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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Vanessa Rahal Canado Legalidade tributária e decisão judicial: desmistificando o modelo civil law e recolocando o papel da jurisprudência para regulação de condutas no direito tributário brasileiro DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Vanessa Rahal Canado

Legalidade tributária e decisão judicial:

desmistificando o modelo civil law e recolocando o papel da jurisprudência

para regulação de condutas no direito tributário brasileiro

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Vanessa Rahal Canado

Legalidade tributária e decisão judicial:

desmistificando o modelo civil law e recolocando o papel da

jurisprudência para regulação de condutas no direito tributário

brasileiro

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à banca examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em Direito,

sob orientação do Professor Doutor Estevão

Horvath.

SÃO PAULO

2013

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

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Sempre e para sempre, à minha atenciosa, linda e dedicada

mãe, e ao meu generoso, divertido e vencedor irmão

Ao professor Eurico de Santi, que faz com o

direito tributário aquilo que ninguém faz

Ao meu marido, Flavio, por me tornar uma pessoa melhor a cada dia.

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AGRADECIMENTOS

Diz-se que fazer uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado

é uma tarefa extremamente solitária. É exatamente por isso que ela só é

possível em razão daqueles que compreendem as suas constantes ausências.

Assim, preciso agradecer em primeiro lugar à minha família, ao meu

marido e aos meus amigos, que em nenhum momento relutaram em

compreender a minha necessária solidão.

À minha mãe, Soraya Rahal, sempre dando força, especialmente e sem

saber, sendo um exemplo de vida. Ao meu irmão, Rodrigo Rahal Canado, que

superou tantos obstáculos, venceu, e hoje é digno de tanta admiração: Rô, por

você, e só por você, eu seria capaz de qualquer coisa nessa vida!

Ao meu marido, Flavio Henrique Castro, pelo amor de todos os dias,

pelos olhares companheiros, pela serenidade nos momentos mais intensos de

crise com tanta coisa que eu resolvi fazer além desta tese.

Aos meus amados tios, tias, primos e priminhos: é muito bom fazer

parte dessa família linda (de novo).

Àqueles por onde tudo começou, Christine Mendonça e Eurico de

Santi: eu não consigo imaginar o que teria sido da minha vida sem vocês...

Com certeza eu não integraria o time de um só, formado pelo(s) advogado(s)

feliz(es), que meu ex-terapeuta dizia conhecer.

Ao professor Celso Campilongo, que com seu admirável espírito

acadêmico colaborou pacientemente com o esforço de delimitação do objeto e

com a pesquisa bibliográfica empreendida para a construção desta tese.

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6

À Letícia Avelar (Lelê) e à Thais Fortes (Thatá), amigas de coração,

irmãs de jornada, que sempre estiveram dispostas a me ouvir para o que quer

que fosse.

Às minhas amigas (para sempre): Carolina Massad (Carol), Nicole

Najjar (Nick), Amanda Romão (Aman, nossa advogada predileta), Raquel

Camargo (Raq), Daniela Dornel (Dani) e Raphaela Vasconcellos (Rapha), que

aceitaram marcar tantos encontros no La Tartine porque era perto da minha

casa.

Aos meus quatro sócios, Luís Fernando Carvalho, André Sica, André

Muszkat e Octavio Vidigal, pela amizade incondicional desde o início, pela

generosidade demonstrada em pequenos gestos e pelas risadas que tornam o

dia-a-dia tão mais leve.

Às companheiras do desespero da tese, Tatiana Aguiar e Simone Costa:

um brinde à nossa nova conquista (e agora chega, né?).

Aos destacados professores de direito tributário da PUC/SP, na pessoa

de meu gentil orientador, Professor Estevão Horvath, que sempre me atendeu

com prontidão e me propiciou um pensar livre e desimpedido para a

construção desta tese, incentivando um novo olhar para o direito tributário.

Obrigada, obrigada e obrigada.

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Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Raul Seixas

A Constituição diz que quem diz o que ela diz sou eu

Ministro Gilmar Mendes, referindo-se ao julgamento da Contribuição dos Inativos

[...] a Constituição diz o que nós, juízes desta Corte, dizemos que ela diz.

Nós transformamos em normas o texto escrito da Constituição [...].

Nós, aqui neste Tribunal, nós produzimos as normas que compõem a Constituição do

Brasil hoje, agora.

Nós é que, em derradeira instância, damos vida à Constituição [...]

Ex-Ministro Eros Grau, no voto proferido na Reclamação n. 4.219

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RESUMO

O objetivo desta tese é demonstrar o papel da jurisprudência para

regulação de condutas no direito tributário, a partir do diagnóstico de

falibilidade do direito positivo. A impossibilidade de as normas gerais e

abstratas, características do civil law, informarem de forma suficiente a

conduta a ser seguida, desloca para as decisões judiciais (como tipicamente

ocorre no sistema common law) o papel de delimitar a existência das

obrigações tributárias. A análise crítica das principais características do civil

law permite desmistificar algumas percepções que impedem essa valorização

da decisão judicial, especialmente a de que a lei seria fonte primária, tendo a

jurisprudência um papel secundário. A partir da constatação do papel

fundamental das decisões judiciais para garantia da legalidade tributária,

mesmo nos países de civil law, propomos uma nova concepção de Regra-

Matriz de Incidência Tributária, que leva em consideração não só os

enunciados prescritivos das normas gerais e abstratas, mas também aqueles

presentes na jurisprudência. Essa perspectiva tem o objetivo de propor uma

norma de conduta mais precisa e, com isso, uma ideia de legalidade tributária

mais efetiva. É necessário alertar que não é qualquer decisão judicial que está

apta a integrar-se aos enunciados de normas gerais e abstratas. Para que a

jurisprudência seja capaz de colaborar na delimitação de normas gerais de

conduta tem de ser ela colhida de tribunais superiores e deve haver

comprometimento de vinculação de entendimentos anteriores ao julgamento

de casos posteriores, assim como ocorre nos países de common law.

Palavras-Chave: jurisprudência – lei – legalidade – direito tributário – civil

law

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ABSTRACT

The objective of this thesis is to demonstrate the role of the judicial

decisions for regulating paying taxes’ behavior, from the diagnosis of the

fallibility of the positive law (statutes). The impossibility of the general and

abstract rules, the distinctive characteristic of civil law, to instruct adequately

the paying taxes’ behavior, conduct to judicial decisions the role of defining

the existence of tax obligations (as typically occurs in common law systems).

A critical analysis of the main characteristics of civil law allows demystify

some perceptions that prevent this appreciation of the judicial decisions,

especially that the statutes would be the primary source and the judicial

decision has a secondary role. From the observation of the role of judicial

decisions to ensure the Rule of Law for tax purposes, even in civil law

countries, we propose a new concept of “Regra-Matriz de Incidência

Tributária” – the essential rule designed for paying taxes – which takes into

account not only the general and abstract rules from statutes but also those

statements from judicial decisions. This perspective aims to propose a more

precise standard for paying taxes’ behavior and, therefore, a more effective

idea of Rule of Law for tax purposes. It is necessary to warn that it is not any

judicial decision that is able to integrate the set of statements of the tax

incidence rule (Regra-Matriz de Incidência Tributária). For the judicial

decision to be able to collaborate to establish general standards of paying

taxes’ behavior they must be final and the Courts must be committed to

binding prior understandings, as it occurs in common law countries .

Keywords: court decisions – statutes – Rule of Law – tax law – civil law

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ABREVIATURAS

Art.: Artigo

CPC: Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 5.689, de 1973.

CF/88: Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em

outubro de 1988

CSLL: Contribuição Social sobre o Lucro Líquido

CTN: Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, denominada de Código

Tributário Nacional pelo art. 7º do Ato Complementar nº 36, de 1967

EC: Emenda Constitucional

IRPJ: Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas

MP: Medida Provisória

RE: Recurso Extraordinário

STF: Supremo Tribunal Federal

STJ: Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 14

1 PREMISSAS METODOLÓGICAS .............................................................................. 18

1.1 Delimitação do Objeto ............................................................................................... 20

1.2 Metodologia de Análise ............................................................................................. 22

1.2.1 Método como “Caminho”: evolução histórica do modelo civil law, traço

distintivo em relação ao modelo common law e a utilidade do direito comparado .... 25

1.2.2 Método como Forma de Análise: filosofia da linguagem, semiótica e análise

crítica do modelo civil law .......................................................................................... 31

2 O MODELO CIVIL LAW (DIREITO ROMANO-GERMÂNICO) E A

VALORIZAÇÃO DA NORMA GERAL E ABSTRATA .............................................. 37

2.1 Breve Histórico das Origens do Modelo Civil Law ................................................... 40

2.1.1 Período da República em Roma e a Lei das XII Tábuas .................................... 42

2.1.2 Período do Império Romano e as Compilações de Justiniano (Corpus Iuris

Civilis) ......................................................................................................................... 45

2.1.3 Declínio do Direito Romano na Alta Idade Média ............................................. 49

2.1.4 Renascimento do Direito Romano na Baixa Idade Média e Expansão pela

Europa Continental ...................................................................................................... 50

2.1.5 Nacionalização e Codificação do Direito nos Países da Europa e sua Expansão

às Colônias ................................................................................................................... 56

2.2 Análise do Modelo Civil Law como Direito Posto (Positivo): evolução do Direito

Romano, formação das normas gerais e abstratas, codificação e relação entre regra e ato

de aplicação ..................................................................................................................... 63

2.3 Análise do Modelo Civil Law como Ciência do Direito: a ideia da lei como fonte

primária e da jurisprudência como fonte secundária do direito ....................................... 66

3 NORMAS GERAIS E ABSTRATAS E FALIBILIDADE INERENTE AO

DIREITO POSITIVO: CONTEXTUALIZANDO A AFIRMAÇÃO DA CIÊNCIA

DO DIREITO NO SENTIDO DE QUE A LEI É FONTE PRIMÁRIA PARA

REGULAÇÃO DE CONDUTAS NOS PAÍSES DE CIVIL LAW ................................. 75

3.1 Enunciado Prescritivo, Norma Jurídica, Norma Geral e Abstrata, Regra Jurídica,

Regra de Direito, Lei, Direito Positivo, Sistema Jurídico, Ordenamento Jurídico e

Ciência do Direito ............................................................................................................ 78

3.2 Direito Positivo, Regulação de Condutas e Autonomia da Linguagem .................... 85

3.3 Limitações à Atividade Legislativa na Regulação de Condutas Futuras................... 89

3.4 Problemas do Direito Positivo Identificados a Partir de sua Aplicação: lacunas de

reconhecimento, lacunas normativas e lacunas axiológicas ............................................ 94

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3.4.1 Lacunas de Reconhecimento e o Retorno dos Problemas da Linguagem no Ato

de Aplicação do Direito Positivo ................................................................................. 95

3.4.2 Dificuldades da Atividade Legislativa, uma Nova Concepção de Sistema

Jurídico e a Identificação de Lacunas Normativas ...................................................... 98

3.4.2 Imprevisibilidade na Atividade Legislativa e Lacunas Axiológicas ................ 101

3.5 Falibilidade do Direito Positivo e a Problemática Hierarquização proposta pela

Ciência do Direito .......................................................................................................... 106

3.5.1 Teoria Tradicional das Fontes do Direito e Elucidação do Termo para Efeitos de

Análise Crítica da Posição Hierárquica da Lei .......................................................... 107

3.5.2 Razões e Perigos da Tradicional Concepção de Lei como Fonte Primária ...... 110

3.6 Primariedade da Lei como Fonte de Direito, Utilidade da Norma Geral e Abstrata e

Manutenção do Traço Distintivo dos Países de Civil law ............................................. 116

4 NECESSÁRIA VALORIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA NO MODELO CIVIL

LAW, PAPEL CENTRAL DAS DECISÕES JUDICIAIS PARA A REGULAÇÃO DE

CONDUTAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO E A IDEIA DE UMA REGRA-MATRIZ

DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA ........................................................... 121

4.1 Jurisprudência, Diferença Específica entre Lei (Normas Gerais e Abstratas) e

Decisão Judicial (Normas Individuais Concretas) e Mecanismos de Correção da

Falibilidade do Direito Positivo ..................................................................................... 124

4.2 Valorização da Decisão Judicial e Desmistificação da Diferença Específica entre os

Modernos Sistemas de Civil law e Common law .......................................................... 128

4.2.1 Origens e Características da Common Law, o Papel da Lei e a Valorização da

Decisão Judicial ......................................................................................................... 130

4.2.2. Teoria das Fontes do Direito e Diferença Específica da Valorização da Decisão

Judicial nos Modelos de Civil Law e Common Law................................................. 135

4.2.3 Revisão da Teoria das Fontes do Direito no Civil Law diante da Necessária

Valorização da Decisão Judicial ................................................................................ 137

4.3 Falibilidade do Direito Positivo, Discricionariedade Delegada e Função do Poder

Judiciário ....................................................................................................................... 145

4.4 Primariedade da Lei, Função dos Juízes do Modelo Civil law e Inocuidade do Velho

Debate entre Positivistas e Não-Positivistas .................................................................. 149

4.5 Norma Geral e Abstrata, Decisão Judicial e uma Nova Concepção de Regra-Matriz

de Incidência Tributária ................................................................................................. 153

5 REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA E UMA NOVA

LEGALIDADE TRIBUTÁRIA: INTEGRAÇÃO DO DIREITO POSITIVO ÀS

DECISÕES JUDICIAIS, A NOÇÃO DE PRECEDENTE E OS MECANISMOS DE

REPERCUSSÃO GERAL E RECURSO REPETITIVO ............................................ 162

5.1 Modelo Civil Law e Equivocada Outorga de Desvinculação das Decisões Judiciais

Posteriores ..................................................................................................................... 164

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5.2 Uma Noção Específica e Conclusiva de Precedente ............................................... 169

5.3 Mecanismos de Repercussão Geral e Recurso Repetitivo, Norma Geral e Concreta e

Regra-Matriz de Incidência Tributária Dinâmica .......................................................... 172

5.4 Breve Análise das Críticas à Aplicação de Precedentes no Brasil .......................... 178

5.5 Estabilização da Jurisprudência por meio de Súmulas ............................................ 181

5.6 Mudança do Precedente e Efeitos Jurídicos Prospectivos ....................................... 182

CONCLUSÃO .................................................................................................................. 186

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 192

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INTRODUÇÃO

A relevância da jurisprudência no direito tributário não é fenômeno

recente. As decisões judiciais sempre estiveram presentes como parâmetro

para investigações científicas e para a prática dos juristas (advogados,

procuradores etc.). É natural, quase que automática, a pesquisa de decisões

judiciais quando surgem dúvidas sobre a aplicação das regras tributárias1.

Embora recorrentemente utilizadas, foi só mais atualmente que se

passou a perceber o papel central que as decisões judiciais têm exercido na

formação da legalidade tributária2. Não obstante a jurisprudência sempre

estivesse presente no dia-a-dia daqueles que lidam com o direito tributário, é

mais atual a preocupação acerca da grande influência dessas normas

individuais e concretas na delimitação da obrigação de pagar ou não tributos,

e esse é um dos principais objetivos deste trabalho3: demonstrar como e

porque a jurisprudência exerce um papel tão fundamental para a regulação de

condutas no direito tributário.

A colocação das decisões judiciais no núcleo da legalidade tributária

remonta ao funcionamento dos sistemas jurídicos chamados de “common

law”. É comum a noção de que, nos países de common law, a jurisprudência

ocupa o centro da legalidade, diferentemente dos países em que se opera com

o chamado modelo civil law.

1 Utilizarei neste trabalho o termo “regras tributárias” como as normas jurídicas construídas a partir de

enunciados prescritivos gerais e abstratos, relacionados à instituição e cobrança de tributos. 2 A expressão “legalidade tributária” denota, para os fins deste trabalho, o conjunto de enunciados

prescritivos (sejam eles oriundos de regras gerais e abstratas ou de regras individuais e concretas) apto a

determinar a obrigação de pagar ou não determinado tributo. 3 É muito explicativa a forma com que Robson Maia Lins descreve esse impulso inicial de investigação

científica sobre determinado fenômeno: “Já no processo de busca do conhecimento há um quantum de

conhecimento. Ainda que em nível de intuição, o sujeito que se predispõe ao exame de determinado objeto

carrega, de modo precário, certo nível de questionamento, ainda não sistematizado, ou mesmo sequer postos

em termos intersubjetivos”. A mora no direito tributário. Tese de Dourado. PUC/SP, 2008. p. 21.

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Conquanto se afirme que a existência de leis é garantia do Estado de

Direito nesse modelo civil law, o que obviamente inclui a instituição e

cobrança de tributos, por detrás desse raciocínio está subentendida uma

clareza e precisão não necessariamente alcançadas pelas normas gerais e

abstratas. Por ser a linguagem inerente ao direito positivo4, cria-se

naturalmente um espaço de vagueza e ambiguidade na regulação de condutas,

incluindo a de pagar tributos. Além disso, por ostentarem o caráter de

“abstração”, as regras tributárias pretendem regular situações futuras, ou seja,

a sua produção decorre de um exercício de “futurologia” naturalmente falível.

É esse “espaço” deixado inevitavelmente pelas regras tributárias que a

jurisprudência ocupa. Ficam as decisões judiciais, neste sentido, praticamente

ao lado das normas gerais e abstratas, colocando em xeque o raciocínio de

pensar a lei como fonte primária e primordial do sistema jurídico dos países

de civil law5. A partir do diagnóstico de insuficiência das normas gerais e

abstratas para regular a conduta de pagar tributos (dentre outras), as decisões

judiciais assumem papel fundamental, subvertendo, assim, a premissa que

deveria pertencer ao modelo common law.

4 A expressão “direito positivo” está sendo utilizada, neste trecho, como o conjunto de enunciados

prescritivos de caráter geral e abstrato, como tipicamente se denomina segundo as origens do sistema

romano-germânico. Somente por essa razão convencional é que estamos excluindo, neste momento, as

normas individuais e concretas desse conjunto. 5 John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo afirmam que a colocação da lei como fonte primária do

direito, deixando, consequentemente, a jurisprudência num segundo plano, é uma tradição arraigada ao

modelo civil law e que, embora percebida por muitos estudantes, ainda não foi seriamente enfrentada por

eles, dada a amplitude dogmática dessa concepção: “[...] since the function of judges within that tradition is

to interpret and to apply “the law” as it is technically defined in their jurisdictions. Both state positivism and

the dogma of separation of powers require that judges resort only to “the law” in deciding cases. It is

assumed that whatever the problem that may come before them, they will be able to find some form of law to

apply [...]. They cannot turn to books and articles by legal scholars or to prior judicial decisions for the law.

This dogmatic conception of what law is, like many other implications of the dogmas of revolutionary period,

has been eroded by time and events. [...] In Chapter VI, on judges, we will describe the various ways in

which this theory of sources of law has been subverted by the conduct of civil law judges. These and other

modern tendencies have been noted by scholars, who often recognize their implications for the orthodox

theory of sources of law, but they do not seriously impair the more generally prevailing view of what law is.

To the average judge, lawyer, or law student in France or Argentina, the traditional theory of sources of law

represents the basic truth”. The Civil Law Tradition: an introduction to the legal systems of Europe and Latin

America. 3ª ed. California: Stanford University Press, 2006. p. 24-25.

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De qualquer forma, o ato de pensar as decisões judiciais como

integrativas às como normas gerais e abstratas, trazendo mais proximamente a

ideia de legalidade para o direito tributário, implica delimitar que tipo de

decisão judicial ostentaria esse caráter. Em outros termos, que tipo de

características deveriam ter aquelas normas individuais e concretas para

servirem de parâmetro tanto quanto as regras tributárias? É neste contexto de

complementaridade às normas gerais e abstratas que será tratado o tema dos

precedentes.

A noção de precedente como elemento que integra a legalidade

tributária está ligada, segundo as premissas firmadas neste trabalho, à ideia de

(i) definitividade e (ii) vinculação das decisões judiciais. Em outros termos, as

normas individuais e concretas produzidas pelo Poder Judiciário só podem ser

levadas em consideração, para os fins defendidos neste trabalho, se forem

tomadas por órgãos que decidem em último grau e cujos entendimentos sejam

mantidos para casos julgados posteriormente.

A precariedade característica às decisões de primeiro e segundo graus

de jurisdição6 impede a estabilização de sentido do enunciado produzido.

Considerando que no sistema jurídico brasileiro cabe ao Superior Tribunal de

Justiça e / ou ao Supremo Tribunal Federal (conforme delimitação de suas

competências) determinar a legalidade aplicável ao caso concreto em última

instância, esse parece ser um primeiro critério relevante para delimitação do

termo “precedente” no contexto aqui trabalhado.

Por fim, de nada adianta que as decisões dos tribunais superiores sejam

definitivas, se não houver comprometimento de aplicação de decisão anterior

a casos posteriores. Nos termos defendidos neste trabalho, a jurisprudência só

6 Considerando que a delimitação da obrigação tributária sempre se relaciona com a legalidade e / ou

inconstitucionalidade de determinada regra (excluídas, obviamente, questões meramente probatórias), serão

definitivamente respondidas pelo STJ e / ou o STF.

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pode ser considerada no conjunto de enunciados prescritivos aptos a garantir a

legalidade tributária, ou seja, só contribui efetivamente para delimitar a

conduta de pagar ou não tributos em nível de norma geral, se for garantida

minimamente a sua estabilidade. Se as situações concretas decorrentes da

aplicação de entendimentos jurisprudenciais puderem ser levadas ao Poder

Judiciário ou, ainda, se levadas ao STF e ao STJ puderem ter soluções

diferentes daquelas que orientaram a conduta do contribuinte, perde sentido a

função dessas normas para garantia da legalidade.

Embora diversos objetivos possam ser atribuídos aos recentes

instrumentos processuais criados pelas Leis nº 11.418, de 2006, e nº 11.672,

de 2008, um deles é, sem dúvida, a estabilização de sentido dado às normas

gerais e abstratas por meio dos julgamentos submetidos aos ritos de

repercussão geral e recurso repetitivo. Através dos procedimentos inseridos

pelos artigos 543-B e 543-C ao Código de Processo Civil brasileiro, procura-

se garantir que decisões judiciais tomadas em casos concretos posteriores

acompanhem entendimentos anteriores firmados em julgamentos realizados

sob aqueles ritos. Isso faz com que esse tipo de decisão judicial possa ser mais

fortemente qualificado como precedente e, assim, utilizada como parâmetro

para delimitação da legalidade a ser seguida em matéria tributária.

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1 PREMISSAS METODOLÓGICAS

Certa vez li a seguinte afirmação num famoso período, a qual resume a

contribuição de Galileu Galilei para a ciência: um experimento é considerado

científico quando puder ser repetido por outras pessoas, em outros lugares e,

dadas as mesmas condições, produzir os mesmos resultados7. A ideia de

cientificidade de um trabalho estaria, portanto, relacionada à sua forma de

produção e, por outro lado, à ausência de influência da variável “sujeito”

nesse processo8. Se as condições forem as mesmas e for seguido o mesmo

método, independentemente de quem realiza o trabalho, o resultado deve ser

mesmo9.

7 “O que Galileu fez para atrair a fúria da Inquisição católica e por que Kepler e outras grandes cabeças

escaparam ilesos? Galileu investiu diretamente contra as Escrituras e, ao contrário de Kepler, não esperava

que suas descobertas fossem apenas confirmações, com ligeiras e aceitáveis variações, da verdade revelada

dos livros sagrados e das bulas papais. Não. Galileu pôs de pé um conjunto de premissas que, de tão

revolucionárias, são as mesmas a presidir todas as experiências científicas até hoje – o Método Científico.

Para que um experimento fosse científico, ensinou Galileu, entre outras coisas, ele deveria poder ser repetido

por outras pessoas, em outros lugares e, dadas as mesmas condições, produzir os mesmos resultados.

Simples? Sem dúvida, simples. Mas revolucionário. Um alquimista jamais se colocaria esses entraves – os

ingredientes, os processos e os saberes da alquimia eram segredos pessoais e intransferíveis como os de um

mágico”. Cf. http://veja.abril.com.br/110209/p_088.shtml. Acesso em: 27 jul. 2013. 8 No mesmo sentido é a afirmação de Karl Popper, quanto às ciências que ele chama de “empíricas”: “Um

cientista, seja teórico ou experimental, formula enunciados ou sistemas de enunciados e verifica-o um a um.

No campo das ciências empíricas, para particularizar, ele formula hipóteses ou sistemas de teorias, e

submete-os a teste, confrontando-os com a experiência, através de recursos de observação e experimentação.

A tarefa da lógica da pesquisa científica, ou da lógica do conhecimento, é, segundo penso, proporcionar uma

análise lógica desse procedimento, ou seja, analisar o método das ciências empíricas”. A Lógica da Pesquisa

Científica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 27. 9 Afirma-se que a principal contribuição de Galileu foi para o método científico, pois a ciência, antes disso,

assentava numa metodologia aristotélica, ou seja, não-indutiva. Cf.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Galileu_Galilei. Acesso em: 20 fev. 2013.

“Paralelamente ao desenvolvimento do conhecimento, esta sistematização das atividades, entendida como

método, também passou a evoluir e se transformar. Galileu (1564-1642) foi um precursor teórico do

método experimental, quando contradizendo os ensinamentos de Aristóteles, preconizou que o

conhecimento íntimo das coisas deveria ser substituído pelo conhecimento de leis gerais que

condicionam as ocorrências. O método proposto por Galileu Galilei pode ser rotulado de indução

experimental pois é a partir da observação de casos particulares que se propõe a chegar a uma lei

geral. As etapas propostas foram: observar os fenômenos, analisar seus elementos constitutivos

visando estabelecer relações quantitativas entre os mesmos, induzir hipóteses com base na análise

preliminar, verificar as hipóteses utilizando um procedimento experimental, generalizar o resultado

alcançado para situações similares, confirmar estas generalizações para se chegar a uma lei geral”. Cf.

http://www.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/o_metodo_cientifico_04.pdf. Acesso em: 27 jul. 2013.

Destaques não são do original.

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19

Afirmações desse tipo nos deixam em dúvida quanto à sua

aplicabilidade aos trabalhos científicos na área do direito. Grande parte dos

escritos relacionados à metodologia do trabalho científico parecem “cair

como uma luva” para as ciências exatas e biológicas e sempre deixam a

impressão de terem sido adaptados quando pretendem falar do tema

relacionado às ciências humanas / sociais10

.

A ideia de objetividade se aproxima muito do adjetivo “científico” nos

termos atribuídos por Galileu Galilei: se as condições de produção forem as

mesmas, o mesmo resultado tem de ser alcançado ou, caso contrário, há

subjetividade na construção teórica e, aí, sua cientificidade cairia por terra.

Para as ciências sociais, como o direito, é difícil imaginar como

construir uma tese, uma teoria científica a tal ponto, ou seja, de modo que

outra pessoa, seguindo os mesmos passos já perseguidos, chegue ao mesmo

resultado. Por outro lado, não se pode admitir como científico um trabalho

cuja conclusão varie de acordo com o autor11

. Parece ser esse o desafio que

10

Há diversas perspectivas para a classificação das ciências em sociais, humanas, sociais aplicadas, empíricas

etc. O Grupo de História, Teoria e Ensino da USP (http://www.ghtc.usp.br/) propõe a classificação do direito

como “ciência social aplicada”, já que seu objetivo seria intervir no comportamento humano: “A primeira

classificação sistemática das ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles [...]. Com pequenas variações,

essa classificação foi mantida até o século XVII quando, então, os conhecimentos se separaram em

filosóficos, científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a desaparecer nas classificações

científicas (é um saber diferente do científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras

classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do

século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de

resultado obtido. Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou

aquela que se costuma usar até hoje: (i) ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria,

álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.); (ii) ciências naturais (física, química,

biologia, geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc.); (iii) ciências humanas ou sociais

(psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, lingüística, psicanálise, arqueologia,

história, etc.); (iv) ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir

na Natureza, na vida humana e nas sociedades, como por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura,

informática, etc.)”. Cf. http://www.ghtc.usp.br/server/Sites-HF/Egont-Schenkel/11_imp.htm. Acesso em: 5

nov. 2013. 11

É neste sentido a colocação de Rafael Mafei e Thiago Acca, quando assumem que “um trabalho científico

pode muito bem se ocupar de dar uma resposta bem fundamentada” a um “problema jurídico difícil”. “Do

ponto de vista da metodologia, o problema central está em como fazer isso cientificamente, ou seja, de forma

regrada, transparente e (na medida do possível) impessoal, evitando assim que o trabalho se torne um libelo

apaixonado ou uma petição de princípios que defenda, a todo custo, uma ou outra posição”. QUEIROZ,

Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. Como Respondo Cientificamente a uma Questão Juridica

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enfrentam os cientistas do direito nos famosos capítulos introdutórios das

monografias jurídicas: situar-se entre a objetividade das ciências exatas e

biológicas e a subjetividade de trabalhos não-científicos, como a presente

tentativa, mediante a delimitação do objeto de análise e os métodos utilizados

para tanto.

1.1 Delimitação do Objeto

A delimitação do objeto é um ato necessário ao trabalho científico e se

volta a restringir o campo de análise do sujeito cognoscente diante de seu

objetivo12

.

O objetivo deste trabalho é demonstrar a imprescindível13

função da

jurisprudência14

para regulação de condutas no direito tributário brasileiro, a

Controversa. In: QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; FEFERBAUM, Marina. Metodologia Jurídica: um roteiro

prático para trabalhos de conclusão de curso. 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 85. 12

É provocativa a teoria proposta por Max Weber para explicar a delimitação do objeto, no livro A

“objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais. Trad. Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 2006. Nas

didáticas palavras do tradutor da obra, Gabriel Cohn: “O conhecimento científico sempre incide sobre

aspectos limitados da realidade, até porque o número de ocorrências é infinito, no espaço e no tempo e jamais

pode ser captado no todo. Isso, para Weber, é básico – não como algo a ser anotado e deixado de lado, mas

como fundamento do modo que com a questão será tratada. Ele tira todas as consequências da questão que se

pode formular de imediato nesse contexto – por que a atenção do cientista se volta para isto e não para

aquilo? – para chegar a outra formulação, adequada às ciências e da cultura. Agora a questão passa a ser: por

que determinados traços da realidade, de preferência a inúmeros outros, têm significação para o cientista

[...]? Observe-se que há uma inflexão fundamental entre a resposta de Weber e a possível resposta que se

limitasse a afirmar que, não podendo conhecer tudo, o cientista concentra a atenção sobre o que lhe foi

solicitado ou é mais viável. Para este, o que importa, no sentido mais forte do termo, é aquilo que o

conhecimento procurado representa para quem o busca, aquilo que lhe confere significação no mundo

cultural de que participa. [...] Nesse percurso, Weber recorre a uma ideia decisiva. É que, para ele, o mundo

da cultura não é aquela dimensão da realidade social que confere sentido ao que os homens fazem, mas, ao

contrário, é aquela arena significativa em que os próprios homens atribuem valor ao que fazem. [...] O

conhecimento científico é objetivo nos resultados (que valem igualmente para todos os que o procuram), mas

não na gênese, pois a força motriz da pesquisa é dada por valores (que valem somente para os que aderem a

eles). Isso equivale a dizer que sem referências a valores não se pratica ciência (pois então ela carece de

interesse) [...]. Não há, pois, ciência social para Weber sem referência a valores que conduzam o interesse do

cientista àquilo que se revelará importante para ele [...]”. Apresentação – o sentido da ciência. In: WEBER,

Max, op. cit., p. 9-12. 13

O termo “imprescindível” não está sendo utilizado de forma retórica, mas de forma literal, ou seja, “sem o

qual não há”. 14

Em princípio, estamos utilizando o termo “jurisprudência” no sentido de decisão judicial (não

necessariamente um conjunto de decisões judiciais ou um corpo de decisões judiciais no mesmo sentido). No

último Capítulo precisaremos o sentido da expressão “decisão judicial” para efeitos de integração às normas

gerais e abstratas, com capacidade para regulação de condutas futuras.

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partir da constatação da inerente falibilidade das normas gerais e abstratas.

Para alcançar esse objetivo algumas premissas construídas envolvem a análise

dos chamados modelos de “civil law” e “common law” e, também, a função

das decisões judiciais. Diante disso, dois esclarecimentos se mostram

necessários à delimitação do objeto de análise: (i) a investigação dos

chamamos modelos de civil law e common law serve para precisar o sentido

dessas expressões – afinal, o que significa ser um país integrante da família de

civil law ou common law?; e (ii) a decisão judicial é considerada válida

quando atender aos requisitos postos pelo próprio sistema jurídico, que dizem

respeito à forma de produção e autoridade competente, ainda que seu

conteúdo possa ser criticado.

Quanto ao primeiro ponto, é interessante anotar que, embora possamos

utilizar elementos característicos de outros sistemas jurídicos (como o norte-

americano e o inglês) e proposições descritivas que se voltam, genericamente,

a diversos sistemas jurídicos integrantes de uma mesma família de direito

(países de civil law), tudo isso tem o objetivo de analisar criticamente o

sistema jurídico brasileiro e a Ciência que fala sobre ele. Isto quer dizer que

não é objetivo deste trabalho analisar criticar outros sistemas jurídicos que

não o brasileiro, ainda que, por vezes, algumas de suas conclusões possam ser

a eles aplicáveis. Também é importante ressaltar que a análise dos modelos de

civil law e common law não se encerra em si mesma, ou seja, não é o objetivo

deste trabalho investigar profundamente todas as diferenças entre eles. O

estudo desses modelos jurídicos serve de base teórica para analisar a relação

entre normas gerais e abstratas (leis) e decisão judicial (jurisprudência).

Quanto ao segundo ponto, o que queremos deixar claro é que o objetivo

deste trabalho é analisar a jurisprudência sob uma perspectiva relacional e

funcional, ou seja, que papel ela exerce em relação às leis e, diante disso, que

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função ela assume para garantia da legalidade no direito tributário. Isto quer

dizer que não será objeto de investigação científica o seu conteúdo, como

pretendem as infinitas e interessantíssimas discussões sobre a racionalidade

das decisões judiciais: assumimos a premissa da decisão judicial

presumidamente válida, sem entrar no mérito sobre a qualidade de sua

motivação.

1.2 Metodologia de Análise

Falar sobre metodologia de análise requer, em primeiro lugar,

esclarecer uma ambuiguidade que o termo “método” denota. Pelo sentido

literal e mais largamente utilizado, a metodologia se aproxima à ideia de

“caminho”. Por outro lado, também pode ser entendida como “forma de

investigação”, ou seja, em que contexto teórico a análise se apoia15

.

A palavra “método” advém do grego “methodos”, que significa,

literalmente, “caminho para chegar a um fim”16

. A propósito dessa didática

comparação entre método e caminho é a célebre conversa entre os

personagens “Alice” e o “Gato” na fábula “Alice no País das Maravilhas”17-18

:

15

Tácio Lacerda Gama, citando Karl Larenz, coloca de forma muito interessante o trato da metodologia num

trabalho científico: “empreender uma investigação é como trilhar um caminho, no qual os problemas são o

ponto de partida, as respostas o ponto de chegada e o percurso é determinado pelo método de investigação”.

Em outra passagem: “a escolha de um método fixa uma orientação para o desenvolvimento do trabalho,

permitindo tomar posição sobre alguns conceitos fundamentais […]”. Contribuição de Intervenção no

Domínio Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 29. 16

Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo. Acesso em: 25 ago. 2013. 17

“Cheshire Puss”, she began (...). / “Would you tell me, please, which way I ought to go from here?” / “That

depends a good deal on where you want to get to”, said the Cat. / “I don’t much care where –” said Alice. /

“Then it doesn’t matter which way you go”, said the Cat. In: CARROL, Lewis. Alice’s Adventures in

Wonderland. Collector’s Library, 2004. p. 64. Trecho traduzido retirado no livro em português, disponível no

link http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/alicep.html. Acesso em: 11 ago. 2013. 18

“Alice’s Adventures in Wonderland, frequentemente abreviado para Alice in Wonderland (Alice no País

das Maravilhas) é a obra mais conhecida de Charles Lutwidge Dodgson, publicada a (sic) 4 de julho de 1865

sob o pseudônimo de Lewis Carroll. É uma das obras mais célebres do gênero literário nonsense. O livro

conta a história de uma menina chamada Alice que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar

fantástico povoado por criaturas peculiares e antropomórficas, revelando uma lógica do absurdo

característica dos sonhos. Este está repleto de alusões satíricas dirigidas tanto aos amigos como aos inimigos

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“Gatinho de Cheshire”, [...]

“O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo

tomar para sair daqui?”

“Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o Gato.

“Não me importo muito para onde...”, retrucou Alice.

“Então não importa o caminho que você escolha”, disse o Gato.

A partir desse trecho simples e divertido pode-se concluir que nesta

primeira acepção (caminho), o método se interpõe entre um diagnóstico

contextual e um objetivo. Sem contexto (problema) e sem objetivo (aonde se

quer chegar) não existe método. Como responde o Gato no diálogo acima, se

não se quer chegar a um lugar específico, tanto faz o caminho escolhido. Por

outro lado, traçado um objetivo, a metodologia é que denota o caminho para

se chegar até ele.

Se todo ato decisório tem por detrás um contexto, a decisão de

produzir-se um trabalho científico não foge à regra. Assim, a ideia deste

trabalho surge a partir do incômodo de que as normas gerais e abstratas,

típicas e supostamente predominantes nos países cujo modelo jurídico é o

civil law, pode ser insuficiente para orientar a conduta dos indivíduos quanto

à obrigatoriedade ou não de pagar tributos. Em outros termos, os objetivos

deste trabalho estão guiados pela ideia de que as regras tributárias19

não se

prestariam, sozinhas, a regular a principal conduta do direito tributário, qual

de Carrol, de paródias a poemas populares infantis ingleses ensinados no século XIX e também de

referências linguísticas e matemáticas frequentemente através de enigmas que contribuíram para a sua

popularidade. É assim uma obra de difícil interpretação pois contém dois livros num só texto: um para

crianças e outro para adultos”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_no_Pa%C3%ADs_das_Maravilhas.

Acesso em: 26 fev. 2013. 19

Reitere-se que será utilizado, neste trabalho, o termo “regras tributárias” no sentido de “conjunto de

normas jurídicas construídas a partir de enunciados prescritivos gerais e abstratos, relacionados à instituição e

cobrança de tributos”, considerando que os enunciados prescritivos, antes de integram a estrutura condicional

da norma jurídica, não têm aptidão para regular condutas.

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seja, a de pagar tributos20

, causando, assim, um enorme déficit na ideia de

Estado de Direito21

.

Para além de evidenciar as razões desse contexto, o objetivo desta tese é

demonstrar que a jurisprudência, ostentando a qualidade de norma individual

e concreta, é o mecanismo que pode cumprir esse déficit de legalidade em

matéria tributária, observados alguns pressupostos.

Dito isto, voltemos ao método, ou seja, ao “caminho” percorrido para

se alcançar o objetivo pretendido. Para a construção das premissas e

conclusões deste trabalho, passaremos por, basicamente, duas fases.

Num primeiro momento, faremos uma análise do modelo civil law do

pontos de vista do direito comparado22

e da própria história do direito,

considerando a evolução desse modelo jurídico de forma contextual.

20

Embora se pretenda descobrir em que medida as regras tributárias estão aptas a orientar o comportamento

dos indivíduos, essa análise não será feita do ponto de vista empírico ou sociológico. Não é objetivo deste

trabalho verificar, factualmente, a eficácia das regras tributárias (se os indivíduos cumprem ou não

determinada norma geral e abstrata) ou se há outros fatores, não jurídicos, que podem influenciar na conduta

de pagar ou não o tributo. O que se pretende é demonstrar que, potencial e infalivelmente, as regras

tributárias podem ser insuficientes para regular a conduta de pagar ou não tributos, e que a jurisprudência

termina por ocupar esse espaço deixado pelas normas gerais e abstratas, integrando-se à legalidade tributária.

A análise é puramente jurídico-filosófica: considerando que o conteúdo das normas gerais e abstratas,

inclusive e especialmente das regras tributárias (dado que essas integram o direito público-administrativo), é

meio inapto para orientar a conduta obrigatória de pagar ou não determinado tributo, que papel exerce a

jurisprudência nesse contexto? Em outros termos, parte-se do pressuposto de que, independentemente de

haver outras razões (o que implicaria uma análise de cunho sociológico), considerando que os indivíduos

admitem as regras tributárias como determinantes às suas ações, ainda assim ela pode ser considerada

insuficiente para orientar a conduta de pagar ou não tributos. O objeto deste trabalho está, portanto, voltado

àquele que admite as regras tributárias como fator determinante para sua conduta (de pagar ou não tributos),

mas pode não segui-la por inaptidão das próprias regras (falta de clareza e precisão). 21

Há um intenso debate sobre o conceito de “Estado de Direito”: se seria um conceito jurídico, puramente

formal, ou mais conteudístico e valorativo, ligando-se aos próprios pressupostos para utilização do termo.

Não pretendemos, neste trabalho, entrar nessa discussão, e adotaremos, para os fins pretendidos, o conceito

jurídico-formal de Estado de Direito, geralmente aceito e que remonta às suas origens, conforme exposto por

Dimitri Dimoulis: “A definição geralmente aceita entende como “Estado de Direito”, Rechtsstaat, segundo o

termo cunhado na Alemanha desde finais do século XVIII, o Estado cuja atuação se submete a regras

jurídicas, no intuito de garantir aos indivíduos certos direitos fundamentais”. DIMOULIS, Dimitri. Incertezas

do “Estado de Direito” na Perspectiva Juspositivista. Raz e os Problemas do Conceito Formal. In: VIEIRA,

Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (org.). Estado de Direito e o Desafio do Desenvolvimento. São Paulo:

Saraiva, 2011 (Coleção direito, desenvolvimento e justiça. Série produção científica). p. 96. 22

Embora o estudo do direito comparado possa ser entendido autonomamente como método, neste trabalho

ele é um meio para as análises centrais, que dizem respeito à identificação da falibilidade das leis e,

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Num segundo momento, após discorrermos sobre a evolução e as

principais características da modelo ao qual nosso sistema jurídico pertence

(civil law), adentraremos na análise crítica especialmente voltada à Ciência do

Direito que descreve o civil law e suas “fontes”23

.

Essas últimas investigações – análise crítica da classificação das fontes

do direito pela Ciência jurídica dos países de civil law – e a demonstração do

papel exercido pela jurisprudência para a regulação de condutas,

especialmente no que se refere ao direito tributário, estão mais relacionadas à

segunda ideia de método, ou seja, à forma de análise. Utilizando o referencial

teórico da filosofia da linguagem é que construiremos as premissas relativas à

problemática percepção da lei como fonte primária (falibilidade das normas

gerais e abstratas) e da jurisprudência como fonte secundária na regulação da

conduta de pagar tributos.

1.2.1 Método como “Caminho”: evolução histórica do modelo civil law,

traço distintivo em relação ao modelo common law e a utilidade do direito

comparado

Neste estudo, a comparação pontual entre o sistema de civil law e o

sistema de common law serve de mote para os dois objetivos maiores: (i)

desmistificar e recolocar a grande diferença que se atribui a esses dois

modelos e (ii) mostrar como os mecanismos de cada qual podem ser úteis à

efetiva implantação do Estado de Direito, garantindo segurança e

consequentemente, da desmistificação de que a jurisprudência teria um papel secundário nos sistemas de civil

law. 23

O termo está colocado entre aspas em razão de sua multiplicidade de significados (ambuiguidade). Até o

Capítulo em que trataremos da falibilidade do direito positivo e os perigos da concepção de se entender a lei

como “fonte primária”, utilizaremos esse termo tal qual colocado historicamente pela Ciência do Direito nos

países de civil law: denotando tanto processo de produção como produto e sem delimitação do sentido de

“direito”.

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26

previsibilidade às relações sociais24

. Mas isso é resultado, sem dúvida, de uma

grande comparação, ou melhor, de uma primordial diferença entre dois

modelos jurídicos e que só existe relativamente (comparando-se um em

relação ao outro): a ideia de que os países do modelo civil law têm as leis

como fonte primária do Estado de Direito, diferentemente do modelo

commom law, em que a jurisprudência representa um papel central25

.

Essas duas características que parecem “dividir” os dois grandes

modelos legais contemporâneos (civil law e common law) só aparecem em

estado comparativo, ou seja, mediante análise comparativa de um modelo e

outro, o que nos impulsionou ao estudo do direito comparado26

.

24

Não pretendo me alongar no tema do direito comparado, pois meu objetivo não é (i) discutir seu caráter

científico ou de ciência autônoma; (ii) limitar este trabalho à comparação entre dois sistemas jurídicos; nem

(iii) observar especificidades dos direitos estrangeiros, visando propor reformas legislativas. A utilização do

direito comparado, aqui, é simplesmente metodológica, conforme expõe René David: “Sem dúvida que, para

a maior parte, o direito comparado apenas será um método, o método comparativo, podendo servir para os

variados fins que ele se propõe. Pelo contrário, para outros, pode se conceber que o direito comparado seja

uma verdadeira ciência, um ramo autônomo do conhecimento do direito, se a preocupação for concentrada

sobre os próprios direitos estrangeiros e sobre a comparação que importa, em diferentes aspectos, facilitar

com o direito nacional”. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes.

p. 10-11. 25

É claro que a tarefa de comparar direitos é difícil e arriscada. A própria classificação que se tem como

dada, entre civil law e common law, pode, dependendo do sujeito cognoscente, fazer sentido ou não, embora

possa ser válida. A classificação de tantos sistemas jurídicos nacionais nessas duas categorias exige, por

óbvio, a desconsideração de peculiaridades consideradas irrelevantes e a abstração de tantas outras. Nesse

processo de abstração e ignorância, as propriedades relevantes para incluir determinado país em um ou outro

sistema dizem respeito, em suma, à estrutura e às fontes do direito. 26

Assumirei, aqui, o caráter científico do método direito comparado, pelas razões e conclusões apresentadas

por René David: “Os primórdios do direito comparado foram marcados por discussões tendentes à definição

do seu objeto e natureza, a fixar o seu lugar entre as diferentes ciências, a caracterizar os seus métodos, e a

determinar as suas possíveis aplicações e interesses. Foi discutido se o direito comparado devia ser

considerado como um ramo autônomo da ciência do direito ou se, pelo contrário, ele não passava de um

simples método, o método comparativo, aplicado à ciência jurídica; procurou-se atribuir ao direito

comparado um domínio próprio, distinguindo-o da história comparativa do direito, da teoria geral do direito e

da sociologia jurídica; procurou-se também determinar em que ramos do direito se podia obter proveito da

comparação; colocou-se a questão de saber que direito era útil, oportuno ou mesmo permitido comparar entre

si; chamou-se a atenção para os perigos que os juristas deviam evitar, quando se empenhassem nos estudos

do direito comparado. Estas discussões constituem o fulcro das primeiras obras que apareceram nos

diferentes países sobre o direito comparado, e foram estes problemas que estiveram na ordem do dia do

primeiro Congresso Internacional do Direito Comparado, realizado em 1990; um eco tardio dessas discussões

encontra-se ainda em certas obras de publicação recente. É natural que estes problemas tenham sido

colocados em primeiro plano logo que se impôs aos juristas o direito comparado; era inevitável que se

interrogassem então sobre quem era este recém-chegado, como deveriam ser orientados os novos

ensinamentos que iam ser dados, em que direções deveriam ser encaminhadas as investigações que iriam ser

feitas ao abrigo desta expressão. Estas discussões perderam grandemente a sua validade e já não é

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27

Ao dissertar sobre a utilização do método do direito comparado, JOSÉ

ARTUR LIMA GONÇALVES, apoiado nas lições dos professores GERALDO

ATALIBA e CLÉBER GIARDINO, coloca a perspectiva reveladora que o estudo

do direito comparado pode dar ao direito interno27

:

É oportuno recordar a lição de Geraldo Ataliba e Cléber Giardino

[estudo inédito sobre o ICM na Constituição], prestando especial

atenção à advertência por eles feita: “[...]. Importa, à vista destas

considerações, portanto, ter rigorosa consciência de que se está

fazendo aplicação do direito comparado, como técnica elaborativa

ou discursiva. [...]”. E exemplificam: “Para efeitos didáticos,

recorremos a uma imagem de alcance propedêutico singular. Se se

perguntar a um jovem aldeão japonês quais são as características de

seu povo, quais são suas notas típicas, os traços que o singularizam,

ele certamente designará traços universais de modo a revelar sua

incapacidade de perceber – nesse objeto de consideração que lhe é

tão familiar (seu povo) – o que tem de comum com outros povos e

o que tem de peculiar [...] Se levarmos esse jovem a percorrer

rapidamente a Europa, a África, a América e então renovarmos a

pergunta, a resposta virá fluente, fácil, imediata: ‘as peculiaridades

do homem japonês são: olhos rasgados, pele amarela, cabelos

negros e lisos, etc.’. Só após estabelecer comparações, lhe foi

possível destacar com precisão, concisão e presteza o que é

peculiar ao seu povo. [...]” (g.n.)

O recurso ao direito comprado é, portanto, extremamente útil,

desde que a sua utilização seja acompanhada das exigências que

essa técnica impõe.

Esse recurso não consiste na tradução de proposições prescritivas

de outros sistemas, ou suas respectivas proposições descritivas,

para posterior e singela aplicação a hipóteses de conflitos locais,

que reclamam solução a partir das exigências sistemáticas e locais

típicas.

O direito comparado serve à tarefa de enfatizar as peculiaridades do

sistema nacional [...].

“Comparar” significa identificar semelhanças e diferenças e, por isso,

decorre de um estado de curiosidade natural: como funciona o sistema

ocasião própria para nos demorarmos demasiado com isso, agora que o direito comparado ganhou

sólidas raízes. (destaques não são do original). Op. cit., p. 2-3. 27

Imposto sobre a Renda: pressupostos constitucionais. 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores,

2002. p. 19-22.

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28

jurídico norte-americano? Será ele semelhante ou completamente diferente do

nosso sistema brasileiro? E o sistema inglês? Estes são tipos de perguntas que

na maioria das vezes leva ao estudo comparativo de sistemas jurídicos28

. O

estudo de outro conjunto de sistemas jurídicos, como o common law,

entretanto, não cumpre o simples papel de satisfazer os curiosos29

.

Na Introdução da famosa obra sobre o assunto, “Os Grandes Sistemas

do Direito Comparado”, o autor francês RENÉ DAVID elenca três grandes

utilidades desse método de estudo30

:

As vantagens que o direito comparado oferece podem,

suscintamente, ser colocadas em três planos. O direito comparado é

útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao direito;

é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional;

é, finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e

estabelecer um melhor regime para as relações da vida

internacional.

[...]

O direito comparado pode ser utilizado nas investigações relativas

à história, à filosofia ou à teoria geral do direito.

(destaques não são do original)

A primeira utilidade, voltada ao estudo do direito em nível de teoria

geral, é reconhecidamente a principal razão pela qual utilizamos tal método,

considerando que neste trabalho pretendemos repensar as categorias que

28

O prof. Guido Soares ressalta esse estado emocional de estudo do direito comparado: “o Direito

Comparado é um dos mais interessantes campos da Ciência Jurídica. Na ótica de um estudioso do Direito

Internacional, nosso caso, o comparativismo jurídico mostra que há uma série de diferenças de tratamento a

um determinado fenômeno da vida do homem em sociedade, que outros sistemas nacionais propiciam, os

quais, por coexistirem, no tempo e no espaço, com o brasileiro (onde se situa o analista,), dão causa à criação

de institutos assemelhados. Seja por emulação (...), seja por criação autônoma, as semelhanças e diferenças

entre um mesmo instituto, em sistemas jurídicos nacionais diversos, despertam a curiosidade do cientista do

Direito. Uma primeira questão que se coloca é a de determinar se a existência de tais institutos seria um

fenômeno internacional!”. Common Law: introdução ao direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1999 (RT Didáticos). p. 12-13. 29

A comparação de sistemas jurídicos, embora remonte a períodos muito antigos, somente foi levada ao

status de ciência no século XIX e resultou do intenso processo de nacionalização dos ordenamentos (Cf.

DAVID, René, op. cit., p. 1-2), como exporemos no Capítulo relativo ao modelo civil law. 30

Ibidem, p. 3.

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29

parecem até ontológicas quando se atenta ao discurso jurídico tradicional, de

tão arraigadas ao modelo civil law. As ideias de que a lei é a fonte primária na

regulação jurídica e para garantia do Estado de Direito e de que a

jurisprudência tem papel e alcance inter partes, são postas em xeque quando

se estudam outros sistemas jurídicos31

e / ou as Ciências que falam sobre eles.

Um dos principais objetivos deste trabalho é demonstrar como algumas

categorias enraizadas ao modelo civil law devem ser repensadas do ponto de

vista científico. É possível, por exemplo, determinar, com a clareza que as

conceituações do direito administrativo nos induzem, os limites dos atos

infralegais? Como lidar com a afirmação de que as leis ou a CF/88 se

sobrepõem aos regulamentos da perspectiva da filosofia da linguagem, ou

seja, considerando que as palavras não se conectam real e

imprescindivelmente com os objetos? Como permanecer afirmando que a

jurisprudência tem papel secundário no modelo civil law, se os tribunais é que

têm competência para dizer o que a lei significa?

As respostas às indagações acima, de cunho filosófico, serão mais bem

respondidas, a meu ver, se considerada a perspectiva do direito comparado,

nos termos colocados por RENÉ DAVID32

:

O mesmo se poderá dizer, ainda, das fontes do direito e dos

métodos. A teoria geral, exposta pelos civilistas franceses, exalta a

codificação e a lei; ela apresenta-as como a forma mais apta e

conveniente de exprimir as regras do direito num Estado

31

René David coloca sutilmente essa questão: “Também a teoria geral do direito se beneficia

consideravelmente do estudo do direito comparado. A origem histórica das nossas classificações, o caráter

relativo dos nossos conceitos, o condicionamento político ou social das nossas instituições, apenas nos são

revelados com clareza, se para os estudarmos, nos colocamos fora do nosso próprio sistema de direito. De

que valem as nossas distinções de direito público e direito privado, de civil e de comercial, de direito

imperativo e supletivo, de lei e regulamento, de direitos reais e de direitos de crédito, de móveis e imóveis?

Aquele que apenas estudar (sic) o direito francês considera estas oposições naturais e é tentado a atribuir-lhes

um caráter necessário. O direito comparado faz-nos ver que não são aceitas em toda a parte, que podem estar

em declínio ou mesmo ter sido abandonadas em certos países; mais que a sua origem, o direito comparado

nos leva a nos interrogarmos sobre a sua justificação e o seu alcance reais no sistema do nosso direito

nacional atual”. Op. cit., p. 4. 32

Ibidem, p. 5.

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30

democrático, limitando-se apenas a ver na jurisprudência e na

doutrina órgãos que se destinam a aplicar ou comentar a lei.

O direito comparado desvenda todo o exagero de preconceitos e de

ficção que esta análise comporta; mostra-nos que outras nações,

julgadas democráticas, aderiram a fórmulas muito diferentes,

rejeitaram a codificação e opuseram-se a um alargamento, segundo

elas perigoso para a democracia, da função da lei; revela-nos, por

outro lado, que em outros Estados se consideram como falsamente

democráticas as fórmulas cujos méritos afirmamos.

(destaques não são do original)

O resultado desse tipo de análise induz, juntamente com a observação

da Ciência que descreve os direitos estrangeiros, ao aperfeiçoamento da

Ciência jurídica brasileira e do próprio direito positivo brasileiro, que seria a

segunda utilidade do método do direito comparado33

. Pela observação dos

direitos estrangeiros e pela análise comparativa, uma nova perspectiva do

nosso direito brasileiro pode ser construída, portanto, a partir da utilização do

método do direito comparado34

.

A análise crítica sobre o atual modelo civil law exige não só uma

comparação pontual com o modelo da common law, mas também uma

investigação sobre suas origens. A origem do atual modelo civil law remonta

33

“O direito comparado é útil para um melhor conhecimento do nosso direito nacional e para seu

aperfeiçoamento. O legislador sempre utilizou, ele próprio, o direito comparado para realizar e aperfeiçoar a

sua obra. Não foi por acaso que se falou, no século passado, de legislação comparada. A preocupação

daqueles, que criaram na França, em 1869, a Sociedade de Legislação Comparada, (...) foi estudar os novos

códigos que vinham sendo publicados nos diversos países, com vista a verificar as variantes que

comportavam em relação aos códigos franceses e sugerir ao legislador, em tais circunstâncias, certos retoques

nestes últimos”. Ibidem. 34

Embora, neste trabalho, esteja muito mais inclinada à primeira utilidade que à segunda. A primeira

utilidade, aquela relacionada às categorias filosóficas, é observada nos trabalhos em que o direito comparado

serve mais de método que de ciência autônoma. Essa afirmação decorre do próprio René David, que afirma,

sem discussões, o caráter científico do direito comparado, quer sob a primeira perspectiva, quer sob a

segunda: “Sem dúvida que, para a maior parte, o direito comparado apenas será um método, o método

comparativo, podendo servir para os variados fins que ele se propõe. Pelo contrário, para outros, pode se

conceber que o direito comparado seja uma verdadeira ciência, um ramo autônomo do conhecimento do

direito, se a preocupação for concentrada sobre os próprios direitos estrangeiros e sobre a comparação que

importa, em diferentes aspectos, facilitar com o direito nacional”. Ibidem, p. 10-11.

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31

ao direito romano e a evolução desse modelo jurídico se confunde com a

própria evolução histórica da sociedade35

.

As necessidades sociais e os papéis que determinadas instituições

exerceram ao longo da história europeia – desde a República Romana,

passando pela Igreja na Idade Média e pela concepção renascentista do

Humanismo – explicam muito acerca do atual direito brasileiro, herança do

direito romano exportado por Portugal.

A própria percepção da lei como fonte primária e da jurisprudência

como fonte secundária do direito, central para os objetivos deste trabalho, é

herança do direito que se originou em Roma, sob determinadas condições

históricas.

Todo fato é contextual. As regras gerais e abstratas que hoje

preponderam no modelo romano-germânico não surgiram do nada; ao

contrário, derivam de um modelo sistema jurídico nascido sob determinadas

condições políticas, econômicas e sociais. Por essa razão é que, ao demonstrar

as características do modelo civil law, não deixaremos de considerar

elementos históricos que colaboram, em determinados momentos, para

explicar os sistemas jurídicos contemporâneos.

1.2.2 Método como Forma de Análise: filosofia da linguagem, semiótica e

análise crítica do modelo civil law

Os paradigmas36

propostos pela Filosofia da Linguagem são a base do

método utilizado analisar criticamente o papel das normas gerais e abstratas

35

José Carlos Moreira Alves adverte que, diferentemente de outras Ciências (como a química), o estudo do

direito está sempre relacionado, ainda que de forma contextual, à história. Direito Romano. 11ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1998. p. 2.

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32

(leis em sentido amplo) e da jurisprudência nos sistemas de civil law,

especialmente no que diz respeito ao objetivo primordial desses mecanismos,

que é garantir o Estado de Direito37

.

Em Viena, por volta de 1923, um grupo de filósofos, matemáticos,

físicos, sociólogos, psicólogos, lógicos entre outros cientistas, reunia-se com a

finalidade de discutir os problemas relativos à natureza do conhecimento

científico para, assim, construir o que se poderia chamar de “teoria geral do

conhecimento científico” ou “filosofia da ciência”38

.

Neste processo, o “Círculo de Viena”, como passou a ser chamado

aquele grupo, reduziu sua Filosofia da Ciência à Epistemologia (estudo dos

36

“Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade

científica consiste em homens que partilham um paradigma”. KHUN, Thomas. A Estrutura das Revoluções

Científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 219. 37

O termo “Estado de Direito” está sendo utilizado aqui em sua acepção mais “formal” e, diria, consensual,

conforme descreve Rafael Mafei, referindo-se a Joseph Raz: “Formalmente, diz Raz, o Estado de Direito

(Rule of Law) é, apenas, aquilo que ele literalmente sugere: o governo pelas regras de direito. Isso implica,

ainda segundo ele, duas coisas distintas porém relacionadas: (i) a existência de regras formalmente criadas de

acordo com as fórmulas prescritas pelo ordenamento jurídico, que (ii) garantam condições de que um corpo

social se guie por elas (Raz, 1997, p. 212). [...] A ideia de que as normas jurídicas guiam comportamentos e

de que a principal característica de um Estado de Direito é a sua capacidade de fazer justamente isso – guiar,

servir de padrão normativo para as ações – perpassa todo seu texto. Por isso, diz Raz, poderá ostentar o rótulo

de Estado de direito – independentemente dos princípios políticos que promova, como o amor ou o ódio

racial, a igualdade ou a desigualdade entre pessoas de diferentes gêneros etc. – todo e qualquer sistema

jurídico que tiver regras que sejam capazes de ser obedecidas pelas pessoas (públicas ou particulares, naturais

ou jurídicas) a que se destinarem”. QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Formalismo e Normatividade no

Conceito de Estado de Direito. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (org.), op. cit., p. 82 e 90. 38

Segundo Dunia Pepei, “os temas do aprisionamento do eu e dos limites da comunicação humana tornaram-

se […] os problemas centrais de uma época que já encarava com desespero o próprio futuro, e encontraram,

no estudo da linguagem e das suas formas, o modelo explicativo mais adequado. Estes problemas foram

enfrentados em Viena nos diversos âmbitos da cultura: da sátira de Karl Kraus à música de Schöenberg, da

arquitetura de Adolf Loos à poesia de Holmannsthal, da pintura de Klimt à filosofia de Wittgenstein; suas

análises traduziram-se concretamente na análise da estrutura lógica das diversas formas de expressão, e as

soluções, que de vez em quando foram dadas, pareciam girar em torno de duas figuras centrais: Karl Kraus e

Ernest Mach […] A profunda rachadura produzida entre o espírito clássico e a ciência moderna faz emergir

um problema essencial: recuperar, apesar de tudo, um critério diferente de racionalidade científica, redefinir

uma lógica da ciência que torne a dar a ela legitimidade e valor. […] Em resumo, tratou-se do problema da

legitimação do conhecimento científico, da ligação de uma nova concepção da natureza aos valores

preexistentes de uma época e de uma cultura. A mesma organização que o círculo machiano assumiu desde o

início […] era representativa dessa sua posição teórica de base: a reafirmação do valor e da credibilidade do

saber científico, nas suas múltiplas expressões disciplinares, não poderia ser fruto das intuições de cientistas

em particular, devendo se originar dos estudos organizativos de mais pesquisadores empenhados em campos

disciplinares diferentes […]”. Um grupo de discussão aberta sobre a linguagem e a ciência: o círculo

filosófico de Viena. In: MASI, Domenico de (org.). A Emoção e a Regra: os grupos criativos na Europa de

1850 a 1950. Brasília: Editora UnB/Jose Olympio, 1997. p. 208.

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33

princípios, hipóteses e resultados das ciências, com o objetivo de se

determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance delas) e esta à

Semiótica39

.

A Semiótica, como “Teoria Geral dos Signos” ou “Ciência dos

Signos”40

, abrange o estudo de todos os sistemas de comunicação, incluídos

os linguísticos idiomáticos naturais (linguagem comum) e científicos

(linguagem da ciência)41

. Por este motivo é que a linguagem assumiu, neste

movimento, extrema importância, sendo qualificada como o instrumento, por

excelência, do saber científico. Neste sentido, discurso científico, para o

Círculo, seria aquele composto por linguagem rigorosa e precisa na descrição

dos dados do mundo, objeto de análise.

E assim surgiu, no século XX, o denominado movimento

“Neopositivismo Lógico”, baseado na essencial premissa de que, para a

construção de um discurso científico, imperiosa seria a análise lógica da

39

Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. O Neopositivismo Lógico e o Círculo de Viena. In: CARVALHO,

Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica). São Paulo: PUC, 2004. (fotocópia)

Dunia Pepei afirmou: “sob a influência direta de Wittgenstein e indireta daquela corrente de pensamento

florescente em Viena […], os neopositivistas acabaram por reduzir o estudo das teorias científicas à análise

de sua linguagem; melhor dizendo, acabaram por centralizar a atenção sobre os fundamentos e sobre as

implicações lógicas de todo sistema de sinais que se quisesse colocar-se como um sistema cognitivo da

realidade”. Um grupo de discussão aberta sobre a linguagem e a ciência: o círculo filosófico de Viena. In:

MASI, Domenico de (org.), op. cit., p. 212. 40

Signo é a relação triádica que se estabelece entre um suporte físico (palavras escritas ou faladas), um

significado (referencia do suporte físico com algo do mundo interior ou exterior) e uma significação (ideia

formada em nossa mente sobre o significado). A palavra casa, por exemplo, funciona como suporte físico do

objeto casa (significado) e que, ao ser lida, produz em nossa mente uma significação, isto é, uma ideia acerca

do significado. 41

Cf. Lucia Santaella: “O nome Semiótica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo. Semiótica é a

ciência dos signos. […] A Semiótica é a ciência geral de todas as linguagens […], é a ciência que tem por

objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de

constituição de todos e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e sentido”. O que é

semiótica? 1ª ed., 23ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 7 e 13.

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros, existem várias teorias semióticas. Segundo a utilizada por ela

(A. J. Greimas, idealizada pelo Grupo de Investigações Sêmio-Lingüísticas da Escola de Altos Estudos em

Ciências Sociais), “a semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto

diz e como ele faz para dizer o que diz”. In: Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990. p. 3-5.

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34

linguagem, com a eliminação dos vícios de vagueza e ambiguidade,

característicos da linguagem natural e ausentes na linguagem formal42

.

Para a “depuração” da linguagem natural, os neopositivistas utilizaram

as três dimensões de análise integrantes da Semiótica: sintática, semântica e

pragmática. A sintaxe, como plano lógico, opera na construção dos

enunciados, na conexão entre as palavras e as frases (disposição entre as

palavras na frase e das frases no discurso)43

, possibilitando que se

compreenda a mensagem. De outro lado, a semântica opera na atribuição de

sentido aos enunciados da mensagem, na busca da relação destes com as

realidades que pretendem denotar44

. A pragmática, por sua vez, atua como

indicativa dos possíveis sentidos dos enunciados, auxiliando na solução dos

42

O termo “positivismo” pode denotar distintas realidades: “é um conceito que possui distintos significados,

englobando tanto perspectivas filosóficas e científicas do século XIX quanto outras do século XX. Desde o

seu início, com Augusto Comte (1798-1857) na primeira metade do século XIX, até o presente século XXI, o

sentido da palavra mudou radicalmente, incorporando diferentes sentidos, muitos deles opostos ou

contraditórios entre si. Nesse sentido, há correntes de outras disciplinas que se consideram “positivistas” sem

guardar nenhuma relação com a obra de Comte. Exemplos paradigmáticos disso são o Positivismo Jurídico,

do austríaco Hans Kelsen, e o Positivismo Lógico (ou Círculo de Viena), de Rudolph Carnap, Otto Neurath e

seus associados. Para Comte, o Positivismo é uma doutrina filosófica, sociológica e política. Surgiu como

desenvolvimento sociológico do Iluminismo, das crises social e moral do fim da Idade Média e do

nascimento da sociedade industrial - processos que tiveram como grande marco a Revolução Francesa (1789-

1799). Em linhas gerais, ele propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando

radicalmente a teologia e a metafísica (embora incorporando-as (sic) em uma filosofia da história). Assim, o

Positivismo associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana

radical, desenvolvida na segunda fase da carreira de Comte.”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo.

Acesso em: 31 ago. 2013. Para lições mais profundas sobre o tema do positivismo e do positivismo jurídico

(origens históricas e evolução da perspectiva sob a teoria geral do direito), ver: BOBBIO, Norberto. O

Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra. Trad. e notas Márcio

Pugliesi, Edson Bini e Carlos. E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. A parte I trata das origens históricas

(introdução, pressupostos históricos, as origens do positivismo jurídico na Alemanha, na França e na

Inglaterra). 43

Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 602. Segundo Rudolf Carnap, citado por Luís Alberto Warat, a sintaxe seria

“a parte da semiótica que, prescindindo dos usuários e das designações, estuda as relações dos signos entre

si”. Cf. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 40. 44

A semântica é um dos componentes, com a sintaxe, da gramática semiótica, que tem por tarefa estudar os

conteúdos investidos nas relações sintáticas, nos diferentes níveis de descrição lingüística ou semiótica. Cf.

BARROS, Diana Luz Pessoa de, op. cit., p. 89.

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35

problemas suscitados pelas análises sintática e semântica, mediante a

investigação da forma com que são utilizados pela sociedade45

.

A utilização das dimensões semióticas de análise da linguagem insere-

se no que se denomina contextualmente de “filosofia da linguagem” e que,

segundo o Círculo de Viena, seria a metodologia primordial para a construção

de qualquer discurso científico, já que todas as ciências são nada mais que

camadas de linguagem construídas a partir da análise do objeto de

investigação46

.

Diante disso, é fácil perceber-se a utilidade que esta filosofia pode ter

na análise do direito e na construção da Ciência que fala sobre ele, em nível

de metalinguagem: é camada de linguagem (Ciência do Direito) que fala

sobre outra camada de linguagem (direito positivo).

Conforme preleciona PAULO DE BARROS CARVALHO47

, “ali onde houver

direito, haverá sempre normas jurídicas, e onde houver normas jurídicas

haverá, certamente, uma linguagem que lhe sirva de veículo de expressão”.

Abrem-se, assim, novas formas de análise à disposição da dogmática jurídica.

GREGÓRIO ROBLES48

completa afirmando:

45

Luís Alberto Warat, novamente citando Carnap, define que a pragmática “é a parte da semiótica que estuda

a relação dos signos com os usuários”. Op. cit., p. 45. 46

A Ciência do Direito foi além dessas categorias semióticas ao propor uma nova ideia de análise semântica

da linguagem. Conforme afirma Fabiana Del Padre Tomé, a partir da premissa de autorreferencialidade da

linguagem preconizada por Lourival Vilanova (Analítica do Dever-Ser. In: Escritos Jurídicos e Filosóficos.

São Paulo: Axis Mundi, 2003, v. 2, p. 45) e provocada por Paulo de Barros Carvalho, “o significado, como

durante muito tempo se pensou, não consiste na relação entre suporte físico e objeto representado, mas na

relação entre significações”. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005. p. 18. Neste sentido a

semântica não seria a dimensão da análise semiótica que investiga a relação entre palavras (suporte físico) e

objetos (significados), mas aquela que investiga a relação entre palavras que ocupam o lugar de suporte físico

e palavras que ocupam o lugar de significado. Isso será mais bem explorado no Capítulo sobre a Falibilidade

do Direito Positivo. 47

Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 4ª ed. rev. e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 10. 48

Ibidem, p. 3-4.

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36

Como texto, o direito é suscetível das análises típicas de qualquer

outro texto. Por essa razão, a teoria do direito pode ser

caracterizada como uma teoria hermenêutico-analítica […].

Pragmática, semântica e sintática são as três operações possíveis do

texto jurídico.

Essa constatação aparentemente simples é, em verdade, uma das

premissas fundamentais para a nossa conclusão acerca da falibilidade das leis,

e induz à consequente constatação dos perversos efeitos da afirmação de que a

lei seria a fonte primária do direito nos países de civil law.

A partir desse tipo de análise (da linguagem) é possível demonstrar que

a imprecisão inerente às leis (aqui entendidas como normas gerais e

abstratas), agravada pela sua pretensão de atingir situações futuras, implica

um inerente déficit de legalidade no direito tributário49

, o que torna

problemática a ideia de supremacia (fonte primária) da lei.

49

Quando falamos em déficit de legalidade em razão da forma de expressão e funcionamento das leis

(linguagem e formulação no presente para regulação de situações futuras) não estamos querendo dizer que

elas não chegam a cumprir seu papel de efetivamente orientar as condutas, ou seja, de fazer com as pessoas

realmente cumpram suas disposições. Esse seria um tipo de análise sociológica do direito que não é o

objetivo deste trabalho. Nosso método continua sendo puramente normativo: a conclusão de insuficiência das

leis para regulação de condutas não parte de uma análise empírica, mas das características próprias e

inerentes às normas gerais e abstratas. Não nos interessa saber, neste trabalho, se as normas jurídicas têm o

“condão de motivar o comportamento, em termos de fazê-lo cumprir ou não a direção normativa”, nas

palavras de Paulo de Barros Carvalho [No Prefácio do livro de Fabiana Del Padre Tomé, A Prova no Direito

Tributário, cit.], mas se são capazes de, em potencial, orientar a conduta do indivíduo submetido a elas.

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2 O MODELO CIVIL LAW (DIREITO ROMANO-GERMÂNICO) E A

VALORIZAÇÃO DA NORMA GERAL E ABSTRATA

O que chamamos aqui de “modelo” é denominado pelo grande autor de

direito comparado, RENÉ DAVID, de “família”50

-51

. Trata-se, na verdade, do

bom e velho “ato de classificar”, conforme explica cientificamente a teoria

das classes (ou dos conjuntos): de acordo com determinadas propriedades,

montam-se os conjuntos e, após, classificam-se os objetos dentro de um ou

outro, dadas as características encontradas52

. A “família” ou o “modelo”

denominado de civil law ou de “direito romano-germânico” nada mais denota,

portanto, que um conjunto. O “modelo” da common law, outro conjunto.

Conforme as propriedades de cada qual, se classifica o direito de determinado

Estado em um ou outro.

É claro que os sistemas jurídicos de cada país diferenciam-se muito

entre si, ainda que estejam agrupados em um mesmo modelo ou em uma

mesma família (civil law ou common law). No entanto, para agrupá-los não se 50

“A diversidade dos direitos é apreciável, se se considerar o teor e o conteúdo das suas regras; porem, ela é

bem menor quando se consideram os elementos, mais fundamentais e mais estáveis, com a ajuda dos quais se

podem descobrir as regras, interpretá-las e determinar o seu valor. As regras podem ser infinitamente

variadas; as técnicas que servem para as enunciar (sic), a maneira de as classificar, os modos de raciocínio

usados para as interpretar, resumem-se, pelo contrário, a certos tipos, que são em número limitado. É

possível, por isto, agrupar os diferentes direitos em “famílias”, da mesma maneira que nas outras ciências,

deixando de parte as diferenças secundárias, se reconhece a existência de famílias em matéria de religião

(cristianismo, islamismo, hinduísmo, etc.), de linguística (línguas romanas, eslavas, semitas, nilóticas, etc.)

ou de ciências naturais (mamíferos, répteis, pássaros, batráquios, etc.)”. Op. cit., p. 16-17. 51

John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo chamam de “tradição”, advertindo para a ambuiguidade

da utilização do termo “sistema jurídico” de civil law ou common law: “The reader will observe that the term

used is ‘legal tradition’, not ‘legal system’. The purpose is to distinguish between two quite different ideas. A

legal system, as that term is here used, is an operating set of legal institutions, procedures, and rules. […] In a

world organized into sovereign states and organizations of states, there are as many legal systems as there are

such states and organizations. Nation legal systems are frequently classified into groups or families. Thus the

legal systems of England, New Zealand, California, and New York are called “common law” systems, and

there are good reasons to group them together in this way. But it is inaccurate to suggest that they have

identical legal institutions, processes, and rules. On the contrary, there is great diversity among them, not

only in their substantive rules of law, but also in their institutions and processes. Similarly, France, Germany,

Italy, and Switzerland have their own legal systems, as do Argentina, Brazil, and Chile. It is true that they are

all frequently spoken of as “civil law” nations, and we will try in this book to explain why it makes sense to

group them together in this way”. Op. cit., p. 1. 52

Mais informações sobre a Teoria das Classes / Conjuntos: TARSKI, Alfred. Sobre La Teoria de Classes.

In: Introducción a la Lógica y a las Ciencias Deductivas. Madrid: Espasa-Calpe, 1985.

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leva em conta as diferenças e, sim, as semelhanças, conforme advertem JOHN

HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO53

:

O fato de diferentes sistemas jurídicos serem agrupados sob a

rubrica de “civil law”, por exemplo, indica que eles têm algo em

comum, algo que os distingue dos sistemas jurídicos classificados

como “common law”.

[...]

Uma tradição jurídica, como o termo sugere, não é um conjunto

de regras de direito sobre contratos, empresas e crimes, embora

essas regras sejam quase sempre, em algum sentido, um reflexo

dessa tradição. Pelo contrário, é um conjunto de atitudes

profundamente enraizadas, historicamente condicionadas,

sobre a natureza do direito, sobre o papel do direito na

sociedade e na política, sobre uma adequada organização e

operação de um sistema legal, e sobre a forma como a lei é ou

deveria ser feita, aplicada, estudada, aperfeiçoada, e ensinada.

A tradição legal se relaciona com a cultura, da qual é uma

expressão parcial. Ela coloca o sistema jurídico numa perspectiva

cultural / contextual.

(destaques não são do original)

Outra ressalva importante antes de adentrarmos as características do

modelo romano-germânico, é de que termo civil law não se identifica com o

que denominamos ou que se denominou no passado de direito civil. Trata-se,

na verdade, de uma tradição de organização de regras e da Ciência do Direito

cuja origem pode ser atribuída ao chamado “direito romano”54

. Como afirma

53

Tradução livre do seguinte trecho: “But the fact that different legal systems are grouped together under

such a rubric as “civil law”, for example, indicates that they have something in common, something that

distinguishes them from legal systems classified as “common law”. [...] A legal tradition, as the term implies,

is not a set of rules of law about contracts, corporations, and crimes, although such rules will almost always

be in some sense a reflection of that tradition. Rather, it is a set of deeply rooted, historically conditioned

attitudes about the nature of law, about the role of law in the society and the polity, about the proper

organization and operation of a legal system, and about the way law is or should be made, applied, studied,

perfected, and taught. The legal tradition relates the legal system to the culture of which it is a partial

expression. It puts the legal system into cultural perspective”. Op. cit., p. 2. 54

Andréia Costa Vieira explica: “O termo “direito civil”, proveniente do Direito Romano, era designado aos

ramos do direito cuja aplicabilidade era restrita aos cidadãos romanos. (...) Já na Idade Média, o termo

“direito civil” era usado para distinguir o direito romano do que era conhecido como “direito canônico”, da

Igreja. No âmbito internacional, porém, o termo Civil law refere-se ao sistema legal adotado pelos países da

Europa Continental (com exceção dos países escandinavos) e por, praticamente, todos os outros países que

sofreram um processo de colonização, ou alguma outra grande influência deles – como os países da América

Latina. O que todos esses países têm em comum é a influência do Direito Romano, na elaboração de seus

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ALAN WATSON, “o termo ‘civil law’ tem um significado muito específico para

os juristas de direito comparado; é utilizado para designar os sistemas da

Europa Ocidental continental (excluindo a Escandinávia) e os sistemas (como

os da América Latina) grandemente influenciado por eles”55

.

O termo civil law foi, na verdade, cunhado pelos países de língua

inglesa em razão da origem “civil” do direito romano, isto é, da

predominância da regulação das relações privadas pelo direito romano56

.

Adotado na maioria dos países da Europa e pelos países que foram por

eles colonizados ou influenciados57

, revela-se, por essa razão, a importância

do estudo do direito romano para entendermos melhor a formação do sistema

jurídico brasileiro, conforme ressalta THOMAS MARKY58

:

A importância do estudo do direito romano não precisa ser

explicada, pois é de conhecimento mesmo do leigo que o nosso

direito e o de todos os povos do Ocidente derivam do direito

romano. Portanto, ao estudá-lo, vamos às origens do nosso próprio

direito vigente.

[...]

O direito, como regulamentação do comportamento humano dentro

da sociedade, é também um fenômeno histórico. Suas regras não

são fruto de pura especulação, nem consequência de inexoráveis

forças da natureza. Essas regras são produtos, sim, da longa

códigos, constituições e leis esparsas.”. Civil Law e Common Law: os dois grandes sistemas legais

comparados. São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007. p. 21. 55

Tradução livre do trecho “the term ‘civil law’ has a quite specific meaning for comparative lawyers; it is

used to denote the systems of Western continental Europe (excluding Scandinavia) and the systems (such as

those of Latin America) greatly influenced by them”. The Making of the Civil Law. Cambridge; London:

Harvard University Press, 1981. p. 2. 56

Sobre a predominância do direito privado no Direito Romano, ver DAVID, René, op. cit., p. 37-38. 57

Conforme destaca René David: “Os direitos da família romano-germânica são os continuadores do direito

romano, cuja evolução concluíram; não são de modo algum cópia deles, tanto mais que muitos dos seus

elementos derivam de fontes diversas do direito romano. A família de direito romano está atualmente

dispersa pelo mundo inteiro. Ultrapassando largamente as fronteiras do antigo Império Romano, ela

conquistou, particularmente, toda a América Latina, uma grande parte da África, os países do Oriente

Próximo, o Japão e a Indonésia. Esta expansão deveu-se em parte à colonização, em parte às facilidades que,

para uma recepção, foram dadas pela técnica jurídica da codificação, geralmente adotada pelos direitos

românicos no século XIX”. Ibidem, p. 25. 58

Curso Elementar de Direito Romano. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 3.

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experiência humana e, por isso, para compreendê-las, é muito útil,

senão imprescindível, conhecer sua evolução histórica.

No mesmo sentido é a afirmação de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR59

:

Tendo em vista o quadro cultural em que se desenvolveu o direito

em nosso país, mister se faz que principiemos pelas origens do

pensamento jurídico (continental) europeu, à exclusão, pois, do

pensamento anglo-saxão, o que nos conduz, de início, à Roma

Antiga.

Sobre ser importante a investigação evolutiva do modelo civil law, o

objetivo deste Capítulo é identificar as principais características atuais dessa

tradição jurídica a partir de suas origens, evidenciando seu modus operandi60

,

qual seja, a regulação de condutas por meio de normas gerais e abstratas

(codificações) e a consequente hierarquização das fontes do direito61

, ambos

objeto de análise crítica nesta tese.

2.1 Breve Histórico das Origens do Modelo Civil Law

O termo “civil law” tem o mesmo significado de “direito romano

germânico” – é tão-somente o termo utilizado na língua inglesa. A

denominação “romano-germânico” já indicia que a origem desse modelo

direito é o direito romano.

59

Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 55. 60

Neste Capítulo só nos interessa a história do direito romano e não suas instituições (especialmente voltadas

ao direito privado – conceitos de posse, obrigação, direito subjetivo etc.). À história do direito romano José

Carlos Moreira Alves refere-se como história externa; às instituições, como história interna. Mas adverte

que os italianos e alemães preferem referir-se à história externa tão-somente como história do direito romano

e à história interna como instituições de direito romano (italianos) ou sistema de direito privado romano

(alemães). Cf. Direito Romano. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 1. 61

Até o Capítulo em que trataremos da falibilidade do direito positivo e os perigos da concepção de se

entender a lei como “fonte primária”, utilizaremos esse termo tal qual colocado historicamente pela Ciência

do Direito nos países de civil law: denotando tanto processo de produção como produto e sem delimitação do

sentido de “direito”.

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A existência de um direito romano62

propriamente dito, sistematizado e

escrito, só pode ser observada a partir do século XIII63

. Antes disso, alguns

elementos originários podem ser encontrados, ainda prematuros à ideia de

sistema jurídico, como a Lei das XII Tábuas64

, as Institutas de Gaius e as

compilações de Justiniano.

Por essa evolução do direito romano estar intrinsecamente ligada à

própria evolução econômica, política e social de Roma, pode-se dividi-la nos

cinco seguintes períodos65

: (i) período republicano e a primeira grande

tentativa de codificação de regras, a Lei das XII Tábuas; (ii) períodos do alto

e baixo Império Romano, em que foram produzidas as compilações do

Imperador Justiniano; (iii) período da alta Idade Média e o declínio da ideia

de direito; (iv) período da baixa Idade Média e o renascimento do direito

romano pelas universidades europeias; e (v) a utilização do direito romano

moldado pelas universidades como base para a legislação nacional de cada

país da Europa.

62

Thomas Marky atribui ao signo “direito romano” o significado de “complexo de normas vigentes em

Roma, desde a sua fundação (lendária, no século VIII a.C.) até a codificação de Justiniano (século VI d.C.)”.

Op. cit., p. 5. 63

DAVID, René, op. cit., p. 29. 64

Conforme explica Andréia Costa Vieira, a partir da obra de J. Cretella Jr. (Curso de Direito Romano, 20ª

ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 43, nota 10), “A Lei das XII Tábuas foi bastante divulgada dentre os

autores latinos, tornando-se, então, a [...] fonte de todo direito público e privado. Tinha conteúdo bastante

diversificado, incluindo o direito público e privado, o direito processual civil e até mesmo o direito divino”.

Op. cit., p. 29. John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo atribuem à Lei das XII Tábuas,

supostamente publicada em 450 d.C., a origem mais remota do modelo civil law. Op. cit., p. 2. 65

José Carlos Moreira Alves adverte no item “Explicação Prévia” de sua obra Direito Romano (cit.), que a

cronologia histórica é a melhor forma de se estudar o direito romano: “Para conhecer os princípios básicos do

direito romano, é preciso apenas ter em mente que ele é um direito histórico e que, portanto, o exame de seus

institutos deve ser feito através das suas diferentes etapas de evolução [...]”.

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2.1.1 Período da República em Roma e a Lei das XII Tábuas

A Lei das XII Tábuas denota, na verdade, a reunião de diversas regras66

cuja origem pode ser atribuída aos costumes67

, representando um primeiro ato

de “codificação”, característico do atual modelo civil law. Diz-se ter sido a

primeira lei escrita68

, finalizada no período da República romana (510 a 27 a.

C.), época em que havia cinco fontes69

de direito em Roma: os costumes, a

lex, o plebiscito, as interpretações dos prudentes e os editos dos magistrados70

.

Os costumes decorriam da prática reiterada de determinados tipos de

comportamento. Conforme descreve Thomas Marky71

:

O costume [...] é a observância constante e espontânea de

determinadas normas de comportamento humano na sociedade.

Cícero o definiu como sendo aprovado, sem lei, pelo decurso de

longuíssimo tempo e pela vontade de todos.

66

Como explica Andréia Costa Vieira, a partir da obra de Thomas Glyn Watkin (An Historical Introduction

to Modern Civil Law, 1ª ed. Aldershot: Ashgate Publishing, 1999, p. 20), “Por volta de 450 A.C., dez homens

da classe dos patrícios foram apontados para criar um Código de Leis escritas do povo romano. Watkin

observa que a necessidade de se codificar as leis escritas do Império Romano pode ter surgido do

descontentamento dos plebeus em relação ao acesso às leis do império – que, por razões educacionais, era

restrito aos patrícios”. Op. cit., p. 29. 67

Cf. MARKY, Thomas, op. cit., p. 6: “As XII Tábuas (...) nada mais foram que uma codificação de regras

provavelmente costumeiras, primitivas, e, às vezes, até cruéis. Aplicavam-se exclusivamente aos cidadãos

romanos”. 68

Embora tenha sido a primeira “lei” escrita, sua relevância à época foi limitada, já que os costumes é que

eram a principal fonte de direito. Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 24. 69

A acepção de “fontes” em todo o período que descreve a história do direito romano (origem do civil law) é

ambígua e indica, genericamente, os processos e os produtos que eram utilizados como parâmetro para

ordenação da vida social (para a regulação das condutas). 70

Antes do período da República, quando Roma era governada por Reis (entre 753 a. C. e 509 a. C.), havia

duas formas de regulação das relações: os costumes e as leis, sendo que essas não eram propriamente as

regras gerais e abstratas dos tempos atuais, como explica Andréia Costa Vieira: “No período de 753 a 509

A.C., quando Roma foi governada por reis, as fontes do Direito Romano eram duas: os costumes e as leis.

(...) À essa época, as leis nasciam de uma proposta do rei às Comitiae. Se aceita, a proposta real tornava-se

lex, com força obrigatória. Contudo, não se pode ver, nessa época, a lex como a lei é vista hoje em dia. À

época da realeza, a lex não era geral (ou seja, dirigida a todos), mas destinava-se a resolver casos específicos

(dirigida a apenas alguns) e representava muito mais ‘editos’ do que ‘leis’ propriamente ditas”. Op. cit., p.

24. 71

Op. cit., p. 17.

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As leis (lex) não tinham a característica atual, especialmente no que se

refere à forma de produção pelo Poder Legislativo. Eram resultado de

propostas feitas pelos magistrados e aprovadas por comícios com participação

exclusiva de cidadãos romanos72

-73

.

Os plebiscitos eram também resultado de deliberação popular, mas,

inicialmente, sem a participação dos patrícios (somente com a participação

dos plebeus)74

. Segundo JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “em princípio [...] os

plebiscitos aplicavam-se tão-somente à plebe, mas a partir da Lei Hortênsia

(286 a.C.) adquirem o valor de lei, passando a ser designado pelo nome de

lex” 75

.

As interpretações dos prudentes (jurisprudentes) eram destinadas a

“preencher as lacunas da lei”76

, embora, formalmente, sem força vinculante77

.

Consistiam, na realidade, em pareceres elaborados por uma aristocracia

intelectual de juristas, sobre questões práticas que lhe eram apresentadas78

.

72

Ibidem, p. 17-18. 73

Thomas Marky ensaia, com esse exemplo da produção legislativa em Roma, a diferença entre fonte do

direito como ato de produção das leis e fonte do direito como produto desse ato: “A produção de regras

jurídicas se faz pelas fontes do direito. Elas são órgãos que têm a função ou poder de criar a norma jurídica e,

por isso mesmo, se chamam “fontes de produção”. Exemplo: os comícios (comitia), que votavam as leis em

Roma. Por outro lado, podemos denominar “fontes de revelação” o produto da atividade dos órgãos que têm

aquele poder ou função de legislar. Assim, a própria regra jurídica, na forma como ela aparece ou se revela.

Exemplo, a lei (lex rogata) resultante de uma proposta feita pelos magistrados e votada pelos Comícios em

Roma. Ibidem, p. 17. 74

Ibidem, p. 18. 75

Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.

34. 76

Segundo Andréia Costa Vieira: “Os jurisprudentes tinham a função de interpretar as leis e preencher-lhes

as lacunas. A interpretatio – obra de seu trabalho – consistia também em uma fonte de direito na Roma

republicana. Surgiu daí o termo jurisprudência – as interpretações feitas pelos jurisprudentes que, àquela

época, aproximavam-se muito mais do que conhecemos hoje por “doutrina” do que do moderno sentido dado

à palavra “jurisprudência”. Não possuía, em si, força obrigatória, mas tinha enorme força de persuasão,

principalmente depois do jus publice repondendi – oficialização que Augustus deu a algumas dessas

jurisprudências. Op. cit., p. 24-25 77

Para Thomas Marky, a interpretação dos prudentes (que ele chama de jurisprudência) não podia sequer ser

chamada de fonte de direito nessa época, exatamente em razão de sua falta de oficialidade. Op. cit., p. 20. 78

Além da elaboração de pareceres, atividade chamada de respondere, os jurisconsultos ou prudentes

também eram procurados para “instruir as partes sobre como agirem em juízo (agere) e orientar os leigos na

realização de negócios jurídicos (cavere)”. Ibidem, p. 8.

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Embora se atribua a essa fonte do direito a origem do atual termo

“jurisprudência”, ela estava mais próxima do que hoje conhecemos por

doutrina79

.

É interessante notar que, embora essas interpretações não possuíssem

força vinculante, dada sua função de preencher as lacunas da lei, elas

acabavam criando novas regras mediante o expediente da “adaptação” das

antigas normas à realidade em que se encontravam80

-81

. Por ter esse papel de

“atualização” das regras vigentes, essas interpretações foram colocadas, na

prática, ao lado das regras gerais interpretadas, tendo papel fundamental no

desenvolvimento do direito romano82

.

Por fim, os editos dos magistrados (também chamados de pretores), não

eram exatamente soluções de casos concretos dadas por eles. A função deles

era de “organizar e conduzir os processos”83

. Segundo THOMAS MARKY, cabia

a eles cuidar “da primeira fase do processo entre particulares, verificando as

alegações das partes e fixando os limites da contenda, para remeter o caso

posteriormente a um juiz particular”84

. Ao fixar esses limites, continua o

autor, o pretor terminava por “dar instruções ao juiz particular sobre como ele

deveria apreciar as questões de direito”85

.

79

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 24-25. 80

MARKY, Thomas, op. cit., p. 8. 81

Thomas Marky explica: “Os pareceres dos jurisconsultos exerceram papel importante na evolução do

direito romano, desde os tempos antigos. As regras consuetudinárias do direito primitivo, bem como as das

XII Tábuas e outras, todas bastante simples e rígidas, tinham que ser interpretadas para que pudessem servir

às exigências de uma vida social e econômica cada vez mais evoluída. Essa interpretação, nas origens

remotas do direito romano, estava afeta aos pontífices, que eram chefes religiosos. Mais tarde, porem, passou

a ser obra de juristas leigos (prudentes), conhecedores do direito. Eles inovavam, criavam novas normas,

partindo das existentes: isso por meio da interpretação extensiva destas”. Ibidem, p. 20. 82

Ibidem, p. 8. 83

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 25. 84

MARKY, Thomas, op. cit., p. 7. 85

Ibidem.

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Os editos eram, na verdade, programas de governo anualmente

publicados pelos magistrados investidos desse poder, e indicava como

pretendiam agir86

. Era comum que os pretores sucessores se valessem dos

editos anteriores e inovassem aqui e ali, dando ensejo, anos depois, a “um

corpo estratificado de regras” que foram, por volta de 130 d. C., “codificadas

pelo jurista Sálvio Juliano, por ordem do Imperador Adriano”87

.

O mais interessante é que esse “direito pretoriano” não podia ser

equiparado às demais regras consideradas como ius civile88

, sob o “mantra”

de que os pretores não podiam criar normas. Assim, embora na prática se

pudesse verificar esse direito “judicial” substituindo o ius civile, isso nunca

poderia ser dito expressamente, já que, em tese, não cabia aos pretores a

criação de leis89

.

2.1.2 Período do Império Romano e as Compilações de Justiniano (Corpus

Iuris Civilis)

Seguiu-se a esse período republicano o famoso período do Império

Romano, que pode ser dividido em Alto Império (27 a.C. a 284 d.C.) e Baixo

Império (284 d.C. a 565 d.C.).

No Alto Império, as fontes90

que existiam no período anterior

permanecem, sendo adicionados os senatusconsulta e as constituições

86

Ibidem, p. 19. 87

Ibidem, p. 7. 88

Considera-se como ius civile o direito aplicável exclusivamente aos cidadãos romanos (excluídos os

estrangeiros), e formados por costumes, leis e plebiscitos, acompanhados da interpretação dos prudentes.

Ibidem, p. 21. 89

Ibidem, p. 7-8. 90

Como adiantamos, a acepção de “fonte” na descrição da evolução do direito romano (origem do civil law)

denota aquilo que era utilizado como parâmetro para ordenação da vida social (para a regulação das

condutas), já que não existia nem centralização da produção de regras (órgão competente), tampouco a ideia

de procedimento uniforme.

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imperiais91

. Aqueles eram deliberações do senado acerca de propostas dos

imperadores. As constituições imperiais, como o próprio nome já diz, eram

regras derivadas do Imperador, denominadas de edicta, decreta, rescripta ou

mandata, conforme seu conteúdo ou natureza (de caráter geral, proferidas

num processo, respostas a questões jurídicas propostas ao Imperador ou

instruções aos subalternos, respectivamente)92

.

No período do Baixo Império, os senatusconsulta (ou senatosconsultos)

passam a ser uma forma indireta de legislação imperial, já que o senado passa

a simplesmente aprovar, por aclamação, a proposta do imperador93

. Na

prática, portanto, a “produção legislativa” passa a centralizar-se na figura do

Imperador94

, “decaindo a importância dos comícios legislativos e

estratificando-se o edito pretoriano”95

nesse período.

Durante o período do Baixo Império, portanto, somente as constituições

imperiais (ou constitutiones principis) na modalidade edicta permanecem

como fonte do direito96

, até que a partir de 528 d.C. surge o Corpus Iuris

Civilis97

.

Afirma THOMAS MARKY que esse período do Baixo Império foi

marcado pela ausência de um “gênio criativo”, o que teria impulsionado a

“codificação” corporificada pelo Corpus Iuris Civilis, o qual representava

uma “fixação definitiva das regras vigentes”, somente verificada antes com a

91

CRETELLA JÚNIOR, José, op. cit., p. 38. 92

MARKY, Thomas, op. cit., p. 18-19. 93

Ibidem, p. 18. 94

Conforme afirma José Cretella Júnior, “O imperador, que no período anterior reparte o poder com o

senado, agora firma definitivamente sua posição, torna-se absoluto, invocando a vontade divina como fonte

de inspiração de sua autoridade: o que agradou ao príncipe tem de força de lei (“quod principi placuit, legis

habet vigorem”). Op. cit., p. 46. 95

MARKY, Thomas, op. cit., p. 21. 96

CRETELLA JÚNIOR, José, op. cit., p. 46. 97

Ibidem, p. 6.

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Lei das XII Tábuas. Para ele, essa lacuna temporal entre a Lei das XII Tábuas

e o Corpus Iuris Civilis demonstra que, na realidade, os romanos eram

avessos à ideia da codificação98

, possivelmente em razão do demérito que

essa rigidez trazia consigo (a fixidez da regra em detrimento da realização da

justiça no caso concreto).

O Corpus Iuris Civilis consistia na reunião de várias categorias de

documentos, dentre eles as Institutas, de Gaius, e foi criado pelo Imperador

Justiniano99

.

Primeiro veio o Codex, completado em 529100

, destinado a reunir, em

forma de Código (ou seja, organizadas em livros e títulos, e em ordem

cronológica)101

, todas as leis do Império (desde o século II)102

. À comissão

encarregada de elaborar o Codex foram dados poderes para além da

compilação. Como observa ALAN WATSON103

:

Aos compiladores foram dados amplos poderes para coletar as

constituições, omitir, no todo ou em parte, as partes que eram

obsoletas ou desnecessárias, remover contradições e repetições,

e até mesmo para fazer alterações substanciais. As constituições

foram, então, organizadas por assunto em títulos, ou seções

98

“Nesse período, pela ausência de gênio criativo, sentiu-se a necessidade de fixação definitiva das regras

vigentes, por meio de uma codificação que os romanos em princípio desprezavam. Não é por acaso que,

exceto aquela codificação das XII Tábuas do século V a. C., nenhuma outra foi empreendida pelos romanos

até o período decadente da era pós-clássica. Após tentativas parciais de codificação de partes restritas do

direito vigente (Codex Gregorianus, Codex Hermogenianus, Codex Theodosianus), foi Justiniano (527 a 565

d. C.) quem empreendeu a grandiosa obra legislativa, mandando colecionar oficialmente as regras de direito

em vigor na época”. Op. cit., p. 9. 99

DAVID, René, op. cit., p. 29. 100

CRETELLA JÚNIOR, José, op. cit., p. 6. Ao mesmo ano atribuem Thomas Marky (Op. cit., p. 9) e Alan

Watson (Op. cit., p. 10). 101

Houve, na verdade, dois Codex: o primeiro, publicado em 529 d. C. e outro, revisado e ampliado, em 534

d. C. Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30; WATSON, Alan, op. cit., p. 10. 102

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30. 103

Tradução livre do trecho “The compilers were given extensive powers to collect the constitutions, to omit

any, in whole or in part, that were obsolete or unnecessary, to remove contradictions and repetitions, and

even to make alterations in substance. The constitutions were then to be arranged by subject in titles, or

named sections, and within each title the constitutions were to be given in chronological order”. Op. cit., p.

10.

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nomeadas, e dentro de cada título deveriam ser colocadas em

ordem cronológica.

(destaques não são do original)

Seguiu-se a compilação de textos dos séculos I a III, chamada Digesto,

também organizada em livros e títulos, e iniciada em 530104

. No mesmo estilo

do Codex, o Digesto também estava organizado e subdividido em títulos e

seus textos incluíam “declarações principiológicas, discussão sobre

interpretação e aplicação de regras, comentários sobre o escopo ou a

interpretação dos editos e das leis e opiniões de juristas sobre o tratamento de

problemas reais ou fictícios”105

-106

. Embora os compiladores do Digesto

também tivessem poderes para excluir o que lhes parecesse supérfluo ou

imperfeito e eliminar contradições e repetições (inclusive em relação ao

Codex), diz-se que a eles não foi atribuída a prerrogativa de alterar a

substância dos textos ou atualizá-los107

.

As Institutas ou Institutiones, por sua vez, foram publicadas logo

depois, em 533 d. C., e podem ser definidas como um “guia elementar para

estudantes de direito, baseado nas Institutas de Gaius – um trabalho escrito,

mais ou menos, em 160 [...]. Eram divididas em quatro livros, também

104

José Cretella Júnior atribui ao ano de 533 a criação do Digesto. Op. cit., p. 6. 105

Tradução livre do trecho “The texts of the jurists include statements of principles, discussions of rules,

commentary on the scope or interpretation of edicts and statutes, qualifications of other juristic opinion, and

the treatment of problem cases, real or hypothetical”. WATSON, Alan, op. cit., p. 11. Na tradução de

Andréia Costa Vieira, “esses textos [...] contêm matérias de princípios de direito, discussões de

procedimentos jurídicos, comentários sobre a interpretação de editos e estatutos, opiniões de juristas sobre

assuntos diversos e discussões de soluções e tratamentos dados a casos reais ou fictícios”. Op. cit., p. 30. 106

Segundo Thomas Marky, o Digesto era formado por 50 livros, que reuniram trechos selecionados de 2.000

livros (3 milhões de linhas), resultado das obras dos jurisconsultos (prudentes) clássicos. Segundo ele, foi

Triboniano o coordenador dessa tarefa, tendo-lhe sido autorizada a alteração dos trechos escolhidos para

harmonizá-los com os novos princípios vigentes à época: “Essas alterações tiveram o nome de emblemata

Triboniani e hoje são chamadas interpolações. A descoberta de tais interpolações e a restituição do texto

original clássico é uma das preocupações da ciência romanística dos últimos tempos”. Op. cit., p. 9. 107

WATSON, Alan, op. cit., p. 11.

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subdivididos em títulos. Os tópicos foram organizados em Fontes do Direito,

Pessoas, Propriedade, Sucessão, Obrigações e Hasta Pública”108

.

Por fim, após todas essas compilações, considerando que nenhuma

outra regra podia ser invocada além das ali constantes109

, foram criadas leis

por Justiniano, as quais foram reunidas nas Novelas, e que tratavam das

relações jurídico-eclesiásticas, de direitos sucessórios e do direito matrimonial

herdado do Direito Canônico110

.

A esse conjunto de Códigos (Codex, Digesto, Institutas e Novelas) é

atribuída a preservação do direito romano para a posteridade111

.

2.1.3 Declínio do Direito Romano na Alta Idade Média

A partir do Século VI (durante o período da alta Idade Média, que vai

de 400 a 900) começam a surgir as leis bárbaras e esse processo perdura até o

século XII112

. Durante esse período, podiam-se distinguir dois direitos: o “dos

povos bárbaros (principalmente das tribos germânicas), mais primitivo, e o

Direito Romano, mais complexo e refinado”113

.

Durante esse período, o direito romano passou por um longo processo

de esquecimento, decorrente da dominação da Igreja sobre todos os setores da

realidade social. Como bem descreve RENÉ DAVID:

Para que serve conhecer e precisar as regras do direito, quando

o sucesso de uma das partes depende de meios tais como o juízo

de Deus, o juramento das partes ou a prova dos ordálios? Para

que serve obter um julgamento, se nenhuma autoridade, dispondo

108

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30. 109

MARKY, Thomas, op. cit., p. 10. 110

WATSON, Alan, op. cit., p. 12-13; VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30. 111

MARKY, Thomas, op. cit., p. 10. 112

DAVID, René, op. cit., p. 30. 113

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 33.

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de força, está obrigada, ou preparada, para pôr esta força à

disposição do vencedor. Nas trevas da Alta Idade Média a

sociedade voltou a um estado mais primitivo. Pode existir ainda um

direito: [...]. Mas o reinado do direito cessou. Entre particulares

como entre grupos sociais os litígios são resolvidos pela lei do mais

forte, ou pela autoridade arbitrária de um chefe. [...]

[...]

O próprio ideal de uma sociedade que garanta “os direitos” de

cada um é abandonado: uma sociedade cristã não deverá antes

procurar fundar-se sobre ideias da fraternidade e de caridade?

(destaques não são do original)

Do século VIII em diante, foi atribuído caráter divino aos imperadores

do Império Romano, o que lhes permitia usurpar a função de ditar regras114

:

Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do império, os

imperadores tornaram-se os representantes de Deus na terra e eram

considerados eleitos pelo próprio Deus. Dessa forma, os

imperadores viram-se no direito de usurpar o poder do

legislativo romano, reservando, para si próprios, o direito de

interpretar as leis, assim como o fez o imperador Justiniano, no

seu Edito, no ano de 533 A.D., com a promulgação dos Digestos.

A identificação da figura divina com o Imperador outorgava a esses

poderes ilimitados, tornando desnecessárias as limitações legais ao exercício

de seus poderes e, assim, dispensáveis todas as regras de direito romano até

então existentes.

2.1.4 Renascimento do Direito Romano na Baixa Idade Média e Expansão

pela Europa Continental

É no período da Baixa Idade Média, nos séculos XII e XIII, que renasce

o direito romano115

propriamente originário do atual modelo civil law116

. Com

o incremento das relações sociais e comerciais, nasce a percepção de que117

114

Ibidem, p. 32.

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[...] só o direito pode assegurar a ordem e a segurança

necessárias ao progresso. O ideal de uma sociedade cristã

fundada sobre a caridade é abandonado. [...]. A própria Igreja

distingue mais nitidamente a sociedade religiosa dos fieis da

sociedade laica, o foro externo do foro interno, e elabora, nesta

época, um direito privado canônico.

(destaques não são do original)

A segregação entre regulação social da vida privada e valores religiosos

já era algo que existia na época do Império Romano e foi perdido com a

dominação da Igreja na Idade Média. A volta dessa segregação, que

caracteriza o modo de organização da civilização ocidental, e pretende limitar

o exercício do poder estatal, vem também arraigada à noção de um novo

direito, “que a razão permite conhecer”118

.

Curiosamente, o retorno do direito romano nessa época não é atribuído

à “afirmação de um poder político, ou à centralização operada por uma

autoridade soberana”119

. Em outras palavras, a efetiva origem do modelo civil

law, que deriva do retorno ao direito romano, não decorre da existência de um

Estado organizado em poderes, ao contrário da common law120

:

115

É interessante como Rodolfo Sacco coloca essa questão da herança do direito romano de forma crítica e

provocativa: “O poder legislativo como tal nunca existiu em Roma. Para os romanos parece uma grande

coisa terem feito as Doze Tábuas, que resolveram certos detalhes procedimentais, enquanto pressupunham

inconteste todo um sistema de normas fundamentais, que não eram esculpidas na pedra e nem eram escritas,

porque por demais conhecidas e aceitas (e muito pouco verbalizadas) para que valesse a pena (e para que

fosse possível) memoriza-las. Os romanos eventualmente faziam uma lei. Dentro daqueles limites a

atividades legislativa existe em qualquer parte, e é fisiológica. Isto não quer dizer que os romanos tivessem a

idéia de um poder legislativo geral, como poder, atribuído a algum órgão, de produzir qualquer norma que

considere conveniente e que fosse válida simplesmente porque dele emanada. Os romanos transmitiram à

Idade Média a lei de Justiniano, legaram aquilo que eles próprios nunca possuíram. Na verdade, Justiniano

não foi um legislador no sentido jacobino, nunca fez um albo nigrum. Deu autoridade às obras dos doutores e

dos sábios [...], compilou, eliminou ambiguidades e as contradições. Cf. Introdução ao Direito Comparado.

Trad. Véra Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 246. 116

DAVID, René, op. cit., p. 31. 117

Ibidem. 118

Ibidem. 119

Ibidem. 120

Ibidem.

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O sistema romano-germânico diferencia-se por isto do direito

inglês, onde o desenvolvimento da common law está ligado ao

progresso do poder real à existência de tribunais fortemente

centralizados. No continente europeu não se observa nada disto. O

sistema de direito romano-germânico vai, pelo contrário, afirmar-

se, nos séculos XII e XIII, numa época em que não só a Europa não

constitui uma unidade politica, mas em que a própria ideia de que

ela poderia ser diferente acaba por parecer quimérica: [...].

(destaques não são do original)

Em verdade, a retomada do direito romano para regulação da vida

social deve-se a “focos de cultura criados no Ocidente”, tendo as

universidades europeias um papel central nesse processo121

. Foram os

professores das escolas de direito que, buscando um direito a estudar diante

das dispersas fontes presentes na Idade Média, resgataram o direito romano de

Justiniano, conforme afirma RENÉ DAVID122

-123

:

[...] face à diversidade e à barbárie dos costumes locais, um direito

se oferecia ao estudo e à admiração de todos, tanto professores

como estudantes. Este direito era o direito romano. Direito fácil de

conhecer: as compilações de Justiniano expunham o seu conteúdo,

na língua que a igreja tinha conservado e vulgarizado e que era a de

todas as chancelarias e de todos os sábios: o latim. O direito

romano fora o de uma civilização brilhante, que se estendera do

Mediterrâneo até o Mar do Norte, de Bizâncio à Bretanha, e que

evocava no espírito dos contemporâneos, com nostalgia, a unidade

perdida da Cristandade.

Havia um grande obstáculo ao retorno do direito romano nessa altura da

história, com a dominação da religião cristã: a ideia de que, oriundo de uma

sociedade que não conheceu Cristo, estaria ele afastado da lei divina e da

121

Ibidem, p. 32. 122

Ibidem, p. 33. 123

No mesmo sentido, Andréia Costa Vieira afirma: “O Direito, enquanto ciência, também já era estudado,

mas lhe faltava um texto central, que pudesse trazer uma uniformidade e consistência em todas as escolas de

direito, como já acontecia com a teologia e a filosofia. [...] Assim como a teologia e a filosofia eram

estudadas a partir de interpretações dos seus principais escritos, o mesmo aconteceu com o estudo do direito.

Tudo girava em torno da explicação do Digesto e das outras compilações de Justiniano”. Op. cit., p. 35.

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busca da caridade. Contudo, São Tomás de Aquino cuidou de “exorcizar” o

direito romano “pagão”, construindo o raciocínio de que “a filosofia pré-

cristã, assente na razão, era um grande medida conforme à lei divina”124

.

Com a utilização das compilações de Justiniano como base de todo o

ensino jurídico europeu, o direito romano atravessou fronteiras e ganhou a

maioria dos países da Europa125

.

É muito comum ouvir-se falar sobre a Escola dos Glosadores, surgida

no século XIII e cujo objetivo era atualizar o direito romano de Justiniano,

abandonando aquilo que parecia aplicável tão-somente na Antiguidade, como

a regulação da escravatura, o casamento e o testamento (esses dois últimos, na

Idade Média, restaram regulados pelo direito canônico). Mas o que realmente

revolucionou o direito romano foi a Escola dos Pós-Glosadores, no século

XIV126

. Segundo RENÉ DAVID127

:

[...] o direito romano é devidamente expurgado, submetido a

distorções; presta-se a desenvolvimentos inteiramente novos

(direito comercial, direito internacional privado), ao mesmo tempo

que é sistematizado na sua apresentação, de uma forma que

contrasta vivamente com o caos do Digesto e o espírito casuístico e

empírico dos jurisconsultos de Roma. Os juristas já não

procuram encontrar soluções romanas, mas preocupam-se

sobretudo em utilizar os textos do direito romano, para

introduzir e justificar regras adaptadas à sociedade do seu

tempo. Nos séculos XIV e XV, ensina-se, sob o nome de usus

modernus Pandectarum, um direito romano profundamente

deformado, especialmente sob a influência das concepções do

direito canônico; [...]

(destaques não são do original)

124

DAVID, René, op. cit., p. 34. 125

Ibidem, p. 31. 126

Ibidem. 127

Ibidem, p. 35.

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É nessa época que surge a escola de “direito natural”128

, fundada na

razão, sob as luzes da filosofia Iluminista. A “deformação” do direito romano

operada desde os pós-glosadores, e que rouba a cena nos séculos XVII e

XVIII, consistia na sistematização das regras a partir de elementos racionais,

deixando-se de lado grande parte das antigas normas. Conforme afirma RENÉ

DAVID129

, “a escola do direito natural, [...] abandonando o método escolástico,

eleva a um alto grau a sistematização do direito, que ela concebe de modo

axiomático, eminentemente lógico, à imitação das ciências”.

É essa busca da racionalidade extrema, aproximada à lógica, que abrirá

o caminho para as codificações nos países do modelo civil law, dando origem

a uma infinidade de regras, especialmente voltadas ao direito privado130

,

diferentemente do modelo common law, cujo ponto forte é a regulação

voltada ao direito público (“as necessidades da administração e da polícia e as

liberdades dos indivíduos”)131

.

Embora esse “novo direito romano”, re-sistematizado pela escola do

direito natural, estivesse espalhado por toda a Europa, ele não tinha, ainda,

aptidão para ser imposto aos indivíduos. Estava o direito romano adstrito às

universidades, tendo, portanto, tão-somente um papel orientador aos

aplicadores do direito (juízes). De fato, havia uma grande “lacuna” a ser

preenchida por um conjunto ordenado de regras nessa época de renascimento,

em que se percebe o direito é o melhor meio para regulação da vida em

sociedade.

128

Essa é uma má denominação ao movimento, como aponta René David: “Recusando a concepção clássica

de uma ordem alicerçada na vontade divina e na própria natureza das coisas, relacionando todas as regras do

homem considerado como única realidade existente, a escola do direito natural, mal denominada, não vê mais

no direito um dado natural, mas uma obra da razão”. Op. cit., p. 36-37. 129

Ibidem, p. 36. 130

Ibidem, p. 37. 131

Ibidem, p. 38.

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Diante disso, dois caminhos distintos foram tomados pelos países

europeus, diante das possibilidades que se apresentavam: (i) a “importação”

do direito romano das universidades; ou (ii) o desenvolvimento de um novo

direito, originário dos costumes existentes e das decisões proferidas em casos

concretos (jurisprudência). Qualquer semelhança não é mera coincidência, e é

claro que os países que optaram pela primeira via são que atualmente operam

no modelo civil law, ao contrário daqueles que seguiram pela segunda

alternativa e edificaram um novo modelo jurídico, hoje denominado de

common law. Na verdade, houve um contexto importante que induziu essas

decisões.

No caso da Inglaterra, originária do modelo jurídico da common law,

havia restrições à aplicação de um direito formado por normas gerais e

abstratas. Como explica RENÉ DAVID132

:

[...] as condições próprias da Inglaterra impediram que os tribunais

considerassem o direito como as universidades os convidavam a

considerá-lo; isto era impossível porque as jurisdições reais

(tribunais da common law) tinham apenas uma competência

restrita, ligada a processos que não lhes permitiam considerar o

direito, com toda a liberdade, sob o ângulo da moral e da política.

O direito romano era, talvez, em si mesmo, o melhor direito, aquele

que deveria ser aplicado, mas na Inglaterra era um direito que não

se podia aplicar.

Os países da Europa continental, por outro lado, aderiram à proposta de

sistematização do direito romano oferecida pelas universidades, grande parte

em razão do restabelecimento da ideia de segurança que isso transmitira. Com

a queda do Império Romano, o sentido de “ordem e progresso” havia se

132

Ibidem, p. 39.

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perdido na Europa e o retorno da ideia de regulação das relações sociais

trazida pelo direito romano se encaixara perfeitamente nesse contexto133

.

Concretamente falando, a dominação do direito romano como direito

vigente se deu em razão de a administração da justiça, até o século XVI, ser

atribuída a juristas formados nas universidades onde se ensinava o direito

romano134

. É especificamente a partir daqui que o modelo romano-germânico

emerge nos países da Europa continental, influenciando, posteriormente, suas

colônias135

.

2.1.5 Nacionalização e Codificação do Direito nos Países da Europa e sua

Expansão às Colônias

O que se chama de “nacionalização” do Direito Romano decorre do

processo de “adaptação”, promovido pela Escola de Direito Natural, das

Compilações de Justiniano, mas sob os pilares do Humanismo e da filosofia

iluminista, que impulsionou a organização independente dos países da

Europa. Nas palavras de ANDRÉIA COSTA VIEIRA136

:

Dentro dessa filosofia, depositava-se grande confiança no poder

da razão humana para identificar, dentre as leis naturais, as

leis humanas a serem obedecidas por todos. [...]

Consequentemente, a organização do continente europeu em

países-nações fez com que as tradições legais de cada um desses

Estados passasse por um período de nacionalismo e tomasse o

lugar primordial que ocupava o Direito Civil Romano.

O movimento intelectual que se seguiu, conhecido como

Iluminismo, pregava que a lei natural era a lei da razão, e esta, nada

mais era que a lei que se originava de uma compreensão ampla das

133

Ibidem, p. 40-41. 134

Ibidem, p. 40. 135

Conforme explica René David: “A família romano-germânica tira daí a sua existência: ela é composta de

países que, numa medida variável, mas sempre importante, sofreram na sua maneira de conceber o direito, na

apresentação, nos métodos de investigação e, por vezes, nas próprias regras do seu direito, a influência do

ensino ministrado nas faculdades de direito destas universidades”. Op. cit., p. 39-40. 136

Op. cit., p. 42-43.

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necessidades do ser humano dentro do seu habitat, como um ser

social. Grandes nomes [...] desenvolveram valiosos trabalhos

acadêmicos em defesa da Lei Natural e da Lei da Razão. Seus

trabalhos não objetivavam revolucionar o Direito Civil

Romano, mas, simples e grandiosamente, justificar e apoiar a

consolidação das leis nacionais através de seu maior suporte

jurídico: a lei natural.

(destaques não são do original)

JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO atribuem ao

surgimento da ideia de soberania o aparecimento do direito positivo (leis)

nacional137

:

A policêntrica, altamente descentralizada e ineficiente estrutura

política do mundo medieval fez sentir a necessidade de um sistema

de governo mais eficiente e centralizado – o Estado-nação

moderno. Tanto para trazer esse tipo de transformação como para

consolidar as conquistas da revolução, foi preciso encontrar uma

ideologia, e o nacionalismo - a ideologia do Estado – preencheu

esse espaço. E se o nacionalismo era a ideologia dominante, a

soberania era a premissa básica de sua expressão legal.

[...]

A lei de um Estado só poderia ser executada dentro de outro estado,

se este último permitisse sua aplicação [...]: nada fora do Estado

poderia tornar uma lei eficaz dentro dele, a não ser ele próprio.

Diante desse novo paradigma histórico os países passam a sentir falta

de um “texto-padrão nacional”. Isso os induziu ao movimento de codificação,

conforme descreve ANDRÉIA COSTA VIEIRA138

:

Via-se que a proliferação da necessidade de se ter um código que

reunisse todas as leis do país era rápida. Contudo, a noção de

137

Tradução livre do trecho: “The polycentric, highly decentralized, inefficient structure of the medieval

political world feel before the need for a more efficient, centralized governmental system - the modern

nation-state. Both to bring about this kind of transformation and to consolidate the accomplishments of the

revolution, an ideology was needed, and nationalism - the ideology of state - met this need. And if

nationalism was prevailing ideology, sovereignty was the basic premise of its legal expression. [...] The law

of one state could only be enforced within another state if the latter chose to permit their enforcement [...]:

nothing outside the state could make law effective or within the state without the state’s consent.” Op. cit., p.

20 e 23. 138

Op. cit., p. 44.

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“código” era bastante diferente da noção que existia até então.

Nascia uma nova concepção do “código nacional”. Mas, o que

vinha a ser esse novo conceito de código? Watson define o termo

“código” como um trabalho escrito que reúne todas as principais

regras e leis que têm a intenção de se tornar autoridade em, pelo

menos, uma área inteira de direito, como, por exemplo, direito

penal, civil, processual civil etc. É exatamente nesse sentido que as

modernas codificações foram escritas [...].

Para chegar à produção de seus próprios Códigos, tinham os países dois

caminhos: simplesmente organizar as leis costumeiras ou, com o auxílio dos

princípios e métodos do direito romano, elaborar codificações mais completas

e aptas a regular situações futuras, conforme expõe RENÉ DAVID139

:

As compilações privadas ou oficiais apareceram em diversos países

a partir do século XIII até o século XVIII, com o fim de fixar o

conteúdo dos costumes regionais. Poder-se-á pensar, a priori, que

estas obras puderam, sob certos aspectos, limitar o progresso do

direito romano. Seu efeito, contudo, deste ponto de vista, foi

limitado. Existiam duas possibilidades. A primeira possibilidade

era que os redatores dos costumes se limitassem a fixar o conteúdo

dos costumes: nesta situação a sua obra deixaria transparecer tudo o

que o costume apresenta de lacunas, de arcaísmos e de

insuficiências. Nenhum costume constitui um sistema completo

necessário para regular as novas relações. O costume funciona, por

isto, como uma “lei particular”, como um corretivo a um sistema,

em que se torna necessário descobrir os princípios. [...] A segunda

possibilidade era que os redatores dos costumes se esforçassem por

os apresentarem como um sistema suficientemente completo,

podendo bastar em qualquer ocasião: eles apenas podiam consegui-

lo se levassem a cabo uma ampla obra de criação; esta, no entanto,

implicava, a maior parte das vezes, uma importação dos princípios

do direito romano. [...]

[...] A influência do direito romano aumenta à medida que se

consideram compilações mais recentes. A reforma dos costumes ou

dos direitos municipais na França, como na Alemanha, revelam-no

claramente.

139

Op. cit., p. 44-45.

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Além da França e da Alemanha140

, o direito romano também se tornou

o direito aplicável, nacionalizado, na Itália141

, na Espanha e em Portugal142

e,

posteriormente, nas colônias espanholas, portuguesas e francesas143

-144

. O

modelo romano-germânico de direito foi incorporado naturalmente ao Brasil,

assim como às demais colônias portuguesas, espanholas, francesas e

holandesas da América145

“estabelecidas em países praticamente

desabitados”146

.

Foi na Alemanha que se passou a “dividir o direito nas classificações

modernas que temos hoje: direito público e direito privado, civil e criminal,

substantivo e objetivo etc.”147

, o que deve justificar o adjetivo “germânico” à

140

Afirma-se que “O imperador alemão considerava o Direito Civil Romano como seu. Isso se dava porque,

à época em que se fundou o Reichskammergericht, o antigo Império Romano já estava em declínio pela

invasão dos turcos otomanos, e ele – o imperador alemão – era, por direito, o único sucessor do “Santo

Imperador Romano”. Por isso, o Direito Civil Romano foi pacificamente incorporado na Alemanha [...]”.

VIEIRA, Andréa Costa, op. cit., p. 40. 141

Andréia Costa Vieira afirma que a Itália teria sido o primeiro país a colocar em prática do Direito

Romano, no século XV: “[...] os governantes das cidades italianas desenvolveram o hábito de enviar para os

jurisconsultos das universidades questões jurídicas que não tinham solução dentro dos seus direitos locais. Os

jurisconsultos das universidades respondiam às questões jurídicas com base em seus estudos do Corpus Iuris

Civilis”. Ibidem, p. 39. 142

DAVID, René, op. cit., p. 47. 143

Ibidem, p. 61. 144

É interessante notar que o estudo do direito comparado é uma reação ao processo de nacionalização dos

direitos, e que decorre do intenso relacionamento econômico, político e social entre os países a partir do

século XX (Ibidem, p. 2). É claro que a internacionalização pressupõe a nacionalização, ou seja, para que os

direitos passassem a se relacionar era necessário que, primeiro, se tornassem direito, o que decorreu

efetivamente do processo de codificação em nível nacional. 145

Ressalta René David que “um problema se levanta quanto a certos territórios da América, que outrora

estiveram sob o domínio espanhol ou francês, mas que hoje pertencem a conjuntos políticos em que a

common law é preponderante, ou estão submetidos à soberania ou influência dominante de um país da

common law. Poderá ser conservada, em tais circunstâncias, a tradição da ligação à família romano-

germânica? Deve-se responder negativamente quanto à Louisiana francesa [...]. As antigas possessões

espanholas, atualmente Estados dos Estados Unidos (Flórida, Califórnia, Novo-México, Arizona, Texas,

etc.), conservaram certas instituições do direito colonial anterior, mas seguem, atualmente, o regime de

direito da common law”. Ibidem, p. 62. 146

Ibidem, p. 61. 147

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 44.

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expressão moderna que se utiliza para nominar os países de civil law (direito

romano-germânico)148

.

A ideia de um legislador propriamente dito, capaz de tornar a aplicação

das regras do direito romano obrigatória, veio no século XVIII, quando se

rompe com a noção de soberania da vontade do Imperador149

:

A escola do direito natural, no século XVIII, rompe com esta

concepção tradicional. Ela recusa-se a reconhecer a onipotência do

soberano e a atribuir a qualidade de leis aos comandos emanados

da sua vontade arbitrária. Mas já transige ao ver na pessoa do

soberano um legislador; atribuiu-lhe a função de reformar o direito

de modo a rejeitar os erros do passado e a proclamar a autoridade

de regras plenamente conformes à razão. Sob o império destas

ideias, os países do continente europeu vão se orientar para

uma nova fórmula de codificação, muito diferente da fórmula

das compilações anteriores. A nova fórmula de codificação

conduz-nos ao período moderno da história dos direitos da

família romano-germânica: aquela em que a descoberta e o

desenvolvimento do direito vão ser entregues, principalmente,

ao legislador.

(destaques não são do original)

Esse reconhecimento de um órgão capaz de editar regras conforme a

razão, advinda da Escola de Direito Natural e das ideias do Iluminismo

renascentista, desembocou, ao final, na redução da ideia de direito ao direito

positivo (leis postas) e no surgimento da Escola dos Positivistas Jurídicos150

-

151.

148

A aderência do termo “germânico” à expressão “direito romano” também pode ser atribuída ao fato de que

a Escola Pandectista de juristas alemães, segundo René David, continuou “o trabalho secular que as

universidades tinham empreendido sobre os textos do direito romano”, elevando “os princípios românicos a

um grau de sistematização ainda não atingido”. Op. cit., p. 57. 149

Ibidem, p. 49-50. 150

“O positivismo jurídico ou juspositivismo é uma corrente da teoria do direito que procura explicar o

fenômeno jurídico a partir do estudo das normas positivas, ou seja, daquelas normas postas pela autoridade

soberana de determinada sociedade. Ao definir o direito, o positivismo identifica, portanto, o conceito de

direito com o direito efetivamente posto pelas autoridades que possuem o poder político de impor as normas

jurídicas. Segundo esta corrente de pensamento, os requisitos para verificar se uma norma pertence ou não a

um dado ordenamento jurídico têm natureza formal, vale dizer, independem de critérios de mérito externos

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O professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, citando Helmut Coing

(Grundzüge der Rechtsphilosophie. Berlim: Walter de Gruyter, 1969, p. 25),

bem resume esse fim inglório da perspectiva jusnaturalista152

:

O século XIX, diz Coing (1969: 25), “representa ao mesmo

tempo a destruição e o triunfo do pensamento sistemático

legado pelo jusnaturalismo, o qual baseava toda sua força na

crença ilimitada na razão humana”. Os teóricos do direito

racional não estavam presos a nenhuma fonte positiva do direito,

embora a temporalidade da ação humana que criava e modificava o

direito não ficasse olvidada.

(destaques não são do original)

JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO descrevem na

seguinte forma essa evolução que resultou num embate científico entre as

duas escolas153

:

ao direito, decorrentes de outros sistemas normativos, como a moral, a ética ou a política. O direito é definido

com base em elementos empíricos e mutáveis com o tempo - é a tese do fato social, ou das fontes sociais ou

convencionalista. Nega-se, com isso, as teorias dualistas que admitem a existência de um direito natural ao

lado do direito positivo”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo_Jur%C3%ADdico. Acesso em: 31 ago.

2013. Para uma abordagem mais profunda sobre a postura normativo-formalista do positivismo jurídico, ver:

BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 131-146 [a parte II do livro trata do positivismo jurídico como forma de teoria

geral do direito (norma e valor, a coação, o ordenamento jurídico, a interpretação das normas e a

jurisprudência)]. Uma abordagem moderna pode ser encontrada em RODRIGUEZ, José Rodrigo. A

persistência do formalismo: uma crítica para além da separação de poderes. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo;

COSTA, Carlos Eduardo Batalha da Silva e; BARBOSA, Samuel Rodrigues (org.). Nas Fronteiras do

Formalismo. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 157-192. 151

René David também reconhece, sutilmente, que o direito natural foi o impulso do direito positivo: “... a

escola de direito natural, mal denominada, não vê mais no direito um dado natural, mas uma obra da razão. A

razão humana, desde então, será, por consequência, o único guia; na época da filosofia das luzes, os juristas,

inspirando-se num ideal de universalismo, procurarão proclamar as regras de justiça de um direito universal,

imutável, comum a todos os tempos e a todos os povos. Estas concepções reforçarão a tendência para uma

amálgama dos costumes locais e regionais; a exaltação da razão, a nova função reconhecida à lei pelas

doutrinas voluntaristas, preparará a via da codificação”. Op. cit., p. 37. No mesmo sentido, Andréia Costa

Vieira: “No século XVIII, a filosofia iluminista e o direito natural abrem passagem à primeira onde de

codificações. [...]. Uma das filosofias jurídicas em expansão nessa época foi o positivismo jurídico. [...].

Assim, passa-se à fase das grandes codificações que coroa a racionalidade do positivismo jurídico. O Code

Civil francês, publicado em 1804, torna-se o símbolo do triunfo da Escola Positivista”. Op. cit., p. 58-59. 152

Op. cit., p. 72. 153

Tradução livre do trecho: “… natural law had lost its power to control the prince. Secular natural law,

while providing many of the ideas that were the intellectual fuel of the revolution, was ineffectual as a

control on the activity of state. [...] The perennial controversy between natural lawyers and legal positivists

(familiar to all students of legal philosophy) thus was decisively resolved, for operational purposes at least, in

favor of the positivists. Consequently, although this debate still goes on, it has a distinctly academic flavor

since the emergence of the modern state. [...]. The state tended to become the unique source of law, claiming

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[...] [o] direito natural tinha perdido o seu poder de controlar o

príncipe. Embora o secular Direito Natural oferecesse muitas das

ideias que eram o combustível intelectual da revolução, ele era

ineficaz como um controle sobre a atividade do Estado. [...] A

controvérsia perene entre jusnaturalistas e positivistas

(familiar a todos os estudantes de Filosofia do Direito),

portanto, foi decisivamente resolvida, para fins operacionais,

pelo menos, em favor dos positivistas. Consequentemente,

embora esse debate ainda continue, tem somente um distinto sabor

acadêmico desde o surgimento do Estado moderno.

[...]

O Estado tendeu a tornar-se a única fonte de direito,

outorgando soberania a si mesmo, tanto interna como

internacionalmente. Assim, os sistemas jurídicos nacionais

começaram a substituir o jus commune154

.

[...].

Desta forma, a idade da soberania absoluta começou. A lei de

outras fontes, tais como o jus commune ou o costume, só era

aplicada se o príncipe assim o quisesse.

(destaques não são do original)

Além da redução da ideia de direito ao direito positivo para efeitos de

regulação das ações humanas, explica RENÉ DAVID que os países pertencentes

à família do civil law são, mais que isso, aqueles onde se passou a utilizar o

vocabulário, as categorias, conceitos e classificações do direito romano, na

época de seu renascimento, embora se possa verificar que o material de base

originava-se de fontes locais155

.

sovereignty for itself both internally and internationally. Thus national legal systems began to replace the jus

commune, [...]. So the age of absolute sovereignty began. Law from other sources, such as the jus commune

or established custom, was applied because the prince so willed it”. Op. cit., p. 20-21. 154

O termo “jus commune” refere-se, neste trecho, ao seu sentido histórico, ou seja, ao direito romano que,

com toda a sua evolução, serviu de base para a nacionalização dos direitos dos Estados ocidentais. Conforme

explica a biblioteca mundial “Wikipedia”, “the ius commune, in its historical meaning, is commonly thought

of as a combination of canon law and Roman law which formed the basis of a common system of legal

thought in Western Europe from the rediscovery and reception of Justinian’s Digest in the 12th and 13th

centuries”. http://en.wikipedia.org/wiki/Jus_commune. Acesso em: 31 ago. 2013. 155

“O renascimento dos estudos de direito romano tem um segundo significado: que o vocabulário do direito,

as categorias em que as regras serão ordenadas, os conceitos que se utilizarão, serão (sic) o vocabulário, as

categorias, os conceitos da ciência dos romanistas. Divisão do direito público e do direito privado,

classificação dos direitos em reais e pessoais, noções de usufruto, de servidão, de dolo, de prescrição, de

mandato, de contrato de trabalho, tornam-se divisões e noções sobre as quais os juristas raciocinam, visto que

são formados pela escola de direito romano. O renascimento dos estudos de direito romano é o principal

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Atualmente, incluem-se os seguintes sistemas jurídicos como

descendentes desse fenômeno histórico descrito até aqui156

: França,

Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália, Espanha, Portugal, Suíça, Áustria,

Turquia, países do norte da África, América Latina, Estado da Louisiana,

província do Quebec, Japão, Indonésia e Filipinas157

.

2.2 Análise do Modelo Civil Law como Direito Posto (Positivo): evolução

do Direito Romano, formação das normas gerais e abstratas, codificação

e relação entre regra e ato de aplicação

É importante dissolver a ambiguidade que a utilização dos termos civil

law e common law pode ensejar quando adjetivam determinado sistema

jurídico. A afirmação de que determinado país ou sistema jurídico enquadra-

se no conjunto de civil law ou common law pode querer se referir ao direito

positivo158

(organizado sob a forma de normas gerais e abstratas,

preferencialmente codificadas) ou à Ciência do Direito, neste último caso

especialmente pela utilização das mesmas formas de classificação daquele

direito positivo (direito público e direito privado) e da identificação e

hierarquização das fontes do direito (lei, costumes, jurisprudência, doutrina e

princípios gerais do direito, classificáveis como primárias ou secundárias)159

.

fenômeno que marca o nascimento da família de direito romano-germânica. Os países que pertencem a esta

família são, na história, aqueles onde os juristas e práticos do direito, quer tenham ou não adquirido a sua

formação nas universidades, utilizam classificações, conceitos e modos de argumentação dos romanistas”.

Op. cit., p. 41. 156

Ibidem, p. 25; VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 53. 157

Após a queda da União Soviética, muitos países da Europa Oriental estão se espelhando nos Códigos da

Europa Ocidental para a construção de seus sistemas jurídicos. Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 53. 158

A expressão “direito positivo” está sendo utilizada, neste trecho, em sua noção mais ordinária, ou seja,

como o conjunto de enunciados prescritivos de caráter geral e abstrato, excluídas as normas individuais e

concretas. É claro que partindo do pressuposto de que integram o sistema jurídico todas as normas jurídicas

válidas, independentemente de serem gerais, abstratas, individuais ou concretas, o direito positivo está

referido neste trecho como a parte pelo todo (metonímia). 159

É possível notar essa ambiguidade em todas as obras que descrevem esses modelos de direito e que foram

analisadas durante este trabalho. Como exemplo, notem-se os seguintes trechos extraídos da grandiosa obra

de René David:

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Neste item trataremos das características do modelo civil law voltadas

ao direito posto. No próximo item, trataremos daquelas relacionadas à Ciência

do Direito, especialmente no que se refere à hierarquização das fontes do

direito.

A característica de leis escritas e codificadas está ligada à ideia de

certeza do direito, mas não no sentido de “segurança jurídica” que utilizamos

modernamente, e, sim, no sentido de se poder encontrar, literalmente, as

regras que regiam direitos e deveres. É neste sentido a afirmação de ANDRÉ

TUNC, descrita por ANDRÉIA COSTA VIEIRA160

:

Perquirindo a razão de, na França do final do século XVIII,

proceder-se à codificação das leis, André Tunc chega à conclusão

de que o motivo era simples: as leis deveriam ser claras e escritas

para que todo e qualquer cidadão pudesse tomar conhecimento dos

seus direitos e deveres.

No processo histórico de implementação dos direitos nacionais, a partir

da codificação de regras locais e oriundas do direito romano, já se podia

perceber pretensão de criar um corpo normativo capaz de dar conta de todas

as soluções futuras, conforme expõe RENÉ DAVID161

:

Existiam duas possibilidades. A primeira possibilidade era que os

redatores dos costumes se limitassem a fixar o conteúdo dos

costumes: nesta situação a sua obra deixaria transparecer tudo o

“A primeira família de direitos que merece nossa atenção é a família de direito romano-germânica. Esta

família agrupa os países nos quais a ciência do direito se formou sobre a base do direito romano. As regras de

direito são concebidas nestes países como sendo regras de conduta, estreitamente ligadas a preocupações de

justiça e de moral. Determinar quais devem ser estas regras é a tarefa essencial da ciência do direito; [...]”.

Op. cit., p. 17-18.

“Uma segunda família de direito é a de common law, comportando o direito da Inglaterra e os direitos que se

modelaram sobre o direito inglês. As características tradicionais da common law são muito diferentes das da

família de direito romano-germânica. A common law foi formada por juízes, que tinham de resolver litígios

particulares, e hoje ainda é portadora, de forma inequívoca, da marca desta origem. A regra de direito da

common law, menos abstrata que a regra de direito da família romano-germânica, é uma regra que visa dar

solução a um processo, e não formular uma regra geral de conduta para o futuro”. Ibidem, p. 19. 160

Op. cit., p. 19. 161

Ibidem, p. 44-45.

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que o costume apresenta de lacunas, de arcaísmos e de

insuficiências. Nenhum costume constitui um sistema completo

necessário para regular as novas relações. O costume funciona, por

isto, como uma “lei particular”, como um corretivo a um sistema,

em que se torna necessário descobrir os princípios. [...] A segunda

possibilidade era que os redatores dos costumes se esforçassem

por os apresentarem como um sistema suficientemente

completo, podendo bastar em qualquer ocasião: eles apenas

podiam consegui-lo se levassem a cabo uma ampla obra de criação;

esta, no entanto, implicava, a maior parte das vezes, uma

importação dos princípios do direito romano. [...]

(destaques não são do original)

É conveniente notar como a ideia de suficiência das normas gerais e

abstratas para regulação de condutas futuras vem arraigada desde a

nacionalização dos direitos a partir da utilização direito romano.

Um fator interessante que pode ser destacado depois dessa longa

descrição sobre a evolução do modelo romano-germânico, é que,

parcialmente, a origem da codificação são os casos concretos: num processo

de abstração / generalização, escreveram-se os textos dos Códigos a partir da

observação de diversas ocorrências passadas (costumes, interpretação dos

prudentes). Os Códigos surgiram parcialmente da sistematização, pela

aplicação do método indutivo, das normas individuais e concretas emanadas

pelos jurisconsultos romanos162

-163

. Num primeiro momento, portanto,

transformam-se decisões casuísticas em preceitos gerais e abstratos (pela

utilização do método indutivo) para, tempos depois, mediante a contingência 162

Conforme afirmam John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo: “Justinian was concerned about the

great number, length, and variety of commentaries and treatises written by legal scholars (called

jurisconsults) He sought both to abolish the authority of all but the greatest of the jurisconsults of the

classical period ad to make it unnecessary for any more commentaries or treatises to be written”. Op. cit., p.

7. 163

Jean Cruet coloca expressamente esse papel criativo da jurisprudência no direito romano como forma de

complementar as leis, o que torna ainda mais instigante a crítica da ideia de primazia da lei que se

desenvolveu mitologicamente desde então na Ciência do Direito nos países de civil law: “A obscuridade da

lei das XII Táboas (sic), indecifrável hieróglifo aos olhos do vulgo, a concisa simplicidade das leis votadas

pelo povo sobre certos pontos que haviam sublevado o interesse direto da multidão, tornava particularmente

fácil essa interpretação criadora, o texto, em suma, dava simplesmente uma orientação à jurisprudência”. Cf.

A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. 3ª ed. Leme: Edijur, 2008. p. 33.

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do processo de aplicação das regras, voltar-se ao método dedutivo, do geral ao

específico, levando questões controversas a um julgador.

De fato, é possível perceber os constantes, embora sutis, embates entre

a rigidez normativa, característica das regras generalizadas e escritas, e a

adequação dessas normas aos casos concretos no processo de aplicação. Essa

adequação ora se justifica pelo caráter ultrapassado das regras codificadas

(Lei das XII Tábuas ou as Compilações de Justiniano), ora pela busca

(implícita ou explícita) da justiça. Por uma ou outra razão, o fato é que desde

que aquela época, e como não poderia ser diferente, o direito positivado já

deixava à mostra os sinais de sua limitação diante da contingência do

processo de aplicação.

2.3 Análise do Modelo Civil Law como Ciência do Direito: a ideia da lei

como fonte primária e da jurisprudência como fonte secundária do

direito

É claro que os direitos nacionais modernos dos países europeus e suas

antigas colônias têm, cada qual, suas peculiaridades. Contudo, há grande

semelhança tanto quanto à estrutura do direito positivo164

como em relação à

Ciência que fala sobre ele, especialmente em razão de toda a influência do

direito romano sobre tais países165

, e que justifica seu agrupamento na

chamada família de “direito romano-germânico” ou civil law.

164

A expressão “direito positivo” está sendo utilizada, neste trecho, em sua noção mais ordinária, ou seja,

como o conjunto de enunciados prescritivos de caráter geral e abstrato, excluídas as normas individuais e

concretas. É claro que partindo do pressuposto de que integram o sistema jurídico todas as normas jurídicas

válidas, independentemente de serem gerais, abstratas, individuais ou concretas, o direito positivo está

referido neste trecho como a parte pelo todo (metonímia). 165

René David afirma: “Em todos os países da família romano-germânica a ciência agrupa as regras do

direito nas mesmas grandes categorias. Por toda a parte se encontra a mesma grande divisão básica de direito

público e de direito privado. [...]. No direito público como no direito privado encontram-se, em todos os

países da família romano-germânica, os mesmos ramos fundamentais: direito constitucional, direito

administrativo, direito internacional público, direito criminal, direito processual, direito civil e direito

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A principal semelhança que destacaremos neste item está arrigada na

noção construída pela Ciência do Direito que descreve essa família (civil law),

de que existem basicamente cinco fontes do direito166

(costumes, leis,

jurisprudência, doutrina e os princípios gerais), sendo a lei a fonte primária e

as demais, incluindo a jurisprudência, fontes secundárias.

Se atentarmos ao item anterior, sobre as origens do modelo civil law, ou

seja, sobre a evolução do direito romano, notaremos que grande parte da

descrição é voltada à identificação das fontes do direito. A acepção utilizada

naquela descrição evolutiva não guarda qualquer precisão, servindo tão-

somente para denotar o que, em determinada época, era utilizado para

ordenação da sociedade.

A ideia do “costume” como fonte do direito vem desde o período

anterior à era Cristã e, por ter sido uma das primeiras formas de ordenação da

vida social, ganhou uma importância valorativa que parece ser a razão para a

sua manutenção, modernamente, entre o rol das fontes do direito167

, de forma

relativamente inquestionável168

.

Contudo, não é nosso objetivo, nem neste item e nem neste trabalho,

trabalhar a noção das fontes do direito (quantas são, em que acepção o termo

comercial, direito do trabalho, etc. A mesma correspondência nas categorias recebidas encontra-se, a um

nível inferior, nas instituições e nos conceitos, manifestando-se em particular no fato de, regra geral,

nenhuma dificuldade maior se sentir na tradução do francês para o alemão, espanhol, italiano, holandês,

grego ou português, das palavras do vocabulário jurídico. Esta semelhança dos direitos oferece, àquele que

conhece um deles, grande facilidade para a compreensão dos outros direitos. As regras fundamentais

consagradas nesses países podem diferir; em todo caso, nós sabemos imediatamente do que se trata; [...]. A

explicação desta semelhança já foi dada. Deve-se ao fato da ciência do direito, em toda a Europa continental,

ter sido fundada durante séculos sobre os mesmos ensinamentos, com base no direito romano [...]. Op. cit., p.

70. 166

Além das fontes, as semelhanças das Ciências do Direito nos países de civil law podem ser encontradas na

divisão entre direito público e direito privado, direitos reais e pessoais, dentre outras. Ibidem, p. 41. 167

Washington de Barros Monteiro coloca o costume ao lado da lei, como fonte imediata do direito. Curso de

Direito Civil (parte geral). São Paulo: Saraiva, 1997. p. 12. 168

Sobre a falta de avaliação crítica para designar as fontes do direito no Brasil, ver MOUSSALLEM, Tárek

Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2006. p. 106-107.

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é utilizado nos diversos manuais e livros de teoria geral do direito, ou qual a

origem de até hoje manter-se determinada categoria no rol das fontes do

direito). O nosso grande objetivo é trabalhar a relação entre a lei e a

jurisprudência, colocadas de forma hierárquica pela Ciência do Direito que

descreve o modelo civil law.

RENÉ DAVID, em sua grande obra sobre direito comparado, dedica um

dos três títulos da Primeira Parte (“A Família Romano-Germânica”) só ao

estudo das fontes do direito (os outros dois tratam da “Formação Histórica do

Sistema” e da “Estrutura dos Direitos”). Nesse Título, que é o que encerra a

descrição do modelo civil law, o referido autor expõe logo no início169

:

A lei, considerada lato sensu, é aparentemente, nos nossos dias, a

fonte primordial, quase exclusiva, do direito nos países da família

romano-germânica. Todos estes países surgem como sendo países

de direito escrito; os juristas procuram, antes de tudo, descobrir

regras e soluções do direito, estribando-se nos textos legislativos ou

regulamentares emanados do parlamento ou das autoridades

governamentais ou administrativas. A função dos juristas parece

ser fundamentalmente a de descobrir, com auxílio de vários

processos de interpretação, a solução que em cada caso

corresponde à vontade do legislador.

As outras fontes aparecem, nesta análise, ocupando uma posição

subordinada e de importância muito reduzida em confronto com a

fonte por excelência do direito, constituída pela lei.

(destaques não são do original)

Nos trechos seguintes, RENÉ DAVID desmistifica a ideia de que a lei

seria fonte primária do direito, mas não o faz para atribuir valor à

jurisprudência e, sim, para valorizar a corrente teórica que concebe o direito

como algo muito maior que a lei170

:

169

Op. cit., p. 87. Embora o autor reconheça a lei em sentido amplo como fonte primária, mais à frente (nas

páginas 98 a 100) expressa a ideia de que os atos infralegais têm que ter a função de somente complementar a

lei em sentido estrito e não podem ir além dessa. 170

Ibidem, p. 87-88.

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76. Teoria e Realidade. [...]

Esta análise, por mais coerente que seja, está de fato muito distante

da realidade. A doutrina na qual se resume esta descrição bem pode

ter sido o ideal de uma certa escola de pensamento, dominante no

século XIX, na França. Contudo, ela nunca foi plenamente aceita

na prática e hoje reconhece-se na própria teoria, cada vez mais

claramente, que a soberania absoluta da lei é, nos países da família

romano-germânica, uma ficção; há lugar, ao lado da lei, para outras

fontes muito importantes do direito.

Confundir o direito e a lei, ver na lei a fonte exclusiva do direito é

contrário a toda a tradição romano-germânica. [...] A escola do

direito natural, a partir do século XVII, apelou para que o

legislador sancionasse, com a sua autoridade, as regras justas

elaboradas a partir dos postulados da natureza e da razão; mas,

preconizando uma nova técnica, a da codificação, ela jamais

pretendeu afirmar que direito e lei devam ser confundidos, e que o

simples estudo das leis possa dar-nos a conhecer o que é o direito.

Ao final da introdução do tema das fontes do direito nos países de civil

law, RENÉ DAVID atém-se ao “plano classicamente seguido” e passa a

examinar “o papel da lei, do costume, da jurisprudência, da doutrina e de

certos princípios gerais”171

.

ANDRÉIA COSTA VIEIRA segue praticamente o mesmo raciocínio. Após

a descrição da evolução histórica do modelo romano-germânico, dedica um

capítulo ao estudo das fontes do direito, subdividido em exatos cinco itens:

lei, costume, jurisprudência, doutrina e princípios gerais172

.

Independente da quantidade de fontes elencadas e da multiplicidade de

sentidos em que essa expressão é utilizada, o que nos interessa primariamente

neste trabalho é a concepção hierárquica e específica entre a lei (superior e,

por isso, primária) e a jurisprudência (inferior e, por isso, secundária)

utilizada para descrição do modelo civil law.

171

Ibidem, p. 91. 172

Op. cit., p. 62-71.

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Dogmaticamente, como um mito incontrastável, a lei aparece em

posição superior relativamente à jurisprudência. Ao desenvolver a ideia de

regra de direito nos países de civil law, RENÉ DAVID expõe como descabida a

forma de se pensar a decisão judicial como tal e classifica as normas gerais e

abstratas como intermediárias entre o princípios e a decisão específica de um

caso concreto173

:

70. A elaboração da regra de direito. [...]

A concepção de regra de direito admitida na família romano-

germânica é a base fundamental da codificação, tal como se

concebe na Europa continental. Não se pode elaborar um

verdadeiro código, segundo os juristas destes países, se virmos

uma regra de direito em cada decisão proferida pelo juiz se nos

colocarmos ao nível das decisões judiciárias. Um código, na

concepção romano-germânica, não deve procurar a solução de

todas as questões concretas que se apresentarão na prática; a sua

função é formular regras, suficientemente gerais, ordenadas em

sistema, que se tornem acessíveis à descoberta e ao conhecimento,

para que destas regras, por um trabalho tão simples quanto

possível, juízes e cidadãos deduzam facilmente o modo como tal ou

tal dificuldade concreta deve ser resolvida.

71. Generalidade ótima da regra. A regra de direito romano-

germânico situa-se a meio caminho entre a decisão do litígio,

considerada como uma aplicação concreta da regra, e os princípios

dotados de uma elevada generalidade, de que pode, ela própria, ser

considerada como uma aplicação.

(destaques não são do original)

Esse último trecho denota a ideia predominante de que a lei, nos países

de civil law, é (ou deveria ser) suficiente para orientar todos seus

destinatários, sejam eles juízes ou cidadãos. Em outros termos, diante de uma

situação concreta de dúvida, a lei seria (ou deveria ser) apta a resolvê-la,

direcionando a conduta do indivíduo174

.

173

Op. cit., p. 80-81. 174

Essa concepção está, em última análise, fincada na noção mais ampla e valorativa da forma de se alcançar

a justiça, quando lemos as obras de direito comparado. No modelo civil law, “a justiça é alcançada pela

observação da lei escrita. Para os que perfilham a família da Common Law, a justiça é alcançada,

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Esse também passou a ser o traço distintivo entre os países de civil law

e os países de common law. Afirmam os comparatistas que a lei e a

jurisprudência teriam funções muito diferentes, até díspares, nos países

herdeiros dos modelos civil e common law175

:

Dirijamos agora a nossa atenção sobre as fontes formais do direito.

Uma função muito diferente é atribuída à lei, ao costume, à

jurisprudência, a doutrina, à equidade nos diferentes sistemas.

Quando se estuda um direito estrangeiro, é necessário saber que as

ideias no nosso país, referentes às relações que existem entre estas

diferentes fontes possíveis das regras jurídicas, não são as mesmas

em todos os países e que os métodos de raciocínio, aplicados pelos

juristas para a descoberta das regras de direito e o desenvolvimento

do corpo do direito, podem ser, por consequência, variados.

Determinado direito pode ter um caráter religioso ou sagrado, e

nenhum legislador pode modificar as suas regras. Num outro, a lei

apenas constitui o modelo, entendendo-se como natural a sua

derrogação pelo costume. Em outros, ainda, os acórdãos da

jurisprudência têm reconhecida uma autoridade que

ultrapassa o círculo daqueles que tomaram parte no processo”

[...]. No âmbito da família romano-germânica, se procurarem

descobrir as soluções de justiça do direito pelo recurso a uma

técnica que tem como ponto de partida a lei, enquanto que na

família de common law se pretende o mesmo resultado, utilizando

uma técnica que toma prioritariamente em consideração as

decisões judiciárias.

(destaques não são do original).

A ideia da lei como fonte primária do direito pode ser atribuída, da

perspectiva histórico-evolutiva deste Capítulo, à ideia de soberania nacional e

tripartição dos poderes, predominante na Europa renascentista pós-

prioritariamente, pelos recursos dados ao judiciário no julgamento de casos concretos”. Cf. VIEIRA, Andréia

Costa, op. cit., p. 16. 175

DAVID, René, op. cit., p. 12 e 91. No mesmo sentido, Andréia Costa Vieira afirma que “Na família do

sistema Romano-Germânico, a jurisprudência tem o papel de fonte secundária do direito. Se a lei não for

expressa, ou se for omissa, pode a interpretação judiciária suprir-lhe a lacuna ou obscuridade. [...] A

jurisprudência não é fonte que vincula. [...] Qualquer juiz, de qualquer instância, pode julgar de forma diversa

do que já foi decidido. Nada o impede de fazê-lo. É exatamente essa liberdade de decisão, essa

desvinculação, que caracteriza o sistema jurisprudencial dos países do sistema Romano-Germânico. [...] Essa

posição secundária, não vinculante, da jurisprudência é traço distintivo da família do sistema Romano-

Germânico. (destaques não são do original). Op. cit., p. 67-68.

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72

medieval176

, conforme descrevem JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO

PEREZ-PERDOMO177

:

Assim, o positivismo estatal, expressado no dogma da soberania

absoluta, interna e externa, do Estado, levou a um monopólio

estatal do processo legislativo. A revolucionária ênfase na estrita

separação de poderes exigiu que só órgãos específicos e no âmbito

do Estado tivessem o direito de fazer a lei. [...] Considerando que

o Poder Legislativo é o único eleito diretamente e que

representa a vontade popular, ele seria o órgão habilitado a

exclusivamente produzir leis.

(destaques não são do original)

A partir dessa concepção de que o único órgão a quem deveria ser

atribuída a prerrogativa exclusiva de legislar era o Poder Legislativo (dada

sua capacidade de expressar a vontade popular por meio da

representatividade), é que ficou arraigada ao modelo civil law a noção da lei

como fonte primária do direito.

Seria totalmente inconsistente com a teoria da separação dos poderes e

com a ideia de soberania popular admitir-se que os juízes criam regras.

Portanto, “a reposta básica, e que é a essência do positivismo jurídico, é que

somente as regras produzidas pelo Poder Legislativo podem ser consideradas

leis”178

, ou seja, somente elas deveriam ser capazes de regular a conduta dos

indivíduos e, consequentemente, de servir como fundamento para tomada de

decisões judiciais.

176

Diante da perspectiva humanista do Renascimento e do Iluminismo, “o jurista torna-se servo da lei porque

é antes de mais nada um servo da razão, e esta está plasmada na lei”. Ibidem, p. 60. 177

Tradução livre do trecho: “Thus, state positivism, as expressed in the dogma of the absolute external and

internal sovereignty of the state, led to a state monopoly on lawmaking. Revolutionary emphasis on the strict

separation of powers demanded that only specifically designated organs of state be entitled to make law. [..]

As the only representative, directly elected branch of the government, the legislature alone could respond to

the popular will”. Op. cit., p. 23. 178

Cf. John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo: “[…] is obviously inconsistent with the separation

of powers as formulated in civil law countries, and is therefore rejected by the civil law tradition. Judicial

decisions are not law. What, then, was law? The basic answer, which is the essence of legislative positivism,

is that only statutes enacted by the legislation power could be law”. Op. cit., p. 23.

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73

Ainda que considerada a noção mais moderna de exercício de função

legislativa atípica pelo Poder Executivo, ela só era admitida, como ainda se

diz, nos limites da lei179

:

No século XIX o direito e a lei tornaram-se sinônimos de

legislação. O legislativo pode delegar parte desse poder ao

executivo, e dar aos órgãos administrativos o poder de emitir

regulamentos com força de lei, mas tal “lei delegada” somente seria

eficaz se dentro dos limites previstos na legislação delegada. O

poder legislativo era supremo.

O resultado disso, conforme continuam os últimos referidos autores, é

que somente as regras gerais e abstratas (leis em sentido estrito e em sentido

amplo) produzidas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo (neste

último caso, desde que dentro dos limites da lei em sentido estrito) seriam

aceitas como fontes do direito180

, no sentido de fonte primária (como

determinante para regulação de condutas). É para manter esse dogma que

ingenuamente se afirma181

:

[...] no sistema legal Romano-Germânico, ao juiz cabe a função de

interpretar e aplicar a lei, sendo esta existente; nunca a de modifica-

la ou reinventá-la. Se assim o fizesse, estaria usurpando a função

do legislativo, e nem mesmo o princípio da equidade o autorizaria a

tanto.

(destaques não são do original)

Dizer que a jurisprudência é fonte secundária significa afirmar que ela

não tem aptidão de regular primariamente as condutas gerais e futuras, já que

esta prerrogativa precisa estar reservada à lei (ainda que em sentido amplo).

179

Tradução livre do trecho “[…] in the nineteenth century law became synonymous with legislature. The

legislature could delegate some of that power to the executive, and it could give administrative agencies the

power to issue regulations having the force of law, but such “delegated legislation” was in theory effective

only within the limits provided in the delegating legislation. The legislative power was supreme”. Ibidem, p.

24. 180

Ibidem. 181

Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 32.

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74

A concepção de regra de direito como unicamente aquela emanada do

Poder Legislativo (ou do Poder Executivo, nos limites de sua competência

formal e material) fez coerentemente surgir a noção de que aos juízes não é

dado o poder de ir além da lei. Segundo essa concepção, o juiz somente

interpreta e aplica a lei e, assim, seria contraditório atribuir função legislativa

a ele.

A partir desse contexto e por essas razões é que até os livros mais

modernos de teoria do direito – ou mesmo os dogmáticos, elencam as fontes

do direito de forma hierarquizada, colocando a lei como a primária, ou, no

dizer de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, como “fonte direta e imediata”,

i.é, “que, por si só, pela sua própria força”, é “suficiente para gerar a regra

jurídica” 182

.

182

Op. cit., p. 12.

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3 NORMAS GERAIS E ABSTRATAS E FALIBILIDADE INERENTE

AO DIREITO POSITIVO: CONTEXTUALIZANDO A AFIRMAÇÃO

DA CIÊNCIA DO DIREITO NO SENTIDO DE QUE A LEI É FONTE

PRIMÁRIA PARA REGULAÇÃO DE CONDUTAS NOS PAÍSES DE

CIVIL LAW

A descrição feita no Capítulo 2, especialmente nos itens 2.2 e 2.3,

denota que duas são as principais características do civil law: (i) organização

de normas gerais e abstratas em forma de Códigos; (ii) prevalência das

normas gerais e abstratas sobre as decisões judiciais para regulação geral de

condutas, de acordo com a hierarquização das fontes do direito183

.

Embora a primeira característica se refira ao que chamamos de direito

positivo184

e a segunda ao que chamamos de Ciência do Direito, essa distinção

é metodológica e, portanto, há uma estreita relação entre ambas. A preferência

pelas normas gerais e abstratas, escritas e codificadas, como forma de

regulação social originária da sociedade romana, fez com que a lei (em

sentido amplo185

) assumisse, para a Ciência do Direito – inclusive

modernamente – um papel primário.

183

Ao final deste Capítulo trataremos das acepções de “fontes do direito”. Até lá, permaneceremos utilizando

esse termo tal qual colocado historicamente pela Ciência do Direito nos países de civil law: denotando tanto

processo de produção como produto e sem delimitação do sentido de “direito”. 184

A expressão “direito positivo” está sendo utilizada tanto no título deste Capítulo quanto neste trecho em

sua noção mais ordinária, ou seja, como o conjunto de enunciados prescritivos de caráter geral e abstrato,

excluídas as normas individuais e concretas. É claro que partindo do pressuposto de que integram o sistema

jurídico todas as normas jurídicas válidas, independentemente de serem gerais, abstratas, individuais ou

concretas, o direito positivo está referido neste trecho como a parte pelo todo (metonímia). 185

Refiro-me aqui à lei em sentido amplo para excluir a ideia de que a lei é fonte primária tão-só por conta do

princípio da separação dos poderes. Embora essa seja uma constatação relevantíssima da causa da

primariedade da lei nos países de civil law, a teoria da separação dos poderes e a ideia do órgão legislativo

como representante do povo são fenômenos recentes se comparados à tradição da utilização de normas gerais

e abstratas para regulação de condutas na sociedade.

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Neste Capítulo pretendemos fazer uma análise mais crítica e menos

descritiva dessas características, sob o ponto de vista do que chamamos de

falibilidade inerente ao direito positivo.

Os teóricos do modelo civil law reconhecem os problemas e a

dificuldade de regular condutas a partir da produção de leis (normas gerais e

abstratas), embora não avancem para um diagnóstico mais preciso dessa

dificuldade, tampouco para uma possível solução do problema. É neste

sentido a afirmação de RENÉ DAVID186

:

A censura dirigida às novas leis, nos diversos países, de

procederem de uma má técnica legislativa, advém em grande parte

do fato do legislador, nas novas matérias em que intervém, não

saber fixar exatamente a regra de direito ao nível em que desejamos

vê-la. Com frequência, ele entrega-se a uma casuística exagerada,

frequentemente agravada pela regulamentação administrativa;

outras vezes, pelo contrário, ele exprime-se em fórmulas muito

gerais, e, então, não se saberá como deve ser a lei compreendida no

momento em que ela terá de ser “interpretada”. As críticas dirigidas

à má técnica legislativa têm certamente um fundamento. Convém,

contudo, considerar que a tarefa de legislar é tecnicamente muito

difícil e que foram necessários séculos de esforços doutrinais para

chegar às fórmulas dos códigos que hoje, sem dúvida, nos parecem

muito simples.

(destaque não são do original)

Contudo, diferentemente do que conclui o referido autor, a má

qualidade da legislação não advém só das dificuldades relacionadas à

inovação da matéria legislada ou ao grau de generalização das regras;

tampouco serão tais problemas resolvidos ao longo do desenvolvimento da

civilização, como sugere ao final. É neste sentido que afirmamos ser o direito

positivo “falível”: pois os problemas que apontaremos são, para além

186

Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 82.

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daqueles usualmente identificados, inerentes (e, portanto, eternos)187

, o que

sugere uma análise crítica e a recolocação da afirmação de que a lei seria

fonte primária nos países de civil law.

A afirmação de que o direito positivo é falível e, consequentemente,

que é problemática a ideia de um modelo de direito baseado unicamente nas

normas gerais e abstratas como fonte primária (civil law), decorre de duas

premissas, mas leva a uma conclusão importante: a de que a sua falibilidade

tem impacto direito na regulação jurídica de condutas e, portanto, na garantia

da legalidade tributária188

e do Estado de Direito189

.

As duas premissas (ou causas) desse fenômeno são edificadas (i) a

partir da ideia de que o direito positivo é construído em camada de linguagem

e, portanto, padece de problemas semânticos incontornáveis; e, além disso,

(ii) considerando que as normas gerais e abstratas são produzidas de acordo

com as necessidades e o contexto presente, mas para regular condutas futuras.

Esses são os dois pontos que se pretende trabalhar neste Capítulo.

Para desenvolver essas duas premissas, utilizaremos o paradigma da

filosofia da linguagem e as teorias propostas por duas obras específicas que

tratam dos problemas das limitações do direito positivo: Playing by the Rules

187

A noção presente de “falibilidade” se aproxima muito do que a doutrina estrangeira chama de

defeasibility, traduzido para o português como derrotabilidade. Neste sentido ver: VASCONCELLOS,

Fernando Andreoni. Hermenêutica Jurídica e Derrotabilidade. Curitiba: Juruá, 2010. p. 53-66. 188

A expressão “legalidade tributária” denota, para os fins deste trabalho, o conjunto de enunciados

prescritivos (sejam eles oriundos de regras gerais e abstratas ou de regras individuais e concretas) apto a

determinar a obrigação de pagar ou não determinado tributo. 189

Relembremos aqui que, embora haja um intenso debate sobre o conceito de “Estado de Direito”, adotamos

neste trabalho o conceito jurídico-formal do termo, ou seja, como a atuação do poder público pautada em

regras jurídicas validamente postas no sistema (assim entendidas como aquelas produzidas por autoridade

competente e segundo o procedimento previsto normativamente), com o objetivo maior de garantir as

liberdades individuais (se ajo de acordo com as regras postas, então, não posso ser punido pelo Estado). Para

aprofundar o debate sobre o conceito de Estado de Direito, ver: QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo.

Formalismo e Normatividade no Conceito de Estado de Direito. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS,

Dimitri (org.), op. cit., p. 79-93; DIMOULIS, Dimitri. Incertezas do “Estado de Direito” na Perspectiva

Juspositivista. Raz e os Problemas do Conceito Formal. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri

(org.), op. cit., p. 95-118; VIEIRA, Oscar Vilhena. A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. In:

VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (org.), op. cit., p. 207-232.

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78

(ou Las Reglas en Juego), de FREDERICK SCHAUER190

, e Introducción a la

Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales, de ALCHOURRÓN e

BULYGIN191

. Essas teorias representam, da perspectiva normativa, um avanço

da famosa teoria da “moldura interpretativa” de KELSEN que reconhece as

limitações inerentes ao direito positivo.

3.1 Enunciado Prescritivo, Norma Jurídica, Norma Geral e Abstrata,

Regra Jurídica, Regra de Direito, Lei, Direito Positivo, Sistema Jurídico,

Ordenamento Jurídico e Ciência do Direito

É possível perceber pela narrativa da história evolutiva do modelo civil

law que fizemos no Capítulo 2, que o termo “lei” é usado de forma geral e

irrestrita, assim como outros tantos, tais como “regra jurídica”, “regra de

direito” ou “direito positivo”.

Para eliminar ambiguidades e elucidar a forma de utilização de alguns

termos, faremos uma brevíssima descrição introdutória antes de adentrar

propriamente no tema deste Capítulo.

A acepção de “lei” utilizada para descrever a evolução do direito

romano e identificar a característica distintiva do modelo civil law pode ser

identificada com as modernas expressões, mais precisas, “enunciado

prescritivo” com características de generalidade e abstração ou “norma geral e

abstrata”.

Enunciado é texto. A expressão enunciado prescritivo, cunhada pelo

Professor PAULO DE BARROS CARVALHO, denota uma específica forma de

190

SCHAUER, Frederick. Las Reglas en Juego. Trad. Claudina Orunesu e Jorge L. Rodríguez. Madrid e

Barcelona: Marcial Pons, 2004. 191

ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la Metodología de las Ciencias

Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2006.

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texto: a linguagem do “direito positivo”, ou seja, a linguagem utilizada com

função predominantemente prescritiva192

e dotada de coercitividade193

.

Contudo, quando nos deparamos com os textos não conseguimos

extrair dele nenhum comando. A linguagem, suporte físico do direito, não nos

fornece imediatamente o que buscamos [conduta a ser perseguida (obrigatória

ou permitida) ou evitada (proibida)]194

. É preciso que, num ato de percepção

visual, entremos em contato com esses textos, atribuindo significações às

palavras que o compõem195

. Em ato contínuo, essas significações são

agrupadas em nosso intelecto, onde as organizamos para formarem-se as

proposições196

. Como todo juízo significativo, as proposições que advêm dos

192

Direito Tributário: linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 129. 193

Por “coercitividade” leia-se o poder de exigir observância por parte dos indivíduos, o que decorre da

qualidade de validade presumida atribuída a todas as regras jurídicas impostas pelos órgãos autorizados e

segundo o procedimento previsto normativamente. 194

Conforme ensina Lourival Vilanova, “o direito positivo não aparece de forma padronizada, quer em razão

da diversidade de sua estrutura gramatical, quer em razão do idioma em que se manifesta. Em geral, utiliza-se

o verbo no modo indicativo-presente ou indicativo-futuro, os quais ocultam o verbo deôntico do dever-ser.

Assim, esse se encontra implícito nas formas do verbo ser, acompanhado de adjetivo no particípio: “estar

obrigado”, “estar permitido” ou “estar proibido”. Para transformar as múltiplas variedades verbais na

estrutura lógico-formal, é preciso reduzi-las à seguinte fórmula: “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito

S’ deve fazer ou deve omitir a conduta C ante outro sujeito S’ ”. Esta fórmula é o primeiro membro da

proposição jurídica completa e se compõe de hipótese e tese, em forma de implicação”. As Estruturas

Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 95. 195

O enunciado refere-se a algo de existência concreta ou imaginária no mundo, que é o seu significado. A

palavra ‘casa’ encontra seu significado no objeto ‘casa’. Essa associação entre a palavra o objeto de que

temos conhecimento produz em nossa mente uma noção, idéia ou conceito. Separando essa fase de

construção associativa a partir do suporte físico e seu significado, passamos a denominar o produto dela

como ‘significação’. A significação é, portanto, o produto da associação mental que fazemos entre o suporte

físico e o que eles significam. Para detalhes dessa relação triádica entre suporte físico, significado e

significação, denominada ‘signo’, ver: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Norma, Evento, Fato, Relação

Jurídica, Fontes e Validade no Direito. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (org.). Curso de Especialização

em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro:

Forense, 2005. p. 8. 196

Delia Teresa Echave, Maria Eugenia Urquijo e Ricardo Guibourg expressam de forma muito clara a

distinção entre enunciados e proposições: “No uso corrente da linguagem comum, é comum tomarmos como

sinônimas as expressões “enunciado” e “proposição”. Ao falar, nos expressamos mediante enunciados, isto é

orações como “este é um livro de lógica” […]. Estes conjuntos de palavras são orações porque cumprem com

o requisito de serem significativas, de expressar cabalmente uma idéia. Não ocorre o mesmo, por outro lado,

com expressões como “verde o é campo” […] Apesar de estarem compostas por palavras conhecidas, sua

desordem interna […] as priva de significados e com isso as impedem de se constituírem em enunciados ou

orações. […] “Faz Frio” e “It is cold” […] estão compostos por palavras distintas, além de corresponderem a

idiomas distintos. Mas também advertimos que […] têm algo em comum: querem dizer o mesmo […], isto é,

têm o mesmo significado. Quando vários enunciados têm o mesmo significado, dizemos que eles expressam

a mesma proposição. Uma proposição é, pois, o significado de um enunciado declarativo ou descritivo. Não é

o significado mesmo, que está composto por palavras de algum idioma determinado, ordenadas segundo

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textos do direito positivo (proposições normativas) também possuem uma

estrutura lógica: a estrutura lógica hipotético-condicional, isto é, relação de

implicação formal197

entre um antecedente (hipótese) e um consequente,

forma típica de regulação de condutas (“se…, então”), que associa

determinado dado fático a uma consequência.

Diante destas afirmações, é possível distinguir os textos das

proposições normativas hipotético-condicionais construídas a partir dele,

conforme lições de PAULO DE BARROS CARVALHO198

: aqueles, enunciados

prescritivos, estas, normas jurídicas199

-.

As normas jurídicas são, portanto, uma forma de organização

específica dos enunciados prescritivos, produto do ato de interpretação da

linguagem do direito positivo. Os antecedentes e consequentes das normas

jurídicas podem ser preenchidos de duas formas possíveis (cada qual),

dependendo do tipo de enunciado prescritivo considerado. Se o enunciado

certas regras gramaticais: é o conteúdo do enunciado, que é comum às diversas maneiras de dizer-se a mesma

coisa”. ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo A. Lógica, proposición y

norma. 1ª ed. 6. reimpr. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 35-37. 197

Chamamos de vínculo de implicação formal, o conector lógico denominado “condicional”, cuja função é

de ligar, artificialmente, por ato de autoridade competente, um pressuposto a uma consequência. Embora

aparentemente haja uma relação de causalidade entre antecedente e consequente, note-se que essa relação,

por ser artificial, difere-se, neste aspecto, do que se denomina, especificamente, de causalidade natural. Nas

palavras de Hans Kelsen, “Tal-qualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois

elementos. Porém, a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente

diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, da causalidade. Sem dúvida alguma que o crime não é

ligado à pena, o delito civil à execução forçada, […] como uma causa é ligada ao seu efeito.”. KELSEN,

Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

p. 86-87. 198

Segundo as palavras do autor, “Um dos alicerces que suportam esta construção [decomposição dos textos

do direito positivo em quatro subsistemas] reside no discernir entre enunciados e normas jurídicas. […] Os

primeiros […] se apresentam como frases, digamos assim soltas, como estruturas atômicas, plenas de sentido

[…]. Entretanto, sem encerrar uma unidade completa de significação deôntica, na medida que permanecem

na expectativa de juntar-se a outras unidades da mesma índole. Com efeito, terão de conjugar-se a outros

enunciados, consoante específica estrutura lógico-molecular, para formar normas jurídicas, estas, sim,

expressões completas de significação deôntico-jurídica”. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da

incidência, cit., p. 62-63. 199

Kelsen já distinguia entre texto e norma, esta entendida como “esquema de interpretação”, ou seja, como

“juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana que constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é

resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa”. KELSEN, Hans, op. cit.,

p. 4.

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prescritivo referir-se a uma situação concreta e sujeitos determinados, a

norma será individual e concreta. Por outro lado, se os textos referirem-se a

situações hipotéticas e dirigirem-se a sujeitos indeterminados, então o

intérprete organizará os tais enunciados prescritivos sob a forma de uma

norma geral e abstrata.

As normas jurídicas construídas a partir da interpretação das leis são

denominadas de normas gerais e abstratas, pois seus antecedentes descrevem

fatos de possível ocorrência (hipotéticos / abstratos), e relações jurídicas

genéricas, ou seja, entre sujeitos indeterminados (gerais).

Vale, aqui, a transcrição das palavras esclarecedoras de PAULO DE

BARROS CARVALHO200

, precisando os adjetivos “geral” e “abstrata” das

normas jurídicas:

A proposição antecedente funcionará como descritora de um evento

de possível ocorrência no campo da experiência social, sem que

isso importe submetê-la ao critério de verificação empírica [...].

Se a proposição-hipótese é a descritora de um fato de possível

ocorrência no contexto social, a proposição-tese funcionará como

prescritora de condutas intersubjetivas.

[...]

Na verdade, o prescritor da norma é, invariavelmente, uma

proposição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito

em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou

obrigatória. [...]

Costuma-se referir a generalidade e a individualidade da norma ao

quadro de seus destinatários: geral, aquela que se dirige a um

conjunto de sujeitos indeterminados quanto ao número; individual,

a que se volta a certo indivíduo ou a grupo identificado de pessoas.

Já a abstração e a concretude dizem respeito ao modo como se

toma o fato descrito no antecedente. A tipificação de um conjunto

de fatos realiza uma previsão abstrata, ao passo que a conduta

especificada no espaço e no tempo dá caráter concreto ao comando

normativo.

(destaques não são do original)

200

Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, cit., p. 26-27, 30-31 e 35-36.

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Considerando que não existe texto apto à regulação de condutas, ou

seja, que é preciso ato de interpretação e aplicação para que os enunciados

prescritivos atinjam o objetivo de regular condutas, trataremos os termos

“lei”, “regra jurídica” e “regra de direito” como sinônimos de normas gerais e

abstratas, eliminamos a ambiguidade entre texto (enunciado prescritivo) e

norma jurídica.

Contudo, resta ainda uma ambiguidade a ser eliminada para os termos

“lei” e “regra jurídica” / “regra de direito”: trata-se de normas gerais e

abstratas construídas a partir de enunciados prescritivos postos tão-somente

pelo Poder Legislativo (sentido restrito) ou devem-se incluir também aqueles

que, ainda que ostentem as características de generalidade e abstração, são

postos pelo Poder Executivo (sentido amplo)?

A Ciência do Direito que descreve o modelo civil law, especialmente

quando sistematiza o tema da hierarquização das fontes do direito, ora se

refere ao termo “lei” em seu sentido amplo, ora em seu sentido restrito. RENÉ

DAVID ao descrever sobre as Fontes de Direito (Título III, p. 87-139) inclui no

capítulo I, “A Lei”, tanto proposições relativas à lei em sentido estrito (p. 93-

98) como em relação à lei em sentido amplo (Regulamentos, Decretos e

Circulares Administrativas – p. 98-100)201

.

É sempre comum, entretanto, afirmar que as leis em sentido amplo não

podem extrapolar a lei em sentido estrito. Em outras palavras, ainda que se

utilize o termo lei em sentido amplo para denotar a fonte primária do direito,

sempre existe a ressalva de que ela não poderia ultrapassar o que dizer a lei

em sentido restrito, mantendo-se a rigidez da separação de poderes202

.

201

Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 99-100. 202

Ibidem, p. 98-100.

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A afirmação que fazemos neste trabalho – de falibilidade da lei –

independe de uma ou outra acepção. Ainda que consideremos as leis em

sentido amplo, a ideia de falibilidade continua a ser aplicável, pois ela toma

em consideração especialmente a característica de abstração – relativa a

situações hipotéticas e futuras – das normas jurídicas.

Tão-somente para efeitos de precisão semântica, os termos “lei” e

“regra” serão considerados em seu sentido amplo, ou seja, referindo-se a

qualquer norma geral e abstrata (não só as que têm como base os enunciados

prescritivos postos pelo Poder Legislativo, mas considerando também aqueles

postos pelo Poder Executivo, desde que ostentem a qualidade de

generalidade e abstração).

Em outros termos, consideraremos que as palavras “lei” e “regra de

direito” / “regra jurídica” denotam não só as normas gerais e abstratas

construídas a partir da CF/88, das Leis Complementares e das Leis Ordinárias

(textos produzidos pelo exercício da função típica do Poder Legislativo), mas

também aquelas construídas a partir dos Decretos, das Instruções Normativas

e todos os demais enunciados prescritivos que se refiram a situações

hipotéticas e sujeitos indeterminados.

Por fim, a última distinção importante para elucidação dos termos

utilizados na construção desta tese refere-se a direito positivo e Ciência do

Direito. Ambos são camadas de linguagem e se distinguem,

fundamentalmente, pela presença ou ausência do caráter

coercitivo/prescritivo.

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O direito positivo se manifesta em linguagem com função

predominantemente203

prescritiva204

, ou seja, tem o objetivo de interferir na

realidade social, prescrevendo condutas obrigatórias, permitidas ou proibidas.

Embora as decisões judiciais também integrem, neste sentido, o conceito de

direito positivo, para efeitos da análise crítica pretendida neste trabalho

utilizamos o termo direito positivo no seu sentido mais ordinário, ou seja,

denotando propriamente um conjunto de normas gerais e abstratas.

A Ciência do Direito se manifesta em linguagem com função

predominantemente descritiva205

, isto é, toma o direito positivo como

linguagem-objeto para descrevê-lo, sistematizando suas normas de acordo

com os objetivos científicos que pretende, em nível de metalinguagem206

.

Os termos “ordenamento jurídico” e “sistema jurídico” serão utilizados

como sinônimo de “direito positivo”, mas observada a ressalva feita acima, ou

seja, de que estamos considerando, para efeitos desta tese, o termo “direito

positivo” em seu sentido mais usual (conjunto de normas gerais e abstratas).

203

Cf. Paulo de Barros Carvalho: “discorrermos, todavia, sobre as funções da linguagem, obriga a fixarmos a

premissa sem a qual as conclusões ficariam incompletas ou prejudicadas: toda e qualquer manifestação

lingüística, desde as mais simples às mais complicadas, raramente encerram uma única função, aparecendo

como espécimes quimicamente puras, no dizer de COPI. Ainda que haja uma função dominante, outras a ela

se agregam no enredo comunicacional, tornando difícil a tarefa de classificá-las. Para contornar o empeço,

sugere Alf Ross (Lógica das normas. Madrid: Editorial Tecnos, 1971, p. 28) que tomemos o efeito imediato

como critério classificatório. […] Cientes de que toda comunicação efetiva exige certa combinação de

funções e recolhendo o critério do efeito imediato ou da função dominante […] passemos a formular a

classificação das linguagens, de acordo com as funções que cumprem no processo comunicacional.” Cf. O

Neopositivismo Lógico e o Círculo de Viena. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do

Direito I (Lógica Jurídica), cit., p. 16-17. 204

“A linguagem prescritiva presta-se à expedição de ordens, de comandos, de prescrições dirigidas ao

comportamento das pessoas”. Ibidem, p. 18.

“A função pragmática que convém à linguagem do direito é a prescritiva de condutas, pois seu objetivo é

justamente alterar os comportamentos nas relações intersubjetivas, orientando-os em direção aos valores que

a sociedade pretende implantar”. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos

jurídicos da incidência, cit., p. 9. 205

A linguagem descritiva é “a linguagem própria à transmissão de conhecimentos (vulgares ou científicos) e

de informações das mais diferentes índoles […]”. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. O Neopositivismo

Lógico e o Círculo de Viena. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica

Jurídica), cit., p. 17. 206

Cf. GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al

Conocimiento Científico. 3ª ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003. p. 26-28.

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3.2 Direito Positivo, Regulação de Condutas e Autonomia da Linguagem

O direito positivo, aqui entendido como conjunto de leis em sentido

amplo (normas gerais e abstratas), se manifesta por meio de linguagem com o

objetivo de interferir na realidade social, prescrevendo condutas obrigatórias,

permitidas ou proibidas. Ainda que com função prescritiva, não existe outra

forma de exteriorização de regras jurídicas além da linguagem.

Uma das formas de expressão da linguagem207

é a utilização de

símbolos. Um símbolo representa uma coisa diferente dele mesmo por um

critério arbitrário. Neste sentido, pode-se afirmar que as palavras são, sem

dúvida, espécie de símbolo. A palavra “árvore” pretende representar o objeto

“árvore”, sem com ele ter qualquer relação de semelhança física e

simplesmente por uma convenção havida muito antes de a conhecermos.

Embora a linguagem possa ser entendida como completamente

autônoma em relação à “realidade”208

ou o “dado bruto”, para utilizar os

207

O termo linguagem significa a capacidade do ser humano para comunicar-se por intermédio de signos,

conforme CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica), cit., capítulo

II. Os signos, como fenômenos representativos de coisas diferentes deles mesmos, podem ser divididos,

segundo a classificação de Charles S. Pierce, em ícones (procuram reproduzir os objetos a que se referem,

oferecendo traços de semelhança ou refletindo atributos do objeto, como as fotografias, os bustos etc.),

índices (mantêm conexão física com os objetos, por exemplo, a fumaça, que funciona como índice de fogo) e

símbolos (signos arbitrariamente construídos, produtos de convenção, já que não guardam relação visual com

o objeto que representam). 208

Fabiana Del Padre Tomé propõe essa autonomia da linguagem de forma contundente: “Temos para nós

que o sentido de um significante não se confunde com o referente, considerada a coisa em si mesma: seu

significado nada mais é que outro significante. Pensamos não existir correspondência entre as palavras e os

objetos. A linguagem não reflete as coisas tais como são (filosofia do ser) ou tais como desinteressadamente

percebe uma consciência, sem qualquer influência cultural. A significação de um vocábulo não depende da

relação com a coisa, mas do vínculo que estabelece com outras palavras. Nessa concepção, a palavra precede

os objetos, criando-os, constituindo-os para o ser cognoscente”. Op. cit., p. 3-4.

Já Tárek Moysés Moussallem prefere manter a segregação, ainda que admita a ideia de que o mundo só

integra o processo de conhecimento por meio da linguagem: “Hoje, após alguma reflexão, reputa-se a

distinção entre fatos brutos e fatos institucionais de extrema importância. Nem tudo no mundo é linguagem.

Se por um lado a linguagem instaura um [sic] realidade dentro do sujeito cognoscente, por outro ela não cria

o mundo”. Op. cit., p. VII.

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termos de VILÉM FLUSSER209

, persiste a ideia de que ela pretende representar

algo. É neste sentido que o referido autor afirma:

As palavras são apreendidas e compreendidas como símbolos, isto

é, como tendo significado. Substituem algo, apontam para algo, são

procuradores de algo. O que substituem, o que apontam, o que

procuram? A resposta ingênua seria: “em última análise, a

realidade”. A resposta mais sofisticada dos existencialistas e dos

logicistas seria provavelmente “nada”. A resposta deste trabalho

será: “já que apontam para algo, substituem algo e procuram algo

além da língua, não é possível falar-se deste algo”. Não obstante, o

fato persiste: as palavras são apreendidas e compreendidas como

símbolos, e, em conseqüência, o cosmos da língua é símbolo e tem

significado. Símbolos são resultados de acordo entre vários

contratantes. [...] Qual foi o acordo ou os acordos que antecederam

e resultaram no sistema de símbolos que é a língua? Esta pergunta

ainda é mais ingênua que a opinião dos setecentistas quanto ao

contrato social como base da sociedade humana. As origens da

língua e de seu caráter simbólico perdem-se nas brumas de um

passado impenetrável210

.

Essa independência da linguagem em relação ao que ela pretende

representar explica os ruídos da comunicação por meio de símbolos

(palavras), forma da qual se utiliza o direito positivo para regular condutas.

Não é à toa, portanto, que o professor ESTEVÃO HORVATH dedica em

seu livro O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário, todo um

capítulo para elucidar o termo “efeito de confisco”, trazendo inúmeros autores

que corroboram o entendimento de que, no direito, estamos rodeados de

conceitos jurídicos indeterminados (ou conceitos jurídicos cujos termos são

indeterminados, para utilizar a referência de EROS GRAU)211

.

209

“A posição ontológica que este trabalho se propõe a investigar é a de que a realidade dos dados brutos é

apreendida e compreendida por nós em forma de língua”. Língua e Realidade. 2ª ed., 1ª reimpressão. São

Paulo: Annablumes, 2004. p. 81-82. 210

Ibidem, p. 41-42. 211

“De todo modo, “efeito de confisco”, assim como dezenas de outras expressões que se nos deparam pela

frente ao lidarmos com o Direito, enquadra-se naquilo que se convencionou denominar “conceito vago”,

“conceito indeterminado” ou assemelhados. “Indeterminado” pode significar: impreciso, fluido, elástico,

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Quando eu ordeno ao indivíduo que ele pague Imposto de Renda sobre

o produto do trabalho ou do capital eu comunico com clareza a conduta

regulada? Possivelmente não, porque todas as palavras, por possuírem

vínculos arbitrários com os objetos ou situações que pretendem representar,

são potencialmente vagas e ambíguas.

TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM analiticamente esmiúça ainda mais essa

questão, demonstrando que, diferentemente dos objetos naturais (sol, lua,

árvore etc.), que existem independentemente da linguagem, há aqueles que só

existem nela (dependem dela): “o romance, a pintura, o direito”212

. Nessa

segunda categoria se enquadram a maioria dos “objetos” do direito. Isso

maximiza ainda mais a dificuldade de estabelecer a relação entre as palavras

que compõem o direito positivo (suporte físico) e seus significados. Não

existe “renda” na natureza. Não existe “capital” no mundo físico. Não é

possível criar, sem a linguagem, a noção de “trabalho”.

As linguagens podem ser distinguidas entre naturais e artificiais.

Aquelas são formadas por palavras utilizadas pelos seres humanos em sua

comunicação ordinária e cujos sentidos vieram sendo determinados,

historicamente, mediante os usos de determinado grupo social213

. É o exemplo

vago, poroso, flexível, zona de penumbra. Para Eros Grau “não há conceitos jurídicos indeterminados, mas

tão-somente conceitos jurídicos cujos termos são indeterminados” [Direito, Conceitos e Normas Jurídicas,

RT, São Paulo, 1988, p. 76]. Assim, o correto seria falar-se em termos indeterminados e não conceitos

indeterminados. Celso Antônio, porém, entende que a imprecisão e a fluidez se inserem no próprio conceito,

que, nem sempre, é determinado. As palavras, contrario sensu, designam com precisão o objeto s que se

reportam e cujos limites podem ser imprecisos. Caso houvesse imprecisão nos vocábulos, a solução seria

substituí-los por outros, eliminando a vaguidade [Discricionariedade e Controle Judicial, 2ª ed., Malheiros,

São Paulo, 1996, p. 21]. Engish, por sua vez, diz: “por conceito indeterminado, entendemos um conceito cujo

âmbito e cujo conteúdo são muito incertos” [ENGISH, Karl. Introduzione al Pensiero Giuridico, Giuffrè,

Milano, 1970, p. 170]. “Que numa noite sem luar, à meia-noite, num lugar não iluminado, ao ar livre ... reine

a escuridão é claro: dúvidas podem ser levantadas, por exemplo, à hora do crepúsculo” [Ibidem, p. 171]. Os

conceitos de “homem”, “morte”, “escuridão”, têm, enquanto conceitos jurídicos, um significado próprio que

pode divergir notavelmente dos respectivos conceitos biológicos, teológicos ou físicos” [Ibidem, p. 173]”. O

Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 34. 212

“Há fatos que existem independentemente da linguagem, v. .g. a árvore, o sol, a lua, os astros, etc. Nada

obstante, há fatos dependentes da linguagem: o romance, a pintura”. Op. cit., p. VII. 213

GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V., op. cit., p. 20.

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das palavras “árvore”, “sapato”, “computador” etc. Isso não significa que não

sejam vagas ou ambíguas: um chinelo pode ser considerado um sapato? E o

iPad, pode ser considerado um computador?

Por outro lado, a linguagem artificial, formada por palavras de cunho

técnico, isto é, pela “linguagem natural com termos técnicos”, tem a pretensão

de atribuir a determinados vocábulos definições mais precisas214

, ou seja, com

maior grau de conotação que a linguagem natural. É o caso da linguagem do

direito, que, no campo da tributação, define renda como produto do trabalho

ou do capital.

Ainda que com maior grau de conotação que aquela contida na

linguagem natural, a linguagem técnica, como a do direito, pode não ser

suficiente para comunicar a mensagem. Ao contrário, por serem compostas de

mais símbolos, sempre advindos da linguagem ordinária, as linguagens

técnicas podem conter maior grau de vagueza e ambiguidade: que significam

os termos “trabalho” e “capital” para chegar-se à definição de “renda”?

A esse respeito, são esclarecedoras as palavras de ESTEVÃO

HORVATH215

:

As relações na sociedade são instáveis e, em geral, conflituosas. O

Direito, ao pretender regulá-las, não conseguirá jamais atribuir aos

seus ditames uma certeza e uma definitividade absolutas, como se

pode dizer que ocorre com as denominadas Ciências Exatas.

Esse diagnóstico nos permite identificar a primeira inevitável causa do

que chamamos de “falibilidade” do direito positivo: a potencial insuficiência

214

Ibidem, p. 21-22. 215

Op. cit., p. 35.

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da linguagem, seu suporte físico, para comunicar, com clareza, a conduta

regulada.

A vagueza e ambiguidade inerente à linguagem, embora seja o primeiro

passo para avançarmos no diagnóstico de insuficiência do direito positivo

para regulação de condutas, não pode ser considerada como uma causa em si

mesma, ou seja, isoladamente. Isso porque, as normas individuais e concretas

das decisões judicias também só existem como camada linguagem e, neste

sentido, igualmente deveriam padecer desse mesmo problema do direito

positivo.

Por que, então, não vemos usualmente as pessoas se debaterem tanto

sobre os significados das palavras quando analisam decisões judiciais? Porque

os problemas de vagueza e ambiguidade do direito positivo são

potencializados pelos enunciados prescritivos com qualidade de abstração e

generalidade, ou seja, pelo fato de ser produzido num presente com vistas a

regular situações futuras. Isso quer dizer que essa primeira causa (vagueza e

ambiguidade da linguagem) só se justifica diante dos dois outros pontos que

desenvolveremos adiante e que decorrem, basicamente, da característica de

abstração dos enunciados do direito positivo.

3.3 Limitações à Atividade Legislativa na Regulação de Condutas

Futuras

Sabemos ser ontologicamente impossível prever, no exercício presente

da atividade legislativa, hipotéticas situações futuras que devem ser reguladas.

Neste sentido, a característica de “abstração” é, ao mesmo tempo, pressuposto

de existência e de falibilidade dos enunciados prescritivos do direito positivo

(leis em sentido amplo).

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A atividade legislativa, ou seja, a produção de enunciados prescritivos

que preveem situações hipotéticas destinadas a sujeitos indeterminados,

decorre de um processo de generalização216

das situações que se quer ver

reguladas.

O esforço de generalização é sempre imperfeito e o exemplo de

GUSTAV RADBRUCH, que ficou famoso pela obra de LUIS RECASENS SICHES é

perfeito para ilustrar essa afirmação217

:

Sem considerar nem remotamente as consequências que me

parecem pertinentes, Radbruch – tomando, creio eu, de Petrasyski –

relata um caso que, ainda que muito simples, pode servir para

exemplificar com grande alívio a ideia que propugno, e que acabo

de esboçar. Na plataforma de uma estação ferroviária havia um

letreiro que transcrevia um artigo do Regulamento de

Ferrovias da Polônia, cujo texto rezava: “É proibido andar na

plataforma com cães”. Um dia apareceu um homem que

pretendia andar na plataforma acompanhado de um urso. O

funcionário que vigiava a porta o impediu de entrar. O homem

protestou dizendo que o letreiro somente proibia andar com

cães na plataforma, mas não com outra classe de animais. Deste

216

O professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, embora em contexto completamente distinto do aqui analisado,

traz reflexões interessantíssimas sobre o processo de generalização ligado à ideia de código comunicacional

na relação entre direito e poder: “Para entender as funções do código, vamos começar analisando a noção

básica de generalização de símbolos, à qual todo código comunicacional está ligado (Luhman). Por

generalização entenda-se o processo de tornar comuns certas orientações significativas para diferentes

parceiros em diferentes situações, de tal modo que a todos se permita um sentido idêntico e a dedução de, ao

menos, consequências semelhantes. Por meio da generalização, obtém-se uma relativa liberdade situacional

que reduz a necessidade de se discutir, de caso para caso, a orientação comum. [...] Ao mesmo tempo,

porem, a generalização cria o risco de que as possibilidades oferecidas pela situação concreta não sejam

aproveitadas: o preço da generalidade é a inflexibilidade relativa dos códigos. Isso vale especialmente para as

generalizações normativas, que manifestam expectativa contrafáticas. Estudos de Filosofia do Direito:

reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 50-51. 217

SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porruá, 2008. p. 645. Tradução livre do

seguinte trecho: “Aunque sin sacar de él ni remotamente las consecuencias que me parecen pertinentes,

Radbruch - tomándolo, creo que, de Petrasyski - relata un caso, el cual, aunque muy sencillo, puede servir

para ejemplificar con gran relieve la idea que propugno, y que acabo de bosquejar. En el andén de una

estación ferroviaria de Polonia había un letrero que transcribía un artículo del reglamento de ferrocarriles,

cuyo texto rezaba: “Se prohíbe el paso al andén con perros.” Sucedió una vez que alguien iba a penetrar en el

andén acompañado de un oso. El empleado que vigilaba la puerta le impidió el acceso. Protestó la persona

que iba acompañada del oso, diciendo que aquel artículo del reglamento prohibía solamente pasar al andén

con perros, pero no con otra clase de animales; y de ese modo surgió un conflicto jurídico, que se centró en

torno de la interpretación de aquel artículo del reglamento. No cabe la menor duda de que, si aplicamos

estrictamente los instrumentos de la lógica tradicional, tendremos que reconocer que la persona que iba

acompañada del oso tenía indiscutible derecho a entrar ella junto con el oso al andén. No hay modo de incluir

a los osos dentro del concepto de “perros”.”

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modo, surgiu um conflito em torno da interpretação do artigo do

Regulamento.

Não há a menor dúvida de que se aplicarmos estritamente os

instrumentos da lógica tradicional, teremos que reconhecer que a

pessoa que vai acompanhado de um urso tem o direito indiscutível

de andar na plataforma. Não há uma forma de incluir os ursos

dentro do conceito de “cães”.

(destaques não são do original)

A situação retratada pelo exemplo pode ser analisada ou explorada sob

dois prismas distintos: o primeiro – e que é o pretendido por SICHES – está

voltado ao instigante tema dos limites e das funções da interpretação. O outro,

que propomos aqui, relaciona-se com a incompletude inerente ao direito

positivo: é tão-somente assumir posição de humildade perante a falibilidade

das normas gerais e abstratas e reconhecer, assim, o inevitável papel da

decisão judicial na formação da legalidade.

Por que os ursos – ou outros animais – não estavam contemplados na

regra: “É proibido andar na plataforma com cães”? Da perspectiva proposta

neste trabalho, a explicação nos parecer ser: porque o legislador não previu

que um homem acompanhado de um urso pudesse chegar à estação

ferroviária e querer andar pela plataforma.

A obra de FREDERICK SCHAUER (Las Reglas en Juego)218

explora esse

esforço de generalização característico da produção de regras gerais e

abstratas e, por isso, contribui para demonstrar, teoricamente, os limites da

atividade legislativa em relação às condutas futuras.

Para explicar o processo de generalização (que define como a transição

do particular para o geral)219

, o autor utiliza o exemplo de um pequeno

218

Op. cit. 219

“Las reglas […] se dirigen […] a tipos y no a casos particulares. […] Generalizar es involucrarse en un

proceso que es parte de la vida misma. […] Algunas de las categorías con las cuales (o dentro de las cuales)

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cachorro (um terrier escocês preto chamado Angus) que, acompanhado de

seu dono, adentra um restaurante e começa a pular no colo das pessoas, subir

nas mesas, lamber a comida etc. Essa situação causa um imenso

constrangimento ao dono do restaurante, o que o induz a produzir uma regra

geral destinada a evitar esse tipo de situações no futuro220

.

O primeiro passo dessa generalização é identificar quais os dados de

fato relevantes221

: (i) ser animal mamífero? (ii) ser da cor preta? (iii) ser

pequeno? A eleição desses critérios deve levar em consideração, por óbvio, as

razões pelas quais o proprietário resolveu elaborar essa regra: (i) em razão

cheiro do cachorro? (ii) em razão da cor do cachorro? (iii) pelo incômodo

causado aos clientes ao pular em seus colos?

Ao eleger as propriedades, o dono do restaurante elabora a seguinte

regra: “é proibido entrar com animais no restaurante”. As razões que o

agrupamos nuestras percepciones particulares son clases naturales, como los leopardos y la plata. Otras son

artificiales, como los autos […]. Y a veces nuestras categorías son más institucionales que físicas, como los

contratos y los partidos políticos. […] Más específicamente, quiero centrar mi atención en la simultaneidad

de las categorías, es decir, en el modo en el que un individuo es miembro simultáneamente de numerosas

categorías que se intersectan. Las categorías que empleamos no son ni mutuamente excluyentes ni

rígidamente distintas, sino que, por el contrario, se superponen y se anidan una dentro de otra, tal que un

objeto o evento particular comúnmente es miembro de muchas de ellas. […] Al pensar y hablar elegimos

tomar distancia de lo particular, y hacemos una nueva elección al escoger la categoría dentro de la cual ubicar

a ese caso particular. Me referiré a la elección de transitar de lo particular a lo general como generalizar, y al

producto de ese proceso como una generalización. Ibidem, p. 77. 220

“Ir desde un echo particular a una prescripción general requiere, por lo tanto, tomar decisiones del mismo

tipo que las que se toman cuando se efectúa una generalización descriptiva. Establecer reglas en respuesta a

un hecho particular, y, casi siempre, establecer reglas de cualquier tipo, supone el uso de generalizaciones

elegidas de entre numerosos candidatos lógicamente equivalentes. Supóngase que entro en un restaurante con

Angus, quien entonces comienza a ladrar, a corretear, a saltar sobre los clientes y a comer restos de comida

del piso. El propietario del restaurante, a fin de evitar que se repitan estos hechos, propone excluir no sólo a

Angus ahora, sino a todos los hechos futuros del mismo tipo. Por consiguiente, el propietario debe generalizar

a partir del hecho particular”. Ibidem, p. 83. 221

“Angus es negro, de modo que el propietario podría establecer una regla que excluyera del restaurante a

todo lo que fuese negro, excluyendo […] los gatos negros, a los zapatos negros, a las corbatas negras, a los

vestidos negros y al cabello negro. Una generalización semejante a partir del hecho desencadenante sería

lógicamente impecable, puesto que dicho hecho puede describirse correctamente como un problema causado

por un agente negro, ya la exclusión de los agentes negros aseguraría que ningún hecho exactamente igual

volviese a ocurrir jamás. Sin embargo, esta generalización lógicamente legítima es absurda, y esto se debe a

que el color negro de Angus es causalmente irrelevante respecto de la ocurrencia de los hechos que

inspiraron inicialmente la decisión de excluirlo. […] Nuestro conocimiento empírico justifica la conclusión

de que estos actos, incluso cuando los comete Angus, no son consecuencia causal de su color”. Ibidem, p. 83-

84.

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levaram a produzir essa regra (eleger esse critério – “animais”, sem

especificar cor, raça, espécie etc.) são chamadas por SCHAUER de

“justificações”222

. O autor afirma que por detrás de toda generalização há uma

justificação, ou seja, um propósito que é subjacente à regra223

.

O fato é que, independentemente de serem produzidas sob

determinadas razões, as regras como produto do processo de generalização se

descolam do seu contexto de produção, e é exatamente isso que dificulta sua

aplicação em casos futuros.

Supondo que a justificação para a produção da regra “É proibido entrar

com animais” fosse evitar o incômodo aos clientes, que dizer das situações

concretas futuras em que uma mulher chega acompanhada de um cão-guia ou

um homem bêbado e fumando um charuto pretendam almoçar no restaurante?

É diante desse tipo de situações que SCHAUER qualifica as regras gerais

e abstratas como sobreincludentes ou subincludentes224

. Uma regra

sobreincludente é aquela que inclui situações fora de sua justificação (como

no exemplo da mulher que chega acompanhado do cão-guia). Uma regra

subincludente é aquela que exclui situações dentro de sua justificação (como

o exemplo do homem bêbado e fumando charuto).

Esse tipo de diagnóstico proposto por SCHAUER é um dos temas que

mais intrigaram – e que continua a intrigar – grande parte da teoria do direito:

222

“De aquí en adelante me referiré a la categoría más general como la justificación, esto es, el mal que se

pretende erradicar o la meta que se pretende lograr. De este modo, el deseo de eliminar posibles molestias a

los clientes del restaurante constituye la justificación que lleva al propietario a generalizar a partir del hecho

particular. […] La justificación determina así cual de entre las muchas generalizaciones lógicamente

equivalentes de algún hecho desencadenante en particular será elegida como el predicado fáctico de la regla

resultante. […] El predicado fáctico de la regla propuesta que prohíbe el ingreso de perros es, en

consecuencia, una generalización a partir del hecho desencadenante particular que causó el problema en esta

ocasión hacia la propiedad (o propiedades) del individuo que parece ser, en tanto tipo, causalmente relevante

para la incidencia del problema, en tanto tipo”. Ibidem, p. 84-85. 223

Ibidem, p. 113. 224

Ibidem, p. 89-92.

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no conflito entre regras e justificações, qual deve prevalecer? Os positivistas

afirmariam que a mulher estaria proibida de entrar e o homem não. Os não-

positivistas, buscando a “plena realização do direito” – justiça e valorização

do concreto – fundamentariam decisão oposta com base em um princípio

adequado.

Esse debate é infinito e, a partir do que se tem até agora, insolúvel. É

por isso que preferimos dele desviar sutilmente neste trabalho, avançando

para a valorização da norma individual e concreta da decisão judicial, já que,

em última instância, é o Poder Judiciário que dirá se pessoas acompanhadas

de cães-guia podem ou não adentrar restaurantes que impedem a entrada de

animais.

3.4 Problemas do Direito Positivo Identificados a Partir de sua

Aplicação: lacunas de reconhecimento, lacunas normativas e lacunas

axiológicas

O tema das “lacunas”, tratado neste item sob a específica perspectiva e

definição de ALCHOURRÓN e BULYGIN na obra “Introducción a la

Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales”225

, é, na verdade, um

desdobramento dos dois fenômenos que descrevemos genericamente nos itens

anteriores: (i) expressão do direito positivo em linguagem e (ii)

impossibilidade de o legislador regular, no presente, casos futuros.

Conforme exporemos mais detalhadamente adiante, as lacunas de

reconhecimento estão mais relacionadas ao item (i); as lacunas axiológicas,

ao item (ii). As lacunas normativas, na perspectiva dos referidos autores, não

estão necessariamente ligadas à (i) ou (ii), mas nos parecem estar mais

relacionadas à percepção exposta por RENÉ DAVID no trecho citado na 225

Op. cit.

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introdução deste Capítulo, ou seja, a uma dificuldade imaginada do ponto de

vista do sujeito (legislador) e não do objeto (direito positivo)226

.

3.4.1 Lacunas de Reconhecimento e o Retorno dos Problemas da Linguagem

no Ato de Aplicação do Direito Positivo

ALCHOURRÓN e BULYGIN, tratando do fenômeno que descrevemos no

item 3.2 – problemas que decorrem do próprio suporte físico do direito

positivo (linguagem) – relativamente aos casos concretos, nomeiam tais

problemas semânticos de lacunas de reconhecimento227

.

O paradigma teórico do giro linguístico analisa os ruídos da linguagem

de uma perspectiva mais estática – todas as palavras são potencialmente vagas

e ambíguas e assim o é, também, de forma imprescindivelmente conclusiva, o

direito positivo. ALCHOURRÓN e BULYGIN avançam a partir desse preciso

diagnóstico da filosofia da linguagem para identificar problemas de aplicação

do direito228

-229

, denominando a dificuldade de subsunção da norma geral e

226

“A censura dirigida às novas leis, nos diversos países, de procederem de uma má técnica legislativa,

advém em grande parte do fato do legislador, nas novas matérias em que intervém, não saber fixar

exatamente a regra de direito ao nível em que desejamos vê-la. Com frequência, ele entrega-se a uma

casuística exagerada, frequentemente agravada pela regulamentação administrativa; outras vezes, pelo

contrário, ele exprime-se em fórmulas muito gerais, e, então, não se saberá como deve ser a lei compreendida

no momento em que ela terá de ser “interpretada”. As críticas dirigidas à má técnica legislativa têm

certamente um fundamento. Convém, contudo, considerar que a tarefa de legislar é tecnicamente muito

difícil e que foram necessários séculos de esforços doutrinais para chegar às fórmulas dos códigos que hoje,

sem dúvida, nos parecem muito simples.”. Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 82. 227

Op. cit., p. 63. Nesta obra, os autores têm como propósito imediato identificar o conceito de sistema

normativo / jurídico para, a partir dele, analisar três propriedades formais de tais sistemas: completude,

coerência e independência (Ibidem, p. 29). Tanto a construção da definição de sistema normativo como a

análise de suas propriedades formais reflete a expressa tentativa dos autores de utilizar, na Ciência do Direito,

os avanços metodológicos de outras ciências (Ibidem, p. 21), especialmente da lógica deôntica (Ibidem, p.

22). Neste sentido, Alchourrón e Bulygin definem sistema normativo como um conjunto de enunciados

(situações de fato previstas normativamente) acompanhados de consequências normativas (Ibidem, p. 23).

Este delimitadíssimo conceito de sistema normativo resulta da premissa assentada pelos autores de que os

juristas nunca analisam os problemas de completude, coerência e contradição em relação a toda ordem

jurídica. Assim, segundo eles, de nada serve o conceito amplo de ordem jurídica (sistema normativo), como o

conjunto de todas as normas válidas derivadas de uma fonte comum (Austin), da norma fundamental

(Kelsen) ou da regra de reconhecimento (Hart), para analisar propriedades formais dos sistemas de normas

(Ibidem, p. 23). 228

Segundo Alchourrón e Bulygin, podem existir até quatro tipos de “lacuna” no sistema jurídico:

normativas (ausência de solução – se é obrigatório, permitido ou proibido – para determinado caso concreto),

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abstrata ao caso concreto em decorrência dos problemas de vagueza e

ambiguidade230

, de lacunas de reconhecimento231

.

Os autores utilizam durante, em toda sua obra, um exemplo

extremamente didático, que ilustra essa abordagem denotativa da falibilidade

das normas gerais e abstratas.

A partir de uma situação fática relativamente comum – direito de

reivindicação de bens imóveis contra terceiros possuidores – ALCHOURRÓN e

BULYGIN partem na busca das regras vigentes que disciplinam essa questão

para, ato contínuo, “sistematizarem” os critérios e soluções normativas

presentes no direito positivo argentino, o que permite, por fim, visualizar

lacunas como as de reconhecimento232

.

Uma das soluções previstas normativamente era de que seria

obrigatória a restituição do imóvel, pelo terceiro, ao legítimo proprietário, no

de conhecimento (dificuldades quanto à prova do fato, o que impede a subsunção da norma ao caso

concreto), de reconhecimento, explicada neste Capítulo, e axiológicas (identificação de uma solução

inapropriada ao caso concreto em razão da falta da previsão legal de um critério eleito como relevante).

Ibidem, p. 23, 41, 61 e 157-161. 229

A preocupação com lacunas de reconhecimento desloca a análise da linguagem do aspecto semântico para

o aspecto pragmático. É a função pragmática da linguagem que lida com os problemas de aplicação da norma

geral e abstrata. As análises semântica e sintática da linguagem restringem-se, em geral, aos planos da norma

geral e abstrata. 230

Estevão Horvath também aborda essas duas perspectivas – estática e dinâmica – ao tratar da ideia de

confisco: “As relações na sociedade são instáveis e, em geral, conflituosas. O Direito, ao pretender regulá-las,

não conseguirá jamais atribuir aos seus ditames uma certeza e uma definitividade absolutas, como se pode

dizer que ocorre com as denominadas Ciências Exatas. Haverá sempre como dizer-se que quando uma

situação retrata claramente um confisco, bem como não será difícil aferir quando não se trata de

confisco. O problema está, como é evidente, na chamada “zona cinzenta” ou “zona de penumbra”. (destaques

não são do original). Op. cit., p. 35. 231

“Las dificultades de la clasificación o subsunción de un caso individual pueden originarse de fuentes

distintas. [...] La dificultad de saber si Ticio enajenó la casa a título oneroso o gratuito puede tener origen en

otra fuente: la indeterminación semántica o vaguedad de los conceptos generales. [...] Llamaremos lagunas

de reconocimiento a los casos individuales en los cuales, por falta de determinación semántica de los

conceptos que caracterizan a un caso genérico, no se sabe si el caso individual pertenece o no al caso

genérico en cuestión. Mientras que el problema de las algunas normativas es de índole conceptual (lógico),

tanto das lagunas de conocimiento como las de reconocimiento aparecen en el nivel de la aplicación de las

normas a los casos individuales y tienen su origen en problemas empíricos o empírico-conceptuales

(semánticos)”. ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Op. cit., p. 63. 232

Para visualizar esse percurso consultar o capítulo 1, páginas 32-49.

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caso de a transferência ter sido feita, pelo possuidor, a título gratuito233

. Neste

exemplo a potencial vagueza e ambiguidade do termo “gratuito” se

maximizam considerando o caso concreto234

. Que seria uma transferência a

título gratuito para efeitos de obrigatoriedade da restituição do imóvel:

ausência de pagamento? Transação por valor abaixo do valor negociado no

mercado?

Note-se que lacunas de reconhecimento, diferentemente do que pode

parecer se considerarmos a perspectiva estática da filosofia da linguagem, não

são resolvidas por meio da produção de outras normas gerais e abstratas,

ainda que com maior grau de conotação ou denotação de sua linguagem.

Novas normas gerais e abstratas também verão frustrada sua tentativa

de esclarecer a priori os significados dos termos legais, já que lacunas de

reconhecimento só aparecem no processo de aplicação, ou seja, diante de um

caso concreto.

Se a característica essencial da regra jurídica do direito positivo é ser

abstrata (regular situações futuras), esse tipo de norma jamais eliminará

lacunas de reconhecimento (problemas que surgem a posteriori em relação à

lei posta), pois isso seria um contrassenso. Se a norma geral e abstrata fosse

capaz de resolver lacunas de reconhecimento, as lacunas de reconhecimento

simplesmente deixariam de existir. E isso não acontece, pois a complexidade

dos fatos e da realidade é infinita e naturalmente mutável, expondo, a todo

tempo, as limitações da linguagem produzida pelo legislador para lidar com

isso.

233

Ibidem, p. 41. 234

Ibidem, p. 64.

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3.4.2 Dificuldades da Atividade Legislativa, uma Nova Concepção de Sistema

Jurídico e a Identificação de Lacunas Normativas

A noção ordinária de lacuna normativa remete à “falta de algo” e, neste

sentido, pode-se afirmar tratar-se de um conceito relacional: só se identifica a

ausência como produto da comparação.

Na obra de ALCHOURRÓN e BULYGIN, define-se lacuna normativa como

a ausência de solução jurídica para um determinado caso concreto235

.

Utilizando-se do mesmo exemplo da reivindicação do bem adquirido por

terceiro, identificam os autores que, para determinado conjunto de variáveis

fáticas, é possível que o sistema jurídico não tenha oferecido uma solução

normativa, ou seja, se seria obrigatória ou não a restituição do bem

reivindicado236

.

ALCHOURRÓN e BULYGIN não adotam o conceito tradicional de sistema

jurídico (conjunto de normas válidas derivadas do axioma definido por cada

autor – norma fundamental para Kelsen; regra de reconhecimento para Hart,

por exemplo), por considerá-lo pouco útil no estudo das lacunas. De fato, é

impossível identificar uma lacuna normativa em potencial, isto é, sem

delimitar os enunciados prescritivos analisados em relação a um caso

concreto237

.

Como adiantamos, o problema concreto trabalhado pelos autores é: se

uma pessoa possui um imóvel, cuja propriedade não lhe pertence, e o

235

Ibidem, p. 41. 236

Ibidem, p. 41 e 46 237

Afirmam os autores: “la noción de sistema u orden jurídico como conjunto de todas las normas válidas,

cuya validez puede derivarse de alguna fuente común, con el soberano (Austin), la norma básica (Kelsen) o

la regla de reconocimiento (Hart), es de relativamente poca utilidad para la ciencia jurídica. Los juristas

nunca analizan los problemas de completitud (lagunas) o coherencia (contradicciones) en relación a todo el

orden jurídico. Se preguntan a menudo si tal o cual ley o código, o algún conjunto definido de normas, es

completo em relación a algún problema específico, [...]”. Ibidem, p. 23.

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transfere a um terceiro, em que circunstâncias, segundo o direito positivo, o

legítimo proprietário pode reivindicar o imóvel do terceiro? O Código Civil

argentino regula essa situação, segundo os autores, nos artigos 2777 e 2778238

:

Passemos agora à reconstrução do sistema do Código Civil. Este

contém somente dois artigos referente ao problema que nos ocupa:

Art. 2777: “Compete também [a reivindicação] contra o atual

possuidor de boa fé que por título oneroso houver adquirido de um

alienante de má fé...”

Art. 2778: “Seja a coisa móvel ou imóvel, a reivindicação

compete...contra o atual possuidor, ainda que de boa fé, se a tiver

adquirido a título gratuito...”

Diante dessa regulação normativa delimitada em face do problema

concreto, é possível construir o seguinte sistema normativo, considerando que

as variáveis relevantes são (i) boa fé do adquirente (BFA); (ii) boa fé do

alienante (BFE) e (iii) título oneroso (TO):

Caso Ausência ou Presença da Propriedade Relevante

1 BFA BFE TO

2 -BFA BFE TO

3 BFA -BFE TO

4 -BFA -BFE TO

5 BFA BFE -TO

6 -BFA BFE -TO

7 BFA -BFE -TO

8 -BFA -BFE -TO

As possíveis soluções normativas para esses casos só podem ser (i) é

obrigatório restituir a coisa (OR); ou (ii) é permitido (facultado) restituir a

coisa (FR). A contemplação dessas oito possibilidades (casos) com as

238

Ibidem, p. 45.

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soluções normativas propostas pelos artigos 2777 e 2778 revela o seguinte

quadro:

Caso Ausência ou Presença da Propriedade Relevante Solução Normativa

1 BFA BFE TO

2 -BFA BFE TO

3 BFA -BFE TO OR

4 -BFA -BFE TO

5 BFA BFE -TO OR

6 -BFA BFE -TO OR

7 BFA -BFE -TO OR

8 -BFA -BFE -TO OR

Analisando os artigos 2777 e 2778 do Código Civil argentino diante de

oito possibilidades de casos concretos, os autores identificaram três lacunas

normativas, já que só há previsão legal para os casos de título gratuito (-TO) e

má fé do alienante (-BFE), sendo que em ambos os casos é sempre obrigatória

a restituição da coisa, pelo terceiro, ao legítimo proprietário239

.

O sistema jurídico construído nessa perspectiva demonstra que não há

solução normativa (ou seja, há lacuna normativa) para os casos 1 (em que há

boa fé do adquirente, boa fé do alienante e título oneroso), 2 (em que há má-fé

do adquirente, boa fé do alienante e título oneroso) e 4 (em que há má fé do

adquirente, má fé do alienante e título oneroso).

Supondo que exista um caso concreto como aquele retratado pela

situação 1 (boa fé do adquirente, boa fé do alienante e título oneroso),

teríamos tão somente uma “permissão fraca”, construída com base no

princípio da legalidade (aquilo que não é obrigatório nem proibido é

239

Ibidem, p. 46.

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permitido) e não existe dúvidas de que será o Poder Judiciário o órgão

competente para preencher essa lacuna.

Em princípio, esse tipo de lacuna normativa decorre mais da má técnica

legislativa que do problema de imprevisibilidade. Contudo, não nos podemos

deixar levar pela ingenuidade proposital desse didático exemplo de

ALCHOURRÓN e BULYGIN. Considerando a complexidade da regulação da vida

social, as lacunas normativas podem, neste sentido, também serem encaradas

como resultado da impossibilidade ontológica de previsão das espécies de

situações futuras a serem reguladas pela legislação elaborada no presente.

3.4.2 Imprevisibilidade na Atividade Legislativa e Lacunas Axiológicas

Segundo a teoria construída por SCHAUER, exposta no item 3.3, regras

sobreincludentes seriam aquelas que incluem situações as quais, embora se

enquadrem na literalidade da regra, não se adequam à justificação dessa regra.

Por outro lado, as regras subincludentes deixam de incluir em seu enunciado

situações que se adequariam à sua justificação. Em ambos os casos, portanto,

as regras podem incluem situações além ou aquém daquelas que deveria

incluir (considerando as razões que levaram à produção da regra – situação

que se queria regular).

No mesmo sentido vem o conceito de lacuna axiológica trabalhado por

ALCHOURRÓN e BULYGIN. Essa denominação, que nos remete à utilização de

princípios e valores no processo de positivação do direito, decorre de certo

juízo subjetivo feito pelo intérprete.

A definição de lacunas axiológicas, na teoria de ALCHOURRÓN e

BULYGIN, supõe a existência de uma propriedade relevante verificada em

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determinado caso concreto e que não foi expressamente prevista pelo sistema

jurídico240

.

Para dar um exemplo desse tipo de lacuna, tomemos a prescrição do

artigo 17 da Lei nº 9.430, de 1996241

- que permite a dedutibilidade de perdas

em operações de hedge realizadas fora do País, mas desde que realizadas

diretamente em bolsas no exterior – diante da situação de uma empresa

brasileira (multinacional) que, realizando operações de hedge na Bolsa de

Valores de Chicago (“CBOT”), necessita criar uma espécie de “Central de

Compensação” antes de chegar efetivamente à bolsa.

A empresa brasileira, por integrar um grande grupo econômico

multinacional e negociar commodities, necessita fazer operações de hedge ao

redor das bolsas de todo o mundo. Uma das bolsas mais acessadas para esse

tipo de operação é a CBOT. Contudo, a CBOT, preocupada com a

transparência das operações e a confiança dos agentes, proibiu a realização de

operações denominadas wash sales242

. Wash Sales são transações realizadas

no mercado de capitais que não envolvem a mudança de titularidade e, por

isso, aparentam falsamente a existência de um negócio jurídico-econômico. A

título ilustrativo considere-se a seguinte situação:

240

Ibidem, p. 152-158. 241

“Art. 17. Serão computados na determinação do lucro real os resultados líquidos, positivos ou negativos,

obtidos em operações de cobertura (hedge) realizadas em mercados de liquidação futura, diretamente pela

empresa brasileira, em bolsas no exterior.” 242

“Rule 534: No person shall place for the same beneficial owner buy and sell orders for the same product

and expiration month, and, for a put or call option, the same strike price, at or about the same time with the

intent to avoid a bona fide market position exposed to market risk (transactions commonly known or referred

to as wash sales). Buy and sell orders placed for the same beneficial owner in the same product and

expiration month, and, for a put or call option, the same strike price, must be entered in good faith for the

purpose of executing bona fide transactions that result in a change of ownership. Additionally, no person

shall accept the execution of orders which are prohibited by this rule with knowledge of their character. […]”

“Rule 539: No person shall prearrange or pre-negotiate any purchase or sale or noncompetitively execute any

transaction, [with certain very limited exceptions]”.

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A empresa “A”, integrante do grupo “XPTO”, realiza um contrato “Z”,

de compra e venda, com a empresa “B”. “A” está obrigada à entrega do milho

e “B” está obrigada ao pagamento.Algum tempo depois, a mesma empresa

“A” (ou outra empresa integrante do grupo “XPTO”) realiza um contrato “Y”,

também de compra e venda, com a empresa “B”. Pelos termos do contrato

“Y”, “A” está obrigada a pagar pelo milho, que deve ser entregue por

“B”.Nesta situação, a empresa “A”, por meio de dois contratos (Z e Y),

aparenta estar realizando duas operações distintas quando, na verdade, está

celebrando duas operações simultâneas e, economicamente, não está

realizando negócio nenhum.

Se tal situação hipotética, denominada de wash sale, se verificar com a

celebração de contratos futuros no mercado de capitais, entre outros efeitos,

ela cria um danoso ambiente de preços falsos decorrentes de ilusórios

volumes de contratação.

É por essa razão que a CBOT determinou que as empresas com grande

volume de negociação, antes de se dirigirem à Bolsa para fazer suas

operações de hedge, passassem uma espécie de “Central de Compensação”,

eliminando, no âmbito dessa Central, aquele tipo de operação simultânea.

Diante dessa obrigatoriedade de a empresa brasileira multinacional passar

pela Central de Compensação antes de efetivamente contratar a operação de

hedge na CBOT, ela estaria descumprindo o art. 17 da Lei nº 9.430, de 1996?

O atendimento das regras regulatórias americanas, impostas às operações

realizadas no mercado de capitais, para que se evitasse, ao final, colocação de

operações com posições contrárias, induzindo artificialmente a cotação das

commodities, desnatura a expressão “realizadas [...] diretamente pela empresa

brasileira, em bolsas no exterior”?

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Esse é um típico caso de lacuna axiológica. Caso o legislador tivesse

previsto a existência desse tipo de regulação das bolsas americanas quando

elaborou a regra, teria incluído essa propriedade relevante e, se fosse caso,

teria dado uma solução diferente ao caso concreto243

.

Esse tipo de “falha” do sistema jurídico sempre existiu e sempre vai

existir porque só o ato de aplicação é capaz de identificar e “corrigir”.

O exemplo que utilizamos tem baixa carga valorativa, mas o tema das

lacunas axiológicas traz consigo a possibilidade de entrarmos em um grande

debate sobre a discricionariedade do juiz no momento da aplicação das regras,

buscando a “justiça” do caso concreto. Esse embate entre rigidez /

flexibilidade normativa diante de possíveis inconformismos de aplicação da

regra a determinados casos concretos acompanha o modelo civil law desde

suas raízes.

Os romanos, na época do Império, criaram o método da “aequitas”:

uma forma de “flexibilização” do direito escrito para a busca da justiça244

:

Com a composição de leis escritas que governavam o Império

Romano, o direito parecia tornar-se bastante rígido. Numa tentativa

de adequar o direito aos casos concretos e dar-lhe maior

flexibilidade, foi desenvolvido o método da aequitas, cuja tradução

melhor se faz com o vocábulo “equidade”.

[...]

Já ponderava Ruggiero que não é raro suceder que o caso concreto

apresente circunstâncias diversas das previstas ou que não foram

previstas, de onde se segue que, se o juiz aplicasse rigidamente a

fórmula, do preceito da aplicação resultaria uma injustiça e o

resultado repugnava ao sentimento jurídico, pela desigualdade que

originava. Intervém, então, o critério da aequitas, que força o juiz a

levar em consideração as diversas circunstâncias e a adaptar-se a

elas na aplicação do preceito, de modo que se restaura aquele

243

Adverte-se que a noção de relevância, ou seja, a atribuição do caráter relevante para determinada

propriedade é descritiva, ou seja, é feita da perspectiva do intérprete e não da prescritividade inerente ao

direito positivo, conforme advertem Alchourrón e Bulygin, op. cit., p. 152-157. 244

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 31.

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princípio supremo de igualdade no qual a própria norma se inspira.

A equidade tem, pois, em vista impedir qualquer possível

dissonância entre a norma de direito e a sua aplicação concreta,

mercê daquele poder de ampla e livre apreciação que se confere ao

juiz.

(destaques não são do original)

Como sói acontecer depois desse tipo de afirmação que sutilmente

valoriza o papel da decisão judicial, surge a ingênua ressalva de que, mesmo

assim, mantem-se o papel prioritário da lei em relação à jurisprudência245

:

É claro que o princípio da equidade, modernamente aplicado, não

desobriga o juiz de aplicar as normas do direito positivo. Afinal, no

sistema legal Romano-Germânico, ao juiz cabe a função de

interpretar e aplicar a lei, sendo esta existente; nunca a de modificá-

la ou reinventá-la. Se assim o fizesse, estaria usurpando a função

do legislativo, e nem mesmo o princípio da equidade o autorizaria a

tanto. Pelo contrário, o objetivo da equidade é exatamente valorizar

a norma legislativa, dando-lhe amplitude à realidade.

LENIO LUIZ STRECK, ao criticar ferrenhamente a ideia das “súmulas

vinculantes”, faz a seguinte afirmação246

:

Continuamos a achar que – e essa discussão vai além das súmulas

(vinculantes formalmente ou não) – é possível construir conceitos

jurídicos (enunciados jurisprudenciais) aptos a prever todas as

futuras hipóteses de aplicação. Super-normas, pois. É como se

fosse possível “colocar” no interior de um texto jurídico todas as

suas hipóteses de aplicação.

(destaques nossos)

Embora o autor não estenda expressamente essa crítica ao direito

positivo, ela lhe cabe perfeitamente. Padecem as súmulas (vinculantes ou não)

do mesmo “mal” de que padecem as normas gerais e abstratas: se descolam

245

Ibidem, p. 32. 246

À guisa de prefácio. In: RAMIRES, Maurício. Crítica à Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro.

Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 11.

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de seu contexto de produção para serem aplicadas, de acordo com as variáveis

possíveis de serem previstas no presente, a situações futuras.

Esse tipo de lacuna, ao lado das lacunas normativas e de

reconhecimento, demonstra como a atividade legislativa e a linguagem do

direito positivo o tornam falível e, portanto, potencialmente inapto para

delimitar uma norma jurídica que regule a obrigação de pagar tributos.

3.5 Falibilidade do Direito Positivo e a Problemática Hierarquização

proposta pela Ciência do Direito

Conforme expusemos no item 2.3, é tradicional a concepção, tanto da

dogmática jurídica brasileira como dos cientistas do direito comparado

(talvez, nesse último caso, em razão do nível de metaobservação – descrição

do modelo civil law a partir da observação de como os cientistas desse

modelo jurídico o descrevem247

) de ver a lei como fonte primária do direito e

a jurisprudência como fonte secundária.

Diante do que descrevemos anteriormente (itens 3.2 a 3.4), nos parece

problemática e potencialmente danosa essa concepção secular arraigada ao

nosso modelo de sistema jurídico-político (civil law). Isso porque, se a lei é

inerentemente falha, a produção legislativa é, consequentemente, uma forma

falível para regulação de condutas, criando um déficit preocupante para a

ideia de Estado de Direito.

247

Conforme se percebe pelo seguinte trecho da obra de Andréia Costa Vieira “Em geral, todo livro de

direito, de qualquer disciplina (penal, civil, constitucional, trabalhista etc.) traz um capítulo, ou parte de um

capítulo, destinado às fontes do direito. A lei é sempre a primeira a ser mencionada em todos eles. Em

seqüência, aparecem o costume, a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do direito, como fontes

secundárias que são. A seguir, obedecendo a essa seqüência, no mínimo por razões didáticas, serão expostas

algumas das particularidades de cada uma dessas fontes”. Op. cit., p. 63.

No mesmo sentido é a postura de René David: “[...] Para o fazer, ater-me-ei ao plano classicamente seguido e

examinarei sucessivamente o papel da lei, do costume, da jurisprudência, da doutrina e de certos princípios

gerais”. Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo, cit., p. 91.

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Transportando esse raciocínio ao direito tributário, essa concepção nos

parece ainda mais perigosa: se a lei, não só pela perspectiva da Ciência do

Direito, mas também pelo direito positivo (art. 5º da CF/88 e art. 3º do CTN)

– e, neste caso, ainda considerada em sentido estrito – deve ser a fonte

primária (no sentido de suficiência), como lidar com a falta de clareza no

desenho das incidências tributárias, prejudicando a liberdade de decisão do

indivíduo (pagar ou não pagar tributos)?

Tomando como base as premissas adotadas neste Capítulo,

pretendemos, neste último item, contextualizar e propor uma delimitação de

sentido mais precisa e adequada à afirmação de que a lei é (ou deveria ser) a

fonte primária para regulação de condutas, inclusive e especialmente para o

direito tributário.

3.5.1 Teoria Tradicional das Fontes do Direito e Elucidação do Termo para

Efeitos de Análise Crítica da Posição Hierárquica da Lei

A expressão “fontes de direito” é claramente utilizada de forma

ambígua no discurso da Ciência do Direito que descreve o modelo civil law,

quer pela utilização de uma noção indefinida de “direito”, quer pela

ambiguidade do termo “fonte”, que ora denota o processo de produção, ora o

produto que desse decorre248

.

TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM se debruçou brilhantemente sobre o tema

das fontes do direito em sua dissertação de mestrado249

, identificando as

diversas ambuiguidades que o uso metafórico da palavra “fontes” pode 248

Vê-se claramente essa ambiguidade quando Andréia Costa Vieira descreve as fontes do direito no sistema

romano-germânico: “Dizer das fontes de um determinado direito é dizer das suas origens, do seu nascimento,

da sua geração. Em relação a um sistema legal, é, ainda, mais especificamente, dizer onde nasceu, onde pode

ser encontrado e pesquisado, dizer que meios têm autoridade suficiente para expressá-lo primária ou

secundariamente”. Op. cit., p. 62-63. 249

A tese de mestrado do autor deu origem ao livro Fontes do Direito Tributário, primeiramente publicado

pela Max Limonad e, atualmente, pela Noeses (2ª edição, 2006, São Paulo).

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denotar250

. Seu grande feito foi segregar o processo de produção da norma

(concretizado pelo veículo introdutor dos enunciados prescritivos) de seu

produto (concretizado pelos enunciados prescritivos introduzidos pelo veículo

introdutor), nomeando aquele como “enunciação-enunciada” e esse como

“enunciado-enunciado”251

.

Os cientistas do direito comparado (que descrevem o sistema de civil

law), ao proporem a hierarquização das fontes e a primariedade da lei,

parecem se referir ao produto (e não o processo)252

. Por essa razão, essa será a

acepção de “fonte” que entendemos estar sob objeto de análise crítica neste

item (produto).

Por outro lado, resta esclarecer o termo “direito” que, para TÁREK

MOYSÉS MOUSSALLEM, significa objetivamente o sistema do direito positivo

(conjunto de normas jurídicas gerais, abstratas, individuais e concretas –

inclusive combinadas – válidas253

). Obviamente que não é esse o sentido de

direito adotado na descrição do sistema de civil law, dada a inclusão do

costume, dos princípios gerais e da doutrina como fontes, além da expressa

menção a um conceito mais amplo de “direito” 254

.

Diferentemente da perspectiva do citado autor255

, também a teoria

tradicional das fontes do direito não exige que os costumes, a doutrina ou os

250

De fato, o autor se debruça muito mais à elucidação do termo “fontes” que ao termo “direito” para

trabalhar o tema, assumindo a concepção de direito como direito positivo. Op. cit., p. 102-120. Sem a

preocupação da precisão semântica, Giorgio Del Vecchio divide o tema das fontes do direito entre a noção

intuitiva (percepção social e sensorial do que seriam fontes do direito) e a noção técnica (fontes do direito

positivo, embora nessa última concepção inclua elementos como o costume). O Estado e suas Fontes do

Direito. Trad. Henrique de Carvalho. Belo Horizonte: Líder, 2005. 251

Op. cit., capítulos VI e VII, especialmente itens 6.3, 7.3 e 7.4. 252

Ver item 2.3 para as referências sobre essa conclusão. 253

Ibidem, p. 101. 254

DAVID, René, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 88 e 91; VIEIRA, Andréia Costa,

op. cit., p. 63. 255

MOUSSALLEM, Tárek Moysés, op. cit., p. 159-161 e 164-166.

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princípios gerais sejam incluídos no sistema do direito positivo para se

tornarem fontes do direito. A conotação de “direito” na expressão “fontes do

direito” é, de fato, bem mais subjetiva na teoria tradicional das fontes,

conforme se depreende das obras de GIORGIO DEL VECCHIO256

e MIGUEL

REALE257

.

De qualquer forma, considerando que não pretendemos analisar a

inclusão ou não de outras fontes que não a lei (direito positivo) e a

jurisprudência no rol das fontes de direito, essa discussão se torna

desnecessária. Em outros termos, considerando que analisaremos, neste item,

a posição da hierárquica da lei em relação à jurisprudência, a ideia de direito

como algo maior que ou coincidente ao sistema de direito positivo é

irrelevante (ambos seriam fontes do direito, numa acepção ou noutra).

Resta esclarecer, por fim, em que acepção se utiliza o termo “primária”

para qualificar a lei na hierarquia das fontes do direito.

Conforme expusemos no item 2.3, a primariedade nos parece estar

ligada, no discurso da Ciência do Direito comparado (cientistas que

descrevem o modelo civil law) e na dogmática brasileira, à suficiência na

regulação de condutas. Em outros termos, a expressão “lei como fonte

primária do direito” para qualificar determinantemente o traço distintivo dos

países de civil law é utilizada, valorativamente, no sentido de determinante

para a ordenação social, i. é, para orientar a ação dos indivíduos e,

consequentemente, as decisões judiciais.

Feitos esses esclarecimentos, concluímos que a análise crítica que

pretendemos fazer da afirmação da lei como fonte primária do direito está

256

Op. cit., p. 8-13 e 50-53. 257

Fontes e Modelos do Direito. 1ª ed., 3ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 14.

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relacionada ao produto legislado (e não ao processo) e à ideia de suficiência

desse tipo de regra jurídica para regulação da conduta dos indivíduos.

3.5.2 Razões e Perigos da Tradicional Concepção de Lei como Fonte

Primária

Conforme explicado no item 2.3, a ideia de leis escritas (normas gerais

e abstratas) que predominam sobre a jurisprudência é um traço distintivo dos

países de civil law. Podemos rapidamente retomar essa ideia a partir das

palavras de ANDRÉIA COSTA VIEIRA258

:

Os países que compõem a família do sistema Romano-Germânico

são também conhecidos como “países de direito escrito”. Essa

denominação refere-se, particularmente, à lei escrita que é, em

todos os países, a fonte primária de direito, autoridade máxima

para expressá-lo, primeiro objeto a ser pesquisado na busca do

seu conhecimento. Não significa, entretanto, que a lei é a única

fonte de direito do sistema Romano-Germânico. Outras fontes há

que também expressam o conhecimento desse sistema legal.

Todas as outras, no entanto, têm papel secundário.

[...]

Em geral, todo livro de direito, de qualquer disciplina (penal, civil,

constitucional, trabalhista etc.) traz um capítulo, ou parte de um

capítulo, destinado às fontes do direito. A lei é sempre a primeira

a ser mencionada em todos eles. Em sequência, aparecem o

costume, a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do

direito, como fontes secundárias que são.

(destaques não são do original)

A origem dessa primariedade da lei em relação aos atos do poder

executivo (atos infralegais) e ao Poder Judiciário pode ser atribuída à ideia da

separação dos poderes, também conforme já expusemos no item 2.3. Essa

percepção não ficou adstrita à Ciência do Direito descritiva do modelo civil

law e foi acuradamente trabalhada por JOSÉ RODRIGO RODRIGUES, em artigo

258

Op. cit., p. 63.

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no qual ele pretendeu trabalhar a crítica à escola chamada pejorativamente de

formalista259

:

[...] minha preocupação é a com a separação dos poderes como

pressuposto institucional do formalismo [...].

[...]

Visões formalistas do Direito têm pressupostos institucionais

evidentes que normalmente ficam fora da discussão entre os

teóricos do Direito. [...] O Direito tem sido identificado à

subsunção não apenas em razão da miopia ou da teimosia de alguns

analistas e operadores do Direito, mas porque subsumir é a função

do Poder Judiciário no contexto da separação dos poderes em sua

visão clássica e esta forma de organizar a sociedade é a

consolidação de certa maneira de distribuir o poder entre os grupos

sociais.

[...]

Em suma, ao subsumir, evita-se que a vontade da sociedade,

expressa nas leis, seja desrespeitada. Além disso, trata-se de evitar

que o Estado sujeito os cidadãos a normas em cujo processo de

criação eles não tomaram parte, ainda que por intermédio de seus

representantes. [...]

[...] a despeito de críticas acerbas da separação de poderes, que têm

se multiplicado ao longo dos anos, ainda hoje permanecemos reféns

do conceito, das instituições e dos elementos de imaginação

institucional ligados a ele [...].

O professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, analisando a ideia do

direito como objeto de conhecimento, faz uma retrospectiva histórica sobre o

objeto da ciência jurídica e, ao final, descrevendo sobre a positivação do

direito e a ideia do direito como norma posta, assim se manifesta quanto às

fontes e sua hierarquização260

:

O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu muito para

importantes transformações na concepção de direito e de seu

conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo

tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu

entendimento, aguça também a consciência dos limites. A

possibilidade do confronto dos diversos conjuntos normativos

259

“A persistência do formalismo: uma crítica para além da separação de poderes”, op. cit., p. 161 e 165-167. 260

Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, cit., p. 72-73.

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cresce e, com isso, aumenta a disponibilidade das fontes, na

qual está a essência do aparecimento das hierarquias. Estas, no

início, ainda afirmam a relevância do costume, do direito não-

escrito sobre o escrito. Pouco a pouco, no entanto, a situação

inverte-se. Para tanto contribuiu o aparecimento do Estado

absolutista e o desenvolvimento progressivo da concentração do

poder de legislar. Nesse período, a percepção da necessidade de

regras interpretativas cresce, o que pode ser observado por sua

multiplicação com vistas na organização e articulação das diversas

fontes existentes. Essas transformações iriam culminarem duas

novas condicionantes, uma de natureza politica, outra de natureza

técnico-jurídica. Quanto às primeiras, assinale-se a noção de

soberania nacional e o princípio da separação dos poderes;

quanto às segundas, o caráter privilegiado que a lei assume como

fonte do direito e a concepção do direito como sistema de normas

postas.

(destaques não são do original)

Neste trecho, o admirado professor acima citado nos oferece uma

explicação muito coerente para a ideia de hierarquização das fontes: a

inflexibilidade e a insuficiência do direito positivo. Embora muito se escreva

para explicar as razões da lei como fonte primária, nos parece exclusiva essa

concepção didático-descritiva das razões pelas quais, possivelmente, partiu-se

para o reconhecimento de outras fontes para regulação das condutas ao longo

da evolução do sistema romano-germânico.

De qualquer forma, o que queremos propor aqui é uma análise crítica

dessa concepção que se formou em torno das fontes, ou seja, de se reconhecer

outros mecanismos para regulação de condutas, mas, mesmo assim, manter-

se, a hegemonia da lei.

Quer do ponto de vista teórico261

, quer do ponto de vista normativo262

, a

ideia de Estado de Direito263

está ligada à previsão legal de condutas que, por

261

Exemplificativamente, ver: KELSEN, Hans. O Estado como Integração: um confronto de princípios.

Trad. Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 93-104. 262

CF/88, Art. 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude

de lei”.

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sua vez, está intrinsecamente relacionada à noção de garantia de liberdades

individuais.

O professor GERALDO ATALIBA, descrevendo sobre a moderna

concepção de Estado de Direito, afirma264

:

[...] poucos são os estados contemporâneos que podem receber a

qualificação de Estado de Direito. Tal concepção corresponde ao

princípio rule of law – governo da lei e não dos homens [...].

A lei a que se refere o referido professor, e toda a teoria do direito

amparada pela ideia de separação dos poderes, é aquela vinda do Poder

Legislativo, como ele mesmo afirma265

:

Uma notável garantia que aos administrados oferece nosso sistema

constitucional está na objetividade com que se trata da questão das

fontes do Direito.

Resulta claro da leitura de nossos sucessivos Textos

Constitucionais – em benefício da segurança do cidadão e terceiros

submetidos à ordenação estatal – que só o Legislativo pode

emanar normas genéricas e abstratas contendo preceitos

inovadores vinculantes.

(destaques não são do original)

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, trabalhando predominantemente a

evolução da relação entre liberdade, direito e norma jurídica assim coloca a

relação entre a noção moderna de liberdade e lei266

:

263

Sobre a evolução da ideia de Estado e Direito e sua atual indissociabilidade (no sentido de que o Estado é

uma figura política que se concretiza através do jurídico e pelas limitações que lhe impõem as leis), ver:

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2005; DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

capítulo III (Estado e Direito). 264

República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 94. 265

Ibidem, p. XVI. 266

Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito, cit., p. 116-

123.

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Instaura-se, destarte, uma perspectiva voluntarista e decisionista,

fundamento de um subjetivismo ético: o homem como consciência

livre e a liberdade de convivência como centro articulador da vida

em sociedade. A Era Moderna anuncia, assim, o advento de uma

sociedade complexa e altamente desagregada, funcionalmente

diferenciada e exigindo um fator externo que lhe compense a perda

da homogeneidade comunitária: o Estado burocrático.

Essa nova sociedade propiciará, afinal, o que Luhmann chamará de

“dupla separação”, cujo relevo para a noção de liberdade deve ser

sublinhado. De um lado, como a idéia de bem se torna relativa à

perspectiva dos indivíduos, o subjetivismo da vontade se separa e

se contrapõe ao objetivismo da razão e da ciência: é a separação

entre consciência ética e verdade. De outro lado, a vinculabilidade

das normas da moral e da religião restringe-se à esfera das decisões

privadas da consciência, separando-se da vinculabilidade objetiva

das normas jurídicas: é a separação entre consciência moral e

direito.

[...]

A dupla separação e o consequente abismo entre liberdade e

natureza trazem, por fim, um sério problema de legitimação.

Afinal, com base em perspectivas religiosas e mitológicas de cunho

objetivo, as tradições sociais constituíam um fundamento de poder

e uma orientação da ação humana, que agora se perdem no âmbito

da liberdade subjetiva da consciência. Surge assim a questão de

como articular a necessidade de se evitar distúrbios graves na

estrutura da identidade pessoal de agentes sociais subjetivamente

livres com a necessidade de constituir e estabilizar as expectativas

desses agentes livres, mediante a constitucionalização de sistemas

normativos objetivos. [...] Dito de uma simplista: como

institucionalizar a conhecida fórmula: a liberdade de um começa

onde termina a liberdade do outro?

[...]

Essa noção de liberdade (de consciência, individual), trazida pela

Era Moderna, produzirá significativas repercussões no direito.

Essas repercussões, que remontam a Donellus, apontam para um

claro delineamento de direitos individuais em relação ao Estado.

A concepção do Estado, na Era Moderna, traz traços originais. O

desenvolvimento de relações juridicamente ordenadas para uma

sociedade do tipo contratual e para o próprio direito como liberdade

contratual e, em especial, para configurações jurídicas da idéia de

autonomia autorizada por regulamentos resulta assim do

enfraquecimento da noção de vinculação de força de um estatuto

difuso, sagrado, e do crescimento da liberdade individual. [...].

Todos esses traços têm por base a liberdade no sentido moderno.

Essa liberdade, que se manifestará, juridicamente, pela autonomia

da vontade, confere a qualquer um a possibilidade de se vincular de

acordo com seus próprios interesses, portanto, de obedecer à norma

que resulta do seu livre engajamento. [...] A mesma liberdade que

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engaja limita a liberdade. Por isso, na base do contrato moderno, a

lei que garante autonomia garante também a liberdade como não-

impedimento, ao equalizar, para todos, a mesma liberdade.

(destaques não são do original)

Pois bem. Todo esse cenário, que explica a teoria das fontes do direito e

a assunção da lei como fonte primária, toma como premissa que a lei oferece

aos indivíduos os parâmetros para regulação de suas condutas. Diante do que

exploramos nos itens 3.2 a 3.4: será?

JOHN RAWLS aprofunda essa relação entre lei, limites e Estado e

apregoa que essa fórmula só funciona, ou seja, só garante as liberdades

individuais, se os cidadãos compreenderem as normas que regulam as suas

condutas267

:

O princípio de que não há ofensa sem lei (Nullum crimen sine

lege), e as exigências nele implícitas, também deriva da idéia de

um sistema jurídico. Esse preceito exige que as leis sejam

conhecidas e expressamente promulgadas, que seu significado seja

claramente definido [...]. Essas exigências estão implícitas na noção

de regulamentação do comportamento por normas públicas. Pois

se, por exemplo, as leis não forem claros (sic) em suas injunções e

proibições, o cidadão não sabe como se comportar.

(destaques não são do original)

É exatamente esse ponto que queremos levantar aqui: considerando a

incapacidade permanente de as leis (seja em sentido estrito, ou até mesmo em

sentido amplo) transmitirem aos indivíduos a mensagem de como orientarem

a sua conduta, como fica a ideia de Estado de Direito para proteger as

liberdades individuais? É esse efeito potencialmente danoso a que nos

referimos no início deste item. Como permanecer afirmando a ideia de Estado

de Direito fundada nas leis como garantia das liberdades individuais se em

267

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. 2ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 260-261.

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incontáveis situações, especialmente em um ramo de alta complexidade como

o direito tributário, ela não é capaz de oferecer a delimitação das permissões,

obrigações e proibições?

Diante desse diagnóstico, proporemos uma nova concepção para a ideia

de primariedade da lei especialmente em relação à jurisprudência, começando

pelo próximo item 3.6 e finalizando no Capítulo 4 (valorização da decisão

judicial).

3.6 Primariedade da Lei como Fonte de Direito, Utilidade da Norma

Geral e Abstrata e Manutenção do Traço Distintivo dos Países de Civil

law

O grande problema de se entender a lei como fonte primária para

regulação de condutas está na sua incapacidade natural de transmitir

claramente a mensagem aos seus destinatários. Entretanto, não é preciso

abandonar completamente essa classificação secular, tampouco desprezar o

papel do direito positivo no nosso sistema jurídico. Para isso, propomos

diferençar “cronologia” de “hierarquia”.

Quando se colocam as fontes do direito em posição hierárquica, estando

a lei em primeiro lugar e a jurisprudência em segundo lugar, quer-se afirmar,

por um lado, a hegemonia da lei para regulação da vida em sociedade,

obedecendo-se à tradicional separação dos poderes. Neste sentido, atribui-se à

jurisprudência uma função meramente burocrática de aplicação da lei, já que é

a lei o instrumento por excelência para regulação das condutas (proibir,

permitir ou obrigar).

Contudo, não raro essa noção de hierarquia quer denotar muito mais um

sentido cronológico, embora isso não seja feito de forma expressa (aparece

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muito mais por falta de precisão do discurso que por consciência dogmática

da limitação das leis). Ao reconhecer a existência de outras fontes do direito

que não a lei, os autores estão, na verdade, admitindo que existem outros

mecanismos para regulação de conduta na falta da lei. Ora, se eu admito que

os princípios gerais do direito, o costume e a jurisprudência atuam na falta da

lei, isso quebra a hegemonia da lei como reguladora de condutas e relativiza a

noção restrita de hierarquia.

É por essa falta de precisão discursiva que podemos manter a ideia de

primariedade da lei: desde que admitamos que ela é o ponto de partida

(primeiro olhamos para a lei para desenhar uma norma de incidência

tributária, por exemplo), mas não necessariamente o local de chegada (após a

análise das leis, é possível que precisemos também olhar para a jurisprudência

para verificar como ela aclarou ou completou o sentido das normas gerais e

abstratas). Em outros termos, ao reconhecer que existem outras fontes que

colaboram para regulação de condutas não faz mais sentido manter a lei no

“topo do patamar hierárquico da ordem jurídica no sistema legal Romano-

Germânico”268

, a menos que isso represente um ponto de partida.

Essa concepção de hierarquia no sentido cronológico, ou seja, entender

a lei como ponto de partida mantém intacto o traço distintivo dos países de

civil law e deriva de construções teóricas refinadíssimas.

Quando KELSEN idealiza a famosa ideia da “moldura” legal sobre o

qual se exerce o ato de interpretação269

vê na lei um ponto de partida e, ao

268

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 63. 269

“A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre

Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do

escalão superior regula – como já se mostrou – o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior,

ou o ato de execução, quando já deste se trata; ela determina não só o processo em que a norma inferior ou o

ato de execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato de

execução a realizar. Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode

vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar

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mesmo tempo, reconhece suas limitações (sem, contudo, avançar na

problemática que isso poderia causar: falta de clareza quanto às regras que os

indivíduos devem obedecer e déficit na ideia de Estado de Direito).

Reconhece também, ainda que sem medir as consequências quanto à ideia de

hegemonia da lei e Estado de Direito, que no preenchimento dessa moldura há

um processo de criação de novas normas pelo Poder Judiciário270

.

Ora, se quem preenche o conteúdo da moldura é, em última análise, o

Poder Judiciário, só é possível admitir a primariedade da lei no sentido

cronológico (ponto de partida para delimitação da norma jurídica que obriga

ao pagamento de tributos), nunca no sentido estrito hierárquico (como se dele

tudo derivasse sem transbordar).

Essa ideia de complementaridade, que coloca a lei em primeiro lugar

tão-só no sentido cronológico (para desenho de uma moldura), pode de fato

ser deduzida do discurso sobre as fontes do direito no sistema de civil law.

Destaque-se, neste sentido, o trecho abaixo271

:

73. Previsibilidade do direito. [...]. Desejosa de reforçar a

segurança das relações jurídicas, a jurisprudência, logo que em

presença das regras formuladas com caráter muito geral, esforça-se

por deixa-las mais claras; os supremos tribunais, em particular,

exercem o seu controle sobre o modo como estas regras são

interpretadas pelos juízes de instâncias. A regra de direito não é

mais, nestas condições, que o cerne, um centro à volta do qual

gravitam regras de direito secundárias.

Em que medida as regras secundárias de direito vêm, assim,

completar a regra principal é difícil de precisar.

uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem

sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou

moldura a preencher por este ato.”. Op. cit., p. 388. 270

“Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a

interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra,

mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do

Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É

fato bem conhecido que, pela via da interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo –

especialmente pelos tribunais de última instância.” Ibidem, p. 394-395. 271

DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Comparado, cit., p. 83.

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[...]

74. Importância das regras secundárias. O direito encontra-se,

assim, nos países de família romano-germânica, não só nas regras

de direito, tal como são formuladas pelo legislador, mas também na

interpretação que os juízes fazem destas fórmulas. É permitido

perguntar-se se esta observação, precedentemente feita, não destrói

o alcance da asserção, segundo a qual a regra de direito é concebida

de uma maneira relativamente abstrata e geral. Não se regressará,

pela via indireta das “regras de direito secundárias” destacadas

pela jurisprudência, a uma concepção muito próxima daquela

que coloca a regra de direito ao nível das espécies submetidas à

jurisprudência?

A oposição entre as duas concepções [...] permanece aos nossos

olhos fundamental.

Qualquer que seja a sua importância, é certo que as regras de

direito secundárias elaboradas pela jurisprudência conservam uma

maior generalidade que a regra de direito à qual chega o juiz

quando não é guiado pelo legislador. Nós temos, por consequência,

nos países da família romano-germânica, muito “menos direito”

que nos países em que a regra de direito resulta diretamente de

formação judiciária. Os direitos da família romano-germânica

permanecem direitos fundados sobre princípios, como exige o

sistema; não são direitos casuísticos e conservam por este fato, ao

que parece, certas vantagens de simplicidade e clareza.

Não restam dúvidas que as regras de direito, tal como os

legisladores e os juristas destes países as pensam com o fim de as

formular, não se bastam a si mesmas; apelam para as regras

secundárias que acabam por as precisar e completar. Elas nem por

isso deixam de fornecer ao direito destes países, quadros sólidos,

não colocados em discussão, o que não deixa de ser vantajoso.

(os destaques são do original)

Contudo, embora essa concepção precise o sentido de fontes primárias

e secundárias no sistema de civil law, ela não elimina o problema inicial

colocado e que é, na verdade, a premissa por detrás dela: como lidar com a

ideia de Estado de Direito – sujeição de todos à lei e tão-só a ela – se a lei não

é mais hegemônica em relação à jurisprudência?

É para solucionar essa questão que proporemos, adiante, a valorização

da decisão judicial como elemento indispensável, ao lado da lei, para uma

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efetiva garantia do Estado de Direito o que, inevitavelmente, também coloca

em xeque a ideia de separação dos poderes.

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4 NECESSÁRIA VALORIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA NO

MODELO CIVIL LAW, PAPEL CENTRAL DAS DECISÕES

JUDICIAIS PARA A REGULAÇÃO DE CONDUTAS NO DIREITO

TRIBUTÁRIO E A IDEIA DE UMA REGRA-MATRIZ DE

INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA

No Capítulo anterior, expusemos as falhas inerentes ao direito positivo

e, diante disso, a problemática concepção do modelo civil law, de enxergar a

lei como fonte primária, depositando nela toda a expectativa de um Estado de

Direito fundado no princípio da legalidade e na separação de poderes.

Neste Capítulo, pretendemos demonstrar a importância da

jurisprudência como instrumento capaz de cumprir o déficit de legalidade

inerente ao direito positivo (às normas gerais e abstratas)272

, o que reforça a

incoerência da teoria que propõe a hierarquização das fontes do direito, sem

nos transformar num país de common law.

A maior quantidade de leis e atos infralegais (processo de positivação

do direito) é a ferramenta que a tradicional concepção do sistema de civil law

usa para lidar com os problemas de clareza da legislação. Entretanto, a ideia

de que a maior quantidade de regras seria a solução para precisar-se o sentido

da legislação e, com isso, trazer clareza do tipo de comportamento a ser

seguido pelos indivíduos, pode ser uma armadilha.

272

Essa discussão sobre a valorização da jurisprudência só faz sentido nos sistemas de civil law, como coloca

Teresa Arruda Alvim Wambier na Apresentação do livro por ela coordenado, Direito Jurisprudencial:

“Trata-se da influência da jurisprudência no direito. Esse título já indica que o ponto de vista do observador é

a perspectiva do civil law, já que o sistema da common law se caracteriza exatamente pelo fato de que o

direito nasce e é moldado nos tribunais. Portanto, falar-se da influência da jurisprudência na formação do

direito é algo que só se justifica da perspectiva do civil law, já que nesse sistema se entende que o direito

brota predominantemente de atos do Poder Legislativo”. Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2012. p. 5.

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A produção escalonada de normas gerais e abstratas (da Constituição às

Leis Complementar e Ordinária, dos Decretos às Instruções Normativas), sob

o pretexto de garantir maior precisão da legislação, pode denotar um

paradoxo, uma vez que a maior quantidade de normas pode, ao oposto do

pretendido, tornar o sistema jurídico mais complexo e, consequentemente,

menos compreensível.

Se o objetivo do direito é orientar a conduta das pessoas, é premissa

inescapável que suas regras sejam inteligíveis. Quanto a esse assunto, é

interessante observar o movimento internacional iniciado nos anos 90 que,

buscando tornar o sistema tributário mais simples, propôs a diminuição da

quantidade de regras tributárias mediante a criação de legislações mais

genéricas273

.

É verdade que, no imaginário da população (inclusive de juristas que

militam fora da área tributária), o sistema tributário é provavelmente uma das

coisas mais incompreensíveis, nas palavras de GRAEME COOPER, professor de

direito tributário da Universidade de Sidnei (Austrália):

Existe um apelo natural de que a tributação é um lamaçal e isso

deve decorrer do fato de que a legislação se mostra

incompreensível. De fato, no imaginário popular, a legislação

tributária é provavelmente considerada a “apoteose da

incompreensibilidade”. Pode haver muitas razões para a

incompreensibilidade famosa das leis tributárias, incluindo a

linguagem e estilo.

Considerando os destinatários finais das regras tributárias – via de regra

os contribuintes, e os objetivos dessas regras – impor o pagamento de tributos, 273

Tradução livre do trecho: “There is some innate appeal to the intuition that if tax is a quagmire, it could

well be because the statute is incomprehensible. Indeed, in the popular imagination, tax law is probably

considered the apotheosis of incomprehensibility. There may be many reasons for the famed

incomprehensibility of tax laws, including language and style”. COOPER, Graeme. Legislating Principles as

a Remedy for Tax Complexity. British Tax Review, n. 4, p. 334-360, Dec/2010, p. 334-335. Disponível em:

http://ssrn.com/abstract=1724998. Acesso em: 23 nov. 2013.

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123

seria imperioso que o sistema tributário de um país fosse compreensível: se o

contribuinte é o destinatário final da regra, o sistema tributário tem que ser

claro o suficiente para que as pessoas saibam que conduta devem seguir

(pagar ou não pagar o tributo). Assim, é inaceitável que um sistema tributário

seja complexo a ponto de o contribuinte não o entender e, assim, não saber se

ele está ou não obrigado ao pagamento de determinado tributo.

A hipótese tomada pelos países que iniciaram esse movimento era de

que as chamadas “regras-princípio” (enunciados cujo texto revelaria o

objetivo da política fiscal ao invés de traduzir o tipo de comportamento a ser

seguido) tornariam o sistema tributário mais compreensível a seus

destinatários, medida absolutamente indispensável a qualquer boa

democracia, nas palavras do já citado professor da Universidade de Sidnei274

:

Qualquer medida que tornasse a lei mais acessível para a

comunidade certamente seria imperiosa em uma democracia. Na

verdade, quem poderia ser contra uma legislação mais bem

elaborada? Se uma diferente elaboração fosse facilitar a

compreensão por parte dos cidadãos dos seus direitos e deveres,

então ela deve ser perseguida.

A forma que pode ou deve ser perseguida pelos elaboradores de

políticas públicas não vem ao caso neste trabalho. Contudo, fica claro que a

edição de mais e mais regras não seria, necessariamente, um caminho

adequado para a melhor regulação de condutas.

É claro que as normas individuais e concretas também são constituídas

por palavras, mas as palavras da norma geral e abstrata, pela qualidade desse

veículo introdutor (é preciso lhes dar um sentido mínimo a priori), têm maior

grau de vagueza e ambiguidade. As normas individuais e concretas, por 274

Tradução livre do trecho: “Any measure that would make law more accessible to the community must

surely in a democracy. Indeed, who could be against a better drafted statute? If different drafting would

facilitate better understanding by citizens of their rights and duties, then it must be pursued”. Ibidem, p. 336.

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124

estarem na ponta final do processo de positivação, tendem a ter a exata função

de precisar o sentido das normas gerais e abstratas (eliminando problemas de

significação) diante de sua situação específica (eliminando lacunas de

reconhecimento, axiológicas e normativas). É neste sentido que proporemos a

utilização da jurisprudência como forma de preenchimento das lacunas do

direito positivo, oferecendo uma nova concepção para a aparente

característica que divide os sistemas de civil law e common law, mediante a

construção de uma Regra-Matriz de Incidência Tributária que chamaremos

“Dinâmica”275

.

4.1 Jurisprudência, Diferença Específica entre Lei (Normas Gerais e

Abstratas) e Decisão Judicial (Normas Individuais Concretas) e

Mecanismos de Correção da Falibilidade do Direito Positivo

Conforme explicamos no item 3.1, as leis em sentido amplo (ou o

direito positivo no sentido restrito que utilizamos aqui) são qualificadas como

normas gerais e abstratas. Isso quer dizer que seus enunciados prescritivos são

destinados a sujeitos indeterminados e preveem situações de possível

ocorrência (hipotéticas e futuras). Também explicamos que a “abstração” é

uma das características definitórias e, ao mesmo tempo, a principal causa de

falibilidade do direito positivo.

Dessa perspectiva da norma geral e abstrata fica ainda mais intrigante e

interessante definir a norma individual e concreta (ou seja, analisar a norma

individual e concreta de uma perspectiva relacional), especialmente aquela

veiculada pela decisão judicial, que é a que nos interessa mais proximamente.

275

Esse termo foi sugerido pelo Professor Eurico de Santi durante uma conversa sobre esta tese, realizada em

26 de outubro de 2013.

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125

Genericamente falando, a norma individual e concreta é construída a

partir de enunciados prescritivos que se referem a situações específicas

(passadas) e sujeitos determinados. Mas não é só isso. Esses enunciados

prescritivos só são assim qualificados (ou seja, só formam uma norma

jurídica) porque entraram para o mundo do direito por meio da subsunção de

um dado fático a uma norma geral e abstrata.

A norma individual e concreta não revela uma situação específica

qualquer em seu antecedente: é produto de um ato de interpretação de fatos e

regras jurídicas. Sua construção, portanto, pressupõe atos de interpretação e

aplicação que são originalmente contingentes: o sujeito “A” pode interpretar

os enunciados prescritivos da legislação tributária de uma maneira “X”,

construindo a Regra-Matriz de Incidência Tributária X (“RMIT X”), que

somente será subsumível a fatos “x”. O sujeito “B” pode interpretar os

enunciados prescritivos da mesma legislação tributária de uma maneira “Y”,

construindo a Regra-Matriz de Incidência Tributária “Y” (“RMIT Y”), que

não será subsumível aos fatos “x”. Resolver essa contingência – se “B”

deveria ter pagado tributo na situação “x” ou se “A” tem direito à repetição do

indébito por ter pagado tributo na situação “x” – é competência do Poder

Judiciário. É ao Poder Judiciário que cabe a chamada “interpretação

autêntica” de KELSEN276

.

No direito tributário, a norma individual e concreta pode ser construída

tanto pelos particulares, como pelos Poderes Executivo e Judiciário.

Exemplo típico de norma individual e concreta construída pelo

particular é aquela que deriva da modalidade de lançamento por

homologação, prevista no art. 150 do CTN. Segundo essa previsão, a

legislação tributária pode atribuir ao sujeito passivo o dever de pagar o tributo 276

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 394.

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126

antecipadamente a qualquer atividade da Administração Pública. Utilizando-

se desse dispositivo legal, todas as Administrações Tributárias (Federal,

Estadual e Municipal) utilizam largamente essa modalidade de lançamento de

tributos, reservando para si tão-só a prerrogativa de verificar se o

recolhimento foi feito corretamente.

Ao instituir tributo sujeito ao lançamento por homologação,

consequentemente atribui-se ao particular a obrigatoriedade de interpretar

tantas regras tributárias quanto forem necessárias para, aplicando-as,

constituir uma norma individual e concreta. (Note-se, aqui, como pode ser

prejudicial à ideia de Estado de Direito e de garantia da legalidade tributária –

segurança jurídica – a imprecisão do direito positivo).

À Administração Pública também é atribuída a obrigatoriedade de

constituir norma individual e concreta que documenta originariamente a

incidência (interpretação e aplicação) da legislação tributária, como no

exemplo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU)

ou do Imposto sobre Serviços (ISS) devido pelas chamadas “sociedades

uniprofissionais”. Em outros casos, essa obrigatoriedade de constituir a norma

individual e concreta que documenta a incidência da legislação tributária não

é originária, ou seja, decorre do exercício de revisão do lançamento por

homologação previsto no art. 150 do CTN (é um lançamento de ofício

“substitutivo” ao lançamento por homologação).

A possibilidade de um lançamento de ofício que revisa o lançamento

por homologação feito pelo contribuinte decorre, especialmente, da

divergência entre a interpretação da Administração Tributária (que pode

construir uma RMIT X) e a interpretação do particular (que pode construir

uma RMIT Y).

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Embora tanto a norma individual e concreta do particular como aquela

constituída pela Administração Tributária carreguem consigo a precisão de

sentido que as caracteriza, é ao Poder Judiciário que caberá, em última

análise, dizer qual a RMIT “contida” na legislação tributária: a RMIT X ou a

Y (ou ainda, a RMIT “Z”).

Tanto a norma individual e concreta do particular como aquela

construída pela Administração Tributária são atos derradeiros no sentido do

processo de positivação: denotam a interpretação de cada qual sobre o direito

positivo. Em outros termos, ambos os processos de interpretação e aplicação

enfrentaram parte daquelas dificuldades que acompanham as normas gerais e

abstratas (conforme Capítulo 3). Contudo, é a norma individual e concreta

construída pelo Poder Judiciário e veiculada por uma decisão judicial que nos

interessa, justamente por servir de termo à controvérsia sobre o sentido e a

aplicação da norma geral e abstrata277

.

A precisão da norma individual e concreta é de um tipo específico que

nunca poderá ser alcançado por uma norma geral e abstrata, já que uma das

principais características que as opõem é o cerne de sua definição. Uma

norma só é qualificada de abstrata porque se projeta para o futuro. Isso faz

com que ela seja inerentemente falha, isto é, sujeita à imprecisão de uma

definição a priori de seus termos e às lacunas idealizadas por ALCHOURRÓN e

BULYGIN. Por outro lado, uma norma só é qualificada de concreta porque faz

referência a uma situação específica e é exatamente em razão disso (estar

diante da aplicação a um caso concreto) que a torna mais precisa e capaz de

corrigir as falhas das normas gerais e abstratas.

277

É interessante anotar que a decisão judicial veiculada por meio do exercício do controle concentrado de

constitucionalidade não possui as mesmas características que a decisão judicial de um controle difuso de

constitucionalidade (ou de um controle de legalidade). A decisão judicial proferida em Ação Direta de

Constitucionalidade ou de Inconstitucionalidade analisa a lei em tese e não diante de um caso concreto, o que

elimina uma boa parte dos problemas de falibilidade do direito positivo, que diz respeito à subsunção.

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Transformar uma norma individual e concreta veiculada por decisão

judicial278

em uma norma geral e abstrata, como pretendem as súmulas

vinculantes, é retornar ao status de falibilidade do direito positivo. A norma

individual e concreta é útil porque não passa pelo processo de generalização e

só nessa condição pode ser vista como complementar à norma geral e

abstrata, tornando mais próxima a ideia de legalidade tributária e Estado de

Direito.

A norma individual e concreta da decisão judicial é, portanto, resultado

de um processo de “correção” da falibilidade do direito positivo. Assumindo

essa premissa, a jurisprudência passa a ocupar um papel tão central quanto o

da lei, mesmo nos países de civil law, o que confirma a necessidade de revisão

da hierarquia proposta pela teoria das fontes do direito (neste Capítulo sob a

perspectiva da valorização da decisão judicial e não sob a constatação de

falibilidade da lei, como o fizemos no Capítulo anterior).

4.2 Valorização da Decisão Judicial e Desmistificação da Diferença

Específica entre os Modernos Sistemas de Civil law e Common law

Neste Capítulo pretendemos demonstrar que é simplista a percepção de

que a valorização da decisão judicial faz com que os sistema jurídico-políticos

278

A decisão judicial é sempre uma norma concreta, a não ser nos casos de controle concentrado de

constitucionalidade e das “sentenças normativas” da Justiça do Trabalho, conforme adverte Tárek Moysés

Moussallem: “As normas jurídicas inseridas pelos juízes, através dos veículos competentes estabelecidos

pelo ordenamento, hão de ser sempre normas concretas, pouco importando se gerais ou individuais [Nota de

Rodapé 240: Exceção feita à Justiça do Trabalho, no caso das chamadas “sentenças normativas”,

expressamente permitidas pela Constituição Federal]. O Poder Judiciário jamais cria norma abstrata, pois é

condição para a sua atuação, além da provocação (princípio da inércia), a ocorrência do descumprimento do

disposto no conseqüente da norma primária. Neste sentido, os juízes e a atividade por eles exercida, em

virtude da norma secundária, criam, quando provocados, sempre normas concretas” (destaques são do

original). Op. cit., p. 152.

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129

dos países de civil law simplesmente se transmutem ao sistema de common

law279

.

De fato, a noção mais comum que predomina na diferenciação entre os

sistemas jurídicos enquadráveis no modelo civil law ou de common law está

ligada à dicotomia legislação / jurisprudência ou legislador / juiz. GUIDO

SOARES resume didaticamente essa percepção ordinária280

-281

:

Qualquer estudioso de um sistema nacional daqueles direitos que se

encontram dentro da família romano-germânica, ou seja, da Civil

Law, tendo uma metodologia elaborada nessa família e que

pretenda analisar outro sistema nacional, da mesma família, saberá

como conduzir-se: se for um estudo em extensão, bastará

consultar as principais leis escritas, os doutrinadores mais

conhecidos, e, se for um estudo em profundidade, então um

conhecimento da jurisprudência será necessário. Para conhecer

algum sistema da Common Law, inda que de maneira

superficial, tal metodologia seria exatamente a mais

desastrada! Além de as normas escritas serem verdadeiros

desafios para um leitor de mediana complacência [...], são elas

incompletas para descrever um universo em que age um outro

legislador, o juiz, em matéria contenciosa, portanto casuística, mas

com efeitos normativos gerais.

(destaques não são do original)

Para além de explicitar mais nitidamente essa noção comum que se tem

sobre o papel da decisão judicial num modelo e noutro, pretendemos

desmistificar, utilizando várias das premissas colocadas no Capítulo 3, essa

279

Georges Abboud adverte: “Parece haver uma verdadeira feitichização por parcela de nossa doutrina em

relação ao common law, de modo que diversas reformas legislativas ou teorias são justificadas sob o

argumento de que elas seriam oriundas do common law”. Precedente Judicial versus Jurisprudência Dotada

de Efeito Vinculante: a ineficácia e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de

precedentes. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 493. 280

Op. cit., p. 15-16. 281

Mais resumida e pragmaticamente tem a mesma postura o professor Rodolfo de Camargo Mancuso.

Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 4ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010. p. 57.

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concepção dogmática que insiste em manter um status quo que não se sustenta

após a evolução de ambos os tipos de sistemas jurídicos282

.

4.2.1 Origens e Características da Common Law, o Papel da Lei e a

Valorização da Decisão Judicial

A tradicional concepção da ausência de leis e da presença da

jurisprudência para regulação de condutas nos países de common law pode ser

atribuída às origens desse sistema283

.

A predileção do povo inglês para um direito construído a partir da

realidade, do julgamento dos casos concretos (sem a necessidade de

generalização dessas situações em leis escritas), fez como que o modelo

common law, originado na Inglaterra, utilizasse o processo indutivo (de

generalização de cada decisão judicial tão-somente pelo intérprete284

) em

282

O professor de Direito e Filosofia da Georgetown University, David Luban, também coloca esse

dicotomia em termos de uma simplificação exagerada e perigosa: “Há não mais que duas décadas os

conhecimento do direito de outras nações consistiam basicamente em slogans e clichês. [...] Supostamente, a

common law seria feita por juízes, enquanto o direito codificado seria feito pelos legisladores. E, enquanto o

juiz no direito codificado seria supostamente olharia somente para os códigos e a doutrina, o juiz do sistema

da common law teria sua atenção voltada apenas a precedentes vinculantes proferidos pelos tribunais. Como

muitos estereótipos, essas confortáveis dicotomias contêm um grão de verdade; mas como a maior parte dos

estereótipos, essas confortáveis dicotomias contêm um grão de verdade; mas como a maior parte dos

estereótipos, o grão da verdade é excedido em peso por um armazém de grandes simplificações e claras

inverdades. [...] Em lugar algum os juízes deixam de criar direito. E em lugar algum os juízes ignoram a

legislação ou as decisões proferidas nos tribunais”. Prefácio. Trad. Júlio César Bueno. In: LIMA, Augusto

César Moreira. Precedentes no Direito. São Paulo: LTr, 2001. p. 5. 283

A história da common law origina-se na Inglaterra e pode ser dividida basicamente em quatro fases: (i)

antes da conquista normanda; (ii) a partir da conquista normanda e até a Dinastia Tudor (1485); (iii)

nascimento da equity e (iv) a Lei de Organização do Judiciário (Judicature Act), que entrou em vigor em

1875. É basicamente no final do século XIII e no século SIV que o civil law se diferenciou do common law,

mediante o fortalecimento do tribunal inglês de Londres e do Parlamento Francês. Cf. STRECK, Lenio Luiz;

ABBOUD. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2013 (coleção O Que é Isto?). p. 20-23 e 25. 284

Faz-se essa ressalva porque parte das compilações de Justiniano (Corpus Iuris Civilis) também teve

origem nas decisões de casos concretos (pretores e jurisconsultos). A diferença é que no modelo civil law as

decisões tomadas para solução de um caso concreto tendem a se transformar (assim como ocorreu no direito

romano) em generalizações por meio de um ato do legislador e não somente por um ato de conhecimento do

intérprete do precedente.

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131

detrimento da produção de normas gerais e abstratas sistematizadas

esteticamente em códigos (como ocorre no civil law) 285

.

RENÉ DAVID resume muito didaticamente a origem evolutiva da

common law em comparação ao civil law286

:

Do início do século XIII ao fim do século XVIII, o ensino do

direito foi realizado nas Universidades, na França, com base no

direito romano; os ‘costumes’ não eram ensinados, ou só o eram

tardiamente e de maneira muito acessória. Todos os juízes das

jurisdições superiores, bem como os advogados, tinham de ser,

desde a época de São Luís, ‘juristas’, isto é, licenciados em direito

com formação universitária. Na França, os tribunais

continuaram a aplicar em princípio os costumes, mas sua

maneira de considerá-los, de interpretá-los, de adaptá-los, de

completá-los, foi influenciada, de forma mais ou menos

consciente, pelo direito erudito, que nas Universidades haviam

aprendido a encarar como um modelo e que era, para eles, uma

verdadeira razão escrita. A influência do direito romano foi

considerável no Sul e na Alsácia (regiões de direito escrito),

mais limitada no norte (região de costumes); tanto aqui como ali,

ela foi, no fim das contas, importantíssima.

No início do século XIX, o legislador interveio com a finalidade

de completar a obra da jurisprudência. Pela promulgação de

códigos, ele unificou e reformou os costumes e tornou aplicável

na França o sistema racional que as Universidades haviam

elaborado, partindo da base do direito romano.

[...]

As Universidades inglesas também ensinaram, é verdade,

apenas o direito romano, mas sua influência foi desprezível,

pois nunca se exigiu, na Inglaterra, que juízes ou advogados

tivessem título universitário. [...] As Cortes Reais [...]

elaboraram um novo direito, a common law, para cuja

formação o direito romano desempenhou um papel muito

limitado.

(destaques não são do original)

À época da consolidação do direito romano na Europa continental, na

Inglaterra existiam dois tipos de soluções de conflitos: aqueles entre

285

DAVID, René. O Direito Inglês. Trad. Eduardo Brandão (revisão técnica e da tradução Isabella Soares

Micali). 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 3. 286

Ibidem, p. 1.

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particulares eram resolvidos predominantemente pelos costumes locais;

aqueles que se relacionassem com assuntos da coroa (direito público) eram

solucionados pelas Cortes Reais. Essas últimas soluções, dadas pelas Cortes

Reais, valiam para todos e, por isso, era chamado de comune ley ou common

law (essa a origem do termo atual)287

.

Com o tempo, contudo, os particulares começaram a preferir discutir

seus conflitos nas Cortes Reais, dadas suas regras processuais mais modernas

e a maior garantia de efetividade de suas soluções. Como as Cortes Reais

aparentavam intenção de ampliar suas competências, de alguma forma

encontravam um modo de acolher as pretensões dos particulares, afetando

indiretamente a demanda aos interesses da coroa. Assim, a common law “se

tornou um sistema geral comportando regras para todas as situações, tanto de

direito público como de direito privado” 288

.

O acesso às Cortes Reais era, de qualquer forma, dificultado pela

necessidade de enquadramento do caso aos mecanismos processuais

existentes, o que também impedia a aplicação do direito romano na Inglaterra,

conforme expressa RENÉ DAVID289

:

Essas dificuldades de ordem processual, expressas pelo brocardo

Remedies precede Rights, marcaram profundamente o

desenvolvimento da common law. [...] Nessas condições, nem se

podia cogitar propor-lhe conceitos e soluções romanos, por mais

razoáveis e perfeitos que pudessem ser. O direito romano podia

seduzir jurisdições com uma competência geral; nas jurisdições de

exceção, como eram as Cortes Reais, não se tinha a mesma

liberdade de manobra: era-se obrigado a situar-se no âmbito das

normas processuais formalistas existentes.

[...]

Os juristas ingleses foram levados, assim, a concentrar sua atenção

no direito processual, que era sempre cheio de ciladas, em vez de

287

Ibidem, p. 4. 288

Ibidem, p. 5-6. 289

Ibidem, p. 3.

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concentrar-se no direito material. A preocupação essencial

sempre foi, na Inglaterra, levar o processo a seu fim,

frustrando todas as manobras do adversário; e, conseguindo-o,

era necessário, além disso, remeter-se ao veredicto,

frequentemente imprevisível, de um júri. [...] O direito inglês

não continha verdadeiramente regras materiais, mas apenas

uma série de técnicas processuais graças às quais resolviam-se

os litígios. O direito romano, em tais circunstâncias, não pôde

ser utilizado como modelo da mesma maneira que o era o

continente.

(destaques não são do original)

Aqueles que não conseguissem o acesso às Cortes Reais acabavam

recorrendo ao rei, que aceitava reanalisar os casos para evitar injustiças em

seu reino. Com o incremento exponencial das demandas, o rei passou a

delegar essa função a um Chanceler (Cortes de Chancelaria). A jurisprudência

criada por essa instância de julgamento passou a ser chamada de Equity e

servia para complementar a common law (jurisprudência das Cortes Reais)290

.

No final do século XIX as Cortes Reais fundiram-se às Cortes de

Chancelaria291

, mas a tradicional distinção em termos de competência acabou

sendo mantida mesmo dentro de um tribunal único. É por isso que diz,

atualmente, existirem common lawyers e equity lawyers292

.

290

“As partes numa disputa que não tivessem acesso às Cortes Reais, ou que não pudessem obter justiça

dessas Cortes, tinham, porém, uma possibilidade: dirigir-se, por uma petição, ao rei, fonte de justiça, pois

este não podia tolerar um mau funcionamento desta em seu reino. [...] Essas petições tornaram-se, no século

XVI, numerosíssimas e passaram a ser julgadas, fora do Conselho, por um alto funcionário da Coroa, o

Chanceler. Com a multiplicação dos recursos, o Chanceler, por outro lado, em vez de procurar em cada caso

o que a equidade exigia, acabou definindo “regras de equidade” (rules of equity) de acordo com as quais

examinaria as petições que lhe eram dirigidas e julgaria os diferentes casos-tipos a ele submetidos.”. Ibidem,

p. 8-9. 291

O Judicature Act, editado em 1873 e que entrou em vigor em 1875, foi o responsável pela “fusão” do

common law com a equity. CANNATA, Carlos Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea. Madrid:

Tecnos, 1996. p. 228. 292

“Todas as ‘divisões’ da Supreme Court of Judicature, criada em 1875, podem, sem dúvida, aplicar hoje

tanto as regras da common law quanto as regras ou remédios da equity. Mas, de fato, subsistem no seio da

Corte, dois tipos de ritos processuais: certos casos, levados a certos juízes, são tratados de acordo om um rito

herdado das antigas Cortes de common law, enquanto outros examinados de acordo com um rito herdado da

antiga Corte da Chancelaria. Os juristas familiarizados com um desses ritos não o são com o outro; assim, a

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134

Em virtude dessa evolução histórica é que a valorização da decisão

judicial vem arraigada culturalmente aos países de common law293

. Isso não

significa, contudo, que atualmente não existam normas gerais e abstratas, quer

na Inglaterra294

-295

, quer nos demais países que herdaram o modelo inglês para

construção de seus sistemas jurídicos nacionais296

-297

.

A estrutura codificada e sistematizada de normas gerais e abstratas,

embora não presente na Inglaterra298

, pode ser encontrada nos países

distinção fundamental entre os juristas ingleses continua sendo uma distinção entre common lawyers e equity

lawyers, fundada numa consideração processual". Cf. DAVID, René. O Direito Inglês, cit., p. 10.11. 293

“O direito inglês é, essencialmente, obra das Cortes Reais – Cortes de common law e Cortes de equity –

que o criaram de precedente em precedente, buscando em cada caso a solução que era ‘razoável’ consagrar.

Esse modo de formação e de desenvolvimento do direito inglês acarreta várias conseqüências. Em primeiro

lugar, implica o reconhecimento de um certo valor dos ‘precedentes’. [...] O direito inglês só pôde

desenvolver-se e tornar-se um sistema porque, desde uma época bastante antiga – desde o século XIII -,

existiram coletâneas de jurisprudência e porque os juízes levaram muito em consideração os precedentes. A

autoridade reconhecida aos precedentes é, por via de consequência, considerável, pois pode revelar-se como

sendo a própria condição de existência de um direito inglês”. Ibidem, p. 12-13. 294

“Convém assinalar, enfim, como um fenômeno típico do século XX, o novo papel representado no direito

inglês pela legislação (statute law). [...] Na época atual, o ‘Welfare State’ (‘Estado Social’ ou ‘Estado do

bem-estar social’) se esforça, na Inglaterra, como na França, em criar uma nova sociedade, com mais

igualdade e mais justiça. Neste contexto, a legislação e a regulamentação administrativa deverão

desempenhar um papel primordial. O direito inglês, que até século XX era um direito essencialmente

jurisprudencial, atribui hoje uma importância cada vez maior à lei”. Ibidem, p. 11. 295

Até em uma Constituição escrita pensam os ingleses, embora a ausência dela seja um dos motivos de

maior orgulho para o povo inglês, conforme afirma a doutrina: “Para um inglês o aspecto mais provocador

destas palestras talvez seja a sugestão de que deveríamos adotar na Inglaterra uma constituição escrita e uma

Carta de Direitos. Sempre foi do orgulho do homem comum inglês o fato de não possuir uma constituição

escrita, mas de ter suas liberdades garantidas pelo Parlamento e pelas Cortes. Pode ser que o Parlamento e as

Cortes necessitem agora de um fortalecimento do Direito escrito, de modo que possam desincumbir-se em

conjunto de seu antiqüíssimo encargo de proteger o castelo do homem inglês contra intrusos, mesmo quando

tal instituto é o Estado”. SCARMAN, Lorde Leslie. O Direito Inglês: a nova dimensão. Trad. Inez Tóffoli

Baptista. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1978. p. 9. 296

O direito inglês está para os países de common law como o direito romano está para os países de civil law.

Como afirma René David: “o direito inglês está na origem da maioria dos direitos dos países de língua

inglesa, tendo exercido uma influência considerável sobre o direito de vários países que sofreram, numa

época de sua história, a dominação britânica. [...] É por seu estudo que convém começar todo e qualquer

estudo dos direitos pertencentes à “família de common law””. O Direito Inglês, cit., p. VII e VIII. 297

“Convém ressaltar que não é correto apresentar o common law tão somente como um direito não

codificado de base tipicamente jurisprudencial. Em verdade, boa parte das regras de direito que se aplicam

todos os dias na Inglaterra e nos Estados Unidos são regras sancionadas pelo Poder Legislativo ou pelo poder

administrativo. Inclusive, nos Estados Unidos, chega-se a falar de um fenômeno designado pelo neologismo

staturification do direito, em alusão ao termo statute, que em inglês significa lei em sentido formal”. Cf.

STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, op. cit., p. 25. 298

“Não há, na Inglaterra, códigos como encontramos na França, e apenas em matérias especiais foi feito um

esforço para apresentar o direito de forma sistemática. Não é isso um acaso. A concepção do direito que os

ingleses sustentam é, de fato, ao contrário da que prevalece no continente europeu, essencialmente

jurisprudencial, ligada ao contencioso” DAVID, René. O Direito Inglês, cit., p. 3.

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descendentes da cultura de common law299

. Conforme afirma ALAN WATSON,

“algumas indubitáveis jurisdições de common law, notadamente a Califórnia,

são codificadas”300

.

4.2.2. Teoria das Fontes do Direito e Diferença Específica da Valorização da

Decisão Judicial nos Modelos de Civil Law e Common Law

Considerando que atualmente o sistema de common law possui leis

(statutes), qual a diferença do modelo common law em relação ao modelo

civil law? A resposta é: a ausência de hierarquia entre as normas gerais e

abstratas (statutes) e as decisões judiciais.

No sistema de common law, dada a sua origem cultural de considerar a

decisão judicial como meio apto à regulação de condutas, já está arraigada a

tradição de valorização da jurisprudência. Isso, contudo, não afasta a

regulação por meio de normas gerais e abstratas301

. Há, efetivamente, uma

integração entre ambas as fontes do direito, conforme ressaltam JOHN HENRY

MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO302

:

299

Guido Soares chega a classificar o sistema americano como um sistema misto entre a common law e a

civil law. Op. cit., capítulo 4. 300

Tradução livre do trecho “[...] some undoubted common law jurisdictions, notably California, are

codified”. Op. cit., p. 3. 301

Afirma-se que os magistrados ingleses dão uma interpretação literal e restritiva às leis promulgadas pelo

Parlamento, pois enxergam essas regras (enacted law) como complementares: verdadeiras exceções ao tácito

sistema costumeiro (costumary law) vigente e abrangente. O Parlamento serviria para preencher as lacunas

deixadas pelo Judiciário e pelos costumes (e não o contrário, como comumente se afirma no civil law). Cf.

SCARMAN, Lorde Leslie, op. cit., p. 16-17. 302

Tradução livre do trecho “In the common law world, on the other hand, a world less compelled by the

peculiar history and the rationalist dogmas of the French Revolution, quite different attitudes prevail. The

common law of England, an unsystematic accretion of statutes, judicial decisions, and customary practices, is

thought of as the major source of law. It has deep historic dimensions and is not the product of a conscious

revolutionary attempt to make or to restate the applicable law at a moment in the history. There is no

systematic, hierarchical theory of sources of law: legislation, of course, is law, but so are other things,

including judicial decisions. In formal terms the relative authority of statutes, regulations, and judicial

decisions might run in roughly that order, but in practice such formulations tend to lose their neatness and

their importance. Common lawyers tend to be much less rigorous about such matters than civil lawyers. The

attitudes that led France to adopt the metric system, decimal currency, legal codes, and a rigid theory of

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Na common law, por outro lado, um mundo menos compelido pela

história peculiar e os dogmas racionalistas da Revolução Francesa,

atitudes bem diferentes prevalecem. Na common law da Inglaterra,

um crescimento assistemático de leis, decisões judiciais e práticas

costumeiras é considerado a principal fonte de direito. Essa

concepção tem profundas dimensões históricas e não é produto de

uma tentativa revolucionária consciente para fazer ou para

reafirmar a lei aplicável a um momento na história. Não existe

uma teoria sistemática e hierárquica das fontes do direito: a

legislação, claro, é considerada como lei, mas assim também o

são as decisões judiciais. Em termos formais, a autoridade relativa

de estatutos, regulamentos e decisões judiciais pode ser executada

aproximadamente nessa ordem, mas na prática essa cronologia

tende a perder sua nitidez e sua importância. Juristas de common

law tendem a ser muito menos rigorosos nesse assunto que os

juristas de civil law. As atitudes que levaram a França a adotar o

sistema métrico, a moeda decimal, os códigos legais, e uma teoria

rígida das fontes do direito, tudo no espaço de poucos anos, ainda

são, basicamente, o que o diferencia da tradição de common law.

(destaques não são do original)

No prefácio de seu livro “Civil Law e Common Law: os dois grandes

sistemas legais comparados”, ANDRÉIA COSTA VIEIRA descreve que recebeu a

seguinte resposta de um professor britânico ao indagar o que ele queria dizer

sobre “consultar a common law”: “The statutes are not enough, young lady –

that’s what I mean”303

.

A ausência de hierarquia para as fontes do direito (especialmente a lei e

jurisprudência) pode propiciar uma integração positiva de enunciados

prescritivos que colaboram mais precisamente para a construção de uma

norma de conduta, tal como uma Regra-Matriz de Incidência Tributária. Neste

sentido é que proporemos, sem abandonar a moldura proposta pela lei nos

sistema de civil law, uma valorização da jurisprudência, abandonando o

sources of law, all in the space of a few years, are still basically alien to the common law tradition”. Op. cit.,

p. 25-26. 303

VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 12. Em tradução livre, a frase significa “As leis não são suficientes,

jovem senhora – é isso que eu quero dizer”.

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preconceito inicial de que culturalmente esse modelo se opõe ao da comum

law exatamente por desvalorizar a decisão judicial de efeitos prospectivos.

4.2.3 Revisão da Teoria das Fontes do Direito no Civil Law diante da

Necessária Valorização da Decisão Judicial

Uma proposta de valorização da decisão judicial nos sistemas de civil

law, especialmente no direito brasileiro (e no direito tributário a que estamos

nos dedicando nesta tese), não necessariamente implica numa

“commonlawnização”. Aliás, esse é um preconceito que pode impedir o

importante passo inicial de valorização da jurisprudência e garantia mais

efetiva da legalidade tributária.

Essa afirmação tem sido colocada para alertar que a doutrina de

precedentes do modelo common law não foi formada de forma artificial, ao

contrário, decorreu de um longo processo histórico e foi implementada de

forma consequencial e natural e que, por isso, não se pode achar possível

implementa-las de forma artificial (por meio de leis) no modelo civil law304

.

O fato de nossa origem histórica ter privilegiado a codificação, o geral,

as normas escritas, contudo, não pode impedir uma avaliação crítica do

modelo civil law, tampouco deveria servir de bloqueio à valorização da

jurisprudência.

Neste sentido é a postura de RENÉ DAVID, que coloca interessantes

indagações para repensarmos as premissas de nosso modelo civil law305

:

A origem histórica das nossas classificações, o caráter relativo dos

nossos conceitos, o condicionamento político ou social das nossas

instituições, apenas nos são revelados com clareza, se para os

304

Neste sentido ver STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, op. cit., p. 9 e 25. 305

Os Grandes Sistemas do Direito Comparado, cit., p. 4.

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estudarmos, nos colocamos fora do nosso próprio sistema de

direito. De que valem as nossas distinções de direito público e

direito privado, de civil e de comercial, de direito imperativo e

supletivo, de lei e regulamento, de direitos reais e de direitos de

crédito, de móveis e imóveis? Aquele que apenas estudar (sic) o

direito francês considera estas oposições naturais e é tentado a

atribuir-lhes um caráter necessário. O direito comparado faz-nos

ver que não são aceitas em toda a parte, que podem estar em

declínio ou mesmo ter sido abandonadas em certos países; mais que

a sua origem, o direito comparado nos leva a nos interrogarmos

sobre a sua justificação e o seu alcance reais no sistema do nosso

direito nacional atual.

O mesmo sucede aos conceitos utilizados no nosso direito: também

neste caso o direito comparado contribuiu para modificar a atitude

que tende a atribuir a estes conceitos um caráter de necessidade, e

que, em certas épocas ou em certos países esteve pronta a sacrificar

à sua coerência lógica os interesses que o direito, em última

análise, está destinado a servir.

O mesmo se poderá dizer, ainda, das fontes do direito e dos

métodos. A teoria geral, exposta pelos civilistas franceses,

exalta a codificação e a lei; ela apresenta-as como a forma mais

apta e conveniente de exprimir as regras do direito num Estado

democrático, limitando-se apenas a ver na jurisprudência e na

doutrina órgãos que se destinam a aplicar ou a comentar a lei.

O direito comparado desvenda todo o exagero de preconceitos e de

ficção que esta análise comporta; mostra-nos que outras nações,

julgadas democráticas, aderiram a fórmulas muito diferentes,

rejeitaram a codificação e opuseram-se a um alargamento, segundo

elas perigoso para democracia, da função da lei; revela-nos, por

outro lado, que em outros Estados se consideram como falsamente

democráticas as fórmulas cujos métodos afirmamos.

(destaques não são do original)

O que se percebe é que houve uma mudança no status quo da lei e da

jurisprudência no sistema de civil law, mas a Ciência do Direito nesses países

tem se recusado a admitir, evitando uma análise crítica e aprofundada nas

cláusulas pétreas da estrita legalidade e da separação de poderes. Contudo, o

que já tentamos e permaneceremos tentando demonstrar é que não é

necessário abandonar esses conceitos tradicionais a sistemas como nosso, e

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que valorizar a jurisprudência não seria uma mudança artificial no nosso

modo de pensar culturalmente arraigado306

.

JOHN HENRY MERRYMAN, no prefácio da 3ª edição da obra “The Civil

Law Tradition: an introduction to the legal systems of Europe and Latin

America” (2006), afirma que muita coisa aconteceu com o civil law desde a 2ª

edição de seu livro, publicada em 1984. Além da queda do império soviético e

do fim do socialismo, elenca três grandes modificações observadas nesse

período (entre 1984 e 2006): (i) a “judicialização” e a “descodificação” do

civil law, (ii) o aumento do poder e do status dos juízes (tendo essas duas

modificações resultado no declínio relativo da importância da legislação), e

(iii) a difusão do poder de legislar graças à criação de mecanismos

internacionais / supranacionais307

.

Mais à frente, no Capítulo IV, sobre “As Fontes do Direito”, avança

nessa percepção, afirmando, juntamente com ROGELIO PEREZ-PERDOMO, que

a noção de que os juízes teriam, na tradição do civil law, somente a função de

interpretar e aplicar a lei, encontrando nela todas as soluções para o caso a ser

decidido, está ultrapassada308

:

306

Em última análise é o modo de pensar da Ciência do Direito que forma e constrange e, assim, controla a

atividade jurisdicional. Neste sentido ver STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, op. cit., p. 13. 307

“Much has happened in the civil law world since the second edition of this book appeared in 1984. With

the eclipse of the Soviet empire and socialist law, most of the former Soviet republics have returned to the

civil law. The “judicialization” and “constitutionalization” of the civil law proceed, as do “decodification”

and the decline in relative importance of legislation. The power and status of judges grow. The number of

global and regional organizations and institutions exercising powerful legal functions increases. Such

fundamental changes in the civil law world far outstrip the more sedate evolution in the common law

tradition during the same period”. Cf. MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio, op. cit., p.

vii. O autor original da obra era só John H. Merryman, tendo o Rogelio Pérez-Perdomo se juntado somente

na 3ª edição. O prefácio que aqui citamos está assinado só pelo autor original. 308

“[...] since the function of judges within that tradition is to interpret and to apply ‘the law’ as it is

technically defined in their jurisdictions. Both state positivism and the dogma of separation of powers require

that judges resort only to “the law” in deciding cases. It is assumed that whatever the problem that may come

before them, they will be able to find some form of law to apply [...]. They cannot turn to books and articles

by legal scholars or to prior judicial decisions for the law. This dogmatic conception of what law is, like

many other implications of the dogmas of revolutionary period, has been eroded by time and events. [...] In

Chapter VI, on judges, we will describe the various ways in which this theory of sources of law has been

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[...] No capítulo VI, sobre os juízes, vamos descrever as várias

maneiras em que esta teoria das fontes do direito tem sido

subvertida pela conduta de juízes do sistema de civil law.

Estas e outras tendências modernas têm sido observadas por

estudiosos, que muitas vezes reconhecem as suas implicações para

a teoria ortodoxa das fontes do direito, mas não o suficiente para

enfrentar, de forma séria, a visão mais geral prevalecente da lei

como fonte primária. Para a média dos juízes, advogados ou

estudantes de Direito na França ou na Argentina, a teoria

tradicional das fontes do direito representa a verdade básica.

(destaques não são do original)

O papel central da jurisprudência nos países de civil law pode ser

atribuído em grande parte aos problemas de falibilidade do direito positivo.

Não escapa, contudo, a identificação de outra causa, relacionada à

incapacidade de o Poder Legislativo se coordenar e acompanhar as

modificações e a evolução da sociedade.

O professor FERNANDO ABRUCIO, cientista político especialista em

relações intergovernamentais e gestão pública309

, bem sintetizou essa questão

quanto à omissão do Poder Legislativo:

A agenda mais importante do país vem sendo discutida pelo

Supremo Tribunal Federal. Temas como liberdades individuais,

organização do sistema político e regras definidoras das políticas

públicas agora são centrais na pauta do STF. Nada de errado, a

princípio, pois a Corte Constitucional de um país democrático é um

lugar privilegiado do jogo político, como nos EUA e na Alemanha.

O problema é que a maior repercussão política do Supremo ocorre

sob o silêncio dos partidos em relação às questões estruturais do

país.

[...]

subverted by the conduct of civil law judges. These and other modern tendencies have been noted by

scholars, who often recognize their implications for the orthodox theory of sources of law, but they do not

seriously impair the more generally prevailing view of what law is. To the average judge, lawyer, or law

student in France or Argentina, the traditional theory of sources of law represents the basic truth”. Op. cit., p.

24-25. 309

É professor e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (SP) desde 1995, ocupando atualmente o cargo de

Coordenador do Mestrado e Doutorado em Administração Pública e Governo.

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O Supremo está discutindo o que deveria ser debatido pelos

partidos – da marcha da maconha às cotas.

[...]

O STF está discutindo aquilo que deveria ser debatido pelos

partidos políticos e estes, infelizmente, não conseguem se

posicionar sobre o que mais importa à sociedade brasileira.

Afinal, para além dos discursos genéricos e vazios, qual é a visão

do PT e PSDB sobre a reforma tributária?

(destaques não são do original)

Isso faz com que a própria ideia da codificação esteja sendo

abandonada, como colocaram JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-

PERDOMO, e como constata RENÉ DAVID310

:

O envelhecimento dos códigos atenuou, se é que não eliminou, a

atitude do positivismo legislativo dominante no século XIX.

Reconhecemos cada vez mais abertamente a função essencial que

pertence à doutrina e à jurisprudência na formação e na evolução

do direito, e nenhum jurista pensa mais que apenas os textos

legislativos sejam importantes para conhecer o direito.

(destaques não são do original)

Nosso Código Tributário Nacional, de 1966, que passou por alterações

pontuais alterações311

, deixa muito a desejar na regulação de matérias

310

Os Grandes Sistemas do Direito Comparado, cit., p. 55. 311

Em quase 50 anos, somente duas leis complementares alteraram pontos relevantes do CTN: a Lei

Complementar nº 104, de 2001, e a Lei Complementar nº 118, de 2005. Essas duas leis complementares

alteraram, basicamente, o seguinte: (i) adequação dos textos dos artigos 9º e 14 – limitações ao poder de

tributar – à CF/88; (ii) alteração do art. 43 para legitimar a tributação sobre o lucro presumido (parcela da

receita e não renda) e a disponibilização automática de lucros no exterior; (iii) inclusão da tutela antecipada e

do parcelamento como formas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário; (iv) inclusão da dação em

pagamento como forma de extinção do crédito tributário; (v) vedação da compensação antes do trânsito em

julgado de decisões que reconhecem o indébito tributário; (vi) alterações no art. 198, sobre sigilo fiscal, para

restringir sua aplicabilidade e possibilitar troca de informações entre as esferas da Administração Pública e

com outros países; (vii) alterações para adequação à nova lei de recuperação de empresas (hipóteses de

responsabilidade, privilégios e garantias do crédito tributário); e (viii) alteração de disposições sobre

prescrição do Fisco (dies ad quem) e do contribuinte, eliminando a tese dos 10 anos para repetição do

indébito. As outras duas leis complementares que alteraram o CTN – nº 24, de 1975, e nº 143, de 2013 – o

fizeram em pontos muito específicos: (i) alteração da disjunção “ou” pela conjunção “e” no art. 178 (que fala

sobre isenções) e (ii) revogação de dispositivos sobre fundos de participação, por vezes já inaplicáveis por

falta de recepção pela CF/88. Capítulos importantes, relativos à regulamentação do ISS e do ICMS, estão

completamente revogados.

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essenciais a um bom exercício da atividade impositiva, como a delimitação

dos critérios para instituição das contribuições do art. 149 da CF/88. Diante

disso, fica com o Judiciário a atribuição de decidir se tal ou qual contribuição

possui os critérios abstratos de referibilidade e destinação, o que favorece a

arbitrariedade e prejudica a limitação do poder de tributar do Estado.

A grande diferença do modelo civil law para o common law não está,

portanto, no funcionamento dos sistemas jurídicos (não mais)312

: está na

Ciência do Direito. Ao permanecer resistindo à valorização da decisão

judicial, fundado nos pressupostos de estrita legalidade e separação de

poderes (que são importantes, mas não precisam ser inquestionáveis), a

Ciência do Direito deixa que o Judiciário exerça livremente sua função atípica

de legislar (sem atribuir qualquer efeito jurídico relevante a isso).

Não se pode atribuir a valorização da decisão judicial como algo

peculiar aos sistemas de common law. Uma coisa é a origem do sistema de

common law, que rejeitou a produção de normas gerais e abstratas e, com

isso, impôs a tradição de regular condutas por meio da generalização do

raciocínio de precedentes313

. A percepção equivocada e atemporal desse

fenômeno faz com que mantenhamos um senso comum de que, nesses países

as leis não importam e, por isso, os juízes podem criar o direito. Como vimos

no item 4.2.1, não é exatamente assim que as coisas funcionam atualmente

(existem normas gerais e abstratas, mas reconhece-se o poder do Juiz na

312

De fato, “nunca existiu uma barreira indevassável e intransponível entre as duas tradições jurídicas, bem

como permite esclarecer que possível relação entre os dois sistemas existiu desde sempre, não se tratando de

fenômeno recente apto a justificar modismos como uma espécie de commonlawnização de nosso direito ou a

instituição do sistema de precedentes em nosso ordenamento”. Cf. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD,

Georges, op. cit., p. 24-25. 313

A noção básica de precedente, conforme afirma Frederick Schauer, está centralmente ligada à obrigação

do decisor em tomar a mesma decisão tomada numa ocasião anterior, numa situação igual ou similar que lhe

for apresentada no presente. Precedent, May 9, 2011, p. 2. Disponível em:

http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1836384. Acesso em: 6 nov. 2013.

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criação de regras, o que favorece a integração dessas fontes do direito,

melhorando a qualidade da regulação das condutas futuras).

É preciso, portanto, desfazer esse preconceito da Ciência do Direito no

sentido de que a grande diferença entre os modelos de common law e civil law

está na “prevalência” da jurisprudência ou da lei como “fonte primária” das

regras de conduta, quer em razão disso não se coadunar com as realidades de

ambos os sistemas, quer em razão do que fartamente expusemos no Capítulo

3.

Conforme descrevemos no Capítulo anterior, as normas gerais e

abstratas podem não ser suficientes para determinar a norma de incidência

tributária e a jurisprudência cumpre, assim, um papel fundamental

“substitutivo” que não pode ser encarado como “acessório”. Diante das

lacunas deixadas pelas normas gerais e abstratas nos termos descritos

anteriormente é, no mínimo, ingênuo afirmar que o juiz teria tão-somente um

papel revelador e, portanto, secundário, no modelo civil law. O que se pode

admitir, como adiantamos, é tão-somente uma cronologia metodológica na

busca da norma destinada a solucionar o caso concreto (podemos olhar para a

moldura da lei, sem ignorar o papel complementar da jurisprudência).

A atribuição ou rejeição do poder criador à decisão judicial314

é muito

difundida pela Ciência do Direito mediante a utilização da teoria das fontes:

considerando que não existe hierarquia entre lei e decisão judicial nos países

de common law (e que nesses países a origem de seus sistemas jurídicos

remonta até mesmo a uma inversão desses mecanismos para regulação de

condutas), a teoria das fontes perde importância (como expusemos nos itens

314

Não estamos falando do papel criador de normas individuais e concretas atribuído à decisão judicial, base

da pirâmide Kelseniana e final do processo de positivação das normas gerais e abstratas. Ao nos referirmos

sobre o papel criador da decisão judicial nesse trecho estamos falando da função atípica de legislar

prospectivamente (com aptidão para regular condutas futuras).

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4.2.1 e 4.2.2); (ii) a tradição originária da preferência estética pelas normas

gerais e abstratas, fortalecida pela rígida separação de poderes nos sistemas de

civil law, favorece a hierarquização das fontes e, consequentemente, a

visualização da jurisprudência como secundária315

(ainda que isso seja

incoerente, como expusemos no item 4.2).

Essa teoria, contudo, prejudica o reconhecimento de que a

jurisprudência ocupa um papel central na determinação dos enunciados

prescritivos aptos a formar a norma de incidência tributária, dada a

falibilidade do direito positivo316

e, com isso, perde-se, também, os efeitos

jurídicos importantes do reconhecimento de um papel criativo da decisão

judicial: aptidão para regulação de condutas futuras e irretroatividade de

entendimentos (conforme exporemos no Capítulo 5).

Enfim, ao passo que os países de common law, em razão de suas

origens, já possuem culturalmente a noção de importância fundamental da

jurisprudência, nos países de civil ainda ingenuamente continua-se a afirmar

que ela teria papel secundário. Em outros termos, podemos dizer que ambos

os modelos valorizam a jurisprudência, mas os países de civil ainda estão

aprendendo, grande parte em razão de sua herança do direito romano e da

forma como a Ciência do Direito expõe o tema das fontes do direito, a formar

bons precedentes e oferecer melhores mecanismos de controle da volatilidade

das decisões judiciais.

315

Mesmo numa teoria diferenciada e afastada do senso comum, como a de Tárek Moysés Moussallem,

mantém-se a concepção da jurisprudência como fonte secundária: “Por derradeiro, cabe esclarecer com a

devida cautela: a jurisprudência é hierarquicamente inferior à lei (em sentido amplo). Mas, nos casos de

declaração abstrata de inconstitucionalidade, as decisões judiciais poderão ter o condão de revogar a lei”. Op.

cit., p. 153. 316

Reconhecemos que a revisão da teoria das fontes do direito traz consigo uma reflexão muito mais

importante e que é a base desse raciocínio: a ideia da rígida separação de poderes. O objetivo final desta tese,

contudo, é utilizar mecanismos normativos para integrar a decisão judicial nas normas gerais e abstratas e

não questionar os pressupostos do sistema de civil law, especialmente a hierarquia das fontes por si mesma.

Para uma análise que pretende provocar esse tipo de reflexão (teoria da separação dos poderes e o raciocínio

formalista da mera subsunção de fatos às leis previamente existentes), ver: RODRIGUEZ, José Rodrigo, op.

cit., p. 157-192.

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4.3 Falibilidade do Direito Positivo, Discricionariedade Delegada e

Função do Poder Judiciário

É possível enxergar duas formas de preenchimento das lacunas

normativas, de reconhecimento e axiológicas (que aqui chamaremos de

lacunas legislativas) pela decisão judicial. A primeira diz respeito aos

aspectos inerentes que descrevemos no Capítulo anterior. A outra está mais

relacionada ao que chamamos de “discricionariedade delegada”, isto é, a

utilização, pelo legislador, de cláusulas gerais para regular determinado

assunto, deixando transparecer seu intuito de aumentar a margem de

interpretação do aplicador317

-318

.

Essa segunda fórmula, embora reconhecida pelos cientistas que

descrevem o modelo civil law, não faz com que seja modificada a noção do

papel secundário da jurisprudência. Ao contrário, tendo sempre presente a

prevalência do raciocínio do direito privado enraizado no direito romano,

RENÉ DAVID afirma ser até mesmo desejável a abertura semântica na

produção legislativa319

:

317

O professor Oscar Vilhena Vieira coloca ainda uma terceira forma de enxergar as decisões judiciais: como

substitutiva da função que deveria estar sendo exercida pelo nosso Poder Legislativo: “O STF está hoje no

centro de nosso sistema político, fato que demonstra a fragilidade de nosso sistema representativo. Tal

tribunal vem exercendo, ainda que subsidiariamente, o papel de criador de regras, acumulando a autoridade

de intérprete da constituição com o exercício de poder legislativo, tradicionalmente exercido por poderes

representativos. Este texto mostra como o Supremo, de fato, tem exercido tais funções pela análise de alguns

de seus julgados mais recentes”. Supremocracia. Revista DIREITO GV, n. 8, p. 441-463, jul-dez/2008, p.

441. 318

A professora Misabel Derzi aponta, sob outra perspectiva, a crescente e necessária função dos juízes e das

decisões judiciais, de forma complementar ao direito positivo, diante do mundo contemporâneo: “Em uma

sociedade dinâmica e complexa, as fontes de produção das normas gerais, das expectativas normativas

tradicionais – como as leis – são cada vez mais solicitadas (pois conflitos novos e de natureza variada

provocam novas soluções), e, com isso, alimentam o sistema de novas informações e orientações que servirão

de subsídio para a decisão de conflitos. O sistema jurídico, cada vez mais, é um conjunto altamente complexo

(porém, mais reduzido do que a realidade social), de solução de conflitos. No centro do sistema está, como

quer Niklas Luhmann, o Poder Judiciário”. DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da

Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 13. 319

Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 82.

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146

A generalidade reconhecida à regra de direito explica que a tarefa

dos juristas seja essencialmente concebida nestes países como uma

tarefa de interpretação de fórmulas legislativas, ao inverso dos

países de common law [...]. A “boa regra do direito” não é

concebida aqui e lá do mesmo modo: [...] nos países da família

romano-germânica considera-se, pelo contrário, como desejável,

que a regra de direito deixe uma certa margem de liberdade ao juiz,

sendo a sua função unicamente estabelecer quadros para o direito e

fornecer ao juiz diretivas. O autor da regra de direito [...] não deve

ir muito longe e esforçar-se por regular pormenorizadamente,

porquanto ele é incapaz de prever, na sua variedade, todos os casos

concretos que se apresentarão na prática.

Mais à frente o mesmo autor afirma que é enganosa a percepção de que

encontrar a regra de direito aplicável é tarefa mais fácil num país de civil law

que num país de common law, considerando a ordenação sistemática das

normas gerais abstratas naquele modelo. Ao contrário, aponta claramente para

o papel que exercem os juízes diante da discricionariedade delegada pelo

legislador, ressaltando a insegurança dos destinatários do direito diante de

regras legais imprecisas320

:

[...] A vantagem que existe, por isto, em favor dos direitos da

família romano-germânico, não deve, contudo, iludir-nos. Ela é

largamente ilusória.

A concepção de regra de direito admitida nos países da família

romano-germânica não traz como consequência autorizar uma

previsão mais fácil da solução que comporta um determinado

litígio. Tudo o que restringe a especialização da regra de direito

aumenta automaticamente o papel de interpretação do juiz.

Formular a regra de direito em termos de uma excessiva

generalidade é fazer dela alguma coisa de menos preciso, e conferir

aos juízes uma maior liberdade na aplicação da regra de direito. Por

consequência, a segurança das relações jurídicas não aumenta pelo

fato de se tornar mais fácil descobrir a regra de direito aplicável;

antes se verificaria o contrário.

320

Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 83.

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147

A recomendação de legislar-se por meio de cláusulas gerais é algo

admissível para regulação das relações privadas, mas problemática quando

projetada para a regulação das relações de direito público321

. TERESA ARRUDA

ALVIM WAMBIER coloca essa problema na Apresentação do livro Direito

Jurisprudencial, sob sua coordenação, e que reúne textos voltados a discutir

exatamente a influência que a jurisprudência tem exercido nos países de civil

law322

:

Não se pretende, é evidente, que o trabalho dos tribunais tenha a

função de engessar o direito, já que, sabe-se, a evolução do direito,

no sentido de sua adaptação às necessidades sociais, acontece,

justamente, por obra dos tribunais. Mas como saber quando e em

que áreas? Esse é um problema raramente versado pela doutrina

brasileira, apesar de muitíssimo relevante. Talvez esta lacuna

doutrinária, que se pretende comece a ser preenchida por esta

obra coletiva – que, na verdade, nesse particular, é uma

provocação – seja responsável pela oscilação atordoante dos

nossos tribunais superiores, na área do direito tributário que é

justamente uma daquelas áreas em que a evolução do direito

não ocorre e não pode ocorrer por obra do trabalho dos juízes.

Basta pensar-se nos princípios da anterioridade e da estrita

legalidade.

Característica marcante dos Códigos e das leis escritas desses

complexos tempos em que vivemos é a inclusão cada vez mais

frequente de conceitos vagos e cláusulas gerais nos dispositivos

legais.

(destaques não são do original)

De qualquer forma, queremos chegar num outro ponto: ainda que

assumamos que a discricionariedade delegada é algo que pode existir na

regulação das relações privadas e que é inadmissível para a regulação das

relações entre Estado e particulares (como ocorre com a instituição e cobrança

de tributos), esse papel “criativo” da jurisprudência nunca deixará de existir.

321

A ideia de decidibilidade com base em princípios gerais, costume e analogia caso a lei seja omissa, foi

prevista, originalmente, na chamada Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto nº 4.657, de 1942). 322

Direito Jurisprudencial, cit., p. 6.

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148

Conforme expusemos no Capítulo 3 e na introdução deste Capítulo 4, a

falibilidade é inerente ao direito positivo e a produção de normas gerais e

abstratas, por mais específicas que sejam, não têm o poder de eliminar

vaguezas e ambiguidades, lacunas normativas e axiológicas que aparecem no

contingente processo de interpretação e aplicação das regras.

Assim, ainda que de forma não intencional, atendendo ao princípio da

legalidade em sentido estrito para atuação da Administração Pública (presente

na regulação das relações de direito público), esse mesmo papel

complementar que assume a jurisprudência quando se identificam cláusulas

gerais nas fórmulas legislativas será exercido pela decisão judicial diante da

falibilidade do direito positivo.

Tanto da perspectiva da discrionariedade delegada como do ponto de

vista da falibilidade do direito positivo é imperioso reconhecer a atuação da

jurisprudência na falta da lei e esse reconhecimento demonstra que a

hierarquização proposta pela teoria das fontes do direito é uma forma frágil de

equacionar esse problema diante do dogma da separação dos poderes.

A noção de Estado de Direito, fundada no princípio da legalidade e na

teoria da separação dos Poderes, não permite assumir a decisão judicial como

fonte imediata do direito. Por outro lado, é imperioso reconhecer que a lei não

é suficiente para equacionar todos os problemas concretos. Assim, surge a

ideia de hierarquia que pretende, ao colocar a lei acima da jurisprudência –

aquela fonte primária, essa fonte secundária – manter o dogma da separação

dos poderes e a noção de Estado de Direito baseado no princípio da

legalidade, sem deixar de dar conta de sua perceptível realidade limitadora.

Uma análise acurada dessa classificação hierárquica demonstra,

entretanto, que é incoerente manter a ideia de fonte primária simplesmente

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porque isso não permitiria reconhecer outras fontes (colocadas como

secundárias). Se existem outras fontes que colaboram na regulação de

condutas, atuando onde a lei não alcança, como a jurisprudência

classicamente o faz, esse mecanismo complementar não pode ser visto como

secundário e é a partir dessa constatação que proporemos a integração da

decisão judicial (norma individual e concreta) ao direito positivo (normas

gerais e abstratas) mediante a construção de uma Regra-Matriz de Incidência

Tributária “Dinâmica” (item 4.5).

4.4 Primariedade da Lei, Função dos Juízes do Modelo Civil law e

Inocuidade do Velho Debate entre Positivistas e Não-Positivistas

A ideia da lei como fonte primária para regulação de condutas nos

países de civil law faz com que o papel dos juízes, do ponto de vista teórico,

seja reduzido a um nível eminente burocrático.

Considerando que cabe ao Poder Legislativo, representante da

soberania e da vontade popular, a tarefa de elaborar as regras jurídicas, ao

Judiciário resta tão-só uma função residual de garantir que as leis sejam

cumpridas. Essa perspectiva do Poder Judiciário como a esfera estatal

legitimada à resolução de conflitos e aplicação das coações dentro dos limites

da lei, decorre imediatamente da teoria da separação dos poderes idealizada

por MONTESQUIEU323

-324

:

323

Montesquieu. De l’espirit des lois. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Paris: Éditions Garnier Frères, 1973,

t. 1, p. 9-19. Apud WEFFORT, Francisco (org.). Os Clássicos da Política. 10ª ed. São Paulo: Ática, 1998, 1º

volume. p. 174-175 e 180. 324

Interpretando Montesquieu, afirma Jean Cruet: “A missão do juiz consiste essencialmente em fazer nos

litígios particulares a aplicação exata das regras do direito consagrado; segundo a definição mui justa e mui

pitoresca de Montesquieu, o juiz é simplesmente a boa que pronuncia as palavras da lei, sem tentar moderar-

lhes a força nem o rigor”. A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis, cit., p. 29.

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150

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o

poder executivo das coisas que dependem dos direitos das gentes, e

o poder executivo das que dependem do direito civil.

Pelo primeiro, o príncipe, ou o magistrado, elabora leis para um

certo tempo ou para sempre, e corrige ou revoga as existentes. Pelo

segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas,

instaura a segurança, impede as invasões. Pelo terceiro, pune os

crimes, ou julga as pendências entre os particulares.

Chamaremos a este último o poder de julgar e ao outro

simplesmente o poder executivo do Estado.

A liberdade política num cidadão é aquela tranquilidade de espírito

que provém da opinião que cada um tem de sua segurança; e para

que se tenha essa liberdade, é preciso que o governo seja tal que um

cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de

magistratura, o poder legislativo e o poder executivo, não existe

liberdade; porque pode-se temer que o próprio monarca, ou o

próprio senado, faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Também não existe liberdade, se o poder de julgar não estiver

separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse

ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos

cidadãos seria arbitrário: pois o juiz seria legislador. Se estivesse

unida ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de

principais, ou de nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes:

o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os

crimes ou as pendências entre particulares.

Na maior parte dos reinos da Europa, o governo é moderado,

porque o príncipe, que detém os dois primeiros poderes, deixa a

seus súditos o exercício do último.

[...]

O poder de julgar não deve ser atribuído a um senado permanente,

mas sim exercido por pessoas extraídas do corpo do povo em certos

períodos do ano, da maneira prescrita pela lei, para formar um

tribunal que dure apenas o tempo necessário.

[...]

Se o poder legislativo deixa ao executivo o direito de prender

cidadãos que podem dar garantias de sua conduta, não há mais

liberdade, a menos que eles sejam detidos para responder, sem

demora, a uma acusação que a lei tenha tornado capital; caso em

que são realmente livres, uma vez que não estão sujeitos senão ao

poder da lei.

[...]

Mas os juízes da nação, como já dissemos, não são mais do que a

boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não

podem moderar-lhe nem a força nem o rigor.

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151

(destaques não são do original)

JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO descrevem esse

fenômeno e demonstram, ainda que não intencionalmente, a ingenuidade

dessa percepção325

:

[...] A função dos juízes dentro dessa tradição é a de interpretar e

aplicar a “lei”, como é tecnicamente definido em suas jurisdições.

Tanto o positivismo estatal como o dogma da separação de

poderes exigem que os juízes recorram apenas à “lei” para

decidir os casos. Supõe-se que qualquer seja qual for o

problema trazido a eles, eles serão capazes de encontrar

alguma lei para aplicar [...]. Eles não podem recorrer a livros e

artigos de juristas ou de decisões judiciais anteriores como lei.

(destaques não são do original)

De um lado, o positivismo jurídico326

assume as limitações do direito

positivo, reconhecendo a inevitável subjetividade no processo interpretativo,

mas não oferece nenhuma solução para o problema da imprecisão e das

lacunas legislativas. De outro lado, os jusnaturalistas se aproveitam daquelas

limitações, inserindo o direito natural como forma de solução alternativa

325

“[...] since the function of judges within that tradition is to interpret and to apply "the law" as it is

technically defined in their jurisdictions. Both state positivism and the dogma of separation of powers require

that judges resort only to "the law" in deciding cases. It is assumed that whatever the problem that may come

before them, they will be able to find some form of law to apply [...]. They cannot turn to books and articles

by legal scholars or to prior judicial decisions for the law”. Op. cit., p. 24-25. 326

Nas palavras de Norberto Bobbio: “A expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de

‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois

termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas

origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico – tanto é

verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo

jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela do direito natural. [...] Toda a tradição do

pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ [...]”. O

Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito (compiladas por Nello Morra). Trad. e notas Márcio

Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 15.

Para esclarecimentos precisos das distinções entre direito natural e direito positivo ver BOBBIO, Norberto. O

Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra. Trad. e notas Márcio

Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 22-23.

No Capítulo 2 desta tese fizemos uma breve distinção entre direito natural e direito positivo, entre

jusnaturalistas e positivistas (itens 2.1.4 e 2.1.5).

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quando faltar ao juiz o direito positivo (ainda que essa não seja a única

hipótese de utilização do direito natural – razão, valores e princípios – que

admitem os jusnaturalistas)327

.

Há um debate infindável entre as duas correntes teórica, admitidas

ainda variações entre elas desde o século XVII até os dias atuais (há

positivistas em sentido estrito e em sentido amplo, bem como não-positivistas

que não se apresentam como jusnaturalistas)328

.

Nossa intenção aqui não é tomar partido de uma ou outra corrente, mas

mostrar como esse debate pode ser prejudicial a alguns avanços teóricos

importantes. Em outros termos, ao integrar a decisão judicial ao direito

positivo, pretendemos simplesmente desviar desse debate que não nos parece

contribuir para a ideia de segurança jurídica (e para um avanço institucional

do direito, idealizado a partir de um efetivo Estado de Direito)329

.

Podemos admitir que os juízes, como pregam os positivistas, são

simples máquinas que fazem valer aquilo que está posto pelo Poder

Legislativo. Pois bem. Que sentido tem essa afirmação diante da falibilidade

do direito positivo? Como ainda podemos sustentar esse tipo de proposição

sabendo que a lei só ganha sentido no processo de positivação?

327

Essa oposição ainda é extremamente presente na teoria moderna do direito, resumida no debate entre

Robert Alexy e Eugenio Bulygin. In: ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensión de corrección del

derecho: la polémica sobre la relación entre derecho e moral. Trad. Paula Gaido. Colombia: Universidad

Externado de Colombia, 2001. (Serie de Teoria Juridica y Filosofia del Derecho)

Pablo Navarro aborda essa oposição sob o ponto de vista da teoria da decisão em Interpretación del Derecho

y Modelos de Justificación. Revista Escuela de Derecho, ano 6, n. 6, 2005. Disponível em:

http://repositoriodigital.uct.cl:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/216/RDD_0718-

1167_03_2005_6_art1.pdf?sequence=1. Acesso em: 26 out. 2013. 328

Para essas variações ver DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e

defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. (coleção Professor Gilmar Mendes). Em

termos específicos, ver: COMANDUCCI, Paolo; AHUMADA, Maria Ángeles; LAGIER, Daniel González.

Positivismo Jurídico y Neoconstitucionalismo. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2009. 329

Grande parte da teoria do direito, especialmente nos países de civil law, parece estar voltada a esse tema

da interpretação do direito.

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153

A teoria da moldura Kelseniana (assim como a Regra-Matriz de

Incidência Tributária) consegue dar conta dos problemas de imprecisão

semântica da linguagem e de lacunas de reconhecimento. De acordo com a

premissa de KELSEN, afirmam os positivistas que a lei oferece tão-somente

uma moldura e há inevitável liberdade do juiz, no processo de interpretação,

para preenchê-la. O único limite do juiz seria, portanto, a “moldura”. Agora,

que fazer com as lacunas normativas e as lacunas axiológicas? E diante das

lacunas de reconhecimento, será que essa moldura seria sustentável?

Isto quer dizer que, ainda que admitíssemos tão-somente juízes “boca

da lei”, a falibilidade do direito positivo não nos permitiria excluir o poder

criativo da decisão judicial. Diante disso, como conviver com a ideia de

Estado de direito fundado no pressuposto do princípio da estrita legalidade?

Em outros termos: como lidar com uma moldura constituída por normas

gerais e abstratas e um quadro desenhado por normas individuais e concretas

(ou até mesmo uma moldura construída a partir de normas gerais e abstratas

manipulada por normas individuais e concretas a partir do problema das

lacunas de reconhecimento)?

4.5 Norma Geral e Abstrata, Decisão Judicial e uma Nova Concepção de

Regra-Matriz de Incidência Tributária

Adiantamos no item 4.1 que existe uma diferença entre a Regra-Matriz

de Incidência Tributária construída unicamente a partir do direito positivo e a

Regra-Matriz de Incidência Tributária construída diante da perspectiva de um

caso concreto.

Uma situação específica induz o intérprete a dissolver vaguezas e

ambiguidades, a precisar o sentido de determinadas palavras e, com isso,

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construir uma Regra-Matriz de Incidência Tributária diferente daquela que se

pode deduzir da CF/88 e do CTN, por exemplo.

PAULO DE BARROS CARVALHO define a Regra-Matriz de Incidência

Tributária (doravante abreviada na sigla RMIT) como o mínimo irredutível do

deôntico, isto é, aquela estrutura de norma jurídica que reúna todos os

elementos imprescindíveis para regulação da conduta de pagar tributos330

.

Hipoteticamente, analisando o art. 153, III, da CF/88, o art. 43 do CTN,

e a Lei 7.713, de 1988, chegamos à conclusão de que as pessoas físicas

residentes no Brasil são obrigadas a pagar o Imposto de Renda sobre os

rendimentos do trabalho, mensalmente. Chamaremos essa RMIT de

“Estática”331

.

Diante dessa RMIT hipoteticamente construída, que chamaremos de é

possível saber se devemos pagar Imposto de Renda sobre o adicional de 1/3

devido em razão do período de gozo das férias? Diante dessa situação

específica, não encontramos a resposta naquela RMIT hipoteticamente

construída (Estática) porque os termos legais precisam de maior precisão

semântica: o valor recebido em razão do gozo das férias representa acréscimo

patrimonial?

Diante desse exemplo simplório, o que queremos pensar sobre é: aquela

RMIT Estática, delimitada pelas normas gerais e abstratas em vigor no direito

positivo brasileiro, é suficiente para regular a conduta do indivíduo diante da

situação concreta apresentada?

330

Direito Tributário: linguagem e método, cit., p. 146-150. 331

Esse termo foi sugerido pelo Professor Eurico de Santi durante discussão sobre esta tese em 26 de outubro

de 2013.

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A resposta é negativa, mas o problema não está no desenho da RMIT

Estática, que traz para dentro de si os limites do direito positivo332

: está na

falta de clareza da legislação. Não existe, na lei tributária, critério normativo

para resolver esse impasse (incide ou não incide)333

. Essa falha legislativa,

que pode ser identificada como uma lacuna de reconhecimento, não decorre,

igualmente, de incapacidade técnica do legislador, senão de sua inerente

condição humana de lidar tão-somente com os dados de fato que lhe são

apresentados no momento da atividade legislativa.

As lacunas de reconhecimento (item 3.4.1) são vaguezas e

ambiguidades identificadas no momento de aplicação da lei ao caso concreto.

Ou seja, pela sua própria definição, é impossível que sejam sanadas de

antemão pelo legislador. Isso faz com que a RMIT capaz de regular uma

conduta neste caso concreto dependa de uma definição do Poder Judiciário:

afinal, o 1/3 do salário recebido em razão do período de gozo de férias

representa acréscimo patrimonial tributável pelo Imposto de Renda? Com

essa definição teríamos o que chamamos de RMIT Dinâmica, ou seja, uma

RMIT que traz para dentro de si os atos de interpretação da RMIT Estática.

É neste sentido que propomos a integração das decisões judiciais,

enquanto normas individuais e concretas, ao direito positivo, enquanto

normas gerais e abstratas: para construção de uma RMIT Dinâmica334

. A

partir do momento que houver um posicionamento do Poder Judiciário sobre

332

Essa frase foi utilizada pelo professor Eurico de Santi em conversa realizada no dia 13 de outubro de

2013. 333

Como bem afirma o professor José Souto Maior Borges, “é impossível esgotar o significado de qualquer

norma de conduta” (Normas Gerais de Direito Tributário: velho tema sob perspectiva nova. Revista Dialética

de Direito Tributário, n. 213, p. p. 48-65, jun/2013, p. 61) e, neste sentido, toda regra geral e abstrata posta

estará sujeita às contingências interpretativas naturalmente incertas. Em outros termos, é ingênuo pensar em

critérios legais (normativos) para resolver contingências de interpretação. 334

Poderia ser essa uma forma de inverter a perspectiva da “norma de conduta” para a “conduta normada”,

proposta por Souto Maior Borges. Cf. BORGES, José Souto Maior. Um Ensaio Interdisciplinar em Direito

Tributário: superação da dogmática. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 211, p. 106-121, abr/2013, p.

109.

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156

essa questão, essa decisão judicial passa a corrigir uma falha do direito

positivo e, desta forma, garantir que uma RMIT aplicável ao caso concreto

possa ser construída.

Assim que o Poder Judiciário decidir que o valor pago pelo empregador

como adicional pelo período de férias ele deixa claro aos indivíduos qual a

RMIT Dinâmica, isto é, a norma que regula sua conduta. A partir daí, mas

somente a partir desse ponto, é que é dada ao indivíduo a liberdade de se

comportar como desejar, estando afeito ao direito esse plano eficacial. Antes

disso, tão-somente levando em conta uma RMIT construída a partir de normas

gerais e abstratas (Estática), desconsiderando a decisão judicial enquanto

norma individual e concreta, eu não tenho norma jurídica clara o suficiente

para regular a conduta e garantir a liberdade de decisão do indivíduo, além de

limitar o poder do Estado.

O exemplo que utilizamos é clássico por denotar um problema de

lacuna de reconhecimento. Exemplos como tributação de coligadas e

controladas no exterior, em que o STF identificou e preencher lacunas

axiológicas, deixam ainda mais patentes a existência de uma RMIT Dinâmica,

ou seja, que integre enunciados prescritivos de normas gerais e abstratas e de

decisões judiciais para representar o mínimo irredutível do deôntico.

Em 10 de abril de 2013, o STF concluiu o julgamento de dois Recursos

Extraordinários (RE nº 611.586 e RE nº 541.090) e uma Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADI nº 2.588) sobre o se chama de tributação de

lucros no exterior ou tributação de coligadas e controladas no exterior.

Em todos os casos, se questionava a constitucionalidade do art. 74 da

Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001:

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Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de

renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de

dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros

auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados

disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data

do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do

regulamento.

Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no

exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados

disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida,

antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização

previstas na legislação em vigor.

Não existem, neste artigo, outros critérios para determinação da

disponibilização que se chama “automática” de lucros auferidos no exterior

por empresas brasileiras que não (i) ser controlada ou (ii) ser coligada. Salvo

se a empresa brasileira não for controladora ou coligada da empresa

estrangeira, ela deve adicionar os lucros dessas companhias bases de cálculo

do IRPJ e da CSLL ao final de cada ano, independentemente de distribuição.

Considerando esses critérios legais, a Ministra Ellen Gracie proferiu

seu primeiro voto na ADI nº 2.588, julgando constitucional o art. 74 da MP nº

2.158 para as controladas e inconstitucional para as coligadas com base na

interpretação da ideia de disponibilidade econômica e jurídica da renda. Em

seguida, o Ministro Nelson Jobim, por sua vez, julgou constitucional para

ambos os casos, com base na ideia de acréscimo patrimonial propiciado pela

avaliação de investimentos em coligadas e controladas pelo método de

equivalência patrimonial. Os Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence,

Ricardo Lewandowski e Celso de Mello julgaram inconstitucional o

dispositivo por ter afrontado o conceito constitucional de renda, dada a

ausência de disponibilidade econômica e jurídica antes da efetiva distribuição

dos lucros pelas coligadas e controladas. Os Ministros Carlos Ayres Britto,

Eros Grau e Cezar Peluso julgaram constitucional o art. 74 da MP nº 2.158,

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por entenderem que pode haver tributação em bases universais sob o regime

de competência, que denota acréscimo patrimonial e disponibilidade dos

lucros auferidos no exterior por coligadas e controladas. Faltava o voto do

Ministro Joaquim Barbosa335

.

O Ministro Joaquim Barbosa houve por bem julgar, juntamente com a

ADI, outros dois Recursos Extraordinários (RE nº 611.586 e RE nº 541.090),

sendo que um deles estava sendo processado sob o rito da Repercussão Geral

previsto no art. 543-B do Código de Processo Civil336

. Na sessão de

julgamento de 3 de abril iniciou-se o debate sobre a questão com o voto do

Ministro Joaquim Barbosa que incluía o critério de estar ou não a controlada

ou coligada localizada em chamado “paraíso fiscal”.

Este é um típico caso de lacuna axiológica identificada no ato de

aplicação (ver item 3.4.2): ausência de critério relevante previsto na lei e cuja

existência, se tivesse sido identificada pelo legislador, poderia ensejar uma

solução normativa diferente.

A inclusão de um critério relevante não previsto no art. 74 da MP nº

2.158-35 pelo Ministro Joaquim Barbosa foi tão patente que criou um

verdadeiro imbróglio na divulgação do resultado da ADI nº 2.588,

considerando que os demais votos identificaram tão-somente lacunas de

reconhecimento (conceito de renda diante da tributação automática de lucros

335

Á época o STF estava com 10 ministros (e não 11), pois o Ministro Barroso ainda não havia sido indicado. 336

“Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a

análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal,

observado o disposto neste artigo.

§1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e

encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da

Corte. [...]

§3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais,

Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.

§4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento

Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.”

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auferidos no exterior). Havia 4 votos pela inconstitucional total, 4 votos pela

inconstitucionalidade total e o voto da Ministra Ellen Gracie, que julgava

parcialmente constitucional. Contudo, nenhum desses votos considerava o

critério “estar a coligada ou controlada sediada em paraíso fiscal”. Como,

então, somar o voto do Ministro Joaquim Barbosa aos demais e chagar ao

resultado mínimo de 6 votos para declaração de constitucionalidade ou

inconstitucionalidade337

do art. 74 da MP nº 2.158-35?

O resultado pragmático foi o seguinte:

Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria,

julgou parcialmente procedente a ação para, com eficácia erga

omnes e efeito vinculante, conferir interpretação conforme, no

sentido de que o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 não se aplica às

empresas “coligadas” localizadas em países sem tributação

favorecida (não “paraísos fiscais”), e que o referido dispositivo se

aplica às empresas “controladas” localizadas em países de

tributação favorecida ou desprovidos de controles societários e

fiscais adequados (“paraísos fiscais”, assim definidos em lei),

vencidos os Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Ricardo

Lewandowski e Celso de Mello. [...] Não participaram da votação

os Ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli e

Cármen Lúcia, por sucederem a ministros que votaram em

assentadas anteriores.

Para além da análise de compatibilidade do art. 74 da MP 2.158-35 à

CF/88, o Poder Judiciário introduziu um critério relevante que não estava

presente na lei. Por se tratar de Ação Direita de Inconstitucionalidade, esse

julgamento do STF é vinculante e tem efeito erga omnes, ou seja, equipara-se

a uma norma geral e abstrata338

. Neste sentido, seus enunciados prescritivos

337

Cf. Lei nº 9.868, de 1999, que regula a propositura e o julgamento das ADI:

“Art. 23. Efetuado o julgamento, proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da

disposição ou da norma impugnada se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis

Ministros, quer se trate de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de

constitucionalidade.” 338

Para aprofundar o estudo do tipo de norma jurídica caracterizada pela decisão em ADI e seus efeitos sobre

o direito positivo e as normas individuais e concretas, ver: MAIA, Robson. Controle de Constitucionalidade

da Norma Tributária: decadência e prescrição. São Paulo: Quartier Latin, 2005. capítulo IV.

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“misturam-se” aos enunciados prescritivos da norma geral e abstrata

originária sem grandes discussões.

Contudo, e se essa decisão tivesse sido tomada em um Recurso

Extraordinário, portanto, fosse simplesmente uma norma individual e

concreta, não teriam tais enunciados o poder de integrar a RMIT Estática? Se

continuarmos a história do julgamento acima, veremos que esse problema já

se coloca na prática.

O RE 611.586 tratava de um caso de controlada em paraíso fiscal e,

assim o STF simplesmente “transportou” o resultado da ADI ao julgamento

do recurso interposto pelo contribuinte (Coamo Agroindustrial

Cooperativa)339

:

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro

Joaquim Barbosa (Presidente), negou provimento ao recurso

extraordinário, vencido o Ministro Marco Aurélio

O RE 541.090 tratava de um caso de controlada fora de paraíso fiscal

(segundo o STF avaliou neste caso, pelo menos) e o mesmo sucedeu:

transportou-se o resultado da ADI nº 2.588 para julgar-se inconstitucional o

art. 74 da MP nº 2.158.

O RE 611.586 fora julgado pelo rito da Repercussão Geral, conforme

adiantamos. O RE 541.090 não. Entretanto, o RE 611.586 em nada inovou

quando ao resultado já proclamado na ADI (com efeitos de norma geral e

abstrata): o art. 74 da MP nº 2.158-35 é constitucional para controladas fora

339

Cf. http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3860092. Acesso em: 27

out. 2013.

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de paraísos fiscais340

. Já o resultado da RE 541.090 seria diferente, não fosse

o fato de o STF ter ordenado o retorno dos autos à origem para examinar a

compatibilidade do art. 74 da MP nº 2.158 com os tratados internacionais para

evitar a dupla tributação. Não fosse isso, o resultado que indicava a

deliberação era: o art. 74 da MP nº 2.518-35 é inconstitucional para as

controladas localizadas fora de paraísos fiscais.

Se esse tivesse sido o resultado do RE 541.090, poderiam tais

enunciados prescritivos ser utilizados na construção da RMIT? Em princípio,

alegar-se-ia que não, dada a qualidade de norma individual e concreta e,

portanto, sem efeitos prospectivos da decisão judicial. Contudo, se pensamos

que tais enunciados prescritivos complementam o sentido do direito positivo,

colaborando na delimitação da legalidade tributária (neste caso, criando

efetivamente um novo critério legal – estar a controladas ou coligada em

paraíso fiscal), não faz sentido ignorá-los para composição de uma regra de

conduta341

.

É neste sentido que propomos a construção de uma RMIT Dinâmica, ou

seja, que leva em consideração não somente enunciados prescritivos presentes

do direito positivo, mas também aqueles postos pelas decisões judiciais,

considerando o caráter complementar e imprescindível da jurisprudência para

a delimitação de normas de conduta.

340

Falaremos sobre o tipo normativo de uma decisão tomada em Recursos Extraordinários julgados sob o rito

da Repercussão Geral (geral e abstrata x individual e concreta x geral e concreta x individual e abstrata) no

Capítulo 5. 341

Lenio Luiz Streck e Georges Abboud, ao falarem sobre o sistema da common law, traduzem bem o que

estamos querendo dizer aqui: “os precedentes são “feitos” para decidir casos passados; sua aplicação em

casos futuros é acidental. [...] Na tradição jurídica do common law, a jurisprudência é tipicamente uma das

fontes do direito no sentido formal, ao lado do direito legislativo, constitucional e as regras do Executivo. Ou

seja, significa que, em determinados casos, as regras gerais e abstratas que os juízes utilizam para decidir as

controvérsias, admite, a um só tempo, uma dupla função institucional. 1) Em relação ao caso concreto, são as

rationes decidendi que justificam a decisão. 2) No que se refere a futuras controvérsias, podem vir a

constituir precedentes dotados de eficácia normativa”. Op. cit., p. 30 e 35.

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5 REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA E

UMA NOVA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA: INTEGRAÇÃO DO

DIREITO POSITIVO ÀS DECISÕES JUDICIAIS, A NOÇÃO DE

PRECEDENTE E OS MECANISMOS DE REPERCUSSÃO GERAL E

RECURSO REPETITIVO

Para que os enunciados prescritivos das decisões judiciais

(jurisprudência) possam integrar a RMIT Dinâmica, ou seja, possam ser

utilizados para regulação de condutas futuras, é imprescindível que (i) a

decisão judicial tenha sido tomada em último grau de jurisdição e (ii) haja

uma autovinculação342

do Poder Judiciário às suas decisões passadas343

.

Isso não deveria ser uma exigência normativa344

, pois decorre de todo o

raciocínio que expusemos até aqui: se a jurisprudência assume um status de

342

O termo autovinculação refere-se à ideia de vinculação do Poder Judiciário pelo próprio Poder Judiciário,

ou seja, de vincularem-se decisões judiciais posteriores a anteriores. O termo vinculação é utilizado aqui em

sentido mais amplo que autovinculação, isto é, para denotar a vinculação do Poder Executivo (atos

administrativos) e do Poder Judiciário (decisões judiciais) à jurisprudência. De qualquer forma, nos parece

que a vinculação pressupõe a autovinculação: se os próprios juízes não estiverem vinculados às decisões

anteriores, podendo mudar de entendimento a qualquer momento, fica prejudicada a observância da

jurisprudência como parâmetro para a produção de atos administrativos. 343

Esses dois requisitos que impomos para que os enunciados prescritivos da decisão judicial sejam aptos a

integrar-se aos enunciados prescritivos das regras tributárias são mais formais que materiais. Não

pretendemos adentrar nesta tese sobre o conteúdo das decisões judiciais que seria vinculante. Para este

assunto, ver BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a

aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. Nas considerações introdutórias, afirma o

autor: “[...] o que se pretende com esse estudo é fornecer parâmetros metodológicos para estabelecer, com

certo grau de objetividade, “como fazer coisas com precedentes judiciais”, e em especial como extrair

normas jurídicas desse tipo de fonte do Direito e aplicar essas normas jurídicas na justificação de decisões

posteriores. A teoria dos precedentes que se inicia nesta introdução busca institucionalizar [...] alguns

parâmetros, regras e procedimentos de argumentação que se destinam a tornar o mais racional possível a

prática de se seguir precedentes judiciais e utilizá-los como argumentos de justificação de decisões

concretas”. Ibidem, p. XXI. 344

De fato, a questão cultural que envolve a valorização das decisões judiciais, isto é, o reconhecimento de

que a jurisprudência é importante para garantir a orientação da conduta de indivíduos para além do processo

e, por isso, devem-se manter estabilizados os entendimentos proferidos, não viria somente com mudanças

legislativas. Neste sentido ver ABBOUD, Georges, op. cit., p. 493: “Ocorre que, após uma breve análise do

common law, e, respectivamente, da doutrina dos precedentes e do sistema do stare decisis, torna-se fácil

constatar a impossibilidade de pretender instituir esses mecanismos no Brasil, mediante alterações

legislativas. Isso porque o sistema de precedentes e o stare decisis não surgiram e se consolidaram no

common law repentinamente. Muito diversamente, são frutos do desenvolvimento histórico daquelas

comunidades, de modo tão evidente que, na Inglaterra ou Estados Unidos, o respeito ao precedente é possível

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complementaridade à lei, não se pode admitir sua pluralidade ou alternância

sob os argumentos de que (i) a lei é a mesma e o juiz está tão-só modificando

sua intepretação / aplicação ou (ii) porque os juízes são livres para decidir no

modelo civil law, inexistindo obrigação de autovinculação a entendimentos

anteriores.

Para que haja um ganho na implementação do Estado de Direito no

modelo civil law, aumentando o nível do que chamamos de legalidade

tributária, é imperativo que uma decisão judicial tomada em último grau de

jurisdição (irrecorrível) seja levada em consideração para a regulação de

condutas futuras, dado o seu caráter complementar ao direito positivo. Essa

perspectiva impõe a imediata revisão da noção corrente de que os juízes do

modelo civil law não precisam se ater às suas decisões passadas – e nem às

decisões de instâncias superiores – e podem, a qualquer momento, mudar suas

posições.

De certa forma, intencionalmente ou não, a reforma processual

brasileira que implementou os mecanismos de julgamento sob os ritos de

Recurso Repetitivo (STJ) e Repercussão Geral (STF) trouxe amarras

legislativas que acabam por garantir a vinculação das decisões judiciais

futuras às decisões judiciais passadas. Assim, embora essa vinculação possa

ser defendida diante da ausência de previsão normativa345

, é fato que a

existência de regra jurídica que criou mecanismos para sua garantia elimina

essa contingência, delimitando o exercício da competência jurisdicional.

mesmo inexistindo qualquer regra legal ou constitucional que explicite a obrigatoriedade de se seguir o

precedente, ou que lhe atribua efeito vinculante”. 345

A obrigatoriedade de seguirem-se os precedentes nos Estados Unidos da América, por exemplo, não

advém de nenhuma lei, mas da famosa doutrina do stare decisis. Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A

Emenda Constitucional 45/2004 e o Processo. Revista Dialética de Direito Processual, n. 33, p. 52-63,

dez/2005, p. 62.

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Esses novos mecanismos de estabilização da jurisprudência brasileira

favorecem a construção de uma noção de precedente mais específica e menos

intuitiva. Isto quer dizer que os julgamentos sob os ritos de Recurso

Repetitivo e Repercussão Geral podem ser ótimos critérios para qualificar

uma decisão judicial de precedente, fortalecendo essa noção nos países de

civil law.

5.1 Modelo Civil Law e Equivocada Outorga de Desvinculação das

Decisões Judiciais Posteriores

A afirmação de que a jurisprudência não é vinculante, ou seja, de que

os juízes de instâncias inferiores não estão obrigados a seguir decisões de

instância superiores, tampouco qualquer deles estaria obrigado a seguir suas

próprias decisões passadas, está presente tanto na dogmática brasileira como

na Ciência do Direito comparado (que descreve o modelo civil law)346

.

TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM afirma que a decisão judicial anterior

funciona no sistema jurídico-político brasileiro tão-somente como um

mecanismo de convencimento relativamente às decisões judiciais

posteriores347

:

[...] poderíamos entender a jurisprudência como uma fonte

psicológica do direito e não como uma fonte dogmática conforme

estamos tentando empreender.

346

É interessante como isso é uma postura mais teórica que prática. Como afirma José Carlos Barbosa

Moreira: “Na verdade, a jurisprudência nunca perdeu por completo o valor de guia para os julgamentos.

Ainda onde se repeliu, em teoria, a vinculação dos juízes aos precedentes, estes continuaram na prática a

funcionar como pontos de referência, sobretudo quando emanados dos mais altos órgãos da Justiça. Em

nosso país (sic), quem examinar os acórdãos proferidos, inclusive pelos tribunais superiores, verificará que,

na grande maioria, a fundamentação dá singular realce à existência de decisões anteriores que hajam

resolvido as questões de direito atinentes à espécie sub iudice. Não raro, a motivação reduz-se à enumeração

de precedentes: o tribunal dispensa-se de analisar as regras legais e os princípios jurídicos pertinentes –

operação a que estaria obrigado, a bem da verdade [...] – e substitui o seu próprio raciocínio pela mera

invocação de julgados anteriores”. Súmula, Jurisprudência, Precedente: uma escalada e seus riscos. Revista

Dialética de Direito Processual, n. 27, p. 49-58, jun/2005, p. 49-50. 347

Op. cit., p. 148-149.

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Denominamos fonte psicológica, porque apenas almeja

influenciar a mente do magistrado no julgamento de um outro

caso semelhante. A decisão judicial em um caso “x” não cria a

obrigatoriedade de decisão judicial idêntica em um caso “y”, igual

ou semelhante a “x”.

Quando, por exemplo, um advogado cita uma determinada

jurisprudência em sua petição inicial ou contestação, o faz por

razões de convencimento do magistrado (violência simbólica). Este

não fica obrigado a decidir o caso de acordo com o julgado.

Além do mais, não há qualquer norma no direito brasileiro que

obrigue um juiz a seguir as decisões de seus pares ou dos

tribunais, exceto no caso de controle abstrato de

constitucionalidade.

(destaques não são do original)

ANDRÉIA COSTA VIEIRA afirma categoricamente a ausência de

vinculação e autovinculação obrigatória da jurisprudência, sendo que a

manutenção de entendimentos jurisprudenciais em decisões judiciais

posteriores é tão-somente uma boa prática – não-obrigatória – nos países de

civil law348

-349

.

No mesmo sentido é o raciocínio de RENÉ DAVID, para quem a

oscilação de jurisprudência também é algo característico do sistema de civil

law, fazendo com que a decisão judicial em determinado sentido só tenha

valor enquanto cada juiz (independente) achá-la boa350

.

348

“A jurisprudência não é fonte que vincula, mas é praxe nos tribunais manter-se uma decisão, reafirmando

a certeza do direito. Entretanto, qualquer juiz, de qualquer instância, pode julgar de forma diversa do que já

foi decidido. Nada o impede de fazê-lo. É exatamente essa liberdade de decisão, essa desvinculação, que

caracteriza o sistema jurisprudencial dos países do sistema Romano-Germânico”. Op. cit., p. 67. 349

No mesmo sentido, RODRÍGUES, Javier Solís. La Jurisprudencia en las tradiciones jurídicas. In:

SALGADO, David Cienfuegos; OLVERA, Miguel Alejandro López (orgs.). Estudios en homenaje a Don

Jorge Fernandéz Ruiz. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005, p. 326-327. Apud

STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, op. cit., p. 31-32: “Convém ressaltar que a jurisprudência se

apresenta com força normativa inferior em relação à legislação, uma vez que as regras advindas dela seriam

mais frágeis, porque suscetíveis de serem abandonadas ou modificadas a qualquer momento”. 350

“As ‘regras de direito’ estabelecidas pela jurisprudência, em segundo lugar, não têm a mesma autoridade

que as formuladas pelo legislador. São regras frágeis, suscetíveis de serem rejeitadas ou modificadas a todo o

tempo, no momento do exame duma nova espécie. [...] É sempre possível uma mudança da jurisprudência,

sem que os juízes estejam obrigados a justificá-la. Ela não ameaça os quadros, nem os próprios princípios do

direito. A regra jurisprudencial apenas subsiste e é aplicada enquanto os juízes – cada juiz – a considerarem

como boa.”. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 120.

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Essa noção parece completamente autodestruidora: o princípio da

legalidade e o dogma da separação dos poderes fortalecem a ideia de que a lei

limita os Poderes Executivo e Judiciário. Contudo, assumindo a premissa de

falibilidade do direito positivo (Capítulo 3), a lei não só não serve para limitar

a atuação judicial, como a ação judicial é que assume a função de delimitar a

lei351

. Neste cenário, a inexigência de autovinculação, ao mesmo tempo em

que pretende firmar, destrói a separação dos poderes e a posição

hierarquicamente superior da lei. Se a lei não limita a atuação judicial, mas,

ao contrário, a decisão judicial é que delimita a lei, permitir a oscilação da

jurisprudência é eliminar o único mecanismo de controle do Poder

Judiciário352

e, em última análise, de efetiva implementação do Estado de

Direito.

Considerando o papel da decisão judicial diante da falibilidade do

direito positivo, é imperioso admitir a estabilização do sentido da lei por ela

criado353

. A manutenção de entendimentos anteriores a julgados posteriores

351

Vale aqui a transcrição de um trecho muito interessante de “Uma Teoria da Justiça”: “Em qualquer caso

particular, se as regras forem algo complicadas e pedirem interpretação, pode ficar fácil justificar uma

decisão arbitrária. Mas, à medida que o número de casos aumenta, torna-se mais difícil construir justificações

plausíveis para julgamentos tendenciosos”. RAWLS, John, op. cit., p. 260. 352

Teresa Arruda Alvim Wambier também ensaia essa percepção na Apresentação da obra por ela

coordenada, Direito Jurisprudencial: “A apreensão e o domínio da complexa técnica de apreender a essência

das situações normatizadas é o único caminho para que viabilizemos a aplicação de técnicas de

uniformização de decisões para casos disciplinados por normas jurídicas em que haja esses parâmetros

flexíveis, para que, assim, cada juiz não exerça à sua maneira, a liberdade que a aplicação desses dispositivos

enseja. Com isso, queremos dizer que a uniformização, em certa medida, é sempre desejável, mesmo em

situações que não sejam absolutamente idênticas [...]. Mas para que se fazer a uniformização da

jurisprudência, com o objetivo de preservar o princípio da igualdade, gerando, portanto, previsibilidade, em

torno, por exemplo, do conceito de “cláusula abusiva”, é necessário que se aceite e se compreenda que cada

juiz não pode ser sua opinião pessoal a respeito do que seja uma cláusula abusiva: uma vez pacificada a

jurisprudência em torno de um caso de abusividade, a qualificação aí definida passa a fazer parte do direito.”

In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial, cit., p. 6. 353

Além de garantir previsibilidade, a manutenção de entendimentos jurisprudenciais garante o princípio da

igualdade, evitando que casos similares sejam decididos de forma distinta. Para aprofundar essa ideia entre

igualdade e respeito aos precedentes, ver CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. A Força dos Precedentes no

Moderno Processo Civil Brasileiro. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial,

cit., p. 553-673. Schauer também chama a atenção para esse aspecto da igualdade, mas coloca-o como

pressuposto intuitivo para a manutenção de entendimentos anteriores: “It is worth noting at the outset that

precedent, although arguably concentrated in and more important in law than in other decision-making

domains, and more important in common law legal systems than in their civil law counterparts, is by no

means unique to legal decision-making. Younger children who demand to be treated just as their older

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serviria tanto como mecanismo de autovinculação (controlando o próprio

Poder Judiciário) como de vinculação (controlando, mais precisamente,

também o Poder Executivo).

Diante disso, é preciso rever a falsa a percepção de que somente nos

países de common law os juízes criam o direito354

-355

e, por isso, estariam

vinculados, em suas decisões posteriores, às decisões tomadas em casos iguais

ou semelhantes anteriores. Essa premissa de que as decisões posteriores não

precisariam guardar coerência com as decisões anteriores no modelo civil law

não pode ser aceita diante de tudo o que expusemos nos Capítulos 3 e 4. A

estabilização de sentido pela manutenção de entendimentos anteriores no

julgamento de casos concretos futuros já é, assim como deveria ser,

preocupação também nos países de civil law356

.

É interessante notar como os modelos de civil law e common law vêm

se aproximando, exatamente mediante a integração desses mecanismos de

regulação de condutas (lei e decisão judicial), conforme observa RENÉ

DAVID357

:

Países de direito romano-germânico e países de common law

tiveram uns com os outros, no decorrer dos séculos, numerosos

contatos. Em ambos os casos, o direito sofreu a influência da moral

cristã e as doutrinas filosóficas em voga puseram em primeiro

plano, desde a época da Renascença, o individualismo, o

liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A common law

conserva hoje a sua estrutura, muito diferente da dos direitos

siblings were treated at the same age are relying on arguments from precedent, as are the consumers who

insist on being given the same prices and terms as those offered to prior customers […]”. Precedent, cit., p. 1. 354

SOARES, Guido Fernando Silva, op. cit., p. 39. 355

É claro que os juízes, nos países de civil law, também criam direito, já que produzem normas individuais e

concretas, mas a acepção de “criar” utilizada na frase anterior está vinculada à produção de regras em nível

geral e abstrato. Nas palavras de Tárek Moysés Moussallem, “Como toda aplicação do direito é criação do

direito e vice-versa, não resta outra saída senão afirmarmos que os juízes criam direito”. Op. cit., p. 151. 356

Para explorar essas preocupações com a influência da jurisprudência nos países de civil law, Teresa

Arruda Alvim Wambier coordenou a produção da obra Direito Jurisprudencial, editado pela Revista dos

Tribunais em 2012. 357

Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo, cit., p. 20.

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romano-germânicos, mas o papel desempenhado pela lei foi aí

aumentando e os métodos usados nos dois sistemas tendem a

aproximar-se; sobretudo a regra de direito tende, cada vez mais, a

ser concebida nos países de common law como o é nos países da

família romano-germânica. [...].

(destaques não são do original)

A única percepção que ainda falta aos cientistas do modelo civil (e não

aos sistemas jurídicos em si) é de que a jurisprudência não mais ocupa um

papel secundário no sentido hierárquico, mas complementar às normas gerais

e abstratas. De fato, ainda que se admita a importância da jurisprudência, o

que já é indiscutível, as consequências desse reconhecimento ainda têm que

ser revistas: de nada adianta admitir a função primordial das decisões judiciais

se, por outro lado, se continuar afirmando, por exemplo, sua livre

mutabilidade, mantendo-se o mito da hierarquia das fontes, como faz o autor

acima referido358

:

As modificações podem mais facilmente incidir, em especial, sobre

as “regras secundárias” do direito: as viragens da jurisprudência

não atingem os fundamentos do sistema, não apresentam o mesmo

perigo e não criam as mesmas incertezas que nos países que

desconhecem a regra de direito do tipo admitido no seio da família

romano-germânico.

(destaques não são do original)

A inerente falibilidade do direito positivo impõe o reconhecimento do

papel complementar da jurisprudência para o desenho das regras jurídicas de

forma efetiva e não mais mascarada, com o objetivo de manter a aparente

noção de legalidade e Estado de Direito fundados na norma geral e abstrata.

358

DAVID, René. Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo, cit., p. 85.

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5.2 Uma Noção Específica e Conclusiva de Precedente

A noção de precedente utilizada pelos juízes e por alguns cientistas do

direito no Brasil359

equivale à noção de decisão – ou decisões – que

precede(m) àquela que está sendo tomada. Dito de outro modo, a referência a

um precedente relaciona-se com uma ou mais decisões judiciais passadas,

cujo objeto litigioso seria similar àquele enfrentado no presente360

. Desta

perspectiva, uma decisão judicial é qualificada de precedente a posteriori, ou

seja, a partir do momento em que uma decisão judicial posterior lhe faz

referência.

A utilização do precedente nestes termos tem uma única função muito

clara: outorgar força argumentativa ao pedido do autor ou réu, recorrente ou

recorrido, ou servir como justificativa para a decisão de um caso concreto

posterior. Em ambos os casos direciona implicitamente o raciocínio para a

ideia de autovinculação do Poder Judiciário361

.

Ao analisar alguns julgados do STF e do STJ percebe-se claramente a

utilização do termo “precedente”362

naquele sentido: decisão tomada num

359

Neste sentido ver: RAMIRES, Maurício, op. cit., p. 27-33; PEROBA, Luiz Roberto; MARTONE,

Rodrigo. A Importância dos Precedentes dos Tribunais e a Insegurança Jurídica do Sistema Tributário

Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 217, p. 69 e seguintes, out/2013. 360

Teresa Arruda Alvim Wambier coloca que, “nos sistemas de civil law, normalmente precedentes têm seu

valor num conjunto de outras decisões no mesmo sentido, que demonstram haver certo consenso a respeito

da matéria decidida” (Cf. Precedentes e Evolução no Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.),

Direito Jurisprudencial, cit., p. 16), entretanto, a falta de sistematização empírica de todas as decisões dos

tribunais pode fazer com que determinado conjunto de decisões em um sentido, coletadas pelo jurista para

valorizar seu argumento ou pelo juiz para fundamentar sua decisão, não seja, necessariamente representativa

de uma pacificação de sentido. A autora continua afirmando que, “excepcionalmente, no civil law, faz-se

menção a uma decisão judicial, qualificando-a como um precedente. Cf. Precedentes e Evolução no Direito.

In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.), Direito Jurisprudencial, cit., p. 16. 361

Teresa Arruda Alvim Wambier vê ainda no conceito de precedente a perspectiva temporal, que muito se

parece com essa perspectiva implícita de vinculação que enxergamos: “Claro que a noção de precedente só

tem razão de ser se se projeta no futuro a ideia de que este deve servir de parâmetro ou se isso efetivamente

ocorre. Ou seja, só a perspectiva temporal, tanto no civil law quanto no common law é que explica ver-se, na

decisão, um precedente”. Cf. Precedentes e Evolução no Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim

(coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 16. 362

A título de exemplo ver:

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170

caso anterior, que por razões não necessariamente expostas, e pela (presumida

ou não) similaridade fática, deve ser seguida no caso presente363

.

A investigação sobre a noção de “precedente” sempre vem

acompanhada de análise comparativa de nosso modelo civil law ao modelo

common law, e os critérios para sua definição também não escapam daqueles

utilizados no modelo common law364

. O objetivo central desta tese não é

construir um conceito de precedente, tampouco fazer uma análise crítico-

comparativa dessa noção nos modelos de civil law e common law365

. A noção

de precedente que utilizarei aqui, tão-somente de forma conclusiva, está

STF: Agravos Regimentais nos Agravos de Instrumento nº 853.189 – julgado em 08/10/13 – e nº 859.494 –

julgado em 01/10/13; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 744.994, julgado em

24/05/13; Agravo Regimental na Reclamação nº 12.501, julgado em 15/09/13. Em pesquisa realizada no site

do STF por acórdãos contendo os termos “tributário” e “precedente”, foram encontradas 2.558 decisões.

STJ: Agravos Regimentais nos Recurso Especiais nº 1.323.280 – julgado em 15/10/13, nº 1.385.360 –

julgado em 17/10/13, e nº 364.380 – julgado em 01/10/13; Recurso Especial nº 1.385.172, julgado em

17/10/13. Em pesquisa realizada no site do STJ por acórdãos contendo os termos “tributário” e “precedente”,

foram encontradas 20.651 decisões. 363

Teresa Arruda Alvim Wambier pontua um importante efeito dessa ausência de critério específico para

determinar-se o conceito de precedente e, com isso, valorizar-se a manutenção de entendimentos: “O fato é

que no Brasil e em tantos outros países, como se verá, [...], a dispersão excessiva da jurisprudência num

mesmo momento histórico e a mudança brusca de entendimentos jurisprudenciais que já estavam

absolutamente pacificados chocam e comprometem profunda e irremediavelmente a segurança jurídica

(uniformidade, estabilidade, previsibilidade e isonomia)”. Apresentação. In: WAMBIER, Teresa Arruda

Alvim. Direito Jurisprudencial, cit., 2012, p. 5. 364

Neste sentido ver: BUSTAMENTE, Thomas da Rosa de, op. cit.; TARANTO, Caio Márcio Gutterres.

Precedente Judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010;

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do Precedente Judicial à Súmula Vinculante. Curitiba: Juruá, 2006;

ABBOUD, Georges, op. cit., p. 491-552; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe, op. cit., p. 553-673;

MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação Crítica entre as Jurisdições de Civil Law e de Common Law e a

Necessidade de Respeito aos Precedentes no Brasil. Revista de Processo, ano 34, n. 172, p. 175-232,

jun/2009. 365

No sistema de common law, embora o termo “precedente” seja por vezes utilizado na mesma acepção da

doutrina do stare decisis, ambos se referindo à aplicação de entendimentos anteriores a casos julgados

posteriormente, é possível diferenciá-los. A doutrina do precedente foi o encaminhamento natural dos

sistemas jurídicos que seguiram o modelo inglês, além da própria Inglaterra. Considerando que decisão

judicial era o instrumento regulador de condutas, a necessidade de previsibilidade fez surgir a doutrina dos

precedentes (utilização de parâmetros de decisões anteriores para julgamento de casos posteriores). A

doutrina do stare decisis propriamente dita surge mais tarde, “mediante uma sistematização das decisões, que

distinguia a elaboração/construção (holding) do caso que consistiria no precedente e seria vinculante para

casos futuros, e o dictum, que consistia na argumentação utilizada pela corte, dispensáveis à decisão e, desse

modo, não eram vinculantes”. Na doutrina dos precedentes era necessário haver um corpo de decisões no

mesmo sentido para se outorgar a obrigação (não legal, mas cultural) de segui-lo. Na atual doutrina do stare

decisis, basta uma decisão. Cf. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, op. cit., p. 36-42. Informações ainda mais

profundas sobre a doutrina dos precedentes e o stare decisis podem ser encontradas em: LIMA, Augusto

César Moreira, op. cit., p. 19-68.

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171

voltada eminentemente ao sistema jurídico-político brasileiro e leva em

consideração as premissas assentadas até o momento.

O termo “precedente”, neste trabalho, significa a decisão judicial cujos

enunciados prescritivos estão aptos se integrar aos enunciados prescritos do

direito positivo, formando aquilo que chamamos de RMIT Dinâmica. Em

outros termos, um precedente, neste sentido, há de ser capaz de regular

condutas futuras.

Dois são os critérios para a formação de um precedente neste sentido:

irrecorribilidade e autovinculação da decisão judicial366

.

Uma decisão judicial não submetida ao último grau de jurisdição não

tem aptidão para delimitar o sentido das normas gerais e abstratas, pois ainda

existe um órgão competente que, colocando termo ao conflito, pode decidir de

forma diferente.

De outro lado, só faz sentido utilizar-se uma decisão judicial como

critério de interpretação, delimitando mais precisamente o direito positivo, se

ela for seguida em casos posteriores submetidos à apreciação do Poder

Judiciário. Não existe qualquer ganho para a legalidade tributária e o Estado

de Direito a utilização de decisões judiciais que não possuam estabilidade ao

longo do tempo.

366

Neste sentido, a atribuição da qualificação de “precedente” a uma decisão judicial pode ser feita de plano

e não posteriormente, como o faz Michelle Taruffo, que concebe a característica de “precedente” a uma

decisão judicial somente a partir da decisão judicial posterior que a aplica: “O precedente fornece uma regra

[...] que pode ser aplicada como critério de decisão no caso sucessivo em função da identidade ou, como

acontece de regra, da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. Naturalmente, a

analogia das duas fattispecie não é determinada in re ipsa, mas é afirmada ou excluída pelo juiz do caso

sucessivo conforme este considere prevalentes os elementos de identidade ou os elementos de diferença entre

os fatos dos dois casos. É, portanto, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o

precedente e desta forma – por assim dizer – ‘cria’ o precedente.”. Precedente e giurisprudenza. Napoli:

Editoriale Scientifica SRL, 2007, p. 13-14, apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução

no Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 16.

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172

O mecanismo de vinculação elimina a natural subjetividade de um novo

juízo proposicional acerca do que as leis significam, conforme explicita

FREDERICK SCHAUER, com a clareza que lhe é peculiar367

:

É a própria característica de “ser do passado” das decisões

anteriores, e não necessariamente a visão atual do decisor sobre a

correção dessas decisões anteriores, que dá àquelas decisões

anteriores a sua autoridade.

É exatamente essa impossibilidade de uma nova interpretação sobre

determinada regra tributária que o mecanismo de vinculação procura garantir,

objetivando-se a estabilização das relações constituídas sob a vigência

daquele precedente368

.

5.3 Mecanismos de Repercussão Geral e Recurso Repetitivo, Norma

Geral e Concreta e Regra-Matriz de Incidência Tributária Dinâmica

Em 8 de dezembro de 2004 foi promulgada a Emenda Constitucional nº

45 alterou o art. 102 da CF/88, para incluir o §3º que dispõe:

§3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a

repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso,

nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do

recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois

terços de seus membros.

Segundo afirma JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, essa e outras

medidas que vieram com a EC 45 decorrem da “generalizada insatisfação

367

Tradução livre do seguinte trecho: “It is the very ‘pastness’ of previous decisions, and not necessarily the

current decision maker's view of the correctness of those previous decisions, that gives the previous decisions

their authority”. Precedent, cit., p. 1. 368

Sobre a dificuldade de elaborar um precedente tendo-se em mente que ele será aplicado a situações

futuras, ver: FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Trad. Plauto Faraco de Azevedo.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1976. p. 37-38.

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com o desempenho da máquina judiciária”369

. Especificamente quanto à

referida alteração, afirma o professor da Faculdade de Direito da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Desembargador aposentado do

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que ela tem o objetivo de obrigar o STF

a analisar questões de cunho mais restrito370

:

A norma, de clara inspiração norte-americana, encontra um

antecedente no próprio Direito brasileiro: tempo houve, sob outro

regime constitucional, em que a admissibilidade do recurso

extraordinário se subordinava, em certas hipóteses, à demonstração

da então denominada “relevância da questão federal”. A idéia é a

mesma, se bem que consagrada agora sob forma algo diversa. O

que se pretende é evitar que o Supremo Tribunal Federal tenha

de ocupar-se de questões de interesse visto como restrito à

esfera jurídica das partes do processo, em ordem a poder

reservar sua atenção e seu tempo para matérias de mais vasta

dimensão, para grandes problemas cuja solução deva influir

com maior intensidade na vida econômica, social, política do

País.

(destaques não são do original)

369

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A Emenda Constitucional 45/2004 e o Processo”, cit., p. 53. Na

conclusão do artigo, continua ainda afirmando que “[...] a atenção do legislador se concentrou, acima de tudo,

no aspecto da duração dos processos, vista como excessiva. [...]. A lentidão da máquina judiciária

inegavelmente constitui problema sério, que aliás nada tem de peculiar ao Brasil, senão que aflige até países

do chamado primeiro mundo, alguns dos quais talvez não desfrutem, no particular, situação melhor que a

nossa. [...]. Seja como for, assente que a aceleração do ritmo processual representou a prioridade da Emenda,

impende verificar as estratégias de que ela se valeu para perseguir tal resultado”. Ibidem, p. 59-60. 370

Ibidem, p. 56. Em sua conclusão, o autor afirma que essa medida específica só aparentemente desafoga o

STF: “Decerto se conta, como fator de alívio para o Supremo Tribunal Federal, com a exigência da

“repercussão geral das questões discutidas” no recurso extraordinário (art. 102, §3º). Raciocinemos, contudo,

em perspectiva prática e com os pés firmes no chão. O recurso terá de submeter-se à apreciação do Plenário

do Tribunal, visto que, para negar-lhe conhecimento, serão necessários os votos de, no mínimo, dois terços

dos Ministros. Com isso já se introduz uma complicação no processamento, em confronto com o regime

atual, em que a competência para julgar o recurso extraordinário cabe, em princípio, a qualquer das Turmas

(Regimento Interno, art. 9º, nº III), e só por exceção sobe ela ao Tribunal Pleno. Adite-se que, à luz do art.

93, nº IX, da Carta da República, não alterado pela Emenda, será, por força, pública e motivada a decisão

sobre o cumprimento ou descumprimento do requisito da “repercussão geral”. Fica pois afastada a vantagem

– se na verdade é lícito (ponto mais que duvidoso) chamar-lhe assim – de que goza, no particular, a Supreme

Court norte-americana, onde é secreta e em regra sem motivação divulgada a deliberação sobre se a petition

for certiorari será examinada no mérito”. Ibidem, p. 60-61. Esse problema foi resolvido pela regulamentação

prescrita atualmente no art. 543-A do CPC.

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Foi a Lei nº 11.418, de 2006, que regulamentou a admissibilidade de

recursos extraordinários por meio da demonstração da existência de

repercussão geral, incluindo o art. 543-A ao Código de Processo Civil371

:

Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível,

não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão

constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos

termos deste artigo.

§1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência,

ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico,

político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos

da causa.

§2º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para

apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da

repercussão geral.

§3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar

decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do

Tribunal.

§4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no

mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso

ao Plenário.

§5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para

todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos

liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento

Interno do Supremo Tribunal Federal.

§6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a

manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos

termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§7º A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata,

que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.

Essa mesma Lei, além de regulamentar a admissão dos recursos

extraordinários, também implementou mecanismo de vinculação das decisões

judiciais do STF, por meio da prescrição do art. 543-B do CPC:

Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com

fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão

371

Informações detalhadíssimas sobre o projeto dessa Lei 11.418 e de outras que regulamentaram as medidas

trazidas pela EC 45 podem ser encontradas no Relatório da Comissão Mista Especial para a Reforma do

Judiciário criada no âmbito do Congresso Nacional. Disponível em:

http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=40131&tp=1. Acesso em: 3 nov. 2013.

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geral será processada nos termos do Regimento Interno do

Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.

§1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos

representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo

Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento

definitivo da Corte.

§2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos

sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.

§3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos

sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de

Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los

prejudicados ou retratar-se.

§4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo

Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou

reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.

§5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá

sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos,

na análise da repercussão geral.

(destaques não são do original)

Posteriormente, a Lei nº 11.672, de 2008, introduziu mecanismo similar

aos julgamentos do STJ, por meio da redação do art. 543-C do CPC, chamado

de “Recurso Repetitivo”:

Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com

fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será

processado nos termos deste artigo.

§1º Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais

recursos representativos da controvérsia, os quais serão

encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos

os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do

Superior Tribunal de Justiça.

§2º Não adotada a providência descrita no §1º deste artigo, o relator

no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a

controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já

está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos

tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a

controvérsia esteja estabelecida.

§3º O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no

prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito

da controvérsia.

§4º O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior

Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá

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admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse

na controvérsia.

§5º Recebidas as informações e, se for o caso, após cumprido o

disposto no §4º deste artigo, terá vista o Ministério Público pelo

prazo de quinze dias.

§6º Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida

cópia do relatório aos demais Ministros, o processo será incluído

em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com

preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam

réu preso e os pedidos de habeas corpus.

§7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os

recursos especiais sobrestados na origem:

I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido

coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou

II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na

hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior

Tribunal de Justiça.

§8º Na hipótese prevista no inciso II do §7º deste artigo, mantida a

decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de

admissibilidade do recurso especial.

§9º O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda

instância regulamentarão, no âmbito de suas competências, os

procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso

especial nos casos previstos neste artigo.

Os julgamentos realizados sob os ritos de Repercussão Geral e Recurso

Repetitivo, além de atenderem aos anseios de celeridade e economia

processual372

, introduzem formas pragmáticas de autovinculação do Poder

Judiciário.

O art. 543-B, §3º, do CPC, prescreve claramente uma vinculação das

instâncias inferiores às decisões tomadas pelo STF. Para manter o princípio

do livre-convencimento, admite uma relativização daquela vinculação

obrigatória, mas garante a manutenção de seu entendimento aos casos

posteriores por meio do §4º: no caso dos precedentes firmados pelo rito de

372

Para aprofundar o estudo da questão da celeridade processual na tutela jurisdicional ver MARCATO,

Antonio Carlos. Crise da Justiça e Influência dos Precedentes Judiciais no Direito Processual Brasileiro.

Tese de Concurso ao Cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil do Departamento de Direito

Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. p. 9-36.

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Repercussão Geral, ainda que os tribunais de segunda instância possam

manter suas decisões divergentes daquelas proferidas pelo STF, chegando ao

STF terá esse caso a mesma decisão que fora tomada sob aquele rito.

No caso do STJ, embora haja a mesma vinculação, observada a

possibilidade de o juiz de 2ª instância manter seu posicionamento divergente,

não existe, diretamente na lei processual, mecanismo que garante a

manutenção da decisão anterior por julgamento monocrático. Na hipótese de

o juiz de 2º grau manter sua decisão divergente do precedente firmado pelo

STJ, prescreve o §8º do art. 543-C tão-somente que o tribunal deverá fazer o

exame de admissibilidade do recurso. É omisso o CPC, contudo, quanto ao

procedimento que será seguido pelo STJ quando tal recurso for para lá

remetido.

É a atual Resolução nº 17, de 2013373

, publicada pelo STJ com

fundamento de validade em seu Regimento Interno, que estabelece

indiretamente que esse tribunal deverá seguir seu entendimento anterior:

Art. 1º Compete ao presidente do Tribunal, antes da distribuição

dos feitos aos ministros:

I – negar seguimento ou provimento a agravos em recurso especial,

a recursos especiais e a outros feitos que sejam:

b) contrários a matéria sumulada, julgada em recurso representativo

de controvérsia ou consolidada por jurisprudência pacificada pelo

Tribunal;

II – dar provimento a recursos interpostos contra decisões

contrárias a matéria julgada em recurso representativo de

controvérsia ou consolidada por jurisprudência já pacificada pelo

Tribunal;

[...]

373

Essa resolução “dispõe sobre a competência do Presidente do Superior Tribunal de Justiça para, nas

hipóteses que especifica, julgar os feitos antes da distribuição aos ministros e dá outras providências”.

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Por ostentar, pragmaticamente, o caráter de generalidade (ter alcance

não só às partes do processo, mas a sujeitos indeterminados submetidos

àquela situação concreta de dúvida no futuro), os enunciados prescritivos de

uma decisão judicial tomada pelos ritos de Repercussão Geral e Recurso

Repetitivo passam a ter aptidão para integrar uma norma jurídica abstrata

(regular condutas futuras) não só em decorrência da teoria aqui proposta, mas

por imposição normativa do próprio direito positivo.

Considerando que os mecanismos processuais acima expostos tendem a

vincular decisões futuras às decisões passadas, faz todo o sentido a utilização

dos enunciados prescritivos nessas normas gerais e concretas para precisar o

sentido da RMIT Estática (construída tão-somente a partir de normas gerais e

abstratas), construindo-se uma RMIT Dinâmica, mais precisa e,

consequentemente, com maior capacidade de orientar a conduta dos

indivíduos (Fisco e Contribuintes)374

.

5.4 Breve Análise das Críticas à Aplicação de Precedentes no Brasil

ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, ao apresentar o livro “Crítica à

Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro”, do juiz MAURÍCIO RAMIRES,

pontuou que375

:

Esta fusão de tradições (civil e common law) não pode ser aceita

como um simples encontro, muito menos como um mero diálogo

de fontes, pois representa a mudança da própria maneira de

compreensão do Direito, transformado em um acessório

econômico, e consumível. O risco de tal proceder e que se pode

374

Outros ganhos desse novo status da jurisprudência seria a tendência de uniformização da jurisprudência,

evitando decisões contraditórias, o que garante efetivamente a isonomia. Além disso, ao “padronizar-se”

“entendimentos a respeito de teses [...] e adiantar ao utente, já no primeiro grau, ou quanto antes, a solução

que ele haveria de receber anos depois. Com isso se privilegia o princípio (sic) da duração razoável do

processo, consagrado no coração do sistema via Emenda Constitucional”. Cf. STRECK, Lenio Luiz;

ABBOUD, Georges, op. cit., p. 12. 375

Apresentação. In: RAMIRES, Maurício, op. cit., p. 24.

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decidir fora da história, sem enunciação, na mais lídima autonomia

dos enunciados, em que a responsabilidade do julgador é extinta!”.

No mesmo sentido são as severas críticas de LENIO LUIZ STRECK à

aplicação de julgados anteriores a casos presentes e à atividade dos juristas de

se pautarem na jurisprudência para orientar a conduta daqueles que lhe

questionam376

:

[...] O “operador do direito” (sic) vai trabalhar no seu cotidiano

com soluções e conceitos lexicográficos, recheando, desse modo,

suas petições, pareceres e sentenças com ementas jurisprudenciais,

citadas, quase sempre, de forma descontextualizada, afora sua

atemporalidade e a-historicidade.

[...]

Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos. [...]

O jurista acaba sendo, a um só tempo, “cronofóbico” e

“factumfóbico” (o tempo e a facticidade acabam sendo seus

maiores inimigos). Com um pouco de atenção e acuidade, pode-se

perceber que grande parte de sentenças, pareceres, petições e

acórdãos é resolvida a partir de citações do tipo Nessa linha, a

jurisprudência é pacífica (e seguem-se várias citações

padronizadas de número de ementários), ou Já decidiu o Tribunal

tal que legítima defesa não se mede milimetricamente (RT

604/327) (sic), ou ainda que abraço configura o crime de atentado

violento ao pudor, cuja pena, ressalte-se, varia de seis a dez anos de

reclusão, além de ser crime hediondo (RT 567/293; RJTJSP

81/351) (sic). São citados, geralmente, apenas os ementários,

produtos, em expressivo número, de outros ementários (ou da fusão

destes). Raramente a ementa citada vem acompanhada do contexto

histórico-temporal que cercou o processo originário. Isso tudo para

dizer o mínimo...!

A grande preocupação por detrás das críticas à aplicação de precedentes

é o trato frio do caso concreto. É, em última análise, com as injustiças que a

“padronização” da jurisprudência pode causar: deixam-se de lado as

376

À Guisa de Prefácio. In: RAMIRES, Maurício, op. cit., p. 11-20.

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importantes particularidades do caso concreto em nome da uniformização

“estética” de entendimentos jurisprudenciais377

.

Outro tipo de crítica que se faz à utilização de decisões judiciais

passadas – tão-somente elas – como fundamento de uma decisão judicial378

.

A questão de fundo, de qualquer forma, é se se aplica “mal” ou “bem”

um precedente, o que se mostra uma análise subjetiva, tanto quanto as teorias

argumentativas dos limites à interpretação do direito positivo. Em ambos os

casos a tentativa de controle nos parece inútil, quer por meio de normas de

competência379

, quer por meio da dogmática.

Contudo, não nos parece que a solução seja, por isso, simplesmente

abolir a utilização de decisões judiciais. Não é porque existem maus

motoristas que não se devem vender mais carros! O risco de estandardização

do direito e a suposta má utilização dos precedentes podem ser críticas muito

bem trabalhadas, mas não rebatem os ganhos de se valorizar a decisão

judicial, como aquele demostrado aqui.

Neste sentido, não vemos sentido em afastar a ideia de autovinculação

das decisões judiciais pelo receio da má utilização dos precedentes e das

injustiças nos casos concretos. “Injustiças” podem existir com ou sem a

aplicação de precedentes. De outro lado, vemos um efetivo ganho na ideia de

377

Neste sentido ver STRECK, Lenio Luiz e ABBOUD, Georges, op. cit., p. 11. 378

Neste sentido ver RAMIRES, Maurício, op. cit.. 379

É interessante notar como Lenio Luiz Streck e Georges Abboud acreditam ferrenhamente que é possível

controlar o exercício da competência judicial unicamente por meio de normas: “Cada verbete esconde o caso.

A tese esconde o caso concreto. E o projeto do novo Código de Processo Civil parece estar encantado com os

“precedentes” do direito do common law. E, pior: insiste nos embargos declaratórios, esse instrumento de

quinta categoria que só serve para “esquentar” decisões mal fundamentadas. Os embargos declaratórios são o

sintoma de que o furo é mais embaixo. [...] Vou insistir de novo: é possível um sistema jurídico “dar certo”,

se os Códigos Processuais admit(ir)em (ou continuarem a admitir) que um juiz possa exarar sentenças

omissas, contraditórias ou obscuras? [...] Se começássemos por aí, obrigando o juiz a não exarar sentenças

omissas, contraditórias ou obscuras, já estaríamos avançando sobremodo”. Op. cit., p. 12.

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Estado de Direito mediante valorização da jurisprudência, considerando a

falibilidade do direito positivo.

5.5 Estabilização da Jurisprudência por meio de Súmulas

É antiga a utilização de súmulas para uniformização de entendimentos

dos tribunais380

. Embora a priori possa parecer mais forte que a ideia de

precedente, não concordamos que as súmulas sejam um bom mecanismo de

complemento à falível legalidade do direito positivo.

Isso porque as Súmulas se descolam de seu contexto de produção,

ganhando status de norma geral e abstrata. As súmulas, vinculantes ou não,

transformam o individual e concreto da decisão judicial, que é exatamente o

ganho de legalidade diferenciador desse tipo de veículo introdutor, em geral e

abstrato, por indução381

.

LENIO LUIZ STRECK, crítico ferrenho das súmulas vinculantes, faz a

seguinte afirmação que, embora seja expressamente extensível às normas

gerais e abstratas, faz todo o sentido para essas também382

:

Ou seja, continuamos a achar que – e essa discussão vai além das

súmulas (vinculantes formalmente ou não) – é possível construir

conceitos jurídicos (enunciados jurisprudenciais) aptos a prever

380

A utilização de Súmulas como forma de uniformização de entendimentos tem origem nos “assentos” do

direito português. Tal instituto foi incorporado ao direito brasileiro ainda na época do Império, embora não

tenha permanecido na República. Seu retorno, sob a forma de “súmulas”, foi em 1963, com o objetivo

(aparentemente novo) de desafogar o Supremo Tribunal Federal, por meio de regras regimentais. A

legislação propriamente dita só disciplina a forma de utilização das súmulas, isto é, como ela poderia servir

para “barrar” a subida ou o exame de recursos aos tribunais superiores (art. 555, §1º, da Lei nº 10.352, de

2001; Lei nº 8.038, de 1990; Lei nº 9.139, de 1995, que alterou o art. 557 do Código de Processo Civil; Lei nº

9.756, de 1998, que alterou os artigos 544 e 557 do Código de Processo Civil). A formação de súmulas ainda

é assunto tratado regimentalmente pelos tribunais superiores. Para aprofundar o estudo da evolução das

súmulas ver BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Súmula, Jurisprudência, Precedente: uma escalada e seus

riscos”, cit., p. 49-58; MANCUSO, Rodolfo de Camargo, op. cit., p. 157-276 e 341-400. 381

Defendemos que precedentes e súmulas ocupam papeis diferentes no sistema jurídico, diferentemente de

Lenio Luiz Streck e Georges Abboud no livro O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?,

cit., p. 9. 382

“À Guisa de Prefácio”, cit., p. 11.

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todas as futuras hipóteses de aplicação. Super-normas, pois. É

como se fosse possível “colocar” no interior de um texto jurídico

todas as suas hipóteses de aplicação.

É exatamente por transformarem normas individuais e concretas em

gerais e abstratas que as súmulas passam a sofrer em seu processo de

aplicação das mesmas mazelas que as leis: dissociadas das variáveis de casos

concretos, pretendem regular condutas futuras e, com isso, terão de lidar com

a mesma falibilidade inerente ao direito positivo.

De forma diferente, os precedentes, como normas gerais e concretas,

mantêm o seu ganho em relação às fórmulas gerais do direito positivo e das

Súmulas, pois, ao manterem vinculação ao contexto de produção, eliminam

vaguezas, ambuiguidades e todas as formas de lacunas que expusemos no

Capítulo 3.

5.6 Mudança do Precedente e Efeitos Jurídicos Prospectivos

Uma das questões mais recorrentes quando se discute o tema dos

precedentes, ou seja, da manutenção de decisões judiciais a casos posteriores,

é a mudança desse parâmetro jurisprudencial: quando é possível / admissível /

recomendada a mudança de um precedente383

?

Obviamente essa é uma preocupação mais recente em sistemas

jurídicos como o nosso e já possui vasta literatura nos sistemas de common

law384

.

383

Nos sistemas de common law a mudança de precedente é chamada de overruling. 384

Para o aprofundamento do estudo da modificação de precedentes nos países de common law ver:

BRENNER, Saul; SPAETH, Harold J. Stare Indecisis: the alteration of precedent on the Supreme Court,

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Podem ser alegadas diversas razões para modificar-se um precedente.

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER aborda o problema sob a dualidade

previsibilidade / evolução do direito385

:

Não parece que possa existir país algum no mundo em que esta

tensão não esteja presente: o direito deve preservar o status quo,

mas não pode ser imóvel.

[...]

O fato de o homem poder viver segundo regras preestabelecidas e

por ele conhecidas pode ser considerado uma conquista da

civilização. A simples circunstância de os padrões de avaliação de

sua conduta serem conhecidos, independentemente do juízo de

valor que a respeito desses padrões de avaliação se possa fazer,

satisfaz e tranquiliza. Pode-se dizer que uma das mais relevantes

funções do direito é a de, justamente, gerar previsibilidade.

Mas como o direito serve à sociedade e esta se modifica, é também

necessário que, em alguma medida, o direito exerça a delicada

função de adaptar-se.

As dificuldades para construção de critérios – legais ou dogmáticos –

aptos a controlar a mudança de precedentes nos parecem muito próximas

daquelas para controle da interpretação dos juízes sobre as leis. A primeira

grande dificuldade pode ser encontrada no fato de que são os próprios juízes

os detentores do poder de interpretação de uma lei, inclusive daquela que

prevê os critérios de limitação de seu próprio poder. Do mesmo modo, são

eles que interpretação as decisões passadas tomadas por eles próprios ou por

outros juízes, fixando precedentes. Em outros termos, mediante a

interpretação sabemos o quanto é possível manipular o sentido da lei e da

decisão judicial anterior e, assim, dar a elas determinados significados que

fragilizem o controle pretendido.

Ratio of the Ratio Decidendi. The Modern Law Review, vol. 22, n. 6, 1959. Disponível em:

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2230.1959.tb00561.x/pdf. Acesso em: 3 nov. 2013;

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(coord.). Precedent in Law, Oxford: Clarendon, 1987. 385

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Por outro lado, a dogmática tem um papel mediato e imensurável diante

desse problema, considerando que atua tão-somente na formação e no

convencimento dos juízes, sem uma vinculação obrigatória específica diante

do exercício da competência jurisdicional386

.

Diante disso e coerentemente com o status que propusemos dar aos

precedentes, nos parece que a forma jurídica mais efetiva para permanecer

ganhando previsibilidade através da jurisprudência é atribuir à mudança de

entendimentos o efeito prospectivo387

.

Propusemos nos itens anteriores que os enunciados prescritivos dos

precedentes deveriam integrar-se aos enunciados prescritivos das normas

gerais e abstratas, construindo-se uma RMIT Dinâmica, que garante mais

precisão e, com isso, aumenta o grau de legalidade tributária e fortifica a ideia

de Estado de Direito. Considerando que os enunciados prescritivos dos

precedentes passam, desta forma, à condição de norma geral e abstrata388

,

complementando o sentido do falível direito positivo, nos parece

absolutamente coerente defender que a sua mudança não tenha efeitos

retroativos389

.

386

A ideia de manter-se um precedente por tempo razoável, de modo que não seja imutável, mas garanta

uniformidade, é corriqueira, mas de difícil objetivação, levando a análise para o caso concreto em detrimento

de uma generalização desejada. 387

A professora Misabel Abreu Machado Derzi aborda brilhantemente esse tema sob a perspectiva dos

princípios da proteção da confiança e da boa-fé objetiva como limitações constitucionais do “poder judicial

de tributar”, apoiada nas teorias de Niklas Luhmann e Claus-Wilhelm Canaris, na obra Modificações da

Jurisprudência no Direito Tributário, cit., capítulos IV e V. 388

Teresa Arruda Alvim Wambier reconhece esse papel integrativo da jurisprudência para regulação de

condutas futuras na Apresentação do livro Direito Jurisprudencial, por ela coordenado: “Mas para que se

fazer a uniformização da jurisprudência, com o objetivo de preservar o princípio da igualdade, gerando,

portanto, previsibilidade, em torno, por exemplo, do conceito de “cláusula abusiva”, é necessário que se

aceite e se compreenda que cada juiz não pode ser sua opinião pessoal a respeito do que seja uma cláusula

abusiva: uma vez pacificada a jurisprudência em torno de um caso de abusividade, a qualificação aí definida

passa a fazer parte do direito. E a jurisprudência, em casos assim, cria direito”. Direito Jurisprudencial, cit.,

p. 6. 389

Embora partindo de uma premissa construída de forma diversa, Teresa Arruda Alvim Wambier também

propõe essa solução, e especificamente para o direito tributário, considerando ser ramo do direito público:

“Algumas distinções devem ser feitas a partir do conceito de ambiente de decisão. Este conceito deve

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Ao admitir efeitos prospectivos para a mudança de um precedente (para

a nova decisão judicial que substitui a anterior, por trazer um novo

entendimento do STF ou do STJ sobre o assunto), deixa-se de perder

previsibilidade, abandona-se a difícil tarefa de controlar esse tipo de atuação

do Poder Judiciário e, ainda, mantem-se coerente a ideia de utilização de uma

decisão judicial para regular condutas futuras.

Se a jurisprudência complementa a lei, se a decisão judicial atua de

maneira efetivamente lateral (e não inferior) às normas gerais e abstratas, não

faz nenhum sentido atribuir tão-só à alteração do direito positivo as proteções

constitucionais de irretroatividade e direito adquirido.

orientar nossas considerações sobre a função da lei e a função da jurisprudência, sobre a evolução do direito,

sobre a conveniência da adoção de precedentes vinculantes ou que inspirem elevado grau de respeito. Não há

uma resposta universal a todas as perguntas que se podem formular acerca destes tópicos. Justamente a

distinção entre ambientes de decisão pode, a nosso ver, servir de útil ponto de partida para reflexões. Os

ambientes de decisão – situações de direito material que serão objeto de decisões jurisdicionais – é que

determinam o sentido das respostas. A decisão do juiz deve, como regra, respeitar as características do ramo

do direito material que disciplina o caso posto sob sua apreciação. Se se tratar, por exemplo, de um caso a ser

resolvido por normas de direito tributário, princípios de direito tributário hão de ser respeitados: o da estrita

legalidade tributária, o da anterioridade, o da capacidade contributiva e tantos outros. Portanto, nestes

ambientes decisionais rígidos o sistema de precedentes vinculantes produz bons resultados. Inovações neste

ramo do direito não devem fazer-se pela via da “criatividade” judicial. A evolução do direito deve ter lugar

por obra da lei. A possibilidade de que a alteração da jurisprudência tenha efeitos “moduláveis” suaviza o

rigor desta regra de divisão de funções.”. “Precedentes e Evolução do Direito”, cit., p. 17-18.

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CONCLUSÃO

Embora haja uma percepção generalizada sobre a importância da

jurisprudência para o direito tributário, esse fenômeno não vinha sendo

tratado e sistematizado cientificamente. Só mais recentemente, em

decorrência de profundas reformas processuais que modificaram a atuação do

Poder Judiciário, especialmente dos tribunais superiores, é que a Ciência do

Direito passou a direcionar seu olhar para jurisprudência.

Em razão de pertencermos à chamada família de civil law, o papel da

jurisprudência sempre foi definido como secundário. Nessa concepção

secular, as leis é que assumiriam papel fundamental para regulação de

condutas no Estado de Direito, inclusive e obviamente no que se refere à

instituição e cobrança de tributos. Entretanto, a notável e intensa atuação dos

tribunais em matéria tributária nos últimos anos, fez com que voltássemos a

atenção para o funcionamento do modelo common law, considerando que,

nesse modelo, a jurisprudência é encarada como apta à regulação de condutas

futuras, assim como as normas gerais e abstratas. Muitos passaram a se

perguntar: ao valorizar a jurisprudência estaríamos, no Brasil, adotando o

chamado modelo common law?

O que pretendemos neste trabalho, em primeiro lugar, foi desmistificar

essa concepção de que a jurisprudência teria um papel secundário nos

sistemas jurídicos do modelo civil law, especialmente no Brasil e em matéria

tributária. A análise crítica do funcionamento das leis mostra que não faz

muito sentido acreditar que a regulação de condutas seria executada

primordialmente só por meio de normas gerais e abstratas.

O direito positivo tem duas caraterísticas essenciais, ou seja, sem as

quais ele não existe, e que são justamente a causa de sua limitação para

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regular condutas, inclusive a de pagar tributos: (i) se constitui a partir da

linguagem e (ii) é elaborado no presente com a pretensão de atingir fatos

futuros.

O fato de o direito positivo ser constituído a partir da linguagem – e não

haveria outra forma – faz com que ele sofra de todos os “males” que as

palavras trazem consigo, especialmente do ponto de vista semântico:

ambiguidade e vagueza. Embora toda palavra traga consigo um mínimo de

significado existe também uma zona de penumbra que gera dúvidas no

intérprete. Além disso, as palavras não precisam e efetivamente não guardam

relação com os objetos que elas pretendem nomear: existe, tão-somente, uma

relação arbitrária, estabelecida entre o utente da linguagem e a “realidade”,

entre o termo e o “objeto”. É aqui que entra o papel dos tribunais, para suprir

lacuna de “reconhecimento”, na terminologia de Alchourrón e Bulygin:

coube, como ainda cabe ao STF dizer o que significam os termos “renda”,

“circulação”, “mercadoria” e tantos outros presentes no capítulo da CF/88 que

regula o Sistema Tributário Nacional.

De outro lado, a “abstração” se mostra como outra característica que,

embora inerente ao direito positivo, também o torna falível, delegando-se aos

tribunais a tarefa de “corrigi-lo”. Cabe àquele que elabora as regras gerais e

abstratas, seja ele o legislador típico (Poder Legislativo) ou atípico (Poder

Executivo), “prever o futuro”. Sim, isso mesmo: prever o futuro. As leis e os

atos infralegais são elaborados num contexto presente, mas com a pretensão

de serem aplicados para fatos vindouros. Não é preciso uma longa digressão

para perceber que, estando ausente no ser humano essa capacidade de ver

além do atual, essa atividade de futurologia está fadada a um grau de

insucesso. O famoso exemplo do motorista de uma ambulância que chega ao

parque e é proibido de entrar em razão da existência da regra que anuncia “é

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proibido entrar com veículos no parque”, denota bem a falibilidade dessa

atividade exercida pelos fazedores de regras. Novamente, é a jurisprudência

que ocupará esse espaço, mas, agora, para suprir as lacunas que Alchourrón e

Bulygin chamam de “axiológicas” e “normativas” (não para fazer justiça ou

exercer o famoso “ativismo judicial”).

Essa atuação dos tribunais não deveria ficar restrita ao plano das

normas individuais e concretas. Isso porque o déficit de legalidade deixado

pelas normas gerais e abstratas pode levar a situações nas quais o indivíduo

simplesmente não saberia se comportar: devo ou não devo pagar tributo sobre

os lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior, sediadas em países

que não são considerados “paraísos fiscais”? A manutenção da secular

percepção de que a lei (ou até mesmo os atos infralegais, desde que gerais e

abstratos) tem a capacidade de regular a norma de incidência tributária,

deixando-se a jurisprudência com uma função acessória, pode levar a um

falso Estado de Direito. Como diz John Rawls, “se não sei me comportar

perante a lei, então, não sou livre”.

Esse papel fundamental que a jurisprudência exerce na delimitação da

legalidade tributária não é – não deveria e não poderia ser – característico tão-

só dos países de common law. É enganosa, portanto, a distinção de que a

jurisprudência só poderia ser fonte primária do direito nos países que adotam

o modelo common law. Quer os países de civil assumam, quer não, a

jurisprudência atua complementarmente na regulação de condutas, assumindo

função essencial na delimitação da legalidade. Por essa razão, essa distinção

entre ser a jurisprudência fonte primária ou secundária parece mais valorativa

que científica. Os países de common law nasceram da percepção de que as

decisões judiciais servem para regular condutas futuras, mas nem por isso

deixaram de produzir, ao longo do tempo, regras gerais e abstratas que

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complementam esse modelo, fortalecendo a noção de legalidade. Falta,

portanto, a países como Brasil, que adotaram o direito positivo como forma de

regulação de condutas, a percepção inversa: valorizar seriamente a atividade

jurisdicional, aumentando consideravelmente o efetivo alcance de um Estado

de Direito.

Considerando que, cientificamente, essa concomitância dos

mecanismos utilizados pelos modelos de civil law e common law aumenta a

legalidade tributária, um segundo passo seria analisar que tipo de decisão

judicial, na qualidade de norma individual e concreta, pode ser capaz de

cumprir o déficit inerente às leis (normas gerais e abstratas). A primeira noção

investigada é a de “precedente”.

O termo “precedente” não encontra critérios de uso muito bem

definidos no Brasil. É utilizado, doutrinária e judicialmente, em geral para

fazer referência a entendimentos anteriores, bem proximamente ao sentido

literal (aquilo que precede). Diferente é o uso do termo nos países de common

law e que parece fazer mais sentido segundo o que se defende neste trabalho.

Aqui, portanto, o conceito de “precedente” vincula-se à ideia de estabilidade

interpretativa – manutenção de um entendimento jurisprudencial por

determinado tempo.

A noção de estabilidade interpretativa aproxima a norma individual e

concreta exteriorizada pela decisão judicial das características de abstração e

generalidade das regras tributárias. Assim como as normas gerais e abstratas

podem ser revogadas, também o que estamos chamando de precedente pode

ser substituído, dando origem a entendimento diverso. Mas entre a produção e

a retirada dessas normas do sistema, existe um tempo de vigência que garante

aos destinatários a noção de estabilidade. A estabilidade que chamamos

interpretativa, por estar ligada à decisão judicial e não às regras tributárias,

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pode ser alcançada por meio da existência de dois mecanismos: definitividade

e vinculação.

A definitividade não está relacionada, neste trabalho, essencialmente

com o “trânsito em julgado” da decisão judicial. O fato de uma decisão ter

transitado em julgado não representa, necessariamente, a impossibilidade de

rediscutir-se o assunto em instância superior (STF ou STJ) – outras razões

podem levar à coisa julgada, como administração de prazos e a necessidade

de análise de questões fáctico-probatórias. A definitividade para efeitos de

caracterização de um precedente relaciona-se, aqui, mais com o tribunal

competente para dar a palavra final sobre o assunto que com a

impossibilidade de interposição de recursos. Segundo o que dispõe a CF/88, o

STJ seria o órgão competente para dar a palavra final quanto à legalidade e o

STF quanto à constitucionalidade.

Por outro lado, de nada adiantaria a definitividade de uma decisão

judicial se ela servisse apenas para resolver um caso concreto, podendo o

entendimento ali adotado ser desprezado na apreciação de casos futuros. Se a

produção de novas normas individuais e concretas pelo STJ ou pelo STF

puder ser feita de forma desvinculada a entendimentos anteriores, a

jurisprudência deixa de ser um mecanismo útil para a regulação de condutas

futuras. Portanto, aliada à definitividade está a ideia de vinculação de

entendimentos anteriores a julgamentos posteriores, ambos garantindo o que

chamamos de estabilidade interpretativa. Mas como garantir, efetivamente,

essa vinculação? Ainda que de forma limitada390

, a “vinculabilidade” da

390

Diz-se de forma limitada, por duas razões: primeiro porque, considerando que o mecanismo garantidor

dessa vinculação é a “lei”, ela estará sujeita à interpretação de seus aplicadores e com o agravante que os

aplicadores serão os ministros do STJ e do STF, o que impede o mecanismo recursal para exercício do

contraditório. Em segundo lugar porque o processo de interpretação pelos juízes, ou seja, o exercício de

subsunção do caso a ser julgado no presente com os casos julgados anteriormente, é incontrolável. Parecem

inexistir, assim, mecanismos possíveis de controle dessas “falhas” do sistema de vinculação de julgamentos

posteriores a entendimentos anteriores, considerando a necessária limitação de instâncias e a natural

liberdade de interpretação dos juízes na aplicação de regras.

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produção de novas normas individuais e concretas pelos juízes pode ser

garantida por lei, como buscam os atuais mecanismos de julgamento de casos

em sede de Repercussão Geral (STF) e Recurso Repetitivo (STJ).

A atribuição da característica de precedente a determinada decisão

judicial está atrelada, no Brasil, em suma, às decisões vinculativas produzidas

pelo STF e pelo STJ. Decisões com esse tipo de característica cumprem

plenamente o papel de “integrar” a jurisprudência às normas gerais e

abstratas, precisando o sentido das regras tributárias e diminuindo o déficit de

legalidade prejudicial às liberdades individuais.

Essa “mistura” entre civil law e common law, entre norma geral e

abstrata e decisão judicial parece ser o mecanismo jurídico em último grau

para garantir a efetiva legalidade tributária391

. Outras medidas, extrajurídicas,

podem trazer diferentes luzes ao assunto – a melhora da formação jurídica dos

juízes, melhores formadores de políticas públicas, processos de capacitação

de legisladores – e, quem sabe, até maior efetividade para o dito Estado de

Direito, mas esse seria outro tipo de análise, perfeitamente possível de ser

feito, mas que não era o escopo deste trabalho.

391

Conforme afirma o magistrado inglês Lorde Leslie Scarman, “[...] há no mundo contemporâneo desafios

sociais, políticos e econômicos que destruirão o sistema caso este não possa enfrentá-los. Esses desafios não

são criados pelos juristas; eles certamente não podem ser eliminados pelos juristas; temos de enfrentá-los

desfazendo-nos do sistema jurídico ou adaptando-o. Qual das atitudes tomaremos?”. Op. cit., p. 13.

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