como ideal normativo o restabelecimento de uma natureza humana386, obscurecida no correr

da história, visto que “o tempo histórico, que para Rousseau não exclui a idéia do

desenvolvimento orgânico, permanece carregado de culpabilidade; o movimento da história é

um obscurecimento, é mais responsável por uma deformação do que por um progresso

qualitativo. Rousseau apreende a mudança como uma corrupção; no curso do tempo, o

homem se desfigura se deprava”387. O estado de natureza pode nunca ter existido para

380JONAS, O princípio da vida, p. 176.381JAY, Downcast eyes, pp. 24-25.382Ibidem, p. 107.383Idem, ibidem.384Ibidem, pp. 107-108.385STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 24.386Ibidem. p. 36.387Ibidem. p. 29.

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Rousseau, contudo, o que importa na sua filosofia, de acordo com Cassirer, é que se tenha

essa idéia como parâmetro para julgar a condição atual da sociedade388. O que Rousseau

buscaria com isso seria a reconciliação do homem com a natureza389, em que se restauraria o

paraíso da “transparência recíproca das consciências, a comunicação total e confiante”390. Ele

sabe, entretanto, que seu alvo é utópico: a comunicação entre duas consciências não se faz na

intuição imediata – que é antes domínio de deus que dos homens –, mas no discurso, na

linguagem, na sucessão e no encadeamento dos meios, o que faz com que o saber humano

seja sempre incompleto, que o pensamento “se transmita sempre de maneira precária e

adulterada”, que os “sentimentos permaneçam, no fundo, incompreensíveis àqueles mesmos

que acreditam compartilhá-los”391. Rousseau, contrariamente ao círculo que freqüentava, se

afastou da glorificação da razão, e apelou “às forças mais fundas do 'sentimento' e da

'consciência'”392, sem que isso tenha feito com que negasse a razão – chegando até a enaltecê-

la393. O grande problema estaria no conhecimento reivindicar primazia absoluta, elevando-se

acima da vida e se separando dela394. Uma tentativa de equilíbrio entre razão, sentimento e

consciência parece ser o ideal desejado pelo genebrino – na impossibilidade de se basear

somente nos dois últimos, visto a perda do estado de natureza. Rousseau reconhece que os

homens vivendo em sociedade são carentes da mediação lingüística, de “sinais que

interrompem a pura reciprocidade dos olhares”395. Desejando algo próximo, seu ideal seria a

“restauração de uma linguagem primitiva, natural, em que os obstáculos da fala moderna, com

seus conceitos gerais e impessoais, pudessem ser superados”396. Ao aceitar a interpretação de

Starobinski, os pontos chaves para compreender a crítica de Rousseau à sociedade da época –

e sua proposta de superação – são, além da existência de uma essência humana imutável, a

identidade entre o parecer e o mal397, fruto de uma sociedade que se estabeleceu negando a

natureza, sem conseguir suprimi-la398: “as pessoas são todas inocentes, mas suas relações

estão corrompidas pelo parecer e pela injustiça”399. A supremacia da aparência em detrimento

da essência é ao mesmo tempo fruto e alimento de um véu, de máscaras que mediam a relação

388CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 391.389STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 48.390Ibidem. p. 19.391Ibidem. p. 191.392CASSIRER, op. cit., p. 382.393Idem, ibidem.394Ibidem, p. 396.395JAY, Donwcast Eyes, p. 92.396Idem, ibidem.397STAROBINSKI, op. cit.. p. 12.398Ibidem. p. 38.399Ibidem. p. 20.

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entre as pessoas400. A proposta de Rousseau é – a exemplo de Platão, com quem Starobinski o

compara – a de levantar o véu da aparência e revelar a verdade essencial que há por baixo,

restabelecer uma imagem que equivale “à história autêntica da espécie inteira e que ressuscita

o passado perdido para revelá-lo como o presente eterno da natureza”401. Em suma, o ideal de

uma comunidade feita pelos homens e para os homens, em que os padrões de visibilidade dos

salões da corte, ou da omnisciência divina são substituídos pelo de uma comunidade humana

totalmente transparente – transparente ao olhar do outro, com o olhar sobre si mesmo

também402 – em que todos estão em observação permanente, numa “utopia de benefícios

mútuos da vigilância sem reprovação ou repressão”403.

O véu, para Rousseau, não apenas ocultaria a verdade, como turvaria o

conhecimento dos homens sobre o mundo em que vivem e, acima de tudo, acerca de si

próprios (não por acaso, a crítica rousseauniana da sociedade se transmutaria em uma epifania

da consciência pessoal404), falseando, assim, todos os seus atos, pervertendo suas vidas405. Tal

véu, como já dito, não chega a alterar a essência humana, apenas faz com que o homem se

aliene em sua aparência406, perdendo o contato com sua essência, e com isso fundando uma

rede de relações viciadas, assentadas na heteronomia, e que visam os chamados interesses

pessoais – que não correspondem aos seus reais desejos –, o que acaba por estabelecer

relações mediadas por coisas407, e levar as pessoas a se tornarem escravas uma das outras408.

Segundo o próprio Rousseau, “ninguém se importa com a realidade, todos ancoram sua

essência na ilusão. Escravos de seu amor-próprio, e iludidos por ele, os homens não vivem

por viver, mas para fazer crer aos outros que viveram”409. Não que o homem seja plenamente

autônomo para Rousseau: desde a origem, a consciência de si depende da possibilidade de

tornar-se um outro410, de conseguir se pôr fora de si, no outro, para então retornar a si. A

questão é que essa possibilidade está obnubilada por conta do desconhecimento de si próprio

e da ausência da troca imediata com as outras consciências. As principais formas de mediação

entre os homens que acabaram se desenvolvendo no correr da história foram o dinheiro e a

400STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 35.401Ibidem. p. 33.402JAY, Donwcast Eyes, p. 91.403Ibidem, p. 92.404STAROBINSKI, op. cit.. p. 65.405Ibidem. p. 14.406Ibidem. p. 44.407Ibidem. p. 39.408Ibidem. p. 45.409ROUSSEAU, Rousseau juge de Jean-Jaques, terceiro diálogo. apud CASSIRER, op. cit., p. 392.410STAROBINSKI, op. cit.. p. 17.

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linguagem. O dinheiro, intermediário abstrato das trocas entre os homens411, e que, uma vez

adentrado na relação humana, impede todo gozo imediato, visto que ele próprio não pode ser

usufruído imediatamente por si, servindo apenas de meio para atingir outras metas412, e como

meio se transforma em fim da atividade humana, com o produto do trabalho sem direito a uma

existência autônoma, antes existindo sob a forma de objeto a ser vendido ou riqueza a ser

acumulada413. Já a mediação lingüística gera uma série de representações – da representação

artística à representação política – calcadas em conceitos gerais impessoais. Conforme Jay,

“Rousseau era platônico na sua hostilidade à estética, assim como às representações

políticas”414.

De acordo com Starobinski, o local privilegiado de mediação na sociedade, para

Rousseau, seria o teatro415, o qual, ao assumir sua forma moderna graças ao patrocínio

aristocrático, por volta do século XV416, “era agora um auditório coberto, no qual os

espectadores se sentavam de acordo com sua posição hierárquica e sua capacidade de pagar, e

onde, de suas posições fixas, tornaram-se os passivos espectadores do drama que é visto, por

assim dizer, através de uma vitrina transparente”417 – Jay vê esse privilégio nos ritos da corte,

no espetáculo que cerca o trono e o altar418. O teatro seria o exemplo de uma comunhão

mediada, em que depois de se abandonarem à solidão de cada um, e “atraídos para fabulosos

longes”419, os homens se reencontrariam na ação interpretada em cena que todos olham420. Há,

portanto, além da representação e da alienação de si em favor de uma cena, a exigência de

passividade por parte dos espectadores, reduzidos à contemplação do que se desenrola no

palco em sua frente. Se isso é encarado pelo genebrino como virtude no homem primitivo,

que “é 'bom' porque não é bastante ativo para fazer o mal”421, uma vez alterado esse equilíbrio

natural, não há volta, e o homem passa a depender do seu trabalho – é o trabalho quem torna

“o homem humano, eleva-o acima da condição dos animais: o homem se define doravante

como o ser laborioso e livre que emprega meios e instrumentos pelos quais se opõe à natureza

para transformá-la”422. Assim, a comunhão realizada pela mediação do teatro não é “uma

411STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 147.412Ibidem. p. 148.413Ibidem. p. 151.414JAY, Downcast eyes, p. 92.415STAROBINSKI, op. cit.. p. 133.416MUMFORD, A cidade na história, p. 410.417Idem, ibidem.418JAY, op. cit., p. 94.419STAROBINSKI, op. cit.. p. 133.420Ibidem,. p. 134.421Ibidem. p. 41.422STAROBINSKI, op. cit., p. 149.

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comunhão verdadeira: vale dizer que este é o reino da solidão e da dispersão infeliz. Ali onde

nos é fácil reconhecer uma comunhão mediatizada, Jean-Jacques vê uma comunicação

interrompida”423. A solução proposta por Rousseau para toda ilusão da sociedade é a festa,

“imagem da inocência dos primeiros tempos”424, transformação do espetáculo do teatro em

uma comunicação imediata, radicalmente presente, sem traços “memorativos” ou

comemorativos, sem ligação com alguma tradição ou ritual425: apenas “a satisfação alegre que

nasce nos corações na medida em que realizam os atos conforme o dever”426, ou seja,

conforme a essência humana e não os ditames das aparências. Se, para Rousseau, “não existe

alegria que não seja pública”427, a festa, ao substituir o escuro do teatro e sua mediação entre

as consciências pela reunião ao livre, sob o céu, é também a oposição do mundo de

transparência ao mundo da opacidade428: nela “vê-se suceder ao objeto opaco do espetáculo

uma comunidade de consciências abertas que se põem em movimento umas em direção às

outras. A separação é suplantada pela reciprocidade das consciências”429. Isso significa que o

véu que falseia as relações desaparece, “e o espectador, tornando-se também menos opaco,

desaparece na luz para a qual é agora transparente”430. Com isso, são borrados os limites da

existência pessoal e todo gozo passa a ser imediato431. Pela festa e pelo conseqüente

desaparecimento do véu levarem ao gozo imediato, ela não pode ser algo que tenha sua

permanência garantida: só perdura enquanto for “pura invenção, criação livre, desembaraçada

de qualquer forma pré-estabelecida”432. Para Derrida, a festa seria o local em que as

representações seriam abolidas, assim como a distinção entre “o objeto visto e o ver o

objeto”433. Para o autor da Gramatologia, o elemento dessa liberdade e comunhão seria a voz,

“a liberdade de um sopro que não quebra nada em pedaços”434: a palavra falada como

amálgama da antiga distinção sujeito-objeto – que põe em xeque a própria experiência visual,

se levada a cabo435. Percebe-se que, apesar da festa romper com a representação, Rousseau, ao

não ignorar a necessidade do elemento de comunicação entre as consciências, aceitaria a

existência de alguma opacidade; e que não prescinde da liberdade entre elas para que a festa 423STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 134.424Ibidem. p. 129.425Idem426Idem.427Lettre à d'Alembert, p. 249 apud STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. p. 134.428STAROBINSKI, op. cit.. p. 132.429Ibidem. p. 133.430Ibidem. p. 114.431Idem, ibidem.432Ibidem. p. 129.433DERRIDA, Jacques Of grammatology apud JAY, Downcast eyes, p. 93.434Idem, ibidem.435JAY, Downcast eyes, p. 93.

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tenha sentido. Starobinski interpreta a festa como a expressão “no plano 'existencial' da

afetividade tudo aquilo que o Contrato formula no plano da teoria do direito. Na embriaguez

da alegria pública, cada um é ao mesmo tempo ator e espectador; reconhece-se facilmente a

dupla condição do cidadão depois da conclusão do contrato: ele é a uma só vez 'membro do

soberano' e 'membro do Estado', é aquele que quer a lei e aquele que obedece a lei” 436. A

imediaticidade do fim da representação seria a festa da pura presença, que implica também na

festa da iconoclastia437: e teria sido este ideal o que guiou a Revolução Francesa nos seus

sentimentos contraditórios com relação ao poder sedutor das imagens. Tanto que a Revolução

destrói os ícones visíveis da sociedade de corte, porém eleva princípios abstratos – a

liberdade, a igualdade, a fraternidade e, principalmente, a razão – a novos ídolos, não menos

ocularcêntricos – com direito a representações visuais e tudo o mais, com a restauração dos

modelos clássicos greco-romanos, pelo pintor e militante jacobino Jacques Louis David438.

Outro pensador da época que questionou a supremacia da visão foi Diderot. Para

Jay, ao acusar a separação radical entre a verdade e a representação do mundo, em 1765, ele

teria antecipado a destruição jacobina das imagens: “'meu amigo, se nós amamos a verdade

mais do que as belas artes, rezemos a Deus por alguns iconoclastas'”439. O autor oferecia duas

razões para destronar a visão do topo da hierarquia sensorial440. Primeiro, a crença no toque

como fonte mais poderosa de conhecimento do que a visão441; segundo, a questão da

mediação lingüística na relação entre a percepção em geral e a linguagem: “se não há espaço

uniforme, inato dando suporte a diferentes experiências perceptivas do mundo, então como

podem tais experiências serem comparadas umas às outras?”442 Trata-se, na verdade, de

questão quente da Modernidade – idéias inatas ou apreendidas –, que ganha mais lenha em

1728, com o chamado “problema de Molyneux”, quando o médico William Cheselden opera

com sucesso a catarata de um garoto cego de nascença, que passa a apresentar dificuldades

em se orientar pela visão no pós-cirúrgico, pondo em xeque tanto a imediatez da visão quanto

da forma de percepção – e conseqüente nomeação – do que é visto443. Opondo-se à tese das

idéias inatas, Diderot defende uma tradução que ocorre lingüisticamente através de sinais

convencionados que são aprendidos444. De modo similar a Rousseau, Diderot também sonha

436STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseu. p. 135.437STAROBINSKI, The invention of liberty apud JAY, Downcast eyes. p. 95.438JAY, Downcast eyes. p. 95.439DIDEROT apud JAY, Downcast eyes, 98.440JAY, op. cit., p. 100.441Idem, ibidem.442Ibidem, p. 101.443BENITEZ; ROBLES; SILVA. El problema de Molyneux.444JAY, op. cit., p. 101.

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com uma transparência perfeita, no caso não dos olhares, mas dos sinais – aos quais chama de

hieróglifos –, porém tem ciência da “inevitável diferença entre nossa experiência sensória e

sua mediação lingüística”445. Mais centrado nessa questão da representação via imagem do

que na representação nos ritos da corte, segundo Jay, Diderot tem sua versão para o festival de

Rousseau na desteatralização da relação pintura-observador, o que implicaria no colapso da

distância entre o olho que observa e a cena observada446. Distância esta que garantia o que

Walter Benjamin denominou de “aura”, “uma peculiar fantasia de espaço e tempo: a aparição

única de algo distante, por mais próximo que possa estar”447. “A aura tem sua origem no ritual

de culto, mas para Benjamin, o modo de recepção aurático continua sendo característico

também da arte que deixou de ser sacra, desenvolvida a partir do Renascimento. Para ele, não

é a cesura entre a arte sacra da Idade Média e a arte profana do Renascimento que parece ser

decisiva para a história da arte, mas aquela perda da aura. Em Benjamin, tal cesura é derivada

da transformação das técnicas de reprodução (...). Em lugar da recepção contemplativa

característica do indivíduo burguês, deve surgir uma recepção característica das massas, ao

mesmo tempo distraída e racionalmente verificadora. Em lugar de basear-se no ritual, ela se

funda, daí por diante, na política”448. Tanto a distância entre arte e público/observador, quanto

o fim da aura da obra-de-arte, serão questões proeminentes de muitas das vanguardas do

século XX.

Menos entusiasta que Benjamin, Brecht salientava que as possibilidades de

emancipação abertas pelo desenvolvimento técnico – emancipação mesmo desse culto

aurático – não implicavam necessariamente na sua concretização: dependiam, antes, da forma

com que seria utilizado449. Assim, durante o século XIX o distanciamento com relação ao

objeto visado, que poderia entrar em declínio, teve, contudo, um aprofundamento: a despeito

do perspectivismo cartesiano ter sido posto em dúvida, segundo Wylie Sypher, o século XIX

foi um dos períodos mais visuais da cultura Ocidental, com seu ideal de observação precisa,

“uma visão-espectadora compartilhada por romancistas, pintores, cientistas e, por extensão,

por poetas, que se tornaram 'visionários', ainda que a visão poética não seja sempre um meio

de observação”450. O aprimoramento e invenção de aparelhos que aumentam a capacidade

humana de observação – cuja história remonta aos jogos de espelho das lunetas

445JAY, Downcast eyes, p. 102.446Ibidem, p. 103.447BENJAMIN, “Pequena história da fotografia”, p. 228.448BÜRGER. Teoria da vanguarda, pp. 61-62.449Ibidem, p. 66.450SYPHER, Wylie, Literature and technology: the alien vision apud Jay, Downcast eyes, p. 113.

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renascentistas451 –, em especial da fotografia, levaram mais longe esse ideal. Contudo, a

pretensa representação como análogon perfeito da realidade452 – que a fotografia

aparentemente transforma em algo automático e objetivo – exige elementos cênicos que

foram elaborados muito antes de suas possibilidades tecnológicas. Trata-se da técnica do

chiaroscuro, utilizada por Rembrand e Caravaggio em suas pinturas453, em que o jogo de luzes

é aplicado para reconstruir e redimensionar o espaço, sem passar a impressão de que houve

manipulação ou violência, e que só se tornariam possíveis na realidade com o advento da

iluminação artificial, com os spots de luz, por exemplo454. Em “afinidades eletivas”, no correr

dos séculos, culminando no século XIX, artes, filosofia e ciência alteram seu foco, das leis

geométricas da ótica e da transmissão mecânica da luz para as dimensões físicas da visão

humana455, o que demonstra também a alteração no foco da atenção da época, centrada

primeiramente no sujeito transcendental do que no objeto em si – inclusive com o sujeito

cognoscente passando a ganhar relevância como objeto de conhecimento, como atesta, por

exemplo, o nascimento da psicologia e da psicanálise. Neste aspecto, o advento da fotografia

surge para salvar a perspectiva renascentista, então posta em xeque de modo mais

contundente pela primeira vez por Cézanne456. A quebra da perspectiva linear do Quattrocento

pelo pintor de Aix-en-Provence implicou no questionamento radical de certo estado de técnica

e, principalmente, da ordem social do mundo457. Assim, a fotografia, segundo Machado, não

deve ser dissociada da ideologia da técnica projetiva458, que visa manter um dado discurso

acerca da realidade – em que a representação é assumida como a realidade mesma – e da

(única) forma de apropriação dela de modo autêntico e não-mediado459, graças ao seu “efeito

real”460. E essa forma de apropriação, conforme a ideologia dominante, se dá pela

contemplação do mundo – ao que Marx (dentre outros) contrapunha o conhecimento como

ação sobre o mundo461.

Esse efeito real é reforçado pelo papel que a fotografia arrola, de continuidade da

tradição da pintura figurativa, por mais que seu método de composição seja radicalmente

451ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos.452MACHADO, A ilusão especular, p. 40.453Ibidem. p. 127.454Ibidem. p. 129.455CRARY, Jonathan, Techniques of the observer: on vision and modernity in nineteenth century apud JAY,

Downcast eyes, p. 151.456MACHADO, op. cit.. p. 74.457Ibidem. p. 64.458Ibidem. p. 65.459Ibidem. p. 40.460Ibidem, p. 66.461Ibidem, p. 40.

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diferente, permanecendo apenas a questão da perspectiva monolocular e do sujeito

transcendental462. Ao registrar um instante, a fotografia perde “aquele tempo ideal e

privilegiado, pleno de sentido e intenção”, no qual o momento retratado pela pintura se

preenche, pois o que ela capta é o aqui e agora463: daí a necessidade – principalmente no foto-

jornalismo – de se bombardear um evento com fotos sucessivas e depois escolher “aquela foto

ideal, onde os acidentes do acaso estejam menos evidentes e o efeito de 'realidade' mais

próximo do padrão pictórico que o informa”464. Este “efeito de realidade” é a tentativa de

“censurar aos olhos do receptor os mecanismos ideológicos” do meio, “esconder o trabalho de

inversão e de mutação operado pelo código” de representação465, de modo a garantir o

análogon inquestionável entre representação e realidade. Esta questão da representação leva à

interrogação acerca do estatuto da fotografia, desde a década de 1840, em que nos círculos

intelectuais, três aspectos são levantados466, e até hoje perduram de alguma forma: a relação

entre a fotografia e a verdade ótica ou ilusão; se a fotografia é arte; e o seu impacto na

sociedade. Para Virilio467, a fotografia ajudou na desnaturalização da experiência visual

convencional e no desatrelamento da visão de sua associação com a forma estática. André

Bazin, na sua interpretação desta desnaturalização da experiência visual convencional, vai

além, propondo uma nova naturalização para a experiência visual fotográfica, em que “pela

primeira vez uma imagem do mundo é formada automaticamente, sem a intervenção criativa

do homem... A fotografia nos afeta como um fenômeno na natureza”468, ignorando que a

própria invenção do meio técnico já é fruto da criatividade humana, e que, assim como o ato

de tirar retratos é conseqüência de uma escolha estética, com influências da pintura469, a

apreensão da fotografia exige um adestramento, uma alfabetização do olhar470. Em linha

similar, Roland Barthes, no ensaio “A mensagem fotográfica”, afirma que “seguramente a

imagem não é a realidade, mas de qualquer modo é seu analogon perfeito, e é exatamente

essa perfeição analógica que, para o senso comum, define a fotografia. Deste modo pode ser

visto o estatuto especial da imagem fotográfica: ela é a mensagem sem um código”471. A

justificativa – ideológica, conforme Machado – dada por Barthes para a fotografia como

462MACHADO, A ilusão especular. p. 43.463Idem, ibidem.464Ibidem, p. 50.465Ibidem, p. 28.466JAY, Downcast eyes, pp. 125-126.467VIRILIO, The aesthetics of disappearance apud JAY, Downcast eyes, p. 133.468BAZIN, “The ontology of the photographic image” apud JAY, Downcast eyes, p. 126.469BENJAMIN, “Pequena história da fotografia”. p. 225.470Ibidem, p. 240.471BARTHES apud JAY, Downcast eyes, p. 126.

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analogon perfeito do que ela retrata pode ser sintetizada por sua ênfase exclusiva no referente,

e “a concepção da fotografia como reflexo bruto da 'realidade'”472. Machado complementa:

sem referente não há fotografia, ok, porém “só com o referente, muito menos. Se não existir a

câmera escura, a lente com seu poder organizador dos raios luminoso, um diafragma

rigorosamente aberto como manda a análise da luz operada pelo fotômetro, um obturador com

velocidade compatível com a abertura do diafragma e a sensibilidade da película, se não

houver ainda uma fonte de luz natural ou artificial modelando o referente e [principalmente]

um operador regendo tudo isso, também não haverá fotografia, muito embora o candidato a

referente possa estar disponível”473.

O resultado é não apenas a exigência de uma alfabetização do olhar para saber ler

a fotografia, a que se refere Benjamin, como também uma educação para a pose – a

fotografia, tecnologia avançada, reaviva um componente de antanho, uma “'armadura

arcaizante', como se se tivesse tornado parasita de um organismo atrofiado”474. Isso porque,

ainda na senda de Machado, “diante de uma câmera, sempre posamos (...). Nós nos

petrificamos diante [do obturador], como uma estátua grega ou renascentista, e forjamos no

bronze de nosso próprio corpo a imagem ideal que supomos ser ou que queremos ser”475. Ao

comentar o trabalho de Diane Arbus, que explorava certo constrangimento – ou inconsciência

do seu papel – das pessoas que retratava – deserdados da sorte obrigados a forjar uma imagem

positiva de si –, Machado reafirma que “descendente direta de uma tradição pictórica

aristocrática, de que é também um resquício ideológico, a pose nem sempre se deixa

compatibilizar com as facilidades democráticas da câmera fotográfica: ela impõe, antes, uma

certa sublimação do motivo e uma espécie de 'seleção natural' do referentes”476. De maneira

similar, nas fotos jornalísticas mais marcantes para a cultura ocidental, Machado advoga que

seu impacto está “na coincidência – acidental ou premeditada – com certos arquétipos

pictóricos que povoam o inconsciente de nossa civilização”477. Assim, “longe de encarar o

verismo essencial que lhe querem creditar os 'realistas', a câmera tem um poder transfigurador

do mundo visível que chega a ser devastador nas suas conseqüências. Diante de uma câmera,

não há realidade que permaneça intacta: tudo se altera, tudo se arranja, tudo concorre para a

ordem ideal do monumento (...). Toda desordem – física, mental social – será substituída por

472MACHADO, A ilusão especular, p. 39.473Idem, ibidem.474Ibidem, p. 52.475Ibidem, p. 51.476Ibidem, pp. 57-58.477Ibidem, p. 62.

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uma paisagem homogênea e asséptica”478. Mas essa “paisagem fotográfica” não ocorre apenas

no momento da fotografia: os seus elementos de visibilidade são incorporados à própria

organização da cidade – auxiliada pelo advento de novas tecnologias, pelos traços culturais

que ascendem junto com o capitalismo, e pela influência do exército e do mosteiro479 – foi no

mosteiro, afirma Mumford, “que o valor prático da restrição, da ordem, da regularidade, da

honestidade e da disciplina interior foi estabelecido, antes que tais qualidades fossem passadas

à cidade medieval e ao capitalismo pós-medieval, sob a forma de invenções e práticas de

negócios: o relógio, o livro de contabilidade, o dia ordenado”480. Com a formação dos Estados

nacionais, com suas monarquias despóticas, e dos exércitos permanentes, Mumford vê a

cidade como expressão destes poderes. A guerra deixa de ser uma atividade espasmódica para

se tornar um evento contínuo481, e a cidade passa a ser tratada como apêndice da forma

militar482: a avenida, novo baluarte da organização urbana, permite a circulação em alta

velocidade dos coches, assim como a movimentação das tropas – Alberti, em seu tratado de

urbanismo, chama-a de via militaris483 –, cabendo ao cidadão o papel de espectador fixo: “a

vida marcha diante dele, sem necessitar da sua licença, sem a sua assistência: pode utilizar-se

dos olhos, mas se deseja abrir a boca ou sair do seu lugar, o melhor que faz é pedir licença

primeiro”484. Ela determina a arquitetura que a envolve, seja nos seus aspectos artísticos, “em

que o edifício serve de cenário para a avenida”485, uma vez que na caminhada, movimento

típico da cidade medieval, em que a abertura estava não nas ruas, mas em espaços espalhados

pela cidade, “o olhar corteja a variedade, mas, em ritmo mais acelerado, o movimento exige

repetição das unidades que se hão de ver: somente assim é que a parte individual, à medida

que se desloca velozmente, pode ser recuperada e reconstituída”486; seja nos seus aspectos

militares, visto que “em ruas irregulares, mal pavimentadas, com grande quantidade de pedras

soltas e lugares de esconder, as formações espontâneas de pessoas não treinadas levam

vantagem sobre uma soldadesca adestrada: os soldados não podem atirar pelas esquinas nem

podem proteger-se contra tijolos caídos do alto de chaminés. Não foram as antigas ruas

medievais de Paris um dos últimos refúgios das liberdades urbanas?”487

478MACHADO, A ilusão especular p. 54.479MUMFORD, A cidade na história, p. 376.480Ibidem, p. 271.481Ibidem, p. 393.482Ibidem, p. 391.483Ibidem, p. 400.484Ibidem, p. 402.485Ibidem, p. 401.486Ibidem, p. 400.487Ibidem, p. 401.

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Destarte, tem-se Paris passando pela sua modernização, se tornando menos opaca,

de mais fácil locomoção, com as intervenções de inspiração militar de Haussmann488 –

Machado fala da afinidade técnica e operacional entre o fuzil e a câmera fotográfica489 –;

simultaneamente, a progressiva melhora da iluminação artificial, além de contribuir para a

diminuição da opacidade da cidade, permite um rearranjo do dia e da noite, numa

racionalização do tempo, dando regularidade à hora do trabalho, abrindo novas oportunidades

de entretenimento490. Ao mesmo tempo, o instantâneo do momento ganhava vez com o

advento da fotografia491 – ou do daguerreótipo, como era chamado na época –, criando o que

Walter Benjamin chamou de culto da imagem492, e a inundação do mercado com imagens de

anônimos, numa nova forma de poluição visual, conhecida a partir da década de 1860 por

“kitsch”493. O kitsch pode ser interpretado como a utilização de elementos artísticos em

produtos destinados a um público considerado “capaz de consumir e fluir objetos culturais

menos primários que os oferecidos pela 'masscult'”494. Seria o que Macdonald, no contexto da

sociedade e da sociologia estadunidense, chamou de “midcult”, uma estratificação da

indústria cultural que se pretende séria e digna, chegando a imitar vanguardas artísticas, mas

pasteurizada, esvaziada de sua ideologia e de sua crítica, de modo a anular seu potencial

contestatório, restando a polêmica-como-entretenimento: “'pour épater le bourgeois' foi o

slogan desafiador das vanguardas do século XIX, mas agora a burguesia desenvolveu a paixão

de ser chocada”495. Como será visto adiante, os dadaístas sentirão essa mudança de postura do

público da arte. Para Rosenberg “o kitsch é a arte que segue regras estabelecidas numa época

em que todas as regras de arte são postas em discussão por cada artista”496, ou seja, o kitsch se

apropria dos elementos da vanguarda ao mesmo tempo que os nega na raiz: no

questionamento das regras da arte e na ascensão de um sujeito autônomo questionador do

status quo. Kundera, em seu romance A insustentável leveza do ser, comenta a respeito do

kitsch, depois de determiná-lo como totalitário: “se digo 'totalitário' é porque, nesse caso, tudo

aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda

discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem

começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do

488JAY, Downcast eyes, p. 117.489MACHADO, A ilusão especular, p. 41.490JAY, op. cit., p. 123.491Ibidem, p. 152.492Ibidem, p. 122.493Idem, ibidem.494MACDONALD apud BOSI, Cultura de massa e cultura popular. p. 80.495Idem, ibidem.496ROSENBERG, A tradição do novo, p. 196.

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kitsch tudo tem que ser levado a sério)”497. De volta a Rosenberg, “o kitsch é, pois, arte

produzida segundo admissões básicas da Arte dos Séculos: a admissão de que as formas

tradicionais podem ser postas em novos usos através de recursos técnicos; a admissão de que

estas formas conservam um poder intrínseco de emocionar as pessoas”498. Conforme Bosi, “o

'kitsch' é uma técnica de solicitação ideológica e emotiva que procura adequar-se ao universo

de aspirações do público médio e estimular nele a procura comercial”499. Kundera reforça esta

idéia da exploração da emotividade: “o kitsch faz nascer, uma após a outra, duas lágrimas de

emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda

lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de

crianças correndo no gramado! Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja

kitsch”. E conclui: “a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base

senão o kitsch”500. “A vida e o kitsch tornaram-se inseparáveis”501, seja sob regime comunista,

seja sob regime capitalista.

Nessa afirmação de pertencimento a um grupo e delimitação dos papéis sociais

com base na emoção, Bourdieu afirma que a fotografia popular ganha o estatuto de “um culto

doméstico (...): ela se inscreve no ritual e tem por função sancionar, consagrar a união familiar

(...). As pessoas se fazem fotografar porque a fotografia realiza a imagem que o grupo faz de

si mesmo: o que ela registra em seu suporte fotossensível não são propriamente os indivíduos

enquanto tais, mas os papéis sociais que cada um desempenha: pai, mãe, avô, tio, marido,

debutante, militar, turista”502. Conforme Umberto Eco, “'o kitsch' se identifica com as formas

mais vistosas de uma cultura de massa, de uma cultura média e, em geral, de uma cultura de

consumo”503. Numa sociedade em que o mercado – ou seja, o consumo – passa a ser o centro

da vida social – aqui incluída a esfera da arte –, o kitsch passa a ser elemento constitutivo da

vida social: neste contexto “a fotografia não teria conseguido uma penetração tão profunda

das camadas populares se ela não possibilitasse esculpir e celebrar nas figuras os mais

arcaicos valores culturais”504, se não fossem vocações a aspiração da pose e o desejo de

ascensão social. A fotografia pode ser tida como sagração do evento fundamental da Idade

Moderna, segundo Heidegger: “a conquista do mundo como retrato/imagem”505. Conquista

497KUNDERA, A insustentável leveza do ser. p. 254.498ROSENBERG, A tradição do novo, p. 196.499BOSI, Cultura de massa e cultura popular. p. 79500KUNDERA, op. cit.. p. 253.501ROSENBERG, op. cit., p. 195.502MACHADO, p. 55.503ECO apud BOSI, op. cit.. p. 80.504MACHADO, A ilusão especular, p. 55.505HEIDEGGER, “The age of the world picture” apud Jay, Downcast eyes, p. 272.

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esta que pode ser interpretada também “como apropriação do referente, não para fins de

conhecimento, mas para garantir uma posse, um poder, ou pelo menos um controle”, com o

objetivo principal de “apreender a qualquer custo, para fixar, catalogar, arquivar e manter sob

controle, ao alcance da mão”506. Mais: contraditoriamente, o fim da aura provocada pela

reprodução em série da fotografia, que trouxe “as coisas para mais perto” das massas507, criou

uma nova espécie de distanciamento, pela reificação da fotografia, pelo seu uso sob a forma

industrial, inicialmente sob a forma de cartões de visitas508, que transformou mais do que a

foto – então rivalizadora da pintura nas artes –, como o próprio indivíduo em mercadoria:

conforme Anne McCauley, o cartão de visitas foi um passo em direção à simplificação da

complexidade da personalidade – justo no momento em que, rompidas as amarras da

sociedade tradicional, personalidades complexas eram uma possibilidade aberta a todos –,

tornando o indivíduo em ator coreografado e imediatamente compreensível: a auto-

transformação do trabalhador em mercadoria maleável509. Para Jonh Tagg, numa interpretação

foucaultiana, a imagem padronizada do cartão é um exemplo do sujeito disciplinado e

normalizado, produzido pelas modernas técnicas de poder510. O distanciamento oriundo da

emergência da fotografia também fica evidenciado no seu uso para o retrato do curioso, do

exótico, contribuindo para tornar o mundo naquilo que os historiadores chamam de “mundo

como exposição”511, semente do “turismo de massa baseado na apropriação visual de lugares

exóticos, e os não menos fotogênicos nativos (ou fauna) que os habita”512, processo que em

alguma medida combinou a nova expansão colonial francesa, que dá início a “toda uma fácil e

equivocada produção artística e literária dedicada ao exotismo”513. Proust encontra no

distanciamento temporal algo de positivo na fotografia: é quando ela “ganha um pouco da

dignidade que lhe falta, quando deixa de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que

não existem mais”514. Como reprodução da realidade, ele critica justamente a perda da aura:

“o que eu vi até agora eram fotografias dessa igreja, e destes Apóstolos, desta Virgem do

Pórtico, tão famosos, tão-somente as moldagens. Agora é a própria Igreja, a própria estátua,

são elas; elas, as únicas, e isto é ver muito mais”515.

506MACHADO, A ilusão especular, p. 41.507BENJAMIN, “Pequena história da fotografia”. p. 228.508Ibidem, p. 220.509MCCAULEY, Disdéri apud JAY, Downcast eyes, p. 142-143.510JAY, Downcast eyes, p. 142.511MITCHEL apud JAY, op. cit., p. 140.512JAY, op. cit., p. 140.513DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 43.514PROUST, À sombra das raparigas em flor, p. 264.515Ibidem, p. 184.

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Nas conseqüências sociais, Siegfried Kracauer, em 1927, levantava a questão de

que a fotografia é uma barreira para a memória verdadeira: “'nos jornais ilustrados', ele nota,

'o mundo é transformado em um presente fotografável e o presente fotografado é

completamente eternizado. Parece ter sido arrancado da morte; na realidade, ele se resigna a

isso'”516. Bergson, em linha similar e afim à sua filosofia, também admite que “fotografar (...)

não é lembrar”517. A longo prazo, Jay aponta a fotografia como um dos fatores que ajudaram a

“minar a crença na autoridade dos olhos, o que ajudou a preparar a forma como se interrogou

a visão no pensamento francês do século XX. Ao invés de confirmar a capacidade do olho em

conhecer a natureza e a sociedade, a fotografia pode ter tido o efeito oposto”518.

É desse contexto de tensão entre artes e os avanços tecnológicos que emergem

tanto as filosofias quanto as vanguardas do século XX, com as quais Debord dialoga – às

vezes de modo explícito, outras de modo velado. Na filosofia, o movimento que se percebe é

a tentativa de suplantar o perspectivismo cartesiano e outras epistemologias “espectadoras”,

então em descrédito, com alternativas que “explorassem o caráter corporalizado e

culturalmente mediado da visão”519. Quando posta em dúvida a primazia do visual (e porque

posta em dúvida), Jay destaca três mudanças que despontam na filosofia: “a primeira diz

respeito ao que pode ser denominado de detranscendentalização da perspectiva; a segunda, a

recorporificação do sujeito cognitivo; e a terceira, a revalorização do tempo sobre o

espaço”520. Ademais, contraditoriamente à dissolução do padrão da perspectiva na pintura e do

ponto de vista autoral ou narrativo na literatura, na filosofia observa-se o desabrochar de um

tímido “perspectivismo” auto-consciente, cujo passo inaugural foi dado na Alemanha, por

Gustav Teichmüller e seu Die wirkliche und die scheinbare Welt, de 1882, cuja influência é

admitida Friedrich Nietzsche521, autor que levou o perspectivismo até um ponto radical, ao

insistir que todo ponto de vista é carregado de valor, sempre522, de modo a rejeitar a noção de

verdade absoluta523. Nietzsche insistiu que “visão era mais projetiva do que receptiva, assim

como mais ativa que passiva”524, de tal forma que é impossível ao sujeito se abster da sua

posição para conhecer. E tal posição, tal perspectiva, é não apenas cognitiva, como corpórea:

Nietzsche enfatizou a existência de um corpo concreto que sustenta o hipotético sujeito do

516KRACAUER, “Die Photographie” apud JAY, Downcast eyes, p. 135.517JAY, Downcast eyes, p. 193.518Ibidem, p. 136.519Ibidem, p. 150.520Ibidem, p. 187.521Ibidem, p. 188.522Ibidem, p. 191.523Idem, ibidem.524Ibidem, ibidem.

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conhecimento – a exemplo do que antes dele fizera Feuerbach e Marx, situando suas teorias

no contexto da experiência vivida corporeamente525.

Diante dessa revalorização do corpo, o dualismo iniciado na filosofia grega entre

sujeito e objeto começa a ruir também526. Na filosofia francesa, Bergson, se não é o primeiro,

é um dos filósofos de maior destaque a apresentar o corpo como instrumento de ação, e não

de representação: “uma verdade fundamental sobre o corpo vivido, em oposição ao corpo

como objeto de contemplação, é seu movimento no mundo, sua habilidade em ser um veículo

de escolha humana”527. A liberdade humana, para ele, depende da irredutibilidade da

temporalidade à espacialidade528. Daí a importância do tempo experimentado, o que faz com

que se oponha frontalmente à hipertrofia da visão, que implica em conceber o espaço como

locus privilegiado do emergir da consciência humana. (Para Lacan, a consciência, fundada a

partir do espaço, é herança da filosofia cartesiana, na qual o sujeito não seria mais que um

ponto geométrico, baseado no ponto gerador da perspectiva529). De acordo com Bergson, a

dominação da visão se faz sentir na espacialização do tempo – o tempo encarado como uma

sucessão de pontos no espaço –, em que, desde a Idade Média, “ritmos temporais naturais e as

temporalidades excêntricas das experiências pessoais foram subordinadas à inflexível e

uniforme série de pontos numa linha unidirecional que nós agora automaticamente

identificamos com o tempo em si”530. Teria sido este, segundo o francês, o grande erro de

Kant: conceber o tempo em si como um meio homogêneo531. No início do século XIX Hegel

já havia – apesar de insistir na hipótese de uma história em si, e na possibilidade da sua

observação omnisciente – ido de encontro à epistemologia kantiana, ao pôr o tempo como

paradigma da intuição532. Essa análise de Bergson influenciou, não por acaso, o principal

nome do marxismo hegeliano, Lukács, que “incluiria a espacialização do tempo nas suas

análises da reificação capitalista, em particular da força de trabalho dos operários, os quais

passaram a ser mais rigorosamente controlados com a introdução, no século XX, dos métodos

tayloristas de ajuste de desempenho”533. Bergson, contudo, afirma Jay, confia na visão: sua

hostilidade é com o ocularcentrismo do pensamento Ocidental534: o francês não vê a

525JAY, Downcast eyes, p. 191.526Ibidem, p. 190.527Ibidem, p. 193.528Ibidem, p. 197.529MACHADO, A ilusão especular, p. 74.530JAY, op. cit., p. 195.531Ibidem, p. 196.532SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 7.533JAY, op. cit., p. 196.534Ibidem, p. 202.

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linguagem como alternativa à percepção visual, pois elas compartilham do mesmo defeito: a

tendência para abstrações atemporais – “todas as formas de intelecção, baseadas que são em

simbolização, são suscetíveis a essa tendência”535.

Outra fonte inspiradora do questionamento à visão na filosofia francesa é a

filosofia alemã que, “já desde a Reforma, parece ter sido menos inclinada positivamente à

visão do que a francesa”536, privilegiando a experiência auditiva – música, poesia537. Ela

adentrou o solo gaulês via fenomenologia – Husserl e Heidegger –, em especial após o

encontro entre filósofos alemães e franceses ocorrido em Davos, Suíça, em março e abril de

1929538. Husserl, apesar do viés visual da sua filosofia – a escolha em “chamar a intuição

eidética de uma Wesenschau (literalmente um olhar para as essências) sugere a persistência

das premissas ocularcêntricas no seu pensamento”539 –, solapa “a distância espectadora entre o

sujeito que observa e o objeto que é observado da tradição epistemológica cartesiana”540: a

consciência é sempre consciência de algo, possui uma intencionalidade para com o objeto

visado, de forma que é impossível ao objeto ficar à parte do seu observador, disponível para

uma observação e uma representação neutras: o seu famoso chamado para retornar às coisas

mesmas implica na apreensão do objeto necessariamente para além do mero aspecto visual541,

e acarreta o entrelaçamento entre sujeito e objeto – “que fora perdida com todas as filosofias

dualísticas”542. Já Heidegger, a exemplo de Bergson, “lamenta a negligência da temporalidade

na metafísica Ocidental, desde Heráclito, em favor de uma ontologia espacial baseada no

sincronismo da contemplação de uma determinada posição”543: “na theoria transformada em

contemplatio”, ele escreveu, “vem à frente o impulso, já preparado no pensamento grego, de

um observar que separa e compartimentaliza. Uma espécie de intruso que avança por passos

sucessivos interligados em direção àquilo que deve ser compreendido pelo olho, se

constituindo em conhecimento normativo”544. Para Heidegger, a própria metáfora visual

pressupõe distância e separação, daí ele preferir termos auditivos, que enfatizam o

pertencimento do Dasein no Ser545.

Sartre, na trilha do autor de Ser e tempo, afirma que a hipertrofia da precedência

535JAY, Downcast eyes, p. 200.536Ibidem, p. 265.537Idem, ibidem.538Idem, Marxism and totality, p. 334.539Idem, Downcast eyes, p. 266.540Ibidem, p. 267.541Ibidem, p. 268.542Idem, ibidem.543Ibidem, p. 270.544HEIDEGGER, “Science and reflection” apud JAY, Downcast eyes, p. 270.545JAY, op. cit., p. 272.

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do visual levou a uma epistemologia problemática, cúmplice da dominação da natureza, e que

deu sustento à hegemonia do espaço sobre o tempo. Ademais, “também levou a distúrbios

profundos nas relações intersubjetivas, e à construção de uma versão perigosamente

inautêntica de si (do self)”546 – inautenticidade (termo empregado também por Heidegger)

combatida pela psicanálise existencial e que tem como meta a integridade unificada do self e a

responsabilidade absoluta do sujeito nos seus atos547. Sartre, a exemplo de Heidegger, vê o

mundo profundamente alienado, nas mais diversas formas548, para além da mera alienação da

força de trabalho enfatizada pelo marxismo – isto mesmo quando o autor passa a tentar

conciliar existencialismo com marxismo, já que no início de sua carreira, na época de Ser e

nada, por exemplo, ele vagamente possuiria algumas tendências esquerdistas. Tal alienação,

atingindo as relações interpessoais, impede uma visão de totalidade: sem um deus ou uma

entidade externa, a humanidade permaneceria para sempre fragmentada e em um conflito549

em que o “nós” não alcança a condição de uma consciência inter-subjetiva, por mais que o

indivíduo possa fazer parte de uma comunidade550: “o senso temporal de comunidade entre os

indivíduos era produzido somente por um olhar objetivante de um observador externo, que

criava um 'nós-objeto'”551. Está no olhar a questão da alienação para Sartre – tanto para este

Sartre fundamentalmente existencialista, quanto para o posterior, afeito também marxismo.

Isto porque a dominação do mundo objetivo pressupõe o olhar, o que por si põe o sujeito – ele

se põe – à distância do que é observado, e esse modelo se tornou o modelo também para as

relações interpessoais552. Dois problemas podem ser levantados disso: um deles, o da não-

reciprocidade e conseqüente relação de poder que há entre quem vê e quem é visto,

transformado em objeto553 – problema inspirado na interpretação de Kojève da dialética

senhor-escravo de Hegel554 –; o outro, de que “visão é assim insuficiente como meio de

conceber o sujeito, ou o que ele chamará de 'para-si', e não menos problemático na sua

tentativa de conceitualizar o objeto, ou o 'em si'”555. De início rejeitando o marxismo –

ignorando ao menos –, com o correr dos anos, o pensador tentou conciliá-lo com o

existencialismo. Sem nunca ter assumido por completo a dialética e o conceito de totalidade

546JAY, Downcast eyes, p. 276.547Idem, Marxism and totality, p. 342.548Ibidem, p. 337.549Ibidem, p. 340.550Ibidem, p. 339.551Ibidem, p. 340.552JAY, Downcast eyes, p. 287.553Ibidem, p. 288.554Ibidem, p. 287.555Ibidem, p. 286.

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histórica de Lukács – ou mesmo Kojève –, de que a natureza é adialética e, logo, não pode ser

confundida com a história556, Sartre, de acordo com Jay, parte do princípio de que o sujeito é

antes de qualquer coisa um corpo, o qual precede a autoconsciência557. Ele está, portanto,

preso a um quê de natural que não pode ser de todo superado: “o corpo serve como um

impedimento para qualquer possibilidade de totalização intersubjetiva, porque o que Sartre

chama de 'corpo-para-os-outros' estava inevitavelmente congelado em um objeto pelo olhar

das outras subjetividades. Esta percepção objetificada era então internalizada pela consciência

original como uma realidade reificada do corpo, o qual então se tornou alienado de si mesmo

ao invés de da sua base pré-conceitual”558. O ocularcentrismo resultaria na cisão do indivíduo

em sujeito que observa e objeto que é observado, tendo como origem a aceitação da auto-

alienação que está na raiz do cogito cartesiano559. Sua proposta em idade mais avançada é não

a de uma totalidade, mas a de uma totalização: a diferença estaria que “enquanto a totalidade é

inerte e como uma coisa, a totalização é dinâmica, viva e, mais importante, inerentemente

instável”560, de tal forma que a unidade sintética não é uma atividade, mas o vestígio do

passado: Sartre crê que sempre haverá alguma alienação. O autor encara como a forma

privilegiada de totalização a linguagem, que deve ser entendida como que “desenvolvendo

constantemente uma totalização orgânica”561, e assim como o tempo, que não existe em-si e

no qual não estão inseridos o homem e suas atividades, é antes “uma qualidade concreta da

história, é feita pelo homens com base nas suas temporalizações originais”562. É a linguagem,

fluida na dinâmica do tempo, criada pelos homens ao produzir sua história, que Sartre, na

interpretação de Jay, vê a possibilidade uma totalização futura, menos alienada, capaz de

conhecer a realidade – não o todo, o que é impraticável pela natureza localizada do nosso

ponto de vista563 – e capaz de criar uma comunidade com sentido564. Não por acaso que ele

sugere que “linguagem deva ser estudada nos mesmos termos que o dinheiro: como um meio

circulante, de materialidade neutra, que unifica o disperso”565 em um dado momento.

Dois outros fortes críticos do ocularcentrismo e que merecem breve nota neste

trabalho são Jacques Lacan e seu aluno Louis Althusser. Seguindo a leitura de Martin Jay,

556JAY, Marxism and totality, p. 340.557Ibidem, p. 341.558Idem, ibidem.559JAY, Downcast eyes, p. 290.560JAY, Marxism and totality, p. 351. 561Ibidem, p. 357.562Ibidem, p. 355.563Idem, Downcast eyes, pp. 290-291.564Ibidem, p. 290.565JAY, Marxism and totality, p. 357.

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pode-se dizer que Lacan identifica tanto na sociedade quanto na filosofia Ocidental a

tendência a uma estagnação no desenvolvimento saudável, não-alienado dos sujeitos566. O

pensamento ocularcêntrico, por sua hipervalorização do olho e do olhar, obsta a representação

simbólica da castração, fazendo com que a sociedade como um todo fique impedida de entrar

de fato no simbólico – onde o falo opera como um significante do desejo inalcançável,

separando o ego567 –, presa na chamada “fase do espelho”568 – que em sua teoria acompanha a

criança do sexto ao décimo oitavo mês de vida –, fase dominada pelo imaginário, em que

imagem e realidade aparecem fundidas, confusamente imiscuídas uma na outra569. A

superação dessa fase, a saída do imaginário e a entrada no simbólico, passaria pela superação

da díade do espelho – relação em que o sujeito encontra um sentimento de todo, mas um todo

narcisista, baseado na “alegre compreensão da sua imagem especular”570 – pela tríade do

drama edipiano, única forma possível de uma intersubjetividade não narcisista, uma

intersubjetividade “no qual a alteridade do não-próprio é preservada ao invés de destruída”571:

só quando o desejo de fusão é substituído pela aceitação da proibição do desejo, representado

pela introjeção da proibição do pai contra o incesto, é que o sujeito pode superar a fase do

estágio do espelho572. Ou seja, o sujeito, para Lacan, conforme Jay, deve tentar abdicar da

unidade aparente que a representação meramente visual do espelho dá pela aceitação do outro

não como uma imagem de si – como em Rousseau –, mas como limite a si mesmo. A

psicologia do ego – ou mesmo, como visto, a psicanálise existencial de Jean-Paul Sartre573 –,

que visa um ego forte e integrado seria equivocada e contribuiria para a alienação, uma vez

que, segundo Lacan, “o ego representa o centro de todas as resistências ao tratamento dos

sintomas”574.

É também esse sujeito centrado o sujeito ideológico para Althusser – de acordo

com Jay. Definindo ideologia como “a relação imaginária dos indivíduos com suas reais

condições de existência”575, ele conclui, inspirado no estruturalismo então em voga e em

Lacan, que ideologia é uma constante humana, independente de quão perfeita seja a

sociedade: o objeto real é distinto do objeto do conhecimento, e neste intervalo sempre há

566JAY, Downcast eyes, p. 352.567Ibidem, p. 355.568Ibidem, pp. 358-359.569Ibidem, p. 355.570Ibidem, p. 345.571Ibidem, p. 351.572Ibidem, pp. 351-352.573JAY, Marxism and totality, p. 342.574LACAN, “Agressivity in psychoanalysis” apud JAY, Downcast eyes, p. 348.575ALTHUSSER, “Ideology and ideological state apparatuses” apud JAY, Downcast eyes, p. 375.

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falhas na identificação, produzidas pelo imaginário576. Rompendo com a ligação entre

ideologia e falsidade, ao ver a ideologia como uma constante – inevitável – da sociabilidade

humana, passa-se a encará-la como uma forma de conhecimento577, distinto do conhecimento

científico – o qual, “ele alega, opera no nível da produção conceitual, na qual a verificação

experimental não tem qualquer papel; ela é, não obstante, materialista porque pressupõe uma

coerência fundamental entre objetos pensados e mundo real”578. A partir disso, a ciência seria

capaz de ver através da ideologia, por mais que seja incapaz de acabar com seu poder sob a

experiência vivida579. A “arte verdadeira” teria uma função parecida: apesar de não oferecer

um conhecimento stricto senso, científico, permitiria perceber certas relações dos indivíduos

com o conhecimento, que de outra forma, imersos no quotidiano, não seriam percebidas580.

Seus críticos, contudo, vêem na posição de Althusser sobre a ciência apenas uma nova versão

da divisão do trabalho, a separação entre trabalho intelectual e manual, em que o intelectual

marxista, dotado de sua visão científica, teria a capacidade de ter a visão do todo, enquanto as

massas permaneceriam no nível ideológico imposto pela vida prática do dia-a-dia581: uma

apresentação marxista (involuntária) da abstração do mundo, da compartimentalização das

funções, típicas do espetáculo, levantadas por Debord. No âmbito do ocularcentrismo e da

filosofia, mais especificamente, Althusser identifica a ideologia com a confiança em qualquer

tipo de visão, e toda filosofia que põe um sujeito centrado como ideológica582 – daí porque o

marxismo hegeliano inspirado em Lukács, confiante no operariado como meta-sujeito da

história, atuante a partir do centro do sistema de produção capitalista, seria tão-somente uma

visão não científica e, portanto, ideológica, da realidade. Pelas suas análises, interpreta Jay, a

totalidade em Marx, ao empreender sua ruptura epistemológica com a filosofia hegeliana –

que tem como marco A ideologia alemã – seria um todo sem centro, sem um ponto genético

de origem e sem um ponto teleológico de chegada583. A idéia de uma história racional

controlada pelos homens não cabe a Althusser, para quem “mesmo depois da revolução, os

homens estariam sustentando uma estrutura cujas origens eles não são os responsáveis e cujos

objetivos eles não podem determinar”584: pensando a história como processo, o homem se vê

alijado de uma práxis global e, diante dessa ausência de um sujeito efetivo atuante

576JAY, Downcast eyes, p. 374-375.577Idem, Marxism and totality, p. 401.578Idem, ibidem.579Ibidem, p. 404.580ALTHUSSER, Lenin and philosohpy apud JAY, Marxism and totality, p. 415.581JAY, Marxism and totality, p. 405.582JAY, Downcast eyes, p. 375.583Idem, Marxism and totality, p. 406.584Ibidem, p. 411.

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racionalmente na história, fica impossibilitada também uma totalidade normativa585: uma

sociedade revolucionada seria apenas a emergência da hegemonia de uma outra estrutura de

dominação586. A hegemonia de uma estrutura de dominação sobre outras – secundárias, que

continuam ativas –, implica, entretanto, em pensar não uma multiplicidade de centros, “mas a

ausência radical de um centro”587. No que tange à questão do tempo, esses diferentes níveis

estruturais possuiriam cada um uma temporalidade distinta, relativamente autônoma, mas

dependente do todo em última instância, e que “'não podem mais serem pensados na co-

existência do presente hegeliano, de um presente ideológico no qual a presença temporal

coincide com presença da essência com o seu fenômeno.' Por conseguinte, 'o modelo de um

tempo contínuo e homogêneo no qual tem lugar a existência imediata, o qual é o lugar da

existência imediata desse presente progressivo, não pode mais ser tido como o tempo da

história'”588.

Também com influência do estruturalismo, porém fora das correntes marxistas, o

trabalho de Michel Foucault, junto com o de Debord, de acordo com Jay, não foi de rejeição

ao ocularcentrismo, mas antes de inversão do seu valor: “visão ainda era o sentido

privilegiado, mas o que esse privilégio produziu no mundo moderno foi condenado como que

quase totalmente nefasto”589. O que Foucault tratou mais especificamente foi a visão dentro de

um contexto de visibilidades, as quais “não se definem pela visão, antes são complexos de

ações e de paixões, de ações e de reações, complexos multi-sensoriais que acedem à luz”590 –

sendo que a luz, conforme Deleuze, seria a nova forma de intuição espaço-temporal591. As

visibilidades – como os enunciados – por um lado são elementos puros, “condições a priori

sob as quais todas as idéias se formulam num momento, e os comportamentos se

manifestam”592, por outro, não mantêm esta pureza, estando em permanente transformação

com o processo histórico – o a priori, para Foucault, é um a priori histórico: “cada estrato,

cada formação histórica implica uma repartição do visível e do enunciável que sobre ela se

faz; por outro lado, de um estrato a outro há variação da repartição, visto que a própria

visibilidade muda de modo e os próprios enunciados mudam de regime”593. Assim sendo,

Deleuze afirma que “as visibilidades formam, com as suas condições, uma Receptividade, e

585JAY, Marxism and totality, p. 411.586Ibidem, p. 407.587ALTHUSSER, Reading Capital apud Jay, Marxism and totality, p. 411.588Idem, ibidem, p. 409.589JAY, Downcast eyes, p. 384.590DELEUZE, Foucault, p. 86.591Ibidem, p. 88.592Ibidem, p. 87.593Ibidem, p. 74.

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os enunciados, com as suas, uma Espontaneidade. Espontaneidade da linguagem e

receptividade da luz (...). Receptivo não quer dizer passivo (...). Espontâneo não quer dizer

ativo”594. A genealogia da visão está imbricada nos dizeres sobre o que é visto, sendo que o

enunciado detém o primado sobre a visão: “uma 'época' não é preexistente aos enunciados que

a exprimem nem às visibilidades que a preenchem”595, “aquilo que Foucault espera da

História é essa determinação dos visíveis e dos enunciáveis em cada época, que ultrapassa os

comportamentos e as mentalidades, as idéias, pois que é ela que os torna possíveis”596; porque,

a exemplo dos enunciados, que dizem tudo o que podem em função das suas condições de

enunciado597, as visibilidades, “apesar de não estarem nunca ocultas, não é por isso que são

imediatamente vistas ou visíveis. Elas são inclusive invisíveis, enquanto se ficar pelos objetos,

pelas coisas ou pelas qualidades sensíveis, sem se chegar até à condição que as abra. E as

coisas se fecham sobre si, as visibilidades esfumam-se ou confundem-se a um tal ponto que as

'evidências' se tornam inapreensíveis numa outra época”598. Abrir as palavras, os ditos, a

linguagem, assim como abrir a visão, as visibilidades: eis o trabalho do arqueólogo, do

genealogista. Em tal genealogia, Foucault – para quem, em acordo com Sartre, haveria uma

verdade ontológica para além da experiência sensitiva599 – apresenta o triunfo da história

natural, na Idade Clássica, como o triunfo de uma nova ordem visual600. Posteriormente, ao

substituir esse ordenamento científico da visão – estático, de tabelas de classificação empírica

– pela biologia, há uma “nova ênfase nas estruturas invisíveis, anatômicas e orgânicas”601,

reforçada pela emergência da consciência histórica602. O ideal de observação científica

precisa, atenta às mudanças ínfimas que ocorrem com o passar do tempo, se faz notar no

campo social no expediente do panóptico, idealizado por Bentham, no início do século XIX:

“um lugar onde se pode em qualquer momento ver sem ser visto”603, ou melhor, um lugar

onde quem é observado sabe que o pode estar sendo, sem saber se realmente está, e sem a

contrapartida de poder devolver o olhar: trata-se de um dispositivo que garante de fato e de

direito dissimetria, desequilíbrio, diferença na troca de olhares604 – que Sartre já levantava, em

outros termos, em um plano não tão institucional, quando falava da objetivação de quem é

594DELEUZE, Foucault, p. 88.595Ibidem, p. 74.596Ibidem, p. 75.597Ibidem, p. 87.598Ibidem, p. 84.599JAY, Downcast eyes, p. 387.600Ibidem, p. 404.601Ibidem, p. 405.602Idem, ibidem.603DELEUZE, op. cit., p. 74.604JAY, op. cit., p. 410.

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observado605. Internalizado, este desequilíbrio na troca de olhares remonta à questão religiosa,

do “olhar de Deus” sobre cada detalhe606: a mesma ausência de um sujeito concreto, de uma

punição efetiva, mas com o medo permanente dela, aliviado com sua submissão aos

ordenamentos postos, encarado como virtude. Esta nova condição de ser visto não altera,

contudo, o essencial na visibilidade, de que “a condição com que a visibilidade se relaciona

não é, no entanto, a maneira de ver de um sujeito: o sujeito que vê é, ele próprio, um lugar na

visibilidade, uma função derivada da visibilidade (é o caso do lugar do rei na representação

clássica, ou então do lugar de qualquer observador no regime das prisões)”607: a diferença está

na ampliação de quem é sujeito, ou seja, quem tem direito à existência, à visibilidade dentro

da sociedade na Idade moderna – daí a ampliação da visibilidade ostensiva e ritual da Idade

Clássica, para o modelo panopticista. A supremacia deste, diz Foucault, se deu com a

Revolução Francesa, sob o reinado de Napoleão Bonaparte608: o sonho de Rousseau, “de uma

sociedade transparente, visível e legível em cada parte, o sonho de não haver mais zonas de

escuridão”609. O panóptico, se é a instrumentalização do sonho de Rousseau de visibilidade

por um lado, por outro, se apresenta despido do ideal igualitário e de liberdade: “o

'Iluminismo', que descobriu as liberdades', ele argumentou, 'também inventou as

disciplinas'”610.

Também foram influenciadas por esse movimento de questionamento do olhar –

ou das visibilidades, para utilizar o termo foucaultiano –, as vanguardas artísticas dos séculos

XIX e XX (que tiveram Paris como seu epicentro), seja dentro do próprio domínio da arte,

seja num contexto mais amplo de transformação social.

Elas podem ser tidas como “um fenômeno cultural de signo crítico, negativo e

combativo”611, que têm sua origem no esfacelamento da unidade espiritual e cultural do século

XIX612, e que vêem não na evasão do mundo, mas “na presença ativa dentro da realidade”

uma alternativa à perda dos valores de antanho613. A arte moderna, portanto, segundo de

Micheli, “não nasceu como uma evolução da arte do século XIX; ao contrário, ela surgiu de

uma ruptura dos valores daquele século”614, almejando “uma superação [Aufhebung] da arte –

605JAY, Downcast eyes, p. 408.606Ibidem, p. 410.607DELEUZE, Foucault, p. 84.608JAY, op. cit., p. 411.609Idem, ibidem.610Idem, ibidem.611SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 49.612DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 5.613Ibidem, p. 46.614Ibidem, p. 5.

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no sentido hegeliano da palavra: a arte não deve simplesmente ser destruída, mas transportada

para a práxis vital, onde, ainda que metamorfoseada, ela seria preservada”615. Isso implicou no

engajamento do artista não apenas na cultura, como na sociedade, na tentativa de apreendê-las

“como um todo, e transformá-las de acordo com as recém-descobertas categorias estéticas e

utópicas”616. Por serem utópicas, Home põe as vanguardas artísticas do século XX como

expressão similar aos movimentos heréticos da Idade Média: “a tradição utópica sempre

almejou a integração de todas as atividades humanas. Os heréticos da Idade Média buscavam

abolir o papel da Igreja e realizar o paraíso na Terra, enquanto seus equivalentes do século XX

buscam o fim da separação social, confrontando política e cultura simultaneamente”617. Esta

ruptura, todavia, é construída de modo gradual, sendo feita conforme o contexto da época –

levantes de 1848, Comuna de Paris, as duas guerra mundiais –, e em grande medida não

abdica dos ideais Iluministas e da Revolução Francesa, podendo ser tida como uma expressão

plástica de muitas teorias filosóficas do Ocidente – por mais que se tenha buscado inspiração

no Oriente ou nas artes dos ditos povos primitivos. Nos termos de sua prática, a ânsia de

transformação da realidade põe as vanguardas artísticas em afinidade com as vanguardas

políticas – quando não as põem em contato direto, como no caso dos situacionistas, para ficar

apenas no exemplo que mais cabe aqui.

Subirats apresenta dois axiomas sobre os quais se assentaria a teoria da vanguarda

política de teóricos como Rosa Luxemburgo, Lênin ou Lukács: “sua força organizativa que

permite dirigir as massas e possibilitar através das estratégias adequadas a vitória política, ou

seja, a revolução social, e em segundo lugar, seu sentido utópico ou seu caráter antecipador de

uma nova realidade social”618. Estes axiomas, nas artes, vão impulsionar as questões do estilo

e da autonomia da esfera artística – isso desde os primórdios dos movimentos de contestação,

com o expressionismo alemão, que se opôs ao positivismo, ao naturalismo e ao

impressionismo, ao rejeitar o olhar objetivo e distanciado dessas correntes para defender o

engajamento na realidade619. Na questão do estilo, acabou-se por retomar a acepção classicista

de estilo num sentido civilizatório. Para Goethe e Schinkel, o estilo é tanto a “representação e

expressão de um sentir geral, seja de um povo, seja de uma época histórica”; quanto detentor

de um caráter formador, educador, identificado com a idéia alemã de Bildung620, que pode ser

615BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 96-97.616SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 56.617HOME, Assalto à cultura, p. 15.618SUBIRATS, op. cit., p. 54.619DE MICHELI, As vanguardas artísticas, pp. 60-61.620SUBIRATS, op. cit., p. 55.

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entendida como “a formação da pessoa no sentido de sua autonomia interior, de sua realização

moral e estética, e de sua liberdade”621. Na raiz de Bildung está a palavra Bild, que significa

“figura, forma, imagem ou cópia”622, e que remete, portanto, ao conceito grego eidos, o qual

possui duplo significado: pode tanto “designar a aparência sensível das coisas, identifica-se

com a forma visível”, quanto estar “ligado a uma determinação interior e essencial das

coisas”, conforme a filosofia platônica623. Ademais, “originalmente, a palavra Bildung

relacionava-se com o pensamento religioso e místico”624. Por caminhos outros, o grande

inspirador das vanguardas contestatórias, Cézanne, era, segundo Merleau-Ponty, uma pessoa

com profundo laços com a religião, na qual ele buscava, por medo da vida e da morte, a

necessidade de fixar a vida num ponto e abandoná-la625.

No quesito da arte como esfera autônoma, exemplos como a Bauhaus sinalizam

no sentido da arte como “um fator da produção e reprodução social”626. A destruição da

autonomia da arte está ligada a “uma exigência crítica: a superação do conflito entre

idealismo poético e realidade alienada, entre o sonho transcendente de felicidade que a arte

transforma como realização autônoma de beleza, e a existência social submetida a um

princípio coercitivo de dominação e desigualdade”627. Para melhor sistematizar a arte

moderna, Subirats elabora a noção de “estética cartesiana” a partir dos aspectos que ele julga

fundamentais da epistemologia de Descartes. São estes aspectos: “a ruptura com o passado, o

questionamento de si mesmo, a exigência sempre reformulada de voltar às origens, de partir,

uma vez mais, do zero”628, assim como “a recusa da imaginação e da fantasia, a negação da

memória histórica e da tradição, a negação da memória biográfica individual, a recusa

absoluta da natureza interior do homem ou o questionamento dos elementos sensíveis da

experiência”629. Merleau-Ponty destaca também o fato de “o modelo cartesiano da visão ser o

tato”630. Na confluência dessas duas linhas, de cartesianismo e Bildung, Paul Klee, por

exemplo, afirmava que a aspiração do artista devia ser a de se inserir nas forças criadoras da

natureza, de modo que ela “possa, através dele, gerar fenômenos novos, novas realidades,

novos mundos. Segundo Klee, portanto, o artista deve tornar-se uma espécie de médium, em

621SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 92.622Idem, ibidem.623Ibidem, p. 84.624Ibidem, p. 93.625MERLEAU-PONTY, “A dúvida de Cénzanne”, p. 124.626SUBIRATS, op. cit., p. 56.627Ibidem, p. 57.628Ibidem, p. 60.629Ibidem, pp. 60-61.630MERLEAU-PONTY, “O olho e o espírito”, p. 24.

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comunicação com o 'ventre da natureza'”631. Natureza esta que não é a natureza pura, do bom

selvagem do ideal rousseauniano: de acordo com Subirats, “a arte da vanguarda, conforme à

estética do absoluto do século XIX, proclamara a necessidade de criar uma segunda

natureza”632. Talvez mais acertado seja dizer recriar essa segunda natureza humana. Para tais

propósitos, as vanguardas rejeitam o que Bürger chamou de obra de arte orgânica, calcada no

simbólico, cuja unidade do geral e do particular (definição de obra de arte, num sentido geral,

conforme o autor) é estabelecida sem mediação633, em que o artista “manipula seu material

como algo vivo, cuja significação advinda de situações concretas de vida, ele respeita”634. No

seu lugar, as vanguardas oferecem uma obra não orgânica, alegórica (ainda que “na

vanguarda, à depreciação deste em favor do outro mundo contrapõe-se uma quase entusiástica

afirmação do mundo”635), em que a unidade é mediada636 e o material é só material, sendo

função do artista “matar a 'vida' do material, isto é, arrancá-lo ao seu contexto funcional, que é

o que lhe empresta significado”637. De acordo com esta leitura de Bürger, o vanguardista se

propõe a fazer a denúncia de um mundo fragmentado já na própria forma, e a desvelar o

caráter absolutamente humano, social, daquilo que é apresentado: ele oferece sua arte “como

produto artificial, a ser reconhecido como artefato”638; ele recusa aquilo que Lukács

denominou “encobrimento”, ou seja, “a produção da aparência de natureza”639. É certo que os

surrealistas, ao procurarem “restaurar a originalidade da experiência”, acabam por estabelecer

“como natural o mundo produzido pelo homem. Com isso, no entanto, a realidade social fica

protegida contra a idéia de uma possível mudança. A história feita pelo homem não é

transformada em história-da-natureza, mas petrificada em imagem natural. A metrópole é

vivenciada como natureza enigmática, na qual o surrealista se move como o primitivo na

verdadeira natureza: em busca de um sentido que deve poder ser encontrado naquilo que é

dado”640. Os dois expedientes utilizados pelas vanguardas para tentar alcançar seus propósitos

– acompanhando Bürger – são a lógica do choque e a montagem. Neste ponto, via de regra, as

vanguardas teriam aderido àquilo que Subirats chamou de “utopia do maquinismo”: a crença

na cultura ocidental, vinda desde Descartes, de que a máquina seria “a máxima expressão e o

631DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 93.632SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 43.633BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 106.634Ibidem, p. 129.635Ibidem, p. 131.636Ibidem, p. 106.637Ibidem, p. 129.638Ibidem, p. 132.639Idem, ibidem.640Ibidem, p. 131.

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mais decisivo meio de poder humano sobre a natureza e, conseqüentemente, como

instrumento emancipador”641, adquirindo “funções demiúrgicas, proféticas, messiânicas, bem

como demoníacas, infernais e destrutivas”642, no contexto da modernidade estética. “No

manifesto 'o que é o Dadaísmo e o que ele pretende na Alemanha?', Richard Huelsenbeck

exigia a 'introdução progressiva de mais tempo livre através da mecanização gradativa de

todos os campos de atividade' e o estabelecimento de um conselho dadaísta para a

remodelagem da vida em todas as cidades com mais de 50 mil habitantes”643. Com a apologia

da máquina, as vanguardas estéticas, afins ao pensamento do seu tempo, tendiam a aceitar os

três pressupostos da consciência moderna: “a idéia de uma ruptura radical com a história e o

começo de uma nova era; a concepção racionalista de história como triunfo absoluto da razão

no tempo e no espaço e, com ela, das idéias de justiça social e de paz; e, por último, a fé em

um progresso indefinido fundado no desenvolvimento cumulativo e linear da indústria”644.

Ainda conforme Subirats, esta postura positiva de crença no maquinismo será um dos motivos

pelos quais as vanguardas acabarão, dialeticamente, se tornando o oposto do que eram

originalmente: de movimentos contestatórios passam a ser movimentos conservadores.

A história das vanguardas artísticas, iniciada com o expressionismo como uma

arte de oposição, talvez tenha encontrado seu ápice ainda nos primórdios do século XX, com a

negação dadaísta. Enquanto Klee, por exemplo, anunciava a possibilidade de se afastar das

leis que a teoria põe, e que “aquele que segue as regras com rigor excessivo perde-se num

campo estéril”, de forma que defendia o movimento livre quase como um dever moral645, os

dadaístas não se propunham ao afastamento ou questionamento das regras, e sim ao extremo

de destruí-las: seus alvos não deixam de ser os mesmos que os dos expressionistas, mas seus

meios são muito mais radicais. De acordo com de Micheli, dadá é “antiartístico, antiliterário,

antipoético”, é “contra as leis da lógica, contra imobilidade do pensamento, contra a pureza

dos conceitos abstratos, contra o universal em geral. É, ao contrário, a favor da liberdade

desenfreada do indivíduo, da espontaneidade, daquilo que é imediato, atual, aleatório, da

crônica contra a temporalidade, daquilo que é espúrio contra aquilo que é puro, da

contradição, do não onde os outros dizem sim e do sim onde os outros dizem não, da anarquia

contra a ordem, da imperfeição, contra a perfeição. Portanto, em seu rigor negativo é também

contra o modernismo, isto é, contra o expressionismo, o cubismo, o futurismo, o

641SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 23.642Ibidem, p. 26.643HOME, Assalto à cultura, p. 16.644SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, pp. 12-13.645DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 101.

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abstracionismo, julgando-os em última análise subprodutos daquilo que foi ou está para ser

destruído, isto é, dos novos pontos de cristalização do espírito, o qual jamais deve ser

aprisionado na camisa de força de uma regra, ainda que nova e diferente, mas deve estar

sempre livre, disponível, solto no contínuo movimento de si mesmo, na contínua invenção da

sua existência”646. Ou seja, sua negação é ativa, exige um engajamento completo do indivíduo

num modo de vida – não se restringe, portanto, a um movimento artístico647: originado do

questionamento da instituição arte (e não apenas de um estilo)648, ele vai além da negação

disso; abrange toda a sociedade e tudo aquilo que está relacionado aos costumes e tradições649.

“Quando os vanguardistas colocam a exigência de que a arte novamente devesse se tornar

prática, tal exigência não diz que o conteúdo das obras de arte devesse ser socialmente

significativo”650: seu objetivo não é integrar a arte à práxis vital burguesa, ou seja, “a um

mundo ordenado pela racionalidade-voltada-para-os-fins”, e sim de organizar uma nova

práxis vital651. No contexto atual, “o burguês, reduzido na sua práxis vital a uma função

parcial (ação ligada à racionalidade-voltada-para-os-fins), experimenta-se na arte como 'ser

humano'”652, “experimenta a si mesmo como personalidade. Mas como o status da arte se

encontra dissociado da práxis quotidiana, essa experiência não produz conseqüências, isto é,

não pode ser integrada a essa práxis”653. Ela serve, assim, à neutralização da crítica, o que está

“em estreita conexão com a função assumida pela arte na formação da subjetividade

burguesa”654. Ao atacar a instituição artística, as vanguardas desenvolvem “uma crítica das

relações de bens de consumo”655. E ao fazerem aflorar a inadequação à sua obra, à sua arte,

por parte do receptor – cujo “procedimento para apropriação de objetivações intelectuais”

foram moldados no contato com obras de arte que Bürger chamou de orgânicas656, ou seja, a

arte não-vanguardista –, abrem espaço para que este questione sua práxis vital e tenha ciência

da necessidade de transformá-la657. “Por conseguinte, a obra vanguardista provoca na

recepção uma ruptura” que é análoga tanto ao caráter fragmentário da obra (sua não

organicidade)658, quanto ao caráter fragmentário do próprio indivíduo na sociedade capitalista. 646DE MICHELI, As vanguardas artísticas, pp. 134-135.647Ibidem, p. 135.648BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 96.649DE MICHELI, op. cit., p. 134.650BÜRGER, op. cit., p. 96.651Ibidem, p. 97.652Ibidem, p. 95.653Ibidem,, p. 38.654Ibidem, p. 39.655HOME, Assalto à cultura, p. 180.656BÜRGER, op. cit., p. 142.657Idem, ibidem.658Ibidem, p. 146.

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Ela agride a burguesia na sua racionalidade voltada para fins, afronta sua fruição estética,

habituada à harmonização das partes659, em uma imagem projetada de reconciliação entre

homem e natureza660 – “em vez de tentar 'resolver' as contradições, a 'vanguarda' as coloca

para 'trabalhar' como o motor de mais uma 'desordem' desconhecida”661. Esse efeito é

conseguido com aquilo que Benjamin chamou de “estética do choque”: o choque é aquilo que

é sentido pelo transeunte na multidão662, o mover-se através do tráfego663, assim como a

vivência do operário frente à máquina664 – situações banais da sociedade contemporânea, mas

que tornam o homem “um caleidoscópio dotado de consciência”, de acordo com

Baudelaire665. Ao sujeito cabe criar mecanismos para apreender e se situar na cidade e na

modernidade: lidar com essa série de sinais, de informações, de perigos, sem que disso resulte

em trauma. Destarte, o choque exige um treinamento no controle dos estímulos, que pode

acontecer através do sonho e da lembrança, mas que depende principalmente do consciente

desperto666, de forma que “quanto maior é a participação do fator choque em cada uma das

impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger

contra os estímulos”667. O cinema, com sua forma de recepção ao mesmo tempo atenta e

distraída aos seguidos golpes dados pelas mudanças de ângulos e lugares668, seria uma

resposta técnica à exigência deste “treinamento de natureza complexa”669. Com isso é

amortecida essa torrente de estímulos que atingem o indivíduo. Ao mesmo tempo, é tornada

estéril para a experiência poética670. A obra de arte nesse contexto em que o choque é norma,

seria viável graças a um “alto grau de conscientização”, à “idéia de um plano atuante em sua

composição”671, em que a experiência do choque está no âmago do seu trabalho artístico672. É

o que Benjamin encontra em Baudelaire, nos dadaístas, no cinema. O principal recurso para

alcançar tal efeito, de acordo com Bürger, é a montagem: “a obra 'montada' aponta para o fato

de ter sido composta a partir de fragmentos da realidade. Ela rompe com a aparência de

totalidade. Assim, a intenção vanguardista de destruição da instituição arte, paradoxalmente, é

659BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 147.660Ibidem, p. 139.661HOME, Assalto à cultura, p. 186.662BENJAMIN, “Sobre alguns temas em Baudelaire”, p. 126.663Ibidem, p. 124.664Ibidem, p. 126.665Ibidem, p. 125.666Ibidem, p. 110.667Ibidem, p. 111.668Idem. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 192, p. 194.669Idem. op. cit., p. 125.670Ibidem, p. 110.671 Idem, ibidem.672Ibidem, p. 111.

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realizada na própria obra de arte”673. Com a montagem “é rompido um sistema de

representação que se apoiava na reprodução da realidade, isto é, no princípio de que o sujeito

artístico deve operar a transposição da realidade”674, isto é, “o material montado interrompe o

contexto no qual é montado”675. No cinema, a montagem de imagens é um procedimento

técnico fundamental, não uma técnica artística676. Para Bürger, Benjamin teria notado a

antecipação da queda da aura entre os vanguardistas, em especial os dadaístas, antes mesmo

dos meios técnicos para isso – eles teriam buscado produzir os efeitos do cinema através da

pintura e da literatura677. Conforme Benjamin, “uma das tarefas mais importantes da arte foi

sempre a de gerar uma demanda cujo atendimento integral só poderia produzir-se mais tarde.

A história de toda forma de arte conhece épocas críticas em que essa forma aspira a efeitos

que só podem concretizar-se sem esforço num novo estágio técnico, isto é, numa nova forma

de arte”678. Essa empreitada teria tomado corpo através da tentativa de tornar suas obras

“impróprias para qualquer utilização contemplativa”679, ao desvalorizarem seu material,

apelando recorrentemente para produtos de produção em série, de uso quotidiano, que,

recortados e colados em contexto alienígenas, privados de sentido680, causavam o choque, o

incômodo tanto com a arte quanto com o quotidiano – incômodo reforçado pelo seu

comportamento social baseado no escândalo681. Convém lembrar que Benjamin era entusiasta

das potencialidades emancipatórias abertas pela técnica682.

Entretanto, como aponta Subirats, essa negação dadaísta ficou no meio do

caminho: se Duchamp negou a arte, “sua dimensão poética e transcendente, sua promessa

utópica”, não foi capaz de negar a obra de arte, “seu valor ritual e social, seu caráter fetichista,

sua dimensão sagrada como arcaico objeto de sacrifício para consagração das novas normas

sociais”683. Apesar de incompleta, a proposta dadá não era a de fazer confluir a arte com a

vida, como nos expressionistas, antes de soldar a fratura entre elas, transformar a poesia em

ação – como anunciaram antes deles Van Gogh e Rimbaud684 –, alcançar com isso uma

“verdade humana não deturpada”685. A poesia no sentido dadaísta não é um meio de 673BÜRGER, Teoria da vanguarda, p. 132.674Ibidem, p. 138.675BENJAMIN, “O autor como produtor”, p. 133.676BÜRGER, op. cit., p. 135.677BENJAMIN, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 191.678Ibidem, p. 190.679BÜRGER, op. cit., p. 63.680Ibidem, p. 142.681BENJAMIN, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 191.682BÜRGER, op. cit., p. 65.683SUBIRATS, Da vanguarda ao pós-moderno, p. 80.684DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 135.685 Ibidem, p. 141.

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expressão, mas uma atividade do espírito; não se trata de “manifestação secundária da

inteligência e da vontade”, antes de uma maneira de ser, de viver686 uma vida “aberta, ativa,

impetuosa, provisória, comprometedora”687. No que exatamente resultaria essa atitude

negativa, essa vida aberta, os dadaístas não sabiam: tinham claro apenas a importância do

gesto ser maior do que a da obra688 – daí os recorrentes apelos às polêmicas, às provocações,

aos escândalos –, que não deviam se pôr de modo estético diante da vida, pois ser estético

implicaria num certo distanciamento para retratá-la, e dadá negava qualquer

distanciamento689: conforme o primeiro manifesto dadaísta, “os artistas são os criadores da sua

época”690, o que implica muitas vezes em “ser comerciante, mais político do que artista, não

ser artista por acaso”691. Contudo, essa defesa ferrenha da liberdade, feita sempre pela

negativa, impunha como limite ao dadaísmo, por sua própria lógica, matar-se a si próprio,

antes que se tornasse, ele também, um movimento engessado692. Quem deu prosseguimento

aos ideais de liberdade dadaístas foi o movimento surrealista.

O surrealismo abandona a via inteiramente negativa e tenta fundamentar uma

“doutrina” da liberdade defendida pelos dadaístas, realizável positivamente: “o surrealismo

substitui a rejeição total, espontânea, primitiva de dadá, pela pesquisa experimental, científica,

baseada na filosofia e na psicologia”693. Apesar desse plano positivo, o surrealismo também

“se define como uma atitude do espírito ante a realidade e a vida, não como um conjunto de

regras formais, de medidas estéticas”694. Löwy entusiasticamente diz que “o surrealismo não

é, nunca foi e nunca será uma escola literária ou um grupo de artistas, mas propriamente um

movimento de revolta do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de re-

encantamento do mundo, isto é, de restabelecer, no coração da vida humana, os momentos

'encantados' apagados pela civilização burguesa”695. Mais conseqüente do que o dadaísmo,

não será no gesto, mas no conteúdo que se buscará a força da contestação696 e o caminho para

uma posição revolucionária em prol da liberdade – individual e social. Seu projeto é o de

conciliar Marx e Rimbaud: combinar a mudança da vida com a transformação do mundo697, o

686DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 148.687 Ibidem., p. 249.688 Ibidem, p. 135.689 Ibidem, p. 142.690 Ibidem, p. 140.691 Ibidem, p. 141.692 Ibidem, p. 148.693 Ibidem, p. 151.694 Ibidem, p. 170.695LÖWY, A estrela da manhã, p. 9.696DE MICHELI, op. cit., p. 170.697JAY, Downcast eyes, pp. 236-237.

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que levou muitos de seus membros a se aproximarem e se filiarem a partidos comunistas e

trotskistas, e a nutrirem acerca de si próprios uma auto-imagem de profetas. O profeta, alguém

agraciado por uma visão reveladora e dotado da palavra: apesar de terem o que de Micheli

chamou de um “sistema de conhecimento”698, os surrealistas rejeitavam os modelos

ocularcêntricos predominantes na cultura ocidental, ou seja, o da razão especulativa e o da

observação mimética, e defendiam apenas a iluminação visionária: a negação, portanto, do

que é observado em favor do que vai além do visível699. E assim como a visão por eles

defendida implica em um além, eles trabalharão a fundo a linguagem – literária ou figurativa

–, como forma de traduzir esse regime de visão. Seu objetivo já não é mais superar a cisão

entre arte e vida, como no dadá, e sim a cisão entre sonho e realidade. Por um lado, isso

resultou em um elogio da passividade no cinema, notado pelo crítico Jules Romains, em 1911,

como uma ligação com o sonho700; por outro, a fotografia surrealista, ao quebrar com suas

colagens o instantâneo, pondo nelas uma espécie de distanciamento temporal – renegando o

olho inocente de Breton em favor da posição de Bataille701, que “rejeitava o materialismo

baseado na imagem visual da matéria pelo de uma experiência corpórea da materialidade”702,

e afirmava, indo de encontro a Sartre e toda a tradição ocularcêntrica ocidental, que a

verdadeira comunicação entre duas subjetividades exigia o máximo de obscuridade703 –, deve

ser encarada, conforme Jay, “como uma das contribuições mais importantes para a crise do

ocularcentrismo no século XX”704, contribuindo, conforme Krauss, para “extrair uma nova

ordem visual dos escombros do perspectivismo cartesiano”705, que não é coisa outra que a

racionalização do perspectivismo renascentista, que penetrou em todas as esferas da vida.

Para de Micheli, a quebra dessa ordem já havia sido iniciada por Cézanne, de quem se deve

destacar “a profunda estruturação que fez da realidade que o envolvia, cujo destino era sua

tela; sua tendência a geometrizar a paisagem; e sua disposição em captar objetos a partir de

pontos de vista heterodoxos em relação às leis da perspectiva tradicional”706.

Essas “anomalias” tiveram seu auge com aquilo nomeado por Micheli como

“platonismo cubista”, que dava vida a “uma nova dimensão do espaço pictórico, a saber, o

sentido de uma dimensão que excluía a idéia da distância, do vazio e da medida, enfim do

698DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 151.699JAY, Downcast eyes, p. 236.700Ibidem, p. 255.701Ibidem, p. 250.702Ibidem, p. 228.703Ibidem, p. 230.704Ibidem, p. 253.705KRAUS, apud JAY, Downcast eyes, p. 250.706Coleção Folha Grandes mestres da pintura, Paul Cézanne, p. 13.

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espaço material, em favor de um espaço evocativo, verdadeiro, não ilusório no qual os objetos

podiam se abrir, estender-se, sobrepor-se, subvertendo as regras da imitação e permitindo ao

artista uma nova 'criação' do mundo segundo as leis de um critério intelectual particular”707.

Para Jay, com o cubismo, a decomposição da ordem espacial implicava no “colapso prático

daquela noção transcendental de uma perspectiva compartilhada, já solapada teoricamente por

Nietzsche. E com o qual foi possível o retorno de todos os demônios aparentemente

reprimidos pelo 'processo civilizatório', o qual estava enraizado em significativa medida na

dominação do olhar desapaixonado”708. Segundo de Micheli, Bombardeio de Guernica, de

Picasso, “conclui positivamente o período dos movimentos de vanguarda, resumindo seus

postulados formais e de conteúdo com uma eficácia que não tem igual em toda a arte

contemporânea. A partir desse momento, os problemas que se colocarão diante dos artistas

não mais poderão fazê-lo em termos de puro vanguardismo, mas deverão forçosamente tender

a uma superação deste”709.

É parte do projeto encampado por Debord e os situacionistas – concepção filtrada

também “pelas idéias de August von Cieszkowki, cujo tomo 1838 de Prolegomena zur

Historiosophie dedicava-se à idéia de que 'o feito e a atividade social vai superar (suplantar) a

filosofia'”710, segundo Home. Assumindo a filiação aos dadaístas e surrealistas – que estariam

“historicamente ligados e, ao mesmo tempo, em oposição” –, ele vê no projeto de cada uma

dessas vanguardas limitações para as quais a posição prático-crítica dos situacionistas levaria

à sua superação. Limitações seriam conseqüência de não possuírem consciência plena do seu

papel – afinal, são duas correntes que estão na transição da arte moderna para a

contemporânea, marcam “o fim da arte moderna” –, e por estarem em um momento de refluxo

do movimento operário revolucionário, cujo fracasso “os deixou encerrados no próprio campo

artístico do qual haviam proclamado e caducidade”, imobilizando-os. Assim, conforme

Debord, “o dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte

sem suprimi-la”. Baseados nestes dois aspectos que consideravam necessários, mas

insuficientes, os situacionistas buscavam a superação da arte, através da sua supressão e

realização711. Para Home, este projeto situacionista era o de uma falsa superação: um regresso

“à categoria final de arte romântica no sistema hegeliano, ou seja, à poesia”712: “tudo o que os

707DE MICHELI, As vanguardas artísticas, p. 182.708JAY, Downcast eyes, p. 215.709DE MICHELI, op. cit., p. 199.710HOME, Assalto à cultura, p. 182.711DEBORD, SdE, § 191.712HOME, op. cit., p. 182.

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situacionistas realmente conseguiram fazer foi reafirmar os fracassos do Dadá e do

Surrealismo em terminologia hegeliana”713.

A exemplo do que Starobinski comenta sobre Rousseau, para quem o êxito da arte

representativa “desemboca no silêncio da arte. Se tudo deve terminar na alegria vivida, a vida

faz desaparecer a arte”714, Debord segue por um caminho parecido na sua crítica radical a toda

representação e fragmentação – na arte, na política, no dia-a-dia –, e vê na sociedade libertada

o fim da arte tal qual a conhecemos hoje. Sua versão para a festa rousseauniana seriam os

conselhos operários revolucionários. Os conselhos são apresentados como local privilegiado

de organização e participação na atividade revolucionária: situações abertas no correr das

lutas de classes que permitem um primeiro vislumbre da superação de toda fragmentação e

separação capitalista-espetacular Neles, “a teoria prática controla a si mesma e vê sua

ação”715, e os sujeitos têm a oportunidade de se tornarem conscientes de si como sujeitos

históricos, sem mistificações, conscientes do seu fazer no mundo, do seu fazer-se no mundo716

– e conscientes da necessidade de dissolução de toda separação e da realização da democracia

desalienada717. Eles tentam dar conta do que Rosa Luxemburgo chamou de “contradição

dialética do movimento socialdemocrata”, em que “pela primeira vez na história, as próprias

massas populares, e contra todas as classes dominantes, impõem sua vontade, mas essa

vontade só pode ser satisfeita além dos limites da sociedade atual e acima dela. Por outro

lado, no entanto, somente na luta cotidiana contra a ordem existente, portanto somente no

âmbito dessa ordem, podem as massas desenvolver sua vontade”718. A existência efetiva dos

Conselhos, contudo, não teve mais do que alguns esboços, logo combatidos e vencidos “por

diferentes forças de defesa da sociedade de classes, entre as quais é preciso muitas vezes

considerar a própria falsa consciência”719. Conforme Debord, para que os conselhos possam

emergir novamente, uma organização revolucionária deve fazer oposição radical ao sistema e

a toda forma de separação: a única separação que ela deve reconhecer é “com o mundo da

separação”720, ou seja, uma separação que garanta a não contaminação pelas formas reificadas

de organização, e permita a unidade teórico-prática, imprescindível, conforme o polemista

francês, para a revolução ter vez. O papel das vanguardas – que não podem mais ser

713HOME, Assalto à cultura, p. 182.714STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, p. 100.715DEBORD, SdE §221.716Ibidem, §74.717Ibidem, §221.718LUXEMBURGO, Rosa. Staat und revolution, p. 79. apud LUKÁCS, Gyorgy. História e consciência de

classe, pp. 519-520.719DEBORD, op. cit., § 116.720Ibidem, § 119.

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distinguidas entre artísticas e políticas – deve ser o de manter a unidade entre teoria e prática,

o que só pode ser feito se em ação conjunta com o proletariado, nas lutas quotidianas, e assim

promover a agitação prática que provoque, estimule, desperte o desejo de revolução latente na

sociedade, que desencadeará a luta por ela e dará forma, conforme o desenrolar do processo

revolucionário, ao poder dos Conselhos721. Os Conselhos seriam, em suma, a organização

proletária revolucionária gestada nas formas desenvolvidas do capitalismo industrial – devido

aos seus avanços técnicos, tanto de produção quanto de dominação –, e que por estar dentre as

possibilidades abertas pelo capitalismo, prescinde das organizações partidárias centralizadas a

conduzi-la: sua gestão seria feita pelos próprios trabalhadores, em contato direto, em

comunicação desreificada – que Rosa Luxemburgo tratava como o verdadeiro princípio

revolucionário, presente na “espontaneidade elementar das massas”722. Movimento

espontâneo que não deve ser confundido com movimento automático, natural: longe de

qualquer teleologia ou determinismo, para Debord não se deve encarar a revolução e os

conselhos como frutos necessários do desenvolvimento capitalista, eles são o

desenvolvimento possível (e desejado) das lutas quotidianas contra a dominação espetacular,

desde dentro do sistema. O empenho na prática do proletariado é condição sine qua non dos

conselhos da revolução, pois, como afirma Debord, “nenhuma idéia pode levar além do

espetáculo existente, mas apenas além das idéias existentes sobre o espetáculo. Para destruir

de fato a sociedade do espetáculo, é preciso que homens ponham em ação uma força

prática”723. É preciso ser em mente que a superação do atual estado de coisas é importante – e

não é simples –, mas exige o engajamento na mudança, que deve ir além dos discursos ou das

práticas isoladas, exige o engajamento por completo do sujeito contra a dominação

espetacular – que é inócuo se meramente individual.

Destarte, não cabe nunca a uma vanguarda representar uma classe, ensinar o

proletariado, muito menos conduzir uma revolução724. Porque, ao aceitar um grupo que se

arrola o papel de representante, de professor, de condutor da revolução está se admitindo

implicitamente que esse grupo possui um conhecimento ou uma capacidade mais elevada que

a dos conduzidos, cujas diferenças, ainda que justificadas como provisórias e em nome da

revolução725, revelariam que tal processo apontado como revolucionário traria em seu âmago

um dos princípios que fundamentam e condicionam a sociedade espetacular: a especialização

721DEBORD, SdE, § 119722LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 509.723DEBORD, op. cit., § 203.724Ibidem, § 119.725Ibidem, § 120.

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e a conseqüente separação do poder. Como afirma o autor: “a mais velha especialização

social, a especialização do poder, encontra-se na raiz do espetáculo”726. E uma organização

revolucionária não pode reproduzir em si aquilo que critica na sociedade dominante: sua

crítica deve permanecer unitária teórico-prática727. Daí, para Debord, a teoria revolucionária

ser inimiga da ideologia revolucionária728 (não entendida aqui no sentido dado por Machado),

de tal forma que o horizonte de toda vanguarda revolucionária legítima – artística ou política

ou, no caso situacionista, artístico-política – ser necessariamente a sua supressão. Supressão

seja por conta da realização do seu projeto revolucionário, o que acarretaria a dissolução de

toda cisão e a tornaria dispensável729, seja pela impossibilidade desse projeto diante da

alteração da conjuntura, de modo que sua supressão seria a forma de evitar que essa

vanguarda e seu projeto se cristalizassem em um discurso dogmático e morto, não

revolucionário, apesar de guardar a verve explosiva – ideológico, em uma palavra –, bunker

para oportunistas em busca de poder no sistema espetacular730. Sistema que tem suas portas

abertas para todos os que desejarem cerrar fileiras em sua defesa – consciente ou

inconscientemente –, com a promessa de “crescimento pessoal”. Isso pode se dar tanto por

intermédio de partidos ditos revolucionários, como pela ampliação de direitos dentro do

Estado de direito731. O espetáculo é a organização tardo-capitalista dessa forma de inclusão e

cooptação das massas via distribuição de miçangas institucionais e produção abundante de

quinquilharias para o consumo das massas732. Pois o capitalismo teria se dado conta, no correr

das lutas de classes, que a classe proletária é a classe da negatividade em ação, da recusa

radical do sistema de exploração capitalista, e tentaria anulá-la a todo custo. Por estar na base

do sistema produtivo, numa sociedade em que, pela primeira vez, a própria base está apta

também a participar da história733, por ter a possibilidade de uma comunicação prática, e de

ocupar uma posição que não é de exclusão, mas que, tampouco, é de inclusão plena, o

operariado tem a oportunidade de ter uma compreensão do sistema que os capitalistas, por

exemplo, não têm. É importante ressaltar que, além de não ser possível se colocar fora do

sistema734, mas apenas à sua margem, é a própria classe que precisa se pôr nessa situação: o

sistema, por si só, abre essa possibilidade, porém não a estimula, pelo contrário: desde que se

726DEBORD, SdE, § 23 727Ibidem, § 121.728Ibidem, § 124.729Ibidem, § 120.730Ibidem, § 98.731Ibidem, §25.732Ibidem, §43.733Ibidem, §143.734Ibidem, §42. §47.

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deu conta do perigo que pode ser uma massa de trabalhadores urbanos reunidos, em

comunicação direta e conscientes do seu estar em sociedade – explorados pelo sistema e como

os verdadeiros produtores do mundo –, o movimento corre na direção inversa, na de incluir o

proletariado no sistema – como produtores735, como eleitores736, como consumidores737. Essa

inclusão, claro, é feita de maneira controlada738, de modo a deixá-los sempre alijados do poder

de fato.

Além da organização material da sociedade, o espetáculo é também sua

organização simbólica – uma ideologia, com forte substrato material. O que não é nenhuma

grande novidade, não apenas pela idéia das palavras terem uma materialidade, como porque

“a ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da

história”739. De acordo com Rouanet, “a essência da ideologia, enquanto produto da história, é

ignorar a história, ou deformá-la. Mas essa deformação é em si um momento da história, uma

ilusão socialmente condicionada, produzida por uma realidade social que só na ilusão pode

reproduzir-se”740. O grande diferencial na sociedade espetacular frente às formas menos

desenvolvidas de capitalismo, é o poder que a ideologia adquire, graças ao “êxito concreto da

produção econômica autonomizada”741, de se efetivar como materialidade742, possibilidade

que nenhuma organização social do trabalho ou estruturação de Estado até então tivera: “o

espetáculo é a ideologia por excelência”743, e pode expor e manifestar “em sua plenitude a

essência de todo o sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida

real”744. Faz isso, por um lado, ao “impor o pseudoconcreto de seu universo”745, no qual as

coisas inanimadas ganham vida e são, por si mesmas, automaticamente tornadas as donas da

vida social, ao mesmo tempo que, pela mediação técnica de signos e sinais, um ideal abstrato

é materializado e ganha forma746; por outro, quando é materialmente “'a expressão da

separação e do afastamento entre o homem e o homem'”747, em que a necessidade de expansão

infinita do espetáculo se opõe à vida, e toda a vida social passa a ser regida pelo princípio do

dinheiro, tal qual concebido por Hegel na Realphilosophie de Iena: “a vida do que está morto 735DEBORD, SdE, § 31.736Ibidem, §87.737Ibidem, §43.738Ibidem, §96.739Ibidem, § 212.740ROUANET, A razão cativa, p. 86.741DEBORD, op. cit., § 212.742Ibidem, § 5.743Ibidem, § 215.744Idem, ibidem.745Ibidem, § 216.746Idem, ibidem.747Ibidem, § 215.

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se movendo em si mesma'”748. É nesse momento que a ideologia espetacular se realiza:

quando o acesso à vida histórica está bloqueado à sociedade749. Logo, se “os fatos ideológicos

nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais,

fatores reais que exercem uma ação deformante”750; na sociedade moderna, a ideologia se

encontra legitimada751 pelos fatos, se imiscuindo e se confundindo com a realidade social,

graças ao sucesso em “recortar todo o real de acordo com seu modelo”752 – de tal forma que o

espetáculo “adquire uma espécie de chã exatidão positivista: já não é uma escolha histórica,

mas uma evidência”753, e a própria ciência espetacular está aí para provar a inexistência da

ideologia, transformada em base epistemológica, além de qualquer fenômeno ideológico754: “a

eterna presença de um sistema que jamais foi criado e jamais acabará”755, tal qual apregoa o

estruturalismo756. Como pedra angular desse sistema ideológico, Debord identifica a

abstração, cujos fundamentos remontam, como já visto, à filosofia grega, e poderiam ser

encontrados, em uma origem mais recente, conforme Foucault, no desenvolvimento dos

Estados nacionais e na sedimentação das trocas comerciais mundiais, a partir dos séculos

XVI, XVII, em que “a ativação da circulação monetária [...] fez a existência humana entrar no

mundo abstrato e puramente representativo da mercadoria e do valor de troca”757 – ainda que

para Foucault o que o século XVII manifesta é algo bem diverso dessa “entrada da existência

humana no mundo abstrato da mercadoria”758, e que não cabe no escopo deste trabalho. Marx

também marca o comércio e o mercado mundial do século XVII como o início da “moderna

história da vida do capital” – “a circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital” 759.

A convergência dessa tradição de pensamento e desse modo específico de organização da

produção e da economia, leva à abstração da sociedade como um todo – que Foucault, como

Debord, vê uma unidade essencial760. O Estado, como fiduciário último da moeda (pela

garantia das reservas em metais preciosos ou pela simples credibilidade), acaba por se tornar,

em última instância, o centro da vida social, ao organizar o mercado, estimular a ciência, se

apropriar de inovações técnicas. Um dos conceitos de que ele se apropria no estágio 748DEBORD, SdE, § 215.749Ibidem, § 214.750Ibidem, § 212.751Ibidem, § 213.752Ibidem, § 212.753Ibidem, § 213.754Idem, ibidem.755Ibidem, § 201.756Idem, ibidem.757FOUCAULT, Segurança, Território, População, p. 455.758Ibidem, p. 455.759MARX, O Capital, Livro I, tomo I, p. 125.760FOUCAULT, op. cit., p. 455.

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espetacular é o de massa: conceito que ganha importância não apenas por conta da supremacia

do quantitativo frente ao qualitativo, como também pelo fato do aumento da massa global de

lucro ser o álibi que escamoteia a queda tendencial da taxa de lucro761. O povo tratado como

massa passa a reger as análises das clivagens políticas, a construção das cidades, a dispersão

da população pelo território, a concentração em grupos de consumidores. Por outro lado, é a

força de massas que move o capitalismo762, e que abre a possibilidade – se reassumida pelas

massas qualitativamente – de empreender a revolução social que a burguesia deixou a meio

caminho andado.

Na organização da técnica, feita a partir das necessidades do sistema produtivo, de

valorização do capital, da sociedade moldada, adequada e dependente de tais necessidades, do

Estado fiador dessa ordem – convém destacar que já para Rousseau o Estado não atendia aos

desejos da população, mas era ele quem criava os súditos que lhe convinham, através da

educação –, em toda essa organização da e baseada na técnica, o capitalismo consolidou a

distinção entre teoria e prática, entre funções de comando e atividades práticas, estabelecendo

clivagens baseadas em classes sociais (que ele tenta ocultar), que repercutem na educação

dessas classes, e na cobrança de especialização dos indivíduos para as funções exigidas pela

maquinaria – direta ou indiretamente. Em conformidade com o movimento do capitalismo e

da sociedade sob sua égide, o desenvolvimento da ciência, mesmo para fins práticos – como o

taylorismo –, teve como principal característica a ampliação da abstração da sociedade atual:

do trabalho, da produção763, do tempo764, do território765. O fundamento da sua dominação é a

abstração, segundo Debord, em 1967 – daí sua oposição radical. Contudo, é de se questionar

qual o alcance dessa recusa. Herbert Marcuse, por seu turno, apresenta uma posição mais

nuançada, e afirma que a possibilidade de se identificar e definir alternativas ao sistema social

atual “exige uma série de abstrações iniciais [...]. A teoria crítica deve abstrair-se da

organização e utilização práticas dos recursos da sociedade, bem como dos resultados dessa

organização e utilização. Tal abstração, que se nega a aceitar o universo de fatos dado como o

contexto final da validação, tal análise 'transcendente' aos fatos à luz de suas possibilidades,

captadas e negadas, pertence à própria estrutura da teoria social”766. Ainda conforme o alemão,

o problema da abstração seria a crítica recuar para um nível elevado, por “falta de agentes e

761MARX, O Capital, Livro III. p 166.762Ibidem, Livro I, tomo I, p. 260.763DEBORD, SdE, § 29.764Ibidem, § 147.765Ibidem, § 173.766MARCUSE. A ideologia na sociedade industrial, p. 15.

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veículos de transformação social”767. O ponto, portanto, talvez não seja o de rejeitar a

abstração, mas de distinguir os diversos modos e as diversas dosagens possíveis, para que não

se torne um saber artificial, um poder hostil ao homem, em nome da racionalidade do sistema

– apesar de Debord pôr sua crítica à abstração em termos bastante contundentes, ele não

afirma explicitamente que toda abstração seja maléfica, e sim a abstração do todo, a abstração

generalizada da sociedade da época768.

Alcançar o equilíbrio no quanto se deve abstrair a realidade sem se perder numa

teoria contemplativa não é algo simples. A recusa debordiana à academia se daria por esse

saber abstrato, desvinculado da prática, desvitalizado, lá produzido, via de regra, pelas

próprias condições que é produzido. E o próprio marxismo seria um exemplo da adesão

equivocada a tal forma de pensar e fazer ciência. Conforme Debord, Marx cometeu um erro

ao se propor à defesa científica de sua teoria, tentando provar aos moldes da ciência burguesa

a validade da sua tese da luta de classes e da necessidade da revolução proletária769. Com essa

atitude, primeiramente, o filósofo da práxis abriu caminho para a organização ideológica e

pseudo-revolucionária do operariado, cuja Segunda Internacional seria sua conseqüência mais

imediata. Não é falha isolada de Marx: é de toda a luta revolucionária de sua época, cujo

operariado não decretou a revolução permanente na Alemanha, em 1848, e a Comuna acabou

por sucumbir isolada770. Contrapondo-se aos teóricos da social-democracia como Bernstein771,

Debord afirma a profunda e inseparável ligação entre Hegel e Marx e o movimento proletário

revolucionário. O maior mérito de Hegel teria sido o abandono da interpretação da realidade

como um dado em favor do pensamento da história. Contudo, teria permanecido preso ao

Idealismo, pondo o pensamento numa posição externa, contemplativa, alheio à prática; Hegel

apenas teria interpretado a transformação, reconciliando o resultado e superando a separação

apenas em pensamento. Ou seja, ao considerar a sociedade de então a realização do Espírito,

Hegel teria, por fim, negado a própria história no presente772. Na época em que se

desenvolviam as lutas de classe, a dialética hegeliana, ao não se deter “na busca do sentido do

sendo”773, mas do movimento que leva à superação do que há, “que se eleva ao conhecimento

da dissolução de tudo o que é”774, deu uma importante contribuição ao movimento proletário

767MARCUSE. A ideologia na sociedade industrial, p. 16.768DEBORD, SdE, § 18.769Ibidem, § 85.770Idem, ibidem.771Ibidem, § 79.772Ibidem, § 76.773Ibidem, § 75.774Idem, ibidem.

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revolucionário. Porém, ao interpretar apenas a transformação do mundo, deixando de lado a

interpretação do mundo, Hegel nada mais fez que “a realização filosófica da filosofia”775. Por

conta da sua filiação ao Idealismo, o pensamento teria sido posto numa posição exterior,

contemplativa, e Hegel teria tentado “compreender um mundo que se faz a si mesmo”776,

reconciliando-se com o resultado das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII777, e não

chegando à sua superação de fato. Tratar-se-ia de um pensamento da história em que a

consciência chega sempre atrasada, apenas para enunciar a justificativa post festum778: a

realização de “um projeto prévio do Espírito” “que coincide com o presente”779. “Assim, a

filosofia que termina no pensamento da história só pode glorificar seu mundo negando-o,

pois, para tomar a palavra, é-lhe necessário supor terminada essa história total à qual ela

reduziu tudo e encerrada a sessão do único tribunal no qual pode ser proferida a sentença da

verdade”780. O proletariado, por seu turno, não apenas reaviva o pensamento da história de

Hegel, ao afirmar a transformação contra uma sociedade estática em um mundo dado, como,

por pô-lo em prática em atos – seja no seu quotidiano, seja nas lutas revolucionárias –,

desmente a conclusão hegeliana na medida em que confirma a validade do método

dialético781: “o pensamento da história só pode ser salvo ao se tornar pensamento prático; e a

prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser nada menos que a consciência

histórica agindo sobre a totalidade de seu mundo”782, o que implica em afirmar a separação

real e fundamental existente na sociedade, assim como em negar toda tentativa de superação

falsa ou parcial dessa separação783 – como, na visão de Debord, a tentada por Hegel –, por se

ver capaz de uma transformação total, revolucionária dessa realidade. Marx segue no mesmo

compasso de seus contemporâneos. Partindo da prática, ele aceita o pensamento e o método

hegeliano, porém nega sua conclusão. Ao contrário do que defende Bernstein, para Debord, a

aceitação do método dialético não é um ponto fraco – pelo contrário –, e marca a posição

revolucionária da teoria marxiana desde o seu início: “o caráter inseparável da teoria de Marx

e do método hegeliano é inseparável do caráter revolucionário dessa teoria, isto é, de sua

doutrina”784. Equivoca-se, contudo, quem vê a incorporação do pensamento da história e do

775DEBORD, SdE, § 76. Grifo do autor.776Idem, ibidem.777Idem, ibidem.778Idem, ibidem.779Idem, ibidem.780Idem, ibidem.781Ibidem, § 77.782Ibidem, § 78.783Ibidem, § 122.784Ibidem, § 79.

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método dialético hegeliano por Marx como mera transposição materialista, substituindo o

percurso do Espírito pelo desenvolvimento das forças produtivas785. Na leitura debordiana,

enquanto em Hegel a história possuiria um telos – a realização do Espírito, momento em que

toda a história se vê acabada e redimida num Espírito unitário “cuja objetivação é idêntica à

sua alienação e cujos ferimentos históricos não deixam cicatrizes”786 –, Marx, levando ao

extremo o fim de todo absoluto em favor da historização de tudo inaugurado pela revolução

burguesa, rejeita qualquer finalidade para a história, qualquer fim da história. O máximo da

proposta de Marx seria a finalidade para uma ação, um fim para uma conjuntura787, o fim da

pré-história788 e o início da história consciente – porém, de forma alguma o fim da história, o

congelamento do tempo em um novo éden, em uma sociedade ideal definitiva: “o projeto de

Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que surge no desenvolvimento cego das

forças produtivas meramente econômicas deve transformar-se em apropriação histórica

qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro ato desse fim da pré-história”789. “Foi

essa mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constituiu o 'marxismo'”790, auto-

referido como a “ciência da revolução”, alcunha utilizada como álibi, como forma de

justificar o próprio engodo à classe proletária, para o permanente e injustificado adiamento

das lutas revolucionárias, do embate contra a classe capitalista e o sistema de produção

explorador da sua mão-de-obra.

Segundo, para atender aos cânones da ciência burguesa, Debord afirma que Marx

teria sido obrigado a uma grande simplificação da forma como lidava com os elementos

históricos em favor de um modelo apriorístico elaborado para dar crédito a uma observação a

posteriori – algo que o próprio Marx rejeita como simples impressão, insistindo que sua

investigação se apoderou inicialmente da matéria, as diferentes formas de desenvolvimento

das forças produtivas, para daí perquirir a conexão íntima entre elas e, só então, descreveu o

movimento real791. Para justificar a derrubada do capitalismo pelo poder proletário, além de

remeter à própria dinâmica interna do sistema capitalista, o qual necessita de uma exploração

cada vez maior dos recursos naturais e humanos para prosseguir com seu crescimento cego,

seu acúmulo puramente quantitativo, Marx teria recorrido, para dar legalidade científica a

esse poder advindo da realidade de exploração típica tão-somente desse sistema – uma

785DEBORD, SdE, § 80.786Idem, ibidem.787Ibidem, § 214.788Ibidem, § 80.789Idem, ibidem.790Ibidem, § 84.791Ibidem, Posfácio à segunda edição, p. 20

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economia de base urbana, com uso de mão-de-obra intensiva acumulada e concentrada em

cidades –, a experiências passadas de sociedade de classes, com exploração de uma classe por

outra e superação do sistema produtivo que se mantinha graças a esta exploração. Dessas

experiências passadas ele tirou quatro grandes modelos de modos de produção: o asiático, o

antigo, o feudal e o burguês moderno792, cada um com suas peculiaridades no

desenvolvimento das forças produtivas, todos com os mesmos princípios (formais) que os

moviam até o ponto de serem revolucionados: o desenvolvimento das forças produtivas e a

luta de classes. “Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais

da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada

mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais

aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas

essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução

social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma

com maior ou menor rapidez”793. Para o desenvolvimento dos modos de produção, seria a luta

de classes que serve de dinâmica interna às sociedades – o motor da história – desde o modo

de produção asiático, e que as leva a culminar sempre “'numa transformação revolucionária de

toda a sociedade ou na destruição comum das classes em luta'”794. Fiando-se nesta

interpretação da teoria marxiana, haveria, logo, um modelo a priori, um esquema

praticamente natural à sociabilidade humana – uma estrutura, para usarmos um termo

anacrônico –, com o qual se justificaria cientificamente que a luta de classes do sistema

capitalista redundaria inevitavelmente no fim desse sistema. Esta demonstração contradiz

abertamente a apresentação debordiana da leitura que Marx faz de Hegel, de que a história

não possui um telos: ainda que em Marx não haja um fim absoluto manifesto, a forma como a

história caminha por si própria permite que seja acalentada, sim, uma teleologia; ademais, ao

menos antes da sociedade comunista, é prescindível ao proletariado o processo de tomada de

consciência do seu momento e da sua prática: basta estar de corpo presente na luta, de forma a

garantir o colapso do sistema; a consciência cairá no momento certo. O que se percebe,

portanto, seguindo a leitura de Debord, é que a ideologia científica obrigou Marx a sustentar

uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção, obscurecendo dessa forma

seu pensamento histórico, sua observação da história. Para que seu modelo funcionasse

conforme os cânones científicos, Marx desprezou com seu esquema linear o fato de que “a

792MARX, Para a crítica da economia política, p. 52.793Idem, ibidem.794DEBORD, SdE, § 87.

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burguesia é a única classe revolucionária que sempre venceu”795: foi ela quem derrubou o

sistema feudal – não os servos, que por um milênio foram a classe explorada. Assim como em

todas as demais sociedades, por mais que tenham sido presenciados conflitos de classes em

seu interior, não foram esses conflitos que fizeram com que entrassem em colapso, ou mesmo

que as puseram em movimento, pois, na “realidade observável da história, da mesma forma

que 'o modo de produção asiático', como Marx o constatava em outro lugar, conservou sua

imobilidade a despeito de todos os confrontos de classes, assim também as revoltas de servos

nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos na Antiguidade derrotaram os homens

livres”796.

Na prática, o resultado dessa falha de Marx foi que as duas experiências mais

radicais concretizadas pelo movimento operário sob os auspícios da ciência da revolução e do

partido constituído junto com ela, no século XX, o chamado comunismo real da União

Soviética e da China, nunca foram questionadoras da essência do sistema capitalista, do

sistema espetacular, ou seja, da forma-mercadoria. A falsa oposição capitalismo-comunismo –

que durou setenta e dois anos e que na época do lançamento do livro tinha meio século – não

teria sido mais que uma reedição, uma atualização da divisão mundial do trabalho, construída

como “divisão mundial das tarefas espetaculares”797. Bem de acordo com o ethos espetacular,

apesar de falsas, as lutas dessa pseudo-oposição eram ao mesmo tempo reais, “na medida em

que expressam o desenvolvimento contraditório desigual e conflitante do sistema”798, tanto

entre classes e subclasses internas dos países quanto entre países dentro de cada um dos

blocos, como entre os dois blocos antagônicos. Esses conflitos eram sempre internos, bem

delimitados, e não traziam riscos ao sistema, pelo contrário, ajudavam a mantê-lo, na medida

em que garantiam permanentemente opções de escolha: o confronto de prioridades, no

capitalismo avançado; a decisão quanto às particularidades da produção e do poder, na gestão

totalitária da economia799; a escolha de programa para classe dirigente ou para classe

revolucionária, nos países atrasados800. Essas diversas oposições marcadas por interesses

contraditórios nas disputas pelo poder estatal selaram a permanente aparência de disputa entre

antagônicos espetaculares, que culminaram, por fim, na disputa entre duas concepções

distintas de sociedades – a partir de uma base comum, a produção de mercadorias, o trabalho

795DEBORD, SdE, § 87. Grifo do autor.796Idem, ibidem.797Ibidem, § 57.798Ibidem, § 56.799Idem, ibidem.800Ibidem, § 57.

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alienado, a produção econômica abstrata, o movimento de auto-valorização do valor. Porém, o

que haveria de particularidade em cada setor a ser defendido frente ao seu oposto, na verdade

residia no sistema universal que a todos continha, isto é, “no movimento único que

transformou o planeta em seu campo, o capitalismo”801: “um único estilo de sociedade torna-

se possível em toda parte: uma sociedade baseada em burocracias eficientes e na produção de

grandes quantidades de bens”802 – bens esses que passam a ser identificados com

mercadorias803. Diante desse movimento que arrasta o mundo todo, a sociedade portadora do

espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas não somente pela hegemonia econômica,

“domina-as como sociedade do espetáculo”804 - mesmo onde a base material está ausente-

ligadas a uma ou outra forma de organização espetacular do Estado e da sociedade. Em

resumo, no fundo, “a contradição oficial se apresenta como a luta de poderes que se

constituíram para a gestão do mesmo sistema socioeconômico e que, na verdade, são partes da

unidade real; isso, tanto em escala mundial quanto dentro de cada nação”805.

A oposição tolerada de sindicatos e partidos social-democratas no âmbito interno

das democracias liberais e o equilíbrio nas relações internacionais pautado nos princípios

liberais atestam que as aparentes oposições se fundavam sobre uma base consentida: “o

espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido”806. Essa base

unitária, contudo, não é um monobloco naturalmente posto, mas antes um fruto de um

processo histórico que teve como origem o esfacelamento de uma pretensa unidade, e é sobre

esse esfacelamento que sociedade e espetáculo construíram sua unidade807. A idéia de uma

possível unidade homem-mundo (humano) em Debord remete a Lukács e, por conseqüência,

a Hegel. De acordo com Safatle, “foi particularmente forte para a geração de Hegel (e mesmo

para o Hegel de juventude; ver, por exemplo, seu Sistema da eticidade), principalmente após a

crítica rousseauista à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir

uma alternativa à modernidade através do recurso a formas de vida e modos de socialização

próprios a uma Grécia antiga idealizada e paradigmática”808. E foi pressupondo uma

caracterização da era homérica também idealizada que Lukács escreveu seu livro Teoria do

Romance, que tem suas diferenças para História e consciência de classe – afinal, trata-se de

801DEBORD, SdE, § 56.802RIESMAN, A multidão solitária, p. 37803DEBORD, op. cit., § 44.804Ibidem, § 57. Grifo do autor.805Ibidem, § 55.806Ibidem, § 54.807Idem, ibidem.808SAFATLE, Curso Introdução à Fenomenologia do Espírito, aula 25.

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uma obra de sua fase pré-marxista –, mas não pode ser considerado como um ponto

discrepante do seu pensamento da época. A exemplo do uso de Rousseau do conceito de

estado de natureza, Lukács utiliza a era homérica como “um princípio regulador abstrato”

para avaliar os períodos posteriores, como posto por Mészáros809, sem que isso implique num

desejo de volta a esse mundo tal qual. Conforme Jay, ela dá uma boa perspectiva da totalidade

normativa defendida por Lukács neste período. “Para o Lukács da Teoria do romance, a

totalidade normativa carece de qualquer diferenciação ontológica; o mundo homérico era 'um

mundo homogêneo e mesmo a separação entre homem e mundo, entre 'eu' e 'você' não

perturbava essa homogeneidade.' Neste mundo homogêneo, não há a distinção kantiana entre

moralidade e inclinação, dever e desejo, forma e vida”810. Ademais, o mundo homérico não

possui mudança histórica, não conhece as formas da passagem do tempo, de modo que as

experiências passadas e presentes não possuem distinção qualitativa: “tempo é uma forma de

corrupção e a totalidade normativa exige sua suspensão”811. Além disso, não há uma real

individualidade: “uma estrutura individual é simplesmente o produto de um equilíbrio entre a

parte e o todo, mutuamente determinantes um do outro; não é nunca o produto de uma

polêmica auto-contemplação por uma personalidade perdida e solitária”812. Por fim, a forma

épica “revela um mundo em que homem e natureza estão em harmonia. Não há nenhuma

separação significativa entre o social ou histórico e o natural. Desta maneira, a totalidade

épica deve ser compreendida organicamente”813, como uma totalidade concreta, em que está

ausente qualquer segunda natureza – a qual seria uma marca da destotalização. Em História e

consciência de classe, a totalidade normativa da era homérica é substituída pela totalidade

histórica814 que o sujeito consciente da história pode ter, e a normatividade que o filósofo

húngaro vislumbra não é a da indistinção entre homem e natureza, mas entre homem e mundo

humano: a possibilidade de uma vida histórica desreificada815, em que estariam superadas as

contradições da sociedade capitalista-espetacular. Porém, quando tais contradições internas

ameaçam irromper, o espetáculo tem a capacidade – por deter a linguagem hegemônica – de

inverter seu sentido, mostrando a divisão como unitária e a unidade como dividida816,

falsificando a realidade social e internalizando a contradição em uma oposição pasteurizada,

809MÉSZÁROS, Lukács' concept of dialectic, p. 61. apud JAY, Marxism and totality, p. 93.810JAY, Marxism and totality, p. 93.811Ibidem, p. 94.812LUKÁCS, The theory of the novel, pp. 66-67. apud JAY, Marxism and totality, p. 94.813JAY, op. cit., p. 95.814Ibidem, p. 105.815Ibidem, p. 170.816DEBORD, SdE, § 54.

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incapaz de ações fora das previstas e aceitas pelo sistema, sem “externalidades” (para usar um

termo do jargão econômico). A divisão de classes – a verdadeira divisão, a contradição

fundante da sociedade capitalista – é ocultada sob uma aparente unidade, em que capital e

trabalho unem forças para o bem do povo e felicidade geral da nação – ambos “sociedade de

trabalho”, como definiu Kurz –, o que garante que toda crítica daí resultante parta de uma

base mínima de concordância, que toda disputa se faça apelando para a mesma promessa817.

Desse modo, aquilo que é apresentado como dividido, as diversas oposições espetaculares,

que vão do nível macro – os dois sistemas antagônicos que disputam o globo – ao nível micro

– mercadorias de boutique que brigam entre si pelo pescoço da madame –, escondem a

verdadeira unidade espetacular, a unidade da miséria818: “por trás de uma infinidade de

pseudodivergências midiáticas, fica dissimulado o que é exatamente o oposto: o resultado de

uma convergência espetacular buscada com muita tenacidade”819. E “conforme as

necessidades do estágio particular da miséria que o espetáculo nega e mantém, ele [existia]

sob a forma concentrada ou sob a forma difusa”820, isso em 1967. De qualquer forma, tais

oposições se apresentam sempre sob a máscara da “escolha total”821, promessa falaciosa, tanto

pelo termo escolha, ao consumidor (e ao eleitor) sempre uma pseudo-escolha entre opções

pré-determinadas indiferentes aos verdadeiros desejos dos homens822 – porque sob a forma

mercadoria a verdadeira escolha já foi na produção, e as diferenças aparentes servem apenas

para açular a banalidade quantitativa que resta ao consumidor823 –; quanto pelo termo total,

porque sendo fruto de uma produção segmentada, o que o sistema tem a oferecer são

fragmentos dessa produção824.

Quanto às duas formas inaugurais de organização sócio-estatal do espetáculo, elas

não passam “de uma imagem de uma unificação feliz cercada de desolação e pavor”, em que

o espetáculo ocupa o centro tranqüilo da desgraça825, pois ele está em sua casa826. O

espetacular concentrado é o estágio em que o desenvolvimento do espetáculo ainda é tosco – e

em que, graças a isso, permite-se a observação de maneira mais crua de alguns fenômenos que

no espetacular difuso acabam ficando velados –, fruto do desenvolvimento da sociedade

817DEBORD, SdE, § 63.818Ibidem, § 63. Grifo do autor.819Ibidem, Comentários, III.820Ibidem, § 63.821Idem, ibidem.822Ibidem, § 57.823Ibidem, § 62.824Ibidem, § 60.825Ibidem, § 63.826Ibidem, § 217.

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mercantil, que chega ao “ponto de recriar para seus próprios fins a dominação de classe que

lhe é necessária: o que equivale dizer que a burguesia criou um poder autônomo que,

enquanto subsistir essa autonomia, pode até prescindir da burguesia”827; prova do atraso desse

desenvolvimento – que repercute também no subdesenvolvimento da classe dominante828. É a

forma típica do capitalismo burocrático, porém, não raro “importado como técnica de poder

estatal em economias mistas mais atrasadas ou em momentos de crise do capitalismo

avançado”829, como nos movimentos fascistas pós-Primeira Guerra, “e tem como única

perspectiva recuperar o atraso desse desenvolvimento em algumas regiões do mundo”830.

Apesar do primitivismo do espetáculo local, seu papel foi “essencial ao desenvolvimento do

espetáculo mundial”831. Neste estágio, a propriedade, pulverizada em vários agentes

econômicos, se concentra em uma propriedade burocrática apenas, as disputas econômicas

migram do seu local natural, o mercado, para a esfera da burocracia, e os agentes econômicos,

os proprietários do capital, são substituídos por burocratas individuais, que só têm “relação

com a posse da economia global por intermédio da comunidade burocrática”832. O “mercado

planejado” seria a aparência da ausência de concorrência, substituída pela “pura economia

distribuidora estatista (economia não monetária, comunismo imediato), sem circulação

alguma”. Porém, “a abolição efetiva da circulação, pela lógica, deveria ser idêntica à abolição

do dinheiro e da instituição do mercado, como tal. Mas então, conseqüência igualmente

lógica, acabaria também a necessidade, e até a possibilidade, do Estado, pois este, no processo

da modernidade, nada mais é que o elemento contraditório imanente do sistema produtor de

mercadorias”833. Assim, o que ocorre é que “a propriedade privada capitalista enfraquecida é

substituída por um subproduto simplificado, menos diversificado, concentrado em

propriedade coletiva da classe burocrática”834. Tal qual a propriedade, a produção de

mercadorias também é concentrada, e concentrada do início ao fim: “a mercadoria que a

burocracia controla é o trabalho social total”835. No final da cadeia, não cabe às massas

nenhuma margem significativa de escolha, sob o risco de levar o sistema à sua destruição

completa, por mais insignificante que tal escolha seja – música ou alimentação836: em troca, o

827DEBORD, SdE, § 104.828Idem, ibidem.829Ibidem, § 64.830Ibidem, § 104.831Ibidem, § 105.832Ibidem, § 64.833KURZ, O colapso da modernização, p. 73-74.834DEBORD, op. cit., § 104.835Ibidem, § 64.836Idem, ibidem.

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que a ditadura da economia burocrática “revende à sociedade é a sobrevivência como um

todo”837. A industrialização acelerada que tem vez neste tipo de espetáculo – na época

stalinista, por exemplo – se dá porque “nos estágios menos desenvolvidos da produção

capitalista, empreendimentos que requerem longo período de trabalho, logo, grande gasto de

capital por terem tempo mais longo, só podem ser executados em larga escala, ou não são

realizados ao todo em base capitalista, construídos à custa da comunidade ou do Estado”838. É

esse o caso no século XX: “nas condições de um nível de desenvolvimento já relativamente

alto do sistema produtor de mercadorias no Ocidente e de uma luta de concorrência já muito

avançada no mercado mundial, todo novo impulso de modernização nas regiões ainda pouco

desenvolvidas tinha que assumir o caráter de um desenvolvimento recuperador,

particularmente forçado, em que não apenas se repetia o estatismo dos inícios da época

moderna, mas que também se apresentava numa forma muito mais pura, conseqüente e

rigorosa que a dos originais ocidentais esquecidos há muito tempo”839. Pela sua lógica

imanente, o “mercado planejado” “leva ao extremo todas as irracionalidades do sistema

produtor de mercadorias, em vez de pelo menos começar a eliminá-las”840 – a diferença seria

apenas gradual. Por conta disso, Debord afirma que o espetáculo concentrado é a

“continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil que

mantém o trabalho-mercadoria”841, ou seja, a continuação da produção baseada na

expropriação do mais trabalho dos produtores diretos842 – muda a forma de gerência dos frutos

desse espólio. O caráter mais rudimentar dessa forma de reprodução do capital, todavia, faz

com que a alteração de qualquer coisa que a perturbe signifique seu fim, daí que “essa

ditadura tenha que ser acompanhada de violência permanente”843, mesmo depois de passado o

estágio de acumulação primitiva.

Contudo, não basta ter o controle da produção: para o domínio da sociedade é

preciso também ter legitimidade, a qual não se alcança apenas pelo terror – é preciso uma

legitimidade que seja capaz de justificar o próprio terror. A coesão necessária para o

estabelecimento da sociedade é garantida pela ideologia, ao se concentrar espetacularmente e

totalitariamente na figura de um só homem – a vedete do poder844, na verdade uma

837DEBORD, SdE, § 64.838MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 174.839KURZ, O colapso da modernização, p. 39.840Ibidem, p. 102.841DEBORD, op. cit., § 104.842MARX, op. cit., Livro I, Tomo II, p. 292.843DEBORD, op. cit., § 64.844Ibidem, § 61.

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pseudovedete que personaliza o poder governamental845 –, modelo para todos sob seu domínio

– a imagem imposta do bem846 –, e com quem todos devem se identificar ou desaparecer,

“porque não há outra coisa para ser”: “cada chinês tem de aprender Mao e, assim, tornar-se

Mao”847, de forma que “onde o espetacular concentrado domina, a polícia também domina”, e

domina de maneira intensiva e extensiva, porém não domina sozinha.

Por seu turno, “o espetacular difuso acompanha a abundância de mercadorias, o

desenvolvimento não perturbado do capitalismo moderno”848. Na época do lançamento d'A

sociedade do espetáculo, ele era o estado mais bem acabado do espetáculo, o espetáculo se

apresentando em seu Estado mais bem acabado, tinha seu epicentro nos Estados Unidos, e era

sintetizado pelos mercados e pelas democracias liberais do Ocidente, onde “afirmações

inconciliáveis se chocam no palco do espetáculo da economia abundante; diferentes

mercadorias célebres sustentam simultaneamente seus projetos contraditórios de planificação

da sociedade”849. Ao mesmo tempo concorrente e complementar ao espetacular concentrado,

necessitando da oposição deste para seu desenvolvimento850, em muitos momentos o

espetacular difuso parece se confundir com o próprio espetáculo851, pelo grau de avanço da

sua indústria e pelo refino na organização do quotidiano daqueles que vivem sob seus

cuidados. Ele soube estruturar “a organização espetacular da defesa da ordem existente”852 por

toda a sociedade. Não suprimiu a polícia, por exemplo, porém soube distribuir parte das suas

tarefas entre todos, tirando-as apenas das mãos do Estado e pondo aos pretensos libertadores a

incumbência de policiar legitimamente o proletariado, para que garantissem a ordem e o bom

andamento dos negócios853– concepção de Estado que lembra a gramsciana, em que o poder

repressivo segue nas mãos do Estado, na sociedade política, mas há um trabalho “de base” das

instituições ditas privadas (igrejas, escolas, sindicatos, clubes, meios de comunicação de

massa) que cimentam a formação social ao criar o consenso entre todas as classes da visão da

classe hegemônica854. A distinção entre as duas formas de organização espetacular – que no

fundo são o mesmo espetáculo – não está no fato de que no espetacular difuso o espetáculo

estaria espalhado e atingiria toda a sociedade; isso também acontece no espetacular

845DEBORD, SdE, § 60.846Ibidem, § 64.847Idem, ibidem.848Ibidem, § 65.849Idem, ibidem.850Ibidem, § 104.851Ibidem, § 66.852Ibidem, § 101.853Ibidem, § 96.854ROUANET, A razão cativa, p. 107.

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concentrado. A marca distintiva estaria no fato de a organização do espetáculo se espalhar por

toda a sociedade, e não mais se concentrar diretamente nas mãos do Estado – que passa a

funcionar antes como fiador da ordem. O que encontramos no espetacular difuso é a

sociedade, o espetáculo e a sua organização se imiscuindo de tal forma que passa a ser difícil

distingui-los: eles começam a se misturar e a se unir de maneira orgânica, como se fossem

uma coisa só, como se tudo fosse espetáculo855 – pois o espetáculo, realizado como ideologia

total, se dissolve no conjunto da sociedade, formando uma mistura homogênea, indistinta856.

Essa união apenas aparentemente natural – mas a partir de certo momento efetivamente

necessária – é engendrada pela cisão existente na sociedade, cuja história não começa com o

capitalismo, mas se desenvolve ao paroxismo com ele, ao ponto de se transformar em

espetáculo857.

Neste estágio, ao estar dissolvido no conjunto da sociedade, a prática, sempre

mediada, fica desagregada da ação consciente, produtores não se reconhecem naquilo que

produzem, de modo que o que subsiste é apenas o trabalho reificado e a contemplação. Tendo

este cenário como fundo, o acesso à vida histórica fica bloqueado858 pela impossibilidade da

práxis, e a ideologia pode desaparecer enquanto tal: deixa de ser falsa consciência para ser

simplesmente a consciência do possível859 – utopia do real. Tal como Rouanet comenta sobre

a falsa consciência em Marx, o discurso fetichista “é um discurso que adere à superfície do

real, e o papel da consciência é simplesmente o de produzir um discurso segundo, que duplica

o primeiro”860. Sob tal consciência, a separação espetacular – com a conseqüente reunião –

passa a fazer parte da unidade inquestionável861 de um mundo “onde nenhuma 'questão

central' pode ser colocada 'aberta e honestamente'”862. E é o próprio espetáculo quem se

apresenta como instrumento de unificação da sociedade – unificação de uma separação da

qual ele é fruto, a qual ele alimenta, da qual ele se alimenta. Porém, mais do que fator de

união, o espetáculo se apresenta também como parte da sociedade – a parte que concentra

todo o olhar e toda a consciência – e, simultaneamente, se apresenta como a própria

sociedade. Em resumo, o espetáculo é a parte, o todo e o tertium que os une863, o princípio e o

fim de toda ação social – é a nova santíssima trindade que, tal qual a original, se apresenta

855DEBORD, SdE, § 2.856Ibidem, § 214.857Ibidem, § 32858Ibidem, § 214.859Ibidem, § 217.860ROUANET, A razão cativa, p. 104.861DEBORD, op. cit., § 7.862Ibidem, § 101.863Ibidem, § 3.

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como nunca criada. Esse setor separado, ao realizar a unificação para chegar a si mesmo,

agora como um todo, reúne o separado, mas apenas enquanto separado864, mantendo assim,

por trás das aparências, a insatisfação que faz o sistema girar: “a unificação que realiza é tão-

somente a linguagem oficial da separação generalizada”865. Algo próximo do que afirmava

Rousseau sobre o teatro: os espectadores, em uma comunhão mediada, estão, na verdade,

presos em suas solidões866. Contudo, o espetáculo não apenas reúne, ele também reconcilia: a

linguagem oficial da separação é, no fundo, “a destruição extrema da linguagem”867 que acaba

sendo encarada como um valor positivo oficial, pois serve para “demonstrar uma

reconciliação com o estado predominante das coisas”868. Essa linguagem, não custa lembrar,

não é apenas a linguagem dos mass media, é também a linguagem do Estado, da burocracia,

da ciência, da filosofia, das artes, e mais. A partir desse esquema de mediação da união entre a

parte e o todo, o espetáculo garante também a si a função de mediar a relação entre as

pessoas, o que faz com que se torne algo bem mais complexo do que uma mera apresentação

de um conjunto de imagens. Mesmo sendo identificado majoritariamente com a parte em

separado, ele não pode mais ser compreendido como o “produto das técnicas de difusão

maciça das imagens”869, a começar porque o espetáculo, para além dos seus meios, é “uma

relação social entre pessoas, mediada por imagens”870. Ao influenciar sobremaneira as bases

sobre as quais as pessoas assentam suas construções e suas trocas simbólicas, ou seja,

enquanto instrumento de unificação social, ele é capaz, graças à forma como é utilizado

aparato técnico, de impor sua visão de mundo de maneira efetiva. Utilizando-se do sentido

mais abstrato e mais sujeito à mistificação – a visão –, e da sua capacidade de fazer ver871,

com os avanços das técnicas de produção e difusão de imagens, o espetáculo pôde ter sua

Weltanschauung traduzida “materialmente”: “uma visão de mundo que se objetivou”872. Como

predomínio da visão e da contemplação, o espetáculo pode ser inserido como um momento da

tradição filosófica ocidental. Rousseau, na interpretação de Cassirer, já fazia crítica ao modus

operandi da filosofia de seu tempo: ela teria abandonado “a linguagem do ensino da

sabedoria” para falar a linguagem da época, se adequando – e reforçando, por conseguinte –

864DEBORD, SdE, § 29.865Ibidem, § 3.866STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, pp. 133-134.867DEBORD, op. cit., § 192.868Idem, ibidem.869Ibidem, § 5.870Ibidem, § 4.871Ibidem, § 18.872Ibidem, § 5.

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aos “pensamentos e interesses predominantes no período”873, ou, em termos um pouco mais

marxistas, atendendo aos interesses da classe dominante. Assim, a linguagem vinculada à

visão, que vem desde a Grécia clássica, se enraíza no Iluminismo, antes de se desenvolver

materialmente em espetáculo.

Com o Iluminismo a filosofia se arrolou o papel de livrar o mundo das sombras –

das superstições, das crendices, do medo –, deixando-o pretensamente livre para que a

realidade pudesse ser vista sem qualquer empecilho – dir-se-ia “cristalino” na linguagem

comum –, com o próprio futuro podendo ser visto desanuviado, graças às previsões científicas

– tanto da ciência positiva quanto da ciência da revolução – e ao caminho livre para a

concretização do preceito bíblico de sujeitar a Terra e dominar o que há sobre ela. Pode-se ver

o espetáculo como tributário a este momento – assim como às expansões ultramarinas

européias – quando Debord o apresenta como o sol que nunca se põe874, radiante a iluminar o

tempo todo o mundo transformado em seu império. Ocorre que a realidade sempre possui

sombras – as do devir, em último caso. O mundo sem sombras que a ciência parece a cada dia

se aproximar não é a realização da filosofia, é a filosofização da realidade: a degradação da

vida concreta em universo especulativo875 e a materialização desse universo especulativo em

um mundo pseudoconcreto876. Conservando e ajustando caracteres ideológicos tanto do

materialismo quanto do idealismo para isso, o espetáculo consegue ir de encontro ao projeto

resumido nas Teses contra Feuerbach, que diz que a oposição entre materialismo e idealismo

seria superada com a realização da filosofia na práxis877. No espetáculo, o aspecto

contemplativo de ambos é completado: ao velho materialismo, que concebe o mundo como

representação e não como atividade – o que acaba por fim em idealizar a matéria –, o

espetáculo oferece coisas concretas que “são automaticamente donas da vida social”878; ao

idealismo, a mediação técnica de signos e sinais, permite a materialização de um ideal

abstrato, dando realidade à atividade sonhada879. Ao indivíduo, mesmo o trabalhador braçal

mais baixo na escala social, mesmo aquele alheio à existência da filosofia, o espetáculo é a

democratização desse universo especulativo a toda a sociedade – quase um mass-Mênon.

Ironicamente, essa especulação é feita pelo próprio espetáculo, e não pelo sujeito, que deve

seguir passivo, obediente – tal qual no mundo sombrio sob domínio dos mitos, das crendices,

873CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 387.874DEBORD, SdE, § 13.875Ibidem, § 19.876Idem, ibidem.877Idem, ibidem.878Idem, ibidem.879Idem, ibidem. Grifo do autor.

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da Igreja –, sob o risco de se desvirtuar do reto caminho da razão, das luzes e da ciência.

Logo, a realização de um mundo esclarecido implica na rejeição de um dos princípios mais

aclamados do Iluminismo: a recusa da autonomia do indivíduo, a começar como sujeito

pensante – tão caro aos apologistas do primado da contemplação sobre a ação –, de modo que

não lhe resta outra alternativa senão a heteronomia também enquanto sujeito atuante na

história.

Essa inversão do concreto em especulativo apenas atesta que a filosofia, enquanto

pensamento fundado na cisão da sociedade, precisa da sociedade cindida para garantir seu

poder, isto é, tornar o universo especulativo predominante sobre a vida concreta a garante

como poder do pensamento separado e pensamento do poder separado880. É por manter essa

cisão, essa inversão, por reforçar a contemplação, é por coadunar com o poder que, para

Debord, a filosofia nunca conseguiu, por si só, superar a teologia881. Originada desta,

aparentemente contraposta a ela, tal oposição nunca foi verdadeiramente no sentido de superar

a teologia porque nunca teve por fim derrubar as condições que deram origem a ela: a

especialização do poder, a mais velha especialização social – origem e fundamento do

espetáculo882, cuja raiz Mumford encontra no estabelecimento da cidadela, em que seus

senhores, além de governá-la, “fixaram um novo molde da civilização, que combinava a

máxima diferenciação social e vocacional possível, coerente com os processos cada vez mais

amplos de unificação e integração”883. Assim, a realização da filosofia é em grande medida a

realização dessa diferenciação que funda a teologia, ou seja, a manutenção da divisão social e

da separação do poder frente ao resto da sociedade. A persistência da heteronomia reforça a

insistência na mesma captura das potencialidades humanas que outrora os homens haviam

abdicado voluntariamente em favor da religião. O espetáculo, sendo conseqüência do

desenvolvimento da filosofia das luzes e da acumulação capitalista, apenas comprovou que

esta era a filha pródiga da teologia: “com a condensação e a fragmentação, o capital foi

elevado ao nível conceitual. Falando de maneira extrema, chegou a ser até um movimento

religioso. As pessoas reverenciavam a dinâmica que o capital possui. Idolatravam seu caráter

mitológico”884. O espetáculo vai além, ao utilizar todo seu aparato técnico para a

“reconstrução material da ilusão religiosa”885, com direito ao acúmulo de indulgências da

880DEBORD, SdE, § 20.881Ibidem, § 20.882Ibidem, § 23.883MUMFORD, A cidade na história, p. 47.884MURAKAMI, Dance dance dance, p. 81.885DEBORD, op. cit., § 20.

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mercadoria e à efusão religiosa entre os fiéis886: “adoravam o preço do terreno em Tóquio e o

que simboliza o Porsche que brilha reluzente. Pois, além dessas coisas, neste mundo já não

resta mitologia nenhuma”887. Marx, segundo Rouanet, já apresentava a própria realidade como

teológica888 – apenas lhe faltava o moderno aparato ilusionista. Como reconstrução material

da ilusão religiosa, o espetáculo se apresenta como um pseudo-sagrado: produto de si próprio

e das regras que se impôs a si como condição de existência889, que se estende a toda a vida

social. Sendo a trindade da sociedade – parte dela, toda ela e o tertium que une esses dois

elementos890 –, o espetáculo traz para uma base terrestre as nuvens religiosas nas quais os

homens haviam colocado suas potencialidades891, ele faz o caminho inverso daquele da

religião, denunciado por Feuerbach, de que “a base temporal se destaca de si mesma, e se fixa

nas nuvens, constituindo um reino autônomo”892. O ar rarefeito das estratosferas religiosas,

porém, persiste: “desse modo, é a vida mais terrestre que se torna opaca e irrespirável. Ela já

não remete para o céu, mas abriga dentro de si sua recusa absoluta, paraíso ilusório893”.

Com a manutenção da divisão social, da especialização do poder, numa sociedade

amplamente hierarquizada – ainda que os avanços não apenas técnicos, como de organização

social, não a dividam mais em rudimentares castas, mas tendam ao nivelamento entre os

operários894, originalmente hierarquizados na manufatura895, e autorizem, até mesmo, “ampla

mobilidade social”–, o espetáculo, enquanto parte da sociedade, enquanto atividade

especializada destacada para responder por todas as outras, assume o papel de representante

diplomático “da sociedade hierárquica diante de si mesma”896, para si mesma. Tendo o

espetáculo tal função, toda outra fala que não a espetacular é banida – banida não porque o

espetáculo fale tudo, mas porque tudo o que se fale é com a fala do espetáculo897. Por isso,

fundador das relações sociais através da produção reificada e mediador dessas mesmas

relações por intermédio da produção e propagação de imagens898 – do qual ele detém o

monopólio899 –, o espetáculo passa a se tornar um sistema cada vez mais fechado e auto-

886DEBORD, SdE, § 67.887MURAKAMI, Dance dance dance, p. 81.888ROUANET, A razão cativa, p. 101.889DEBORD, op. cit., § 25.890Ibidem, § 3.891Ibidem, § 20.892MARX, Die Deutsche Ideologie, apud ROUANET, A razão cativa, p. 83.893DEBORD, op. cit., § 20.894MARX, O capital, livro I, Tomo II, p. 41.895Ibidem, livro I, Tomo I, p. 276.896DEBORD, op. cit., § 23.897Ibidem, § 203.898Ibidem., § 4.899Ibidem, § 12.

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referenciado em que qualquer coisa para ter existência de direito, precisa do seu aval, precisa

passar pelo seu crivo, pela sua pasteurização – a linguagem se torna cada vez mais espetacular

na medida em que o mundo também o é. Rousseau, conforme a leitura de Cassirer, levantava

questão semelhante acerca da linguagem: “a pior e mais dura forma de coerção da sociedade

reside nesse poder que exerce não só sobre nossas ações externas como também sobre todos

os nossos impulsos interiores, todos os nossos pensamentos e juízos. Este poder frustra toda

independência, toda a liberdade e originalidade de julgamento. Não somos mais nós que

pensamos e julgamos: a sociedade pensa em nós e por nós. Não precisamos mais procurar a

verdade: ela nos é enfiada à força nas mãos, recém-saída da casa da moeda onde foi

cunhada”900. E a liberdade que resta aos indivíduos sob tal dominação da linguagem – ainda

mais sob o espetáculo – é a mesma que ele tem com relação ao dinheiro: é obrigado a tê-lo (o

que pressupõe algum meio de ganhá-lo antes) e a pensar e agir conforme sua racionalidade.

Nesse processo, o espetáculo acaba por realizar – de maneira deturpada – um outro aspecto da

filosofia moderna, mais especificamente do projeto kantiano de delimitação das fronteiras do

limite da razão humana: o controle da produção e o controle sobre a práxis humana, o

monopólio da aparência, a supremacia sobre a linguagem, permitem-no definir até que ponto

é possível – possibilidade aqui não no sentido de potencialidade, mas de autorização901 – ao

sujeito espetacular refletir, questionar, pensar. A aceitação passiva que é exigida do

indivíduo902 – para o estabelecimento dos seus limites de pensamento e de ação – acaba

acontecendo sem explosões de fúria, primeiro por ser ele oriundo de um processo de educação

que adestra para a obediência à hierarquia e para a passividade, através da contemplação –

não apenas a educação formal, como a educação do proletariado sob a responsabilidade dos

partidos revolucionários903. Segundo, pelo modo de aparecer sem réplica do espetáculo, graças

ao seu monopólio da aparência904, às “especializações totalitárias do discurso e da

administração”905, sua comunicação feita “sob a forma de cascata de sinais hierárquicos”906,

em que até mesmo a crítica a ele, feita de dentro, é uma crítica espetacular, por admitir suas

pressuposições e seus métodos907 – como a crítica espetacular do espetáculo908 empreendida

pela moderna sociologia, “que estuda a separação com a ajuda dos instrumentos conceituais e

900CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 387.901DEBORD, SdE, § 25.902Ibidem, § 12.903Ibidem, § 96.904Ibidem, § 12.905Ibidem, § 57.906Ibidem, § 202.907Ibidem, § 197.908Ibidem, § 196. Grifo do autor.

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materiais outorgados pela separação”909, sem a crítica imanente910 que o método dialético

permite911, e por isso “não consegue compreender toda a profundidade de uma sociedade da

imagem”912, não consegue chegar à sua “verdade”913 (em 1988, Debord apresenta essa crítica

como ainda mais precária, mais descaradamente ideológica: uma discussão vazia centrada em

um aspecto parcial, que versa sobre os recursos da mídia, e não dos usos do espetáculo914). O

que resta “é o discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma, seu

monólogo laudatório”915, cuja fala “não diz nada além de 'o que é bom aparece, o que aparece

é bom'”916, numa petição de princípio que ele tem o poder de cometer sem ser questionado,

pois o poder que possui é “absoluto no interior de seu sistema de linguagem sem resposta” 917.

“Ele (a eternidade, na qual se abraçam todos os seres e seus feitos, em que tudo que pode ser

é, e tudo que pode acontecer acontece) está próximo de nós. Fadado a permanecer secreto –

eternamente além de nossa compreensão”918. Nesse trecho Bauman está apresentando Deus a

partir de Kafka, mas bem poderia ser o espetáculo, o qual “se apresenta como uma enorme

positividade, indiscutível e inacessível”; possui suas leis naturais, que são tais quais são, não

há o que possa ser feito, salvo tentar descobri-las para melhor se adaptar a elas – e o

estruturalismo é a ciência chancelada pelo Estado, legitimamente apto para provar a validade

trans-histórica do espetáculo e essas suas leis naturais919. Contudo, por trás dessa “aparência

fetichista de pura objetividade”920, em que parece haver uma segunda natureza que “domina,

com leis fatais, o meio em que vivemos”921, o espetáculo – suas organizações e relações –

esconde, torna invisíveis922 as relações entre homens e entre classes; e as pretensas leis

naturais do espetáculo não vêm da natureza: são frutos de disputas travadas no correr da

história: desenvolvimento técnico, organização social e estatal, formas de relações

interpessoais, nada disso é natural ou necessário, e sim histórico, contingente às necessidades

de uma dada forma de dominação de classe923: “considerado em sua totalidade, o espetáculo é

909DEBORD, SdE, § 196.910Ibidem, § 197.911Ibidem, § 205.912Ibidem, § 199.913Idem, ibidem.914Idem, Comentários, III915Ibidem, § 24.916Ibidem, § 12.917Ibidem, § 195.918BAUMAN, Amor líquido, p. 35.919DEBORD, op. cit., § 202.920Ibidem, § 24.921Idem, ibidem.922ROUANET, A razão cativa, p. 89.923DEBORD, op. cit., § 24.

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ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um

suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo

da sociedade real”924, ou seja, a realização do fetichismo da mercadoria, um dos fundamentos

do capitalismo, apontado por Marx.

Tendo como e sendo base do desenvolvimento do modo de produção baseado na

divisão e especialização do trabalho e na divisão da sociedade, sua dominação técnica, estatal

e ideológica leva a um aprofundamento da perda da unidade do mundo humano925 – cuja

origem remonta à especialização do poder, à perda da organicidade na relação do homem com

seu entorno e seu porvir –, que chega a um nível tal que se consuma na cisão interior do

próprio ser humano926. O espetáculo é uma alteração quantitativa que se torna também

mudança qualitativa. Ele “domina os homens vivos quando a economia já os dominou

totalmente”927, é a materialização do “capital como potência econômica da sociedade

burguesa, que domina tudo”928: aqui os indivíduos não estão mais alienados do mundo apenas

pelo produto de seu trabalho929, sua alienação já alcança sua vida em detalhes930, em seu

próprio desejo931, a ponto de não ser percebida. A forma-mercadoria pode exercer sua

dominação sob o apelo visual, materializando a ideologia, dirigindo o consumo e o

comportamento932, sem que isso soe absurdo ao homem dividido. O espetáculo tem a

separação como seu alfa e ômega933 – institucionalizado934, justificado935, exaltado936 –,

começando na produção, passando pelas cidades e culminando na vida quotidiana mais

ordinária de cada pessoa; daí que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas

condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”937 – num

aprofundamento da denúncia de Marx, de que “à primeira vista, a riqueza burguesa aparece

como uma enorme acumulação de mercadorias”938 –, em que as diversas esferas da vida

passam a ter existência prioritariamente enquanto representações, enquanto imagens, do que

924DEBORD, SdE, § 6.925Ibidem, § 29.926Ibidem, § 20.927Ibidem, § 16.928MARX, Para a crítica da economia política, p. 45929DEBORD, op. cit., § 33.930Idem, ibidem.931Ibidem, § 30.932Ibidem, § 60.933Ibidem, § 25.934Ibidem, § 88.935Ibidem, § 20.936Ibidem, § 67.937Ibidem, § 1.938MARX, op. cit., p. 57

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como vivências939. Comparando as denúncias feitas por Debord, logo no início d'A sociedade

do espetáculo, à de Marx, na abertura do livro Para a crítica da economia política, pode-se

notar alguns avanços na dominação do capitalismo. Primeiro, a penetração maior na

sociedade do fetichismo da mercadoria: Debord não fala mais da riqueza burguesa

especificamente, mas já de toda a vida. Segundo, a mercadoria, mais do que a autonomia,

ganhou vida própria: ela já não aparece (erscheint) como se recém-surgida, ela já está

presente e ela própria se apresenta, se mostra (s'annonce). Por fim, a mercadoria entra num

nível tal de abstração, que passa a se mostrar não mais como a abstração-mercadoria, mas

como a abstração-espetáculo. Nesse contexto, de pobreza de toda a vida social em meio à

pretensa riqueza do modo de produção burguês, a vida humana perde seu senso de

completude, sua organicidade (que não deve ser confundida com alguma pretensa forma

natural de integração do homem com a natureza), fica fragmentada. A posterior reunião desses

diversos espetáculos em que ela foi quebrada se dá pela fusão em um fluxo comum das

imagens que se destacaram de cada um desses aspectos – ou seja, se inserem em um

movimento imposto desde fora, já arrastando tudo. Movimento este que é o movimento do

capital – afinal, “o capital só pode ser entendido como movimento e não como coisa em

repouso”940, pois é na esfera da circulação que ele realiza a mais-valia expropriada na

produção –, pseudo-movimentos na superfície que dissimulam o verdadeiro movimento da

sociedade: o capital em seu processo de auto-valorização de si próprio941. O resultado dessa

reunião fica muito longe da unidade humanamente coerente da vida942, da “medida humana”,

como fala Mumford, perdida quando esta é fragmentada e depois reunida, primeiro como

acumulação de unidades parcelares, depois como movimento ditado sob o mesmo ritmo para

tudo e para todos, no mesmo fluxo comum, sem atentar para nuances qualitativas. “A

realidade considerada parcialmente”, em cada um desses aspectos da vida – todos eles bem

divididos, delimitados, estudados e compreendidos por especialistas –, “apresenta-se em sua

própria unidade geral como um pseudomundo à parte”943, sem qualquer relação com o todo ao

qual estão unidos por esse fluxo comum – pelo fato de tal fluxo ser uma imposição externa e

não algo brotado das próprias relações intrínsecas. O todo, o mundo, é dependente das partes,

de cada uma das esferas em que a vida foi trucidada, mas as partes independem do todo, como

se cada esfera prescindisse do mundo para seguir suas leis. E os homens, diante dessas leis –

939DEBORD, SdE, § 1.940MARX, O Capital, Livro II, p. 78. 941Ibidem, Livro I, p. 244. 942DEBORD, op. cit., § 2.943Ibidem, § 2. Grifos do autor.

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de uma objetividade dura, teoricamente desvendáveis apenas pela ciência – terão o único

direito de contemplar o seu desenrolar nesse pseudomundo944. Conseqüentemente, “o

espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo”:

no espetáculo é o dinheiro, são as coisas, é a representação da vida, são as imagens que se

movem, enquanto os homens, que reproduzem movimentos alienados para produzir o mundo

realmente, ficam parados observando o movimento do fruto do seu trabalho, da sua ação945.

Há uma inversão radical entre o vivido e o representado, entre o real e o espetáculo, que a

cada volta mais se imiscuem, num círculo que se retroalimenta, se tornando, ao fim do

processo, uma coisa só: “não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a

atividade social efetiva: esse desdobramento também é desdobrado”946. A realidade invertida

do espetáculo não é a mera inversão da realidade, pois “no mundo realmente invertido, a

verdade é um momento do que é falso”947, invertendo a tese hegeliana, de forma que a própria

realidade já está, ela também, falsificada pelo espetáculo – a realidade deixa de ter o poder de

desmistificar a falsa consciência, pois a própria realidade “deixou de ser crítica, e passou a ser

mistificada”948. Se num primeiro momento a imagem, o espetáculo, consegue se autonomizar

frente ao mundo, num segundo, estas imagens passam a se especializar sobre o mundo e ter

poder de veridicção sobre ele949, e o espetáculo, um produto da realidade, passa a ser

chancelador do real. O espetáculo como ideologia realizada – “o despotismo do fragmento

que se impõe como um pseudo-saber de um todo estático, visão totalitária”950 –, materializada

em um pseudoconcreto951 visível, transformando o mundo em simples imagens952, torna toda a

sociedade naquilo que a ideologia já era953: a falsa consciência, a negação da vida real. A

realidade, materialmente invadida e desmaterializada pelo espetáculo, tomada pela sua

linguagem, se vê obrigada a aderir de maneira positiva às suas ordens para existir, apesar do

espetáculo só existir na medida em que existir o real954. Ou seja, são as imagens que

condicionam o real a agir para que essas mesmas imagens possam ter existência para poderem

agir sobre esse mesmo real. O indivíduo, tendo que existir em meio a essas duas realidades, se

944DEBORD, SdE, § 2.945Ibidem, § 30.946Ibidem, § 8.947Ibidem, § 9.948ROUANET, A razão cativa, p. 102.949DEBORD, op. cit., § 2.950Ibidem, § 214. Grifos do autor.951Ibidem, § 216.952Ibidem, § 18.953Ibidem, § 217.954Ibidem, § 8.

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vê preso em um universo achatado e limitado pela tela do espetáculo955, o que na vida

quotidiana implica na imposição da “desinserção da práxis, e a falsa consciência dialética que

a acompanha”956. Com o reforço ao contemplativo e à falsa consciência, o espetáculo pode

organizar com sistematicidade a “falha na faculdade do encontro”, substituindo o encontro

autêntico por um simulacro de, pela “ilusão do encontro”. Necessitado do contato com o outro

para se reconhecer como sujeito – ou em termos hegelianos, como na epígrafe do capítulo IX

d'A sociedade do espetáculo, a consciência de si necessita do reconhecimento de outras

consciências de si para existir957 –, contudo tendo apenas a ilusão do encontro ao seu alcance,

o indivíduo não consegue ser reconhecido por ninguém e, por conseqüência, se torna incapaz

de reconhecer a si próprio e a sua própria realidade. Como Proust ao reconhecer a

impossibilidade de saber se Françoise o estimava ou detestava: foi com o contato com o Outro

que o autor de Em busca do tempo perdido descobriu que uma pessoa não está “nítida e

imóvel diante de nossos olhos, com suas qualidades, seus defeitos, seus projetos, suas

intenções para conosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros,

através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual

não existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de

palavras e até de atos, palavras e atos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás

contraditórias”958. Reconhecer isso no Outro é reconhecer também em si. Quando muito, a

consciência espectadora conhece “interlocutores fictícios que a entretêm unilateralmente com

sua mercadoria e com a política de sua mercadoria”959 e pseudo-respostas a essa comunicação

sem resposta feita do reconhecimento no consumo960, encenando assim “a falsa saída de um

autismo generalizado”961. O espetáculo se oferece, em toda sua extensão, como “sua 'imagem

do espelho'”962, um duplo da consciência espectadora, que mais do que um duplo de si é

também um duplo do Outro e do próprio espetáculo, num jogo de espelhos, de presença-

ausência, que apaga os “limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu” diante dessa

realidade ambígua, assim como suprime os “limites do verdadeiro e do falso pelo

recalcamento de toda verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela

organização da aparência”963. Ele é a mimetização falsificada e falsificadora da realidade e da

955DEBORD, SdE, § 218. Grifo do autor956Ibidem, § 217.957HEGEL apud DEBORD, SdE, Capítulo IX, epígrafe.958PROUST, O caminho de Guermantes, p. 60.959DEBORD, op. cit., § 218.960Ibidem, § 219.961Ibidem, § 218.962Ibidem, § 218.963Ibidem, § 219.

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vida humana: a carência do Outro persiste e o resultado se aproxima da denúncia feita por

Rousseau, para quem “ninguém se importa com a realidade, todos ancoram sua essência na

ilusão. Escravos de seu amor-próprio e iludidos por ele, os homens não vivem por viver, mas

para fazer crer aos outros que viveram!”964

Debord identifica sinais de dissociação esquizofrênica na sociedade do espetáculo:

a realidade objetiva está dos dois lados965, sendo que “cada noção se fundamenta em sua

passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”966, e o

indivíduo não tem alternativas senão aderir ele também ao espetáculo, enquanto sobrevive no

mundo real. Esta necessidade de fundamentação de um termo no outro não é necessariamente

um problema: vale destacar que para a filosofia da práxis “a fusão do conhecimento e da ação

precisa realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que cada um desses termos coloque

no outro a garantia de sua verdade”967. O ponto está que sob o espetáculo o encontro não é

real, antes a falsa consciência do encontro, “um fato alucinatório social”968. Enquanto

Mumford encontra na cidade murada a origem das estruturas coletivas de personalidade que

são encontradas até hoje, em que “a divisão do trabalho e das castas, levada ao extremo, veio

tornar normal a esquizofrenia; ao passo que o trabalho repetitivo e compulsório imposto a

uma grande parte da população urbana, sob a escravidão, reproduziu a estrutura de uma

neurose compulsiva”969, Debord, citando Gabel (que Rouanet critica por “medicalizar a

história”970), nota o paralelismo entre ideologia e esquizofrenia, já que esta apresenta, nos

quadros clínicos, “a decadência da dialética da totalidade (que tem como forma extrema a

dissociação) e a decadência da dialética do devir (que tem como forma extrema a

catatonia)”971; estilhaçamento da personalidade, fragmentação, perda do sentimento de

totalidade, perda da vontade própria, perda da capacidade de integrar ação e pensamento

conscientemente em uma práxis transformadora - “quem sofre de modo passivo seu destino

quotidianamente estranho é levado a uma loucura que reage de modo ilusório a esse destino,

pelo recurso a técnicas mágicas”972 -: o consumo e a imitação do estilo de representação

espetacular ofertado pelas vedetes – especialização do vivido aparente que promete

964ROUSSEAU, Rousseau juge de Jean-Jacques, Terceiro diálogo apud CASSIRER, “A questão de Jean-Jacques Rousseau”, p. 392.

965DEBORD, SdE, § 8.966Idem, ibidem.967Ibidem, § 90.968Ibidem, § 217.969MUMFORD, A cidade na história, p. 56.970ROUANET, A razão cativa, p. 138.971DEBORD, op. cit., § 218.972Ibidem, § 219.

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compensar todo “o estilhaçamento das especializações produtivas de fato vividas”973. Ainda

citando Gabel, “a necessidade de imitação que o consumidor sente é esse desejo infantil,

condicionado por todos os aspectos de sua despossessão fundamental”974.

Nessa situação (no mínimo confusa) em que a realidade existe, mas se torna

etérea, perde materialidade e ganha consistência quase onírica, as imagens ganham a realidade

que falta ao mundo encarado desde uma perspectiva contemplativa e passam a ser

“motivações eficientes de um comportamento hipnótico”975, ditando necessidades a serem

sonhadas por toda a sociedade. Necessidades que fazem do espetáculo “a principal produção

da sociedade atual”976. Para Marx, o que o que é produzido no capitalismo não são

mercadorias, e sim a mais-valia, a autovalorização do capital977. E é para a sua reprodução que

os homens devem trabalhar (e consumir): “a prática social, diante da qual se coloca o

espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão dessa

totalidade mutila a ponto de fazer parecer que o espetáculo é seu objetivo”978. Com a

totalidade da prática social voltada para o desenvolvimento do espetáculo, a economia passa a

girar por conta própria979, aparentemente como moto-perpétuo, com o capital alcançando um

grau tal de acumulação nesse processo que se torna ele também imagem980 – e destarte pode

prosseguir seu processo de auto-acumulação infinita de si próprio. Nesse movimento,

enquanto imagem da economia e do capital, o espetáculo “é o reflexo fiel da produção das

coisas, e a objetivação infiel dos produtores”981. Tendo recoberto todo o mundo com seu

modus operandi, com a divisão espetacular do trabalho se sobrepondo à antiga divisão

internacional do trabalho, o espetáculo, travestido das mais diversas formas, se apresenta

como a imagem móvel da imobilidade, pois não há ponto a chegar que não seja a si mesmo982,

que não seja ao ponto onde se está: “uma vez que a economia tenha se dirigido para a

expansão, os meios rapidamente se transformam em fins e o 'prosseguir torna-se meta'”983. Se

seu fim é seu meio, não há fim para o espetáculo, para a acumulação quantitativa capitalista: o

que ele busca é a acumulação de mais do mesmo984.

973DEBORD, SdE, § 60.974Ibidem, § 219.975Ibidem, § 18.976Ibidem, § 15.977MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 105.978DEBORD, op. cit., § 7.979Ibidem, § 16.980Ibidem, § 34.981Ibidem, § 16.982Ibidem, § 14.983MUMFORD, A cidade na história, p. 588.984DEBORD, op. cit., § 13.

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Entretanto, mesmo sendo imagem, mesmo sendo o acúmulo de si mesmo, o

espetáculo segue dependente de um substrato real para subsistir. Esse substrato é a produção.

Ocorre que o aperfeiçoamento das forças produtivas, além de induzir à queda da taxa de lucro,

tinha um limite ainda mais perigoso ao sistema: “a estreita base sobre a qual repousa[vam] as

relações de consumo”985, fruto da distribuição desigual das riquezas sociais produzidas –

característica comentada por Marx no livro III d'O Capital. A “descoberta” do operariado

como consumidor foi uma das formas encontradas pelo capitalismo para superar a carência de

uma base de consumo correspondente à da produção. Essa fórmula, entretanto, também tinha

seus limites. A sociedade do espetáculo é escrito mais ou menos na época desta crise, que

atingia tanto capitalistas quanto consumidores: quanto aos primeiros, a falta de novos

consumidores e a necessidade de permanência do consumo, ou seja, de como manter o

contínuo fluxo de circulação de mercadorias, necessário para a realização da mais-valia; aos

segundos, a evidência da pobreza de vida em meio à riqueza de quinquilharias que garantem

uma vida material confortável – e tediosa. “Sujeitar-se a um emprego e depois relacionar-se

com a vida através de o consumo não basta (...). O lazer em si não é capaz de salvar o

trabalho, mas fracassa juntamente com ele, e só poderá ser significativo para a maioria dos

homens se o trabalho o for”, comenta Paul Goodman, em meados da década de 1950986. Para o

capital, a primeira solução encontrada foi a ampliação da internacionalização da produção, o

que garantia um valor mais baixo aos seus produtos, graças aos preços mais baratos dos

elementos do capital – constante e variável –, e levava também a uma ampliação do número

de consumidores. A outra foi acelerar o giro da circulação de mercadorias, de modo a criar a

necessidade permanente de consumo nos consumidores já consolidados: “as indústrias que

são favorecidas por tal expansão [do mercado consumidor] devem, para manter a produção,

dedicar-se a bens que são prontamente consumíveis, quer pela sua natureza, quer por serem

tão apressadamente fabricados que logo devam ser substituídos. Pela moda e pela obsolência

inerente, as economias da produção mecânica, em vez de produzir o lazer e a riqueza durável,

são devidamente canceladas em conseqüência do consumo obrigatório, numa escala cada vez

mais ampla”987. A indução a esse consumo, além da obsolência programada, precisou também

de uma nova forma de formação da subjetividade do sujeito, que o identificasse cada vez mais

ao consumidor – que também o identificava cada vez mais a um produto. De acordo com

Riesman, há uma mudança da forma tradicional de vida, marcada pelo trabalho, para uma

985MARX, O Capital, Livro III, p. 176.986RIESMAN, A multidão solitária, p. 60987MUMFORD, A cidade na história, p. 588.

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moderna, em que os indivíduos se fundamentam no consumo988. Ao se alicerçar no consumo,

no lazer programado, o sistema capitalista consegue se apropriar “produtivamente” das

possibilidades abertas pelo aprimoramento das forças produtivas – a cada dia a exigir menos

trabalho humano –, afinal, “se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então

rouba ao capitalista”989, nada como garantir perdas zero, através da apropriação do tempo livre

do trabalhador com o consumo alienado, consumo de bens produzidos sob a forma alienada,

vinculado à “atividade produtora: depende dela, é uma submissão inquieta e admirativa às

necessidades e resultados da produção; a própria inatividade é um produto da racionalidade da

produção”990. Logo, não se vê uma mudança significativa da forma do espetáculo àquela

descrita por Marx, para quem “dentro do sistema capitalista, todos os métodos para a elevação

da força produtiva social do trabalho se aplicam à custa do trabalhador individual; todos os

meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e

exploração do produtor, mutilam o trabalhador, transformando-o num ser parcial, degradam-

no, tornando-o um apêndice da máquina; aniquilam, com o tormento de seu trabalho seu

conteúdo, alienam-lhe as potências espirituais do processo de trabalho na mesma medida em

que a ciência é incorporada a este último como potência autônoma; desfiguram as condições

dentro das quais ele trabalha, submetem-no, durante o processo de trabalho, ao mais

mesquinho e odiento despotismo, transformam o seu tempo de vida em tempo de trabalho”991.

No espetáculo, como antes do consumo, há a produção, que só existe na medida em que

houver braços para fazer as máquinas funcionarem. O trabalhador, para seguir produzindo

para o espetáculo não deve mudar sua relação de estranhamento com sua força de trabalho: o

sistema precisa que sua força siga independente dele, para que dela o sistema siga se

apoderando992. Ou seja, é imperativo sobre o espetáculo a manutenção da cisão: o trabalhador

não pode nunca ser um sujeito unitário, precisa estar sempre dividido. Foi da divisão entre ele

e sua força que se originou a “separação generalizada entre o trabalhador e o que ele

produz”993. É sobre esta separação do produtor e o produto do seu trabalho, transformado em

mercadoria, que Marx começa por elaborar sua teoria da falsa consciência: de acordo com os

Manuscritos Econômicos-Filosóficos é com o confisco da “objetividade humana, fazendo o

produto do seu trabalho aparecer, não como uma coisa sua, mas como uma coisa alheia, na

988RIESMAN, A multidão solitária, p. 70989MARX, O Capital, Livro I, tomo I, p. 189.990DEBORD, SdE, § 27.991MARX, op. cit., livro I Tomo II, p. 209-210.992DEBORD, op. cit., § 31.993Ibidem, § 26.

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qual ele não se reconhece, na qual ele se desconhece”994, que a consciência é falsa, num

determinado contexto histórico, e a realidade e a ilusão surgem invertidas. N'O Capital ele

retoma a forma-mercadoria do produto do trabalho – “a conduta atomística dos homens em

seu processo de produção social”995 – como uma das manifestações da reificação do

proletariado. As análises de Debord seguem por esse caminho. De início, o trabalho sob a

forma de trabalho-mercadoria teria levado à perda do ponto de vista unitário sobre a atividade

realizada, o que acabou por levar à perda de toda comunicação pessoal direta entre os

produtores – com a unidade e a comunicação se tornando atributos exclusivos da direção do

sistema996 –, e que culminou no espetáculo, com sua propagação a toda a sociedade. Principia

que a própria linguagem espetacular é constituída de sinais da produção reinante997, uma

“produção separada como produção do separado”998, que afeta não somente os produtores.

Primeiro porque essa produção chega à casa de todos pelo consumo999, segundo, e

principalmente, porque a experiência fundamental na sociedade espetacular (em 1967) estava

em vias de se deslocar do trabalho, da atividade de cada um, para a não-atividade, para o não-

trabalho. Portanto, não é mais necessário ser operário fabril para se igualar a um: a

massificação do consumo de luxo (ou seja, artigos que não são necessários para a reprodução

da força de trabalho1000) é “a vitória do sistema econômico da separação é a proletarização do

mundo”1001 – Marx comentava que o capitalista, com o desenvolvimento das forças produtivas

e a transformação do capital em uma força social, se tornava tão-somente um funcionário

desse capital. A proletarização do mundo implica na universalização de uma característica que

no início do capitalismo era típica do operariado e das fábricas, numa época em que o

operariado migrava para onde estavam as fábricas, as quais se instalavam onde estavam as

matérias primas: o alastramento do sentimento de não-pertencimento1002, e as promessas de

solução para esse sentimento, para o distanciamento entre os homens1003, para o

desmoronamento da vida em comum1004, que apenas aprofundam o isolamento que prometem

resolver: “o sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do

994ROUANET, A razão cativa, p. 77995MARX, O Capital, livro I, p. 85.996DEBORD, SdE, § 26.997Ibidem, § 7.998Ibidem, § 27.999Ibidem, § 69.1000MARX, op. cit., Livro III, Tomo I, p. 79.1001DEBORD, op. cit., § 26.1002Ibidem, § 30.1003Ibidem, § 171.1004Ibidem, § 172.

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isolamento”1005, por mais que para o indivíduo sejam seus contemporâneos sua fonte da

orientação “– tanto aqueles que lhes são conhecidos, quanto aqueles que elas conhecem

indiretamente, através de amigos e dos meios de comunicação de massa (...). Esta forma de se

manter em contato com os outros permite uma estreita conformidade de comportamento”1006;

a relação com o outro não é a da troca, da alteridade, mas a do mero ajustar-se para ser aceito.

Assim como na divisão social do trabalho a divisão de tarefas fabris não criou solidariedade

orgânica entre os trabalhadores, igualmente os bens para consumo que prometem unir, vencer

distâncias – do automóvel à televisão –, são selecionados para o “reforço constante das

condições de isolamento das 'multidões solitárias'”1007: “o isolamento fundamenta a técnica;

reciprocamente, o processo técnico isola”1008. Diante dessa lógica, no espetáculo pode ser

afirmada a realização técnica do exílio1009, sendo que o espectador, alienado em favor do

objeto contemplado, “quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-

se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu

próprio desejo”1010, maior sua heteronomia, guiado por uma série de estímulos externos, da

publicidade à opinião do grupo cômpar – Riesman chama o tipo ideal de caráter desta época

de “alter-dirigido” –; quanto melhor inserido no sistema, maior seu desconforto, seu

sentimento de não-pertencimento. Diante de um mundo que não é seu, apesar de produzi-lo

cada vez mais em seus detalhes1011, “o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o

espetáculo está em toda parte”1012, inclusive dentro do próprio homem1013, “que quanto mais

sua vida se torna seu produto”, fruto de trabalho alienado, “tanto mais ele se separa da

vida”1014. Porque é próprio do capitalismo identificar o produto do trabalho com o produto-

mercadoria (conseqüência da identificação do trabalho com trabalho-mercadoria), o qual

precisa se alienar em valor de troca para poder se realizar como valor de uso: pela forma de

produção capitalista, uma mercadoria é produzida para um uso, mas ela não é valor de uso

para quem a possui, quem a produz (seja com a exploração do trabalho alheio, seja fruto do

próprio trabalho) para o mercado, como valor de troca. Logo, para seu primeiro possuidor

uma mercadoria não satisfaz a função para a qual foi produzida: a mercadoria só ganhará

1005DEBORD, SdE § 28.1006RIESMAN, A multidão solitária, p. 86.1007DEBORD, op. cit., § 28.1008Idem, ibidem.1009Ibidem, § 20.1010Ibidem, § 30.1011Ibidem, § 33.1012Ibidem, § 30.1013Ibidem, § 20.1014Ibidem, § 33.

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valor de uso nas mãos de seu comprador, que a comprará por um equivalente em dinheiro, e a

utilizará, aí sim, para satisfazer suas necessidades1015. Esse duplo uso de um produto é notado

por Aristóteles, para quem “todo bem pode servir para dois usos (...) Um é próprio à coisa

como tal, mas o outro não o é, assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também

pode ser trocada”1016. Todavia, há uma diferença que é ao mesmo tempo qualitativa e

quantitativa entre a sandália de Aristóteles e a do capitalista, a ponto daquele poder dizer que

os dois casos são “valores de uso da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de

que necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da sandália como sandália. Contudo,

não é este o seu modo natural de uso. Pois a sandália não foi feita para a troca”1017. Bem

diferente ocorre no sistema capitalista, no qual “os valores de uso das mercadorias vêm a ser,

portanto, valores de uso, mudando de lugar por toda a parte, saindo das mãos que a utilizaram

como meio de troca para as mãos que a utilizam como objeto de uso. É apenas através dessa

alienação multilateral das mercadorias que o trabalho contido nelas se torna trabalho útil”1018.

Levando essa lógica ao extremo, “o espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação

concreta de alienação. A expansão econômica é sobretudo a expansão dessa produção

industrial específica”1019, seu sucesso “volta ao produtor como abundância da

despossessão”1020: a acumulação de produtos alienados, frutos do trabalho alienado. O tempo

e o espaço de seu mundo se tornam estranhos a ele – abstrações afins ao desenvolvimento do

capital1021 –, a ponto de precisar ser socorrido pelo espetáculo, que fornece o mapa desse novo

mundo, que é o seu território1022, que é a sua casa1023.

“O que cresce com a economia que se move por si mesma só pode ser a alienação

que estava em seu núcleo original”1024, mas que ainda não pode ser considerada alienação no

início do desenvolvimento das forças produtivas, que para Debord é “a história real

inconsciente que constituiu e modificou as condições de existência dos grupos humanos”1025 –

permitindo aos homens saírem de um estágio de sobrevivência, ao gerar excedentes de

produção, dando origem a uma base econômica para trocas mercantis. Desse

desenvolvimento, desses excedentes, a produção de mercadorias – “que implica a troca de

1015MARX, Para a crítica da economia política, p. 69.1016ARISTÓTELES, De república, apud Marx, Para a crítica da economia política, p. 57.1017Idem, ibidem.1018MARX, op. cit., p. 69.1019DEBORD, SdE, § 32.1020Ibidem, § 31.1021Ibidem, § 168.1022Ibidem, § 311023Ibidem, § 217.1024Ibidem, § 32.1025Ibidem, § 40.

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produtos diferentes entre produtores independentes”1026 – por longo período foi uma atividade

econômica artesanal e marginal, em que estava dissimulada sua “verdade quantitativa”1027.

Segundo Debord, sua dominação neste estágio ainda era oculta, “pois a própria economia,

como base material da vida social, era despercebida ou incompreendida”1028. Contudo, a

produção de mercadorias deixou de ser marginal e assumiu o controle total da economia tão

logo encontrou condições sociais que assim o permitiram, com o grande comércio e a

acumulação de capitais. Toda a economia passou então a se modelar conforme as suas

necessidades, ou seja, “tornou-se um processo de desenvolvimento quantitativo”1029 e de

rebaixamento qualitativo – o que não deixa de implicar numa mudança qualitativa –,

transformando o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em trabalho assalariado1030 – em

especial com a revolução industrial, com o fim da base natural da economia e a divisão social

do trabalho1031.

O trabalho assalariado tem uma série de particularidades, muito além do fato de

ser uma forma de ocupação do esforço humano em uma dada época, por uma dada forma de

produção. Marx pressupõe o trabalho como “condição natural da existência humana”1032,

“processo pelo qual o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo

com a natureza”1033 “independentemente da sua forma social”1034, e que, “ao atuar sobre a

natureza, modifica a sua própria”1035. “Ao contrário, o trabalho que põe valor de troca é uma

forma especificamente social do trabalho”1036, mais do que uma mera transformação da

natureza pelo artifício humano. Neste caso, a produção tem como base o conceitos de

“trabalho humano geral”1037, “trabalho social médio”, abstrações efetivas, e não apenas

teóricas, da força de trabalho, aplicadas para produzir qualquer produto. Pois uma mercadoria

entra na esfera da circulação para ser intercambiada por outras mercadorias como mero valor

de troca: sua diferença para com as demais é apenas quantitativa – as diferenças qualitativas,

de valor de uso, interessam somente na medida em que fazem a mercadoria se efetivar em

valor de troca. Assim, um trabalho só é trabalho útil e o trabalhador assalariado só é

1026DEBORD, SdE, § 401027Idem, ibidem.1028Ibidem, § 41.1029Ibidem, § 40.1030Idem, ibidem.1031Ibidem, § 41.1032MARX, Para a crítica da economia política, p. 65.1033Idem, O Capital, livro I, Tomo I, p. 1491034Idem, Para a crítica da economia política, p. 65.1035Idem, O Capital, livro I, Tomo I, p. 1491036Idem, Para a crítica da economia política, p. 65.1037Ibidem, p. 60.

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remunerado por aquilo que faz na medida em que o produto-mercadoria desse trabalho entra

na esfera da circulação como valor de troca1038. A medida usada para igualar todas as

mercadorias é o tempo de trabalho objetivado1039. Para tanto, não se pode considerar o

trabalho em suas particularidades: o trabalho que cria mercadoria deve ser ele também uma

mercadoria indiferente, igual a qualquer outro trabalho. Trabalho simples, uniforme, sem

diferenças, que possa ser calculado por uma medida geral, equivalente a todos os trabalhos.

Tal medida é o tempo de trabalho, “modo de ser quantitativo do movimento”1040, cujo ritmo,

cuja produtividade é dada pelo desenvolvimento das forças produtivas e determina o valor do

trabalho de qualquer pessoa. Essa medida traz implícita a concepção do tempo como vazio e

homogêneo.

Nos primórdios do capitalismo, a manufatura era vantajosa frente ao artesanato

porque, ao reunir um grande número de trabalhadores para a realização da mesma tarefa – ou

de tarefas contíguas para produção de um bem –, as diferenças de rendimento entre cada

trabalhador eram anuladas – o ritmo de trabalho mais lento de um era superado pela maior

habilidade de outro –, resultando em um tempo de trabalho médio para a confecção do que

fosse – o que acabava por ser lucrativo ao capitalista. Com a revolução industrial, esse

trabalho médio passa a ser uma imposição da máquina ao operário: são os meios de produção

que ditam qual é o ritmo do trabalho social médio. É a máquina que é a virtuose do sistema –

ao operário cabe ajustar seus movimentos ao ritmo ditado desde fora1041. E, no fundo, o

trabalho é indiferente à forma particular do trabalho. Tem-se aqui uma série de relações

baseadas na indiferença: o capitalista é indiferente ao valor de uso produzido1042, já que o que

ele realmente produz é mais-valia, o trabalhador, que pode “passar com facilidade de um

trabalho a outra e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito”, é indiferente àquilo

que faz, visto que se trata de um trabalho alienado, que não confunde com ele em sua

particularidade1043. Sob um ritmo que não é o seu, o operário produz para outrem um valor de

troca que irá satisfazer necessidades que não são as suas.

Afim à Lógica de Hegel, retomada por Marx1044, Debord afirma que “esse

desenvolvimento que exclui o qualitativo também está sujeito, como desenvolvimento, à

1038MARX, Para a crítica da economia política, p. 70.1039Idem, ibidem.1040Ibidem, p. 59.1041Idem, O Capital, livro I, p. 242.1042Idem, Para a crítica da economia política, p. 59.1043Ibidem, p. 43. 1044Idbem, O Capital, livro I, p. 243.

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passagem qualitativa”1045: é no estágio da industrialização que a alienação finalmente surge

inequivocamente, alterando em cada detalhe a paisagem do globo e as relações humanas. Com

isso, “a mercadoria aparece como uma força que vem ocupar a vida social”1046, e o espetáculo

é o momento em que ela se apodera “totalmente da vida social”1047, em que “não apenas a

relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela”1048, todas as

relações sociais são mediadas por ela. Ademais, a mercadoria não é apenas “visível e

ofuscante”1049, ela impõe seu movimento, ou antes ela não impõe movimento algum, mas

abduz da atividade humana aquilo que lhe serve, e a partir daí generaliza seu movimento para

toda a sociedade. Porque a mercadoria não existe por conta própria, sem apropriação do

trabalho humano. O movimento que ela impõe é o movimento apresentado por Marx n'O

Capital, e, antes disso, em Para a crítica da economia política, de 1859, e que Debord

identifica com o movimento essencial do espetáculo: “retomar nele tudo o que existia na

atividade humana em estado fluido, para possuí-lo em estado coagulado”1050. “Na denúncia da

falsificação da vida, da pseudo-realidade, da falsificação das necessidades, Debord busca

afirmar não uma suposta realidade primeira e autêntica que, por sua fixidez, seria o critério de

crítica do presente, mas antes constata criticamente a fixidez de um presente aprisionado ao

arcaísmo da forma-valor que impede, recalca e substitui por imagens oníricas as

possibilidades historicamente constituídas de elaboração e realização efetiva do desejo

consciente”1051.

Ao se apropriar da atividade humana, desde a dedicada à produção para o sistema

até aquela nos momentos que seriam para usufruto próprio, a primeira como apropriação

direta da força de trabalho do proletariado, como operários tão-somente; a segunda como

consumidores, com o humanismo da mercadoria1052 (contradizendo a análise de Marx sobre o

capitalismo do século XIX, de que “o capital não tem a menor consideração pela saúde do

trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a tê-la”1053); todos esses momentos

marcando a percepção, a comunicação e as relações sociais com sua linguagem, forçando

todos a se inserirem no seu campo de existência, o espetáculo força a um mesmo ritmo, ditado

pela cadência da produção – mesmo enquanto consumidores, em seus momentos de lazer.

1045DEBORD, SdE, § 39.1046Ibidem, § 41.1047Ibidem, § 42. Grifo do autor.1048Idem, ibidem.1049MARX, O Capital, Livro I, nota I, p. 85. 1050DEBORD, op. cit., § 35. Grifos do autor.1051AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 82.1052DEBORD, op. cit., § 43.1053MARX, op. cit., Livro I, p. 215.

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Convém ressaltar que a cadência da produção, se serve para melhor atender ao interesse do

capital de auto-valorização, é fruto da engenhosidade e do trabalho humano. Esse

enquadramento vai além da dominação aberta ou semi-aberta imposta por um determinado

compasso. Muito veladamente – e aqui a linguagem tem um papel marcante – o espetáculo

tira dos homens a espontaneidade, o inesperado que relações horizontais e livres entre as

pessoas poderiam fazer brotar, não para paralisar tais atividades, mas para dar a elas uma

outra consistência – uma outra existência –, mais afim às suas necessidades, de modo a gerir a

ação humana de maneira positiva ao sistema. Insinuando-se pela linguagem, algo

aparentemente tão natural, não fica difícil ao espetáculo ganhar o mesmo aspecto. “O discurso

fetichista não é nem sequer um discurso ilusório sobre a realidade, mas o discurso da própria

realidade: a ideologia é um momento da realidade”1054. Os termos que Debord toma

emprestado de Marx auxiliam numa compreensão neste sentido. Ao falar em “estado fluído da

atividade humana”, convém notar que os fluidos – líquidos e gasosos – são corpos que tomam

a forma do recipiente onde são colocados. No latim, fluidus pode ser tanto o que escorre

quanto, figurativamente, o amplo, o largo, o farto1055. Disso pode-se deduzir que para Debord

a atividade humana não possui nem uma ontologia a priori, nem uma teleologia imanente.

Essa atividade ter um fim, ainda mais um fim útil, utilitário, é uma possibilidade, não uma

necessidade. Da mesma maneira, seu desenrolar, quando desimpedido, fluido, torna a ação

humana rica, farta de significados e desdobramentos que fogem ao controle da razão. Para

Marx, todas as mercadorias, enquanto valores de troca, “são apenas medidas de tempo de

trabalho coagulado”1056: trabalho objetivado, trabalho morto, trabalho passado acumulado sob

a forma de mercadorias alienadas. O tempo de trabalho é o modo de ser quantitativo do

trabalho, porque o tempo foi identificado como o modo de ser quantitativo do movimento1057.

E sendo o trabalho sob a mercadoria um trabalho despido de toda qualidade, reduzido a

trabalho simples, mero movimento, dispêndio de força humana, ele passa a ser encarado como

trabalho humano geral, uma abstração de trabalho, e posto sob um tempo abstrato, de forma

que o trabalho medido pelo tempo da produção “aparece não como o trabalho de diferentes

sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros

órgãos do trabalho”1058, peças indiferentes e facilmente substituíveis para sua função. Essa

produção com base em um conceito abstrato, o trabalho médio, é um passo além na maior

1054ROUANET, A razão cativa, p. 105.1055SARAIVA, Novíssimo Dicionário Latino-Português, p. 494.1056MARX, Para a crítica da economia política, p. 59. Grifo do autor.1057Ibidem, p. 60.1058Ibidem, p. 138. Grifo do autor.

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abstração da vida social que Debord tanto denuncia, que no século XX ganha um peso extra

ao se tornar materialmente visível. Ao adotar o termo coagulado e não sólido, evita-se passar

a idéia do espetáculo – como a mercadoria –, se impondo já com forma bem determinada,

como algo coeso. O espetáculo é um sólido viscoso, coalhado, sem uma forma fechada de

início. Seu enquadramento é permissivo, o que garante uma aparente liberdade aos indivíduos,

reforçando sua ideologia de uma sociedade livre, quando o que se constata é que tais sutilezas

dificultam não só a possibilidade de percebê-las, como a de se opor a elas: daí a necessidade

da linguagem dialética, do plágio, do uso desviado1059 apontar esses engessamentos sutis do

espetáculo. Esta passagem do fluido ao coagulado também pode ser remetida a uma metáfora

biológica, do sangue. Diante de uma ferida por onde o sangue em estado fluido sai, o

organismo reage coagulando-o, tomando a forma da ferida, de modo a impedir sua vazão para

fora do corpo, para fora do seu controle. Não é, destarte, algo que é imposto a partir de fora,

mas uma solução natural que brota do próprio organismo, para controlar o caminho que o

sangue fazia, redirecionando-o para a rota correta e evitando prejuízos ao ser. Ao transformar

o fluido em coagulado, sutilmente o espetáculo restringe essa liberdade, sem necessidade de

impedimentos externos: é a partir do próprio interior que ele cerceará a atividade humana.

Logo, não dominaria a ação humana a partir de fora, mas a partir de dentro. Ele, num primeiro

momento, pode até dar certa liberdade aos indivíduos para agirem, mas logo retoma, se

apropria novamente de tal atividade, pondo-a num estado viscoso que permite possuí-la e, tão

importante quanto, não permite que escoe e fuja, nem que seja prejudicial ao organismo

social. Mas o espetáculo retoma a atividade humana como coisas: ela será objetivada em

mercadorias, imagens-objetos que comporão a riqueza e o brilho da miséria da sociedade

atual, e que são a sua principal produção: o próprio espetáculo1060. Poderia ser dito que essa

idéia da retomada da atividade em estado coagulado quando deveria ser em estado fluido

evidencia uma dominação transparente: se enxerga através dela, mas não ela própria – por

causa da forma como surge, como algo natural, graças à série de mediações que o espetáculo

cria na vida social, numa cadeia tão longa que aparenta ter sempre existido. Ou, como

Rouanet comenta sobre o fetichismo da mercadoria: “designa a propriedade necessária que

têm as relações sociais do capitalismo de se manifestarem numa forma objetiva em que elas se

tornam invisíveis. Seu espaço de aparição é também um espaço de desaparecimento”1061. Ao

indivíduo, este movimento essencial consiste não apenas na perda da completude das suas

1059DEBORD, SdE, § 207, § 208.1060Ibidem, § 15.1061ROUANET, A razão cativa, p. 89.

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atividades, pela segmentação de tudo e de todos, mas também em ser ele estancado, ganhar

uma consistência, uma viscosidade, uma essência, uma permanência no tempo que não tem,

de forma a poder ser comparado em um antes e um depois como se fosse o mesmo, de tal

forma que ele, tal qual sua atividade, passa a ter “valor em virtude da formulação pelo avesso

do valor vivido”1062. Ou seja, o que vai dar valor e sentido à atividade humana é essa

permanência – o trabalho morto que domina o trabalho vivo –, o que vai dar valor ao homem

é sua personalidade estável; o que ganha valor na sociedade espetacular é tudo o que não flui,

o que pode ser medido e calculado, tudo aquilo em que o particular e o qualitativo podem ser

postos de lado – “encarnação uniforme da mesma substância de valor, [que] diferem entre si

apenas do ponto de vista da quantidade”1063. A relação com o mundo e com o Outro se torna

oposta àquela descrita por Proust: “toda criatura se destrói quando deixamos de vê-la; seu

aparecimento seguinte é uma criação nova, diversa da imediatamente anterior, senão de

todas”1064. Tudo ganha uma realidade por demais segura – e impalpável.

O avesso do vivido – o representado. Aquilo que deveria ser espontâneo,

autêntico, mas que é mediado de tal forma pelo espetáculo que faz com que os próprios gestos

daquele que age “já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele”1065. Assim,

para onde quer que se olhe, o que se vê é o mundo da mercadoria1066 dominando a vida

humana, da produção aos sonhos dos homens – a produção dos sonhos dos homens –,

transformando tudo em imagens, dependente de imagens. Nessa realidade, na qual “o mundo

sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele e que ao mesmo

tempo se faz reconhecer como o sensível por excelência”1067 – achatando o sensível das suas

profundidades1068 –, o princípio do fetichismo da mercadoria, “a dominação da sociedade por

'coisas supra-sensíveis embora sensíveis'”1069, se realiza completamente. Coisas sensíveis

porque, por mais que tenham se desmaterializado em imagens, possuem um substrato real,

fruto do trabalho humano alienado: daí o combate radical de Debord a esta forma de trabalho,

ao trabalho sob a forma de trabalho-mercadoria, o trabalho desprovido de qualidades,

quantificado, do qual principia o ciclo da mercadoria. É dele que se origina a perpetuação do

sistema: a dominação pode ser feita por imagens, mas é a dominação de um sistema de

1062DEBORD, SdE, § 35, grifo do autor.1063MARX, Para a crítica da economia política, p. 91.1064PROUST, À sombra das raparigas em flor, p. 379.1065DEBORD, SdE, § 30.1066Ibidem, § 42.1067Ibidem, § 36.1068Ibidem, § 218.1069Ibidem, § 36.

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produção, em que o trabalho assalariado é conservado “como o único lugar de origem da

mercadoria”1070, afinal, “todo sistema de produção capitalista repousa no fato de que o

trabalhador vende sua força de trabalho como mercadoria”1071. O papel de Midas que o

espetáculo incorporou para si, transformando tudo aquilo que cai sob seu campo de existência

em ouro – o que implica em uma evidente perda de qualidade –, “traduz o caráter fundamental

da produção real que afasta a realidade: sob todos os pontos de vista, a forma-mercadoria é a

igualdade confrontada consigo mesma, a categoria do quantitativo. Ela desenvolve o

quantitativo e só pode se desenvolver nele”1072 – “o globo terrestre transformado numa esfera

de ouro maciço, ressecada em sua abstração de moeda”1073. Contudo, o desenvolvimento que

exclui o qualitativo enquanto desenvolvimento está sujeito à passagem qualitativa ao transpor

o limiar de sua própria abundância, do qual o espetáculo é a prova1074: “isto só é verdade

localmente em alguns lugares, mas já é verdade em escala universal, que a referência original

da mercadoria, referência que seu movimento prático confirmou, ao unificar a Terra como

mercado mundial”1075 – umas das condições necessárias para o capital se contrapor à queda

tendencial da taxa de lucro1076. Esse avanço, contudo, não é feito pacificamente, sem

resistências: “o espetáculo é uma permanente Guerra do Ópio para fazer com que se aceite

identificar bens a mercadorias”1077. Para essa guerra, o espetáculo se armou de uma série de

armas e assessores, na tentativa de vencer resistências, destruir barreiras. Primeiro a

constituição e o desenvolvimento de uma ciência social burguesa, a economia política –

ciência dominante e ciência da dominação1078 –, para justificar o que há, para prever o que

será, e que nos primórdios do capitalismo, afim às necessidades do sistema, não via no

proletariado mais do que um operário, o qual não necessitava mais do que o indispensável

para sua manutenção, para a conservação da sua força de trabalho1079. Com o desenvolvimento

do capitalismo até o ponto de se tornar espetáculo, quando “todo o trabalho vendido de uma

sociedade se torna globalmente a mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir”1080, ou seja,

quando as forças produtivas – que operam como um conjunto – conseguiram alienar por

1070DEBORD, SdE, § 45.1071MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 48.1072DEBORD, op. cit., § 38.1073CALVINO, “Duas histórias nas quais se procura e se perde”. In: O castelo dos destinos cruzados (A taverna

dos destinos cruzados), p. 121.1074DEBORD, op. cit., § 39.1075Ibidem, § 39.1076MARX, O capital, Livro III, capítulo XIV.1077DEBORD, op. cit., § 44.1078Ibidem, § 41.1079Ibidem, § 43.1080Ibidem, § 42. Grifo do autor.

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completo os produtores da sua força de trabalho, a qual, estrangeira, deve retornar

fragmentada, em forma de produtos, para o indivíduo fragmentado1081; nesse ponto a

economia política já não dá mais conta de lidar com essa sociedade dividida em uma miríade

de pseudomundos autônomos1082 e necessita se especializar, de forma que “se estilhaça em

sociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia, etc., e controla a auto-regulação de todos os

níveis do processo”1083. Neste estágio, o proletário passa a ter uma obrigação extra para com o

sistema, que é não apenas o de produzir, como também o de consumir. A partir de então

crescem as preocupações com seu bem-estar por parte do Estado e por parte das organizações.

É o “humanismo da mercadoria”, encarregado dos lazeres e da humanidade do trabalhador, de

prestar atenção àquilo que ele precisa para ser mais feliz e produtivo – sempre

individualizado, atomizado. Trata-se do desenvolvimento do mito do indivíduo sem peias, “a

democratização da concepção barroca do príncipe despótico”1084, para além do chefe da

empresa: como consumidor, qualquer um é rei. Concomitantemente a esse cuidado quase

maternal, como se o trabalhador fosse incapaz se divertir por si próprio – e ele acaba mesmo

se tornando dependente –, ele passa, conforme Debord, a ser tratado, enquanto consumidor,

como adulto respeitável1085, tratamento que ele não encontra na outra ponta do sistema que

sustenta. De ponta a ponta, entretanto, o que une esse indivíduo fragmentado pela produção e

pelo consumo é o caráter alienado de todas as suas ações: no espetáculo, “'a negação total do

homem' assumiu a totalidade da existência humana”1086. E é preciso que assim seja: uma

primeira função das ciências particulares é não permitir o dar-se conta de que o atual

desenvolvimento das forças produtivas torna prescindível o trabalho humano reificado, e que

quem dele verdadeiramente necessita é o sistema capitalista.

Com o desenvolvimento da automação e de outras formas de aumento da

produtividade, para manter o tempo de trabalho social necessário na escala da sociedade o

sistema criou uma gama de empregos supérfluos no setor terciário, trabalhos de suporte para

distribuição e promoção das mercadorias atuais. A necessidade desse trabalho, conforme

Debord, “decorre da própria artificialidade das necessidades relacionadas a tais

mercadorias”1087. E tão artificial quanto a necessidade dessas mercadorias é a necessidade dos

1081DEBORD, SdE, § 42.1082Ibidem, § 2.1083Ibidem, § 42.1084MUMFORD, A cidade na história, p. 485.1085DEBORD, op. cit., § 43.1086Idem, ibidem.1087Ibidem, § 45.

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empregos relacionados a elas. Se não criam mais-valia1088, esses empregos no setor terciário

auxiliam na circulação da mercadoria e no processo de reprodução do capital, que necessita de

“funções improdutivas mas necessárias”1089. Neste caso, “quanto mais o tempo de circulação

for próximo de zero, tanto mais funciona o capital, maior sua produtividade e

autovalorização”1090, uma vez que o tempo de circulação limita o tempo de produção, seu

processo de valorização: para o capital, o ideal é que tudo seja para agora. Porém, se o

trabalho como mercadoria é o único lugar de origem da mercadoria1091, e esse trabalho se

contabiliza em horas dispendidas de trabalho alienado em favor do sistema, o sistema deve

fazer os homens trabalharem, por mais que não seja necessário. O sistema busca modos de

contornar o desemprego tecnológico, que Keynes, em texto de 1930, identifica como “um

desemprego causado pela nossa descoberta de meios para economizar o emprego do trabalho,

a um ritmo maior do que aquele pelo qual conseguimos encontrar novas utilizações para a

força de trabalho”1092. Ora, se as máquinas são capazes de fazer boa parte do serviço, utilizar a

força de trabalho para quê? Neste mesmo texto, empolgado pelas conquistas da ciência e dos

juros compostos, Keynes acreditava que em meados do século XXI a jornada de trabalho

estaria reduzida a quinze horas semanais, simplesmente porque os homens, forjados pela

moralidade do trabalho, precisariam “fazer algum trabalho para ter satisfação”1093, sendo que

esse trabalho é necessariamente identificado com o trabalho alienado. O grande equívoco do

economista nesse exercício de futurologia talvez tenha ocorrido por não ter se dado conta de

que o mundo transformado em mundo da mercadoria1094 se torna um mundo natural, com leis

absolutas, para além dos desígnios humanos e alheias aos desejos dos homens, embora sejam

feitas a partir da utilização da força de trabalho humana, que se aliena em uma

pseudonatureza que exige que o homem prossiga com sua labuta infinitamente. Mumford

identifica traços originários dessa tendência desenvolvida pela mercadoria na mudança dos

costumes da aldeia para cidade. Para o estadunidense, a “criação artificial de escassez em

meio à crescente abundância natural foi um dos primeiros triunfos característicos da nova

economia da exploração civilizada”1095. A rejeição a essa lei da pseudonatureza implica em

risco de morte – segui-la é, portanto, uma questão de sobrevivência: “todos sabem que devem

1088MARX, O Capital, livro II, p. 97. 1089Idem, ibidem.1090Ibidem, p. 91.1091DEBORD, SdE, § 45. Grifo do autor.1092KEYNES, “As possibilidades econômicas de nossos netos” p. 154.1093Ibidem, p. 156.1094DEBORD. op. cit., § 40.1095MUMFORD, A cidade na história, p. 45.

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submeter-se a ela ou morrer”1096. Para Kurz, “a forma de reprodução social da mercadoria

torna-se uma 'segunda natureza', cuja necessidade apresenta-se aos indivíduos igualmente

insensível e exigente como a da 'primeira natureza', apesar de sua origem puramente

social”1097. O moderno retomando o mais arcaico1098. É o que Debord chama de sobrevivência

ampliada1099: quando a questão primeira da sobrevivência, posta sob a forma assalariada, é

resolvida de maneira a retornar sempre, e cada vez num grau superior1100, sem que os homens

estejam liberados da antiga penúria – porém sem o uso da chantagem reles de comer e

morar1101. Ou seja, contrariamente ao desenrolar natural ansiado por Keynes – que não estava

de todo equivocado no seu vislumbrar, antes na sua crença de que o “pessimismo dos

revolucionários” estaria errado ao crer que não há salvação a não por ser “violentas

transformações”1102 –, o desenvolvimento das forças produtivas deixadas sob as atuais formas

de exploração não liberaram os homens para se desfazerem “de todo tipo de costumes sociais

e práticas econômicas que influem na distribuição da riqueza e dos prêmios e castigos

econômicos, por mais repugnantes e injustos que possam parecer em si, pelo fato de serem

tremendamente úteis para promover a acumulação do capital”1103. O espetáculo se aproveitaria

do que Debord identificou como uma constante da economia capitalista, “a baixa tendencial

do valor de uso”1104, para desenvolver uma nova forma de privação1105, que consiste na

fabricação ininterrupta de pseudonecessidades impostas pelo consumo. Isto é, quando a

“satisfação que a mercadoria abundante já não pode dar no uso começa a ser procurada no

reconhecimento de seu valor como mercadoria”1106: o uso da mercadoria bastando por si,

bastando a si1107 – não apenas invertendo, como anulando a dialética do duplo valor da

mercadoria, exposta por Marx em Para a crítica da economia política. Tais

pseudonecessidades, por mais que sejam supridas pelo consumo, implicam em uma

insatisfação que prossegue em constante aumento, infinitamente, como a acumulação no

espetáculo1108, porque a satisfação oferecida “não pára de conter em si a privação”1109 para

1096DEBORD, SdE, § 47.1097KURZ, O colapso da modernização, p. 25.1098DEBORD. op. cit., § 23.1099Ibidem,§ 40.1100Idem, ibidem.1101Ibidem, § 47.1102KEYNES, “As possibilidades econômicas de nossos netos”, p. 151.1103KEYNES, op. cit., p. 157.1104DEBORD. op. cit., § 45. Grifo do autor.1105Ibidem, § 47.1106Ibidem, § 67.1107Idem, ibidem.1108Ibidem, § 14.1109Ibidem, § 44. Grifo do autor.

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aquilo que promete sanar – mostra de que são criadas para, na verdade, atender às

necessidades de manutenção do reino da mercadoria1110, em substituição às necessidades

humanas, surgidas das relações livres entre as pessoas. Assim, a riqueza ilusória de que o

trabalhador corre atrás é uma ilusão que disfarça a penúria da qual ele realmente foge: “o

consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real,

e o espetáculo é sua manifestação geral”1111.

A versão mais humanizada e cativante dessa ilusão se dá na figura da vedete, “a

representação espetacular do homem vivo”1112, representação viva do valor de troca, que

personifica e difunde a “especialização do vivido aparente”, o ideal de uma vida aparente e

sem profundidade, livre para agir globalmente, “que deve compensar o estilhaçamento das

especializações de fato vividas”1113. Pode ser vista como a encarnação da corte barroca

incorporada ao ideal democrático e “pervertido sob o capitalismo, num esforço de popularizar

a imagem da vida galante como a desejável consumação da existência humana e a retribuição

final do 'sucesso': sufocante luxúria, exagerado dispêndio, extravagante desperdício, insensato

gosto pelas novidades e sensações, tudo isso organizado num carnaval de trivialidades, com o

único objetivo de manter em funcionamento uma economia em expansão”1114. Ela concentra

em si toda a trivialidade da mercadoria “ao concentrar em si a imagem de um papel

possível”1115, papel este aparentemente desvinculado da alienação do trabalho social, ou acima

dela. É possível encará-la como uma tentativa de retomar a aura perdida com a modernidade,

transferindo-a da obra-de-arte para a figura do artista, num processo de estetização da vida1116

(numa estetização política, se se encarar a vida em sociedade como imanentemente política).

A vedete pode se apresentar como pseudovedete do poder governamental – no caso da

pseudovedete do espetacular concentrado, ela soa antes como o ideal que a vedete do

espetacular difuso deseja alcançar –, ou como “vedete do consumo que se submete a

plebiscito como pseudopoder sobre o vivido”1117. No espetacular avançado, cada vedete existe

para representar um tipo variado de estilo de vida e de compreensão de sociedade1118, pronta

para ser seguida pelos demais indivíduos, sem o mesmo acesso que ela à totalidade do

consumo, e sem a mesma possibilidade, portanto, de acesso à aparente felicidade nesse

1110DEBORD, Sde, § 51.1111Ibidem, § 47.1112Ibidem, § 60.1113Idem, ibidem.1114MUMFORD. A cidade na história, p 409.1115DEBORD. op. cit., § 60.1116BENJAMIN. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 1961117DEBORD. op. cit., § 60.1118Idem, ibidem.

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consumo1119. Porém, as vedetes não são nem globais nem variadas1120, elas apenas “encarnam

o resultado inacessível do trabalho social, imitando subprodutos desse trabalho que são

magicamente transferidos acima dele como sua finalidade: o poder e as férias”1121. Ao surgir

no espetáculo como modelo de identificação, a vedete renuncia “a toda qualidade autônoma

para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas”1122. Como o ator

Gotanda, no romance Dance dance dance, de Haruki Murakami, quando fala da sua vida

parecer compor um quadro: “mas, pensando bem, sinto que na verdade não fiz escolhas.

Quando acordo no meio da noite e penso sobre isso, sinto um grande medo. Onde estará o ser

chamado eu? Onde estará a minha verdadeira essência? O que fiz até agora foi apenas encenar

cada papel que me davam. Eu nunca fiz escolhas”1123.

E seja com vedetes, seja com estilos de vida, seja com objetos, “a falsa escolha em

meio à abundância espetacular”1124 gera um ambiente de pseudoconflitos espetaculares, “luta

de qualidades fantasmáticas destinadas a açular a adesão à banalidade quantitativa”1125, nos

quais renascem arcaísmos que transfiguram em “superioridade ontológica fantástica a

vulgaridade dos lugares hierárquicos no consumo”1126. Um processo que o espetáculo

desenvolve desde o berço, com o treinamento de crianças sobre o consumo adulto, acerca de

questões que versam sobre a diferenciação marginal entre produtos equivalentes – Cadillacs e

Lincolns, por exemplo –, onde “o que importa (...) é a capacidade de desdenhar

continuamente os gostos dos outros”, sem que com isso o sujeito se torne significativamente

diferente desses mesmos outros: “foi sempre verdade, nas classes sociais dominadas pela

moda, que, para escapar ao perigo de ser deixado para trás por uma guinada da moda, é

necessária a habilidade para adotar facilmente as novas modas; para a pessoa não correr o

risco de uma condenação por ser diferente dos 'outros', cumpre que possa ser diferente – em

aparência, conversa e modo – de si mesma, tal como ela era no dia anterior”1127. Essa disputa é

visível, por exemplo, nos subúrbios das grandes cidades, região de “multidão de casas

uniformes, identificáveis, alinhadas de maneira inflexível, a distâncias uniformes, em estradas

uniformes, num deserto comunal desprovido de árvores, habitado por pessoas da mesma

classe, mesma renda, mesmo grupo de idade, assistindo aos mesmos programas de televisão,

1119DEBORD, SdE, § 61.1120Ibidem, § 60.1121Idem, ibidem. Grifo do autor.1122Ibidem, § 61.1123MURAKAMI. Dance, dance, dance, pp. 185-186.1124DEBORD, op. cit., § 62.1125Idem, ibidem.1126Idem, ibidem.1127RIESMAN, A multidão solitária, p. 139.

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comendo os mesmos alimentos pré-fabricados e sem gosto, guardados nas mesmas geladeiras,

conformando-se no aspecto externo como no interno, a um modelo comum, manufaturado na

metrópole”1128, em que se desenvolve uma vida marcada por “um ameno ritual de gastos

competitivos”1129: quem tem mais, quem possui o produto equivalente de preço mais elevado.

Tais pseudoconflitos, entretanto, não se dão apenas entre vizinhos abastados. Pode-se ver

disputas e rivalidades entre “comunidades”, bairros, cidades, regiões. Nada de novo, o

moderno que retoma o mais arcaico: “Roma foi o grande moinho de salsichas que

transformou outras culturas, em toda a sua variedade de forma e conteúdo, em seus próprios

elos uniformes. Onde os romanos deixaram certa medida de liberdade municipal, não se

destinava ela a promover a variedade, mas manter uma desconfiança e uma inveja de longa

data entre cidades vizinhas, para garantir, graças a sua própria divisão, o governo não dividido

de Roma”1130. Pode-se ver o mesmo também dentro das próprias casas: no caso da sociedade

contemporânea, o primeiro desses conflitos entre papéis ilusórios é a oposição espetacular

entre juventude e adultos: “são as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se

substituem sozinhas”1131, os indivíduos, jovens ou velhos, surgem apenas para representar o

papel que tais coisas deles exigem nas encenações de época. A possibilidade de unir

harmonicamente a aceitação dócil do que existe e a revolta puramente espetacular “mostra

que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância

econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento dessa matéria-prima”1132.

Esses pseudoconflitos, contudo, não deixam de ser reais: “cada mercadoria

específica luta por si mesma” e pretende se impor sobre todas as outras, em todas as partes,

como se fosse única; e o espetáculo é o canto que exalta não “os homens e suas armas, mas as

mercadorias e suas paixões”1133; “assim, por uma astúcia da razão mercantil, o que é

particular da mercadoria gasta-se no combate, ao passo que a forma-mercadoria caminha para

sua realização absoluta”1134 e “é nessa luta que cega que cada mercadoria, ao seguir sua

paixão, realiza de fato na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria,

que também é o devir-mercadoria do mundo”1135.

Porque o canto do espetáculo, canto humano de que ele se apropriou para louvar a

1128MUMFORD, A cidade na história, p. 525.1129Ibidem, p. 533.1130Ibidem, p. 230.1131DEBORD, SdE, § 62. Grifo do autor.1132Ibidem, § 59.1133Ibidem, § 66.1134Idem, ibidem. Grifo do autor.1135Idem, ibidem.

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mercadoria, não foi a única coisa tomada: ele também tomou o compasso desse canto. Não só

a linguagem se vê sob o jugo da linguagem espetacular como também o ritmo: o tempo é

dominado pelo tempo espetacular. Tal qual o processo utilizado com a linguagem, o tempo

também é apresentado à sociedade como sendo algo natural, um desenrolar causal, sem

alternativa de escolha, pois haveria uma única temporalidade possível. Uma vez senhora da

linguagem e do tempo, a mercadoria penetra a constituição da natureza humana (natureza que

não é a priori nem estática); aliada à expropriação da sua força, ela domina a construção do

mundo e da sua história. Dentro da apresentação feita por Debord, pode-se dizer que a

apropriação do tempo humano nada mais é que a conseqüência da apropriação da linguagem

pela mercadoria, uma vez que a história humana é constituída a partir da troca entre os

indivíduos, cabendo também ao tempo, substrato último da história, esse mesmo caráter

relacional. Se com a linguagem a mercadoria domina o homem a partir do momento em que

impede o reconhecimento do indivíduo por seus pares por meio do encontro1136 e de uma

comunicação prática feita a partir de uma linguagem extraída da produção da história1137, não

resta aos homens nada mais que encarar o tempo também de maneira exteriorizada, como um

fluxo que jorra desde fora, num ritmo constante e alheio – em uma palavra, reificado.

Dentro da concepção debordiana, pode-se encarar a dominação humana pela

mercadoria por intermédio da apropriação do tempo como uma marca a mais na reificação da

sociedade capitalista. Fortemente influenciada por Hegel e pela moderna experiência poética

francesa1138, o francês vê identidade entre homem e tempo: este seria o meio de

desenvolvimento do humano, a alienação necessária, “em que o sujeito se realiza ao se

perder, tornando-se outro para tornar-se a verdade de si mesmo”1139. Porém, para o sujeito

poder se realizar e ganhar autonomia para “tornar-se verdade de si mesmo”, não basta

somente ter direito ao tempo, antes ter direito ao uso qualitativo dele, o único que permite tal

desenvolvimento. E é a partir da relação homem-tempo, nessa relação de identidade e

alienação, que se abre a possibilidade para o homem de se inserir na história como sujeito

ativo1140 – o que não acontece necessariamente de maneira consciente. O caminho até essa

consciência é uma rota de formação e apropriação do homem da sua própria natureza

humana1141, que é também a apropriação do desenrolar de todo o universo1142. Apropriação que

1136DEBORD, SdE, § 217.1137Ibidem, § 133.1138AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 52.1139DEBORD, op. cit., § 161.1140Ibidem, § 163.1141Ibidem, § 126.1142Ibidem, § 125.

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não é um mero ato de paulatinamente obter o controle da natureza, mas de transformar-se

concomitantemente a isso: “antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a

Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu

metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força

natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e

pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua

própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao

modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”1143. Ou seja, utilizando-se

da sua natureza para se distanciar do meramente biológico, o homem se constitui em mais do

que um ser na história (na história natural, inclusive), mas em um ser histórico: “a história

sempre existiu, mas nem sempre sob a forma histórica”1144. E um ponto marcante desse

apropriar-se e transformar a natureza está ligado à forma de produção, cujo “desenvolvimento

das forças produtivas foi a história real inconsciente”1145 dos grupos humanos na sua relação

com o meio, com os conseqüentes reflexos que isso acarreta à sociedade, à sociabilidade e aos

homens. Daí a necessidade de reconstrução de uma genealogia desse apropriar-se do tempo

pela sociedade e pelos indivíduos, pois “a temporalização do homem, tal como se efetua pela

mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo”1146, ou seja, o mergulho do

homem no tempo, quando ele sai de um ponto atemporal que não conhece mais que o agora, o

presente, quando efetuado pela mediação de uma sociedade, pelo contato direto, pelo diálogo

com outras pessoas, é equivalente à humanização do tempo, visto que este passa a ter sua

passagem marcada por eventos humanos, históricos ou mitológicos, ficando, dessa forma,

vinculado não apenas aos movimentos dos astros, mas também aos dos homens. O que o

espetáculo atinge é justo essa mediação1147, influenciando essa relação recíproca entre

temporalização e humanização.

No capítulo V d'A sociedade do espetáculo, Debord faz uma breve história do

tempo, visando levantar elementos arcaicos que poderiam ter sido superados, mas foram

recuperados pelo espetáculo – e com isso apontar para possibilidades de superação dessa

organização social do tempo. De acordo com o autor, por muito tempo, a despeito dos

desenvolvimentos empreendidos nas técnicas de produção, as sociedades seguiram vivendo

conforme o ritmo das estações do ano, em uma organização cíclica do tempo, isso para a base

1143MARX, O capital, Livro I, Tomo I, p. 149.1144DEBORD, SdE, § 125.1145Ibidem, § 40. Grifo do autor.1146Ibidem, § 125.1147Ibidem, § 4.

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da sociedade, alheia ao movimento histórico de que as classes dominantes, com o desenrolar

dos séculos, passaram a ter consciência e a exercitá-lo1148. Com as revoluções burguesa e

industrial, no início da Idade Moderna, a sociedade toda teve a possibilidade, enfim, tanto de

se ver livre do jugo do tempo natural-terrestre quanto de estar ciente do movimento histórico

dos homens1149. Na sociedade do espetáculo poderia ser notada a retomada do que havia nas

sociedades mais antigas – revivendo muitos dos aspectos mais arcaicos da relação do homem

com o tempo – pelo moderno aparato técnico desenvolvido pela indústria1150, de forma a

tornar novamente oculto o movimento histórico, o momento histórico, a história real das

forças produtivas, o uso do tempo que esse momento permite. “'Houve história, mas já não

há'"1151: a burguesia congelou a história real desde que tomou o poder.

Na visão de Debord, a relação entre homem e tempo nunca foi harmônica no

curso da história: reiteradamente houve resistência em admitir a presença do tempo, da sua

passagem, da existência da história – desde quando os homens e as sociedades começaram a

dar-se conta dela. Uma sociedade que domina uma linguagem e uma técnica já seria produto

de sua própria história, e a consciência do tempo se resumiria ao presente: a sociedade presa a

um presente perpétuo, em que todo o conhecimento – limitado à memória dos mais antigos –

é conduzido pela lembrança dos que estão vivos, dos que estão presentes1152. “Nem a morte

nem a procriação são entendidas como lei do tempo”, que permanece imóvel, como um

espaço fechado1153: essa sociedade é muito restrita na sua abrangência da compreensão do

mundo e da ação sobre ele. A percepção do tempo como um presente perpétuo e imóvel nessa

sociedade não implica que ela não aja sobre seu meio, que seja estacionária, apenas que não

se dá conta do seu agir e da sua história.

Nas sociedades mais complexas, quando tomam consciência do tempo e de sua

passagem, sua reação consiste, antes, na negação desse processo, pois o que vêem no tempo é

o que volta, não o que passa: trata-se do modelo do tempo cíclico, o qual é baseado na

experiência imediata da natureza – o modelo de organização temporal das sociedades ditas

estáticas1154. Dentre os povos nômades, o tempo cíclico é dominante, pois as condições

previamente vividas por esses povos retornam reiteradamente, a cada momento de sua

passagem pelo seu trajeto. Debord, seguindo Hegel, aponta que “'a errância dos nômades é

1148DEBORD, SdE, § 128.1149Ibidem, § 141.1150Ibidem, § 23.1151Ibidem, § 143.1152Ibidem, § 126.1153Idem, ibidem.1154Idem, ibidem.

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apenas formal, porque está limitada a espaços uniformes'”1155. Nesse espaço limitado em que

as condições se repetem, os povos nômades acabam por percorrer o tempo no seu vagar pelo

espaço. O limite do espaço e o limite do tempo se entrecruzam no reencontro periódico de

determinadas condições em determinadas paisagens, servindo cada termo de limite ao

outro1156, porém, já dando aos homens uma maior consciência do espaço, do tempo e do

mundo que percorrem – limitados, mas não mais fechados como no início –, cujo intervalo

necessário para percorrer essas fronteiras dá a medida desse tempo – não mais pontual, e que

por isso pode retornar. Ao se fixar em um local, “o retorno temporal a lugares semelhantes

passa a ser o puro retorno do tempo em um mesmo lugar”1157: agora é o tempo que retorna à

sociedade, e não mais a sociedade que caminha junto ao tempo. O tempo ganha autonomia

frente ao espaço e ao percorrer dos homens, ficando vinculado apenas aos ciclos da natureza.

Aquele espaço que se repetia junto a certo intervalo de tempo passa a ser um intervalo de

tempo que exige a repetição de uma série de gestos num dado espaço: “a passagem do

nomadismo pastoral à agricultura sedentária é o fim da liberdade preguiçosa e sem conteúdo,

o início do labor”1158. A dominação da sociedade pelo ritmo das estações, ditada pelo modo de

produção agrária, “é a base do tempo cíclico plenamente constituído”, em que a eternidade lhe

é interior1159: o retorno do mesmo é a garantia de um tempo que passa e que volta, num

perpétuo recomeçar que nunca avança além do que já foi – nem vai além deste mundo. Nesse

contexto, emerge a figura do mito, construção unitária do pensamento homologadora de uma

ordem social já dada, que a partir de então fica justificada dentro da disposição de uma ordem

cósmica, dando a toda essa sociedade o caráter unitário1160. No afã de manter certo

ordenamento, um equilíbrio constante na “sua oposição ao ambiente natural e humano, e suas

oposições internas”1161, certas sociedades tentam desacelerar ao máximo sua história – as

chamadas “sociedades frias”1162 –, de modo a garantir a perpetuação do tempo cíclico “em

estado puro”, em que ele se apresenta como um tempo sem conflito1163, de harmonia

aparentemente perfeita. Porém, já nessa infância do tempo, o conflito estaria instalado1164, e o

medo posto para aqueles que vivem em tais sociedades, com a ruptura desse equilíbrio e

1155DEBORD, SdE, § 127.1156ARANTES, Hegel – a ordem do tempo, capítulo 1.1157DEBORD, op. cit., § 127.1158Idem, ibidem.1159Idem, ibidem.1160Idem, ibidem.1161Ibidem, § 130.1162Idem, ibidem.1163Ibidem, § 129.1164Idem, ibidem.

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conseqüente irrupção do conflito, não é o de cair na história que suga e perturba, e sim o de

“recair na animalidade sem forma”1165. Daí o conformismo absoluto das práticas sociais, a

estruturação definitiva da enorme gama de instituições existente para garantir essa paralisia da

história: “aqui, para permanecerem humanos, os homens têm de continuar os mesmos”1166. As

estruturas que deram origem a essas instituições, contudo, não foram dadas a priori, são

construções tão históricas quanto as próprias instituições criadas para barrar a história. E uma

vez eclodido o conflito que o tempo guarda em si com a emergência do tempo histórico – por

mais que tenha sido evitado como fator alienígena e indesejado –, ele traz de volta “a

inquietação negativa do homem, que estivera na origem de todo o desenvolvimento que

adormecera”1167. Esse tempo histórico, todavia, não vem para todos. Na base da vida social, a

organização coletiva do tempo segue o modelo estático. São os senhores de uma sociedade

dividida em classes que podem, a partir do modelo de organização do trabalho social imposto

para toda a sociedade, possuir “só para si o tempo irreversível do ser vivo”1168. Essa

organização do trabalho é também a organização do tempo, a apropriação da mais-valia do

trabalho é acompanhada da apropriação da mais-valia temporal, e essas mais-valias se

concentram no círculo do poder, que se destaca da base da sociedade – cujas massas

camponesas seguirão conhecendo apenas o tempo cíclico1169. Esse tempo de superfície,

comenta Debord, é o tempo da aventura e da guerra, no qual os senhores da sociedade cíclica

gozam dos acontecimentos vividos enquanto realizam sua história pessoal – que faz brotar

novamente a identidade negativa homem-tempo –, “e é também o tempo que aparece no

choque das comunidades estrangeiras, no desarranjo da ordem imutável da sociedade”1170, e

que, uma vez desarranjada pela história, torna irreversível esse movimento do tempo que não

mais retorna.

O processo que se aprofunda com o nascimento do poder político é o de

distanciamento do tempo dos ciclos naturais: “a partir de então a sucessão das gerações

escapa da esfera do puro movimento cíclico natural para tornar-se acontecimento orientado,

sucessão de poderes”1171. Na superfície da sociedade já não são mais as estações ou os anos

que estabelecem os ciclos, mas as dinastias: são elas a primeira forma de medir o tempo

1165DEBORD, SdE, § 130.1166Ibidem, § 130.1167Ibidem, § 128.1168Idem, ibidem.1169Ibidem, § 132.1170Ibidem, § 128.1171Ibidem, § 131.

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irreversível1172. O estabelecimento dessa nova forma de relação com o tempo, marcada pela

nova forma de relação com a história, e estabelecida concomitante ao surgimento das cidades

e do poder político, precisou de uma nova ferramenta para poder garantir sua hegemonia, e a

encontrou na escrita1173. O desenvolvimento dessa nova linguagem, que prescinde da

mediação direta entre as consciências, teria ocorrido num momento em que o poder separado

se viu independente do seu papel de mediação com a sociedade1174. Sua função, inicialmente,

é administrativa: uma memória impessoal que garante a independência geral do poder

separado com relação à sociedade que domina1175: “nas transações diárias, a mesma

necessidade de anotações e sinais permanentes era ainda mais evidente [que para a

transmissão da cultura]: para operar à distância, por meio de agentes e prepostos, para dar

ordens e fazer contratos, eram necessários alguns artifícios extrapessoais”1176. A novidade

inaugurada por essa linguagem é o aparecimento de “uma consciência que já não é sustentada

e transmitida na relação imediata dos vivos”1177, o que favorece não só a administração estatal,

como também deixa para a posteridade o sentido da história, por intermédio das cronologias.

Nesta perspectiva, “a crônica é a expressão do tempo irreversível do poder”1178 e o

instrumento que reforça a progressão desse tempo no sentido estabelecido. “Por meio de tais

documentos, os governantes da cidade viviam uma múltipla vida: primeiro na ação, depois em

monumentos e inscrições, e ainda outra vez no efeito dos acontecimentos documentados sobre

o espírito dos povos posteriores, fornecendo-lhes modelos para imitação, advertências de

perigo, incentivos de realização. Viver pelo documento e para o documento tornou-se um dos

grandes estigmas da existência urbana: na verdade, a vida tal como era registrada [...] muitas

vezes tendia a se tornar mais importante que a vida tal como era vivida”1179. Todavia, a

história dos senhores, que se desenrola na superfície da sociedade sob o tempo irreversível,

acaba ganhando significado apenas na medida em que se vincula à base social que sustenta os

possuidores da história. Nas sociedades despóticas, nos impérios do Oriente1180, sua história se

resume, para nós, conforme Debord, à história das religiões: a história da superfície é a

história de como os detentores da propriedade privada da história, sob a proteção do mito,

asseguravam miticamente o tempo cíclico para a base da sociedade, quando eles próprios

1172DEBORD, SdE, § 131.1173MUMFORD, A cidade na história, p. 112.1174DEBORD, op. cit., § 131.1175Idem, ibidem.1176MUMFORD, op. cit., p. 112.1177DEBORD, op. cit., § 131.1178Ibidem, § 132.1179MUMFORD, op. cit., p. 113.1180DEBORD, op. cit., § 132.

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conseguiam com isso relativa libertação: pela posse ilusória da história, com o rearranjo

imaginário do passado1181. Essa “seca cronologia sem explicação do poder divinizado”, tida

como a “execução terrestre dos mandamentos divinos”1182 só pôde ser superada quando a

participação na história real passou a ser vivida por grupos maiores, tornando-se assim

história consciente.

“Participação na história real” significa não somente sair do tempo cíclico e ser

arrastado pelo tempo irreversível, tendo consciência de que o tempo passa, mas também

experimentar ativamente esse tempo, experimentar “a riqueza qualitativa dos acontecimentos

como sua atividade” e da sua época1183, praticada em conjunto com aqueles outros que se

reconhecem como detentores de um “presente singular”. A comunicação resultante dessa

atividade prática inserida em um tempo irreversível exige uma nova linguagem: “a linguagem

geral da comunicação histórica”1184: sujeitos ativos da história, eles se descobrem sujeitos à

ação do tempo irreversível: ao memorável e à ameaça do esquecimento; “Heródoto de

Halicarnasso aqui apresenta os resultados de sua pesquisa, a fim de que o tempo não apague

os trabalhos dos homens...”1185.

É na Grécia que surge, com a democracia dos senhores da sociedade, o momento

em que se compreende e se discute o poder e sua mudança, o que implica compreender e

discutir sobre a história1186. É nesse período que Debord vai em busca da sua “referência

normativa da crítica do presente”1187, isto é, a da linguagem comum, da linguagem prática da

comunicação histórica – segundo Aquino. Ainda conforme este, “Debord concebe o uso

histórico da linguagem pelos senhores gregos, como linguagem dialogam e decisória

(portanto, prática), precisamente nos termos de uma 'linguagem geral da comunicação

histórica'. A consciência histórica, como 'história consciente' da passagem do tempo, significa

para ele – considerando a experiência democrática dos senhores gregos – a assunção prática

de sua própria época enquanto sua atividade, assunção que é indissociável da participação

dialogal, da linguagem compartilhada e disputada que quer, e pode, não apenas se expressar,

mas decidir e realizar. É essa linguagem dialogal que se faz 'comunicação histórica' no duplo

e inseparável sentido de uma possessão prática da sua própria época, enquanto jogo e gozo da

1181DEBORD, SdE, § 132. Grifo do autor.1182Ibidem, § 133.1183Idem, ibidem.1184Idem, ibidem.1185HERÓDOTO apud DEBORD, SdE, § 133.1186DEBORD, op. cit., § 134.1187AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 41.

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passagem do tempo, uso da destruição que ele provoca e da criação que ele possibilita”1188.

As comunidades gregas, contudo, se por um lado democratizaram o poder a um número maior

de pessoas, saindo dos salões palacianos, por outro não conseguiram superar as cisões na sua

sociedade: a despeito da viva vida social, a produção seguia estática na classe servil, de modo

que “só vive quem não trabalha”1189. Entre as cidades-estado, esse mesmo princípio de

separação impediu sua união não apenas para enfrentar a invasão, como para a unificação dos

diversos calendários: foi esta Grécia que sonhara a história universal. Nela, “o tempo histórico

tornou-se consciente, mas ainda não consciente de si próprio”1190. A queda das suas condições

de existência, que permitiram o florescer grego, teria implicado na “regressão do pensamento

histórico ocidental”, não a ponto de reconstituir as antigas organizações míticas. No embate

entre os povos do mediterrâneo, na ascensão e queda do Estado Romano, surgiram as

religiões monoteístas semi-históricas, que em um novo rearranjo entre mito e história1191 “se

tornavam fatores fundamentais da nova consciência do tempo e da nova armadura do poder

separado”1192.

Fundadas numa época ainda dependente do tempo cíclico na produção, mas

profundamente marcado pelo tempo irreversível dos enfrentamentos entre os povos, que já

não eram mais acontecimentos restritos à superfície da sociedade, as religiões procedentes do

judaísmo trataram de democratizar o tempo irreversível a todos. Contudo, o fizeram no

ilusório, ao orientarem esse tempo para um único acontecimento final: “o reino de Deus está

próximo”. Nascidas do solo da história, estabelecidas de um ponto de partida qualitativo – o

nascimento de Cristo, a fuga de Maomé –, as religiões semi-históricas negam a história ao

inverter o sentido do tempo, pondo-o em contagem regressiva para aceder ao outro mundo, o

mundo da verdade, da eternidade – que sai do tempo cíclico para se pôr “do outro lado do

tempo irreversível, como puro elemento pontual em que o tempo cíclico entrou e se

aboliu”1193. A eternidade aqui não é mais o tempo que não passa porque retorna, como a

eternidade no tempo cíclico; a eternidade é o tempo que ultrapassou o tempo que passa e por

isso deixou de passar. Como diz Bossuet, citado por Debord: “'por meio do tempo que passa,

entramos na eternidade que não passa'”1194. Na Idade Média européia, esse arranjo entre mito e

história construiu um mundo mítico inacabado – pois a perfeição não se encontrava mais

1188AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 53. Grifos do autor.1189DEBORD, SdE., § 134.1190Idem, ibidem.1191Ibidem, § 136.1192Ibidem, § 135.1193Ibidem, § 136. Grifo do autor.1194Ibidem, § 136.

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dentro dele1195, como nas sociedades míticas arcaicas. Ainda assim, foi “o último mundo em

que a segurança do mito ainda equilibrava a história”1196. Entretanto, a própria história tratou

de corroer o tempo cíclico que servia de base ao pensamento mítico1197, tanto na base da

sociedade quanto na sua superfície. Na base, ao conceder a todos certa temporalidade

irreversível, na sucessão das idades da vida, e na consideração da vida como uma viagem,

como a passagem por um mundo no qual o sentido está alhures: “o peregrino é o homem que

sai desse tempo cíclico para ser efetivamente o viajante que cada um de nós prenuncia”1198. Na

superfície, nas esferas do poder, que é onde a história pessoal pode se realizar, o tempo

irreversível é partilhado com base na confiança armada, em um mundo nascido da “'estrutura

organizacional do exército conquistador tal como se desenvolveu durante a conquista' com as

'forças produtivas encontradas no país conquistado' (A ideologia alemã)”, sob a linguagem

religiosa1199. Em meio a essa diversidade de vida histórica possível, o tempo irreversível da

burguesia conduzia inconscientemente a sociedade profunda1200, a burguesia se aproveitava da

“fragmentação feudal de poderes equilibrados”1201 para desenvolver seu poder econômico

autônomo1202 “na produção de mercadorias, na fundação e expansão de cidades, na descoberta

comercial da Terra – a experimentação que destrói para sempre toda a organização mítica do

cosmos”1203. Quando as Cruzadas, a grande empreitada histórica oficial do mundo feudal,

fracassaram, já havia uma nova organização do tempo e da história sendo germinada.

Até que a burguesia começasse de fato o processo de dominação total do tempo,

por intermédio das monarquias absolutistas e seu monopólio também sobre a vida

histórica1204, no intervalo entre a Idade Média e o assentamento dessa nova configuração

estatal na Europa, Debord identifica no florescimento do Renascimento – especialmente na

península itálica – mais do que a negação da ordem imediatamente anterior: mas o gozo da

passagem do tempo trazido pela posse da vida histórica que, inspirada na Antigüidade,

rompeu feliz com a eternidade1205. O Renascimento teria sido a consciência do quanto esse

tempo irreversível tem de fugidio e como todo o momento inscrito na história é arrastado com

esse tempo – sem retorno e sem eternidade. Isso tanto para os Estados – e a obra de

1195DEBORD, SdE, § 137.1196Ibidem, § 138.1197Ibidem, § 137.1198Idem, ibidem.1199Idem, ibidem.1200Idem, ibidem.1201Ibidem, § 87.1202Idem, ibidem.1203Ibidem, § 137.1204Ibidem, § 140.1205Ibidem, § 139.

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Maquiavel poderia ser vista como um alerta sobre o tempo – quanto para os homens, como

canta Lourenzo de Médicis: “'como é bela a juventude – que passa tão depressa'”1206. E

deveras depressa passou. A vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas1207, foi

passageira, atropelada pelos Estados absolutistas e o tempo não do gozo e das festas, mas o do

trabalho1208. De acordo com Aquino, apesar do elogio às experiências democráticas nas

comunidades da Grécia clássica e da península itálica renascentista, elas não se constituem

“em quaisquer formas de modelos a partir dos quais ele faz a crítica do presente. Menos ainda

se constituem em modelos de 'comunidades' ligadas à tradição e às linguagens comuns

tradicionais: bem pelo contrário, são formas de saída da tradição e de experimentação da

história, contudo limitadas pelas próprias condições excepcionais e locais que as

possibilitaram, condições estas marcadas por uma essencial separação”1209. Haveria, ali,

possibilidades abertas e não concretizadas, por conta do domínio da concepção burguesa de

mundo.

A ascensão da burguesia, ainda que não como classe detentora do poder do

Estado, não foi a primeira vez que o tempo do trabalho se pôs como tempo predominante de

toda a sociedade. Entretanto, foi a primeira vez que esse tempo esteve liberado do tempo

cíclico e pôde se inserir no tempo irreversível, no tempo histórico: com a burguesia o trabalho

foi admitido como a força motriz das transformações históricas1210. Pela primeira vez na

história o trabalho foi considerado como um valor: um modo da burguesia, que se identificava

com esse trabalho, se auto-valorizar, enquanto desbancava privilégios que não fossem dele

oriundos. A vida social ficava restrita à pobreza ornamental da corte1211, sendo que, de acordo

com Mumford, “a rotina diária do príncipe e do cortesão era comparável à de um operário

numa linha de montagem de automóveis: todos os seus detalhes eram traçados e fixos, tanto

para o soberano como para o seu séquito (...). Ser 'visto', ser 'reconhecido', ser 'aceito' eram os

supremos deveres sociais, aliás, obras de toda uma existência (...). [Assim], como em tantos

outros setores da vida, a corte barroca antecipava, nesse passo, o ritual e a reação psíquica da

metrópole do século XX. Opressão semelhante; tédio semelhante; igual tentativa de buscar

refúgio nas 'distrações' da opressão tirânica, que se transformara em rotina, e da rotina, que se

tornara uma opressão insuportável”1212. Enquanto isso, a burguesia teria imposto à sociedade

1206DEBORD, SdE, § 139.1207Idem, ibidem.1208Ibidem, § 140.1209AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 57.1210DEBORD, op. cit., § 140.1211Idem, ibidem.1212MUMFORD, A cidade na história, pp. 408-409.

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“a vitória do tempo profundamente histórico, porque é o tempo da produção econômica que

transforma a sociedade de modo permanente e absoluto”1213: “a indústria moderna nunca

encara nem trata a forma existente de um processo de produção como definitiva. Sua base

técnica é, por isso, revolucionária, enquanto a de todos os modos de produção anteriores era

essencialmente conservadora. Por meio da maquinaria, de processos químicos e de outros

métodos, ela revoluciona de forma contínua, com a base técnica da produção, as funções dos

trabalhadores e as combinações sociais do processo de produção. Com isso, ela revoluciona

de modo igualmente constante a divisão do trabalho no interior da sociedade e lança sem

cessar massas de capital e massas de trabalhadores de um ramo da produção para outro”1214.

“Tudo o que era absoluto torna-se histórico”1215. A preocupação com a produtividade, com o

progresso do trabalho, com a acumulação do capital, fez emergir uma nova lógica, tanto nas

relações de trabalho e produção, quanto na maneira de encarar a ocupação do tempo, pelos

indivíduos e por toda a sociedade, que a partir de então passa a ter outra base temporal1216 – a

ponto de anular as forças ligadas ao movimento da tradição de esboçarem um freio a esse

movimento1217 –, e vê alterada sobremaneira o sentido da história: deixa de aparecer como “o

movimento apenas dos indivíduos da classe dominante, escrita como história factual”1218, e

passa a ser compreendida como um movimento geral que arrasta toda uma época, sacrificando

os indivíduos1219. Finalmente se percebe, com a economia política, essa base que por tanto

tempo esteve inconsciente na história: o desenvolvimento das forças produtivas. Todavia, a

história profunda não chega à superfície1220, e deve permanecer inconsciente: a economia

mercantil a democratizou apenas como uma nova fatalidade indomável, para além do alcance,

da intervenção, do controle humano1221. Pois o triunfo completo do tempo irreversível que

veio com a burguesia, explica Debord, foi a metamorfose em tempo das coisas: o processo

que garantiu a libertação do trabalho dos ciclos da natureza foi o trabalho que produziu

objetos em série, conforme as leis da mercadoria1222. Para tal triunfo, o primeiro produto a ser

democratizado foi a própria história. A Revolução Francesa, com a tomada do poder pela

burguesia com o apoio do povo, e a inauguração de um novo calendário, marcando uma nova

1213DEBORD, SdE, § 141. Grifo do autor.1214MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 89.1215DEBORD, op. cit., § 73.1216Ibidem, § 140.1217Ibidem, § 141.1218Idem, ibidem.1219Idem, ibidem.1220Ibidem, § 142.1221Ibidem, § 141.1222Ibidem, § 142. Grifo do autor.

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época, poderia ser a coroação dessa democratização. Quando a vontade real da sociedade da

mercadoria vestida à romana anteviu o risco da erupção da história inconsciente, satisfeita de

já haver conseguido o que necessitava para seguir progredindo, isto é, derrubar um estado

cuja arquitetura um dia fora útil, mas então já engessava seu pleno desenvolvimento,

impedindo a liberdade de comércio – ou, como dissera Marx, “de formas de desenvolvimento

essa relações [jurídicas] se transformam em seus grilhões”1223 –, e que a passividade que antes

ela abalara para derrubar o antigo reinado, novamente era necessária para ela reinar, não

hesitou em reatar com o cristianismo e com “seu culto do homem abstrato... o complemento

religioso mais conveniente (O capital)”1224 para seus propósitos. Esse acordo também se

expressou no tempo: a burguesia aceitou abdicar do seu calendário – que, como os das

religiões semi-históricas começa com um evento qualitativo –, “e seu tempo irreversível volta

a moldar-se na era cristã, cuja sucessão ele prossegue”1225, aguardando pelo dia do Juízo Final.

E enquanto os homens esperam, a mercadoria avança. O que resta da história democratizada,

por fim, é a história reificada: história do capital que “sustenta-se e multiplica-se nela [na

circulação], retorna aumentado dela e recomeça do mesmo ciclo sempre de novo”1226,

“história do movimento abstrato das coisas, que domina todo uso qualitativo da vida”1227.

Assim, Debord denuncia: se anteriormente o tempo cíclico sustentava uma parte

do tempo histórico vivido por indivíduos e grupos, agora o tempo irreversível da produção

tende a eliminar socialmente esse tempo vivido1228. Ou seja, “a burguesia mostrou e impôs à

sociedade um tempo histórico irreversível, mas lhe recusa o uso desse tempo”1229, ao negar

aos homens a possibilidade da vida histórica, restringindo a história à história econômica e ao

uso do tempo que ela impõe: qualquer outro emprego irreversível do tempo deve ser

rechaçado como ameaça1230. A essa história oficial – reificada –, tida como a única possível

pela classe dominante, deve-se atrelar seu destino como forma de garantir sua posição na

sociedade: daí a importância vital da manutenção de uma nova imobilidade na história;

“houve história, mas já não há”1231. Ao menos não como a de 1789. A história que agora existe

é a do desenvolvimento das forças produtivas, a do lançamento de novos produtos, da

abertura de mercados, da expansão do capitalismo – em que o expropriado não é mais “o

1223MARX, Para a crítica da economia política, p. 52.1224DEBORD, SdE, § 144.1225Idem, ibidem.1226MARX, O Capital, Livro I, Tomo I, p. 131.1227DEBORD, op. cit., § 142.1228Idem, ibidem.1229Ibidem, § 143. Grifo do autor.1230Idem, ibidem.1231Idem, ibidem.

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trabalhador economicamente autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores”,

conseqüência da centralização dos capitais, uma das “leis imanentes da própria produção

capitalista”1232 –, da unificação, “do entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado

mundial”1233. Unificação dos mercados que é também a unificação mundial do tempo

irreversível da mercadoria, que reuniu o mundo inteiro para se desenvolver sob o mesmo

compasso, dando à história universal – outrora sonhada pela Grécia1234 – uma nova

realidade1235: em todo lugar é o mesmo “abandono da história que se erige sobre a base do

tempo histórico”1236, a mesma “recusa intra-histórica da história”1237 – tal qual as religiões

semi-históricas, de que por um instante a burguesia pensou em se livrar1238 –, porque por todo

mundo o tempo reinante é o mesmo tempo, indiferente às especificidades locais, indiferente

aos homens. É o tempo vazio e homogêneo, o tempo da produção, o tempo da mercadoria, o

tempo da ideologia, o tempo do espetáculo, que se afirma oficialmente como “o tempo geral

da sociedade”, quando na verdade se trata de “um mero tempo particular”, atendendo a

interesses particulares1239.

O tempo que se impôs com a produção em série de mercadorias é ele próprio uma

mercadoria: o tempo-mercadoria, uma acumulação infinita de intervalos equivalentes e

intercambiáveis1240, característica notada por Marx como fundamental do processo de

abstração do trabalho sob o sistema de produção de mercadorias, em que o trabalho é

objetivado na mercadoria como valor de troca, como uma medida de “tempo de trabalho

coagulado”1241, desprovida de qualquer qualidade, mero trabalho simples (sob uma potência

mais ou menos elevada) despendido em determinado intervalo de tempo1242. Esse tempo da

produção é “a abstração do tempo irreversível” e, quantificado, “todos os seus segmentos

devem provar pelo cronômetro sua mera igualdade”1243. Dentro dessa realidade de dominação

do tempo-mercadoria, assim como o trabalho medido pelo tempo “aparece não como trabalho

de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como

meros órgãos do trabalho”1244, o tempo não apenas deixa de ser o campo para o 1232MARX, O capital, Livro I, Tomo II, p. 293.1233Idem, Ibidem.1234DEBORD, SdE, § 134.1235Ibidem, § 145.1236Ibidem, § 158.1237Ibidem, § 145.1238Ibidem, § 144.1239Ibidem, § 146.1240Ibidem, § 147.1241MARX, Para a crítica da economia política, p. 59.1242Ibidem, p. 60.1243DEBORD, op. cit., § 147.1244MARX, Para a crítica da economia política, p. 60.

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desenvolvimento humano, como inverte completamente as posições: “'o tempo é tudo, o

homem não é nada: no máximo, ele é a carcaça do tempo' (Miséria da filosofia)”. Em um

primeiro momento de dominação social desse tempo, o sistema precisou expropriar

violentamente o tempo dos produtores e aplicá-lo na produção, para a acumulação da mais-

valia temporal, que revertia, no fim, em mais-valia monetária1245. Dado certo estágio, já sob o

espetáculo desenvolvido1246, esse tempo da produção pôde voltar aos próprios produtores

expropriados – agora também consumidores – “sob o aspecto complementar de um tempo

consumível”1247, o qual eles são livres para usufruir1248 onde preferirem, assim como são livres

para decidir onde empregar seu tempo de trabalho – desde que trabalhem, desde que

consumam, ou seja, desde que esse tempo seja tempo-mercadoria. Como comenta Thompson,

“na sociedade capitalista madura, todo o tempo deve ser consumido, negociado, utilizado”1249,

“o tempo agora é moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta”1250. O tempo consumível, em

que o produtor do tempo-mercadoria é também o consumidor desse tempo, garante que todo

trabalho de uma sociedade se torne mercadoria total. Ele exige, porém, a permanente

manutenção desse ciclo1251 para não entrar em colapso: a produção do tempo-mercadoria

precisa que ele seja integralmente consumido pela sociedade: o tempo consumível retorna à

vida quotidiana como um tempo pseudocíclico1252.

O tempo pseudocíclico é a organização do tempo transformado pela indústria1253,

um tempo que se baseia na moderna produção de mercadorias, afim à linha de produção,

“recortado em fragmentos abstratos iguais”1254, em que todas as partes são equivalentes e

intercambiáveis1255. É a versão micro do “caráter fundamentalmente tautológico do

espetáculo”1256, repetição, reprodução e acúmulo quantitativo infinito de si próprio, em que os

meios são ao mesmo tempo o fim1257: concomitante a ser uma mercadoria consumível,

mercadoria total – que reúne em si tudo o que na sociedade pré-industrial era unitário e foi

fragmentado com a ascensão da modernidade1258 –, o tempo serve também de matéria-prima

1245DEBORD, SdE, § 159.1246Ibidem, § 153.1247Ibidem, § 148.1248Ibidem, § 159.1249THOMPSON, Costumes em comum, p. 298.1250Ibidem, p. 272.1251DEBORD, op. cit., § 42.1252Ibidem, § 148.1253Ibidem, § 151.1254Ibidem, § 145.1255Ibidem, § 149.1256Ibidem, § 13.1257Idem, ibidem.1258Ibidem, § 151.

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para novos produtos, os quais, ao serem consumidos, reforçarão os “empregos socialmente

organizados do tempo”1259, fechando e reforçando esse ciclo necessário ao sistema espetacular,

de um mesmo tempo que retorna – apesar da base irreversível do tempo da sociedade. No seu

retorno sob o disfarce de tempo consumível1260, o tempo pseudocíclico não é outra coisa senão

o tempo do consumo da sobrevivência econômica moderna, o tempo da sobrevivência

ampliada1261, isto é, o retorno ampliado do mesmo. “Porque há um desenvolvimento linear da

produção capitalista, manifesto de um modo reificado na ampliação e no aumento

quantitativos das mercadorias, e que, na superfície do consumo, reitera o retorno do mesmo –

da mesma forma-mercadoria, ainda que sobre outros valores de uso – cuja mesmidade é já

dada na produção, na lógica cíclica do próprio salariato, dos gestos mecânicos e repetitivos do

trabalho”1262, como salienta Aquino, e que se expandem para todas as esferas da vida. O

tempo-mercadoria é o fruto que se extrai do trabalho-mercadoria, de onde decorre a

necessidade de manutenção do trabalho alienado e o dispêndio da força e do tempo humano

nele, a despeito das possibilidades técnicas já permitirem a libertação dos homens desse

fardo1263. Quando ocorre a inserção desse mesmo tempo também no circuito do consumo

alienado – naquilo que Debord chamou de “negação total do homem”1264 –, o vivido

quotidiano fica privado de qualquer decisão relevante em toda sua extensão, num esquema em

que a vida sob o espetacular concentrado pode ser encarada como uma versão mal burilada

não admitida: a começar pelo humanismo da mercadoria, que, preocupado com os lazeres e a

humanidade do trabalhador, trata de direcionar seu tempo “livre”1265, em que ele é livre para

escolher entre falsas opções – falsas porque já foram pré-determinadas pela produção1266 e são

diferentes apenas no superficial1267; “o tamanho da massa de mercadorias criadas pela

produção capitalista é determinada pela escala dessa produção e pela necessidade constante de

ampliação dessa última, e não por um círculo predestinado de procura e oferta, de

necessidades a serem satisfeitas”1268. Depois, porque submetido agora não mais à ordem dos

ciclos naturais, “mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado”, o tempo

pseudocíclico acaba por naturalmente se reencontrar com o antigo tempo cíclico das

1259DEBORD, SdE, § 1511260Ibidem, § 149.1261Ibidem, § 150.1262AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p 63.1263DEBORD, op. cit., § 45.1264Ibidem, § 43.1265Idem, ibidem.1266Ibidem, § 6.1267Ibidem, § 66.1268MARX, O Capital, livro II, p. 57.

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sociedades tradicionais, pré-industriais1269, cujos resquícios o tempo irreversível da burguesia

uma vez pôde extirpar de todo o globo1270. Pôde, mas não o fez; e agora faz uso deles: além do

tempo, o espetáculo faz questão de retomar muito da organização das sociedades tradicionais.

Com o suporte do urbanismo, as cidades – “o espaço da história”1271 – são destruídas e

transformadas em pseudocampos, afins ao tempo pseudocíclico, recriando um novo

campesinato artificial, “pelas condições de hábitat e de controle espetacular”1272. Do mesmo

modo que a sobrevivência ampliada não apela à chantagem reles de ameaçar diretamente com

a fome caso não se submeta – antes promete o paraíso dos últimos gadgets1273 –, o tempo

pseudocíclico tampouco se restringe a simplesmente repetir os ciclos da natureza: ele “cria

novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o descanso semanais, a volta dos

períodos de férias”1274. Na verdade, para a produção, a parte irredutivelmente biológica do

homem que continua presente no trabalho – a dependência do ciclo da vigília e do sono, a

evidência do tempo irreversível do passar de uma vida – se torna acessória1275, relevada nas

preocupações sobre o aumento da produtividade, onde é encarada como um limitador natural

da máquina1276, quando não combatida, visível nos bombardeios publicitários, onde “é

nitidamente proibido envelhecer”1277, e nos quais o indivíduo é culpabilizado pela publicidade

do seguro de vida de morrer sem ter garantido a regulação do sistema1278: é o american way of

death1279. A proibição de envelhecer, a tentativa de manter um “capital-juventude”1280 – no

fundo prova da negação do tempo irreversível humano por parte do espetáculo, um tempo que

passa mas não deveria, ou que passou sem que tivesse sido aproveitado, desfrutado, gozado

nessa passagem –, se insere na dinâmica do sistema na medida em que o tempo

pseudocíclico, enquanto “tempo destinado ao atraso da vida quotidiana concreta – e à

manutenção desse atraso –”1281, precisa disfarçar sua real natureza, de modo a satisfazer

possíveis aspirações dos homens a uma vida qualitativamente rica – ou que assim se pareça.

Esse tempo surge então carregado de pseudovalorizações, numa seqüência de momentos

1269DEBORD, SdE, § 150.1270Ibidem, § 141.1271Ibidem, § 176.1272Ibidem, § 177.1273Ibidem, § 47.1274Ibidem, § 150.1275Ibidem, § 160.1276MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 29.1277DEBORD, op. cit., § 160.1278Idem, ibidem.1279Idem, ibidem. Grifo do autor.1280Idem, ibidem.1281Ibidem, § 149.

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falsamente individualizados1282. Momentos que vão da escolha dos nomes dos filhos1283 ao

consumo de produtos banais oferecidos pelas vedetes do espetáculo1284, até momentos de

efusão coletiva – pois o espetáculo se mostra essencialmente como a época do “giro acelerado

de múltiplas festividades”1285. Entretanto, na realidade, trata-se de uma época sem festas: sem

comunidade e sem luxo, o que resta são pseudofestas vulgarizadas do que havia no tempo

cíclico: nada mais que a paródia de diálogo e de doação, que acrescidas ao gasto econômico

excedente apenas geram frustração1286 - como todos os desejos desta época, são feitos para

serem insatisfeitos. O gozo da passagem do tempo, como na renascença italiana1287, não é aqui

uma possibilidade: sob o espetáculo, quanto menor for o valor de uso – e maior o valor de

troca –, mais há de se vangloriar, e a promessa para compensar a decepção resultante desse

gasto sem que tenha havido um retorno prazeroso é a repetição da mesma decepção1288: a

promessa do gozo neste mundo vem sempre acompanhada de repressão, é um pseudogozo,

cujo final se sabe de antemão qual é, mas ainda assim se insiste, na pseudo-esperança de que o

próximo papel ou objeto a ser escolhido altere esse resultado1289, conforme anuncia

propaganda que se sabe mentirosa, porque cada anúncio publicitário “é também a confissão

da mentira” do anúncio anterior1290. A realidade do tempo, em suma, foi substituída pela

publicidade do tempo1291, e o dispêndio nas pseudofestas espetaculares mostra de maneira

mais clara como o que há ali é apenas a exibição de um tempo exterior, e que por isso não há

como fruí-lo – a começar pela própria contradição dessas festas com a sua época, que em nada

difere da contradição do consumo do tempo espetacular da sua base real.

Se na sociedade antiga o consumo do tempo se coadunava com o trabalho real

desta sociedade, de acordo com o tempo cíclico1292, na sociedade espetacular o tempo do

trabalho e o consumo do tempo estão organizados de maneira diferente, de modo que entram

em contradição. O primeiro se move sob o tempo irreversível, abstrato – tempo irreversível a

serviço da mercadoria, que exclui o qualitativo e o desenvolvimento do homem do seu campo

de possibilidades –; o segundo é consumido sob o tempo pseudocíclico1293, de modo que os

1282DEBORD, SdE, § 149.1283Ibidem, § 69.1284Ibidem, § 60.1285Ibidem, § 154.1286Idem, ibidem.1287Ibidem, § 139.1288Ibidem, § 154.1289Ibidem, § 59.1290Ibidem, § 70.1291Ibidem, § 154.1292Ibidem, § 155.1293Idem, ibidem.

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eventos sempre retornam e se repetem – formalmente ao menos. Se no tempo espetacular, que

se move conforme o tempo irreversível abstrato, há uma história que é a história das coisas,

em que o desenvolvimento está voltado para a produção das coisas, no consumo dessas

coisas, em que se está sob outra regência temporal, as novidades trazidas por esse

desenvolvimento no processo produtivo não são sentidas1294 – por se consumir apenas

fragmentos de mercadoria, separados “das forças produtivas que operam como um

conjunto”1295 –, por mais que no consumo haja o retorno ampliado desse processo. Ou seja, o

espetáculo, fazendo uso do seu ardil de inverter o sentido de uma contradição para desmenti-

la1296, apresenta o tempo pseudocíclico como tempo fundante da sociedade, sendo que ele é

subproduto do tempo irreversível1297, vivido apenas ilusoriamente: “o tempo cíclico era o

tempo da ilusão imóvel, vivido realmente; o tempo espetacular é o tempo da realidade que se

transforma, vivido ilusoriamente”1298. Entretanto, o espetáculo consegue com isso a aparência

de uma unidade entre tempo pseudocíclico da superfície e tempo irreversível da produção que

não existe, e acaba por garantir de fato a perpetuação deste tempo, ao garantir o ciclo do

capital – o ciclo da produção e consumo alienados. Ademais, o fato das inovações técnicas da

produção não serem notadas na hora do consumo mantém mascarado que toda inovação está

vinculada à produção, quer dizer, que toda inovação tem por base o trabalho morto, de modo

que não se percebe que ele segue subjugando o trabalho vivo e que, a despeito da impressão

inversa, “no tempo espetacular o passado domina o presente”1299, a ponto da vida histórica

geral, diante dessa história, desse passado reificado, ficar prejudicada1300: o passado a dominar

o presente acaba servindo de freio ao mesmo, restringindo – coagulando – possibilidades de

futuro, por não permitir que a atividade humana aconteça simplesmente, pois necessitam

serem sempre cerceadas por valores que são avessos ao valor vivido1301, o que resulta em

relações de causa e conseqüência que remontam uma cadeia sem fim de acontecimentos, feita

de ações necessárias, não espontâneas, sendo por isso alienígenas aos indivíduos, alienados de

seu presente na mesma razão que de seus atos.

Desse modo, a vida individual é obrigada a abdicar de viver realmente, ou seja, é

uma vida ainda sem história, em prol de pseudo-acontecimentos que não foram vividos

1294“Retrouve”, na tradução brasileira “encontra”1295DEBORD, SdE, § 42.1296Ibidem, § 54.1297Ibidem, § 149.1298Ibidem, § 155.1299Ibidem, § 156.1300Ibidem, § 157.1301Ibidem, § 35.

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diretamente por quem a eles assiste1302, os quais se desenrolam em um pseudomundo à parte

que não permite mais que a contemplação1303, que o acompanhar distanciado – tal qual a

pretensa objetividade das ciências. Inclusive porque a vivência está impedida – visto que na

sociedade do espetáculo está bloqueada de antemão a possibilidade do encontro e do diálogo,

uma vez que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”1304 –, o que

resta, aquilo que se considera vivência no espetáculo, não vai muito além da escolha dentre

um dos modelos de vivido aparente que as vedetes de consumo oferecem para ser seguido –

nada mais que modelos de obediência ao desenrolar da história reificada1305, história que vem

dada, pronta, e não aberta para intervenções, para o devir. Os acontecimentos realmente

vividos, os que não foram destacados de cada aspecto da vida para depois se unir num todo

que já não é uma unidade, num fluxo comum ditado pelo espetáculo1306, esses acontecimentos

que de alguma forma resistem a ter relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e

estão em oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo1307,

ou seja, os acontecimentos que tentam se afirmar no terreno do tempo irreversível histórico,

este vivido quotidiano enquanto atividade individual, ao não ter como ser comunicado com

outros que compartilham de experiências de mesma qualidade, de viver esse mesmo tempo,

“fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico a seu próprio passado, não registrado

em lugar algum”1308. Isolado, o vivido individual acaba “incompreendido e esquecido em

proveito da falsa memória espetacular do não-memorável”1309. Pode-se concordar com

Birman, que diz que na sociedade do espetáculo apresentada por Debord (assim como a

cultura do narcisismo, por Lasch) “o sujeito perde suas relações com as idéias de tempo e de

história. com isso, o que importa é a pontualidade do momento, do estrito tempo no presente,

que se avoluma na existência do sujeito. Conseqüentemente, a memória tende ao silêncio pela

ênfase atribuída ao presente. Da mesma forma, o horizonte de futuro se estreita, pois, ao se

sublinhar a imediatez da presença, o sujeito perde a dimensão do devir”1310.

A própria reorganização do espaço feita pelo capital já induz a isso. O mercado,

inicialmente complementar às demais funções da cidade, passa a exercer as funções do antigo

1302DEBORD, SdE, § 157.1303Ibidem, § 2.1304Ibidem, § 1.1305Ibidem, § 61.1306Ibidem, § 2.1307Ibidem, § 157.1308Idem, ibidem.1309Idem, ibidem.1310BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p. 246.

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fórum ou ágora1311, até se tornar mercado abstrato – com as navegações e a criação da bolsa,

em Bruges1312. Pelo “carácter internacional do regime capitalista”1313, a unificação mundial em

um mercado único1314, que é também a unificação do tempo1315, não é apenas uma mudança

nas relações comerciais – uma das causas contrariantes à lei da queda tendencial da taxa de

lucro1316 –, é também uma mudança no espaço, que, tal qual o tempo, passa a ser encarada de

maneira abstrata. Isso implica no rompimento das especificidades locais – que perdem suas

qualidades e sua autonomia – em favor da produção em série para o mercado1317. Sob as

intervenções do urbanismo, as cidades passam a ser encaradas a partir da lógica do capital:

como uma abstração1318, espaços que podem (e devem) ser modelados conforme as

necessidades da mercadoria, modificados e reconstruídos a todo instante1319 para se tornarem,

a cada vez, mais idênticos ao espaço exigido pela mercadoria1320, absolutamente banal,

completamente indiferente com relação ao seu entorno e à sua história – modificações que

aproximam ao máximo a cidade “da monotonia imóvel”1321 que a mercadoria reserva à

história dos homens. A intervenção sobre as cidades não é por acaso: “a história universal

nasceu nas cidades e atingiu a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o

campo”1322. Conforme Marx, “a base de toda divisão do trabalho desenvolvida e mediada pelo

intercâmbio de mercadorias é a separação entre a cidade e o campo. Pode-se dizer que toda a

história econômica da sociedade resume-se no movimento dessa antítese”1323. Mumford se

centra menos nesse embate e mais nos limites do urbano: teriam sido os primeiros senhores

das cidadelas que “fixaram o novo molde da civilização, que combinava a máxima

diferenciação social e vocacional possível, coerente com os processos cada vez mais amplos

de unificação e integração”1324. Para Debord, “a cidade é o espaço da história”1325, onde se

concentram ao mesmo tempo o poder social – que torna possível a empreitada histórica – e a

consciência do passado. É nela que tanto a liberdade quanto a tirania da administração estatal

1311MUMFORD, A cidade na história, p. 334.1312Ibidem, p. 447.1313MARX, O Capital, Livro I, Tomo II, p. 293.1314DEBORD, SdE, § 39. § 145.1315Ibidem, § 145.1316MARX, op. cit., Livro III, p. 171.1317DEBORD, op. cit., § 165.1318Ibidem, § 173.1319Ibidem, § 166.1320Idem, ibidem, § 166. 1321Idem, ibidem.1322Ibidem, § 176.1323MARX, op. cit., Livro I, Tomo I, p. 278.1324MUMFORD, op cit, p. 47.1325DEBORD, op. cit., § 176.

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têm vez e se combatem, ainda sem um lado vencedor1326. Para atender às necessidades do

capital, que na sua produção circular de isolamento1327 impôs o automóvel como “produto-

piloto da primeira fase da abundância mercantil”1328, o urbanismo se viu autorizado a destruir

a cidade e reconstruí-la sob a lógica do pseudocampo1329, orientada para a organização técnica

do consumo, com a dominação da auto-estrada e a dispersão dos antigos centros, num

processo que “levou a cidade a se consumir a si mesma”1330, com a dispersão suburbana.

Mumford dedica um capítulo do seu A cidade na história para analisar o fenômeno. Os

subúrbios teriam surgido em resposta à devastação das cidades pelas indústrias e pelas vias de

transporte, no século XIX, tanto no quesito de alojamentos quanto de vivência, a tal ponto

que, conforme o autor, nesses ambientes, “era preciso que se tivesse todos os sentidos

embotados para ser feliz”1331. “'Cortiço, semicortiço e supercortiço – a isso chegou a Evolução

das Cidades'”1332, declarou Patrick Geddes. Mumford, no correr do seu livro, mostra que os

aspectos vistos como típicos das cidades medievais, moradias precárias, medo do ataque

exterior, confinamento, sujeira, insalubridade, foram, na verdade, características da cidade

crescida com o capitalismo – que ele chama de “barroca”. Com a queda das muralhas que a

delimitavam, autorizando a expansão, houve o processo de fuga desse ambiente decaído, por

parte de quem tinha condições, estimulado pelos meios de locomoção. Concordando com

Kropotkin, o estadunidense chega a ver possibilidades positivas nos subúrbios: a

descentralização das funções em pequenas unidades, com a chance de uma vida local mais

responsável1333 – possibilidades que não foram concretizadas, muito pelo contrário. Em

contrate com a cidade, “ambiente multiforme e não segregado”, o espírito do subúrbio pode

ser sintetizado na expressão vitoriana “nós nos mantemos dentro de nós mesmos”1334: um asilo

para a preservação de uma ilusão, a de um mundo inocente1335, em que impera a padronização

do ambiente, de classe, de gostos, de hábitos1336. São casas com seus jardins protegidos dos

vizinhos, dispersas em longas extensões de terra cortadas por ampla malha viária, que “devora

espaço e consome tempo, com atrito e frustração cada vez maiores, enquanto que, sob o

pretexto plausível de aumentar a velocidade das comunicações, o que realmente faz é obstruí-

1326DEBORD, SdE, § 176.1327Ibidem, § 28.1328Ibidem, § 174.1329Ibidem, § 177.1330Ibidem, § 174.1331MUMFORD, A cidade na história, p. 510.1332Ibidem, p. 469.1333Ibidem, p. 556.1334Ibidem, p. 533.1335Ibidem, p. 534.1336Ibidem, p. 525.

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las e negar a possibilidade de fáceis reuniões e encontros, dispersando os fragmentos de uma

cidade ao acaso por toda uma região”1337. Uma produção de isolamento numa vida cada vez

mais privada do contato com o Outro e marcada pelo tédio1338.

A conseqüência de todo esse processo é a dispersão da multidão solitária pelo

espaço abstrato construído pelo urbanismo, marcado pelo culto da velocidade e do espaço

vazio1339, fruto de uma ideologia em que a força e a velocidade são desejáveis em si

mesmas1340. Oferecendo poucas oportunidades de reunião, de conversação, de debate coletivo

e de ação comum, reforça-se a mentalidade estreita tipicamente atribuída ao ambiente rural.

Tais características, que “sempre impediram o campesinato de empreender uma ação

independente e de se afirmar como força histórica criadora”1341, reaparecem agora sob a forma

de “um conformismo silencioso”, ao invés da rebelião ou do contra-ataque. “Assim, tornou-se

o Subúrbio o lar preferido de um novo tipo de absolutismo: invisível mas todo-poderoso”1342.

Nessas “cidades novas”1343, consumação da tendência à liquidação da cidade1344,

prova da subordinação da consciência histórica à economia1345 – a ponto de levar à paralisia

do “desenvolvimento histórico total, em proveito apenas do movimento independente da

economia”1346 –, onde a oposição cidade-campo desaparece não porque é superada, mas

porque a distinção não faz sentido diante da destruição de ambos1347, nota-se uma clara ruptura

com o tempo histórico que a cidade encarna, sobre o qual a cidade é erigida, borrando delas

toda história e toda passagem do tempo, passado ou futuro: “aqui, nunca acontecerá nada, e

nada nunca aconteceu”1348. E se avança um passo mais no caminho rumo ao fim da história

que a burguesia tomara após Revolução Francesa1349, transformando as cidades sob o domínio

da mercadoria em verdadeiros espaços abstratos e sem qualidades – afim à vida social, ao

trabalho reificados –, sem pontos onde os indivíduos possam fixar locais de memória, onde

possam ter acesso material ou simbólico a experiências vividas, que não aquelas que

ocorreram sob a égide reificada da mercadoria: são “as forças da ausência da história” que

passam a compor a paisagem, se aproveitando de “que a história que é preciso liberar nas 1337MUMFORD, A cidade na história p. 548.1338Ibidem, pp. 533-534.1339Ibidem, p.550.1340Ibidem, p. 448.1341DEBORD, SdE, § 177.1342MUMFORD, op. cit., p. 554.1343DEBORD, op. cit., § 177.1344Ibidem, § 176.1345Idem, ibidem.1346Idem, ibidem.1347Ibidem, § 175.1348Ibidem, § 177.1349Ibidem, § 143.

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cidades ainda não foi liberada”1350. Mumford já dizia que “em relação à cidade, o capitalismo

foi, desde o princípio, anti-histórico”1351.

A forma como o espetáculo lida com o espaço urbano talvez seja uma forma mais

palpável de como ele se relaciona com a história. Tendo em vista o sentido que põe no

tempo1352, a forma como organiza o tempo na sociedade atual, pelo ritmo pseudocíclico na

superfície e irreversível abstrato na sua base – o que contradiz todo um processo de tomada de

consciência do tempo e da história por parte dos homens – o espetáculo “é a falsa consciência

do tempo”1353. Ele oferece como perpétuo o que é fundado na mudança, e que deve mudar

com sua base. Ele sabe que nada pára, que esse é seu estado natural, por sua base ser o tempo

irreversível, mas que ao mesmo tempo a mudança é contrária à sua propensão1354, dado que

isso tende a trazer mudanças que podem levar à sua ruína: a mudança na organização social

do tempo é a mudança de toda a sociedade1355. Sua luta é para garantir a realização da não-

história espetacular1356, a paralisia da história e da memória1357 de toda a sociedade, porém sem

que isso se torne consciente – como não pode se tornar consciente o tempo histórico

irreversível que ela escamoteia em favor do tempo irreversível abstrato da mercadoria.

“Houve história, mas já não há”1358: substituído pela sucessão de disputas entre mercadorias,

numa pseudohistória que marca apenas o devir-mercadoria do mundo1359, ele consegue com

isso manter a sociedade entretida em “confrontos ridículos, que mobilizam um interesse

sublúdico”1360, pseudo-atividades que não alteram a passividade real dos sujeitos e mantêm

longe a possibilidade de algo que faça surgir uma centelha que ponha o sistema em perigo.

Além disso, para a classe obreira, o espetáculo potencializa o movimento de

“afastamento dos homens entre si e em relação a tudo o que produzem”1361: para evitar um

possível encontro autêntico entre os indivíduos que possa fazer com que tomem consciência

de seu papel como sujeitos históricos, frutos da luta de classes, produtos e produtores de

história, “no momento em que a sociedade descobre que depende da economia, a economia,

de fato, depende da sociedade”1362. 1350DEBORD, SdE, § 177.1351MUMFORD, A cidade na história, p. 448.1352DEBORD, op. cit., § 132.1353Ibidem, § 158.1354Ibidem, § 71.1355Ibidem, § 143.1356Ibidem, § 217.1357Ibidem, § 158.1358Ibidem, § 143.1359Ibidem, § 69.1360Ibidem, § 62.1361Ibidem, § 37.1362Ibidem § 52.

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Daí a função de transformar a cidade em pseudocampo1363: dispersar, isolar e

garantir a “manutenção da atomização do trabalhador que as condições urbanas tinham

perigosamente reunido”1364. Como comenta em 1988, trata-se da concretização da “aldeia

global”, apregoada por McLuhan na década de 1960, com suas “múltiplas liberdades”, “de

acesso instantâneo a todos, sem esforço”: “as aldeias, ao contrário das cidades, sempre foram

dominadas pelo conformismo, pelo isolamento, pelo controle mesquinho, pelo tédio, pelos

mesmo mexericos sobre as mesmas famílias”1365. A distância geográfica que marca a dispersão

no campo e que havia sido suprimida pela cidade é revertida, ou então interiorizada como

separação espetacular1366, e os indivíduos isolados são reintegrados pelo sistema como

“indivíduos isolados em conjunto”1367, em pseudocoletividades que vão da célula familiar às

fábricas, centros culturais e condomínios residenciais1368. Assim isolados em

pseudocomunhão, desprovidos de comunicação direta entre si, os indivíduos são mais

docilmente controláveis e domináveis: “o emprego generalizado de aparelhos receptores da

mensagem espetacular faz com que esse isolamento seja povoado pelas imagens dominantes,

imagens que adquirem sua plena força por causa desse isolamento”1369; “a dona-de-casa

citadina, que há meio século [ou seja, no início do século XX,] conhecia pessoalmente o

açougueiro, o merceeiro, o leiteiro, seus vários outros fornecedores locais, como pessoas

individuais, com histórias e biografias que a impressionavam, num intercâmbio diário, goza

agora do benefício de uma única expedição semanal ao supermercado impessoal, onde só por

acaso tem probabilidade de encontrar uma vizinha”. Se antes a relação entre pessoas era

mediada pela mercadoria, o espetáculo tenta agora acabar até com esta. “Seus verdadeiros

companheiros, seus amigos, seus mentores, seus amantes, os que preenchem sua vida não

vivida, são sombras na tela do televisor ou vozes ainda menos personificadas. Pode ela

responder-lhes, mas não se pode fazer ouvir: o resultado que se alcançou foi um sistema de

mão única”1370. A vida nos subúrbios de massa perde até “as vantagens do grupo primário de

vizinhança”, restando “uma vida enclausurada, passada cada vez mais dentro de um

automóvel ou dentro de uma câmara escura, ante um aparelho de televisão”, de modo que

“cada uma das partes dessa vida virá pelos canais oficiais e estará sob supervisão. Não tocada

1363DEBORD, SdE, § 177.1364Ibidem, § 172.1365Idem, Comentários, XII.1366Ibidem, § 167.1367Ibidem, § 172.1368Idem, ibidem.1369Idem, ibidem.1370MUMFORD, A cidade na história, pp. 552-553.

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pela mão humana num extremo: não tocada, no outro, pelo espírito humano. Aqueles que

aceitam essa existência poderiam perfeitamente ser metidos num foguete lançado no espaço,

tão reduzidas são as suas escolhas, tão limitadas e deficientes as suas reações permitidas. É aí

que vamos encontrar 'A Multidão Solitária'”1371. Trata-se de uma denúncia que muito se

aproxima da de Rousseau sobre o teatro: sem impelir a uma solidão absoluta, ele estabelece

“uma comunhão mediata: somos reunidos indiretamente pelo intermédio da ação cênica com

a qual minha atenção me liga de modo direto [...]. É o reino da solidão e da dispersão infeliz”,

da interrupção da comunicação1372.

Evitar que se rompa o isolamento entre os trabalhadores, e que com isso haja o

contato direto entre os reais produtores da história: eis outro aspecto que a falsa memória

espetacular do não-memorável precisa evitar. É da comunicação prática entre pessoas que

compartilham da vivência histórica em uma mesma conjuntura1373 que a linguagem histórica

pode ressurgir do seu cativeiro, desbancando a linguagem espetacular, a passividade

contemplativa a que o espetáculo induz, a ditadura da mercadoria, e toda a organização social

que ele apresenta como dada e acabada. De onde se chega à afirmação de Debord de que a

reivindicação de viver o tempo histórico é “o centro inesquecível do projeto revolucionário”

atual, pois “pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente

estranho à história”1374: não é mais pela superfície, nas cortes palacianas, nas dinastias, que se

faz e se escreve a história – na sociedade capitalista não é a partir de cima, mas “por sua base

que a sociedade se move irreversivelmente”1375. O grande ponto é como transformar essa

reivindicação por uma sociedade revolucionada em teoria e prática revolucionária, e não em

ideologia revolucionária1376. Como, antes de tudo, dar-se conta de que o tempo pseudocíclico,

o tempo ideológico do consumo, é um tempo que contribui para a história girar em falso, para

“a paralisia atual do desenvolvimento histórico total”1377, em que o tempo irreversível é

sutilmente corrompido, metamorfoseado “em tempo das coisas”1378, em tempo reificado. Pois

o espetáculo sabe que o fim da história pura e simplesmente é também o seu fim 1379, como

também sabe que a emergência da história também o é1380. De forma que se, por um lado, seu

1371MUMFORD, A cidade na história, p. 553.1372STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau, p. 134.1373DEBORD, SdE, § 133.1374Ibidem, § 143.1375Idem, ibidem.1376Ibidem, § 124.1377Ibidem, § 175. Grifo do autor.1378Ibidem, § 142.1379Ibidem, § 108.1380Ibidem, § 143.

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ideal é o projeto formulado por Napoleão “de 'dirigir monarquicamente a energia das

lembranças'”1381, manipulando permanentemente o passado, “não apenas nos significados mas

também nos fatos”1382, graças ao aniquilamento do pensamento da história, que atinge “a

própria história, no nível do conhecimento mais empírico”, que já não pode mais existir1383,

por outro, “o preço dessa libertação em relação a toda realidade histórica é, porém, a perda da

referência racional indispensável à sociedade histórica do capitalismo”1384. Na sociedade

burocrática do espetacular concentrado, essa ideologia do fim da história se realiza no retorno

ao tempo das hordas humanas primitivas1385, o presente perpétuo1386, mas o faz à custa de

deixar o tempo e “tudo o que aconteceu” “como um espaço acessível à sua polícia”1387;

enquanto na economia a perda desse senso histórico racional “constitui uma de suas

deficiências principais com relação ao desenvolvimento capitalista normal”1388. Por isso o

espetáculo bem azeitado evita essa implosão da história e mantém o tempo irreversível

abstrato, a “busca do movimento independente da economia”1389. Contudo, apesar do enorme

esforço contrário, o prosseguir com o desenvolvimento das forças produtivas deixa em aberto

o risco para o próprio sistema. Primeiro porque a acumulação de capital é a multiplicação do

proletariado1390: avançar com a industrialização sobre novas áreas, conforme a divisão

mundial de tarefas espetaculares1391, faz com que se crie – e acumule – proletariado num país

onde não existia, ou seja, o espetáculo cria “seu próprio desmentido”1392. Segundo, ao não

poder sufocar por completo o espectro que ronda o mundo, o espectro da história, à espreita

para emergir das profundezas da sociedade com esse proletariado, se apropria do tempo e

submete todo o espaço a esse tempo vivido1393. De acordo com Debord, o espetáculo sabe que,

“ao serem atirados na história, ao terem que participar das tarefas e lutas que a constituem, os

homens se vêem obrigados a encarar suas relações sem ilusão”1394. Por isso seu trabalho em

evitar as lutas reais1395, em rechaçar como ameaça a história autêntica1396, em reforçar a

1381DEBORD, SdE, § 108.1382Idem, ibidem.1383Idem, ibidem.1384Idem, ibidem. Grifo do autor.1385Ibidem, § 126.1386Ibidem, § 108. § 126.1387Ibidem, § 108.1388Idem, ibidem.1389Idem, § 175.1390MARX, O Capital, livro I, Tomo II, p. 188.1391DEBORD, op. cit., § 57.1392Ibidem, § 113.1393Ibidem, § 178.1394Ibidem, § 74.1395Ibidem, § 96.1396Ibidem, § 143.

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heteronomia1397. Pelo mesmo motivo, mas pela negativa1398, o proletariado é a classe da

consciência1399; seu drama é ainda estar “subjetivamente afastado de sua consciência prática

de classe”1400, sem conhecer nada além da impotência e da mistificação da velha política1401

diante de um desenvolvimento que o oprime cada vez mais, a ponto de fazê-lo perder, nos

países industriais, “toda afirmação de sua perspectiva autônoma”1402. E diante da perda de

“todo poder sobre o uso da própria vida”1403 – que é a realidade da “imensa maioria” dos

trabalhadores –, o proletariado mostraria na prática que o seu ser ele não perdeu1404: ao tomar

consciência da sua real situação, do seu momento histórico, de ser a força exteriorizada que

reforça a sociedade capitalista, sob a forma de trabalho, como também “sob a forma de

sindicatos, de partidos ou de poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar,

descobre também pela experiência histórica concreta que é a classe totalmente inimiga de toda

exteriorização rígida e de toda especialização do poder”1405. E foi nos Conselhos Operários

revolucionários que o movimento operário teria descoberto a forma de emancipação

econômica do trabalho – ainda que suas experiências concretas não tenham passado de

esboços1406. É sob seu poder que o proletariado poderá negar “a negação espetacular da

vida”1407 e se afirmar positivamente: agindo desde a base da sociedade, desde onde a história

real acontece, o proletariado com sua própria existência em atos manifesta que o pensamento

da história como transformação do mundo não foi esquecido1408.

E a partir dessa memória viva ele elabora na prática o projeto revolucionário de

uma sociedade sem classes, o que equivale ao de uma vida histórica generalizada, em que

nada existiria independente dos indivíduos1409, sequer o tempo, plenamente aberto como

“campo de desenvolvimento humano”1410, por meio “de um enfraquecimento da medida social

do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e grupos,

modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados”1411. É o

1397DEBORD, SdE, § 33.1398Ibidem, § 114.1399Ibidem, § 88.1400Ibidem, § 114.1401Idem, ibidem.1402Idem, ibidem.1403Idem, ibidem.1404Idem, ibidem.1405Idem, ibidem.1406Ibidem, § 116.1407Ibidem, § 117.1408Ibidem, § 77.1409Ibidem, § 163.1410Ibidem, § 147.1411Ibidem, § 163.

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tempo dos Conselhos Operários, “da dominação permanente do presente sobre o passado”1412,

o contrário do espetáculo, onde o “passado domina o presente”1413. A inversão, contudo, é do

espetáculo1414: o Conselho seria a reapropriação de tudo aquilo que o espetáculo tomara.

Inversão apenas pelo caminho, com a teoria crítica, que deve se apropriar das armas do

espetáculo para combatê-lo1415: se o espetáculo mimetiza e inverte o real, a teoria crítica

inverte o espetáculo, abrindo caminho para que o movimento proletário se reapodere do real.

É uma teoria, mas deve fazer isso na prática: “a fusão do conhecimento e da ação precisa

realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que cada um desses termos coloque no outro

a garantia da sua verdade”1416. Algo que em muito lembra o espetáculo, quando este inverte o

real, e a realidade vivida e a ordem espetacular acabam se fundamentando reciprocamente1417.

Há, porém, uma diferença fundamental: no espetáculo esta alienação recíproca é fundada na

cisão da sociedade e serve para reforçá-la; na teoria crítica, conhecimento e ação serem a

garantia da verdade um do outro é a certeza do pensamento histórico unitário, a resistência

desde a essência1418 contra a cisão generalizada na sociedade dominante. Verdade que, para

Debord, no texto de 1967, se consumará no Conselho Operário, “lugar onde as condições

objetivas de consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação direta ativa, na

qual terminam a especialização, a hierarquia e a separação, na qual as condições existentes

foram transformadas 'em condições de unidade'”1419 e os trabalhadores ganham a posse direta

de todos os momentos de sua atividade1420, posse esta que reverbera na posse da história e na

abertura do devir. Ali, sendo o desejo da consciência não mais um projeto1421, a consciência do

sujeito proletário seria “igual à organização prática que ela mesma se propôs, porque essa

consciência é inseparável da intervenção coerente na história”1422 – coerente com as

necessidades humanas. Destarte, o movimento proletário passa a ser seu próprio produto, e

esse produto, o seu próprio produtor1423: “ele é seu próprio fim”1424. Novamente, algo

aparentemente próximo, mas essencialmente diferente acontece sob o espetáculo, quando seus

1412DEBORD, SdE, § 114.1413Ibidem, § 156.1414Ibidem, § 2.1415Ibidem, § 206.1416Ibidem, § 90.1417Ibidem, § 8.1418Ibidem, § 121.1419Ibidem, § 116.1420Ibidem, § 53.1421Ibidem, § 53.1422Ibidem, § 116.1423Ibidem, § 117.1424Idem, ibidem.

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meios são ao mesmo tempo seu próprio fim1425: além do fato dos homens estarem alienados da

história, ser o próprio fim para o espetáculo significa mais do que ele próprio ser sua

finalidade, significa ser seu ponto final: não avançar, girar em falso – ou se aproximar ao

máximo disso, como antigamente as chamadas “sociedades frias” tentavam frear ao máximo a

história1426 –, como acaba por bem simbolizar o tempo pseudocíclico que a história impõe aos

homens.

Como já dito anteriormente, em Debord, a prática do pensamento unitário da

história, por mais que não tenha sido formulado teoricamente, é uma exigência da teoria

crítica para que ela seja verdadeira1427. Assim, “as formas históricas surgidas na luta”1428 vão

ao encontro da teoria marxiana: para Marx, conforme a interpretação do francês, ao destruir

“a posição separada de Hegel diante do que acontece”, “a história que se tornou real já não

tem fim”1429: “o sujeito da história só pode ser o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se

mestre e possuidor de seu mundo que é a história, e existindo como consciência de seu

jogo”1430. Nesse mundo que lhe pertence, que é a história, haveria a emergência de uma nova

forma de comunidade, a “comunidade do diálogo”1431, que é também a “real comunidade

histórica”1432. De acordo com Aquino, a idéia de comunidade para Debord não tem traços

românticos, da busca de uma identidade perdida com a ascensão do capitalismo. Ele “ampara

sua perspectiva comunista de uma nova comunidade apenas e exclusivamente nas

contradições da própria existência presente e na práxis negativa em face delas”1433. Que não

seja uma volta ao passado, o francês não dá mesmo sinais de passadismo, contudo é difícil

crer que ele não acabe por se utilizar de referências pretéritas – a democracia da Grécia

clássica, o Renascimento italiano – para, junto com sua crítica das condições presentes,

propor uma direção para a sociedade pós-revolucionada, em que se retomariam “as

referências de uma linguagem efetivamente comum”1434, perdidas com o fim da sociedade do

mito e que persistem enquanto “a cisão da comunidade inativa” não for superada1435 –

recuperação que se dará sem a necessidade de ressuscitar o antigo mito1436 ou “reintroduzir um

1425DEBORD, SdE, § 14.1426Ibidem, § 130.1427Ibidem, § 90.1428Idem, ibidem.1429Ibidem, § 80. Grifo do autor.1430Ibidem, § 74.1431Ibidem, § 187.1432Ibidem, § 186.1433AQUINO, Reificação e linguagem em Guy Debord, p. 189.1434DEBORD, op. cit., § 186.1435Idem, ibidem.1436Ibidem, § 109.

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apego exclusivo ao solo”1437. “Essa linguagem precisa ser reencontrada na práxis, que reúne

em si a atividade direta e sua linguagem. Trata-se de possuir efetivamente a comunidade do

diálogo e o jogo com o tempo, que foram representados pela obra poético-artístico”1438, da

época em que a sociedade vivia cindida. Ou seja: toda representação, não apenas a

representação política, como também a artística, seria superada nos Conselhos, na medida em

que toda representação implica na separação frente àquilo que se está representando: o

espetáculo, que se reconstitui sempre que há representação independente1439, tem poucas

chances de ressuscitar sob os Conselhos Operários. E, diferentemente das comunidades

tradicionais, enquanto os locais – por intermédio da crítica da geografia humana – ganham

autonomia para se redesenharem conforme a apropriação da sua história total, em um “espaço

movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo”1440, os indivíduos,

mesmo que participem desses lugares, não têm necessidade de se verem presos a ele: a

revolução proletária pode “trazer de volta a realidade da viagem, e da vida entendida como

uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido”1441. Para que tudo isso aconteça,

seria preciso “emancipar-se das bases materiais da verdade invertida”1442, tarefa que não cabe

nem ao indivíduo isolado, nem à “multidão atomizada e sujeita à manipulação”, e sim “à

classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma

desalienante da democracia realizada, o Conselho”1443, único local onde “os indivíduos estão

'diretamente ligados à história universal'”1444.

Essa posição bastante otimista de 1967 quanto às possibilidades de uma revolução

proletária – e para breve – não aparece nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo,

lançados em 1988. Debord não nega a possibilidade de revolução, só não a põe como uma

possibilidade objetiva para breve: “seja pela ação, seja o discurso, tudo precisa ser medido

pelo tempo. É preciso querer quando se pode; pois nem a estação nem o tempo esperam por

ninguém”1445. Se o francês vislumbrava a revolução em 1967, oportunidade desperdiçada, ele

dá esperanças de que uma ação estratégica – “o emprego das vitórias a fim de atingir as

finalidades da guerra”, conforme Clausewitz1446 – poderia abrir novamente um momento

1437DEBORD, SdE, § 178.1438Ibidem, § 187.1439Ibidem, § 18.1440Ibidem, § 178.1441Ibidem, § 178.1442Ibidem, § 221.1443Idem, ibidem.1444Idem, ibidem.1445GRACIÁN, apud DEBORD, Comentários, XXXI.1446DEBORD, Comentários, XXXII.

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oportuno. Na direção contrária, ele alerta, o espetáculo se organiza para se antecipar na

negação de si próprio1447. Estes pontos não estão ditos de forma aberta. Logo no início do

texto de 1988 ele salienta que não poderia “falar com inteira liberdade”, e escreveria, uma vez

mais, “de forma incomum”1448. Entre a apresentação do espetáculo em 1967 e a de 1988,

Debord admite, explicitamente, apenas uma mudança, um detalhe teórico1449, no panorama

espetacular: o espetáculo “continuou a se afirmar por toda parte. Alastrou-se até os confins e

aprofundou sua densidade no centro”1450, e fez emergir uma nova forma de organização do seu

mundo, em substituição às duas primeiras, não dividindo mais o globo em dois modos

distintos e pseudo-antagônicos de gestão do Estado: o espetacular difuso e o espetacular

concentrado. Ainda não havia acontecido a queda do Muro de Berlim quando o francês teceu

seus comentários – ele já alertara, em 1967, que sob o espetacular concentrado, a mínima

“escolha que lhe seja exterior, referente à alimentação ou à música, representa a sua

destruição completa”1451, de modo que políticas como a glasnost, na então URSS, já

permitiam antever o fim do bloco dito comunista –, mas ele já afirmava que o que há agora é

apenas uma única forma de espetáculo: o espetacular integrado. A necessidade que o

espetacular difuso tinha de uma oposição temida – o espetacular concentrado – e que o fizesse

a melhor opção, foi substituída pelo espetáculo ser temido por si próprio e apresentado como

uma perfeição frágil1452. “A sociedade moderna, que até 1968, ia de sucesso em sucesso, e

estava persuadida de ser amada, teve a partir daí de desistir de todos esses sonhos; ela prefere

ser temida. Sabe que seu 'ar de inocência não volta mais'”1453. Precisou “incorporar novos

procedimentos defensivos, como costuma acontecer com o poder quando se vê atacado”1454,

daí o apelo a essa perfeição frágil da sociedade que se declara democrática: “assim, ela não

deve ser exposta a ataques, porque é frágil; e já não é atacável, por ser perfeita como nenhuma

outra sociedade o foi”. Fragilidade que é real, mas apresentada ideologicamente: “é uma

sociedade frágil porque tem grande dificuldade para dominar sua perigosa expansão

tecnológica”; perfeição que também é real, e também apresentada ideologicamente: “é a

sociedade perfeita para ser governada; a prova disso é que todos os que aspiram ao governo

querem governar essa sociedade, com os mesmos procedimentos, e mantê-la quase

1447Ibidem, XXX.1448Ibidem, I.1449Ibidem, IV.1450Ibidem, II1451DEBORD, SdE, § 64.1452Idem, Comentários, VII1453Ibidem, XXX.1454Ibidem, II.

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exatamente como é”1455. A parte oculta dessa ideologia da perfeição frágil é que ela é perfeita

para a manutenção do espetáculo e do reino da mercadoria, e é frágil porque depende

diretamente daqueles que a sustentam, ou seja, os homens e sua labuta. Com isso, “liquidaram

com a inquietante concepção, que predominara por mais de duzentos anos, segundo a qual

uma sociedade podia ser criticada e transformada, reformada ou revolucionada”1456.

Os fundamentos do espetáculo seguem iguais aos de 1967, até mesmo

exacerbados. Se o espetacular concentrado pode ser tido como uma versão tosca do

espetacular difuso, o espetacular integrado pode ser encarado como um pequeno

desenvolvimento deste, necessário para que realidade e espetáculo não mais pareçam

imiscuídos, como dito anteriormente, mas para que efetivamente o sejam: quando o

espetacular era concentrado – “a ideologia concentrada em torno de uma personalidade

ditatorial, [que] havia acompanhado a contra-revolução totalitária, fosse nazista ou stalinista”

–, “a maior parte da sociedade periférica lhe escapava; quando era difuso” – em que os

assalariados eram instados a “escolherem livremente entre uma grande variedade de

mercadorias novas que se enfrentavam”, numa “americanização do mundo” –, “uma pequena

parte; hoje, nada lhe escapa”1457. Debord vê na França e na Itália do pós-guerras os lugares

predominantes no desenvolvimento desse tipo de espetáculo, graças a “uma série de fatores

históricos comuns: papel importante de partido e sindicato stalinistas na vida política e

intelectual, fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido

governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de

repente”1458. E identifica cinco aspectos dessa nova forma de organização espetacular: “a

incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a

mentira sem contestação e o presente perpétuo”1459. Como se vê, apenas o desenvolvimento –

a conseqüência lógica – de aspectos da organização espetacular levantados em 1967.

Desenvolvimento que fez com que Debord reafirmasse o “irrealismo da sociedade real”1460: se

em 1967 ele dizia que o devir-mundo da mercadoria era também o devir-mercadoria do

mundo1461, em 1988, ele apresenta esse irrealismo sem a embalagem da mercadoria: “a

experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo

mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do

1455DEBORD, Comentários, VIII.1456Idem, ibidem.1457Ibidem, IV.1458Idem, ibidem.1459Ibidem, V.1460Idem, SdE, § 6.1461Idem, § 66.

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Page 171: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC … Dalmoro.pdf · exigência parcial para obtenção do título de ... Dedico este trabalho à memória de meu avô João Gorte

mundo”1462, em que “não existe nada, na cultura ou natureza, que não tenha sido transformado

e poluído segundo os meios e os interesses da indústria moderna”1463. Entrar na lógica da

indústria moderna seria entrar, na terminologia de 1967, na lógica da abstração e da

contemplação.

A forma como Debord tece seus Comentários traz algumas diferenças importantes

frente ao texto de vinte anos antes, principalmente no que tange à questão do tempo, da

história, e da classe revolucionária. A problemática da identidade homem-tempo, a

temporalização do homem e a humanização do tempo, é abandonada, e o autor trata deste

aspecto – merecedor de destaque, novamente – sob a forma da história e sua relação com o

espetáculo – influenciada tanto pelos aspectos de governo quanto da linguagem. É uma

apresentação bem menos idealista do que a de 1967, inclusive o operariado não é mais

apresentado como meta-sujeito da história – ainda que Debord tampouco recuse o que havia

dito em 1967 quanto a isso.

Com o texto de 1988, Debord se insere nos debates sobre o espetáculo, se

aproveitando da lógica espetacular de reverência por quem fala1464: se o assunto volta à tona,

nada como aquele que primeiro o denunciou – sendo acusado de ter exagerado, apesar dos

fatos terem comprovado sua teoria – para demonstrar que a discussão sobre o espetáculo foi

retomada de um modo enviesado, ideológico, em que se oculta o essencial: “outros, depois, ao

publicarem novos livros sobre o mesmo assunto, demonstraram que era perfeitamente

possível omitir tanto coisa a esse respeito. Bastou-lhes substituir o todo e seu movimento por

um único detalhe estático da superfície do fenômeno”1465. A perda da visão do todo e tratar de

forma estática um aspecto da realidade, dois aspectos já levantados sobre o pensamento

científico e reificado - isso, Debord recusa, porém em outros pontos ele se insere na lógica do

espetáculo. Ao fazer isso, pretende, uma vez mais, usá-la de modo desviado, para explicitar

aquilo que o espetáculo tenta ocultar: como este, recusa o diálogo; simplesmente apresenta o

que o espetáculo é; se se deve referência ao especialista, ele se apresenta (veladamente) como

especialista, para denunciar que “todos os especialistas são midiáticos-estatais, e só dessa

forma são reconhecidos como especialistas”, e que “todo especialista serve a seu senhor, pois

as antigas possibilidades de independência foram praticamente reduzidas a zero pelas

condições de organização da sociedade atual”1466, e servir ao seu senhor significa o

1462DEBORD, Comentários, IV.1463Idem, ibidem.1464Ibidem, X.1465Ibidem, II.1466Ibidem, VII.

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especialista tranqüilizar o indivíduo comum, que “já não consegue reconhecer nada

sozinho”1467, para que ele não se dê conta de sua real condição de vida, de possibilidade de

pensamento, de possibilidade de ação. O primeiro livro poderia ser dado por suficiente por

Debord, e a discussão e denúncia serem prosseguidas por outros autores, mas no momento em

que escreveu os comentários, Debord cria “que mais ninguém iria fazer isso”1468.

Esse uso mutilado do conceito e a discussão adestrada sobre o espetáculo não

surpreende, era uma possibilidade levantada pelo autor em 1967: “sem dúvida, o conceito

crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica

sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do

sistema espetacular”1469. De acordo com o texto de 1988, o espetáculo é “o maior

acontecimento produzido neste século [o XX], e também o que menos se tentou explicar”1470.

O engajamento de intelectuais revolucionários na contestação do espetáculo se mostrou, na

verdade, um pseudoengajamento de pseudointelectuais pseudorevolucionários, com o

comprometimento para com a revolução e a profundidade das vedetes do espetáculo: “a teoria

crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação da

sociedade”1471, sem a recusa radical e sem uma força prática que pusesse à prova a teoria

revolucionária, o espetáculo como mera crítica acadêmica-teórica perde seu vigor, é anulado,

fagocitado pela lógica daquilo que se diz criticar, e esvaziado de sua crítica. Contribuiu para

isso a desarticulação de locais de contestação e a afirmação da luta de classes, com a extinção

de “qualquer tendência revolucionária organizada ao suprimir os terrenos sociais onde ela

conseguira mais ou menos se expressar: do sindicalismo aos jornais, da cidade aos livros”1472,

assim como a desqualificação de toda práxis em favor da contemplação passiva. Uma

caricatura deste pseudointelectual pseudoengajado é dada por Vila-Matas, em Paris não tem

fim, quando o protagonista comenta das suas convicções políticas: “devo dizer que um mês

depois de tomar posse de minha chambre, minhas idéias de estudante espanhol antifranquista

já haviam mudado e eu passara a ser de esquerda radical linha-dura, da linha situacionista,

com Guy Debord como mestre. Passei a pensar que ser antifranquista era muito pouca coisa e,

sob a influência das idéias situacionistas, com meu cachimbo e meus dois óculos falsos,

comecei a passear pelo bairro convertido no protótipo do intelectual poético e secretamente

1467DEBORD, Comentários, VII.1468Ibidem, XXVII.1469Idem, SdE, § 203.1470Idem, Comentários, XXVII.1471Idem, SdE, § 203.1472Idem, Comentários, XXIX.

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revolucionário. Mas na realidade era situacionista sem ter lido uma só linha de Guy Debord;

era, pois, da extrema esquerda mais radical, mas somente de ouvido. E, como disse, não

militava, dedicava a sentir-me de extrema esquerda e ponto”1473. Destarte, a “organização

espetacular da defesa da ordem existente, o reino social das aparências onde já nenhuma

'questão central' pode ser colocada 'aberta e honestamente'”1474 – muito menos pelo próprio

espetáculo –, que tem como sua lei fundamental que “'se uma coisa existe, já não é preciso

falar dela'”1475, a discussão é posta para que não se discuta nada de relevante (como tudo no

espetáculo), concentrando-se na questão do domínio da mídia e sobre seus recursos, e não

sobre seus usos1476 – como se a forma como esses recursos são utilizados fosse a única

possível. Logo, apresentado como “domínio da mídia”1477, escamoteia-se do grande público

espectador o fato do espetáculo ser “o reino autocrático da economia mercantil que a cedera

ao status de soberania irresponsável e o conjunto de novas técnicas de governo que

acompanham esse reino”1478.

Como governo, o que o espetáculo comunica são ordens travestidas de liberdade

de escolha, que ganham forma não apenas por editos, como pelos meios de comunicação, na

chamada opinião pública, nas vedetes apolíticas do consumo. Assim, a sociedade do

espetáculo se afirma amplamente transparente, salvo em poucas exceções – que correspondem

tão-somente ao essencial. A aceitação disso por parte do respeitável público se dá pela

educação e pela dominação da linguagem – aspectos por ele já levantados no texto de 1967:

“o espectador é suposto ignorante de tudo, não merecedor de nada. Quem fica sempre

olhando, para saber o que vem depois, nunca age: assim deve ser o bom espectador”1479,

levado pelo “fluxo de imagens [que] carrega tudo; outra pessoa comanda a seu bel-prazer esse

resumo simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do

que deve aí manifestar-se, como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum tempo

para a reflexão, tudo isso independente do que o espectador possa entender ou pensar”1480. A

afirmação de que haveria um sujeito a organizar esse resumo do mundo é uma pequena

diferença para o texto de 1967, em que ele punha em termos impessoais: “as imagens que se

destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum”1481. Porém a conclusão é a

1473VILA-MATAS, Paris não tem fim, p. 49.1474DEBORD, SdE, § 101.1475Idem, Comentários, III.1476Idem, Ibidem.1477Idem, Ibidem.1478Ibidem, II.1479Ibidem, VIII.1480Ibidem, X.1481Idem, SdE, § 2.

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mesma: “a realidade considerara [...] um pseudomundo à parte, objeto de mera

contemplação”1482 de um sujeito incapaz de agir1483 – incapacidade delimitada pelo próprio

espetáculo. Ao interromper a comunicação entre os produtores, por conta dessa dominação da

e pela linguagem1484, a lógica, conforme Debord, também se perde, pois “no plano dos

recursos de pensamento das populações contemporâneas, a primeira causa da decadência

decorre claramente do fato de que o discurso apresentado no espetáculo não deixa espaço para

resposta; ora, a lógica só se forma socialmente pelo diálogo”1485. Não bastasse a falta de

abertura para a resposta – ou seja, para o diálogo – Debord lamenta que em favor da leitura

esteja em decadência da leitura, “que exige um verdadeiro juízo a cada linha e é a única capaz

de dar acesso à vasta experiência humana antiespetacular”1486 – ainda que seja de se

questionar em que medida a leitura também não pode, ela também, ser assimilada pelo

espetáculo. Assim, com a perda da capacidade de verificação da conclusão a partir das

premissas, o espetáculo consegue mais facilmente se desdizer o tempo todo, retificando seu

passado a todo instante1487, reduzindo a verdade “a uma hipótese que nunca poderá ser

demonstrada”1488: como senhor da linguagem e sem qualquer possibilidade de réplica, “o

discurso do espetáculo faz calar, além do que é propriamente secreto, tudo o que não lhe

convém. O que ele mostra vem sempre isolado do ambiente, do passado, das intenções, das

conseqüências. É, portanto, totalmente ilógico”1489. Se eventualmente questionado, ele se

reafirma tautologicamente: “o movimento da demonstração espetacular se prova

simplesmente pela marcha em círculo: ao retornar, ao se repetir, ao continuar a afirmar no

único terreno onde reside doravante o que pode ser afirmado publicamente, e se fazer

acreditado, já que é apenas disso que todo mundo será testemunha”1490.

Logo, “o governo do espetáculo [Estado e órgãos para-estatais], que no presente

momento detém todos os meios para falsificar o conjunto da produção tanto quanto da

percepção, é senhor absoluto das lembranças, assim como é senhor incontrolado dos projetos

que modelam o mais longínquo futuro”1491. O que quer dizer ser senhor absoluto também do

presente: “aquilo de que o espetáculo deixa de falar durante três dias é como se não

1482DEBORD, SdE, § 2.1483Ibidem, § 25.1484Ibidem, § 67.1485Idem, Comentários, X.1486Idem, ibidem.1487Idem, ibidem.1488Ibidem, V.1489Ibidem, X.1490Ibidem, VII.1491Ibidem, IV.

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existisse”1492, de modo que “o espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que

acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de tudo, conseguiu ser

conhecido”1493. Com isso, o polemista reafirma o que dissera em 1967, de que “o projeto, já

formulado por Napoleão, de 'dirigir monarquicamente a energia das lembranças' encontrou

sua concretização total em uma manipulação permanente do passado, não apenas nos

significados mas também nos fatos”1494. Assim, com a destruição da história – e a negação do

momento presente como momento histórico –, “o próprio acontecimento contemporâneo logo

se afasta para uma distância fabulosa, em meio a narrativas inverificáveis, estatísticas

incontroláveis, explicações inverossímeis e raciocínios insustentáveis”1495. O indivíduo vive

nessa fábula de terror, em que a inverdade do mundo tem efeitos muito reais, e as cores

sempre vivas ocultam o cheiro de morte – a “guerra aberta da economia contra a humanidade;

não apenas contra as possibilidades de vida do homem, mas também contra as de sua

sobrevivências”1496. Jogado de um lado para o outro, conforme as conveniências do sistema,

está cada vez mais afastado “da possibilidade de conhecer experiências autênticas e, por isso,

de descobrir preferências individuais”1497 – e mesmo de dar-se conta disso, por falta de

diálogo não mediado com os demais. O resultado é que “a supressão da personalidade

acompanha fatalmente as condições da existência submetida às normas espetaculares”1498, em

favor de modelos pré-fabricados para o consumo pelo espetáculo, levantado no texto de duas

décadas antes. “O indivíduo deve desdizer-se sempre, se desejar receber dessa sociedade um

mínimo de consideração”1499 – o tipo alter-dirigido levantado por Riesman. “Essa existência

postula uma fidelidade sempre cambiante a uma série de adesões constantemente

decepcionantes, a produtos ilusórios”1500, apresentados, conforme o texto de 1967, “como um

atalho fulgurante para enfim aceder à terra prometida do consumo total”1501, e que perdem sua

aura e deixam evidentes a sua precariedade, tão-logo entram na casa do consumidor, ao

mesmo tempo que na de todos os outros1502. “Trata-se de correr atrás da inflação dos sinais

depreciados da vida. A droga ajuda a pessoa a se conformar com essa organização das coisas;

1492DEBORD, Comentários, VII.1493Ibidem, VI.1494Idem, SdE, § 108.1495Idem, Comentários, VII.1496Ibidem, XIV.1497Ibidem, XII.1498Idem, ibidem.1499Idem, ibidem.1500Idem, ibidem.1501Idem, SdE, § 69.1502Idem, ibidem.

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a loucura ajuda a evitá-la”1503. Ou, como comenta Birman sobre os psicotrópicos no contexto

do fim do século XX: “seja pelo narcotráfico, pela farmacodependência ou peso

psicofármacos, o que está sempre em pauta é a transformação do sujeito inseguro, deprimido

e panicado em cidadão da sociedade do espetáculo”1504. Aqueles que se pretendem críticos do

espetáculo, contudo marcados pelo seu pensamento, acabam por se colocar a serviço da

ordem: “o uso intensivo do espetáculo, como era de se esperar, tornou ideólogos quase todos

os contemporâneos, embora apenas aos arrancos e por fragmentos”1505 – a linguagem

espetacular leva a um adestramento e não ao pensamento1506, ela teme e desqualifica o

pensar1507. A ideologia defendida – mesmo que inconscientemente – começa pelo apagamento

da memória e fim da história. “O domínio da história era o memorável, a totalidade dos

acontecimentos cujas conseqüências se manifestariam por muito tempo”1508. Ocorre que sob o

espetáculo, nem a totalidade dos conhecimentos é passível de ser conhecida – e isso vale para

a vida do próprio indivíduo, pois “sob o espetacular integrado, a pessoa vive e morre no ponto

de convergência de inúmeros mistérios”1509 –, nem o que é conhecido é passível de ser

rememorado: com o espetáculo a trabalhar diretamente sobre as lembranças e os

esquecimentos, o indivíduo sob sua lógica perde a capacidade de rememorar por si e com seus

pares. Sem a possibilidade de uma contra-história para enfrentar a história oficial, o

espetáculo adquire o poder de anular a história e recontá-la sempre nova, de novo, como lhe

convém – uma “marginalização da história”, afim ao embotamento do “espírito histórico da

sociedade” que ele acarretou1510. A vantagem que o espetáculo tira para si desse processo é a

de fazer esquecer a sua própria história, “o movimento de sua recente conquista do mundo.

Seu poder já soa familiar, como se sempre tivesse estado presente. Qualquer usurpador tenta

fazer esquecer que acabou de chegar”1511. Sem história, ou melhor, sendo o espetáculo o

detentor do conhecimento histórico, não há como aferir a verdade sobre o passado, o que é

necessário para o pseudomovimento de incessante novidade do mesmo: “quem vende a

novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de aferi-la”, e “a história era a

medida da verdadeira novidade”1512. “Quando o importante se torna socialmente reconhecido

1503DEBORD, Comentários, XII.1504BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p. 248.1505DEBORD, op. cit., XI.1506Ibidem, XIV.1507Ibidem, XIII.1508Ibidem, VI.1509Ibidem, XVIII.1510Ibidem, VI.1511Idem, ibidem. Grifos do autor.1512Idem, ibidem.

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como o que é instantâneo, e vai sê-lo um instante depois – diferente e igual –, e que sempre

substituirá uma outra importância instantânea, pode-se também dizer que o meio utilizado

garante uma espécie de eternidade dessa não-importância, que fala tão alto”1513. Assim, pode-

se afirmar que “o fim da história é um agradável repouso para todo poder presente”1514, e

concretiza o primeiro intuito da dominação espetacular, que “era fazer sumir o conhecimento

histórico geral”1515, em favor “da história do movimento abstrato das coisas, que domina todo

uso qualitativo da vida”1516 – como ele já levantara em 1967. A história como história

quantitativa, do automovimento em falso e sem fim do capital, contudo, é um risco também

ao próprio sistema espetacular: “um Estado em cuja gestão se instala por muito tempo um

grande déficit de conhecimentos históricos já não pode ser conduzido estrategicamente”1517. É

desse déficit que pode ser imaginada a possibilidade de uma brecha por onde atacar o

espetáculo. Brecha que o autor imagina não estar pronta para o ataque em 1988, e ainda não

compreendida plenamente do ponto de vista teórico. Brecha que põe em gládio as forças

práticas da sociedade, de um lado, e os governantes do espetáculo, do outro – em disputas

internas das várias correntes, em formas de conspiração1518. Até lá, “velhos preconceitos,

desmentidos em toda parte, precauções tornadas inúteis e até vestígios de escrúpulos de outros

tempos ainda dificultam no pensamento de vários governantes” a compreensão da mudança

radical na arte de governar, “que a prática mostra e confirma a cada dia. Não apenas se faz

crer aos sujeitados que eles ainda estão, quanto ao essencial, num mundo que já desapareceu,

mas os próprios governantes sofrem às vezes os efeitos da inconseqüência de pensarem ainda

viver nesse mundo, sob alguns aspectos. Chegam a pensar numa parte do que suprimiram

como se permanecesse uma realidade, que deve continuar presente em seus cálculos. Esse

atraso não vai durar muito”1519.

1513DEBORD, Comentários, VI.1514Idem, ibidem.1515Idem, ibidem.1516Idem, SdE, § 142.1517Idem, Comentários, VII.1518Ibidem, XXXII.1519Idem, ibidem.

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